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do Local
GLOBALIZAÇÃO
GLOCALIZAÇÃO
LOCALIZAÇÃO
Augusto de Franco
A REVOLUÇÃO DO LOCAL
Globalização | Glocalização | Localização
2
Por que a volta ao local, em uma época de globalização, está
se afirmando como uma alternativa de indução ao
desenvolvimento que promete transformar milenares
relações políticas e sociais de dominação.
3
“Em um universo infinito,
local pode abranger algo tão gigantesco
que sua mente se encolhe diante dele”.
4
Apresentação
Estou falando de algo que nunca aconteceu antes. Estou falando de uma
condição geral, configurada pela co-presença de vários fatores
interdependentes, que permite a manifestação de um fenômeno novo, uma
espécie de alteração profunda na morfologia e na dinâmica desses sistemas
complexos compostos por coletivos humanos estáveis afastados do estado de
equilíbrio que chamamos de sociedade.
Não se pode saber de antemão para onde tal mudança vai nos levar. Tudo
dependerá dos movimentos sociais e das opções políticas que fizermos.
Nenhum desfecho, portanto, está determinado. Todavia, existe agora uma
possibilidade que não existia antes.
Não estou dizendo que tal mudança profunda vai acontecer necessariamente.
Estou dizendo que essa mudança profunda, que agora tem chances de
acontecer, poderá de fato ser consumada se conseguirmos ensaiar e replicar
padrões de organização social e modos de regulação política compatíveis, que
permitam que ela aconteça. Caso contrário, ocorrerá, por certo, sempre
alguma mudança, provavelmente incremental, mas ela não será tão
significativa ao ponto de representar uma transformação profunda do modo
como estamos vivendo nos últimos séculos e, talvez até, nos últimos milênios.
Pois bem, que mudança social profunda é essa, que revolução é essa que pode
se realizar nas condições atuais do mundo globalizado e que não poderia ter
ocorrido em outras épocas?
5
Essa mudança se chama „localização‟, no sentido “forte” desse conceito e da
hipótese que o sustenta, a qual constitui, assim, o tema central da presente
investigação.
Tal redução das distâncias muda a qualidade dos fenômenos que ocorrem no
“meio social” porquanto altera propriedades desse meio (como a isotropia,
por exemplo). Pode-se dizer que a sociedade torna-se mais “social” no sentido
de que aumenta o seu “poder social” – ou seja, o meio torna-se mais
condutor, mais favorável à replicação de padrões de comportamento – à
medida que sua tessitura aumenta e, portanto, que seu tamanho diminui. A
partir de certo grau de tessitura (ou de certo „tamanho de mundo‟) surge o que
chamamos de comunidade.
6
A medida que surgem comunidades globalizadas, globalização do local tende a
ser igual a localização do global. E um mundo totalmente globalizado passa a
ser um mundo totalmente localizado. O local não-globalizado pode ser um
mundo até maior do que o mundial (no sentido de planetário) globalizado.
Mas o local conectado é o mundo todo.
Pois bem. Minha investigação dos últimos anos está levando a uma conclusão
surpreendente. Desde que exista a possibilidade de conexão global-local, para
que o processo de localização se desencadeie é preciso apenas que a
população de uma localidade, conectada entre si segundo um padrão de rede e
regulando seus conflitos de modo democrático-participativo, o assuma
cooperativamente. O mais surpreendente, porém, é que parece não ser
necessário que toda a população de uma localidade se comporte desse modo,
nem – como fomos levados a acreditar por vários motivos que não vêm agora
ao caso – que a maioria dessa população esteja engajada nessa tarefa.
Por certo, para cada configuração particular haverá uma quantidade e uma
qualidade mìnimas de “massa crìtica” detonadora, vamos dizer assim. E talvez
não possamos conhecer, completamente e de antemão, nem os valores nem as
caracterìsticas dessa “massa crìtica” para que tal processo seja detonado em
cada localidade. Mas uma coisa é certa: quanto mais elementos ela englobar,
quanto mais tramada “por dentro” e conectada “para fora” ela estiver, mais
chances teremos de que o processo venha a acontecer.
Sei que tais idéias ainda soam estranhas para boa parte da análise sociológica.
E, na verdade, embora não pareça, estou falando de política.
Mas para entender o que estou dizendo, caro leitor, não há outra maneira
senão acompanhar os resultados dessa investigação.
Primavera de 2003
Augusto de Franco
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Índice
Introdução
Capitulo Um | Globalização
Entendendo a globalização
Globalização e neoliberalismo
Globalização e capitalismo
Globalização e fundamentalismos laicos (de mercado e de Estado)
Globalização e mudança social
Globalização irreversível
Globalização inédita
Globalização, ordem e desordem
Globalização insuficiente
Globalização em disputa
Globalização e glocalização
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Epílogo | Localização e desenvolvimento
Diagramas
Diagrama 1 | Variantes na política da globalização: diagrama de Held-
McGrew (2002)
Diagrama 2 | Variantes na política da globalização: diagrama de Held-
McGrew (2002) modificado por Franco (2003)
Diagrama 3 | Variantes na política da localização
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Introdução
Há uma mudança social em curso no mundo. Essa mudança, que está na base
do processo de globalização atual, tem um duplo sentido. Um sentido
“macro”, que incide na dimensão planetária, e um sentido “micro”, que incide
na dimensão local. Até agora temos colocado ênfase no sentido “macro”,
sobretudo nas transformações econômicas, tecnológicas, políticas e culturais
que estão ocorrendo em escala global (daí os novos termos em voga:
„globalismo‟, „globalidade‟ e „globalização‟) associadas à uma emergente
„sociedade cosmopolita global‟. Não temos percebido adequadamente, porém,
as mudanças silenciosas, muitas vezes subterrâneas, que estão acontecendo na
dimensão local e que estão provocando um reflorescimento da perspectiva
comunitária. Talvez porque se trate de uma mudança fragmentada, dispersa,
que ainda não logrou constituir um ator, um interlocutor, uma plataforma,
uma justificativa teórica – o que, de resto, jamais ocorrerá mesmo, porque a
fragmentação e a dispersão fazem parte da sua própria natureza.
Ora, para perceber tais mudanças é necessário vê-las de outra maneira. Para
perceber o que mudou é preciso, assim, ver o que mudou na nossa maneira-
de-ver o que mudou. Foi somente quando mudou a nossa maneira de ver, que
começamos a perceber o que está mudando em termos sociais, as
transformações que estão ocorrendo no tecido íntimo das sociedades em
virtude da germinação de algumas práticas seminais e de algumas idéias
seminais sobre tais práticas.
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a mudança mais significativa de todas será – quando florescer – aquela que foi
semeada nos anos 90.
11
porque esse é o inìcio da obra” (2). Oxalá haja um paralelo qualquer com
nossa situação atual.
Mas vamos voltar aos anos 90, os anos de semeadura. Foram os anos onde
emergiu ou foi percebida mais claramente a nova realidade de uma esfera
pública não-estatal. Foram os anos em que se verificou um crescimento
espantoso do chamado terceiro setor. Foram os anos da Internet e das redes
sociais. Foram anos em que se gestou e experimentou um novo paradigma da
administração pública, a descentralização e os programas inovadores:
focalizados, flexíveis, que desencadeiam inovações capazes de alterar seu
desenho original, baseados em múltiplas parcerias, preocupados com
monitoramento e avaliação constantes e voltados para a conquista da
sustentabilidade.
Dentre tais concepções e idéias novas citaria aqui, em primeiro lugar – por
ordem de importância lógica ou metodológica e não cronológica – a
concepção sistêmica, sobretudo a concepção dos sistemas complexos
adaptativos, trazendo consigo as idéias de sustentabilidade como função de
integração e como conservação da adaptação. (É preciso ver que o Santa Fe
Institute, fundado pelo físico Murray Gell-Man em 1984, em 1987 começou a
pesquisar coletivamente a economia como sistema complexo adaptativo, mas
somente na década de 1990 pôde apresentar resultados mais significativos no
tocante a uma nova visão sistêmica sobre as interações sociais) (4).
12
centralidade, os quais foram interpretados, assim, como outros tipos de
“capitais” – e sobretudo o conceito de capital social. Nos anos 90 surgiu a
maior parte das teorias do capital social, inclusive aquelas baseadas no suposto
da (ou na aposta na) capacidade da sociedade humana de gerar ordem
espontaneamente a partir da cooperação.
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década de 1990 e se não se compreender as mudanças na maneira-de-ver as
mudanças introduzidas na década de 1990.
Pois bem. A maneira linear e unívoca de ver as mudanças, que procura sempre
emparelhar fator-causa com modificação-efeito, não nos permite ver as
constelações de múltiplos fatores interdependentes que co-originam as
transformações, entendidas como mudanças de estado de um sistema
complexo. Na maneira linear de ver, por exemplo, achamos que a globalização
é um fenômeno que só se verifica no plano internacional, no relacionamento
entre realidades de dimensão mundial. Assim, freqüentemente deixamos de
ver que o aspecto global pode estar presente em dimensões locais, no plano
subnacional e que, simultaneamente, aspectos locais podem estar presentes na
dimensão global.
Com efeito, Manuel Castells assinalou como uma das características dos
movimentos sociais contemporâneos, o fato de que, “cada vez mais, o poder
funciona em redes globais e as pessoas vivenciam e constroem seus valores,
suas trincheiras de resistência e suas alternativas em sociedades locais. O
grande problema que se coloca é como, desde o local, se pode controlar o
global, como, a partir da minha vivência e da minha relação com o meu
mundo local, que é onde eu estou, onde eu vivo, posso me opor à
globalização, à destruição do meio ambiente, ao massacre do Terceiro Mundo
em termos econômicos. Como se pode fazer isso? Pois bem, a Internet
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permite a articulação dos projetos alternativos locais em protestos globais, que
acabam aterrizando em algum lugar, por exemplo, em Seattle, Washington,
Praga, etc., porém que se constituem, se organizam e se desenvolvem a partir
da conexão pela Internet, que dizer, de uma conexão global, de movimentos
locais e de vivências locais. A Internet é a conexão global-local, que é a nova
forma de controle e de mobilização social em nossa sociedade” (9).
