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QUAL É O SEU PROBLEMA?

André Ambrosio Abramczuk

01.06.2005

1. Introdução
A finalidade deste texto – cuja referência é um texto mais amplo, em gestação sem
prazo definido para chegar a termo – é apresentar às alunas e alunos da disciplina de
Metodologia de Pesquisa algumas ideias que lhes estimulem a reflexão e contribuam para
a qualidade da elaboração de suas dissertações de mestrado e teses de doutoramento.
O raciocínio que aqui se desenvolve fundamenta-se na ideia de que o conhecimento
resulta da busca de soluções para problemas. Por isto, inicialmente apresenta-se um
conceito de problema e uma ideia sobre as origens dos problemas; em seguida,
discriminam-se os problemas quanto à natureza, posicionando dentro dessa
discriminação os problemas científicos; após apontar algumas diferenças entre problemas
das ciências naturais e problemas das ciências sociais, encerra-se o texto com
comentários sobre o método científico.
Como ponto de vista incompleto sobre um assunto, é natural que este texto
contenha falhas. Em relação a estas, contudo, vale relembrar o que Charles Darwin
deixou escrito no final do livro A Estirpe do Homem: “Muitos dos pontos de vista
apresentados são bastante especulativos, e alguns sem dúvida mostrar-se-ão falsos; mas
em cada caso dei as razões que conduziram a uma opinião de preferência a outra. (...)
Fatos falsos são extremamente danosos ao progresso da Ciência, pois amiúde resistem
durante muito tempo; mas opiniões falsas, se apoiadas por alguma evidência, causam
pouco mal, pois todos experimentam um prazer salutar em provar sua falsidade; e feito
isto, mais um caminho na direção do erro é fechado e ao mesmo tempo é aberta a
estrada para a verdade.”1
2. Problema: etimologia e conceitos
A palavra ‘problema’ provém do grego ó, idioma no qual tem o significado
original de ato ou efeito de lançar em frente, mas vários sentidos figurados: muro protetor,
obstáculo, desculpa. É substantivo derivado do verbo proballein (pro = adiante, em frente;
ballein = lançar, atirar). O verbo ballein participa da formação de diaballein (dia: através de
+ ballein: lançar, atirar), que, entre outras coisas, também significa desacreditar, caluniar,

1
Apud DOBZHANSKY, Th. G. O homem em evolução [Mankind evolving, 1961]. Trad. Josef
Manasterski. São Paulo: Polígono; EDUSP, 1968.
difamar. Desse verbo deriva-se diabollos (= que desune, que calunia, que acusa) e daí a
palavra portuguesa diabo.2
Assim como entre os gregos, os significados com que hoje se usa a palavra
problema em qualquer idioma são inúmeros. Essa multiplicidade de significados
aparentemente não se constitui em dificuldade na linguagem coloquial; é, contudo,
obstáculo para a estruturação de um conceito de problema. Para fazer ideia das
dificuldades que o cortejo de significados que acompanha a palavra ‘problema’ levanta no
caminho da busca por um conceito de problema, basta consultar alguns dicionários
especializados:
“1. Em um sentido genérico, dificuldade, tarefa prática ou teórica de difícil solução.
No sentido originário na matemática, trata-se de uma questão envolvendo relações entre
elementos matemáticos como números, figuras etc. P. ex.: traçar um círculo por três
pontos que não estão em linha reta. 2. Em um sentido mais amplo, filosófico e, em geral,
teórico, toda questão crítica, de natureza especulativa ou prática, examinando o
fundamento, a justificativa e o valor de um determinado tipo de conhecimento em forma
de ação. Ex.: o problema da indução, o problema do livre-arbítrio etc.”3
“1. Questão ou situação não-solucionada. 2. Questão ou situação que é formulada e
proposta de forma a se tornar mais aberta para uma solução”.4
“Em geral, qualquer situação que inclua a possibilidade de uma alternativa. O
p[roblema] não tem necessariamente caráter subjetivo, não é redutível à dúvida, embora
em certo sentido a dúvida também seja um problema. Trata-se mais do caráter de uma
situação que não tem um significado único ou que inclui alternativas de qualquer espécie.
O p[roblema] é a declaração de uma situação desse gênero. A noção de p[roblema] foi
elaborada pela matemática antiga, que a distinguiu da noção de teorema.5 Por problema
entendeu-se uma proposição que parte de certas condições conhecidas para buscar
alguma coisa desconhecida. (...) ...no pensamento moderno a noção de p[roblema] foi e
continua sendo das mais negligenciadas. Embora falem o tempo todo em p[roblema] e
2
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa.
2a. ed., 7a. impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
3
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2ª ed., 1993.
4
GILES, Thomas Ransom. Dicionário de Filosofia: termos e filósofos. São Paulo: EPU, 1993.
5
Teorema é qualquer proposição demonstrável. Ingressou na linguagem matemática já na
Antigüidade, mas conservou, fora da linguagem matemática, significado de proposição não
primitiva, derivada ou derivável de outras proposições.
achem que é sua função solucionar certo número deles, especialmente dos definidos
como “máximos”, os filósofos não se preocuparam muito em analisar a noção
correspondente. Na maioria das vezes o p[roblema] foi considerado como condição ou
situação subjetiva e confundido com a dúvida. (...) Só recentemente foi reconhecido o
caráter de indeterminação objetiva, que define o p[roblema]: isto aconteceu na Lógica
(1939) de Dewey, para quem o p[roblema] é a ‘propriedade lógica primária’. O p[roblema]
é a situação que constitui o ponto de partida de qualquer indagação, ou seja, a situação
indeterminada”.6
Se já é difícil estruturar um conceito de problema, é igualmente difícil estruturar o
conceito correlato de solução do problema. Essas dificuldades não devem, contudo,
impedir que se prossiga na busca de um meio de superá-las. Enquanto isto não ocorre, o
procedimento mais simples – e provavelmente mais correto – é admitir que qualquer
pessoa dotada de discernimento tem um conceito satisfatório de problema e outro de
solução de problema, suficientes para continuar pensando, refletindo e agindo.
3. As origens dos problemas
Uma pessoa toma consciência de que nada sabe sobre algo que lhe chama a
atenção e decide buscar meios para dissipar essa ignorância. Outra pessoa, confrontada
com uma situação que lhe inibe os pensamentos ou ações habituais, tem dúvidas sobre o
que fazer. Um estudante procura um lugar para morar e não sabe como escolher uma
dentre algumas alternativas que se lhe oferecem. Na sala de aula um aluno pergunta ao
professor qual ligação entre a concepção de materialismo dialético do filósofo russo
Plekhanov (1856-1918) e a concepção de materialismo histórico da filosofia marxista. Um
aluno de pós-graduação enfrenta dificuldades com a elaboração de sua dissertação ou
tese e tem dúvidas sobre como discuti-las com o orientador.7
Todo problema tem origem numa dúvida real, no reconhecimento consciente de um
não saber, em saber que não se sabe algo.8 Confrontada com esse reconhecimento, a

6
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia [Dizionario di Filosofia, 1971]. Trad. Alfredo
Bosi (coord.). São Paulo: Martins Fontes, 2003.
7
O aluno de pós-graduação pode superar grande parte destas dificuldades por meio de consultar
referências como LEVINE, S. Joseph. Writing and presenting your thesis or dissertation (na
INTERNET) e MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do
trabalho científico. 6a. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
8
Para detalhes sobre esta afirmação, ver BACHA, Maria de Lourdes. A indução de Aristóteles a
Peirce. São Paulo: Legnar, 2002.
pessoa é levada a um estado de inquietude, insegurança, desconforto.9 Isto torna válido o
emprego da palavra problema na linguagem vulgar como sinônimo de aborrecimento,
ameaça, contratempo, dificuldade, preocupação, tribulação etc.10
Boa parte do que as pessoas denominam problemas são dúvidas ou incertezas que
podem ser dissipadas por afirmações ou ações definitivas, que determinam um estado
inatacável pela dúvida. Algumas dúvidas não têm, contudo, como ser definitivamente
dissipadas porque, com a evolução do capital social de conhecimentos, acaba-se por
descobrir que em relação a elas não é possível fazer afirmações nem definir ações que
determinem um estado definitivamente inatacável pela dúvida.
O processo de refinamento da capacidade humana de resolver problemas leva à
estruturação da cultura da sociedade humana. É indubitável, portanto, que “todo elemento
cultural representa a solução aprendida de um problema”.11
“Como processo de acumulação de experiências, a cultura é um processo de
conversão de imagens e lembranças em ideias, a princípio coladas à realidade sensível,
depois refinadas e generalizadas em conceitos abstratos. Essa generalização e
refinamento é que leva o mundo da cultura a se destacar aos poucos do mundo material e
tomar contornos definidos no pensamento humano”.12
No estágio em que a cultura se destaca do mundo material e toma contornos
definidos no pensamento humano, torna-se possível submeter à análise crítica tanto o
conhecimento quanto as maneiras por que ele é produzido, organizado e utilizado. Nessa
análise, o procedimento de elaboração de afirmações destinadas a dissipar dúvidas – o

