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A razão e o coração

no conhecimento da verdade
segundo Pascal

Por
Manuel Barbosa da Costa Freitas (1928-2010)

O tormento da verdade foi tão intenso em Pascal que só nela encon-


trou paz e segurança, consumindo a vida inteira na sua procura sincera
e desinteressada. O amor da verdade foi para ele a maior das verdades e
das virtudes cristãs. Por isso pôde escrever: «poderá haver tempo de paz
e tempo de guerra, mas de modo algum tempo de verdade e tempo do
erro, pois está escrito que a verdade de Deus permanece eternamente, re-
gra primeira e fim último de todas as coisas». (frag. 974).
Pascal, porém, não se pôs o problema da possibilidade dos nossos co-
nhecimentos e das nossas ciências; problema a resolver kantianamente a
priori mediante a análise das nossas faculdades e da sua estrutura formal,
da sua aptidão inata em apreender a realidade e em exprimi-la tal como é.
O problema da verdade pôs-se para ele em termos de facto, a resolver a
posteriori mediante verificações empíricas realizadas pelos recursos na-
turais do que podemos chamar a razão crítica.
A experiência de sábio e de homem do mundo levou Pascal a distin-
guir duas formas ou dois processos no conhecimento da verdade: uma
actividade de simples apreensão a que chama instinto, sentimento, intui-
ção, coração e uma actividade dedutiva a que chama a razão científica ou
discursiva. Entre estas duas actividades parece existir, à primeira vista,
uma oposição radical e insuperável. A relação entre as duas dimensões
ou actividades põe graves problemas que levam os intérpretes a concluí-
rem diversamente por um Pascal mais ou menos dogmático, mais ou me-
nos céptico ou fideísta.
Neste breve estudo propomo-nos examinar, à luz de alguns temas
maiores dos Pensamentos, a natureza e alcance respectivamente da ra-
zão e do coração, para finalmente, precisarmos a verdadeira natureza das
suas relações mútuas.

Itinerarium, LVIII (2012) 3 - 14


4 MANUEL BARBOSA DA COSTA FREITAS

A Razão

Entendemos aqui por razão a faculdade que fornece o conhecimen-


to e a inteligência do universo, ou seja, a que está na base da construção
científica. Mais precisamente, trata-se da razão discursiva e raciocinan-
te a qual, através das funções essenciais da análise e da síntese, da defi-
nição e demonstração pretende explicar conceptualmente todas as coisas.
Numa fórmula extremamente clara e concisa Pascal toma posição a
seu respeito pretendendo excluir à partida duas atitudes erróneas pelo seu
exclusivismo: «dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão» (frag.
183). O primeiro excesso é próprio do cepticismo pirrónico que humilha
e deprecia a razão; o segundo é característico do dogmatismo que a exalta
e glorifica indevidamente. Ao condenar uma e outra atitude, Pascal dei-
xa entrever uma outra possibilidade que será a existência de uma razão
crítica mais humilde e mais atenta às suas reais possibilidades e limites.
Contra os pirrónicos, Pascal aponta a força da razão, estabelecendo o
valor das suas técnicas e dos seus resultados. Todas as operações da ra-
zão, designadamente os seus raciocínios, sempre que correctos e expe-
riencialmente comprovados, conduzem à verdade. As verdades demons-
tradas, que constituem as ciências, são obra sua. O pensamento ou razão
constitui até a dignidade do homem:

«O homem é visivelmente feito para pensar. Nisso reside toda a sua dig-
nidade e todo o seu mérito; e todo o seu dever consiste em pensar correc-
tamente» (frag. 620); «Não posso conceber um homem sem pensamento:
seria uma pedra ou um bruto» (frag. 111; cf. frag. 113 e 114); «O homem
é um caniço, o mais débil da natureza, mas um caniço pensante – toda a
sua dignidade reside no pensamento» (frag. 200); «A razão ordena mais
imperiosamente do que qualquer senhor porque desobedecer a este tor-
na-nos infelizes, mas a desobediência à razão é sinal de loucura» (frag.
768); «O pensamento faz a grandeza do homem» (frag. 759).