Isso tudo talvez tenha um sentido mais profundo do que parece à primeira
vista. O significativo, aqui, é que o core da globalização atual não é a expansão
dos fenômenos para uma escala global em si... mas a simultaneidade entre
global e local que ocorre em virtude da possibilidade da conexão global-local.
Ora, a conexão global-local só é possível por intermédio das redes. São as
redes, portanto, a “chave” para entender a globalização. É a sociedade-rede o
fulcro de tudo e não o fato do mundo ser global porque reproduz fenômenos
semelhantes no conjunto do globo terrestre, porque alguém come um Big
Mac adaptado ao sabor chinês em Nanquim ou manda e-mails da África
usando o Outlook Express traduzido para o inglês do Zimbábue, ainda que
essas coisas também ocorram em virtude da conexão global-local.
Resumindo
Há uma mudança social em curso no mundo dos últimos anos.
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menos se vê (ou o que ainda não se vê tão claramente), entretanto, é a
localização.
Sobre a globalização
1 – O fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica que
acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo.
16
9 – A globalização está em disputa e essa disputa não é somente entre os
neoliberais (favoráveis) e os estatistas (contrários), mas envolve uma
diversidade de posições variantes e conforma novos campos políticos de
convergência que superam tal contradição.
Sobre a glocalização
11 – A glocalização é uma planetarização e uma comunitarização.
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Sobre a localização
15 – O local é necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial ou
populacional e sim no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de
alta “tramatura” social.
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NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Herbert, Frank (1969). O Messias de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
(2) Moya, Miguel Angel Muñoz (ed.) (1986). “El Rosário de los filósofos”. Barcelona:
Muñoz Moya y Montraveta, 1986.
(3) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
(4) http://www.santafe.edu/
(6) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000.
(7) Idem.
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Capítulo Um | Globalização
20
Entendendo a globalização
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Existem pessoas que acham que não está havendo mudança alguma
significativa ou, pelo menos, alguma que mereça atenção especial. O mundo já
teria passado por várias globalizações, desde a era dos descobrimentos e até
antes.
Existem pessoas que acham que a mudança atual decorre da liberação das
forças de mercado que, pela primeira vez, estão podendo expressar toda a sua
capacidade destrutiva-criativa sem as peias impostas pelas regulações
normativas, heterônomas e exógenas, provenientes do antiquado Estado-
nação.
Existem pessoas que acham que tudo não passa de uma tentativa das grandes
corporações transnacionais para dominar o mundo, o que vai acabar
configurando uma realidade social mundial composta por algumas ilhas de
alto desenvolvimento tecnológico, fortemente protegidas, em um mar de
pobreza e exclusão.
E existem pessoas que acham que tudo se explica por tal ou qual combinação
de todos ou de alguns desses fatores: um pouco disso, um pouco daquilo.
Creio que é necessário insistir nesse ponto de partida da análise. Uma nova
sociedade está sendo criada. Ela começou a ser gestada depois da Segunda
Guerra, foi se configurando internamente (ou tomando corpo, como embrião,
ainda no ventre da velha sociedade) a partir do final dos anos 60, mas só
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obteve os recursos técnicos e as condições políticas para vir à luz a partir do
final dos anos 80.
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“metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização e aos
modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-
civilizacional), interagindo, todos esses fatores, em um mesmo processo de
“co-originação dependente”.
Por último, lançando uma ponte para o capítulo seguinte, vamos interrogar
por quê não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se
compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do
mundo e uma mundialização do local; ou seja, é uma „glocalização‟ (mas não
exatamente no sentido do marketing, que foi atribuído pelos economistas
japoneses que inventaram o termo no final da década de 1980 e nem apenas
nos sentidos que lhe atribuiu seu principal divulgador, Roland Robertson, a
partir de meados dos anos 90) (8).
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.
(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000.
(3) Idem.
(4) Thompson, William Irwing (2001). “Cultural History and Complex Dynamical Systems” in
Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution. MA: Lindisfarne Books, 2001.
(5) Idem.
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Globalização e neoliberalismo
O fenômeno da globalização é separável da ideologia mercadocêntrica que
acompanhou as primeiras tentativas de conceitualizá-lo.
25
Fomos, assim, como já assinalei, apresentados ao tema (e/ou introduzidos na
problemática) da globalização a partir de pontos de vista ou totalmente ou
predominantemente mercadocêntricos.
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NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Levitt, Theodore (1983). “The Globalization of Markets” in Harvard Business Review (May 1,
1983).
(2) Ohmae, Kenich (1990). The Borderless World. New York: Harper & Row, 1990.
(3) Ohmae, Kenich (1995). O fim do Estado-Nação. Rio de Janeiro: Campus, 1996 (orig.
The End of the Nation State: How Region States Harness the Prosperity of the Global Economy. Free
Press, McMillan, Inc., May 1995).
(4) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.
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Globalização e capitalismo
A globalização não é um fenômeno exclusivamente econômico.
A conjunção desses dois fatores, no dealbar dos anos 90, possibilitou uma
mudança tão rápida no funcionamento da sociedade humana em nível global,
como jamais se viu na história. Creio ser essa mudança o fenômeno que
interpretamos atualmente como globalização.
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Inovação tecnológica e condições políticas favoráveis
Com efeito, as inovações tecnológicas que possibilitaram o atual processo de
globalização surgiram na década de 1970, com a revolução das TICs
(tecnologias de informação e comunicação). Por um lado, com o surgimento
dos primeiros satélites de órbita estacionária, que viabilizaram a comunicação
em tempo real entre dois pontos quaisquer do planeta (e, depois, da fibra
ótica, da transmissão eletromagnética em uma faixa maior de freqüências, da
utilização do laser, da telefonia digital etc.). E, por outro lado, com a invenção
do microprocessador e do microcomputador. A união, sinérgica, dessas duas
tecnologias, possibilitou que pessoas pudessem se conectar com pessoas
superando as barreiras do tempo e do espaço. No entanto, tudo isso somente
veio a ocorrer, em escala significativa, vinte anos depois, em meados da
década de 1990, por meio de uma rede de redes de computadores capazes de
se comunicar entre si chamada Internet.
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Friedman, como se vê – e ele não esconde – está possuído por aquela
ideologia que Ulrich Beck chama de „globalismo‟. Para se deixar possuir por
tal ideologia é necessário, antes de qualquer interpretação do fenômeno da
globalização como triunfo do liberalismo, aderir à crença de que o capitalismo
de livre mercado constitui a alternativa mais eficaz de organização social.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Stiglitz, Joseph (2002). A globalização e seus malefícios. São Paulo: Futura, 2003.
(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Anthony Giddens considerou um erro ver a globalização como um “fenômeno quase
exclusivamente em termos econômicos... A globalização é política, tecnológica e cultural,
tanto quanto econômica”. Para Giddens as mudanças em curso no mundo atual “estão
criando algo que nunca existiu antes, uma sociedade cosmopolita global. Somos a primeira
geração a viver nessa sociedade, cujos contornos até agora só podemos perceber
indistintamente. Ela está sacudindo nosso modo de vida atual, não importa o que sejamos.
Não se trata – pelo menos no momento – de uma ordem global conduzida por uma
vontade humana coletiva. Ao contrário, ela está emergindo de uma maneira anárquica,
fortuita, trazida por uma mistura de influências... A globalização não é um acidente em
nossas vidas hoje. É uma mudança de nossas próprias circunstâncias de vida. É o modo
como vivemos agora”. Assim, para Giddens, “é errado pensar que a globalização afeta
unicamente os grandes sistemas, como a ordem financeira mundial. A globalização não diz
respeito apenas ao que está “lá fora”, afastado e muito distante do indivìduo. É também
um fenômeno que se dá “aqui dentro”, influenciando aspectos ìntimos e pessoais de nossas
vidas... A globalização não somente puxa para cima, mas também empurra para baixo,
criando novas pressões por autonomia local. O sociólogo americano Daniel Bell descreve
isso muito bem quando diz que a nação se torna não só pequena demais para resolver os
grandes problemas, como também grande demais para resolver os pequenos”. Avançando
mais nessa linha de raciocìnio, Giddens percebe que “a globalização é a razão do
ressurgimento de identidades culturais locais em várias partes do mundo”.
(3) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. Mais
adiante veremos que a queda do Muro é um evento cujas conotações simbólicas são muito
mais profundas e abrangentes do que parecem à primeira vista. A queda do Muro de
Berlim representa a queda de muitos outros muros, o fim de muitas separações, ou seja, da
ausência de múltiplos caminhos... É, em certo sentido, uma dessacralização do mundo
(sagrado = separado), ou seja, uma des-hierarquização (de vez que a hierarquia constitui-se
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sempre como uma ordem sacerdotal, quer dizer, sagrada), caracterizada pela existência de
caminhos únicos. A possibilidade da conexão em rede – ou seja, da existência de múltiplos
caminhos – foi, aqui, o fator-chave.
(4) Idem.
(5) Idem-idem.
(6) Ibidem.
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Globalização e fundamentalismos laicos (de mercado e
de Estado
Não poderemos compreender adequadamente o que é a globalização enquanto
não nos desvencilharmos de visões mercadocêntricas e estadocêntricas. Porque a
globalização é, fundamentalmente, um fenômeno da (uma mudança global na)
sociedade.
Por outro lado, os que se contrapõem a essa visão, em geral também não
fazem tais perguntas e não tentam investigar o que mudou na sociedade para
produzir o fenômeno. Reagem à ideologia „globalista‟ (neoliberal) com uma
outra ideologia, simetricamente posta, contraliberal: o estatismo.
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A cruzada estatista contra o neoliberalismo
No afã de resistir às mudanças, introduzidas em especial a partir dos anos 90,
no padrão de relação Estado-sociedade, a luta contra a globalização assumiu
assim, em grande parte, a feição ideológica de uma cruzada contra o chamado
neoliberalismo.