9
Desconfortos que não resultam de uma dúvida real não constituem problemas. Por exemplo, o
transeunte incauto que, passando próximo ao portão de uma casa, sofre um sobressalto, tropeça,
cai e se fere ao se assustar com os latidos de um cão que se lança contra o portão, é vítima de uma
conjunção de eventos decorrente de uma reação instintiva que resulta em desconforto, mas que
não levanta nenhuma dúvida real.
10
Mesmo que se aceite a ideia de que um problema possa representar desafio ou oportunidade para
alguém, ainda assim este alguém será levado a um estado de desconforto ao aceitar o desafio ou
agarrar a oportunidade. É óbvio que o estado de espírito de quem busca deliberadamente enfrentar
um desafio é diferente do estado de espírito de quem é coagido a enfrentar uma situação que
percebe como ameaça.
11
SCHEIN, Edgar H. Coming to a new awareness of organizational culture. Sloan Management
Review, vol. 25, n. 2, 1984.
12
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
método de produção de conhecimentos – torna-se ele mesmo objeto de dúvida. Esta não
é, contudo, uma dúvida real, mas metodológica.
O objeto da dúvida metodológica não é o conhecimento cristalizado em afirmações
destinadas a determinar um estado de conhecimento inatacável pela dúvida, mas o
método de produção desse conhecimento, ou seja, os critérios que validam o
procedimento de elaboração de afirmações que buscam determinar o estado de
conhecimento inatacável pela dúvida. A finalidade da dúvida metodológica é verificar se o
método de produção do conhecimento – o procedimento empregado para conferir a uma
afirmação a condição de determinante de um estado de conhecimento inatacável pela
dúvida – é ele mesmo inatacável pela dúvida.13
Isto permite afirmar que problema é toda questão que se propõe para análise com a
finalidade de lhe determinar uma resposta. A questão pode ser expressão de dúvida
subjetiva ou objetiva, real ou metodológica; isto é determinado pela natureza do problema.
4. Natureza dos problemas
Os problemas podem ser impostos, descobertos ou criados.14 Nos primórdios da
existência humana, certamente todos os problemas eram problemas impostos. Somente
num estágio mais avançado da cultura é que o ser humano começou a descobrir e a criar
problemas.
Partindo do conceito de problema como questão que se propõe para análise com a
finalidade de lhe determinar uma resposta, verifica-se que num problema estão envolvidos
quatro elementos:
a) As variáveis relevantes que constituem a questão.
b) As interdependências das variáveis relevantes.
c) O método de elaboração da resposta.
d) O método de verificação da resposta.

13
Caracterizar uma afirmação como determinante de um estado de conhecimento inatacável pela
dúvida não é a mesma coisa que imunizá-la contra a crítica. Uma afirmação pode ser
determinante de um estado de conhecimento inatacável pela dúvida num estágio prevalecente do
conhecimento humano, mas num estágio posterior pode ceder lugar a outra afirmação igualmente
inatacável pela dúvida. Uma afirmação imunizada contra a crítica não se destina a determinar um
estado de conhecimento, mas a evitar que uma crença seja contestada.
14
DAVIDSON, Janet E.; STERNBERG, Robert J. The psychology of problem solving. Cambridge
UK: Cambridge University Press, 2003.
A ideia de que num problema estão envolvidos estes – e somente estes – elementos
é conseqüência do método analítico exposto por René Descartes (1596-1650) em sua
obra Discurso sobre o Método.
O caráter indiscutível desses quatro elementos ou o caráter discutível de pelo
menos um deles numa questão discrimina os problemas em dois grupos: problemas
completos e problemas incompletos.
4.1. Problemas completos
Um problema é completo quando todos os quatro elementos envolvidos existem e
são conhecidos. Em outros termos, problema completo é todo problema que, subdividido
em questões subsidiárias pertinentes, tem resposta definida para cada uma delas.
Um problema pode ser completo do ponto de vista lógico-formal ou do ponto de
vista pragmático.
Problemas completos do ponto de vista lógico-formal são problemas descobertos ou
criados.
Um problema é completo do ponto de vista lógico-formal quando dado corpo de
conhecimentos já contém a resposta para a questão, que poderia ser deduzida desse
corpo no momento mesmo em que a questão é formulada. Problemas completos do ponto
de vista lógico-formal são objetos de interesse da Lógica e da Matemática. Os problemas
de interesse da Lógica são resolvidos de acordo com o método silogístico; os problemas
de interesse da Matemática são resolvidos de acordo com o método axiomático. Os
teoremas matemáticos são exemplos de soluções de problemas obtidas por meio desse
método. Por isto é que tentar fazer um aluno compreender um teorema matemático a
partir de seu enunciado e demonstrar que esse enunciado é sempre verdadeiro implica
percorrer na contramão o caminho que historicamente deu origem ao teorema.
Os problemas completos do ponto de vista pragmático são problemas impostos.
Os problemas pragmáticos são obstáculos que contrariam uma aspiração humana
ao bem-estar, individual ou coletivo, no presente ou no futuro. Problemas pragmáticos
dizem respeito ao funcionamento eficiente de sistemas e processos que determinam a
qualidade de vida material e institucional das pessoas e da sociedade. Dito de outro
modo, um problema pragmático é uma perturbação real ou potencial do bem-estar do
indivíduo ou da sociedade, não podendo por isto ficar sem solução.
Existem três espécies de problemas pragmáticos: problemas de restauração, de
inovação e de prevenção (ou precaução). O estudo científico dos procedimentos por que
se busca dar solução eficiente a esses problemas é levado avante num campo
especializado denominado Teoria de Decisão.
Como todo problema pragmático é considerado completo somente porque nunca
pode ficar sem solução – seja ela qual for – soluções bem sucedidas de alguns tipos
especiais de tais problemas foram sendo transmitidas de geração a geração. No decurso
da história humana, essas soluções bem sucedidas acabaram por assumir um lugar no
conjunto de paradigmas culturais das diferentes civilizações. “Todo elemento cultural
representa a solução aprendida de um problema”.15
Os paradigmas culturais são objetos de interesse da Antropologia e outros ramos
das ciências sociais.
4.2. Problemas incompletos
Todos os problemas incompletos são problemas descobertos ou criados. Ao que
tudo indica, a descoberta e criação de um problema dependem das condições sociais
vigentes na época e no lugar em que ele surge.16
Problema incompleto é todo problema em cuja estruturação um conjunto inicial de
elementos envolvidos pode ser substituído por outro conjunto de elementos pertinentes,
com a finalidade de refinar e generalizar a resposta à questão. No campo dos problemas
incompletos, “chamar uma resposta correta a uma questão dada de solução de um
problema não vai muito sem ambigüidades. Pode significar tanto que a resposta, se
correta, é a solução, ou que a solução consiste no procedimento pelo qual a correção da
resposta é demonstrada. A última interpretação é preferível numa análise lógica das
regras de procedimento, porque se refere a critérios de correção. É por isso mais
apropriado chamar de solução do problema à cadeia de passos que levam da situação
inicial à resposta. Dizemos solução, e não ‘a’ solução, pois um problema pode ter várias
soluções”.17
Problemas incompletos nunca têm solução definitiva. A resposta a uma questão sob
um conjunto inicial de elementos envolvidos poderá não ser a mesma sob outro conjunto.
Isto acontece, não necessariamente porque o conjunto inicial de elementos envolvidos
não tenha sido adequadamente estabelecido, mas geralmente porque uma resposta
inicial suscita novas questões, as respostas para estas suscitam novas questões e as
respostas para estas podem levar à reformulação das concepções que nortearam a
estruturação do conjunto de elementos envolvidos na questão inicial. A busca de solução
para problemas incompletos é, portanto, tarefa virtualmente infindável. Isto não deve ser,
15
SCHEIN, Edgar H. Coming to a new awareness of organizational culture. Sloan Management
Review, vol. 25, n. 2, 1984.
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
16

17
KAUFMANN, p. 91.
contudo, motivo de frustração, pois “o homem não começaria a procurar uma coisa que
ignorasse totalmente ou considerasse absolutamente inatingível. Só a previsão de poder
chegar a uma resposta é que consegue induzi-lo a dar o primeiro passo. De fato, assim
sucede na pesquisa científica. Quando o cientista, depois de ter uma intuição, lança-se à
procura da explicação lógica e empírica de um fenômeno, fá-lo porque tem a esperança,
desde o início, de encontrar uma resposta, e não se dá por vencido com os insucessos.
Nem considera inútil a intuição inicial, só porque não alcançou seu objetivo; dirá antes, e
justamente, que não encontrou ainda a resposta adequada”.18
Pertencem ao domínio dos problemas incompletos os problemas metafísicos,
filosóficos e científicos.
4.2.1. Problemas metafísicos
O termo ‘metafísica’ foi cunhado por Andrônico de Rodes, ao compilar e organizar
por volta de 60 a.C. as obras de Aristóteles de Estagira (que viveu de 384 a 322 a.C.).
Andrônico deu o título de ‘metafísica’ a um conjunto de textos aristotélicos que se seguiam
ao tratado da Física – em grego, ta meta ta physiká – significando literalmente ‘após a
Física’. Mais tarde o termo passou a significar, devido à sua temática, ‘aquilo que está
além da Física, que a transcende’. Na tradição escolástica a Metafísica foi considerada a
parte central da Filosofia; hoje ela não desfruta essa posição privilegiada por causa, em
grande parte, da forte influência do pensamento desenvolvido por Immanuel Kant (1724-
1804).19
Problemas metafísicos são constituídos por questões para as quais não é possível
encontrar resposta no domínio do conhecimento acessível à razão humana, mas das
quais o ser humano não pode fugir após havê-las levantado.
Embora o domínio da Metafísica seja constituído por questões que não podem ser
respondidas, mas que não podem ser evitadas, isto não significa que a Metafísica deva
ser menosprezada. Muitos campos do conhecimento humano se desenvolveram a partir
de crenças metafísicas, novas questões metafísicas foram levantadas pelas
conseqüências lógicas de soluções de problemas nestes campos do conhecimento
humano.20
JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Fides et Ratio. São Paulo: Paulus, 1998.
18