Dos fragmentos citados resulta bem claro que Pascal respeita e utiliza
os recursos da razão discursiva na construção da ciência, na aquisição da
verdade, ao contrário do cepticismo que pretende de todo excluí-la. Mas
não cai no excesso oposto, ou seja, no dogmatismo, que só admite a ra-
zão. A energia que põe no combate a este excesso explica-se pela natu-
A RAZÃO E O CORAÇÃO NO CONHECIMENTO DA VERDADE ... 5

reza das verdades que aqui estão em causa e que são as verdades da fé.
Estas têm por inimigos principais os dogmáticos que pretendem demons-
trar a sua falsidade, substituindo-as pelo seu deísmo orgulhoso e auto-su-
ficiente. Por conseguinte, as verdades da fé têm por inimigos, até certo
ponto, os inimigos da razão, ou seja, os pirrónicos: «O pirronismo serve
à religião» (frag. 658).
Depois de ter demonstrado, contra o pirronismo, o poder da razão,
Pascal, servindo-se dele, isto é, dos seus argumentos contra a razão, vai
tentar demonstrar agora as insuficiências e limites da mesma razão, a fim
de humilhar a sua soberba e forçá-la a permanecer nos seus limites sem
jamais invadir domínios que a excedem. O essencial da crítica pascalia-
na contra o excesso dogmático consiste em demonstrar que existem ver-
dades não só indemonstráveis, mas também incompreensíveis à razão.
Quanto às verdades indemonstráveis, é evidente que não se pode de-
monstrar o valor da razão e dos seus critérios racionais sem se cair num
círculo vicioso, já que a razão se encontra neles envolvida: «Alguns er-
ram… afirmando tudo como demonstrável por não se reconhecerem en-
volvidos na demonstração» (frag.170).
Este valor é admitido «sem provas convincentes» (frag.131). Também
não se pode demonstrar a identidade da razão em todos os homens nem o
determinismo das leis naturais (frag. 109 e 821). De resto, não consegui-
mos demonstrar por provas racionais absolutamente convincentes nem
a existência de Deus nem a existência, a espiritualidade, a liberdade e a
imortalidade da alma.
É na geometria que melhor se revela a força e fecundidade da razão.
Se nem mesmo aí se realiza o ideal de tudo definir e de tudo demonstrar
é porque este ideal é impossível e de modo algum indispensável. De fac-
to, a geometria não demonstra os seus primeiros princípios, como sejam
o espaço, o tempo, o movimento, os números, a igualdade, etc.
Seria «inútil e ridículo que a razão pedisse provas dos seus primeiros
princípios para neles consentir» (frag. 110).
A razão não pode assistir à origem ou fonte do seu próprio movimen-
to. Tem que se apoiar em algo que lhe é anterior, que a impele e orienta.
Apesar de procurar a explicação e a prova, termina, em todas as suas ini-
ciativas, por um inacabamento, uma suspensão não só de facto, mas de
direito. Todas as suas construções se caracterizam pela impossibilidade
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de atingir uma significação total já que ela mesma se situa no interior de