Ora, para quem pensa dessa maneira não pode mesmo haver ameaça maior do
que a globalização. Porque a globalização ameaça de fato o velho status do
Estado-nação. Todavia, os que se deixaram impregnar pela ideologia estatista
deveriam parar e perguntar: qual é mesmo o problema para a sociedade
humana? O fato de estarmos entrando em contato com realidades que não
podem mais ser adequadamente enfrentadas pelas tradicionais estruturas
políticas nacionais e pelos sistemas de governança atuais, não deveria significar
que, necessariamente, está indo tudo por água a baixo. Deveria significar, isso
sim, que temos pela frente a imensa tarefa de reconstruir novas estruturas e
novos sistemas que dêem conta de enfrentar os novos desafios.
Globalidade irreversível
Beck lista oito motivos que tornam a globalidade irreversível:
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5) A política mundial pós-internacional e policêntrica – em poder e número...
com uma quantidade cada vez maior de atores transnacionais (companhias,
organizações não-governamentais, uniões nacionais).
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ascendeu ao poder nos USA com George W. Bush e as novas ideologias
perversas urdidas e difundidas por esse grupo, como, por exemplo, a doutrina
da preempção ou da guerra preventiva).
(A esta nova lista ainda poderiam ser acrescentados alguns outros itens, como
o protecionismo dos países ricos e as demais assimetrias do mercado
internacional, ou seja, como lembra Stiglitz, as injustiças do sistema comercial
global e a hipocrisia das organizações econômicas internacionais quando
fingem que estão “ajudando paìses em desenvolvimento ao forçá-los a abrir
seus mercados para as mercadorias das nações industrializadas e
desenvolvidas, ao mesmo tempo que essas nações protegem seus próprios
mercados”) (4).
35
Para enfrentar esses novos desafios de maneira responsável, é necessário
abandonar tanto a visão eufórica do globalismo econômico, que imagina que
o livre jogo das forças de mercado levará, por si só, ao melhor dos mundos,
quanto a visão reativa, estadocêntrica, que imagina que o fim da capacidade de
impor, vertical e heteronomamente, uma ordem previamente concebida ao
caos social, signifique alguma coisa como a volta à barbárie. Para fazer isso é
preciso partir de uma visão proativa, que aceita o desafio da mudança da
realidade, tal como ela se afigura (com os seus aspectos negativos e positivos,
ainda que, no momento, mais negativos do que positivos) e procura fluir junto
com ela para captar o seu sentido, conhecer as suas tendências e interagir
positivamente com as novas configurações de atores que ela enseja.
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Com efeito, a cooperação é (para usar uma expressão marxiana) mais
„conforme ao ser social‟ da nova sociedade civil (ou do terceiro setor) do que
ao ser social do mercado ou ao ser social do Estado. Por isso, a emergência do
terceiro setor (crescentemente acompanhada do reconhecimento do seu papel
estratégico para o desenvolvimento social) é um fenômeno muito significativo
dentro do processo de globalização.
Como qualquer pessoa inteligente pode facilmente perceber, isso nada tem a
ver com perspectivas privatizantes ou com a derruição do Estado pregada
pelo pensamento neoliberal ou a ele atribuída. Tem a ver com uma nova
perspectiva sociocêntrica, publicizante mas não estatizante, que está podendo
surgir no contexto atual do processo de globalização, mesmo que os efeitos
desse processo tenham se mostrado, até o momento, em grande parte,
perversos.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
(2) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.
(4) Stiglitz, Joseph (2002). A globalização e seus malefícios. São Paulo: Futura, 2003.
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Globalização e mudança social
O novo ambiente político mundial e a inovação tecnológica que têm possibilitado
o surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização é acompanhado
por uma mudança social em sentido amplo (ou seja, no sentido “micro”, relativo
ao “corpo” e ao “metabolismo” das sociedades, isto é, aos padrões de organização
e aos modos de regulação de conflitos; e no sentido “macro”, cultural-
civilizacional), interagindo, todos esses fatores, em um mesmo processo de “co-
originação dependente”.
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dando uma qualidade inédita ao processo de globalização do final do século
20, que o diferencia qualitativamente das antigas globalizações possivelmente
já ocorridas em outras épocas, como na era das navegações, por exemplo. No
entanto, é preciso ver – e isso faz toda a diferença em termos de análise – que
tais condições são sociais. O fundamental aqui, como veremos mais adiante,
não é o fato das redes telemáticas serem telemáticas (inovação tecnológica
resultante da sinergização entre tecnologias de comunicação em tempo real
com tecnologias miniaturizadas de informação em tempo real, amplamente
disponibilizadas) e sim o fato de serem redes (inovação social no padrão de
organização).
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pelos seus desenhos originais enquanto tecnologia... A Internet é um
instrumento que desenvolve mas não muda os comportamentos. São os
comportamentos que se apropriam da Internet e, portanto, se amplificam e se
potencializam a partir do que são. Isso não significa que a Internet não seja
importante, mas significa que não é a Internet que muda o comportamento e
sim que é o comportamento o que muda a Internet” (2) (cf. Texto 1).
Ora, a esta altura da discussão, a pergunta que deve ser feita é a seguinte: qual
é a mudança social (em sentido amplo, ou seja, no sentido “micro”, relativo a
estrutura e a dinâmica das sociedades e no sentido “macro”, cultural-
civilizacional) acompanhante – vamos dizer assim – das novas condições
políticas mundiais e da inovação tecnológica que têm possibilitado o
surgimento do fenômeno que interpretamos como globalização? Esse é o
ponto.
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Assim, há quem anteveja que o processo de emersão dessa nova cultura tenha
outro sentido. Thompson, por exemplo, acredita que “estamos
testemunhando o surgimento de complexos sistemas noéticos de governança
nos quais os seres humanos estão se agrupando em redes eletrônicas globais
de consciência. Máquinas que antes eram externas a nós estão se tornando
arquiteturas íntimas do nosso envolvimento com outras mentes, outras
culturas, outros corpos celestiais” (3).
Com efeito, as coisas estão tão imbricadas – novo ambiente político mundial,
inovação tecnológica, nova cultura correspondente a uma sociedade
cosmopolita global, nova morfologia da sociedade-rede e novos processos
democrático-participativos ensaiados sobretudo em âmbito local – que torna-
se muito difícil para a análise linear da velha sociologia (que procura relacionar
causa e efeito por meio de relações unívocas ou bi-unívocas e confunde
causação com anterioridade temporal) captar o fenômeno em sua globalidade.
Mas a globalização, como, aliás, diz o termo, é um fenômeno que só se deixa
captar por uma visão da sua globalidade enquanto sistema complexo
interagente que co-evolui com seus componentes, relacionados entre si por
processos de co-originação com múltiplos laços de interdependência.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in
“Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.
41
Texto 1 | Castells e a „Galáxia da Internet‟
“A Internet é um instrumento que desenvolve mas não muda os comportamentos. São os
comportamentos que se apropriam da Internet e, portanto, se amplificam e se potencializam
a partir do que são. Isso não significa que a Internet não seja importante, mas significa que
não é a Internet que muda o comportamento e sim que é o comportamento o que muda a
Internet”.
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tecnologia, é o meio de comunicação que constitui a forma organizativa de
nossas sociedades... A Internet é o coração de um novo paradigma
sociotécnico que constitui, na realidade, a base material de nossas vidas e de
nossas formas de relação, de trabalho e de comunicação. O que a Internet faz
é processar a virtualidade e transformá-la em nossa realidade, constituindo a
sociedade rede, que é a sociedade em que vivemos”.
Com efeito, Manuel Castells, assinalou como uma das características dos
movimentos sociais contemporâneos, o fato de que, “cada vez mais, o poder
funciona em redes globais e as pessoas vivenciam e constroem seus valores,
suas trincheiras de resistência e suas alternativas em sociedades locais. O
grande problema que se coloca é como, desde o local, se pode controlar o
global, como, a partir da minha vivência e da minha relação com o meu
mundo local, que é onde eu estou, onde eu vivo, posso me opor à
globalização, à destruição do meio ambiente, ao massacre do Terceiro Mundo
em termos econômicos. Como se pode fazer isso? Pois bem, a Internet
permite a articulação dos projetos alternativos locais em protestos globais, que
acabam aterrissando em algum lugar, por exemplo, em Seattle, Washington,
Praga, etc., porém que se constituem, se organizam e se desenvolvem a partir
da conexão pela Internet, que dizer, de uma conexão global, de movimentos
locais e de vivências locais. A Internet é a conexão global-local, que é a nova
forma de controle e de mobilização social em nossa sociedade”.
No livro “The Internet Galaxy: Reflections on Internet, Business and Society” (Oxford:
Oxford University Press, 2001) Manuel Castells já havia tecido reflexões sobre
a Internet, os negócios e a sociedade (2). O nome da obra evoca, obviamente
o célebre livro de MacLuhan: “assim como a difusão da máquina impressora
no Ocidente criou o que MacLuhan chamou de a “Galáxia de Gutenberg”,
ingressamos agora em um novo mundo de comunicação: a Galáxia da
Internet”, afirma Castells.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(2) O livro foi publicado no Brasil com o mesmo nome. Cf. Castells, Manuel (2001). A
Galáxia da Internet: reflexões sobre a Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003.
43
Globalização irreversível
A globalização é um fenômeno irreversível. Ao que ela vai levar, contudo,
depende da evolução do sistema diante da bifurcação que se defronta na
atualidade.
44
Estados-nações territoriais para uma ecologia cultural planetária de sistemas
de governança noéticos”, quanto pode retroceder para formas autoritárias,
com um recrudescimento do estatismo que tenderá a reinstaurar a velha
ordem do “estado de guerra” em âmbito planetário, baseada em novos
complexos-pólos pós-industriais militares de alta tecnologia (2).
