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LUIZ CARAMASCHI
NOVA PERSPECTIVA
DA FILOSOFIA
Pede sempre conselho ao sábio".
Tob 4,19
PRÓLOGO
O autor
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PREFÁCIO
É com imenso prazer que apresentamos ao público mais uma obra
do eminente filósofo, professor Luiz Caramaschi. Esta obra é
endereçada às pessoas que buscam a sabedoria pelos caminhos da
razão, mas que, não conseguindo orientar-se em meio à congérie de
verdades menores, se encontram em obscuridade, vivendo,
consequentemente, angustiadas.
Estes poucos pensadores que ainda restam no mundo, tentam
organizar-se em grupos de estudo, mas não conseguem justificar a
obra de um Criador divino, a partir da idéia da Evolução. Ou se
aceita a idéia mística da Criação num simples ato do Criador, ou se
aceita a idéia da Evolução a partir do movimento da matéria cósmica
até sua excelsitude na vida humana, mas que termina sem a
esperança de uma vida post-mortem. Esta síntese foi feita pelo professor
Caramaschi; e só lhe foi possível, graças aos atuais conhecimentos
científicos de que dispomos hoje, os quais alteraram os conceitos
filosóficos basilares do passado.
O professor é autor de UM ESTUDO DE NOSSO TEMPO, obra
em que apresenta um estudo sócio-filosófico grandemente abrangente
do estado atual de nossa civilização, concluindo, sem devaneios
proféticos nem visões apocalípticas, que ela poderá fechar seu ciclo, se
não houver uma reversão geral da ordem atual. Nesta obra, dá
novos enfoques da mesma magnitude, sobejamente esclarecedores,
que ajudarão antever essa hecatombe, e, se possível, evitá-la, ou, na
impossibilidade de impedi-la, como comportar-se frente à fatalidade.
Perigo maior que as bombas nucleares ou até a já sonhada
bomba de anti-matéria, é, para o autor, a dissolução moral que
campeia por todas as camadas sociais, e isto, por se haver perdido
os eternos padrões de conduta moral que deveriam nortear nossos
destinos para todo o sempre.
Por tratar-se de um pensador de nossa cultura, com a
experiência de nossos problemas, não despreza o mundo da matéria,
nem o valor do desenvolvimento científico e tecnológico, nem defende
formas de misticismos vazios de ação que rejeitam a realidade do
mundo, como se fosse possível ao homem ocidental abandonar tudo a
que conquistou até o momento, e ainda, como se nisto consistisse o
mal.
O professor Luiz não é um pensador fatalista que acredita na
irreversibilidade da ordem, nem é um progressista que crê que tudo dará
certo, por haver uma como que mão de Deus guiando a história. Crê,
isto sim, que a história depende exclusivamente de nós, e que o
desenvolvimento espiritual de cada um só virá com a busca da
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OS EDITORES
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CAPÍTULOS
I - Filosofia e Religão
II - O Sistema
III - O Arqui-Sistema
IV – O Ternário
V - Tudo é Absoluto e Relativo
VI - Homem – Mundo - Deus
VII - Alertismo
VIII - Desatinos
IX - Conciliação de Opostos
X - O Unidualismo
XI - Ente Biológico e Sócio
XII - Alma e Corpo
XIII - Pensamento e Linguagem
XIV - A Moral Objetiva de Confúcio
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I - FILOSOFIA E RELIGIÃO
A filosofia nasceu no dia em que o primeiro homem, saindo da
alteração em que vivem todos os animais selvagens, a duras penas, se
pôs só consigo em solidão meditativa. Este homem foi o primeiro a
ordenar o mundo para si, segundo sua perspectiva, e esta sua aventura
possibilitou-lhe congregar os demais homens em torno de si, pelo que se
sublimou, sobre todos, como chefe militar, legislador e sacerdote. A
filosofia nasceu, pois, na noite anterior ao dia em que os homens se
reuniram em tribo, unificados por um chefe fundador de uma religião,
por intermédio do qual Deus deu o primeiro código ético regulador dos
costumes.
Deste modo, as religiões não surgiram no ar, e sim, nas cabeças
de uns pensadores, de sorte que as revelações são o modo com que os
primitivos filósofos-profetas deram suas verdades como vindas da parte
de Deus; os resultados finais (síntese) de suas lucubrações foram,
então, apresentadas sob a forma de máximas inquestionáveis,
peremptórias, dogmáticas. A intuição que relampagueava na mente do
iluminado, era tida por voz de Deus.
Esta é a razão por que as falas de Deus se mantêm ao
nível da cultura da época. Se no tempo de Moisés fossem conhecidos
os micróbios, certamente que o Gênese faria referência a eles. Adão,
que pôs nome a todas as alimárias da Terra, também teria que nomear
os animálculos e plantas unicelulares. Como Moisés não tinha
conhecimento da assombrosa e pululante existência de micro-
organismos, Jeová ficou impedido de falar-lhe sobre este assunto. Não
custaria ter acrescentado Deus um versículo ao livro primeiro de
Moisés, assim, por exemplo: "Eis que também tenho criado espécies
várias de seres invisíveis aos olhos, animais e plantas simples que
caberiam dezenas, centenas e milhares deles no exterior de um grão-de-
areia". Também nada falou sobre os trilhões de infra-partículas que
constituem um globo de poeira suspenso no ar, que dança numa réstea
de luz, porque tais infra-partículas componentes de tal grão de pó,
então, ainda não se conheciam, nem as conhecia o Espírito revelador, se
foi este quem inspirou Moisés. Como? não as conhecia o Espírito?
Logo, tinha este, como nós agora, limitações quanto ao saber?
Sim, porque se tratava de um Espírito, que não do próprio Deus,
visto como, sendo Deus infinito e eterno, diretamente não
pode comunicar-se com o finito e temporal seja este um Espírito,
seja um homem. A linguagem de Deus para o místico fautor de
religião é a mesma linguagem do Ser para o pensador. Há uma
linguagem muda do Ser, que o filósofo procura traduzir para a
fala humana. Daí que, quando Deus fala ao homem, é o homem que
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fala em nome de Deus, e, com isto, dá o melhor de si. Pois que o homem
intuiu Deus, como o intuiu? Para intuí-lo, teve de desinverter-se, teve
de deixar de ser o que é, pelo menos em projeto. Só depois que o
homem se negou a si mesmo de animal, de dragão, de egoísta ignorante,
de perverso, é que pôde projetar esse SI INVERTIDO em Deus.
Deus é a projeção invertida do homem. Deus é o homem pelo avesso. Se
dermos, porém, que Deus é o direito, então, o avesso fica sendo o
homem, e salvar-se é desinverter-se desse negativo.
Deus é para a moral... que cria e mantém a civilização, o mesmo
que os postulados, para as matemáticas, e os primeiros princípios, para
as ciências. Neste sentido de axioma, de postulado, de primeiros
princípios INDEMONSTRÁVEIS..., Deus "é uma criação do homem,
que capitalizou na idéia de Deus o melhor de suas aspirações e de
seus valores. A reivindicação humanista, longe de diminuir Deus,
contenta-se com reclamar dele o que o homem lhedeu do melhor que
em si tinha".
Eis, pois, que, como diz Gusdorf, "na realidade, metafísica e
religião ocupam o mesmo espaço mental". É por isto que "a experiência
metafísica só é possível, se fundamentada na experiência religiosa".
Consequentemente, "o feiticeiro é o primeiro filósofo, e a religião é o
berço da metafísica". Esta é a razão por que "o filósofo tradicional,
companheiro de viagem do teólogo, vê em Deus o objeto supremo de
uma reflexão, que, toda quanta, se organiza em relação a ele" (...) "A
filosofia, toda quanta, é teologia, ou seja, manifestação do plano divino
na ordem do mundo, ao nível dos seres, das coisas e dos pensamentos".
Não há, pois, dizer que a filosofia surgiu com Tales, em Mileto, no
VI século antes de Cristo, como se antes disto não se tivesse pensado
coisa alguma. Tudo nasceu nas lucubrações dos pensadores, religiosos
ou filósofos; e como lucubrar é trabalhar à noite em meditações
prolongadas e profundas, é estudar com afinco, é aprender... graças a
exaustivos esforços mentais, segue-se que a coruja de Minerva já
mantém seu vôo levantado na noite que precede o alvorecer da
civilização; e depois de esta ter executado seu duro labor, no seu
fim, ao cair de nova noite, outra vez a coruja alça de novo o seu vôo.
Não há razão para dizer-se que o filósofo esteve ausente nos
albores da civilização, senão que, graças ao trabalho noturno e
fastidioso dele, foi possível o amanhecer dela. Como o filósofo não
trabalha no vazio cultural, seu labor noturno (isto é, de olhos fechados
para meditar) começa na undécima hora, e se resume em organizar
a síntese da civilização transata, sobre que se firma para novo
arranque para si inicial, porém, continuativo para a visão da história.
Gênio criador e organização social formam o par dialético da
civilização, um atuando sobre o outro, desde a origem. A civilização é
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ferido.
“Mas o traço marcante dessa curiosa espécie animal, penso eu,
é o canibalismo: o "porcos bipedus" é devorador de si mesmo. Ele mata
o semelhante em nome da lei, em nome dos direitos humanos, em nome
de Deus. Faz a guerra em nome da paz.
"Respeita a trégua de Natal no meio da guerra, marca a data
do cessar-fogo com um mês de antecipação, condena a bomba atômica
e aplaude a dinamite de fabricação caseira, condena não o ato de
matar, mas a forma mais ou menos escandalosa de matar o próximo.
Censura a divulgação do ato do amor, mas divulga a cabeça do inimigo
cortada a faca". (Joelmir Beting – Na prática prática a teoria é outra).
O que pode tirar o homem da condição de porco, satisfeito ou
não, é a filosofia ou a religião vivida..., uma vez que uma e outra
desloca o eixo da vida para longe da satisfação dos grosseiros apetites.
Ou isto, ou o homem será "porcos bipedus", porco de chiqueiro, atufado
de alimentos, sempre empanturrado e faminto sempre. Daí que, tanto
para a religião operativa como para a filosofia, "a função é a
mesma: assegurar à pessoa a paz consigo, com os outros e com o
mundo; e se as purificações do sábio se afiguram mais razoáveis
que as vias e os meios do Xamã primitivo, é simplesmente por ter
mudado o contexto da cultura; mas as atitudes profundas, as
exigências e as satisfações são da mesma ordem".
Todos os filósofos e criadores de religiões tiveram sua aléthea,
diferindo os pensadores dos místicos só na maneira de exporem suas
verdades. Todos tiveram a sua surpresa, e, suprimi-la, "suprimir a
admiração equivale a cometer uma espécie de pecado contra o espírito
(...) O primeiro filósofo foi o primeiro que se deixou colher pela surpresa,
e de modo definitivo, para toda a raça dos filósofos, pois a ele se deve o
arranque inicial”. Buda teve a sua revelação quando meditava debaixo
da árvore Bó. O príncipe Moisés, tendo matado um egípcio, fugiu para
Midiã, onde se pôs a reorganizar suas idéias. E já se tendo casado com
uma das filhas de Jetro, e estando a apascentar o rebanho do sogro, eis
lhe sobreveio sua aléthea, face a visão da sarça ardente no topo do
Horeb em que subira. Um acidente de carruagem de que fora vítima,
suscita em Pascal a sensação de achar-se à beira dum abismo, e,
mito ou não, tal experiência radical provocou toda a revolução de idéias
que transformaram o físico-matemático e inventor, no filósofo que foi,
de cariz místico. Daí por diante a expressão "abismo de Pascal",
passou a ser usada quando se tem por frente problemas sociais e morais
profundos e difíceis, que apavoram aos que os enfrentam. O Zaratustra
de Nietzsche se vê retratado num saltimbanco que dança numa corda
estirada no espaço. O primeiro mago toque do absoluto em Descartes,
que lhe suscitou a crise que, um ano mais tarde, lhe produziu a série de
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sombras irreais, tanto que pode receber sua porção da luz eterna,
retornar para junto de seus irmãos aos quais tenta, em vão, contar sua
experiência fabulosa que logo é tida por mito, alucinação, disparate,
desatino. Sofre, ao constatar a impossibilidade de reduzir o que é volume
consciencial ao terraplano da razão. Contudo, não pode parar,
esporeado que se acha por sua paixão. Por fim constrói o seu sistema, e
nele repousa, cuidando que ele seja tudo; no entanto, a história o
desaponta, mostrando-lhe que outros sistemas se criaram no passado,
e, no futuro, outros se criarão como o seu. Porém, nas trevas do seu
tempo, ele, o homem do absoluto, do infinito e da eternidade, agitará
seu facho sem descanso, pois que foi tocado pela arquiluminipotente
e fulgurante mão de Deus.
Não só a filosofia, senão também as ciências, sobretudo as mais
exatas de todas, as matemáticas, se apóiam em postulados e axiomas
indemonstráveis. Porém, os homens da caverna platônica, como apenas
racionais, presos ao terra-terra da razão discursiva, exigem a
demonstração do fundamento em que se firma o pensador. A base não
demonstrada, então, é tida por mito. Não reparam eles que as várias
geometrias, a euclidiana e as não euclidianas, se alicerçam na
intuição ou mito indemonstrável de como é o espaço. Não se podendo
saber como é o espaço real, objetivo, como totalidade, supõem-no com
determinada forma, e, sobre esta, o postulado se alicerça. Como o
universo (espaço objetivo) pode ser intuído como tendo diferentes
formas, sobre cada uma delas se pode enunciar um postulado, cada um
dos quais produzindo uma geometria diferente, consistindo isto,
segundo D'Alembert, "no escândalo da geometria". À-toa não é que o
matemático Bertrand Russel afirma: "A matemática é a ciência na qual
nunca sabemos de que está falando, nem se o que diz é verdadeiro".
Os físicos, os químicos e os biologistas também, por sua vez, lidam com
o espaço, com o tempo, com a causalidade, com a substância, etc.;
não reparam, contudo, que, ao tentarem explicar estes fundamentos,
fazem metafísica, a mesma contra a qual se insurgem em nome da
racionalidade. Para tais homens, vale a pena relatar, aqui, a parábola
da Abelha e da Formiga; ei-la:
Certa feita uma formiga, depois de muito cansada de andar
sobre a superfície duma bola, dependurada por um fio, parou, e refletiu
consigo: - "Tudo é superfície infinita, sem princípio nem fim para todos
os lados. A esfera total que procuro, absolutamente, não existe!"