uma totalidade que a excede e domina. De resto, Pascal reconhece que
são muito poucas as verdades geometricamente demonstradas: «Com-
bien y-a-t-il peu de choses démontrées!» (frag. 821).
Esta incapacidade em demonstrar, a qual, segundo o Esprit géométri-
que, representa uma perfeição por as verdades ou pressupostos admiti-
dos serem naturalmente evidentes, constitui, aos olhos da razão e segun-
do os Pensamentos, uma falha capaz de humilhar a razão (frag. 110). No
entanto, Pascal não pretende tanto humilhar a razão como inquietá-la ou
despertá-la, torná-la vigilante e crítica já que está disposta a receber os
princípios do seu discurso não só da natureza do coração, mas ainda da
imaginação, dos costumes, da autoridade, dos preconceitos, das paixões,
etc., como se verifica em tantas doutrinas falsas correctamente demons-
tradas (frag. 821).
Por outro lado, nem todas as verdades são compreensíveis. Entre es-
tas encontram-se muitas verdades demonstradas, como por exemplo o
infinito, o qual, apesar de demonstrado, permanece incompreensível sob
todas as suas formas: o infinitamente grande e o infinitamente peque-
no tanto do espaço como do tempo e do número, etc. (frag. 418); menos
compreensíveis ainda as principais verdades metafísicas (frag. 809, 418).
Acima de todas estas incompreensibilidades sobressai a incompreensibi-
lidade de Deus que é «Infinitamente incompreensível» (frag. 418).
Por aqui se vê que Pascal não aceita o princípio dogmático da inteli-
gibilidade universal, opondo-lhe o princípio da inteligibilidade limitada,
restrita às coisas com as quais estamos naturalmente relacionados e com
as quais mantemos certas proporções (frag. 418). Estamos longe da ambi-
ção dos dogmáticos em tudo conhecer e compreender. Mais longe ainda
das intuições racionais do infinito, da matéria, do espaço e do tempo, ca-
ras aos dogmáticos racionalistas como Descartes, Leibniz e seus sucesso-
res. Longe, sobretudo, das intuições supra-racionais do Absoluto, da Vida,
etc., caras aos dogmáticos intuicionistas como Hegel, Schelling e Bergson.
Da análise dos limites reais e comprovados da razão discursiva de-
correm algumas regras para o seu legítimo uso. Antes de mais, a razão é
chamada a reconhecer os seus limites, renunciando à estulta pretensão de
tudo demonstrar e de tudo compreender:
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«A natureza confunde as pirrónicas e a razão confunde as dogmáticas…;


humilhai-vos razão impotente, calai-vos natureza imbecil; aprendei que
o homem supera infinitamente o homem…» (frag. 131); «O último e su-
premo acto da razão consiste em reconhecer que existe uma infinidade
de coisas que a ultrapassam; dará mostras de fraqueza se não chegar a
reconhecer isto; se há coisas naturais que a excedem, quanto mais as so-
brenaturais?» (frag. 188).

Por isso nada mais conforme à razão do que o «desmentido da pró-


pria razão» (frag. 182) a respeito das orgulhosas pretensões dos raciona-
listas. Se o pirronismo não resiste à ideia de verdade que natural e ins-
tintivamente nos alimenta, também o dogmatismo se mostra incapaz de
tudo demonstrar: «Temos uma incapacidade de provar invencível a todo
o dogmatismo; temos uma ideia de verdade invencível a todo o pirronis-
mo» (frag. 406).
Não estamos perante qualquer forma de cepticismo, mas perante uma
instância crítica do dogmatismo racionalista, o qual não é uma defesa dos
direitos da razão, mas das suas usurpações. Contra esta razão usurpado-
ra de domínios que não lhe pertencem, Pascal não poupa invectivas car-
regadas de uma piedosa ironia: «Como é louco o pensamento». Louco se
não se conhece a si mesmo e se vangloria do seu próprio poder que jul-
ga ilimitado:

«O pensamento, ridículo herói não é necessário o troar de um canhão


para o fazer estremecer, basta um ligeiro rumor»; «não é de estranhar
que não esteja a funcionar bem: uma mosca zumbe em torno dos seus
ouvidos. Se quereis que volte a funcionar bem, expulsai a mosca que
tanto incomoda, perturbando o funcionamento da sua poderosa inte-
ligência que governa as cidades e os reinos» (frag. 48). «O poder das
moscas ganha batalhas, impede a nossa alma de agir, come o nosso cor-
po» (frag. 22).

A conclusão prática derivada desta situação não pode ser mais conci-
sa e terminante:

«Submissão e uso da razão: nisto consiste o verdadeiro cristianismo».


(frag. 170) «É necessário saber duvidar onde se impõe duvidar, afir-
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mar onde se deve afirmar, e submeter-se onde se reconhece que é legí-


timo submeter-se. Quem não procede assim desconhece a força da ra-
zão». (frag. 167).

