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Governo do Estado de São Paulo

Secretaria da Cultura

Literatura
Em um estado de vasta diversidade cultural como São Paulo, onde
é possível encontrar talentos e obras de grande qualidade nas
mais aclamadas expressões artísticas, o Programa Mapa Cultural Curadoria:
Paulista cumpre a sua missão de proporcionar espaço e visibili- Geruza Zelnys
dade para muitos artistas tornarem público seus trabalhos, o que Júri:
o caracteriza como um projeto de cultura capaz de contemplar Viviane Aparecida Lopes
aspectos formativos, informativos e de circulação de tais artistas. Igor Fernando Xanthopulo Carmo
Mario Rui Feliciani
Com mais de 20 anos de atuação o Mapa Cultural Paulista entra Daniel de Castro Cotti Moreira
em sua edição 2015/2016 mantendo o objetivo de fomentar as Francesca Nutti Pontes Cricelli
produções culturais do interior, revelando valores por meio de suas Paulo Eduardo Lacerda Rodrigues
fases Municipal, Regional, Estadual e Circulação, o que lhe con- Cristiane Fernandes Tavares
fere uma progressão de exposições de grande importância para Reynaldo Luiz Torre Damazio
os artistas de São Paulo, pois, seus trabalhos se destacam Alexandre Filordi de Carvalho
primeiro no município de origem, depois na região em que está
inserido. Ao final, na fase estadual, apresentam-se na capital
paulista e em outras cidades durante a Fase de Circulação.

O trabalho de Mapeamento que o programa consegue realizar,


possibilita uma real dimensão do quanto cada região do estado
é capaz de produzir ou até mesmo revelar nas 7 expressões
contempladas: Teatro, Dança, Artes Visuais, Canto Coral, Músi-
ca Instrumental, Literatura e Vídeo.

Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo


Literatura

O Mapa Cultural Paulista, desde a Fase Municipal (primeiro semestre de


2014), selecionou obras artísticas dos participantes de 201 municípios.
Tem por objetivo fomentar a produção artística do interior, identificando-
as com a missão de revelar valores e promover segmentos que não
teriam acesso aos meios de comunicação e com pouca visibilidade nos
meios culturais.

O Programa acontece desde 1995, e configurou-se como um dos mais


importantes projetos culturais de São Paulo do ponto de vista formativo,
informativo e de circulação de artistas do interior de São Paulo. Nenhum
estado brasileiro implementa algo parecido, constituindo-se, sem
dúvida, referência nacional.

No dia 18 de junho de 2016 o Mapa Cultural Paulista contemplou os


selecionados da expressão LITERATURA, nas categorias Conto, Crônica e
Poesia. Além da leitura dos textos premiados feita por atores, realizou-
se uma palestra com a escritora, crítica literária e curadora das Fases
Regional e Estadual, Geruza Zelnys.

A expressão Literatura contou com 82 textos selecionados e teve lugar


na Biblioteca Parque Villa Lobos, na cidade de São Paulo. A Fase Estadual,
por meio de um evento deste porte, valoriza e estimula a produção
artística de diversos estilos e gêneros do interior paulista.

Foram 76 textos selecionados, sendo 31 contos, 24 crônicas e 27 poesias.


Esta Antologia é composta por todos os textos selecionados na Fase
Regional, com destaque para os 18 participantes que receberam o
“Prêmio Estímulo”.

Abaçaí Cultura e Arte – Organização Social


Marcelo Silva .............................................................................................................................................................................. 78
Sabrina Paixão ........................................................................................................................................................................... 79
Índice Cícero Pais................................................................................................................................................................................... 80
Veridiana Sganzela Santos ................................................................................................................................................... 81
Katia Torres Negrisoli ............................................................................................................................................................. 83
Conto
Plinio Giannasi........................................................................................................................................................................... 85
Antonio Lázaro Sant´Ana ...................................................................................................................................................... 09
Zerroberto De Souza .............................................................................................................................................................. 87
Alda Maria Francisco Alves ................................................................................................................................................... 11
Serafin .......................................................................................................................................................................................... 88
Ju Costa........................................................................................................................................................................................ 13
Isa ................................................................................................................................................................................................... 89
Monica Luciana Ferraz............................................................................................................................................................ 15
Kayki Martins Ribeiro.............................................................................................................................................................. 90
Fernand Calegari ...................................................................................................................................................................... 17
Vicenza Chiaradia..................................................................................................................................................................... 91
Henrique Carreira..................................................................................................................................................................... 19
Maura Porpino........................................................................................................................................................................... 92
Valdete Nilza da Silva ............................................................................................................................................................. 20
J. Barthes...................................................................................................................................................................................... 93
Rui Sora Rodriguez .................................................................................................................................................................. 22
Elineu Rosa Tomé ..................................................................................................................................................................... 94
Conde Filho ................................................................................................................................................................................ 24
Duarte Rodrigues ..................................................................................................................................................................... 95
Esso Maciel ................................................................................................................................................................................. 26
Jonas de Antino ........................................................................................................................................................................ 96
Solange Vicentini T. Mössenböck ...................................................................................................................................... 28
André Kondo.............................................................................................................................................................................. 30 Poesia
William G. Gardel ..................................................................................................................................................................... 32 Ju Costa........................................................................................................................................................................................ 99
Chico Urcine ............................................................................................................................................................................... 33 Ana Maria Galdino Da Costa ..............................................................................................................................................100
André Monteiro......................................................................................................................................................................... 35 Doni ..............................................................................................................................................................................................101
Neguirene ................................................................................................................................................................................... 37 Mendigo das Palavras ...........................................................................................................................................................102
Fabricio Hersoguenrath ......................................................................................................................................................... 39 Dylan Dolan...............................................................................................................................................................................103
Ancelmo....................................................................................................................................................................................... 41 Madeleine Alves.......................................................................................................................................................................106
Tacitocortes ................................................................................................................................................................................ 44 Maricell ........................................................................................................................................................................................107
Lucimara de Souza Gomes ................................................................................................................................................... 46 Arsênio ........................................................................................................................................................................................109
Serafim ......................................................................................................................................................................................... 47 Alvaro Antonio Valvassore ...................................................................................................................................................110
Lucas Gatto ................................................................................................................................................................................. 49 Marco Aqueiva .........................................................................................................................................................................112
Ancelmo Lio ............................................................................................................................................................................... 51 Marlene Naves Chiepe ..........................................................................................................................................................113
Carla Terra ................................................................................................................................................................................... 52 André Kondo.............................................................................................................................................................................114
Vanessa Stollar .......................................................................................................................................................................... 55 Elves Ferreira .............................................................................................................................................................................115
Audinete Barros ........................................................................................................................................................................ 57 Danilo Pique..............................................................................................................................................................................117
Marlene Gil ................................................................................................................................................................................. 60 Lia Macruz ..................................................................................................................................................................................118
Cleberson Dias .......................................................................................................................................................................... 61 Luiz Lima.....................................................................................................................................................................................119
Anne Cristine Rodrigues........................................................................................................................................................ 63 Eduardo Gonçalves Dias.......................................................................................................................................................120
Gabi Bertelli (in memoriam) ....................................................................................................................................................... 64 Rubens Shirassu Júnior .........................................................................................................................................................121
Mara Liz Cunha ........................................................................................................................................................................122
Crônica
Isabel Raphael ..........................................................................................................................................................................123
Silvio César dos Santos .......................................................................................................................................................... 67
Carlucho......................................................................................................................................................................................124
Jessica da Silva Ferreira ......................................................................................................................................................... 68
Lorena Carla ..............................................................................................................................................................................126
Geraldo Varjabedian ............................................................................................................................................................... 69
Rarhas ..........................................................................................................................................................................................127
Ana Nery Machado.................................................................................................................................................................. 71
Adriana Harger.........................................................................................................................................................................128
Conde Filho ................................................................................................................................................................................ 72
Alberto Santiago .....................................................................................................................................................................129
Carolita ......................................................................................................................................................................................... 73
Ana Vieira Pereira....................................................................................................................................................................131
Flávio Ribeiro ............................................................................................................................................................................. 75
J. Barthes.....................................................................................................................................................................................132
Deusimar Bezerra Santos ...................................................................................................................................................... 77
Gabi Bertelli (in memoriam) ......................................................................................................................................................133
Região: Araçatuba | Cidade: Ilha Solteira
Antonio Lázaro Sant´Ana

Conto
Um outro rio ou uma fome sem fundo

Este moleque só me traz prejuízo, em vez de caderno, não larga é a danada da figurinha. O pai
explicava com língua definitiva de verdade. Eu tinha quebrado os varais da carroça nova, quer
dizer, culpa do cavalo retreta, vivia empacando e dando de-fasto. O tio Zé Luis inventou que era
madeira difícil de rachar, queria ver o pai me descendo a guasca, maldade de quem vive engolindo
malagueta, mas quer arder só o dos outros. Sorte eu ter pulado longe o carrinho entupido de
lenha. Já não escuto nadinha do lado esquerdo, um besouro de luz arranchou no meu ouvido,
com mais um defeito, vou conseguir casar um dia? Hoje todos vieram para a cidade passar a
noite em vigília com a vó Flosina, está magrinha que só vendo, doença-ruim, ferida no olho que
criou raiz, se alastrou pela garganta. Bocado de gente rondando a casa, prosas parecidas com as
de velório. Eu não me ajeito com o cheiro, parece de creolina, prefiro sentar do lado de fora. Um

Contos
punhado de parentes que não conheço. Volta-e-meia aparece alguma encrenca entre os irmãos,
acusação de que fulano está fazendo corpo mole. Chamei o Hélio para deitar no porta malas da
Belina, olhar o céu e lembrar das artes que fizemos com a Mariana e as outras meninas quando
foram nadar no rio: ajeitamos a cobra morta enroladinha na trilha. Depois brincamos todos na
água, segui a Mariana quando ela sentou em uma pedra no alto, espiando dali juntos, por algum
tempo eu, como por mágica, meio assustado, mergulhei em um outro rio, aquele dos olhos dela.
Pensei no Saulo, sempre no chalé, cercado de três lados pelo mato, no outro o pasto do sítio do
pai. Estudava demais, queria ser engenheiro de fabricar máquinas. À noite, naquele breu, sozinho,
sem medo dos miados da onça que costuma subir pela beira do rio; franzino, branqueio e de
óculos, porquerinha de nada. Gostava de ir lá conversar, ele deitado na rede da varanda, livro
na mão, assobiando músicas que não conheço, um riso preso dentro da garganta. Não manjo o
jeito dele, o amargo e o doce mastigado junto. Meia-noite o povo raleia, uns só vêm para prosear
e esperar o sono. Vou até o quarto, piso de chão batido, o ar pesado, oleoso, a Maria Pretinha
abanando as moscas que sempre teimavam em assentar, os gemidos. Os pés da cama dentro de
latinhas com água para as lava-pés não subirem. O Zé Luis cochila em um canto, a mulher dele
já enveredou-se por algum escurinho, ele conformado, manso. O pai me olha feio, querendo
me comer vivo. Saio de novo, o cheiro, grudento, me segue. Amanhã o pai me larga um rosário
de coisas para fazer, trocar as novilhas de pasto, conferir o sal nos cochos, buscar abóbora para
os porcos, sempre tem mais, cerca para consertar ou rês com bicho, serviço para entupir um dia
inteiro, como não repetir o ano? Já a Regina tem uma bruta folga, as rédeas da mãe são frouxas,
bate perna à vontade. Soltei a égua na baixada, de longe a avistei entrando no chalé. Por dentro
do mato fui espiar, fintando os gravetos estalantes. Semideitados na rede, riam gostoso, Regina
tirou-lhe os óculos e o beijou lentamente, como quem chupa fruta devagarinho, arrancando um
sabor escondido mais no fundo. Vontade aguda de estar com Mariana, mesmo sabendo que
me trazia uma sensação esquisita na boca do estômago, como se tivesse comido vidro moldo.
Formou outro reboliço no quarto da vó, o pai sai apressado, vem pegar a belína, nos expulsa
com um rosnado, vai chamar o farmacêutico. Tenho vontade de chorar, a garganta inchada,

9
Alda Maria Região: Araçatuba | Cidade: Penápolis
Francisco Alves

Conto
Sonho de Valsa

daqui sinto o cheiro e o gosto A agonia é uma Tão pequena e já vai à escola. Jardim da Infância.
do sangue e da ânsia. Coitada! Tinha tanto medo desta hipotenusa de vinte
hora, mas sei que minha raiva e vertigem passos: um pedaço de quintal Os quarteirões de casa até a escola são tão compridos, que as
não é só pela vó, estou desabitado de terra branca que recebe folhas perninhas curtas demoram a cruzá-los. Grupo Escolar. Penápolis.
de alegria, mesmo desta de buscar e ciscos do capão de mato. Da rede eu
lá na frente dos dias, a Mariana foi via Regina apontar longe no trilho, andar Primeiro Grupo Escolar Luis Chrisostomo de Oliveira. É logo ali, diz
embora, não sei volta mais. displicente, como pisando distraída no tédio. a mamãe. No centro da cidade. Avenida Luis Osório.
Queria ser como Regina, o Minhas veias inchavam, mas continuava apenas
Número?
chalé fechado, o mato no balançando o corpo na rede, dias a fio. Depois a
terreiro, a rede sozinha, ânsia se destilava no fel suave de uma nova espera.
A menininha não sabe. Não conhece todos os números. Ainda está
mas há muito ela já O poço secou e foi ao buscar água no sítio vizinho que a
aprendendo. Mas sabe o ano: 1954. Ou será a memória...
saboreia outra descobri. Quase uma menina ainda, postura meio torta,
fruta .. o olhar enviesado de quem não se acostumou a encarar os homens, O portão da escola é enorme, para olhinhos tão desacostumados com a
mas não dissimula o desejo compacto de fazê-lo. Dava respostas rasas, não para esgotar o vida. É por ali que os alunos entram. Alguns metros separam o
assunto, apenas não sabia puxar os fios da meada. Embora sem asas, tinha a intuição de que Primeiro Grupo, do barzinho da esquina. Bar Tabú! Assim mesmo com
nascera ave; ainda assustada, deixava escapar pensamentos que queimavam, taturana peluda na acento. Nome esquisito! Deve ser de índio. Aqui nesta região havia
carne crua. Quando lhe chamei para perguntar da saúde da avó, o constrangimento me acusou a muitos índios, diz dona Julieta, a professora. A meninada comentava
outra intenção. Depois, vários dias não passou em frente ao chalé, quase me resignei em agarrar que eles haviam morado no local onde hoje é a escola. Aliás, no
as apostilas, ameacei perguntar dela ao irmão, mas em um fim de tarde até então chocho, me porão da escola. Onde tem grades. Que medo!
deparei os olhos graúdos e verdes sorrindo, eu não enjoava de estudar? Trouxe-me goiabas
brancas, sentou-se na varanda junto à rede e, num instante, experimentava o balanço. Mais duas A garotinha tão magrinha passa à frente do portão, mas desvia da
visitas e o estudo se tomou um projeto absurdo. Sabia me encantar sem dizer quase nada, mas escola, atravessa a rua e entra no bar.
havia também uma inocente perversidade ao ironizar as imposições do pai. Enviesava-se pelas
estórias ouvidas na rádio evangélica; percebi que nas pregações melomísticas, não a atraia a Os olhinhos se espantam. Brilham.
questão da fé, antes, pelo contrário, os seus desvios, o que havia de picante nas histórias da
bíblia e nos depoimentos, o que é sodomia? Ruborizava, mas as pupilas ardiam, uma caminhada Guardados a sete chaves, em um armarinho de vidro, lá estão eles, os
tateante no escuro, tocando desejos expulsos da sala. Um dia, os corpos dividindo a mesma doces em profusão e, entre eles, aos montes e são tantos e rubros
rede, o vento remexendo as folhas, erguendo poeira no quintal, as falas lentas, a língua mais os sonhos de valsa de papéis tão brilhantes. Lindos!
densa, a pergunta: é normal pensar quase só no pecado, dia e noite, como uma fome sem
O japonês, dono do bar, é simpático e balança nas mãos uma chave
fundo? Os olhos verdes intensos, sarças ardentes no deserto, a boca, uma fruta tão viva, tão
mágica que abre a portinha das guloseimas, enquanto indaga: qual
perto de mim, não me ocorreu outra ideia senão concordar e sentir o gosto ancestral do pecado.
deles a pequena vai querer?

Com o rostinho corado, os cabelos em trança, presos no alto da cabeça


por um enorme laço de fita branca e os olhinhos ardendo de vontade
de saborear os doces, a menininha estica o fura-bolo e diz baixinho:
esse.
Rapidamente, sai com o Sonho de Valsa nas mãos. Um tesouro. Um só. O
dinheiro era curtinho, não dava para dois.

10 11
Região: Araçatuba | Cidade: Penápolis
Ju Costa

Conto
Bem devagarzinho, desenrola o papel que envolve o bombom. Olha. Olha
de novo. Admira. Papel vermelho ou rosa? Rosa, igualzinho ao nome da
mamãe. Rosa. Guarda-o, na lancheira. Retira o papel prateado. Abre a
boca e morde o doce saboreando cada pedacinho, lentamente, até o
Carta de despedida
último grão.
Quando te vi pela primeira vez me encantava o modo como mexia seu café, tão
A festa não acaba aí.
despreocupadamente. Você mal me olhava. Você realmente não me via. Eu me desfazia em
Com gesto rápido, tira da lancheira o papel. Vermelho? Ou rosa? Rosa. gracejos e tentava parecer confortável. Confortável como fiquei sob o cobertor, naquele fim
de tarde frio em que a maresia tentava nos congelar, mas nossa pele nos mantinha aquecidos.
Olha-o de um lado para outro. Leva-o aos olhos, contra a luz do céu,
Demorei a vida inteira pra te perceber sem saber que em um segundo iria te perder. Um segundo
daquela manhã feliz e vê tudo rosa. Ri feliz. Tudo rosa. A vida é
que se arrastou dolorosamente, cravando suas unhas pelo mofo das paredes. O primeiro beijo
rosa. O mundo é rosa. Tudo é rosa! Tudo tão lindo.
que te roubei quando nem sabia o que queria e você o que sentia. Agora as minhas lágrimas
Caminha em direção à escola olhando através do papel, o mundo rosa. se espalham com você pelo vento e se misturam às águas dessa cachoeira. Enquanto sua alma
Casais dançam no papel rosa. No papel rosa do bombom tudo é possível, se desprende dos meus dedos, as lembranças teimam, invadem, arrebentam. A primeira vez
que te convidei pra sair. Seu sorriso de orelha a orelha, todo estabanado, se apoiando na porta
até alegria e valsa. Quanta gente, e eles dançam. Um, dois, três,
aberta do carro. “Claro!” e eu sorri também. Era difícil não me perder de mim quando te via
quatro. Quatro casais. Está aprendendo números. Só sabe até o cinco.
sorrindo assim, com mil pontos de luz entre os lábios. Eu vi essa luz desaparecendo aos poucos
Está muito bom. É pequena, ainda. Os casais dançam. Uma valsa. Sonho
de você. E cada suspiro teu aumentava minha angústia. Eu tentava parecer forte. Você precisava.
de valsa. Eles bailam o tempo inteiro, alheios ao que se passa ao
Você merecia. E quando sentia que ia desmoronar lembrava dos teus braços em volta da minha
redor. Simplesmente, dançam. Como se rodopiassem. Não percebem que a
cintura, me puxando, me provocando, morrendo de rir da minha cara de assustada por te ver
menininha os espia. Dançam. Ela olha o papel rosa. Admira a moça de
tão desinibido, cochichando indecências ao pé do meu ouvido, e eu te beijava como se o
amarelo. Com vestido esvoaçante. O moço todo de preto. Será que são
mundo fosse somente nosso e lá fora não importasse mais. Eu não sabia que uma tênue linha
namorados? Devem ser. Que vestido lindo! Que comprido! Amarelo. Já ligava esse beijo ao último, quando você disse “Adeus” porque não dava mais. Eu te pedi “não,
conhece cores. O amarelo do vestido, no papel rosa. O mundo rosa por favor, fica”. E chorando você atravessou aquela porta. Eu jurava que havia outra. Tarde
espiando o casal de dançarinos. Espiando tudo rosa e amarelo. E demais eu descobri que naquele dia, quando você saiu do meu apartamento, disse à primeira
sonha... pessoa que encontrou: “Ela é o amor da minha vida.” Parada aqui eu posso te ver. Entre as
águas teu rosto sorri pra mim. Quem acreditaria? Cética como sou, eu mesma me contesto.
A menina dança também. Ali na rua mesmo! A vida é rosa, como o papel
Viro o rosto e volto a olhar. Você está lá dizendo que nunca vai me deixar. Como disse naquela
do bombom. Gira, gira, mundo rosa! manhã em que acordei e me enrolei em você, descansando o rosto nas suas costas, passando
o calor do sol que entrava pela janela para o seu corpo. Como eu disse na primeira vez que
Olha mais uma vez o mundo rosa através do celofane. Hummm! Cheira o
você se despiu pra mim sem saber minha reação, pensando em mil coisas. Mas eu só pensava
papel. Sente ainda um restinho de aroma do chocolate. Enjoada amassa o
em você. Não conseguia te largar. Te pegava fugindo pé ante pé pela manhã para ir trabalhar,
papel rosa, o casal dançando e os joga dentro da lixeira. A sineta
queria que eu dormisse até mais tarde. Eu só queria se fosse no seu abraço. Abraço que eu
da escola toca. O sonho acabou. Outros vieram e, muitas vezes, ao
te dei quando você aceitou que eu te ajudasse. Seu rosto colado no meu colo, seus cabelos
passar pela escola querida, sempre dá uma espiadela, no Bar Tabú, presos nas minhas mãos. Suas lágrimas molhavam minha blusa. Eu só queria beijar os teus
pintado de amarelo, resplandecente, parece a cor do vestido da moça cabelos como se através dos meus lábios pudesse acalmar seus pensamentos de dor e revolta.
que dança até hoje no sonho de valsa, envolto em papel celofane rosa, Sozinha em meio à multidão. Assim me sinto enquanto vejo cada um dos nossos amigos se
que encantava o mundo da menininha. Será que não se cansam de dançar? despedir de você. Parecem estranhos. Sempre estiveram conosco. Mas nunca estiveram em
Onde todos agora? Ninguém sabe. Só o PRIMEIRO GRUPO ESCOLAR continua nós. Eles nos viram dançando. Ouviram nosso nome ser anunciado no microfone do karaokê
no mesmo lugar, grande, impávido, como um navio ensinando os como o mais novo casal. Aplaudiram. Estavam felizes. Estávamos felizes. E eu me perdia no
rumos da vida para outras menininhas e meninos com cabecinhas cheias toque da tua mão em meu rosto e no rodopio dos nossos corpos sob as luzes, o gozo eterno
de sonho e de esperança. daquela lembrança. Lembrança que tenho agora do seu último dia. Depois de meses você disse
“Eu te amo”. E eu sorri. Ainda achava que me amava como amiga, como irmã que te amparou.
Não percebi que naquelas trevas foi o único instante em que teu olho brilhou. Não consegui

12 13
Região: Araraquara | Cidade: Matão
Monica Luciana Ferraz

Conto
Incógnita

Clara acordou, sentou-se na cama; permanecendo assim por um momento. Era pouco mais
de oito da manhã de um dia de primavera. O céu azul e a inércia das folhas nas copas das
árvores denunciavam que seria mais um dia quente e abafado, mais um em que se sentia com
pouco ânimo para qualquer coisa.
Pôs a culpa na insônia que a castigava há tempos.
Para não fugir à rotina, tomou seu café e leu os jornais; em sua ampla sala de estar, sentou-
se no confortável sofá para assistir ao noticiário.
Apesar de ainda jovem, viveu um longo período sob os holofotes da fama; porém, àquela
altura, amargava-lhe o esquecimento.
Pensou que poderia sair para um passeio a pé após o almoço.
Desistiu da televisão, retomando a leitura de um livro, poucas páginas de leitura,
ficar sentada naquela igreja. Não consegui ver suas coisas empilhadas artisticamente sobre o
desconcentrada e amiúde, tomaram o resto da manhã.
caixão. Não era você. Não o mesmo. O mesmo que me abraçou quando raspou seus cabelos.
Chegada a hora do almoço, novamente estava sem fome e tomou apenas os remédios, mas
O mesmo que não me viu chorar abafando as lágrimas agarrada à tua nuca. Nuca que eu fiz
ainda tinha em mente o passeio.
arrepiar, que prensei contra a parede do banheiro, que mordi na ânsia de te querer mais pra
Arrumou-se, vestiu um vestido em tom amarelo claro, discretamente florido, calçou os
mim. Ânsia que senti quando atravessei o corredor daquele hospital carregando nos braços seu
chinelos, prendeu os longos cabelos lisos e negros num coque despreocupado, deixando cair
doce preferido e uma margarida brilhante. E pela janela do quarto eu não te vi. O lençol que teu
sobre sua alva face, alguns fios, muito diferente do visual cuidadosamente composto para os
corpo amarrotava era trocado. Os aparelhos que controlavam teu coração que batia por mim,
compromissos de outrora.
desligados. E eu desisti de ser forte, de ficar em pé, de carregar teu doce, de esperar com fé.
Por um momento, hesitou, pondo-se a pensar se realmente gostaria de sair de casa,
Não senti o chão frio. Não ouvi o médico. Não te vi. Nunca mais te vi.
contudo, se encaminhou à porta e saiu.
Ao invés do elevador, preferiu as escadas, descendo calmamente lance a lance, enquanto
seus olhos seguiam as paredes gris, inúmeros pensamentos competiam por sua atenção.
Saiu em direção a uma pequena praça cujos canteiros eram bem cuidados e donde
brotavam flores viçosas da primavera.
Sentou-se em um banco sob um frondoso e belo Ipê branco.
Não costumava frequentar aquelas redondezas; pois, além do assédio público intenso que
dificultava suas saídas, o lugar ficava na direção oposta à que seguia, tomada por muita pressa
e pouca percepção, todos os dias.
Põs-se a olhar demoradamente os arredores e, por algum tempo, assim o permaneceu.
Verificou existir na rua à direita, uma charmosa e aconchegante cafeteria instalada num
sobrado antigo bastante conservado. Várias jardineiras floridas num vermelho intenso e
atrativo, além de toldos dispostos ao longo da extensão do prédio harmonizavam-se com sua
pintura rósea, garantindo aconchego e sombra aos fregueses degustadores de seus cafés.
Na rua à esquerda, havia um sebo literário. O local não guardava requinte, mas era charmoso,
ramos de uma folhagem verde-escura entrecortavam, num desenho sinuoso, as janelas de
madeira na parede frontal. Clara pôde notar que as prateleiras estavam repletas de livros.
Resolveu descalçar os chinelos.

14 15
Região: Araraquara | Cidade: Matão
Monica Luciana
Fernand CalegariFerraz

Conto
Colocou os pés na terra que, sob eles, deu-lhe uma inacreditável sensação de prazer. Pôs-
se a brincar, ora cobrindo-os com a terra, ora sacudindo-a deles. Deu-se conta de que estava
sorrindo e naquele momento não pensava em mais nada.
Figues et secrets
Recostou-se melhor no banco e deixou-se invadir por aquela sensação tão gratificante.
Caminhou por três horas, absorto em seus pensamentos mais esdrúxulos. Tão ousados que
Estava muito cansada; cansada de muitas coisas.
rejeitava a percepção do rumo que as coisas haviam tomado. O controle da sua vida parecia
Um cheiro incrível de café pairou no ar, inebriando-a. Sem esboçar reação, foi alçada à sua
posto em mãos erradas, como as mãos daquela sua tia do interior, que mudava de canal na TV
infância, àquela cidadezinha do interior, àquela casa modesta, mas que sempre acolhia mais um.
a cada 8 segundos. Os pensamentos iam e voltavam num fluxo condizente com o das pessoas
Revisitou seu passado, mergulhou em suas lembranças, regozijou-se com elas. Um leve
que atravessam na tua frente correndo, por causa da chuva.
rubor ornamentou seu rosto fazendo-o ainda mais belo.
Quando cansou de caminhar, sentou.
Clara foi deixando fluírem copiosamente seus sentimentos, absorta naquela atmosfera,
Achou um banco quase seco, próximo a fonte da praça, que só encontrava-se seco porque
desconectada de tudo à sua volta; sentia-se liberta de todos os males.
uma árvore generosa cedeu a ele sua proteção. O tempo estava úmido e pegajoso. Não era
As horas passaram e o crepúsculo dava indícios de sua chegada. Pessoas voltavam,
chuva, mas algo parecido com uma névoa, uma garoa, ou uma neblina molhada, daquelas
apressadas em seus carros e a passos atropelados pelas calçadas, a suas casas, deixando o
que se você fica parado, em um local descoberto, se ensoparia igual macarrão em uma sopa
lugar intensamente movimentado, todavia Clara permanecia com os pés sujos de terra, imersa
de galinha. Fazia dias que estava comendo sopa, e não sabia muito bem o motivo, pois nem
naquela sensação etérea.
gostava assim de sopa. Entendia que fazia parte do processo melancólico em que se encontrava
O som de uma buzina eclodiu, despertando-a daquele transe.
esta inapetência, mas não entendia porque desse estado tão distante da realidade. Ele estava
Suspirou longa e profundamente, aquele passeio fora muito gratificante; sentia-se melhor
em outro estado de percepção que não São Paulo. E a sopa até que saciava essa melancolia.
agora, revigorada, disposta a prosseguir.
Essa neblina pegajosa aparecera nos últimos cinco dias, bem como sua catatonia
Iria a sua casa, prepararia o jantar e avisaria a seus pais que estariam juntos no final de semana,
depressiva. Encarava a fonte pensando em formas de não se comparar a ela. Quando chegava
pois já não os via há algum tempo. Após aquela tarde, a saudade tomara proporção inusitada.
a seu quarto, virava fonte e despejava no travesseiro rios que poderiam abastecer as regiões
Pôs-se a caminhar, seu telefone tocou, ela o atendeu.
mais secas do país. Acostumara ao ritual diário pós-trabalho. Após andar por horas, ao chegar
Em pouco tempo de conversa toda a suavidade de seu rosto desapareceu, dando lugar a
tirava os sapatos, a roupa e se lavava. Ia pro quarto com alguma bebida que o fizesse relaxar.
uma aflição indisfarçável, toda disposição esvaiu-se, e um profundo abatimento acompanhado
Mas ele nunca relaxava apropriadamente; apenas o acalmava até o período tormentoso, onde
de um pranto desesperado incapaz de ser contido tomou conta de si.
virava fonte. Sua coluna estreitava-se como se tivesse tomado um banho gelando, quando
Um cantar de pneus seguido por um estampido estrondoso ecoou por toda praça.
se esperasse que caísse água quente e acariciadora. O pulmão inchava-se como se tivesse se
A poucos metros de um dos cruzamentos ocorrera uma colisão envolvendo um carro preto.
afogado. Cheio. Apertado. Sufocado. A cabeça zunia o barulho da consciência em um estado
Do impacto, pedaços do veículo restaram espalhados ao chão.
totalmente “block”. Tinha na cabeça um ruído branco, um barulho tão persistente que de tanto
Rapidamente, curiosos, aos montes, aglomeraram-se no local com olhares aterrorizados.
insistir transformava a irritação em uma única palavra: dúvida.
O motorista saiu do carro atordoado. Sua visão estava turva e seus batimentos cardíacos
Era uma pergunta. Era uma dúvida que o atormentava, que o consumia. A angústia exalava
descompassados, seu supercílio direito estava maculado por um corte profundo pelo qual um
e se fazia ver a quem tivesse olhos para notar.
veio de sangue escorria caudaloso e incessante sobre sua face, tingindo de vermelho a camisa
Passa um cachorro encharcado, mesmo assim afoito em seu passeio molhado. Uma
social branca que usava. O homem empenhou-se em decifrar a cena.
senhora vinha pela esquerda, com capa, galochas e guarda-chuva. No rosto as marcas da idade
Ao fazê-lo, absolutamente transtornado face àquela situação terrivelmente sombria, lançou
não mentiam que devia ter uns 70 anos, mas sem querer transmitia um ar jovial de felicidade
as mãos à cabeça agarrando com toda a intensidade seus cabelos, incrédulo.
apaziguadora, e pulava poças, igual o cachorro. À sua direita, uma imensa poça d’ água se
Estendido ao chão, o corpo de uma mulher cujos cabelos de ébano harmonizavam-se
formou. Tanta umidade havia criado um mini-lago bucólico que refletia os leves respingos
tragicamente com o asfalto desbotado, estava imerso numa poça de sangue que a cada
da névoa úmida. Chacoalhava-se toda quando alguém passava apressado sem notar a sua
segundo se fazia maior; seu vestido amarelo florido bastante rasgado desnudava a pele alva
existência e parecia rir quando o mesmo desavisado atolava o pé em sua superfície molhada.
de seu corpo esbelto; os pés delicados, sujos de terra, embebiam-se em sangue, numa mistura
Parecia feliz em sua condição de poça, assim como o vira-lata molhado.
viscosa e aterrorizante; seu olhar paralisara-se refletindo toda angústia de seu ser.
Tudo parecia existir plenamente. Menos ele. Sua melancolia talvez pudesse ser comparada
Sussurros lastimosos repassavam a notícia de que a mulher se jogara contra o carro.
a esta nevoa fria e molhada, que insistia em cair, incômoda.
A noite debruçava-se serena e as luzes brilharam sobre Clara uma última vez!
Só podia ser grotesco e pegajoso. Algo de errado havia com ele, pois em sua cabeça
ele havia entendido ser o grande problema da sua situação melancólica. Ele estava errado de

16 17
Região: Araraquara | Cidade: Porto Ferreira
Henrique Carreira

Conto
alguma forma, ou talvez seja apenas alguém normal e sem qualidades, tomando uma chuva
de resignação.
O Músico
A sua frente havia um volumoso tronco de árvore. Imenso e levemente retorcido, como
se alguém houvesse moldado. Quase sem folhas, mas as poucas que tinha balançavam com o
Andando com passos ligeiros, um advogado trajado de um temo bem trabalhado e segurando
vento fraco. Folhas largas e com aparência de amargas ao sabor, mas em seus galhos, ele pode
uma pasta cheia de informações importantes atravessava a rua naquela tarde movimentada.
notar com imensa surpresa, havia frutos. Era uma árvore velha, mas resistente e ainda frutífera.
Entre as pessoas ele era mais um de vários, correndo contra o tempo para realizar suas tarefas.
Era maior que ele e provavelmente já existia há mais tempo também. Sempre estivera ali,
Olhando para o relógio notara o possível atraso que iminentemente ele iria sofrer. O prédio
sobrevivendo a todas as intempéries e adversidades que poderiam ter-lhe acometido. A árvore
da empresa estava do outro lado de um parque exótico da cidade, com suas árvores altas e
lhe chamara tanta atenção que havia notado inclusive um ninho, um pequeno ninho no canto
folhagens verdes. Um pedaço de natureza dentro da mancha cinza da civilização. Com medo de
direito, que já não era mais utilizado.
sujar o terno com algo viscoso que poderia cair das árvores ou de qualquer pássaro pousando
E ele, após notar isso, percebera o que precisaria ser feito. Precisava enterrar naquele templo
em galhos aleatórios, o advogado preferiu contornar o parque. Enquanto caminhava, notou um
orgânico e sagrado os seus pensamentos. Levantou de salto e não se importou se alguém veria
músico sentado, a poucos metros de distância. Trajava um sobretudo preto e uma calça jeans
o que estava prestes a fazer. O cachorro havia desaparecido, e a névoa por alguns segundos
surrada, coturnos desengraxados e um chapéu estilo velho oeste. Em seus pés uma case de
pareceu diminuir, ou o tempo provavelmente tenha se arrastado por alguns segundos, a fim de
violão aberta e o instrumento em suas mãos, sendo tocado com elegância. Todo o conjunto
ser a única testemunha do momento colossal e libertador dele.
fazia o homem parecer um verdadeiro músico andarilho. O advogado, assim como todas as
Caminhou firmemente e a passos pesados, e num piscar de olhos estava parado e
pessoas ocupadas demais, não daria atenção nenhuma ao homem. Estava muito atrasado.
respirando em “três-por-um”na frente dela. Percebera que se tratava de uma figueira. Uma
Muito ocupado. Assim como todos os outros membros da cidade, estava prestes a passar reto
figueira turca, com frutos ainda verdes. Abraçou-a como um filho abraça a mãe que só se vê no
pelo músico, quando de súbito sentiu algo impedir seus passos e tropeçou. A queda de um
natal, e tateou. Entre suas dores, uma figueira turca. Apertou-a e entrelaçou suas mãos e não
homem vestido e se comportando de maneira tão séria foi engraçada. A pasta que carregava
conseguiu mais conter as lágrimas, que desceram por seu rosto e escorreram pelo tronco da
se abriu, e os documentos aleatoriamente importantes se espalharam pela calçada. Olhando
figueira. O cheiro da madeira molhada impregnou suas narinas e conseguiu acalmar quase que
para trás, ainda no chão, notou ter tropeçado na case de violão do músico, que o observava
completamente. Estava com o rosto colado no tronco e ao abaixar um pouco os olhos percebeu
sem parar de tocar. Soltando os primeiros xingamentos que surgiam na cabeça, o advogado
abaixo da altura do queixo um vão, um pequeno espaço, mas com abertura o suficiente para
começou a recolher os papéis enquanto o músico o olhava, atento. “Maldito vagabundo”,
comportar uma bola de ping-pong. Um buraco grande o suficiente para que ali ele escondesse
pensou o advogado. “Pessoas como eu, trabalhadores sérios e de compromisso não deviam
seu segredo. Desceu a boca com receio, porém extremamente direto em sua decisão e anexou
tolerar esse tipo de gente por perto. Não sabem o valor da vida, do trabalho duro, do esforço.
sua boca à boca da figueira turca e pronunciou três frases curtas que aliviaram o seu coração
Recolhendo os documentos, com a mente pensando em várias coisas desnecessárias naquele
angustiado e lhe tiraram da alma o peso desgraçado da rejeição.
momento, o advogado ouviu. Foi por um segundo, mas ele pode ouvir entre as buzinas dos
carros, os celulares tocando, as pessoas andando e conversando e todos os barulhos que a
cidade podia oferecer. Por um segundo, ele pode ouvir entre essas coisas a música que saia das
cordas do violão. Suave, profunda, inquietante.

