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ÍNDICE
06 de Março de 2019 - ano XIX - n° 1044

Cartas Capitais
Quatro cabeças, nenhum governo
Frases
Do caderninho de Stanislaw

Editorial
Outros carnavais
A Semana
A Semana

Reportagem de capa
De volta à Guerra Fria
Reportagem de capa
Guerra econômica

Seu País Infância


A solução é prendê-lo?
Seu País Artigo
O direito de matar

Seu País Radiografia


O Brasil de Bolsonaro
Seu país Folia
"Bolsonaro é o anticarnaval"

Seu país Cultura


Zumbi não era Zumbi
Economia Reforma
A Previdência e o Velho Capitalismo

Economia Entrevista
Migalhas aos idosos
Nosso Mundo The Observer
A contrarrevolução

Plural Cinema
Um infiltrado em Hollywood
Bravo!
Bravo!

QI Aquecimento global
Esta foto não conta tudo
QI Ciência
Os gases da morte

Afonsinho
Soy loco por tí, América
QI Estilo
Arte degenerada

Vara
Por Severo
QUATRO CABEÇAS, NENHUM GOVERNO

Parabéns a Fred Melo Paiva pela excelente reportagem sobre a


atuação da família Bolsonaro. Com muito humor, descreve como cada
um dos recrutas/pit bulls age nesse hospício em que se transformou o
Brasil.
Carlos Cerqueira
Salvador, BA
(Enviado via carta)

Quanto mais suco de laranja, mais fortes eles ficam. Quero ver
quando a laranja apodrecer.
Ivanilda Nunes Luz
(Enviado via Facebook)

Realmente, a vida imita a mitologia. O Cérbero carioca está


guardando o inferno que, no caso, é o Brasil atual.
Mazinho Moraes
(Enviado via Facebook)

Nostradamus fala sobre três irmãos que vão causar o caos.


Pedro Ferraz
(Enviado via Facebook)

O JANTAR DOS RICOS


Excelente crônica. Degusto cada uma de suas palavras, Mino.
Ana Lobo
(Enviado via Facebook)

Mino Carta escreve um artigo de dar água na boca com sua


descrição gastronômica, de excelente bom gosto e paladar. Os
quatrocentões paulistanos e seus descendentes são aqueles que
digerem, digo, degustam, sardinhas e arrotam caviar. Não valorizam o
país em que vivem nem os seus semelhantes, muito menos a si
mesmos. São, no fundo, boçais infelizes.
Paulo Cordeiro
Curitiba, PR
(Enviado via carta)

PRISÃO PERPÉTUA PARA LULA?

Entre erros e acertos, ele ainda foi o melhor. Quero ver se o atual
presidente fará 1% do que Lula fez.
Adriana Márcia Gonçalves
(Enviado via Facebook)

Ao ler esta coluna, recordei-me da frase de Galileu Galilei: “A verdade


é filha do tempo, e não da autoridade”.
Arlei Gomes
(Enviado via Facebook)

De tão descritivo, Guilherme Boulos leva-nos a crer que realmente


precisamos lutar pela liberdade do nosso ex-presidente. Precisamos
de resistência.
Angela Tanese Stefanini
(Enviado via Facebook)

Neste momento, a liberdade de Lula tem um significado simbólico.


Não se trata de salvar a pátria, trata-se de recuperar a democracia.
Joyce Cesar Pires
(Enviado via Facebook)

APROVAÇÃO
A 91ª edição do Oscar evoluiu bons passos na direção da diversidade. Mas podia ter sido
mais

38,9% aprovam a estreia do militar. O índice é o pior da série histórica, desde a primeira
posse de Lula

Quanto maior a altura, maior a queda. As expectativas depositadas


nele são muito maiores que sua real competência.
Douglas Benndorf Rodrigues
(Enviado via Facebook)
REFORMA ANACRÔNICA

Quem viver de salário mínimo, sem plano de saúde, sem escola de


qualidade e sem estabilidade vai continuar a trabalhar após se
aposentar. A minoria de especialistas da mídia, altos escalões
políticos, funcionais e empresários sonegadores com seus salários de
mais de 30 mil batem palmas.
João Bosco Carlucho
Garibaldi, RS
(Enviado via carta)

O eleitor de Bolsonaro agora torce em silêncio para que a esquerda


consiga barrar a reforma da Previdência.
Lindomar B. Siqueira
(Enviado via Facebook)

SOB AS ORDENS DE TIO SAM

Iniciativa louvável. Precisamos que a sociedade se mobilize para


garantir o respeito aos direitos humanos e a proteção social dos mais
vulneráveis.
Lucimar Cruz
(Enviado via Facebook)

Aplaudo de pé essa comissão. O ódio não pode ser o princípio para


se governar. A despeito de tudo, não podemos ser incrédulos,
tampouco perder a humanidade.
Ana Lúcia Toledo Travassos
(Enviado via Facebook)

AFONSINHO

Sua última coluna “O torcedor é a vítima” é de uma sensibilidade a


toda prova.
Walter Bazzo
Florianópolis, SC
(Enviado via carta)

OS AMIGOS DE MADURO

Os EUA, ao repetir a prática de derrubar governos eleitos, estão em


busca desesperada pela energia do petróleo e gás para sustentar seu
crescimento. A Venezuela negocia estrategicamente seus interesses e
independência com duas potências nucleares. O Brasil entreguista
entra nessa história como massa de manobra dos interesses dos
EUA. Um desfecho imprevisível.
Antonio de Sá
Rio de Janeiro, RJ
(Enviado via carta)

Por qual motivo não mandaram a ajuda humanitária por meio da ONU
e da Cruz Vermelha? Porque não é ajuda nenhuma. É tentar invadir a
Venezuela e derrubar o governo, assim como fizeram com a Síria.
Jhony Peter
(Enviado via Facebook)

COMENTÁRIO VENCEDOR DO MÊS DE FEVEREIRO.

O PACOTE MORO

O “pacote anticrime” de Sérgio Moro não me surpreende, por ter


vindo de alguém que argumenta a partir de situações de filmes
judiciais norte-americanos. Se Moro tem o STF nas mãos, não sei,
pois o texto é substancialmente inconstitucional. Em um momento de
normalidade democrática, seria rejeitado. O texto agride a advocacia
como função essencial à administração da justiça, por dispensar a
figura do advogado. Por consequência, agride a ampla defesa e o
contraditório; agride a presunção de inocência por instituir
cumprimento de pena antes do trânsito em julgado, agride o devido
processo legal, sobretudo. É irresponsável, anticientífico e consagra o
autoritarismo preguiçoso em detrimento ao método científico, quando
despreza as estatísticas de mortes causadas pela polícia e em
decorrência de abuso de autoridade. É um texto de quem tem
pretensões higienistas e nenhuma preocupação com a pacificação
social.
Mauro Vaz Junior
(Enviado via Facebook)

ÍNDICE

CRÉDITO DA PÁGINA: Kevin Winter/Getty Winter/afp e Alan Santos/ABr


Do caderninho de
Stanislaw

“Brasileiros! Vamos saudar o Brasil dos novos tempos e celebrar a educação responsável e
de qualidade a ser desenvolvida na nossa escola pelos professores, em benefício de vocês,
alunos, que constituem a nova geração. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos!” -
Ricardo Vélez Rodríguez, ministro da Educação, em mensagem que deve ser lida antes da
execução do hino nacional nas escolas de todo o País. O comunicado enviado pela pasta que
Vélez chefia também sugere às instituições de ensino a gravação de vídeos dos estudantes
perfilados diante da bandeira do Brasil – “quando houver”, evidentemente

“Deixa a gente estar mostrando para o Brasil o que os conservadores querem


fazer. Se não der certo, a gente sai daqui a quatro anos”
Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, alerta
sobre o longo calvário que se inicia. A ver se Mourão concorda...

“Por que citar tão somente o caso de Marielle? Poderíamos fazer uma lista”
Damares, novamente ela, ao justificar a ausência de uma referência ao
assassinato da vereadora do Rio de Janeiro em seu discurso na ONU

“Como eu trabalhei na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, a gente sabe como


as coisas funcionam. Então construa esse muro. Os brasileiros estão
apoiando você”
Eduardo Bolsonaro, chanceler informal e deputado federal do PSL, em festa
do fã-clube de Trump nos Estados Unidos. Mexicanos podem ter se ofendido
com a declaração do terceiro filho, mas brasileiros sabem que há uma
caverna a fazer a ligação entre Governador Valadares e Boston, de modo que
o muro não importa...

“Este governo dá muita munição à imprensa”


General Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo,
durante reunião com assessores, segundo nota da revista Veja. Estaria se
referindo à provisão de laranjas?

“Se o Carlos (Bolsonaro) fosse o meu filho, eu estaria até preocupado, porque
ele coleciona inimigos”
gustavo Bebianno, em sua primeira entrevista após ser exonerado da
Secretaria-Geral da Presidência, para a rádio Jovem Pan

“A minha indignação aqui é ter servido como soldado leal de todas as horas,
disposto a matar ou morrer, e no fim da linha ser crucificado, levar um tiro nas
costas, simplesmente porque o senhor Carlos Bolsonaro fez uma macumba
psicológica na cabeça do pai”
Bebianno, novamente ele, na mesma ocasião

O insólito diálogo travado por Xico Graziano, ex-chefe de gabinete de FHC, e Ricardo
Salles, ministro do Meio Ambiente que nunca estudou na Universidade Yale (a sua
desatenta assessoria sempre se esquece desse fato ao apresentá-lo em artigos e entrevistas,
então ajudamos o ministro a desmentir esse “equívoco”...)
“Chegar no hotel depois de uma semana de vitórias e de batalha. Tem que
chegar e tomar uma @heinekenbr”
Alexandre Frota, deputado federal e ex-ator pornô, sempre disposto a fazer
um merchan no Twitter
ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Marcelo Camargo/Abr


Outros carnavais
Quando o Brasil era também o país do futuro

Por Mino Carta

Quem sabe também eu estivesse na Avenida São João

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Nunca fui um folião convicto. Nunca tirei o anel de doutor para não dar o que
falar, mesmo porque não sou doutor. A marchinha é, porém, memorável:
Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí/ em vez de tomar chá com torrada ele
bebeu parati/ levava um canivete no cinto e um pandeiro na mão/ e sorria
quando o povo dizia: sossega leão, sossega leão. Era outro Brasil.

Três anos seguidos saí no corso, assim chamado porque na origem se


realizava em Roma, na Via del Corso, em 1700, conforme o relato de Goethe.
O desfile dos carros de início se dava na Avenida São João, aquela cantada
por Caetano Veloso, e nos anos seguintes por um percurso que atravessava
São Paulo e incluía três avenidas, Paulista, Rebouças e Brasil. Estreei com
13 anos e encerrei minha carreira carnavalesca com 15. Sempre precisei de
um carro para participar, obviamente. Da primeira vez foi o Ford de um vizinho
da casa, que também levava o filho e um sobrinho. Na segunda, de um amigo
repetente no colégio Dante Alighieri. Na terceira, em companhia de uma bela
rapariga, ao Jaguar do irmão dela, dirigido na ocasião por um motorista
japonês impecavelmente trajado para a tarefa, de quepe e bota pretos. Não
era fantasia.

Naquele ano rebolava Chiquita Baca-na, lá da Martinica, ela se vestia com


uma casca de banana nanica. Mais, bem mais do que de mim mesmo, toma-
me a saudade daquela São Paulo desaparecida no galope do tempo, mas
fadada a ser a de hoje. Dela não sobrou sequer o fantasma, e daquele Brasil
que sonhava com Paris, contava com pensadores e artistas e exibia os
documentos em dia para se apresentar como o país do futuro, não somente
do futebol e do carnaval. Hoje nem isso consegue ser. Quanto ao futuro... •

ÍNDICE

CRÉDITO DA PÁGINA: Theodor Preising


Crime/ Um mês de Brumadinho
Lama corre para o Rio São Francisco, sem providência para contê-la

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Na segunda-feira 25, o crime da Vale em Brumadinho, região metropolitana


de Belo Horizonte, completou 30 dias. Até o fechamento desta edição, os
bombeiros já haviam resgatado 179 corpos e 131 pessoas continuam
desaparecidas. Assim como no caso de Mariana, os rejeitos seguem sua
trilha rio abaixo, sem que nenhuma medida tenha sido tomada para mitigar os
prejuízos às pessoas e à biodiversidade.

A lama que corre no Rio Paraopeba já afetou o abastecimento de água em 16


cidades, cujas populações somam perto de 850 mil pessoas. Segundo
especialistas ouvidos pelo jornal Estado de Minas, se os rejeitos oriundos da
barragem colapsada chegarem ao reservatório de Três Marias, em
Felixlândia, será impossível impedir que alcance o Rio São Francisco. A
contenção é de responsabilidade da empresa, segundo a Secretaria de
Estado do Meio Ambiente de Minas Gerais.

Oito funcionários da Vale estão presos desde o dia 15. Outros cinco presos
em janeiro já estão em liberdade.
Perícia diz que juíza copiou sentença de Moro
A defesa de Lula submeteu à perícia a sentença que condenou o ex-
presidente no caso do sítio de Atibaia. O laudo, produzido pelo Instituto Del
Picchia, afirma que a juíza Gabriela Hardt usou “o mesmo arquivo de texto” do
colega Sérgio Moro na decisão sobre o triplex do Guarujá. O parecer aponta
semelhanças na formatação dos dois textos e diz que Hardt chegou a copiar
trecho inteiro da sentença de Moro, reproduzindo, inclusive, a referência a um
“apartamento”. O resultado do exame pericial será anexado aos recursos que
os advogados de Lula vão apresentar ao TRF4 e a tribunais superiores. A
juíza não se manifestou.

Luto/ Foi-se um palestrino fanático


Morre Roberto Avallone, um ícone das mesas-redondas de futebol

Vítima de uma parada cardiorrespiratória, o comentarista esportivo Roberto


Avallone morreu na madrugada da segunda-feira 25. Dono de um estilo
próprio, histriônico e gestual, comandou por 20 anos Mesa Redonda,
programa da TV Gazeta de São Paulo que serviria de modelo a tantos outros.
Sobre ele escreve Luiz Gonzaga Belluzzo:

“Em sua saudável irreverência, meu amigo Roberto Avallone proclamava sua
adesão à independência e neutralidade do jornalismo F.C. Mas até as pedras
da rua sabiam de sua dependência das raízes palestrinas. Desde o Jornal da
Tarde, com Mino Carta, passando pela Gazeta, até suas aparições no
SportTV, Avallone preservou a fidelidade por suas duas paixões, o jornalismo
esportivo e o Palestra Itália. Na segunda, escrevi aos amigos comuns: ‘Era
um palestrino fanático com as virtudes e os defeitos dessa forma do espírito
humano. Que Deus o receba com o Troféu da 1ª Copa do Mundo Interclubes,
a Copa Rio de 1951’.”

Sucessão/ O
autoproclamado
presidente do Brasil doidão
Nosso Guaidó, o ator José de Abreu tem o apoio irrestrito
de CartaCapital
A

noite da segunda-feira 25 estará para sempre inscrita na História. Desde a


Grécia, onde está exilado, o ator José de Abreu autoproclamou-se presidente
do Brasil. Segue o bem-sucedido exemplo do venezuelano Juan Guaidó,
reconhecido por mais de 50 países, e busca agora o necessário apoio
internacional. CartaCapital reconhece Abreu como novo presidente e saúda
Vossa Excelência.

O autoproclamado presidente usou o Diário Oficial de Bolsonaro, o Twitter,


para anunciar sua vice, a deputada Maria do Rosário, e uma equipe
ministerial que inclui Lula, Dilma Rousseff, Eduardo Suplicy, Guilherme
Boulos, Jandira Feghali e Jean Wyllys. A primeira ação de Abreu seria o
indulto a Lula. Seu slogan, “Nossa bandeira jamais será laranja”.

Políticos como Wadih Damous, Paulo Teixeira e Benedita da Silva, além do


escritor Paulo Coelho, manifestaram apoio ao presidente legítimo. Abreu
desembarca no Galeão em 8 de março, quando deve tomar o poder. Em
plenário, Alexandre Frota fez a defesa do Partido Só de Laranjas e atacou
José de Abreu. No entanto, é melhor já ir se acostumando.

Condenações por atos anti-Copa são anuladas


As condenações de 23 manifestantes contrários à realização da Copa do
Mundo no Brasil em 2014 foram anuladas pelo STF. Os ministros da Segunda
Turma julgaram ilegal a infiltração do policial militar Maurício Alves da Silva,
cujo depoimento foi determinante para a sentença, que aplicou penas entre
cinco e sete anos de prisão. Todos aguardavam recursos em liberdade. Entre
os condenados estava a produtora audiovisual Elisa Quadros Pinto Sanzi, a
Sininho. Deve ser marcado um novo julgamento, desta vez sem considerar as
provas produzidas pelo policial infiltrado

Vaticano/ O “número 3” é pedófilo


Cardeal George Pell, do mais alto escalão da Igreja Católica, é
condenado na Austrália por agressão sexual a dois meninos
O
ex-

arcebispo de Sydney George Pell foi condenado por agressão sexual a dois
coroinhas de 13 anos, em 1996, quando tinha acabado de rezar uma missa
na catedral da cidade. Um deles voltou a ser abusado no ano seguinte e
morreu de overdose de drogas em 2014.

Pell tem 77 anos e é o mais alto membro da Igreja Católica a ser acusado de
pedofilia – era considerado o “número 3” na hierarquia comandada pelo papa
Francisco. Há cinco anos foi escolhido tesoureiro do Vaticano. Ou prefeito da
Secretaria de Economia, nomeado pelo papa. Em seu mandato tornou-se um
dos nove a compor o Conselho de Cardeais Conselheiros. O grupo teve papel
importante na organização da primeira cúpula sobre abuso sexual infantil.

“É uma notícia dolorosa que, estamos cientes, chocou muitas pessoas, não
só na Austrália”, disse o porta-voz do Vaticano, Alessandro Gisotti. “Como
fizemos antes, reafirmamos nosso profundo respeito pelas autoridades
judiciais australianas.” Pell recorrerá da sentença.

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Reprodução/Mídia Social e CON CHRONIS/AFP - DOUGLAS MAGNO/AFP


De volta à Guerra Fria
Por petróleo e ideologia, EUA e Brasil empenham-se na derrubada do governo
venezuelano, enquanto o mundo se divide. Acuado pela guerra econômica, mas
com o apoio de Rússia e China, Maduro escapa ao golpe da “ajuda
humanitária”. Até quando aguentará?

Por André Barrocal

Pence garante a Guaidó o apoio irrestrito de Trump

| | | |

A era Trump é pródiga em livros com inconfidências do presidente americano


e sua equipe, como Fogo e Fúria, Medo e Uma Lealdade Maior. A Ameaça é
outro, acaba de sair do forno, obra de um sujeito que nos 14 primeiros meses
do governo Trump foi o número 2 do FBI. Ao livro de Andrew McCabe: “Eu
não entendo por que não estamos olhando para a Venezuela. Por que não
estamos em guerra com a Venezuela? Eles têm todo o petróleo e estão na
nossa porta dos fundos”, teria dito o presidente em uma reunião em 2017. “É
o país com o qual deveríamos entrar em guerra.” São palavras verídicas?
“Fará uma grande diferença para os Estados Unidos, economicamente, se
pudéssemos ter companhias petrolíferas americanas realmente investindo e
produzindo as capacidades petrolíferas na Venezuela”, disse publicamente
em janeiro Jonh Bolton, assessor de Segurança Nacional da Casa Branca.