Bifurcação
Mas o conceito de „bi-furcação‟ não deve ser entendido literalmente como a
existência de apenas duas alternativas, do tipo „civilização ou barbárie‟ ou
„ordem ou caos‟. Bifurcação é o ponto crìtico em que o sistema pode “optar”
entre mais de um futuro possível. Atingido esse ponto crítico, a descrição
determinista entra em colapso, tornando-se impossível prever o estado futuro
do sistema. Tudo indica que o mundo atingiu ou está atingindo esse ponto
crítico na passagem do século 20 para o século 21.
Existem vários futuros possìveis para além do bom cenário das „redes
eletrônicas de consciência‟ e do mau cenário „Blade Runner‟, ainda que – por
algum motivo que não deveria ser tão desprezado pelos analistas – mais de
90% das tentativas de antecipação da literatura de ficção científica apontem
para cenários do tipo Blade Runner.
Essa reação é o fato mais preocupante nos dias de hoje, porquanto não se
trata propriamente apenas de uma reação à globalização (ou às suas más
conseqüências, o que seria justificável) e sim, também, de uma reação às
melhores promessas da globalidade. Os fundamentalismos religiosos (mas
também os laicos, como o neoliberalismo e o estatismo) e as reações
terroristas nacionalistas ao que Thompson chama de „planetização‟ (e que
outros, como Edgar Morin, por exemplo, chamam de „planetarização‟),
constituem ameaças gravìssimas. “Como a Inquisição e a Contra-Reforma –
escreve ele – essas explosões reacionárias podem prejudicar muito e atrasar a
transformação cultural por séculos a fio. Se a humanidade pode ou não
ascender para uma identidade transcultural, na qual a ciência e um novo tipo
45
de espiritualidade pós-religiosa possam reintroduzir a consciência plenamente
individuada da pessoa em um cosmos multidimensional, é a questão dos
nossos tempos” (3).
O que vai acontecer, não se pode saber de antemão. O jogo está sendo
jogado.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
(2) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in
“Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.
(3) Idem.
46
Globalização inédita
A globalização é inédita: está criando algo que nunca existiu antes.
47
A globalização atual, portanto, é única. A descompartimentação que ela
promove está ensejando o surgimento de uma coisa que jamais existiu antes
no mundo: um novo tipo de sociedade, uma sociedade cosmopolita global,
organizada em rede e capaz de possibilitar a interação entre seus nodos em
tempo real.
48
Globalização, ordem e desordem
A globalização não é uma ordem, mas um processo de desconstituição da velha
ordem.
A globalização não é ainda a transição para uma nova ordem mundial (embora
possa levar à essa transição), mas uma desconstituição do mundo assentado na
velha ordem do Estado-nação. Como diz Beck, é “uma sociedade mundial
sem Estado mundial e sem governo mundial” (1). E como assinala Giddens,
“não se trata de uma ordem global conduzida por uma vontade humana
coletiva” (2).
Ora, se a ordem não pode ser gerada espontaneamente, ela tem que ser
imposta por alguém. O mal maior, então, não é a ordem injusta e sim a não-
ordem. O caos é o demônio, a deusa-dragão Tiamat (a deusa do caos) que
49
deve ser cortada por Marduk (o deus da ordem) com a espada que separa, que
reintroduz continuamente todo tipo de compartimentação. Com efeito,
grande parte das críticas estatistas, de direita ou de esquerda, à globalização,
são pautadas pelo tema do confronto com a desordem internacional gerada
por tal processo. São reações à desordem, como se a ordem anterior e
compartimentada do velho “sistema de muros” do Estado-nação fosse alguma
maravilha ou algo que merecesse ser preservado. Mesmo os relatórios
elaborados por segmentos da sociedade civil mundial (como os do Social
Watch) adotam essa perspectiva, o que nos dá uma medida de quão
profundamente estão fundeadas no subsolo dos preconceitos as visões
ideológicas de boa parte dos que se opõem a globalização por medo de uma
globalidade não-controlável, ou seja, por horror ao caos.
A opinião pública mundial não tem mais aceitado que, em nome da soberania,
um Estado particular prenda, torture ou elimine suas minorias políticas,
discrimine seus habitantes por razões religiosas, raciais ou de gênero, ou
provoque catástrofes ambientais. Isso significa que uma nova cultura
planetária está surgindo, impulsionada pelos novos movimentos sociais
globais emergentes, em defesa da democracia e dos direitos humanos, das
minorias sociais e do meio ambiente. A emersão desses novos movimentos
sociais – democráticos, pacifistas, ecumênicos, feministas, ecológicos e
comunitaristas – ampliou a participação popular, levando-a de uma
perspectiva predominantemente econômica e corporativa, setorial e
compartimentada sócio-territorialmente, para uma perspectiva mais universal
e global.
50
Os riscos da ordem imposta
O risco, visível hoje claramente, é que em nome da defesa desses valores, um
Estado particular se invista unilateralmente no direito de regular o mundo
todo e de normatizar, a partir do seu próprio poder militar e da sua capacidade
econômica, a vida dos outros povos do planeta. Por isso, é melhor que a
globalização seja mesmo “uma sociedade mundial sem Estado mundial e sem
governo mundial” e que tal processo não esteja instaurando “uma ordem
global conduzida por uma vontade humana coletiva” particular, até enquanto
não se reúnam as condições para a consolidação de uma nova instância (ou de
uma nova dinâmica, talvez seja melhor dizer assim) democrática internacional.
Isso significa que a mudança que tem ocorrido nas duas pontas – no global e
no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-nação atual,
embora essa forma esteja sendo ameaçada e, assim, esteja resistindo
ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança.
51
territoriais (comunidades), sócio-culturais (novos movimentos sociais,
organizações da sociedade civil e comunidades virtuais), sócio-produtivas
(novos arranjos produtivos e iniciativas de uma nova sócio-economia
solidária) e sócio-políticas (novos partidos e tendências de opinião nacionais,
sub-nacionais e trans-nacionais) – para além da identidade única do Estado-
nação.
O fato é que o processo de globalização não conduz para nova ordem alguma
previsível, conquanto sua ocorrência, desconstituindo a velha ordem,
destranca o futuro permitindo que a interação global dos atores sociais
construa, de fato, novas alternativas civilizatórias. Ainda que o sentido da
“nova ordem” jamais será dado pelo desejo de um ator individual, não é
proibido sonhar com tais alternativas (como ensaiei, seguindo Thompson, no
exercício acima).
E é melhor assim.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Beck, Ulrich (1998). O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.
(2) Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2000
52
(3) Mollison e Slay observam que “não deveríamos confundir ordem com arrumação.
Arrumação separa... enquanto que a ordem integra.... Criatividade raramente é arrumada.
Poderíamos dizer, provavelmente, que arrumação é algo que acontece quando a atividade
compulsiva substitui a criatividade imaginativa...” Cf. Mollison, Bill e Slay, Reny Mia.
Introdução à Permacultura. Brasília: Ministério da Agricultura e do Abastecimento /
Projeto Novas Fronteiras da Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável, 1998.
(4) Thompson, William Irwin (2001). “Cultural History and Complex Dinamical Systems” in
“Transforming History: a Curriculum for Cultural Evolution”. MA: Lindisfarne Books, 2001.
53
Globalização insuficiente
“A saída democrática para a crise atual exige mais globalização e não menos
globalização”.
54
pelo unilateralismo do novo projeto de Império americano do que por todos
os efeitos perversos do liberalismo de mercado.
A globalização atual, entretanto, não é uma urdidura dos neoliberais que, por
certo, tentam conduzi-la em uma determinada direção. No entanto, não
obstante os seus desejos e os seus esforços, nenhum desfecho está assegurado
pois a globalização está em disputa.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(2) Idem.
55
Globalização em disputa
A globalização está em disputa e essa disputa não é somente entre os neoliberais
(favoráveis) e os estatistas (contrários), mas envolve uma diversidade de posições
variantes e conforma novos campos políticos de convergência que superam tal
contradição.
56
Assim, em resumo, a tabela Held-McGrew (2002) – que procura estabelecer a
comparação entre os modelos de política – seria a composição das seis tabelas
seguintes:
Os neoliberais
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Liberdade individual
Os internacionalistas liberais
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Direitos humanos e responsabilidades compartilhadas
57
internacional
Os reformadores institucionais
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Ethos colaborativo baseado nos princípios da
transparência, das consultas e da responsabilização
58
Nações Unidas. Reconhecem as limitações do sistema ONU e admitem a
necessidade de participação de outros atores para além dos Estados nacionais.
Uma parte dos governos democráticos bem como um contingente crescente
de funcionários de instituições de fomento ao desenvolvimento do sistema
ONU e de agências de cooperação internacional poderiam ser enquadrados
nessa posição (3).
Os transformadores globais
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Igualdade política, liberdade igual, justiça social e
responsabilidades compartilhadas
59
Os estatistas/protecionistas
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Interesse nacional, identidade sociocultural
compartilhada e ethos político comum
Os radicais
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Igualdade, bem comum, harmonia com o meio
ambiente natural
60
Modalidade de transformação política Movimentos sociais, organizações não-
governamentais, mudanças sociais "de baixo para
cima"
61
“filosofia pura da ordem social” (7) que confere ao Estado o protagonismo
único, exclusivo ou preponderante, excluindo ou subordinando as outras
esferas da realidade social: o mercado e a sociedade-civil (ou a comunidade),
ao invés de buscar a “mistura cìvica correta” desses três grandes tipos de
agenciamento.
Os glocalistas
Para usar as mesmas categorias comparativas da tabela de Held-McGrew, as
posições dos glocalistas seriam as seguintes:
Princípio(s) ético(s) norteador(es) Liberdade como sentido da política (em uma
democracia radicalizada ou democratizada), igualdade
como possibilidade (mas não-obrigatoriedade) de
inserção e participação igualmente valorizada de
todos na comunidade política e sustentabilidade.
Aposta na capacidade da sociedade humana de gerar
ordem espontaneamente a partir da cooperação
62
Forma desejada de globalização Formação de uma nova sociedade cosmopolita global
(planetária) como uma rede holográfica de miríades
de comunidades (sócio-territoriais e virtuais –
subnacionais e transnacionais) interdependentes.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1)-(6) As notas e referências numeradas de (1) a (6) se referem aos itens análogos do Texto
2, que reproduz excertos de David Held e Anthony McGrew (2002). Globalization/Anti-
Globalization. Cambridge: Polity Press, 2002.