18 19
Região: Baixada Santista | Cidade: Bertioga
Valdete Nilza da Silva
– E agora? O que vou fazer?

Conto
Ficar sem nenhuma figurinha, mas nenhuma mesmo, não estava nos seus planos. Então, a
menina novamente convidou o amigo para jogar, mas agora seria “a brinca”, não mais pra valer.
– Zé Zico, coloque todas as figurinhas em um só monte e vamos ver quem consegue virá-
las de uma só vez?
O bafo da Lulu
Feliz da vida, porque havia rapelado Lulu, Zé Zico não hesitou, e foi colocando figurinha
sobre figurinha, todo sorridente.
Zé Zico e Luciana, a Lulu, eram colecionadores de figurinhas da Copa de 1982. Como
Lulu, também não teve dúvida...
tantas outras crianças, adoravam trocar as figurinhas repetidas e disputar as mais cobiçadas
A menina, que deveria bater sobre o monte de cromos, com a mão completamente aberta
que vinham nas embalagens do chiclet Ploc.
ou levemente em “forma de concha”, passou a mão em todas as figurinhas e, como um foguete,
Numa tarde de verão – aquele calorão danado – rua de terra batida, poeira subindo a cada
correu para dentro da sua casa, quase atropelando a mãe, Isabel, que preparava o almoço,
carro que passava, e meninos e meninas, sem medo de nada, brincavam em algum pedacinho
esperando o seu Souza chegar.
de calçada, a brincadeira do momento: o jogo do Bafo.
Zé Zico, enfurecido, mudou de cor. Vermelho, como um tomate, saiu correndo atrás de
Lulu, com suas 44 figurinhas, também queria jogar e então fez o convite ao amiguinho Zé
Lulu. Queria de volta as figurinhas que ganhara num jogo bem jogado.
Zico, o José Zico que morava no fim da Rua Brasil.
O pai da menina, seu Souza – homem de bigode, bom coração e bons amigos –, estava
– Zé Zico, vamos jogar Bafo?
chegando em casa. Percebendo que algo de errado havia acontecido com aqueles dois, tratou
O menino tinha apenas seis figurinhas, pois ainda estava começando a sua coleção. Decidiu
logo de proteger a filha. Instintivamente, os pais sempre desejam proteger aos filhos, mesmo
arriscar, e respondeu:
quando já adultos e percorrendo suas próprias estradas.
– Eu topo e só se for agora.
Com ar de homem bravo, seu Souza declarou:
Ele tinha pouco tempo para brincar, pois logo teria que ir para a escola.
– Zé Zico, você não vai bater nela.
Zé Zico e Lulu foram para o outro lado da Rua Brasil, em frente ao número 10. Naquela
O menino, então, respondeu:
Copa, vestiu a camisa 10 da Seleção Canarinho, ninguém menos do que o Meia Zico, que era
– Só quero minhas figurinhas de volta. Eu ganhei o jogo e ela perdeu, mas pegou as
do Flamengo, e foi o terceiro artilheiro da Copa de 1982.
figurinhas e saiu correndo.
Lulu, não era o “Chaves”, mas imaginou que com sua astúcia, venceria o adversário Zé Zico,
Calmamente, seu Souza chamou a filha, olhou para ela e nem precisou dizer uma só
fácil, fácil. Ela tinha 9 anos, e Zé Zico, 11, ou algo por aí. O que sei é que ambos adoravam o
palavra. Aquele seu olhar dizia o que a menina deveria fazer.
inocente jogo, até hoje passado de geração para geração.
Lulu apareceu e quase chorando foi logo dizendo:
Na primeira, “baforada”, Lulu ganhou a figurinha que trazia a foto do jogador Falcão.
– Toma, toma. Tudo bem, agora as figurinhas são suas, mas da próxima...
Depois outras e outras mais.
Zé Zico, nem se importou com o desafio. Estava pronto para o Bafo em qualquer outro dia.
Expressando tristeza, Zé Zico não desanimou e avisou:
Agora era hora de voltar para casa, com suas 50 figurinhas. Tão radiante que estava, se quer
– Lulu, se prepara porque a próxima eu vou levar.
percebeu que faltavam duas.
O menino queria vencer, sem trapacear. Sim, porque até no Bafo tem quem use de alguma
Hoje, Luciana (Lulu), professora, recorda-se do amigo Zé Zico - que virou médico, mudou de
artimanha para rapelar os jogadores adversários.
Bertioga, e ainda joga bafo com os filhos. Ri, como criança, da sua peraltice ao lembrar daquele
Então, colocaram mais figurinhas no chão. Zé Zico esquentou as mãos e com uma delas,
dia em que perdeu todas as figurinhas, mas não queria ficar sem elas; e com grande carinho,
levemente em forma de concha, mandou sobre elas aquele tapão. Pronto: Virou as figurinhas.
fala do amor e dos ensinamentos transmitidos pelo seu Souza, e por dona Isabel.
Afinal, o objetivo do jogo é desvirar o maior número de figurinhas, que podem ser colocadas
numa mesa ou mesmo no chão, umas sobre as outras, e voltadas para baixo. Aí é só dar o tapão
Nota: Na edição de 1982 da Copa do Mundo, a Seleção Brasileira de Futebol foi dirigida foi
e ver quantas viram para cima. Tudo o que ficar virado, passa a ser de quem deu o bafo.
dirigida por Telê Santana e era tida como a grande favorita à conquista do título, mas a equipe
– Uhuuu! Consegui! - Comemorou Zé Zico.
“canarinha” acabou eliminada pela Itália.
E continuaram jogando. Ora, Lulu vencia, ora a menina ficava sem mais um dos seus
Mesmo em tempos de jogos virtuais, jogar Bafo continua sendo uma das principais brincadeiras
cromos. Ora Zé Zico perdia, ora ele ampliava a sua coleção. O jogo foi chegando ao fim e
entre meninos e meninas, e colecionadores de figurinhas, inclusive adotada em escolas em
quando a brincadeira acabou ...
projetos educativos e de recreação. O Bafo é uma brincadeira do tempo dos nossos avós - e dos
Lulu ficou sem as suas 44 figurinhas. Ficou sem chão. As figurinhas eram como um tesouro
tempos atuais; chama-se assim, porque o bafo (vento) provocado pelas mãos durante a batida
para aquela garotinha de cabelos negros. Afinal, não era todo dia que ganhava alguma moeda
no monte de figurinhas é que irá virá-las.
dos pais, para comprar um chiclete. Preferia o de tuti-fruti ao de hortelã. Não era todo dia que
uma nova figurinha chegava às suas pequeninas mãos.
Lulu então pensou:

20 21
Região: Baixada Santista | Cidade: Santos
Rui Sora Rodriguez
meu quarto. Sentada na cama, ainda nervosa, agradeceu com indiferença. Perguntei o que

Conto
tinha acontecido, ela rouquejou um dialeto ignoto. Aguardei até que ficasse calma e produzisse
um som inteligível.
Sabe o traficante bunda-mole do trezentos e cinco? – desafinou.
Muquifo Não, mas vou até lá – e fui.
A porta do sujeito estava encostada. Cheguei logo empurrando.
Havia alugado um quarto no centro da cidade. Quartinho mesmo, e com um banheiro pior Ele preparava uma carreirinha.
que esses de boteco. Nada de cozinha ou área de serviço, era só um lugar para dormir e cagar, Que porra é essa? – falou.
tudo sem o menor conforto. Para mim, já bastava. Passava o dia inteiro fora, ganhando uns Vim esclarecer uma coisa – respondi com macheza.
trocados. Almoçava e jantava em qualquer buraco. À noite, era só chegar e me arremessar num Se aquela bicha te mandou aqui, está perdendo seu tempo.
colchão surrado, fedendo a mofo, e ouvir os ratos sapateando pelos cantos. Prossiga, mandei.
O prédio tinha apenas três andares. Mas era comprido, com dez quartos por piso. A O cara se revelou:
escadaria, sem corrimão, dava acesso a corredores pouco iluminados e vazios. Por trás de cada Aquele boquete não vale o pó que eu dou para ela.
porta, uma história cinzenta se resguardava – trancafiada, sufocada, bandida. Por isso mesmo, É justo, respondi. E voltei ao meu quarto.
apelidei com carinho o meu novo lar de My Sweet Carandiru. Lá estava eu, morando mal, na Ela permanecia sentada, mas me olhava com aflição. Ouvi um ruído vindo do banheiro.
pior área e sem dinheiro, mas realizando um grande sonho: morar sozinho. Quem está aí? – perguntei.
Só conheci minha vizinha depois de um mês: Me desculpe, mas ela foi entrando.
Este é um bairro onde ninguém quer ficar, exceto putas, viciados e miseráveis – disse ela, Era minha avó, com suas orelhas pesadas.
do alto de seu metro e meio. Então foi para isso que você saiu de casa e largou a faculdade que eu estava pagando? – inquiriu.
Tentei esticar o assunto: estou mais para miserável, e você? Sua generosidade me custa muito caro, respondi sem piscar.
Os três – ela respondeu, dando com a porta na minha cara. Onde está sua gratidão, moleque? – esbravejou, os brincos balangando.
Na minha esquina, havia um bar que nunca fechava. Logo fiz amizade com o dono, alguns No bolso de uma Calvin Klein que você me deu. Doei a um mendigo aqui da rua. Ele ficou
pinguços e um cheirador, que surgia para usar o banheiro e trocar, de quando em quando, um bem agradecido.
punhado de moedas por uma nota de dois reais. Você não pode negar quem lhe ofereceu tudo o que há de melhor – disse ela, desvelando
Vocês me rendem boas histórias, exaltei. um grande anel dourado em seu dedo acusador.
Boa de história é minha mulher: todo dia tem uma desculpa para chegar tarde – lamentou O que não posso é me autonegar, filosofei.
um deles. E essa aberração, o que faz na sua cama? Se é que se pode chamar de cama.
Nem sei como você ainda a chama de “sua” mulher: já virou patrimônio público – debochou Aberração era o que você queria me tornar. Esta aqui é Natasha.
outro. Fui até ela e arranquei-lhe um beijo difícil.
Só não deu briga porque na hora chegou uma jovem e todos pararam para olhar. Estamos juntos. Aceite isso, vovó. E conte para todos os seus amigos de influência.
Me vê uma coxinha – ela pediu. Foi a gota d’água:
Tentei interferir: está murcha, garota. Esqueça que tem uma família, ou melhor: você não tem mais uma família – e foi embora,
Murcha é a bunda da sua mãe – respondeu ela, na lata, levando a coxinha embora. os brincos tilintando.
Alertei o dono do bar: acho que ela não pagou. O velho fingiu lavar um copo e se manteve A traveca me olhava descabelada. Nem tive tempo de me explicar: foi o soco mais forte
calado. que levei na vida e no olho.
Essa daí não tem nem quinze anos e já vende a pomba para comprar pó – cochicharam, Aproveitador! Eu não sou puta e meu nome é Giselly! – e também saiu.
cozinhando minha orelha com vapor de pinga. Agradeço por ter esperado para me bater – murmurei enquanto caía.
Ela sim é propriedade coletiva – alguém completou, salpicando meu rosto. O tempo de me Quando apareci no bar com o olho inchado, na mesma hora perguntaram o que havia
secar com um guardanapo foi suficiente para eu entender como ela fazia para pagar o lanche. acontecido. Fugi do assunto com destreza:
Outro dia, estava deitado em minha cama quando ouvi uns berros vindos do corredor. Todo passo, quando firme, deixa uma grande marca!
Abri a porta. Deparei-me com uma travesti descendo a escada, dando um show sem plateia, Ainda assim, bancaram minha cerveja, fizeram um curativo e se ofereceram para quebrar a
ameaçando um morador de outro andar: cara do arrombado que tinha feito aquilo comigo, bastava eu falar quem foi.
Vou arrancar esse teu pinto fora! Dei risada.
A intensidade do grito foi tão absurda, que ela teve que transmitir toda a força das pernas Vovó errou.
pra garganta. Por muito pouco, não se espatifou nos degraus. Corri para ajudá-la, levei-a ao Minha família está bem aqui.

22 23
Região: Bauru | Cidade: Barra Bonita
Conde Filho

Conto
fazer nas suas coxas. Cada um à sua maneira, com seus recursos, parecendo até que com suas
crenças, o que não é muito comum em medicina.
A Queda Mas devido ao caráter sistêmico do mal auto-imune, suas capacidades de coagulação se
tornaram escassas, fazendo de cada cirurgia uma aventura que podia não ter volta. E foram
Girou porque perdeu o equilíbrio que já tinha sido descascado pelas inúmeras cirurgias mais de oito. E a facie da dor e da lembrança pesada do passado foi o que se seguiu.
que lhe fizeram e refizeram seus fêmures, como se fosse fácil para o homem reconstruir com Sem barulho, porque mais deslizou que impactou. Já no chão, não sabia o que tinha
artifícios a ossatura responsável pela plenitude de se manter em pé sem se esforçar. Do giro acontecido. O sangue confundido com o gel do cabelo não negava o choque da cabeça contra
no ar, o chão. Sem baques e nem impactos. Não precisava. Para que sua cabeça entendesse o o vidro ou o solo. Cena em câmera lenta, para fazer demorar mais ainda o já hipertrofiado
que havia acontecido, horas, dias, talvez uma vida inteira fosse necessária. Desde o dia em que sofrimento daqueles que viveram o lamentável episódio.
sua descontrolada auto-imunidade se revelou presente, do maldito e enigmático diagnóstico Pés que já sambaram, que já correram inocentes, forçados a uma situação de inoperância
da doença reumatóide, seria de vital importância manter-se pelo menos invulnerável ao que diante da falta de atrito causada pelo desequilíbrio momentâneo e bastante por si só. Daquele
viesse de fora, porque de dentro ela já tinha um inimigo desconhecido e poderoso com a qual farnel de força de vontade, estava sendo exigido agora talvez a última gota deste sentimento
ia ter que lutar pelo resto de seus dias. E foi o que fez. heróico. Mas não foi fácil. Quis morrer, despejou sua descrença por tudo e todos nos momentos
Arrebatou para si toda a possibilidade de força que um ser humano podia ter. Desconfio que se seguiram, o que não deixa de ser extremamente humano.
que num ato de vampirismo, invadiu pessoas que tinham restos e excessos de confiança e Era só isso que ela queria. Não precisar de esforços que lhe minavam a vontade de se manter
esperança que não iriam precisar usar e sugou tais propósitos em caudalosas doses para si, viva. Ser uma pessoa que não precisasse passar por tantas provas, por tanto desafios. A dor que
tamanha a capacidade de resistência que se manifestou diante de tantas tentativas de cura e de há muito não sentia - já se esquecera - voltava impiedosa, proibindo-a de movimentar seu
soluções para suas longas pernas, parte de seu corpo afetada pela sua imunidade exacerbada. membro inferior direito, talvez mais por medo da dor do que por qualquer outro motivo.
Antes de cair, buscou apoios por todos os lados. Primeiro, a bengala, que - já era de seu A radiografia era o que se precisava para saber se algum dano houve na prótese que lhe
conhecimento – falhou no momento em que mais precisou: nunca havia caído. Depois a porta, fazia as vezes de fêmur, tão bem esculpida e elaborada pelo melhor e mais cientista de todos
que encrencada porque não corria nos trilhos, resolveu correr, tirando de suas mãos a pilastra os que lhe emprestaram serviços ortopédicos.
que lhe seguraria o corpo. Para ajudar, o salto alto coadjuvante do acidente, ajudando a fazer As horas que separaram a boa notícia do incidente foram verdadeiramente longas. Talvez
do chão normal uma pista de gelo. Aquele que sempre lhe ajudou não estava por perto. Seu para fazê-la perceber que a sorte tinha vindo fazer parte de sua vida, passando a jogar no
pai, a dois metros e de costas nada viu e todos os parentes se revelaram incompetentes em seu time, o que já não era tarde. Refletiu que deveria perceber o dom da vida que tinha
estar presentes na hora em que ela tanto precisou. Como iriam saber? Trocariam cada momento recebido, dada a sua graça e positividade que a nunca deixaram esmorecer. Tantas intervenções
compartilhado junto anteriormente por aquele segundo traiçoeiro no qual deveria estar ao seu conseguiram deixá-la envolvida numa cegueira que a impedia de ver que tudo estava mudando
lado, para amparar aquele corpo que se precipitava do alto de uma chuva que parecia não ter a partir daquele momento.
fim. Que em vez do fim ou do difícil recomeço dolorido, a voz do médico a lhe dizer que o
--- Minha filha! , disse o pai. Foi só o que conseguiu falar diante da imagem da moça raio-x mostrara a mesma imagem de dois anos atrás, sem alterações, significava o ponto inicial
deitada, sendo ajudada. da arrancada para o arco-íris reluzente chamado alegria de viver.
---Minha irmã não! Repetia a irmã caçula, sem acreditar na cena desconcertante e Talvez reconduzir suas atitudes subordinadas à estética, apelo do mundo hoje cada vez mais
inimaginável. Sim, porque todas as pessoas naquele local poderiam cair, se estatelar, da mais sem limites, para se portar com mais sobriedade, de maneira a não correr riscos desnecessários.
gorda ao varapau, menos ela, que lutava para se manter altiva, elegante, atraente, no que A vida não admite falhas. Pagamos por elas. Cada qual tem o seu erro a lhe espreitar,
conseguia sem esforço e, principalmente, viva. pronto para dissolver nossas convicções no ácido do sem explicação, do imponderável.
O chão chegou rápido demais, força da gravidade aumentada em níveis exponenciais. Cabe a nós rebater com inteligência tais armadilhas, pois de sorrateiras se tornam sedutoras,
Não foi possível a ajuda. Antes de encontrar o solo, antes do passo em falso que a colocou a transmutando-se na única atitude a ser tomada, na neblina do fundo falso chamado equívoco.
nocaute, somente eu a olhei e consegui com a minha objetiva perceber a alteração descomunal Difícil fazer, fácil falar, mas só quem admira e dá valor para o que se tem e para o que já
de seu semblante. Ninguém imagina outra coisa dela senão um sorriso largo e alvacento. Era foi feito, não se esquece do sangue dolorido que quase jorra do canto do olho substituindo
o que eu via, pois vinha em minha direção. Após a deslizada da bengala, da folha da porta, de a impotente e já presente lágrima. Por isso, planeja e programa a vida para que ela não nos
seu pé direito e depois, de sua perna, sua face foi se transformando na imagem crua do maior escape por entre os dedos, sobre chãos escorregadios.
desespero por mim presenciado. Todos seus músculos faciais se recusaram a continuar sorrindo
porque como faziam parte de um mesmo corpo, sabiam da gravidade daquele equivocado
passo. Sofreram junto com as dores das intervenções que inúmeros doutores se revezaram em

24 25
Região: Bauru | Cidade: Bauru
Esso Maciel

Conto
O Fiapo de Cou

Estivera ali comigo. Honorina sorria, os dentes grandes demais e arfantes, os seios enormes.
Aqueles seios, estiveram ali comigo e Honorina esfiapando cous. Na ponta da mesa, a criança
de olhos muito verdes rindo abobalhada para a mesa cheia de cous que pulavam, tamanha a
quantidade de células espavoridas. Amarante estivera ali conosco, como era certa a hora, (que
horas seriam então?). Dei a cara com Honorina e ela arreganhou mais os dentões. Será que de mármore. A criança continuava esfiapando os cous e enchendo o espaço com pedaços da
ela sorria? Aquelas horas desconhecidas pareciam descer de um relógio dali. Aquelas horas asinha. De repente, a porta abriu e Honorina, vista assim de onde estávamos, parecia grande.
todas e a impressão da grande mão de Amarante segurando meu braço esquerdo, como se Entrou e a gente via bem a figura dela. Ela então lentamente tirou a blusa e tirou para fora um
quisesse, pensei então, segurar meu coração. Estivera comigo, o corpo grande e louro dele, mal dos peitos. Amarante apertou-me mais contra si. A criança ignorava Honorina. Ela aproximou-
cabendo sob a mesa de cous. Eu, apertando contra seu coração enorme. Minha cara separada se da mesa de cous e eles cantaram mais alto e em alvoroço agora. Honorina tirou para fora
da sua, apenas por um beijo. Os olhos claros dele. Os olhos. Beijei os olhos de Amarante sobre outro dos peitões e ofereceu ambos à criança de olhos verdes, que apenas olhou-os indiferente,
a mesa atulhada de cous, e, enquanto alimentava esses beijos, os cous murmuravam sobre a enquanto esfiapava cous. Nervosa, chorosa, Honorina tirou toda roupa e andou pela sala e
mesa. E suas pequeninas asas debatiam-se sobre o mármore frio da mesa. – “Quantos deles falava coisas de louca. Olhava para mim e Amarante mostrava suas vergonhas para a gente
haverá?” – Murmurou Amarante, enquanto a sensação quente e amiga do seu braço acalentava como se implorasse. Teve um momento que senti pena dela, mas Amarante me segurava forte
minha cintura. – “Quantos?” – Repeti. A resposta veio rápido com o peso leve e leve dos lábios sob a mesa e seu contato me era tão bom que eu procurava esquecer (que horas seriam?).
de Amarante sobre meus lábios ainda frios. Antes deles e dos cous chegarem, eu estava sobre Honorina gargalhava como que enlouquecida e seus peitos trepidavam. Rolou pelo chão e
a mesa de mármore. Tentaram aquecer-me com 4 círios. Vi quando a criança de olhos verdes ficou cheia de fiapos de cous que a criança ia atirando sobre ela. De repente, parou.
foi trazendo um a um e colocando sobre meu gelado corpo. Honorina vinha sempre junto, Arfante, parou e acomodou-se a um canto. A criança saiu de seu lugar na mesa e foi
prestativa; os seios balançando quando fazia um gesto de amparar a criança. De repente, foi até ela. Entregou-lhe suas roupas e ajudou-a a vestir-se. A calma e doce Honorina. Agora ali
que veio o medo. Comecei ouvir barulhos dos cous vindo lá de fora e suas vozes pareciam perto, um galo cantou, outro e mais outro. Ao terceiro cantar Amarante separou-se de mim
gemidos. Os cous choravam, como se fossem crianças doentes. E isso me assustou muito. Pedi e ajudou-me a sair. De onde estava, ele sorria e parecia mais aliviado que eu e todo mundo.
para Honorina ir ver. Ela saiu pela única porta e o vento entrando fez tremular as velas. A criança Honorina, sentada próxima da mesa, sorria docemente. A criança de olhos verdes não estava
de olhos verdes sentou-se aos meus pés e começou a cantar uma canção estranha, tanto mais mais ali, embora sobre a mesa houvesse alguns cous. Amarante abraçou-me longamente e
estranha porque eu não conseguia entender em que língua e o que catavam. Era uma criança disse-me para apagar as velas dos círios. Apaguei-as uma a uma, e quando voltei-me ele não
triste, muito triste, isso sei porque deu-me uma imensa vontade de chorar, então. Foi quando a estava mais. Honorina sorria. Peguei os cous restantes e os soltei através das janelas. Agora eu
criança estendeu a mão e tocou meu pé: um ponto intenso de calor atravessou-me. Enquanto e Hornorina ali.
o calor da mão da criança subia por meu corpo pensei em Amarante, em como eu gostaria de Arrumamos a casa toda. Eu estava calmo, Amarante estivera ali comigo. E estaria sempre
vê-lo agora. Num estilhaçar, as vidraças da janela explodiam e de imediato centenas de cous que dele eu precisasse.
começaram a invadir o cômodo. Eu não tive medo, não. Eu sabia que algo ia acontecer agora.
Algo que meu coração esperava. A criança pegou na mão o primeiro dos cous e começou a
esfiapá-lo. Jogava para o ar os fiapos de cous e eles pairavam no ar dançando, dançando até
pousarem com graça no chão frio. Deu-me um cou e com esforço comecei a esfiapá-lo, e
soprar seus fiapos para o ar, para que também dançassem essa dança onde a vida e a morta
davam as mãos, num jogo nem sempre inteligível. Foi quando a porta se abriu. Sabia que era.
Ergui a cabeça e vi Amarante. Amarante! Amarante!! Amarante!!! – O rosto dele sério, decidido.
Veio até a mesa e levantou-me num gesto rápido de seus braços muito fortes. Havia doçura,
contudo, naquele gesto de vida. A criança sorriu com a baba escorrendo da boca, e ela aplaudia
e aplaudia jogando fiapos de cous por todos os lados. Quando Amarante tirou-me de entre
a prisão de círios, colocou-me abaixo da mesa. E senti o calor do seu corpo completando o
calor do meu. Minhas mãos corriam seus cabelos, enquanto os cous cantavam sobre a mesa

26 27
Solange Vicentini Região: Campinas | Cidade: Itatiba
T. Mössenböck

Conto
Vida Negra

Minha mãe era empregada da família de Donana. Moravam na casa além do casal, a sogra,
cinco filhos homens e a menina que eu cuidava.
Era muito serviço, não sei como mãe aguentava, e a velha era cruel com os empregados.
- Bastiana, varre direito este chão! Sinsóra dizia minha mãe. Mas era pra não levá no Pai era poceiro, o melhor da cidade. Guardei um dinheirinho pro tempo das chuvas pra
lombo, segredava-me no caminho de volta para casa. Tínhamos muito medo daquela megera. famia num passá necessidade, dizia coçando a carapinha que começava a branquear. Eu
Secretamente eu a chamava de bruxa. adorava meu pai. Era tão carinhoso comigo, me ensinava sobre sua luta e vida simples. Mãe
-Bastiana, pode começar a fritar os bifes, gritava Donana aflita com a chegada dos homens ouvia calada, balançando a cabeça com um sorriso. Era seu jeito de amar. Em casa ela não
para o almoço! usava pano na cabeça. Dizia que eram algemas da casa de Donana. Pai explicou-me o que
- Sinsóra patroa, respondia mãe e fritava montanhas de bifes acebolados cheirosos, que eram algemas e eu continuei sem entender não fiz conta, confiava nos dois, eles sabiam tudo.
nunca provava. Não era para nos que comíamos no mesmo prato a rala comida diferente da A menina da casa era muito manhosa. Tinha quase meu peso mas eu tinha de carregá-la no
servida na mesa da família. colo. Ela tinha a cabeça perebenta. Um dia estava coberta de pomada Minâncora outro, amarela
Eu tinha mais sorte. A menina deixava muita comida que eu engolia depressa. Havia de ovo. É para fortalecer os cabelos dizia a velha sem graça quando chegavam visitas. Com
fartura na casa, mas só para os patrões. aquela idade a menina era quase careca. Donana costurava seus vestidos e colocava rendas,
-Nada de esbanjar com estes negros mortos – de – fome, vociferava a bruxa. Doía ouvir queria a filha bem vestida. É pra compensar a cabeça fedorenta, eu pensava rindo por dentro!
aquelas ruindades. Quando eu passava perto, puxava maldosamente minhas tranças e batia-me A bruxa consolava a neta com mentiras. É pra você virar princesa, dizia com voz de falsete.
com uma varinha. E bajulava a menina de cabeça fedida. Mãe procurava-me com o rabo dos olhos e eu disfarçava
Não quero encontrar nenhum cabelo pixaim espalhado pela casa, dizia a megera. Eu não o riso. Sabia que a feiosa nunca seria princesa.
gostava de minhas trancinhas e mãe era obrigada a usar um pano na cabeça que a bruxa não Naquela casa ficamos até meus quatorze anos. Mocinha de peitos duros querendo furar a
queria ver nossa carapinha. blusa, um dos rapazes buliu comigo.
Além de limpar e lavar, mãe tinha outros serviços como cozinhar tachadas de doces Tardezinha disse-me que tinha que ajudá-lo a procurar um ninho de galinha D’Angola no
guardados em compoteiras. mato. Ingênua acreditei e segui o bruto. Jogou-me no chão, joelho no meu peito, deixou-me
Eu lançava olhares compridos sobre eles e mãe falava que a raspinha que comíamos era sem ar e fez de mim o que queria. Ninguém ouviu ninguém viu. Cheia de medo chamei por pai
mais gostosa que o doce! Eu sorria e concordava porque mãe era muito sábia. para me proteger, que mãe aparecesse para me salvar.
Dia de matar porco, eu limpava as tripas para as linguiças. Via os vermes saindo das bostas Somente à noite em casa contei a tragédia e mostrei o estrago. Chorei minha angustia,
enquanto as galinhas brigavam pelas lombrigas. Eu achava graça e me perdia em pensamentos. medo do bruto me dilacerando magoando-me até o fim dos ossos.
Donana perguntava se mãe queria a pacuera. Sinsora, si não for fazê farta, respondia morta de Pai quis sair com enxada e facão na mão. Queria matar o desgraçado, gritava como louco.
medo da patroa perceber o sarcasmo. Eu olhava para ela, que me fazia uma careta. Já sabia que Mãe passou a mão em sua cabeça e entre lagrimas lembrou-o de minha vergonha, de nossas
em casa teríamos delicioso sarapatel. dores, do preconceito dos brancos, da prepotência de todos.
- Gente branca é burra, não sabem como é boa a comida dos pretos, dizia mãe equilibrando -Num dianta Raimundo. Nóis vai perdê. Eles sempre ganha da gente. Capaiz de dizê que
a bacia de alumínio na cabeça. Comem aquela carne sem gosto, sem gordura, sem tempero e foi nossa fia que estragô o moço.
pimenta. Uns burros repetia quase feliz.
Eu concordava por que mãe fazia comidas que na casa dos patrões nunca se via. Lá era
sempre igual: Arroz, feijão, montanhas de bifes acebolados, ovos fritos e salada. (Ao pensar no
delicioso cheiro dos bifes, minha boca se enchia de água)
Mesmo cansada pelo dia cheio de serviço, em casa mãe limpava a pacuera e a cabeça do
porco. Pai ajudava, pitando seu cigarrinho de palha e lascando uns goles de pinga goela abaixo.
Conversávamos muito e ele me ensinava coisas lindas de sua vida e dormíamos tarde e felizes.
Um dia contei meu desejo da bruxa morrer, mãe ralhou e depois riu. É mesmo fia, disse-me
refletindo como nossa vida ficaria mais leve.

