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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

ALUNO: MARCELO MARTINS DA SILVA

TRABALHO FINAL DA DISCIPLINA


IDENTIDADE, REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E SIMBOLISMOS

DOCENTES: PROFª DRA. MARILDA MENEZES E PROFª DRA. ADRIANA CAPUANO


DE OLIVEIRA

São Bernardo do Campo


Agosto/2018
Específicos e diferenciados: a identidade racial negra no Brasil contemporâneo
Marcelo Martins da Silva

Resumo
Grupos negros específicos e diferenciados são conceitos formulados por Clóvis Moura (1988) para
definir, do ponto de vista da questão identitária, como os grupos negros se definem ou são
definidos. Os grupos diferenciados são aqueles em que as características que os definem enquanto
grupo – fronteiras, segundo Barth (2000) – são atribuídas de fora do grupo, muitas vezes
implicando em esteriótipos e preconceitos como forma de dominação de um determinado grupo
pelo outro. Já os grupos específicos são aqueles que se identificam como tal, ressignificando
aspectos negativos atribuídos de fora de modo a transformá-los em resistência e auto-afirmação.
Esse trabalho pretende problematizar a identidade racial negra no Brasil contemporâneo,
argumentando que os grupos negros específicos a utilizam como forma de resistência, tornando-a,
portanto, uma identidade política.

Introdução
Em agosto deste ano a reitoria da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas
Gerais, abriu um processo administrativo para investigar fraudes no sistema de cotas raciais da
instituição1. São 17 denúncias de estudantes que não preencheriam os critérios exigidos pela recém
criada comissão de sindicância que considera negros, e com direito as cotas, pessoas pretas e
pardas. Por se tratar de heteroatribuição, nesse caso específico, os críterios definidos são o fenótipo,
a ascendência direta (pai e mãe) e narrativas sobre vivências e discriminações quando se trata de
alunos pardos. A questão que fica é como definir quem é negro no Brasil considerando as
“...constatações dos estudos qualitativos que indicam uma gradação cromática nas adscrições
sociais, de forma crescente do escuro para o claro...” (COSTA, S. 2002, p.47). Ou, dito de outro
modo, como é possível abstrair dessa gradação cromática categorias identitárias fechadas como as
classificações utilizadas pelo IBGE: pretos, brancos, pardos, amarelos e indígenas; ou binômios
utilizados em estudos acadêmicos, artigos de jornal e etc., a saber, negros e brancos; brancos e não
brancos e etc., e qual a relevância dessas (se é que tem) para a compreensão das relações raciais e a
formação da identidade negra no Brasil?
Argumentamos que essa noção identitária, muitas vezes polarizada, tem sido fruto de uma
luta política de parte dos movimentos negros e são fundamentais para a formação de uma identidade

1ttps://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/2018/08/09/estudantes-da-ufjf-investigados-por-fraude-em-cotas-
comecam-a-depor-nesta-sexta.ghtml

1
de resistência. Reconhecendo-se como grupos específicos num contexto de diferenciação, é que os
grupos negros confrontam uma realidade que consideram estruturalmente opressora. A
complexidade da formação dessas identidades se estabelece, no Brasil contemporâneo, na medida
em que a identidade racial negra é, ou pode ser, ao mesmo tempo, auto e hetero atribuída.
Este texto pretende discutir brevemente, na primeira parte, conceitos teóricos sobre a
formação e manutenção das identidades étnico-raciais e algumas implicações políticas
(GONZÁLEZ, 1982; MONTERO, 1997; BARTH, 2000; COSTA, 2002; GUIMARÃES, 2002;
HALL, 2006; DOMINGUES, 2007); na segunda parte, os perigos da essencialização das
identidades com base na reificação das diferenças (PIERUCCI, 1999); na terceira parte,
discorreremos sobre a concepção de grupos específicos e diferenciados de Clóvis Moura (1988)
como passagem de um grupo identificado para aquele que se auto-identifica e se impõem
politicamente ; e, por fim, algumas considerações finais.