19
Sobre o assunto, consultar ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia [Dizionario di
Filosofia, 1971]. Trad. Alfredo Bosi (coord.). São Paulo: Martins Fontes, 2003.
20
Uma distinção entre problemas metafísicos e problemas científicos é apresentada em POPPER,
Karl R. Conjecturas e refutações Conjectures and refutations: the growth of scientific
knowledge, 1972. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Editora Universidade de Brasília, s/d.
Algumas questões metafísicas são questões fundamentais, uma vez que se referem
primordialmente à condição humana e à busca que o ser humano faz de seu lugar e
destino no universo. São indagações que ocorrem certamente a todos os seres humanos
que se dedicam a pensar sobre o transcendental e que, pela crescente complexidade da
cultura que tanto as suscita quanto delas decorre, adquirem importância
progressivamente maior para o próprio desenvolvimento da cultura. Isto acontece porque,
apesar de sempre ser possível dar resposta para qualquer questão metafísica no domínio
puro da Metafísica21 e não ser possível verificar-lhe a verdade ou falsidade no domínio do
conhecimento acessível à razão humana, mesmo assim é possível submetê-la a uma
análise crítica e, a partir de supor diferentes respostas para ela, deduzir dessas respostas
algumas conseqüências lógicas de interesse para outros domínios do conhecimento. Em
outras palavras, mesmo não tendo resposta no domínio do pensamento racional, uma
questão metafísica pode suscitar novas questões, cuja análise resulta em novas questões
cujas respostas encerram conseqüências lógicas com reflexos nas crenças, normas e
valores que pautam a vida das pessoas, individualmente e em sociedade.
4.2.2. Problemas filosóficos
Atribui-se a Pitágoras de Samos (que viveu no séc. VI a.C.) a distinção entre sophia
– o saber – e philosophia (‘amor ao saber’) – a busca do saber. Desde Pitágoras faz-se
distinção entre ciência – saber específico, conhecimento sobre um domínio da realidade –
e a filosofia – saber geral, abstrato, reflexivo, destinado a buscar os princípios que tornam
possível o próprio saber.22
Para Platão, Filosofia é o uso do saber em proveito do homem. No Eutídemo, Platão
observa que de nada serviria possuir a capacidade de transformar pedras em ouro a
quem não soubesse utilizar o ouro, de nada serviria uma ciência que tornasse imortal a
quem não soubesse utilizar a imortalidade e assim por diante. É necessária, portanto,
uma ciência em que coincidam fazer e saber utilizar o que é feito, e essa ciência é a
Filosofia (Eutídemo, 288 e 290 d).23

21
No domínio puro da Metafísica, toda resposta para uma questão admitida como verdadeira não
tem como ser submetida a teste. Aceitá-la no domínio da vida prática é, portanto, uma questão de
fé.
22
JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2ª ed., 1993
23
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia [Dizionario di Filosofia, 1971]. Trad. Alfredo
Bosi (coord.). São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Desde Platão os filósofos têm formulado diferentes conceitos de Filosofia e atribuído
a ela o desempenho de diferentes papéis. Considerem-se, por exemplo, as seguintes
afirmações:
1) “A Filosofia não é uma ciência, mas um modo de colocar em questão os
objetos criados pelo espírito, isolados num ato de intuição – não de seleção de objetos
que aí estejam à espera de um tratamento adequado, mas de invenção de objetos pelo
pensamento – e a projeção existencial dessas invenções no plano de nossas
importâncias e urgências”.24
2) “A Filosofia não é uma doutrina, mas uma atividade, cuja finalidade é o
esclarecimento lógico dos pensamentos”.25
Posto isto, que questões podem ser classificadas como problemas filosóficos?
“Paradoxal, mas importantemente, esta é uma questão que tem agitado os filósofos
desde a Antigüidade e que não tem recebido resposta totalmente conclusiva. A
importância desse fato é que qualquer um que perceba por que isto tem ocorrido deverá
em grande parte entender o que é um problema filosófico; e o paradoxo é que isto é
perfeitamente compatível com o fato de ser muito difícil dizer exatamente o que ele é”.26
Todos os problemas podem ser discriminados em problemas relativos a fatos
(problemas de primeira ordem) e problemas relativos a conceitos (problemas de segunda
ordem);27 são os problemas de segunda ordem que constituem as questões filosóficas;
nestas estão envolvidos conceitos e a consistência de seu uso num campo do
conhecimento, não como mero interesse por palavras, mas como interesse pelos critérios
em virtude dos quais as palavras são correta ou incorretamente usadas naquele campo
do conhecimento. O que está envolvido numa questão filosófica, portanto, é o registro
acurado das correlações verbais existentes e da permanência de sua consistência no uso
em dado campo do conhecimento. Questões filosóficas não são questões do campo do
conhecimento, mas sobre o campo do conhecimento.28
Isto significa que “a Filosofia não resulta em ‘proposições filosóficas’, mas em tornar
claras as proposições. A Filosofia deve tomar os pensamentos que, por assim dizer, são

24
GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim.12ª ed. Curitiba: Criar Edições, 2001.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus, proposição 4.112.
25

26
RYAN, Alan. Filosofia das ciências sociais [The philosophy of the social sciences, 1970]. Trad.
Alberto Oliva e Luiz Alberto Cerqueira Batista. Rio de Janeiro; Francisco Alves, 1977.
27
RYAN, p. 14.
28
RYAN, p. 20.
vagos e obscuros e torná-los claros e bem delimitados”.29 Desse modo, “o trabalho do
filósofo é um acumular recordações para uma finalidade determinada”.30 Essa finalidade é
assegurar a correta elaboração de afirmações que ainda estão por vir. Isto não significa
determinar as afirmações que devem ser feitas no futuro, mas definir os critérios em
virtude dos quais as afirmações que vierem a ser feitas estejam expurgadas de
dubiedades e de ambigüidades.
4.2.3. Problemas científicos
‘Científico’ é adjetivo derivado de ciência, do latim scientia, que significa
conhecimento. A palavra grega equivalente à latina scientia é epistéme (). Há
outro termo grego que também significa conhecimento, gnósis () – presente nas
palavras ‘diagnóstico’, prognóstico’, ‘agnóstico’. 31
Os dicionários especializados apresentam variadas noções de ciência. Um informa
que ciência é “conhecimento que inclua, em qualquer forma ou medida, uma garantia da
própria validade”.32 De outro se aprende que ciência é “a modalidade de saber constituída
de um conjunto de aquisições intelectuais que tem por finalidade propor uma explicação
racional e objetiva da realidade”.33 Certamente outros dicionários apresentarão outras
noções de ciência.
Apesar da variedade de noções de ciência que os dicionários especializados
oferecem, verifica-se que todos concordam num ponto: questões científicas
compreendem questões relativas à realidade; o objetivo da ciência é, então, explicar essa
realidade como ela é.34
29
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus, proposição 4.112.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas, proposição 127.
30

31
No idioma português, a palavra ‘ciência’ significa ‘conhecimento’ em expressões como ‘tomar
ciência dos fatos’, ‘dar ciência dos acontecimentos a alguém’ etc. O conhecimento, nestes casos,
refere-se ao ato ou efeito de ficar sabendo algo como informação ou notícia, mais adequadamente
expresso por dizer ‘eu fiquei sabendo disso’, ‘ele sabe disso’ etc. Mas o objeto deste ‘saber disso’
como informação ou notícia não é conhecimento científico. As mesmas observações valem para
diferenciar epistéme de gnósis.
32
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia [Dizionario di Filosofia, 1971]. Trad. Alfredo
Bosi (coord.). São Paulo: Martins Fontes, 2003.
33
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2ª ed., 1993.
34
Uma análise desta ‘realidade como ela é’ é apresentada no item 4 (Remarks on the term “real”) do
capítulo P1 do livro de POPPER, Karl R.; ECCLES, John C. The self and its brain. Berlin:
As questões científicas – os problemas científicos – surgem quando algum aspecto
da realidade atrai a atenção consciente do ser humano, isto é, desencadeia um processo
de apropriação crítica desse aspecto pela mente humana, processo este que consiste não
em mera percepção involuntária do objeto pelos sentidos de que o corpo humano é
dotado, mas em percepção deliberada, voluntária, com o propósito de estruturar uma
ideia daquilo que é percebido (elaborar uma representação mental da coisa percebida) e
de fazer inferências lógicas sobre a realidade a partir dessa ideia.
Os problemas científicos não têm origem em meras percepções sensoriais passivas
– pois disto são capazes até alguns dos mais simples organismos vivos – mas em
indagações que a mente humana é levada a fazer sobre a realidade percebida.
Inicialmente colados ao questionamento da experiência adquirida por procedimentos
rudimentares de tentativa e erro no decurso das ações destinadas a assegurar a
sobrevivência individual e coletiva, com o avanço da cultura os problemas científicos
passam a ser objetos de um corpo de conhecimentos, isto é, da ordenação dos múltiplos
elementos da realidade integrados à cultura e da atribuição de um significado para essa
ordenação de acordo com um sistema de economia de pensamento voltado para a busca
de soluções para eles. Essas soluções levam, de um lado, ao aprimoramento da
qualidade das soluções dos problemas pragmáticos que os suscitaram e, de outro, a
novas e diferentes concepções da realidade e à descoberta de novas e diferentes
maneiras de intervenção nessa realidade com vistas a modificá-la de acordo com a
vontade humana.
O propósito da solução de problemas científicos é fazer não somente com que a
solução tenha correspondência com fatos que possam se observar na realidade, mas
principalmente expurgar de crenças metafísicas e de concepções errôneas a maneira do
ser humano de perceber e compreender essa realidade.
A busca de solução de um problema científico inicia-se com um modelo do
problema.
Modelo é a representação simplificada da realidade, com a finalidade de
compreender algum aspecto dessa realidade visto como relevante. Como representações
simplificadas da realidade, “os modelos devem ser tomados a sério, mas não literalmente.
Eles oferecem informações valiosas sobre a realidade daquilo que por várias razões
escapa a uma descrição ou análise exatas, mas eles deturpam a realidade que está
sendo considerada se forem igualados a ela à maneira de uma fotografia ou imagem”.35

