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Coordenacáo de Edicóes
Ana Fanfa
Divisáo de Texto
lven Junqueira
Producáo Editorial
José Carlos Martins
Assistente Editorial
Marí/ia Comes
Edicáo de Texto.
Frederico Comes
Revisáo Técnica
Edmi/son de A/meida Pereirá
Mariada Consolecéo G. Cunha F.Tavares
Projeto Gráfico
Va/éria Pergentino
Capa e Desenho
Enéas Cuerra
Fotografia da Capa
Larissa Turte/li e Oanie/a Ku/m
Espetácu/o Oiante dos O/hos - 7996
Catalogacáo-na-fonte
Foto Oanie/a Pamp/ona Funarte - Departamento de Pesquisa e Documentacáo
Bibliogralia.
ISBN 85-85781-41-6
CDD·792.80981
A vida e a danc;a .
Séo dádivas de Oeus
Cabe a cada um
Saber conduzi-Ias
Maria Padilha
-_o
e¿'~~---:::-~ __ -=----=-;;=
APRESENT A<::AO 11
INTRODU<::AO
l. ALGUMAS QUESTOES FUNDAMENTAIS 23
2. DE QUE CORPO BRASILEIRO SE FALA:
A FONTE, A ESCOLA, O REFERENClAL 27
3. ESTRUTURA FíSICA 43
Anatomia simbólica 43
O movimento das partes 46
Partes inferiores - As raízes do mastro 46
Os pés 47
Os joelhos 48
A pelve 49
Partes superiores - O movimento do estandarte 51
A coluna 51
O tronco 53
Os membros 54
4. AS PASSAGENS DO SENSíVEL - O MOVIMENTO INTERIOR 63
5. CARACTERíSTICAS DA LlNGUAGEM 75
Fatores essenciais da linguagem 75
Os sentidos no corpo 75
O pulso 76
Atos de impelir, pontuar e fluir 77
Dinámicas específicas 78
Ginga 78
IncorporajDesincorpora 81
6. ELEMENTOS CONFLUENTES 89
Tocar-cantar: pronúncias do corpo 89
O ato de investir-se 92
As construcóes do espac;o-tempo 95
Paisagens e cenários 96
Desdobramentos coreo gráficos 100
7. OLHANDO POR UMA FRESTA 125
O corpo trabalhado 125
O "diabo" e o santo 128
Na Gira da Pomba Gira, a danca de Maria Padilha 131
8. O PROCESSO DE CONSTRU<::AO DO
BAILARINO-PESQUISADOR-INTÉRPRETE 147
CONCLUSAO 153
ANEXO 181
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS 182
INTRODU(AO
-
Essa relacáo de crise nao significou a rejeicáo dos conhecimentos anteriores, mas
a sua reinterpretacáo a partir da interacáo com minhas descobertas pessoais e com os
conhecimentos adquiridos nas pesquisas de campo sobre manifestacóes culturais
brasileiras. Da pesquisa de campo com as mulheres candangas' de Brasília - após a
interacáo entre minhas descobertas pessoais com o universo da realidade investigada
- desencadeei a forrnulacáo da linguagem do corpo do bailarino-pesquisador-intérprete.
O resultado final desta fase foi a montagem de vários espetáculos, entre os quais,
Crece Bailarina de jesus, Coreciio Vermelho le 11.
Na segunda fase do Processo de construciio do bailarino-pesquisador-intérprete,
desenvolvi o seguinte roteiro (ver capítulo 8):
- autoquestionamento do bailarino sobre a sua relacáo com o corpo e com a
própria danca:
- realizacáo de experiencias iniciais com manifestacóes culturais brasileiras em
laboratório;
É bom observar que as etapas acima podem ser entremeadas por outras decorrentes
das exigencias de cada bailarina. O Processo está sujeito ao acréscimo de outras
etapas após a elaboracáo do trabalho criativo, isto na medida em que se encaminhe
para a constituicáo de um corpo vivo, flexível, individualizado e aberto as diferentes
realizacóes da danca.
17
Israel a danca exercia um forte papel aglutinador de identidades. Na Espanha, període
em que convergiam artistas de nacionalidades variadas, eram evidentes as diferenciacóes
culturais em meio a um anseio de unificacáo dentro da arte. A minha própria adesáo
a estes movimentos e os convites recebidos para a permanencia de trabalho nestes
países inquietaram-me ainda mais quanto a uma res posta a pergunta sobre a rninha
própria identidade cultural.
Diante de realidades internas - que cada vez mais impulsionavam o meu corpe
para a construcáo de um caminho próprio - retornei ao Brasil, especificamente Bra-
sília, com o objetivo inicial de implantar um projeto compartilhado com outros
profissionais.' Findo o projeto coletivo, cuja maior importancia foi a troca de experiencias
num nível de igualdade de relacóes, via-me num estado que exigia novas resolucóes
individuais.
Nunca me perguntaram quem eu era, também nao havia perguntas de minha parte
e isto foi gerando uma cumplicidade. 6..intimidade foi levando-me a aprender o corpo-
sentido destas mulheres, que eu ~9m~<,:ava \I~ga~osa:rné[lte a:¡:eceher-oo-Dleu-CO.L o.
Os pés sujos de barro que el as teimavam em esconder, tamanho era o gesto de encobrir
que ressaltava as vistas. Elas percebem e sáo tomadas de tanta vergonha que se revoltarr
contra a miséria. Por isso, Diante da vida do pavo soirido, a gente nao fala, s6 sabe
calar; esquece as ideías do pavo sabido e fica humilde, comece a pensar ...
18
Um mundo de dor, de lutas, de desencantos ao lado de uma torea de vida e de uma
forte crenca mística ia sendo revelado nesta experiencia de campo. Uma história de
grande desilusáo era concluída com frases como: Mas eu tenho a toree da Pomba-Cira,
ou a noitinha minha sereia penetra a fresta de meu barraco, cheia de luz trazendo
um recado.
Abria-se um "novo espaco" : os terreiros de umbanda e vários outros espacos
freqüentados por essas mulheres. Passei a co-habitar com a fonte, como nos faz pensar
Carlos Mesters em A parabóla da porta:
Foram tres meses de intensa convivencia diária, até odia em que na agencia de
empregos uma madame, como quem escolhe uma roupa, revistou a fileira de mulheres
a
dos pés cabeca e me apontou: "Escolho essa". Finalizava a principal etapa da pesquisa
de campo.
De volta ao espaco da sala de danca. antes táo familiar, a sensacáo que me vinha
era de um enorme vazio. Os laboratórios, conduzidos pelo ditetor", tiveram como
referencia os diários de campo. Pouco conversávamos e com um mínimo de palavras,
ele propunha acóes e situacóes em cena.
No início o corpo nao respondia, mas aos ROUCOS foram emergindo registros
emocio .ais.,.-SDmá1óLi~do...universo vivenciado na esquisa de campo corn a minha
ró ria memória afetiva. O corpo foi assumindo várias sensacóes e configuracóes
decorrentes das imagens de lugares vividos em campo e das imagens "desconhecidas"
situadas em mim mesma. Estas imagens conjugadas apresentavam uma nova
configuracáo de paisagem - espaco onde se desenvolvem experiencias de vida, que
se instaurava no corpo.
Esta fase continuou até odia em que me foi perguntado sobre a revelacao do
nome da personagem. Ou seja,ela cornecava a nascer, síntes~de tod.as as mulheres
da pesq,uisa.~Os dados da personagem que vinhamem laboratório apresentavam uma
coeréncia considerável em relacáo ao universo em questáo, Graca, foi o no me escolhido
para a personagem, fato que marcou a inauguracao de sua existencia no espaco do
corpo que deveria dancar a realidade das mulheres candangas. Esta Graca, em meio a
tantos sonhos, carregava o sonho de bailar.
19
A danca passa a se organizar a partir de uma história que vem da personagem . ..9
corpo está a servic;o de uma idéia onde o bailarino-intér[2rete ens:o tra-se-sem-o-
tolhimento de ser aguele momento o ue realmente é. Tornam-se cristalinas as suas
necessidades, passando a ter um referencial de continuidade de trabalho quanto a
arnpliacáo de seus recursos técnicos de uma forma mais sensivel.
A saída do espaco e do tempo (delimitados principalmente pelo universo da danca)
para entrar numa realidade circundante, passando a ver de dentro de uma cultura a
margem da sociedade brasileira, significou um eixo de contato para que o meu corpo
sofresse interacóes. Aí se encontram as bases que propiciaram desenvolver uma linha
de trabalho do intérprete na danca.
De início eu via o trabalho de Brasilia como uma experiencia iso lada. As experiencias
profissionais que se seguiram foram de questionar o próprio trabalho e verificar, na
prática, certas maneiras de chegar ao processo do intérprete. Duraram pouco estas
experiencias. O processo estava instaurado organicamente, querendo-o eu ou nao.
Logo eu estava de volta as pesquisas de campo, que foram ininterruptas. As dancas
ritualísticas exigiam uma investigacáo mais profunda do movimento, conduzindo-me
ao estudo das artes orientais chinesas no sentido de compreender vivencialmente a
utilizacáo do movimento interno dos circuitos de energia.
O rigor da técnica passou a ocupar o es paco da intencionalidade, por estar
intimamente ligado a elaboracáo cada vez mais exigente da performance e a uma
superacáo dos próprios limites do bailarino-intérprete. Os treinamentos técnicos
cotidianos tornaram-se mais instigantes, pois havia ocorrido uma rnudanca.di foco. A
téCñT"ca qüI'ilii"
uro:caráter de pesguisa,_possibilitando o refletir-m~ e o ter. em vários
momentos, insights do desenvolvimento do Processo.
O aperfeico arnento pessoal como intérprete levaram-me a um constante
aprofundamento nao apenas das técnicas do corpo, como também da voz e da
interpretacáo aliadas as pesquisas de linguagens cénicas.
A criacáo de espetáculos, junto a minha atuacáo como intérprete, sempre significou
a integracáo de vivencias. Vivi na própria pele umas tantas "mulheres obscuras", bem
ditas por Cora Coralina, provindas de universos urbanos, suburbanos e rurais do Brasil.
Elas me ensinaram a rebojar. O rebajo é a parte do rio ande as águas se agitam,
rodando, pela presence de uma parte funda e afunilada de pedras. O perigo denunciado
é
pela efervescéncia das águas, cuja egitecéo atinge a superficie. Quando algum objeto
ou pessoa cai no rebajo, vem él tona, rodando, antes de desaparecer. Rebajar é
exatamente sair do fundo do rebajo até a veia d'água. (Núbia Comes)."