Proposta a questão a uma abelha que acabara de pousar na
superfície, ela respondeu: - "Sim, a esfera existe; eu a vi quando voava
para cá". A formiga, incrédula, sorrindo, concluiu consigo: - "Eis aí um
mito...; o mito da esfera sonhado pela abelha!".
Tal, o homem de ciência, ocupado com suas insignificâncias que
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II - O SISTEMA
Desde que ocorre o "sismo" numa pessoa, desde que chegou a
sua hora da verdade, a sua aléthea, ela entra em desequilíbrio
intelectual e emocional, visto como o "tremor de terra" abala o
universo pessoal em seus fundamentos. A crença que o indivíduo é,
("porque o homem é a sua crença" - Ortega) - crença que se não
confunde com religião discutível; a crença que o homem é, não posta
como objeto de discussão, uma vez abalada, obriga o homem a pôr-se
em solidão, a criar pensamentos novos, a construir nova crença em
que ele esteja em descanso. Esta crença é o novo universo pessoal, o
sistema em que o indivíduo repousa.
No entanto, a pregação do sistema novo cria adeptos, faz pro-
sélitos, organiza escola. Ainda que o pensador tenha para si não haver
dito a última palavra, porque a história demonstra que os sistemas se
sucedem no tempo, os adeptos, os discípulos se fazem ardorosos
defensores do sistema, e alguns, até fanáticos. De um lado, então,
temos o estabelecido, o sistema velho que resiste ser desalojado pelo
novo, e, de outro, o novo que fere o combate decisivo.
Moisés escrevera que viria outro profeta como ele, e que quando
isso ocorresse, que tal profeta novo fosse ouvido. Não adiantou nada
esta recomendação, porque, quando veio Cristo, contra este se
levantaram os escribas e os fariseus, exatamente os que deviam dar
cumprimento aos ditames de Moisés. O sistema mosaico resistiu pelo
seu misoneísmo à Boa Nova trazida aos homens. O cristianismo
mostrou-se um anti-sistema, relativamente ao sistema de Moisés. A idéia
do Deus-Jeová ciumento e vingativo, tinha que ceder o lugar ao Deus-
Pai amoroso e solícito. O misoneísmo, a resistência ao novo, porém,
matou Jesus, aos Apóstolos todos, exceto João Evangelista.
O cristianismo alastrou-se pelo mundo, graças ao trabalho
de S. Paulo, o Apóstolo, segundo Gusdorf, "o inventor da teologia".
Primeiro na Judéia, depois na Grécia, depois em Roma, a nova idéia foi
aceita por poucos e barrada por muitos, e os mártires se
sucederam, pois a Boa Nova de Cristo crucificado era escândalo
para os judeus e loucura para os gregos, conforme o disse o mesmo
Paulo.
Caída a civilização greco-romana, o cristianismo mostrou-se
como crisálida da civilização sucessora, a ocidental, em que ainda
estamos. Os deuses gregos foram amalgamados pelos santos da
cristandade, o Evangelho passou a ser objeto de discussão de teólogos,
organizou-se a Igreja, e esta começou a combater com ferro e fogo,
toda sorte de interpretação que não fosse a sua, a dos teólogos
organizados que agiam em nome do Absoluto, de Deus.
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divina. A história, que é racional (Hegel), movida por uma como mão
de Deus, coloca no poder o melhor, e o mais apto. Assim, a história
ou a vida (?) elevou ao poder Hitler, e este, como vinha da parte de
Deus (!), se fez absoluto num Estado absoluto. Fanatizado o povo
alemão com esta nova crença, e ainda, com a da "super-raça"
ariana, com base em Gobineau e demais racistas, a Alemanha
afrontou o mundo com a Segunda Guerra. De Nietzsche os ideólogos
alemães tiraram a moral da força: "a justiça é o desassombro do
forte;... ser justo é ser forte". De Hegel tiraram o Estado absoluto; e o
mundo viu o quanto lhe custou em sangue, dores e lágrimas, tal
absolutismo.
Os sistemas, os absolutismos, como se vê, foram as causas
de todos os males do mundo, e de todos os crimes praticados contra a
humanidade. Sempre, por toda parte, uma nação, um Estado, uma
religião, um povo, uma filosofia, uma raça se fizeram absolutos. Face a
isto, basta darmos largas ao pensamento, focalizando o transcurso do
homem no espaço e no tempo, para constatarmos ser o genocídio uma
constante da história. Povos inteiros constituídos de civis, velhos,
mulheres e crianças, foram passados pelas armas, ou escravizados,
ou expatriados, sempre quando aconteceu serem dominados,
militarmente, por um outro povo mais forte que se fez absoluto.
Lá no Egito, o povo hebreu que ia bem sob a dominação dos
hiczos, caiu em desgraça, quando estes hiczos foram expulsos pelos
egípcios; e como se não bastasse a escravidão de que foram vítimas,
os israelitas ouviram, atônitos, perplexos, a leitura do decreto que
mandava serem mortos todos os machos nascidos do povo
escravizado.
É popularmente famosa a matança dos inocentes, por Herodes,
na esperança de que Jesus estivesse no meio deles; também o é o
expatriamento e escravidão dos judeus em Babilônia, até que Ciro, o
persa, os libertou, e, mais tarde, sua dispersão pelo mundo, após a
queda de Jerusalém, no ano 70 d. C., por Tito Vespasiano.
Dos que adoravam o bezerro-de-ouro fabricado por Arão, com
as arrecadas trazidas dos egípcios, nenhum houve que ficasse em
pé; e em seu furor de intolerância, até as Tábuas da Lei o absolutista
Moisés quebrou, quando viu seu povo retornando à idolatria egípcia.
Ganhou notoriedade a tentativa romana, selvagem, medonha, de
sufocar e fazer extinguir o cristianismo nascente, nas arenas.
Todavia, tanto que venceu o cristianismo e se fez absoluto, eis surge
no seu seio o malsinado Tribunal do Santo Ofício ou Santa
Inquisição, criado com o fim de acabar, por meio de horrendas
torturas e fogueiras, com os hereges, isto é, com aqueles que
distoavam do pensamento oficial da Igreja absoluta. O morticínio de
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III - O ARQUI-SISTEMA
íntimo, ser correto o que intenta fazer. Como o mundo é feito de coisas
que são unidades formadas do dualismo essência e substância, a
física e a metafisica já vêm ligadas desde a origem; já vem realizada a
coincidentia oppositorum desde sempre, a qual, depois, o homem
separou. Aqui, também, "não separe o homem o que Deus ajuntou", ou
melhor: o que Deus criou unidos. O ter separado o casal conteúdo e
forma, essência e substância constituiu o crime de lesa-natureza
pelo qual o homem paga hoje.
A chave, portanto, que os teólogos procuram em Deus, e André
Breton, no espírito, perdeu-se no ano 520-530 a. C., pelos dois homens
que, como parêntesis da filosofia nascente (Ortega) viveram nos dois
extremos opostos do mundo grego, Eléa e Éfeso.
Conta-se que, certa feita, na China, um discípulo perguntou a seu
mestre qual a diferença entre o sábio e o ignorante. Nenhuma,
respondeu o mestre; e acrescentou: a diferença que existe, não é entre
o sábio e o ignorante, e sim, entre um e outro e o homem comum. O
ignorante olha para uma montanha, e a enxerga montanha; para uma
árvore, e a sabe árvore; para um lago, e o tem por lago. Já o homem
comum que cursa escolas e se diploma nas universidades, diz que a
montanha não é montanha, que a árvore não é árvore, e que o lago
não é lago. Tudo o que era antes puro e simples, passa a ser intrincado
e complexo depois. Porém, sábio é todo aquele que, prosseguindo a
meditar, juntou o disjuntado, percebeu a hierarquia do universo
acima e abaixo de si, enxergou a perspectiva das coisas a partir de
sua situação, e sabe havê-las infinitas, organizou a unidade do
mundo para si. Esse olha para a montanha, e a enxerga montanha;
para uma árvore, e a sabe árvore; para um lago, e o tem por lago. De
maneira, conclui o mestre, que a diferença não está entre o sábio e o
ignorante, mas entre ambos e o homem comum que, não sendo mais
ignorante, não chegou ainda a ser sábio.
Aquela junção do primitivo e da criança entre o eu, o corpo e o
mundo, que o racionalismo disjuntou, cumpre ao sábio juntar de novo,
com que a sabedoria fica sendo um como animismo superior, tal como
o sentem o poeta, o místico e o sábio. Daí que o poeta faz também
falarem as coisas, e São Francisco de Assis chamava ao lobo de
irmão lobo, à serpente, de irmã cobra, e ao próprio corpo de irmão
corpo. Quem chama ao próprio corpo de irmão corpo, por certo, não
admite antagonismo, inimizade e luta entre o espírito e a matéria, entre
o eu e o mundo, nele já se tendo realizado a coincidentia
oppositorum.
Envergonha-se, Plotino, de estar enfrascado num corpo o qual
nunca deixou fosse pintado, porque, como afirmava, isso seria fazer
perpetuar-se uma sombra, uma irrealidade. Anaxarco, caído em
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desgraça, por ofender a um tirano, teve como pena ser triturado até a
morte. Em meio ao seu martírio, bradava: "não é a pessoa de
Anaxarco, e sim, só o corpo de Anaxarco que trituras!" Para fazê-lo
calar-se, manda o tirano que lhe cortem a língua. Ele, porém,
decepando-a com os dentes, atirou-a à cara do algoz. O estóico
Epicteto, escravo de um senhor desumano, bradava, ao tempo em que o
amo lhe torcia o braço: "Se apertares mais, quebras-me o braço!"
Até que o braço se partiu, e ele concluiu, vitorioso: "Eu não disse
que se quebraria?" Brava e linda prova da inviolabilidade da pessoa,
da filosofia! Não pode nada o bruto contra o espírito liberto! Explêndida
imagem da inviolabilidade filosófica.
No entanto, não se pensava então, que, sem o corpo, não se tem
acesso ao mundo. Porém, para que mundo?, se a este também se
desprezava, como irrealidade, como sombra, como não-ser?, visto
como o real era apenas o inteligível, e não, o sensível? A
agressividade contra o mundo, por causa de existir nele o sofrimento, a
injustiça, estendeu-se ao próprio corpo que também é mundo, daqui se
projetando contra Deus, autor de tudo, e, por isto, responsável pelo
mundo e pelo homem. Schopenhauer, então, anseia pelo
aniquilamento, como sumo bem, e Buda não lhe fica atrás com seu
Nirvana. Nietzsche e Sartre assentam que não há Deus; e, se houvesse,
Deus seria o próprio homem. Nietzsche sonha, então, com o super-
homem que retorna ao bruto, ao instituir sua moral negativa da força
e da astúcia, ou ambas num tempo. Sartre, contudo, "mais generoso",
reconhece e concede o mesmo direito de ser deus, a qualquer outro
homem ou próximo. Só que, porque não pode fazer-se super-homem
para obrigar os outros homens a se ajoelharem à sua frente, tem gana
de matá-los a todos. No entanto, caindo em si, conclui que, matar os
outros, não os impede de que tenham existido, e, a não poder matar
também a essa memória odiosa, repulsiva, então, idealmente, fere o
golpe contra o próprio peito, e morre. A não poder ser deus sozinho,
prefere a morte, o nada, o não-ser. Este é o destino - a morte - de
querer ser deus, seja para Sartre, seja para Nietzsche, seja para
Satanás. Nestes casos, a morte resultou dum erro de perspectiva, de
não saber situar-se entre as coisas, na hierarquia do universo.
Gusdorf; citando Barth, afirma que "só Deus pode falar de
Deus". Ora bem: "Se só Deus pode falar de Deus", cabe perguntar:
falar a quem e por quem? Deus não pode falar aos homens de um
modo direto, e, sim, só indiretamente, através de suas obras, como o
entendia o salmista: "Os céus proclamam a glória de Deus, e o
firmamento anuncia as obras de suas mãos" (Ps. 19, 1). Daí que
também Pascal, para onde quer que olhasse, encontrava Deus. Sua
intuição, de estalo, remontava a todo o instante, da coisa vista, à
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para as matemáticas.
Fora esta, há outra razão: o que é suprarracional, nem por isto é
absurdo, porque o absurdo está nos domínios em que pontifica a razão;
absurdo é o ilógico, o contrário à razão, ao bom senso, no passo que o
suprarracional simplesmente é tudo o que, tendo visos de verdade
(intuição), se acha fora da jurisdição da racionalidade. Hajam vista o
amor, a vontade, os sentimentos todos, a intuição, a vida, que, embora
irredutíveis a princípios de razão, embora ininteligíveis, não são
absurdos. Onde não alcança a razão, alcança a fé que não passa de
um sentir ininteligível da verdade, de um dado imediato e primário da
consciência.
Não há pensamento sem o pré-refletido das imagens carreadas ao
espírito pelos sentidos... sentidos que sentem o sensível. O sentir
está antes e depois do pensar, quer dizer: está no pré-refletido das
imagens, e na intuição suprarracional, pejada, toda quanta, de
jubilosa emoção, de êxtase supremo. "Alegria, alegria, lágrimas de
alegria!", tal foi a nota encontrada, cosida às vestes de Pascal, quan-
do lhe foram trocar o cadáver. Ora, as experiências do místico, e tal
místico, não são absurdas, embora possam ser tidas por "irracio-
nais". É de Pascal a frase de que "o coração tem razões que a razão
não alcança".
Recapitulando: cada sistema isolado se nos afigura como uma
pirâmide de base hexagonal, como os alvéolos dos favos das abelhas; a
altura da pirâmide é aquela que permita juntá-las todas pelos seus
vértices no centro duma pinha ou esfera. Portanto, a altura da pirâmide
é igual ao raio da esfera. Vista por fora, tal pinha assemelhar-se-á a
uma bola de futebol, dessas cujo envoltório de couro é formado por
hexágonos e pentágonos cosidos entre si pelos bordos. Doze
pentágonos e vinte hexágonos, por nós contados, enchem a superfície de
uma bola normal de futebol. Essa pinha é a síntese total formada por
todos os sistemas-pirâmides particulares que se integram na unidade
representada pelo ponto que une todos os vértices. Nesta figura
imaginária, ideal apenas, todos os vértices das pirâmides se reúnem
num ponto comum, no centro da pinha. Esse ponto é o Absoluto
supremo, o Deus-Uno, como Essência pura, portanto, sem realidade
existencial, sem objetividade, por consistir em pura idealidade, subjetiva.