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Região: Campinas | Cidade: Jundiai
André Kondo

Conto
Mentiras
Takashi saiu da prisão com o rondoniense. Um em um saco, o outro com as próprias
Na cadeia tudo era muito limpo e silencioso. Havia livros, mas só em japonês. Não se pernas. Takashi acompanhou o corpo do ex-colega, colocado em uma van branca. O cara
importou com isso. Emprestava alguns e ficava “lendo” a própria incompreensão Durante que carregou o corpo era peruano e trabalhava na funerária. Conversaram em portunhol. O
urna leitura vazia. Foi interrompido por um brasileiro de Rondônia que revelou que havia ido peruano perguntou o que Takashi iria fazer agora em liberdade e recebeu um não sei como
ao Japão com o sonho de comprar uma casa pra viver com esposa e filho. Garantir uma vida resposta. A funerária precisava de alguém vivo. Por que não? Takashi foi contratado como
melhor para os pais... Só havia uma diferença entre o plano de Takashi e o do rondoniense, o limpador de cadáveres. Não havia muita competição para a vaga.
último realmente tinha a intenção de fazer tudo isso O primeiro cliente foi o rondoniense, às custas do governo. O peruano encontrou
Não voltaria. Não queria mais ver a esposa. Isso se tornava cada vez mais insuportável. uma carta no bolso da camisa do morto. Amassou e a jogou no lixo. “Não vai ler a carta”?,
Não tivera tempo de amar o filho, que ainda não havia saído da barriga da mulher. Os pais Takashi perguntou. O peruano respondeu que não, porque não queria carregar o morto além
nunca tinham dado a ele mais do que algumas migalhas de tempo. Por que voltaria ao Brasil? do forno de cremação.
Mentiras: Dois dias depois, no segundo cliente, Takashi levou um susto. Não era pelo fato
- Amor, vou ao Japão, trabalhar pra comprar uma casa pra gente ser feliz com o nosso de se defrontar com um cadáver, nem por medo de fantasma. O que o assustou, foi ter visto
filho ... no morto o rosto de seu pai. Cuidou do corpo com extremo profissionalismo, seguindo as
- Pai, mãe, vou ao Japão, trabalhar pra garantir o conforto de vocês na velhice. instruções do peruano, que lhe ensinava o ofício.
O avião alcançou o céu. O inferno ficou pra trás. Ou não? Takashi havia arranjado um Em pouco tempo, o peruano foi embora “Não queria abandonar os mortos, deixá-los
emprego em uma agência ainda no Brasil, qualquer coisa em uma montadora de carros. sozinhos. Agora posso ir”, disse o peruano na despedida. Takashi ficou com os mortos, no
Ao chegar ao aeroporto de Narita, não havia ninguém para buscá-lo, parado, turno da noite. Sozinho. Não se importava com isso. A única coisa que o incomodava era a
sem saber o que fazer. Não falava japonês, habilidade que achou desnecessária para um estranha sensação de ver o rosto do pai, da mãe, da esposa... nos mortos. Seria saudade?
trabalho de peão de fábrica. Pouco após a quinta hora, alguém se lembrou dele e apareceu. Após dois anos, já tinha guardado um dinheiro considerável. Dava para uma boa casa,
Um pedido de desculpa mal -humorado. Só. Toca pra fábrica. O Japão não era aquilo que ele algum conforto para os pais. Mas não pensava em voltar. Até que, certa noite, um bebê
pensava: pontualidade e perfeição. Não há perfeição em lugar algum. Menos mal, imperfeito, apareceu. Se tivesse conhecido o filho, reconheceria o mesmo rosto naquela criancinha
já estava acostumado a atrasos, aliás, ultimamente tinha se tornado especialista nisso. No gelada?
Brasil, havia atrasado o pagamento da luz, da água, do gás... E sendo especialista, acabou Nunca havia hesitado em preparar um corpo para o funeral. Trabalhava com destreza,
demitido já na primeira semana no Japão, ao chegar atrasado pela quinta vez (no quinto dia friamente limpando as impurezas do corpo, purificando o que havia restado para a saudade
de trabalho). levar. Mas, aquele bebê...
Sentiu fome, roubou comida, foi preso. Takashi lavou o pequenino corpo com lágrimas. Lembrou-se da promessa. Era hora de
Na cadeia, tudo era muito limpo e silencioso. Havia livros, mas só em japonês. Não se cumpri-la. Voltou ao Brasil.
importou com isso. Emprestava alguns e ficava “lendo” a própria incompreensão. Durante Takashi limpou primeiro o túmulo dos pais, que haviam morrido quando ele ainda era
uma leitura vazia, foi interrompido por um brasileiro de Rondônia, que revelou que havia criança. Passaram tão pouco tempo juntos. No mesmo cemitério, procurou rever a esposa.
ido ao Japão com o sonho de comprar uma casa pra viver com a esposa e o filho, garantir Cuja dupla lápide indicava também o nome do seu filho, que nunca havia sido pronunciado.
uma vida melhor para os pais... Só havia uma diferença entre o plano de Takashi e o do Takashi entregou flores a amada. Um brinquedo de pelúcia trazido do
rondoniense, o último tinha realmente a intenção de fazer tudo isso. Japão para o filho. Depois, tirou do bolso uma carta amassada... E partiu para
Se Takashi tivesse prestado atenção em toda a história, se não tivesse parado de escutar Rondônia.
quando o rondoniense disse que queria ganhar dinheiro para esposa, filho, pais, talvez
compreendesse por que o cara amanheceu no dia seguinte pendurado na cela, com a calça
enrolada, como corda no pescoço. Takashi não sabia, mas o rondoniense havia perdido o
emprego por ter ido trabalhar embriagado. Ficou sem dinheiro até para voltar para casa.
Embriagou-se ainda mais. Tentou cumprir a promessa de dar urna vida melhor à esposa, ao
filho e aos pais, da pior maneira pela via do crime. Pegou pesado. Pegou perpétua. Como
poderia cumprir a promessa? Não podia.

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Região: Campinas | Cidade: Valinhos Região: Grande São Paulo | Cidade: Itapecerica Da Serra
William G. Gardel Chico Urcine

Conto
Eu, O Vinho E A Vida

O momento não estava a favor de nada, nem mesmo para pensar. Mas não era o momento
o culpado, era eu. Sem rumo, parecia que eu estava sozinho entre tanta gente que costurava
ruas e carros no centro daquela metrópole. Uns estavam apressados, outros pareciam que não
estavam nem aí. E entre estes eu me encontrava; parecia que estava vagando, indeciso, não
Tinta sabia se ia ou vinha.
Com passadas lentas e onduladas eu era a todo instante esbarrado pela correria de muitos
As cores que ela pintava. É disso que eu sinto mais falta. Não do calor das mãos dela no daquela multidão. Aéreo, encostei-me a uma mureta próximo a uma passarela daquela avenida
meu rosto, ou de contornar o rosto dela com os meus dedos. Não do cheiro dos cabelos, ou da em fúria, atordoada pelas placas, prédios, faixas e buzinas. Meu olhar mortiço conseguiu vencer
curva do pescoço. Não da sensação boa de ter a pele dela na minha, sentir cada milímetro da toda essa barreira e chegar ao outro lado da avenida e fixar-se naquela parede cor de terra
textura dela. Sinto falta de tudo isso, é claro. Mas do que sinto mais falta, mesmo, são as cores daquela casa aparentemente humilde, solitária entre centenas de prédios.
que ela pintava. Por cima do batente superior da porta de madeira escura que lembrava o jacarandá, uma
Como aquela vez em que subimos a Pedra Redonda. Foi uma longa trilha pra chegar ao descrição em forma de arco também de madeira, que dizia: Recanto do Vinho. Se quem canta
topo, mas a cada passo ela pintava as cores de tudo em volta. As margaridinhas amarelas, as seus males espanta, quem bebe não fica na retranca. E lá fui eu.
pequenas rosas silvestres, que ela pintou de vermelho-cereja, e rimos da ideia de rosas com O vinho pode ser manso e manhoso, não assusta, e é veterano de um tempo incerto onda
sabor de cereja, e a grama que percorria a trilha toda, que ela pintou como a esperança que guarda e também revela segredos, além de testemunhar grandes paixões. Neste momento,
brota no coração nas manhãs de domingo. Quando chegamos ao topo, o vento soprava forte, comecei a viver. Estaria eu liberto desse estado escravizado, pois sem perceber já estava em
com um cheiro de liberdade, e fazia o coração bater acelerado, pressentindo a altitude. O frente à porta que suavemente bati, fazendo o que o indicativo pedia.
orvalho da neblina umedecia os meus cabelos e os dela, e fazia frio, muito frio, mas tínhamos Sem demora a porta se abriu e fui saudado por um cidadão de vestes escuras, que me
calor, pelo esforço da subida. Eram três da tarde, nos sentamos e comemos sanduíches disse: Bem-vindo à vida! E me conduziu a uma mesa com duas cadeiras em madeira de lei, bem
esperando pelo pôr-do-sol mais inesquecível da minha vida. Ainda consigo me lembrar de cada antigas. O ambiente era turvo e parecia que pedia silêncio. Naquele momento, eu era uma das
raio de sol, como ela descreveu, atravessando o céu como uma ponte para o lá, e o depois, e o poucas pessoas que ocupavam aquele recinto. Lá no fundo, no canto direito, por detrás de uma
além; uma ponte frágil, de cristal dourado, como os sonhos na hora em que despertamos, mas taça de vinho verde saía uma preguiçosa melodia em dedilhado de um violão. Gentilmente, fui
segura de atravessar e ir. Ela pegou minha mão e disse que ia me levar. Encostou meu indicador servido pelo proprietário, que me trouxe três líquidos para experimento, e, logo no primeiro
em seu lábio, beijou suavemente, e eu pude senti-la se aproximando, cada vez mais, enquanto gole já tinha a decisão, quando ele me disse: - Entre todas as existências conheceis bem as
a luz do sol pintava de dourado tudo aquilo, e quando nos beijamos o mundo era só luz e ouro. diferenças; este é o melhor vinho que uma uva pode dar. E me trouxe uma garrafa.
Ela sabia pintar como ninguém mais. Cada adjetivo era cuidadosamente selecionado O vinho no meu corpo reagiu instantaneamente, abrindo os portões da vida, igual à
naquela paleta infinita de palavras. A entonação para cada uma delas era a pressão e direção primavera num dia de sol depois de uma noite de chuva. Apesar de estar ali sozinho, já não
do pincel sobre a tela. Ela inspirava fundo antes de começar a pintar, e eu podia experimentar mais me sentia esquecido, e aquela canção me levou aos quatro cantos do mundo.
a sensação de estar ao lado da pessoa mais especial que já existiu. Fomos a tantos lugares, e Mas, para que ficar ali, eu, o vinho e a saudade? Então, me retirei, e ganhei a avenida. Aliás,
em cada um deles ela pintou um cartão postal com adjetivos, verbos, comparativos, adjuntos bem mais que isso, o mundo, pois tinha a certeza que estava vivo. Afinal, onde está você?
adverbiais. E era surpreendente, eu podia ver cada cor, cada paisagem, com tantos detalhes, Sozinho e calado, mas feliz, fui andando em direção ao nascente, no meio da multidão. E firme
com tanta riqueza, e o meu coração se enchia, como se cada lugar que a gente visitasse ficasse segurava a garrafa, pois ainda havia vinho. O dia estava maravilhoso, o sol e o céu faziam
dentro de mim, e eu pudesse visitar a qualquer hora. E é verdade. E eu visito. cobertura. E logo adiante, uma placa dizia: “Este parque também é seu”. Não pensei duas vezes,
entrei. Ali parecia um paraíso, era completo; gente falando, cantando, brincando, namorando,
artistas articando, flores, odores, borboletas sem rumo entre arbustos e gramados, vigiados por
pacatos arvoredos sombrosos.
Eu ali realmente estava vivendo, desfrutando de toda aquela beleza. De repente, como
uma mágica, um leve esbarrão, e lá se foi o meu vinho escorrendo pelo chão. A pessoa, ficando
incomodada pelo desastre que causara, me pediu perdão, dizendo: - Não diga nada, fique aí,

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Região: Grande São Paulo | Cidade: Osasco
André Monteiro

Conto
O Carrasco Gentil
não saia! Vou até o Recanto do Vinho buscar outro igual.” E então, obedeci. Fiquei olhando
aquele andar, aqueles cabelos, as pernas protegidas por um vestido artesanal champanhe, Gentil era o seu sobrenome, e foi assim que ele ficou conhecido, Gentil no nome e gentil
bordado em alto estilo, os pés colados naquelas sandálias de meio salto na cor bege suavizavam em seus atos. Quando menino, em uma peraltice sem ciência da maldade, ele segurou uma
os passos. Os brincos e os cordões reluzentes balançavam, entrando em contraste com o tom pequena lagartixa pelo rabo, e com um fósforo aceso, queimou a cabecinha do pequeno réptil
das unhas, e os lábios de carmim carnudos dominavam sua voz aveludada. Era um encanto até a morte.
naquele canto, cheirando à primavera. Seu avô, que também era pai e mãe, ao flagrar tamanha tortura, advertiu-o e o prendeu a
Apesar de parecer um encanto a palavra se cumpria. E logo foi dito, tudo era real: - Eis aqui uma promessa.
o vinho e duas taças, e não beba sozinho. Brinde comigo neste cristal! Prometa, prometa que nunca mais irá tirar a vida de ninguém nem de nada!
Ela, ainda degustando o primeiro gole de vinho, tirou da bolsa um livro, ainda fechado, Promessa feita, e Gentil nunca mais matou nada, nem mesmo quando era picado por um
para mim. E disse: - Permaneça em silêncio; vale mais uma companhia do que duas conversas, inseto, sempre o espantava, mas não o matava nem por um ato de reflexo, jamais voltara a
calar também é alegria - dizendo ainda com ares de risos -, o vinho impõe todo o respeito para matar qualquer ser vivo, e consequentemente, se tornou uma das criaturas mais dóceis que
o prazer, para quem curte a vida. alguém poderia ter conhecido.
E, sem terminar o vinho, ela ainda disse: - Eu tenho que ir, preciso continuar a cuidar de Mas ao decorrer dos anos veio a morte do avô e o fez encarar a vida com o trabalho menos
mim. E foi se despedindo com um abraço desapressado e um tocante selinho: - Se tivermos provável para tal, se inscreveu como atirador do centro de detenção da penitenciária federal.
sorte, ó homem pacato, até outro dia, sem hora e sem trato. Calmamente, foi andando e, no Ou seja, um carrasco, mas nosso personagem não se esqueceu da promessa feita ao seu avô.
meio da multidão ela desapareceu. Fiquei pasmo de ver tanta beleza, destreza e conhecimento Ele sabia que, para cada fuzilamento, era posto um grupo de 10 fuzileiros, mas somente três
naquela pessoa. estariam com os fuzis carregados. Ou seja, eles nunca saberiam quem estava com o fuzil
carregado ou não.
Nos meus caminhos, a certeza; Mesmo assim, Gentil não queria correr risco, e nos seus treinamentos era minucioso,
Ela foi, a saudade ficou. catedrático e disciplinado, seus instrutores não paravam de elogiá-lo.
Com saudade, sem tristeza, É a melhor mira que nós já vimos!
Minha história aumentou. É capaz de acertar a cabeça de um alfinete a quilômetros de distância!
É até um desperdício usá-lo para fuzilar os condenados, seria mais útil na infantaria de
Do parque ao absoluto, guerra.
Da pista à dança, Mas Gentil, não se deixava acomodar com os elogios, e cada vez que seu treinamento se
Do labor ao desfruto, aproximava do fim, mas ele se dedicava. Chegando ao ponto de pedir permissão para levar o
Da vida à bonança. fuzil nos dias de folga para casa, só para treinar mais.
Quando começou a colocar em prática o seu treinamento, ele sempre mirava na altura
De mim, de todos, de tudo, da orelha esquerda do condenado. Sabia até calcular o quanto do tecido do capuz precisaria
Comigo levo atos e cantos, acertar. Assim, jamais viera de seu fuzil o tiro letal, quando muito, apenas tirou um pouco de
Feitos a contar; sangue com um tiro de raspão.
Me puxa o sonar das ondas, Acontece que Gentil não estava passando despercebido, sua mira implacavelmente
Cantando vou inofensiva chamou a atenção de seu superior direto, o sargento Severo. Ele já conhecia Gentil
Cantar com o mar! desde o seu treinamento era o responsável pelo pelotão de fuzilamento.
A primeira coisa que chamou a atenção de Severo foi o semblante calmo e sereno de
Gentil. Em toda sua vida militar, nunca tinha visto tal semblante em nenhum atirador. A segunda
era que ele como o responsável pelo carregamento dos fuzis, e a sua distribuição, começou
a perceber que quando era o soldado Gentil que portava uma das três armas carregadas,
somente duas perfurações atingiam o condenado. Estes dois fatos ficaram evidentes na cabeça
do sargento durante os dois anos que Gentil estava incorporado ao pelotão.

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Região: Maríla | Cidade: Paraguaçu Paulista
Neguirene

Conto
Tumulto na Caixinha de Costura

Na caixinha de costura o botão cinza reclamava da sua cor apagada. Sonhava com o dia
em que a costureira o colocasse num lindo vestido vermelho de alguma senhora que fosse a
Severo era um militar de coração, não admitiria nenhum ato de desobediência, Paris. Mania de grandeza, dizia o alfinete que vivia a falar dos sonhos de todos que ali ainda
insubordinação ou prevaricação, e essa suspeita deveria ser esclarecida no próximo fuzilamento. moravam. O botão tinha pena do coitado; sabia que ele jamais iria adornar uma roupa. Nascera
Decorreu um tempo até que um alguém fosse condenado a pena capital, um homem de para um ofício determinado: sua função era quase sempre marcar barras de saias e calças. De
quarenta anos que estuprou e matou uma garotinha de três. Quando chegou a hora, vários vez em quando espetava alguém, era odiado. Às vezes caia no chão e quase ia para o lixo. A
soldados foram até o sargento pedir para empunhar uma das armas municiadas, mas ele tinha sorte era ser um dos poucos alfinetes naquela caixa.
outros planos, iria carregar apenas um fuzil que seria entregue ao soldado Gentil. A esbelta agulha vivia cansada. Resmungava do uso contínuo e quando chegava a noite
Tudo pronto, o condenado já estava encapuzado e amarrado ao poste de fuzilamento. estava estressada. Queria dormir, mas era uma dificuldade em meio aos objetos que raramente
Quando o sargento Severo baixou a mão, a ordem de atirar tinha sido dada, todos os soldados eram usados e viviam com a corda toda. Tinha muita afinidade com as linhas e cada vez que
dispararam, mas apenas um tiro saiu. um carretel acabava, ficava dias em silêncio, até criar laços com outro. Tinha ciúmes quando
Os olhares incrédulos dos fuzileiros percorriam um ao outro para saber de quem tinha a costureira precisava usar mais a agulha da máquina do que ela, apesar da reclamação de
sido o disparo derradeiro, menos Gentil, que continuava com seu inabalável semblante sereno. excessos de trabalho, de direito e deveres. Não gostava de trabalhar mais de oito horas diárias.
O condenado estava sentado e desfalecido no chão, a cabeça caída com o corpo preso Sempre que precisava consultava o colchete.
pelas mãos amarradas ao poste, mas estava vivo. Percebia-se sua respiração, e ao retirar o O colchete era um dos moradores mais antigos da caixinha. Diziam que estava fora
capuz, apenas um leve ferimento na orelha esquerda. de uso, fora de moda. Para não entrar em depressão, começou a ler leis trabalhistas e sabia
O médico foi chamado, ele confirmou que o que todos perceberam, então coube ao os direitos de todos, até dos que já tinham ido embora, como as fitas e as rendas. Tinha por
sargento Severo cumprir o protocolo e sanar a sua dúvida definitivamente. Ele queria saber se estas uma antipatia enorme. Dizia que eram burguesas, metidas a ricas, que viviam de fofocas
o soldado Gentil estava ou não acatando as ordens superiores que lhe eram entregues. e intrigas. Gostava de colocar o elástico contra elas, porque em uma briga elas saiam sempre
Pelotão, nosso alvo ainda continua vivo, e com as atribuições e poderes a mim concedido, machucadas e os hematomas muitas vezes as impediam de enfeitar ricos vestidos de festas.
escolherei qual de vocês deverão executar com um tiro de misericórdia este condenado. Os hematomas em fitas e rendas serviam para fraldas de bebês, motivos de riso e escárnio do
Soldado Gentil se aproxime. colchete. O colchete se achava leal, ético e justo, mas temia a Lei Maria da Penha. Sempre saia
Metade da curta distância tinha sido percorrida por gentil até o prisioneiro quando do sério com a tesoura.
ele percebeu o que iria ter que fazer. O sargento lhe entregou uma pistola completamente A tesoura um pouco cega e desvairada ia para a caixinha toda noite depois de um dia
municiada. de trabalho intenso e continuava com a adrenalina alta, o que ocasionou a criação de normas
Soldado Gentil cumpra com o seu dever militar. na caixinha. Mesmo assim a tesoura vivia descompensada, quebrava as regras. Era o terror dos
Ele segurou a pistola, precisou da outra mão para poder sustenta-la, pois naquele momento moradores e a queridinha da costureira. Tomava tarja preta toda noite para suportar os gritos
parecia o objeto mais pesado do mundo. Ele observou o corpo inerte do condenado preso ao do colchete... A coitada não entendia de assédio moral, pensava o colchete com seus botões...
poste, observou o rosto do sargento. Fez a sua pontaria e, naquele instante ele quebrou a O zíper de cinquenta centímetros esperava há tempos uma mulher longilínea que
promessa que havia feito ao seu avô. encomendasse um vestido para que ele saísse da vida da caixinha. Tinha síndrome do pânico
naquele pequeno espaço. Volta e meia reclamava de dor de cabeça. Falta do que fazer, dizia o
colchete de gancho, um dia você vai e essa frescura passa, falava enquanto olhava de canto de
olho para um pedaço de retalho de seda que, sem querer foi parar na caixa. A pequena e linda
tira de seda ficava corada com os olhares do colchete de gancho e não via a hora de ter uma
serventia qualquer. Não se encaixava naquele ambiente.
Quando a costureira esquecia a caixinha aberta, o viés de bolinhas, que morava do lado
de fora, também assediava a pequena tira que se derretia em lágrimas para desespero dos
objetos de aço que temiam ficar enferrujados como um pobre alfinete de cabeça que estava
com os dias contados para ir morar no lixo. Não tinha mais serventia.

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Região: Maríla | Cidade: Timburi
Fabricio Hersoguenrath

Conto
“A vida de Miguel”

Miguel repousou a cabeça sobre o travesseiro. Cabelos ainda molhados.


Por mais que sua mãe falasse, em sua infância, para não dormir com os cabelos molhados,
Miguel não dava a mínima. Cresceu não dando a mínima para isso. Esse é o problema dos
adolescentes. Nunca dão ouvidos aos pais.
Avós. Tios. Sou dono de mim mesmo, eles pensam.
Miguel sentia falta de sua mãe. Quando saiu de casa, aos dezenove, dependia dela para
tudo. Tudo mesmo. Os primeiros dias longe foram difíceis.
Um dia, a costureira chegou com uma caixa grande de costura. Nova tesoura, bordado Quase não comia. Louça aos montes. Roupa amassada. Arrumar cama para quê? Nunca
inglês, sianinha, viés de todas as cores, dedal, carretilha, zíperes de vários centímetros, rendas, arrumara. Morando sozinho não seria diferente. Conseguiu emprego num restaurante perto
fitas de cetim e outros novos moradores que os da antiga caixa nem conheciam, nem sabiam de casa. Corria lá e cá com a roupa de garçom que sempre achara esquisita. Mãos ocupadas.
da existência. Foi um frisson o dia inteiro. O colchete convocou todos para uma assembleia. Pratos. Guardanapos. Talheres.
Fez um discurso inflamado e pediu greve. A adesão foi total. Combinaram que assim que Copos. E ainda tinha de sorrir para clientes insatisfeitos.
a costureira abrisse a caixinha, eles se rebelariam e não iriam para o trabalho. Fariam uma - Ser garçom é assim – dizia –, as pessoas sempre te tratam mal. Não importa o que você
manifestação com palavras de ordem. O colchete reivindicava o estatuto dos idosos, enquanto faça. Você é escravo. Esquecem que você também é humano.
todos gritavam que caixinha unida jamais será vencida. Com os cabelos ainda molhados sobre o travesseiro, não sabia se ia para Londres ou Paris.
Mal o dia amanheceu a costureira entrou cantando no quarto de costura, abriu a nova E, se soubesse, faltava descobrir como o faria. A vida não foi muito justa com ele e, com o
caixa, suspirou feliz e numa demonstração de desapego, foi colocando todos os objetos da dinheiro que conseguiu economizar trabalhando como garçom, conseguiria, no máximo, voltar
antiga caixa, separando-os por espécie para enviar todos os moradores para uma usina de para o interior. E a ideia de voltar para lá incomodava. Ver os mesmos rostos. Rostos que viu por
reciclagem . dezenove anos. Não era uma boa ideia.
Foram todos moídos na grande roda. Reza a lenda que o colchete bradava em alto e Miguel fazia muitos planos. Planos que não saíam do papel. Antes de se aventurar como
bom que resistiria até o final com dignidade. garçom, ainda no interior, pensou em plantar verduras e legumes. Passaria vendendo de casa
Na nova caixa novos personagens com personalidades distintas foram surgindo. A pequena em casa, ali na sua cidadezinha.
tira de seda havia caído ao chão na hora da distribuição dos objetos por suas especificidades e Preparar o terreno para a plantação o aborreceu tanto que deu em nada.
foi morar na nova e luxuosa caixa. Também não se encaixou naquele ambiente. Espera ansiosa Miguel seria um bom empreendedor. Mas a vida não foi muito justa com ele.
uma serventia, mas sabe que seu destino é enfeitar fraldas de bebês. Com o travesseiro mais molhado que seus cabelos, não sabia se queria filhos ou não. E, se
quisesse, não sabia como o faria. A vida não foi muito justa com ele e, com sua aparência não
muito agradável, nunca olharam para ele.
- Ser feio é assim – dizia –, as pessoas nunca olham para você. Não importa o que você faça.
Você é feio. Esquecem que você também é humano.
Que você tem muito a dar. Que esse Ser feio também precisa de amor. Todos precisam de
amor.
Miguel sempre gostou do Natal. Montava a árvore na sala todos os anos.
No Natal de 1989, acordou de manhã e correu buscar o presente. Aquele fora um ano difícil
e sua mãe não conseguira comprar a roupa de aviador que tanto queria. E então ficou sabendo
que Papai Noel não existia. Decepção.
No último Natal, montou a árvore. Presenteou-se com a roupa de aviador. Passou a
ceia com seu cachorro Babalu. Peito de peru com mel. Farofa de abacaxi com passas. Pernil
com cupuaçu. Arroz com castanha de caju. Tender com nêspera. Pavê de maracujá. Panetone
recheado. Torta de maça. O melhor Natal de todos.

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Região: Presidente Prudente | Cidade: Presidente Prudente
Ancelmo

Conto
A entrevista

Parece que me esqueci de ser gente. Há tempo não tenho atitudes normais. Não rio, nem
entristeço, mas, sofro abalos, emoções. Como se eu fosse um pântano, onde as coisas caem
Com os cabelos secos e o travesseiro úmido, não sabia se fazia aula de violão ou piano. E, e morrem. Areia movediça, imóvel aparentemente e destruidora. Tudo o que é vivo e entra
se soubesse, não sabia como o faria. Trabalhando quatorze horas como garçom, de segunda a em mim, morre. Não é nada agradável descobrir isto. Eu tinha momentos de depressão, mas
segunda, mal tinha tempo para se barbear. costumava ser alegre, irônico e sarcástico. A turma gostava de mim porque era capaz de dizer
Miguel sempre gostou de música. Antes de aviador, seu maior sonho era ser músico. Estrela a frase certa e engraçada, na hora exata. Não que fosse o palhaço da turma. Era um espírito
dos palcos. Viver lá e cá com seu violão ou o que fosse, fazendo música e encantando a todos. crítico, suficiente para encarar as situações com uma ironia saudável, a única forma de enfrentar
Seria o Paul McCartney do Brasil. Mais um plano que dera em nada. o mundo sem ser levado à loucura. Agora, minha boca endureceu, os músculos não se movem.
Em 1999, comprou seu primeiro carro em sessenta parcelas. Na primeira semana, saiu às Simplesmente porque não tenho vontade. E quando a vontade está se extinguindo é perigoso.
três da manhã para levar seu companheiro Babalu, que passava mal, ao veterinário. Logo que Eu preciso encontrar amigos, mas as pessoas se afastam, como se fugissem de bêbado e
cortou a esquina, entrou num muro. mendigo. Pode ser que eu cheire muito a passado ou que a greve tenha me marcado. Não sou
Perda total. E paga o carro até hoje. um velho, tenho cinquenta anos, não é nada e, ao mesmo tempo, é tudo. É tudo se a gente se
- Ser azarado é assim – dizia –, as coisas vão e você nem percebe. Aquela frase do Jô Soares preocupa e faz um balanço diário. E não é nada se a gente se comporta como se estivesse se
“era tão azarado que, se quisesse achar uma agulha no palheiro, era só sentar-se nele” foi feita iniciando. Na verdade, estou sempre iniciando e é o que me mantém novo. Está chegando o
para mim. tempo em que não sei mais o que começar. Um tempo em que vejo a coisa de fora para dentro.
Naquele mesmo ano, quando previram o fim do mundo, Miguel ainda era virgem. Outro dia, preenchi uma ficha de um emprego numa loja de departamentos. Uma empresa
Desesperou-se. Pagou uma prostituta. O mundo não acabou e chora até hoje por não ter enorme que está abrindo uma nova agência.
perdido sua virgindade com alguém especial. - Cinquenta anos?
Logo que saiu da casa da mãe, não sabia se cursava medicina ou odontologia. Mas não - Cinquenta.
podia ver sangue. Certa vez, quando criança, cortou a mão em vez do pão que pretendia comer. - Se quiser, continue. Mas nem vai adiantar. Com essa idade.
Com tanto sangue escorrendo entre os dedos e o pão, desmaiou. Acordou com seu cachorro - O que tem a idade? O anúncio não dizia nada.
Feijão lambendo-lhe o rosto. O tempo passou e não estudou medicina nem odontologia. A vida - Não tem nada. Só que não vão te escolher. Aliás, nem posso deixar o senhor continuar
não foi muito justa com ele e, mesmo que tivesse entrado para a faculdade, não iria longe com a preencher.
a pouca inteligência que lhe deram. Recolheu o impresso e ficou olhando para mim com um rosto impassível. Aquele
Com os cabelos e travesseiro já secos, Miguel relembrava seu passado. molequinho que eu não conhecia. Vindo de fora. Um merdinha.
E, apesar de tudo, sentia-se feliz. Tinha uma boa casa. TV de plasma e DVD. - Tenho cinquenta anos e tanta capacidade como um de vinte e cinco.
Bar na sala de jantar com suas bebidas favoritas. Material pornográfico e boneca inflável para Eu disse, nem acreditando em mim, sabendo que não adiantava. Além disso, a frase era
noites especiais. Aquário com peixinhos coloridos. Videogames. Livros. Cama box confortável. completamente boba e sem sentido, um chavão repetido. No entanto, eu estava disposto a
Sentia-se feliz. E não reclamava. A vida foi justa comigo, dizia. E sentia-se feliz. Fechou os olhos encher. Não ia ter o emprego, podia perder tempo e fazer a empresa perder o dela. O meu não
e dormiu. Dali algumas horas acordaria, vestiria a roupa de garçom que sempre achara esquisita custava nada e dela era precioso, como diria o meu entrevistador.
e por quatorze horas sorriria para clientes insatisfeitos. - Posso tentar, ao menos?
- Não adianta.
- Se você deixasse passar uma ficha...
- Você, não! Senhor. Eu não te conheço.
- Quero terminar minha ficha.
- Não vão te escolher.
- Tenho direito de tentar.
- E eu tenho ordens de não deixar passar.
- Vamos falar com quem deu essa ordem. É inconstitucional.

40 41
- Não sei se é ou não inconstitucional.

Conto
- Chame o chefe, quero falar com ele.
- Não há nenhum. Ficaram em São Paulo. Vim na frente para selecionar.
- Então, telefona. Que eu espero. Um há de vir.
- Telefonar para São Paulo e esperar um deles vir até aqui?
- Não saio desta cadeira, enquanto não conversar com um chefe.
- O senhor vai me dar licença. Tenho um mundo de gente para entrevistar.
- Só depois de me atender.
- Já atendi.
- Ainda não. Vou esperar.
- Acabou. O senhor não sai, saio eu.
- Pois saia.
Saiu. Fiquei sentado na cadeira. Até cinco e meia, quando um homem, que eu nunca tinha
visto da cidade, veio fechar a porta.
No dia seguinte, eu era o primeiro da fila. Havia dez atrás de mim. Entrei logo e sentei, o
merdinha não tinha chegado. Fiquei lendo o jornal. Quando baixei o jornal, ele estava lá. Cara
de desagrado.
- Não temos mais o que falar.
- Zelar?
- Quero ser entrevistado, fichado, concorrer ao emprego.
- Zelar, zelar, zelar.
- Saia, que este é um recinto da companhia. Tenho o direito de colocá-lo daqui para fora.
Estou na pior, mas tive um emprego razoável, um dia. Não suportei. Foi logo depois da fábrica
- Eu é que vou chamar a Polícia. Então, a sua companhia não admite velhos. Vou aos jornais,
de extrato de tomate. Era um mero parafuso diante de uma grande máquina. Simplesmente,
faço um escândalo, provoco uma intervenção.
não consegui aguentar aquilo. Vestia um uniforme azul escuro, todos os dias ser chamado por
- Com que provas o senhor diz isso? Nenhuma. Depois processamos o senhor por calúnia.
um número, sentar-me num cubículo. Estávamos todos confinados. Lá dentro, tentei escrever
O senhor simplesmente não conseguiu o emprego porque é atrevido. Porém, vamos mostrar
as minhas coisas. Proibiam. Retiravam os meus papéis, computador, lápis, caneta, tudo. Um
que não preencheu os requisitos na entrevista. Saia.
dia arrancaram meu crachá vermelho, exigiram o uniforme azul escuro, pediram devolução
- Saia você da minha cidade.
das placas com os números que me identificavam e me tornaram gente dentro da indústria.
- Mais uma chance, moço. O senhor me irritou.
Colocado para fora. Sem o número, readquiri o meu nome. Qual era?
- Eu é que irritei? Você me recusa o emprego por ter cinquenta anos. Vem de fora para
podar a gente daqui. Prejudicar as pessoas da terra, isso é que é. Pois saiba que estamos cheios.
Há muita gente entrando pela porta da cozinha nesta cidade. E você é um deles.
- Que história é essa?
- As pessoas de fora são indesejáveis aqui!
- Mesmo as que, como nós, estão trazendo empregos?
- Emprego! Que emprego? Acaba de me rejeitar.
- Eu não. A companhia.
- É a mesma coisa.
- Não é, não. Olhe aqui. Nesta cidade não havia nada até a gente aparecer. Sabe quantas
vagas vamos ter? Mil e duzentas. Atrás de nós sabe quantas empresas virão? Dezenas. A região
é importante. Vai haver emprego às pampas.
E vocês reclamam. Nunca vi gente pior. Daqui para a frente as pessoas não precisam sair
daqui para fazer a vida fora.
- Que bom. A sua companhia chegou e resolveu o problema social: o desemprego na
região. O que está pensando?
- Qual é a sua, moço?
- Vim zelar.

