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Rui Monteiro fala do seu papel nos massacres do

"27 de Maio"
novembro 15, 2018

Luanda - Pertence à geração que proclamou a Independência Nacional e esteve no


centro dos acontecimentos da época, tanto na qualidade de ministro da Informação do
Governo de Transição como de alto responsável do MPLA. Escritor consagrado, autor
da letra do hino nacional, Manuel Rui tem opinião qualificada sobre a história recente e
o momento actual do país. "Dos Santos deveria voltar à sociedade civil, fazer
conferências em universidades, falar com o povo, ter um programa de televisão sobre as
suas memórias", afirma.

Fonte: JA

"Estávamos a ser usados como tribunal à margem da lei"

É autor de letras de
músicas, algumas com muito sucesso de público. Como é o seu processo de
participação nas músicas?
Eu faço letras em cima de músicas e as pessoas dizem que é difícil. Prefiro que me
dêem uma música para eu passar uma letra em cima. A pessoa dá-me a música e eu
passo a letra em cima. Ao criar o hino da UCCLA, fiz uma letra que tinha estrofes com
x sílabas e depois outra com menos sílabas e o músico meu amigo disse-me que não
gostava de trabalhar assim, com sílabas… Eu disse que não era problema nenhum, “dá-
me a música e eu ponho o mesmo conteúdo, as mesmas palavras dessa letra nas sílabas
que me trouxeres”… O “Pôr do sol”, do André Mingas… eu fui a casa dele e ele disse-
me “tenho aqui uma coisa para te mostrar, que fiz agora”… Tocou a primeira frase,
pedi-lhe papel e em dez minutos fizemos o “Pôr do sol”: “Tantas vezes o mar já viu…”

Na criação do Hino Nacional a letra também foi feita em cima da melodia?


Foi uma emergência. Dois dias antes da independência, ali em minha casa, no
Saneamento, o Rui Mingas com o violão tirou uma frase musical e eu pedi-lhe para
repetir enquanto escrevia… Foi assim que surgiu o Hino. Estavam pessoas a assistir, a
letra, o Hino surgiram ali mesmo.

O nosso Hino é considerado um dos mais bonitos do mundo…


Sim. Tenho uma enciclopédia de hinos e falam isso. Falam da letra, da sua
intemporalidade: “Unidos lutaremos pela paz, com as forças progressistas do mundo”…
Isso é intocável. Quando quiseram mudar o Hino, a Unita quis mudar, fui chamado ao
MPLA, com o Rui Mingas, pediram-me para tirar o “Poder popular”; o Rui Mingas não
quis. Tirei e fiz outra versão. Foi João Lourenço quem nos recebeu, na altura. A maka
era o “Poder Popular”. Mas o que é certo é que as Constituições dizem que a soberania
reside no povo. Isso também é poder popular. Há hinos que são bélicos, falam em
canhões e nunca mudaram para mísseis…

O Carlos Lamartine também participou na criação do hino?


Não. O Lamartine não estava. Mas um momento: depois do hino ser aprovado pelo
Comité Central [do MPLA] alargado, que incluía os que estavam no Governo e
representantes dos comités, era preciso arranjar jovens para constituirem o coro. Mas
primeiro fomos à Rádio Nacional para gravar; aí estava também o Lamartine. A Katila e
mais gente, inclusive eu também cantei nesse coro improvisado. O Lamartine ficou
incumbido de arranjar jovens para o coro. O ensaio foi feito mesmo no 1º de Maio. Será
por isso que o Lamartine diz que também é autor do Hino nacional? Mas isso não me
importa. Não me pagaram nada nem eu ia querer direitos naquele tempo. Nem tenho
uma pensão. Nem passaporte diplomático tenho.

Não lhe foi atribuída uma patente militar?


Por ser autor do Hino nacional não tenho nada. Tenho uma reforma que nem vou falar
na miséria…

Mas está reformado como? Funcionário público?