(7) Offe, C. (1991) “A atual transição da história e algumas opções básicas para as
instituições da sociedade” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado
em Transformação. Brasília: ENAP, 1991.
63
Texto 2 | Held & McGrew e as variantes na política
da globalização
“Muito ao contrário de provocar a morte da política, como algumas pessoas temem, a
"globalização" está re-iluminando o terreno político”.
(1) NEOLIBERAIS
64
estamos testemunhando atualmente o surgimento de um único mercado
global baseado no princípio da concorrência global que seria o precursor do
progresso humano. A globalização econômica está provocando a
desnacionalização de economias por meio do estabelecimento de redes
transnacionais de produção, comércio e finanças. Nessa economia "sem
fronteiras", governos nacionais estão se tornando meras correias de
transmissão para forças globais de mercado ou pouco mais do que isso.
Strange interpreta essa postura da seguinte maneira: "Onde Estados
costumavam ser os senhores dos mercados, agora é o mercado que, em
relação a muitas questões cruciais, é o senhor dos governos de Estados… a
perda de autoridade dos Estados se reflete na crescente dispersão de
autoridade para outras instituições e associações…" (1996: 4).
65
ajudarão a provocar o surgimento de uma ordem mundial mais cooperativa.
Três fatores constituem a base dessa postura: a crescente interdependência, a
democracia e as instituições globais. Destacados internacionalistas liberais do
século 19 argumentaram que a interdependência econômica gera condições
propícias para a cooperação internacional entre governos e pessoas (veja
Hinsley, 1986). Uma vez que seus destinos estão vinculados por muitas
questões econômicas e políticas sérias, os Estados, como atores racionais,
acabam reconhecendo que a cooperação internacional é essencial para a
administração de seu destino comum. Em segundo lugar, a disseminação da
democracia proporciona uma base para a paz internacional. As democracias
são restritas em suas ações pelos princípios da abertura e da prestação de
contas perante seus eleitorados. Nessas condições, os governos ficam menos
propensos a adotar políticas que não sejam transparentes, de perseguir
objetivos geopolíticos que envolvam manipulação e de partir para a guerra
(Howard, 1981). Em terceiro lugar, uma maior harmonia pode ser mantida
entre Estados pela criação de leis e instituições internacionais concebidas para
regular interdependências internacionais. Além disso, em um mundo cada vez
mais interdependente, a autoridade política e a jurisdição dessas instituições
internacionais têm a tendência natural de se ampliar à medida que o bem-estar
e a segurança das sociedades nacionais vão se tornando cada vez mais
condicionada ao bem-estar e à segurança da sociedade global.
66
legitimidade e a eficácia… à medida que as instituições internacionais passam
a desempenhar um papel cada vez mais importante na governança global,
cresce também a necessidade de se garantir que elas sejam efetivamente
democráticas” (pags. 48, 66).
Para termos uma ordem mundial mais segura, justa e democrática, o relatório
propõe a adoção de uma estratégia multifacetada de reforma institucional
internacional e a promoção de um novo ethos colaborativo "baseado no
princìpio da consulta, da transparência e da prestação de contas… Essa é a
única alternativa para se trabalhar coletivamente e se usar o poder coletivo
para se criar um mundo melhor" (Comissão para a Governança Global 1995:
2, 5). Em alguns sentidos essenciais, o atual sistema de governança global não
tem como garantir a concretização desse anseio sem uma reforma substancial,
uma reforma baseada em uma estratégia política que promova uma
transformação institucional em nível internacional e uma nova ética cívica
global. Para que isso seja possível, precisamos contar com um sistema das
Nações Unidas reformado e apoiado por mecanismos regionais de governança
internacional, como a União Européia, devidamente fortalecidos. Mediante o
estabelecimento de uma assembléia dos povos e de um Fórum da Sociedade
Civil (Global), ambos associados à Assembléia Geral da ONU, os povos do
mundo devem estar direta e indiretamente representados nas instituições de
governança global. Além disso, a Comissão propõe que indivíduos e grupos
tenham um direito de petição junto à ONU por meio de um Conselho de
Petições, que recomendará ações ao órgão pertinente. Juntamente com um
entrincheiramento mais profundo de um conjunto comum de direitos e
responsabilidades globais, o objetivo seria o de fortalecer noções de cidadania
global. Propõe-se o estabelecimento de um Conselho de Segurança
Econômica para coordenar a governança econômica global, tornando-a mais
aberta e sujeita a prestação de contas perante a sociedade. É importante
promover e fortalecer formas democráticas de governança dentro dos Estados
por meio de mecanismos internacionais de apoio e adaptar os princípios da
soberania e da não-intervenção "de maneira que reconheçam a necessidade de
se promover um equilíbrio entre os direitos dos Estados e os direitos das
pessoas e entre os interesses das nações e os interesses do bairro global"
67
(Comissão para a Governança Global 1995: 337). Como elemento de ligação
entre todas essas reformas, assumiríamos o compromisso de promover uma
nova ética cívica global baseada em "valores fundamentais que toda a
humanidade possa sustentar: os valores do respeito à vida, da liberdade, da
justiça e da igualdade, do respeito mútuo, da afeição e da integridade. O
elemento central dessa ética cívica global é o princípio da participação na
governança em todos os níveis, do local ao global”.
68
importantes Estados e instituições internacionais, que mais se parecem "silos"
superlotados do que um sistema transparente, aberto e acessível por todos os
lados. Em terceiro lugar, observa-se um problema de incentivo – os desafios
gerados pelo fato de que, na ausência de uma entidade supranacional para
regular a oferta e o uso de bens públicos globais, muitos Estados tentarão
simplesmente "pegar carona" ou não conseguirão identificar soluções
coletivas duráveis para problemas transnacionais prementes.
69
internacional mediante o fornecimento de todas as informações necessárias
para uma cooperação adequada, uma vigilância eficaz para reduzir fraudes e
garantir a observância das normas, uma distribuição eqüitativa dos benefícios
da colaboração, o fortalecimento do papel de comunidades epistêmicas como
provedoras de conhecimentos e informações "objetivas" e o estímulo
necessário às atividades de ONGs como mecanismos de responsabilização
que expõem políticas fracas ou mal-sucedidas. Não se pode aplicar apenas um
pacote de incentivos a todas as áreas, mas sem mecanismos dessa natureza
será muito mais difícil resolver problemas relacionados às polìticas globais”.
Segundo Held e McGrew, “há muitas afinidades entre alguns dos princìpios e
objetivos dos internacionalistas liberais e dos reformadores institucionais e... a
postura dos transformadores globais. Essa postura aceita que a globalização,
como um conjunto de processos que alteram a organização espacial das
relações e transações socioeconômicas, não representa um fenômeno novo ou
inerentemente injusto ou antidemocrático (veja Held et al., 1999). O que ela
levanta é uma questão relacionada à sua forma desejável e conseqüências
distribucionais. O argumento é que não há nada inevitável ou fixo em relação
à sua forma atual, caracterizada por enormes assimetrias em termos de poder,
oportunidades e chances na vida. A globalização pode ser administrada,
regulada e formatada melhor e de uma maneira mais justa. Esse argumento
diferencia os transformadores globais dos que argumentam a favor de
alternativas à globalização - seja na forma de protecionismo ou de localismo -
e dos que simplesmente desejam administrá-la mais eficazmente. Nesse
sentido, sua postura não é diretamente contra ou a favor da globalização; o
que ela questiona são seus princípios organizacionais básicos e suas
instituições.
70
Estado precisará aprender a se tornar um "cidadão cosmopolita" também, ou
seja, uma pessoa capaz de atuar como mediador entre tradições nacionais e
formas alternativas de vida. Argumenta-se que, em um sistema democrático de
governo do futuro, a cidadania tenderá a envolver uma crescente função
mediadora: uma função que envolve diálogo com as tradições e discursos de
outros no sentido de que os cidadãos possam ampliar os horizontes de sua
estrutura de sentido e preconceito e o âmbito de seu entendimento mútuo. Os
agentes políticos que conseguirem "raciocinar a partir do ponto de vista de
outros" terão mais condições de resolver, em bases justas, as novas e
complicadas questões transfronteiriças que criam comunidades com destinos
sobrepostos. Os transformadores globais argumentam também que para que
muitas formas contemporâneas de poder possam ser responsabilizadas por
seus atos e para que muitas das complexas questões que afetam a todos nós -
em nível local, nacional, regional e global - possam ser democraticamente
reguladas, as pessoas precisarão ter acesso a diferentes comunidades políticas
e ser membros delas.
71
promover esse resultado se ela não fosse moldada de acordo com princípios
de representação geopolítica, como ocorre na Assembléia Geral da ONU, e
seguisse uma linha deliberativa de atuação, com possibilidades iguais de
participação de todas as partes interessadas. Uma segunda câmara desse tipo
atuaria como um microcosmo da sociedade global e representaria as
deliberações de partes importantes. A criação de assembléias públicas eficazes
em nível global e regional deve complementar as assembléias locais e
nacionais. Além disso, as instituições internacionais precisam se manter
abertas ao exame público e ter suas agendas definidas por partes interessadas
essenciais. Além de transparentes em suas atividades, exigindo, por exemplo,
liberdade internacional no tratamento de informações, esses organismos
devem também ser acessíveis e manter-se abertos ao escrutínio público em
todos os aspectos de suas atividades. O estabelecimento de novas estruturas
de governança global responsáveis por lidar com questões relacionadas à
pobreza e ao bem-estar global e com outras questões afins também é vital
para contrabalançar o poder e a influência de organismos predominantemente
orientados para o mercado, como o FMI e a OMC (mesmo que eles sejam
reformados, como precisarão ser em seu devido tempo).