Devemos recorrer à razão para estabelecer as verdades que estão ao


seu alcance, e obrigá-la a submeter-se às verdades que a ultrapassam:
À própria razão crítica cabe determinar quando se deve submeter:

«S. Agostinho diz que a razão jamais se submeteria se não verificasse


que há ocasiões em que deve submeter-se. É justo, portanto, que se sub-
meta quando reconhece que deve submeter-se» (frag. 174).

Correctamente instruída sobre as condições presentes do homem e so-


bre as suas capacidades, a razão consentirá em submeter-se a verdades
que, embora a ultrapassem, não contrariam as suas leis e exigências in-
trínsecas (frag.12).
Esta impotência da razão é mais interiormente sentida do que intelec-
tualmente compreendida. As maravilhas da natureza envolvem-nos, sem
dúvida, mas a nossa razão é incapaz de as penetrar. A partir daqui a nos-
sa curiosidade terá de se mudar em admiração. O órgão deste sentido in-
terior, desta capacidade de admiração, do sentido espiritual do valor das
coisas é o que Pascal designa frequentemente, dentro duma longa tradi-
ção bíblica e agostiniana, pelo termo coração.

O Coração

Apesar das flutuações da sua terminologia e da enorme variedade de


contextos em que aparece, o coração possui uma importância muito es-
pecial. Sinónimo, umas vezes, de fé, e outras de sentimento, equivalen-
do aqui a «esprit de finesse» e ali a vontade, designando ora a natureza,
ora o instinto, o coração é para Pascal simultaneamente uma estrutura e
uma força. Como estrutura significa a realidade mais íntima que confe-
re à alma solidez e consistência. Como força significa uma corrente afec-
tiva, um dinamismo em que as duas funções cognitiva e volitiva mutu-
amente se exigem e completam. O coração é pois a própria alma na sua
unidade e na sua vida mais profunda, antes da sua divisão (ramificação)
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em actividades e funções cuja multiplicidade não a divide e cuja fecundi-


dade não a esgota. Neste sentido o coração distingue-se de todas as nos-
sas faculdades, sobrepondo-se-lhes e, antes de mais, à razão. Constitui,
por isso mesmo, o princípio indiferenciado, mais íntimo e imediato dos
nossos impulsos e das nossas intuições mais pessoais e mais profundas.
Não se trata, portanto, de uma faculdade da alma, mas da sua verdadeira
força actuante, do lugar interior das grandes decisões e opções. Nem se
opõe à razão nem exclui a razão, porque é fundamentalmente uma função
de compreensão e de orientação. Ele mesmo se identifica com a razão
ou inteligência quando a inteligência é animada e potenciada pelo amor.
Esta concepção coincide, em grande parte, com a concepção da Escritura
e dos teólogos agostinianos. Na Escritura, o coração representa todas as
faculdades: a inteligência e a razão, a vontade e a sensibilidade, a cons-
ciência e o homem interior. Por outro lado, os teólogos agostinianos opu-
seram-se sempre à distinção real das faculdades como um atentado con-
tra a doutrina fundamental da unidade e indivisibilidade da alma. Neste
sentido, o coração é o sentido luminoso do ser e do valer, uma abertura
livre e espontânea a todas as verdades tanto naturais como sobrenaturais.
O famoso fragmento 110 é uma tentativa de inventariação certamen-
te provisória e incompleta, das verdades do coração. Aí se encontra de-
signadamente que: «Nós conhecemos a verdade não só pela razão, mas
também pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os pri-
meiros princípios».
Estes primeiros princípios são as verdades primeiras e fundamentais
que todos os homens admitem espontaneamente e sobre as quais dispu-
tam dogmáticos e pirrónicos; os primeiros pretendendo reduzi-las à ra-
zão; os outros, pondo-as em dúvida em nome da mesma razão. Ambos se
enganam, porque estas verdades são ao mesmo tempo indemonstráveis e
indubitáveis; como tais escapam à razão. É o coração que sente e perce-
be com uma certeza indubitável estas mesmas verdades. É também pelo
coração que sabemos que não estamos a sonhar (frag. 110). O fragmen-
to 131 atribui o seu conhecimento à natureza, da qual o coração é sinóni-
mo ou órgão por excelência:

«A natureza sustenta a razão impotente; poderá o homem duvidar de


tudo? Duvidará se está acordado, se o beliscam, se o queimam? Duvi-
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dará se duvida? Duvidará que existe? Não pode chegar a este extremo.
De facto, a natureza que impele, que duvide ou delire até este ponto é o
coração» (frag. 131).