Não. Trabalhei em vários sítios. Numa empresa eu era consultor e tinha contrato,
portanto descontava para a segurança social; a Universidade (ISCED do Lubango, onde
cheguei a ser director) fez um papel de má fé, para eu não receber (tenho aí o papel). A
Endiama - eu é que inventei o nome Endiama, quando comandava o processo de
nacionalização da Diamang, que ocorreu pacificamente, com os accionistas a quem
prometemos que seriam parceiros no fornecimento de tecnologia e na compra dos
diamantes - fez um papel para a minha reforma, todo mal feito, sem o salário que eu
estaria a ganhar actualmente. Olha, o papel está aí atirado. Portanto, não tenho nenhum
benefício pelo Hino nacional, tirando as pessoas me alegrarem quando vou ao
supermercado: “Desculpe, não é o autor do Hino nacional?” Ou os estudantes virem
bater-me à porta, no fim das suas licenciaturas, para me entrevistarem sobre o Hino
nacional. Essas são as únicas vantagens que eu tenho. No mais, fechei o escritório de
advogados cansado da perversidade da Justiça.

O que é feito do seu projecto 11 Poemas em Novembro, que consistia em publicar


todos os anos, em Novembro, um poemário com onze poemas?
Precisava de ter uma pessoa que me arrumasse os poemas. Este ano já vou tarde, mas
para o ano vou retomar.

E a antologia dos 11 Poemas em Novembro?


Já saiu uma, dos primeiros cinco anos. Os 11 Poemas em Novembro saíram durante sete
anos, queria pelo menos chegar aos dez anos. A periodicidade dos 11 Poemas em
Novembro pressupõe pessoas empenhadas. Quem se empenhou nisso primeiro foi o
Costa Andrade “Ndunduma”, depois o David Mestre, que então trabalhava no Jornal de
Angola. As pessoas não ligam muito às coisas. Fico espantado quando fazem a festa das
Edições Novembro… Quem inventou a Revista Novembro? E o jornal? Há um
despacho, publicado e está no vosso arquivo: “Encarrega-me o camarada ministro da
Informação Dr. Manuel Rui Monteiro, de proceder ao seguinte despacho: a partir de
amanhã o jornal “A Província de Angola” passa a chamar-se “Jornal de Angola”.
Assinado: Fernando Oliveira. Depois reunimo-nos ali na descida onde era a “Revista
Novembro”. O (Mário de) Alcântara Monteiro, fixem este nome, foi o primeiro director
da “Revista Novembro”. As edições dessa revista para saírem eram uma chatice. A luta
pelo jornal “A Província de Angola” passou pela explosão de uma bomba já os
sindicalistas haviam tomado o jornal. Tem gente ainda viva aí no jornal que deveria
contar isso tudo. A televisão, abriu contra o Conselho de Ministros, o Alto-Comissário
tuga odiava a comunicação social. Fui falar com Agostinho Neto que deu luz verde e a
televisão entrou no ar… mas há quem viva por omissões da história...

Qual surge primeiro: a Revista Novembro ou a Edições Novembro?


A Revista Novembro. Depois era preciso ter uma estrutura à maneira socialista, um
kolkhoze, para tomar conta da revista, do jornal… Fizeram tudo para que só houvesse
um jornal. Fecharam o “Diário de Luanda” por causa do Nito Alves, enquanto que em
Moçambique mantiveram todos os jornais.