Bolton foi o primeiro emissário de Trump a encontrar Jair Bolsonaro, após a


eleição do ex-capitão. Uma conversa em 29 de novembro, na casa de Bolso-
naro, na Barra da Tijuca. Naquele dia, Celso Amorim, chanceler nos governos
Lula (2003-2010) e Itamar Franco (1992-1994), fez também uma
inconfidência. Bolton havia sido o responsável pela queda do diplomata
brasileiro José Mauricio Bustani, em 2002, da direção da Organização para a
Proibição de Armas Químicas (Opaq). Bustani tinha mandato até 2005. Após
comandar inspeções no Iraque, ele concluíra que não havia armas químicas,
existência que os EUA, sob George W. Bush, usariam como pretexto para
atacar o país em 2003. Bolton foi quem agiu em nome de Bush para tirar o
brasileiro do caminho.

Uns dias antes de encontrar Bolsonaro, Bolton discursara em Miami contra


uma “troika da tirania” na América Latina, com Venezuela, Cuba e Nicarágua.
Em comum, a “troika” possui governos de esquerda, e Bolsonaro também
elegeu a esquerda como a inimiga (não a desigualdade social, a maior em
sete anos, nem a pobreza que aflige 26% da população: elegeu seus rivais).
“Esquerda nunca mais”, disse na terça-feira 26, ao empossar outro general,
Joaquim Silva e Luna, ex-ministro da Defesa que agora preside Itaipu, a
hidrelétrica do Brasil e do Paraguai. O ex-capitão elogiou cada um dos cinco
generais-ditadores brasileiros pelo nome e pela construção de Itaipu. “Isso
tudo não seria suficiente se do lado de cá (no Paraguai) não tivéssemos um
homem de visão, um estadista que sabia perfeitamente que o seu país, o
Paraguai, só poderia prosseguir, progredir, se tivesse energia. Aqui também a
minha homenagem ao general Alfredo Stroessner.” Stroessner, o homem que
comandou a mais longa ditadura latino-americana, 35 anos, após um golpe
em 1954.

Com tantos interesses e visões comuns, dá para entender por que Brasil e
EUA se uniram para derrubar Nicolás Maduro, a quem Bolsonaro chama de
“ditador”, na Venezuela. É o que explica a “ajuda humanitária” planejada em
Washington e que, no último fim de semana de fevereiro, terminou com ao
menos quatro mortes na fronteira com Roraima. Um plano classificado de
político demais e humanitário de menos pela ONU e a Cruz Vermelha, a
alimentar o fantasma de uma guerra ao lado do Brasil. A Venezuela é hoje um
tema a rachar o mundo, como nos tempos da Guerra Fria, e o governo
Bolsonaro, que tem a cabeça naqueles tempos. Uns 50 países, entre eles o
Brasil e vários europeus, não reconhecem o governo Maduro, reeleito em
maio de 2018 com 68% dos votos em uma eleição com baixa participação
popular. Para este bloco, o poder é do presidente do Congresso, Juan
Guaidó. Em 23 de janeiro, o deputado direitista saiu às ruas, ergueu a mão e
proclamou: “Sou presidente”. Na véspera, recebera um telefonema do vice de
Trump, Mike Pence. Representantes de outras 60 nações estiveram com o
chanceler venezuelano, Jorge Arreaza, em 22 de fevereiro, e adotam postura
No meio da ajuda, estariam escondidos pregos e arames para erguer barricadas

diferente. Ainda veem legitimidade em Maduro.

O Conselho de Segurança da ONU fez duas reuniões recentes sobre a crise


na Venezuela, e o racha atingiu o auge. Uma briga a opor três (EUA, Rússia e
China) dos cinco países com direito a veto. De um lado, EUA e alguns de
seus aliados nas Américas (Canadá, Peru e Colômbia) e na Europa
(Alemanha e Reino Unido), todos favoráveis a Guaidó. Do outro, Rússia,
China, alguns latino-americanos (Uruguai, México e Bolívia) e africanos
(África do Sul e Guiné Equatorial). A primeira reunião foi em 26 de janeiro,
proposta pelos EUA em função da “autoproclamação” de Guaidó. Na reunião,
o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, ex-chefe da CIA que em
2017 falou publicamente dos esforços da CIA para forçar mudança no
governo na Venezuela, pregou que era hora de todo mundo ter lado. “Não
mais demoras, não mais jogos. Ou estão com as forças da liberdade ou estão
com Maduro e seu caos.” “Jogo sujo”, disse o embaixador da Rússia na ONU,
Vassily Nebenzia. “Se algo representa uma ameaça à paz é a descarada e
agressiva postura dos Estados Unidos e seus aliados, enfocada em depor o
presidente de Venezuela eleito legitimamente.”

Em 26 de fevereiro, nova reunião do Conselho e novo racha. Desta vez, os


EUA mandaram Elliot Abrams, destacado por Trump como um emissário
especial à Venezuela, um sujeito condenado pela Justiça em seu país por
mentir sobre ter participado de um golpe na Nicarágua nos anos 1980. “Os
Estados Unidos e a comunidade internacional devem respaldar a luta do povo
venezuelano por restaurar sua democracia”, disse Abrams. “Só o regime de
Maduro usa a violência e tem recorrido às forças de segurança e a bandos
armados.” E Nebenzia? “Chamemos as coisas pelo seu nome. Isso não é
ajuda humanitária. Se os Estados Unidos quisessem ajudar, o fariam através
Ao nomear mais um general para a presidência da Itaipu, Bolsonaro glorifica Stroessner

das agências humanitárias que operam na Venezuela, como fazem outros


países”, disse. Segundo o venenezuelano Arreaza, havia pregos e arames
escondidos no meio da “ajuda” para uso na construção de “barricadas” em um
conflito contra Nicolás Maduro.

A “ajuda humanitária” foi uma tentativa americana de fazer entrar na


Venezuela cerca de 200 toneladas de alimentos e medicamentos. Era muita
coisa? Um diplomata brasileiro experiente no assunto diz que não. Durante a
missão de paz da ONU no Haiti, conta ele, o Brasil mandava 14 toneladas por
dia para lá em um avião da FAB, uma ponte aérea a partir do Galeão. Pelo
plano bolado em Washington, a “ajuda” cercaria a Venezuela a oeste pela
Colômbia, a leste pelo Brasil e ao norte, no Mar do Caribe, pela ilha de
Curaçao. A participação do Brasil foi definida por Bolsonaro em uma reunião,
em 19 de fevereiro, no Palácio do Planalto, com alguns ministros e a cúpula
do poder em Brasília: Rodrigo Maia (Câmara), Davi Alcolumbre (Senado) e
Dias Toffoli (Supremo Tribunal Federal).

“Maduro e as forças armadas venezuelanas tiveram sangue-


frio contra a provocação”, diz um diplomata brasileiro

As doações brasileiras ficariam em duas cidades de Roraima, Pacaraima e


Boa Vista, e seriam recolhidas em 23 de fevereiro por caminhões
venezuelanos dirigidos por venezuelanos, sob as ordens de Guaidó. Das 200
toneladas, 30 eram brasileiras, sendo 20 de leite em pó saído dos estoques
da Conab no Rio de Grande do Sul em avião da FAB, um dinheirão em
transporte, e o restante em remédios obtidos em São Paulo. O mesmo
aconteceria em Cúcuta, na fronteira da Venezuela com a Colômbia. Maduro
era contra a entrada, por achar que tudo não passava de um golpe disfarçado
de bons sentimentos, e mandou fechar as fronteiras. Havia clima de confronto
no ar, sobretudo do lado colombiano, segundo Arreaza. As quatro mortes
registradas foram na fronteira com o Brasil, na região da cidade de Santa
Elena de Uaiarén, onde o prefeito, Emilio González, é do partido de Guaidó.
González fugiu para o Brasil a denunciar 25 mortos em sua cidade.

A coisa poderia ter sido mais grave não fosse uma divisão no governo.
Bolsonaro, seus generais e seu chanceler, Ernesto Araújo, estão de acordo:
fora Maduro. A diferença é como. Segundo apurou CartaCapital, o chanceler
não se importava que tropas americanas usassem o Brasil em uma ação
contra Maduro em decorrência dos distúrbios durante a “ajuda”. Fã de Trump,
Araújo foi a Pacaraima, participou de uma entrevista ao lado do
subembaixador dos EUA em Brasília, William Popp, e até gravou um vídeo
para anunciar a entrada de um caminhão com suprimentos na Venezuela.
Consta que entraram apenas dois, 40 toneladas no máximo. O que vai ser
feito agora com as outras 160 toneladas não se sabe. Estão por aí.

O núcleo militar do governo era contra a presença ianque aqui. Um time com
uma visão mais globalista. Augusto Heleno, ministro do GSI, e Carlos Alberto
dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo, foram chefes de missões de paz
da ONU no Haiti. Santos Cruz foi também no Congo. O vice-presidente,
Hamilton Mourão, esteve em missão em Angola. O trio participou da reunião
do dia 19 com Bolsonaro e bateu o pé contra o Tio Sam aqui. Eduardo Villas
Bôas, comandante do Exército até dezembro e hoje assessor especial de
Heleno, foi em junho de 2017 ao Senado e disse coisas que ajudam a
entender um pouco a visão desse pessoal. “Eu não estou livre de alguém,
amanhã ou depois, querer colocar uma base na Venezuela ou em outro país e
nós não termos a contundência e a capacidade de dizer não.”

O cenário pré-“ajuda” era de guerra. “Uma significativa presença naval e


marinha dos EUA está agora operando nas proximidades da Colômbia e da
Venezuela. Seja por coincidência ou não, esses destacamentos proporcionam
à Casa Branca uma gama crescente de opções”, dizia um artigo de 13 de
fevereiro do jornalista americano Tom Rogan, no jornal Washington Examiner.
Imaginava-se que a decisão de Maduro de impedir a entrada da “ajuda”
provocaria conflito, o que justificaria uma invasão militar do país. “Maduro e as
Forças Armadas da Venezuela tiveram sangue-frio contra a provocação”,
afirma um diplomata brasileiro.

Dois dias depois, a “ajuda” e seus desdobramentos foram assunto de uma


reunião do chamado Grupo de Lima, criado em agosto de 2017, sob
inspiração americana, para conspirar contra Maduro. Guaidó, o autodeclarado
presidente, queria que a comunidade global mantivesse “todas as cartas
sobre a mesa”, a ecoar uma frase de Trump de 2017: “Temos muitas opções a
respeito da Venezuela, inclusive uma opção militar”. Não adiantou. Uma
porta-voz da União Europeia, Maja Kocijancic, fez um apelo por uma solução
Popp e Araújo, irmãos siameses

“pacífica, política e democrática”. Idem o secretário-geral da ONU, o


português Antonio Guterres. Reunido em Bogotá, o Grupo de Lima viu Mike
Pence reiterar: “Todas as opções estão na mesa”. A reunião terminou com um
comunicado duro contra Maduro, mas, no meio dos 18 parágrafos, o que
importava era o 16: “Reiteram sua convicção de que a transição à democracia
deve ser conduzida pelos próprios venezuelanos pacificamente e no marco da
Constituição e do direito internacional, apoiada por meios políticos e
diplomáticos, sem uso da força”.

Era a posição brasileira levada por Mourão à reunião. Quem costumava


participar dessa reunião no governo Bolsonaro era o chanceler Araújo, que,
aliás, não divulgou o comunicado no site do Itamaraty, ao contrário dos
comunicados anteriores. “O Brasil acredita firmemente que é possível
devolver a Venezuela ao convívio democrático das Américas sem qualquer
medida extrema que nos confunda, como nações democráticas, com aquelas
que serão julgadas pela história como agressores, invasores e violadores das
soberanias nacionais”, disse Mourão. Posteriormente, afirmou em entrevistas
que o Brasil vai continuar a fazer “pressão diplomática e econômica” para
derrubar Maduro. E que “a gente tem que buscar um diálogo com alguém que
fale pelas Forças Armadas, a gente tinha que abrir um canal de diálogo com
as Forças Armadas venezuelanas”, pois, enquanto Maduro tiver apoio nos
quartéis, não vai cair. Vários militares venezuelanos desertaram durante a
“ajuda humanitária”, mas proporcionalmente eram poucos. Curiosa a posição
de Mourão de querer dialogar com a caserna da Venezuela, a quem tachou
de corrupta em uma entrevista, em 7 de setembro, no GloboNews: “Força
Armada cooptada, comprada no dinheiro”.

Último chanceler de Michel Temer, o tucano Aloysio Nunes Ferreira acha que
o Brasil tem de negociar é com Maduro. Em palestra no Instituto FHC, em 19
de fevereiro, ele criticou a autoproclamação presidencial de Guaidó (“É como
se eu fosse ali na rua e dissesse que sou Jesus Cristo”). “Quando você
reconhece um governo que não é governo de fato, o passo seguinte é perder
relações diplomáticas, fechar fronteiras, que é algo que não interessa ao
Brasil. Para nós, governo é aquele que tem controle e exerce soberania sobre
um território. Até para evitar que sejamos levados a ter de reconhecer
movimentos separatistas.” Alfinetadas em Ernesto Araújo, o chanceler que
engasgou nos últimos dias ao ter de responder por que o governo Maduro
seria diferente do governo Kim Jong Un, da Coreia do Norte, com quem
Trump se encontrou no Vietnã em 27 de fevereiro.

Recomenda o português Guterres, secretário- -geral da ONU: sem violência e força letal

Engasgos à parte, a “ajuda humanitária” não foi engolida pela Cruz Vermelha.
Em 1o de fevereiro, o diretor de operações globais do Comitê Internacional da
CV, Dominik Stillhart, e a chefe da delegação para os EUA e o Canadá,
Alexandra Boivin, reuniram-se com autoridades americanas e expuseram
críticas e receios. “Não somos uma agência de implementação para um
doador qualquer, especificamente para não implementar coisas que tenham
um tom político”, disse Stillhart na ocasião. No dia da “ajuda”, a entidade
identificou pessoas a usar seu emblema e fez um apelo: “Parem de fazer
isso”, pois ameaça “comprometer nossa neutralidade, imparcialidade e
independência”. Mais tarde, o chefe da entidade na Colômbia, Christoph
Harnisch, dizia que, “infelizmente, a primeira vítima do que está acontecendo
é a palavra ‘humanitária’, porque há um debate, há uma controvérsia pública,
há uma manipulação desse termo por todas as partes”. E completou: os
“Estados Unidos querem ver Maduro cair e esse é mais um tema político que
humanitário”.
Guterres, da ONU, se disse “chocado” com as mortes no dia da “ajuda”. Ele
pregou que “a violência seja evitada a qualquer custo, que a força letal não
seja usada em nenhuma circunstância” e que “todos os atores diminuam as
tensões e busquem todo esforço para prevenir uma nova escalada”. A chilena
Michelle Bachelet, ex-presidente de seu país e hoje alta-comissária da ONU
para os Direitos Humanos, condenou o uso excessivo da força pelo governo
venezuelano e o envolvimento de milícias chavistas. “Essas cenas são
vergonhosas. O governo venezuelano precisa impedir as suas forças de usar
a força excessiva contra manifestantes desarmados e cidadãos comuns.”
Segundo ela, “o uso de ‘forças terceirizadas’ tem um histórico longo e sinistro
na região”, “é muito alarmante vê-las operar abertamente dessa forma na
Venezuela. O governo pode e deve impedi-las de exacerbar uma situação já
altamente inflamável”.

A ONU concorda, porém, que a “ajuda” merecia outro nome. “Temos muito
claros os princípios de ajuda humanitária. E no caso da Venezuela... Sim, há
uma intenção de politizá-la”, disse em 26 de fevereiro, em Madri, a nigeriana
Amina Mohammed, ex-ministra do Meio Ambiente de seu país, hoje vice-
secretária-geral das Nações Unidas. A ONU possui uma resolução sobre
ajuda humanitária, aprovada em 1991 pela Assembleia-Geral, a 46/182. Pela
resolução, ações de ajuda humanitária precisam respeitar a soberania
nacional de um país, a integridade territorial das nações envolvidas e a
responsabilidade dessas nações na administração dos riscos que venham a
ser gerados dentro de suas fronteiras. Um diplomata brasileiro explica as
razões por trás da resolução. “A ajuda pode terminar sendo desviada, não há
nenhuma garantia de que chegue a quem necessita e de que não seja
utilizada politicamente.” Ele prossegue: “Não é à toa que organismos
internacionais mais respeitados se recusam a participar de iniciativas desse
tipo (planejada pelos EUA para a Venezuela)”.

Em
Maduro busca ajuda de China, Rússia e Turquia

seu relatório de agosto de 2018, Zayas equiparava as sanções à Venezuela a


crimes contra a humanidade. As sanções comandadas pela Casa Branca
começaram em dezembro de 2014, com Barack Obama, o mesmo que
reataria relações dos EUA com Cuba, outra vítima de um embargo (histórico)
liderado por Washington. De início, congelamento de bens e restrição de
vistos contras algumas autoridades venezuelanas. As sanções ficaram mais
pesadas com Donald Trump, após a contestada reeleição de Maduro em maio
de 2018. Americanos foram proibidos de negociar títulos públicos e ativos
venezuelanos. Bancos locais foram proibidos de emprestar dinheiro ao
governo da Venezuela e à petroleira PDVSA, principal fonte de receitas
daquele país. A Citgo, filial da PDVSA nos EUA, não pôde mais mandar grana
para a matriz. Em um dos comunicados sobre as sanções, a Casa Branca
dizia: foram “cuidadosamente calibradas para privar o regime do presidente
Nicolás Maduro de uma fonte essencial de financiamento”. O país que asfixia
a Venezuela é o mesmo que inventou a “ajuda humanitária”, diz o deputado
Glauber Braga, do PSOL do Rio. “É irritante esse silêncio sobre o óbvio.” Tem
mais hipocrisia, deputado: o líder do país da “ajuda” é o mesmo que quer
erguer um muro para impedir a entrada de imigrantes de um vizinho, o
México.

O governo Venezuelano estima em 30 bilhões de dólares a quantia que o país


tem e foi congelada com as sanções. E em 15 bilhões o valor dos ativos da
Citgo. “Houve má administração (nossa)? Talvez. Nós não somos um governo
perfeito. E é muito difícil saber quais decisões tomar quando sua economia
está sob agressão, quando há uma guerra econômica contra sua economia”,
disse o chanceler Arreaza, na segunda-feira 25 ao programa Democracy Now,
veiculado no rádio, na tevê e na web nos EUA. “Mas eu posso dizer que a
principal razão pela qual nossa economia tem lutado é por causa do ataque
internacional, e especificamente este bloqueio e as sanções dos EUA. (…)
Este bloqueio está sendo traduzido para o sofrimento de muitos
venezuelanos, e isso precisa ser interrompido.” De 2015 para cá, 3,4 milhões
de venezuelanos deixaram o país, segundo a ONU. Quase 10% da
população.

Zayas garante: “não há crise humanitária”. Maduro, sustenta,


é vítima de uma guerra econômica asfixiante

Para tentar contornar o boicote dos bancos de Nova York e de Londres,


responsáveis pela grande maioria das transações financeiras ocidentais, a
Venezuela tem buscado ajuda da China, da Rússia e da Turquia. E,
principalmente, das diversas agências da ONU, ao menos para obter
remédios e alimentos. As agências compram esses suprimentos, e a
Venezuela paga por eles quando chegam ao país. Desde a nova re-posse de
Maduro, em 10 de janeiro, Arreaza reuniu-se três vezes com Antonio
Guterres, da ONU. Após se proclamar “presidente”, Guaidó mandou uma
carta a Guterres, a descrever uma crise humanitária em seu país. Era uma
tentativa de forçá-lo a tomar partido por um dos lados. Guterres tem evitado
fazê-lo. Tem pedido diálogo entre as partes, que estas desarmem os espíritos
e que haja respeito aos direitos humanos. E se colocado à disposição para
medir “negociações sérias”. Com o Conselho de Segurança da ONU rachado
sobre a crise na Venezuela, diz um diplomata brasileiro, o português não tem
como agir diferente. Que acrescenta: a guerra na Venezuela é também
buscada por Trump de olho na reeleição de 2020.