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Região: Presidente Prudente | Cidade: Presidente Venceslau
Tacitocortes

Conto
em desistir da tarefa, porém não poderia deixar o bichinho à mingua. Dia após dia voltava para
O Gato Amarelo alimentar o animal e, aos poucos, percebeu que ele se aproximava. Começou então a levar seus
livros e trabalhos para o apartamento da vizinha e Gelbe passou a ser sua companhia constante.
Conheceram-se por acaso no elevador. Eram vizinhas de apartamento, mas nunca tinham Lia alto sua tese, explicava tudo ao animal e lhe parecia que ele entendia e participava de tal
se visto. O edifício em que moravam era enorme e composto em cada andar por dezenas de maneira que foi se tornando essencial para seus estudos e suas conveniências. Nos últimos
apartamentos tipo quarto e sala. Situado no centro da cidade atendia bem aos interesses de tempos Alice já não conseguia viver em o gato amarelo.
pessoas, na maioria solitárias, que trabalhavam por perto e assim tinham acesso fácil a suas Dizem que os gatos são animais solitários e que não se prendem aos seus donos; se apegam
casas. Alice morava sozinha há muitos anos. Solteira convicta, professora universitária de muito mais a casa, ao seu habitat, do que ao ser humano que lhes alimenta. No entanto Gelbe
história preferia se envolver com seus livros, que eram muitos, do que com seres humanos. Aos era diferente. Vivia esperando a volta de Herta. Toda a tarde sentava-se no mesmo lugar do
40 anos, trabalhando em sua tese sobre Luiz Carlos Prestes, Alice não tinha o menor interesse sofá e permanecia horas e horas olhando para a porta, esperando sua dona. Dormia também
em fazer amizades. Mas naquela manhã, aguardando o elevador, viu aquela senhora velhinha sempre no mesmo cantinho da poltrona onde a velhinha lhe fazia cafuné.
saindo do apartamento em frente e, sem saber explicar porque, se simpatizou com ela. A Alice estava apreensiva. Há alguns dias vinha notando diferenças na conduta do bichano.
mulher se vestia com simplicidade: um casaco marrom sobre blusa branca, saia cinza comprida Quase não se aproximava mais dela e, de repente, parou de comer. Ficava pelos cantos com
e sapatos de saltinho baixo; olhos esverdeados se sobressaiam junto à tez muito pálida o que um miado sentido que mais parecia um lamento... e ela, agora, amava aquele animal. Herta
dava a impressão a Alice de que se estava a ver um anjo. Lembrou-se da infância, da avó desaparecera na tal viagem há três meses e ninguém dava notícias dela. Decidiu que na
materna que tinha origem alemã, era clara e a tratava com muito carinho. A velhinha lhe sorriu próxima segunda feira iria procura-la.
um sorriso límpido e lhe disse se chamar Herta (puxa! Nome germânico como a vó!). Contou- O domingo chegou cinzento, chuvoso e Alice resolveu ficar um pouco mais na cama.
lhe também que morava sozinha desde que enviuvara e por fim convidou-lhe a visita-la nos Assistiu a missa na Rede Vida e se enrolou nas cobertas para cochilar. Então a campainha tocou.
próximos dias. AH! Não! Pensou Alice. Não queria envolvimento com ninguém! Muito menos Foi um toque estridente e demorado assustando-a. Achou que poderia ser Herta e isto lhe
com uma anciã que lembrava sua avó. trouxe um misto de alegria e expectativa. Ao abrir a porta encontrou uma mulher ainda jovem
Novembro chegou com rapidez embora para as pessoas solitárias o tempo não parece e desconhecida que a observava por trás de óculos com lentes grossas. “Bom dia” lhe disse a
passar. Agora Alice prepara sua monografia para o exame de mestrado. A campainha da porta mulher e se identificou: “Sou Maria sobrinha neta da dona Herta e lhe trago más notícias. Minha
lhe tira do devaneio em que se encontra quase que vislumbrando, ao escrever, o sofrimento tia que estava com câncer não suportou a quimioterapia e faleceu há dois dias (Meu Deus e
de Prestes nas masmorras da ditadura getulista. Ao abrir a porta encontra Herta sorrindo e eu nem sabia! Pensou Alice). Como única herdeira vim buscar seus pertences e, como sei que
lhe convidando para um chá em seu apartamento. Alice não consegue se esquivar do convite lhe prestou favores e está com a chave do apartamento, quero lhe doar aquilo que você quiser
e pouco despois se encontra em uma saleta bem decorada sentada em uma mesa posta com e escolher de lá para que eu de destino ao resto” Nossa! Não quero absolutamente nada!
biscoitos, polvilhos, chás variados e geleias. Então pela primeira vez vê o gato. O bichano se Nem conhecia a mulher direito... Mas, então, lembrou-se do gato. E pensou que ele poderia
encontra esparramado no sofá. É um gato amarelo com olhos esverdeados, no escuro quase ser para sempre o seu amigo e confidente. “Quero apenas o Gelbe” pensou e disse isto para
violetas, um pouco gordinho (lembrou-se do Garfield) que a analisa com certa curiosidade. Maria. Não houve a menor resistência ao seu pedido e isto encheu seu coração de alegria.
“Chama-se Gelbe Katze” lhe diz Herta notando seu interesse, “o meu melhor amigo, meu Caminharam rapidamente para o apartamento vizinho, uma porque tinha pressa para resolver
companheiro e meu confidente”! Então lhe contou que a tinha convidado para o chá porque aquele impasse, a outra porque queria se apossar de seu animal.
precisava lhe pedir um grande favor. Iria fazer uma longa viagem nos próximos dias e poderia A pouca luz do ambiente fechado cegou Alice no primeiro instante. Ela chamou o gato
demorar um pouco para regressar. Queria então que ela cuidasse e alimentasse seu gato de pelo nome e não obteve seu miado como resposta. Então caminhou em direção ao sofá, seu
estimação. Oh! Não! Não posso pensou Alice. Mas como negar um pedido a uma senhorinha lugar de costume. De repente um grito alucinante cortou o ar assustando Maria que procurava
tão agradável. Aceitou fazer o favor e recebeu da vizinha a chave do apartamento. Ao abraça- acender a luz. Era Alice que se ajoelhando junto ao gato o olhava estarrecida... Gelbe com os
la na despedida teve a impressão de que ela estava mais pálida e até um pouco febril, mas a olhos esverdeados abertos e quase violetas estava morto. Acompanhara Herta em sua longa
preocupação com a monografia fez com que não valorizasse pequenos detalhes. viagem.
O inicio do relacionamento com Gelbe foi conturbado. No primeiro dia Alice entrou no
pequeno apartamento, abriu as janelas para arejar o ambiente, foi até o armário da cozinha,
colocou a ração e a água em seus recipientes e chamou o bichano. Silêncio. Procurou o animal
pela casa e não o viu. Preocupada o chamou novamente. Então levou grande susto quando
ele saltou de uma estante e quis ataca-la. Saiu rapidamente do local e trancou a porta. Pensou

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Região: Ribeirão Preto | Cidade: Cravinhos Região: Ribeirão Preto | Cidade: Orlândia
Lucimara de Souza Gomes Serafim

Conto
O Papai Noel Preto

Arrancara a alegria de viver ao léu na marra, pai morreu, mãe trabalha na roça.
Carrega a magreza piedosa na bicicletinha. Nada por fazer. Espia vitrinas, o colorido
natalino. Experimentara a repugnância, pensavam que viera pedir esmolas, agora não, a
Desenrolar da quadrilha bicicletinha dava ares de vagabundear. Pedalar escrachado, olhos gozosos. Nem acreditara,
dois Papais Noéis disputando fregueses pras lojas... Percebera, então, um branco o outro preto.
Sentado em sua cama numa noite de inverno, Carlos terminava de reler uma história que Olhos derramados a matar o tempo, aquele tempo sem fim, aquele tempo visível e palpável
escrevera há alguns anos, bem antes do tempo moderno: de moleque de rua. Espere, que é aquilo? Uma treta? Não, não acredito! Os dois Papai Noel se
João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava atracam na briga por um freguês. Credo!
Lili que não amava ninguém. O camburão chega, para, parte para a cadeia, os Papais Noéis dentro. Vou atrás ver o que
No ápice da lucidez, parou e pôs-se a refletir, convicto desta vez: sobrou da briga, que soltem logo os Papais Noéis, amanhã é véspera de Natal. E as crianças?
- Espera aí! Lili amava, sim. Não se casou com J. Pinto Fernandes? Será que polícia não pensa nelas? Um carro, desce um homem, entra na cadeia. Gastura
Sob a fraca luz de seu aposento, começou a rabiscar o único retalho de papel que estava nervosa é a espera. Espera! Só sai o Papai Noel branco. E o preto? Remordi de banda a língua.
ao seu alcance no momento: Excomungado, desgranhento. Merecia morrer, o desgraçado. Nada de nada. Pedalei acelerado
Lili se casa com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história, mas há tempos estava pra Vila, avisar a molecada:
de olho naquela elegante senhora. Soube-se por aí que esse moço queria formar família, com - Papai Noel preto tá preso na cadeia!
três varões e uma filha. O peito desaforado desembestou a falar, a turma do “pé rachado” no silêncio. Espoleta
Depois de onze meses do enlace com Lili trouxeram à luz o pequeno Frankuiney. Em quebrou a tristeza no campinho de futebol.
seguida, veio a doce Joquebedes e, mais pra frente, os gêmeos Litibenque e Achillynney. - É as artes do “Coisa Ruim”, do “Cão danado”! A molecadinha ali, largada na vida, tinha o
O mais velho, aos dezoito, saiu de casa e, amando Zoneide, sobrinha-neta do João, aquele mais velho oito anos, eu sete, os mais novos de cinco e seis anos com cara de choro.
que amava Teresa antes de ir para os Estados Unidos, uniu-se em matrimônio à moderna e se - Não vamos enjeitar briga. - Falou o Espoleta - Tô pensando numas coisas. Topa?
mandou a um lugar desconhecido. Os olhos derramados de esperança por cima dele. Pois que ele era o mais esperto, nasceu
Joquebedes, toda meiga, não estudou e virou meretriz. Conheceu Juasine, Risoleta e na cadeia onde a mãe tá presa, desmamou no Educandário de Ribeirão, aos cinco, Febem de
Bissetriz. Com elas foi morar e seu passado fez questão de apagar. Batatais e aos sete mora com a avó entrevada das pernas, não estuda de modo que a rua é
Os gêmeos, aos quinze, começaram a namorar. Litibenque com Anaslete, Achillynney com a escola dele. Espoleta, olho vivo de animal, já indo de ida com coisa que tinha formiga na
Deusidete. Anaslete já tem barriga, John Weire está por vir. Deusidete por desgosto, já ensaia bunda. O plano, enfezar a polícia. Espoleta inventou as “armas” alviverde, alvinegro, tricolor e
com outro fugir. rebaixamento lá na chácara do Vitório...
Eclésia é a garotinha que nessa história apenas passa. Joquebedes não a quis por preferir Uns quinze quarteirões até a cadeia. O pequeno exército dos “pés rachados”, sem camisa,
vida ordinária. A pequena Pastor Welbis rejeitou, sua origem saberá Deus onde ficou! Madre “armas” na mão. Espoleta não deixa coisa atrás de coisa. Na pracinha, o esquema. O desejo de
Teresa a acolheu; hoje anseia adoção por uma alma de bondoso coração. chegar logo a hora, o medo do inimigo atirar na gente, mas não se sabe o que é a morte nesta
Kiovranny, Baruel e Anaslete esperam por DNA. Não se sabe de que amor vieram a brotar. idade
Lili caminha desconsolada pelas ruas e agora só chora. J. Pinto Fernandes queria mesmo Moleque carrega água na peneira, rouba vento e sai correndo com ele nas mãos, cata
era ter ficado de fora. Ninguém ama ninguém. espinho na água, cria peixe no bolso. Moleque é poeta. Estreitamos, agachados por entre os
E a história toma novo rumo agora... carros, perto da cadeia, Espoleta tropeçou e xingou: - “Fidaputa”.
Carlos, já sonolento e cansado, adormeceu com caneta e papel ao seu lado. Era o sinal, chapoletamos o alviverde na cadeia. Alviverde, saquinho cheio de estrume,
ainda verde, de vaca. Depois o alvinegro cheio de titica de galinha e o tricolor, ovos podres de
galinhas. Que fedor na Cadeia. Os policiais, mais o delegado, saíram correndo.
- Mas que merda é essa? - Gritou o delegado num baita pisão no alviverde.
- São aqueles pivetes!
- Pivetes é o seu fiofó, solta nosso Papai Noel!

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Região: São José do Rio Preto | Cidade: Votuporanga
Lucas Gatto

Conto
O complexo do próximo - Ou a história de Joaquim Soncino

Segundo o dicionário Michaelis: Com.ple.xo (cs) adj (lat complexu) 1 Que abrange ou
encerra muitos elementos ou partes.2 Que pode ser considerado sob vários pontos de vista.
3 Complicado. Simples. sm 1 Ação de abranger. 2 Conjunto de coisas, fatos ou circunstâncias
que entre si têm qualquer ligação. Complexo cultural, Sociologia: conjunto de padrões culturais
interdependentes e agrupados em torno de um elemento nuclear; Complexo de inferioridade,
Solta nosso Papai Noel! Os policiais que nem vaca braba pra riba da gente, que pega-pega! Psicologia: expressão criada por Adler, para designar o estado psíquico que se caracteriza por
Juntou gente na praça, risadas e torcidas. O rebaixamento, os de cinco e seis anos, pronta pra um sentimento inconsciente de insuficiência ou incapacidade.
estilingar as bolinhas de gude, se a polícia agarrasse nós. A repórter da Rádio fala que a polícia Olha, Doutor. Posso te chamar de Doutor? Posso, né? Acho que quase todo mundo te
quer pegar uma gangue de pivetes que emporcalham a cadeia. Espoleta falou no ato pra ela: chama de Doutor. Então, Doutor, o problema é o seguinte: eu vim parar aqui porque eu mereço.
- Óia aqui Dona Repórter, ninguém aqui é pivete não, nóis só qué sortá nosso Papai Noel Apesar de não achar nada disso justo ou certo - eu sei que mereço.
preto. Como o senhor pode bem ver, eu sou preto. Não preto do tipo preto-escuridão; tô mais
- Solta nosso Papai Noel preto! - Gritamos, o povo da praça emendou: pra um negão bonito. Não que seja muito bonito alguém ser elogiado assim, mas vá lá, a vida
- Solta, solta!!! Chega um carro, o mesmo homem de terno. Do outro lado, chega nossas tem dessas. Aliás, por incrível que pareça, lá no bairro (e talvez somente lá) ninguém me chama
mães, bravas, coitadas, tavam no corte de cana na roça. O homem na porta da cadeia com o de negão – e nem de neguinho, antes que o senhor pense na piada pronta – , lá todo mundo
Papai Noel preto, muitos gritos de vivas, o povo também grita. Contentes, somos arrastados me chama de italiano. O Doutor deve ter lido meu nome aí encima do papel: Joaquim Soncino.
pelas nossas mães, debaixo de tapas, croques na cabeça, papiloques na orelha, pinicões no Bom, durante a infância não tive piadas de neguinho, agora de sonso... Então, voltando à minha
braço, puxões de cabelo e promessas do “couro comer feio” em casa. O Espoleta escapou, a história e, por consequência, de minha família: meu pai - o senhor Mosé Soncino - era um
mãe tá presa. digníssimo italiano, que, por motivos óbvios que seu nome carrega, fora obrigado a deixar a
Na subida das ruas de terra da Vila, as paredes descascadas, caiadas de branco, estão Bréscia durante a Segunda Guerra. Desceu do navio lá na Bahia, ainda atordoado da viagem, e
manchadas com as marcas das mãos, rabiscos e desenhos a lápis. Arrisco a olhar o rosto de lá mesmo se emaranhou com minha finada-mãe, dona Iolanda Barbosa, a qual, o Doutor já deve
minha mãe e percebo nele um sorriso escondido. Atrevo: ter adivinhado, trouxe esse lindo matiz ébano que carrego comigo. Os dois vieram pra São Paulo
- Mãe, agora eu sei porque a gente que é negrinho não ganha presente de Natal. com um mês de casados. Por aqui mesmo tiveram meus irmãos e eu, que sou o último, ou o
Aquele delegado aguado - ia falar fidaputa - prende sempre o nosso Papai Noel preto na mais novo, como preferir. Com essa mistura de ex-judeu-italiano com preta-baiana, imagina que
véspera de Natal. coisa linda era nossa mesa: café, macarrão, nhoque, acarajé, biju, cachaça e vinho. Minha mãe,
Minha mãe solta uma gostosa gargalhada, logo acompanhada pelas outras mães. tristemente, não sabe de onde seus avós vieram. Ela sabe que vieram da África, sabe que sua mãe
Aproveitei e gritei: foi escrava liberta e sabe que seu pai morreu ainda moço, pouco depois de ela nascer; mas não
- Viva nosso Papai Noel preto! - As risadas aumentaram. A alegria das nossas mães é o sabe e por não saber não diz com a boca cheia de orgulho que eles vieram de tal lugar, e que
presente. lá bebiam tal bebida e festejavam tal festa. Ela só sabe que é uma preta bonita e cozinheira – e,
sem saber mais nada, não se entristece por isso. Mas a gente sabe, né, Doutor? A gente sabe e,
por isso mesmo, se entristece por ela.
E agora o senhor se pergunta o que isso tudo tem a ver com essa nossa conversa, não é?
Como a origem da minha família pode de alguma forma aliviar minha situação aqui? Nada
pode aliviar minha situação aqui. Então, deixe ao menos eu me explicar, já que o senhor parece
descrente. Saí de casa cedo, sabe? Saí porque olha, desculpa estragar tudo falando assim, mas:
era foda. Meu senhor Doutor, era muito foda. O senhor não imagina a porcaria que é ser filho
de imigrante ítalo-judeu... Tudo não podia, tudo tinha que tomar cuidado, ficar ligeiro. O senhor
sabe que isso aqui é terra de alemão, né? Sabia que até nos tijolos das fundações têm uma
suástica? Então, imagina meu pai, um senhor narigudo e magricelo, de cabelo preto espalhado e
visivelmente cagão - tanto que teve que correr pra fugir de lá quando a situação nazi espalhou...

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Região: São José do Rio Preto | Cidade: Votuporanga
Ancelmo Lio

Conto
Pois é! Qualquer donna era um problema, não prestava! Não podia ter amizade com nenhum
ragazzo que não fosse italiano ou preto. O senhor imagina que mesmo adolescente, na escola,
eu doido pra namorar alguma ragazza e... Nenhuma prestava. Juliana falava enrolado, Sílvia,
loira de olhos claros – corre dessa menina – Maria era muito crente. E eu, neguinho de quinze
anos, doido pra foder, doido pra saber o gosto, o cheiro, a textura… Eu, sendo dessa família, não
podia é nada. Nem ter minha primeira vez num puteiro eu podia. Se bobear - e ainda bem que
isso nunca foi discutido - nem uma punhetinha eu podia bater em casa. Reflexo
Mas quem sou eu pra julgar o medo que meu pai tinha? Hoje a gente vive em paz. Tô aqui,
mas isso é só consequência. Agora eles, lá atrás, eles sim sofreram. A gente não sabe o que é Os olhos verdes cintilavam, transparecendo alegria e tristeza, coragem e medo, amor e
não ter pra onde voltar. Não sabe o que nunca mais poder ver a terra da gente, ou, se ver, ela já ódio. Os olhos piscavam, vagavam, corriam, contendo temores, remorsos. Mesmo acordada,
não ser nossa terra, não ser mais nossa casa. um pesadelo. As mãos pálidas escorregavam pelos cabelos castanhos claros, lisos e brilhantes,
E esse nosso sangue judeu... Aqui só tinha a igreja matriz até uns bons anos, depois uma até que cada fio estivesse preso. Ainda encarando o espelho, observou os lábios carnudos e
porção de igreja evangélica e dois ou três terreiros, um dos quais minha mãe participava avermelhados e um leve corte do lado esquerdo. Uma fatalidade ocasionada pela vaidade. No
ativamente. Meu senhor Doutor, pensa em alguém que sofreu pra conseguir um bendito reflexo, a própria Afrodite, uma deusa grega, sedutora, digna de amor e filha da pura beleza.
emprego. Pensou? Sim, fui eu. Ou você acha que dono de loja de roupa vai dar emprego Não, era apenas Sofia, estudante, descendente de uma mãe e de um pai, jovem, simplesmente
pra neguinho? Pior, pra neguinho do terreiro! E se corresse pro outro lado, pior ainda, era o Sofia, uma arma escultural, colossal, um símbolo civilizacional. Os olhos, ainda encurralando o
judeuzinho italiano! Rapaz, eles nem sabiam o que era judaísmo – isso porque meu pai de espelho, tornando-a única, livre, mas refém do que via, daquilo que sentia, acreditava. Sim, era
judeu só tinha o pinto e o nariz. Era humilhação pra todo lado; era tapa pra todo lado... O escravizada. No interior dos pensamentos, se lembrava de quando corria de uma sombra negra
senhor já tomou um tapa só por ter nascido com o seu sobrenome? Já tomou um tapa só pela e dominante, aterrorizante, mas a cada quadra, não era alcançada, apenas perseguida e a sombra
religião de sua mãe? Já te cuspiram no rosto só por sua cor? Acho que não, Doutor. ria, gozava da façanha estranha. E todos os dias a mesma cena se repetia e a pobre Sofia fugia.
E agora estou aqui, tentando mudar. Sendo obrigado a mudar. Interessante isso de reforma, De repente, a mãe chamou do lado de fora do quarto, a voz doce, materna, mas nada agradava,
terapia, perdão, perdão divino e cura. Tudo isso é muito interessante, Doutor. Interessante apenas distanciava. Nesse momento, as paredes do quarto pareciam diminuir, desmoronar. Sofia
porque o que todo mundo quer é só o perdão. E é o que a grande maioria realmente oferece. O não suportava, nada mais almejava, até mesmo os sons produzidos pelo celular a perturbava,
senhor deve fazer terapia, né? Tem que fazer. Bom ao menos é o que dizem; que é obrigatório abalava. Virou-se, desprezou as roupas jogadas na cama engomada, as joias pendendo pela
na sua posição. Então, mas até a terapia hoje em dia oferece isso aí: perdão… alívio da culpa. cômoda lotada, os sapatos sendo vomitados pelas caixas, os produtos de beleza emaranhados,
Sabe o que nos tira a culpa? Nada! Nada mesmo. E é por isso que estou aqui de consciência os livros empoeirados, o bip no notebook poluindo seus ouvidos. Sofia tinha tudo, mas não
tranquila. Em paz. Incoerente? Nenhum pouco. Eu estou realmente em paz com minha culpa. tinha nada. Ela fugia, fugia, fugia, da sombra, dos sons, do próprio reflexo.
Vê o que eu fiz aí, nem é tão ruim assim, Doutor.

50 51
Região: São José dos Campos | Cidade: Caraguatatuba
Carla Terra
Antônio, que até então nem cogitava a necessidade colocar algo nas mãos do morto,

Conto
depois do comentário do rapaz, passou a achar as mãos vazias do pai quase uma ofensa!
Consultou a família:
- Mas tem que pôr alguma coisa?
A morte do ateu - Fica vazio sem nada!
- Vovô gostava de vinho, podíamos colocar uma garrafa de vinho. Sugeriu o neto caçula!
Aureliano morreu aos noventa e seis anos, homem de esquerda, artista plástico e ateu - Não! Vão achar que papai era alcoólatra! Rebateu a filha.
convicto! Admirado pela família por suas ideias progressistas, era um homem a quem a idade - Uma foto de Marx! Arriscou a neta.
nunca conseguiu fragilizar, apenas reafirmar a personalidade forte e ética. - Exagero ideológico! - Argumentou Antônio!
Sua morte reuniu a família... que em meio à dor prevista, deparou-se também com todas as - Que tal um livro do Picasso, seu verdadeiro mestre espiritual?
obrigações sociais que a morte implica. Todos concordaram: Seria enterrado com um livro do Picasso. Isto definitivamente
É que a morte, verdade absoluta do corpo, não se encaixa bem em nossa sociedade, não representava o morto! Foram então ver o local do velório. Na sala havia um gigantesco “Cristo
pode ser compreendida enquanto silêncio e ausência, precisamos codificá-la em um ritual com na cruz” na parte central da parede, bem acima do local onde ficaria o morto!
conteúdo estético suficiente para transformar o terrível vazio em uma cena teatral e bela... A neta vetou:
Conferindo-lhe a conotação de um rito de transcendência ou de uma bela despedida! - Não! Ele tinha horror deste culto ao sacrifício representado pelo “Cristo na cruz”... Se fosse
A família de Aureliano sofria uma dor humana, que não podia ser consolada por nenhuma só um Cristo, sem cruz, passava... Vovô era um hedonista acima de tudo! Com esse símbolo de
proposta estética, religiosa ou ritualística. Estava reduzida à ausência crua da morte! sofrimento eu não deixo velar meu avozinho!
Desorientada, se dividiu em tarefas, tentando atribuir aos ritos da morte alguma Antônio ligou na administração:
significação que compactuasse com a personalidade do morto, pois Aureliano quando vivo, - Será que podemos tirar o Cristo? É que o morto era ateu!
detestava dogmas e crenças. - Desculpe-me senhor! Não tenho autonomia para responder, terei que consultar a
A nora, encarregada de fazer o anúncio fúnebre no jornal, encontrou o primeiro problema, diretoria, talvez demore um pouco! Retorno à ligação com um parecer.
após passar os dados à atendente, ouviu a estranha pergunta: Enquanto esperava a resposta, o corpo chegou. A neta já irritadíssima com a cruz que lhe
- Coloco uma cruz ou uma estrela de Davi, no anúncio? parecia uma afronta às convicções do avô, exigiu que o caixão fosse depositado no chão, do
- Nenhum dos dois! O morto era ateu! lado de fora da sala! Duas horas depois a diretoria retornou a ligação:
- Se não colocar nada entra como anúncio comum, nos classificados! Anúncio pago! - Senhor, a retirada da cruz não foi autorizada por falta de um local adequado para depositá-
- Como assim? Quero na sessão funerária! la! Mas se o senhor desejar pode virá-la de costas, pendurando-a ao contrário na parede.
- Sinto muito senhora, mas só existem três opções: Cruz, estrela de Davi ou anúncio nos - Como? - gritou a neta irada!
classificados. - Papai era ateu, não era o anticristo! Cruz ao contrário parece um ritual satânico - ponderou
- Vou consultar a família. a filha!
A família decidida a honrar o ponto de vista do morto, caiu em discussão. Estrela de Davi - Vamos velá-lo com a cruz mesmo.
foi descartada, ele não era judeu. Sua mãe era católica, talvez tivesse sido batizado. Mas o neto -Não! Contrapôs a neta. Vamos vela-lo aqui sob o céu das estrelas! Longe do sacrifício
interferiu: cristão, da burocracia e da estupidez!
- Ele tinha horror desta “instituição que queimou gente” e sempre “esteve ao lado do E assim foi o velório de Aureliano que reuniu a família e os poucos amigos, que não
opressor”! conseguiu uma sala para abrigar seu corpo e o peso de suas convicções! A família decidida a
Anúncio nos classificados? Mas quem lê classificados? passar a noite ali de pé, sem conforto, prestava seu extremo respeito à personalidade de um
Incapazes de optar entre as propostas vigentes decidiram não fazer anúncio, encarregando homem que nunca precisou do divino para ser bom e ético! Chateados com os acontecimentos
um primo de ligar para os mais próximos! do dia, tinham uma sensação de rejeição, sentiam a opressão de uma sociedade despreparada
Contrataram a funerária para preparar o corpo. O velório seria no mesmo local do enterro! para acolher os vivos e os mortos em suas diferenças, que reduzia a dor a um grande molde
Parecia tudo resolvido! religioso e estético, até mesmo na íntima hora da morte.
Mas quando Antônio, filho primogênito de Aureliano, chegou para ver o corpo, notou um Mas a noite chegou e a escuridão acolheu as dores, as saudades, as lembranças... Estavam
terço em suas mãos. juntos e uma cumplicidade envolvia todos... Lembraram histórias e palavras de Aureliano,
- De onde veio este terço? repetiram seus discursos e frases!
- É da funerária, sem custo senhor, é praxe. Sabiam que ali juntos estavam vencendo a morte, sem deuses nem dogmas, sem teatros,
- Pode tirar... ele era ateu! nem rituais! Vencendo a morte com a força da herança verdadeira, dos ideais transformados em
- Não vai por nada nas mãos dele? cotidiano por alguém que enquanto artista transformava a vida em obra! Sua força, legitimada

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Região: São José dos Campos | Cidade: Jacareí
Vanessa Stollar

Conto
Preferencial

Ela teve que ser retirada do metrô para não ser linchada pelos outros passageiros, que
entoavam gritos por justiça e violência, e acreditando veementemente que as duas coisas juntas
possuíam uma coerência lógica e inseparável. Foi então tirada do metrô pelos guardas, que
tinham alguma obrigação por zelar pela segurança daquela mulher, senão ninguém mais o faria.
Ela foi levada atônita, e repetia para si mesma.
- Eu não sabia, eu não sabia. Eu só queria...
Afinal, era uma mulher séria, trabalhadora, com senso de justiça, que pegava a linha vermelha
todos os dias, pontualmente. Era consciente dos seus deveres, e no mínimo esperava o mesmo
das pessoas ao seu redor. Ela fazia questão de cumprir com suas obrigações, todos os dias,
sem ser quase notada, e tinha orgulho da sua discrição, apesar da melancolia inconsciente que
isso lhe causava. Ela era uma das poucas pessoas que ousava dizer “bom dia” ,orgulhosamente,
pelo respeito nos olhos dos netos, não estava mais ao alcance da morte! “obrigada”, e que sabe que sua liberdade vai até a fronteira da liberdade do próximo, pelo menos
No momento do enterro, Aureliano com seu livro do Picasso era a própria “ressurreição do foi assim que aprendera.
ateu”... Vivia, em seu legado generosamente derramado! Ela não costumava ser irritada, mas aqueles pequenos atentados ao coletivismo diários a
Terminado o sepultamento a família exausta saia do cemitério, quando alguém da estavam incomodando como as pessoas que não haviam pensado na possibilidade de usar um
administração gritou: fone de ouvido dentro do ônibus, ou simplesmente achavam que todos deveriam ouvir aquele
- Esperem! E na lápide colocamos o que? Uma cruz? Anjos? lixo sonoro, pessoas que ainda não haviam percebido que a porta do trem não era um local para
Antônio respondeu decidido: discutir a relação. Tudo isso a irritava em doses homeopáticas, como um suplício, e mesmo que
- Só uma foto da família! inconsciente, uma hora iriam vir à tona, e de uma maneira bem trágica, como aconteceu. Talvez
E o neto caçula completou: a essa altura da história ela precise de um nome. Vai ser Vitória, Dona Vitória.
- E uma garrafa de vinho! Pelo estopim dessas irritações cotidianas Dona Vitória há alguns segundos antes de ser
retirada do metrô, lá estava em cima da nossa personagem número dois, no chão do vagão do
metrô. E até então, para Dona Vitória, sem nenhuma educação ou princípio de solidariedade.
A mulher esbofeteada por Dona Vitória é Angelita. Angelita voltava de seu primeiro dia de
emprego, depois de ficar por muitos anos desempregada. Ela sofrerá um acidente há alguns
anos, sofreu um grande trauma e foi difícil conseguir um emprego depois disso. Mas Angelita era
otimista, e acreditava que todos eram capazes de se superar, inclusive ela. Ela era questionadora,
inteligente e nada convencional.
Por isso mesmo, Angelita não achou justo quando Dona Vitória exigiu que ela se levantasse
do acento preferencial do metrô. Por que uma moça jovem, bonita, corada estaria ali? Angelita
se irritou com a maneira com que Dona Vitória falou, afinal para tudo há modos e modos de
se falar. Mas Dona Vitória não pedia por ela, mesmo ela já tendo a idade para se sentar em um
daqueles acentos que nos obrigam a parecer educados. Ela pedia por uma senhora de cabelos
brancos que havia acabado de entrar no vagão. Angelita não tinha visto essa senhora, mas em
todo caso ela se sentia no direito de estar ali, e por isso não se levantou, mesmo com a insistência
grosseira de Dona Vitória. E por isso também, Dona Vitória partiu pra cima de Angelita.
- Não vai sair é ...
E com nenhuma sutileza arrancou Angelita da cadeira preferencial. As pessoas, à volta,
continuaram a assistir a cena, achando tudo muito justo. Afinal, preferência não é para todos,

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Região: São José dos Campos | Cidade: Pindamonhangaba
Audinete Barros