O espírito de participação, de engajamento político e cívico da sua geração é


comparável com o das gerações actualmente jovens?
Não é comparável porque nós tínhamos a certeza da vitória. Nós éramos Tanu, não
éramos Zumbi, personagens do meu último romance “Kalunga”. E além disso, mesmo
na Universidade, em Coimbra, eu tive a sorte de encontrar uma geração de ouro.
Grandes poetas portugueses, músicos da craveira de um Zeca Afonso ou Adriano
Correia de Oliveira…
E eram fundamentalmente de esquerda…
Absolutamente de esquerda. Marxistas, a maioria de nós. Marxista-Leninista nunca fui,
porque nunca acreditei no centralismo democrático e no governo dos operários e
camponeses, que nunca existiu, era tudo uma falácia. Quando começo a conhecer os
países socialistas um por um, eu disse: “não quero essa porcaria”. Congelaram o
pensamento de Marx. Deixou de haver liberdade. Havia uma aparente igualdade de
satisfação de bens materiais por toda a população, mas as elites tinham as suas lojas
próprias. E depois havia os campos de concentração, os delitos de opinião, as prisões…
Não sei se vocês souberam, mas parece que a revista do João Melo (África 21) publicou
sobre Cuba quando eu estive lá num festival do livro, estavam lá também a nossa
ministra da Cultura e outras pessoas do aparelho daqui… Eles fizeram uma edição do
meu livro “Quem me dera ser onda”, que lá chegou a ser considerado contra-
revolucionário, sem me pedirem autorização, não vi capa nem nada. A TV dava todos
os dias o Chaves de meia em meia hora, e o Fidel em fato de treino. Na conferência
perguntaram-me o que achava da TV (que felizmente não tinha publicidade). “Acho que
é melhor que as outras, pelo menos tem menos merda”, respondi. “Mas falta a voz
popular, vocês aqui em Cuba ainda não se libertaram das esquizofrenias recebidas do
Leste, como nós em Angola recebemos e foi com vocês mesmo que aprendemos a usar
os cartões para comer e beber, e o próprio povo é que destruiu isso, com a sua tendência
para as esferas antigas, a troca das coisas, a carne pelo peixe, o feijão pelo milho. Vocês
deviam acabar com as esquizofrenias que são do Leste. E o principal, acabar com os
delitos de opinião e pôr os presos políticos cá fora”. Aquilo gelou a sala. Houve pessoas
da delegação angolana que saíram. Quando cheguei ao hotel, disseram-me: “camarada
Manuel Rui, isso não se faz, eles são os anfitriões”. Eu disse: “mas eu sou irmão do
povo cubano, que verteu sangue lá em Angola, e eu com os meus irmãos tenho de ser
sincero. Há pessoas muito importantes, não são como eu, um Gabriel Garcia Marques,
que também já se chatearam com o Fidel e disseram que isso tinha de acabar, tinha de
mudar”. Hoje, neste momento em que estamos a falar, estou a rir-me porque a nova
Constituição cubana já fala em propriedade privada.

“Neto era um comandante poderoso, com carisma e alto astral”

O apoio dos países socialistas era incontornável?


Os países do Leste, isto temos que reconhecer, apoiavam os movimentos de libertação.
Mesmo na ONU batiam-se por nós contra Portugal com os americanos por trás. Só que
a determinada altura houve uma espécie de pacto. Houve um aproveitamento da guerra
fria. Vieram fazer a guerra fria aqui, experimentar armamento aqui. A segunda batalha
com o maior número de blindados, depois da II Guerra Mundial, foi aqui em Angola.
Foi uma tremenda estupidez nossa andarmos em guerra uns contra os outros, em vez de
conversarmos. Mas como não tínhamos conversado durante a guerrilha, tornava-se
impossível conversar com o Savimbi. E quer na UNITA, quer na FNLA, quer no
MPLA, os presidentes eram a simbologia do poder e não presidentes de partidos. E
estupidamente fomos aceitar aqueles acordos do Alvor, que não serviram para nada,
Portugal nem tinha experiência de democracia. A França quando dá a independência ao
Senegal já tinha a democracia e o Senghor já tinha sido ministro da Cultura em França.
Foi um erro tremendo, não sabermos conversar uns com os outros. Os colonos deixaram
uma economia forte, uma capital que os outros não tinham. Em cada província o colono
deixou um palácio, há países que não têm palácios de Presidente assim. Temos uma
rede de rios, água com fartura, temos riquezas minerais, temos tudo. Porquê que nos
fomos meter na guerra? Se não fosse a guerra não tínhamos esta gente toda que está cá.
As pessoas que enriqueceram com a guerra… Eu não imagino a potência que seria
Angola. Os sul-africanos diziam, quando conversavam connosco: “Vocês têm coisas
que nós não temos. Vocês ultrapassaram o problema racial, até mesmo os problemas
tribais vocês ultrapassaram”.