Por volta de 1986 percebi a importancia deste trabalho na área da danca. Decidi
abrir rnáo da minha carreira enquanto intérprete, para perseguir e desenvolver esta
idéia de um Processo onde o bailarino nao se encontra na condicáo de objeto, mas na
condicáo de sujeito. Realizei uma ampla reflexáo das minhas vivencias como bailarina-
pesquisadora-intérprete, elaborando as principais sínteses. Estruturei os princípios fundamen-
tais provindos das rnanifestacóes populares brasileiras, até entáo pesquisadas, vindo a
criar um instrumental técnico de danca para o trabalho de sala de aula baseado na
decodificacáo dos elementos essenciais que estruturavam este corpo. Sáo também
considerados os aspectos simbólicos contidos nas dancas de rituais brasileiros e a
importancia de se fazer o resgate da história pessoal. Para a aplicacáo prática foram
criadas dinámicas diversificadas, incluindo-se a quebra dos espacos convencionais da
danca, direcionando o trabalho para a pesquisa de campo e laboratórios.
Os projetos que decorreram a partir desta fase, visaram a arnpliacáo das pesquisas
de campo das manifestacóes populares brasileiras, tendo o objetivo de decodificar
este universo a partir da visáo do intérprete."
20
--~-
No meu caminho como intérprete houve uma ruptura em funcáo dessa nova
idéia que surgiu de minha própria vivencia nesta caminhada. Por alguma coisa que
se deve resgatar, abro-me para novas rupturas, pois o caminho do intérprete assim
me tem ensinado. Nao se trata de uma pesquisa com princípio, meio e fim, pois nao
foi premeditada, nao foi planejada neste sentido. Ela foi feita dentro de uma história
de vida, onde a Danca está inserida.
NOTAS
1. Os candangos, assim sJo chamados, vieram desbravar acompanhou todo o processo, tendo sido o diretor do
. uma nova terre, sem heroísmo, e ainda hoje lutam nessa espetáculo Graca Bailarina de jesus .
paisagem de concreto e beleza futurista. Dentro dessa
massa de sub-empregedos, as domésticas (mulheres 7. Apresentar;:i5es realizadas:
candangas) constituem um dos segmentos mais Tenda Santo Antonio - Salvador, 7980
numerosos e problemáticos. Teatro Xango Ayra do Ceboclo Itajaci (Casa de
Candomblé) Brasília, 7980.
2. Saliento a importancia dos trabalhos desenvolvidos no Teatro Dulcina - Rio de jsneiro, 7980
Ballet Stagium pelo diretor teatral Ademar Guerra, no Teatro Dulcina - Brasília, 7980
ano de 1975, dos quais participei como aluna, pois Teatro Goiénis - Goiénis, 7980
levantaram questi5es profundas sobre a funr;:Jo do Teatro Ruth Escobar - SJo Paulo, 1980
intérprete na dence.
8. Edmilson Pereira - Rebojo, 7995.
3. O ensaio teatro danr;:a - Escola Núcleo de Pesquisa e
Producoes Artísticas. 9. O projeto 'Trilhes e Veredas da Danr;:aBresileire" (7 987)
ineugurou esta fase, contando com o imprescindível apoio
4 e 5. Carlos Mesters - "A Parábola da Porta" - Por trás do lAMA (Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, 5.P.).
das Palavras, 7984
7O. Harvey Cox-é. Festa dos Folióes - um ensaio teológico
6. O diretor teatral joJo Antonio de Lima Esteves sobre festividade e fantasía, 7974.
21
1. ALGUMAS QUESTOES FUNDAM~NTAIS
Durante todo o tempo em que tivermos o corpo e nossa alma estiver misturada
com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! ...
O corpo de tal modo nos inunda de amores, peixoes, temores, imegineciio de toda
sorte, enfim, uma in fin ida de de bagatelas, que por seu intermédio ( sim verdadeiro
é o que diz) nao recebemos na verdade nenhum pensemento sensato, nao, nem
uma vez sequer?
A tradicáo dualista de Platáo, carpo e alma, reverbera na Danca.
Situamos a danca como atividade em que vários carpos se integram para gerar
conhecimentos no ámbito do sensivel, do perceptível e das relacóes humanas a partir
de um contato direto com a realidade circundante. O distanciamento e a fuga de si
mesmo empreendidos pelo bailarino sáo substituidos pelo conflito - o ato de o bailarino
encarnar-se a si própio.
Uma vez que o físico, o vital, o indivíduo psíquico se distinguem apenas como diferentes
graus de integrecéo, na medida em que nao deixa mais operar nele sistemas de condutas
iso lada s, sua alma e seu corpo nao se distinguem meis?
A liberdade de acao, "sem projeto", sem "academicismo", configurou um aspecto
essencial para a construcáo do Processo de forrnacáo do bailarino-pesquisador-
intérprete. Como se ele fosse adquirindo vida própria, aguardou-se a maturacáo de
suas sínteses, pois, imprimir-Ihe uma diretriz, impondo-Ihe interpretacóes, resultaria
um outro trabalho que nao este. Ao "abrir rnáo" do caminho oferecido pela forrnacáo
adquirida, houve uma inversáo na própria conduta do bailarino-pesquisador-intérprete,
pois tais conhecimentos sofreram transmutacóes decorrentes do que as fontes
ensinavam. -Portanto, nao•.......•.••...
houve perdas
----. e sim arnpliacáo de recursos.
23
As pesquisas de campo situam-se como fontes, onde o corpo retrata a sua
história, entrelacando festividade e cotidiano, numa integridade de ser de cada
um. Ao cohabitar com a destituicáo de máscaras, as relacóes de identidade do
corpo tornam-se inevitáveis.
-
incor orado iJ:1Cle~eL1Lnte do cami ha g,l.le viessema seguir.
Nao alimentamos a ilusáo quanto él posse total destas fontes, nem da linha de
pesquisa. Isto significaria cristalizar-nos, perdendo o fluxo que possibilita ir adiante.
Vislumbramos rupturas - resguardando as esséncias - e transtormacoes que no
momento devido a vida irá impulsionar. Isto porque "O mundo nao é aquilo que eu
24
penso, mas aquilo que eu vivo, comunico-me com ele, mas nao o possuo, ele é
inesgotável. Há um mundo, ou antes, Há o mundo"?
NOTAS
25
2. DE QUE (ORPO SE FALA:
A FO N TE, A ES( O LA, O RE FER EN'( IA L
Ousamos falar deste corpo a partir dos aprendizados vividos nas pesquisas de
campo. É importante salientar que cada manifestacáo apresenta especificidades, em
cada regiáo ela é peculiar e cada grupo é único na sua expressáo. Apresentamos,
portanto, uma síntese, pontuando aspectos fundamentais, que foram comuns e
marcantes. Cada referencia enunciada contém desdobramentos que seria impossível
expor neste primeiro relato.
27
proprciararn a corpos distintos encontrarem urna manifestacáó em comum. Portanto,
em solo brasileiro germinou uma diversidade cultural, fruto da condicáo de oprimido,
elaborada e criada nas infinitas redes das relacóes humanas. Ressaltamos a nossa heranca
negra pela sua influencia como forca de resistencia e também como doadora e receptora
de diversas formas de expressáo.
Nossa Sénhora veio do mar nas ondas, indo e voltando. O pavo branco e poderoso fez
rico altar e armou andar para levar a miie de Deus él casa dos homens. Mas a imagem
se afastava, mar adentro, recusando a oferenda dos fortes. Em vño 05 brancos usaram
recursos para conduzir a santa él Terra: enquanto se aproximavam e tanto mais o faziam,
mais ela se distancia va. Os escravos pediram licerice para cantar él beira do oceeno,
batendo seus tambores para a' Senhora. A ingenuidade do pedido provocou nos
fazendeiros tanto a zombaria quando a irriteciio: que traga m a imagem, se ousam crer-
se capazes de mové-Ia. Ou que sejam castigados pelo nao reconhecimento de sua
insignificancia.
O primeiro grupo que se aproximo u da beira-mar foi o congo, com seu canto ligeiro e
forte. Ouvindo-os, a imagem encaminhou-se em sua direciio, num pequeno movimento
de eproximeciio. O congo fez Nossa Senhora mover-se mas, após o deslocamento iniciar
a imagem se deteve. Foi entiio a vez do lamento do Mocembique, que chamou a miie
do céu lenta e pausadamente, pedindo-Ihe para se aproximar pela voz dos instrumentos
e pelo ritmo suplicante do canto. E essim, como o movimento dos negros
mocembiqueiros, a Virgem vinha virido, vindo e vindo até chegar él areia da praia. Mas
ali a imagem foi recolhida pelos Senhores broncos e levada él sua igreja, ande foi adorada
e louvada até a noite.
SÓ até a noite: pela manha, o oratório denunciava o desgasto da santa pela morada. E
novamente o canto do Mocembique foi buscá-Ia para, entiio desta vez ~ transformá-Ia
na Mae Santa dos Negros. No altar ande colocaram, a imagem permaneceu e permanece,
aguardando a religiosidade dos seus filhos primeirose puros, que sabem amá-Ia com o
carpa que dence e com a alma que cbore?
Ao Congo e ao Mo<;ambique uniram-se outros irrnáos, as chamadas guardas de
Marujos, Caboclinhos, Cavaleiros, Catopés e Viláo,
No território dos Arturos, durante as festas do Congado, várias guardas sáo recebidas,
vindas de diversas regióes de Minas. A irmandade é uma combineciio bonita por causa'
da festa, fala-nos José Artur. A festividad e reúne todas as diferencas, sem distincóes.
No espaco descoberto, ao mesmo tempo, dezenas de grupos expressam suas devocóes,
28
entrecruzando sonoridades, cánticos e instrumentos os mais diversos. Marujos falam
com o corpo que danca o desequilíbrio em alto-mar; os Congos através do fluxo livre
de seu s dancantes abrem e dinamizam o espaco: a centracáo e a firmeza dos corpos
dos caboclos tracarn no espaco, através do movimento, suas insígnias; a densidade e
o clamor dos corpos dos moc;ambiqueiros traduzem pelo movimento, em consonancia
com o canto, o lamento. Num único contexto desenvolvem-se linguagens distintas e
cada movimento provém de uma funcáo. A reuniáo de todos os grupos é o que
caracteriza a Festa do Congado. .