Não sendo Deus, porém, pura idéia, forma pura, sem conteúdo, temos
que ele, como Substância, enche consigo o espaço infinito, dentro e fora
do universo físico, este que é finito e curvo.
Aquela pinha que intuímos é ilimitada, e toda quanta constitui o
Deus-Essência-Lei. Como ilimitada, nossa razão não pode abarcá-Ia;
então é que recortamos, dentro da infinita, uma pinha menor, agora
abarcável pela inteligência. Ambas pinhas, a infinita e a limitada,
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IV - O TERNÁRIO
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A intuição que já o primitivo tivera de Deus como instância
suprema reguladora de seus atos, foi havida como invenção do próprio
homem, pelo que foi este quem criou Deus, e não, vice-versa. E
todos os deicidas, ou anunciadores de que Deus morreu (Nietzsche,
Sartre), não atinaram que a obra sai ao autor. Se o homem foi o que
criou Deus, este seria como é o homem egoísta, astucioso, embusteiro,
falso, hipócrita, perverso e mau, que fez da própria inteligência a
arma suprema para vencer e esmagar. Deus sairia, então, como é o
homem - um "porcus bipedus"! Em vez, porém, de o homem projetar-se
em Deus, ou criar Deus segundo sua própria imagem de "porcus
bipedus", ao invés disto, negou-se primeiro a si mesmo, e essa
68
abelha, que a esfera existe, pois a enxergara antes de pousar ali. Como
as experiências são intransferíveis, não houve meio de a abelha
explicar para a formiga o que vem a ser a esfera cuja superfície ela
esteve o tempo todo a esquadrinhar. Contra Augusto Comte que diz
ser tudo relativo, iremos demonstrar como também tudo pode ser
absoluto.
Os termos do triângulo Homem-Mundo-Deus, como temos visto,
são irredutíveis entre si, e se foram aperfeiçoando através dos tempos,
ora a ênfase recaindo sobre um mais que sobre os outros. Contudo, o
equilíbrio subsiste, se for mantido o triângulo perfeito, equilátero, ou
delta luminoso..., luminoso pela sabedoria que encerra em manter
sempre a igualdade dos lados, não tolerando deformação, isto é,
que um dos lados suplante os demais; sabedoria que consiste na
compreensão de que o homem não é o mundo, por ser o sujeito
cognoscente, a pessoa; de que o mundo não é o homem, por ser o
objeto cognoscível; que o homem não é Deus, porque não é
autônomo, nem pode bastar-se a si mesmo, nem pode ser instância
suprema de apelação para si. Para regular sua vida individual e
coletiva, precisa reportar-se a uma instância superior não humana.
Finalmente, que o mundo ou a natureza não é Deus, porque é relativo,
e ainda, por cima, invertido ou no avesso. Por este motivo, se
considerarmos o mundo como instância superior de apelação, nossa
moralidade, com base na natureza invertida, amoral, egoísta e má,
terá que ser como a de Nietzsche, de Trasímaco e de Maquiavel que
sentenciam: "Ser justo e bom é ser forte"; "a bondade cristã é
fraqueza; ela é invenção dos fracos para manietar os fortes"; "a
justiça e a bondade são o desassombro do forte"; "melhor é ser temido
que amado". Eis, pois, que, como se pode observar, embora na vida, no
mundo, haja coisas boas e belas, ao lado destas há a feiura extrema,
o sofrimento e a maldade sem nome. Fora isto, o Deus de que a
natureza participa sob a forma de imanência ou panenteísmo, não é
todo o Deus, visto como ficou de fora o Absoluto que é Deus no seu
aspecto de transcendência.
76
pode em nenhum caso ser definida sem referi-Ia ao varão, tem este o
privilégio de que a maior e a melhor porção de si mesmo é
independente por completo de que a mulher exista ou não. Ciência,
técnica, guerra, política, esporte, etc., são coisas em que o homem
se ocupa com o centro vital de sua pessoa, sem que a mulher tenha
intervenção substantiva. Este privilégio do masculino, que lhe permite
em ampla medida bastar-se a si mesmo, talvez pareça irritante. É
possível que o seja. Eu não o aplaudo nem o vitupero, mas tampouco o
invento".
É certo que Ortega não o inventa, mas tampouco o explica; e,
fazer isto, explicar, é exercer a sua função como pensador. O próprio
Ortega, falando da presença das duas metades de uma maçã que nos
pode ser apresentada, diz que só enxergamos, da maçã, a parte voltada
para nós; a outra metade, a oculta, conquanto não nos esteja
presente à vista, está-nos compresente, visto como a imaginação
completa a parte faltante, apresentando-nos a maçã como um todo. Em
nosso mundo das imagens, a maçã se nos mostra inteira, e não, apenas,
como meia maçã, porque, aí, no psíquico, se fundem, na unidade, o
presente visto com o compresente imaginado. De igual modo,
podemos estar muito tranqüilo a ler em nosso gabinete, abstraído do
resto do mundo; suposto que, nesse momento, poderosa máquina ice
nossa casa, e a leve para os ares, de modo que, em chegando nós à
porta, damos com o espaço vazio. Acaso poderíamos continuar com
nossa leitura? Daí que o gabinete que nos é presente, se vincula, em
nosso subjetivo, com o resto da casa e arredores, e estes, com a rua,
com a cidade, isso tudo como compresentes. Face a isto, do próprio
Ortega, para onde vai o privilégio do varão que consiste em "que a maior
e a melhor porção de si mesmo é independente por completo de que a
mulher exista ou não"?... se ela é sempre compresente ao homem, em
todas as atividades deste? Suponhamos que Deus, sabendo que agora
o homem não mais está só, como no Éden, pois se satisfaz com sua
ciência, sua técnica, sua guerra, sua política, seu esporte, etc.; se
Deus concluísse, então, que tais "coisas em que o homem se ocupa
como centro vital de sua pessoa, sem que a mulher tenha intervenção
substantiva", são bastantes a dar-lhe cabal contentamento,
resolvesse, por um passe de mágica, suprimir todas as mulheres do
mundo, que faria o homem com sua "ciência, técnica, guerra,
política, esporte, etc."?
Se é que "o forte da mulher não é saber, mas sentir"; se é que
"o centro da alma feminina, por bastante inteligente que seja a
mulher, está ocupado por um poder irracional"; se, "a idéia (...) de que o
homem valioso tem de enamorar-se de uma mulher valiosa, em sentido
racional, é pura geometria"; se, "tudo que é humano, é sexuado", donde
78
de ciência.
Todo mundo sabe tudo e não sabe nada; sabe tudo em grosso,
intuitivamente, como um absoluto; tanto que apura a vista sobre o que
julga saber, já não sabe nada, que tudo, então, se perde num
relativismo ilimitado. Sócrates dizia nada saber, e, de fato, não o
sabia mesmo, exaustivamente, em visão de análise; mas sabia tudo
em grosso modo, em visão de síntese; ou então, também era outro
mentiroso, como o cético, e como o agnóstico; porque, se nada
sabia, como alardeava, então, como coordenava o seu questionário,
habilidosamente, de modo a fazer que e interlocutor chegasse onde
ele queria que chegasse? Um homem que nada sabe, tem que ser
um mudo; falou, para si ao menos, sabe o que diz, e, se, em
falando, disser que nada sabe, já disse uma coisa notável: disse ter
consciência da sua própria ignorância, porque, quem não sabe
nada de fato, nem que não sabe não sabe. E em dizendo ter consciência
da extensão infinda do quanto ignora, já mentiu de novo, porque
nenhum homem pode ter consciência da vastidão de tudo o quanto
ignora. Daí que, chegar a ter consciência da própria ignorância, é ser
sábio, e o sábio, em tal grau, ainda está por nascer no mundo. A
consciência da própria ignorância só a pode ter aquele que, tendo
esgotado todos os recursos da razão, das ciências todas, ainda que
em grosso, vislumbrou seu Horizonte inacesso, Deus, um Horizonte que
sempre se alarga, afastando-se para mais longe, cada vez mais
longe a cada nova retomada, nova determinação, nova promoção.
Esse Horizonte é Deus, como extremo Absoluto. Não horizonte espacial,
somente, mas, Horizonte sob todas as acepções. Quem chegou a
tanto, pode dizer, exausto de infinda caminhada, e com a
simplicidade e humildade de um sábio, que sabe que não sabe.
Esta é a visão de síntese, ou indutiva, que leva ao Absoluto, e
por tal caminho, o homem intui Deus. Nesta visão, tudo é relativo no
sentido de que, exceto a última, todas as demais unidades se
relacionam em cadeia hierárquica ascendente, até o Horizonte.
Na visão oposta, ou de análise, ou dedutiva, tudo se nos mostra
como todos decomponíveis em todos menores. Agora, então, tudo é
absoluto, visto como, cada unidade é vista como um todo isolado; não
a vemos, agora, em relação àquilo que, com sua contrária, havia de
formar, que é um todo maior. Nesta visão de análise, cada unidade
posta a exame, já se nos mostra como um todo unitário, independente
de qualquer referência a um todo superior. Um físico nuclear, ao estudar
determinado átomo, considera-o como unidade não relacionada.
Diverso do químico que procura combiná-lo com outros átomos
diferentes, para obter uma molécula composta, e, depois, uma outra
complexa da cadeia do carbono; o físico nuclear não enxerga o mesmo
83
espírito universal do milho ou deus do ano, cujo ritual e cujo mito, com
o mesmo grupo de personagens representando o mesmo drama sob
nomes diversos, se encontra tão difundido como a própria prática da
agricultura".
Também o milho será um absoluto para o biólogo especializado
em genética que, de há muitos anos, o estuda no laboratório com o fim
de obter uma espécie dadivosa e rica em proteínas, qual a
"triticale"..., espécie intermediária entre o trigo e o centeio, obtida
graças às modificações produzidas nos cromossomos de ambos. Para
tal pesquisador não interessam as muitas cadeias de relações em
que o milho aparece encaixado; seu milho também é um absoluto,
visto que o vê dele abaixo.
Esta é a razão por que o absoluto do homem das cavernas tinha
que ser o urso, pois foi no dorso deste grande animal pacato, herbívoro
como se sabe hoje, que cavalgou toda a cultura da Idade da Pedra. O
urso era a referência, ou tudo era em referência ao urso; por isto, o
homem fê-lo deus, vendo nele aquela generosidade que o próprio
homem primitivo não possuía. Depois do urso, foi o milho, com sua
vida, e morte, e ressurreição anual. Depois foi o fogo cujo calor e luz
aquece e ilumina, fogo do céu no raio, fogo da terra no vulcão, fogo
da vida nas entranhas animais, fogo renovador da inteira natureza -
igne natura renovatur integra. Por último foi o Sol, o gerador do fogo, o
deus da claridade, antropomorfizado nos mitos solares, como o de
Sansão cuja força residia na fulva cabeleira, como o de Hércules
transformado em chamas no cimo do Eta na Tessália.
A última instância de que o homem, absolutamente, depende,
foi sendo o seu Absoluto, o seu último Horizonte, o seu Deus. Por isto,
não é muito que o Homo technicus moderno tenha hoje feito da
ciência uma deusa nascida, qual Minerva armada, da cabeça de seu
pai absoluto que são os primeiros princípios e os postulados, por sua
natureza indemonstráveis. A deusa promete tudo ao homem:
comodidade, conforto, poder e abundância de riquezas, não, porém, a
felicidade, porque esta não é exterior. Também ela diz ao homem,
como o Demo a Cristo: dar-te-ei tudo, se prostrado me adorares.
Contudo, deve responder-lhe o homem, como Cristo o fez: Vade retro,
Satana!... que nem só de comodidade e pão vive o homem, mas de tudo
o que, com sensibilizá-lo, o arrasta para Deus! Eis, pois: com Deus, a
ciência é sabedoria, e, sem Deus, é luciférica loucura, é o riso de
Satanás...; por isto, com ela e sem Deus, o homem, irremediavelmente,
está fadado a perecer. Porque como agudamente observou Ortega, "a
técnica é consubstancialmente ciência, e a ciência não existe se não
interessa em sua pureza e por ela mesma, e não pode interessar se as
pessoas não continuam entusiasmadas com os princípios gerais da
86
VI - HOMEM-MUNDO-DEUS
conduta; sem tal visão não há conduta que conduza, que encaminhe,
que faça andar, progredir, que civilize. O homem é mais filósofo do
que se imagina; "o homem é um animal metafísico"
(Schopenhauer). Ou, então: "A inteligência humana é filósofa por
natureza" (Huberto Rohden – Filosofia Universal).
Os homens seletos, inteligentes, estudiosos, pensadores, que
sempre todos os povos tiveram, puseram em Deus o melhor de si, e,
desse Deus, essa mesma luz refletiu-se, agora autorizada, sobre o
coletivo, sob a forma de preceitos morais, ou, de outro modo: tais
homens tiveram a intuição de Deus, e a de como esse Deus tinha de
ser. O homem seleto lucubra sobre o mundo, sobre si; forma sua
síntese, e conclui que há um Deus, o qual se mostra, desde logo, não a
imagem e semelhança do homem, mas, a sua negação, a negação
de si animal, de si egoísta, de si "porcus bipedus". Então, a fala
humana se despersonifica de homem, se desumaniza, para
resplandecer com luz divina, que é como agora se reflete
peremptória, inconcussa, com força para impôr-se nas consciências,
nas vidas, nos costumes, nas instituições.
O Deus de Moisés era tribal; e como os demais deuses tribais,
tinha seu povo eleito. Este povo eleito entrava em guerra com outras
tribos, e era, então, que Jeová vestia suas armaduras de ouro
resplendentes, armava-se do seu trem, do carro seu, da sua
espada, e ia pôr-se à frente das colunas dos valentes, como Senhor
dos Exércitos. Se perdia uma batalha, a culpa era do povo por
causa de alguém que ofendeu o Senhor. Foi o que sucedeu quando foi
perdida a batalha contra a cidade de Ai. Acã escondera alguns
despojos da cidade de Jericó. Por tal crime foi ele apedrejado e
queimado juntamente com os tais despojos, filhos, filhas, bois,
jumentos, ovelhas, e a tudo o quanto tinha, até a tenda. Acã, e
família, e pertences, foram o bode expiatório, e pagaram por um
erro tático de Josué que subestimou o poder de guerra de Ai. Os
homens que enviara a espionar a cidade disseram: "Não suba todo o
povo, mas vão só dois ou três mil homens, e destruam a cidade: por que
se há de fatigar debalde todo o povo contra tão poucos inimigos?"
