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Tinha onze anos quando fui para o internato em Porto Alegre. Tomava o ônibus no domingo à
noite e retornava a Montenegro nos finais de semana. Quando me despedia de meu pai, nos
primeiros meses, dava adeus sem olhar para trás. Para que não visse meus olhos marejados,
primeiro, nem as lágrimas saltassem, depois. Por inúteis. E humilhantes, pelo menos para um
menino na calçada da antiga rodoviária. Entrava no ônibus e mergulhava na escola forçosa da
autosuficiência.
Em Porto Alegre tomava um táxi, que me levava até o Colégio Militar, sob cujas arcadas vivi
durante sete anos, até ingressar na universidade. O internato era, pelo menos naquela época,
sinônimo de melancolia. Poucas e amareladas luzes pendiam do teto. O imenso alojamento era
dividido tão somente pelos armários, que ficavam a meia altura do pé-direito. Ainda que os
alojamentos fossem separados por faixas etárias, os internos eram muito heterogêneos. Havia
os dedicados, os asseados, tanto quanto os nem-aí-prá-nada e os porcalhões. Educados e
laboriosos, canalhas e estúpidos, remediados e pobres, os que moravam perto e viam seus
familiares a cada semana e os que moravam muito longe e só voltavam para suas casas nas
férias. Até hoje penso que era um zoológico e reúno no peito histórias muitas, que só mesmo
vários textos haverão de digerir. Dias e noites que a adolescência consumiu com voracidade,
sempre de mãos dadas com a lentidão das horas menos risonhas.
No internato tínhamos também o direito de sair nas quartas-feiras à tardes, o que por muito
tempo significou passá-las na casa de tios que moravam em Porto Alegre, num belo edifício na
Salgado Filho. Tomava um bonde na João Pessoa e descia perto da Santa Casa. Tardes
balsâmicas, em atmosfera fraterna e de cultura. Tio Clóvis gostava muito de ler, e de ouvir
música clássica, sobretudo ópera. Pianista na juventude, tinha a alma sensível, refinada. Foi
com ele que assisti pela primeira vez um espetáculo teatral, no Araújo Viana. Sua companhia
era sempre uma oportunidade de evolução intelectual e de aprendizado de um modo de ser
elegante, sem afetação, que meus limites de então impediram de aproveitar ainda mais. Dias
atrás andei pela redondeza, percorrendo alguns sebos, estas alcovas que alegram o espírito e
prometem horas livrescas de puro deleite. Lembrei-me do zelador do prédio, Seu Fidelcino, e do
porteiro que melhor conheci, Seu Gabriel, cujo hábito de fumar palheiros dissentia fortemente
da elegância do conjunto residencial. Era uma herança da tradição que à época contava com a
complacência de um povo que se matizou enrolando seu cigarro.
Por anos compareci semanalmente ao lar de Clóvis e Isolete, um porto seguro para quem se
sentia solitário num ambiente que pela heterogeneidade e rigidez parecia sempre hostil. Ao
mostrar para minha esposa uma vez mais onde moravam, dei-me conta de que nunca esqueci
o número de telefone de sua residência, na época dos seis dígitos. É estranho mas ainda que
os tenha visitado no hospital em que encerravam a vida, semanas antes que partissem, é como
se não houvessem desaparecido. Como se a qualquer momento pudesse ligar e ouvir a voz
querida da tia dizendo que me aguardariam para o almoço. Saudosos tempos.