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Feminicídio e heresia
BERNARDO KUSTER
Eis o drama por trás dos anúncios da mídia. Em parceria com o governo brasileiro de
Dilma Rousseff, em abril de 2016, e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Direitos Humanos, a ONU Mulheres soltou mais um documento-base para o
alastramento da confusão: ‘Diretrizes para investigar, processar e julgar com perspectiva
de gênero as mortes violentas de mulheres – feminicídio’, documento que é uma versão
adaptada do Modelo de Protocolo latino-americano para investigar as mortes violentas de
mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio), elaborado pelo Alto Comissariado
de Direitos Humanos em 2014. A ONU montou e o governo nacional adaptou. Adaptou
mal por sinal.
A heresia é patente: violenta o Código Penal brasileiro, art. 121, inciso VI. Desde 9 de
março de 2015, com a Lei n°13.104, o Brasil prevê o feminicídio como circunstância
qualificadora de crime de homicídio, definindo-o como tal quando ocorre “contra
a mulher por razões da condição de sexo feminino” e considera que “há razões de
condição de sexo feminino quando o crime envolve” (I) “violência doméstica e familiar” e
(II) “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Contraditoriamente, o objetivo
declarado do documento das Nações Unidas é “sensibilizar as instituições e a sociedade
sobre sua [feminicídio] ocorrência e permanência na sociedade, combater a
impunidade penal nesses casos, promover os direitos das mulheres e estimular a adoção
de políticas de prevenção à violência baseada no gênero”.
Bem, se o tal Modelo de Protocolo pretende ser uma versão adaptada à realidade
brasileira, o primeiro passo seria construí-lo em consonância direta e em nada dissonante
do ordenamento jurídico brasileiro, neste caso, o Código Penal. A discrepância entre
“gênero”, termo usado pela ONU, “sexo feminino” e “mulher”, utilizados na lei brasileira,
não é sem razão ou por acaso. A coordenadora do grupo de trabalho interinstitucional que
adaptou o documento, Wânia Pasinato, foi coordenadora sobre Acesso à Justiça e
responsável pelo Programa de Enfrentamento à Violência da ONU Mulheres/Brasil, e tem
o perfil ideal desejado pelas Nações Unidas: feminista, pró-Dilma, petista, a favor da
descriminalização do aborto, contra a tal “cultura do estupro” e ávida defensora daquela
Greve Geral de 28 de abril de 2017, que destruiu não somente Brasília, mas um dia
inteiro do trabalhador.
inteiro do trabalhador.
Outra queridinha da ONU, sob cujos auspícios as diretrizes foram adaptadas, é Eleonora
Menicucci, amiga pessoal e vizinha na faculdade da então presidente, Dilma Rousseff.
Menicucci participou da luta armada no governo militar, é uma petista inveterada,
apologista da legalização do aborto e, pasmem, gabou-se em 2004, quando ainda era
ministra, de ter recebido treinamento na Colômbia para realizar abortos sem a ajuda de
médicos por meio do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. Dona Eleonora
comemorou o lançamento do documento. Não sem razão.
A dialética linguística entre a lei brasileira, que usa o termo sexo, e o Modelo de Protocolo
das Nações Unidas, que utiliza gênero, tem o propósito específico de confundir os
operadores do direito. Um dos gênios do mal que compreendeu a necessidade de alterar
lenta e progressivamente a cultura pela linguagem foi Pierre Bourdieu. Ele admitiu
plenamente, em A Economia das Trocas Simbólicas, que “o campo cultural transforma-se
por reestruturações sucessivas e não através de revoluções radicais” [1].
Contudo, a insistência dos hereges não pára por aí. A lei que instaurou o feminicídio,
instrumento reforçador das tão proclamadas diferenças entre homens e mulheres, entra
em conflito não somente com as diretrizes da ONU, mas também com a Lei Maria da
Penha (11.340/2006), principalmente em seu artigo 5°, que assim define a violência
doméstica e familiar contra a mulher: “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que
lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou
patrimonial”.
A tensão lingüística ali intensionada da qual já fiz menção aplica-se ao caso acima, uma
vez que a própria lei Maria da Penha também conflita diretamente com o Código Penal ao
tratar de “ação ou omissão baseada no gênero”, e não no sexo, palavra que está certa e
indubitavelmente atrelada à biologia. Parece truísmo dizer que a confusão da heresia não
tem fim. Em verdade, em verdade vos digo: foi feita para o propósito de não ter fim.