Conto
Viagem Inesquecivel

Aquela viagem de ônibus tornara-se estafante. Parecia que jamais chegaria ao seu destino.
Com apenas seis anos de vida, eu conseguia captar tudo o que acontecia ao meu redor.
Compreendia o drama da minha jovem mãe que disfarçava o choro pungente. O barulho do
motor daquele velho coletinho me irritava. O meu irmão chorava no colo de mamãe que tentava
acalmá-lo com leite misturado à água; eu havia presenciado o preparo da mamadeira. O meu
irmão mais velho dormia no assoalho do ônibus sob o banco em que ocupávamos. Ele parecia
não se importar com a trepidação daquela geringonça que trafegava há dias por aquelas
estradas. Através da janela eu ficava a observar a paisagem que se descortinava verde e bela,
tal qual aquele quadro que eu vira exposto na calçada de uma rua movimentada, na última
cidade onde paramos. O vento açoitava o meu rosto, obrigando-me a franzir o sobrolho. O
panorama passava tão rápido diante dos meus olhos, que mais parecia uma miragem. Na minha
assim como a justiça. O que as pessoas em volta, nem Dona Vitória sabiam, é que Angelita estava tenra idade, conseguia compreender que mamãe sofria, porque chorava sempre. Eu compreendia
ali por ter duas pernas que não eram exatamente dela. Duas pernas mecânicas, que saíram a que o meu irmão caçula estava indócil porque não havia matado a fome. Compreendia também
correr pelos vagões sem a sua dona, no momento da queda. E justamente por isso, as pessoas que o nosso dinheiro havia se acabado, pois quando o ônibus estava quebrado, já não dormíamos
que há poucos segundos achavam muito justa a indignação de Dona Vitória, agora , partiam mais nas pensões de beira de estrada. Ultimamente quando a noite caía, nos recolhíamos debaixo
para cima dela, convictos de que a razão havia pulado junto com as pernas de Angelita, que do mesmo. Não era permitido passageiros dormirem no interior do coletivo. Eu compreendia
tinha direito a sentar no assento marcado, que Dona Vitória achava que a senhora idosa tinha que o meu pai não havia no abandonado, apenas nos deixara no Nordeste para tentar vida no
maior direito a se sentar, e por isso se indignou com Angelita. Angelita , por uma fatalidade do Sudeste. Certamente estaria esperando-nos após um ano de ausência e saudade. Eu só não
destino, havia perdido as duas pernas originais num acidente de carro,e neste dia voltava de seu compreendia os puxões de cabelo que sempre levava de um jovem casal que sentava no banco
primeiro emprego, depois de três anos em casa e dois meses em coma. E pelo senso de justiça traseiro e também por que a boneca que eu amava tanto, fora arrancada dos meus braços. Era
que as pessoas se revoltaram com Dona Vitória, que se revoltou com Angelita, que se revoltou a lembrança mais terna que meu pai me deixara quando partiu. Mamãe indiferente aos meus
com o desgraçado que a atropelou, que ninguém sabe quem é. soluços obrigou-me a entregá-la à minha prima Marinha, com a promessa de que papai
compraria outra mais bonita quando chegássemos a São Paulo. Chorei muito, sentindo a dor
de duas grandes saudades: do meu pai e da minha boneca. Pouco me importava outra mais
bonita, queria mesmo era ter a “Rebeca” sempre comigo. Ah! Que saudade do meu paizinho!
De repente os meus pensamentos foram interrompidas pelo grito do meu irmão que acordara
assustado. Um transeunte pisara em sua cabeça ao passar pelo corredor do veículo. Esfreguei
sua face avermelhada na tentativa de aliviar-lhe a dor. O ônibus voltou a ter problemas mecânicos.
Eu já tinha perdido a noção de quantas vezes ele havia enguiçado na estrada. Mas daquela vez
a situação era complicada, pois anoitecera, fazia frio e o local era deserto. Os passageiros
reclamavam e estavam apreensivos, principalmente minha mãe, pois eu a ouvi dizer que quanto
mais demorasse aquela viagem, mais necessidades passaríamos. A viagem estava prevista para
cinco dias e já havia se passado oito, e o ônibus não chegava ao seu destino, pelos constantes
problemas enfrentados na estrada. Enquanto o motorista e alguns passageiros tentavam
consertar o veículo, outros procuravam gravetos para fazer fogueira e se esquentarem. Mamãe
fora até a margem de um rio próximo, lavar as últimas fraldas que ainda restavam, pois já havia
jogado quase todas pela janela do ônibus em movimento. O meu irmãozinho estava desidratado
e os passageiros reclamavam do mau cheiro que elas exalavam. Ultimamente ela estava rasgando
os seus longos saiotes brancos porque as fraldas já haviam se acabado. Mamãe me orientara a

56 57
tomar conta dos meus irmãos quando ela não estivesse próxima. Tentei acalmar Leninha que

Conto
chorava querendo acompanhá-la. Num certo momento soltou a minha mão e correu atrás de
mamãe aos berros: – Mãe! Mãezinha! Corri atrás dela, mas embrenhou-se no interior daquele
matagal. Quando dei por mim estava perdida. O pavor dominou-me, mas o medo maior era
pela minha irmã. Amedrontada, chorei e vaguei, não sei por quanto tempo. Tudo estava úmido
e escuro, o mato me arranhava, até que exausta procurei recostar-me numa árvore. O ruído dos
A viagem que estava prevista para durar cinco dias, tinha se prolongado por nove dias. A
bichos fazia-me estremecer. Já havia se passado muito tempo, quando de repente ouvi um choro
ansiedade que eu sentia era tanta, que não conseguia respirar normalmente. Quando o ônibus
abafado. Levantei-me, agucei a audição e andei alguns metros, e qual não foi a minha surpresa
parou, senti o coração parar também. Os passageiros desciam apressados e agitados. Eu olhava
e emoção ao vê-la encolhida, recostada a uma árvore tiritando de frio. A vontade de protegê-la
de um lado para o outro, pois minha mãe nos contara que o meu pai se tornara policial, e eu
foi tanta que até me esqueci do medo que sentia. Aquela noite pareceu uma eternidade. Quase
procurava desesperadamente ver um soldado. Mas para a minha frustração, não havia nenhum
morremos de frio, agarradas uma a outra. Quando amanheceu, Leninha adormeceu vencida pelo
militar a nossa espera. Foi com pesar que vi o coletivo ficar vazio... A fome fazia doer o estômago.
cansaço. Que saudade sentia do meu pai... Quanta falta me fazia. De repente, ouvi vozes. Senti
Foi quando eu e meus irmãos notamos que haviam esquecido uma sacola com farinha de
muita alegria ao ver aqueles passageiros à nossa procura. Enfim, o ônibus foi consertado e
mandioca. Foi como um banquete, uma benção do céu! Comemos com tanta avidez que quase
prosseguimos viagem. Tive um acesso de tosse e uma vez mais senti os meus cabelos serem
nos engasgamos. O motorista aproximou-se: – Sinto muito, minha senhora, mas tenho que
puxados. Eram os passageiros do banco traseiro, que certamente já tinham perdido a paciência
recolher o veículo para a garagem. Não havia outra alternativa senão descermos. Mamãe arrastou
conosco, pois achavam que atormentávamos mamãe demais. Aquela viagem tinha que estar
para fora a sua única fortuna, uma mala de roupas surradas, uma trouxa de utensílios gastos e
prestes a terminar, senão não sei se aguentaríamos por mais tempo. A cidade que se aproximava
quatro filhos de barriga vazia; aliás, cheias de farinha. Amontoamo-nos num cantinho do terminal
parecia ser grande e bonita. Quando o ônibus parou, pude notar através da janela que as pessoas
rodoviário. “eu me lembro de ter visto uma rodoviária convencional, apenas com vários ônibus
comiam avidamente naquele imenso salão exclusivo para viajantes. As longas mesas e bancos
estacionados em frente a um amontoado de prédios altos e escuros que ficavam no bairro do
eram de madeira rústica. Quase todos os passageiros já haviam descido do veículo para o jantar.
Brás em São Paulo”. Estava atenta, o meu olhar percorria os quatro cantos, na esperança de ver
Somente mamãe não se manifestara em sair. Notei seu olhar perdido, parado, lacrimejante: –
papai. Mas as horas foram passando e nos continuávamos ali, tristes, chorosos, a espera de nosso
Mamãe, nós não vamos comer? – Fique com seus irmãos, minha filha, que eu vou trazer comida
pai. Mamãe, pela primeira vez, deixou transparecer todo o seu desespero; desandou a chorar.
para vocês. Eu a vi dar a volta pelos fundos do salão. Fiquei a observar sua silhueta franzina até
Num gesto de solidariedade envolvi o seu pescoço e pousei a cabeça no seu ombro. Estava
desaparecer... Algum tempo depois ela voltou com aquele utensílio nas mãos. A sua expressão
quieta, pensativa “Eu não gosto mais do papai, ele nos abandonou, não quer saber de nós”. Com
era de alívio. E assim felizes matamos a nossa fome. Quando o ônibus foi fechado para
muita tristeza e mágoa assim pensava. Perguntava-me por que papai nos esquecera, o que
pernoitarmos, fomos obrigados a descer e dormir sob o mesmo uma vez mais. Naquela noite
iríamos fazer doravante? Onde iríamos morar? E então vejo a lembrança de Rebeca, me
enquanto dormíamos, alguém me levou sem que eu acordasse. Quando despertei fiquei
perguntava porque mamãe doara a minha boneca? Tudo era doloroso e triste... Fechei os olhos
apavorada, estava nos braços de uma mulher de fisionomia amedrontadora, cabelos desalinhados,
lacrimejantes por alguns instantes. Quando os abri, notei uma silhueta que se aproximava.
roupas sujas. A mulher carregou-me por longa distâncias. O medo apavorou-me. Quando me
Levantei a cabeça rapidamente. O meu coraçãozinho parecia querer saltar pela boca de tanta
dei conta estava entre escombros de uma construção, no colo daquela infeliz criatura que me
alegria ao ver aquele soldado de braços abertos para mim...Para nós...
acalentava ternamente, afagando os meus cabelos e cantando canções de ninar. A sua expressão
– Pai! Paizinho! Não tenho mais a boneca que o senhor me deu. O abraço do meu pai foi
tornara-se tão dócil, que por um instante senti o medo passar. Ela apertava-me nos seus braços
tão apertado que me senti sufocar de felicidade. Os rodopios deixaram-me em transe de tanta
e beijava-me com ternura. O dia já estava amanhecendo quando resolveu tirar-me daquele lugar.
alegria. Enfim, aquele sofrimento tinha chegado ao fim. Era o começo de uma nova vida, uma
– Vamos, filhinha, eu vou arranjar um lugar melhor pra você... Eu estava apavorada, mas sentia
nova história. Aos sete anos, papai me deu outra boneca, mas ela jamais substituiu a minha
pena daquela mulher. No momento em que saíamos dali, ouvimos um grande alvoroço. Eram
Rebeca. O tempo passou, sofremos muitas privações, mas felizes por estarmos todos juntos. Aos
alguns passageiros que se aproximavam munidos de pedaços de pau. Saltaram sobre ela que
dezessete anos voltei a União dos Palmares-Alagoas. Revi a prima Marinha e a minha inesquecível
gritava – Ela é minha filhinha! Não a tirem de mim! Fiquei aflita quando os vi querendo bater
Rebeca. Estava no fundo de um baú. Faltava-lhe um olho e parte dos negros cabelos. Mas para
naquela pobre criatura que havia me ninado a noite inteira em seus braços. Sem hesitar parti
mim ela continuava tão linda como antes, e parecia dizer-me: – Enfim, você veio me buscar,
em sua defesa. Abracei-me a ela num gesto de proteção. As pessoas ficaram surpresas e
estamos juntas novamente...
silenciosas. Deixaram cair no chão, um a um os pedaços de pau que carregavam. Posteriormente
ouvi comentários de que ela ficara louca após o rapto de sua filha de apenas quatro anos de
idade. A saudade que eu sentia de papai estava se tornando insuportável. E aquela viagem
parecia não ter fim. De repente o motorista olhou para os passageiros e sorriu: – Bem senhores
a viagem está terminando, graças a Deus! Dentro de uma hora chegaremos a São Paulo. Mamãe
não tinha o endereço de papai. Ele enviara-lhe um telegrama prometendo esperá-la na rodoviária.

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Região: Sorocaba | Cidade: Itararé Região: Sorocaba | Cidade: Laranjal Paulista
Marlene Gil Cleberson Dias

Conto
Guri Estrela A Dívida

Era tão serelepe o moleque que a mãe, ranzinza, dizia que o menino mais parecia saci do que Era um revólver Taurus. Novo. Modelo 85. Corpo reforçado em alumínio e, o tambor e o cano,
gente, de tanta estrepolia que fazia. Nas árvores, nada amadurecia, pois as frutas ainda pequenas com bucha de titânio. Capacidade para cinco tiros. Embora não entendesse muito de armas, só o
moravam no estilingue e deixavam as janelas desvidradas. Sapato nem tinha, os pés eram pouco que lhe fora dito pelo pai, sabia ainda que aquela era uma arma de calibre 38. Não sabia
cascudos, do chão de terra batida. “Moleque mais sem jeito”, resmungava o pai, desacorçoado. E bem o que era um calibre. Sabia que a maior parte das armas que empunhou era de calibre 38.
o pestinha sumia no meio da capoeira, feito um pé de vento, quando a mãe achava o bolo pela Essa tinha um cano de dois centímetros. O cabo de borracha tornava o revólver macio e seu
metade, ou as vezes metade bolo, metade terra, que ficavam das mãos encardidas. “Mas vapá...” peso aparentemente inferior às suas 440 gramas. Era com aquela arma na mão esquerda que
gritava a mãe. “Se te pego não sobra a poeira do couro”, gritava o pai. E o menino corria e corria todos os dias refletia sobre sua dívida.
no seu mundo de criança. No fim da tarde, fedorento e descabelado, roubava um toucinho da Olhava para a imagem da deusa Kali, solitária na parede branca do escritório. Kali, a negra.
Não entendia essa tradução sânscrita, já que sua pele era azul. Via nela a representação da
panela e saía grudar na saia da mãe, feito menino pequeno que era, querendo colo e abraços.
natureza, a essência de tudo aquilo que é real e a fonte da existência do ser. Contam os ingleses
“Mas é um mocorongo! Vê a cor que está do dedão até a fuça!”. A mãe enfiava o pequeno no
que, em plena Índia vitoriana, naquilo que a História chamou de Neocolonialismo, ainda se
tambor, banhava e em pouco tempo ele desaparecia de mansinho debaixo das cobertas sebentas.
ofereciam sacrifícios de expiação, animais e humanos, à deusa Kali. Achava paradoxal a “Mãe
Num minuto, dormia como um anjo. A mãe olhava, olhava, orava e orava. “ Me dê força e pacênça,
destruidora de toda maldade” possuir em seu pescoço um colar de crânios e uma saia feita de
Nossinhora, cuida do guri que já nem tenho forças. Deusbençõe fio, deusbençõe...”
braços decepados. Mas não se esforçava para entender. Ouvira dizer que, representada assim,
Já no primeiro cacarejar das galinhas magrelas, o menino, já de olho estalado feito jabuticaba exuberante, expressava a implacabilidade da morte. Ele adorava essa ideia. Identificava-se com
madura, chispava da cama. “Bença mãe, bença pai”, pegava uma fatia do pão caseiro dormido, Kali, a ceifadora de vidas, responsável pela ordem do mundo. Ele, com aquela arma na mão,
passava no galinheiro e fazia um fuá, furando os ovos para beber, que era pra ganhar força, sentia-se invadido por Kali. Desabrochava dentro de si uma força feminina, transgênera. Olhava
guardava as cascas de volta no ninho e sumia no mundo, que se resumia ao quintal, as árvores agora a todos como seus filhos e devotos, desejosos de uma morte sem dor. Se o neurótico
e aos sonhos do pequeno. obedece aos deuses e o narciso se sente um deus, ele havia sido invadido por Kali: psicose.
Mas nesse dia, a tardinha chegou, o menino não apareceu. A mãe, enxugando a testa, pensou Lambia-o por dentro, Kali, e sua língua de fogo acendia nele instintos místicos e proibidos,
que teria mais uns minutos de sossego. O pai nem notou a falta, a não ser pelos buracos no libidinosos. Lembrou-se também daquilo que não conseguia esquecer.
quintal e pela enxada quebrada, que lhe causou um taio no dedão. “ Quando chegar, vai apanhar Arma na mão. Olhos em Kali. Pensou aquele menino, la dama blanca, pedofilia. Buscava
até pelas tripas, moleque na peste!”. Mas a noite veio e o menino não. A mãe acocorada com o compreender se a escolha é ou não uma ilusão. Isso tudo era para ele enfadonho e chato, óbvio e
cigarro de palha na mão, cuspindo de um lado e do outro, já tinha feito mais de dez promessas demasiadamente burguês. Língua de Kali era como poderia ser chamado o efeito de todas essas
pra todos os santos. O pai, gritava pela escuridão, chamando o menino e esperando para dar- coisas sobre ele. Pensou aquele menino, cachos dourados. Aliciador de almas. Cada toque seu
lhe o safanão merecido. E nada. O dia amanheceu, a cama continuava vazia. A mãe, com o rosto provocava nesse apaixonado por armas e por cultura hindu um novo efeito, exatamente como
o fazia a poesia: primeiro um impulso, depois um calor. Agora seu coração disparava. Ele não
ranhento de tanto choro, se lamentava: “ Diacho, onde se enfiou meu guri? Sassinhora, protege
entendia por que. Quanto à arma na mão, compreendia agora que ela representa a negação
a minha cria!”. E outro dia se foi, e mais outro, e o sertão queimava o lombo do pai, que já nem
e a castração dos desejos. Todos lutam para negar tudo. Sentia-se em dívida com a vida e
mais queria coçar o guri com a cinta, e o bolo ficou na mesa, e os olhos ficaram tristes e tristes
com o prazer, em dívida consigo mesmo. Sob a sua aparência formal, a verdade é que estava
que se via a alma da mãe em prantos.
completamente ensandecido, fora de controle. Causalidade: não há como escapar dela. Não se
Com o tempo, o mato cresceu no quintal, os buracos de jogo de bolinha de gude sumiram
escapa das leis do universo. Onde outros enxergam coincidência, ele via consequência. Onde
entre pedras, a mãe ficou com o nó da garganta e a cara amarela esperando, mas o menino outros veem chance, ele via custo. Não se arranca os olhos de um oráculo. A insanidade e o desejo
nunca mais veio. parecem sensações moldadas numa mesma forma. Ele não reconhecia a sua face no espelho,
Dizem lá por aquelas bandas que, de tempo em tempo, alguma vidraça aparece quebrada, mas ainda gostava das balas. Quando as luzes se apagam, os desejos recalcados transbordam e
por uma estilingada, que nas árvores não param os frutos e que se procurar no galinheiro, toda tudo aquilo que era secreto se dilui no escuro. Instruído nos mistérios do hinduísmo, na estante,
manhã vão achar uma casca de ovo chupado. E bem de tardinha, se alguém deixar por descuido livros sobre helenismo falavam da busca da imperturbabilidade. A paixão pelas divindades hindus
um bolo na janela, vai encontrar uns terrões e uns pedaços de bolo a menos. O povaréu diz que, era uma justificativa para as muitas faces que ele mesmo possuía. Tentava se compreender, mas
de tão levado que era, o menino virou pé de vento. A mãe diz que o guri virou estrela, dessas logo desistia. Kali era, agora, a projeção de um desejo forte, um paradoxo que contrapunha seu
que brilham no céu e nos olhos, e toda noite ela olha para o céu e diz baixinho: “Deusbençõe, comportamento sádico e desejo criminoso de possuir aquele menino do cabelo com cachos da
meu fio, deusbençõe!” cor do sol, cuja maioridade só não havia sido atingida nos termos da lei.

60 61
Região: Vale do Ribeira | Cidade: Cananeia
Anne Cristine Rodrigues
Pensou mais um pouco. Pensou pouco. Pegou o carro e saiu. Hálito de Kali: aquela mistura

Conto
os colocava em transe. Tinha-o ali, ao seu lado no carro, perto, de aparência casta como anjo,
mas, voluptuoso em olhar como um demônio. Ele era a arma agora: perigoso, corrompido,
desmoralizado, depravado, alterado e perverso. Lembrou-se de ter lido em Foucault que a
perversão corresponde a um conjunto de perturbações de ordem psíquica responsáveis por
tendências afetivas e morais contrárias ao ambiente social de um determinado espaço e tempo.
Sua perversão era, então, astuciosa, dissimulada e encoberta. Cria que apenas a mente humana,
vazia e desocupada, poderia planear algo tão insosso como o amor. Contudo, tinha o desejo
um criador? A mera possibilidade de realizar um desejo já tornava aquela noite um tanto
interessante. Fetiche da mercadoria: sabia que, nesse jogo de gato e rato, invadido por Kali, ele
era o gato. La dama blanca. Mas não. Nem todos os tiros seriam dados. Dispensou. A exigência
de ser amado, mesmo sendo o amor sensabor, era a maior das suas pretensões.
Pensou dívida, arma, vida.
Toda crença em códigos morais e éticos universais, eternos e imutáveis, é estéril. Ele não
cedeu à castração imposta pela lei. Apenas concluiu inócuo tudo aquilo que desejou. Cada Inevitável
pessoa afirma aquilo que quer. Cada indivíduo afirma apenas a si mesmo. Era o tempo de se
livrar das amarras. Sentia-se o homem do futuro, um espírito livre. Abandonado agora por No inicio, o desejo era travestido de brincadeiras, poesia, música. Ela, mesmo imersa em
aquela força feminina e transgênera, descobriu-se humano. Pensou tudo o que sempre venerou, seus sentimentos, percebeu a leveza dele. Ele, tocado por toda aquela imensidão, maravilhava-
respeitou. Pensou o solo que cresceu e a mão que sempre o guiou por santuários e santuários se que num coração coubesse tanto sentir.
onde aprendeu a orar e agradecer, tímido e delicado. Como espírito livre, restava a ele odiar todos Ele soube, em seu íntimo, que nunca mais encontraria tamanha imensidão com tanta
os hábitos e regras, tudo aquilo que é duradouro e dito definitivo. Lembrou-se das palavras de entrega. Ela, por sua vez, o desejou como nunca havia desejado outro, um desejo voraz,
Pilatos, no Evangelho segundo João: “Eis o homem!”. exigente, que não se sacia.
Seguiu com o carro. Encruzilhada. Pensou morte. Todo suicídio gera nas gentes um desespero Ele, desconfiado do que pudesse acontecer, resistia ao desejo. Ela queria cada vez mais,
em torno de motivos e explicações. Olhos brilhavam. Maravilhosa e terrificante a possibilidade de ansiava por ele a todo o momento.
decidir sobre o fim da própria vida. Sentia-se poderoso. Dono de sua própria morte. O suicídio O encontro, inevitável, aconteceu de forma intensa, insana, mágica. Não se sabe o que
se revelava assim num arbítrio maravilhoso outrora dado só aos deuses. Não acreditava em vida
aconteceu e nem quanto tempo durou, apenas que ela foi vista com o peito aberto, sangrando,
após a morte e não tinha visões idealizadas de paraíso. Queria apenas dormir. Não suportava
com um sorriso enigmático nos lábios, enquanto ele corria pela rua, com os olhos brilhantes,
todo aquele esgotamento físico, mental e emocional e todas as dores da alma. Não se tratava
mal conseguindo esconder algo entre as mãos.
de um recuo diante do gozo ou de ter a morte por objetivo. Tratava-se de não querer mais ser
Depois desse encontro, as consequências foram diversas para cada um, como sempre
consciente. As pessoas têm dificuldade de entender conceitos como “eternidade” e “infinito”.
acontece nesses casos. Ele seguiu com sua vida, tentando lidar com o peso que ela havia lhe
Não possuem certeza alguma do que as aguarda após a morte. Por isso é tão difícil aceitar o
suicídio como um ato racional, prático e voluntário. Via-se fecundo, poderoso e original em meio deixado e com a pergunta sem resposta: Como carregar dois corações, se um já era difícil? Ele,
à ordem do mundo. O mundo sim escondia sobre sua aparente ordem uma gama de objetivos até hoje, tenta unir os dois corações em seu peito.
confusos. Não há lei que poderia deitar sua mão sobre essa manifestação, cautelosa e refinada, Ela, por sua vez, seguiu mais leve sem perceber que algo estava lhe faltando. Ou talvez
da agressividade humana, mesmo quando ela se volta sobre si mesma. tivesse notado, quem sabe? Ela, sem coração, entregou sua alma a outro, na esperança de
Era um revólver Taurus. O cabo de borracha tornava o revólver macio e seu peso voltar a sentir.
aparentemente inferior às suas 440 gramas. Afável era a morte. Não se eligiu nem santo nem O curioso de tudo isso é que ele se ressente do ocorrido, acreditando que ela lhe deva algo.
juiz: apenas ciente do que era ali. Não temia a morte, mas tinha medo de viver. A dívida que Ela, com o olhar vago não imagina o que mais poderia lhe dar uma vez que encontra-se vazia,
contraiu para consigo mesmo não seria quitada. Jamais. Foi com aquela arma na mão esquerda sem coração e sem alma.
que refletiu uma última vez sobre a sua (dí)vida.
Dizem lá por aquelas bandas que, de tempo em tempo, alguma vidraça aparece quebrada,
por uma estilingada, que nas árvores não param os frutos e que se procurar no galinheiro, toda
manhã vão achar uma casca de ovo chupado. E bem de tardinha, se alguém deixar por descuido
um bolo na janela, vai encontrar uns terrões e uns pedaços de bolo a menos. O povaréu diz que,
de tão levado que era, o menino virou pé de vento. A mãe diz que o guri virou estrela, dessas
que brilham no céu e nos olhos, e toda noite ela olha para o céu e diz baixinho: “Deusbençõe,
meu fio, deusbençõe!”

62 63
Região: Vale do Ribeira | Cidade: Registro
Gabi Bertelli (in memoriam)

Conto
Moscas

Era mais uma reunião familiar anual. Todo o clã dos Sousa Galvão unido para o jantar da
sexta-feira santa, entupindo as entranhas com o maravilhoso bacalhau preparado pela matriarca.
O barulho único dos talheres ralando os pratos foi substituído abruptamente por um baque
metálico da queda de um garfo no exato momento em que Dona Carlota segurou a própria
garganta e arregalou os olhos em agonia.
A imagem grotesca da velha com a face retorcida em esgar trouxe a todos os arrepios
do medo. Da morte, da surpresa, do desconhecido, das coisas horrendas? Seria isso, de fato,
caso tratássemos aqui de pessoas com certo padrão moral. Aparentemente, uma típica família
burguesa dos bairros de classe média, em que todos se reúnem aos domingos. Porém, o
verdadeiro medo que permeou de frêmitos a espinha de toda a descendência de Dona Carlota,
estava atado a um pulsante fio de satisfação. E esse fio estava atado a outro, o da desconfiança.
Pois bem, eis um fato: todos ali odiavam a velha com toda a dedicação. Era amarga, cínica
e fazia questão de espalhar a todos o seu rancor mais íntimo. Ralhava com os netos a todo o
momento, pressionava exasperadamente os filhos e vivia a atormentar os genros com farpas
e humilhações. O primeiro sentimento que assolou a todos – o medo – foi o de que alguém
houvesse posto veneno na comida de Dona Carlota e, então, que todos se tornassem suspeitos
do assassinato. O fio de satisfação que pulsou por cada um dos Sousa Galvão, no entanto, era
óbvio. Somente a vaga sensação de que ela e toda a sua crueldade pudessem vir a terminar logo
ali enchia a família com uma sensação repleta de otimismo. E o último fio, o da desconfiança,
surgiu ao passo que, cada um - sabendo que não havia planejado a morte da velha -, começou
a desconfiar um do outro, imaginando quem finalmente havia tido coragem de pôr um fim a ela.
Foi então que Dona Carlota, entre tosses e acessos agonizantes de soluço, inclinou-se sobre
o próprio corpo com certa agressividade e finalmente expeliu o motivo daquele caos de poucos
minutos: uma pequena (e nem por isso menos incômoda) espinha de peixe. Ela continuou em
sua posição fatigada por algum tempo. Tempo este em que os Sousa Galvão experimentaram
o sabor confortável do alívio e também o azedo da decepção. Dona Carlota continuava viva
por fim. Entretanto, não muitos segundos depois, a velha começava novamente a ter calafrios
pelo corpo todo e a retorcer a face em sons estrangulados, inclinando-se outra vez em uma
imagem grotesca.

Para a surpresa de todos, Dona Carlota começou a expelir pela boca pequenos insetos
pretos – moscas – escuras, sujas, saindo em revoada por entre seus lábios, vindos da sua garganta
azeda. Trataram logo de se espalhar por toda a sala de jantar, zunindo e fedendo absurdamente
em um eterno incômodo aos Sousa Galvão, permeando sua casa e infectando para sempre suas
paredes de porcelana. Digo, pois, que eram moscas amargas, cínicas, cheiravam a rancor. Como
os anseios de uma velha.

64 65
Região: Araçatuba | Cidade: Buritama
Silvio César dos Santos

Uma caixa de sapato selou meu destino

Não estou inventando: saiu no jornal “Em São Paulo, adolescente de dezesseis anos
(dezesseis, sim) arma-se com um revólver e abre caminho até alcançar seu direito de ir e vir”. O
repórter disse que um casal foi morto. Não posso dizer o nome porque não sou “dedo-duro”,
poderia até dizer o milagre, mas sem revelar o nome do santo. O revólver encontrado era um
RT 605. Conhecido também na gíria como “berro”. Foram quatro disparos. Duas balas sobraram,
caso os corpos ainda resistissem à morte, o jeito seria descarregar a munição. Tiros certeiros
revelaram que o menor sabia atirar.
A caçada pelo adolescente já começou, diz o jornal. O fato assustador é que o suspeito
é o filho do casal. Os vizinhos relataram que o convívio com a família era tranquilo. Uma das
entrevistadas disse que Leandro era estudioso, calmo e introspectivo. Sim! Ele era.
Outra notícia chamou minha atenção: “Deputados aprovam redução na maioridade penal”.

Crônicas
Em silêncio, foram emitidos veementes protestos ao ver a notícia. Por coincidência do destino,
completei a data limite da nova lei, mas, estar no Brasil me favorece. Tudo é esquecido. Resolvi
dar sequência no meu direito de ir e vir pelas ruas paulistanas. Sinto-me perseguido.
Debaixo de uma árvore, respirei meio receoso e o medo percorreu cada célula do corpo,
busquei em pensamento ir até o porão, caso fosse capturado. Vi um local totalmente escuro,
sem janelas, imagine o calor que deve fazer lá, nos meses de verão, principalmente em janeiro
e fevereiro, em São Paulo. E no inverno deve ser mal arejado. Despertei!
Na mentalidade da maioria das pessoas, quem comete esse crime deve apodrecer na
cadeia. Também pensava assim. O ideal seria poder voltar ao passado e reparar um erro ou ser
menos afoito nas decisões. O lado infeliz é que nunca vou poder me defender (da solicitude)
das pessoas. Não serei mais o menino inteligente, calmo e introspectivo. Talvez, o último
adjetivo continue a me seguir até o fim da vida.
Imagine o grau de indignação, de constrangimento e de cólera das pessoas que conviveram
comigo durante dezesseis anos. No noticiário da tarde, diz que o menor foi visto na Avenida
Paulista. Sei onde fica e acho que também o vi passando. Como disse não sou “dedo-duro”.
Depois desse acontecimento, estou fadado a viver sozinho, na rua, sem ter a companhia de
uma mulher, de uma companheira ao meu lado, que me fizesse carinho depois do trabalho e uma
massagem para curar o reumatismo. Alguém que pudesse partilhar a surdez e as deficiências do
corpo ou, simplesmente, uma pessoa para ouvir minhas memórias, os dissabores e as perenes
aventuras de uma vida comum, até mesmo as lembranças do coração. Digo isso com lágrimas,
temendo risos e revoltas. Quem vai admitir que um condenado tivesse lembrança de amor.
Será que vou poder contar das dores do corpo ao médico, resolver meus problemas
pessoais, me libertar ao menos da tutela dos entes queridos, mesmo que tropece em uma
pedra, tudo é válido pelo exercício da liberdade.
Assim, condeno-me por ter matado meus pais. Serei preso. Talvez não tenha filhos.
Fui vítima da arma. Agora as coisas devem ter piorado. Confessei meu crime e já posso ser
encarcerado. Tenho dezesseis anos. Nunca queria ter visto meu pai guardar a arma naquela
velha caixa de sapato.