Exu mensageira, ponte entre Europa e Recife, com desvio por Angola. Pomba-Cira, filha
da feiticeira ibérica tradicional, revista pelo Portugal escravista e confirmada pela Colonia,
onde tornou a cruzar mandingueiros e cigenos?
A evolucáo da Pomba Gira Maceió culminou com a sua passagem para uma outra
linha, a dos Caboclos. Vejamos um momento de sua identidade como Pomba Gira:
portando sete saias, que váo da chita a
seda, calcando saltos altos e usando muitos
adornos no corpo Maceió realiza os movimentos de Ijexá (proveniente do Candomblé),
dedilhando suas castanholas ao som do atabaque. Também se desfaz de suas saias, de
seus adornos, descalca os pés e realiza movimentos despojados. A representacáo da
Pomba Gira é exatamente esta construcáo e desconstrucáo, sem nenhuma censura
estética, onde todos os elementos sáo possíveis nas diferentes linguagens em que se
t;)' nt
Rompendo os limites espaciais do terreiro de Umbanda, os arquétipos enunciados
pelas entidades umbandistas habitam outros territórios de manifestacóes. No Maracatu
Rural de Pernambuco, os Caboclos de Lanca nos dizem de uma protecáo feminina,
entidade que pelas suas descricóes muito se assemelha a Pomba-Gira. Encontramos
muitos elementos referentes a Umbanda, seja a representacáo de alguns de seu s
arquétipos ou de algum conteúdo principalmente enunciado através de seus pontos
(cánticos) nos Congados, nos Bois, nas Folias e em outros folguedos. O inverso também
ocorre, ou seja, algumas representacóes específicas, relacionadas as dancas e as músicas
de várias rnanifestacóes, presentificam-se dentro da Umbanda.
No dia em que eu motré, eu fa/ei com a minha família, pelo amor de Deus, eu quero
Conga do. As caxas bateno e me puxano, e me levano, e me entregano lá no cemitério.
Dexa a matéria lá, mas a minha alma, essa vai ficá dentro do Conga do.
30
Para adentrarmos neste Corpo Festivo é necessário considerarmos as épocas de
preparativos que antecedem as festividades e também o cotidiano das pessoas envol-
vidas nas celebracóes. No período que circunda os dias especiais, o corpo encontra-
se num estado de prontidáo, portanto, perspicaz e alerta. Ocorrem pequenos movimen-
tos, sutis, que estáo ligados as funcóes e a linguagerri da festividade ou ritual a qual
pertence o indivíduo. José Artur carreia o gado e carreia a bandeira do Congo, a
devocáo que seu corpo expressa é construída nos dois espacos temporais, o do
cotidiano e o da festividade:
Odia em que eu nao sinto o cheira do gado eu edoeco. Denco na guia cetreendo a
bandeira do Congo.
Dentro de um contexto e de um lugar, o ritual é realizado com o sentido de que o
corpo se torne disponível ao recebimento de toreas. que estáo dentro do próprio
indivíduo e além dele próprio.
Uma única manifestacáo contém várias categorias de dancas e cada uma delas
apresenta uma linguagem específica de movimentos, que é comum a todos os
dancantes. Porém, a forca que o movimento coletivo apresenta nao está na uniformidade
e sim na individualidade através da qual cada dancante rece be o movimento em seu
corpo. Podemos dizer que a linguagem coletiva é uma matriz que se mantém viva
devido as peculiariedades e aos significados que cada pessoa imprime ao movimento.
Em relacáo a estas matrizes que comp6em as dancas nao há como precisar suas
origens a partir de referencias culturais transplantadas. A exemplo do Batuque, as pesquisas
de campo realizadas em diversas regi6es nos forneceram uma grande variedade de
dancas que eram consideradas pelos seus "intérpretes" como sendo o Batuque. Em
alguns lugares o Batuque tinha um caráter profano, chamado de Bizarrias; em outros, de
Batuque Sagrado. Alguns Batuques chegam a aproximar-se da danca flamenca em muitos
aspectos, principalmente pela sernelhanca em alguns sapateios. As características comuns
encontradas nos Batuques de Bizarrias foram: a predornináncia da forrnacáo de roda e
de pares, uso do sapateio e das palmas, e a mencáo da umbigada. Antigas batuqueiras
revelaram que a umbigada se perdeu nos tempos. Os sentidos de sensualidade e
sexualidade estavam presentes todo o tempo, porém de forma dissimulada. A presenca
de jogos amorosos, conquista e desafio induziam a várias características na composicáo
dos movimentos na danca. Os Batuques Sagrados foram realizados diante do Altar ou
do Congá, já interligados com outros ritos.
31
A referencia de antigüidade foi incisiva em todo o percurso das pesquisas de campo.
Um foliáo da Bandeira do Divino Espírito Santo, em Turmalina (M.G.L quando
questionado sobre a origem de sua folia, respondeu: Ah dona, isso vem do comeco
do mundo.
Os interiores brasileiros ainda redescobrem em suas festas os cenários antigos e
medievais, onde o homem mergulha nos mistérios de suas raízes essenciais. Nas
Cavalhadas de Pirenópolis (Goiás) identificamos o arquétipo Cavaleiro como sendo o
"engrazamento:" do cavaleiro Mouro com o cavaleiro Cristáo. No jogo das argolinhas,
quando a prenda foi conquistada, um cavaleiro Mouro abriu os bracos e estendeu-se
horizontalmente 50b o cavalo, com o olhar e projecáo de todo o corpo abertos para
o céu. Ao mesmo tempo o cavaleiro Cristáo, após a sua conquista, desceu do cavalo,
fez a genuflexáo, benzeu-se e em recolhimento dirigiu o olhar e todo o corpo para a
terra. Observamos que cada rnanifestacáo nos ensina uma especificidade de dinámica.
O exemplo das cavalhadas - cujo desfecho conduz ao congracarnento entre Mouros
e Cristáos - nos demonstra a uniáo de polaridades através de dois corpos.
A concretude deste corpo, porque matéria e alma, nos ensina que a danca é
conseqüéncia de umas tantas interacóes cuja chave é a memória do afeto. Assim,
penetrar nos simbolismos do Boi, significa morrer e renascer, devolvendo ao corpo
vitalidade. A capoeiragem, que sofre o corpo, significa que o movimento terá torea de
acáo estratégica.
NOTAS
7. Marlyse Meyer-Caminhos do Imaginário no Brasil, presentes nos vários outros terreiros, porém, de
1993. forma fragmentária. Outra característica foi o
dinamismo de trsnsiormecéo presenciado neste
2. Núbia Comes e Edimilson Pereira - Negras raízes terreiro, havendo continuamente novas entidades e
mineiras: Os Arturos, 7988. conseqüentemente navas ritos. 05 rituais e
3. Comunidades dos Arturos - Contagem (MC) entidades foram evoluindo conjuntamente para uma
As pesquisas realizadas nesta comunidade foram nos "performance" cada vez mais elaborada. A
anos de 7987, 7988, 7995 e 7996. Fizeram parte do continuecéo da pesquisa neste terreiro ocorreu nos
Projeto Trilhas e Veredas da Oanr;a Brasileira, cons-tando anos de 7982, 7985, 7988 e 7995. No ano de 7988
de uma ampla documentecéo, estudo e análise. Senda houve o ritual de passagem (ou despedida) da
esta cqmunidade portadora de diversas manifestar;i5es e entidade Pomba-Cira Maceió. No mesmo ritual, após
possuidora de um caráter de resistencia cultural, a desincorporecéo de Maceió, o médium recebeu
represento u um dos mais importantes núcleos de uma nava entidade Pomba-Cira, uma determinada
aprendizado. Maria Padilha. Seguiram-se novos desenvolvimentos,
cujas sínteses fecharam-se no ano de 7995.
4. Terreiro de Umbanda Pai joaquim de Aruanda e
Boiadeiro de Minas - Brasília (OF). 5. Marlyse Meyer - Maria Padilha e toda a sua quadrilha:
As pesquisas neste terreiro iniciara m-se no ano de de amante de um rei de Castela a Pomba-Gira de
7980, tendo como principal fonte o pai de santo Carlos Umbanda, 7993.
Alberto da Costa. Entre as várias entidades que ele
6. Harvey Cox - A Festa dos Foli6es - um ensaio
incorpora va, a Pomba-Cira Maceió foi rigorosamente
teológico sobre festividade e fantasia, 7974.
estudada, servindo esta pesquisa, junto a outrss, como
base para a crieciio do espetáculo Crar;a Bailarina de 7. Núbia Comes e Edimilson Pereira - Negras raízes
jesus. mineiras: os Arturos, 7988.
Nos anos que se seguiram, a presenr;a da
Umbanda nas pesquisas foi incisiva e marcante. Os 8. Nas Cevetbedss de Pirenópolis a palavra
diversos terreiros pesquisa dos apresentaram muitos engrazamento é freqüentemente utilizada para
aspectos que referendavam o terreiro de Carlos, significar os vários momentos coreográficos em que
evidenciando sua clareza, diversidade de entidades há o encadeamento das filadeiras formadas pelos
e de linguagens corporais. Estes aspectos estavam cavaleiros.
32
3. A ESTRUTURA FíSICA
Consideramos como estrutura física a forma pela qual o corpo se organiza para
realizar diversas categorias de linguagens de movimento.
A danca na cultura popular está inserida num amplo contexto, indo além do que
consideramos o enquadramento coreográfico. As linguagens se distingueQ1 porém, a
maneira coJJJ.oo corpo se dis ~se estrutu@ dentro as manifestac;oes populares
brasileiras muito seassemelham.
Anatomia simbólica
A partir de uma intensa relacáo com a terra o corpo se organiza para a danca.
A capacidade de penetracáo dos pés em relacáo ao solo, num profundo contato,
permite que toda a estrutura física se edifique a partir de sua base. A imagem que
temos do alinhamento é de que a estrutura possui raízes.
43
Através da posicáo paralela dos pés, segue-se o alinhamento de toda a estrutura
óssea e a musculatura é trabalhada acompanhando o seu próprio desenho, em es-
piral. No alinhamento, pretendemos respeitar o espaco articular e a ampla mobilidade
de cada uma das articulacóes.