E ainda falam em razões humanitárias. •

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Diana Sanchez/AFP, JUAN BARRETO/AFP e NORBERTO DUARTE/AFP -


ASSCOM/VPR e reprodução - Yuri CORTEZ/AFP e Fabrice COFFRINI/AFP
Guerra econômica
Sob bloqueio dos EUA desde 2013, a Venezuela perdeu o equivalente a mais
de um ano de PIB e recusa o cavalo de troia da “ajuda humanitária”

Por Carlos Drummond

O torniquete estadunidense esvaziou as prateleiras da economia que tem a maior reserva


de petróleo e a refinaria de Paraguana, a segunda do mundo

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Sem o apoio decisivo do Brasil e outros países latino-americanos na reunião


do Grupo de Lima em Bogotá, na Colômbia, na segunda-feira 25 os Estados
Unidos adiaram por ora a invasão militar da Venezuela, opção discutida
abertamente em Washington nas últimas semanas, mas o preço foi uma
asfixia ainda maior da economia venezuelana sob bloqueio estadunidense
desde 2014. No encontro com a participação dos vice-presidentes Mike
Pence dos EUA e Hamilton Mourão do Brasil, os EUA anunciaram sanções a
quatro governadores aliados do presidente Nicolás Maduro.

Pence pediu ainda o congelamento de ativos da petroleira estatal PDVSA e a


transferência de eventuais bens de Maduro para o autoproclamado presidente
Juan Guaidó. O torniquete inclui o apelo para restrição de vistos às pessoas
do círculo próximo do presidente venezuelano e segue-se à interdição em
janeiro de 7 bilhões de dólares em ativos da PDVSA nos EUA, inclusive a
subsidiária Citgo, e à suspensão de compras de petróleo previstas em 11
bilhões neste ano, tudo para forçar, segundo a mídia, o reconhecimento de
Guaidó na função pretendida.

Os Estados Unidos querem tomar o país para reduzir custos e


aumentar a sua competitividade

As medidas de janeiro incluíram a proibição da venda à Venezuela pelos EUA


de diluentes necessários à preparação do petróleo pesado para o refino,
processamento e produção de gasolina e outros combustíveis. O conjunto das
ações visa fulminar a economia massacrada pelo boicote financeiro e
comercial estadunidense que entre 2014 e 2017 provocou perdas entre 1,1 e
1,6 vezes o PIB, isto é, entre 245 bilhões de dólares e 350 bilhões, com uma
redução per capita de 8,4 mil dólares a 12 mil, calcula o Centro Estratégico
Latino-americano de Geopolítica em estudo publicado no início de fevereiro.
O bloqueio iniciado após a morte de Hugo Chávez e sua substituição por
Maduro são apontados pela organização como as principais causas da crise
econômica e social aguda do país latino-americano.

O diagnóstico do Celag comprova a análise realizada há um ano pelo


especialista para a Promoção da Ordem Democrática e Equitativa escolhido
pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e professor da
Universidade de Genebra Alfred de Zayas, que de 1981 a 2003 ocupou o
posto de Alto Comissário para Direitos Humanos da ONU. “Eu estudei as
estatísticas e adianto: há escassez, há desabastecimento, há recessão. Mas
quem viveu e trabalhou para as Nações Unidas por décadas e conhece a
situação em países da Ásia, da África e da América Latina sabe que essa
situação na Venezuela não chega a ser uma crise humanitária. No entanto,
repetem tanto isso que muitos pensam que efetivamente o país está à beira
de um desastre”, disse Zaya em entrevista à tevê Telesur.

A Venezuela, prosseguiu, sofre uma guerra econômica, um bloqueio


financeiro e um alto nível de contrabando e precisa da solidariedade
internacional para resolver esses problemas. “Em primeiro lugar, é preciso
terminar a guerra econômica e levantar as sanções, porque são justamente o
que está piorando a situação de desabastecimento, sobretudo no campo dos
medicamentos. É insuportável pensar que, tendo uma crise de malária nos
estados de Bolívar e Amazonas, a Colômbia recusou-se a entregar os
medicamentos contra a malária e obrigou a Venezuela a importá-los da
Índia.”

Antes da reunião de Bogotá, o governo brasileiro tentou ultrapassar a fronteira


da Venezuela no estado de Rondônia na sexta-feira 22 com duas
caminhonetes de alimentos e remédios em ação a título de “ajuda
A entrega em Caracas de jatos russos que lançam bombas atômicas e a iniquidade do
bloqueio denunciada por Alfred de Zayas, da ONU

humanitária”, que, segundo o noticiário, recebeu aprovação dos EUA, mas foi
impedida pelas Forças Armadas venezuelanas. O governo de Nicolás Maduro
desconfia que, além de ocultar armas e talvez medicamentos e alimentos
envenenados, tais comboios sejam a ponta de lança para uma invasão militar,
daí sua designação como cavalos de Troia. O histórico das invasões e
aniquilamentos de Estados soberanos pelos EUA nas últimas décadas suscita
essas suposições.

Não poucos consideram um acinte a oferta de “ajuda humanitária” liderada


pelos Estados Unidos, o mesmo país desencadeador da guerra econômica
que pretende colocar a Venezuela de joelhos. A escalada estadunidense vem
de longa data e visa impedir a constituição de uma cadeia produtiva e de uma
indústria nacional, segundo explica o economista Michael Hudson, professor
emérito da Universidade do Missouri e consultor de governos em entrevista
publicada no site Unz Review.

“A indústria do petróleo e a diplomacia dos EUA mantiveram a Venezuela


como refém antes de tudo porque as refinarias de petróleo não foram
construídas no país, mas em Trinidad e nos estados do sul dos Estados
Unidos. Isso permitiu que as companhias de petróleo e o governo
estadunidense a deixassem sem autonomia para perseguir uma política
independente com seu petróleo, que precisava ser refinado. Não ajuda ter
reservas de petróleo se você não conseguir refinar para torná-lo utilizável”,
dispara Hudson. A aula sintética do professor da Universidade do Missouri
deveria ser obrigatória para os Bolsonaro e os militares com quem
compartilham o governo, pois sancionaram a privatização e
desnacionalização das refinarias da Petrobras e, com isso, encaminharam o
enterro da autonomia do Brasil numa etapa da cadeia produtiva de óleo e gás
extremamente crítica. É o que mostra o exemplo terrível da Venezuela.

A escalada americana visa impedir a constituição de uma


indústria nacional no país

Um trabalho de desmantelamento do País elaborado em colaboração com os


Estados Unidos e intermediado inclusive por Sérgio Moro e Deltan Dallagnol,
que na Lava Jato foram muito além da punição das pessoas e inviabilizaram,
embalados pelos tambores da mídia, grande parte da cadeia de óleo e gás,
aniquilando ou forçando o desmonte ou a venda das grandes empreiteiras, da
Petrobras à Braskem.

O controle estatal das refinarias ora em oferta no balcão de entrega do Brasil


ao capital estrangeiro é crucial, contudo, se o objetivo for evitar a dolarização
dos preços dos combustíveis praticada, por exemplo, pelo ex-presidente
tucano da Petrobras, Pedro Parente, e que resultou na greve dos
caminhoneiros e na sua própria deposição. A privatização e
desnacionalização daquela estrutura aprofundará, portanto, a regressão
econômica ininterrupta desde o golpe de 2016 e aproximará o País da
situação da Venezuela no setor de óleo e gás, um crime de proporções e
consequências imensuráveis em um setor que se mostrava especialmente
promissor desde a decisão do ex-presidente Lula, em 2005, de construir a
Refinaria Abreu e Lima em Ipojuca, Pernambuco, a primeira inteiramente com
tecnologia nacional, e ainda com a descoberta em 2006, sob seu governo, do
tesouro do pré-sal. Abreu e Lima foi colhida pela Lava Jato, que, a pretexto de
livrar o Brasil da corrupção, extrapolou a punição dos indivíduos e torpedeou
com violência inaudita o que restava da autonomia econômica nacional
dilapidada a partir do governo FHC.

Um bom começo para analisar com objetividade os interesses em jogo no


assédio ao país latino-americano é levar em conta que os Estados Unidos são
o maior consumidor mundial de petróleo, têm só 2% das reservas mundiais e
importam 45% da produção da Venezuela, dona do maior reservatório
mundial da commodity, equivalente a 18% do total mundial. O petróleo
representa 98% das exportações e 50% do PIB venezuelanos e é a fonte
mais próxima de suprimento dos americanos, a apenas 2,5 mil quilômetros de
distância, enquanto a Arábia Saudita fica a 12,5 mil quilômetros.

A Venezuela conta também, segundo a pesquisa do Celag mencionada, com


5,7 bilhões de metros cúbicos de gás natural, pouco abaixo do manancial
próprio dos EUA. Entre as riquezas da economia comandada por Maduro,
chama atenção o estudo, está a segunda maior reserva de ouro do mundo, de
8,9 toneladas métricas, enquanto as dos EUA figuram na quinta posição, com
3 toneladas. No caso de os Estados Unidos tomarem militarmente a
Venezuela para se apossarem do manancial petrolífero como fizeram no
Iraque, neste caso sob o falso pretexto da existência de armas químicas
Maduro recorreu a Putin em busca de alívio do arrocho do crédito internacional vital ao
seu país

jamais localizadas, levariam de quebra uma pilha descomunal de ouro.

Há mais. “As reservas de ferro estimadas da Venezuela chegam a 14,6


bilhões de toneladas. O ferro pertence ao grupo de minerais nos quais os
Estados Unidos têm um nível moderado de vulnerabilidade, porque importam
até 49% do que consomem. Apropriando-se desse recurso quintuplicariam
sua disponibilidade do minério e praticamente eliminariam essa dependência”,
sublinha o Celag. A bauxita, prossegue o estudo, matéria-prima do alumínio,
faz parte das riquezas do país latino-americano. Apesar de contar com 1% da
reserva mundial, tem 16 vezes mais bauxita que os EUA, que dependem em
100% da importação desse bem para abastecer seu consumo.

Os investimentos e empréstimos de China e Rússia à


Venezuela atrapalham o avanço dos EUA

Desde 2014, praticamente desapareceu o financiamento internacional


disponível para a Venezuela e isso significou a retirada de cerca de 22 bilhões
de dólares anuais da sua economia, que depende de divisas para comprar
alimentos e insumos. “A reversão do financiamento internacional é
equivalente ao lançamento de bombas na estrutura produtiva venezuelana,
inclusive a petroleira”, comparam os especialistas do Celag.

O país confiou, prosseguem, na sua capacidade de endividamento e de


importar de várias origens em condições normais de mercado, mas o que
encontrou foi um boicote. Para os EUA, controlar os recursos venezuelanos
representa não só o restabelecimento das condições históricas de domínio
sobre a região, mas também uma vantagem competitiva para o conjunto da
sua economia a partir do barateamento do custo do combustível e do
fortalecimento da hegemonia do dólar diante dos concorrentes europeus e da
China.

Os movimentos de defesa do governo venezuelano incluíram a transferência,


em fevereiro, de contas bancárias no exterior de joint ventures da PDVSA
com companhias como a estadunidense Chevron, a francesa Total e a
norueguesa Equinor para o banco russo Gazprobank, segundo a agência
Reuters. Além de dezenas de joint ventures com empresas ocidentais, a
PDVSA mantém vários projetos com empresas russas e chinesas.

Durante o governo de George W. Bush, os preços do petróleo atingiram picos


após a destruição do Iraque e as sanções ao Irã e à Rússia e turbulências na
Nigéria, todos grandes produtores. A alta das receitas da commodity
possibilitou a Hugo Chávez retirar milhões da pobreza. Entre 1995 e 2009, diz
o governo, a pobreza e o desemprego foram reduzidos à metade. Em 1998, o
país tinha 12 universidades públicas, hoje tem 32. Médicos cubanos foram
levados para prestar assistência gratuita à saúde em clínicas comunitárias.
Caracas assegura gás de cozinha a preço baixo e lançou uma campanha de
alfabetização para adultos. Maduro deu continuidade ao programa
habitacional para as famílias de baixa renda com 1 milhão de apartamentos
construídos até dezembro de 2015.

Os

Chávez e Hu Jintao assinaram na China o primeiro empréstimo de Pequim à Venezuela,


início de uma série de financiamentos

problemas causados pelo bloqueio estadunidense agravaram-se em 2014


com a queda do preço do petróleo resultante do aumento da produção do
óleo de xisto nos EUA e da inundação do mercado mundial com estoques da
Arábia Saudita.

Os investimentos e os interesses estratégicos da China e da Rússia na


Venezuela são um obstáculo às pretensões estadunidenses em relação ao
país comandado por Maduro, conclui-se do levantamento feito por Stephen B.
Kaplan e Michael Penfold, do Wilson Center, de Washington (Penfold leciona
em Caracas). O relacionamento China-Venezuela começou em 2007 com um
encontro de Hugo Chávez com o presidente Hu Jintao para selar o primeiro
empréstimo de Pequim para negócios no setor de petróleo. Em 2014 o China
Development Bank, o BNDES chinês, concedeu 30 bilhões de dólares em
financiamentos garantidos por petróleo destinados a investimentos em
energia, mineração, usinas, refinarias e oleodutos. Pragmáticos, os chineses
mantêm desde 2012 relacionamento também com a oposição venezuelana.

As

A refinaria Abreu e Lima, primeira feita por inteiro no País, idealizada por Lula, mas
detonada pela Lava Jato, por Temer e Bolsonaro

estatais russas assumiram o papel de investidores-chave quando


aumentaram as dificuldades para obter crédito externo e Maduro recorreu a
Putin. As gigantes de energia Rosneft, a maior petroleira e a segunda
produtora de gás da Rússia, e a Gazprom concederam financiamentos de
curto prazo essenciais à PDVSA, que, em troca, cedeu 49,9% das suas ações
na subsidiária estadunidense Citgo, como colateral para garantir os futuros
pagamentos da dívida. Além disso, a Rosneft aumentou sua participação na
joint-venture Orinoco e recebeu acesso às maiores reservas de gás
venezuelanas. Anterior a esses entendimentos, o relacionamento militar
resultou na compra pela Venezuela de mais de 4 bilhões de dólares em armas
e equipamentos. O evento mais recente foi a entrega em Caracas, em
dezembro, de dois aviões russos Tu-160 com capacidade de transportar e
detonar bombas nucleares.

Estados Unidos, Brasil e Colômbia sabem que invadir a Venezuela não seria
um passeio. •

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Elizabeth Dalziel/ap - Federico Parra/AFP, Valery Sharifulin/TASS/ZUMA -


Kamila Stepien/Le Pictorium Agency/ZUMA
A solução é prendê-lo?
INFÂNCIA O STF está prestes a julgar antiga ação do PSL para liberar a
apreensão de menores em situação de rua para “averiguação”

Por Rodrigo Martins

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Passado o Carnaval, o Supremo Tribunal Federal vai debruçar-se sobre uma


peculiar ação movida pelo PSL, o partido do presidente Jair Bolsonaro, contra
dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecido pela sigla
ECA. Apresentada em 2005, a petição solicita que a Corte declare
inconstitucionais os artigos 16 e 230 da Lei nº 8.069/90, justamente aqueles
que impedem a detenção de menores para averiguação ou por motivo de
perambulação nas ruas. Numerosas entidades de defesa dos direitos
humanos, como Conectas e Fundação Abrinq, pediram para participar do
julgamento na condição de amicus curiae. À época, tal mobilização talvez
fosse desnecessária. Desde o nascedouro a ação parecia fadada ao fracasso,
uma vez que as prisões para averiguação, tão comuns na ditadura, não são
admitidas pela Constituição de 1988 nem mesmo para enquadrar os adultos,
que só podem ser detidos em flagrante de crime ou por expressa ordem
judicial.

O tempora, o mores! Diante dos recorrentes ataques ao Estado Democrático


de Direito no Brasil, é preciso pôr as barbas de molho. Quem se levantaria
contra a legalização de uma nova arbitrariedade? Na Justiça paulista,
felizmente, dois promotores e uma juíza desempenharam esse papel após o
Shopping Pátio Higienópolis, reduto de paulistanos endinheirados, pleitear o
direito de apreender crianças e adolescentes desacompanhados dos pais
para entregá-los ao Conselho Tutelar ou à Polícia Militar. Não que os
estudantes dos colégios particulares da região estivessem a perigo. Os alvos
eram bem definidos: menores em situação de rua, que pediam esmola ou
praticavam atos de vandalismo, furtos e “intimidação aos frequentadores”.

Em seu despacho, a promotora Maria Fernandes de Lima Esteves, da Vara da


Infância e da Juventude, manifestou-se pela extinção da ação. Segundo ela, a
apreensão de crianças e adolescentes é competência da polícia, não pode
ser delegada a terceiros. Se constatada a prática de um ato infracional,
bastaria chamar a autoridade policial para tomar as providências. Ao analisar
o caso, a juíza Monica Gonzaga Arnoni acrescentou: “Considerando que o
pedido de autorização para apreensão também engloba os menores que não
estejam na companhia de seus pais ou responsáveis e que estejam se
colocando em situação de risco, bem como os frequentadores ou, ainda,
esmolando nas dependências do empreendimento, objetiva o autor, em
verdade, um salvo-conduto para efetivar no estabelecimento uma genuína
higiene social”.

A magistrada tem razão. Nenhuma autoridade judicial se arriscaria a ordenar


a apreensão de um menor por mendicância, que não é crime, muito menos
ato infracional. Se o fizesse, estaria desrespeitando o direito constitucional de
ir e vir, além de cometer um delito previsto no artigo 230 do ECA, transcrito a
seguir na íntegra: “Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade,
procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou
inexistindo ordem escrita de autoridade judiciária competente. Pena: detenção
de seis meses a dois anos. Parágrafo único: Incide na mesma pena aquele
que procede à apreensão sem observância das formalidades legais”.

Recentemente, o Shopping Pátio Higienópolis fez pleito


semelhante à Justiça paulista, e levou uma lição da magistrada

É justamente esse ponto que o PSL deseja suprimir do ECA, uma espécie de
salvaguarda para os seguranças de estabelecimentos comerciais que
precisam lidar com os “ameaçadores” garotos. “Se o shopping quisesse tratar
a questão com seriedade, poderia fazer parcerias com organizações sociais
para que educadores realizassem a abordagem dessas crianças e
encaminhamentos em conjunto com os Conselhos Tutelares, Varas da
Infância e Juventude, Secretaria Municipal de Assistência Social, visando o
restabelecimento dos vínculos familiares, frequência escolar e em programas
de educação por tempo integral, para que saiam da situação de risco, de
exclusão social e de trabalho infantil”, detalha o advogado Ariel de Castro
Alves, integrante do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo.
“Da forma como desejam atuar, o objetivo parece ser mesmo o de
marginalizar e excluir esses garotos, o de ‘limpar’ o shopping. A juíza deu
uma aula de Estatuto da Criança e do Adolescente.”

Após o episódio, o Ministério Público de São Paulo instaurou um inquérito civil


para verificar a formação dos seguranças de empresas privadas de vigilância,
com vistas à efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes. “Temos
relatos de abusos praticados contra menores em outros shoppings. Não
podemos permitir a repetição da tragédia que aconteceu no Rio de Janeiro”,
afirma o promotor Eduardo Dias de Souza Ferreira, em alusão à morte de um
jovem por um segurança da rede de supermercados Extra. Ele também abriu
um inquérito para apurar a efetividade da política municipal de assistência
social direcionada para as crianças e adolescentes em situação de rua, mas
não consegue conceber a legalização da prática de apreender menores para
averiguação ou por motivo de perambulação. “Desde 1988, ninguém pode ser
detido para averiguação porque a Constituição, em seu artigo 5º, veda tal
prática. O problema da população infantil em situação de rua é sério, mas
fruto da absoluta ineficiência dos órgãos de proteção e acompanhamento.”