72
(5) ESTATISTAS/PROTECIONISTAS
73
livre mercado (Cattaui, 2001: veja Leftwich, 2000.). A promoção da indústria
nacional, a limitação da concorrência estrangeira e a adoção de políticas
comerciais agressivas constituem novas formas de estatismo que têm alguns
aspectos em comum com o mercantilismo à moda antiga. De Washington a
Pequim, o protecionismo, sob o pretexto de interpretações comerciais e
geoeconômicas estratégicas da política mundial, teve sua influência renovada
nos principais centros do poder global.
74
ordem mundial mais pluralista e legítima, na qual identidades, tradições e
visões de mundo particulares podem florescer livres da pressão de forças
hegemônicas. Nesse sentido, ele tem muito em comum” com o conjunto de
posturas dos radicais.
(6) RADICAIS
75
Os que adotam essa postura radical relutam em recomendar projetos
constitucionais ou institucionais substantivos para um mundo mais
democrático, uma vez que isso representaria a abordagem estatista
centralizada, moderna, "de cima para baixo" de vida política que eles rejeitam.
Por essa razão, eles enfatizam a identificação de princípios normativos sobre
os quais a política possa ser construída independentemente das formas
institucionais particulares que ela possa assumir. Por meio de um programa de
resistência e da "politização" da vida social, os movimentos sociais estariam
definindo uma "nova política progressista" que envolve "a exploração de
novas formas de ação, novas formas de se saber e estar no mundo e novas
formas de se agir coletivamente com base em solidariedades emergentes"
(Walker, 1994: 147-8). Como Walker sugere, "uma lição... é a de que as
pessoas não são tão impotentes quanto são levadas a crer que são. As
imponentes estruturas que parecem tão distantes e impassíveis podem ser
claramente identificáveis e resistíveis diariamente. Não agir é agir. Todos
podem mudar seus hábitos e expectativas ou se recusar a aceitar que os
problemas estejam lá fora e não nos digam respeito" (1994: 159-60). Esse
modelo radical de mudança baseia-se em teorias normativas de democracia
direta e democracia participativa (Held, 1996).
76
programas de reforma institucional não diferentes dos propostos por
reformadores institucionais e transformadores globais. Na reunião do Fórum
Social Mundial, realizada em Porto Alegre no início de 2002, por exemplo,
diversas recomendações para a reestruturação de determinados aspectos da
globalização foram incluídas na agenda, entre as quais a de se melhorar a
governança corporativa, de se impor limites à liberdade dos fluxos de capital e
de se adotar medidas para proteger normas trabalhistas básicas e o meio
ambiente. O alvo do ataque dessas propostas seria a "globalização sem
limites" e "o poder irrestrito das empresas" e não a globalização per se. Uma
nova ênfase na necessidade de se trabalhar com o sistema das Nações Unidas
e de reformá-lo cria possibilidades positivas de compatibilidade com algumas
das outras posturas definidas acima. No entanto, essa compatibilidade nunca
será completa, uma vez que alguns grupos radicais - por exemplo, diversos
grupos anarquistas, como os que atacaram a Starbucks na reunião da OMC de
1999 em Seattle - não desejam promover essa convergência ou uma nova
harmonização de pontos de vista. Nesse sentido, as posturas desses grupos
não são diferentes das adotadas por neoliberais mais extremados, que
depositam a sua fé, em primeiro lugar e acima de tudo, em mercados
desregulados”.
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77
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78
Diagrama 1 | Variantes na política da globalização – Diagrama de Held-McGrew (2002)
Marxistas
Social-democratas cosmopolitas
Aspectos comuns (overlapping) na posição política
Variantes políticas
Padrões de influência
Zona de pontos comuns
79
Diagrama 2 | Variantes na política da globalização - Diagrama de Held-McGrew (2002) modificado por Franco (2003)
Marxistas
Social-democratas cosmopolitas
Variantes políticas
Democratas radicais
Padrões de influência (pós-liberais e pós-
Zona de pontos comuns estatistas)
Globalização e glocalização
Não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se compreender que a
globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo e uma mundialização
do local; ou seja, é uma „glocalização‟ (mas não exatamente no sentido do
marketing, que foi atribuído pelos economistas japoneses que inventaram o termo no
final da década de 1980 e nem apenas nos sentidos que lhe atribuiu seu principal
divulgador, Roland Robertson, a partir de meados dos anos 90).
Quase dez anos atrás, já havia escrito (em “Ação Local: a nova polìtica da
contemporaneidade”) que “a „volta ao local‟ é um fenômeno acompanhante do
processo de globalização atualmente em curso. Global e Local não constituem
polos de uma contradição irreconciliável, mas partes complementares de uma
mesma tendência que brota da crise do padrão civilizatório atual...” (1). Sem o
saber, estava falando de glocalização. Naquela época o termo „glocalização‟ ainda
não era conhecido, muito embora já tivesse aparecido na Harvard Business Review
no final dos anos 80.
Com efeito, comumente o termo („glocalização‟) tem sido usado pelo marketing
para designar a criação de produtos ou serviços para o mercado mundial, mas
adaptados à cultura local. Na sua intervenção intitulada “Comments on the „Global
Triad‟ and „Glocalization‟”, Roland Robertson (1997) afirmou que “como usado na
prática comercial japonesa, o termo se refere à venda ou fabricação de produtos
82
para mercados específicos. E como acredito que a maioria de nós sabe, os
empresários japoneses têm sido particularmente bem-sucedidos na venda de seus
produtos em diferentes mercados, em contraste com as estratégias desastradas
dos americanos…” (2).
83
Embora empresas poderosas possam adaptar seus produtos a mercados locais, a
glocalização opera na direção oposta. Atores locais selecionam e modificam
elementos de uma série de possibilidades globais, dando início a um
envolvimento democrático e criativo entre o local e o global” (7).
Todavia, o conceito ainda pode ser mais ampliado para dar conta de captar,
inclusive, aquilo que interpretamos como globalização como um caso particular
do fenômeno objetivo da mudança social que está ocorrendo na atualidade.
Nesse sentido, não se pode captar plenamente o sentido do processo se não se
compreender que a globalização é, simultaneamente, uma localização do mundo
e uma mundialização do local; ou seja, é uma „glocalização‟. É o que veremos no
próximo capítulo, sobre a glocalização.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Franco, Augusto (1995). Ação local: a nova política da contemporaneidade. Brasília - Rio de
Janeiro: Agora | Instituto de Política | Fase, 1995.
(2) Robertson, Roland (1997). “Comments on the „Global Triad‟ and „Glocalization‟”. (intervenção
proferida na conferência “Globalização e Cultura Indìgena”, promovida em 1997 pelo Institute
for Japanese Cultures and Classics da Kokugakuin University):
http://www.kokugakuin.ac.jp/ijcc/wp/global/15robertson.html.
(6) Craig Stroupe, da Universidade de Minnesota Duluth, assinala, com razão, (em seu site
http://www.d.umn.edu/~cstroupe), que “o termo „glocalização‟ denota novos tipos de
relações entre domínios locais e globais que são possibilitados por tecnologias da informação.
Essas relações emergentes subvertem estruturas de poder tradicionais e mediadoras como a
economia, o Estado-nação e as disciplinas que compõem as profissões e a "indústria do
conhecimento". O conceito de glocalização é altamente contraditório e contestado, pois é
usado tanto em teorias de marketing corporativo para descrever o processo de se modificar
produtos para públicos locais (essencialmente, tornar o global atraente para o local) como na
teoria pós-moderna crítica para descrever as representações globais do local (tornar o local
atraente para o global). Em contraste com a “glocalização” – afirma Stroupe –, o termo mais
comum “globalização” sugere uma dissociação radical entre o “global” (as multinacionais, o
terrorismo internacional, a indústria do entretenimento, a CNN, a Internet) e o “local” (o
senso de lugar, de bairro, de cidade, de localidade, de etnicidade e de outras fontes tradicionais
84
de identidade). O termo “glocalização”, por outro lado, denota uma relação mais dinâmica e de
duas vias entre esses dois domínios, principalmente à medida que eles estabelecem contato na
Internet e em outros meios de comunicação. Wayne Gabardi (em “Negotiating Postmodernism”.
Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000) escreve que a glocalização caracteriza-se
pelo “desenvolvimento de campos diversificados e sobrepostos de vinculações globais-locais...
[criando] uma condição de panlocalidade globalizada... que o antropólogo Arjun Appadurai
chama de “escapes” espaciais globais desterritorializados (escapes étnicos, escapes
tecnológicos, escapes financeiros, escapes da mídia e escapes ideológicos)... Essa condição de
glocalização… representa uma mudança de um processo de aprendizagem mais territorializado
e vinculado à sociedade do Estado-nação para um processo mais fluido e translocal. A cultura
se tornou um software muito mais móvel e humano empregado para se misturar elementos de
contextos diferenciados. Com formas e práticas culturais mais separadas de enclausuramentos
geográficos, institucionais e atributivos, estamos testemunhando o que Jan Nederveen Pieterse
chama de "hibridização" pós-moderna”.
(7) Cohen, Robin & Kennedy, Paul (2000). Global Sociology. London: MacMillan, 2000.
85
Capítulo Dois | Glocalização
86
Entendendo a glocalização
Neste capítulo vou sustentar uma resposta para a pergunta acima. Tudo isso
ocorre simultaneamente porque estamos vivendo, a partir dos anos 80 e 90, um
processo de glocalização. A revolução do local, de um certo ponto de vista, nada
mais é do que a globalização do local ou do que o resultado do que vamos
chamar de processo simultâneo de „globalização-e-localização‟.
87
Por último, vamos ver que assim como foi necessário utilizar um novo conceito
(o de „globalização‟) para entender as mudanças que estão ocorrendo na
dimensão global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de
„localização‟) para entender as mudanças que estão ocorrendo coetaneamente na
dimensão local. Como as duas coisas constituem aspectos do mesmo processo de
glocalização ou de emersão da realidade glocal, isso significa que a glocalização
confere um novo status ao local que, para ser revelado, exige também um novo
construct e uma nova hipótese: a hipótese (no sentido forte) da „localização‟.