Na parte inferior do corpo-mastro, além do intenso contato dos pés na relacáo com
o solo, a regiáo do sacro exerce a sua forca em favor da' gravidade através do cóccix.
Como se se prolongasse até os pés, localizado no meio deles, o cóccix possibilita
uma terceira base. Em decorrencia destas irnagens a acáo recorrente deste fincar mastro
é representada pela conseqüente elevacao das cristas illacas.
Como apoios citamos: dedos, metatarso, calcáneo, dorso do pé, lateral e medial
(as bordas dos pés). Através da intencáo durante o movimento, a abóboda plantar
busca também o contato. A dinámica dos pés é caracterizada por diferentes
cornbinacóes de apoios e de seus esforcos variados.
Os esforcos empregados pelos pés na relacáo com o solo sáo:
Mínimo - contato de superfície, sutilizacáo dos apoios.
Médio - cantato além da superfície, raizes soltas.
Máximo - penetracáo, enraizamento.
Entre estes esforcos existem outras gradacóes que partrcrpam da dinámica do
movimento. A predornináncia de um dos esforcos representa uma característica
importante na linguagem da danca. Portanto, a quantidade de esforco utilizado no
movimento dos pés está diretamente relacionada a determinados significados, sendo
estes distintos ern cada modalidade de danca.
Dentre as várias funcóes exercidas pelos pés, salientamos algumas encontradas nas
giras da Umbanda e também nos ritos .de Candomblé. No início dos rituais e durante
o seu desenvolvimento os pés exercem a funcáo de sintonizar cada indivíduo consigo
próprio e de estabelecer a relacao com o espaco ritual. Destacamos os seguintes
movimentos que sáo realizados na locornocáo circular da gira:'
- Mantendo o contato de toda a planta dos pés, o movimento desenvolve-se
pelo reforce (impressao no solo) e, ao mesmo tempo, pela mobilidade dos apoios
dos metatarsos e calcáneos. Alternam-se os pés, dirigindo-se para fora (relacionando-
se com o centro do círculo) e no seu retorno se definem em relacáo ao centro do
corpo.
- Duas acóes ocorrem simultaneamente: enquanto um dos pés recolhe energia do
solo, o outro libera energia para o solo. Na acáo de recolher, os pés sugam o solo
(ventosa) acentuando o contato do metatarso e calcáneo e o conseqüente aumento
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do arco do pé. Na acáo de liberar os pés se expandem no solo, ampliando, progressiva-
mente, sua área de contato. O movimento desenvolve-se pela alternancia dos pés nas
respectivas acóes,
Nas distintas linguagens das dancas de cada orixá e entidade, pelos pés
enunciam-se su as configuracóes, associadas a seus respectivos significados. A
maneira como é utilizada a cornbinacáo dos apoios e a quantidade de esforcos
empregados, encontra-se muitas vezes associada a uma acáo específica. Cada
dinámica de movimento apresenta uma cornposicáo rítmica que é auxiliada pelo
toque do atabaque.
Nos Exus predominam os pés entranhados na terra, com esforco máximo, sendo
constante na sua dinámica de movimentos a utilizacáo dos apoios das bordas internas.
Os pés muitas vezes se fazem garras revolvendo a terra. Nos Caboclos os pés
apresentarn como principais características a agilidade e a deterrninacáo, predominando
o esforco médio. Freqüentemente estes pés sáo caracterizados pelo apoio do metatarso
no pé direito e toda a planta do pé esquerdo. Os pés de Obaluaé apresentam
densidade, a saída do solo é mínima como se os pés tivessem fios que continuassem
interligados ao solo durante o movimento. A forca de tracáo é máxima. Em oposicáo,
os pés das Oxuns apresentam uma sutilizacáo dos contatos: perpassando pelos mi-
cro-apoios de todo o pé, o movimento caracteriza-se pela suspensáo, pois o solo é
trabalhado pelos pés em pequenas porcóes como se estes o estivessem acariciando.
Seus pés denotam muita sensualidade. A acáo dos pés de lemanjá procura ampliar o
espaco e trazer o mar. Espalmados, esses projetam-se para fora e recolhem-se ao
centro do corpo com a acentuacáo dos calcanhares. Com esforco médio os pés alter-
nam-se para dentro e para fora. Sáo atributos destes pés o domínio e a seguranca. A
impulsividade dos pés de lansá faz com que os apoios, metatarso e dedos empurrem
o solo e os calcáneos trabalhem em contraponto no eixo dos pés. Estes projetam-se
nas laterais do corpo num ágil deslocamento pelo espaco, envolvendo a suspensáo
dos calcanhares. As Pomba-Giras, pesquisadas principalmente na Umbanda, utilizam
e percorrem todos os apoios, incluindo-se o colo dos pés e as pontas dos pés. Gostam
de portar-se sob os metatarsos (meia-ponta), atributos de sua vaidade. Sáo possuidoras
de grande elasticidade e seus pés nao apresentam limites de elaboracáo no movimento.
Dentro das manifetacóes do Congado em Minas Gerais, destaca-se a linguagem
dos pés dos mocarnbiqueiros. No corpo destes devotos os pés passam a assumir
outros sentidos e funcoes,
Os antigos grilhóes - instrumentos de aprisionamento dos escravos - sáo
transformados em instrumento de danca: sáo as gungas, (Iatinhas com chumbo por
dentro, sustentadas por correias de couro, que abracarn os tornozelos). Os pés
investidos pelas gungas ajudam no transporte para um outro mundo, onde o passado,
o presente e o futuro fazem parte de uma mesma caminhada. Durante o percurso das
guardas, o mocarnbiqueiro levanta a poeira, estremece a terra e arranca de seu inte-
rior a torea. 05 pés entram no solo empregando um esforco máximo, numa entrega
absoluta de que todo o corpo participa. A imagem é de que a terra se move em
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resposta a este chamada, impulsionando os pés de volta. Em certos momentos, quando
este cantata atinge o auge, tem-se a irnpressáo de que o carpa é transportado. No
decorrer do tempo, o diálogo pés-terra toma canta do carpa, ocasionando uma
suspensáo do tronco e os pés quase flutuam.
Diferencas e sernelhancas
A semelhanca entre alguns movimentos pode ser apenas aparente. Nos Batuques
e nos Mo<;ambiques os pés sapateiam, porém sáo movimentos completamente distin-
tos, poi s apresentam funcóes e intencóes diferentes. No Mo<;ambique os pés penetram
a terra e em seguida sáo impulsionados para cima; no Batuque, durante o sapateio
nao ocorre a impulsáo, os pés deixam no solo a torea concentrada. Este fato foi
comprovado com um mesmo grupo de pessoas durante suas atuacóes no Mo<;ambique
e no Batuque.
Os joelhos
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Quando os joelhos sáo os protagonistas do movimento, atingem todas as
possibilidades de flexáo. De forma gradativa ou por impulso, sáo demonstrados em
todos os rituais pela sua acáo expressiva e diferenciada durante as saudacóes a
bandeira,
ao altar, ao congá etc.
A "dobradura" dos joelhos por impulso é bastante significativa na linguagem do
movirnento, quando ocorrem as incorporacóes (Umbanda, Candomblé). O movimento
de "quebra de joelho" ( rápida flexáo por impulso) é decorrente do deslocamento da
regiáo sacra, porém sáo os joelhos que nestes momentos anunciam a entrada de
novos sentidos no corpo.
Nos Cabodos de l.anca do Maracatu Rural de Pernambuco os joelhos sáo as partes
do corpo mais evidentes em toda a linguagem de sua danca. Dentro de várias di-
nárnicas eles direcionam a acáo de todo o corpo; impulsionam-se para recolherem-se
ao solo, para pontuar o espaco ou para estabelecer o contato entre duas pessoas.
Na Capoeira, durante a ginga, os joelhos favorecem a centralizacáo da bacia em
a
reiacao aos pés, auxiliando o deslocamento do peso frente. A pontuacáo irá ocorrer
em alguns golpes como a "joelhada".
Em várias dancas a extensáo dos joelhos dá-se apenas nos momentos de passagem
ou de acentuacáo, durante uma seqüéncia de movimentos, antecedendo-a uma
profunda flexáo.
O "rnolejo" dos joelhos, existente nos vários rituais, é marcante no início dos rituais
do Congado, vindo a favorecer a soltura das articulacóes de todo o corpo.
Os pagamentos de promessa estáo contidos nas várias manifestacóes, onde o pór-
se de joelhos exprime o ato de contricáo a que o corpo é levado.
Na relacáo simbólica e na concretude da acáo física através dos joelhos o
homem redime-se das irnperfeicóes e invoca a presenca do que é perfeito no
recebimento do sagrado.
A pelve
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Independente de serem homens ou mulheres, quando a entidade feminina é
recebida, esta configuracáo da bacia é o movimento mais significativo de todo o
corpo. Portanto, o movimento do infinito na bacia apresenta-se integrado as linguagens
das dancas, sem haver distincáo de sexo, como sáo encontradas, por exemplo, no Boi
do Maranhao e no Congo de Minas Gerais. Nos Batuques, que possuem polaridades
feminina e masculina bem acentuadas, a configuracáo da bacia em infinito estará
presente apenas na linguagem de movimentos das mulheres.
Nas dancas de rituais, esta matriz de movimento, com suas variantes de peso e
grau de grandeza (amplo ou restrito), é fartamente enunciada.
As pesquisas apresentaram um dado bastante significativo: nas mesmas categorias
de dancas - principalmente as dancas de orixás realizadas por pessoas integradas aos
sentidos da rnanifestacáo e situadas no contexto ritual - o movimento da bacia no
infinito a partir do cóccix era evidente. Porém, quando as dancas eram realizadas por
pessoas distantes dos significados e fora de um contexto, o movimento da bacia ocorria
a partir das cristas ilíacas, com a perda do "rabo", o distanciamento do eixo e o desenho
do movimento nao apresentando nitidez.
Os requebros e os movimentos das ancas táo inflacionados nas descricóes das dancas
brasileiras, provavelmente se originam da matriz da pelve imbuída de significados, Porém,
muitos movimentos se difundiram numa forma desprovida de conteúdo, ou seja, com a
perda da estrutura física original. Outros movimentos da bacia como os que se utilizam
das laterais (pendular) e das torcóes obedecem ao mesmo princípio do cóccix-rabo.
