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"27 de Maio"
novembro 15, 2018
Fonte: JA
É autor de letras de
músicas, algumas com muito sucesso de público. Como é o seu processo de
participação nas músicas?
Eu faço letras em cima de músicas e as pessoas dizem que é difícil. Prefiro que me
dêem uma música para eu passar uma letra em cima. A pessoa dá-me a música e eu
passo a letra em cima. Ao criar o hino da UCCLA, fiz uma letra que tinha estrofes com
x sílabas e depois outra com menos sílabas e o músico meu amigo disse-me que não
gostava de trabalhar assim, com sílabas… Eu disse que não era problema nenhum, “dá-
me a música e eu ponho o mesmo conteúdo, as mesmas palavras dessa letra nas sílabas
que me trouxeres”… O “Pôr do sol”, do André Mingas… eu fui a casa dele e ele disse-
me “tenho aqui uma coisa para te mostrar, que fiz agora”… Tocou a primeira frase,
pedi-lhe papel e em dez minutos fizemos o “Pôr do sol”: “Tantas vezes o mar já viu…”
Mas essas qualidades não impediam o surgimento de outras vozes, com outros
pensamentos…
Sim. Mas é no tempo do Neto que se sai do marxismo-leninismo. Sem dizer nada. Em
Moçambique a Frelimo ainda fez uma pequena declaração antes.
Há quem diga com convicção que a morte de Neto em Moscovo terá resultado
dessa guinada que ele faz para o centro do espectro ideológico…
Ele começou a observar que os fenómenos, a prática, não era consoante aquilo que ele
teria pensado.
É verdade que fez parte da chamada comissão de lágrimas? Qual era o seu
objectivo?
A tal comissão esteve dois dias a trabalhar. O objectivo era ouvir se pertenciam, se
estiveram por dentro da organização (do golpe).
Depois de tudo isso o que é que devia ter sido feito, para reconciliar verdadeira e
profundamente as pessoas no seio do MPLA?
Devia-se ter feito uma comissão da verdade.
Ainda hoje faz sentido criar uma comissão da verdade sobre os acontecimentos
que se seguiram ao 27 de Maio de 1977?
Até agora faz sentido. Se não a história vai ficar cheia de mentiras. O Nito Alves vai
aparecer como um libertador que foi amputado, quando seria uma desgraça se ele
ganhasse. Isto seria um Kampucheia, um Cambodja. Houve essa confusão, o desprezo
pelas estruturas do Estado, que se vai agravando consoante a guerra que nós tínhamos,
na ilusão de que ela se resolveria com tiros, quando afinal dava jeito para alguns que
houvesse guerra. É nessa continuidade que não se inventa um esquema económico de
satisfazer as novas exigências e que se cortam verdadeiramente as comunicações
humanas, que ainda hoje estão por restabelecer (estamos a caminho disso). É só com
essas comunicações humanas que o feijão pode ir de um lado ao outro, que o peixe seco
pode ir para o interior, que os medicamentos podem chegar aos hospitais, sem serem
roubados, para as pessoas terem consciência de que estão ao serviço da sociedade e não
de meia dúzia de ladrões, em suma, para diminuir as desigualdades. Até à entrada deste
novo presidente o povo sabia que a economia estava ao serviço dos milionários. O povo
sabe tudo. As empregadas dos mwatas contam aos maridos, os maridos contam aos
amigos, estes contam nos candongueiros… O povo é que é a Internet. Internet sem fake
news.
O ponto prévio seria que todo o mundo que se oferecesse a prestar depoimento
teria o perdão?
Nós aqui vamos perdoar a quem? O ponto de partida seria a verdade.
É possível comparar esses dois homens: José Eduardo dos Santos e João
Lourenço?
Primeiro no perfil do pensamento, este homem [João Lourenço] estudou História,
compreende melhor uma filosofia política de acção, e é marido de uma cientista de
economia que já esteve no FMI… Quanto a Dos Santos fico por aqui porque não é
positivo falar de pugilistas tombados no ringue, com o desmoronar da sua família seria
mais um acto de crueldade. No entanto, sublinho que João Lourenço foi um opositor
mas com uma consciência dos passos que devia dar. São pessoas totalmente diferentes.
Um tolerou ou fomentou o nepotismo, a corrupção e a miséria do povo, o outro é contra
o nepotismo, contra a corrupção e diz-se empenhado em resolver os problemas do povo.
Isso é interessante. Na fenomenologia política isso é inédito e deve-nos honrar. Dentro
do seu próprio partido fazer mudanças que correspondem a uma revolução e as próprias
pessoas do partido aceitarem a ideia anti-corrupção, quando algumas delas são parte
activa nesse fenómeno da corrupção. Mas isso é saudável porque tem uma inspiração da
tradição africana. É bom chamar os mais velhos e traçar um plano de solução que
satisfaça os interesses da maioria. Claro que 99,9 % do povo está de acordo com o
Presidente. As pessoas que não têm poder, porque as que têm muito poder económico
nem todas estão de acordo com ele, há algumas que já não sabem quando é que
roubaram ou quanto é que não roubaram. Mas temo que a questão do regresso da
riqueza não vá a bom porto. Por mim era daqui para a frente.
Não haverá um risco de desestabilização por parte da franja que sendo minoritária
tem poder real?
Têm poder real e isso é que tem de ser controlado.
Como?
Lembras-te da figura do Tanu, que sem querer tinha poder económico no Quilombo?
Mas o Zumbi tinha o poder político. O Tanu é que tinha razão. Se Zumbi o tivesse
deixado fazer o que queria, ir pelas encostas atrás dos fazendeiros, a coisa teria sido
diferente. E além disso este Presidente é um homem que não cultiva a “estabilidade”, a
paralisação, como o outro. As coisas estavam todas em águas mornas. Inaugurar no fim
do seu governo obras que ainda não estavam acabadas! Fazer coisas que me parecem
inócuas; assim que começou o processo eleitoral o governo devia ser só de gestão
corrente e não fazer leis para depois de sair, criar imunidades para si próprio! Não é
possível comparar essas duas pessoas.