Springer, 1981.
Há vários tipos de modelos, todos úteis para o campo dos problemas científicos. O
mais requintado – e essencial para a estruturação de teorias científicas – é o modelo
proposicional. Este é uma asserção sobre a realidade na forma de proposição sintética,
isto é, afirmação cuja verdade ou falsidade deve ser verificada por meio de dados
experimentais.36 O modelo proposicional é, pois, uma suposição.37 Como o termo
suposição tem conotações negativas, no campo científico prefere-se empregar o
correspondente termo grego, hipótese.
“Hipótese é uma afirmação mais ou menos precisa que emitimos tendo em vista
deduzir, eventualmente, outras proposições. Em outras palavras, (...) explicação
provisória de um fenômeno, devendo ser provada pela experimentação. (...) a
epistemologia contemporânea estabelece que a hipótese não é concluída da observação,

mas inventada”. 38, 39


Não é de grande valia a hipótese que se limite a explicar satisfatoriamente nada
mais do que somente um conjunto de fatos conhecidos já explicados por uma hipótese
anterior; nesse caso, aderir a uma ou a outra das hipóteses será questão de preferência
pessoal dos cientistas. Por outro lado, uma hipótese que leve à descoberta de fatos novos
que não possam ser explicados (ou que nem poderiam ter sido previstos) por uma
hipótese concorrente tem mais valia e pode dar origem a uma nova teoria.40

35
BRACKEN, Joseph A. A matriz divina: a criatividade como elo entre o Oriente e o Ocidente.
São Paulo: Paulus, 1998.
36
Diferentemente da proposição analítica, cuja verdade ou falsidade decorre do significado dos
termos envolvidos. As proposições da Lógica e da Matemática são proposições analíticas.
37
Um elemento auxiliar dos modelos proposicionais são as equações matemáticas. Convém ter em
mente, contudo, que “na vida, não é da proposição matemática que precisamos, usamo-la apenas
para inferir, de proposições que não pertencem à matemática, outras proposições que igualmente
não pertencem à matemática” (WITTGENSTEIN, Tractatus, proposição 6.211).
38
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2ª ed., 1993. Adicionalmente, consultar o verbete ‘modelo’.
39
Em carta endereçada a Popper em 11 de novembro de 1935, reproduzida em POPPER (1980a),
Einstein já escrevera que “uma teoria não pode ser fabricada com os dados da observação, mas
somente ser inventada”.
40
Teoria é um conjunto de hipóteses sistematicamente organizadas, relativas a uma realidade
determinada. Por exemplo, a teoria da gravitação universal de Newton, a teoria da relatividade de
Einstein, a teoria das organizações de Mintzberg, a teoria da firma de Coase etc.
Mas, não há teorias definitivas no campo científico; mais cedo ou mais tarde teorias
consideradas completas e perfeitas se confrontam com violações. Diante dessas
violações, os cientistas têm duas alternativas, refinar a teoria ou substituí-la por uma
teoria nova.
O refinamento de uma teoria tem lugar quando a análise das violações permite
eliminá-las por meio de adequadas correções das interdependências das variáveis ou
pela substituição de um conjunto de variáveis relevantes por outro, inclusive podendo
resultar disto a descoberta de fatos da realidade que de outro modo permaneceriam
insuspeitados. O refinamento de uma teoria pode exigir a formulação de teorias
complementares que não contestam, contudo, a teoria fundamental. Todo trabalho de
investigação voltado ao refinamento da teoria continua ocorrendo no domínio da ciência
normal, no domínio da teoria prevalecente.41
Embora tenha seus méritos, o refinamento de uma teoria no domínio da ciência
normal assegura tão somente um acúmulo de fatos que corroboram a teoria à luz da qual
são buscados, num processo que leva ao crescimento populacional de fatos e de
conceitos dentro das fronteiras do conhecimento demarcadas pela teoria. Esse
refinamento da teoria mais cedo ou mais tarde atinge um estágio em que o trabalho de
pesquisa não contribui para a descoberta de fatos radicalmente novos. Nesse estágio, a
teoria torna-se estéril para a produção de novo conhecimento científico.
A segunda alternativa – substituir uma teoria antiga por uma teoria nova – é
prenúncio de uma revolução científica, porque a substituição de uma teoria antiga por
uma teoria nova impõe a necessidade de reformular as concepções vigentes no campo do
conhecimento científico inteiro, tanto mais profundamente quanto mais radical for a nova
teoria.
A revolução científica tem lugar quando uma teoria consagrada não tem condições
de assimilar fatos novos por refinamento, em geral porque tentativas de refinamento da
teoria antiga para assimilar fatos novos levam a paradoxos. De modo geral, a revolução
científica se completa quando a teoria nova consegue superar os paradoxos decorrentes
da teoria antiga e assimilar os fatos do domínio da teoria antiga por meio de procedimento
mais simples, pelo uso de menor número de variáveis relevantes e em geral dispensando
todas as teorias complementares que sustentavam a teoria antiga.
A revolução científica que deu origem à ciência moderna – revolução copernicana
para uns, copernicano-galileana ou simplesmente galileana para outros – teve início no
41
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas [The structure of scientific
revolutions, 1970]. São Paulo: Perspectiva, 1975.
século XVII, com os trabalhos de Galileu Galilei (1564-1642) e de Johannes Kepler (1571-
1630). Os trabalhos de ambos deram a Isaac Newton (1642-1727) valiosos subsídios para
elaborar uma formalização matemática da Mecânica e uma teoria da gravitação universal.
Os inegáveis êxitos do formalismo newtoniano provocaram profundas mudanças
nas concepções sobre a natureza e o universo, levando inclusive muitos pensadores a
afirmar que o método das ciências naturais deveria ser visto como o único método de se
obter conhecimento indiscutivelmente verdadeiro, devendo ser adotado em todos os
ramos do saber.42 Hoje nenhum cientista concorda com essa ideia.
Os problemas constituintes da realidade de que trata a ciência dividem-se em
problemas naturais e problemas humanos.
4.2.3.1. Problemas naturais
‘Natureza’ é palavra originária do latim natura, derivada de natus, particípio passado
de verbo latino nasci, nascer. A palavra grega correspondente à latina natura é physis,
derivada do verbo grego phyein, nascer, brotar, crescer.
Um dicionário informa que o termo ‘natureza’ designa tudo o que existe
independentemente das atividades humanas;43 outro dicionário informa que o termo pode
ser empregado para designar aquilo que ocorre sem a intervenção do ser humano;44 um
terceiro informa que o termo designa “o mundo físico, como o conjunto dos reinos mineral,
vegetal e animal, considerado como um todo submetido a leis, as ‘leis naturais’ (em
oposição a leis morais e a leis políticas)”.45
A busca racional de solução para os problemas naturais – em contraposição a
concepções mítico-religiosas – teve início com os filósofos pré-socráticos, sendo o
primeiro deles Tales de Mileto.46
Uma peculiaridade dos problemas naturais é que a questão suscitada determina
exatamente o objeto da resposta e qualquer resposta que se obtenha não altera o objeto

42
Para detalhes sobre este ponto, ver NEWTON-SMITH, W. H. Popper, ciência e racionalidade. In:
O’HEAR, Anthony (org.). Karl Popper: filosofia e problemas [Karl Popper: philosophy and
problems, 1995]. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: UNESP, 1997.
43
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
44
GILES, Thomas Ramson. Dicionário de Filosofia: termos e filósofos. São Paulo: E.P.U., 1993.
45
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia.Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2ª ed., 1993.
46
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga, em cinco volumes [Storia della filosofia antica,
in cinque volumi]. Vol. 1: Das origens a Sócrates. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1993.
que suscitou a questão.47 Em conseqüência, os problemas naturais são simples; é
possível buscar para eles soluções pelo método cartesiano: dividir cada dificuldade a ser
examinada em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las, analisar
isoladamente cada uma dessas partes, fazer enumerações tão exatas e revisões gerais
que assegurem de que nada importante tenha sido esquecido e, não por último, verificar a
solução de maneira independente daquela por que foi encontrada.
A divisão de um problema natural em tantas partes quantas possíveis e necessárias
para resolvê-las é feita pela escolha das variáveis relevantes. Embora estas possam ser
escolhidas entre inúmeras variáveis oferecidas pela natureza, são as interdependências
dessas variáveis que determinam se as variáveis escolhidas são pertinentes não somente
à questão que se deseja responder, mas principalmente à resposta que se lhe dá. Este é
um ponto crítico, pois essas pertinências não podem ser confirmadas nem negadas a
priori, isto é, antes que seja levado a termo um programa de pesquisa que tenha por
referência as variáveis escolhidas como relevantes e suas correlações com a resposta
obtida para a questão, com cuidado para o fato de que correlações não são evidências de
relação causal; nem sempre vale o princípio de que post hoc, ergo propter hoc.48
4.2.3.2. Problemas humanos
Problemas humanos são problemas que dizem respeito aos seres humanos como
seres pensantes, agentes e transformadores da realidade.
Problemas humanos são complexos e dinâmicos. Dinâmicos, porque suas
referências centrais são simultaneamente as ações do ser humano e os seres humanos