Durante as giras, a regiáo do sacro é ativada através da báscula da bacia, para frente
e para trás. No momento da incorporacáo ocorre um forte movimento de impulso na
regiáo do sacro que repercute em todo o carpa. Em seguida o carpa é "tomado",
ocorrendo uma mudanca em toda a estrutura física, que adquire a plasticidade do
conteúdo recebido - a entidade. O campo sutil do movimento é expresso no sacro
através de pulsacóes, incluindo a pequena báscula da bacia e outras acóes que fazem
transparecer a regiáo atuante, porque sentida.
Estes movimentos mais sutis intermeiam os momentos de transformacáo do carpa
no ritual, ganhando maior expressividade quando o indivíduo está incorporado pelo
santo ou orixá.
50
Partes superiores - O movimento do estandarte
A firme base estruturada nas raíz es do mastro possibilita que as partes superiores
da coluna, tronco e membros gerem uma oposicáo quanto a
direcáo de sua expansáo
e integrem as distintas partes do corpo, evidenciando o corpo-mastro com a bandeira.
Na interacáo dos diversos fatores com o movimento, que resulta na danca, haverá
sempre uma postura predominante. Porém, há o dinamismo postural, envolvendo as
passagens de uma postura para outra. Há um sentido e um significado que sáo
fortemente marcados através de uma postura e nas dinámicas das passagens posturais
sáo articulados outros significados que cornpóern o todo da linguagem da danca.
51
o mocarnbiqueiro assume a verticalidade decorrente de uma contínua interacáo
com o mastro festivo, passando pela 'postura perpendicular nas dinámicas de movimen-
tos mais acelerados; e a postura abaulada ocorre quando se faz forte a presenca dos
ancestrais. Os Pretos-Velhos caracterizam-se pelo abaulamento e na dinámica da
linguagem da danca passam pela perpendicularidade.
No Boi Janeiro, da cidade de Rubim (M.G.), o Boi era caracterizado pelo movimento
contínuo da passagem da postura horizontal para a vertical; nesta última o indivíduo
ficava emoldurado pela carcaca e o Boi, desta forma, humanizava-se. Era contundente
neste folguedo específico o significado de Boi-homem.
O tronco
Estamos diante de uma maquinária de forcas na qual as pulsóes cedem lugar a
movimentos, quea primeira vista podem parecer caóticos. Ao agucarrnos o olhar,
percebemos uma sofisticada elaboracáo que nos leva a considerar que sáo muitos os
fato res envolvidos em cada "momento" do tronco. A imagem que temos de sua mobili-
dade ora é de uma torea queprovém das vísceras, ora de uma suavidade que brota da
superfície da pele.
52
proporcionando a soltura dos ombros. Esta regiáo também participa incisivamente das
torcóes. Tomando como referencia uma das omoplatas, vemos que ela estará em
oposicáo as suas partes inferiores, ou seja, estabelece a relacáo com o seu lado contrário,
sendo comum a sua ligacáo com os pés ou com os joelhos. As freqüentes torcóes
acentuam a torea de tracáo para o centro do corpo, pois este movimento faz com que
o tronco serpenteie O eixo de equilíbrio.
Maos
Assim cornoos pés, os movimentos das rnáos utilizam a gama de possibilidades
que esta parte do corpo possui. A sua funcáo essencial (a apreensáo) encontra-se
presente numa ampla linguagem gestual como, por exemplo, nas dancas de Xangó.
em que as rnáos materializando o imaginário, através do movimento,retiram granitos
do corpo, lancando-os no espaco.
Observamos que estes pontos das rnáos - atuantes na forma em movimento da pessoa
que incorpora a entidade - estáo relacionados aos plexos que aferem a qualidade
determinante da entidade. No Caboclo as máos tomam as formas da flecha e do arco,
representadas pela abertura e alongamento dos dedos polegar e indicador associados
aos chakras esplénico e cardíaco (que estáo relacionados a esta entidade). Durante
este movimento os demais dedos permanecem recolhidos.
Ogum, cujas máos e bracos se transformam ern espadas "que cortam demandas e
abrem caminhos", no movimento do corte tem a lateral da máo direita contactada
com a palma da máo esquerda, exatamente em direcáo ao ponto que corresponde ao
chakra solar, referente a atuacáo desteorixá. Outra correspondencia é que na danca
guerreira de Ogum o movimento das máos como espada, antes de projetar-se para o
53
espaco. desenvolve-se em direcáo aos demais plexos situados no tronco e relacionados
a postura de Ogum.
Os movimentos expressivos das máos sáo determinados por acóes que caracterizam
o orixá. lansá, com o objetivo de expulsar os egúns (almas errantes), desenvolve a acáo
de empurrar, continuadamente. Suas rnáos alternam-se a frente, onde o empurrar obedece
a um ritmo e a uma dinámica que se unem as suas caraterísticas: vento e tempestade.
Na acáo correlata aos pés, as rnáos recolhem o que está no espaco a sua volta e
expressarno que no corpo está armazenado.
Cabeca
O Santo reside na cabeca, assim nos dizem os devotos e filhos-de-santo. Pertencendo
a uma coroa energética dos chakras coronal, frontal e cervical, a cabeca é freqüente-
mente relacionada a ligacóes maiores. Esta área do corpo, como portadora de toreas
mentais, promove uma gama de sensacóes físicas que se refletem nos movimentos,
cujas proporcóes sáo variáveis, dependendo da intensidade do intercambio entre o
que está dentro e o que está fora.
O gesto de "bater a cabeca", mais do que um cumprimento, uma saudacáo,
significa entregar-se as forcas divinas e assim estabelecer a uniáo do interior com o
exterior. No início dos rituais, este gesto é representado pelo contato da cabeca
com os espacos e objetos simbólicos, agregado res da torea divina. O movimento se
processa de forma contida, mas também chega a tomar uma amplitude que envolve
a irnpulsáo de todo o corpo.A pessoa atira-se ao chao e, diante do simbolizado,
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faz o contato primeiro da cabeca com o solo levando todo o corpo a realizar o gesto.
As relacóes que o olhar estabelece sáo determinantes na postura da cabeca:
O mocembiqueiro dence olhando pro chao, de csbece baixa, porque o poder do
tnocembiqueiro é a humildede."
Porém, quando os mocambiqueiros e os demais folióes do Divino percorrem os caminhos,
o olhar estende-se para o horizonte e a cabeca se centra no cume do mastro.
Nos momentos em que o olhar está introjetado, os movimentos da cabeca sáo
conseqüéncias dos impulsos das várias partes do corpo. Nas incorporacóes e
desincorporacóes o olhar está para dentro e a cabeca entrega-se dinámica da a
linguagem de movimentos.
O significado e a direcáo do movimento da cabeca-mastro estabelecem a integracáo
com o seu prórpio cume, ocasionando combinacóes de movimentos: a cabeca estende-
se ao alto em pequenos círculos, pende para as laterais e para as diagonais sem que
haja tensionamento das vértebras cervicais.
A cabeca, portando-se com altivez quando direcionada para o alto, ou com
humildade quando inclinada para baixo, póe-se em movimentos entre estas polaridades,
através de rotacóes e pontuacóes.
NOTAS
7. Nos referimos a intensidade emocional no com o mestre Liu Pai Lin e Lucia Lee (7987) foram
momento em que a pessoa integra em si mesma os ferramentas importantes para a percepciio dos circuitos
significados do mestro. como centro energético da da energia em relecéo ¿ qualidade do movimento.
(esta.
7. Linha: faixa energética ande se manifesta determinada
2. Cavalo = médium. entidade.
3. Dentre os vários grupos de Mor;:ambique 8. Umbanda: Uma religiáo brasileira / Revista - 5Jo
pesquisa dos, este aspecto foi fortemente evidenciado Paulo: Escala, ano 1,n. 3.
entre os Arturos.
9. Umbanda: Uma religiio brasileira / Revista - 5Jo
4. "Dobredure" - termo utilizado nas aulas práticas, Paulo: Escala, ano 1,n. 3.
referindo-se a flexJo dos joelhos.
7O. Umbanda: Uma religiJo brasileira / Revista - 5Jo
5. "Molejo" - pequenas flexoes dos joelbos, realizadas de Paulo: Escala, ano 1,n. 3.
forma contínua.
7 7. 5ebastiana, capitJ de Mocembique, Bom Despacho
6. 05 treinamentos do movimento interior aprendidos (Me),7987
55
-- -----~~
4. AS PASSAGENS DO SENSíVEL-
O MOVIMENTO INTERIOR
É inguma do Rosara
Foi vovó que me ensino
Todo mundo chora gunga
Eu também quero chorá
Essa gunga vem de longe
Ela vem de bera-mar
Aí meu Deus, to no meio do mar marinhera,
O que será de mim, oh meu Deus'
No percurso das lernbrancas que afloram nas imagens dos cánticos o corpo do
congadeiro é transportado para sentir junto com o outro, aquele que representa o an-
cestral escravizado. Uma argamassa de dor, saudade, melancolia e revolta é a heranca
recebida, mas o devoto a depura e a transmuta em forca para superar o próprio legado.
No Congado, a Senhora do Rosário centraliza a fé possibilitando que cada indivíduo,
com a forca do grupo (vivos e mortos), faca o seu resgate de pertencimento a um
espaco, na grande gira do mundo simbolizada pelo rosário de Maria:
Nossa Senhore me chama ... No Rosero de Maria, ora vamo velejé." "O maió gosto
da minha vida isso ei, eu va morré no tambo do Rosário de Maria, se Oeus quisé.
é
Tudo é firmado para N. Sra. do Rosário, Preto Velho, Maria Conga, Mae Maria, Pai
Joaquim. .. nós combina com essa turma toda aí... Nossa influencia maió Nossa Senhore
é
63
A bagaceira é resíduo, esséncia donde se extrai um corpo. No maracatuzeiro os sentidos
agressivos e sexuais se misturam, os estados de torpor e prontidáo se alternam. O
pacato homem, quando deste corpo se investe, transforma-se num esfuziante guerreiro.
Seja no Congado, no Maracatu, nas giras de Umbanda, o corpo sofre uma modelagem
proveniente de um percurso interior situado nos desdobramentos que cada festividade
apresenta. O guerreiro desponta em todas as celebracóes, pois as histórias notadamente
marcadas pela opressáo impulsionaram e geraram festividades. Observando-se a
religiosidade dos pobres e dos negros na América, fica evidente que a habilidade de
celebrar descontraidamente mais encontredice entre as pooulecocs a quem nao
é é
estranho o sofrimento nem a opressño. Tudo isto nos sugere que a verdadeira celebreceo
nao foge diante da realidade, da injustice e do mal, mas se realiza da maneira mais
euténtice. onde se reconhecem e supera m essas realidades negativas e nao onde séo
evitedes'' Os espacos das festas sáo os campos de batalha onde a vitória deve ser
conquistada. Portanto, a guerra vira festa que é a própria guerra.