Numa palavra, é o coração que conhece, sob forma de sentimento, os


primeiros princípios das ciências, o estado de vigília, a realidade da cons-
ciência, o valor das experiências tanto externas como internas, tudo aqui-
lo que instintiva e naturalmente admitem todos os homens. É também o
coração que conhece os primeiros princípios e os dados fundamentais da
geometria: «Os princípios sentem-se, as preposições concluem-se e tudo
com certeza, embora por diferentes vias» (frag. 110).
Mas é sobretudo no domínio das verdades sobrenaturais que melhor
se faz sentir a acção imprescindível do coração. É ele que as sente e as
dá a conhecer por uma secreta inclinação interior. E, em primeiro lugar,
a existência de Deus: «É o coração que sente Deus e não a razão; Deus é
sensível ao coração, não à razão» (frag. 424).
No entanto, importa observar que se trata aqui do coração sobrenatu-
ralizado pela graça, iluminado pela fé, que é dom gratuito de Deus (frag.
588). É o próprio Deus que, por sua inspiração, se torna sensível ao cora-
ção, dispondo-o ao acolhimento das verdades sobrenaturais, de todas as
verdades da revelação (frag. 460).
Outros fragmentos permitem-nos precisar a natureza os caracteres
originais deste conhecimento privilegiado. Trata-se, antes de mais, de
um conhecimento pré-racional ou transracional. As verdades por ele al-
cançadas revestem-se de um carácter intuitivo e imediato e é por isso
que Pascal lhes chama sentimentos. Conhecimento dotado, além disso
de uma evidência e certeza próprias que valem, se é que não excedem, a
evidência e a certeza das verdades racionais (frag. 110). Daqui a força in-
vencível e a legitimidade da fé dos simples, fundada apenas nas intuições
do seu coração sobrenaturalizado (frag.110, 380, 381, 382). Trata-se fi-
nalmente, de um conhecimento experiencial e, num certo sentido, de um
conhecimento de realidades que só experiencial ou vivencialmente se
podem conhecer. E aqui reside talvez o seu carácter fundamental, que ex-
plica todos os outros. O coração funciona aqui como um sentido metafí-
sico das realidades naturais e como um sentido divino das realidades so-
brenaturais. É que entre ele e estas realidades existe, por natureza ou por
sobrenatureza, «relação e proporção». Existe relação entre o homem e a
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natureza, entre o homem e o universo, do qual faz parte no qual tem de


viver (frag. 418). Analogamente, existe relação e proporção entre o ho-
mem sobrenaturalizado pela graça e Deus, porque a graça de Deus supri-
me a distância infinita que dele nos separa. Todas estas relações e propor-
ções explicam que o coração possa experienciar, sem intermediários de
qualquer espécie, as realidades naturais e sobrenaturais que do mais fun-
do tocam o homem e a sua vida, permitindo que as sinta e pressinta antes
de as pensar e para melhor as pensar. Convém, no entanto, observar, que
ele as sente e conhece como verdades incompreensíveis: sentir o univer-
so ou Deus não é a mesma coisa que compreendê-los. Por mais evidentes
e seguras que se mostrem as intuições do coração não pretendem realizar
o ideal impossível duma inteligibilidade completa e integral.