47
Embora a resposta não altere o objeto que suscitou a questão, com toda certeza altera – por vezes
de maneira radical – a percepção do objeto, uma vez que esta resulta de uma representação
simbólica que se faz do objeto na mente com fundamento em alguma explicação aceita como
válida. Por exemplo, quando a ciência demonstrou que os relâmpagos são fenômenos elétricos e
não manifestações da ira divina, o comportamento dos relâmpagos não foi alterado nem as
condições em que eles ocorrem; a compreensão dos relâmpagos como fenômeno elétrico é
praticamente conhecimento comum. Mas admitir a explicação – elaborada há cerca de trezentos
anos – de que os relâmpagos são fenômenos elétricos provocados por causas naturais não é
suficiente para eliminar reações induzidas pela crença de milhares de anos de que eles eram
manifestações sobrenaturais. Há engenheiros eletricistas e professores de Física que imploram
pela proteção divina toda vez que se assustam com o clarão de um relâmpago e o ribombo do
conseqüente trovão.
Expressão latina: Depois disto, então por causa disto.
48
em ação. Complexos,49 porque envolvem grande número de variáveis, as
interdependências das variáveis não permitem que uma resposta para os problemas seja
buscada pelo método cartesiano de dividi-los em tantas partes quantas forem possíveis e
necessárias, analisá-las isoladamente uma a uma e fazer enumerações tão exatas e
revisões gerais que assegurem de que nada importante tenha sido esquecido. Além disso,
o teste da resposta pode levar à armadilha da petição de princípio, isto é, transformar em
postulado aquilo que se desejava provar.
Os problemas humanos podem ser discriminados em problemas noológicos,
semiológicos e praxiológicos.
4.2.3.2.1. Problemas noológicos
‘Noológico’ é termo formado do grego nous, que pode ser apropriadamente
traduzido como ‘mente’. ‘Noológico’ é adjetivo, significando ‘relativo ao estudo da mente’.
Se obedecida a concepção clássica grega, contudo, a tradução mais adequada deveria
ser ‘intelecto’, termo este designando, de acordo com Aristóteles, a parte da alma com a
qual esta conhece e pensa, distinta da parte responsável pelas sensações, desejos e
apetites. Na exposição a seguir, o termo ‘noológico’ será empregado com o significado
relativo à mente, uma vez que as concepções modernas a colocam como sede tanto do
intelecto quanto das sensações, desejos e apetites.
Problemas noológicos são problemas que dizem respeito à mente, vista como
ambiente em que se estrutura a vida interior das pessoas, ambiente em que têm lugar os
processos puramente individuais do pensar, sentir, interpretar, julgar e decidir. O propósito
da solução de problemas noológicos é, portanto, desvelar a complexidade da dinâmica da
mente humana, esclarecer como ela contribui para a estruturação da vida interior das
pessoas e para a ação destas na vida social.
Como o ser humano pensa? Por que há pessoas que demonstram saudável prazer
em se dedicar ao cuidado de enfermos e moribundos? Como funciona a mente de um
gênio criador? Por que algumas pessoas sofrem de claustrofobia? Por que alguém não
consegue abandonar um vício, mesmo sabendo ser prejudicial à saúde? Por que alguns
casais conseguem constituir famílias estáveis e outros não? Quais os fundamentos do
preconceito? O que leva um indivíduo a desenvolver um senso de dever? Qual o
elemento estimulador da criatividade? Perguntas como estas constituem o domínio dos
problemas noológicos.

49
Sobre este conceito de problema complexo ver AXELROD, Robert; COHEN, Michael D.
Harnessing complexity: organizational implications of a scientific frontier. The Free Press, 1999.
O trabalho de busca de solução de problemas noológicos vem de longa data.
Aristóteles é considerado o primeiro a desenvolver um discurso sistemático sobre o
assunto no tratado Sobre a Alma, embora antes dele outros pensadores (por exemplo,
Platão) tenham discutido questões correlatas.
A mais antiga das ciências a se ocupar com problemas noológicos é a Psicologia.
De início predominantemente especulativa, a Psicologia passou a ter caráter experimental
a partir do século XVIII, especialmente a partir da inauguração do primeiro laboratório de
Psicologia experimental em 1879, por Wilhelm Wundt. No início do século XX, os estudos
de problemas noológicos passaram por uma revolução radical, graças às contribuições de
estudiosos como Sigmund Freud (1856-1939), Carl Gustav Jung (1875-1961) e outros.
Em tempos mais recentes, o estudo de problemas noológicos vem sendo
influenciado cada vez mais pelo desenvolvimento de recursos técnicos que permitem
observar o cérebro humano em funcionamento. É importante ressaltar, contudo, que
esses estudos se concentram na dinâmica do cérebro como órgão do corpo humano, mas
não desvendam o mistério da mente humana como determinante dos pensamentos, das
emoções e da vontade que impulsionam o ser humano à ação no mundo. Há correlação
da dinâmica de funcionamento do cérebro com o comportamento do ser humano em
ação, mas é altamente improvável que essa correlação venha a ser estabelecida de
maneira empiricamente indubitável.50

50
Para detalhes destes estudos, ver: DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e
cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. DEL NERO, Henrique Schutzer. O
sítio da mente: pensamento, emoção e vontade no cérebro humano. São Paulo: Collegium
Cognitio, 1998. GARDNER, Howard. Arte, mente e cérebro: uma abordagem cognitiva da
criatividade. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
4.2.3.2.2. Problemas semiológicos
O adjetivo ‘semiológico’ e o correspondente substantivo ‘semiologia’ são formados
da palavra grega semeion, que significa sinal indicativo, marca, signo.
Para o filósofo francês Ferdinand de Saussure (1857-1913) a Semiologia é “ciência
que tem como objetos de estudo todos os sistemas de signos (incluindo os ritos e
costumes) e todos os sistemas de comunicação vigentes na sociedade, sendo a
lingüística científica seu ramo mais proeminente”.51 Em outros termos, a Semiologia é
ciência que tem como objetos de estudo os signos sob todas as formas de manifestação
que assumem nas linguagens de que o ser humano faz uso. São objetos de estudos
semiológicos a religião, arquitetura, música, dança, pintura, escultura, literatura, poesia,
teatro, ciência, tecnologia, todos os meios, enfim, de que o ser humano faz uso para se
expressar na vida social e adquirir informações para estruturar uma vida interior, inclusive
a linguagem propriamente dita, refletida nos vários idiomas que os diversos povos usam
para se comunicar oralmente e por escrito. Nesse sentido, a Arqueologia é uma ciência
predominantemente semiológica, porquanto busca reconstituir a dinâmica de civilizações
extintas pelo estudo do que restou delas em monumentos, obras de arte, artigos de uso
diário e inscrições.
A Semiologia compreende muitos campos, pois cada linguagem pode ser
isoladamente objeto de uma disciplina, de um campo especializado de estudos. Um
antropólogo pode estudar descritivamente a religião de um povo em termos de dogmas
fundamentais, hierarquias de divindades e relacionamentos dessas divindades com os
seres humanos; um musicólogo pode estudar a música desse povo do ponto de vista de
técnicas de composição e de execução instrumental e os instrumentos musicais em
termos de técnicas de construção; um lingüista pode estudar-lhe o idioma sob aspectos
gramaticais de morfologia e sintaxe; outro especialista pode analisar as técnicas
empregadas por esse povo para produzir obras de arte por meio da pintura e da
escultura. Os problemas semiológicos transcendem, todavia, os limites dos diferentes
campos de conhecimentos especializados de que possam ser objetos quando a questão
que se quer responder é por que e para que dada linguagem é usada de determinado
modo e não de outro dentro de outra linguagem. Por exemplo, por que determinado povo
usa para as canções religiosas um ritmo cujo emprego em canções festivas é tabu? Por
51
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Ver o verbete
‘semiologia’ em: JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2ª ed., 1993.
que a Igreja Católica Apostólica Romana discrimina ente música sacra e música profana,
mesmo que o tema de uma música profana seja religioso? Como na Idade Média a fé
religiosa determinou a orientação de recursos, ações e esforços da sociedade para a
construção das monumentais catedrais européias? As pirâmides do Egito estão lá onde
estão e como estão; estudos arqueológicos afirmam que foram construídas para servir de
túmulos a faraós; mas, por que foi escolhido o formato de pirâmide para os túmulos dos
faraós?
Porque se ligam indissoluvelmente à cultura de uma sociedade e a cultura de
qualquer sociedade tanto é causa como conseqüência da interação das linguagens de
que os membros dessa sociedade fazem uso para estruturar sua vida interior e orientar-
se na vida social, uma análise satisfatória de problemas semiológicos exige que se levem
em conta resultados de pesquisas não somente nas ciências semiológicas, mas também
nas ciências noológicas, naturais e praxiológicas.
4.2.3.2.3. Problemas praxiológicos
‘Praxiológico’ é adjetivo derivado do substantivo ‘praxiologia’,52 termo formado do
grego práksis (  ), que significa ação, ato de agir.53
Praxiologia é uma teoria epistemológica da ação humana.54 O objeto de atenção da
praxiologia é a ação humana na vida social, sem levar em consideração quaisquer
elementos da vida interior que determinam essa ação. Questões praxiológicas são objetos
de atenção dos campos de estudo das ciências sociais, econômicas e jurídicas.
O principal desafio com que se defrontam as pessoas que decidem analisar
problemas praxiológicos é o ser humano em ação na sociedade. Seres humanos agem
sempre com um propósito em vista, fazem escolhas, tomam decisões, lembram-se das
decisões passadas que determinaram o estado de coisas no presente e levam isto em
conta ao elaborar a antevisão das possíveis conseqüências de uma decisão que deva ser
tomada agora com vistas à consecução de um propósito no futuro. Conseqüência disto é
que, ao se obter uma provável solução para um problema praxiológico, não é possível ao
52
As grafias ‘praxiologia’ e ‘praxiológico’ são preferíveis às grafias ‘praxeologia’ e ‘praxeológico’.
Nas obras em língua inglesa encontram-se ‘praxeology’ e ‘praxeological’, para diferenciar do
alemão.
53
A palavra praxis (também grafada como práxis) recebe significado específico na filosofia
marxista.
54
Sobre a praxiologia como ciência ou teoria geral da ação humana, ver: MISES, Ludwig von.
Ação humana: um tratado de economia [Human action: a treatise on economics, 1949, 1966].
Trad. Donald Stewart Jr. 2a. ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1995.
estudioso corroborá-la em condições controladas, pois não se pode meter a sociedade
dentro do tubo de ensaio de um alquimista social e manipulá-la a bel-prazer. Todo
cientista seriamente dedicado ao estudo de problemas praxiológicos sabe que jamais será
possível prever convulsões sociais e crises econômicas da mesma maneira como o
astrônomo prevê eclipses. Um economista pode afirmar convictamente que o preço de um
produto diminuirá se a oferta desse produto no mercado aumentar, mantidas invariáveis
todas as demais condições; ele não consegue, contudo, prever de quanto será esta
redução de preço nem as mudanças das condições que, no modelo mais simples da lei
da oferta e da procura que elabora, ele deseja que permaneçam invariáveis.55 Sociólogos
podem elaborar excelentes modelos sobre como as pessoas tomam decisões, mas isto
não implica que as variáveis relevantes envolvidas nesses modelos sejam exatamente
aquelas que as pessoas efetivamente levam em conta conscientemente quando tomam
decisões.56
Diferentemente das ciências naturais, o propósito das ciências praxiológicas não é
fazer previsões exatas, mas inferências estatisticamente confiáveis a partir da
identificação de princípios gerais que regem a ação humana.57 Em termos práticos, as
análises de problemas praxiológicos fornecem subsídios para orientar decisões relativas à
solução de problemas pragmáticos de natureza social, econômica e jurídica, de maneira a
que no futuro as pessoas cometam o menor número possível de erros, que estes sejam
os mais perdoáveis e que neles se permaneça pelo menor tempo possível.
5. O método científico
A palavra ‘método’ provém do grego mêthodos (), palavra formada pelo
prefixo meta (com ideia de ordenação, intermediação, sucessão) e hodos (via, caminho).
Literalmente, portanto, ‘método’ significa ‘ordenação do caminho’. A noção de método é a
da ordenação do caminho com vistas a alcançar um objetivo; já na Antigüidade a palavra
era empregada com o significado de ordenação dos procedimentos de investigação com
vistas a buscar um conhecimento. Dessa maneira, método científico é a ordenação dos
procedimentos de investigação com vistas a buscar um conhecimento científico. Em
outros termos, o método científico determina como buscar o conhecimento científico.
Mas, o que determina e justifica esse ‘como’ Como saber que o método adotado
por um campo específico da ciência (isto é, o caminho adotado por essa ciência para
55
BLAUG.
56
LAVE; MARCH.
57
MISES, Ludwig von. Theory and history: an interpretation of social and economic evolution.
Yale University Press, 1957. Online edition by The Ludwig von Mises Institute, 2001.
buscar conhecimento) é correto Essas questões não têm por objeto o conhecimento
buscado por essa ou aquela atividade científica, mas a estrutura específica do método
que ela adota e as condições de seu uso para buscar o conhecimento em seu campo. Por
isto, a busca de respostas para essas questões não é um problema científico, mas
filosófico. As discussões pertinentes a essas questões no campo filosófico estão
consubstanciadas sob denominações como Epistemologia, Gnoseologia, Teoria do
Conhecimento, Lógica da Ciência, Metodologia.58
A metodologia de uma ciência é a sua argumentação para aceitar ou rejeitar suas
teorias ou hipóteses; os temas sob análise não são as técnicas de investigação adotadas
por essa ou aquela ciência, mas o contexto de justificação das teorias e hipóteses que
determinam o objeto da investigação ou decorrem dos resultados desta.59
Uma conseqüência da análise metodológica é que não existe o que poderia ser
considerado como ‘o’ método científico (um procedimento único que todas as ciências
devam seguir para buscar resposta para uma questão e para verificar se dada resposta é
de fato solução do problema), mas diferentes procedimentos de investigação da realidade
que serão considerados científicos somente se for comprovado que obedecem a
determinados requisitos vinculados aos ideais científicos.60
Uma digressão sobre o método científico envolve, portanto, dois aspectos, 1) o
procedimento de investigação e 2) a fundamentação lógica do procedimento. Daqui em
diante considera-se somente o segundo aspecto.
5.1. Sinopse histórica61
A teoria do conhecimento surge no momento em que pela primeira vez na história
do pensamento humano é encarado o problema de se estabelecer que predições se
justificam com base em percepções sensoriais. A busca de resposta a essa questão levou
ao desenvolvimento de duas concepções filosóficas antagônicas, o empirismo e o
racionalismo.
Todas as tentativas de basear um empirismo puro – ou empirismo radical – em
fundamentos últimos acabaram condenadas ao fracasso. Entretanto, a concepção
empirista foi o ponto de partida de extensa análise filosófica para esclarecer o significado
de ‘fundamento’ nas ciências empíricas, o que pode ser apontado como o tema central da
58
A respeito, ver todos estes verbetes nos dicionários especializados mencionados em outras notas
de rodapé.
BLAUG, P. 85-87.
59

