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Prefácio do Editor
O apóstolo Paulo pode não ter sido o fundador da Cristandade – como por vezes
afirmado – mas ele era, sem dúvida, a mais persuasiva e poderosa influência no mais
antigo período da Igreja, e essa influência não diminuiu durante os séculos. Por toda a
história houve, e ainda há, significantes correntes que refletem o que possa ser chamado
um corpo paulino reconhecível de doutrina.
Também não há dúvida de que Paulo era um homem excepcionalmente dotado, embora
difícil e abrasivo, que preferia encontrar amigos entre aqueles que de todo o coração
concordassem com ele, e que, às vezes, inclinava a tratar com quase desdém aqueles, até
os seus colegas missionários, cujo evangelho diferisse sob qualquer respeito daquele
que ele mesmo proclamava tão assídua e efetivamente.
Essa intensidade natural era impelida por duas firmemente mantidas convicções:
primeiro, a de que era por Deus chamado e apontado como Apóstolo aos Gentios e,
segundo, a de que era testemunhando os eventos do Último Tempo, cujo sinal certo era
a resposta das nações ao Deus de Israel.
Será essencial que aqueles que interpretarem Paulo, devem ficar cônscios destes fatores,
pelo menos, e que devem também ficar advertidos dos prejuízos engendrados por
anteriores faltas nesses deveres.
Mais um requisito é que haja alguma medida significante de acordo científico no que se
refere ao que as cartas tradicionalmente atribuídas a ele sejam aceitas com segurança
como autenticamente paulinas. Embora seja verdade que aqueles dos seus escritos que
confortavelmente cabem nessa categoria são menos que o número dos que lhe são
atribuídos, há suficiente material aceito como sendo inquestionavelmente do próprio
Paulo, para indicar claramente o seu pensamento. Isso aplica-se certamente à tarefa que
temos aqui à nossa frente. Será de fato na Carta aos Romanos e na Carta aos Gálatas,
ambas indubitavelmente paulinas, que encontramos amplo testemunho da sua atitude à
Toráh e ao Judaísmo, mesmo se pudermos procurar em vão por consistência completa.
Quando essas duas cartas forem examinadas juntas, podemos facilmente encontrar que
aquilo que fez Paulo tão atrativo àqueles que compilaram e aprontaram o cânon do
Novo Testamento, a saber sua putativamente negativa atitude referente à Toráh e à sua
religião nativa, não é de jeito algum tão conspícua como era tida que fosse pelos
teólogos da primitiva Igreja, nem como o era pela maioria dos seus sucessores.
... “Paul the Jew” (“Paulo o Judeu ”), “Paul and Torah” (“Paulo e Toráh”) und “Paul and
the Jewish People” (“Paulo e o Povo Judaico”) são duma preleção proferida pelo Padre
Brendan Byrne SJ em 1997 (do Jesuit Theological College e da United Faculty of
Theology, Melbourne) na ocasião dum seminário sobre a Toráh, ampliados por uns
poucos trechos da sua preleção de título “Paulo, Apóstolo ou Apóstata?” ...
Robert Anderson, maio de1999
“A pior tragédia para um poeta é ser admirado por ser mal entendido.“ Se isso valer
dum poeta, não menos valerá de qualquer um que ponha pena no papel. Contado entre
aqueles cujos escritos sofreram desse modo e cuja reputação tem sido à mercê de
intérpretes é o apóstolo Paulo. Mas uma tragédia ainda maior era o efeito que essa
malcompreensão dos escritos de Paulo teve sobre o modo de como o Judaísmo foi
geralmente percebido na Igreja. Na longa história comum de judeus e cristãos,
nomeadamente onde esta se situava no mundo ocidental, as cartas de Paulo no Novo
Testamento jogavam um importante, senão central, papel no modo de como judeus e
cristãos se entenderam e relacionaram uns aos outros.
O que deve ser evitado a todo custo, é a solução do assunto de “Paulo e o Judaísmo”
que apenas tente encobrir o que são dificuldades muito reais. Grandes ganhos foram
feitos; muitos dos mal-entendidos e falsas informações foram removidos; a “nova
perspectiva” de Stendahl, Sanders e de outros dirigiram de novo o curso dos estudos, e
não há boa razão por que isso não deva prosseguir tanto com sensibilidade quanto com
rigor científico de costume. O que seguir neste ensaio, será apresentado nesse contexto.