A formação das identidades


As identidades raciais2 são abstrações de uma gama de relações sociais concretas que
envolvem, por sua vez, uma série de experiências individuais cotejadas com dinâmicas estruturais.
Compreende, portanto, duas dimensões da experiência humana: a agência e a estrutura. A agência
humana, individual ou coletiva, sugere que os indivíduos, ou grupos de indivíduos, ao agirem,
confrontam e são confrontados por uma determinada estrutura social. Essa estrutura está posta e
produz efeitos independente das possíveis interpretações dos indivíduos, mas não está imune a ação
dos indivíduos, justamente por ser produzida por essas ações. Por sua vez, as ações são baseadas
nas interpretações que os indivíduos elaboram sobre a estrutura social, gerando uma insuprímivel –
e por vezes, contraditória – interdependência entre agência e a estrutura.
A questão é que em um contexto de globalização, num mundo em que a tecnologia rompeu a
barreira do tempo, do espaço e aproximou pessoas e povos, e em que ocorre, portanto, uma
“...intensa interação social” (MONTERO, 1997, p.59), essa estrutura social, muitas vezes,
universaliza e impõe padrões de comportamento, que no jogo relacional, próprio das reivindicações
identitárias, tende a deslocar o papel da agência (espontânea) para o da performance, em que a
normatividade de determinada sociedade circunscreve a ação dos sujeitos. Não se trata de
fatalidade, mas de uma perspectiva, que segundo Hall (2006) está em transformação.
A relação entre a agência e a estrutura e o “peso” da normatividade social na construção das
identidades – dentre elas as raciais, acrescentaríamos – dos sujeitos, são caracterizados pela
mudança, na qual, segundo Hall (Ibid., p.9), as velhas identidades ao declinarem, dão lugar e faz

2Quando falamos de “raça” é sempre numa perspectiva social, e nunca físico-biológica.

2
surgir novas identidades que descentram e fragmentam o indivíduo moderno. O autor expõe três
concepções de identidades que guarda relação com períodos históricos específicos: o sujeito do
iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno (Ibid., p.10).
No sujeito do iluminismo, a identidade pouco se desenvolve, tendendo à fixidez, à
centralização e à unificação (ibid., p.10-11). Essa concepção abstrata e individualista do indivíduo –
que, dotado de capacidade de razão, é remetido ao sujeito “mônada”, unificado e centrado a partir
de seu interior – é incompatível com o desenvolvimento da sociedade moderna na qual as interações
entre pessoas, povos e culturas requer, além de um diálogo contínuo, a problematização das
concepções de “verdade”.
O sujeito sociológico é o resultado do complexo processo de interação entre a agência e a
estrutura, ou o “eu” e a “sociedade”. A identidade faz a mediação entre o mundo público e o
privado; entre a subjetividade e a objetividade do mundo social, ainda que e o núcleo, o “eu”
essencial, permaneça. A identidade, nas palavras de Hall (ibid., p.12) costura, ou sutura, o sujeito à
estrutura. Nessa concepção, por um lado, a contestação às normas sociais, o conflito e o desvio são
considerados anômicos, e, por outro, as contradições inerentes ao processo da modernidade faz
com que essas dimensões (da contestação, do conflito e do desvio) sejam incorporadas à prática
social e também faz com que a ambivalência das expectativas dos papéis sociais fundada em
esteriótipos (e seus processos de contestação) influencie na formação das identidades, já que ao
mesmo tempo somos condicionados e influenciamos os valores e significados sociais.
O sujeito pós-moderno é descentrado, fragmentado; composto por várias identidades,
algumas vezes contraditórias ou não resolvidas, “A identidade plenamente unificada, completa,
segura e coerente é uma fantasia. (ibid., p.13). A complexificação dos sistemas de significação e
representações culturais da sociedade em que vivemos, criam novos grupos identitários e valores
completamente diferentes dos até enteão experimentados e, principalmente, que modificam-se
initerruptamente. Os valores não são soberanos, mas disputados, negociados mediante as relações
de poder e os multiplos processos de significação. Além das identidades se transformarem, cada vez
mais, em identidades políticas, também expressam as contradições e os conflitos sociais subjacentes
de forma mais aberta, capilarizando-os por áreas do tecido social antes menos permeáveis às
questões identitárias como a economia ou o direito.
Mas se as identidades, contraditórias e transitórias não nos permite pensá-las como
culturalmente unificadas, como se constitui a diferenciação entre os grupos sociais? Ou
problematizado de outro modo, como se define os critérios pelos quais os grupos se reconhecem em
oposição a outros? É no contexto relacional, na fricção entre os grupos sociais, segundo Barth
(2000).