(Jos. 7, 3).
Quando ia Josué entrar na terra da Promissão, fez-lhe frente Siom,
rei de Hesebom. Então, escreve Moisés: "E naquele tempo tomamos
todas as suas cidades, e as destruímos, e matamos todos, homens,
mulheres e crianças; não deixamos ninguém". (Deut, 2, 34). O
mesmo que a Siom, rei dos amorreus que habitavam Hesebom,
aconteceu a Ogre, rei de Basã. Toda a terra de Argobe com suas
sessenta cidades pertencentes ao reino de Ogre, com capital em Basã,
foram tomadas: "E os destruímos, como tínhamos feito a Siom, rei de
96
VII – ALERTISMO
havendo nada que temer, pois uma como mão divina guia a história,
não precisando o homem de preocupar-se. Existe uma Razão atrás da
história... pelo que ela é racional (Hegel); daí que a história é
determinística, havendo, logo, o determinismo histórico (Marx, Engels).
Contudo, outra é a verdade...
Quando Toynbee era ainda jovem, ele, considerado um dos
maiores historiadores contemporâneos,... porém, fale ele próprio: "Mas
quando procurei no seu livro (de Spengler) uma resposta para a
minha pergunta sobre a gênese das civilizações, comprovei que ainda
me restava trabalho por fazer porque, nesse particular, Spengler me
parecia dogmático e determinista ao ponto de se tornar obscuro.
Segundo ele, as civilizações surgiram, se desenvolveram, declinaram
e, finalmente, soçobraram em absoluta conformidade com um ciclo
invariável sem que, para isso, houvesse explicação alguma. Era,
precisamente, uma lei da natureza que Spengler havia descoberto e
que devemos aceitar, confiando na palavra do mestre: ipse dixit". E
mais adiante: "Essa visão cíclica da marcha da história se arraigou de
tal maneira nos espíritos e nas inteligências dos gregos e dos hindus
inclusive Aristóteles e Buda - que chegaram a admiti-la como
verdadeira sem pensar que era necessário prová-lo". E, noutro lugar:
"Spengler, cujo método consiste em estabelecer uma metáfora e
em prosseguir argumentando como se a referida metáfora fosse uma
lei baseada, por sua vez, em fenômenos observados, afirma que
todas as civilizações passam pelas mesmas idades sucessivas pelas
quais passa um ser humano; mas a eloqüência com que disserta
sobre o referido tema de modo algum contribui para prová-lo, e já
frisamos que as sociedades se não podem comparar, sob qualquer
aspecto que seja, a organismos vivos. Subjetivamente, as sociedades
são campos inteligíveis de estudo histórico. Objetivamente, são o
terreno comum entre os respectivos campos de atividade de um
determinado número de seres humanos individuais, que são eles
mesmos organismos vivos, mas que não podem fazer surgir
magiamente, da interseção das suas próprias sombras, um gigante
à sua imagem e semelhança, nem insuflar, a seguir, nesse corpo
sem substância, o sopro da sua própria vida".
Ora, se o ser social não é como um organismo biológico, sujeito
às leis biológicas do nascer, desenvolver-se, maturar, declinar e morrer,
então, a gênese, desenvolvimento e colapso das civilizações não podem
ser buscados na biologia. Contudo, esse "Grande Animal" de Alain,
esse Briareu do social, de muitas cabeças, não anda às tontas,
porque segue uma só cabeça em que se reúne a minoria criadora.
Essa minoria pensa com seus cérebros objetivos, concretos, cérebros
que evoluíram de baixo, com a evolução do sistema nervoso. E ainda os
112
provérbio muito antigo, que "os moinhos dos deuses moem devagar". Os
moinhos dos deuses são o destino histórico". Ocorre então que cada
surto de progresso se cristaliza nas instituições, usos e costumes, os
quais reagem (misoneísmo) contra quaisquer inovações. Os inovadores,
por isto, são desprezados, proscritos e mortos” ( Ortega e Gasset – O
homem e a gente). A esse respeito, diz Herbert Wendt, em “À procura de
Adão”: "Empédocles, o Fausto grego, que fundou a doutrina dos
elementos, constitutivos do mundo e esboçou uma teoria quase
darwiniana das origens, morreu exilado político no Peloponeso.
Anaxágoras, o primeiro pensador que concebeu uma origem do mundo
em nebulosas remuinhantes, foi levado ao tribunal como herético e só
pode escapar da condenação à morte graças à influência do
estadista Péricles. Os sessenta escritos de Demócrito, em que estava
consignada a concepção universal da ciência exata da natureza,
incluindo tudo, desde a Fisiologia à doutrina atomística, e onde o pai
dos materialistas atenienses se revelou o antepassado de todos os
grandes físicos desde Galileu e Newton, Dalton e Faraday, até Bohr e
Einstein, foram destruídos na fogueira da censura (dizem que Platão
causou pessoalmente esse primeiro ato-de-fé da História Cultural)".
"Os moinhos dos deuses moem devagar"... e acabam por moer os
próprios deuses que, para não serem moídos, se recusam a reencarnar-
se... onde os mortos matam os vivos... mortos, no sentido de Cristo
que mandava deixar aos mortos o encargo de enterrar os seus mortos, e
mortos no sentido de, quando vivos, na reencarnação pregressa, terem
sido os criadores das instituições que agora resistem (misoneísmo),
e, para salvaguardar-se, matam os inovadores. Os mortos neste duplo
sentido de mortos ambulantes e de mortos ilustres, os primeiros do
presente, e os segundos do passado, crucificaram Cristo e
assassinaram Sócrates. E quando já não há mais deuses para cuidar
do moinho, porque todos foram moídos, então ele pára... e é o fim
da civilização.
Os deuses e os homúnculos movem a história; os primeiros fazem-
na andar, e os segundos, a desandar. Certamente que não
exageramos ao classificar de homúnculos os césares romanos quase
todos, que se cuidavam "divinos", e, no entanto, eram doidos,
sanguinários, hipócritas, devassos (Calígula, Nero, Cômodo,
Heliogábalo, etc.), homúnculos apenas e não deuses. "Calígula - diz
Sêneca - (que a natureza degenerou, penso eu, para mostrar quanto
pode o máximo dos vícios no máximo da prosperidade) gastou em um
dia só para um almoço dez milhões de sestércios; e, embora
ajudado pela fantasia de seus cortesãos, pôde a custo encontrar a
maneira de converter o tributo de três províncias em um almoço" . A
ocupação do poder por tais arrematados monstros, impedia a
121
era, ele respondeu com o que fazia: eu sou a voz que clama no
deserto! Porque o homem é o que faz.
E o sábio-santo teria esta alta consciência que o tornaria
constantemente preocupado com a plena felicidade de todos. Não
seria intransigente, mantendo-se aberto às inovações que os gênios
trouxeram para maior alegria de todos, pois estaria ciente de que
tudo muda, não se repetindo nunca as situações. Cada homem de
tal comunidade, ainda utópica, ficaria ocupado com a sua função que
ele próprio escolheu, por ser-lhe aprazível executar. Tudo seria, então,
um flanar criador. Como fecharia seu ciclo uma tal civilização?
E como não se fecharem os das civilizações transactas, se os
homens não levavam os cargos, senão que estes carregavam a eles?
Como não se fecharem, se ignorantes se apoderavam do poder; se
todos aspiravam relevantes posições de mando, sem se perguntarem
nunca se eram competentes; se todos queriam enriquecer-se, por
qualquer meio, sem meditar sobre o perigo da posse de riquezas; se
todos queriam tudo, contanto que não fosse o duro labor do cultivo
das virtudes e do saber? Spengler tem razão, ao supor ser necessário o
desenvolvimento cíclico da história, porque a experiência histórica o
comprova; todavia, errou ao situar a causa do ciclismo, que não é
porque a sociedade seja como um organismo biológico, e sim, porque
as massas são ignorantes, e, por isto, confundem o homem seleto,
autêntico, criativo e bom, com o demagogo que prega todas as
virtudes, mas não pode viver nenhuma. Daí que a minoria criadora se
troca pela minoria dominante; daí que os planejamentos se substituem
pela ação direta, pelas soluções de emergência, fazendo que a
civilização desande para o seu ocaso. Tem que ser assim, não pode ser
de outro jeito, enquanto o homem for ignorante.
A solução está na sabedoria, que só esta se associa à virtude na
sua forma mais excelsa que é o amor vivido, não o apenas retórico ou
literário. Agora se compreende por que dissemos com Huberto Rohden
ser Platão o filósofo do futuro. Platão afirmava ser necessário ao
iluminado, isto é, ao que viu a luz fora da caverna, retornar a ela para
ajudar a seus irmãos aturdidos pela visão das sombras irreais,
gritando-lhes: "eu vi brilhar a luz"! Platão, ao contrário de todos os
filósofos que sempre buscaram na filosofia o desprendimento da
vida, pregava a necessidade fraterna de o iluminado tornar à caverna
a fim de ajudar a seus irmãos; para ele a sabedoria não é vazia de
obras, mas, operosidade concreta com vistas a melhorar a sorte dos
homens. A sabedoria é um chamamento à ordem, e não, nunca,
evasão do mundo; ela é presença no presente, esteja o homem na
carne ou fora dela. A sabedoria tem que ser militante, e o pensador
tem de sentir-se impelido, não só a interpretar o mundo, mas a
132
bipedus"?
Acaso, foi isto que Cristo ensinou, e exemplificou, em toda sua
vida? A doutrina de Cristo, toda quanta, se funda no amor vivido, e a
quem tem a disposição do samaritano da parábola, não se vai
perguntar, como o não fez Cristo, qual é a sua fé! Por ventura,
quando Cristo fala do Juízo, em que os cabritos e as ovelhas se põem,
por suas obras, uns à direita, e outros à esquerda, ele diz alguma coisa
relativamente à fé, ao dar sua sentença irrecorrível? Não fé, mas
amor, porque este pode irmanar todos os homens de todas as religiões
da Terra, enquanto que as diferentes fés os separam em igrejinhas
irreconciliáveis e briguentas. Quem não é contra mim, já dizia Jesus,
é por mim; quer dizer: quem não é contra o Amor que Cristo
personificou, é por ele, não importando se é xintoísta, se tauísta, se
cristão, se muçulmano, porque, onde houver amor, Deus, aí, está
presente, visto como "Deus é o amor" (I João, 4, 8). Marta se ocupava
em honrar a pessoa de Cristo, correndo de um lado para outro, a
arrumar a casa. Maria, sentada aos pés do Mestre, aprendia sua
doutrina. E quando Marta pede a Jesus mandasse Maria ajudá-la,
teve a resposta de que a escolha de Maria foi a melhor; por que?
Porque Cristo se honra mais em ter seguidores de vida, que
cultuadores. E se a condição que impõe é a de seguí-lo no exemplo, já
se vê, Cristo não é substituto naquilo que a cada um cumpre fazer
para salvar-se.
Cristo, logo, não morreu pelos homens, em substituição, e sim, pelo
seu ideal, este, sim, é o que nos salva, cumprindo-nos a empresa
dificílima de vivê-lo na prática. Daí que Cristo não é substituto, porém,
modelo, exemplo vivo, padrão de vida efetiva, atuante, valendo muito
pouco as retóricas, as literaturas, as zumbaias, os hinos entoados por
corais. A salvação não está nos empolgamentos vazios de obras, no
zumbrir-se, no trinar formosos hinos, porém, na reforma radical de cada
um, no transpor o Rubicão do biológico, no negar-se de animal, no
desinverter-se de dragão.
Não só crer em Cristo, mas, sobretudo, crer a Cristo, crer ao
que ele diz, crer ao que ele manda, como bem o notou Vieira, para
que não sejamos, como diz o padre, cristãos de meias. Honras,
louvores, zumbaias sejam prestados a Cristo; cantem-se hinos e
aleluias em seu nome; em seu nome entoem todos os corais, que
tudo isto são reforços da motivação, valendo, por isto, mais para os
cultuadores que para o próprio cultuado. Não se olvide, no entanto, o
excelente, o fundamental, que é a vivência dos preceitos que tornam
possível transpor o Rubicão para sempre, porque nisto só, e em
mais nada, se cifra a salvação pessoal, o acabamento do homem, a
base indispensável da salvação social, da sobrevivência indefinida da
139
simplesmente maus".
Segunda - "Não tenho mais nenhuma esperança no futuro de
nosso país se a juventude de hoje tomar o poder amanhã, porque essa
juventude é insuportável, desenfreada, simplesmente horrível”.
Terceira - "Nosso mundo atingiu seu ponto crítico. Os filhos não
ouvem mais seus pais. O fim do mundo não pode estar muito longe".
Quarta - “Esta juventude está estragada até o fundo do
coração. Os jovens são malfeitores e preguiçosos. Eles jamais serão
como a juventude de antigamente. A juventude de hoje não será capaz de
manter nossa cultura".
Somente após ter lido as quatro citações, todas aprovadas pela
assistência, foi que o conferencista revelou a origem delas: A
primeira é de Sócrates, 470-399 antes de Jesus Cristo; a segunda,
de Hesíodo, 720 antes de J. C.; a terceira é de um sacerdote
egípcio que viveu no ano 2.000 antes de J. C.; a quarta, descoberta
só recentemente sobre um vaso de argila, nas ruínas da Babilônia,
tem mais de 4.000 anos de existência".
Que pretendia provar o médico inglês Ronald Bibson? Pois não
pode ser outra coisa que a tese do nosso prezado crítico, segundo a
qual a "mocidade foi sempre assim". E concordamos com o
enunciado, desde que lhe seja feita esta adição: nos períodos de
decadência. Pois claro! quando é que a mocidade pode adorar o
luxo, cultivar o ócio, tornar-se preguiçosa, atrevida, insuportável,
tirânica para com os pais, malfeitora, estragada até o fundo do
coração? Quando é que ela passa a caçoar das autoridades
constituídas, dos mais velhos e das coisas todas respeitáveis? Acaso
é quando tem de trabalhar duro, para ganhar o sustento? Ou é
quando foi possível chegar a um grau de riqueza que propiciou o
lazer? E não é exatamente neste ponto que se verifica o entardecer
da civilização?
Acaso, quando a Grécia nascia, em sua fase homérica, ou
quando ela, decadente, caiu sob o tacão macedônico de Alexandre,
ou sob o poder de Roma, os moços eram quais os das citações?