É a insolúvel questão do “se”. Infelizmente não é possível modificar o passado.


Sim. Ainda voltando à questão que colocou sobre o marxismo. O marxismo para mim é
uma forma de pensamento para reflectir uma socedade, mas não é uma forma tipo
Bíblia ou Corão, que possa incluir todas as soluções, quer espirituais quer materiais de
forma dogmática e estacionária. No socialismo não há mudanças e quando as há é para
importar o mais perverso do capitalismo.

Não faltaram alertas à sua geração, e mesmo à anterior, sobre o marxismo. Já se


tinham publicado livros sobre as purgas, os gulag, a inexistência de liberdade e
intelectuais de nomeada no Ocidente demarcaram-se do comunismo.
Sim. Aqui, quando algumas pessoas como eu agarraram nesses livros e os entregamos a
pessoas que mandavam, vieram ralhar comigo. Que era contra-revolucionário. Havia
pessoas com a cabeça quadrada e outras que utilizavam o marxismo para roubar. O
marxismo servia para tudo aqui. Sob o olhar silencioso de Lénine.

O problema de fundo é que nós não tivemos pensamento, no sentido de cientistas


políticos ou pensadores políticos, como o PAIGC teve o Amílcar Cabral, mesmo o
próprio Mondlane ou Samora Machel em Moçambique. É só juntar os discursos do
Samora Machel e ver como é que um enfermeiro é um grande pensador. No livro do
Óscar Monteiro, que eu fiz a contracapa, há uma parte em que os portugueses estão a
bombardear imenso, a matar muita gente, e o Samora faz uma reunião alargada com os
quadros todos, os intelectuais estavam todos lá, tinham poucos mas estavam lá todos, no
MPLA sempre houve chatice com os intelectuais e divisões (Revolta Activa, etc., etc.,
etc.). Os intelectuais ponderaram que era preciso mudar a estratégia, ver como é que se
deviam posicionar perante a forte resposta colonial; Samora disse: “O que está a faltar à
Frelimo é produzir pensamento, todos nós temos que produzir pensamento, produzindo
pensamento vamos vencer”. Isto define uma liderança. Agora, tem um aspecto que é
inevitável, a nata do pensamento em Angola estava no MPLA. A pouco e pouco essa
nata foi absorvida pelo pensamento dos guerrilheiros, dos maquisards.

Qual era o pensamento dos maquisards?


Era uma via muito estreita e empírica do marxismo-leninismo. Um pensamento
igualitário, idealista, impossível de alcançar em qualquer sociedade. Enquanto que os
outros já pensavam nos erros do campo socialista, já faziam uma reflexão crítica. É tudo
bonito dizer que a gente vai reunir para tomar decisões, mas todos nós estamos a pensar
que vamos votar na decisão que o chefe quer. Eu nas primeiras reuniões via as pessoas a
correr e de repente estava eu sentado do lado direito da cabeceira do Agostinho Neto e
era o primeiro a falar; se dissesse asneira estava lixado. Todos fugiam daquele lugar.

A figura de Agostinho Neto era completamente absorvente?


O Neto era o capitão do navio, um comandante poderoso, ele era cheio de energia.

A isso chama-se carisma…


Não era só carisma. Era alto astral.

Mas essas qualidades não impediam o surgimento de outras vozes, com outros
pensamentos…
Sim. Mas é no tempo do Neto que se sai do marxismo-leninismo. Sem dizer nada. Em
Moçambique a Frelimo ainda fez uma pequena declaração antes.

Há quem diga com convicção que a morte de Neto em Moscovo terá resultado
dessa guinada que ele faz para o centro do espectro ideológico…
Ele começou a observar que os fenómenos, a prática, não era consoante aquilo que ele
teria pensado.

Enquanto autor sente-se realizado?


Não totalmente. Podia ter escrito mais. Aqui em Angola não há uma actividade editorial
consequente. Não há livrarias, as pessoas não lêem. Os jornais publicam coisas que não
são literatura, transformam os amigos em escritores, as pessoas compram os livros
desses autores e depois não compram mais, desistem. Se for a um restaurante e a
comida não presta, deixo de ir a esse restaurante.