Paulo o Judeu
O que fica claro a partir duma cuidadosa leitura dos seus escritos, é que Paulo nunca
teria descrito aquilo que lhe aconteceu na estrada a Damasco, ao redor do ano de 34 EC,
uma como conversão, certamente não no sentido duma conversão de uma religião a uma
outra, do Judaísmo à Cristandade. Até o fim da sua vida considerava-se um judeu, um
membro do Povo de Israel. A experiência da estrada de Damasco e o que a seguiu,
porém, levou-o a um entendimento de si mesmo como judeu e de Israel como Povo de
Deus. Era uma conversão no sentido de que era uma profunda e duradoura experiência
religiosa, mas não pode ser interpretada como indicando uma como quebra com a fé dos
seus antepassados.
Vamos deixar bem claro: esta visão pessimista de Israel em termos morais era um
julgamento feito por um judeu dentro de Israel. Era um julgamento feito em tempos
anteriores por muitos profetas de Israel e por escritores judaicos como o autor dos
Adicionamentos a Daniel (veja, nos vv. 1-22, o material inserido junto a Dn 3,23). Era
um julgamento feito, no tempo de Paulo, por outros judeus que compartilhavam sua
visão do mundo apocalíptica, tais como os membros da comunidade que escreveu os
Rolos do Mar Morto, o autor do Quarto Livro de Ezra e. pelo testemunho do historiador
Josefo (Ant. 18,1.16-19) bem como dos Evangelhos Cristãos, por João Batista. Era uma
visão profética que em sentido nenhum implicava na rejeição da nação judaica, mas era
antes uma exortação à conversão em vista do julgamento de Deus chegando.
Essa convicção de Paulo não era uma simples estratégia destinada a fazer da conversão
uma perspectiva mais atraente e acessível para pagãos. Ela era ligada a uma alargada
visão de Israel, visão essa para que Paulo encontrou validação na sua interpretação da
maneira como Deus procedeu com Abraão. Escritores judeus antes de Paulo pintaram
Abraão como o primeiro prosélito. Paulo levou essa noção muito mais para frente. Na
simples fé de Abraão na promessa de Deus de que iria ter um filho e herdeiro ao
contrário de qualquer evidência, uma fé que o pôs reto com Deus (o “justificou”), Paulo
via prefigurado um padrão, de acordo com o qual as nações do mundo pudessem
encontrar aceitação e salvação. Na promessa de Deus a Abraão de que todos os povos
seriam abençoados na sua semente (Gn 22,18; 26,4; cf. 12,3 e 18,18), Paulo encontrava
a indicação da Escritura de que o Israel final fosse perfeito duma extensa clientela de
crentes de todas as nações. Na Gálatas (capítulos 3-4), e menos polemicamente na
Romanos (capítulos 4 e 9), Paulo luta pela redefinição de Israel, um Israel baseado
primariamente em fé como resposta a Deus antes de que em observância de Toráh. A
visão de Paulo da salvação dá prioridade à aliança que Deus fez com Abraão, sobre
aquela que fez com Israel no Monte Sinai através de Moisés. Nesse entendimento da
divina intenção para a humanidade, a última recebe algo duma significância temporária
(veja especialmente 2Cor 3,4-18).
Esse novo entendimento não diminuía para Paulo seu auto-entendimento como judeu,
nem desvalorizava o papel do seu povo. Enfatizou, antes, o lugar de cada um na
conversão dos povos à fé no Deus de Israel.
Paulo e Toráh
Todavia, deve ser notado que a visão de Paulo da Toráh envolvia um relativizar da
dispensação mosaica a favor daquela que centrava em Abraão. É por essa razão que
muitas das declarações de Paulo sobre a Toráh soam muito polêmicas quando isoladas
do seu contexto e do seu papel num argumento mais largo numa determinada carta.