Acaso, os jovens egípcios continuaram vadios, insolentes, atrevidos,
irreverentes, insubmissos debaixo da férrea mão dos hiczos que
dominaram o Egito quinhentos anos da 15.ª à 17.ª dinastia? Os
jovens babilônicos estavam estragados até o fundo de seus corações,
eram malfeitores, viciados e preguiçosos, incapazes de conservar a
cultura de que eram herdeiros, mesmo debaixo do poder estrangeiro
de Ciro, ou Xerxes, ou Alexandre Magno? Diga-nos, alguém, que a
mocidade israelita que Moisés conduzia no deserto, quarenta anos,
era como a descrita nas citações! ou então, a mocidade da Hélade
da idade heróica! ou a da Babilônia do tempo de sua fundação, em
143
como prima ratio; a rigor, como única razão, é ela a norma que
propõe a anulação de toda norma, que suprime tudo que medeia entre
nosso propósito e sua imposição. É a Carta Magna da barbárie".
Porque, como se há de saber que uma coisa está errada, senão à
luz nova do certo? O padre Vieira já dizia: "Quem estima vidros,
cuidando que são diamantes, diamantes estima, e não vidros; quem
ama defeitos, cuidando que são perfeições, perfeições ama, e não
defeitos". Como fazer para um homem convencer-se de que seus
"diamantes" são vidros? Pois há de ser mostrando-lhe os diamantes
verdadeiros. Apresente-se, igualmente, a um homem, a verdadeira
perfeição, a verdadeira beleza, e ele se convencerá de que esteve o
tempo todo tomando defeitos e feiuras por perfeições e belezas.
Ora, por quais caminhos os artistas modernos se convenceram
de que as artes clássicas, barrocas, românticas são erros? Erros de
cuja rejeição virá a busca do certo? O que é o certo, então, e o que é o
errado, em arte? Mostrem os artistas modernos as suas artes
verdadeiras, e todos, boquiabertos, rejeitarão o errado.
Fomos, certa vez, ao Ibirapuera, visitar uma exposição de Arte
Moderna. Pusemos de lado, quanto possível, nosso preconceito, fazendo
tábua rasa do que sabíamos em matéria de arte. De início, pusemo-nos
a pensar que as várias artes são formas de comunicação, formas de
expressão dos pensamentos e das emoções, formas de
linguagens. Iríamos, portanto, procurar as mensagens dos artistas.
Nosso segundo pensamento foi o de que uma forma nova de arte, ou de
expressão, ou de estilo, nasce da necessidade de expressar idéias
novas. Armados destas duas verdades basilares, apodísticas,
intuitivas, axiomáticas, entramos a ver as coisas.
Onde, as idéias novas? Aqui, se nos deparou, numa tela, massa
informe de confusos traços, em que não se podia divisar feições,
nada agradável à vista, e após o impacto estético, fomos ver o título,
e era: "Mulher Frente ao Espelho". Noutro canto, havia umas como
árvores, retas, altas, todas de bronze fundido, e entre os troncos se viam
pernas magras, esguias, disformes, sobre as quais se divisava algo
parecido ao D. Quixote que a arte clássica consagrou. Por baixo, o
título: "D. Quixote na Floresta". Numa de muitas telas semelhantes,
cuidadosamente emolduradas, só se viam traços retos, paralelos,
cortados, perpendicularmente, por outros, nas cores branca, preta e
vermelha. E o título: Estudo em Preto, Branco e Vermelho”. Dentre
tanta coisa vista, uma apenas salvou-se em meio a tanta vacuidade de
forma e fundo: era uma peça, ou de metal, ou moldada em barro ou
gesso, recoberta com tinta metálica, em que uns anéis grossos e
irregulares se entrelaçavam nas três dimensões do espaço; o título:
"Representação do Espaço-Tempo". Como absolutamente não temos
148
concluir, qual a formiga, que tudo é superfície ilimitada, sem fim para
todos os lados, sendo improvável que apareça um inseto de asas, isto é,
"um metafísico de gênio", para operar a síntese.
A Europa já não tem minorias criadoras, capazes de ocupar-se
de pensamentos grandes, e a tal cultura européia em que o nosso
crítico deposita sua fé, não vai além de erudição livresca, sem vitalidade,
tendente a reduzir os europeus aos homúnculos de Wagner, já citados
neste escrito. "O europeu está só, sem mortos viventes perto de si; como
Pedro Schlehmil, perdeu sua sombra. É o que acontece sempre que
chega o meio-dia". Descoroçoado de que uma síntese das filosofias entre
si, e delas com a religião, pudesse vir da Europa dividida, decadente, o
recurso foi um indígena brasileiro pegar da pena e fazer o insigne
trabalho para si primeiro, mas que poderá servir a muitos outros, como
ele, também, necessitados.
Só uma coisa lamentamos em nosso crítico, conquanto lhe
respeitemos a opinião: é que ele, sendo espírita evangélico, quanto a
esta parte, tivesse posto de lado o Espiritismo... e mais o Evangelho, no
passo em que Cristo diz: "O vento assopra onde quer, e ouves a sua
voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo
aquele que é nascido do Espírito" (João, 3, 8). Que Espírito? Ora!
pois se trata do Espírito que se reencarna! A lição estava sendo
ministrada a Nicodemos!
O vento sopra onde quer, tal qual o Espírito que toma corpo
na matéria densa em nova vida corporal...; e quer soprar ou
reencarnar-se onde possa constituir-se, ao tempo em que ajuda a
elevação do meio. Deslocada, assim, a cultura para o Espírito que se
enriquece de muitas existências corporais, fica sem sentido
arrebanhá-lo com todos os que, numa nação, padecem de deficiências
culturais. Essa é a finalidade das reencarnações; ser homem novo,
continuamente renovado, liberto da erudição maciça, livresca, doutras
vidas das quais conserva apenas o sumo da verdade e da virtude.
Sem esta periódica destilação, o bagaço da cultura, a pura erudição,
apegar-se-ia ao Espírito, impedindo-lhe os vôos para o alto, a
conquista do que só cumpre saber, e é que na vivência efetiva,
atuante, da sabedoria-amor, consiste a salvação alcançada, não
duma feita, mas por aproximações. Daí que, de quando em quando, se
deixa o corpo de matéria densa, e, com ele, a bagagem embaraçante
das muitas noções que não servem para nada. A cultura, deste modo,
pouco a pouco, se destila, entesourando-se na sabedoria. A meta
distante, longínqua, não é ser filósofo, o eterno amante da sabedoria;
o fim supremo é possuir a amada, ter posse dela, ser humanamente
sábio, e não, ficar de longe, eternamente, a adorá-la, como
D. Quixote a Dulcinéia, como Platão a “Sofia", como Dante a Beatriz.
155
impede os avanços criativos, donde vem que o novo não pode impôr-se a
não ser com luta. Nosso crítico pensa deste modo arcaísta-futurista, e
por isso é que acha que os problemas do nosso tempo podem resolver-se
por meio da cultura que é passado. No entanto, o repto do momento
histórico exige a futurização criativa, a criatividade, que não, a
transposição do passado para o futuro. A história biológica demonstra
que o homem não se fixou na especialização, na repetição contínua do
passado, como o fizeram as demais espécies; continuou evoluindo,
ficando, no biológico, para sempre inacabado. A este seu inacabamento,
a esta sua falta de especialização, se deve toda a sua glória, e ele
próprio não suspeita até onde poderá chegar. O homem que diz
conhecer suas limitações, como o nosso crítico o fez, está parado, tal
como se acham as espécies biológicas inferiores. O homem
permaneceu criança, tão curioso como os filhotes dos mamíferos,
sobretudo a criança humana. Na idade adulta, o homem comum pára
de evoluir, tornando-se prosaico e vulgar, enquanto o gênio continua de
olhar deslumbrado, insaciável de saber, pela vida em fora.
Tomemos dois fatos históricos para objetivar esta teoria: Golias de
Gahat, vencedor de todas as batalhas que empreendera, morreu às
mãos de Davi, quando este empregou técnica nova de combate.
Vendo o jovem pastor sem armaduras, escudo, espada e lança avançar
ao seu encontro, Golias, em vez de alarmar-se, como o faria uma
mente criativa, ficou ofendido: - Acaso sou eu um cão, para vires contra
mim com um pau? Não enxergara, então, a funda danosa, nem a sacola
das pedras. Até esqueceu-se o gigante de baixar a viseira, e foi que
Davi, rodando a funda no ar, encaixou-lhe uma pedra na testa, pondo
o colosso por terra desmaiado. Depois foi só cortar-lhe a cabeça, para
o que se valeu da própria enorme espada de Golias.
Ciro, cavalgando largo tempo ao lado de seu pai, foi sendo por
este interrogado sobre o que aprendera da arte militar com os mestres
escolhidos que tivera. Ciro nada conhecia, e seu pai cuidou estivesse em
perigo o Império Persa, nas mãos de tal incompetente. Todavia, Ciro era
um gênio, e este, porque criativo, rompe sempre por inusitados
caminhos. Contra carros de guerra, Ciro mandava abrir fossos atrás do
exército; e quando os carros inimigos avançavam, a frente da coluna se
abria, deixando-os passar, fechando-se, depois, sobre eles; caídos nos
fossos, e mortos os guerreiros condutores pela infantaria, os carros
temíveis deixavam de existir. Era a vez, agora, da cavalaria, e Ciro
ordenava cortar os jarretes a todos os cavalos, pondo os cavaleiros a
pé. Atacava, Ciro, então, com seus carros de guerra, com sua
cavalaria e infantaria ligeira, armada de chuços, de broquéis e de
espadas, e era o fim deste inimigo. Porém, noutra batalha, outra
era a estratégia da qual os generais só tomavam ciência pouco antes
159
da peleja.
Tal, o quanto pode a inventividade; não, pois, só a cultura, que é
tradição e passado, mas, sobretudo, a criatividade que é futuro. E não
poderá criar o novo, quem tiver demasiado apego ao velho, e este só
serve ao futuro, depois de destilado, valendo só a quinta-essência, e
não, o bagaço inútil da erudição maciça.
Não temos, pois, que imitar, servilmente, os estrangeiros, e sim,
romper por caminhos próprios, aproveitando apenas a essência da
pesada cultura do Velho Continente. A Europa se acha referta de
passado, de tradição, de cultura, no passo que nós, brasileiros,
conquanto não sejamos primitivos, ainda estamos cheios de futuro,
de esperanças, de anseios. Tenhamos mortos-viventes perto de nós, mas
não nós sob o império deles, senão eles, sob o nosso, ou seja, o
conhecimento deles para o nosso uso, impedindo que eles, sob a forma
de respeitável tradição, nos sufoquem, nos matem, como crucificaram
Cristo, como assassinaram Sócrates.
Ora bem: "a problemática do mundo atual", ainda por solucionar,
acaso é passado? Futuro é que é, não se podendo resolvê-la sem
futurizar criativamente..., e disto a Europa está impedida por sua própria
fraqueza..., condicionada que se acha ao passado com o qual nossos
problemas atuais e futuros não se resolvem. A esta fraqueza, no
entanto, nosso crítico dá como sendo força! Ele acredita nas pesadas
armas de Golias; nós depositamos mais fé na funda de Davi. Ele crê na
velha arte bélica de Cambises, pai de Ciro; nós temos confiança
neste, cujo gênio sempre surpreendia o adversário, e, a tal ponto, que,
depois, não mais precisava dar batalhas, bastava o mito..., e as
muralhas se rendiam ao conquistador.
O Brasil está na vanguarda do Terceiro Mundo que é a
civilização ainda do porvir. Desde agora fica extinta a dependência
nossa em relação ao Velho Mundo! Creiamos nisto, e energias
profundas, ainda ignoradas, por-se-ão em movimento! Nenhum homem
poderá conhecer suas próprias limitações, a menos que se tenha
encarapaçado como os entes todos que buscaram esta ilusória
proteção, porque "ser humano é ser capaz de transcender a si pró-
prio" (Toynbee – “Experiências”). É agora a vez do amoroso filho, já
adolescente, preparar-se para arrimar a Grande Mãe, a Europa, que o
alimentou, com seu leite, quando ele era ainda pequenino.
Não é isto sonho lindo, róseo, vaporoso, pura mística de um povo
que anseia por desenvolver-se, por auto-afirmar-se. Já tem solidez
palpável, até mesmo para europeus. Fale Toynbee:
"Uma visão antecipada da estrutura da futura cidade mundial já
pode ser vista em Brasília, a nova capital do Brasil, construída de
acordo com um plano, porque foi planejada no que era um sertão
160
do real.
III - Houve a Involução, pelo que se tornou possível e
necessária, agora, a Evolução.
Esta é a chave que condensa toda a obra constante deste e de
outros livros nossos; vamos, todavia, explicitá-la um pouco mais:
1) - Olhando o mundo, em torno, verificamos que as coisas, sem
nenhuma exceção, são unidades compostas de essência e de
substância, sendo a essência o que a coisa é, e a substância, o de
que ela é feita. Em qualquer coisa real, é impossível separar a
essência da substância, porque uma substância sem essência alguma,
é caos, e a essência pura, sem nenhuma substância, é pura
idealidade, vazia, subjetiva, que só pode estar na nossa inteligência
como abstração. Para ser real, a coisa precisa ser considerada como
uma dualidade feita de essência e de substância inextricavelmente
ligadas na unidade da coisa. Dentro de toda unidade está a dualidade,
donde vem: tudo o que existe é unidual. Nossos sentidos apreendem
o sensível das coisas, trazendo-as para o nosso psiquismo como
imagens; como as coisas não são caos, suas imagens, em nosso
espírito, também não o são, pelo que já vêm organizadas, e essa
ordem é a essência que a nossa inteligência abstrai. Dessas imagens,
pois, nossa inteligência apreende a essência como generalização
abstrata, subjetiva que é em nossa mente, mas não existe na realidade
objetiva... enquanto não se vestir da substância.
2) Conseqüentemente, não se apreende nada em realidade, se o
homem não agir como um todo. Com a inteligência só se apreende a
parte inteligível da coisa, não, porém, sua, parte substancial visto que
esta é irredutível a discurso racional, a princípio de razão. Quem,
logo, como o fizeram os gregos antes, e os filósofos modernos depois,
buscar a realidade só como essência pura, não terá a realidade, a
coisidade, e sim, apenas, a pura idealidade, a subjetividade, a
abstração pura, à qual se deu o nome de realidade. Por conseguinte,
o famígero realismo grego é um idealismo com o pé firme no objeto,
tomado este só por sua essência, no passo que o idealismo ou filosofia
moderna, é o mesmo idealismo grego, só que com fundamento no
sujeito, no eu subjetivo, transformado este em puro ente de razão. A
realidade verdadeira, no entanto, implica na presença da substância
também, e não só na da essência vazia, donde vem que, para
apreender a coisa como um todo, o homem tem de agir também
como um todo.