O período que antecede o dia da fe sta é marcado por preparacóes e rituais com
uma largueza na duracao do tempo para que se possa instaurar os fundamentos e
firmá-Ios. Os fundamentos sáo os preceitos, ou seja, tudo aquilo que produz o
conhecimento da origem e dos motivos de existencia e permanencia de cada
manifestacáo. Dentro de um contexto, independente da manifestacáo, trata-se do
período em que se prepara o corpo e o espaco para sua firmeza. As acóes denotam
movimentos expressivos, sem que haja em nenhuma delas o intuito de
dernonstracáo. Os gestos sáo carregados de intensidade, pois é quando a pessoa
absorve , através de várias dinámicas de trabalho, os fundamentos. A acáo e o
gesto sao para realizar a firmeza, que significa receber gradualmente os
fundamentos no corpo. Para a danca chegar no dia da festa, o movimento é
preparado a partir do contato com um mundo originário, adquirindo uma linguagem
cifrada e, entáo, se expóe num mundo presente, cujo cotidiano é cheio de arneacas.
Nestes gestos rituais, antecedentes da festa, observamos que há uma forca aliada a
delicadeza, provinda de um elaborado percurso interior: Nós nao temo Macumba, o
que nós temo é Adorecño.'
~
Penetrando a festividade, nos deparamos com uma danca interior que os olhos nao
véern. a nao ser através do que é indentificado como uma coisa mágica. Junto a seus
intérpretes, dessa danca. fomos verificando que há um processo e, por que nao dizer,
um método que resulta nesta magia. Observa-se tres aspectos que interagem no
percurso interno: 1 - as lernbrancas, com os seus campos de imagens; 2 - os
deslocamentos das ernocóes e dos afetos; e 3 - as sensacóes. Depois de feito este I
percurso de dentro para fora, ocorre também o circuito inverso, ou seja: os movimentos I
gerados, os cantos e as músicas pronunciados, os objetos investidos e o caminho
percorrido no tempo e no espaco presente retornam ao interior das pessoas como j
uma realizac;ao que motiva e confirma o senti~ de estarem vivas. __
65
uma dinámica em que elas logo se modificam. O sentimento de devocáo (= dedicar-
se a alguém ou a entidade) torna-se complexo nesta parte do percurso interno. A
devocáo aqui apresenta-se como um elemento de grande torea, poi s permite ao devoto
ultrapassar os limites do espaco opressivo e construir outro espaco onde sáo conquista-
dos os sentimentos de liberdade e igualdade.
O significado do Ioiio do Mato é trebelho. é uniiio. A lembranc;a ... o coteciio ... bate
mais forte. Aí parece existir uma toree grande e o trabalho nao cansa nede"
Os antigos mestres fazem referencias a perda progressiva dos fundamentos. Isto é
demonstrado pela ausencia das preparacóes e a conseqüente fragmentacáo da
festividade. Quanto a qualidade do movimento, observamos uma perda substancial
que atribuímos ao fato do corpo nao ter mais uma resposta advinda de seu percurso
interior. A danca deixa de ser compartilhada para ser apresentada. Nestes casos o
fator externo passa a ser mais importante, a festividade sai de seu contexto e de seu
lugar, torna-se uma "dernonstracáo folclórica". Vimos vários grupos com o figurino
impecável, a coreografia certinha, e todos sabedores da história de sua origem e
desenvolvimento. Porém seus corpos nao tinham nada a dizer, só a representar, como
se as imagens e as lernbrancas nao mais circulassem pelo corpo.
Um recorte significativo
66
brigeciio con tin uá. o
cenário era de muita pobreza e as pessoas pareciam apáticas.
Num tempo lento e concentrado cada um foi tomando o seu lugar: o de Boi, o de
Maria Tereza e cada qual tomando seu instrumento. As caixas cornecararn a bater, o
movimento foi sacudindo a poeira e a vida foi brotando. O Boi saiu para as ruas,
como sempre ocorreu no antigamente, mas no hoje nao foi recebido nas casas e nem
os moradores do lugar quiseram compartilhar sua celebracáo. Nao havia grandes
atrativos visuais, a música e os movimentos eram simples. Porém, naqueles corpos
um pulso se mantinha, junto a uma forca surpreendente: eram corpos ainda ligados a
uma heranca que agucava-lhes os sentidos. Havia uma qualidade nos movimentos,
poi s uma história em meio aos destroces e as indiferencas ainda percorria o corpo de
cada foliáo.
Quanto aos segredos, cabe a nós pesquisadores deduzir seus significados quando
mergulhamos na fala do corpo. Um corpo que nos induz a encontrar as passagens
secretas de um movimento nascido da memória.
NOTAS
7. Cepitiio Antonio (Conga do dos Arturos), 7987. 7. Divina, candombeira de Jaboticatuba (MC), 7988. A
referencia ao termo Macumba é usado no sentido
2. Canto de Moc;ambique pejorativo ou de magia negra.
3. Canto de Moc;ambique
/¿. Pierre Fatumbi Vergel' - Orixás: Deuses lorubás na
4. Depoimento de José Francisco Lourenco, Africa e no Novo Mundo, 7987.
candombeiro de Fidalgo (M.C.), 7987.
9. Depoimento de Carlos Alberto da Costa (Umbanda -
5. Depoimento de Mestre Salustiano (Maracatú Rural D.F.), 7995.
Piaba de Duro, Tabajara,PE), 7992.
7 O. Cantos de Conga da - Arturos
6. Harvey Cox - A festa dos folióes - um ensaio
teológico sobre festividade e fantasia, 7974. 77. Depoimento de ¡oao Batista da Luz - Arturos, 7987.
67
5 - CARACTERíSTICAS DA LINGUAGEM
Os sentidos no carpa
75
suas respectivas guardas. A guarda de Congo tem a funcáo de abrir o caminho, de
prepará-Io e dinamizá-Io. O Congo puxa o Mocambique, que é a guarda que traz a
coroa, a santa, enfim, os fundamentos dos devotos do rosário.
A bandeireira da Folia de Reis retém no seu corpo a bandeira e os tres Reis Magos,
que disíarcados em palhacos, dinamizam o espaco a frente com suas acrobacias. Em
alguns momentos, a bandeireira solta o seu movimento e faz evolucóes com a bandeira
em que atua o "tónus de Apoio". Enquanto isso, os palhacos ficam de forma concentrada,
sustentando os fundamentos em pontos específicos de seu corpo - resistindo.
Nas histórias que esse corpo conta há uma evidente carga de dramaticidade,
conferindo uma imediata resposta de intensidade muscular. Esta aos poucos se reduz,
modulando as expressóes que o movimento desenha no corpo sem nunca perder o
seu caráter essencial, o de resistir. Nos momentos de baixo tónus o corpo está em
prontidáo, o que denota a presenca da resistencia mesmo quando o corpo possa
parecer, pela sua atitude, entregue, absorto.
o pulso
O corpo palpita, lateja, pressente
Soam os primeiros toques dos tambores, dos pandeiróes, das caixas e de tantos
outros instrumentos com os seus timbres, ritmos e construcóes musicais, fazendo
vibrar no espaco-ternpo da festividad e a caminhada do Congado, a saída do Boi, a
roda da ciranda, a onda do frevo ... A entrada do instrumento pede ao corpo que
pegue o pulso.
O pulso sáo as vibracóes da música captadas pelo corpo na regiáo das vísceras e
do diafragma e que váo se irradiando para o plexo solar até tomar todo o corpo.
Inicialmente·há um preerichimento de ar, como se o tronco abrisse os seus espacos
para o recebimento do pulso. Há uma expansáo e uma contensáo na regiáo do
diafragma que figuram num desenho específico de palpitar.
instaurador da dinámica de cada danca e que permanece durante todo o seu tempo.
- Pulso na vertical
(acentuacáo do eíxo-mastro)
Ex.: .Mo<;ambique (MG), Ciranda (PE)
76
- Pulso na horizontal
(muitas vezes está associado a algumas dancas de orixás femininos, nas quais
ocorre o movimento da bacia em infinito) Ex.: O Candombe (MG)
- Pulso pendular, nas laterais
(sustenta o centro do corpo de tal forma que possibilita o movimento das pernas
nas laterais sem que haja a transferencia de peso). Ex.: Caboclinhos (PE)
- Pulso pendular, frente e atrás
(as partes anterior e posterior do tronco sáo igualmente acentuadas durante o
movimento). Ex.: rnovimento dos caboclos no Boi de Matraca (MA)
Quando o pulso está bem instaurado (há rituais onde o pulso é trabalhado por um
longo tempo) evidencia-se uma forte presenca de todo o corpo, como se o pulso o
deixasse pronto para a entrada e saída dos impulsos.fluxos e pontuacóes.
Um impulso imprevisível
A bandeira do Divino chegou na casa de uma mulher que nao tinha pés, apenas dois
cotós, nos quais ela se apoiava para caminhar com dificuldade. A uma certa distancia da
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bandeira, ela parou. Todo o seu corpo vibrava, emocionado pelo encontro com o sagrado.
A um só tempo ela impulsionou-se e se quedou ajoelhada segurando a bandeira.
o dínamo
Há momentos em que o corpo penetra num fluxo contínuo de movimentos cheios
de impulsos e pontuacóes, A pulsacáo é mantida como se auxiliasse a respiracáo para
regular a quantidade de energia liberada em cada movimento. O sentido que encontramos
para localizar este processo assemelha-se a uma conversáoda energia mecánica em energia
elétrica, poi s o corpo potencial iza-se. Sucessivamente um movimento gera o seguinte. A
rapidez deste processo, em que há o entrelacamento do movimento interno e externo,
ocorre num corpo super estimulado, pois o dínamo instaura-se no indivíduo quando ele
atinge o ápice de sua integracáo com todos os elementos da festividade, encontrando-se
também harmonizado com o grupo participante. Geralmente, este processo de fluicáo se
desenvolve nos dias em que corre o giro da bandeira, no meio de uma gira de Umbanda,
no meio-dia quente da onda do frevo, ou seja, no instante em que é necessário a
superacáo de limites. O corpo do foliáo ou do devoto, com o dínamo, tem fólego para
mover-se com gosto até o fim de cada jornada.