Devem ser lidas com muito cuidado. Especialmente precisa-se reconhecer que, quando
Paulo fala de Toráh (na maioria das vezes na Gálatas e na Romanos), ele o faz no
contexto de defender, contra companheiros cristãos, sua convicção de que as obrigações
rituais da Toráh não são para serem impostas a convertidos gentios. Ele não está
argumentando diretamente com patrícios judeus sobre o status da Toráh como tal,
embora, por vezes, notavelmente nos primeiros capítulos da Romanos e por razões
retóricas, permita à sua audiência de cristãos gentílicos escutar, por assim falar, uma
discussão fictícia com um professor judaico. É, em certo sentido, um jogo dentro de um
jogo, e não é compreensível senão dentro do retórico contexto somente.
Paulo rejeita a imposição da Toráh a gentios por duas razões básicas. Em primeiro lugar,
como já mencionado, porque aquela imposição destruiria a identidade gentílica num
modo contrário à vontade de Deus como explicada a Abraão. Segundo, e este é o ponto
mais contencioso, cria que ela, como instrumento de regulação moral, não pudesse fazer
frente à força do pecado enraizada em seres humanos. A análise de Paulo,
principalmente nos capítulos cinco a sete da Romanos (veja 5,20; 6,14-15; 7,5.7-25;
também 3,20; 4,15; Gal 3,119-24; 1Cor 15,56) do nexo entre lei e pecado, é onde dá a
maior ofensa, aparentemente intolerável, a judeus e Judaísmo. O que está tentando
fazer, porém, é dissuadir os convertidos gentios olharem à Toráh como meio seguro de
conter os impulsos e tentações de voltar ao seu velho padrão de vida pagão. Contra isso,
Paulo cria, a lei seria inútil para eles e, de fato, contraproducente. Iria atualmente
provocar rebelião e fazer as coisas piores (Rm 7,5.7-13.14-25).
Paulo deixa abundantemente claro, se devida atenção for dada às suas palavras, que o
problema não estava na própria lei, esta que insiste permanecer “santa reta e boa” (Rm
7,12; cf. Gl 3,21), mas sim na força da pecaminosidade que habita na humana natureza
não salva. Esse entendimento de natureza humana com os seus exageros pessimistas, era
típico do pensamento apocalíptico e está encontrado também no seu contíguo
contemporâneo, o autor do Quarto Livro de Ezra, o qual, refletindo sobre o fado do seu
povo depois da tragédia do ano de 70 EC (Era Comum), é igualmente pessimista
referente à lei para combater pecado:
... A lei estava de fato no coração do povo, mas (em conjunção) com o impulso mau;
assim aquilo que era bom partiu, e o mal ficou (3,21-22; cf. 4,30-32).
Assim, por exemplo, quando Paulo fala em Rm 8,2 de “a lei de pecado e morte”, da
qual “a lei do Espírito de vida me liberou”, não está identificando a Lei de Moisés com
pecado e morte. A “lei” de pecado e morte é o regime de pecado na vida humana, o qual
a Toráh, ao seu ver, é impotente de curar. A referência não é, ao contrário de algumas
interpretações, à lei de Moisés, que para Paulo permanece em si “santa e reta e boa”.
Aquele julgamento sobre a impotência é feito, como já notado, primariamente com
gentios em vista. Não se pode, porém, negar que isso era o veredicto de Paulo a respeito
de Israel também. Mas outra vez: é a visão de alguém impregnado com o caraterístico
pessimismo do apocalipcismo, de alguém que passou por profunda experiência religiosa
(cf. Fl 3,4b-11), identificando-se com os clássicos profetas de Israel (cf. Rm 1,1-2; Gal
1,1-15) e vendo-se chamado, como estes, a convocar a nação à penitência em vista
duma oferta de salvação por vir. Semelhantes veredictos pessimistas aparecem nos
serôdios livros das Escrituras Hebraicas (p. ex. Is 59,12-15; 64,5-12; Ezra 0,6-15; Ne
9,16-38; Dan 9,9-14) e na literatura do Judaísmo pós-bíblico, nomeadamente em
círculos apocalípticos (p. ex. Tob 3,1-6; Jub 23,16-21; 4Ezra 7,22-24.46.62-74.116-126;
8,35; Qumran 1,25-27; 4,29-31; 6,18-22; 9,14; 12,30-31; IQS 11,9). Tais textos
provêem o contexto dentro do qual a própria acusação profética de Paulo contra o seu
povo está para ser colocada.
Mas esta é a aliança que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor:
Porei a minha lei neles, e a escreverei nos seus corações; e serei seu Deus, e eles serão
meu povo (Jr 31,33).