Eis um caso recente da baderna entre sexo e gênero. Recentemente uma mulher – repito
e trepito, MULHER – foi condenada pelo juíz da Vara de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher de São Gonçalo, André Luiz Nicolitt, porque ela, mãe de um homem
transgênero, segundo o magistrado, “agiu de forma ‘machista’ ao internar a filha [homem
transgênero] à força”. Para a mãe, o filho estaria com problemas mentais. Para
fundamentar sua decisão o juiz utilizou-se daquele indefinível e arqui-aplicado princípio da
dignidade humana – o que quer que isso possa significar – e pomposamente citou ainda
as feministas Simone de Beauvoir e Judith Butler.
Observação: Beauvoir, amante de Sartre, ficou conhecida pela frase “ninguém nasce
mulher, torna-se mulher” e Butler é aquela arquiteta do mal que uniu diferentes teóricos
progressistas para criar o que podemos chamar hoje de ideologia de gênero. Foi a última
que incutiu a idéia nas mentes iluminadas de que a questão de gênero deve ser “um
objetivo político”, e “não apenas um pré-requisito metodológico e normativo” (livro
‘Problemas de Gênero’).
O intento, por fim, não é alterar desde cima, através do Congresso Nacional, as leis
brasileiras. É, porém, desde baixo, a partir das crescentes jurisprudências conflitantes,
provocar instabilidade na aplicação das mesmas forçando, paulatinamente, a Casa de
Leis nacional a atualizar sua legislação como se tivesse havido uma mudança social
espontânea, e não uma estratégia calculada para tal fim. O caos jurídico premeditado, a
total contradição entre as pequenas decisões locais, a incompreensão por parte da
população a respeito das leis que a constrangem e, por tudo isto, a constante
necessidade de reformar e remendar o ordenamento jurídico servem a um único
propósito: a destruição da ordem presente, em nome de uma nova, desconhecida, incerta
e incontrolável situação.
Percebem a heresia, a arte de selecionar e enfatizar? Por que não criar um Modelo de
Protocolo que oriente a investigação, punição e apuração dos assassinatos contra este
grupo que compõe praticamente toda a estatística? Por que elevar justamente apenas 8%
como se fossem aqueles noventa e dois? Como enquadrar alguém vítima de assassinato
nestas estatísticas sem colher a última declaração do defunto sobre si mesmo?
Conversando sobre esses problemas com um dileto amigo e promotor da justiça, fui
alertado de que, constitucionalmente, o feminicídio deve ser julgado por júri popular,
constituído de leigos. Ao que me parece, a única possiblidade de haver sensatez num
tribunal é submeter as contradições lingüísticas à realidade tal como percebida pelo povo,
até agora não imiscuído na heresia da selecionar e enfatizar. Populares são muito mais
sensíveis aos sentidos que operadores do direito obcecados por palavras escritas como
se estas cumprissem o desejo dos gnósticos e moldassem o mundo.
A heresia não parece ter fim. E não terá fim. O trabalho de desmantelá-las é
desproporcionalmente mais extenso e chato, pois a mentira é sempre curta e rápida, já a
verdade é detalhada e minuciosa. Basta uma manchete dizendo Brasil registra oito casos
de feminicídio por dia, diz Ministério Público (G1, 23/08/17) para a confusão se alastrar e
os 92% dos homens mortos serem esquecidos pelo simples fato de não serem
mencionados. Não é mentira, mas trata-se omissão, seleção e ênfase desproporcionada.
Claro, poderíamos chamar todos esses jornalistas de hereges contanto que a ortodoxia
do jornalismo fosse a busca e apresentação da verdade. Não podemos, porém,
enquadrá-los como hereges, porque a mentira, há décadas, é a ortodoxia do jornalismo
enquadrá-los como hereges, porque a mentira, há décadas, é a ortodoxia do jornalismo
brasileiro.
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[1] A Economia das Trocas Simbólicas, tradução Sergio Miceli et alli. 8ª ed. São Paulo :
Perspectiva, 2015, p.208.
[2] Language, Thought and Reality, a review of general semantics, 9, n°3, p. 167-8.
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Carolina H Rauen
Ótimo texto.
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Juliano Muniz
Parabéns Bernardo! ! Excelente explanação !
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