Ao
se

Letra morta? Pela Constituição, um cidadão, adulto ou criança, só pode ser preso em
flagrante ou por ordem judicial

manifestar sobre o assunto, o Pátio Higienópolis pediu “sinceras desculpas


por gerar qualquer tipo de interpretação contrária à intenção de proteger os
menores desacompanhados”. O shopping, vale relembrar, já foi acusado de
racismo há dois anos, quando o jornalista Enio Squeff, branco, tomava chá
com o filho Raul, de 7 anos e negro, e foi interpelado por uma funcionária, que
lhe perguntou se o garoto “estava incomodando”. À época, o estabelecimento
lamentou o ocorrido e disse que “reorientou a colaboradora envolvida”.

O PSL, por sua vez, mantém firme a determinação de facilitar a apreensão de


menores por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) interposta
há 14 anos. “Entendemos que toda criança precisa ser repreendida quando
faz algo errado”, justificou o partido, em recente nota enviada ao jornal O
Globo. Um erro como pedir esmola ou vagar pelas ruas? Embora Bolsonaro
não estivesse filiado ao partido em 2005 e não tenha defendido publicamente
a iniciativa, seria uma grande surpresa se ele se manifestasse contra. Em
plena campanha presidencial, ele chegou a dizer que o ECA deveria “ser
rasgado e jogado na latrina”. “É um estímulo à vagabundagem e à
malandragem infantil”, acrescentou o então candidato, defensor da redução
da maioridade penal para 14 anos. Conforme a agenda proposta pelo ministro
Dias Toffoli, o julgamento da Adin está previsto para 13 de março.

O governo também quer endurecer as penas dos adultos e


permitir a volta dos manicômios. É a sua forma de lidar com
os “indesejáveis”

Esse não é, porém, o único indicativo de como o atual governo pretende lidar
com os indesejáveis. No início de fevereiro, o Ministério da Saúde publicou
uma nota técnica que abre brechas para o retorno dos manicômios e seus
medievais procedimentos terapêuticos. Com novas diretrizes para as políticas
de saúde mental, o documento prioriza as internações psiquiátricas em
detrimento dos serviços ambulatoriais de base comunitária, além de permitir a
volta do eletrochoque. Libera ainda a internação de crianças e adolescentes
nos mesmos espaços destinados aos adultos.

Na prática, esse novo documento aprofunda as diretrizes lançadas em 2017


pelo governo Temer. Já naquela época, o ex-ministro da Saúde José Gomes
Temporão juntou-se a outros colegas para divulgar um manifesto contra a
reformulação. “Por trás desse pensamento, bastante disseminado na
sociedade, há uma visão distorcida, da loucura como ameaça. Quem sofre
algum distúrbio psíquico é visto como um desvio da norma, alguém que
precisa ser afastado do convívio social”, disse a CartaCapital, lembrando que
os hospitais psiquiátricos funcionavam como verdadeiros depósitos humanos
até serem desativados pela política antimanicomial. “Ainda prevalece uma
visão bastante preconceituosa, semelhante àquela que vemos contra
pacientes com hanseníase ou tuberculose. Mas a solução não é encarcerar
os indesejáveis.”

Não bastasse, o “pacote anticrime” apresentado por Sérgio Moro, ministro da


Justiça de Bolsonaro, propõe o recrudescimento das penas e cria obstáculos
para a progressão penal. O projeto estabelece que, se o condenado por
qualquer crime for reincidente, o regime inicial da pena será o fechado. Isso
Efeito colateral. O encarceramento em massa permitiu a ascensão das facções nos presídios
e toda sorte de violações nos antigos hospitais psiquiátricos

também valerá para os sentenciados por crimes como peculato, corrupção e


roubo. Os sentenciados por crimes hediondos também não têm direito a
saídas temporárias, salvo para tratamento médico ou em caso de morte de
parente – direito recentemente negado em duas instâncias ao ex-presidente
Lula, vale registrar.

O Supremo, no entanto, já declarou inconstitucionais regras semelhantes


previstas na Lei de Crimes Hediondos, aprovada em 1990. Um dos
parágrafos desta lei estabelecia que a pena para condenados por crimes
graves deveria ser cumprida integralmente em regime fechado. Relator de um
habeas corpus sobre o tema, o ministro Marco Aurélio Mello apontou que a
obrigatoriedade do regime fechado conflita com a garantia da individualização
da pena, prevista no artigo 5º, XLVI, da Constituição. Desde 2006, a regra não
tem mais validade.

Pesquisas do Instituto Sou da Paz demonstram que cerca de 40% dos


projetos apresentados a cada ano pelos deputados federais com o objetivo de
melhorar a segurança pública buscam tipificar um novo crime ou aumentar a
pena de um já existente. “O resultado observado não é a diminuição da
violência, mas sim a superlotação e a perda de controle dos presídios de todo
o País”, diz a ONG. De fato, se cadeia resolvesse, o Brasil seria uma das
nações mais seguras do mundo. O número de detentos passou de pouco
mais de 90 mil, em 1990, para 726,7 mil em junho de 2016, segundo o último
levantamento divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional. Trata-se
da terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados
Unidos e da China.
O encarceramento em massa não foi capaz, porém, de trazer pacificação
social. Apenas em 2017, o País registrou 63.880 mortes violentas, segundo o
Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número é quase 17 vezes superior
aos 3.804 civis mortos no Afeganistão no ano passado, segundo um balanço
recém-divulgado pelas Nações Unidas. Os talebans e insurgentes do Estado
Islâmico precisariam de uma década para produzir o mesmo número de
cadáveres contabilizados no Brasil em apenas um ano. •

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: ANDRESSA ANHOLETE/afp e Divulgação/Luiz Alfredo/Revista O Cruzeiro -


RAPHAEL ALVES/afp
O direito de matar
ARTIGO O pacote Moro oficializa o extermínio de jovens negros das periferias
brasileiras

Por Benedita da Silva*

O ministro quer combater o crime no lugar errado

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Apresentado como solução contra a criminalidade, o “Pacote Anticrime” do


ministro da Justiça, Sérgio Moro, na verdade dá licença para os agentes
públicos matarem, pois essa é a linha mestra das propostas. Nada mais faz
do que oficializar aquilo que sempre foi feito contra as populações das favelas
e periferias, com a tolerância das instituições.

Instalada no Senado Federal, em 2015, a CPI do Assassinato de Jovens


apurou que, no Rio de Janeiro, 99% dos casos das mortes em confronto com
policiais são arquivados sem investigação. Os autos de resistência passaram
a ser a moeda corrente do combate à criminalidade. A CPI revelou que o
Brasil está no topo dos países que têm mais homicídios, e, dos 60 mil
assassinados anualmente, quase metade das mortes é de jovens entre 16 e
17 anos de idade.

É fato histórico que as populações das favelas e periferias, em sua grande


maioria constituídas por negros e indivíduos de baixa renda, vivem numa
espécie de “cativeiro social”, como muito bem expressou o enredo da escola
de samba Paraíso do Tuiuti, no Carnaval de 2018.

Para esses segmentos sociais discriminados, excluídos dos direitos de


cidadania garantidos pela Constituição, não há política de segurança pública,
mas repressão permanente e muita “bala perdida”, como se chama no Brasil
os efeitos colaterais em uma guerra.

Casos como o de Cláudia Ferreira, do Morro da Congonha, que ainda viva foi
arrastada por 350 metros presa ao para-choque de uma viatura policial, em
setembro de 2018, e, recentemente, o da menina Jenifer Gomes, de 11 anos,
morta por um tiro de fuzil no peito, e dos 13 jovens do Morro do Fallet, cuja
morte em confronto é desmentida por testemunhas, só reafirmam esses
efeitos colaterais em nosso país. Ou seja, “balas perdidas” e execuções
sumárias são, infelizmente, o cotidiano de qualquer favela, não apenas no Rio
de Janeiro, mas igualmente em outros estados.

O que Moro propõe, refletindo o clima de violência que Bolsonaro


institucionalizou no governo, é uma “guerra sem prisioneiros”, cujas
consequências farão elevar ainda mais a taxa de homicídios dos três lados
envolvidos: os bandidos, os agentes públicos e os moradores inocentes das
favelas e periferias.

Não é pela força bruta militarizada ou mesmo das Forças Armadas, como as
repetidas intervenções nas favelas do Rio de Janeiro, que se enfrentará o
crime organizado. Nas comunidades está a ponta visível do tráfico, mas nelas
não se produzem drogas nem armas. Por outro lado, muitos jovens são
atraídos pelo poder do tráfico porque não veem futuro numa vida sem estudo
e sem emprego.

No Rio de Janeiro, 99% dos homicídios cometidos por


policiais são arquivados

Portanto, o combate consequente ao crime organizado faz-se dentro e fora


das comunidades. E para ter êxito precisa estar articulado com políticas
sociais, de geração de emprego e respeito efetivo à cidadania de todos, sem
discriminar quem é negro e pobre.

A proposta de Moro é completamente oposta, pois, além de focar o conflito


armado nas comunidades, garante ao agente público o direito de matar se
estiver numa situação de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.
Com motivos tão subjetivos fica aberto o caminho para as execuções
sumárias, que parece ser o objetivo real da proposta.
Na visão de Moro e Bolsonaro, o “homem de bem”, que precisa de arma para
se defender, não está na favela nem é negro e pobre. Simbolicamente, ele
representa o elemento de ligação entre a barbárie, praticada contra as
comunidades, e o uso generalizado da violência como primeiro recurso contra
qualquer desavença ou mesmo contrariedade racista, misógina e homofóbica.
É a barbarização geral das relações humanas num país onde, apesar de tudo,
ainda se confia no futuro.

Os avanços sociais conquistados na Constituição de 1988, sobretudo os


capítulos dos direitos da mulher, do negro e do indígena, deram impulso a
fortes correntes por mudanças democráticas de fundo estrutural, que levaram
a 13 anos de governos progressistas. Muitos daqueles avanços
constitucionais saíram do papel para a vida justamente nesse período. É
impossível avaliar o impacto para a vida de uma mulher chefe de família de
baixa renda receber um imóvel popular ou ver o seu filho ou filha se formar
numa universidade.

O direito à moradia e o direito à educação superior pública e gratuita, coisas


que hoje estão tirando do povo, representam conquistas sociais que reduzem
enormemente a base social do tráfico e abrem uma avenida para o consenso
social e o crescimento cultural.

As novas gerações, herdeiras das lutas e conquistas constitucionais dos seus


pais e avós, voltam a viver a tragédia de perder as oportunidades que tinham
e o enorme desafio de novamente conquistar os seus direitos que agora estão
sendo roubados.

O pacote anticrime de Moro, como também a reforma da Previdência, ambas


diretamente relacionadas à vida do povo, seguem o modelo autoritário de não
dialogar com a sociedade, nem mesmo com seus representantes políticos.

A confiança que o nosso povo tem no futuro, em parte porque sempre


sobreviveu às margens da sociedade, preserva a memória dos direitos sociais
usufruídos até há poucos anos e demonstra uma confiança que não se abala
com os rosnados do autoritarismo e sabe esperar o momento de entrar em
cena.

A resistência do “cativeiro social” representa uma linha invisível, mas, ao


mesmo tempo, extremamente forte e presente nas comunidades e periferias,
uma resistência que, apesar deles, produz luta e muitas Marielles. •

*Deputada federal (PT-RJ), ex-deputada constituinte, ex-governadora do Rio


de Janeiro, ex-senadora da República, ex-ministra da Secretaria Especial de
Trabalho e Assistência Social

ÍNDICE
CRÉDITOS DA PÁGINA: Ian Cheibub/AGIF/afp e Sergio LIMA/AFP
O Brasil de Bolsonaro
RADIOGRAFIA Ele não reflete o País real. É masculino, evangélico,
visceralmente antipetista e centrado nas regiões mais ricas

Por Marcos Coimbra

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Em outubro passado, Bolsonaro ganhou a eleição. Recebeu, no primeiro


turno, o voto de 34% dos eleitores brasileiros, 13 pontos porcentuais a mais
que Fernando Haddad. No segundo, embora o petista conquistasse o voto de
quase 2 em cada 3 eleitores dos demais candidatos, o capitão foi a 39% e
venceu.

É comum imaginar que as vitórias eleitorais são socialmente homogêneas,


isto é, que a maioria obtida no conjunto do eleitorado se repete nos grandes
grupos nos quais a sociedade se divide. Que a vitória decorre de o vencedor
ser majoritário em todos os segmentos relevantes.

Trata-se de um equívoco, desmentido em diversas eleições. Naquela do ano


passado, um equívoco completo.

A tomar pelas pesquisas de intenção de voto realizadas ao longo de 2018, o


Brasil que votou em Bolsonaro está longe de ser um bom retrato do conjunto
de nossa sociedade. O Brasil de Bolsonaro não é igual ao Brasil real.

Vejamos:

1. GÊNERO

As mulheres são maioria no eleitorado do Brasil, em consequência do avanço


da escolaridade feminina e do atraso masculino decorrente da entrada
precoce no mercado de trabalho. Há mais eleitoras que eleitores, em especial
nas regiões mais pobres. Mas o eleitorado de Bolsonaro é significativamente
mais masculino.

2. DISTRIBUIÇÂO REGIONAL
No

Brasil, o Sudeste e o Sul, as duas regiões mais ricas, representam 58% do


eleitorado total, restando 42% para a soma de Nordeste, Centro-Oeste e
Norte. Em outras palavras, não estamos muito distantes de um equilíbrio
entre “Brasil mais rico” e “Brasil mais pobre”. No Brasil de Bolsonaro, o
mesmo não ocorre. O tamanho relativo das duas partes muda de maneira
relevante: entre os eleitores de Bolsonaro, os moradores das regiões mais
ricas são quase o dobro daqueles das mais pobres. No Sul e Sudeste
estavam 66% das intenções de voto no capitão.

3. RENDA
O

Brasil é um país pobre, onde quase 45% do eleitorado pertence a famílias


com rendimentos totais abaixo de dois salários mínimos mensais. O que quer
dizer que apenas pouco mais da metade da população brasileira tem renda
maior. Mas não no Brasil de Bolsonaro. Nesse, 70% dos indivíduos vivem
com rendimentos maiores. É um recorte mais rico do País.

4. RELIGIÃO

Brasil é um grande país católico, no qual quase 60% dos eleitores assim se
definem, mesmo com o avanço das igrejas evangélicas nos últimos anos. No
conjunto, os eleitores evangélicos são metade dos católicos. No Brasil de
Bolsonaro, há ainda vantagem dos católicos, mas pequena. Somente 10
pontos porcentuais separam os dois grupos.

5. RELAÇÂO COM O PT

Seria despropositado imaginar que o Brasil de Bolsonaro fosse equivalente ao


conjunto do País no que se refere às atitudes em relação ao PT. É natural que
houvesse muito mais antipetistas entre aqueles que pensavam em votar no
capitão, assim como havia muito mais petistas com intenção de voto em
Haddad.

Não deixa, no entanto, de ser notável que 60% das intenções de voto em
Bolsonaro viessem de antipetistas, mais ou menos aguerridos. É possível que
alguns fossem contrários ao PT por crença nas virtudes do bolsonarismo. Mas
o mais provável é que fossem eleitores inclinados na direção do capitão
fundamentalmente por rejeitar o PT. Alguns sequer enxergavam outras
qualidades no candidato.

Conclusões: o Brasil de Bolsonaro é muito diferente do Brasil real. Sua vitória,


cevada com o recurso a expedientes e trapaças hoje identificados, consistiu
em formar uma maioria que, paradoxalmente, não expressa o conjunto de
nossa sociedade.

O Brasil mais masculino, mais centrado em regiões ricas, com eleitores mais
ricos e mais evangélicos, super-representado de antipetistas, derrotou o Brasil
da maioria feminina, do maior equilíbrio entre regiões ricas e pobres, de larga
maioria de eleitores de renda baixa, de petismo e antipetismo se equivalendo.

“Bolsonaro é o
anticarnaval”
FOLIA O historiador e escritor Luiz Antonio Simas explica por que os blocos
de rua são uma potente forma de resistência

Por Fred Melo Paiva

Para Simas, a festa coloca em disputa o território das cidades

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Prepare-se para a safra recorde de laranjas. Nas ruas do País, um pulsante


laranjal desfilará em centenas, quiçá milhares, de blocos carnavalescos.
Outras fantasias, não tanto cítricas, porém ainda mais contundentes, tomarão
até cidades como São Paulo e Belo Horizonte, outro dia mesmo destinos
seguros aos que do Carnaval preferiam se refugiar. Em ambas as cidades, a
festa de rua renasceu a partir dos movimentos que politizaram a ocupação do
território urbano, tranformando-se numa balbúrdia de homéricas proporções.
Laranjas ao alvo, Bolsonaro será o saco de pancada da turba desfilante. As
mulheres comandarão a massa, peitos e bundas de fora, soberanas de seus
corpos. Na Sapucaí, há de surgir um novo Temer Vampirão.

Na música de Erasmo Carlos, houve um João que “dormiu no tombo e foi


pisado pela escola,/ morreu de samba, de cachaça e de folia,/ tanto ele
investiu na brincadeira,/ para tudo tudo se acabar na terça-feira”. É nóis:
fechada a janela de transferência da nossa revolta, é vida que segue, casa-
grande e senzala, nenhuma Bastilha a se queimar na quarta-feira, embora de
Cinzas. Para o historiador Luiz Antonio Simas, no entanto, o Carnaval é
“resistência” que transcende a bagunça e avança para além do feriado. Autor
de 16 livros sobre a cultura popular, entre eles o recente Almanaque
Brasilidades e o ganhador do Prêmio Jabuti A História Social do Samba”,
Simas é um dos mais respeitados pesquisadores do Carnaval brasileiro. Ele
fala a Carta Capital:

Carta Capital: O Carnaval é uma festa que aliena ou politiza?


Luiz Antonio Simas: Tem a fama de ser uma festa da alienação, mas sempre
foi muito politizada. Porque tensiona, por exemplo, os usos da cidade, e isso é
absolutamente político. O Carnaval dialoga dessa forma tensa com o poder
instituído. Houve carnavais, ainda nas vésperas da Abolição da Escravatura,
em que a questão abolicionista estava presente como um tema forte nas ruas.
É uma festa de tensionamento político e uma festa, sobretudo, de disputa
pelo território da cidade.

CC: Os nossos presidentes foram sempre alvo dessa galhofa do Carnaval?


LAS: Em menor ou maior escala, sim. O Carnaval é bagunceiro com o
exercício do poder. Você pega, por exemplo, um presidente como Floriano
Peixoto (1891-1894). Seu governo tentou mudar o Carnaval para junho, com
o argumento de que o mês de verão é propenso para epidemias. A população
deu uma banana para esse tipo de coisa e houve dois carnavais. Em 1912,
iam adiar o Carnaval do Rio de Janeiro porque o Barão do Rio Branco havia
morrido, e a turma foi para as ruas sacanear o Barão. Não existe Carnaval a
favor. Sobretudo o Carnaval de rua, ele é o Carnaval do contra, aquele que
galhofa do poder.

CC: Mesmo durante as ditaduras?