Relação entre as funções da razão e do coração

As análises precedentes permitem formular um juízo suficientemen-


te documentado sobre as relações da razão e do coração na aquisição da
verdade.
Além de estarmos perante dois modos diferenciados de conhecimen-
to, os domínios de competência, o objecto formal, as técnicas e meto-
dologia utilizadas por um e outro processo distinguem-se nitidamente,
como vimos (frag.110). Nem os dogmáticos podem demonstrar nem os
pirrónicos podem negar ou pôr em dúvida as verdades do coração pelo
facto de a razão ser incompetente neste domínio. Do mesmo modo, tam-
bém o coração não pode pronunciar-se sobre as verdades demonstradas
pela razão. No entanto, por mais pronunciadas que sejam as diferenças,
não estamos perante duas faculdades. Se a razão discursiva se pode con-
siderar uma faculdade, o mesmo não se pode dizer do coração, sendo
como é o núcleo ou âmago da própria alma, antes da sua diferenciação
em faculdades. As diferenças situam-se entre o fundo indiferenciado da
alma e a mais creditada das suas faculdades cognitivas, a razão. A este ní-
vel, tais diferenças deixam subsistir a possibilidade de relações de mútua
compenetração e solidariedade.
Não devemos esquecer que o coração é também, como a razão, um
órgão de conhecimentos evidentes e luminosos. Operando a modo de
um instinto, está longe de ser, como o instinto dos animais, uma potên-
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cia cega. É tão clarividente, a seu modo, ou mesmo mais clarividente do


que a razão. Não só as suas verdades gozam de evidência própria como
esta evidência brilha aos olhos da própria razão crítica quer se trate dos
primeiros princípios da geometria quer do conhecimento de Deus e das
verdades da fé. O espaço, o tempo, os números, o movimento, sentidos
pelo coração nos Pensamentos, são o espaço, o tempo, o número e o mo-
vimento, percebidos com extrema evidência e perfeita clareza no Esprit
géometrique. Paralelamente, o Deus sobrenatural, sensível ao coração, é
para a razão o supremo inteligível, um inteligível que ultrapassa os ou-
tros em evidência e clareza. As «luzes da fé» não são apenas uma bela
metáfora, não iluminam apenas os simples, mas iluminam também os sá-
bios aos quais fornecem os princípios necessários à inteligência superior
do universo. De facto, a razão assimila e elabora em conceitos e em pro-
posições todas as intuições do coração; formula-as em premissas de onde
extrai todas as consequências nelas logicamente incluídas. Pelo facto de
lhe fornecer os primeiros princípios sobre os quais assenta todo o seu dis-
curso, o coração aparece como a base natural e necessária da razão; e a
razão, por sua vez, como complemento natural e o desdobramento inte-
ligível das intuições do coração. A razão é órgão de ligação, de nexo ou
encadeamento de verdades, organizando-as e sistematizando-as no pla-
no da representatividade. O coração, por sua vez, é o lugar natural da re-
velação da verdade em toda a plenitude do seu valor e significação. O sa-
ber não seria possível sem o recurso a esta espontaneidade actuante que
sustenta e guia a razão discursiva. Em resumo, o coração e a razão dis-
cursiva distinguem-se e completam-se como uma razão intuitiva e uma
razão operatória. Duas razões que é necessário distinguir ou mesmo se-
parar, não para as opor uma à outra, mas para as integrar e enriquecer mu-
tuamente:

«Erradamente se retirou o nome de razão ao amor, sem qualquer fun-


damento porque o amor e a razão são uma mesma coisa… quando des-
crevem o nome como qualquer coisa de cego, os poetas não estão com a
razão; é necessário retirar a venda e devolver-lhe a luz dos olhos». (Dis-
cours sur les passions de l’amour, p. 288).