3) - Examinando a natureza da essência e da substância,
constatamos que ambas se opõem polarmente, como a tese à
antítese. A essência é fixa, imutável, intransformável, incausal,
inespacial, intemporal, determinística, sem liberdade, irrepresentável,
164
IX - CONCILIAÇÃO DE OPOSTOS
tranqüilo, esvaziou a taça da morte. Qual ele, qual Cristo, a história está
referta de entes sublimados, cheios de heroísmo, para os quais já não
vale a sentença de Cristo: "a carne é fraca". Daí que, não vendo
antagonismo entre sua carne e seu espírito, São Francisco de Assis
chamava ao próprio corpo de irmão corpo.
Em hipótese alguma não sendo possível EXISTIR (estar no espaço-
tempo) um puro espírito, sem substância alguma, no mundo
espiritual as entidades também se mostram revestidas de um corpo
orgânico, conquanto de matéria menos encurvada que a dos entes de
nosso mundo de matéria densa. Lá, também, para os que ainda lutam
por desinverter-se, "o espírito, na verdade, é forte, mas a carne é fraca".
Esta idéia nova do corpo como aliado, do corpo como irmão, de a
substância corporal ser inalienável ao espírito, só agora é possível, visto
como só agora fica demonstrado que a essência e a substância não se
apartam na unidade de quaisquer coisas, nem na dos entes vivos, não
havendo exceção nenhuma, nem mesmo para Deus. O corpo do demônio
não é adversário do espírito diabólico, nem o do anjo se mostra inimigo
da alma angelical. "Que pode o puro espírito, escreve Lagneau, se não
começar por se dar um corpo que atue sobre os demais corpos?".
O corpo se mostra satânico só para o espírito, encarnado ou não,
que luta por desanimalizar-se. O corpo é diabo, inimigo, adversário do
espírito, só enquanto ele ainda se mostra invertido, rebelde, recalcitrante
ao esforço da desinversão já operada em propósito, em projeto. Para os
que fazem a evolução, primeiro raia a luz no espírito que, por isto, trava a
luta por desanimalizar-se. A matéria resiste, por sua natural inércia,
obrigando o espírito a um continuado esforço, tenaz e vigilante, de modo
que a desinversão só se efetiva, quando se mudam as próprias pulsões
animalescas em suas contrárias. O corpo, então, outrora tido como
ferrenho adversário, torna-se em aliado útil, fiel, transforma-se em
irmão que cumpre amar, em primeira instância, antes que esse
amor se expanda a outros entes ao mundo e a Deus. O egoísmo,
neste caso, se dilata, e este egoísmo dilatado é o amor.
Se o amor tem que se expandir de próximo em próximo, e o
primeiro próximo é o próprio corpo confundido com o espírito, ambos
formando o ego; só depois deste, vêm os espíritos-corpos-egos dos
outros, depois o mundo, e, finalmente, Deus; Deus será o último termo
da expansão. Deus é o mais importante, porém, não é o primeiro na
cadeia da dilatação do egoísmo. E como o amor é substantivo, é físico-
moral, ele se dirige sempre a um objeto existente à mão, à vista; e Deus,
embora existente, oculta-se, inacesso, para além do horizonte ilimitado.
Então não há amor a Deus para o que se inimiza com o corpo, com o
próximo e com o mundo. Está correto o pensamento de São João
para quem é mentiroso o que diz amar a Deus, mas se aborrece de
172
seu irmão, porque, como afirma, quem não ama ao próximo a quem
vê, como pode amar a Deus a quem não vê? (I João 4, 20). O amor
do próximo, pois, é o passo necessário para quem aspira chegar ao
amor de Deus. Esse místico amor a Deus que anda por aí nas bocas
dos religiosos de todos os matizes, é semelhante ao amor de D. Quixote
pela Dulcinéia que ele inventara e nunca vira, ou como o amor à
humanidade in abstracto. Sendo o amor substantivo, dirige-se ao que
é substancial, e não, a nenhuma idéia vazia.
Depois do próximo, vem o mundo. E não esquecer de que
mundo significa puro, ao contrário de impuro que é imundo. Mundo é
o cósmico, o harmonioso, o bom e o belo, no passo que imundo é o
acósmico, caótico, feio e mau. Em qualquer nível, o espírito estará
frente a um mundo, tanto mais misturado ao imundo, quanto mais
invertido e baixo ele for; ao contrário, quanto mais se sobe nos níveis,
mais os mundos serão mais mundos, até que, totalmente, se mostrem
escoimados de imundície. Céu e inferno andam misturados, de sorte
que, quanto mais se desce nos níveis, mais o caos se ostenta, ficando o
céu esmaecido; pela recíproca, quanto mais se sobe neles, mais o céu
se evidencia e se retira o caos. Ninguém se escandalize, portanto,
quando dizemos que é preciso amar ao mundo que, certamente, não
é o que nele há de impuro, de invertido, de imundo.
O último termo é Deus, para o egoísmo que se expande, sendo ele
a Referência do homem, a só que tudo justifica, tudo move, tudo ama,
tudo vivifica, tudo para si arrasta, qual abóbada de energia-amor,
anos-luz quintilhões distante da curvatura deste nosso universo que,
já de si, transcende a toda humana imaginação. O amor de Deus
envolve o universo, penetra os mundos, incendeia o coração do santo,
ilumina o sábio, inflama de êxtase divino o gênio e o artista.
Tudo isto, no entanto, foi posto de lado pelos filósofos que viram
em Deus a Essência pura, pelo que passaram a considerar o mundo
e as coisas só por suas essências. Procedeu-se assim a ruptura, e o
corpo, visto que é substancial, foi também havido por impuro. Plotino
não permite que se lhe retrate o corpo, para não perpetuar uma
sombra, e Anaxarco grita ao tirano que mandara triturá-lo: - Isto que
trituras não é a pessoa, mas só o corpo de Anaxarco! - Quebras-me
o braço, se o apertares mais, brada Epicteto a seu senhor
desumano!, e pouco mais, e o braço se partiu. - Eu não disse que se
quebraria? - tornou Epicteto vitorioso, em seu desprezo da matéria
corporal. Vem o cristianismo, e também prega o desprezo do mundo;
e porque o corpo é mundo, também o desprezo do corpo.
No entanto, a correlação entre o espírito e o corpo é inalienável.
Que o espírito, o pensamento, a idéia atuam sobre o organismo,
prova-o a hipnose pela qual se pode produzir queimaduras reais,
173
idealismo que vingou até agora, como tese, é preciso opôr a antítese
do materialismo, não só no plano ideológico, como, ainda, no prático
das revoluções pelas armas. Se os operários optarem, já, pela síntese
que concilia as duas meias verdades na unidade, não sairão às ruas
para lutar, e, antes, ficarão de ânimos serenados. Ora, é preciso que
a antítese do materialismo esgote todo o seu impulso, para só depois
ser possível a síntese. A conciliação que virá, a síntese, já
vislumbrada, pertence ao futuro, não ao presente que deve ocupar-se
de vencer o idealismo. Tal o pede a dialética no seu processo de
tese, de antítese e de síntese. A conciliação, a síntese, traria paz nas
consciências e no mundo... o que não pode acontecer, porque a
história, cegamente como sempre o foi, terá de avançar;
necessariamente, o planeta terá de ensanguentar-se, antes que se
possa chegar à síntese, já, prevista, de antemão, como o único caminho
do porvir. Como a história desenvolveu-se, até aqui, por tese, antítese e
síntese, que é o mesmo que ensaio-e-erro, querer fazer já a síntese,
seria quebrar a tradição histórica, transferindo a história para o plano
do pensamento, elaborando neste nível, no mental, in abstracto, o
ensaio-e-erro, poupando-nos, desta forma, trabalhos, revoluções,
sofrimentos, sangue e lágrimas.
Mas, não! Embora estejamos enxergando esta evidência na
ponta do nariz, cumpre-nos fechar os olhos, tapar os ouvidos, e fazer a
revolução sangrenta, deixando a síntese, a conciliação dos opostos,
para mais tarde, talvez, quando já não haja mais a humanidade. É
isso que disse Politzer ao escrever que é pela luta contra o
idealismo, e não, pela conciliação, pela síntese, que a contradição se
resolve.
Supõe-se que o primitivo aprendeu a cozer a argila, quando, um
dia, sua choça pegou fogo, tornando rubros seus utensílios de barro cru.
Daí por diante, então, faziam-se palhoças para serem queimadas, com
as feituras de barro cru dentro. E o gênio que demonstrou ser o calor que
cozia o barro, provavelmente, foi morto a mando dos sacerdotes-
feiticeiros que explicavam o fenômeno por uma versão teológica: o
deus fogo retribuía a oferenda da casa que devorava, ruborizando e
endurecendo os utensílios que, dora em diante, não mais se derretiam
quando postos nágua. Assim nós: embora saibamos que na síntese
estará salvaguardada a paz, havemos que fazer guerras, precisamos
promover discórdias, revoluções, derramamento de sangue, de muito
sangue, para que se cumpra o previsto por Hegel, e é de que a história,
necessariamente, tem de fazer-se por ensaio-e-erro, isto é, por tese,
antítese e síntese. Que? fazer a síntese, a conciliação, sem que ainda
tenha o mundo vivido, sofrido e morrido pela antítese? Acaso não é
isto quebrar a tradição da história? Mudar a tradição? sacrilégio
183
X - O UNIDUALISMO
reinam; é deste jeito que, segundo esse pensador, "os mortos governam
os vivos".
Assim teria de ser, se o espírito desencarnado fosse pura
essência, idealidade pura, sem existência real, objetiva. Se fosse
possível desaparecer um dos termos oponentes da unidade, cessaria
o monobinarismo, e o ente, seja o que for, se tornaria nada. Sem
um corpo de substância, a alma espiritual é nada; sem uma essência
espiritual, o corpo, seja o de matéria densa, seja o perispírito de matéria
espectral, se transforma em caos. Órgão e função, pensamento e
cérebro, virtualidade e experiência, alma e corpo, interatuam-se,
reciprocamente, de sorte que o reforço ou o enfraquecimento de um,
implica num proporcional reforço ou enfraquecimento do outro. Isto é o
que, na dialética hegeliana se chama relação recíproca, e pode
enunciar-se deste modo:
"Esta relação recíproca significa que o contrário A age sobre o
contrário B, tanto quanto o contrário B age sobre o contrário A e que
B age sobre A na proporção em que A age sobre B".
Se B age sobre A na mesma proporção em que A age sobre B,
temos que um reforçamento de A, implica num recíproco reforço de
B; quando cresce um termo, prontamente, cresce o seu contrário,
por reação. Isto é o que foi dito, e está de acordo com o princípio de
física, segundo o qual, toda a ação suscita uma reação igual e
contrária. O unibinário da consciência é formado pelos recíprocos
oponentes pensamento e cérebro, seja para um homem do nosso
mundo, seja para um espírito desencarnado. 0 reforço do pensamento
obriga a formação de fibras associativas que exigem, a expansão da
caixa craniana. "Tanto o crânio de Goethe como o de Gladstone
cresceram mesmo depois dos 5O anos. No crânio de Kant na idade
de 82 anos as suturas ainda eram móveis enquanto num
microcéfalo elas se fundem já na adolescência" (Fritz Kahn).
E melhor cérebro, melhor aparelhamento das fibras associativas,
possibilita pensamentos mais altos, mais velozes e mais complexos,
até que, em chegando à intuição, os pensamentos se fazem
fugacíssimos como raios.
Em parelha com isto, o unibinário da moral é formado pelo par de
opostos virtude e experiência; e a virtude se enriquece da
experiência, e esta se reforça com aquela. Também, órgão e função
interatuam-se, mutuamente, de modo a manter em equilíbrio ótimo o
unibinário ou sistema de que eles são partes contrárias integrantes.
Politzer, no entanto, após ter posto, no livro, o enunciado hegeliano
da relação recíproca, tira conclusões contraditórias ao princípio.
Segundo ele, o social é constituído pelo par de oponentes operariado e
burguesia. Aplicado o enunciado, temos: todo o reforçamento da
193
ele foi feito e tudo nele foi criado. Se a sem razão e a maldade do
mundo fossem inerentes à matéria, tais atributos seriam presentes,
também, nos altos céus, visto que nada pode existir sem a
substância. O pecador sente suas pulsões animalescas, e cuida
serem elas provenientes de sua matéria corporal que ele chama vil;
e o sublime sentimento do bem que inflamava o coração de Cristo,
de Sócrates, que procedência tinha? Acaso tal energia-força-moral
não é do mesmo estrato das paixões ignóbeis? Se a virtude se opõe ao
vício, ambos pertencem ao mesmo estrato; como, logo, atribuir as
virtudes à alma que é essência, e os vícios, ao corpo feito de
substância?
"A tradição clerical (escreve Politzer) e, posteriormente, a
universitária, deformou, conscientemente, a filosofia epicurista, durante
séculos. Assim, os materialistas seriam os "porcos do rebanho de
Epicuro".
Na síntese, no unidualismo, a concepção materialista do mundo se
salva de cair na imoralidade; sem isto, as conseqüências morais do
materialismo, o levam, inevitavelmente, às práticas próprias dos
"porcos do rebanho de Epicuro". Porque, se morreu acabou, só há
gozo nesta vida. Ora, a lei do mínimo esforço e máximo proveito, leva o
materializado a conseguir seu gozo por qualquer meio, ainda que seja
o do sacrifício do próximo. O tudo é ter cuidado com a polícia, que o
resto já se acha resolvido. Por que Marx e Engels não
desenvolveram estudos desta lei tão importante e vital em sua
dialética? Quando a primeira planta, ainda unicelular, resolveu
devorar sua próxima, ela se tornou animal herbívoro; quando o
primeiro herbívoro se dispôs a comer outro animal, nesse ponto
nasceu o animal carnívoro. E tudo era para satisfazer-se e gozar, pelo
caminho mais curto, de máximo proveito e mínimo esforço. No nível
humano, pois, para o materialista, a consciência ética é um contra-
senso, uma vez que nada se tem a esperar após a morte. Daí que,
como diz Politzer, "é notório e bastante generalizado o fato de que
os defensores das filosofias idealistas se conduzem, quase sempre,
na vida, como materialistas". Se, as mais das vezes, os defensores do
idealismo se conduzem na vida como materialistas, como se hão de
conduzir os defensores do próprio materialismo?