Para si dá para viver da escrita?


Não. Os direitos de autor que recebo, neste momento, vêem mais de fora. Sempre há um
disco. O ano passado correu bem, foram três livros. “Os meninos do Huambo” fazem
um bocado de dinheiro, por exemplo. Agora quero publicar os meus primeiros livros de
poesia, “A onda” e “Poesia sem notícia”. Tenho várias séries de crónicas. Já publiquei
duas em livro, “Maninha” e “As Novas da Maninha”. A primeira série de crónicas foi
publicada no Jornal de Angola, “O Kikas e o Kocas”, a falar na problemática da
alteração alfabética, da ortografia, já naquele tempo. Tenho umas três séries de crónicas
no Jornal de Angola, outra naquele jornal Semanário Angolense. Gostaria de publicar
em livro as séries de crónicas que estão no Jornal de Angola, com um texto introdutório
de uma pessoa que conheça a história do Jornal de Angola.

Como é que o Diário de Luanda desaparece?


Administrativamente. Estava lá o António Cardoso, que era um stalinista, a dirigir.
Aquilo era um coito do Nito Alves. À boa maneira do MPLA, em vez de tirarem o
Cardoso e o Nito Alves, fecharam o jornal. Para nunca mais abrir.

27 de Maio: “Até agora faz sentido criar uma comissão da verdade”

Naquela altura Estado e Partido misturavam-se, mas era o Partido a mandar no


Estado.
Já havia Estado, Constituição, Hino Nacional, Bandeira, mas para o MPLA era como se
isso não existisse. Assim, houve um conflito dentro do Movimento, fizeram uma
reunião, que devia ser um Conselho de Ministros, mas fizeram uma reunião do Comité
Central, onde expulsaram os chamados fraccionistas, democraticamente, quando o golpe
já vinha sendo preparado. Nas vésperas do 27 de Maio de 1977 o José Van-Dúnem
queria que eu me encontrasse com ele, queria falar comigo. Se eu me tivesse encontrado
com ele também tinha desaparecido.

É verdade que fez parte da chamada comissão de lágrimas? Qual era o seu
objectivo?
A tal comissão esteve dois dias a trabalhar. O objectivo era ouvir se pertenciam, se
estiveram por dentro da organização (do golpe).

Não tinha também a missão de determinar se as pessoas eram ou não culpadas?


Não. E tudo era gravado pela televisão. Não sei se já deitaram fora as gravações. A
gente não estava a fazer relatórios a dizer “mata este”, “mata aquele”. Era uma comissão
com lágrima no olho, nós estávamos comovidos com aquilo. O Diógenes [Boavida], o
[Ambrósio] Lukoki, eu… Estávamos a ser usados como tribunal à margem da lei. Havia
um Estado, fizeram uma reunião do Comité Central, expulsaram os homens quando há a
tentativa do golpe de Estado, aquilo devia passar para os tribunais, ou militares ou civis,
e não ser resolvido dentro da estrutura da guerrilha. Ao contrário do que muitos dizem,
que eu andei a torturar pessoas, começamos é a safar as pessoas. Mas o mundo faz-se
disso. Havia pessoas que se queriam promover em Portugal e o protagonismo era a
vitimização na imprensa.
Tudo foi feito segundo a estrutura da guerrilha e era gravado pela televisão, tudo era
instrumentalizado. Quando alguém fosse fuzilado dizia-se que foi para uma bolsa de
estudo em Cuba. Usava-se essa expressão.

Depois de tudo isso o que é que devia ter sido feito, para reconciliar verdadeira e
profundamente as pessoas no seio do MPLA?
Devia-se ter feito uma comissão da verdade.