LAS: Nessas ocasiões, a postura zombeteira tinha de acontecer nas brechas
do poder instituído. Era difícil, porque ali você tinha um Estado que trabalhava
com a assistência da repressão. Mas ao mesmo tempo o Carnaval estava na
rua, ele acontecia. Em momentos de autoritarismo, a população de certa
forma se apropria de alguns espaços, de algumas festas e ali pode expressar
suas insatisfações e desejos. Isso valia para o Carnaval, como valia para o
que era um estádio de futebol durante a ditadura militar, o momento em que
se tinha a perspectiva de um enfrentamento por território. O Carnaval não é
político só no discurso explícito. É uma festa política quando você veste uma
fantasia galhofeira e ocupa um espaço da cidade que o poder público não
quer que você ocupe. Então existem dimensões do Carnaval que chamo até
de “gramáticas não normativas”, e que são políticas mesmo. Refiro-me à
questão do território. É um momento em que a cidade está sendo disputada.
CC: Inclusive disputada também com o dinheiro. Há alguns carnavais, São
Paulo tenta impor uma marca de cerveja aos ambulantes que trabalham na
rua durante a passagem dos blocos.
LAS: O Carnaval de rua lida com três instâncias que tentam domesticá-lo,
cada uma a seu modo. Tem o discurso da ordem pública, que busca exigir
alvarás, estabelecer horários em que a rua pode ser ocupada, determinar
onde o bloco desfila, se a prefeitura autoriza que se vá aqui ou ali. Uma
segunda instância é de ordem moral, com o discurso conservador ligado aos
costumes. O Carnaval seria a festa da depravação, e hoje isso é muito em
voga no Brasil, por causa do avanço neopentecostal e em razão de um
governo com pautas obscurantistas do ponto de vista do comportamento. A
terceira instância, que funciona como um mecanismo que tenta estabelecer
controle sobre o Carnaval, é a do mercado. Sua perspectiva é a do marketing,
do dinheiro circulante. É a marca de cerveja, é o cartaz que não deve afrontar
o patrocinador.

“A resistência está no corpo preto que entra na avenida e exerce sua centralidade na dança
da passista”

CC: A crítica política no Carnaval é uma característica muito mais dos blocos
de rua do que da escola de samba?
LAS:Sem dúvida. Escola de samba não é uma instituição de resistência. Ela
surge como uma cultura de brecha, que negocia na fresta. Desde suas
origens na década de 1930, as escolas negociam com o Estado, com a
contravenção, com o turismo, com a mídia, com o mercado. Você tem num
ano um carnavalescoque faz algo com uma pegada mais politizada, que
critica o poder. Não significa que a escola seja isso. No ano seguinte ela pode
fazer o Carnaval mais chapa-branca e conservador que você imaginar. Já os
blocos de rua têm de fato uma tradição de galhofa e afronta ao poder, um
Carnaval anti-institucional que é muito mais efetivo.

“A luta contra o obscurantismo será uma marca efetiva deste


Carnaval”

CC: O que se pode esperar dos blocos este ano com relação aos protestos
políticos?
LAS: O governo que aí está é um alvo fácil, porque afronta o próprio espírito
carnavalesco. É um prato feito para o Carnaval cair em cima na base da
galhofa. Por outro lado, teve um avanço muito significativo nas pautas
comportamentais, que foram respondidas com um discurso de retrocesso. Os
festejos de Rio, São Paulo, Belo Horizonte têm apresentado uma grande
novidade, que é o protagonismo da mulher brincando o Carnaval. Há blocos
só de mulheres, que são da maior relevância. Está presente uma pauta firme
das mulheres contra o assédio no Carnaval. Esse protagonismo feminino e a
luta no campo comportamental, que envolve a tolerância, contra o
obscurantismo, será uma marca muito efetiva deste Carnaval.

CC: O Bolsonaro é o anticarnavalesco por excelência?


LAS: De todos os presidentes da história da República, incluindo os militares,
Bolsonaro é o que se apresenta com a postura mais anticarnavalesca. Porque
não tem nada ali que passa nem perto da força do Carnaval, da
espontaneidade do Carnaval de rua, da maneira como a festa lida com o
corpo. Ele é o anticarnaval por excelência. O próprio túmulo do Carnaval.

CC: Marchinhas com mensagens homofóbicas ou misóginas começaram a


desaparecer dos repertórios, ou tiveram letras modificadas. O que acha desse
aspecto politicamente correto numa festa que é anárquica, com boa dose de
loucura e transgressão?
LAS: Acho muito saudável que tenha ocorrido o amadurecimento de certas
pautas, e que os próprios carnavalescos pensem no que vão cantar e no que
não vão cantar. Muita gente tem a dimensão hoje de que algumas coisas não
cabem mais. Além disso, outros temas vão surgindo. A marchinha era para
ser uma música ligeira. Algumas permaneceram porque são muito boas, mas
a intenção não era essa. A Cabeleira do Zezé” é uma brincadeira brilhante
que fez sucesso enorme. Se durou, ótimo que tenha durado. Mas é evidente
também que as marchinhas vão acompanhando a dinâmica da sociedade,
que cria novas demandas. Então, se tem a marchinha homofóbica dos anos
50, 60, hoje tem aquela que combate a homofobia.

CC: O senhor diz que o Carnaval é uma forma de resistência. Por que a
multidão não permanece nas ruas e faz a revolução?
LAS: Quando eu penso no Carnaval como resistência, é na seguinte
perspectiva: no Brasil, a República fechou os canais institucionais de
exercício da cidadania. Em contrapartida, as populações, sobretudo as mais
pobres, criam mecanismos muito próprios para vivenciar o espaço público. Eu
acho que isso é cidadania. Ao mesmo tempo, esse exercício que não é formal
é muito evidente no Carnaval, mas não morre quando o Carnaval acaba. Ele
está presente na maneira como as esquinas estão ocupadas por rodas de
samba, nos bailes funk do subúrbio, nas rodas de rap, na cultura de periferia
que se expande. Isso está absolutamente fora dos canais institucionais de
exercício da política que a gente está acostumado a conceber e que achamos
que seria saudável. Quando falo do Carnaval como uma festa de resistência,
não é exatamente uma resistência direta, explícita. É claro que vai ter uma
marchinha que sacaneia o Bolsonaro, mas o Carnaval trabalha com outras
gramáticas. A gramática do corpo que dança, do corpo preto que entra numa
avenida e exerce seu protagonismo na dança da passista, a maneira como
esse corpo é audacioso. A expectativa que a gente tem de que as multidões
permaneçam nas ruas depois do Carnaval é uma perspectiva que trabalha
com um viés muito institucional e é, para o bem ou para o mal, pautada por
um certo racionalismo das luzes, enquanto as massas que fazem o Carnaval
foram obrigadas por vários dilemas da sociedade brasileira a experimentar a
cidade o tempo todo pelas frestas. O Carnaval talvez seja esse momento de
ebulição, porque é a hora em que essas frestas estão abertas. Mas, depois
dele, isso continua, sim, sendo exercitado. No Rio de Janeiro, por exemplo,
na Zona Norte, nas periferias, na Zona Oeste, a cidade está sendo
experimentada. Eu sou, em certo sentido, otimista por causa disso. Quem sai
das ruas nessa perspectiva de brincar o Carnaval e ir embora não é o povão.
O povão continua usando a cidade da maneira possível diante de todos os
canais fechados. Ele continua criando formas cotidianas de experimentar a
cidade, que, se não afrontam diretamente o poder público, é um mecanismo
de exercer a cidadania e tensionar o tempo todo.

A Paraíso do Tuiuti desfilou o Temer Vampirão e promete agora mostrar o laranjal. “Mas,
se você conhecer o seu presidente, vai ver que passa longe de uma escola politizada”
CC: Aqui em São Paulo, a gente viu nos Acadêmicos do Baixo Augusta
algumas mulheres que desfilaram sem camisa, como a questionar: “Se nós
homens podemos, por que elas não?” Por outro lado, as mulheres estão
seminuas na avenida, e a cobertura da tevê ou da internet é extremamente
objetificadora de seus corpos. Isso te parece contraditório?
LAS: A maneira que uma passista é vista pela comunidade dela é
completamente diferente da maneira como a gente vê aquela passista na
tevê, e está muito distante dessa objetificação do corpo da mulher. É até o
contrário. Sua função é de centralidade, de soberania sobre o próprio corpo.
Aquela passista é sujeito de sua própria escolha, da sua própria corporeidade,
é um corpo soberano e tem sua fala. É preciso cuidado, porque,
paradoxalmente, ao criticar a objetificação, a gente acaba por objetificar.

“No Rio, em São Paulo e Belo Horizonte, as mulheres serão


as protagonistas”

CC: Ano passado, a gente teve o Temer Vampirão na Tuiuti, este ano temos a
Mangueira com o Brasil dos negros. A Sapucaí está se inspirando nessa
contestação do Carnaval de rua?
LAS: A sorte da Sapucaí chama-se crise. Sou muito crítico às instâncias
diretoras do Carnaval no Rio de Janeiro: dirigentes de escola de samba,
presidente de liga de escola de samba, eu não levo a mínima fé nessa turma.
Eles não têm perspectiva nenhuma sobre a relevância cultural de uma escola
de samba. O que acontece é que o dinheiro ficou minguado, o patrocínio
some, o jogo do bicho já não investe como investia. A crise abriu espaço para
a renovação. Artistas novos ganharam a oportunidade de propôr enredos
autorais. Se não fosse por isso, a mesma escola que está fazendo um enredo
crítico sobre a política brasileira poderia fazer enredo sobre o extrato do
tomate.

CC: Talvez o sucesso da Paraíso do Tuiuti, com o Temer Vampirão, tenha


influenciado...
LAS: Se você conhecer o presidente da Paraíso do Tuiuti, vai ver que passa
longe dessa perspectiva de uma escola politizada. O que aconteceu ali foi um
carnavalesco, que é o Jacques Vasconcelos. Se ele sai, isso desaparece.

CC: Tem muito uma meninada nos blocos de rua vestidos de laranja, dizendo
que Bolsonaro é miliciano. A continuar assim, o senhor acha que um dia o
Carnaval vai derrubar um presidente, que vamos tacar fogo na Bastilha numa
Quarta-Feira de Cinzas?
LAS: A função do Carnaval não é essa. Até me lembrei de uma charge do
Jota Carlos de 1928, era chargista de uma revista chamada O Malho, aqui no
Rio. A Câmara Municipal inventou um projeto maluco para extinguir o
Carnaval, e isso chegou a ser debatido. Aí a charge do Jota Carlos era uma
porrada de gente fantasiada tentando invadir a Câmara Municipal. Aí um cara
virava para o presidente da Câmara e dizia: “Conselheiro, conselheiro, os
A atriz Maria Casadevall. Não é prestar-se à objetificação, é pela soberania do corpo

senhores vão acabar com o Carnaval. Por muito menos o povo fez a
Revolução Francesa”. O grande elemento de subversão do Carnaval é aquele
que, ás vezes, a gente não está atento para reparar. O Carnaval é uma festa
da luta do corpo contra a morte. Essa experiência do protagonismo do corpo
pode parecer alienante, mas isso faz muito sentido para quem experimenta
esse protagonismo, sobretudo os corpos dos desvalidos, mais do que os
nossos. A gente não consegue alcançar isso. Reconhecer o protagonismo
desses corpos no Carnaval é de uma dimensão muito grande. •

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: MAURO PIMENTEL/AFP E REPRODUÇÃO/MÍDIA SOCIAL - ANA


BRANCO/AG. O GLOBO E ALEX RIBEIRO/AFP
Zumbi não era Zumbi
CULTURA O Rio de Janeiro receberá coleção de arte iorubá após a revelação de
um segredo sobre o monumento ao herói de Palmares

Por Eduardo Castro


Identidade revelada. O rei de Ifé, maior autoridade do povo Iorubá, reconheceu as feições
da peça exposta no Rio e decidiu trazer outras peças de seu acervo
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O Rio de Janeiro vai receber a maior coleção de arte iorubá fora da África.
Serão centenas de peças, em processo de escolha e catalogação, que
chegarão a partir de agosto. Os artefatos milenares devem ser exibidos em
um espaço sem correspondente no mundo: a Casa de Herança Oduduwa, um
local para exposições, aulas de língua iorubá, centro de estudos e um teatro,
num elo permanente de comunicação e intercâmbio entre o Brasil e o povo
iorubá. Uma forma de aproximar as culturas e auxiliar o povo brasileiro a
conhecer melhor suas origens, heranças, histórias, e até suas feições.

A vinda desse tesouro histórico, religioso e cultural é um esforço pessoal do


rei de Ifé, Ojaja II, de 44 anos, a maior autoridade tradicional e religiosa do
povo iorubá, que originariamente habitava o Reino de Ketu e o Império do
Oyó, áreas atualmente do Benin e da Nigéria. Há ainda um grande número de
iorubás vivendo no Togo e em Serra Leoa, além de, fora da África, em Cuba,
na República Dominicana e no Brasil. O desejo do rei nasce de uma
coincidência propiciada pelo fato de o povo brasileiro desconhecer seus
antepassados africanos.

Em dezembro de 2015, Adeyeye Enitan Babatunde Ogunwusi, um empresário


então com 41 anos, tornou-se o rei de Ifé (Ooni de Efé, em iorubá). O
antecessor não era o pai dele, porque o trono não é hereditário. O rei é
escolhido entre integrantes das seis famílias reais da cidade. Mais de 50
iorubás pleitearam a honraria. Feita a seleção pelo Conselho Real, a
cerimônia de entronização foi transmitida ao vivo por emissoras de tevê da
Nigéria e do Benin para cerca de 40 milhões de súditos.

Dois anos depois, o rei iniciou uma campanha para agregar os iorubás
espalhados pelo mundo. Um diretor de tevê teve a ideia de pedir que
mandassem saudações gravadas pelo celular. Ao ver a mensagem que
chegou do Brasil, o rei quase pulou da cadeira. Era impressionante a
semelhança entre o seu próprio rosto e o cenário escolhido para a gravação:
o Monumento a Zumbi dos Palmares, no canteiro central da Avenida
Presidente Vargas, no Rio de Janeiro.

Na paisagem carioca desde 1986, a identidade da máscara de 3 metros de


altura e 800 quilos de bronze é misteriosa. Na época, o jornal O Globo
deixava claro que não era um busto do homenageado: “A escultura é réplica
de uma cabeça nigeriana esculpida entre os séculos XI e XII. Descoberta em
1938, ela hoje está no British Museum de Londres”. Em texto publicado no
livro A Cidade Vaidosa, de 1999, a historiadora e pós-doutora Mariza de
Carvalho Soares esmiúça vários aspectos da criação e instalação desse
monumento, mas também não traz a identificação do dono do rosto.
Ao contrário do que tantos pensam, o busto na Avenida
Getúlio Vargas não retrata o lendário líder quilombola...

Tudo indica que nem sequer o secretário de Cultura do Rio na época da


inauguração, o antropólogo Darcy Ribeiro, sabia exatamente de quem se
tratava. Em 1995, nos 300 anos da morte de Zumbi, ele declarou à Revista do
Senado Federal: “Um dos gostos maiores que eu me dei na vida foi erigir no
Rio o Monumento a Zumbi. Belíssimo, porque reproduz, muito ampliada, uma
cabeça de bronze do Benim. Não há quem olhe para ele e não se espante
com a beleza negra que expressa”. Em outras ocasiões, Darcy fez ilações
sobre o fato de a máscara “voar” sobre a estrutura de alvenaria, simbolizando
a decapitação de Zumbi.

Tanta beleza e força fez com que o próprio rei de Ifé quisesse ver a escultura
de perto. Em junho do ano passado, ele esteve no Brasil, acompanhado de
outros reis e rainhas africanos, para uma série de encontros no Rio de Janeiro
e em Salvador. A historiadora Carolina Maíra Morais (que mandou o vídeo do
marido para a coroação em 2017 e prepara um documentário sobre a saga da
cabeça de bronze) fez parte da comitiva, transformou-se em adida cultural do
Ooni de Ifé no Brasil e testemunhou a alegria de todos ao “reconhecer” os
traços do Rei na cabeça de bronze do Monumento a Zumbi. “Eles se sentiram
em casa, em solo iorubá”, diz a historiadora. “Foi um momento de alegria.
Não havia dúvida para ninguém ali que aquele era o rosto de Oduduwa”.

Na tradição iorubá, Oduduwa é o Senhor da Criação, o Pai de Todos. Para os


seguidores de vários matizes das religiões de matriz africana, o rei de Ifé é o
“Sentinela do Trono de Oduduwa” e tem a mesma importância que o papa
tem para os católicos. Segundo a tradição, o rei descende diretamente de
Oduduwa, deus do panteão iorubá, reencarnação de outras divindades.

Grande parte dos escravos trazidos ao Brasil Colônia ou no período imperial


era iorubá – também chamados de nagôs. A mitologia que originou o
candomblé, a umbanda e outras religiões afro-brasileiras tem muita influência
nagô, bem como o samba, nascido nas casas de senhoras do século XIX que
mantiveram os cantos e os batuques de seus antepassados.

Logo depois de visitar o monumento (Ori Olokun, em iorubá), o rei de Ifé


consultou seus guias espirituais e recebeu a ordem de mandar para o Brasil
imagens e peças originais do acervo milenar da cidade sagrada – e não
cópias ou reproduções. São os próprios orixás tentando reforçar a identidade
afro-brasileira e fazer com que conheçamos a história da nossa história. E
também com que Oduduwa e Zumbi dos Palmares sejam cada vez mais
conhecidos e reconhecidos pelo povo brasileiro, seus diretos descendentes,
inclusive nas feições. •

ÍNDICE
CRÉDITOS DA PÁGINA: Eduardo Castro
A Previdência e o Velho
Capitalismo
REFORMA Só pensa no passado. Inadmissível, por exemplo, a isenção de
dividendos e do sócio pejotização

Por Luiz Gonzaga Belluzzo

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Na última edição de CartaCapital, ousei enfiar minha colher no debate sobre a


reforma da Previdência. Afirmei que a reforma era anacrônica porque
desconsiderava o terremoto tecnológico e financeiro que está a abalar os
“velhos” mercados de trabalho da Era Fordista.Construídos sobre as garantias
de estabilidade das relações salariais e das políticas econômicas nacionais de
pleno emprego, os “velhos” mercados de trabalho sucumbiram às peripécias
do Velho Capitalismo.

O Velho Capitalismo não é o capitalismo envelhecido, mas, sim, aquele


reinvestido em sua natureza, revigorado nas forças da competição
desenfreada entre mamutes empresariais. Empenhados em capturar mais
valor, os mastodontes aceleram o tempo de produção, ocupam os espaços
globais e amesquinham as unidades nacionais onde insistem em sobreviver
homens e mulheres de carne e osso.

Em sua reinvenção, o Velho Capitalismo dissipou as esperanças do


capitalismo fordista dos Trinta Anos Gloriosos. O período glorioso alimentou a
concepção, ao mesmo tempo solidária, generosa e ilusória, da separação
entre duas formas do capitalismo: 1. O capital produtivo em que homens e
máquinas se combinam virtuosamente para a produção de bens e serviços;
e 2. O capital “improdutivo” que não produz mercadorias, mas gera
rendimentos “fictícios” para seus proprietários.

No renascimento do Velho Capitalismo, essas formas revelam que não são


opostas, senão contraditórias: desenvolvem-se como dimensões do mesmo
processo que subordina a produção dos meios materiais para a satisfação
das necessidades ao império da acumulação de riqueza monetária. Ao
derrubar as fronteiras erguidas pelas políticas intervencionistas para proteger
a produção e o emprego, o Velho Capitalismo soltou o demônio monetário
que carrega na alma.

A carteira verde-amarela desobriga os patrões de contribuir e


os habilita a recontratar empregados a salários mais baixos

No livro Phenomenology of The End, Franco “Bifo” Berardi desvenda essas


transformações: “Em suas etapas mais recentes, a produção capitalista
reduziu a importância da transformação física da matéria e a manufatura
física de bens industriais, ao propiciar a acumulação de capital mediante a
combinação entre as tecnologias da informação e a manipulação das
abstrações da riqueza financeira. A informação e a manipulação da abstração
financeira na esfera da produção capitalista tornam a visibilidade física do
valor de uso apenas uma introdução na sagrada esfera abstrata do valor de
troca”. A inteligência artificial, a internet das coisas e a robotização têm sido
incansáveis em sua faina de metamorfosear a materialidade da produção na
imaterialidade das formas financeiras.