3
O contexto relacional, nesse sentido, é constitutivo das identidades formadas nas relações
que se dão nas fronteiras, como argumentou Fredrick Barth (2000). Para esse autor, os “...grupos
étnicos são categorias atributivas e identificadoras empregada pelos próprios atores,
conseqüentemente, têm como característica organizar as interações entre as pessoas.” (ibid., p.27),
significa dizer que não existe uma identidade inata e natural aos grupos, essas são definidas nas
fronteiras de diferenciação em que as negociações simbólicas se efetuam politicamente, como
afirmou Montero (1997, p.63):
Com efeito, a etnicidade, esse modo particular de enunciar identidades, ganhou
cada vez mais visibilidade na cena política porque é capaz de combinar interesses e
pertencimentos: ao operar sobre um leque tangível de identificações comuns
facilmente reconhecíveis — comidas, língua, música, vestuário etc. —, produz uma
imagem verossímil e convincente da realidade do grupo, criando lealdades afetivas
e personalizadas. Vem dessas mesmas características sua enorme eficácia na
competição por direitos e espaço social.

Esse contato entre os grupos e as relações que se criam a partir de então, faz com que a
noção de diferença ganhe em importância para a auto-definição identitária pois o pertencimento
implica em julgamento, implica em julgar-se e ser julgado de acordo com os padrões que são
relevantes para tal identidade (BARTH, 2000, p. 32). E quando o outro não é o espelho de nós
mesmos ou do normativo socialmente dado, as dificuldades se multiplicam, já que o parâmetro
tende a ser o eu e a norma da minha sociedade.
No Brasil, esse contexto relacional implicou no recrudescimento de um discurso identitário
assentado no terreno político por parte dos grupos negros, já que a noção de mestiçagem positiva e
de democracia racial possuiam grande força na definição simbólica do brasileiro e, mais que isso,
pensando no contexto relacional,
...a assunção da identidade negra significou, para os negros, atribuir a ideia de raça
presente na população brasileira que se autodefine como branca a responsabilidade
pelas discriminações e pelas desigualdades que eles efetivamente sofrem. Ou seja,
correspondeu a uma acusação de racismo. (GUIMARÃES, 2002, p.51)

Foi, nesse contexto, assumir o processo de contestação, conflito e desvio constituinte do


sujeito sociológico, tanto contrastando o elogio da mestiçagem à peversidade do ideário de
enbranquecimento (expresso ainda hoje no que militantes negros costumam chamar de
“pigmentocracia” ou “colorismo”3); quanto ressignificando o que costumava ser tomado como um
“desvio”, a saber, a denúncia de um racismo estrutural na sociedade brasileira e a organização de
uma frente para confrontar esse racismo – inclusive do ponto de vista institucional, durante o
período de ditadura militar – em uma forma de organização e autoafirmação política, (ibid., p.51;
GONZÀLEZ, 1982, pp.60-61).