66
Região: Araraquara | Cidade: Matão Região: Baixada Santista | Cidade: Bertioga
Jéssica da Silva Ferreira Geraldo Varjabedian

Crônicas
Conto
Metafísica da Taioba

Imerso em poucas roupas, seguia beirando a mata. Barro, entulho molhado, piso de
chinelos, a antipática mescla. Essa gente despeja qualquer coisa em qualquer lugar: lâmina de
roçadeira; porta de geladeira; lateral de berço banguela. Balde rachado e cadáver de boneca.
Restos de tudo... Paro. Uma pinguela dá em nada. Mata fechada... Volto. Escorro pelos chinelos.
Os cílios pingam. Linhas geladas de vento bordam frio na camiseta. Bicicleta apoiada na
árvore... Monto. Arranco e sigo procurando um verde entre tantos. Converso com a fome até
que vejo o mamoeiro repleto de frutos verdes. Vara de bambu. Alguém já esteve aqui. Ergo
Bom dia e bato: sons surdos, dois mamões graúdos ao chão... Apanho. Os frutos machucados melam
as mãos. Fome. Mãos macias de papaína, os dedos enrugados, agarram a espuma encardida
Olho para o relógio, “ainda é cedo”. As ruas estão desertas, “como isso é bom”. do guidão. A esfera do rolamento range... Levanto-me. De pé sobre os pedais, livro peso da
Não tive tempo de olhar o céu ao atravessar a rua, e nem verificar a formação das nuvens e traseira antes que a vala me engula. A bicicleta para - a perna escora... Medo. Liquida de outra
seus desenhos. Meu corpo e minha alma clamam para sair deste cubículo...”Ali é a sua casa, não densidade, uma cobra verde divide a água. Sua essência senoidal cresce. Foge. Encolhe e finge
a sua prisão, assim como seu corpo frágil e delicado, não é sua alma”. Há uma força estranha esticar. Some. Seu dorso emerge, mas não a vejo mais. O chinelo escapa. A sinuosa e meu pé,
que se move em mim, e me faz levantar, sair, observar as árvores e pistas, e então me assusto incógnitos... Paraliso. Sem memória de fome, murmuro: - Nada de medo, garoto! Já fizemos
ao me deparar com sua silhueta, “ou a alucinação em minha mente se solidificou?”, não sei. Sei o acordo: temos medo, trepidamos o coração de sapo, mas não podemos... Cobra é cobra.
que ao te ver, pensei: “Vem comigo, vamos até o parque. Ali embaixo as árvores tem formas de Depois, você treme, se caga, chora. Agora, encontre seu centro! Vamos!... Míope de instinto,
bancos, nos quais poderíamos nos sentar e passar pequenas horas juntos, como antes”. descalço de um pé; afogo a mão sob a água e apanho o chinelo... Monto. Mão de barro no
Olho novamente para o relógio, “ainda é cedo”. Apesar de ser domingo, os afazeres guidão. Desatolo dali, da cobra, do frio e do medo... Pedalo. Cada vez há menos comida por
não descansaram no dia anterior. “Os passos tem vida própria e as pessoas já despertaram...”. essas bandas. Essa gente doente desmata tudo. Quem come placa de imobiliária? Quem come
A quebra da rotina que um dia existiu esta consertada. Enquanto o sol nasceu, as pessoas escrituras? Há poucos anos, uma volta no quarteirão e pronto: Banana! Pariparoba! Jurubeba!
despertaram, a vida retornou, “é bom ver esse silêncio e quietude, mas a vida precisa continuar, Pitanga! Araçá! Açafrão! Gravatá! Assa-Peixe pra fritar! Caruru pra refogar!... Suspiro. Do outro
seja ela triste ou não”. lado da vala, monjolos verdes. As taiobas dizem sim, transbordam... Atravesso. A vala me
O céu agora é azul, e as nuvens se dispersaram nesse enorme quadro que dia a dia se engole. A fome conduz as mãos ao renque. Arrancadas pela raiz, nada mais dizem as taiobas...
transforma, e nós, meros ignorantes, preocupamo-nos apenas com os afazeres do cotidiano. Penso. Para casa! Tutu de taioba e mamões verdes cozidos, basta... No cesto da bicicleta as
“Que desperdício de tempo e inspirações”! taiobas voam, debatem-se sem pedir socorro. Ao rancho!... Entro. O dossel da mata aplaude
O sol já se faz capaz de aquecer e iluminar toda a parte que a vista não alcança com vento e chuva, minha bagunça me abraça. Estou em casa! Dispo a placenta de tecido...
Seria ele capaz de aquecer meu coração que insiste em ficar à sombra , duro e insensível? Ardo. A recompensa tem cheiro de roupa seca. Moldo a cabeleira sobre o crânio e a amarro
Agora minha alma se coloriu, não retornarei jamais! Não sei”. na nuca. Piso firme em direção ao fogão de pedras... Estanco. É urgente parir fogo. Galhos,
Ainda é cedo”. folha seca de embaúba, teco de jornal venal... Isqueiro molhado. A caixa de fósforos guardada
Bom dia. dispensa a prece do agnóstico. Lá vai o fogo! Fumaça de lenha em tarde de chuva: perfume
do meu mundo... Sinto. O aguaceiro emudece o coração. Manto verde confortável. Sapo sob
a taioba. Medito? É um transe? Quem é esse homem que o verde amansa?... Deixo-me beber
pelo som da chuva. Espírito? Não, seiva! Sou sapo ou taioba? Eu me protejo. Cuido de mim.
Caço a mim nas fomes. Sou um naco remanescente de restinga, coachando contra os tratores...
Não sou príncipe coisa alguma. Sou um homem que quer um beijo. Não qualquer beijo: sou
um homem que caça taiobas na chuva e extermina fomes; quero beijo à altura!... Taioba não se
come crua, não! Quem me quiser deve ter cuidado: trago o oxalato do sarcasmo à flor da pele.
Só ao fogo e afagado viro príncipe. Refoga-me em ti - as folhas, as nervuras, até o talo... Juro!
Torno-me palatável, saboroso, nutritivo. Eu a sacio, mas careço de preparo, mulher. Devora-me

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Região: Baixada Santista | Cidade: Cubatão
Ana Nery Machado

Crônicas
Conto
Resolvi Comprar Um Sanduíche

Resolvi comprar um sanduíche, mas não sabia onde. Saí pela cidade atrás de um lugar bom
e barato, então, fui andando pela orla da praia, lia as placas e nada me agradava... Até que avistei
um lugar chamado Marrocos. E entrei.
Entregaram-me o cardápio, mas não precisei pensar muito para pedir um X – tudo “para
levar, por favor”. Enquanto aguardava a encomenda, observava as pessoas sentadas, o lugar
estava cheio, pessoas com mais idade, garotas seminuas, mostrando-se para os rapazes, tudo
cru e fecho-lhe a glote... Desperto. As folhas escurecidas jazem murchas na panela... Sorrio. como sempre é, como sempre foi.
Abraçado ao pote de farinha, fervo os mamões picados numa lata. Preparo meu tutu de taioba Foi quando pensei nos meus pais que havia visitado a pouco, as linhas de expressão, rugas,
como quem reinventa a cozinha... Cismo. Para onde foi a alma da taioba? O fogo a amansa?... olhos caídos, a mancha da pele, como o tempo havia passado e eu não percebi. Deu-me um
Degusto, afinal! Alimento gratuito. Meus olhos vidram na mata... Protegido... Alimentado... assalto súbito de dor, sem dor. Saudades que não se pode contar em números, de um tempo
Aquecido... Ouço. A areia em rios, as narinas escorrendo, batalhões e repiques de gotas... Volto que... Enfim, nunca mais será.
à panela preta. Sirvo-me do resto... “Que cansaço extraordinário!”... Oro. A gratidão trepida o O sanduíche chegou, paguei e saí do Marrocos em direção à minha casa. Fui contando passos
coração agnóstico. Olho para cima, ainda uma vez, antes de escurecer. A mata é catedral. É mãe. largos, quando me parou a mão de um homem sentado na calçada a pedir algo como esmola ou
E escorre seu leite transparente na boca dos que são de seiva... Duvido. Sou sapo, taioba ou o afins. Passei reto, continuando a passos largos, mas a minha consciência começava a diminuir o
quê? A fome incompleta as pessoas. Se for taioba, fome é homem; se for sapo, é cobra. Atiça meu ritmo, pensava em quanto o meu bom senso não permitia ajudar alguém nessas situações.
medos. Enrosca-se nos tornozelos... Contemplo. Respiro a umidade, a luz rosada. O noticiário Mas precisava pensar em mim, pois hoje só tinha pro sanduíche, não me sobrara mais nada. E o
dos sapos está no ar... Escuto. Ao som do anoitecer, beijo acerolas com o canto da boca e as que eu faria então? Voltaria e entregaria meu lanche pra ele. E eu comeria o quê depois? Senti
devoro. Acaricio meus medos exausto, apago a luz. Vou a lugar algum... Anoiteço. Penetro a que ter bom senso é uma merda, pois se comparássemos nós dois, estávamos quase na mesma
fenda sagrada da tenda. É meu limite. Afofo os travesseiros. Entrego-me. Excito-me. Amo meu situação, a diferença é que eu tinha o poder de escolher qual a boca que iria encher.
corpo longa e suavemente. Não sei se adormeço ou esqueço... Mergulho! Para amanhã, na Minha mente fez com que, paulatinamente, voltasse ao encontro daquele rapaz, quando
outra margem da noite, outras fomes: sonho manhã de sol... percebi estava à frente dele sem saber o que dizer. Ele olhava pra mim surpreso, com os olhos
esbugalhados, e eu olhava para ele, sem expressar um músculo facial, sem falar um fonema.
Observei o seu rosto sujo de poeira, seu cabelo impermeável, suas mãos e pés descalços, ferrados
pelo tempo.
Pensei nos meus pais, emendei a ruga paterna com a poeira da rua, ilustrei um filme só
meu no subconsciente imutável do passado. “Todos vão embora, um dia”. Ainda estava na frente
do rapaz empoeirado quando peguei o celular e liguei. Meu pai atendeu com aquele alô de
costume, eu disse que estava mandando eles nunca morrerem. Ele sorriu e disse que a ordem
estava protocolada para averbação. Eu respondi um “tá bom” e desliguei o telefone.
O rapaz sorria com sua boca de caverna, eu sorri de volta. Quando guardava o celular, como
num assalto, o empoeirado pegou meu sanduíche e saiu a correr orla abaixo.
Fui pra casa com a fome chamando... E tentando entender porque ele não roubou meu
celular.

70 71
Região: Bauru | Cidade: Barra Bonita Região: Bauru | Cidade: Jaú
Conde Filho Carolita

Crônicas
Conto
A verdade da lua

Muitos pensam que uma cidadezinha do interior é só uma pracinha com o coreto e a igreja;
A verdade da lua
um cavalo amarrado e uma dona ou outra na janela. Vidinha arrastada e sem graça... Aquela
“vida besta” - descrita por certo poeta mineiro. Parece que estão bem enganados! Aqui não é
Com este calor de matar, o ar condicionado do carro é luxo indispensável e nos permite
assim, não. Aqui, a paisagem muda a cada dia. E tem paisagem para tudo quanto é lado! Tudo
observar na estrada, depois de um dia repleto, a companhia de uma Lua persecutória, poderia
brota, tudo se renova: as águas, as folhas, as flores e os bichos. Até os causos e o vento! E os
assim dizer. Agora, por exemplo, ela parece que vai cair no meu colo, não respeitando a
causos aumentam e diminuem como o vento, dependendo da hora. O vento quando vem,
distância que nos separa, como uma pessoa que amamos e, de repente, aparece para nos fazer
logo de manhã, traz o odor dos currais e do leite recém tirado; nas tardinhas, o adocicado dos
feliz. Não respeita as curvas da estrada e se posiciona muito perto. A gente sabe que ela estava
canaviais, das frutas maduras e os aromas suaves do mato e da terra. Já sentiram o cheiro que
lá, mas nunca tão perto.
a terra molhada exala, depois das chuvas? Deus meu, como é bom! Gostoso, como a promessa
E assim como veio, esta Lua passou neste momento a permanecer ao meu lado, devido às
da fartura.
curvas da estrada, que agora, por um momento, ela passou a respeitar. Esta Lua é muito volúvel
Aqui, já no alvorecer antes que as estrelas todas se apaguem, os galos mandam embora a
e eu já sabia disso. Vários poetas já me disseram desta verdade e só agora consigo entender. O
quietude da noite. A cidade acorda com a passarada e já escuta as águas do rio no atropelado
melhor da vida é poder ser dono desta inclusão lírica que acontece quando entendemos uma
das pedras, mugidos ao longe, o cacarejar ruidoso das aves e os cascos dos cavalos batendo na
poesia, entramos no mundo até mesmo de um crítico, passando a fazer parte, mesmo por um
terra dura. Mais tarde: a criançada brincando e o sussurro do vento encrespando as águas, as
lapso de segundo, deste misterioso e saboroso clube de sonhadores sem culpa.
matas, os pastos e as plantações. Tudo vibra, brilha e toma cor sob o sol, neste chão poeirento!
Ao meu lado, ela me incomoda como uma dúvida quase existencial, que nos acompanha
E a poeira fica toda dourada, como também os contornos dos bichos, da cidade e dos homens
até a morte e que aprendemos até a conviver para que a loucura não nos vença. Adquire a
que voltam do trabalho, na hora do pôr do sol. Voltam cansados, mas satisfeitos. Sabem que
mesma minha velocidade, parece até mudar de cor e se afasta por um momento, que são
o resultado dessa lida é o alimento para tanta gente. Mas é quando escurece, quando só se
aquelas vezes em que nossas desconfianças se esvaem pelo vão das nossas satisfações, geradas
enxerga o brilho da noite nas estrelas, nos vaga- lumes ou no luar, quando quase tudo perde
pelo resultado de um conjunto de obra que satisfaz pelo todo, sem entrarmos em muitos
a cor é que uma cidadezinha como esta fica mesmo divertida. Aí, é só esperar, no Boteco do
detalhes.
Portuga, o pessoal que chega para tirar a poeira da goela e aliviar o cansaço da lida com o
Não é daquelas Luas de vapor metálico, branca, quando podemos apagar os faróis do carro
gado e com a terra.
e contemplar seu poder roubado do Sol que desnuda o asfalto com violência. É luz amarela,
Aqui, todo mundo se conhece. O Portuga é boa gente. Deixa pendurar quando o ganho
do sódio em vapor, que esparge pelo caminho apenas uma luz curta, como aquela que ilumina
do mês se foi. Depois de uns goles começam os causos e as cantorias. E os assuntos rolam das
toda nossa vida – com sofreguidão - e se parece com a esperança.
agruras do trabalho na roça, da alegria das crias novas às maliciosas histórias de mulheres mal
É uma Lua de saudade, porque me remete ao passado, quando as noites de calor nos
domadas. Um bom contador de causos é Juca Pastéis. É peão dos bons e todo mundo gosta
faziam deitar pelas calçadas com a mãe, o pai, os amigos e vizinhos, sem TV e só com as
dele.
companhias, que por vezes terminavam num jogo de víspora que me cheirava a um alto grau
Foi um menino muito pobre e, desde pequenino, quando entregava os pastéis que a mãe
de vício daquelas velhinhas loucas para sacar as pedras do saquinho de algodão.
fazia, comia um ou outro pelo caminho. No encanto dos olhos marotos e do sorriso culpado,
Como esta Lua não me largou mesmo e, me desolando, se despediu quando cheguei perto
todos lhe perdoavam. Depois dos “causos”, é o Chico Moleza que sabe unir toda gente com as
de casa, algo de adúltero senti nela. Porque não quis me acompanhar até o ninho do meu lar.
cordas da viola. Como se rezassem, os homens cantam junto - embora, muitas vezes, os versos
Quais seriam suas intenções? Por que somente me acompanhou pela estrada, ora à minha
carregados de paixão não sejam nada castos.
frente e distante, ora dentro do carro e sorrateira ao meu lado. Estava eu de ingênuo nesta
- Conta um de muié mar domada, Juca! - Pede um baixinho lá do fundo do boteco, com a
história, esperando uma despedida ou até tê-la como guia no meu rumo final. Não. Ela me
voz molhada de cachaça enquanto enrola o fumo na palha de milho.
abandonou e fui para o sul e ela buscou seu norte.
“Zé Tatu, mulher brava é o que há por demais na minha família! Meu pai contava que
E me deixando sem norte, porque fiquei sem saber qual era a verdadeira face desta Lua,
sua tia Augusta - um tamanhão de mulher - era uma fera. Tinha o dobro do tamanho do
nesta noite quente.
marido, quase dava para colocar o coitadinho no bolso. Mandou a vida inteira no velho, até
que um dia ele percebeu que não aguentava mais escutar nem o barulhinho dos chinelos dela.
Tomou coragem, disse que ia comprar cigarro e sumiu. Caiu no mundo! Por muita coincidência

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Região: Campinas | Cidade: Mogi Guaçu
Flávio Ribeiro

Crônicas
Conto
Descanse Em Paz

Eu me lembro do dia em que Demóstenes Soares morreu na cadeia. 20 anos se passaram


desde a sua prisão. Acusado de roubo e assassinato do comparsa, os moradores de sua terra
natal, a cidade de Nova Argentina, nunca souberam o paradeiro da fortuna roubada, de que
também sumiu Terezinha, mulata linda que a tia Augusta ajudou a criar, mas que a velha vivia
material se travata e, principamente, onde Demóstenes Soraes teria desovado o corpo de seu
espezinhando e fazendo trabalhar duro. Jamais desconfiara como aquele bode velho gostava
companheiro.
de consolar as tristezas da coitadinha. A tia rezou tanto, tanto, para que Deus a ajudasse a
Depois da morte de Demóstenes, um malandro cidadão do local conhecido como Voodoo
perdoar o velho Firmino Fumo e a Terezinha, que foi encolhendo, ficou miudinha. Morreu seca
que estava preso na mesma cadeia que o falecido, começou a instigar e fomentar a curiosidade
como uma passa e mansa como uma bezerrinha. Só mesmo Deus para conseguir amansar
dos moradores alegando saber onde estava a fortuna.
aquela velha!
Fiquei sabendo da fofoca por Hilário Salvador, um velho paralítico e muito surdo que
Entre risadas, uma bonita voz se sobressai de dentro do boteco, acompanhando as cordas
morava na cidade há duas décadas e, que, apesar dos seus 75 anos e das deficiências físicas,
da viola: “Morena, minha morena; teu olhar é que me mata! Só por ti, minha morena, viva triste
tinha uma excelente memória e conhecia bem os fatos e lendas que cercavam de mistérios
aqui na mata...”. E do meio do vozerio dos que acompanham a cantoria, quando a modinha
Nova Argentina.
cessa, alguém pede: ‘’Vamo, Juca, conta aquela do teu primo, o Tonhão da Mula”. Porém, antes
Jornalista dos bons e muito curioso que sou, mais que depressa me interessei pela história
que o Juca retome seus causos a voz ardida de um estranho, que entrara despercebido no
e tratei logo de marcar uma entrevista com Voodoo. Seu Hilário me acompanhou.
boteco, comenta:
- No tempo que estive preso com o velho na cadeia, ele confessou que roubou sim uma
- Caramba! Vocês daqui colocam apelido em todo mundo? Chico Moleza, Juca Pastéis, Zé
fortuna em joias e selos valiosos, mas também garantiu que nunca matou ninguém. E afirmou
Tatu, Firmino Fumo, Tonhão da Mula! Ninguém tem nome direito, nesta cidade? Graças a Deus
que seu companheiro de roubo está muitíssimo vivo e próximo de todo mundo. Meu ex-
vou-me embora esta noite! Não saí daquele hotelzinho na espera do meu cliente a manhã
comparsa só está esperendo que eu morra para desenterrar o tesouro.
inteira; apenas abri a janela do quarto, algumas vezes, para espiar as horas no relógio da igreja
- Demóstenes Soares revelou onde está escondido o material do roubo?
porque o sol estava danado, e, daqui, deste boteco, quero ir direto para a estação pegar o trem.
- Especificamente não. Porém, me deu uma dica.
Já acertei minhas contas, mas, por favor, poderiam arranjar uma pessoa que possa ir até o hotel
- Que dica foi essa, interpelou Seu Hilário, muito atento à conversa?
pegar minhas malas, antes que alguém ...
- Virgem Mãe, Rogai por Nós, frisou o velho várias vezes.
- Pirulito! Ôôôôô Pirulito! - Gritou o Portuga sentado num banco pequeno, quase invisível,
- Essa citação está relacionada com a Bíblia Sagrada, disse interessado Seu Hilário.
debaixo das abundantes nádegas, para um menino magrinho, de cabeça avantajada que se
- É no que eu acredito. Por isso, já estou lendo e muito a Bíblia. Essa fortuna deve estar
achava sentado na porta do boteco. - Vai avisar o Fortaleza que a gente está precisando do
escondida dentro da única igreja que nós temos aqui em Nova Argentina. E as citações é que
serviço dele.
vão revelar o lugar.
- Pro Doutor Cuco? - Perguntou o menino - Ele já tá si indo imbora?
Terminada a entrevista, despedi-me de Seu Hilário e fui embora para redigir a matéria. Porém,
o que eu não esperava foi quando o Jornal “Notícias da Cidade” circulou com a reportagem,
começasse uma guerra na cidade. Foi inacreditável. Após a revelação de Voodoo, os moradores
iniciaram um quebra-quebra na igreja acreditando que o tesouro estava escondido dentro dela.
Arrebentaram paredes, destruíram imagens de santos, provocando uma desolação total.
Eu, Seu Hilário e Voodoo apenas acompanhamos a barbárie sentados em um boteco de
praça bebendo uma delicosa cerveja gelada. Ao mesmo tempo, tentávamos decifrar a dica
de Demóstenes Soraes, quando veio se juntar a nós, o policial Ivan Marra querendo também
descobrir o tesouro. Quatro cabeças maquiavélicas trabalhando juntas não foi dificil desvendar
a dica.
‘Virgem Mãe, Rogai por Nós’, tratava-se de uma inscrição de lápide no cemitério barroco
de Nova Argentina. Enquanto todos continuavam com o quebra-quebra, nós quatro seguimos
imediatamente para o cemitério. Ao chegarmos no lugar, cada um se responsabilizou por

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Região: Campinas | Cidade: Várzea Paulista
Deusimar Bezerra Santos

Crônicas
Conto
Herói É Quem Vive De Salário Mínimo
checar dois corredores de túmulos até identificar em qual estava o tesouro. Passado alguns
minutos, Seu Hilário gritou: O galo moderno canta, Luzia de um salto certeiro travou o despertador que lhe intimava
- Encontrei a lápide. mostrando 5:00h da manhã. Luzia apalpa a parede em busca do interruptor, acende a luz e fica
Corremos para lá e para nossa surpresa o túmulo era de Demóstenes Soares. Ivan e Voodoo alguns segundos com a vista ofuscada, em seguida calça as rasteirinhas e pega carona até a
começaram a cavar e chegando ao fundo, viram um báu. Os dois se jogaram desesperadamente cozinha, acende a luz da cozinha com apoio do quarto, voltando ao quarto inutiliza a lâmpada.
para ver quem pegava primeiro o baú e mais uma surpresa, Seu Hilário levantou da cadeira Na cozinha coloca água para esquentar no canecão. Poe açúcar a gosto, acomoda duas
de rodas e começou a brigar com os outros dois. Revelação total. Seu Hilário Salvador, era colheres de pó de café no coador de pano e espera a água ferver.
ninguém menos que o comparsa desaparecido que só esperou o momento certo para por as O cheiro de café invade a casa. Luzia toma uma xícara de café preto, vai ao banheiro, lava o
mãos no tesouro. rosto e escova os dentes. Voltando ao quarto se troca, pega a bolsa, dá um beijo em cada um
Após alguns tapas e socos entre eles, decidiram dividir a fortuna. Eu esperava o momento dos filhos e vai para o ponto de ônibus.
certo de pegar minha parte e sumir dali logo. Ao subirem o baú e abrí-lo, espanto e bocas - A passagem de ônibus subiu! – anuncia uma mulher que aguarda o ônibus no ponto.
abertas. Nada de tesouro e apenas um bilhete contendo uma mensagem sarcática: - Não acredito, você está brincando!
“Rá-rá-rá. Otários! Não está aqui. O ônibus atrasou meia hora, já vem lotado. Luzia não encontrou assento vazio, se segura
Descanse em paz, 2Rs, 7Q, 3Ts!” como pode, meia hora depois desce em frente ao trabalho.
Nós quatro corremos cada um para seu lado para buscar na Bíblia Sagrada a resposta para - Bom dia Fernando!
o código do bilhete. O que ninguém se ateve nesta batalha foi que 2Rs, 7Q, 3Ts, não era uma - Bom dia. – responde ao cumprimento do porteiro.
citação bíblica, mas sim, Rua 2, Quadra 7, Túmulo 3. Ou seja, duas vias paralelas para direita do Luzia veste o uniforme pensando “ainda bem que hoje é dia de pagamento”. Começa a
corredor em que estava túmulo de Demóstenes Soares. trabalhar limpando o CPD, varre todo o chão da fábrica e o pátio. Deu a hora do almoço, Luzia
À noite, voltei sozinho ao cemitério, cavei no lugar indicado e lá estava dentro de uma pega a marmita e coloca pra esquentar no micro-ondas. Almoça e descansa um pouco.
bolsa de couro antiga, 10 milhões em diamantes, rubis e selos. Juntei tudo e fugi de Nova Já havia voltado ao trabalho quando a encarregada chegou.
Argentina. Aproveitei a vida ao seu extremo com muita luxúria, vaidade e ostentação. Me tornei - Boa tarde, Luzia!
um rei. - Boa Tarde!
Jamais me encontraram ou souberam que eu havia ficado com o tesouro inteirinho somente - Eu trouxe o seu holerite – avisa a encarregada.
para mim até esse momento em que deixo como registro jornalístico e histórico a revelação do Só foi a encarregada virar as costas, Luzia abriu o holerite que marcava quatrocentos e vinte
fim de um mistério que durou mais de um século. reais de valor líquido começou a maquinar as contas. Guardou o holerite e voltou ao trabalho.
Já estou morto. 50 anos se passaram desde que a história que contei aconteceu. Se alguém Enquanto lavava o escritório suas gotas de suor se misturavam com água e sabão. Deu um
encontrou essa crônica, deixo a seguinte dica: grau na portaria e foi se trocar para ir embora.
“Onde está o teu coração, ali também está o teu tesouro! Acabado o expediente de trabalho às 15:00h, passou no banco, sacou o pagamento e
Ah, Ah, Ah. Decifrem essa!” esperou seu ônibus.
Descendo na vila foi direto ao “Russi – Supermercados”, pagar o cartão. Aproveitou e
passou na “Estrela Azul” quitou a parcela do material escolar das crianças e ainda acertou a
conta de água e luz na lotérica.
Chegando em casa abriu a carteira, restavam apenas três reais. Luzia olhou pra filha mais
velha que estava lavando louça e a mais nova que via a TV “derramar heróis sob o recinto”, e
sentenciou: - “Herói é quem vive de salário mínimo”.

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Região: Grande São Paulo | Cidade: Várzea Paulista Região: Grande São Paulo | Cidade: Osasco
Marcelo Silva Sabrina Paixão

Crônicas
Conto
O Que Adormece

Entrelinhas algo adormece, placidamente, no veio das páginas, no caule do lápis. A essência
Despertados E Conectados daquilo que ainda não é, não é voz, não é grito, é respiração de palavra adormecida. Embalada
pelas mãos que não escrevem, que tamborilam contra a capa, na esperança vã de despertá-las,
A primeira pessoa a que vi reclamar da lousa fria, carteiras duras e muros altos foi a virgens e frescas, frases sobre as páginas. Qual a fórmula que as irão despertar? O verbo espera
professora Maria. Não esqueço seu rosto jovial numa boa simetria, elegante e carinhosa. Dizia comigo para iniciar jornada, e o que chega é o táxi.
que o cenário compunha-se da estrutura arquitetônica do século XIX, num misto de professores Enquanto trafegamos, cabeça encostada à janela, vou remexendo os recortes de lembranças
do século XX e alunos do século XXI. Lidava bem com essa desarmonia, Utilizando dos avanços no baú da memória, busco qual herói ou vilão acordará a crônica. Na janela vejo a chuva. Cai
tecnológicos que ultrapassam os muros e as grades da escola, despertava até os alunos nos telhados, dá de beber as flores, delineia o contorno dos prédios, transtorna os motoristas. E
desconectados do mundo físico. Sobretudo com o manuseio da lousa digital. O simples toque de repente percebo que a chuva tornou-se ação. A palavra molhada desperta tempestivamente,
do dedo mágico da professora Maria, encantava os quatro cantos da sala de aula. e exige contornos na página. A memória liquida da chuva, tomada com gosto no centro de São
Os olhinhos acompanhavam a simulação digital, a multimídia ou apresentação no power Paulo há pouco. A cadência da cidade aviva a palavra, seu ruído surdo e dissonante a acorda
point. Uma aula perfeita para os alunos contemporâneos, nem sentiam a dureza da caneta e com fúria, brota em turbilhão e exige tomar a página em enchente verbalizada.
nem da cadeira muito menos da muralha que os cercava. Ecoa no vento da tempestade um poema mineiro dizendo que fazia frio em São Paulo, fazia
A professora Maria, dominava mesmo o aparato tecnológico. Na aula a turma fazia silêncio frio em São Paulo, chovia. E responde-me outro, quente, ah, quantas tardes numa tarde. E que
como antigamente, na época do militarismo. A diferença é que quando ela adentrava a tarde, cápsula do tempo, que me levou ao não vivido, à década de 1920 ou 1930, que são anos
interação fluía literalmente; professora e alunos, colegas e alunos numa organização barulhenta, a mais ou a menos quando se viaja em retrospectiva? Estava eu, câmera na mão, nas escadarias
mas respeitosa. do Teatro Municipal. Na outra o guarda-chuva e os dedos a segurar o fac-símile da Paulicéia
As atividades interativas ocorriam na lousa digital com direito a imagens 3D com som Desvairada. Eu desvairada na chuva, sob o frontão do grande Teatro, a acenar para Mário de
estéreo, tudo mediado pela professora que contava com participação especial dos alunos. Andrade, quase a correr para me abraçar com aquele vulto feito de garoa e neblina, a cruzar o
No momento em que se dirigiam empolgados a lousa digital. Escreviam nela por meio de um Viaduto do Chá. Mário de Andrade caminhou nesta tarde em São Paulo. Eu me vi refletida em
teclado virtual e decidiam se utilizariam uma caneta especial ou com o dedo, já que a lousa lê seus óculos. Deixou num testamento-poema um mapa da cidade, relato que torna impossível
ambas as formas. A resolução de problemas era feita com gosto, propostas que tinham sentido, desvencilhar o olhar destas ruas e paços sem imaginar a trombar com ele ao dobrar a esquina.
eram desafiadoras, proveitosas e resolvidas. Turista aprendiz, foi desenraizar Macunaíma lá nas matas da Amazônia, resgatar a voz e as
A profissional retomava com facilidade as aulas anteriores como um ponto de partida e cantigas dos pescadores nas praias nordestinas, abraçar amigos no Rio de Janeiro, mas voltava
inseria novas aprendizagens. Proporcionava um tempo suficiente para fazermos anotações sempre para esta cidade, e dizia que quando morresse queria ficar.
significativas. A clareza da lousa digital ajudava dar luz para realização das atividades. Bastava Mário, o que conheci de São Paulo por ti? No interior de sua obra, acalmei minhas angústias
a professora explicar uma vez e todos entendiam as explicações. Talvez devido à interação de menina, aplaquei e reconheci o mais-que-perfeito amorodio por esta metrópole enlouquecida.
promovida e amparada pelos recursos que ganhava trajetos regados de cores, som, movimentos Aprendi com você a extrair poesia das esquinas tumultuadas, das praças esquecidas, das pessoas
e a doçura da professora Maria. invisíveis. Devorei-te sem dó, declamei suas palavras pelos saraus, ouvi seus registros musicais, li
A felicidade me possuía naquele momento, como quando um medicamento poderoso suas cartas aos amigos, e enfim, como sonho, no ano em que rememoram sua morte, ouvi sua
principia a agir e nos tira uma dor: de não precisar ficar estudando tabuada, achar o máximo voz. Mário Mário, sãos as suas e as minhas crônicas animadas pela mesma sinfonia? O que diria
divisor comum, decorar datas comemorativas, nomes de montanhas, que nunca escalei nome você a ver as serpentes que correm pelos subterrâneos, os ambulantes a gritar pelas calçadas,
de mares que nunca naveguei, copiar textos longos que nunca li. as memórias demolidas nos canteiros de obras, os protestos silenciosos de que não existe amor
Assim ficou impressão digital dessa professora, pois ela nunca soube onde cessou sua em SP? Diria que continua desvairada e tresloucada esta Paulicéia. Arlequinal.
influência, mas cutucou minha alma a ponto de pensar que estava apaixonado. Seu olhar Ao fim desta tarde qualquer nas escadarias do Teatro Municipal esperando um taxi, tomando
meigo, voz baixa e macia; tornou-me numa alma conectada e despertada. chuva como benção, acabei por molhar o fac-símile da Paulicéia, e os amigos apavoraram-se.
Sorri. Deixe estar, afinal que outra água que não a chuva de São Paulo, para batizar Mário de
Andrade? No táxi, parada no transito, com o livro molhado no colo, descobri qual a fórmula que
faz acordar a crônica em mim: São Paulo, comoção da minha vida.

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Região: Maríla | Cidade: Canitar Região: Maríla | Cidade: Garça
Cícero Pais Veridiana Sganzela Santos

Crônicas
Conto
Carros, bicicletas e Creedence

Essa vai para os pedestres: já repararam que quando a gente tenta atravessar a rua, o
carro que vem lá na outra esquina não dá seta, e bem no momento de atravessarmos, ele
vira bem onde estamos indo? Já notaram que quando estamos à beira da guia, sempre passa
um caminhão jogando fumaça preta e fedida bem na nossa cara? (o trajeto inteiro ele veio
A última crônica
vindo normalmente, mas foi só encontrar um pedestre caminhando, que ele, só de sacanagem,
solta a fumaça). Já aconteceu com vocês de estarem no meio de uma ligação importante ou
Caro editor do Mapa, esta será a minha última crônica e ponto final. O que pensarão meus
tentando conversar com alguém na calçada e passa uma moto escandalosamente barulhenta?
três ou quatro leitores que as vezes elogiam ou criticam minhas mal digitadas linhas? Chega,
Já perceberam que sempre que vamos apertar o interfone ou bater palmas numa casa, sempre
não apresentarei justificativas! Para que serve a crônica neste mundo insensato? Cansei de
tem um carro de som para nos encobrir? Ou então em dias - ou noites - de chuva e frio, aí é que
comentar assuntos banais ou as grandes questões que levarão o homem do paraíso ao inferno
muitos motoristas inventam de “passear”, desfilando pela rua, bem devagar, e nos deixando na
ou vice e versa. Algumas laudas a menos ou a mais mudarão o curso de vôo de uma simples
dúvida se dá tempo de atravessar ou não?
mosca? Odeio ser repetitivo, mas repito: chega!
Que sadismo é esse? Eu sei que nos dias de hoje não deve ser fácil - e nem saudável - ser
Desisti de escrever sobre a corrupção, falta de segurança, o povo na fila do SUS,essas
motorista -, mas saibam que pedestres também têm suas agruras. Tenho carta desde 1998,
coisinhas corriqueiras que entopem a pauta de alguns programas de TV. Até me arrisquei em
dirigi e dirijo muito pouco, por pura consciência de que não domino muito bem essa arte. Mas
temas “profundos” e,como não sou nenhum Nietzshe, pelo menos deram-me boa nota como
na arte de caminhar, nessa eu levo jeito. E andando por aí vi que nós, pedestres, temos tanto
filósofo de botequim da Cohab. O que posso querer mais, se tenho a generosa admiração de
direito de xingar o trânsito quanto os motoristas. De tanto ver gente estressada, grosseira,
três ou quatro bêbados, num mundo racional e competitivo?
egoísta e suja (sim, suja, gente que gosta de atirar lixo pela janela, sem o menor remorso),
Caro editor, outros cronistas herdarão este espaço e escreverão melhor sobre os mesmos
quando vejo um motorista que dá a vez ao pedestre com gentileza, já olho direto na placa do
temas ou sobre as maravilhas tecnológicas que mudarão a face da Terra. Celebrarão o dia
carro, pensando: “esse sujeito não pode ser daqui, é de fora”.
em que pisaremos em Marte. Haverá uma pílula para a cura do egoísmo? As guerras serão
Sim, é chato dizer isso, sei que há muito pedestre folgado também, mas o que tem de gente
desnecessárias ou a humanidade sucumbirá ao ódio ancestral? Seremos todos pasto do mesmo
que faz ultrapassagem pelo lado errado, passa no sinal vermelho (ui, pessoa importante, não
verme ou nos transformaremos em fulgurantes estrelas?
pode perder tempo!), caminhões lançando fumaça, motoqueiros fazendo barulhos absurdos de
Ontem, não sei se foi sonho ou realidade, vi-me presa de um pesadelo Kafkiano: dois
propósito... Dar seta então, já caiu de moda há muito tempo. O legal é sair por aí com o rádio
alienígenas parecidíssimos com a presidenta da Unidos do Pleoceno, dispararam as suas armas
no centésimo volume, achando que todo mundo tem o mesmo (mau) gosto musical.
radioativas em minha direção,e morri,sem tempo de ler um parágrafo de Marimbondos de
Esses dias fiquei cogitando comprar uma bicicleta; tenho saudades de quando eu era
Fogo do Sarney,só pra sacanear aqueles monstrinhos fisgados do pré-sal.
criança e pedalava para ir brincar na casa das minhas primas, para ir à escola, na casa da vó, dar
Enquanto escrevo, a pátria educadora esquece a educação básica nos grotões do Brasil.
voltas no lago, matar o tempo aos domingos. A última bike que tive foi uma boa companheira.
Balas perdidas e crimes bárbaros são aceitos como fatos “normais”. Agora, sexagenário,
Aguentou muita rua esburacada, um pouco de chuva, alguns cachorros irritados, já viu muitas
pergunto: do caos brotará uma flor? Quantas crônicas cantarão a poesia, o sangue derramado
bombinhas de ar e pores-do-sol. O tempo passou, entrei na faculdade e minha roxinha ficou
e a esperança no futuro? Chove lá fora, faz frio e, nesta hora-1h25-quando a “humanidade vira
um pouco de lado. Bem, ficou alguns anos de lado, no quartinho, só saindo de lá novamente
e revira no leito e não encontra o sono”, escrevo as últimas linhas de minha última crônica. Ou
para me quebrar um grande galho. Em 2006 o Creedence ia dar um show em Bauru, e eu
será a penúltima, meus três ou quatro heróicos leitores? Sim, por que neste momento sobra a
precisava de uma graninha para ir. Nessa época eu dava umas aulinhas de espanhol, mas o
pergunta inevitável:
que eu ganhava não era suficiente para o ônibus, ingresso e lanche. E minha mãe disse que
-Quem, de vós, pagará a última rodada?
para isso ela não ia ajudar, show do Creedence (embora ela gostasse) era um “luxo” que era
problema meu. Talvez guiada por um anjo meio roqueiro, uma mulher apareceu perguntando
se não tínhamos alguma bicicleta sem uso, para vender, pois o marido dela estava precisando.
Nunca fui fanática pelo Creedence, mas vi aí um sinal. Já havia explorado muito a minha
roxinha, então com um pouquinho de dor no coração - confesso - acabei vendendo minha bike.
O dinheiro nem esquentou no meu bolso, fui direito comprar a entrada para o show, com meu

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Região: Presidente Prudente | Cidade: Adamantina
Katia Torres Negrisoli

Crônicas
Conto
Não era uma vez!