88
Glocalização e nova realidade glocal: „planeta-e-
comunidade‟
A glocalização é uma planetarização e uma comunitarização.
Além da citação acima, não sei o que mais disse sobre isso Fred Hoyle. No
entanto, mesmo sem conhecer o contexto da citação ou outros possíveis escritos
de Hoyle sobre o tema, podemos adivinhar que idéia é essa. É a idéia da
planetização, ou seja, da “Espaçonave Terra” (introduzida por Richard
Buckminster Fuller em 1969) – uma espaçonave na qual somos todos tripulantes
– e, também, da ecumene planetária, quer dizer, da casa da humanidade (um
mesmo lugar de todos e para todos) e, ainda, para além da casa dos seres
humanos, a casa de todos os seres aqui existentes em uma mesma totalidade viva
– ou seja, a idéia, bem mais abrangente, de Gaia.
89
A hipótese Gaia
O formulador da hipótese Gaia, no início dos anos 70, foi o cientista
independente inglês James Lovelock. Segundo ele a idéia foi exposta pela
primeira vez “em 1972, na forma de uma nota com o tìtulo de “Gaia vista através
da atmosfera”... Depois de discussões muito demoradas e intensas, Lynn
Margulis e eu fornecemos declarações mais detalhadas, embora concisas, nas
revistas Tellus e Icarus. Em 1979, a Oxford University Press publicou o meu
livro “Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra”, que reunia todas as nossas
idéias até aquele momento. Comecei a escrever aquele livro em 1976, quando o
módulo espacial Viking da NASA estava para pousar em Marte. Utilizei a
presença dele ali como um explorador planetário a fim de estabelecer o cenário
para a descoberta de Gaia, o maior organismo vivo do sistema solar” (2).
90
Contra as simplificações do conceito introduzidas por ambientalistas e
espiritualistas, Margulis invectiva que “Gaia não significa apenas conservação da
natureza ou um retorno à deusa. Gaia é a superfície regulada do planeta que está
incessantemente criando novos ambientes e organismos. Mas o planeta não é
humano, tampouco pertence aos seres humanos. Nenhuma cultura humana, a
despeito de sua inventividade, pode acabar com a vida neste planeta, mesmo que
tentasse. A Terra é mais um gigantesco conjunto de ecossistemas em interação
do que um único ser vivo, e como fisiologia reguladora de Gaia ela transcende
todos os organismos individuais. Os seres humanos não são o centro da vida, e
nenhuma outra espécie o é. Os seres humanos não são sequer fundamentais à
vida. Somos uma parte recente e em rápido desenvolvimento de uma gigantesca e
antiga totalidade... Gaia é a série de ecossistemas em interação que compõem um
simples e enorme ecossistema na superfície da Terra. Ponto final” (4).
Por outro lado a hipótese de Gaia não foi bem captada pelas correntes
espiritualistas, cujas visões de futuro como repetição de passado ainda estão
aprisionadas em um paradigma de tradicionalidade, correntes que carregam o
peso de uma tradição mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática e que imaginam
que nada está acontecendo além do retorno à unidade primordial e que tudo isso
já estava escrito ou já tinha sido previsto. Para essas correntes tudo está seguindo
um plano, o futuro já está contido no divino software implantado na Criação (ou
coisa que o valha) em todos os seres (daí porque todos os seres são, de certo
modo, vivos – o que fez a hipótese Gaia cair como uma luva), a evolução não
passa de um desdobramento da “centelha” inicial (é o software “rodando”), e
todos os componentes do sistema estão dispostos por graus evolutivos em uma
ordem sagrada (hierarquia), ou seja, estão hierarquicamente distribuídos em uma
cadeia vertical que vai da pedra ao deus, passando por diversos “reinos” (e
mesmo esta denominação talvez não seja por acaso): mineral, vegetal, animal,
humano, angélico e divino. Ora, o modelo de Gaia como uma rede de 10 milhões
de tipos diferentes de nodos, um sistema auto-organizador, que produz ordem a
partir das múltiplas e imprevisíveis interações entre os seus componentes, não
poderia mesmo ser bem compreendido pela mente determinista tradicional.
Não faria sentido dar seguimento a tal polêmica em um livro como este. Para os
propósitos da presente investigação o importante a considerar é que – como
assinalou Lovelock – “a teoria de Gaia obriga a que se tenha uma visão
planetária” (5). Neste sentido, a elaboração da hipótese de Gaia faz parte desse
movimento cultural emergente de planetização.
91
arautos da nova era, sobretudo pelas simplificações e pelas imprecisões que
introduzem quando pulam de um campo do conhecimento para outro sem fazer
as necessárias transposições hermenêuticas, esquecendo-se de levar em conta as
diferenças de status epistemológico dos conceitos que manejam sem muito rigor
metodológico e sem muita cerimônia semântica. Por certo, eles não fazem
ciência. Isso não é motivo, porém, para, simplesmente, desconhecer ou
desprezar, do ponto de vista cultural, a influência de suas idéias.
Visionário, Rudhyar assinalou que o quadro social atual “deverá parecer cruel e
tragicamente nocivo ao homem do futuro, vivendo em uma sociedade plenária
composta por uma imensa rede de comunas regionais, cada uma com um forte
grau de independência, porém todas integradas em uma espécie de condição
organísmica de totalidade operativa dentro da totalidade global da humanidade.
Em certo sentido, este tipo de organização retem algumas das características da
nação americana primitiva, quando era uma federação de pequenos estados” (7).
Rudhiar retoma, a esse respeito, o velho sonho de Thomas Paine, de inaugurar,
“um novo ponto de partida para os assuntos humanos”. Mas, diferentemente de
muitas correntes de pensamento sectárias e ortodoxas, ele deixa claro que “não
existe uma só verdade, um só caminho para a realização de uma sociedade
plenária que abarque todos os homens, todas as culturas regionais e todas as
comunidades em sua diversidade de enfoques e respostas ante ao novo passo
evolutivo com o qual a humanidade se defronta” (8).
92
que inspira as multidões. Hoje em dia, o símbolo do Globo está emergindo como
fator dominante da civilização que se forma lentamente a partir de nossa confusa
e trágica sociedade ocidental que logrou expandir-se pela superfície da terra de
modo implacável e cego; e seu símbolo gêmeo é o da geração de um fantástico
calor através de um esforço organizado, no qual colaboram cientistas de todas as
nações; calor que destrói, mas também calor que nos dá a possibilidade de nos
aventurarmos para além da gravitação terrestre, chegando à Lua e, finalmente,
também a outros planetas. Nesta aventura, que agora está fascinando a
imaginação dos homens, da mesma forma que as cruzadas e as grandes viagens
do início do Renascimento fascinaram a imaginação dos homens há cinco
séculos, o homem se encontrará alcançando a meta paradoxal de descobrir-se
como cidadão da Terra, justamente porque é capaz, agora, de libertar-se de sua
atração gravitacional” (9). É bom lembrar que Rudhyar escrevia essas coisas às
vésperas de o ser humano chegar à Lua e mais de dez anos antes da primeira
sonda terrestre pousar em Marte.
93
dividida em pequenas comunas, em bases práticas – nenhum fanatismo, nenhum
racismo, nenhum nacionalismo. Então, pela primeira vez, nós poderemos
abandonar a idéia de guerras” (10).
Se formos dividir a população mundial atual nas comunas sonhadas por Osho,
teríamos 1 milhão e 200 mil comunidades de 5 mil pessoas; ou, se tomarmos uma
população média de 20 mil pessoas por comuna, teríamos 300 mil comunidades.
Tal exercício numérico tem apenas o objetivo de mostrar que centenas de
milhares de unidades sócio-territorias, ao invés das menos de poucas centenas de
nações atuais, introduz uma mudança de qualidade no sistema. É um exercício
sobre a “força da dispersão”, sobre a pulverização, sobre a grande variedade e,
portanto, sobre a complexidade. Uma rede de um milhão de comunidades, de um
milhão de tipos de elos diferentes e interdependentes, não poderia ser regulada
por um padrão de ordem preexistente. Seria um sistema complexo cuja regulação
se aproximaria necessariamente dos mecanismos regulatórios de Gaia.
Da Terra-Pátria à Terra-Frátria
Edgar Morin, em “Terra-Pátria”, um livro de 1993 (escrito com Anne Brigitte
Kern), dedica um capítulo inteiro à emergência de uma era planetária. Para ele, “a
era planetária começa com a descoberta de que a Terra não é senão um planeta e
com a entrada em comunicação das diversas partes do planeta. Da conquista das
Américas à revolução copernicana, um planeta surgiu e um cosmos se desfez”
(11).
94
passou de 190 para 423 milhões de habitantes e o mundo de 900 milhões para 1,6
bilhão)... Entre 1863 e 1873, o comércio multinacional, cuja capital é Londres,
torna-se um sistema unificado após a adoção do padrão-ouro para as moedas dos
principais Estados europeus” (14).
95
Morin conclui seu diagnóstico afirmando que, em virtude da interação desses
fatores, “concretiza-se o sentimento de que há uma entidade planetária à qual
pertencemos, de que há problemas propriamente mundiais, trazendo nele [nesse
sentimento] uma evolução para a consciência planetária. Assim, de forma ainda
intermitente mas múltipla, a “global mind” se desenvolve” (20).
A idéia de que a partir de um certo momento do final do século 20, cada parte do
mundo “traz em si, [ainda] sem saber, o planeta inteiro” é a idéia-chave para
entender a glocalização no sentido que atribuímos aqui a esse termo.
Dando seguimento a essa linha de raciocínio é possível afirmar (mas ele, ao que
eu saiba, não chegou a dizer isso) que a „revolução planetária‟ de Morin e a
revolução comunitária – que chamamos aqui de „revolução do local‟ – não são
apenas realidades coevas, movimentos simultâneos, senão que constituem o
mesmo fenômeno.
96
direção, mas não é certo que ela consiga substituir a antiga ordem mundial ainda
prevalecente. O destino configurado por um mundo holográfico de miríades de
comunidades sócio-territoriais e virtuais articuladas em rede planetária não está
garantido. Serão os movimentos sociais e as opções políticas que nos levarão para
esse ou para outro cenário.