Sobre os ideais científicos, ver KAUFMANN, p. 94 et seq.


60

61
Condensação do primeiro capítulo de KAUFMANN. As transcrições literais estão entre aspas.
metodologia (lógica da ciência). Esclarecer o significado de ‘fundamento’ equivale a
determinar os critérios de distinção entre afirmações justificadas e afirmações não
justificadas, ou seja, explicar os princípios de controle científico.
“A concepção racionalista permite duas interpretações, que conduzem a programas
diferentes e, em certos aspectos, conflitantes, para a aquisição de conhecimentos.
Podemos distingui-los como racionalismo radical e racionalismo crítico”.
O racionalismo radical predominou no período medieval, com a filosofia se
fundamentando não tanto na razão quanto na fé; era uma filosofia que se desenvolvia sob
o dossel de autoridade e de força da Igreja. Era o período do escolasticismo, que tem em
Santo Tomás de Aquino (1225-1274) um de seus mais brilhantes expoentes.
“De acordo com o racionalismo radical, somente a razão pode compreender o ser
verdadeiro e o fluxo do universo, explicando os elementos implícitos no conceito de
perfeita racionalidade, tais como simplicidade, unidade, continuidade, harmonia,
determinação. (...) Tudo o que acontece ‘deve’ acontecer da maneira como acontece
efetivamente. É ‘necessário’, de acordo com a teologia racional, no duplo sentido de que é
inevitável, por ser desejado por Deus, e de que serve a uma função específica no
esquema cósmico. Como o melhor de todos os mundos possíveis é realizado através
desse plano, a harmonia da existência e dos valores também se revela à razão quando
ela interpreta o mundo. A percepção dos sentidos também pode confirmar essas intuições
da razão, mas estas não precisam de tais confirmações, nem podem ser refutadas pela
percepção sensorial, já que a razão é uma faculdade superior”.
No século XVII, os fundamentos do racionalismo radical preconizado pelo
escolasticismo começam a ser minados pelo desenvolvimento das ciências naturais.
Galileu encara “a ideia racional como uma hipótese a ser testada pela observação e a ser
descartada se não pudesse suportar um teste desse tipo. Podemos, portanto, dizer que a
ciência natural é anti-racionalista no sentido de que não reconhece, na derivação de uma
proposição sintética a partir de ideias racionais, uma prova definitiva de sua validade
empírica. Mas é racionalista, ao encarar as ideias racionais como princípios diretores na
formulação de predições a serem testadas pela observação. (...). Portanto, não é fora de
propósito chamar essa atitude de racionalismo crítico ou de empirismo crítico. Pois, como
o racionalismo, é crítica com relação aos sentidos na medida em que não sejam guiados
pela razão; e, como o empirismo, é crítica com relação à razão, quando não confirmada
pelos sentidos”.
“A maioria das doutrinas filosóficas contemporâneas concorda em que a reflexão
filosófica não deve introduzir elementos transcendentes à experiência humana possível.
(...) Mas isto não deve ser interpretado como uma completa vitória do sensualismo sobre
o racionalismo. Pois a intuição fundamental dos filósofos racionalistas, de que a
experiência não é simplesmente dada pelos sentidos, é atualmente comum entre a
maioria das doutrinas filosóficas”. Nos seus primórdios, contudo, o racionalismo crítico
não levou ao rompimento definitivo entre metodologia e metafísica. Ainda no século XVII
“o objetivo da investigação científica é interpretado, predominantemente, como a
elucidação do mistério da criação. (...) A crença de que o mundo foi criado pela Mente
Infinita e de que a criação reflete a racionalidade perfeita do Criador garante que a
procura da verdade não está destinada ao fracasso. Talvez a influência dessa convicção
basicamente religiosa sobre o método de investigação não seja mais manifesta em
nenhum dos grandes cientistas naturais do século XVII do que em Kepler. Mas embora a
ligação entre a teologia racionalista e a investigação da natureza possa ser
freqüentemente observada até o século XVIII, a tendência para separá-las nitidamente
(...) revela-se já em Galileu, contemporâneo de Kepler. Galileu sublinha – geralmente com
intenções polêmicas – que o homem não pode esperar descobrir a essência íntima da
natureza, mas pode procurar, com alguma possibilidade de sucesso, descobrir
uniformidades no fluxo dos fenômenos, devendo concentrar suas energias nessa tarefa.
Newton se expressa de maneira análoga. Essa separação (...) não foi levada a efeito de
maneira inteiramente coerente no século XVII”. Ela ocorreu bem mais tarde,
principalmente no final do século XIX e na primeira metade do século XX.
5. 2. Os fundamentos do raciocínio correto
Bem cedo os filósofos gregos compreenderam que o caminho em busca do
conhecimento deveria ser percorrido com obediência a métodos e princípios que
contribuíssem para distinguir o raciocínio correto do raciocínio incorreto. Da busca por
esses métodos e princípios resultou a Lógica.
O primeiro termo técnico usado para designar aquilo que hoje se denomina Lógica
foi ‘dialética’. O uso da palavra ‘Lógica’ no sentido moderno aparece nos comentários de
Alexandre de Afrodisias, que escreveu no século III d.C.62
“A Lógica trata dos princípios de inferência válida. (...) é evidente, a partir do que
encontramos em Platão, Aristóteles e outras fontes, que os filósofos gregos começaram a
discutir os princípios de inferência válida antes de Aristóteles ter escrito a obra que veio a
ser conhecida por Organon. (...) Uma vez que a Lógica não é apenas argumento válido,
mas também reflexão sobre os princípios de validade, esta só aparecerá naturalmente
quando já existe à disposição um corpo considerável de inferências e argumentos. (...) As