3http://blogueirasnegras.org/2015/01/27/colorismo-o-que-e-como-funciona/

4
O discurso político de que trata Guimarães é a “...adoção de uma classificação racial bipolar
(brancos e negros abolindo as categorias intermediárias de “pardo” ou “moreno”)...”
(GUIMARÃES, 2002, p.51). Esse discurso foi, no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, a
forma pela qual o movimento negro se confrontou com uma ideologia racista e alienante na qual a
identidade negra não se expressava dialeticamente. Pretendia, o movimento negro, instigar a
população negra a reconhecer sua positividade humana e potencialidade emancipatória, mas, ao
mesmo tempo, reconhecer as condições subumanas impostas por mecanismos históricos de
discriminação e preconceito a que estavam submetidos. A leitura dialética das relações raciais
brasileiras demandava perceber relações objetivas e subjetivas como produto de significados
experimentados e de uma estrutura histórica que se reproduzia. Não se tratava, portanto de superar
uma “falsa consciência”4, mas de um processo de reconhecimento do peso das representações
sociais na vida prática das pessoas.
Ainda que as manifestações culturais e identitárias negras no Brasil, muitas vezes existam
por uma lógica estética própria no interior de uma enorme pluralidade entre os grupos negros
(COSTA, 2002, p.52), a dimensão política da identidade racial negra foi aquela que propôs
combatividade ante às desigualdades sociecômicas.
O antirracismo como estratégia coletiva de luta nunca foi um fenômeno nacional ou
republicano, foi o despertar da militância negra em diferentes momentos históricos que movimentou
a luta antirracista e, curiosamente (ou dialeticamente), o antirracismo ganha força com a
racialização política da identidade negra em um contexto onde uma retórica, também em partes
antirracista, tenta silenciar sobre os mecanismos estruturais cotidianos do racismo. Nos anos 60,
com o golpe militar e a instalação de uma autocracia militar e racista no Brasil, os movimentos
negros foram desarticulados, enquanto externamente as lutas pelos direitos civis nos EUA – com,
dentre outros, importantes lideranças de esquerda – e movimentos de libertação de países africanos
colonizados, influenciaram o que viria a ser a reorganização do movimento negro no Brasil com
inspirações marxistas. Ao combate ao racismo somar-se-ia o combate ao capitalismo, assim a
articulação entre raça e classe ganharia novos contornos no debate político (DOMINGUES, 2007,
pp. 112-113).

4Problematizar a existência de uma ideologia racista e alienante não significa dizer que ao alcançar a população e ser
assumida por essa, se torna uma “falsa consciência”, pelo contrário, é uma consciência verdadeira, porém que não diz
respeito às condições materiais de vida de determinada parcela da população. Nesse sentido, o fato de a parcela da
população negra assumir a tese do embranquecimento como norte, é assumir como válidas perspectivas que tende a
prejudicá-la. Não se trata de eleger qual perspectiva é ou deixa de ser válida, mas de avaliar em seu desenvolvimento
histórico, qual perspectiva trouxe mais benefícios a determinada parcela da população.

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Diferença e universalidade
A política da afirmação da diferença passa a ser o norte a ser defendido pelo movimento
negro, como por outros movimentos identitários, que faz com que essa perspectiva política ganhe
força, e seja submetida a críticas que, corretamente a nosso ver ver, alertam para a necessidade de
cautela para não reificar o diferente sem a devida reflexão, principalmente considerando as
implicações políticas e intelectuais que a diferença suscita. Reconhecer a especificidade do outro,
do ponto de vista intelectual, ainda que necessário, não garante que a prática ou o exercício concreto
da alteridade se efetive. O reconhecimento do outro (culturalmente pensado) em abstrato, por vezes
esconde uma perversa finalidade de negação do princípio da igualdade, como observa Pierucci
(1999). Segundo o autor, a obsessão pela diferença, apesar de toda a apologética da esquerda, é
originalmente uma característica da direita política (PIERUCCI, 1999, p.19). A diferença em si não
é a questão, mas sim a forma política que esta assume. Nessa forma política, diferença e
desigualdade não são tão díspares quanto possa se supor, já que as diferenças supõem uma distinção
de valores e são, em grande parte, hierarquizadas “...mediante códigos de diferenciação que
implicam classificações, organizam avaliações, secretam hierarquizações, desencadeiam
subordinações.” (ibid., p. 33), essa seria uma das ciladas da diferença, a dificuldade de um
programa coerente por parte da esquerda política que ultrapasse o discurso e, ao mesmo tempo, não
caia nas armadilhas essencializadoras do discurso da diferença (e da desigualdade) próprio da
direita política, pois a aceitação discursiva do outro é relativamente fácil (estratégia própria do
racismo diferencialista), sendo complicado tornar esta aceitação concreta; torná-la próxima espacial,
afetuosa e juridicamente.
No entanto o princípio universalista defendido por Pierucci baseado na igualdade é, a nosso
ver, mais contraditório na prática do que o princípio da diferença, na medida em que o universal é
sempre um norte, uma aspiração, necessária, mas empiricamente uma potencialidade. Além do que,
o “homem” universal iluminista típico-ideal, da revolução francesa, era corporativista, ligado a
imagem do homem (masculino), branco, hetero e etc., ou seja, o modelo é de um universal-
particular.
Compreendemos as diferenças como contradições dos valores universais; longe de
dogmáticas, são sim contradições prática, pois “eu”, enquanto sujeito, possuo particularidades e as
expresso de uma forma universal, já que empiricamente o universal é sempre uma potencialidade,
um dever-ser, e a particularidade é o que é , mesmo que transitoriamente. Pierucci (1999, p.42)
reconhece o concreto empírico das diferenças, no entanto afirma que:
Nestas águas, porém, quem nada melhor são as forças conservadoras, confortáveis
em seu caldo de cultura onde basta tomar o partido do exclusivo “daquilo que é” -
o concreto empírico das diferenças macho/fêmea – contra “o que não é mas apenas