Toda história que se preze tem um bom motivo e um jeito de se começar. O final, ah,
o final é que são elas! Como terminar? Prevejo o desta crônica e, imediatamente, reluto em
dar-lhe este fim. Será?! Será que o público leitor se afeiçoará a ela fazendo com que figure
nos livros escolares semelhantes aos da Ática de capa preta da série Para Gostar de Ler? E nos
paradidáticos, sim, nos queridos e detestadoslivros que os alunos têm que levar, regularmente,
às escolas, naqueles fardos pesados a que dão o nome de mochila? Será? Livro de Língua
Portuguesa de fulano de tal e lá estará a minha crônica no meio dele. Livro de Linguagem e
irmão. Foi muito bom, não me esqueço até hoje. Mas foi uma noite só. Uma noite ótima, mas Literatura! Opa! Este sim, digno de levar a minha crônica e imagino os alunos sob o comando do
que não se compara às tantas tardes que passei pedalando calmamente minha bicicleta. Minha professor procurando apágina indicada com o título do texto e o nome do autor na sequência.
bicicleta que se transformou em um show do Creedence. Uma boa lembrança para se guardar. Ora, professoraaaaaa, porque professor, masculino assim, com este jeitão antipático e de pouca
Mas hoje eu não sei se teria novamente uma bike, não sei se teria coragem de pedalar conversa combina coma disciplina de Matemática, a área das Exatas, estas matérias todas
por aí, esperando ter a mesma calma que tive um dia, andando por nossas ruas. Hoje prefiro certinhas, que primam por longas explicações desenhadas no quadro-negro com os alunos
caminhar, caminhar e tentar ignorar esses desaforos do trânsito, talvez com a ajuda dos fones olhando, tentando entender.
de ouvido, curtindo o Creedence... Então, continuo a imaginar a minha crônica cheia de palavras, letrinhas, sílabas combinadas
entre si, estampada num livro de Português, do autor fulano e sicrano de tal, com aquelas
imagens que parecem adesivos ,vindos da infância, coladas ao lado, lindas, borbulhantes, aos
olhos dos jovens ávidos por leitura. Mais ainda, ao lado das pinturas de algum artista famoso
ilustrado na página ao lado fazendo-lhe par. Volto ao final do texto, porque crônica boa, ou
conto que se preze, necessita de um final inédito, inesperado, daqueles de trancar a garganta e
deixar a boca seca, com gosto de quero mais.
Retorno à escrita, porém a mente vagueia, busca as nuvens densas da infância e as palavras
de Dona Isaltina saltam-me à memória, entrevejo-ainiciando a aula lendo em voz alta, pausada,
começando sempre assim: “_Era uma vez...”, momento este, em que os nossos olhinhos
começavam a brilhar e o silêncio se fazia ouvir, quebrado, algumas vezes, por um pssiu, vindo
de um colega ao lado que se incomodava com certo barulho, ou com algo que interrompesse
a leitura compassada na voz grossa e fluente de nossa professora.
Bem, volto ao desfecho da crônica, são quase cinco horas da tarde e preciso enviá-la ao
editor. Revejo os possíveis finais que dei para ela: no primeiro final, matei o amante e o casal
continuou feliz para sempre; no segundo final, o amante fugiu com a esposa do amigo por
uma rua deserta, sob uma chuva fina e espessa. Não gostei da chuva fina e espessa, parecia
conto de mistério e o primeiro desfecho me pareceu previsível demais. Retornei ao texto, antes,
tomei mais um copo d’água, seguido de uma xícara de café feito nestas cafeteiras elétricas para
acelerar o processo de vencer a ordem do dia e, um terceiro final surgiu, a amante caiu doente,
enquanto o marido viajou para a Europa, no entanto, o amante não quis ficar no seu lugar,
deixando-a à própria sorte e... Peraí! Para tudo! Acho que isso está ficando moderno demais,
quase mandei o marido para Cancun acompanhado de seu sócio de uma forma indiscreta, ao
gosto do deus Baco. Decidida que era, imaginem,resolvi deixar o final para outro dia, dormi
exausta, pois os muitos finais cansaram-me sobremaneira.
Acordei! Era o dia vinte e um de maio, uma quinta-feira. Procurei no calendário alguma

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Região: Presidente Prudente | Cidade: Presidente Prudente
Plinio Giannasi

Crônicas
Conto
Crônica de uma vidinha besta

Segunda-feira, 10:35.
Hoje ele se atrasou, todo dia chega antes das oito da manhã. Creio que quando chega
cedo, é porque nem dormiu, passou a noite por aí, procurando nem ele sabe o quê, vagando,
contando estrelas. Mas, até que se juntem os dez reais cotidianos, vai amargar vidros fechados,
impropérios, toda sorte de provações. Dez reais, e lá se vai, até amanhã.

Terça-feira, 08:30.
Este é horário mais comum para ele chegar. Ponho o relógio para despertar as oito, para
não perdê-lo de vista. Surge daquela viela atrás do restaurante japonês, sempre só, ninguém
o acompanha. Hoje com roupas limpas, o pessoal da Assistência deve tê-lo encontrado
dormindo com outros desafortunados, creio que esta indumentária nova faz parte das doações
data sugestiva que me desse a solução para a angústia da noite anterior. Nada! Vinte e um da Campanha do Agasalho, pois são um pouco menores que ele, principalmente nos braços.
de maio, tornei a conferir, nada de especial, além de maio ser o mês das noivas. Lembrei-me, Mas atinge o objetivo de cobrir aquele quase esqueleto. Barba que é bom, nada. Ainda ostenta
porém, que o mês das noivas agora é dezembro, não sei porquê, mas todas querem se casar aquele emaranhado de péssimo aspecto. Remete-me à lembrança de minha juventude, quando
em dezembro, chegando quase a competirem com o bom velhinho, portanto não sobrou nem barba e bigode eram garantia de masculinidade. Ao menos escondia bem certos enrustidos
maio, nem noivas. da alta sociedade. Mas, voltando a ele, se melhorasse o visual, os dez reais viriam em menor
Pensei um bocadinho mais, antes que alguém descobrisse resolvi: “Não era uma vez...”! Esta tempo. No mesmo cruzamento, quase meio-dia e ele já fechou o expediente com a quantia
crônica não teria final. Seria só ela neste mundo de linhas, tímida, prazerosa, especulando com exata, a mesma de todos os dias. Só dez. Vejo claramente, pois o equipamento é ótimo, às
os olhos e ouvidos ávidos por finais terríveis, melancólicos ou brutais. Ficou dito, final não há! vezes passa um tostão, ou falta. Conto junto com ele, apenas dez reais. É só o que ele quer ali.
E pus-me a escrever pelo título contrariando as normas, dei nome ao rebento antes de vir ao
mundo, sem analisar os olhos, o nariz, a boca, os cabelos, o rosto como um todo. E o segredo Quarta-feira, 08:45.
não ficou revelado.Quem conta um conto, não escreve uma crônica. Acordado desde as oito, nem preciso do despertador. Ele chega com as mesmas roupas de
ontem, amarrotadas. Parece que não as tirou nem para dormir, funciona como uma segunda
pele, que de tempos em tempos é trocada. Campanhas assistenciais filantrópicas, associações,
igrejas, é só passar e pegar, e andar por mais alguns dias de casca nova. Hoje ele vai embora
antes das dez horas. Apenas uma doação e a quantia já foi atingida. Uma alma boa... Prefiro
acreditar que a nota de dez reais foi pega por engano, era para ser de dois. O sinal abriu e o
“mão-aberta” não teve tempo de trocar.

Quinta-feira, 11:00.
Ele ainda não apareceu a estas horas. Preso? Internado? Não, espero mais um pouco, só
até meio-dia, e ele está a postos, roupas já precisando de uma troca. Calor escaldante e um
sofrimento a mais, pois a falta de um bom banho impede que abram os vidros dos carros,
questão lógica, percebo pelo gestual de quem passa. Moedas atiradas até distância segura
para olfatos sensíveis, só depois das quatro da tarde ele consegue os dez para ir embora. Hoje
foi cruel.

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Região: Ribeirão Preto | Cidade: Franca
Zerroberto De Souza
Sexta-feira, meio-dia.

Crônicas
Conto
Ainda não apareceu. Espero mais uma hora, um pouco mais, e ele chega, nem menciono
as roupas, pois se do décimo oitavo andar o visual é apocalíptico, imagino para quem está
próximo. Está semelhante a um bicho, muito sujo, a barba quase cobrindo o rosto todo, se
eu melhorar o foco da câmera posso saber se os olhos dele estão à mostra. Equipamento
moderno, regulagem de lentes automática, pronto. Agora posso dizer com certeza que a barba
dele não permite que seu rosto seja visto. Amanhã é sábado, será que ele tem folga? Que
besteira, folga de quê... Melhor afastar um pouco o quadro, para melhor nitidez. Assim está Banalização
escrito no manual de instruções, e assim aprendi no curso de fotografia. E se aquele carro preto
não conseguir desviar da bicicleta à direita, nem da motocicleta com baú à esquerda, creio “-Eu, chlep, crooc, te, crooc, chlep, chlep, a, crooc, mochlep, crooc!”
que uma guinada mais radical põe em risco a arrecadação diária. Não conseguiu a manobra Lembrei do Sócrates. Não o grego, que não sou tão erudito assim. Lembrei do Brasileiro
perfeita, eu sabia. A grade dianteira do importado alemão espatifou-se naquele corpo magro, no sobrenome, o tal “Doutor” da bola, exemplo de anti-atleta que passeou por gramados com
moedas em voo livre, tilintando aqui e ali. grande galhardia.
E lembrei-me dele por causa de uma entrevista que li há bastante tempo, em que, inquirido
Sábado... Não despertei, porque nem dormi. sobre qual a maior emoção de sua vida como jogador de futebol, relatou que fora numa noite
Aproveitei para testar o equipamento de visão noturna, mas nenhum motivo noctívago se de quarta-feira, no Estádio do Maracanã, quando pela primeira vez defendia as cores da seleção
compara a ele. nacional, num jogo contra o Uruguai, e, na condição de representante do Brasil, ouvira o Hino
Será que vem hoje? Deve ser folga, ou encontrou algum outro meio de conseguir seus Nacional, perfilado no gramado junto ao restante do time.
dez reais diários. Ontem ele foi embora de ambulância, tinha muito sangue no chão, na grade Para ele, a impressão que o Hino Nacional causava no jogador, antes de uma partida em
cromada do carro, na esquina toda. Pude perceber que os Bombeiros Socorristas não estavam que o país dependeria de seus pés, trazia uma soma indescritível de valor agregado àquele
muito crentes numa sobrevida, depois de tentarem colocar o respirador no meio daquela barba momento único.
horrenda. Curiosos se aglomeraram e devem ter achado que algum cachorro foi atropelado. Aí, anos depois, foi aprovada uma Lei Estadual em São Paulo, que obriga à execução do
O olhar do paramédico para os companheiros denunciava a situação crítica, aquilo foi grave. Hino Nacional em todos os eventos esportivos que ocorrem no estado e onde seja cobrado
Espero até cinco da tarde, ele não veio hoje. ingresso, seja que evento for. De decisão de campeonato mundial até torneio de bolinha de
gude.
Domingo... Não despertei, porque novamente nem dormi. Não há imbecilidade maior.
O trânsito ali no cruzamento é quase nada, um ou outro carro. Uma feira livre na rua de Ouvir a interpretação de um dos mais importantes elementos identificadores da nação
baixo, parece outro mundo aos domingos. Ele não vem hoje, pois deve chover no período brasileira em eventos mequetrefes e rastaqueras da menor grandeza, somente desservem à
da tarde, vi na previsão do tempo, todos os dias eu vejo. Percebo que nem amanhã ele virá, noção de importância do símbolo. Acaba com o simbolismo. Banaliza-o de forma irresponsável
acredito que nunca mais. Se sua luz apagou, espero que alguém tenha cortado aquela barba, e indefensável.
pelo menos. E roupas novas, que lhe sirvam melhor do que as últimas. Lá pra semana que vem, Uma coisa é a execução do Hino em uma Copa do Mundo ou Olimpíada, à capela ou não,
o cruzamento deve estar ocupado por outro enquadramento para meu novo equipamento quando os atletas realmente estão em sintonia com o sentimento nacional. Há simbiose com
fotográfico. Basta perceberem que está vago. os torcedores e representatividade. Mas num campeonato da quarta divisão, com plateia de
A lógica é sair por aí procurando um motivo de imagem, o professor ensinou assim. Mas poucas dezenas de “testemunhas”, ou num jogo de basquete de terceira categoria, ou num
não consigo sair daqui, compro tudo pela internet, inclusive este equipamento de última torneio caça-níqueis de qualquer esporte, não faz sentido algum.
geração. O curso eu fiz assim também. Pela revogação já dessa Lei estúpida, em defesa do símbolo nacional. Enquanto este
Queria que ele surgisse na esquina, farrapo, pedindo moedas, mesmo com chuva. E dividir ainda simboliza alguma coisa.
com ele parte de minha existência, mesmo a dezoito andares de distância, preciso disto, e Da forma como está, a banalização está ao ponto daquela primeira frase do texto:
não de antidepressivos ou tratamentos em clínicas psiquiátricas. Na sexta-feira, na hora do É uma garota dizendo “-Eu te amo!”, mascando chiclete, para um menino que come pipoca.
atropelamento, o ajuste no semblante daquele médico ficou salvo na memória. Não a memória Nem ela se faz entender direito. Nem ele ouve o que ela diz.
da câmera, mas a minha. Era como se quisesse me dizer que tudo estava acabado para o Igualmente, não faz sentido algum.
pedinte, que há algo de indecente em fotografar as pessoas sem autorização. -0-0-0-0-0-
Como dormir agora? E se ele aparecer por lá, pedindo moedas? O paramédico vai contar
para todos que eu faço isso... Perdão...
Vidinha besta...

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Região: Ribeirão Preto | Cidade: Orlândia Região: São José do Rio Preto | Cidade: Rubineia
Serafin Isa

Crônicas
Conto
Ser-mãe: o rebento A Vivência De Rubineia, Outorgou-Me Poetisa

A esses seres fugidios, sua natureza, nossa inquietude, atribuem asas... Proust Não sei ao certo a quantas pessoas irá interessar a leitura dessas linhas corrediças, talvez
Mãe não tinha. Pudera, nascera na rua, quando abriu os olhos pro mundo estava no Lar ás tantas que dividiram comigo os momentos descritos aqui, como meras memórias. Essas
do Menor Abandonado, lá não tinha mãe, tinha as tias. E era cada papiloque, beliscão, croque. intempéries, antes cotidianas, hoje vivem assombrando minha mente e marejando meus olhos.
Careceu de cedo ser cachorro sem dono, nunca teve agradinhos. Então, ao completar sete anos, São apenas lembranças de uma época em que a felicidade não era uma concessão alheia e que
o restico de gente, já era conhecido como o “Sem Mãe”. Sempre fora de um bom errado, não os padrões de beleza se projetaram no existente.
tinha essa parentada toda do diabo. “Sem Mãe” trazia o cabelo encrespado, arredondando o Era verão, a temperatura estava costumeiramente alta, me recordo da Igreja no centro
coco, beiço largo ruço. Só mesmo o olhar de peixe¬ morto era embaçado. É verdade que os da praça principal, como convencionalmente acontece nas cidades do interior, a marca da
dentes não se viam, ele não sorria. Também com tanta miséria, não dava para ficar arreganhando colonização católica. Pés de ipês cercavam o prédio, todos floridos. O que eu sempre admirei
os dentes. nos ipês é sua capacidade de demonstrar que podemos nos surpreender com toda a ilustre
Via a cidade ruça, do mesmo tom ruço da sua pele. A vida no Lar encafifava, simplicidade da natureza. As pessoas ou talvez a maneira com a qual eu as enxergava, em toda
penarosa e “Sem Mãe” derramando vida, tem o dia que escapole de lá, foi ter nas ruas, na minha inocência infantil, pareciam mais receios. A vida ali parecia ter mais cor.
Praça da Sé com a vida perversa dos manos de instintos espaventados. Caçoavam dele fazendo Hoje, lendo os poemas de Manuel Bandeira, sei que ele passou por ali, sei que Pasárgada
ruindades e assim foi crescendo mastigado e remastigado, corado, perdendo as vontadinhas é nada mais que aquele paraíso, plasmado e reproduzido naquele mundo, no meu mundo.
de crianças. Nunca teve mãe na vida e se orgulhava do fato. Pra ele, mãe era a praça da Sé, Naquele rio Paraná, imenso que eu sempre achei que se estendia até o fim do mundo. Como
prum dar de pedir, um dar de comer, um dar de dormir. Virou homem, aprendeu se livrar de um aquelas águas me acalmavam! Tantas vezes senti que, ao inundar a antiga cidade que ali existia,
enrosco com a rataria e não vacilar e viver esse rio havia sugado tudo que lá havia: os sentimentos, as lembranças, as vidas todas, e que,
sempre na sombra do boi. ao me banhar nele, era como me apropriar de tudo aquilo, era livre e intenso.
Ria desalmado quando lhe diziam: “Filho-da-mãe”; “Não tem mãe, não, pivete?”. Recordo-me de que uma grande amiga me disse, certa vez, que todas as ruas tinham o
Sabia como ninguém contar como era o riscado da vida de um sofredor numa boca de nome de poetas, e que eles se encontravam a cada esquina e cochichavam uns para os outros,
mocó, no meio dos loques, mocorongos, zé manés e babacas. Viu muito danado e folgado ir os mais lindos versos. Peguei-me tantas vezes nas esquinas tentando ouvi-los, achava que se
pra casa do diabo com uma ferrada nos cornos, uma cortada na cara ou um tiro no meio da eu fechasse os meus olhos e me concentrasse, eles sussurrariam para mim.
caixa do pensamento. Os tais da lei. Ô vontade de lhe dar a ripada! Encontrei ali, tantos anos, a paz que eu nunca mais encontraria. Tudo tão simples, tantas
Pois é, cachorro sem dono vive como lixo dos outros. Até que apareceu lá no prédio limitações, as de qualquer cidade pequena. Ainda ouço, nos sonhos, o barulho das ondas vindo
abandonado da lncal, uma mulatinha cor de cobre, os olhos de peixe morto escorregou de encontro com o meu corpo, ainda sinto o cheiro de ipês, escuto as seis da tarde, os sermões
naquele corpo de potranquinha. Que gostosa a Déia. Um jeito de menina dengosa. Déia linda. vindo da Igreja, ainda me vejo na esquina tentando ouvir o sussurrar dos versos... mas, como
Não sei o que o corpo dela tinha que agitava a galera toda. Todo mundo de boca aberta, diria Drummond, que verbalizou os submersos num poema sobre Rubineia, também mostrou
extasiado, quando ela passava de saia vermelha. Uma Vênus esmulambada. Andréia era corpo o valor das Memórias dizendo que “as coisas findas, muito mais que linda essas ficarão”, para
só. Namorava com Deus e todo mundo, mas era de uma exemplaridade incapaz, de uma sem- sempre.
vergonhice. “Sem Mãe” jogou seu olhar escamoso por cima dela, Déia escorregadia, doidejou Apesar dos meus poucos anos vividos que se perdem no embaraço dos meus cabelos, hoje,
por cima dele. Viraram amantes, era uma desgraça muito cachorra para a galera. Foi um nada, brancos guardo a mais simplória companhia de tudo aquilo que já se foi, de toda intensidade
promessa de alma sem maldade. vivida, da infância e da nostalgia, mais intensa, faço desta, poesia. Nos tempos oscilantes
Um dia depois de muita cachimbada, Déia caiu no poço do elevador do prédio “metamorfósicos” vejo agora inovações intensas, mais nada, jamais, fará com que a essência
abandonado, a galera pediu ajuda, levaram ela pro hospital, chega a notícia para o “Sem de minha pasárgada se perca. “sei que pedras virão sobre a minhas retinas fatigadas” “como
Mãe” que ela está grávida. Vai viver. Uma lágrima besta, saída não se sabe de onde, veio ao dizia Drummond”, mas o nosso amigo Pessoa ainda enfatiza que ”Tudo Vale a Pena se Alma
olho, ia ser pai e a Déia mãe. A noite era uma furna no prédio, hora estilhaçada, pensou no não é Pequena”, portanto minhas memórias não ficam num balançar de cadeira no alpendre,
Natal, nas luzes, numa mãe de bacana todinha cheia de joias. Acariciou a máquina, uma sete somente, mas dentro do meu mais intimo sublime interior revividas , as quais poetizo e ofereço
meia cinco, colocou na cintura, pensou num presente especial e foi para a Praça da Sé, contente a todos com trabalhos cognitivos e simplistas como uma eterna estudante das letras, as quais
de saber que seu filho ia ter mãe. começaram em simples letrinhas com jornais e hoje me vejo sob o mesmo, sendo “letrar” de
muitos jovens que admiram o sentir de um poeta.

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Região: São José dos Campos | Cidade: Pindamonhangaba
Kayki Martins Ribeiro Região: São José do Rio Preto | Cidade: Santa Fé Do Sul Vicenza Chiaradia

Crônicas
Conto
Meu nome é Maria Eulália, fundadora inconsciente da Tropicália Fascinação

Maria apoiou o rosto nas mãos assim que o rapaz sorridente se levantou da cadeira Sou uma mulher viúva. Meus filhos morrem de ciúmes da mãe! Namorar? Nem pensar!
Querem amor e atenção em tempo integral e, mais ainda, dedicação exclusiva!
defronte sua mesa e saiu.
Os livros são meus amores. Os escritores, meus grandes amigos.
- Vê se posso com um presepeiro desses, Isabel – resmungou a funcionária para a colega
Mas de uns dias para cá, estou muito lisonjeada com certa atenção e um desmedido
de trabalho - Já ia “fazer enxame” aqui na repartição.
carinho que venho recebendo nas missas de domingo.
O jovem que acabara de deixar a sala de expedição do Registro Geral, deixara no ar os
Às oito da manhã, lá está ele, na porta da igreja, à minha espera. De branco da cabeça aos
últimos acordes do violão que carregava preso ao lado do corpo.
pés, à espera de minha chegada para rezar! Até parece que voltei ao túnel do tempo e vejo
A funcionária Maria, uma estressada contumaz, tentara de todas as formas demonstrar
aqueles belos moços que iam ás missas de terno de linho branco para flertar... certamente,
que não detinha interesse algum em ouvir do rapaz nenhuma palavra, além daquelas que depois de terem bem cumprido as devoções dominicais!
fornecessem os dados necessários para a confecção do documento oficial. Bons tempos aqueles! Nem parece que os anos escorreram rápido pelo sorvedouro e
No entanto, complementando a data de nascimento informada, 07 de agosto de 1942, ela levaram nossa juventude, nossos amores... com estes flertes, reencontro o que pensava ter
o ouvira falar arrastado por quase meia hora sobre assuntos como sua terra natal, Santo Amaro perdido! Encantamento pela vida! Outros sonhos. Quem sabe, outro grande amor?
da Purificação, e a alegria dos primeiros acordes de violão que aprendera quando já residente Por isso, não perco uma missa!
da capital, Salvador. Passo por ele de fininho, de olhos nos seus verdes olhos, de soslaio!
“De perto, ninguém é normal”, respondera para Maria, quando ela lhe indagou se ele era Nem bem chego ao barco escolhido, lá está ele, de prontidão! Um verdadeiro gentleman!
louco. Espera que eu me sente e, discretamente, senta-se ao meu lado.
Enquanto a servidora adquirira uma expressão cada vez mais carrancuda, o rapaz exalara Se, por qualquer motivo, eu me atraso, ele fica do lado de fora do santuário, andando de um
continuamente tranquilidade e bom humor. Tanto que contagiara as demais funcionárias, que para o outro lado. Quando me avista, suas pupilas brilham! Sinto até que o seu coração palpita!
então lhe pediram para que as brindassem com alguma canção. Meus filhos nem desconfiam do caso e do quanto esta devoção religiosa está se tornando,
Quando a última nota se dissipara no ar, juntamente com aquela voz insigne, que parecera a cada domingo, mais audaciosa.
escapar da garganta rumo ao infinito da paz e da mansidão, todos os presentes aplaudiram Esses dias até o padre percebeu e fez uma piadinha a saída:
com veemência. - Acho melhor a senhora assumir de vez esse caso!
Não importara mais quem era funcionário ou cliente, pois todos naquela sala haviam se Neguei veemente, dizendo-lhe:
- Padre, o senhor não sabe? Eu tenho três filhos e dois cachorros bravos para criar! O padre
tornado expectadores.
não se convenceu dos meus argumentos e, para piorar até ofereceu seus préstimos, caso eu
O som de um golpe seco na mesa de atendimento interrompera a fala do rapaz, que já
de ideia mudasse!
narrava aos demais seus ideais de mudança através das mais variadas formas de manifestação
Na última missa, Fred finalmente sentou-se ao seu lado e se declarou todo enamorado.
da cultura nacional. Era Maria, que terminara seu cadastro e ansiava por ver-lhe pelas costas,
Ganhei até uns afagos!
devido a todo o tumulto que seu talento e suas ideias geraram naquele lugar.
- Deus me livre, que igreja, isto é pecado!
- Deve ser algum problema com o ano de 42, Isabel. Só nasceu maluco! Lembra daquele
De candura do meu coração, Deus muito sabe!
outro da semana passada, Gilberto, que cantava e falava com todo mundo? Se ele encontrar Esse amor tão puro, tão despretensioso e sincero, me traz felicidade que volto para casa
esse tal Caetano Emanuel vai ser um perigo, um verdadeiro escarcéu – ralhou a servidora pisando em brancas nuvens. Até remocei! Sem falar no brilho que a vida agora apresenta! Até
novamente, olhando para o céu. parece a luz das manhãs de domingo, rompendo as imagens dos vitrais e estampando no chão,
A funcionária Maria, “estressada-noite-e-dia” – como a apelidaram na Bahia -, faleceu no mais do que um mosaico de cores, o evangelho segundo a arte.
ano passado, no interior de São Paulo. Mas se é para abrir o meu coração apaixonado e confessar, confesso: esse amor de domingo
Até o último dia de sua vida relatou a todos este ocorrido, que sempre concluía assim aguarda um único ‘porque não...“
dizendo; “estive sentada defronte os responsáveis pela maior revolução cultural do Brasil. O - O ciúmes!
tal Caetano era Veloso e o outro Gilberto era Gil. Se não fosse o stress ter-me feito marcar a Fico muito enciumada quando um rabo de saia bem felino passa no corredor da igreja
retirada do documento de ambos para o dia errado, talvez eles nunca tivessem se encontrado. e Fred, sem pestanejar, saí em disparada, completamente esquecido da fascinação que,
É por isso que até hoje digo, afirmo e repito: meu nome é Maria Eulália, fundadora inconsciente misteriosamente, enredou os nossos corações nas santas missas de domingo!
da Tropicália”. - Miau!

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Região: São José dos Campos | Cidade: São Sebastião Região: Sorocaba | Cidade: Cerquilho
Maura Porpino J. Barthes

Crônicas
Conto
Margens Urbanas

Ela (e o nome dela não importa) não se lembrava de ter pedido para nascer, mas sabia que
dezembro era seu mês. Viveu uma infância tranquila, haja vista ter bem pouco conhecimento
sobre o que seria isso. Por ser atormentada por certos fantasmas e não entender a complexidade
dos adultos sempre acreditou que a vida simplesmente era daquele jeito e pronto. Nessa
mesma simplicidade acreditava que tudo que quisesse, fosse entre atalhos ou entre entulhos,
um dia conquistaria.
Ela (e o nome dela não importa) não ingressou no curso primário e por isso não cultivou
O Meteorologista
tantos amigos. Não sabia, portanto, o que era advérbio ou pronome pessoal. Não sabia calcular
ou derivar. Não se lembrava de também ter comemorado aniversário, comido cupcakes (o que
Havia nove anos que Tenório era, oficialmente, o meteorologista da rádio da cidade.
seriam cupcakes?), cortado bolo, apagado velinhas e feito desejos. Não ganhou presentes e
Oficialmente, porque ninguém mais dava importância para os sites especializados ou aplicativos
tampouco os entregou.
para smartphones. Ele também não era graduado nessa área, mas era quem melhor analisava
Ela (e o nome dela não importa) não foi batizada nem fez a primeira comunhão. Não
as probabilidades climáticas da região com exata precisão. Às vezes, a previsão dos institutos
entendia de milagres, mas entendia de compaixão e bondade. Um dia em um acidente
tecnológicos era uma, mas ele ousava contrariar as informações. E não é que ele acertava.
descobriu osso. Do acaso conheceu hospital. Descobriu que se achava rápida e que novamente
Era admirado, respeitado pelos moradores da cidade. Ele nunca errava a previsão do tempo.
se enganara. Que era apaixonada por comida de hospital. Que era ansiosa por liberdade. Que
Qualquer pessoa antes de viajar, ligava pra ele. Antes de comprar ingressos para shows em
odiava hospital. Que mudava de opinião muito rápido. Que o silêncio era a melhor resposta.
campo aberto, o consultava. As crianças, ás sextas-feiras, ansiosas em saber se o fim de semana
Ela (e o nome não importa) tinha fome de muitas outras coisas. Desconhecia Mac Donalds,
seria bom, não se programavam sem ouvi-lo antes. Os pequenos agricultores, também eram
Olimpíada e One Direction. De alguns como televisão, cinema e brinquedos tinha vontade. De
consultores assíduos.
Páscoa, Natal e sorvete sentia falta. De sucata, injeção e abrigo lhes sabiam, mas desviava os
Um dia, Tenório soube que Helena ia se casar. Ela, que era sua ex-namorada de longos
encontros. Se tudo isso lhe fez falta, só é possível supor.
anos, o havia deixado por causa de Lourenço, fotógrafo e historiador. Soube que as bodas de
Ela (e o nome dela não importa), na verdade, sofria menos de tosse e mais de distâncias.
Helena e Lourenço seriam no sábado, ao ar livre, uma linda recepção. Carruagem, violinos,
Tudo que lhe importava de verdade faltava: abraços, colo, família e outras tantas que só a
madrinhas de chapéus. O noivo, diziam, estaria de fraque. Os arranjos de flores e o espumante,
menção faziam cócegas nos ouvidos e davam certo aperto no peito. Nesses dias, o silêncio
importados. Ela estaria de branco, linda e radiante.
esbarrava mais e mais em seus pensamentos. A tristeza chegava sem pedir licença, se espalhava
Na véspera da cerimônia, Tenório anunciou na rádio que o fim de semana seria de muito
de mansinho e encharcavam a face que o tempo já embaçara.
sol, céu azul e brisa leve. “Nada mais perfeito para uma linda festa ao ar livre”, disse ele.
Ela (e o nome dela não importa) sofria também de esperanças. Muitas vezes permanecia
O sábado amanheceu chuvoso, com trovoadas e muito frio. A cerimônia de casamento de
parada, com os olhos no infinito, ou no nada. Com a mente passeava por propagandas, lojas
Helena foi um fracasso e Tenório perdeu o emprego na rádio.
e vitrines. As imagens a lhe roubar sorrisos e prometer desejos. Admirava-se, mesmo sabendo
que logo após o peito se pareceria tão espremido quanto as latas que recolhia.
Ela (e o nome dela não importa) um dia voltou para debaixo de seu abrigo. Sob o viaduto,
deitou-se em seu papelão e apagou-se como as luzes da cidade. Fechou os olhos num suspirou
à fome, distâncias e esperanças. Não houve lamentos. Apenas um incômodo silêncio a fazer eco
entre os vizinhos que se abrigavam sob o teto improvisado.
Nessa noite (e a data não importa) sobre o viaduto, algumas sirenes apitavam outras
emergências da vida.