KNEALE; KNEALE, p. 9.
62
investigações em que se pretende ou procura uma demonstração é que naturalmente dão
origem à reflexão lógica, uma vez que demonstrar uma proposição é inferi-la validamente
de premissas verdadeiras. Há duas condições para a demonstração: premissas
verdadeiras e argumentos válidos. Não é fácil dizer quando se compreendeu que essas
duas condições são independentes, mas isto já era claro para Aristóteles quando ele
distinguiu nos Tópicos e nos Primeiros Analíticos entre raciocínio apodítico
[demonstrativo] e dialéctico. (...) Na demonstração começamos com premissas
verdadeiras e chegamos necessariamente a uma conclusão verdadeira, por outras
palavras, temos uma demonstração. No argumento dialéctico, ao contrário, não se sabe
se as premissas são verdadeiras e não é necessariamente que a conclusão é verdadeira.
Se nos aproximamos da verdade dialecticamente é por via indireta”.63
Nesse texto não se discute o papel da dialética no campo científico,64 somente o dos
elementos da Lógica, a dedução e a indução.65
A dedução – sillogismós em grego () – é a relação pela qual uma
proposição deriva de uma ou várias premissas. Para Aristóteles, “o silogismo é um
raciocínio em que, postas algumas coisas, seguem-se necessariamente algumas outras,
pelo simples fato de aquelas existirem”. 66 A demonstração é uma dedução particular que
tem “premissas verdadeiras, primeiras, imediatas, mais conhecidas que a conclusão,
anteriores a ela e causas dela”. 67 A demonstração foi considerada por muito tempo a
própria essência da ciência.
A indução – epagogué em grego () – é um procedimento de raciocínio que
leva do particular para o geral. Em sentido psicológico e pedagógico, na Filosofia clássica
a epagogué é entendida – principalmente por Platão – como processo de aquisição de
determinado conhecimento. A estruturação de um conceito por meio de exemplificação (o
conceito de ‘cadeira’ por meio de apontar para um objeto e dizer ‘isto é uma cadeira’,

KNEALE; KNEALE, p. 3-4.


63

64
A dialética foi alçada à posição de método científico por Karl Marx. Uma exposição sucinta do
método dialético como método científico é apresentada por MARCONI, Marina de Andrade;
LAKATOS, Eva Maria. Metodologia científica. 3a. ed. São Paulo; Atlas, 2000.
Exposição ampla e didática da Lógica encontra-se em COLPI.
65

66
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia [Dizionario di Filosofia, 1971]. Trad. Alfredo
Bosi (coord.). São Paulo: Martins Fontes, 2003.
ABBAGNANO.
67
apontar em seguida para outro diferente e dizer ‘isto também é uma cadeira’) é um caso
de aquisição de conhecimento por indução.68
5.3. Os métodos das ciências
A dedução e a indução oferecem a fundamentação lógica para os procedimentos de
investigação científica, na medida em que, de um lado, permitem estabelecer a coerência
da linguagem e dos procedimentos de investigação e, de outro lado, os critérios de
correção dessa linguagem e desses procedimentos. A dedução está relacionada ao
método dedutivo, a indução ao método indutivo, mas uma coisa não deve ser confundida
com a outra; a dedução não é o método dedutivo, a indução não é o método indutivo.
5.3.1. O método dedutivo
O método dedutivo fundamenta-se na ideia de que o particular deriva do universal.
Ele tem lugar dentro da concepção aristotélica de ciência como demonstração,
consistindo em buscar a confirmação de uma hipótese pela verificação das
conseqüências previsíveis nessa mesma hipótese. Um exemplo de método dedutivo é o
método analítico de Descartes.
O método dedutivo não se reduz à dedução, muito menos à demonstração – caso
particular de dedução em que esta tem premissas verdadeiras, primeiras, imediatas, mais
conhecidas que a conclusão, anteriores a ela e causas dela. Uma hipótese – a premissa
primeira – não é necessariamente verdadeira.
A concepção de ciência como demonstração deu lugar à concepção de ciência
como descrição (sucintamente definida na frase de Newton: Hypotheses non fingo.) por
influência das ideias de Galileu, Bacon, Newton e dos filósofos iluministas.
5.3.2. O método indutivo
O método indutivo nasce com o início do processo de separação entre metodologia
e metafísica, determinado pela publicação, em 1620, do livro Novum Organum, de Francis
Bacon (1561-1626).
Na concepção de Bacon, o conhecimento de importância para o homem é o
conhecimento fundamentado empiricamente no mundo natural, que deve ser
compreendido por meio de um claro sistema de investigação científica, adequado para
assegurar o predomínio do homem sobre a natureza. De acordo com Bacon, “só há e só
pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade. Uma, que
consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas mais gerais e,
a seguir, descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses princípios e de sua
68
Uma análise sobre diferentes conceitos de indução é apresentada em BACHA, Maria de Lourdes.
A indução de Aristóteles a Peirce. São Paulo, Legnar, 2002
inamovível verdade. Esta é a que ora se segue. A outra, que recolhe os axiomas dos
dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em
último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém
ainda não instaurado”.69
*O verdadeiro caminho, porém ainda não instaurado” preconizado por Bacon era o
da aplicação do método indutivo ao desenvolvimento do conhecimento científico. O
método indutivo remonta aos tempos de Aristóteles, mas a ideia de Bacon de fazê-lo
utilizado no desenvolvimento do conhecimento científico se constituiu em inovação
radical.
A concepção de indução de Bacon é a de processo de adição de certezas ao corpo
de conhecimentos e, simultaneamente, de eliminação de argumentos fundamentados na
autoridade, na tradição, especulação, em preconceitos e hábitos. O pressuposto
subjacente a essa concepção é o de que o conhecimento é cumulativo, tendo início com a
observação – “que recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares” –
prossegue com a generalização desses axiomas e, a partir destes, “ascendendo contínua
e gradualmente”, chegando finalmente ao conhecimento dos “princípios de máxima
generalidade”. Em outras palavras, da observação de fenômenos particulares deve se
buscar a inferência de um princípio universal.
Traduzindo as ideias de Bacon em método de trabalho, a investigação científica
deve obedecer à seguinte seqüência de passos:
1. Coletar e classificar dados.
2. Formular hipóteses.
3. Testar hipóteses.
4. Escolher a hipótese mais provável.
5. Generalizar a hipótese.
O método indutivo pressupõe que o futuro será igual ao passado em todos os
aspectos em que as leis naturais se mostrem válidas, asserção esta que se fundamenta
no princípio da uniformidade da natureza.
Tanto o princípio da uniformidade da natureza quanto a pressuposição do método
indutivo de que o futuro será igual ao passado em todos os aspectos em que as leis
naturais se mostrem válidas não têm, todavia, como ser comprovados empiricamente.
David Hume (1711-1776) percebeu isto e argumentou que, por maior que seja o número
de observações que apóiem uma hipótese, isto não representa apoio lógico a uma
69
Novum Organum. Trad. José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Abril, 1979 (Coleção Os
Pensadores).
hipótese geral irrestrita. Dada uma hipótese, não é possível comprová-la pela
experimentação, porque não se podem observar agora eventos futuros. Não é possível
comprová-la por argumentos lógicos, porque do fato de que futuros passados repetiram
passados passados não se segue que futuros futuros repetirão passados futuros.
Ao mesmo tempo em que argumentava que o método indutivo não assegura
conhecimento científico indiscutível, Hume também admitia que o empirismo puro não é
fundamento suficiente para a ciência. Desse modo, todo conhecimento científico
fundamenta-se em bases frágeis, tanto do ponto de vista lógico quanto empírico. Essa
conclusão ficou conhecida como o problema de Hume, que permaneceu como o
calcanhar-de-Aquiles da Filosofia da Ciência até meados do século XX.
5.3.4. O método hipotético-dedutivo70
Vários filósofos buscaram resolver o problema de Hume. Um deles foi Charles
Sanders Peirce (1839-1914), que propôs a ideia de que a investigação científica começa
com uma dúvida real, cujo desvelamento começa com uma abdução, seguida por uma
dedução à qual se segue uma indução, a esta uma nova abdução, e assim por diante.71 A
solução, contudo, que causou o mais profundo impacto na Filosofia da Ciência e
praticamente lhe definiu novos rumos no século XX foi desenvolvida aproximadamente
em 1927 por Karl Raymond Popper (1902-1994) e detalhadamente apresentada no livro
que veio à luz em 1934 e que pode ser considerado o ‘magnum opus’ de Popper, Logic
der Forschung.72 Neste livro Popper expõe sua linha de raciocínio por meio das seguintes
teses:
a) O crescimento do conhecimento se dá a partir de problemas para os quais
se busca uma solução, de acordo com o seguinte esquema:
PI  ST  EE  GE  NP  NS
Nesse esquema, PI representa o problema inicial, ST é uma solução tentativa, EE é
um processo de eliminação de erros da solução tentativa, GE é a generalização empírica
da solução agora expurgada de erros, NP é um novo problema, NS uma nova solução e
assim por diante. O esquema é essencialmente um processo retroalimentado.

O método hipotético-dedutivo é objeto de análise em BLAUG e COLPI.