6
se diz que deveria ser” - o abstrato da pretensão da igualdade”.

O “partido do exclusivo”, da forma exposta, desvincula o universal do particular, isso é,


esses termos são pensados como em oposição e não como uma simbiose em que o particular e o
universal decorrem de processos insuprímiveis do todo social. As particularidades que fogem da
normatividade socialmente dada (negro, mulher, homossexual e etc.) podem e devem ser a
mediação entre as subjetividades empiricas – entedidas aqui como as diferenças que nos constitui,
nos transforma e nos identifica – e o universal.
No entanto, essa reflexão não invalida as proposições e questionamentos de Pierucci, pois a
reificação do sensível diferencialista pode perigosamente substituir o necessário exercício de
“alucinação” na direção de um universal igualitário. Se faz necessário, portanto, questionar: se o
homem universal possui particularidades empíricamente verificáveis, é possível pensar o universal a
partir destas particularidades mantendo o primeiro como mote sem pretensões anti-igualitaristas? É
possível pensar a diferença de modo que não seja como ponto de partida (tomada como essência) ou
como ponto de chegada (a diferença como norte)? Pierucci observa, com muita propriedade, que a
tarefa é bastante complexa e é preciso refletir sobre ela cuidadosa e criticamente (PIERUCCI, 1999,
p.32).

Específicos e diferenciados
Como podemos pensar as identidades raciais levando em conta a reflexão acima exposta, ou,
parafraseando Pierucci, como podemos abraçar a diferença (que nos identifica) sem abrir mão da
igualdade? (Ibid., p.32).
No caso da identidade racial negra no Brasil, a reflexão de Clóvis Moura nos parece bastante
profícua para superar esse aparente paradoxo prático problematizado por Pierucci. No texto
intitulado “O negro como grupo específico ou diferenciado em uma sociedade de capitalismo
dependente”, Moura (1988, pp.110-111) parte de uma reflexão derivada do conceito de classe social
para ploblematizar a especificidade da identidade do negro brasileiro. Para o autor, a classe social,
enquanto grupo, se reconhece como específica, isto é, com objetivos próprios e independente, no
contato (fricção e conflito) com outras classes. Nesse contato, como forma de manter-se e afirmar-
se, cria valores parciais que reiteram sua especificidade. Esses valores por vezes se expandem aos
grupos sociais em condições semelhantes (nesse caso os negros brasileiros) e formam uma rede que
parcialmente resiste ao sistema tradicional que os oprime.
Moura (Ibid., p.111) utiliza o exemplo dos africanos escravizados que organizaram-se para
manter determinados padrões tribais e culturais na tentativa de reafirmarem sua condição humana