Os empreendimentos de plataforma encarnam, hoje, a modalidade mais


aperfeiçoada do Velho Capitalismo. Além dos gigantes numéricos, como
Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, as plataformas ocupam outros
setores como finança, hotelaria, transportes, comercialização e distribuição de
mercadorias, entrega de comida em domicílio. Aí estão, em plena forma, as
plataformas dos Ubers e dos iFoods da vida. Os trabalhadores autônomos,
empreendedores de si mesmos, assumem os riscos da atividade –
investimento, clientela –, mas estão submetidos ao controle da plataforma na
fixação de preços e repartição dos resultados. Essa organização do trabalho
foi predominante nos primórdios do capitalismo manufatureiro da era
mercantilista, sob a forma do putting-out system. Os comerciantes forneciam
a matéria-prima para os artesãos “autônomos”, que estavam obrigados a
entregar o produto manufaturado em determinado período de tempo.

No capitalismo das plataformas, a utopia do tempo livre transmuta-se na


ampliação das horas trabalhadas, na intensificação do trabalho, no
endurecimento da concorrência, no enriquecimento de poucos, na
precarização e empobrecimento de muitos na bolha cada vez mais inflada dos
trabalhadores por conta própria. Em seu predomínio pós-Fordista, já
perscrutou Michel Foucault, o mercado, “poder enformador da sociedade”,
redefiniu os indivíduos-sujeitos. Os valores da livre-concorrência
transformaram todos e cada um em “empreendedores de si mesmos”,
proprietários, sim, do seu “capital humano”.

Na realidade real, o capital humano cultivado com os empenhos da educação


e da formação profissional sofre forte desvalorização nos mercados de
trabalho contaminados pela precarização, pelo empreendedorismo das
plataformas e pela continuada perda da segurança, outrora proporcionada
pelos direitos sociais e econômicos.

A concentração empresarial promove a rápida expansão dos rendimentos


derivados primordialmente pelo exercício da propriedade de ativos tangíveis e
intangíveis. Isso demonstra que o avanço do patrimonialismo não é uma
deformação da Nova Economia, se não a expressão necessária de suas
formas de apropriação da renda e da riqueza.

O projeto de reforma da Previdência agarrou-se aos pingentes do passado


para ignorar o futuro. Mas, para não bloquear o diálogo, prestamos uma
homenagem ao consenso dominante ao aceitar as proclamações a respeito
dos efeitos miraculosos da reforma sobre o crescimento.

Ainda assim, o Velho Capitalismo e suas “novas” formas de trabalho


dificultam, se não inviabilizam, reformas da Seguridade Social que não
contemplem uma participação maior dos impostos gerais, pagos por todos,
com forte viés progressivo, sobre a renda e a riqueza. Isto para não falar da
péssima ideia da Carteira Verde-Amarela, uma forma de desobrigar os
patrões de contribuir e, por isso, um facilitário para recontratar trabalhadores
com salários rebaixados.

Escrevi impostos, para escândalo dos que restringem o debate a respeito da


reforma necessária aos regimes de repartição ou advogam uma transição
altamente arriscada para a capitalização. Na situação brasileira, é
inadmissível, por exemplo, a isenção dos dividendos e de seu companheiro
inseparável, a pejotização. •

ÍNDICE
Migalhas aos idosos
ENTREVISTA O intuito do governo Bolsonaro, afirma o economista Eduardo
Fagnani, é demolir a Previdência e a seguridade

A Sergio Lirio

Brasília e o mercado querem amedrontar a população, diz o professor da Unicamp

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Nada irrita mais o economista Eduardo Fagnani, professor da Unicamp, do


que o argumento de que o Brasil irá à bancarrota sem uma reforma da
Previdência. “É um terrorismo absurdo e rudimentar”, insustentável diante de
alguns dados: por ano, a União repassa às empresas na forma de isenções
fiscais quatro vezes mais do que pretende economizar com a mudança nas
aposentadorias, enquanto a sonegação escoa pelo ralo outros 300 bilhões de
reais no intervalo de 12 meses. Desmontar o sistema previdenciário, avalia,
não visa salvar o País ou combater privilégios. É a velha guerra pelo controle
do orçamento público. “Temos uma elite ignorante, um capitalismo tosco, que
não aceita sequer princípios básicos da social-democracia.”

CartaCapital: O governo afirma que a reforma da Previdência busca combater


os privilégios. É isso mesmo?
Eduardo Fagnani: O projeto enfrenta alguns privilégios, de maneira simplória,
mas é muito cruel com a maior parte da população. Há uma regra implícita
que estabelece uma elevação da idade mínima para a aposentadoria toda vez
que aumentar a expectativa de vida. Em pouco tempo, a idade mínima subirá
de 65 anos, no caso dos homens, para 66, 67. Além disso, uma parcela
ínfima dos trabalhadores conseguirá receber a aposentadoria integral, hoje
equivalente a 5,8 mil reais por mês. Pelas regras propostas, será preciso
acumular 40 anos de contribuição e ter completado 62 anos, no caso das
mulheres, e 65 anos, entre os homens. Antes da reforma trabalhista do
governo Temer, que ampliou a precariedade do emprego, 40% dos
aposentados não conseguiam comprovar nem 20 anos de contribuição.

CC: Segundo o senhor, o Brasil vai trocar um sistema de previdência pública


por um assistencialismo barato. De que maneira?
EF: Vamos trocar o pacto social estabelecido na Constituição de 1988, no
qual todos têm direitos mínimos garantidos, por um assistencialismo barato,
em duplo sentido. É precário e custa pouco. Como os trabalhadores terão
dificuldade para comprovar 20 anos de contribuição, serão empurrados para o
Benefício de Prestação Continuada, um mecanismo da assistência social. E o
que o governo propõe diante dessa inevitável realidade? Limitar o benefício.
Para receber um salário mínimo, exige-se a idade de 70 anos. Abaixo disso, o
Estado paga 400 reais. E sem nenhuma regra de reajuste. Em 30 anos,
podemos inverter a pirâmide. Atualmente, 80% dos idosos têm como fonte de
renda ao menos um auxílio da Previdência. E lembro: a média dos benefícios
é de 1,5 mil reais. São esses os privilegiados?

CC: O que aconteceria no futuro?


EF: Com a reforma trabalhista, ficará cada vez mais difícil contribuir
regularmente para a Previdência. Em 30 anos, há o risco de 80% da
população não ter uma proteção previdenciária e ser obrigada a se contentar
com os 400 reais do Benefício de Prestação Continuada. Saímos da
seguridade social para o assistencialismo e o seguro social. A seguridade é
baseada no conceito de solidariedade. O seguro é um contrato individual. Se
não pagou, não tem direito.

CC: Sem a reforma da Previdência, argumentam o governo e o mercado, o


Brasil vai falir. O que o senhor acha dessa premissa?
EF: É um dos argumentos mais absurdos e rudimentares que ouço. O
governo projeta uma economia de 1 trilhão de reais em uma década com a
reforma. São 100 bilhões de reais por ano. Só em isenções fiscais dados a
empresas a União abre mão de quase 400 bilhões de reais anualmente. A
sonegação, por sua vez, é estimada em 300 bilhões anuais. A sonegação
deixou de ser crime na década de 1990. Pior, é premiada com programas
regulares de refinanciamento, com descontos de juros e multas. Quando se
somam os 400 bilhões de isenção, 500 bilhões de sonegação e 400 bilhões
de juros que a Receita abre mão por ano, dá 1,2 trilhão. É o maior programa
do planeta de transferência de renda para os ricos. Sem falar no terrorismo
demográfico...

O gatilho da idade mínima será barreira intransponível

CC: ... De que maneira?


EF: Sempre comparam: no passado, havia 10 trabalhadores para cada
aposentado. No futuro, serão 2 para 1. Poxa, não fecha a conta, certo?
Errado. A questão é que o sistema previdenciário não é financiado apenas
pelo trabalhador na ativa. Ele é tripartite. O governo e as empresas também
contribuem. Em meados do século passado, os países europeus
desenvolvidos fizeram uma reforma tributária progressiva para o
financiamento da previdência sair da base salarial e incidir sobre a taxação
dos lucros e do patrimônio. Segundo um estudo da OCDE, 55% da
seguridade social em 25 nações que integram a organização são financiados
pelos impostos gerais, 30% pelo empregador e 15% pelo empregado.

CC: É preciso ou não reformar a Previdência?


EF: Nos últimos 30 anos, o Brasil fez quatro grandes reformas. O que ainda
precisa ser acertado no regime geral, o INSS, é muito pontual. Em 2012, no
governo Dilma Rousseff, uma lei aprovada pelo Congresso estabeleceu o
regime de capitalização para o serviço público. Todo servidor contratado a
partir daquela data receberá de aposentadoria o mesmo que um trabalhador
privado, teto de 5,8 mil reais. Para ganhar mais, é obrigado a contribuir, além
da alíquota do INSS, para o Funprev, um fundo de pensão que remunera de
forma proporcional à contribuição. Ou seja, em algumas décadas não
existirão mais os marajás do setor público federal. As aposentadorias do
funcionalismo estadual e municipal, estas, sim, precisam ser reformadas. Mas
o projeto em curso não visa salvar o Brasil da bancarrota.
“Vamos trocar o pacto social de 1988, no qual todos têm
direitos mínimos, por um assistencialismo barato, em duplo
sentido. É precário e custa pouco”

CC: Mira o quê?


EF: Temos uma elite ignorante, um capitalismo tosco, que não aceita sequer
alguns princípios básicos da social-democracia. A única “revolução” que a
Constituição de 1988 fez foi introduzir alguns elementos da social-
democracia, a ideia de humanizar o capitalismo. O período entre 1988 e 2018
é um ponto fora da curva. O capitalismo brasileiro é antissocial e
antidemocrático. Quer tomar de volta o que cedeu a contragosto nas últimas
três décadas. •

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Wanezza soares e Jonas Oliveira/Folhapress


A contrarrevolução
THEOBSERVER Financiados por religiosos dos EUA, os cultos neopentecostais
proliferam em Cuba e testam sua influência

Por Ed Augustin, em Havana

Celebração evangélica na Praça da Revolução

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Cerca de mil fiéis reuniram-se numa manhã de sábado na igreja metodista do


bairro de Vedado, em Havana, a capital de Cuba, pouco tempo atrás. Depois
que a música de “renascimento” e os tambores de conga se dissiparam, os
dançarinos desceram do palco e os fiéis tinham baixado os braços
estendidos, o pastor Lester Fernández proferiu um sermão sobre as terríveis
consequências que a lei do casamento gay traria.

“A igreja cubana, como parte essencial de nossa sociedade, está preocupada


e, portanto, tem o direito de se manifestar publicamente”, brada ao microfone.
“Amém”, responde o rebanho.

Numa ilha onde as campanhas em massa contra a política oficial são quase
inéditas – e onde o “ateísmo científico” já foi doutrina de Estado –, as igrejas
evangélicas irromperam no cenário político nos últimos meses em campanha
contra o casamento gay.

Uma nova Constituição cubana foi aprovada no domingo 24 e, enquanto o


aparelho do Estado faz campanha pelo “sim”, as igrejas Metodista, Batista e
Pentecostal, geralmente fraturadas, fazem uma contracampanha unida, mas
não chegam a pedir explicitamente o voto no “não”. Elas temem que a nova
Constituição abra a porta para o casamento homossexual.

No primeiro grande embate, os pastores levaram a melhor: o


casamento gay foi retirado da nova Constituição

“A Palavra é clara: Deus criou a humanidade à sua própria imagem”, disse


Belkis Ros Pascual, 51 anos, parada no Malecón, em Havana, no último
domingo, enquanto o bispo Ricardo Pereira e sua mulher, Maritza, se reuniam
com mais de cem outros metodistas para renovar seus votos de casamento e
declarar apoio à família tradicional. “Deus disse: ‘Sejam férteis e povoem a
terra’”, acrescenta Ros Pascual, usando um vestido de casamento e
segurando um buquê de flores. Ros Pascual e seu marido vão votar não à
nova Constituição, segundo ela.

Em outubro passado, as igrejas Me-todista, Batista e Pentecostal organizaram


um abaixo-assinado contra o esboço de Constituição que define o casamento
como uma união “entre duas pessoas”, e não entre um homem e uma mulher.
Eles entregaram 178 mil assinaturas à Assembleia Nacional, um
acontecimento inédito em Cuba. Os fiéis colocaram cartazes em portas,
postes e ônibus por toda a Ilha.

A campanha enérgica, ecoando a homofobia enraizada na Ilha, superou a


campanha oficial pelos direitos LGBT do Centro Nacional para Educação
Sexual (Cenesex), liderada por Mariela Castro, filha do ex-presidente Raúl
Castro, e uma tímida campanha, principalmente pela internet, de ativistas
independentes pelos direitos dos gays.

Ela pressionou o Estado a recuar de estabelecer na nova Constituição o


casamento como um direito de todos, independentemente da sexualidade.
Em dezembro, a Assembleia Nacional substituiu a definição “entre duas
pessoas” por uma linguagem mais ambígua, dizendo que legislaria sobre o
assunto futuramente.

“Examinando como eles conseguiram desencaminhar o casamento gay da


Constituição, está claro que os evangélicos se tornaram uma grande força
política”, disse Javier Corrales, professor de ciência política no Amherst
College, em Massachusetts (EUA).

Quase 20% dos latino-americanos hoje se identificam como evangélicos, ante


3%

Os cubanos aprovam a nova Constituição

nos anos 1980. Assim como a direita cristã nos Estados Unidos antes, eles
estão transformando a política na região, revigorando partidos conservadores
e movimentos populistas de direita.

Na Colômbia, em 2016, os evangélicos votaram não sobre um acordo de paz


com o grupo guerrilheiro de esquerda Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (Farc). A campanha do “não” venceu depois que líderes
evangélicos argumentaram que a linguagem dos acordos ameaçava a família
tradicional.

O Departamento de Estado dos EUA faz doações generosas a


grupos evangélicos instalados em Cuba

No Peru, um grupo evangélico chamado “Tirem as Mãos dos Meus Filhos”


mobilizou mais de 1 milhão de cidadãos, em 2017, numa marcha contra o
ensino da chamada “ideologia de gênero” nas escolas. E no Brasil, no ano
passado, quase 70% dos evangélicos votaram para presidente em Jair
Bolsonaro.

Em Cuba, o Partido Comunista gradualmente retirou os obstáculos à religião


desde os anos 1980. A metade dos habitantes hoje se identifica como
religiosos, e o cristianismo evangélico surgiu como uma das três principais
forças religiosas, juntamente com o catolicismo e a religião afro-cubana, a
santería.
“Os pentecostais foram altamente a favor de integrar os ritmos nacionais a
seus serviços”, disse Andrew Chesnut, professor de estudos religiosos na
Universidade Commonwealth da Virgínia (EUA). “Os ritmos afro-cubanos, que
são fortes em percussão, animam os serviços pentecostais. Do mesmo modo,
a dança, que é uma parte importante da cultura cubana, foi integrada aos
serviços.”

A crise econômica e social em Cuba depois da queda da União Soviética


criou terreno fértil para os missionários. “Antes que o bloco socialista
desmoronasse, muita gente tinha a revolução como seu deus, mas depois
perceberam que Deus é maior que qualquer governo”, disse Pereira, chefe da
Igreja Metodista em Cuba.

Bolsos recheados em tempos de dificuldades também foram importantes.


Pereira disse que sua igreja recebe cerca de 200 mil dólares por ano de
igrejas da Colômbia, Chile, Brasil, México e EUA. E igrejas latino-americanas
têm canalizado fundos para os evangélicos cubanos há décadas, pagando
pela transformação de milhares de residências em igrejas improvisadas,
assim como por equipamento musical e alimentos.

Os “santos” da revolução ganham concorrência

“Vivendo durante o período especial, você se saía melhor se fosse


protestante”, disse Hal Klepak, professor de história no Colégio Militar Real do
Canadá. “Em qualquer aldeia em Cuba os frequentadores da Igreja
Evangélica ganhavam uma refeição depois do serviço. Em tempos ruins, isso
é importante.”

O Departamento de Estado dos EUA – que durante muito tempo viu a religião
como alavanca política na Ilha – também doa generosamente. A Echo Cuba,
instituição beneficente de Miami que “existe para equipar e reforçar as igrejas
evangélicas independentes de Cuba”, recebeu mais de 2 milhões de dólares
em verbas do governo na última década.

Enquanto a maioria dos evangélicos cubanos, mesmo aqueles que fazem


campanha contra o casamento gay, recusa a sugestão de que estão fazendo
uma coisa política, há laços firmes com a direita cristã nos EUA e na América
Latina. Os pastores cubanos encontram-se regularmente com colegas de
outros países norte-americanos para discutir estratégias.

Analistas especulam que, com o tempo, o casamento gay poderá tornar-se


uma cunha para uma agenda maior pró-livre-mercado e anti-Estado. “Com a
campanha pelo voto no ‘não’, pela primeira vez esse grupo tornou-se visível
politicamente”, afirma Ariel Dacal Díaz, analista político marxista. “Mas essa
força está crescendo e poderá ser mobilizada em outros projetos.” •

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

INSPIRAÇÃO CHINESA

Díaz-Canel: “Sinto imenso orgulho”

Cuba continua a ser um país comunista, mas decidiu abandonar os resquícios


do modelo soviético em busca de uma transição nos moldes da China. A nova
Constituição do país, aprovada por 87% dos eleitores no domingo 24,
reafirma, por um lado, o “caráter irrevogável” do socialismo e mantém o
Partido Comunista como única legenda e “força política dirigente superior da
sociedade e do Estado”. Por outro, admite a propriedade privada e o
enriquecimento individual, com “limites”, e abre a economia aos investimentos
estrangeiros. “Sinto imenso orgulho de fazer parte do nosso povo heroico,
valente e firme”, afirmou o presidente Miguel Díaz-Canel ao saber do
resultado. “Um povo assim merece sempre a vitória. Viva Cuba Livre.”

A nova Constituição abraça conceitos caros à democracia liberal. A partir da


promulgação da Carta, os cubanos terão a garantia da presunção de
inocência e do habeas corpus em processos criminais. O mandato de
presidente será limitado a cinco anos, com uma reeleição, e o mandatário não
poderá ter mais de 60 anos. Um primeiro-ministro, cargo antes inexistente,
passará a chefiar o governo. O texto estabelece ainda a liberdade de
imprensa, antes vinculada aos “fins da sociedade socialista”, e abre canais
para a população denunciar violações de direitos humanos.

Por pressão das igrejas evangélicas, o casamento civil entre pessoas do


mesmo sexo será objetivo de um referendo popular em data não definida. A
discriminação aos LGBTs tornou-se, porém, um crime. Passo importante em
uma sociedade marcadamente homofóbica.