Dinámicas específicas
Consideramos dinámicas específicas o desdobramento de certas características de
uma linguagem e que sáo incisivas em uma manifestacáo. Sáo características que
abrem um processo com um teor que extrapola a sua própria especificidade, quando
algo de sua essencia passa a fazer parte da natureza do corpo, frutificando-se em
outras linguagens.
Ginga
Compreendemos a ginga como uma situacáo do corpo de refletir-se em interacáo
com o espaco. estando pronto a dar respostas imediatas e convenientes as circunstán-
cias em que se encontra. A ginga é uma matriz de movimento que contém todos os
pulsos, todas as direcóes e pontuacóes advindas de muitos estados que o corpo acorda.
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aparar (defesa) há uma constante mobilidade dos bracos, repetindo-se as passagens
em que o tronco se mostra e se resguarda. Na medida em que a base vai adquirindo
raíz es há um maior equilíbrio, favorecendo a flexibilidade e agilidade do tronco. Na
alternancia contínua dos bracos e pernas no alinhamento do corpo em X, a estrutura
do movimento que está dentro de um quadrado adquire uma forma arredondada.
A dinámica da ginga trabalha com a arnpliacáo e a reducáo de seu movimento. A
atencáo do olhar é um fator importante, pois interage com o eixo e a unidade do
corpo.
No vai e vem da ginga, os que jogam procuram mais que induzir o adversário a um
erro, ficam essim como certa vez falou Mestre JoJo Grande, esperando um buraco
para entrar dentro do cemerede" ..
Quando se fala que a ginga é urn jeito brasileiro de mover-se vemos que é preciso
aferir seus fundamentos, isto é, o que propiciou a geracáo desta matriz de movi-
mento. As atribuicóes de seus disfarces sáo rerninicéncias de um tempo em que era necessário
encobrir um corpo que lutava. Hoje esta memória continua impressa em alguns corpos.
O que eu gosto de lembrar que a capoeira apareceu no Bresil, como luta contra a
é
escravidJo (Mestre Pestintis)". Quando a pessoa se apropria da ginga sem cultivar a sua
principal característica, ou seja, a unicidade que cada pessoa é quando ginga, a memória
nao se instaura em seu corpo.
É preciso gingar muito, gingar sempre - este é o conselho que todo Mestrede
Capoeira repete cotidianamente - na vida. -
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~
Sempre com um pé atrás ... manter-se sempre em equilíbrio, permanecendo o maior
tempo possível em contato com o chao ... Ter paciencia para estudar bem o jogo do
adversário e poder agir no momento oportuno"
Este legado da Capoeira correu céus, correu mares, correu terra desembocando
nas entidades de Caboclos, Marinheiros e Baianos nos terreiros de Umbanda. A ginga
também está no capitáo Zé Bengala que puxa o Congo dos Arturos, mas nos outros
capitáes nao, eles nao trazem a ginga no corpo. Percebemos neste campo da
pesquisa que nao se trata de uma ginga montada, coreografada. Ela brota no corpo,
no ato da incorporacáo das entidades como também neste capitáo no seu ato de
puxar o Congo para fazer a caminhada.
A ginga dos Passistas é um trampolim para as suas arremetidas ... Da capoeira foi
tudo o que o passista do Recife guardou, do ponto de vista dinámico. Há de haver
quem por aí estranhe a afirmativa, depois de se ter dito que o passo vem da Capoeira.
A verdade, porém, é que nao encontro em fotos, desenhos, descricoes pormenorizadas
da capoeira, nenhum golpe, nenhuma atitude que me permita estabelecer releciio de
semelhence com 05 passos do passista do frevo. Encontro, todavia, mais do que tudo
isso poderia representar como herence natural, encontro o espiríto da capoeira ....8
Alguns anos atrás, em Sáo Paulo, no cruzamento da avenida Estados Unidos com
a avenida Nove de Iulho, observei uns meninos de rua que vendiam balas. Entrela-
cande os seus corpos por entre os carros, seduziam os fregueses para a compra, ao
mesmo tempo em que o olhar percorria o sinal e cuidava dos irrnáos menores. O
tronco pontuava, torcia e retorcia. Na defesa e no ataque, um dinheiro na máo e
muitas ofertas na outra os meninos faziam um jogo de sobreviver: A vivacidade do
olhar, pelo exercício da visáo periférica, interferia em todo corpo como se estivesse
todo ele antenado. Com matreirice os meninos conduziam o movimento dos olhares
apressados. Com precisáo rítmica, todo o carpo das criancas se articulava e no tempo
ex ato recuava para a calcada, até o próximo sinal abrir-se. Foi essa a ginga mais perfeita
que já presenciei.
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Incorpora/Desincorpora
A dinámica de lncorporacáo e Desincorporacáo, pesquisadas nos rituais brasileiros,
leva-nos a considerá-Ia como um fator que nos traz dados fundamentais para
compreendermos o processo da linguagem de um corpo pleno.
Nao resta a menor dúvida quanto a delicadeza do assunto, mesmo que a abordagem
nao resida no desvendamento de crencas e nem tampouco das religióes, Todavia,
verifico u-se a importancia de investigar o corpo em transe, na entrada e na saída deste
movimento, principalmente quando um determinado dado cornecou a insistir no
percurso dessa leitura. Trata-se, por exemplo, das revelacóes de alguns pais-de-santo
do Candomblé quando dizem que o orixá ou santo reside dentro da pessoa, mesmo
havendo a crenca de uma forca sobrenatural atuante.
O fato é que essa dinámica nos aponta o quanto da natureza do corpo e de seus
recursos ainda desconhecemos. Quando um pai-de-santo diz que o artista é um
11
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peculiar característica de sua entidade, mesmo que já a tenha visto em sonhos e em
imagens mentais no estado de vigília. Enfim, os aspectos físicos da entidade, as paisagens
em que habita e até mesmo os seus dados emocionáis sáo mistérios. A entidade só se
tornará conhecida, a partir do momento em que for incorporada. A concretude da
história personificada na entidade será relatada a partir deste momento, quando sentidos
e ernocóes tomam corpo. O desenvolvimento da entidade irá ocorrer na medida em
que houverem sucessivos Incorpora e Desincorpora, o que quer dizer, por a entidade
em uniáo com o seu "cava lo" para trabalhar.
corpo" para em seguida adquirir "um novo corpo". Isto demosntra que se desenvolve
uma soma do corpo da entidade com o do médium que a recebe. Neste estágio há O
perder, o ganhar e o somar. No corpo do médium há uma entrada e uma saída de
conteúdos que se misturam, gerando impulsos, fluxos e pontuacóes.
As vezes é um empurréo, assim pela frente ... um choque, eu me sinto assim como
se fosse um choque, cada um sente de um jeito"
as pemas eu sinto uma bambeza, dá uma eensecso de que eu vou ceit; nos pés eu
já sinto um calor muito grande e os pés cotnecem a suar. Na espinha dorsal eu sinto
uma dotméncie. Na cebece eu sinto um formigamento. Séo sensacóes diferentes para
cada Falange. As sensecoes também séo direcionadas exatamente nos pontos onde
estéo localizados os chakras. É como se toda a sua energia viesse para aqueles pontos
de vibrecio (relacionados a cada entidade). É como se vocé tivesse sentido uma mutecso
em cima destes chakras, é como se tivesse levando uma agulhada na espinha dorsal. A
partir da i dá-se a incotporecño."
Em movimento o chamado denso corpo físico se extrapola, deixando evidente que
está sendo tomado. O "eixo-mastro" inclina-se, gira, tomba. O sujeito vive o movimento
da perda da centracáo, pois preciso sair de um eixo para adquirir outro. A "parte
é
82
enormemente. As impuls6es chegam as vezes a estender o sacro sobre os calcanhares.
Em outras atuacóes, o movimento sutil, ficando bem delimitada a área receptora e
é
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internamente e que é construído de forma gradual com a efetiva participacáo do corpo-
sujeito. Se noventa por cento da lncorporacáo depende do médium, o mesmo podemos
dizer do intérprete na construcáo da personagem. A outra porcáo que corresponde a
entidade na Umbanda podemos compará-Ia a
interferencia do talento inato do intérprete.
No complexo mecanismo de que nos fala a Umbanda - onde um fluxo energético
atua nos corpos físico, emocional e mental em interacáo com a entidade espiritual -
étáo importante o Incorporar quanto o Desincorporar. Em ambos há uma circunstancia
de desequilíbrio pela qual o corpo precisa passar. Aos poucos os movimentos caóticos
váo se fundindo até chegar a clarear uma forma concebida. O corpo foi reequilibrado
e reorganizado. A potencia que o corpo adquire, para reverberar um conteúdo de sua
intimidade em relacáo direta com um inconsciente coletivo, torna o sujeito táo distinto
de sua roupagem cotidiana que muitas vezes chega a ser o seu oposto. Mas esta
realidade do sujeito incorporado também acaba intervindo em sua realidade cotidiana.
O "cavalo" nao escolhe o que vai incorporar. Trata-se de uma verdade que nao
depende do gosto da pessoa. A pessoa abre rnáo de sua auto-imagem para receber
em seu corpo o que for preciso, necessário.