70

71
Para detalhes sobre as ideias de Peirce e as definições por ele dadas aos termos abdução, indução
e dedução, ver BACHA, Maria de Lourdes. A indução de Aristóteles a Peirce. São Paulo:
Legnar, 2002.
Traduzido para o inglês como The logic of scientific discovery.
72
b) As generalizações empíricas, ainda que não verificáveis, podem ser
falsificáveis. Isto implica que as leis científicas, apesar de não serem comprováveis, são
testáveis. Podem ser testadas por meio de tentativas sistemáticas destinadas a refutá-las.
c) Pela lógica, uma lei científica pode ser falseada, embora não possa ser
conclusivamente verificada.
d) É um erro tentar provar “a verdade de uma teoria”. O máximo que se pode
admitir é justificar a adoção de uma teoria de preferência a outras quaisquer.
e) A verdade de um enunciado significa que ele corresponde aos fatos. Esta é
uma ideia reguladora. Não se deve identificar ciência com verdade.
f)Toda teoria é resultado da mente humana. As observações de fatos não dão
origem a teorias. Os fatos são derivados das teorias, no todo ou em parte, e buscados
para submeter as teorias a teste.
Popper conclui sua argumentação dizendo que a indução é um conceito
perfeitamente dispensável no campo científico. Para ele, o problema da indução (o
problema de Hume) decorre da falta de distinção entre processos lógicos e processos
psicológicos.73 Nem todos os filósofos admitem, contudo, que Popper tenha resolvido o
problema de Hume; alguns afirmam inclusive que ele simplesmente conseguiu ocultá-lo.74
O importante, porém, é que os argumentos de Popper serviram para dar corpo ao método
hipotético-dedutivo, cujo esquema de ordenação é o seguinte:75
1. Identificação do problema inicial.
2. Formulação de uma explicação – antecipação, hipótese, sistema teórico, o
que se quiser.
3. Dedução lógica de conclusões.
4. Comparação das conclusões umas com as outras e com outros enunciados
relevantes, com a finalidade de verificar se existem relações lógicas entre elas.
5. Enunciado de uma explicação mais abrangente.
6. Verificação da explicação:
a. Verificação da consistência interna: comparação de conclusões entre si.
73
A exposição da solução do problema de Hume em que se discute esta falta de distinção encontra-
se em POPPER, Sir Karl R. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária [Objective
knowledge: an evolutionary approach, 1972]. Trad. Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: EDUSP, 1975.
74
Sobre este ponto, ver O’HEAR, Anthony (org). Karl Popper: filosofia e problemas [Karl
Popper: philosophy and problems, 1995]. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: UNESP, 1997.
Apresentado em POPPER, 1980.
75
b. Verificação da forma lógica:
- teoria científica
- tautologia
c. Comparação com outras explicações.
d. Aplicação empírica das conclusões dela derivadas.
Sucintamente, o método hipotético-dedutivo consiste em quatro passos:76
Passo 1: Observar alguns fatos.
Passo 2: Analisar os fatos como se eles fossem o resultado final de um
processo (modelo). Em seguida, especular sobre possíveis processos que poderiam ter
produzido tal resultado.
Passo 3: Deduzir outros resultados (implicações, conseqüências, previsões) a
partir do modelo.
Passo 4: Questionar se essas outras implicações, conseqüências ou
previsões são verdadeiras; produzir novos modelos, se necessário.
5.5. A busca infindável
A investigação científica busca dar resposta a alguma pergunta. Nesse aspecto,
vale lembrar que “perguntas são necessariamente anteriores a respostas, e não se
concebem respostas que não sejam respostas a perguntas. Um estudo ‘puramente
factual’ – observação de um segmento da realidade (...) sem nenhum pressuposto – não é
possível; pode conduzir somente a uma acumulação caótica de impressões sem sentido.
Até um selvagem tem seus pressupostos de seleção por meio dos quais pode organizar,
interpretar e dar sentido a suas experiências”.77
“Uma acumulação caótica de impressões sem sentido” não é resultado de
investigação científica, mas pode ser o seu início. O resultado final deve ser, contudo,
uma explicação.
“Uma explicação é sempre uma proposição que reformula ou recria as observações
de um fenômeno dentro de um sistema de conceitos aceitáveis para um grupo de
pessoas que compartilham um critério de validação. A magia, por exemplo, é tão
explicativa para os que a aceitam como a ciência o é para quem a prefere. A diferença
específica entre a explicação mágica e a científica reside no modo como se gera um
sistema explicativo científico, o que constitui seus critérios de validação. Sendo assim,
podemos distinguir quatro condições essenciais que devem ser satisfeitas na proposição

LAVE; MARCH.
76

77
Gunnar Myrdal apud ROBERTS, Nancy; et al. Introduction to computer simulation: the system
dynamics approach. Addison-Wesley, 1983.
de uma explicação científica. Elas não ocorrem, necessariamente, nesta seqüência, mas
se imbricam de alguma forma. a) Descrição do ou dos fenômenos a serem explicados de
forma aceitável para a comunidade de observadores. b) Proposição de um sistema
conceitual capaz de gerar o fenômeno a ser explicado de maneira aceitável para a
comunidade de observadores (hipótese explicativa). c) Dedução, a partir de b, de outros
fenômenos não considerados explicitamente na proposição, bem como a descrição de
suas condições de observação na comunidade de observadores. d) Observação desses
outros fenômenos deduzidos a partir de b. Somente se tais critérios de validação forem
satisfeitos, a explicação será considerada científica, e uma afirmação só é considerada
científica quando se fundamenta em explicações científicas”.78
Apesar de toda a coerência e racionalidade que apresenta, o método científico é
ainda objeto de muitas questões em aberto. É ponto pacífico que a investigação científica
“é levada avante por meio de escolhas. Embora sejam múltiplas e variadas as atividades
por meio das quais a pesquisa científica obtém novas informações e produz novos
conhecimentos, todas elas envolvem sempre uma seqüência de decisões, ou escolhas.
(…) Qualquer trabalho de pesquisa pode ser imaginado como um processo de tomada de
decisões seqüenciais num cipoal de ramificações. Em cada junção de ramificações
existem múltiplas alternativas para o passo seguinte”.79 O papel tradicionalmente
atribuído ao método científico no “processo de tomada de decisões seqüenciais num
cipoal de ramificações” e na formulação de teorias científicas tem sido bastante
questionado na epistemologia contemporânea. Alguns estudiosos consideram que
elementos ‘não científicos’ como a intuição dos cientistas e o acaso têm papel
preponderante no surgimento das teorias científicas; os cientistas recorrem ao que
denominam ‘método científico’ unicamente para a sistematização e a fundamentação da
teoria, isto é, para enquadrá-la dentro de um esquema de racionalidade.80
78
MATURANA Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento [Der Baum der
Erkenntnis, 1987]. Trad. Jonas Pereira dos Santos. Campinas, SP: Editorial Psy, 1995.
79
STOKES, Donald E. Pasteur’s quadrant: basic science and technological innovation.
Brookings Institution Press, 1997.
80
Um defensor deste ponto de vista é Paul Feyerabend, que preconiza uma concepção anárquica da
teoria do conhecimento. Para detalhes, ver FEYERABEND, Paul. Contra o método [Against
method, 1975]. Trad. Octanny S. da Mota e Leônidas Hegenberg. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1977. Essa obra foi submetida a revisões e ampliações pelo autor. Dessa obra revista e
ampliada há uma tradução para o português (tradução de Cezar Augusto Mortari publicada pela
Editora UNESP (São Paulo, SP) em 2007).
Há um vasto campo aberto diante de quem se disponha a estudo persistente e a
trabalho árduo para amanhá-lo. Ao adentrá-lo, contudo, “tira as sandálias dos pés, porque
o lugar em que estás é uma terra santa” (Ex 3,5).

BIBLIOGRAFIA

A bibliografia que fundamentou as ideias apresentadas neste texto – como


referência direta ou complementação de alguma ideia por associação – está mencionada
nas notas de rodapé. Neste final destacam-se algumas referências mencionadas em
notas de rodapé e apresentam-se outras vistas como básicas para desenvolver uma
compreensão ampla e profunda da metodologia científica e de sua aplicação nas ciências
praxiológicas.
BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico (1934), trad. Remberto Francisco Kuhnen.
In: Bachelard. São Paulo: Abril, 1978 (Coleção “Os Pensadores”).
BLAUG, Mark. A metodologia da economia ou como os economistas explicam [The
methodology of Economics or how economists explain, 1980]. Trad. Afonso Luiz Medeiros dos
Santos Lima. São Paulo: EDUSP, 1999.

COPI, Irving Marmer. Introdução à Lógica [Introduction to Logic, 1961]. Trad. Álvaro
Cabral. São Paulo: Mestre Jou, 1978.

KAUFMANN. Felix. Metodologia das ciências sociais [Methodology of the social


sciences, 1958]. Trad. José Augusto Guilhon de Albuquerque. Rio de Janeiro; Francisco Alves,
1977.
KNEALE, William; KNEALE, Martha. O desenvolvimento da Lógica [The development of
Logic, 1962]. Trad. M. S. Lourenço. 2a. ed. Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980.
LAVE, Charles A. & MARCH, James G. An introduction to models in the social sciences.
New York, NY: Harper & Row, 1975.
MAGEE, Bryan. As ideias de Popper [Popper, 1973]. Trad. Leônidas Hegenberg e Octanny
Silveira da Mota. 3a. ed. São Paulo: Cultrix, 1979.
POPPER, Karl R. Lógica das ciências sociais [Coletânea organizada por Vamireh Chacon].
Trad. Estevão de Resende Martins et al. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1978.

POPPER, Karl R. The logic of scientific discovery. London UK: Hutchinson, 1980.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo [Die protestantische Ethik
und der “Geist” des Kapitalismus, 1920]. Trad. José Marcos Mariani de Macedo; com revisão e
apresentação de Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Para encerrar, uma recomendação. Cada pessoa deve desenvolver e refinar sua
própria maneira de manobrar com perícia e competência no vasto oceano do
conhecimento, não para dominá-lo ou limitá-lo, mas para dele tirar proveito como fonte
fértil de recursos adequados para o desenvolvimento de suas competências e assim
contribuir para o desenvolvimento da sociedade em que vive. Não é possível, todavia,
alcançar um destino sem orientação ao longo da jornada. As pessoas que reconhecem a
necessidade de se dedicar a um processo de aprendizagem continuada como meio de
não ficar à margem da produção do progresso da sociedade em que vivem com toda
certeza podem encontrar parte desta orientação nos escritos de outras pessoas. É este o
objetivo que se espera para a bibliografia aqui mencionada; não se quer que ela seja
convite para colecionar ornamentos de uma erudição estéril e vazia. Pessoas inteligentes
não devem se sentir na obrigação de ler tudo o que lhes seja sugerido, pois “não somos
influenciados por tudo que lemos ou aprendemos. Em certo sentido, talvez o mais
profundo, somos nós mesmos que determinamos as influências a que nos submetemos;
nossos antepassados intelectuais não são de forma alguma dados a nós; nós é que os
escolhemos livremente, pelo menos em grande parte”.81

81
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito [From the closed world to the
infinite universe, 1957]. Trad. Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária;
São Paulo, EDUSP, 1979.

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