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O LIVRO CINZA
Uirá dos Reis
ÍNDICE
sinto medo
como todos aqui sinto
medo e me sinto solitário
e penso que essa dor infinda
é demais pra mim
e sinto raiva e sinto
frio e sinto medo
e sinto frio e sinto medo
– o homem geme –
tento chorar mas tenho tanto ai tanto tanto tanto
medo ai jesus – eu sinto frio – muito mesmo tanto medo
que desisto – a lua cai – os pés se agitam
os sinos dobram
Adeus
Construiremos
nossa cidade na areia da praia
inconstante e reservaremos quartos para os outros
que, sabemos, chamaremos para nos acompanhar
: Podem vir? Querem mais? Água benta? Prato escuro?
Eles quererão, eu sei
e nossa magia – as nuvens rebeldes – faz pensar que podemos
que seremos que iremos partiremos fugiremos para longe, ai,
bem longe, quando tudo for doente como
quase sempre é
Átila.
O trem que segue para Maracanaú
está vazio agora
Sirenes, buzinas velozes, sinais fechados,
cal, pedras pontiagudas,
bitolas estridentes,
carvão, o cheiro de osso queimado
nas ruas e a bruma espessa,
estranha, no cair da tarde
em Maracanaú
Pensar que um dia deitamos
(quando sorrimos o sorriso ávido)
Pensar que tudo é para-sempre agora e
só, essa solidão que nós sabemos
– o que te desesperou –
isso que nos comove o peito,
que nos faz atentos, tristes, moribundos
Tua dor que é minha e tua e só agora
sei, só agora que o sol aterrador
desperta a cidade suja e só agora que
o silêncio invade os vagões vazios do trem
que segue para Maracanaú
Trem vazio e triste
como somos eu, tu e tantos outros que,
sedentos, quererão e
desistirão e
lançarão mão do Destino de Espanto Covarde,
da Vida Que Nunca Acorda
Essa dor que nos aprisiona o peito,
essa solidão atroz, esse sentimento mudo
e violento e amargo, essa coisa
visceral e triste, isso é muito, é demais
cá dentro e é por isso – e só por isso –
que tu tentas a libertação,
a criação do Grande Mito,
a pintura em tons de cinza,
a reprodução fantástica,
Átila, do que torce o intestino
e te fere
e te faz sangrar
e te faz sofrer
profundo
cortante, o vulto
lâmina aguda
solidão mortal
Toca teu baixo afinado que canto as
canções que queres e estaremos bem
naquele instante veloz
E tu, ai, tão solitário e frágil – como sou
– doente como estou agora – e tu,
sutil, tecendo essa vida absurda com fios
que não existem, essa vida bruta e muda
(a cidade é barulhenta e por isso –
e só por isso? – não nos ouvem muito bem)
Farei um cortejo para ti
e chamarei os outros e tomaremos as
ruas, os pátios abarrotados de gente,
de carne que flutua e anda e
destruiremos os canhões imundos e
te ouvirão
te conhecerão
te farão maior
te perceberão
pois nós somos muitos, somos vários,
somos enormes – e frágeis
e estamos sós
e é por isso que não ouvem nossa voz
quando gritamos de dor e choramos
quando arranhamos nossa pele
quando mastigamos vidro
quando quedamos enlouquecidos
quando pedimos silêncio, ai, silêncio
que essa dor é muita, essa dor que nós
sentimos, essa dor é muita aqui
mas eles nunca escutaram
eles nunca perceberam que cresce-
mos e agora nos sentimos inúteis e sós
Tua voz em minha boca e minha boca na
boca de todos os outros que,
como nós,
sentem violentos os
sentimentos desse mundo de
fardas e violações,
esse mundo de plantações ordinárias
de gente faminta e vulgar
de depredações
espanto nervoso
medo absoluto
estrabismo amargo
lentidão funesta
pachorrice eterna
demência que nunca acaba,
que nunca cessa, nunca se dissipa, ai,
nunca o vento leva para longe de nós,
para longe, para longe, para bem
longe de nós,
nunca o vento leva
Átila.
Não veremos mais o mar e
nem deitaremos mais à sombra da
grande mangueira e
conversávamos e
brincávamos de fazer carinho,
de ser doce, ser amigo, ser
honestamente amável
e agora não
O vento agora em minhas costas
pardas e a solidão me toma
me consome
me adota
O cheiro daquelas ruas e a
paisagem, tudo isso vem e foi
contigo, Átila, que pintei
naquelas tardes
os quadros que estão plantados
aqui, bem dentro aqui, bem longe deles
– um segredo bom e vão, de gosto
gostoso, quase infância,
quase eternidade
na rede
balançando
o ritmo manso
a cozinha pequena
e nós em nossa meninice sorridente
(o sol se punha)
e nos levantamos e, mãos dadas,
fomos passear, sentindo o cheiro de tudo,
de Fevereiro a Janeiro e poderia ser
assim, mas não foi
e nem será
não mais, sabemos
É preciso um tumulto, um estrondo
que destrua tudo, que destrua a todos,
é preciso isso, esse lixo amargo,
desesperador? É preciso,
pois eles nos rejeitaram e o farão sempre
Calarão nossa língua, nossa garganta
que é feita de angústia e de medo
Nos farão bizarros sempre,
para sempre
e que dor perceber isso,
perceber que a nós não é dado o que
mate nossa sede, nossa fome interior
e é por isso – e não só por isso – que
que o que te fere, fere a mim
e fere a todos os outros também –
Nós de bruços,
deitados sob a lua acesa, amarela e branca,
pedindo socorro às estrelas,
acariciando a terra
de sal e areia, como a testa do rapaz ou o mar profundo,
que engole estrelas ao longe lá bem longe
da cidade – que miragem – furta-cor:
(o vento na procissão)
gosto disso
arremesso amoroso um olhar
que traz a força precisa
de um veneno que destrua tudo
todo o resto do que éramos
antes de agora
na saída esperávamos
algo mais que compaixão e desespero
(o barco bêbado na maré) mas sobraram nossos pés
sujos e o gosto do sangue nas mãos
e só