Como agirá o materialista, para ser coerente com sua doutrina,
se sua conduta serviu de referência para Politzer criticar os
idealistas só de nome? Se a maioria dos idealistas agem como se
fossem materialistas, o que Politzer considera reprovável, como aprovar
a conduta dos materialistas que são fiéis à sua ideologia? Onde é
que está a moral no comunismo, e em que se funda ela, se os idealistas
imorais, podem ser xingados de materialistas? Se a conduta
198
coisas".
Logo, concepção falsa do mundo é toda aquela que toma um
aspecto pelo todo. Por conseguinte, a falsidade do idealismo, desde
Parmênides, consiste em ter tomado só o aspecto formal, essencial,
de princípio e de lei das coisas, deixando de lado o aspecto
substancial, consistencial, material. Que fez o marxismo? Pois tomou
ele o aspecto último, material, deixando de parte o outro, ou
considerando-o apenas como derivado e produto desse último.
Conseqüentemente, conforme o próprio enunciado de Politzer, erra
quem toma um ou o outro aspecto como sendo a verdade inteira. Tudo,
portanto, o que afirmou Politzer do idealismo e da religião, se aplica,
à maravilha, ao materialismo. Diante disto, podemos dizer a mesma
coisa do materialismo, trocando apenas algumas palavras pelas suas
antônimas; vejamos: "Como se explica que existam falsas
concepções do mundo, como as concepções materialistas e, entre
outras, os ateísmos? Para responder a essas questões é preciso partir
do fato de que as coisas têm aspectos múltiplos, que nossa
inteligência descobre sucessivamente graças ao desenvolvimento de
nossa atividade especulativa. Se alguém se fixa em um desses aspectos
apenas, não é possível que esse alguém tenha um conhecimento válido
das coisas".
Como se vê, este texto tanto condena o idealismo como o
materialismo, visto como, cada um, por sua vez, tomou um aspecto pelo
todo. Dado que, tanto o idealismo, desde Parmênides, e o
materialismo, desde Heráclito e Demócrito, um e outro se mostra como
meia verdade, a verdade inteira, global, só pode estar na síntese
que integre as duas meias verdades na unidade. Logo, não pode
haver vitória para o materialismo, nem para o idealismo, porque
ambos serão unijugados no monobinarismo do qual eles são partes
integrantes e complementares.
Politzer: "Com efeito, enquanto que a burguesia, liquidando a
feudalidade, substituiu uma exploração por outra, o proletariado,
destroçando a capitalismo, suprime toda e qualquer exploração do
homem pelo homem".
A exploração burguesa do homem pelo homem se trocou, no regime
comunista, pela exploração do homem pelo Estado; porém, como o
Estado não pode reger-se senão por homens, estes homens do governo
serão os exploradores dos outros homens. Por isto, escreve Joelmir
Beting: "O capitalismo é a exploração do homem pelo homem e o
socialismo é exatamente o contrário". E Paul Samuelson: "A utopia da
sociedade igualitária e justa ainda não conseguiu dar resposta
convincente a duas perguntas cruciais: quem vai desfrutar da
calefação no trabalho de gabinete e quem vai recolher o lixo na
200
tempo, passa a ser nova tese que se opõe a nova antítese, formando
outro par que vai unir-se noutra unidade, noutra síntese. Como não
há exceção para esta lei de constituição de tudo, nem mesmo para
Deus cuja unidade se forma do par Essência e Substância,
também o homem é uma unidade binária, qualquer que seja o
aspecto em que o tomarmos. O aspecto do humano que agora
iremos ver, é o da unidualidade formada pelo ente biológico e pelo
sócio.
Os dois aspectos em realidade são indissolúveis, não se podendo
separá-los, a não ser idealmente, por abstração. Não há ente
biológico puro sem o social, nem este sem o suporte biológico. Para
Augusto Comte, "o indivíduo isolado é mera abstração; só os grupos
são reais, pois que "a sociedade humana compõe-se de famílias e
não de indivíduos".
Como Augusto Comte afirma que "a sociedade humana
compõe-se de famílias e não de indivíduos", cabe perguntar-lhe se
estes indivíduos têm, em si, o social, ou não. Se não o tem, então,
são puros entes biológicos, e estes, sozinhos, não existem; se têm, em
si, o social, então, a sociedade não começa com as famílias, e, sim, com
os indivíduos-sócios. Ora, um homem isolado, um Robinson Crusoe,
existe; logo, ele não é um puro ente biológico sem o social; por
conseguinte, o sócio existe nele, formando par com o ente biológico.
A sociedade se forma de famílias; estas se formam de indivíduos. No
entanto, se, nestes indivíduos, não existir o sócio, as famílias não se
formam. A só união sexual não é base da família; provam-no os
animais inferiores que podem viver isolados. Os peixinhos dos
aquários devoram os próprios filhos, se estes não forem separados;
quer dizer: há união sexual e filhos; contudo, as mães não
reconhecem os próprios filhos.
A ausência de hierarquia na visão (agnosia metafísica) faz o
universo chato, plano, e dá nisso de Augusto Comte, que, a ser
verdade para a sociologia, sê-lo-ia, também, para a física. Ocupado só
com os corpos da física, e não, com os da química, o físico, por sua vez
poderia dizer, à moda de Augusto Comte: o núcleo atômico e os
elétrons isolados são meras abstrações; só os átomos são reais,
pois que as moléculas dos corpos se compõem só de átomos, e não de
elétrons e de prótons.
O náufrago Robinson Crusoe se viu compelido a viver isolado
numa ilha; no entanto, ele próprio não era um ente isolado, porque,
como diz Gusdorf, "nenhum homem é uma ilha, e o regime celular de
Robinson, muito longe de representar uma posição invejável,
aparenta-se ao mais doloroso grau de reclusão penitenciária.
Contudo, importa não esquecer, como observa Taine, que o náufrago
205
cabeludos". Mais:
"Ela passa a maior parte do seu dia preocupada com atividades
tipicamente humanas. Dorme em um grande dormitório com sua mãe e
seu pai humanos. De manhã, prepara uma xícara de chá. Ela enche
a chaleira, coloca-a sobre o fogão, acende o fogo, coloca um saquinho
de chá dentro da água, e bastante açúcar em sua xícara de plástico
verde. Chega até mesmo a cheirar o vapor e espera que o chá esfrie”.
"Nunca queima a língua tentando tomá-lo muito cedo. A única
assistência humana de que necessita durante toda essa preparação é
uma mão mais firme para despejar a água quente e um lembrete de
que a água já está fervendo: Talvez uma chaleira com um apito
venha a ajudar”.
"O próximo item em sua agenda é, frequentemente, uma aula de
comunicação. De vez em quando, a aula é apenas de prática, uma
discussão de alguma coisa que pareça interessá-la. Outros dias ela é
testada em suas aptidões de comunicação. Roger gostaria de decidir
sempre o que fazer, mas, às vezes, Lucy decide por ele".
As experiências prosseguem. Desde 1973, nos Estados Unidos,
todos os que podem dispor de um filhote de chimpanzé, ou de
orangotango, estão empenhados na tarefa de os fazer falar a língua
pátria para uso dos surdos-mudos. Onde iremos parar, se a genética
for posta a serviço do unidualismo inteligência-linguagem?
O mais empolgante, porém, foi o relato trazido pela revista
"Manchete", em seu número 1259, de 5 de junho de 1976. O advogado
Michael Miller, de Nova Iorque, diz ter comprado de uns caçadores
das montanhas dos Estados Unidos, um estranho ser "metade homem,
metade macaco". Michael deu a esse elo vivo ligador do homem aos
macacos, o nome de Ollie, em homenagem ao "gordo" (Oliver Hardy)
que é como o chamava o "magro" (Stan Laurel), nas telas do cinema.
Ollie, a nova versão viva do pitecantropo, tem 1,52 cm de altura, é
calvo, sardento, aparentando mais ou menos sete anos de idade. Ele
anda perfeitamente ereto sobre suas patas traseiras, demonstra possuir
inteligência, embora não desenvolvida. Ao ser apresentado à imprensa,
"Ollie emitiu sons como os de uma criança que ainda não aprendeu a
falar, mas pareceu compreender as coisas melhor do que qualquer
macaca”. Escreveu um jornalista (Manchete), sobre esse elo vivo
entre o macaco e o homem: "os cientistas fazem outras observações
importantes, principalmente as relacionadas com seus cromossomas,
considerados "absolutamente anormais" no quadro de sua espécie".
Ollie ainda está sendo submetido a testes médicos e classificação
zoológica.
Na fotografia maior trazida pela "Manchete", em que Ollie, em
porte eloquente, levanta os braços, posando para os fotógrafos no
211
celestes e atuando nas entranhas dos átomos, acaba por ligar tudo
fazendo do universo uma unidade. Logo, estava certo Platão ao
afirmar que o universo está cheio de Eros (princípio de integração),
e vai movido por Eros. A gravitação, consequentemente, não é mais do
que um caso particular da Lei do Amor que impera do átomo ao
universo. E sendo Deus o Amor, nele, tudo se acha unificado. Em
mais alta e mais sublime esfera, a lei de Newton daria neste
enunciado: os entes se atraem na razão direta de suas potências
amorosas, e na razão inversa das distâncias entre si, distâncias não
só físicas como, e sobretudo, psíquicas. De outro modo: a força de
unificação do amor é diretamente proporcional à potência amorosa dos
entes, e inversamente proporcional às distâncias físicas e psíquicas
entre eles. Daí que o amor se esfria com a distância e com a mudança
psíquica. É por isto que a saudade dói muito, só no começo da
separação.
Eis como se pode comprovar um princípio geral: pelas leis que
ele engloba, e estas, pelas experiências de que nasceram. Todavia,
esse princípio unitário, alcançado por indução, portanto, a posteriori,
pode tornar-se a priori para um outro universo de leis que,
antecipadamente, guiarão outras experiências. Daí que Kant afirma que
os princípios científicos são indutivos a priori. O paradoxo da
expressão deixa de sê-lo, quando se sabe que se trata de dois
momentos opostos do pensamento: indutivos, porque partem da
experiência; a priori, porque, uma vez descoberta a lei, ela cobre uma
porção de fenômenos que se tornam conhecidos, antes da experiência.
Em matemática, o método é só dedutivo, analítico, apriorístico,
porque sempre se parte de um postulado indemonstrável, a não ser
pelos resultados verdadeiros que produz. Não vale proceder como o
geômetra moderno que, para fugir à contingência incômoda da
indemonstrabilidade do postulado inicial, opera a fragmentação dele
numa infinidade de outros postulados menores igualmente
indemonstráveis. É o caso de quando nos vêm com suas petulantes
definições "construtivas", no dizer de Gusdorf, segundo as quais eles
"criam livremente seu objeto numa espécie de vácuo conceptual. O
matemático proclama: "Chamo triângulo a figura determinada de tal e
tal maneira"..., - e, de ora em diante, o triângulo existe como ente de
razão, cujas propriedades derivam necessariamente de sua fórmula
constitutiva". Isto é petulância visto como o matemático, se fosse
modesto, diria como Euclides: "peço me concedam afirmar que o
triângulo é uma determinada figura de tal e tal maneira". Quando tais
matemáticos nos dizem que ponto, linha e plano são intuições, nada
mais fazem que tornar tais objetos geométricos em postulados
indemonstráveis.
219
( . . .)
261
de o autor criar o seu público com a sua pena, como guia que é de
massas, estas é que criam o autor à sua imagem e semelhança.
Sendo o autor o conduzido, e o público o condutor, em que se
fundamenta este para ser o guia? Funda-se em si mesmo...; como o
faz o rebanho estourado, escapando ao comando do pastor. É que
estamos vivendo tempos de decadência, nos quais os homens
regridem às suas origens bárbaras. A massa é a que manda, e seu
mando é conducente ao caos. Tudo isto de Afrânio até parece eco de
Sartre para quem a consciência que cada um tem de si, é dada pelos
outros. Da sua enfermidade diz ele: ``Foram os Outros que ma
ensinaram, os Outros a podem diagnosticar; ela é presente aos Outros,
mesmo que disso eu não tenha consciência. É, pois, em sua natureza
profunda, um puro e simples ser para outrem"! Em suma, o médico é
o responsável de minha enfermidade; "exatamente como, sem a
mediação do anatomista, eu nunca saberia que meu estômago tem
a forma da bolsa de uma gaita de foles". Mas, continuemos com
Afrânio:
"De modo geral, todavia, a existência de uma obra levará
sempre, mais cedo ou mais tarde, a uma reação, mínima que seja; e
o autor a sentirá no seu trabalho, inclusive quando ela lhe pesa pela
ausência". Se, pois, não houver reação nenhuma, como vai o autor
conhecer-se, dado que o espelho seu, o público, não o reflete?
Contudo, esta falta de reação do público, também foi considerada
como reação existente, pelo que sempre há reação, e tanto que,
quando a não há nenhuma, "ela pesa pela ausência",... de certo,
mostrando ao autor que sua obra não vale nada e ele é zero! E se
o autor for genial, e estiver convicto de que escreve para o futuro, sendo
sua obra uma antecipação? Como, logo, poderão conhecer-se a si
mesmos os autores cujas obras só aparecem depois de eles estarem
mortos? (que confuso modo é esse de dizer, que faz da ausência,
presença, do negativo, positivo, do não-existir, existência? Um
escritor escreve porque tem público, e por este se conhece; outro, porque
não tem público, precisa criá-lo na sua mente, como ente imaginário,
ideal, e para este escreve; todavia, como não pode saber como será
a reação do seu público, quando este, no futuro, existir in concreto,
fica sem conhecer-se a si mesmo, visto que seu espelho não o retrata,
no presente. Isto é como afirmar: os seres vivos estão sempre
estimulados pelo Sol, esteja ou não este a brilhar no firmamento;
mesmo quando é noite, e não há Sol, há o estímulo da ausência.