NOTAS
1. o professor Klaus Viana, em suas aulas práticas de especo que circunda o corpo, predominando uma
dence, empregava os termos "resistencia" e "epoio", rápida mudanr;:a das sustentecoes dos grupos musculares
para distinguir qualidade de movimentos, quando utilizados durante o movimento.Há uma extroversiio no
realizados com a intencño da musculatura e com a caráter do movimento mostrando que o livre fluxo é
intenceo da osseture, respectivamente. Vivenciando mais atuante. Vivenciando este tónus através dos
estes aspectos, como sua elune, tornavam-se claras as movimentos assim identificados, percebemos que a
distintas qualidades de tonus, auxiliando-me na referencia está na percepciio da ossatura, principalmente
pesquisa em meu próprio corpo e na leitura do corpo a través das articular;:8es.
do outro. Portento, utilizamos "resistencia" e "epoio"
para qualificar alguns níveis de tensiio da musculatura, 2. Hélio Campos - Mestre Xareú, 1990.
por serem palavras realizadoras do movimento no 3. Reportagem Anónima "Cepoeiregem e os seus principais
corpo. cultores; a ar;:aoda Policie, de Vidigal a Sampaio Ferrez" -
A somatória das pesquisas conduziram as seguintes Vida Policial - Rio de jeneiro, 21 de merco de 1925.
interpretar;:8es: 4, 5 e 6. Cezar Barbieri - Um jeito brasileiro de aprender a
No "tónus de Resistencia" a ar;:aomuscular é de ser, 1993.
entepero, no sentido de proteger, resguardar, defender 7 Waldeloir Rego - Capoeira Angola Ensaio Sócio-
o corpo do meio externo. Na intenr;:ao do corpo resistir, Etnográfico, 1968.
há uma contenciio da toree e o fluxo do movimento
está sob controle. A imagem que o corpo apresenta é 8. Waldemarde Oliveira - Frevo, Capoeira e Passo, 1971.
de densidade. Realizando os movimentos provindos das
9. Carlos Alberto da Costa - Umbandista, Brasília (DF),
pesquisas de campo que identificamos com este tonus, 1995.
verificamos que há uma intencéo do corpo de penetrar
incisivamente o especo. Apesar da referencia deste 10. "Umbende, Uma religiéo brasileira''¡Revista - Sáo Paulo:
tonus estar na percepciio da musculatura, sentimos na Escala, ano l.
sua gredecéo máxima algo como se a ossatura
"perfurasse a carne". 11. Umbandista - Campinas (SP), 1995.
No "tónus de Apoio" a ar;:ao da musculatura deé 12, 13, 14 e 15. Carlos Alberto da Costa - umbendiste,
encontrar epoio, com uma referencia de densidade no Brasília (DF), 1995.
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8. O PROCESSO DE CONSTRU~AO·DO
BAI LARI NO-PESQU ISADOR-I NTÉRPRETE
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Na pesquisa de campo, o corpo do bailarina deve estar preparado para a coleta
de dados. No mínimo, os seus pés já contactam o solo com alguma raiz. Portanto, o
seu corpo já nao é táo diferente dos corpos que ele vai pesquisar. A percepcáo do
"olhar", exercitado nas aulas de danca, deve habilitá-lo a ler como o movimento se
processa na pesquisa de campo, com agilidade para detectar as partes mais evidentes
e a totalidade do corpo que aí danca.
A preparacáo para o campo exige centracáo, com todos os atributos do que seja
eixo: postura, neutralidade e um estar presente (= envolvimento com a realidade,
despojado dos pré-eanceitos, relacionados adanca). Ao mesmo tempo há que se ter
um corpo aberto para o recebimento do material da pesquisa em si mesmo. Há que
se ter folégo e paciencia para pesquisar "o corpo que danca" em todo o seu contexto.
148
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Através dos laboratórios vivencia-se o vazio, o caos, até a conquista de uma forma
ordenada. No espaco fechado da sala, o bailarino-pesquisador-intérprete vai construindo
paisagens imaginárias e passa a atuar dentro delas. Nao há preocupacóes quanto a
reter o que vai sendo expresso, nem tampouco as descobertas sáo racionalizadas. O
trabalho é conduzido de maneira que as paisagens possam se fundir e sofrer
transforrnacóes. Naturalmente, algumas paisagens cornecarn a se repetir, entrelacadas
a "alguém" que circula ou habita nelas. Continuamente é solicitado ao bailarino que
faca a projecáo das imagens internas nas paisagens-cenários e que elas retornem
modelando algumas partes do corpo em movimento. Nesta fase van se desdobrando
e se integrando os dados das fontes de pesquisa (do campo e do Intérprete) e a
linguagem de movimento é mesclada. O movimento-síntese irá ocorrer no momento
em que uma imagem-chave (somatória de várias imagens), ganhar contorno e lugar.
Através do movimento, o bailarino ve dentro dele algumas características de uma
~ em seu espaco originário. A partir de entáo ele irá "incorporá-Ia" e todo o
seu trabalho vai se desenvolver por intermédio dess~s~na~
149
compartilhá-Io com O público, mesmo diante de rejeicóes, Neste estágio, vivido em
profundidade, o bailarino reconhece o tributo a pagar pelo próprio desenvolvimento,
quando o aplauso nao é a forma mais esperada de reconhecimento pelo que é feito.
Como um grande quebra-cabecas as pecas váo se encaixando - neste jogo nao cabem
as casualidades e sim interacóes - revelando a coeréncia do percurso construído.
Lentamente sentia que meus pés se assemelhavam as raízes procurando o solo para
penetré-lo cada vez mais. Percebi que do centro do carpa vem a intencño do movimento
a ser realizado e nao a forma a Ihe dar intencéo.
Sinto que agora consigo aproveitar um aspecto que vejo como importante no trabalho,
que o respeito pela individualidade de cada um. Fico mais comigo, experimentando
é e
150
me dando o direito de me sentir. Entiio, acho que pela primeira vez acredito que tenho
potencial.
O percurso interior (imagens e registros emocionais) é desenvolvido em interacáo
com o movimento exterior, buscando-se sempre uma expressáo que seja resultante da
realidade do sujeito bailarino.
Eu nao conseguia ter imagens - que diabo de imagem é essa? (eu pensava). Ficava
tiio distante daquilo, nem ao menos a tal da paisagem me aparecia. Eu até tentava
e
imaginar alguma de que eu gostasse, mas ficava falso logo ela me fugia. As coisas
comeceretn a tomar algum sentido para mim durante um exercício no qual vocé
(Craziela), partindo de um pulso, pediu para irmos intensificando-o e deixando que ele
tomasse todo o corpo. Depois pediu para que ele fosse diminuindo até ficar só dentro
do corpo como uma sensa<;ao do pulso. Neste dia eu consegui ver uma paisagem, ela
simplesmente surgiu (vocé também pediu para que deixássemos os "pés nos trilhos"}.
Junto com esta paisagem eu também me movimentava sem estar pedindo ao meu
corpo. Era como se meu corpo tivesse criado inteligéncia. A partir deste dia as imagens
foram surgindo.
Tive a possibilidade de o tempo todo nao ficar preso él aquisi<;ao de passos ou
seqüéncias, mas sim de tentar a essocieciio entre intenciio/gesto/reeciio.
A grande preocupecéo com a base (os pés), o contorno com o chao e o "rabo"
possibilitaram-me um bom desenvolvimento técnico com liberdade para sentir o
movimento e fazé-Io a partir do meu corpo. No comeco me assustou, m?s me fez muito
bem, pois eu podia fazer o que estava sentindo e nao o que tentava copiar. As imagens
ajudaram bastante.
Eu nao conseguia fazer nenhum movimento na frente do altar. Parecia uma heresia.
Como me diziam na infancia: nao pode dencer na igreja, nem no cemitério, nem na
quarta-feira de cinzas, sábado de Aleluia ou dia de fina dos. E nao adiantou eu pensar
racionalmente que era tudo uma grande besteira. Muscularmente eu estava paralisada
por estas lembrences.
Houve o momento de lnsegurence, de querer protecéo - "a personagem" entrou na
cara vela e partiu.
Ao bailarino é solicitado o inventário de suas origens, de seus registros culturais, de
sua relacáo com aterra.
Minha avó me puxava e denceve cana verde, na minha frente, em sua cozinha. Eu
nao entendia o que era aquilo.
No universo de "meu quintal" tinha uma avó benredeire, um avo que fazia promessas,
minha mée ligada él religiosidade popular. Eu discrimina va tudo isso, preferia a diterence,
construindo uma falsa identidade. Hoje percebe que há um universo muito meiot em
ser brasileiro. Os dados que levantei mostraram-me como tudo isso faz parte de mim.
5ó que nao é fácil aceitar-me neste contexto.
É como retornar a uma estrada há muito nao utilizada, mas conhecida. No seu
percurso viera m muitas lembrences. .
Mergulho surpreendente pro fundo da gente. Estrada estranha de terra. Um dia de
busca. Uma imagem que move uma linguagem.
151
Meu movimento está adquirindo densidade, equilíbrio. Perdi a angústia dos pés.
Meu corpo um monte de sensecoes. nao tem forma definida, ou história, ou nao
é é
corpo, só sensecoes. Talvez seja como a argila crua, sem forma. O chao sensível aos é
movimentos, ou talvez eu seja sensível ao chao. No próximo pesso, posso cair no nada.
É o medo. O corpo vive essa realidade, assume o movimento, reage, vivo, denso, inteiro.
Vejo um grande círculo com chao de terra escura e pedrisco. O lugar está cercado
por casinhas velhas com portas e janelas fechadas, porque chove. Uma pessoa ocupa o
meio do círculo e está só. Ela atingida por raios, ela o próprio raio. Uma canoa no
é é
rio ... Alguém está de pé na canoa e o belenco da água brinca com o seu eixo. O corpo
nao tem memória, moco,
é menina, é velho. O corpo sente fisgadas, tremores como
é
se fosse desestruturar-se, mas pode suportá-Ios. O corpo fica molhado, a roupa colada
revela um corpo de mulher forte. Fica-me a certeza de que ela protegia a todos, ela é
um pára-raios. O corpo sinuoso recolhia algo com as miios e trazia para a barriga. Fui
endurecen do, virei a imagem. Estou num andor, as pessoas me vém de baixo e cantam
para mim. Sou levada por uma canoa que parte. Ela beience e belenes ... Desta vez o
trabalho foí diferente, o movímento que trazia as lembrences. "(No inventário desta
é
conversas.
Percorremos caminhos com a folia por cerca de doze horas. Nosso envolvimento
com o grupo foi bastante profundo, de tal modo que ao final de um día parecía que
está vamos juntos há muitos días.
NOTAS
1."Emocionalismo" - emociio represa da, desconhecida, que da pessoe, permanecendo na máscara do rosto.
atua numa forma representada e nao circula pelo carpa
152
CONCLUSAO
-
O trabalho que apresen tamos nao pretende entrar no debate específico sobre
conceitos de pesquisa nem discutir a danca no ámbito de metodologias pré-
estabelecidas justamente por ter nascido de uma experiencia de vida vinculada él nossa
forrnacáo de bailarina. Registrar o processo de forrnacáo do bailarino-pesquisador-
intérprete tornou-se um compromisso assumido com os novos bailarinos, uma vez
que muitos deles térn nos fornecido respostas através de trabalhos desenvolvidos com
base em nossa linha de investigacáo e criacáo.
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