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Região: Sorocaba | Cidade: Porto Feliz Região: Sorocaba | Cidade: Salto
Elineu Rosa Tomé Duarte Rodrigues

Crônicas
Conto
Inquérito

Que sabedor de seus direitos constitucionais, dentre os quais o de permanecer calado


e após anos de reflexão, decide revelar o que se segue; Que até o alcance de sua memória
Bicicleta
não se lembra de ter pedido para nascer; Que viveu uma infância tranquila, haja vista ter bem
pouca lembrança dela; Que sempre achara a vida simples, sem entender a dificuldade com
Era uma manhã mais do que clara, era luminosa e arejada. Quando se está confortável tanto
que os adultos a encaravam; Que ainda a respeito da vida, acreditava que tudo que quisesse,
por fora como por dentro. A luz da manhã entrando no coração e vice-versa. Era um começo de
iria conquistar; Que embora brigasse com seus irmãos, ao mesmo tempo os admirava e não
dia assim, uma manhã dessas que a gente sente saudades quando se recorda. Já todo arrumado
conseguia deles se distanciar; Que fez a primeira comunhão, foi coroinha e dizia ser católico,
para ir à escola, com minha lancheira municiada e pendurada ao ombro, uniforme escolar limpo
apostólico, romano; Que ingressou direto no curso primário, porque não existia prezinho; Que
e passado, cabelo repartido ao meio, sentado no degrau rente à calçada, eu esperava. Acontecia
cultiva até hoje as amizades da época; Que estudava o 4º ano de manhã, enquanto à tarde,
de ser raro um dia assim. Portanto eu fazia questão de aproveitá-lo. Impacientemente, porém
cursava admissão ao ginásio; Que ainda moleque e tímido, precisava trabalhar; Que aprovado
diligentemente, eu esperava a hora de ir para a escola na bicicleta do meu pai. Contando assim
no Senai, passou a ganhar pra estudar; Que se formou mecânico sem aptidão e detestava
parece banal, mas era único. Um dia com sabor e cheiro, textura e cor. Eram risos, gargalhadas
graxa; Que virou bancário; Que por ser menor de idade, foi emancipado; Que teve insônia após
e infância. Muita infância. Na cadeirinha da bicicleta entre meu pai e o guidão eu voava. Eu sei,
o primeiro dia de trabalho; Que comprometido com o serviço, fichas de débito e crédito eram
que não saia do chão, e chão de terra batida. Sei de tudo isso, mas eu voava. O mundo corria
frequentes em seus sonhos; Que de tanto presenciar o martírio do gerente, se demitiu após
abaixo de mim.
três anos e meio; Que esse banco faliu; Que administrou um frigorífico gerenciado pelo irmão;
Ali e naquele momento não havia lugar para medo. Não tinha medo nem do futuro. O que
Que respirou livros, jornais e revistas por muito tempo; Que desde o primeiro banco escolar
era o futuro perto daquele hoje pleno? Eu era capaz de desdenhar dele. Ali eu desconhecia o
teve seguidos amores; Que nem todos correspondidos; Que se lembra da primeira namorada,
conceito de medo e tempo. O que me interessava era o presente do passeio ganho e o presente
que por sinal continua belíssima; Que se lembra também dos olhos exageradamente verdes de
do tempo imediato. Era a desforra do agora, do relógio parado no momento de festa. Apesar
Mara; da morenice de Débora; da altivez de Gisele; de Sandra, Nivea, Andreia, Vera, Cassiana,
de ser pequenininho, tanto no tamanho quanto na noção das coisas, e talvez por isso ou apesar
Beatriz, Ligia; Que sempre se comunicou através das letras; Que criou galinha, cachorro e
disso, eu não pensava na vida. Uma das melhores partes era justamente essa, não pensar nela,
passarinho; Que hoje tem um ganso de estimação; Que se chama Julius; Que, desafinado, não
na vida.
conseguiu aprender violão; Que gostava de futebol, mas nunca pensou em ser jogador; Que
Pois então eu voava. Você entendeu? Tá certo que era numa bicicleta velha, num banquinho
não aprendeu a nadar; Que um dia se casou; Que o primeiro casamento acabou; Que voltou
frouxo, numa rua de terra esburacada e meu pai com pressa, meu pai cansado, meu pai
a morar onde havia nascido; Que é pai; Que já não tem mais pai; Que se lembra muito dele;
trabalhando no turno da noite, meu pai sem dinheiro... Desculpas. Eu não queria entrar nos
Que cada vez mais se considera a sua imagem e semelhança; Que já não mora mais na casa
detalhes. Pois que no tempo do ocorrido eles realmente não faziam a menor diferença. Então
onde nasceu; Que os fantasmas da memória vivem lhe atormentando; Que de um incidente
eu voei com meu pai. Com o abraço e a risada do pai. Nada poderia dar errado. Eu tinha fé
descobriu um girassol; Que do acaso conheceu a Lua; Que se achava triste; Que novamente se
em meu pai. Chegava à escola perguntando se no dia seguinte ele viria novamente. Eu queria
enganara; Que é apaixonado pela literatura; Que já foi afoito e ansioso; Que já perdeu a pressa;
aquilo de novo e de novo, nem ouvia direito o “- não sei, amanhã a gente vê...”. Era a felicidade.
Que virou adepto do acaso; E voltou a se calar.
Nada mais havendo, mandou que se encerrasse temporariamente o presente Inquérito
que, lido e achado conforme, assina o inquirido.

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Região: Vale do Ribeira | Cidade: Cajati
Jonas de Antino

Crônicas
Conto
Papo Cabeça: Geração Z

Sábado à noite!
Quatro adolescentes dividem a Coca-cola de dois litros na mesa da lanchonete.
Além da juventude, outra coisa os identifica: a luz de led proveniente dos aparelhos de
celulares que tem nas mãos ilumina os seus rostos ainda imberbes.
Olhos fixos na tela, dedos em posição de ataque e queixos inclinados, fazendo com que a
nuca se mantenha reta em relação à coluna vertebral, eles parecem robôs. Entre eles nenhuma
conversa se ouve. Apenas o barulho das teclas acionadas se misturam ao som do ambiente.
Conectados ao mundo virtual, tão próximos das pessoas com quem conversam à distância, os
amigos ao lado parecem estar distantes, a mais de mil milhas dali.
Na parede, uma TV presa a um suporte relata notícias do mundo real. Clientes e garçons
compõem o quadro da vida. “Kbo refri! Vamos vazar!”
Entretanto, um deles extrapola: em vez de um aparelho, ele tem dois. Um na mão esquerda Enquanto faziam uma vaquinha para pagar a conta, as duas mãos também se despediam:
e outro, obviamente, na direita. “Valew, mao direita! Foi um prazer conhecer vc!\o/”
No silêncio do quarteto, as duas mãos mantém um diálogo entre si, brutalmente “O prazer foi td meu, mano!\o/”
interrompido quando, esporadicamente, uma delas, a direita, precisa abandonar o teclado, ir Os quatro jovens se levantam, pagam a conta, guardam seus aparelhos nos bolsos traseiros
até a mesa, pegar o copo com refrigerante e levá-lo à boca de seu jovem dono. Em outras das calças e, silenciosamente, seguem para suas casas, que se localizam na mesma rua, do
oportunidades, a esquerda também se ausenta, momentaneamente, quando vai de encontro à mesmo bairro afastado, na parte nordeste da cidade.
testa e, num movimento com os dedos, tira os fios de cabelos que estão caindo sobre os olhos Na parede da lanchonete, entre cartazes de propaganda e de preços, um continha a
do menino. seguinte inscrição:
Assim, o papo rola entre as duas extremidades dos membros superiores do corpo humano. “Wi Fi”
Somente uma dúvida intriga; as mãos são extremidades do corpo que tocam o teclado ou são “Zona Livre”
componentes periféricos do teclado que estão plugadas no corpo humano? “Exclusiva para clientes”
Na íntegra, a conversa:
“Oi!” diz a mão esquerda.
“Oi!” responde a mão direita.
“E ae, td bem com vc?”
“Comigo, sim! E vc, como vai?”
“Vou bem!”
“De onde vc vem?”
“Eu sou da zona nordeste e vc?”
“Eu tbme, cara! Eu venho la da rua pessegueiro, 15!”
“Poh, eu tbem venho de la! Q coincidencia! Escute uma coisa, ja vi vc algumas vzs por aqi.
Quem eh vc?”
“Eu? Eu sou a mao direita do Johny!”
“Nossa, outra coincidencia! Eu sou a mao esquerda dele!”
“Poh, mano! Eh por isso q eu tinha a impressao de ja ter visto vc por aqi!”
“Pois eh, brother! A gente eh parente e eu nem sabia disso!”
E assim o papo rolava noite adentro até que um dos quatro jovens à mesa, depois de notar
a garrafa de refrigerante vazia, manda um msm aos amigos ao lado:

96 97
Região: Araçatuba | Cidade: Penápolis
Ju Costa

Conto
Cicatrizes nas Estrelas

Olho para o alto e vejo cicatrizes nas estrelas


Respiro fundo as cinzas dos meus pensamentos

Poesia
Quanto calor na Terra do Nunca
E nenhum preço a ser pago pelo resgate

Ouço tambores, guitarras e flautas


Acordes na dança do acasalamento dos sonhos
E eles riem, eu rio, é engraçado, é terrível
Quanta loucura, meu Deus, por tão pouca cura

E quando despeço os sete demônios


Vão-se casas com paredes descascadas
Vão-se corpos com peles sangradas
Vão-se vidas com almas desgraçadas

Bata na mesa aqui. Bem aqui. Acabou.


No Juízo dos séculos faço minha sentença
E escolho as duras penas de olhar e contar
Estrelas ao redor das minhas cicatrizes.

98 99
Ana Maria Galdino Região: Araçatuba | Cidade: Valparaiso Região: Araraquara | Cidade: Matão
Da Costa Doni

Poesia
Conto
Triste Sina (Cantiga de Amigo)

O ter do ser
é o que não se vê.

De que jeito
Feira a cor é sujeito,
já que adjetiva
burburinhos e gentes ao que substantiva?
trazem anzóis
pedaços inertes Ter não significa ser...
escamas de sol Ser não significa ter...

burburinhos e gentes A folha em branco


tumultos de asas aguarda sem guarda
espalham migalhas a matéria que a acolherá.
ciscos de céu
Será quem?
paira Eu?
sobre a manhã Você?
o milagre Alguém?
da multiplicação
dos sons Qual a sua cor, meu amor?
Qual a sua dor, minha flor?

Quem tem certeza


não sabe a grandeza de duvidar.

Será?

100 101
Região: Araraquara | Cidade: Matão Região: Baixada Santista | Cidade: Cubatão
Mendigo das Palavras Dylan Dolan

Poesia
Conto
Folha em Branco Human Death Vila Socó Guernica

O ter do ser Recordo o ar febril, o chão tremente...


é o que não se vê. Uma alma só não dá para o recorte,
Carece de outra alma se lembrando.
De que jeito
a cor é sujeito, Na Vila Socó,
já que adjetiva Tupiniquim Guernica
ao que substantiva? Entubada de petróleo,
Revejo o arrasto
Ter não significa ser... Do cheiro sobre as gentes,
Ser não significa ter... O perigo anunciado,
A venda da gasosa
A folha em branco Que vazava, sem cuidado,
aguarda sem guarda Gasosa Petros, a Grande Prosti
a matéria que a acolherá. Sangrava, himenóleo devastado.

Será quem? Uma só alma não basta pra rever,


Eu? Carece de outra alma em fortaleza...
Você? Revejo a agudeza
Folha em Branco
Alguém? De sonhos-salamandras
A avançar na vila sem casas,
Qual a sua cor, meu amor? Amontoando leitos na madruga,
Qual a sua dor, minha flor? Onde o poder deitou,
Se ausentando, avaro,
Quem tem certeza No início da queimada
não sabe a grandeza de duvidar. Em gozo.

Será? Minha alma, relembrando,


Perde o brilho,
Ouvindo tantos prantos
E o demônio os remexendo,
Moças, crianças, em roda enegrecida,
Em cinza o céu doendo, em uivo eivado.

Inábil sou demais para a lembrança


Do que tornou a vila em matadouro,
Intenso como em quadro de Picasso,
Onde Guernica, flor dos bascos,
É dor em tintas.

102 103
Em seu sofrer de carne

Poesia
Conto
Incinerada,
Em lagos-labaredas
Mal-formados,
Só à visão do inferno
Equiparada é a nossa vila.

Também lá em Guernica
Mal pressentindo mortíferas rajadas,
O povo sonhos escandia.
Nacionalistas xingavam rubros,
Embora estes quase brancos.

Quando vieram,
O chão uivou, dolorido,
Com mães sofridas entre acordes
De fúria franco-hitleriana.

E aqui a omissão Setecentos mil litros perdidos


Tornou nossa Socó em matadouro, De gasolina cara,
Em seu sofrer de vida incinerada. Noventa e três vidas mal-contadas,
Onde o Picasso nosso? No oficial baratas.
Nosso cavalo mutilado Falam de um anjo de extermínio
Seria um fusca em salamandras? Que ali mijava,
Um cão todo em bloco-carbono Após beber no Bar
Com uma bonequinha usada? Petros/Lucrack.
De pelúcia feitos ambos?

Uma grávida estátua


No Tempo-Espaço tatuada
Por mãos de insano artista.
A alma dos barracos
Chamuscada na tela
Da cidade agonizando.
Um homem a guardar as próprias filhas
Na geladeira desligada.
Mulher a atirar ao rio oleoso
Seus filhos para salvá-los todos
Do calor excessivo da fornada

Outros úteros pediam gelo


Para estancar as cinzas
Da alma esgotada.
Nos muros riscos de óleo :
Funéreas margaridas.

104 105
Região: Baixada Santista | Cidade: São Vicente Região: Bauru | Cidade: Bauru
Madeleine Alves Maricell

Poesia
Conto
PRAÇA DA SÉ

Um chicote que explode no ar


A mão que se estende e não encontra nada
Capoeira
Contínua luta de sobreviver
NÃO HÁ
Num mundo desigual.
Olhos vazios
O que quer este verbum?
Bocas famintas
Está a se esgueirar sinuoso
Olhar de medo
por entre os cantos dos meus olhos.
A olhar o medo no olhar
Está a dançar airoso,
dos que ali vagueiam.
de saia rodada de ser.
Bugigangas
Está com esse olhar belicoso
Fumaça
a tomar conta de.
Jogo
Trapaça
O que faz este verbum?
Trapos
Neste momento indelével
Farrapos
meu movimento sinuoso
Espalhados pela praça.
sinaliza não:
mais uma vez, eu o perdi...
Em frente, a Catedral.

O que pode este verbum?


Andar...
Por que não posso com ele?
A tomar-me as mãos,
E, passo - a - passo
o corpo, a existência.
A travar-me o canto,
Transpassar o portal.
a dança, a essência.

Por que não ser este verbum? ria


Tépido: a inundar-me da-
metro a metro, ca-
nesta angústia de pulsar, es-
pulsar, pulsar – a
bir
e não ter o que dizer
Su-

Silêncio...
O canto que se ouve em cada canto
É de paz...
É outro o tempo que se faz neste templo
A luz a adentrar pelos vitrais

106 107
Região: Bauru | Cidade: Borebi
Arsênio

Poesia
Conto
Confunde as horas
E o passado se faz presente...
Pinturas, esculturas, mármore rosa
Enormes pilares
Torres
Imenso silêncio...
Tudo conduz à reflexão
E fica-se a pensar Verônica
Na capacidade do Homem
Que constrói o belo Ela dança sobre minha sombra
Que transforma madeira, vidro, pedra e aço Sozinha cantarola uma triste melodia
Em poemas de amor e vida Rodopia nos próprios sonhos cristalinos.
Como operário
Sempre em construção... Quando nossas almas morrem, o corpo é a
E fica-se a pensar Única coisa que sobra
Na capacidade do homem Sonhos são destruídos com facilidade
Que da madeira, do vidro, da pedra e do aço Quanto mais puro, mais frágil.
Faz armas
Para a destruição... Volto à infância em busca de alegria,
A mesma luz que ilumina os “lá de fora” Apenas para rodopiar sobre a mera
Perpassa pelos vitrais Lembrança de sorrisos que jamais foram
E em difusa luz Dirigidos a ela,
Ilumina os que aqui estão... E sim para um futuro incerto.

onde tantos já pisaram Moldado


Vozes a clamar por justiça Perde-se em um turbilhão confuso de sentimentos
Mãos a pedir pão Sem saber o que sentir, apenas chora
Olhos a pedir amor Buscando sentido para continuar com sua guerra interna.
Escadas... Os olhos mais tristes do mundo, mais necessitados de algo
Que ela nem mesmo sabe o que é
Des-
cer Sente-se suja,
a Fraca, violentada psicologicamente.
es-
ca Girando rápido demais, incerto.
da Então, apenas chora, vendo a alma
ria
Morrendo aos poucos, o coração endurece,
Os lábios se fecham em um choro silencioso.
Elos interligando mundos que se entrelaçam
Em tão iguais
Não há mais nada o que fazer.
E (in) diferentes espaços
Ela desistiu...
Olho...
Nada faço
E igual a tantos outros
Apenas passo.

108 109
Região: Bauru | Cidade: Lençóis Paulista
Alvaro Antonio Valvassore

Poesia
Conto
Ouvir

Não interrompa.
- Ouça!

Quando você ouve é amizade


Quando você ouve é compaixão
Quando você ouve é gentileza
É acolhida do coração!

Quando você ouve é benefício É um ato de bondade


Quando você ouve é doação É superação e conquista!
Quando você ouve é caridade
Entusiasmo e motivação! Enfim surge o amparo
Você foi o instrumento
O silêncio é uma prece Restauração de vida
Para quem necessita falar A um coração em sofrimento!
Confessar e chorar
E a angústia eliminar Tudo isso, é reflexão!
É uma busca que faz
Desabafar provoca alívio Diferença a um irmão
A voz de quem sofre o viver. Sedento em sentir paz!
Ouvindo traz esperança
Por um fecundo amanhecer. - Ouça!

Quando estiver calado


E por fim não retrucar
Sinta-se abençoado
Na paciência atuar.
Evite suas lamurias
E impedir a conclusão
Alguém implora e pede
Sua simples atenção.

Se a palavra não provoca


O respeito te garante
De não ser o causador
Da discórdia e desamor

Ouvir é uma dádiva


Uma atitude altruísta

110 111
Região: Campinas | Cidade: Atibaia Região: Campinas | Cidade: Indaiatuba
Marco Aqueiva Marlene Naves Chiepet

Poesia
Conto
Palavrear

Recolho palavras
As livres, híbridas,
Perdidas em versos
O Nascimento Do Leitor Reversos
Até escondidas
No dorso esquivo da noite Mas desprezo as que viram mito
corpos se ocultam imóveis As tais destino, fado, finito
bulício à espera dos olhos São prisões para inquietudes
Desatino, mania, cativo
Nenhuma cabeça emerge Morte das amplitudes
abre-me as janelas do poema Prefiro palavras que sabem sorrir
pouco deslizante na página Caso de mamulengo
Livre, dança, dengo
Arrisco ouvir o chamado E claro: colorir
mal recolho esta e aquela Por outras, acumulo aversão
voz que me pede arespelhos Dor, mentira, egoísmo
Provocam abismo
Ventares por entre as nuvens Infestação
Quem dera, só fossem permitidas
Principia o interior do poema As leves, desmedidas
onde incoerências explodem Como amor, calor, sabor
mundo tatuado de evidência Escritas na pele, na saliva
Ao vento
Risco e arrisco-me no limite De em tempo em tempo
da noite que se abre pelo fim Quase à deriva
no eco expansilvo dos olhos Quando se tornam sementes
SemeAÇÃO
Para ver a Poesia nascer Adoro palavrear
É assim que me soletro, todos os dias
Antes de me inventar
Ontem plantei um pé de poesias
Chovia emoção

112 113
Região: Campinas | Cidade: Jundiai Região: Grande São Paulo | Cidade: Franco da Rocha
André Kondo Elves Ferreira

Poesia
Conto
A Casa que habito Hereditário (ou O herdeiro, o Desertor e a Poesia)

A casa que habito Sou de


não tem lembranças nos ladrilhos não tem porta presente Família
porão de passado Da qual os
janela pro futuro Homens
São e foram
Na casa que habito Fazedores de
as notícias não passam da soleira Casas em
com o irônico capacho de bem-vindo Sua maioria
- todos pisam na hospitalidade
e beijam a porta na cara -
Findei este
as ‘novidades’ amarelam do lado de fora
Ciclo sem
e são abandonadas em alheias varandas que o mundo insiste em enganar
Perceber
com tragédias velhas
Mas de certa
repetidas a exaustão
Forma agora
Na casa que habito Noto que
ouço o sussurro das tábuas Do meu jeito
o gemer dos pregos Construir
nada é concreto Também sei
tudo é devaneio
acredito em papais noéis Monto versos
só não tenho chaminés Rimo mágoas
Encaixo uma
Na sala há uma cadeira balanço Peça por vez
que só vai e nunca volta Num esquisito
No quarto, uma cama de casal solteira Quebra-palavras
com uma mancha de arrependimento no lençol Até nada mais
Na cozinha, o relógio está sempre faminto Sobrar se não
com os ponteiros devorando as madrugadas A felicidade
e regurgitando escuridões nas horas de luz
A torneira da pia do banheiro
As construções
goteja solidões
Que fiz
a banheira é colo
Até aqui
o corpo nu fetal
Em minha
eco dos azulejos embaçados e o choro primordial
Breve vida
de um parto sem útero
Podem não
A casa que habito Ser de aço
não está em rua alguma Madeira ou
encontra-se em um eu desconhecido na alameda dos ausentes, Alvenaria
sem número.

114 115
Região: Grande São Paulo | Cidade: Franco da Rocha
Danilo Pique

Poesia
Conto
Por hora
¬– Ou para sempre Acordeão
Isso basta
Acordei
Aquilo que sol
Crio me acordei
Constrói... sol
acordei
Eu faço sol
Poesia. e de tanto acordar
o acordeão já
acordava sozinho
e de tanto solar
o acordeão já
solava sozinho

116 117
Região: Maríla | Cidade: Indaiatuba Região: Maríla | Cidade: Bastos
Lia Macruz Luiz Lima

Poesia
Conto
Dores do Corpo

Dores do corpo,
Dores d’alma,
Feridas abertas,
Vozes que não se calam.

Receitas caras,
Remédios não curam
As dores do corpo,
Acordeão As dores d’alma.

Sou tataravó das minhas dores Banquetes d’amor madrugadas afora,


Sou seio da árvore, do peito e da dor Desejos de outrora – a qualquer hora,
Sou o pronome subjetivo Lembranças impregnadas na alma
Das línguas ainda nem inventadas Que o tempo não devora.

Sou a saia ocre da gaia Feridas abertas,


Sou o altar de bocetas e de cabelos Vozes que não se calam.
Sou o totem milenar A madrugada é testemunha
No ventre das avós Que a solidão apavora.

Sou o talismã guardado entre os seios Corpos e almas


Sou a sabedoria uma das outras Sob o mesmo teto.
Sou o segredo tácito Se o amor os une,
Velado pelas mães A incompatibilidade os separa.

Sou o hiato entre os universos Dores do corpo,


Sou o verbo ação e o substantivo afeto Dores d’alma,
Sou o ditongo decrescente Receitas caras,
Das palavras saudades e paixões. Vozes que não se calam.

Banquetes d’amor madrugadas afora,


Desejos de outrora – a qualquer hora,
Lembranças impregnadas na alma
Que o tempo não devora.

A razão diz que está na hora,


O coração finge não ouvir - ignora,
Prefere esperar,
Nega-se a ir embora.

118 119
Eduardo Região: Maríla | Cidade: Ourinhos Rubens Região: Presidente Prudente | Cidade: Presidente Prudente
Gonçalves Dias Shirassu Júnior

Poesia
Conto
Fenda de antes do verbo

O olhar corre
em busca da palavra fóssil
que antecede a mim,
anterior a palavra.
Ela vem antes da aurora
do encontro dos átomos
Dramalhões
e da origem do homem.
O olhar projeta
camaleões camuflados
em busca de desenhos
armaduras preda pedra
dentro da palavra
soldados pré-históricos
sejam sinais, chuvas, ciclones,
de acordo com a roupa
silêncios.
mudam a música
O olhar penetra
e a única retina
nos enigmas das partículas
é sua rotina
genéticas dos animais, minerais,
fotografias com diferentes filtros
a fauna e (a) flora no amálgama
ator rei da mímese
insensato da dispersão.
surpreendido entre ambientes
Nem mero rascunho
trocando de sentimentos:
de uma composição do Homem
cenas do próximo capítulo?
inacabado, alterado,
- a evolução é o primitivo!
confuso, por certo,
na forma de interpretar
de como chegam e como
falar das coisas, dos signos
do mundo e de mim.
Fora do destino comum,
busco a palavra aterrada
dentro do fóssil: o grafite
do arquétipo oculto na rocha.

120 121
Região: Presidente Prudente | Cidade: Rancharia Região: Ribeirão Preto | Cidade: Batatais
Mara Liz Cunha Isabel Raphael

Poesia
Conto
Vidro
Gamela
Lembro da cozinha
da mesa de vidro Ontem foi plantada
do vinho Depois foi regada
do vício Com chuva, sol, vento e frio
a parede da lavanderia Transformou-se em frondosa
quem diria... Cobriu muitos piões
das botas Amores e confusões
das roupas no chão É uma árvore frondosa
do queijo Delicada que me ajuda
do beijo Hoje transformado em pilão,
do amasso Em gamela
do cigarro de maço Fiz sabão
do estardalhaço Hoje ela está em minhas mãos
Nela amasso o pão
me deixou em pedaços Faço bolacha
do cansaço e do Escolho feijão
colchão Gamela do meu coração.

122 123
Região: Ribeirão Preto | Cidade: Orlândia
Carlucho

Poesia
Conto
Morte e Mocidade

“E longe avisto o porto nebuloso


E continua o voo do albatroz.
e sempre noite, chamado eternidade”
Castro Alves
Cada vez mais
Se distancia o porto
Do alto, olhando o mar
E a escuridão aumenta
Alça voo albatroz do adeus.
Enquanto a morte
Ganha os céus azuis
Cumpre seu papel.
Deixando em terra
A promessa de morte em vida.
Terá o nosso amor
A mesma sina do cisne
Adeus, minha Eugênia
Agonizante de Camille Saint-Saëns
Adeus ao amor que morre
Que luta mas morre lentamente ?
Nunca mais tua alva pele
Adeus ao que não foi.
E a morte, novamente, gargalha.

Choro por deixar


Que triste fim
A vida, o sereno
Que destino.
Toque das tuas mãos
Não te ter mais, Eugênia,
O viço do teu corpo.
É pranto e desatino.

E a morte dá gargalhadas...
Debate-se o cisne e a morte sente o triunfo.

Era cedo, minha Eugênia.


Adeus, pálida amante dos meus sonhos!
Muito cedo pra que
Adeus, vida! Adeus, glória! amor! Anelos
A morte levasse o nosso amor
Ceifando-me a vida.
É hora, querida.
Fomos vencidos.
Queria rolar na relva
Evaporo nos ares
Correr campos floridos
Levando Eugênia
Chutar as estrelas
Para sempre em mim.
E me deitar ao teu lado.
Adeus, parto para a eternidade...
Novamente a morte: cala-te.
Esse (Este?) amor deitará sob a fria campa.

Eugênia, querida,
O que resta para nós
Além do desterro
Da dor?

124 125
Região: São José do Rio Preto | Cidade: Fernandópolis Região: São José do Rio Preto | Cidade: Rubineia
Lorena Carla Rarhas

Poesia
Conto
Melodia

Ouvindo-a
entendo agora Alucinação
o avesso do avesso
das palavras Há um buraco
No céu.
Aumento-a Há uma estrela
e compreendo a demora Na parede...
do decifrar
o enigma das estradas Repentinamente:
como se fosse... O buraco é rio,
...despedida. A estrela uma flor,
Não há mais céu...
É que carecemos de um adeus
para lembrar Subitamente:
da medida A parede é fria,
da brusca A flor murcha,
suavidade O rio se desfaz...
de um beijo...
De repente:
Percebo-a Acaba-se o riso
nua E da boca torta
claramente O choro amiúda-se...
atônita
em poder Bruscamente:
dos vícios No rio brota a flor,
que dela E a estrela brilha
friamente No buraco do céu.
surgem
a nos preocupar. Há duas estrelas
Cadentes na face
E o som E um buraco
o toque No peito murcho...
os versos,
musicando
o ar.

126 127
Região: São José dos Campos | Cidade: Campos do Jordão Região: São José dos Campos | Cidade: Pindamonhangaba
Adriana Harger Alberto Santiago

Conto
A Larva

A larva lavra lenta e lânguida


Rasgando um sulco interno,
Habitando o interior do vício
Que santos definiram pecado.
E a larva pálida se pergunta:
“O que será que é o pecado
Nesta tarde de quase chuva No confronto com o prazer?”

Nesta tarde de quase chuva E dentro das áridas vísceras


Que secam, exaurindo a alma
quisera que tudo chovesse Da soberba solitária e altiva,
vertesse água A larva pálida e mole caminha
essa água a lavar os telhados Em meio a presunção cansativa
as paredes, os chãos do mundo Na secura do pecado suposto
Sentindo frio, sentindo-se fria.
quisera que a chuva da tarde
chuva tardia não tardasse Na luxúria, no prazer sensual,
a romper as encostas A larva molemente confortável
as barragens, as costas Mistura-se à semente da vida...
rompesse tudo Lhe é estranha a ideia da luxúria,
até que as colunas ficassem expostas Do prazer, do desejo que cresce
fundações, colunas sem pele Involuntariamente como a saliva,
e voltássemos às origens Ser considerada como um pecado.

célula-mãe, célula-tronco Na indolente inércia da preguiça


raízes da memória essencial A larva se espreguiça sonolenta
num paraíso perdido Rasteja na ociosidade sem vigor
mergulhado em águas uterinas Numa felicidade que a entorpece.
A preguiça tachada ruim não é má
Nesta tarde, quase chuva Nem é dolorosa como é o pecado,
É o momento de nem querer pecar.
Na névoa densa da caverna negra
A inveja devora cobra e destila fel
Ressentida pela felicidade alheia
Amesquinha-se e sente-se excluída
Deseja, estéril, o desejo dos outros
E, seca, amarga frustração de morte
Então a larva lânguida rasteja e sai.

128 129
Região: Sorocaba | Cidade: Botucatu
Ana Vieira Pereira

Poesia
Conto
A larva lenta lavra um sulco árido
E a avareza solitária não vê pecado
No excessivo amor pelo que possui
E o sentimento de posse indivisível
Então, cativo da paixão mesquinha,
Inventa prazeres no medo e solidão,
No pecado de possuir o amor tátil.

Tão mole e tão lenta quanto a larva


A gula, sem recato, melando gordura, Alma
Causa desprezo, causa repugnância.
Cheio de comida, obeso e suarento, Minha alma decide hoje caminhar ao meu lado.
O glutão indignifica a condição humana. Recolhe as asas por decoro.
E em meio a caldas, massas e óleos Prega os olhos por princípio.
A larva escorrega sua moleza e repulsa. Abrem-se gretas fendas brechas
e o ar se faz, a terra foge
Súbito o sangue fervente se incendeia o espaço esvai.
Irradiando força, envenena assustando
Como anjo irado com espada em chamas. Minha alma tem aprendido.
A ira viaja pela veia e explode na cabeça Pregado seus olhos.
É alimento do poder, elétrica e irracional. Recolhido suas asas.
Na ameaça, no calor sensual a larva lenta
Desliza, lasciva, na lava incandescente. As têmporas enrugam-se num susto, e me
interrogam por três vezes.
A larva mole lavra lenta e lânguida Eu
Rasgando um profundo sulco interno. nego.
A larva pálida e lasciva se pergunta:
“O que é pecado no confronto com o gozo?”
Então a larva lânguida se respondeu:
Os sete pecados capitais não são pecados,
São só uma espécie de loucura do prazer.

130 131
Região: Sorocaba | Cidade: Cerquilho Região: Vale do Ribeira | Cidade: Registro
J. Barthes Gabi Bertelli (in memoriam)

Poesia
Conto
Licença Poética

Quisera
um poema
nítido e cortante quanto a mais antiga
cimitarra Blackbirds
(elemento bizantino lavado em aço propício para se enfiar
entre as costelas). há poesias em outros céus que eu divido com os pássaros
há vento assonante de rima debaixo deste teto
Quem me dera tem tamanho certo pra esta camisa que eu visto
entre os alvoroços e confidências da mesma cor que a terceira cor desperta no canto mais direito deste olho esquerdo
de um sono breve
receber-lhe a visita: há um conto em cada canto deste canto
navalha a dividir-me há um chão pra cada parte que eu toco
em sangue, tem gosto certo do tom mais-que-vermelho
senda da matiz do branco mais transparente do seu teto
e sina. da escuridão mais clara do translúcido noturno

Uma generosa há a estrela mais alta do alto do fundo do meu poço


estrutura inquebrável há o brilho mais opaco da constelação ainda próxima
que me confirmasse o trajeto: e as gotas do chão que caem no céu ainda vasto
da polpa do nascimento e os lábios dos pés que beijam o chão de nuvens rosadas
às rugas desse obituário.
Me validasse o tempo há o caos mais silencioso de braços de vento
(essa invenção oportuna). e as mãos mais leves da pena mais pesada do pássaro mais revolto
há as janelas abertas para a parede de nós
Uma licença poética e as portas fechadas para a garoa de dentro
que de leve
talhasse sua rota em meu busto e há sim
num orifício vermelho metálico
e por instantes
me apresentasse
à eternidade.

132 133
Governo do Estado de São Paulo

Geraldo Alckmin
Governador do Estado de São Paulo

José Roberto Sadek


Secretário de Cultura do Estado

Lúcia Camargo
Secretária Adjunta
Abaçaí Cultura e Arte
Organização Social

Silvio Marcondes de Castro


Diretor Executivo

Toninho Macedo
Diretor Cultural

Luiz Carlos Vinha


Diretor Administrativo e Financeiro

Omar Fuad Abdelmalack


Superintendente Técnico Operacional

www.mapaculturalpaulista.org.br
Vívian Maria
Produtora Responsável - Mapa Cultural Paulista

Marco Valadares
Design de Comunicação

Produção: Realização:

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