Ainda hoje faz sentido criar uma comissão da verdade sobre os acontecimentos
que se seguiram ao 27 de Maio de 1977?
Até agora faz sentido. Se não a história vai ficar cheia de mentiras. O Nito Alves vai
aparecer como um libertador que foi amputado, quando seria uma desgraça se ele
ganhasse. Isto seria um Kampucheia, um Cambodja. Houve essa confusão, o desprezo
pelas estruturas do Estado, que se vai agravando consoante a guerra que nós tínhamos,
na ilusão de que ela se resolveria com tiros, quando afinal dava jeito para alguns que
houvesse guerra. É nessa continuidade que não se inventa um esquema económico de
satisfazer as novas exigências e que se cortam verdadeiramente as comunicações
humanas, que ainda hoje estão por restabelecer (estamos a caminho disso). É só com
essas comunicações humanas que o feijão pode ir de um lado ao outro, que o peixe seco
pode ir para o interior, que os medicamentos podem chegar aos hospitais, sem serem
roubados, para as pessoas terem consciência de que estão ao serviço da sociedade e não
de meia dúzia de ladrões, em suma, para diminuir as desigualdades. Até à entrada deste
novo presidente o povo sabia que a economia estava ao serviço dos milionários. O povo
sabe tudo. As empregadas dos mwatas contam aos maridos, os maridos contam aos
amigos, estes contam nos candongueiros… O povo é que é a Internet. Internet sem fake
news.

Voltando à ideia da criação, ainda hoje, da comissão da verdade sobre o 27 de


Maio. Qual seria o formato dessa comissão? Ao jeito da que foi criada na África do
Sul?
Já falei sobre isso numa entrevista que dei há anos ao Folha 8. A África do Sul fez isso
com coisas muito mais graves do que as nossas.

O ponto prévio seria que todo o mundo que se oferecesse a prestar depoimento
teria o perdão?
Nós aqui vamos perdoar a quem? O ponto de partida seria a verdade.

Esse processo deveria ser dinamizado sobretudo pelo MPLA?


Sim. E não seria assim tão difícil.
Qual seria a saída para toda essa crise económica e social, com fortes raízes éticas e
morais, em que nos encontramos?
A saída seria um socialismo democrático. Não impedir o crescimento da riqueza. As
pessoas que têm propriedade privada que a desenvolvam. Essa economia está
dependente disso. Está provado que o Estado não pode ser produtor. Mas reservar áreas
da economia para o Estado. Áreas que são propriedade do povo. A água é propriedade
do povo. Antes de haver MPLA, antes de haver independência, e se este é o continente-
berço, antes de se inventar Deus (Deus foi inventado no continente-berço), a água era do
povo. Num dos meus contos eu falo nisso. Há áreas que no meu entender não podem ser
privatizadas. A água, a energia eléctrica, a indústria diamantífera, os petróleos…
Portanto, as infraestruturas de base. Nós só devíamos poder pagar o custo da água
acrescido de um milésimo, porque a água custa para chegar às nossas casas. A energia
eléctrica também. Mas podemos fazer tabelas diferentes. Lá onde o dinheiro vale mais,
por exemplo no Huambo, o preço tem de ser diferente. As cooperativas agrícolas. Os
silos. A população produziu, entrega o seu milho, o seu feijão, parte é guardado, parte é
comprado e tem as lojas para comprar panos, tem as farmácias… Portanto, há uma
economia privada de cariz eminentemente capitalista que visa o lucro mas é controlada,
há zonas comerciais com os preços controlados e tratamento fiscal especial, por
exemplo os medicamentos não pagam impostos, para serem baratos. O ensino gratuito
com livros de graça até um determinado nível e a entrada nas universidades por critérios
de meritocracia. Na Universidade já há uma ligação com as empresas e estruturas do
Estado. Evita-se a concorrência desleal. Eu sou ministro, agarro no telefone e digo:
“Olha, arranja-me um lugar no Ministério das Finanças, o meu filho formou-se em
economia”. No tempo antigo só faltaria acrescentar: “Eh pá, o gajo também quer roubar
um bocado”. (Risos).

O que pensa de todo esse processo de discussão sobre a implementação das


autarquias?
O tempo que se quer dar para fazer autarquias, 10 anos, é muito tempo. Actualmente o
poder local nas províncias são pequenos feudos. O governador manda mais do que toda
a gente e até pode mandar matar uma pessoa indirectamente.