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Jens Kalaene/dpa-Zentralbild/dpa/fotoarena e YAMIL LAGE/AFP -


ADALBERTO ROQUE/AFP e Yander Zamora/Anadolu Agency/afp
Um infiltrado em
Hollywood
CINEMA O confisco de direitos civis das chamadas minorias ocupa a cena na
entrega do Oscar 2019, e a Academia tenta reagir ao avanço da Netflix

Por Eduardo Nunomura, Jotabê Medeiros e Pedro Alexandre Sanches

Spike Lee em sua cruzada afirmativa, e os premiados Regina King, Rami Malek e Ruth E.
Carter: forçando os limites do muro do establishment

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As tentativas da indústria de cinema de recuperar o tempo perdido em


colaboracionismo e equívocos políticos acabam sendo tão desastrosas
quanto suas soluções. No último domingo, dia 25, o Oscar 2019, a festa da
indústria americana, ao premiar Green Book, dirigido por Peter Farrelly,
branco, e preterir Infiltrado na Klan, de Spike Lee, preto, Roma, mexicano, ou
mesmo Pantera Negra, negro e super-herói, acabou pondo os pés pelas
mãos e mostrou que o populismo pode ser um mal tão grande quanto o falso
ativismo.
Subliminarmente, Green Book (com Mahershala Ali, ator negro, astro da série
True Detective e que ficou com o Oscar de Ator Coadjuvante) e Infiltrado na
Klan batiam-se com mais proeminência pelo prêmio de melhor filme. Poderia
tratar-se apenas de escolha estética, baseada em critérios de acabamento,
interpretação e qualidade de produção. Mas é falso. Ambas tratam do tema
do racismo, e as abordagens estão anos-luz de distância uma da outra. Em
Green Book, predomina o chamado subaltern speak (ou “lugar de fala”, como
dizemos no Brasil), uma postura de esvaziamento do conflito. “Green Book”,
escreveu Justin Chang no jornal Los Angeles Times, “reduz a longa, bárbara e
inacabada história do racismo estadunidense a um problema, uma fórmula,
uma equação dramática que pode ser equilibrada e solucionada. Green Book
é um embaraço; o questionável abraço do ‘outro’ pela indústria dos filmes.”
Noutras palavras, é o branco falando das dores do negro como se o negro
fosse ele.

Infiltrado na Klan, como o próprio nome explica, é o oposto radical dessa


tática. Trata-se de um militante negro infiltrado na estrutura racista de
Hollywood, ocupando o lugar de fala que lhe foi historicamente usurpado. Sua
mera existência demonstra que Hollywood não tinha como premiar um filme
que a desnuda por completo. Spike Lee provocou a fúria de Donald Trump,
que inverteu responsabilidades e acusou o cineasta de racista. Como
queríamos demonstrar, deve ter pensado um triunfante Spike Lee.

Poderosos incomodados pelo cinema, Trump e Bolsonaro


tentam retrucar e censurar

O que o cineasta negro quis ressaltar, com sua ativista movimentação nos
bastidores da festa, assim como o pulo eufórico nos braços de seu velho
amigo Samuel L. Jackson na hora da imparável alegria ao receber um prêmio,
é que filmes que buscam aliviar as tensões culturais não são bem-vindos
neste momento em que há uma guerra declarada em curso não só nos
Estados Unidos, mas no mundo todo, contra todas as conquistas em termos
de direitos civis – negros, femininos, de dissidências sexuais, de latino-
americanos, indígenas. Essa guerra transparece em momentos como este do
Oscar. “Vamos ficar todos do lado certo da história. Fazer a escolha moral
entre o amor e o ódio. Vamos fazer a coisa certa!”, discursou Spike Lee, que
perdeu os Oscar de melhor filme e melhor diretor, mas levou o primeiro de
sua carreira como corroteirista. Como ele próprio queria demonstrar.

Aqui no Brasil, em analogia, o preposto do governo Trump, Jair Bolsonaro,


divulgou nota em sua conta no Twitter, no ano passado, dizendo o seguinte:
“Incentivos à cultura permanecerão, mas para artistas talentosos, que estão
iniciando sua carreira e não possuem estrutura”. Esse condicionamento
falsamente equitativo em voga é que tem permitido a Bolsonaro esconder
toda sua seletividade política: seu objetivo é combater artistas negros, gays,
mulheres, progressistas, libertários e opositores. Combater toda a arte,
porque ela se opõe ao seu projeto de aniquilação civilizacional, e justificar a
censura. Não é por mero acaso que uma das primeiras medidas do governo
Bolsonaro foi a de cortar toda a subvenção de empresas como Petrobras,
Caixa Econômica Federal e BNDES ao cinema, condenando à desaparição
templos como o Cine Belas Artes, em São Paulo: é uma tela que tem
oferecido grande espaço ao cinema nacional.

Não por acaso, a reação mais forte ao discurso de aceitação de Lee no Oscar
foi do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump: “Seria bacana se Spike
Lee pudesse ler suas anotações, ou, melhor ainda, não usar anotações, ao
fazer seu ataque racista a seu presidente, que fez mais pelos afro-americanos
(reforma da Justiça Criminal, mais baixos números de desemprego da
História, corte de impostos etc.) do que talvez qualquer outro presidente”.

O filme Roma, de Alfonso Cuarón, retrata a vida na fronteira selvagem da humanidade,


em face do cerco de privação de direitos

curioso é que Spike Lee não mencionou Trump em seu discurso. Segundo a
mídia estadunidense, Lee teve uma explosão de raiva ao ser anunciado o
prêmio para Green Book (não seria parte da performance?). Depois, explicou
com fina ironia a explosão de raiva à imprensa: “Não, é que eu pensei que
estava na primeira fila do (Madison Square) Garden e o juiz tinha apitado
errado”.

O Oscar apontou algumas correções históricas, como a vitória de Ruth E.


Carter, a primeira para uma figurinista negra na história da premiação. Já
indicada por trabalhos em Amistad e Malcom X, ela sempre havia sido
preterida por outras profissionais. Após receber o prêmio por Pantera Negra,
falou: “Finalmente, a porta está escancarada. Há esperança, e outras pessoas
podem entrar e ganhar um Oscar, como eu fiz”.
Pantera Negra rendeu as duas primeiras estatuetas para a Marvel. A outra foi
para Hannah Beachler (ao lado de Jay Hart), que se tornou a primeira afro-
americana a ganhar na categoria de melhor design de produção. “Nunca
deixe ninguém dizer que não pode fazer esse ofício. Você é digna, você é
linda e isso é algo para você”, disse. Outro artista negro pioneiro, na categoria
animação, foi Peter Ramsey, por Homem-Aranha no Aranhaverso, que fez a
Sony derrotar, depois de seis anos, a Disney.

Regina King foi outra afro-americana premiada, atriz coadjuvante em Se a


Rua Beale Falasse. O Oscar de 2019 bateu o recorde anterior de vencedores
negros (quatro em 2017), com sete estatuetas. Modesta foi a vitória em
termos de audiência, graças ao formato mais enxuto que a Academia adotou
neste ano. Com 29,6 milhões de espectadores, a cerimônia conquistou 12% a
mais de audiência em relação ao recorde negativo de 2018 (26,5 milhões).
Esse é um flagrante dos dilemas internos que Hollywood enfrenta diante da
Netflix planeta afora.

Rami Malek, que incorporou o pop star gay Freddie Mercury, venceu na
categoria de Melhor Ator por Bohemian Rhapsody, e foi o primeiro ator de
ascendência egípcia, árabe, a ganhar o prêmio.

O Oscar de 2019 bateu o recorde de prêmios para atores


negros, com sete estatuetas

Sensação do ano, segundo vários críticos americanos, Roma, de Alfonso


Cuarón, é outra produção que toca no tema da migração, porém de forma
ácida. Venceu nas categorias de filme estrangeiro, diretor e fotografia. Antes,
a produção já havia levado dois Globos de Ouro e o Leão de Ouro no Festival
de Veneza. O filme, todo rodado em preto e branco, retrata a dura vida da
empregada doméstica Cleo, que cuida dos filhos de uma família de classe
média. Foi visto como uma grande crítica social não só sobre o México, onde
se passa, mas também sobre a sociedade capitalista pela forma naturalizada
com que as relações trabalhistas desiguais são impostas aos pobres.

Cuarón dedica o filme (que estreou na plataforma Netflix e por isso tinha
poucas chances de ser premiado no Oscar) a Libo, uma indígena que cuidou
dele na sua infância. “Quero agradecer à Academia por reconhecer um filme
centrado numa mulher indígena, uma entre 70 milhões de trabalhadores
domésticos do mundo sem direitos trabalhistas”, disse em seu discurso,
acrescentando uma pitada de crítica ao momento político atual nos Estados
Unidos. “É uma personagem que historicamente tem sido relegada a segundo
plano no cinema. Como artistas, nosso trabalho é olhar onde os outros não
olham. Essa responsabilidade se torna muito mais importante nos momentos
em que estamos sendo encorajados a desviar o olhar.” •
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CRÉDITOS DA PÁGINA: Kevin Winter/Getty Images/AFP - Kevin Winter/Getty Images/AFP, Dia


Dipasupil/Getty Images/AFP, Frazer Harrison/Getty Images/AFP, FREDERIC J. BROWN/AFP e VALERIE
MACON/AFP
CD O pós-Carnaval
Uma folia nordestina diferente emerge do som do BaianaSystem, que lança o
álbum O Futuro Não Demora

Por Pedro Alexandre Sanche

Contra todos os clichês da festa bruta, o BaianaSystem afirma a civilidade e a criatividade

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Você tem poder para mudar o mundo/ o que é superficial vai ficar mais
profundo. Os versos de Bola de Cristal contam, num fragmento, o que o grupo
BaianaSystem preconiza para a Bahia, para o Brasil. Pertencente à onda
afrofuturista, que se ergue das cinzas da axé music mais descerebrada, a
banda tem feito bonito nos carnavais da Bahia (e de outros lugares), sem
tocar música de Carnaval como a conhecíamos até pouco tempo atrás. A
inteligência é o primeiro investimento do BaianaSystem, confirmado no
terceiro álbum do grupo, O Futuro Não Demora. H2O é ouro em pó/ é
salvação, canta, em Água, sem carnavalizar, mas ciente de que água vale
mais do que ouro, no Carnaval ou fora dele.

A bilíngue Sulamericano, com participação do rebelde franco-espanhol Manu


Chao, dá a medida do Carnaval que o Baiana quer fazer: Inflama, inflama/
não passa disso, não me engana/ que eu sou sulamericano de Feira de
Santana/ avisa o americano/ eu não acredito no Obama/ revolucionário,
Guevara/ conhece a liberdade sem olhar no dicionário. Antes de Chao entrar
para denunciar o Señor Matanza que pretende governar o mundo, Russo
Passapusso manda o recado:Nas veias abertas da América Latina/ tem fogo
cruzado queimando nas esquinas/ um golpe de Estado ao som da carabina,
um fuzil/ se a justiça é cega, a gente pega quem fugiu.

A subestimada dupla baiana Antonio Carlos & Jocafi, popular nos anos 1970,
vem enobrecer as faixas Água e Salve, nesta última decifrando a dinastia pós-
baiana que não deprecia a Bahia: Salve Nação Zumbi, salve Zulu Nation e
Rumpilezz/ salve Nelson Mandela, Martin Luther King, Ilê Aiyê. Os convidados
desfilam numa avenida democrática: a Orquestra Afrosinfônica, o rapper
carioca BNegão, o rapper baiano Vandal, os paulistanos Curumin e Edgar, o
ancestral Samba de Lata de Tijuaçu, a homenagem ao mestre assassinado
Moa do Katendê (no reggae Navio)... No pós-Carnaval do BaianaSystem, os
racistas e machistas são frontalmente repreendidos (em Saci), os orixás e os
quatro elementos da natureza são louvados à farta e o futuro é uma coisa
meio estranha e circular, como destaca Bola de Cristal: No tempo que a pedra
lascada fazia o papel de bala de metal/ não tem diferença do homem
moderno pro homem de Neanderthal.

O mais surpreendente, quando o Baia-naSystem desce ao asfalto, é que há


uma legião roqueira e pacifista embevecida ao redor. Em 2018, no pós-
Carnaval paulistano, Russo pedia silêncio quando o cortejo passava pelo
hospital, e o trio, como em passe de mágica, reduzia-se ao quase silêncio –
cena de delicadeza para brutalizados por natureza. O grupo não deve sair no
Carnaval oficial de 2019 na Salvador do prefeito ACM Jr. e do governador Rui
Costa – dominarão o recinto, como de hábito, cantores sertanejos e os velhos
astros politicamente omissos da axé. Em 9 de março, pela segunda vez, o
grupo ancorará um navio pirata em São Paulo, desta vez na Avenida
Tiradentes.

O FUTURO NÃO DEMORA


BaianaSystem. Guela, 2018.

PRÉ-CARNAVAL Repressão & protesto


Os primeiros blocos de 2019 desfilam (ou tentam desfilar) sob o signo
da proibição e dos gritos anti-Bolsonaro
Por Pedro Alexandre Sanches

• SÃO PAULO PROIBIDA


O Bloco Soviético nasceu em 2013 como uma sátira carnavalesca à esquerda
às insistentes acusações de que, sob o jugo do PT, o Brasil estivesse se
tornando um país comunista. O contexto golpista apanhou o bloco em cheio
e, depois de cinco edições, o Politburo cancelou o desfile de 2018. Manteve
neste ano a decisão de se ausentar do já tradicional desfile do sábado de pré-
carnaval, mas na prática foi substituído pelo novo bloco Acadêmicos da Ursal,
que acrescentaria novas paródias às já conhecidas, como a de Mulata Bossa
Nova, que diz reaça escravocrata/ saiu na passeata/ ai que delícia/ selfie com
a polícia.

No sábado 23, como de hábito, a Ursal concentrou-se no Bar e Restaurante


Tubaína, na Rua Haddock Lobo. A repressão veio após meia hora. Chegaram
juntos fiscais da prefeitura de Bruno Covas, a Guarda Civil Metropolitana e
policiais militares de João Doria. Acompanhados de um caminhão de
remoção, os fiscais confiscaram instrumentos de trabalho do churrasqueiro
que atendia à beira da calçada e do bar colocado à entrada do Tubaína. O
pânico e a apatia instalaram-se entre os foliões, que em sua maioria só
reagiram quando a comissão repressora se afastava, aos gritos de “ladrões”,
“ditadores” e “abaixo a ditadura”. A comissão organizadora decidiu sair de
todo jeito, e encaminhou-se para a área interditada pela prefeitura, na Rua
Augusta, mas foi intimidada mais uma vez – não cadastrado, o bloco não
poderia evoluir nem em área oficialmente fechada para o Carnaval. O que
parece uma tendência à hiperorganização inaugurada pelo ex-prefeito Doria
redunda, na prática, em confisco do direito de ir e vir no espaço público e em
blocos confinados e cercados por grades de ferro e sob vigilância pesada da
prefeitura. Ninguém falou em nenhum momento que o conteúdo da Ursal
estava censurado, mas para bom entendedor meio cassetete basta.

• SÃO PAULO PERMITIDA

No dia seguinte, 24 de fevereiro, os Acadêmicos do Baixo Augusta saíram


normalmente, com o tema Que País É Esse, hashtags politicamente
esquerdistas como #ÉProibidoProibir e #ACidadeÉNossa, os artistas globais
de sempre e sem repressão, apesar das muitas palavras de ordem anti-
Bolsonaro e dos muitos gritos corais de Ei, Bolsonaro, vai tomar no cu!, por
parte da multidão foliona. Um dos fundadores do Baixo Augusta é o
empresário Alexandre Youssef, recém-nomeado pelo prefeito Bruno Covas
como secretário municipal de Cultura. Com o dono da agremiação nos dois
lados do balcão, evidentemente o bloco estava cadastrado e tem
hegemonizado o pré-Carnaval paulistano, com showmícios completamente
permitidos (mas parados) na Praça da República, no Centro da cidade. Para
os bem relacionados com o regime, meia ditadura não pega nada.

• RIO DE JANEIRO REBELDE


Sob governo estadual de Wilson Witzel e municipal de Marcelo Crivella, a
situação é parecida no Rio de Janeiro, onde vários blocos cancelaram desfiles
no fim de semana por desavenças com a organização. O escape promete ser,
mais uma vez, o Sambódromo, apesar da influência direta da Rede Globo
(ou, provavelmente, graças a ela). No domingo, o ensaio técnico da Paraíso
do Tuiuti na Sapucaí mostrou algo do que vem aí por parte da escola de
samba que homenageou Michel Temer no ano passado com a figura do
Vampirão Neoliberalista. No ensaio do enredo O Salvador da Pátria (vendeu-
se o Brasil num palanque da praça/ e ao homem serviu ferro, lodo e
mordaça), a comissão de frente da Tuiuti de homens de terno e gravata e
mulheres de perucas alaranjadas distribuiu laranjas bolsonarianas ao público
presente.

Outra escola que promete algum nível de combatividade é a Mangueira, que


vem com o enredo História pra Ninar Gente Grande, dedicado a Marielle
Franco e a “tanto sangue retinto pisado” em 519 anos de história oficial do
Brasil. No Sambódromo, Nelson Sargento interpretará Zumbi, Alcione será
Dandara e Leci Brandão encarnará Luiza Mahin, líder da Revolta dos Malês.
O refrão Brasil, chegou a vez/ de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês
será entoado com a escola toda de punhos cerrados.

TEATRO O exercício da escuta


Fauna. Com a Cia Quatroloscinco. No Sesc Pompeia, de quinta a
domingo, até 10 de março. Ingressos a 20 reais.
Por Eduardo Nunomura

O teatro que se alimenta da reação do público, ou, antes, a provoca

Assis Benevenuto e Marcos Coletta são atores e seus personagens atendem


pelo primeiro nome. Eles e o grupo Quatroloscinco são de Belo Horizonte, e,
como bons mineiros, gostam de um dedo de prosa. Esta é a proposta de
Fauna, montagem que já circula há três anos e chega para uma rápida
temporada em São Paulo. Nesse tempo, espetáculos costumam ganhar
densidade e maturidade, e isso também ocorre com a companhia mineira,
porém sob outra ótica. A lógica é montar um espetáculo diferente do outro,
porque eles giram em torno da conversa de Assis e Marcos com a plateia.

A peça é, portanto, interativa. Não estranhe ao ter de tirar os sapatos na


entrada. Ou que seja chamado pelo nome, receba um convite para participar
das cenas, participe das provocações propostas pelos personagens. Sob
direção de Italo Laureano e assistência de Rejane Faria, a dupla de atores
envolve o espectador pelo lado da escuta. Embora um texto básico esteja
sendo seguido, ao abrir espaço para a manifestação livre da plateia, é
importante que as cenas construam uma tessitura narrativa mínima. É onde o
ouvir o outro se mostra como a chave para tudo o que vai se desenrolar na
montagem – e isso serve também para as nossas vidas.

O livro O Circuito dos Afetos: Corpos políticos, desamparo e fim do indivíduo,


do filósofo Vladimir Safatle, é uma referência da companhia teatral. Mas
nesse processo de escuta, que vai gerar o de fala, percebe-se que grandes
temas emergem no palco, como a discussão sobre a sobrevivência da
espécie, as complexas relações da fauna humana, os padrões individuais se
sobrepondo aos anseios coletivos, a liberdade em disputa, o tempo e o
espaço, os afetos sendo violentados diariamente. E, ao final, percebemos que
o sentido de nossas identidades acaba por costurar todas essas reflexões.

LITERATURA O brasileiro original


Romance de Eromar Bomfim mergulha na eterna tentativa de
mediação entre forças oprimidas e opressoras no Brasil
Por otabê Medeiros

O escritor baiano Eromar Bomfim: pesquisa profunda nos ritos de fusão cultural e emocional da
fundação do Brasil

Como eram criados os filhos das índias com os padres e os coronéis? No


mato ou na sacristia? Como as índias viviam os dilemas morais dessa
conjunção da carne? Como um romance trataria dessa saga brasileira, sem
que fosse permeado pela moralidade e geopolítica do branco, como no caso
dos mestiços de Erico Verissimo.

Talvez as respostas possam ser encontradas no pequeno romance


independente O Língua, do baiano Eromar Bomfim (Ateliê Editorial), uma das
estimulantes narrativas recentes da produção literária nacional. Habitando um
descampado entre Darcy Ribeiro e Guimarães Rosa, Eromar encontra um
tom dificilmente alcançado nesse tipo de romance histórico, no qual a ficção é
tão envolvente que a própria História se escora nela para existir.