Ausência e presença são estímulos promanados do Sol, tal qual a
presença ou a ausência de público são igualmente aptas a
estimular o autor. Só que o autor que tem público, se conhece a si
mesmo através desse público que reflete a sua imagem; o autor que o
264
não tem, não possui esse espelho refletor de si, pelo que não se
conhece a si mesmo, e vai inconsciente de si, produzindo sua obra...
que, se não é feita para homens, certamente o será para as polilhas
e para os ratos. Todavia, pode acontecer de tal obra ser
desentranhada do espólio inédito e publicada; aí, então, o mundo,
boquiaberto, manda fundir uma brônzea estátua desse autor. Sem falar
dos muitos que não tiveram a mínima chance de apresentar suas
obras, a história está cheia daqueles nomes que, em vida, foram
desprezados ou perseguidos, e cultuados depois de mortos.
Em que, logo, se baseiam os autores sem público para, em fazendo
suas obras, se fazerem a si mesmos? Baseiam-se, como unicamente é
certo fazer, na filosofia (visão geral do mundo) que constituíram para
si; baseiam-se, como não há outro modo, em suas convicções
profundas que se chamam suas crenças, estas não postas em
discussão, por serem eles mesmos, dado que "nós somos as nossas
crenças" (Ortega).
Em tempos como agora, o autor que quisesse pautar-se pelo
público... público que desaprendeu, que regrediu à linguagem fáctica,
pobre, muscular, concreta, gesticulada, visual, mímica, pantomímica,
simiesca..., só poderia produzir obras medíocres, nada criando de
duradouro, pelo que nosso mundo só teria o hoje, e não, o amanhã;
todavia, ser homem, é ser em função do futuro, uma vez que todo o
ato humano tem em vista o porvir. No entanto, por falta de visão
filosófica, se forem realizados os prognósticos que se fazem hoje,
nosso futuro não será feliz. Fala-se já que esta nossa sociedade
moderna, industrial, vai desaguar na "sociedade tecnetrônica", em
que, como diz Joelmir Beting, "a liderança será disputada não pelos
mais ricos, mas pelos mais capazes". Eis renovado o velho sonho de
Platão. Só que Platão propunha o mais capaz entre os filósofos, no
passo que, para Joelmir Beting, o mais capaz deve ser recrutado entre
os tecnocratas; ei-lo: "Na sociedade tecnetrônica, tecnologia no lugar
da ideologia, estrutura no lugar do homem, o poder será
absolutamente impessoal e, por isso mesmo, de contestação mais
difícil. A despersonalização do poder político e do poder econômico
será decretada pela interdependência altamente viscosa entre
instituições governamentais, organizações científicas e complexos
industriais”.
A mais não podia descer o abuso oposto ao abuso idealista; a
"estrutura no lugar do homem", e um "poder absolutamente impessoal"
que, sonho vão, não tem nada "de contestação mais difícil",
precisamente, por ser tudo obra do homem. O robô governante
poderá ser tão perfeito, como o computador HAL 9.000, de vigésima
geração. "Um robô que pensa, que toma decisões, que canta, ri,
265
homem. Pelas ações, pela conduta, cada homem está sempre gritando
a sua "verdade" ! pessoal, que é uma intuição volitiva e emotiva,
sendo, por conseguinte, neste seu substrato profundo que se embasam
todos os seus raciocínios e argumentos, desde que sejam para ser
postos em prática. Mostra-me as tuas obras e a tua conduta, e dir-te-ei
qual é a tua crença e quem és.
275
Confúcio, procurando uma base para a moral, que não fosse Deus,
recebeu o aplauso de Will Durant que o coloca na lugar primeiro da
fila de "Os Grandes Pensadores". Em sua obra deste nome, Will Durant,
assim, se explica:
"Por que incluir Confúcio e omitir Buda e Cristo? Pelo fato de ser um
filósofo moral antes que um pregador de fé religiosa; pelo fato de seu
apelo à vida nobre ter base em motivos seculares e não em
considerações sobrenaturais; pelo fato de, muito mais que Jesus,
assemelhar-se a Sócrates". Mas, que disse Confúcio? Transcreve-o, o
próprio Will Durant:
"Os grandes antigos, quando queriam revelar e propagar as mais
altas virtudes, punham seus Estados em ordem. Antes de porem seus
Estados em ordem, punham em ordem suas famílias. Antes de porem
em ordem suas famílias, punham em ordem a si próprios. Antes de
porem em ordem a si próprios, aperfeiçoavam suas almas. Antes de
aperfeiçoarem suas almas, procuravam ser sinceros em seus
pensamentos e ampliavam ao máximo os seus conhecimentos. Essa
ampliação dos conhecimentos decorre da investigação das coisas, ou
de vê-las como são. Quando as coisas são assim investigadas, o
conhecimento se torna completo. Quando os pensamentos são sinceros,
a alma se torna perfeita. Quando a alma se torna perfeita, o homem está
em ordem. Quando o homem está em ordem, sua família fica em
ordem. Quando sua família está em ordem, o Estado que ele dirige
também pode alcançar a ordem. E quando os Estados alcançam a
ordem, o mundo inteiro goza de paz e felicidade".
Pusemos em destaque a base de Confúcio, em que ele afirma:
"Essa ampliação de conhecimentos decorre da investigação das
coisas, ou de vê-las como são". Ele desce, como se vê, por uma
cadeia hierárquica do Estado até o conhecimento das coisas, e acentua
que esse conhecimento consiste em descobrir ou ver como as coisas
são. Um chefe de Estado, um rei filósofo (Platão), que consegue
enxergar as coisas como elas são, passa a possuir um conhecimento
completo, seus pensamentos se fazem sinceros, sua alma se torna
perfeita, sua pessoa fica em ordem, e esta ordem se irradia para a sua
família, para o Estado que governa. O tudo, logo é enxergar as coisas
como elas são.
A isto, acrescenta Will Durant: "Eis aqui uma sã filosofia moral e
política enfeixada em poucas linhas" (op. cit. pág. 13). Para o que disse,
Confúcio empregou linhas até de mais, visto como deixou por explicar o
que as coisas são, fundamento, por excelência, de que tudo o mais
276
decorre. Dado que o vulgo, em sua vida espontânea, não sabe o que as
coisas são, e sim, só, o que elas aparentam ser, consistindo nisto a
opinião ou doxa; dado que enxergar através das aparências, penetrar
o sentido profundo das coisas é a ciência ou para-doxa, donde
paradoxo; dado que nesta para-doxa se ocuparam todos os filósofos
durante dois mil e quinhentos anos, e ainda há o que dizer; a que pode
reduzir-se a frase de Confúcio: "Essa ampliação de conhecimentos
decorre da investigação das coisas, ou de vê-Ias como são"? Porque
as coisas não são isoladas, mas se relacionam entre si, ligam-se em
cadeia, enchendo o mundo que se integra a outros mundos que
formam sistemas planetários, sistemas galácticos e universo. E se as
coisas forem tomadas como unidades isoladas, estanques, como todos
separados, elas são, outra vez, universos constituídos por unidades
menores, em cadeia descendente, cujo último termo se perde no ignoto.
O dado natural é inesgotável.
Se, pois, de ver como são as coisas depende o "conhecimento
completo", então não há conhecimento completo, porque o dado
natural, é inesgotável, e tanto, que cada pensador o retoma e o
desenvolve em sua filosofia. Se não há conhecimento completo, não há
alma perfeita; se não há alma perfeita, o homem não está em ordem,
pelo que, como o notou Nietzsche, ele é inacabado. Como o homem
não está em ordem, porque inacabado, também não o pode estar a
família, nem o Estado que o filósofo-rei governa. Ocupado no dificílimo e
árduo trabalho de saber o que as coisas são, perdido em pensamentos
grandes, inculcado em acrologias, o filósofo-rei se descura dos
problemas de Estado que são práticos, concretos, objetivos, vivenciais, e
os ministros despacham em seu nome, fazem-se interesseiros,
mercadejam intercessões, roubam, defraudam, perseguem inimigos
pessoais, empestam o Estado; por que? Porque o rei deixou em suas
mãos os problemas práticos, concretos, objetivos, próprios de sua
função de rei, para enfrascar-se em lucubrações profundas, abstratas,
teóricas, distantes, ocupação absorvente em que, até os ossos, se
embebem os filósofos.
Metendo-se o rei-filósofo a querer saber o que são as coisas,
esbarra com o mal, com a fealdade, com a injustiça, com as dores
misérias do mundo, e vê que tudo decorre de a vida ser agoísta, o de e a
Natureza ser amoral. Não querendo recorrer a soluções nenhumas
escatológicas para ater-se somente a motivos seculares, perde o
norte, e entra em desequilíbrio ideológico e emocional. Em estado de
desequilíbrio não pode aperfeiçoar sua alma, nem "ampliar ao máximo
seus conhecimentos", e quanto mais teima nessa linha, mais se perde
na Babel em que todos gritam, mas ninguém escuta nem entende
ninguém. O caos na alma gera o caos da conduta que se expande à
277
família que, como peste, infesta o Estado. Marco Aurélio foi um rei-
filósofo cuja sabedoria deu para deixar a nau do Estado navegar à
deriva, e antes de ocupar o trono, seu filho Cômodo já praticava a
"arte" de gladiador amador, assassinando indefesas gentes dentre os
quais mendigos. Governe o rei, e filosofe o pensador, que como já dizia
Vieira, "ninguém pode executar bem dois ofícios", sobretudo, se cada um
deles exige dedicação exclusiva tempo integral!
A um discípulo que pergunta a Confúcio se devia pagar o mal com
o bem, responde ele perguntando: "Com que então recompensarás a
bondade? Pagarás o bem com o bem, e o mal com a justiça". Contudo,
Confúcio não explicou o que é a justiça, como se ela fosse uma coisa
clara, evidente por si mesma. Acaso a justiça é a vingança? o "olho por
olho e dente por dente"?, que é o mesmo que .a pena de Talião? Seria o
desassombro do forte, como o entendia Nietzsche? Seria o respeito pelo
limite do egoísmo alheio? Guerra Junqueiro já dizia que um justo não
perdoa, visto como exige a reparação da ofensa, e que a caridade
consiste no perdão. Não fora melhor tivesse dito Confúcio que o bem se
paga com o bem, e o mal, com o perdão? com o esquecimento? com a
omissão da resposta punitiva? Porque num mundo, como o nosso, em
que a justiça se mascara e se veste do interesse, todos a têm do seu
lado, e, em nome dela, os homens e as nações estarão eternamente em
luta fratricida. Sem um Padrão, sem uma Referência distante, suprema,
sem uma Instância superior de apelação sobre humana, que vem a ser
a justiça? Como dedicar-se alguém ao conhecimento das coisas sem
ligá-las em hierarquia que, transcendendo ao mundo, ao universo, perde-
se num Horizonte distante em que se aloja o Absoluto inacessível? Como
podem os motivos seculares existir e se bastar a si mesmos, com
que ficam sendo absolutos, se a história nos demonstra que tais
motivos se mudam com o tempo? Como encetar o aperfeiçoamento da
alma eterna, e mantê-lo norteado por tais padrões móveis, relativos,
que, para existir, pedem um fundamento mais remoto? Em que se
basearia o homem para ser justo e bom, se a bondade e a justiça não
acham apoio nem exemplo na Natureza circundante, nem num social
que se fun demente nela? Que significa uma moral alicerçada em
motivos seculares?
O próprio Confúcio teve de fundamentar tais motivos seculares na
correta visão de como as coisas são... coisas que se abrem para o
mundo... que se liga a outros mundos até o universo o qual, de si, já
transcende nossa capacidade imaginativa, conceptiva. Contudo, este
universo não é o fim, e menos ainda o Deus que a nossa intuição
promove, determina, como Referência suprarracional, só em cuja função
podemos saber o que as coisas são.
Diz, Confúcio, no texto transcrito: "Antes de porem em ordem a si
278
saber o que são as coisas, e o céptico não pode conhecê-las, uma vez
que elas se abrem para o mundo, para o universo, remontando-se ao
Absoluto ou à Referência suma, Deus, que ele põe em dúvida. Por
causa disto, já o vimos, os motivos seculares de Confúcio não dão
azo a reformas nenhumas, nem do homem, nem da família, nem do
Estado, nem do mundo, ficando sem sentido o elogio de Will Durant, e a
proposição de Fritz Kahn.
Will Durant fala dos motivos seculares, base da pretensiosa moral
objetiva, como se esses motivos, apesar de seculares, do século,
absurdamente, não tivessem história, e existissem como um dom da
Natureza. Acontece que o civilizado não é o homem natural, pois,
como o afirma Fritz Kahn, "não pretendemos ser filhos da natureza;
timbramos em ser rebeldes contra ela". Ora, em que nos alicerçaremos
para efetivar a nossa rebeldia ativa contra a natureza que tem como
resultado a civilização? Se o homem pode negar-se em natureza, para
afirmar-se em civilização, segue-se que esta é a negação da natureza.
E como poderia um São Francisco de Assis, um Sócrates, tornar efetiva,
em si, tamanha empresa, sem um sólido fundamento em que se firmar?
Que portentosa atividade interior, que fabuloso dinamismo dalma são
necessários para desinverter, em si, a natureza egoísta e amoral, em
sobrenatureza, em civilização? E como executar tão gigantesca obra,
sem uma idéia chamejante que no coração se oculta como causa, e só
mostra efeitos?
Move-nos a riso a fala de Politzer para quem "o homem não é
bom, nem mau: ele é aquilo que as circunstâncias o fazem"; como se a
vida, para todos os homens, fosse feita só de pura reação. A portentosa
atividade interior do santo e do sábio, oculta sob a capa de serenidade,
nega este pressuposto de Politzer, pois um e outro age sobre as
circunstâncias, sobre o contorno, modificando-os; eles não são
conduzidos, conduzem; não são produtos do meio, mas agentes
modificadores. Fundados em sua Referência, entusiasmam e lideram as
massas, escrevem a história, quando a sociedade se acha em sua
ascensão; e quando eles faltam, quando já não há "este sal da Terra", a
civilização, tornada insulsa, desanda para o seu ocaso e se decompõe
como um corpo morto.
O Homo Technicus de hoje, com sua civilização que se
encaminha da industrialização para a automação e para a
robotização, vai ter, como decorrência, mais horas de lazer. Então se
faz preciso esteja ele preparado para empregar bem esse tempo
disponível. Falando a respeito da revolução que se está processando
no mundo pelos microprocessadores, tão minúsculos que cabem,
folgados, na ponta de um dedo, tão eficientes quanto os grandes
computadores, e tão baratos que, em breve, invadirão o mercado e as
283
FIM
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