E a sua opinião sobre a legislação de repatriamento dos activos obtidos


ilicitamente? Todo o mundo devia ir para a cadeia?
Acho que ninguém devia ir para a cadeia. A solução do Presidente actual é sábia,
resolver os problemas na justiça sem fazer a divisão física entre os cidadãos. Há
famílias poderosas que vão ficar incomodadas. Os milionários têm o seu séquito. Cada
milionário tem a volta de si umas três mil pessoas. É preciso evitar que a sociedade se
deflagre por causa dos actos ilícitos mas que foram consentidos por quem mandava. As
pessoas não foram com uma espingarda ou uma bomba roubar a caixa forte de um
banco. Tiraram com a consciência de que era ilícito. E isso de tirar em cima vinha até cá
abaixo, onde só se podia pedir uma gasosa. Penso que esse dinheiro tem de voltar para
cá mas para ser aplicado em infraestruturas, hospitais, escolas. Se o dinheiro vem e fica
nas mãos deles lançam no mercado e vamos todos comprar os dólares. Ou o dinheiro
vem e depois dizem-lhes: “você vai fazer uma fábrica de chouriço?” Isso é absurdo.
Aliás é absurdo devolver o roubado ao ladrão. Veja o caso Lava Jacto no Brasil. E é
preciso fazer a prova e dar o contraditório para não ser inquisitorial. Não me incomoda
muito o que foi roubado, mas o que vamos produzir. Agora estamos todos à procura de
ladrões. Eu não estou a pensar num Estado-Polícia. Já perdemos o medo de falar. Nos
jornais isso vê-se, até no vosso. Agora não vamos inventar outros medos. Um sistema
fossilizado é como um balão. Tem de ser esvaziado cuidadosamente para não rebentar.
Veja, os garotos compram nos armazéns dos estrangeiros que arranjaram licenças pela
mão de agentes do Estado, para venderem na rua, as quitandeiras compram legumes e
frutas nos camiões, os medicamentos andam nos mercados. Basta cortar um elemento
do sistema, por exemplo, os armazéns, para os miúdos não terem nada para vender e se
parar as quitandeiras deixamos de ter a comida à porta (forma subtil de obrigar as
pessoas a irem aos grandes espaços propriedade dos donos disto tudo)…

O facto de já haver pessoas detidas faz-lhe pensar em quê?


É impensável, nem em ficção, no romance, eu escreveria que um Fundo Soberano, que é
equivalente à Reserva Federal dos EUA, seja entregue a meia dúzia de jovens para gerir.
Fazer isto é um crime. Ainda por cima a um filho. Você é presidente de uma República
e não vai entregar o Fundo Soberano a um filho. Entregar a gestão da maior indústria
que sustenta esta economia, que é o petróleo, a uma filha; a comunicação social a outro
filho. Isto tem nome. O outro comprou um relógio a 500 mil dólares. É igual ao Obiang.
Aquele relógio do Obiang, filho do nosso ilustre parceiro na CPLP. Mas eu peço
desculpa a Dos Santos porque está fragilizado. Ele deveria ser o primeiro a vir a público
falar dos erros, porque se se vai melhorar o que está bem é porque no seu consulado
também se fizeram coisas boas. Dos Santos deveria voltar à sociedade civil, fazer
conferências em universidades, falar com o povo, ter um programa de televisão sobre as
suas memórias.