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num sistema opressor. A identidade advinda dai é essencialmente de resistência, política, e sem esse
artifício
...os escravos teriam uma vida muito mais sofrida sob o cativeiro e o negro livre
não teria resistido na proporção que resistiu, ao chamado traumatismo da
escravidão, incorporado, por ele, ao seu comportamento após a Abolição (…) A
fim de preservar as suas crenças, conseguir momentos de lazer, de refuncionalizar
os seus valores, traços e padrões das culturas africanas, obter alforrias, dinheiro,
sepultura ou resistir aberta e radicalmente ao regime escravista, ele organizou
inúmeros grupos ou se incorporou a alguns já existentes. (Ibid, p.111)

A identidade parte do reconhecimento da diferença, não como algo dado, mas na auto-
afirmação de um grupo que diferenciado na dinâmica social, passa a sentir essa diferença e a
ressignifica e revaloriza. A noção de específico do negro brasileiro existe na medida em que ele é
diferenciado numa sociedade que historicamente se julga branca, e reproduz uma noção de
branqueamento5 progressivo e ilusório (Ibid., p.120). Não é, portanto, uma fuga ou reificação, mas
uma reelaboração simbólica poderosa de uma sociedade discriminadora como polo de resistência à
marginalização do negro brasileiro.
No entanto, Moura argumenta que a identidade racial não é fixa, pois na medida em que o
grupo específico se integra à sociedade global, pode haver uma “...regressão organizacional e
ideológica que os levaria novamente à condição de apenas grupos diferenciados.” (ibid., p.119). Por
outro lado, a integração do negro como grupo específico à sociedade global os leva a se
identificarem mais socialmente que culturalmente como tal, isto é, as matrizes e memórias africanas
não se diluem na medida em que reinvindicações socioeconômicas ganham força, mas transcendem
o aspecto meramente cultural que antes expressavam. O pressuposto culturalista, diferencialista, é
um recurso para a projeção do grupo negro na ordem universalista da igualdade social (direito,
economia, política e etc.); é a tentativa de tornar concreta a supracitada proposição de Pierucci
(1999, p.31): “abraçar a diferença sem abrir mão da igualdade”.
O laço de fraternidade pelo qual os grupos negros se apegam para “imaginar” uma
coletividade mais ou menos homogênea, mas reconhecidamente plural no seu interior, é a
resistência às condições de marginalização. Há, nesse sentido, uma “camaradagem horizontal”
(ANDERSON, 2008, p. 34) que cria um lastro comum nesses grupos, sem, no entanto, romper com
as dissensões e diversidade entre eles. A “comunidade imaginada” como conceituada por Benedict
Anderson (Ibid., p. 32) faz com que membros de uma determinada coletividade tenham viva a

5 “A tese do branqueamento baseava-se na presunção da superioridade branca, às vezes pelo uso dos eufemismos raças
“mais adiantadas” e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata. À suposição, juntavam-se mais
duas: Primeiro – a população negra diminuiria progressivamente em relação à branca. Segundo – a miscigenação
produzia “naturalmente” uma população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte e em parte porque as
pessoas procurassem parceiros mais claros ...”. (SKIDMORE, 2012, p. 81).

8
imagem da comunhão entre eles e, essa imagem, como afirmou Hall (2006, p.49), produz sentidos
na lógica de uma cultura nacional erigida sobre um sistema de representações. Trazendo para o
contexto brasileiro da formação e manutenção da identidade racial negra, argumentamos que essa (a
identidade) nunca foi espontânea ou essencial, foi constituída a partir de pressupostos já
racializados que podem ser pensados em duas perspectivas teóricas mais gerais:
a freyriana, que continua a constituir o imaginário hegemônico a partir da
perspectiva da miscigenação, e a fanoniana que apresenta as bases para pensamos a
nova política identitária baseada no dualismo branco/negro reclamada pelo
Movimento Negro. (LEWIS, 2014).