Índios do sertão da Bahia, tribos Anaió, Kariri, Maracás, povos extintos,


Jaicós, Xerentes, Sicriabás, Guguês, Araiês, Acumês, rios que secaram,
fazendas que viraram ruínas, serras desfolhadas pela mineração e pelo gado.
Uma grande panorâmica de um passado quase glorioso passeia pelo
romance de Bomfim, estruturado sobre sólida pesquisa e faro antropológico.

Um dos filhos do grande estupro nacional, Leonel, o Língua, por conhecer o


idioma dos gentios, é o personagem central. Sua saga, que é a da identidade
tungada, diluída, autossabotada, é descrita por um autor que conhece
minuciosamente o terreno no qual se locomove, “caminhos antigos,
forradinhos de areia branca e fina, macia, rendada de rastros das rolinhas
fogo-apagou”.

Por sua condição, O Língua, anticaetanicamente (A língua é minha pátria/ E


eu não tenho pátria, tenho mátria), obriga-se a mediar sentimentos
intraduzíveis de povos em conflito, e que têm no opressor a voz surda da
autoridade. Prosa madura, fluida: autor de O Olho da Rua (Nankin Editorial) e
Coisas do Diabo Contra (Ateliê Editorial), Bomfim é um escritor de
personalidade. Curiosa a semelhança fonética de seu nome, Eromar, com a
do músico Elomar: mal comparando, são obras, as dos dois, produzidas na
imersão no ambiente, na organicidade da fauna e da flora, na grandiosidade
da ferida natureza matricial. –

O LÍNGUA
De Eromar Bomfim. Ateliê Editorial. 192 págs., 32 reais

BLOCOS
Salvador
Todo Menino É Um Rei, em homenagem a Roberto Ribeiro, é um bloquinho
infantil que sai às 10 horas de sábado 2, no Campo Grande. Já o Happy, com
Gilmelândia e Tio Paulinho, abre a festa no Circuito Dodô, às 10 horas
também de sábado 2 de março.

Rio de Janeiro
Filhote da Banda de Ipanema, o primeiro bem imaterial tombado no Rio, a
Bandinha de Ipanema festeja na segunda-feira de carnaval, na Praça General
Osório, às 14h30.

Olinda
O Encontro Bonecos Mirins de Olinda é um cortejo de 40 figuras, nenhuma
delas com mais de 1,5 metro para poder ser carregado por crianças, pelas
ladeiras da cidade. A partir das 9h30 de domingo 3 de março.

São Paulo
presença com o bloco Ajayô Kids, num cortejo às 10 horas de domingo 3 de
março, no Monumento das Bandeiras. Nos dias 2 e 3 de março, a partir das 9
horas, tem Urubózinho, no Largo da Matriz, na Freguesia do Ó.
Belo Horizonte
No domingo 3 de março, o Bloquim DuBem desfila a partir do meio-dia, até as
17 horas, nas ruas e no entorno do Parque Marcos Mazzoni, na Cidade Nova.

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Reprodução/Mídia Social, Frâncio de Holanda, Renan Olivetti - Guto Muniz
e Hemerson Celtic
Esta foto não conta tudo
THEOBSERVER Não se iludam com o frio que bate recorde. O aquecimento
global continua sendo a ameaça de sempre

Por Michael E. Mann*

Que aqueimento (sic) global é esse? – tuitou o especialista Trump

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Os invernos do início dos anos 1970 foram muito frios e cheios de neve no
nordeste dos Estados Unidos, onde eu cresci – como em outras partes dos
EUA e da Europa. Lembro de nevascas que faziam a neve alcançar meu
queixo (mas eu era bem menor naquela época). Hoje os chamamos de
“invernos de antigamente”, exatamente porque eles se tornaram tão raros em
consequência do – sim – aquecimento global.

Se você é mais moço que eu (completei meio século três anos atrás), aqueles
invernos provavelmente estão fora do alcance de sua experiência. E por isso
você pode achar plausível que as frentes frias, que na realidade
simplesmente refletem o tipo de clima que era comum há algumas décadas,
poderiam constituir um frio “recorde” ou “sem precedentes”.
Essa visão míope dos extremos climáticos pode ser explorada pelos que
pretendem projetar dúvidas sobre o consenso científico majoritário por trás da
mudança climática causada pelo ser humano. Muito nessa linha, o presidente
dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou recentemente em um tuíte sobre
a onda de frio no Meio-Oeste americano que “as temperaturas com o fator
vento estão chegando a -50 graus, as mais baixas já registradas”. Ele
acrescentou: “Que diabo está acontecendo com o Aquecimento Global (sic)?
Por favor volte logo, precisamos de você!”

Desconsidere, por enquanto, que “aqueimento global” não existe e que, como
já esperávamos, quase nenhuma das afirmações no tuíte de Trump é
verdadeira – as temperaturas com fator vento mais baixas já registradas no
Meio-Oeste são próximas de -57 graus e, para os EUA como um todo, -73
graus. Será que ele tem razão?

Lição. O descolamento de placas de gelo no Ártico poderia ensinar o ecocético Trump se ele
se dispusesse a aprender

Por exemplo, se estivéssemos vendo frio intenso com mais frequência, isso
contradiria a teoria do aquecimento global causado pelo homem? Não. Os
cientistas pensam cada vez mais que a mudança climática pode causar uma
ruptura mais frequente do “vórtice polar” do Hemisfério Norte (a faixa de
ventos na atmosfera superior que geralmente limita as massas de ar frio do
Polo Norte ao Ártico, mais ou menos associada à corrente de jato). O
aquecimento ampliado do Ártico causado pelo derretimento do gelo marinho
reduz o contraste de temperatura entre o Equador e o polo. É esse contraste
que mantém o vórtice polar e a corrente de jato. Quando o vórtice se rompe, o
jato desacelera e exibe movimentos mais amplos no sentido Norte-Sul, assim
como um rio que cruza um terreno quase plano traça amplas curvas e
serpenteia até o litoral.

Isso torna mais fácil que pedaços das massas de ar frio do Ártico se
desprendam e rolem para regiões continentais de média latitude, como a
América do Norte e a Europa, exatamente o que aconteceu com a recente
onda de frio nos EUA.

O mundo vai ter mais recordes de calor que de frio. A


Austrália, por esses dias, está assando

Mas voltemos à outra primeira pergunta: estamos vendo um aumento no


recorde de frio? Até agora, no primeiro mês de 2019, foram batidos dois
recordes de frio de todos os tempos – em cidades de Illinois (centro-norte dos
EUA). Enquanto isso, houve 35 recordes de calor (muitos deles marcados na
onda de calor extremo no verão que está assando a Austrália, em cidades
como Adelaide). A proporção é de 18 recordes de calor para um de frio.

Na ausência de aquecimento planetário, essa proporção deveria ser de um


para um. Talvez seja um acaso, dirá você. Afinal, é só um mês de dados. Mas
a proporção entre os recordes de calor e os de frio é, aproximadamente, de
dois para um na última década.

Agora podemos avançar um passo, “atribuindo” os períodos de calor recorde


ao aquecimento global, empregando modelos climáticos para quantificar a
incidência de eventos extremos, com e sem o efeito de aquecimento do efeito
estufa causado por humanos. A onda de calor extremo na Europa no último
verão teve, segundo uma estimativa, duas vezes mais probabilidade de ter
sido causada pela mudança climática provocada pelo homem. (Na realidade,
essa é, provavelmente, uma subestimação, porque os modelos não captam
alguns dos efeitos da desaceleração da corrente de jato analisada em
algumas de minhas pesquisas recentes.)

Então estamos vendo uma tendência para mais recordes de calor, e não de
frio. E, mesmo que estivéssemos vendo um aumento na ocorrência de
invernos frios em partes dos EUA e da Europa, isso não seria
necessariamente uma contradição à tese da mudança climática – pode até
ser um sintoma dela, associado à ruptura do vórtice polar.

Voltemos ao tuíte de Trump, pois ele não é isolado. Faz parte de um padrão
de vários anos de negar a evidência científica básica da mudança climática
causada pelo homem. Trump claramente não é o “gênio” que ele afirma ser,
mas sabe que a mudança climática é real. Sabemos disso porque ele a citou
como motivo para receber uma dispensa especial para construir um muro –
para proteger seu campo de golfe na Irlanda dos efeitos danosos da elevação
do nível do mar.
Portanto, se não se deve à ignorância, o que é responsável pela constante
negação da mudança climática por Trump? Poderia ser a mesma coisa
responsável por ele terceirizar sua política energética e ambiental aos
interesses dos combustíveis fósseis? Poderia ter algo a ver com a influência
russa que, segundo alguns sugerem, o ajudou a se eleger?

Poderemos ter algumas respostas a essas perguntas quando o procurador


especial Robert Mueller completar sua investigação da interferência russa na
eleição presidencial de 2016 nos EUA.

Em todo caso, os repetidos comentários depreciativos de Trump sobre a


mudança climática causada pelo homem são um exemplo do que já chamei
do “armamento da ignorância”. A ignorância neste caso não é de Trump. Ele
parece saber bem. É do eleitorado.

Somente com um cidadão mal informado você poderia plausivelmente rejeitar


o consenso dos cientistas mundiais com base em uma única onda de frio.
Trump e, mais apropriadamente, os interesses do combustível fóssil que ele
promove usam como arma a pequena compreensão da ciência pelo público.

O grande Carl Sagan prognosticou esse cenário em sua obra clássica O


Mundo Assombrado pelos Demônios. Sagan temia uma queda na ignorância
e manifestou sua apreensão sobre um futuro em que “ninguém que
represente o interesse público pode sequer entender os problemas”. Ele temia
o surgimento de uma cidadania que é incapaz de distinguir entre “o que
parece bom e o que é verdade” e, portanto, é vulnerável à pseudociência e à
anticiência.

Com a eleição de Donald Trump, finalmente chegamos ao futuro que Sagan


tanto temia? Neste caso, há alguma escapatória dele? Resta ver. •

*Michael E. Mann é professor de ciência atmosférica e diretor do Earth


System Science Center na Penn State University. É coautor de The Madhouse
Effect. Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Istockphoto e MANDEL NGAN/AFP


Os gases da morte
VULCÕES Passa pela atual Índia a nova teoria sobre a extinção dos dinossauros
e de 60% da vida animal e vegetal no planeta, 66 milhões de anos atrás

De costas para o inesperado, mas fatal inimigo

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Explicar a extinção dos dinossauros da face da Terra parecia uma tarefa


simples desde que, algumas décadas atrás, cientistas descobriram, na região
do Golfo do México, uma monumental cratera produzida pelo impacto de um
formidável asteroide, há 66 milhões de anos. O choque desencadeou, pôde-
se constatar, uma sequência de tsunamis gigantes e levantou tanta poeira
que o Sol ficou totalmente encoberto. A temperatura caiu drasticamente, a
vegetação, desprovida de clorofila, feneceu e os dinossauros vegetarianos
não tinham mais o que comer.

Faz sentido, mas está longe de ser um evento único. No que é hoje a Índia,
incontáveis vulcões afloraram do solo, vomitando enxurradas de lava
incandescente – numa área tão extensa quanto a soma da Bahia com
Pernambuco e Alagoas, e Sergipe de quebra. O que certamente aconteceu,
ao longo de 1 milhão de anos, foi que os gases emitidos pelas erupções
aqueceram as temperaturas terrestres e contaminaram os oceanos. As
condições de sobrevivência ficaram precárias antes mesmo da catástrofe do
México.

O epicentro dessas explosões vulcânicas aconteceu no planalto central do


atual estado de Maharashtra, mas o timing dos eventos ainda é duvidoso, o
que acende o debate entre os cientistas. Será mesmo possível que esse
fenômeno foi responsável pelo extermínio de 60% das espécies animais e
vegetais do planeta, inclusive dos dinossauros? A revista Science tem
hospedado as versões em disputa.

A teoria do asteroide que caiu no México continua valendo.


Mas é só uma delas

Algum consenso vem se formando em torno da ideia de que o clima na Terra


já vinha mudando antes do impacto do asteroide mexicano. A temperatura
média subiu 5 graus centígrados no período de 400 mil anos prévio. A intensa
atividade vulcânica seria a causa do aquecimento – e de suas consequências
entre os seres vivos. E os vulcões de Maharashtra teriam tudo a ver com
isso.

Essa data – 400 mil anos antes do impacto do asteroide – foi estabelecida
pela geocronologista Courtney Sprain, da Universidade de Liverpool, e
colegas, após minuciosas pesquisas de datação em rochas basálticas
provenientes de depósitos de lava endurecida no planalto indiano. Usando
uma técnica denominada argon-argon, arriscaram dizer que, embora as
erupções tenham começado antes do ataque do corpo celeste gigante, elas
se estenderam até 600 mil anos depois. Ou seja, a conjugação das duas
catástrofes tão distantes e tão desiguais é que teria decretado o fim dos
megatérios do remotíssimo passado. •

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Istockphoto


Soy loco por tí, América

Ajuda humanitária é bem-vinda no esporte. E as mudanças


nos times antes do Carnaval chegar

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O Carnaval, quando mais se precisou dele, demorou mas chegou. Espantar


as mágoas sem esquecer o sufoco dos queridos vizinhos da Venezuela.
Sinais de negativa às insensatas intenções de apoio às pretensões belicosas
do insano presidente americano trazem alívio – olhos no padre e na missa.

Cada vez mais clara para a população a vergonhosa justificativa de ajuda


humanitária à invasão criminosa.

O Brasil não pode se prestar a esse papel de contrariar o interesse maior da


unidade dos países latino-americanos. Soy Loco Por Ti América. Diplomatas
de elevada experiência declaram fora de propósito e de atualização
internacional a posição de “alinhamento automático” a qualquer outro país.

Cada vez mais fica nítida para a população a vergonhosa justificativa de ajuda
humanitária e à invasão criminosa da Venezuela.

O mais importante é esse efeito de conscientização do engodo a que estamos


submetidos, revelado dia após dia pelas medidas anunciadas pelo poder de
plantão.
Aproveitemos esse fôlego para falar mais das coisas do esporte, nossa
obrigação, que também não para completamente. O Flamengo vai jogar na
Terça-Feira Gorda na Bolívia, isso que é castigo.

Atravessamos tempos de maré baixa em nosso esporte, e o futebol a todo


momento dá demonstrações evidentes. Nem por isso vamos desistir, apesar
do panorama desalentador diante do descompromisso dos profissionais com
os clubes, falas vazias de “fazer história” e outras balelas.

Os destaques destes dias são as confusões de Deyverson no Palmeiras, a


saída de Henrique Dourado rumo à China, a negociação do Botafogo por
Diego Souza com um São Paulo em crises cíclicas, a estreia de Ganso no
Tricolor carioca, este um dos poucos fatos animadores.

O “moleque” palmeirense dá um trabalho danado não só às defesas


adversárias, mas também é preocupação constante para a comissão técnica
e a diretoria. Felipão não toma a iniciativa de se desfazer do goleador esperto
e sabe trabalhar os “meninos maluquinhos” que rendem um bocado, apesar
das “doideiras”. Dilema.

Encaminham o jovem agitado à psicóloga na esperança de domá-lo. Fico com


um pé atrás na expectativa de não ver o jogador perder o ímpeto perturbador
das defesas contrárias.

Henrique Dourado é um caso interessante. Retirado do Fluminense, onde se


tornara o artilheiro do Campeonato Brasileiro, pelo poder financeiro arrasador
do Mengão, não rendeu o esperado, embora tivesse sido prejudicado pela
instabilidade do futebol do clube. Jogador de muita autoconfiança, expressa
sempre nas cobranças de pênaltis, consta que perdeu um único na carreira.
Despediu-se dos torcedores com um belo gol de bicicleta e o Flamengo, além
de tudo, fez bom negócio financeiro, tendo lucro com a transferência do
“Ceifador”.

O Botafogo vale-se de suas boas relações com os representantes de Diego


Souza para trazê-lo de volta ao Rio no meio de mais uma turbulência no São
Paulo. Pode ser uma boa contratação do Fogão, e ao que parece vai sabendo
operar bem nas condições atuais do clube, aproveitando o bom trabalho da
base sempre revelando bons jogadores mesclados aos mais
experimentados.

O São Paulo, por sua vez, mostra uma instabilidade surpreendente, apesar de
coerente com o arranjo de sua política interna encrencada. O tricolor incorreu
na repetição dos erros de alguns coirmãos que promoveram bons técnicos de
equipes de base à direção de elencos principais numerosos e, sobretudo,
recheados de “cobras” mais difíceis de controlar. Perdeu tempo dando chance
de o ambiente no clube ficar tumultuado.

Fora isso continuam as “brabeiras” entre torcedores. O caso desta vez foi em
Goiás, como tem sido nas regiões mais variadas, com a cumplicidade dos
dirigentes e dos setores que deveriam ser responsáveis e que também se
encontram descontrolados.

A estreia de Ganso no Maracanã às vésperas do Carnaval, depois de uma


chegada bem-sucedida com os torcedores e a mídia animando o ambiente,
traz novo alento ao nosso ano esportivo. Sucesso!

VIVA A VENEZUELA !!!

LULA LIVRE !!! •

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Ilustração: Baptistão


Arte degenerada
As obras que Michelle e Jair encontraram em sua casa nova não atendem ao
gosto da turma da bíblia-e-bala

1) O painel de Di Cavalcanti que serviu de cenário para o momento pé de chinelo. (2)


Escultura de Maria Martins, amante de Marcel Duchamp. (3) As Iaras, de Ceschiatti. (4)
Tapeçaria de Kennedy Bahia. (5) Morena, de Victor Brecheret. (6) Três Orixás, do
Planalto, indicam que novos espurgos virão

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Se os novos inquilinos estão estranhando o Palácio da Alvorada, a recíproca


é igualmente verdadeira. Existe uma incompatibilidade compreensível entre a
ousada obra de um arquiteto comunista, Oscar Niemeyer, e os recém-
chegados do subúrbio, para quem o requinte arquitetônico é um condomínio
mequetrefe da Barra da Tijuca.

Um palácio, sim, “com toda a sua nobreza”, como entendeu Niemeyer, muito
além de “uma grande residência”, mas que se deixasse embalar pela sedução
da simplicidade, um dos pilares do estilo modernista que sedimentou Brasília.
Juscelino Kubitschek vislumbrou o descampado, distante 4 quilômetros do
que é hoje a Praça dos Três Poderes, e ofereceu a Oscar Niemeyer o desafio
de toda aquela horizontalidade. O palácio tinha de impor-se na topografia
vazia. Além disso, iria balizar os contornos de um lago artificial, criado a partir
do Rio Paranoá. O resto seria consequência.

Desde o início, o mobiliário e as obras de arte entraram em harmonia com o


espírito da época e, por mais que eventuais mudanças de décor tenham
ocorrido, em consonância com os moradores os mais diversos, inclusive três
sombrios generais da ditadura, algumas obras capitais resistiram ao ataque
do mau gosto. Como Michelle e Jair dificilmente terão curiosidade de observar
o que têm em suas paredes, é possível que elas de novo passem incólumes.

Ou quase: por ora, Michelle, que é evangélica, limitou seu auto de fé ao


Palácio do Planalto e despachou para o Palácio do Jaburu, residência do vice
Mourão, a tela Três Orixás, de Djanira. Jair, por sua vez posou distraidamente
na abertura de sua saison fashion, de chinelo Rider e camisa pirata do
Palmeiras, sem se dar conta de que, ao fundo, um mural de Di Cavalcanti –
mais um comunista – exibia duas sacudidas matronas em pleno gozo de sexo
solitário. Se a ministra Damares vir, vai imediatamente subir na goiabeira. •

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Reprodução/Mídia Social, Francisco Aragão e Ichiro Guerra


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