João Lourenço versus Dos Santos

É possível comparar esses dois homens: José Eduardo dos Santos e João
Lourenço?
Primeiro no perfil do pensamento, este homem [João Lourenço] estudou História,
compreende melhor uma filosofia política de acção, e é marido de uma cientista de
economia que já esteve no FMI… Quanto a Dos Santos fico por aqui porque não é
positivo falar de pugilistas tombados no ringue, com o desmoronar da sua família seria
mais um acto de crueldade. No entanto, sublinho que João Lourenço foi um opositor
mas com uma consciência dos passos que devia dar. São pessoas totalmente diferentes.
Um tolerou ou fomentou o nepotismo, a corrupção e a miséria do povo, o outro é contra
o nepotismo, contra a corrupção e diz-se empenhado em resolver os problemas do povo.
Isso é interessante. Na fenomenologia política isso é inédito e deve-nos honrar. Dentro
do seu próprio partido fazer mudanças que correspondem a uma revolução e as próprias
pessoas do partido aceitarem a ideia anti-corrupção, quando algumas delas são parte
activa nesse fenómeno da corrupção. Mas isso é saudável porque tem uma inspiração da
tradição africana. É bom chamar os mais velhos e traçar um plano de solução que
satisfaça os interesses da maioria. Claro que 99,9 % do povo está de acordo com o
Presidente. As pessoas que não têm poder, porque as que têm muito poder económico
nem todas estão de acordo com ele, há algumas que já não sabem quando é que
roubaram ou quanto é que não roubaram. Mas temo que a questão do regresso da
riqueza não vá a bom porto. Por mim era daqui para a frente.

Não haverá um risco de desestabilização por parte da franja que sendo minoritária
tem poder real?
Têm poder real e isso é que tem de ser controlado.

Como?
Lembras-te da figura do Tanu, que sem querer tinha poder económico no Quilombo?
Mas o Zumbi tinha o poder político. O Tanu é que tinha razão. Se Zumbi o tivesse
deixado fazer o que queria, ir pelas encostas atrás dos fazendeiros, a coisa teria sido
diferente. E além disso este Presidente é um homem que não cultiva a “estabilidade”, a
paralisação, como o outro. As coisas estavam todas em águas mornas. Inaugurar no fim
do seu governo obras que ainda não estavam acabadas! Fazer coisas que me parecem
inócuas; assim que começou o processo eleitoral o governo devia ser só de gestão
corrente e não fazer leis para depois de sair, criar imunidades para si próprio! Não é
possível comparar essas duas pessoas.

Como é que vê o futuro deste povo, deste país?


Com optimismo. Por tudo aquilo que a gente já passou, aqui em África não há um país
com a estabilidade como a nossa. Posso ir de noite daqui até ao Namibe, daqui até ao
Huambo, desde que a estrada me deixe. Já fui de noite daqui até ao Uíge. No Quénia
não é possível. Eles têm pequenas aldeias com bares e prostitutas, os camiões ficam ali
parados até de manhã, não se viaja à noite. Na Namíbia também já está a ficar assim, na
África do Sul está assim há muito tempo. As pessoas querem vir para cá.

Está a advogar a ideia de que os angolanos são especiais?


Não somos especiais. Tivemos uma história diferente. Uma colonização de 500 anos
que nos pôs a falar a língua do invasor tal como ele fala ou melhor. As lutas dos reinos
contra os colonos. As primeiras revoltas nas minas sul-africanas foram comandadas por
um angolano, kwanhama. No Sul os portugueses levaram muita tareia, os kwanhamas
nunca pagaram imposto, até ao fim do colonialismo. É todo esse tipo de trama, das
lutas, da revolta da Baixa de Cassanje, do 4 de Fevereiro, é o Savimbi que tem a
coragem e a filosofia maoísta de se encontrar com os portugueses para negociar, a
avalanche toda da poesia de Neto, do Viriato da Cruz, etc., etc., em paralelo com os
grandes poetas da Negritude que estava a acontecer em França, é a origem do MPLA,
por exemplo, em que os estudantes fogem de Portugal para depois descerem para o
Marrocos para fazer treino militar e ir para a guerra… Tudo isso é diferente de receber a
independência através de um papel. Fazendo a soma disso tudo, aí está a nossa
endurance, que faz de nós a única ex-colónia que vai bater o pé ao ex-colonizador.
Chegar lá e dizer, “o meu processo não fica aqui, vai para Luanda”. Tudo isso aponta
para a singularidade deste país, mas também para a singularidade do Magreb, da África
do Sul, etc., etc. Outro fenómeno é a liberdade religiosa. Não troco este país por outro.

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