Alusões a essas profecias nos escritos de Paulo (2Cor 3,3.6; Rm 2,27.29; 7,6) mostram
claramente que via o dono do Espírito como cumprindo a função da Toráh no novo
Povo de Deus. O que a Lei/Toráh não podia fazer, como explica em Rm 8,3-8, por causa
de impotência com respeito a pecado, Deus estava agora alcançando através da força do
Espírito liberada na ressurreição de Jesus.
Num estágio maduro da sua carreira, quando escrevendo Romanos, Paulo reconheceu
que sua visão dum Israel ampliado ao redor do Messíah Jesus não se recomendava à
vasta maioria dos seus compatriotas judeus. Numa prolongada análise desse fenômeno
conduzida nos capítulos 9-11 da carta aponta à persistência no caminho da Toráh como
o principal fator dessa recusa (9,30-10,4). O impressionante nessa longa e convoluta
seqüência não é tanto a reiterada declaração da sua aflição sobre este estado de coisas
(9,1-5; 10,1; 11,1), mas também, embora nem sempre reconhecida, a evidência que a
inteira seqüência provê ao efeito de que Paulo não pode conceber que o povo de Deus
chegue à sua constituição final à parte de Israel. Anda longa rota de rodeio para aí
chegar, mas no fim o princípio fica claro: “... no que se refere à eleição, são amados por
causa dos pais, pois as dádivas e a vocação de Deus são irrevogáveis” (11,28b-29). A
comunidade, judeus e gentios, composta daqueles que vieram à fé em Jesus como
Messíah, em sentido nenhum simplesmente substitui ou compensa pela grande maioria
de Israel que não respondia desse modo. O Deus que, no cumprimento da promessa a
Abraão, agiu inclusivamente a respeito às nações do mundo, não vai finalmente falhar
inclusive a respeito do Israel original também. A situação atual de divisão e exclusão é
temporária, uma prevista e prefigurada nas Escrituras, contida nos misteriosos planos da
salvadora sapiência de Deus (11,33-36).
Finalmente, e de fato em muito pouco tempo, chegou a ser claro que a visão de Paulo
duma ampliação incluindo Israel não estava ganhando o dia. O Judaísmo e o movimento
messiânico de Jesus que deu à luz, andavam caminhos separados para chegarem a ser
relacionadas, mas distintas, religiões. Esse destino separado era certamente algo que
Paulo nunca encarava pessoalmente ou previu, embora seus escritos, interpretados de
modos que não previu, ajudaram o processo para diante.
Conclusão
O que foi tratado no corpo desta declaração são os específicos pontos que realmente
confrontaram Paulo quando tentava incluir gentios dentro do plano divino de redenção
sem chamar em questão a fidelidade de Deus à aliança com o Povo de Israel. É um fato,
porém, que está amplamente escrito na história judaica, que as reivindicações cristãs
referentes à messianidade de Jesus de Nazaré são inequivocamente inaceitáveis. Para a
grande maioria dos compatriotas de Paulo no primeiro século era isso claramente assim.
O que tinha a dizer sobre a Toráh como não mais sendo resposta apropriada a Deus, mas
posta ao lado pelo advento de Cristo não é o modo como judeus entendem ou têm
entendido o lugar e a finalidade da Toráh.
Bibliografia
Lloyd Gaston, em Paul and the Torah (Vancouver: Univ. of British Columbia Press,
1987) concorda com Sanders que os cristãos têm consistentemente interpretado mal
tanto o Judaísmo do primeiro século quanto o relacionamento de Paulo com ele. A
missão de Paulo era primariamente a gentios e suas cartas foram escritas a gentios. É a
Lei como ela se relaciona a gentios aquilo que é o único alvo da sua crítica negativa.
Enquanto os gentios não têm parte na relação da aliança de Deus com Israel, não
experimentam a lei senão como algo condenatório e opressivo. Quando Paulo critica
judeus, faz isso por causa da falta deles de perceber que Jesus é o cumprimento da
promessa de Deus referente aos gentios.
Fraqueza da obra de Gaston é que falha no fazer justiça àquelas passagens, nas quais
Paulo reivindica que a obra de Cristo é universal na sua finalidade, esta de que segue
que as declarações negativas referente à Lei aplicam-se tanto a judeus com a gentios...