É certo que Pascal afirma que o «coração tem razões que a razão (dis-
cursiva) desconhece» (frag. 423). Mas são ainda razões e, por isso mes-
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mo, razões que a própria acabará por descobrir se as tomar como objecto
das suas análises. O coração e a razão manifestam, cada um a seu modo,
o próprio fundo da alma, que é essencialmente ordem e razão (frag. 111).
Deste modo, as razões do coração e da razão acabam por se integrar. A
razão discursiva é incapaz de explicar a natureza do homem, o seu fim,
a sua dignidade, o paradoxo da sua situação presente, mas é sempre me-
diante a razão, crítica agora, que o homem reconhece os seus limites e
a razão de ser ou o bem fundado de outras luzes que eventualmente ve-
nham em socorro da sua incapacidade nativa. O próprio acto de fé é um
acto racional porque é a própria razão a reconhecer que muitas coisas a
ultrapassam e que, portanto, o acreditar não é em si mesmo um acto ir-
racional ou absurdo. São pois infundadas todas as interpretações que fa-
zem de Pascal um fideísta como se a fé fosse para ele um salto irracional
ou uma atitude simplesmente emotiva: «A religião não é contrária à ra-
zão» (frag. 12).
E forneceu sobejas provas desta sua afirmação, como veremos em se-
guida.
O homem é grande na sua miséria, não por ser miserável, mas por se
saber miserável; é grande, portanto, pelo pensamento. E a razão dará pro-
vas de coerência e vigor não enquanto pretende convencer-se de que se
basta a si mesma, mas enquanto reconhece que muitas coisas a excedem
(frag. 188). No preciso momento em que põe a nu a miséria do homem,
Pascal afirma a sua grandeza e conclui da razão para a fé, do homem para
Deus: «A razão não se submeteria se não admitisse que existem circuns-
tâncias em que deve submeter-se» (frag. 170).
Esta submissão não é simples abdicação porque parte da própria ini-
ciativa da razão, isto é, o acto pelo qual a razão reconhece a existência de
verdades não-racionais é um acto racionalmente fundado. Daqui a conclu-
são da crítica pascaliana da razão discursiva e das suas relações com a fé:

«Se submete tudo à razão, a nossa religião não tem nada de misterioso
e sobrenatural; se se ofendem os princípios da razão, a religião será ab-
surda e ridícula» (frag. 173).

O acto de humildade da razão é abertura do coração a Deus à procura


de solução para esta antinomia incompreensível e lancinante que o man-
tém suspenso entre o infinito e o nada: abismo insondável de miséria e
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grandeza. Este dado real e indesmentível dita o critério a utilizar no dis-


cernimento da verdadeira religião:

«Para que uma religião seja verdadeira é necessário que tenha conheci-
do a nossa natureza. Deve ter conhecido a sua grandeza e a sua peque-
nez e a razão de uma e outra. Qual senão a cristã a conheceu?» (frag.
215).

O cristianismo atende aos dois extremos do mistério humano, feito de


grandeza e de miséria, justificando-o e apontando-lhe uma solução:

«O conhecimento de Deus sem o conhecimento da sua miséria gera o or-


gulho. O conhecimento da sua miséria sem o conhecimento de Deus ter-
mina no desespero. O conhecimento de Jesus Cristo representa a media-
ção porque nele encontramos Deus e a nossa miséria» (frag. 192); «As
profecias, os milagres, as provas da nossa religião não são de natureza
que se possa dizer que são absolutamente convincentes, mas são de tal
sorte que não se pode dizer que não existem razões para nelas acredi-
tar» (frag. 385): «Sem este mistério (o mistério da transmissão do peca-
do original), o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a
nós mesmos… De modo que o homem é mais inconcebível sem este mis-
tério do que este mistério ao homem» (frag. 131).

Destes fragmentos se colhe que se as provas do Cristianismo não pos-


suem a certeza das demonstrações geométricas, gozam não obstante, de
um alto grau de probabilidade a ponto de tornar muito razoável a sua ad-
missão. Assim se verifica que a razão do coração triunfa em todos os pla-
nos e sobretudo nos domínios da ciência e da fé.

Bibliografia

PASCAL, Oeuvres completes, Editions du Seuil, Paris, 1963; AAR-


RINGTON, TH. M. - Vérité et méthode dans les Pensées de Pascal,
Vrin, Paris, 1972; AIMÉ FOREST, Pascal, Seghers, Paris, 1971; LE
ROY, G., Pascal savant et croyant, PUF, Paris, 1963; MAGNARD,
P., Nature et histoire dans l’Apologétique de Pascal, Paris, 1980;
GOUHIER, H., Blaise Pacal, Commentaires, Paris, 1971; SELLIER,
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