Ora, seja qual for a perspectiva que se adote, será concebida a partir de recursos
imaginativos com base em verificações empíricas, que no caso brasileiro atribui a constituição da
diferença racial a partir da projeção das adscrições negativas de um polo ao outro. Portanto, como
recurso operacional, as categorias identitárias raciais propostas e adotadas na política de identidades
em vigor no Brasil, bem como aquelas adotadas por uma boa parte dos pesquisadores e publicações
que tratam da questão racial brasileira, são estratégias que requerem uma abordagem dialógica,
reflexiva; que problematizem os problemas inerentes a qualquer concepção diferencialista e
busquem sua correção, mas que também considerem a necessária autoafirmação e reconhecimento
das mazelas sociais geradas historicamente, portanto, possíveis de serem superadas. Ainda que as
possibilidades de definir sua identidade “oficial” (isto é, perante ao Estado) pela população negra
seja circunscrita por categorias previamente definidas, foi a forma contemporânea de passar de
diferenciado a específico, foram, enfim, pensadas por uma parte desta população como estratégia
de:
“...reapropriar dos meios de definir sua identidade, segundo seus padrões e
não apenas em se reapropriar de uma identidade, em muitos casos,
concedida pelo grupo dominante. Trata-se da transformação de uma
heteroidentidade, que é frequentemente uma identidade negativa em uma
identidade positiva” (CUCHE, 1999, p.190).

Considerações finais
As identidades raciais no Brasil são fruto de formulações e negociações históricas, tendo por
base “fricções”, como afirma Clóvis Moura (1988, p.110). Neste processo, as identidades foram
construídas por uma dupla elaboração: por um lado o “outro” do negro imputou intelectualmente o
que seria sua natureza, como nas teses do racismo científico ou do branqueamento (em uma ou em
outra buscava-se justificar o elemento branco como o padrão civilizatório); por outro, os grupos
negros busca definir a partir de seus próprios padrões e estratégias o que seria sua identidade, e a

9
alteridade, ou a perspectiva do outro, passa a ser problematizada, ressignificada.
Esse processo denota a conscientização de uma politização crescente da construção das
identidades por parte dos grupos negros, já que esse sempre foi um processo político (HALL, 2006,
p.65); um jogo de poder em que as atribuições identitárias tendiam a manutenção de um status quo
discriminatório e estagnante. Da mesma forma, a fragmentação das identidades que transforma o
indivíduo num ser plural (que interage com os outros e com o mundo de múltiplas formas), carece
de uma profunda reflexão de parte desses mesmos grupos para que não reproduzam o mesmo
contexto que os oprimia, reificando uma bandeira diferencialista anti-igualitarista (PIERUCCI,
1999, p.101).
O desafio está dado: como pensar as identidades raciais necessárias para, na prática,
denunciar o racismo estrutural perceptível por meio dos indicadores das estatísticas oficiais 6 em que
as pessoas se autoidentificam ou são identificadas com base na sua “cor ou raça”? Ou para orientar
a operacionalidade de políticas públicas como a de cotas racias nas universidades (como no nosso
exemplo inicial) ou de políticas de saúde da população negra? Sem perder, no entanto, a perspectiva
igualitária e a necessária busca (ainda que sabidamente sem um ponto de chegada) pelo “abstrato-
universal” humano em que as oposições polarizadas negro/branco, negro/não negro e etc., percam
definitivamente qualquer sentido.

Bibliografia
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CUCHE, D. Cultura e identidade. In: CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais.
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GUIMARÃES, A. S. A. Classes, raças e democracia. São Paulo: FAUSP; editora 34, 2002.

6 https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/17eac9b7a875c68c1b2d1a98c80414c9.pdf;
http://www.ipea.gov.br/portal/images/170602_atlas_da_violencia_2017.pdf;
http://www.unfpa.org.br/novo/index.php/noticias/ultimas/1501-populacao-negra-tem-os-piores-indicadores-sociais-
alerta-unfpa-no-dia-pela-eliminacao-da-discriminacao-racial

10
HALL, S. A Identidade cultural na pós-modernidade. 11ª ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora,
2006.
LEWIS, L. Raça e uma nova forma de analisar o imaginário da nossa comunidade nação: da
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MONTERO, P. Globalização, identidade e diferença. Novos Estudos CEBRAP, nº 49, novembro,
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PIERUCCI, A. F. Ciladas da diferença. 3ª ed. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da FFLCH-USP/Editora 34, 2013.
SKIDMORE, T. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2012.

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