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no conhecimento da verdade
segundo Pascal
Por
Manuel Barbosa da Costa Freitas (1928-2010)
A Razão
«O homem é visivelmente feito para pensar. Nisso reside toda a sua dig-
nidade e todo o seu mérito; e todo o seu dever consiste em pensar correc-
tamente» (frag. 620); «Não posso conceber um homem sem pensamento:
seria uma pedra ou um bruto» (frag. 111; cf. frag. 113 e 114); «O homem
é um caniço, o mais débil da natureza, mas um caniço pensante – toda a
sua dignidade reside no pensamento» (frag. 200); «A razão ordena mais
imperiosamente do que qualquer senhor porque desobedecer a este tor-
na-nos infelizes, mas a desobediência à razão é sinal de loucura» (frag.
768); «O pensamento faz a grandeza do homem» (frag. 759).
Dos fragmentos citados resulta bem claro que Pascal respeita e utiliza
os recursos da razão discursiva na construção da ciência, na aquisição da
verdade, ao contrário do cepticismo que pretende de todo excluí-la. Mas
não cai no excesso oposto, ou seja, no dogmatismo, que só admite a ra-
zão. A energia que põe no combate a este excesso explica-se pela natu-
A RAZÃO E O CORAÇÃO NO CONHECIMENTO DA VERDADE ... 5
reza das verdades que aqui estão em causa e que são as verdades da fé.
Estas têm por inimigos principais os dogmáticos que pretendem demons-
trar a sua falsidade, substituindo-as pelo seu deísmo orgulhoso e auto-su-
ficiente. Por conseguinte, as verdades da fé têm por inimigos, até certo
ponto, os inimigos da razão, ou seja, os pirrónicos: «O pirronismo serve
à religião» (frag. 658).
Depois de ter demonstrado, contra o pirronismo, o poder da razão,
Pascal, servindo-se dele, isto é, dos seus argumentos contra a razão, vai
tentar demonstrar agora as insuficiências e limites da mesma razão, a fim
de humilhar a sua soberba e forçá-la a permanecer nos seus limites sem
jamais invadir domínios que a excedem. O essencial da crítica pascalia-
na contra o excesso dogmático consiste em demonstrar que existem ver-
dades não só indemonstráveis, mas também incompreensíveis à razão.
Quanto às verdades indemonstráveis, é evidente que não se pode de-
monstrar o valor da razão e dos seus critérios racionais sem se cair num
círculo vicioso, já que a razão se encontra neles envolvida: «Alguns er-
ram… afirmando tudo como demonstrável por não se reconhecerem en-
volvidos na demonstração» (frag.170).
Este valor é admitido «sem provas convincentes» (frag.131). Também
não se pode demonstrar a identidade da razão em todos os homens nem o
determinismo das leis naturais (frag. 109 e 821). De resto, não consegui-
mos demonstrar por provas racionais absolutamente convincentes nem
a existência de Deus nem a existência, a espiritualidade, a liberdade e a
imortalidade da alma.
É na geometria que melhor se revela a força e fecundidade da razão.
Se nem mesmo aí se realiza o ideal de tudo definir e de tudo demonstrar
é porque este ideal é impossível e de modo algum indispensável. De fac-
to, a geometria não demonstra os seus primeiros princípios, como sejam
o espaço, o tempo, o movimento, os números, a igualdade, etc.
Seria «inútil e ridículo que a razão pedisse provas dos seus primeiros
princípios para neles consentir» (frag. 110).
A razão não pode assistir à origem ou fonte do seu próprio movimen-
to. Tem que se apoiar em algo que lhe é anterior, que a impele e orienta.
Apesar de procurar a explicação e a prova, termina, em todas as suas ini-
ciativas, por um inacabamento, uma suspensão não só de facto, mas de
direito. Todas as suas construções se caracterizam pela impossibilidade
6 MANUEL BARBOSA DA COSTA FREITAS
A conclusão prática derivada desta situação não pode ser mais conci-
sa e terminante:
O Coração
dará se duvida? Duvidará que existe? Não pode chegar a este extremo.
De facto, a natureza que impele, que duvide ou delire até este ponto é o
coração» (frag. 131).
É certo que Pascal afirma que o «coração tem razões que a razão (dis-
cursiva) desconhece» (frag. 423). Mas são ainda razões e, por isso mes-
A RAZÃO E O CORAÇÃO NO CONHECIMENTO DA VERDADE ... 13
mo, razões que a própria acabará por descobrir se as tomar como objecto
das suas análises. O coração e a razão manifestam, cada um a seu modo,
o próprio fundo da alma, que é essencialmente ordem e razão (frag. 111).
Deste modo, as razões do coração e da razão acabam por se integrar. A
razão discursiva é incapaz de explicar a natureza do homem, o seu fim,
a sua dignidade, o paradoxo da sua situação presente, mas é sempre me-
diante a razão, crítica agora, que o homem reconhece os seus limites e
a razão de ser ou o bem fundado de outras luzes que eventualmente ve-
nham em socorro da sua incapacidade nativa. O próprio acto de fé é um
acto racional porque é a própria razão a reconhecer que muitas coisas a
ultrapassam e que, portanto, o acreditar não é em si mesmo um acto ir-
racional ou absurdo. São pois infundadas todas as interpretações que fa-
zem de Pascal um fideísta como se a fé fosse para ele um salto irracional
ou uma atitude simplesmente emotiva: «A religião não é contrária à ra-
zão» (frag. 12).
E forneceu sobejas provas desta sua afirmação, como veremos em se-
guida.
O homem é grande na sua miséria, não por ser miserável, mas por se
saber miserável; é grande, portanto, pelo pensamento. E a razão dará pro-
vas de coerência e vigor não enquanto pretende convencer-se de que se
basta a si mesma, mas enquanto reconhece que muitas coisas a excedem
(frag. 188). No preciso momento em que põe a nu a miséria do homem,
Pascal afirma a sua grandeza e conclui da razão para a fé, do homem para
Deus: «A razão não se submeteria se não admitisse que existem circuns-
tâncias em que deve submeter-se» (frag. 170).
Esta submissão não é simples abdicação porque parte da própria ini-
ciativa da razão, isto é, o acto pelo qual a razão reconhece a existência de
verdades não-racionais é um acto racionalmente fundado. Daqui a conclu-
são da crítica pascaliana da razão discursiva e das suas relações com a fé:
«Se submete tudo à razão, a nossa religião não tem nada de misterioso
e sobrenatural; se se ofendem os princípios da razão, a religião será ab-
surda e ridícula» (frag. 173).
«Para que uma religião seja verdadeira é necessário que tenha conheci-
do a nossa natureza. Deve ter conhecido a sua grandeza e a sua peque-
nez e a razão de uma e outra. Qual senão a cristã a conheceu?» (frag.
215).
Bibliografia