97
v) pelo ecumenismo em sentido amplo e pela tolerância com as diferenças de
pensamento, de credos ou visões e práticas devocionais ou confessionais;
vi) pela paz mundial;
vii) pelo fortalecimento da sociedade civil, pela promoção do voluntariado, pela
responsabilidade social (individual, comunitária e institucional – visando o
engajamento de empresas, governos e organizações do terceiro setor em ações
sociais) e pelas parcerias interinstitucionais que esboçam um novo padrão de
relação entre Estado e sociedade no combate à pobreza e à exclusão social e na
promoção do desenvolvimento humano e social sustentável; e
viii) pela glocalização (compreendendo os diversos movimentos de „volta ao
local‟ ou comunitários no contexto de uma globalização que se quer includente,
como os movimentos de desenvolvimento integrado e sustentável e de sócio-
economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local).
Resta ver quais são as escolhas políticas capazes de nos conduzir na direção da
Terra-Frátria.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Cit. por Russell, Peter (1983). O Despertar da Terra: o Cérebro Global. São Paulo: Cultrix,
1991.
(2) Lovelock, James (1988). As eras de Gaia. Rio de Janeiro: Campus, 1991. Lovelock
reconhece, todavia, que quando formulou a teoria de Gaia pela primeira vez, ignorava
inteiramente idéias desenvolvidas por cientistas anteriores, especialmente Hutton, Korolenko e
Vernadsky... A idéia de que a Terra está viva provavelmente é tão velha quanto a humanidade.
A primeira expressão pública desta idéia como fato científico é a de um cientista escocês,
James Hutton. Em 1785, em uma reunião da Royal Society de Edimburgo, Hutton afirmou
que a Terra era um superorganismo e que o estudo mais adequado para ela seria a fisiologia...
Ievgraf Maximovitch Korolenko [que] viveu há mais de cem anos em Cracóvia, na Ucrânia...
afirmava que “a Terra é um organismo”... Hoje todos nós usamos a palavra “biosfera”,
reconhecendo raramente que foi Eduard Suess quem primeiro a utilizou, em 1875, de
passagem, ao descrever o seu trabalho sobre a estrutura geológica dos Alpes. Vernadsky
desenvolveu o conceito e a partir de 1911 usou o seu significado moderno. Vernadsky disse:
“A biosfera é o envoltório da vida, ou seja, a área da matéria viva... a biosfera pode ser vista
como a área da crosta da Terra ocupada por transformadores que convertem as radiações
cósmicas em energia terrestre eficaz: elétrica, quìmica, mecânica, térmica etc.”
98
(3) Margulis, Lynn (1998). O planeta simbiótico. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
(4) Idem.
(11) Morin, Edgar & Kern, Anne-Brigitte (1993). Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995.
(12)-(20) Idem.
(21) Levy, Pierre (1994). A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São
Paulo: Loyola, 1998.
(24) Em meados de 1994, tentei coligir uma lista que expressasse a temática desses novos tipos
de movimento. Essa lista acabou sendo publicada, dois anos depois, no folheto “A transição
para um novo padrão civilizatório” (Brasília: Instituto de Política, 1996). Naquela época escrevi
que “observando iniciativas inovadoras que vêm ocorrendo a partir dos anos 70 veremos que
delas não escapam alguns temas centrais: a ética (sobretudo na política); a (universalização da)
cidadania; a (radicalização da) democracia; a ecologia (e o desenvolvimento sustentável); o
(macro) ecumenismo (entre as religiões, tradições espirituais e culturas do planeta); a paz
(mundial) e a constituição de uma humanidade global (em termos políticos, geográficos,
jurídicos e sociais e não apenas como reflexo da globalização da economia). Tanto é assim que
dificilmente se encontrará uma experiência social realmente nova e expressiva, seja laica ou
religiosa, que não tenha, entre seus anunciados fins, um ou vários desses sete temas. Por tal
motivo podemos considerá-los como temas centrais da transição (não sendo totalmente
impossìvel aduzir outros tópicas a esse elenco)”. Com efeito, hoje, quase uma década depois,
eu retiraria da lista acima o tema da ética (por ser transversal a todos os demais) e acrescentaria
o tema dos direitos humanos, explicitando os movimentos pela igualdade de gênero e o tema
do fortalecimento da sociedade civil e traduzindo o último tema como glocalização (entendido
como comunitarianismo não-conservador e de índole tolerante, no contexto de uma
globalização includente).
99
Texto 3 | A Carta da Terra
Somos, ao mesmo tempo, cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual a dimensão local
e global estão ligadas.
A CARTA DA TERRA
PREÂMBULO
Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no
respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e
em uma cultura da paz.
100
As forças da natureza fazem da existência uma aventura exigente e incerta, mas a
Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida. A capacidade
de recuperação da comunidade da vida e o bem-estar da humanidade dependem
da preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas ecológicos,
uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo.
O meio ambiente global com seus recursos finitos é uma preocupação comum de
todas as pessoas. A proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um
dever sagrado.
A Situação Global
Os padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação
ambiental, redução dos recursos e uma massiva extinção de espécies.
Comunidades estão sendo arruinadas.
101
O surgimento de uma sociedade civil global está criando novas oportunidades
para construir um mundo democrático e humano.
Responsabilidade Universal
Para realizar estas aspirações, devemos decidir viver com um sentido de
responsabilidade universal, identificando-nos com toda a comunidade terrestre
bem como com nossa comunidade local.
PRINCÍPIOS
102
2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor.
a. Aceitar que, com o direito de possuir, administrar e usar os recursos naturais
vem o dever de impedir o dano causado ao meio ambiente e de proteger os
direitos das pessoas.
b. Assumir que o aumento da liberdade, dos conhecimentos e do poder implica
responsabilidade na promoção do bem comum.
103
e. Manejar o uso de recursos renováveis como água, solo, produtos florestais e
vida marinha de formas que não excedam as taxas de regeneração e que protejam
a sanidade dos ecossistemas.
f. Manejar a extração e o uso de recursos não-renováveis, como minerais e
combustíveis fósseis de forma que diminuam a exaustão e não causem dano
ambiental grave.
104
a. Apoiar a cooperação científica e técnica internacional relacionada à
sustentabilidade, com especial atenção às necessidades das nações em
desenvolvimento.
b. Reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual
em todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar
humano.
c. Garantir que informações de vital importância para a saúde humana e para a
proteção ambiental, incluindo informação genética, estejam disponíveis ao
domínio público.
105
b. Promover a participação ativa das mulheres em todos os aspectos da vida
econômica, política, civil, social e cultural como parceiras plenas e paritárias,
tomadoras de decisão, líderes e beneficiárias.
c. Fortalecer as famílias e garantir a segurança e a educação amorosa de todos os
membros da família.
106
14. Integrar, na educação formal e na aprendizagem ao longo da vida, os
conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida
sustentável.
a. Oferecer a todos, especialmente a crianças e jovens, oportunidades educativas
que lhes permitam contribuir ativamente para o desenvolvimento sustentável.
b. Promover a contribuição das artes e humanidades, assim como das ciências, na
educação para sustentabilidade.
c. Intensificar o papel dos meios de comunicação de massa no sentido de
aumentar a sensibilização para os desafios ecológicos e sociais.
d. Reconhecer a importância da educação moral e espiritual para uma subsistência
sustentável.
107
O CAMINHO ADIANTE
Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo
começo. Tal renovação é a promessa dos princípios da Carta da Terra.
Para cumprir esta promessa, temos que nos comprometer a adotar e promover
os valores e objetivos da Carta. Isto requer uma mudança na mente e no coração.
Requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade
universal.
A vida muitas vezes envolve tensões entre valores importantes. Isto pode
significar escolhas difíceis. Porém, necessitamos encontrar caminhos para
harmonizar a diversidade com a unidade, o exercício da liberdade com o bem
comum, objetivos de curto prazo com metas de longo prazo.
108
Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência face à
vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, a intensificação da
luta pela justiça e pela paz, e a alegre celebração da vida.
109
Glocalização em disputa
A glocalização está em disputa e essa disputa é, fundamentalmente, uma disputa
entre o „local separado‟ e o „local conectado‟, entre „dependência x independência‟,
por um lado e „interdependência‟, por outro.
Somos tentados a ver aqui uma certa ordem na história. Agnes Heller concluiu
um belo ensaio, publicado em 1999 (“Uma crise global da civilização: os desafios
futuros”), com uma frase luminosa: “E a modernidade só pode sobreviver em
nìvel global” (1). Com efeito, é difícil deixar de pensar que se o mundo moderno
é um mundo global e o mundo pré-moderno era um mundo local, o mundo pós-
moderno será um mundo glocal. Mas resistindo a tentação de urdir uma nova
filosofia ou um novo schema interpretativo da história, parece mais razoável
afirmar que o destino configurado por um mundo holográfico de centenas de
milhares de comunidades sócio-territoriais e virtuais articuladas em rede
planetária não está garantido. Serão os movimentos sociais e as opções políticas
que nos levarão para esse ou para outros cenários.
Dizer que a glocalização está em disputa, nos termos acima, significa dizer que
existem reações à glocalização que podem inviabilizá-la. A glocalização, apenas
prefigurada nos dias de hoje, só poderá se consumar com o „local conectado‟. As
110
reações que podem inviabilizar a glocalização são aquelas que procuram manter o
„local separado‟.
111
sobre os demais, em uma dinâmica de „centro x periferia‟ ou de „dependência x
independência‟.
112
para poder manter o mundo em „estado de guerra‟, por exemplo, movendo
guerras contra as não-democracias). No plano político o movimento pela
democratização – em especial em âmbito global, pela democratização das
relações internacionais e, em âmbito local, pela democratização de instituições,
procedimentos e processos decisórios – é a principal revolução capaz de libertar
o mundo do círculo satânico da guerra e de consumar a glocalização.
113
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Heller, Agnes (1999). “Uma crise global da civilização: os desafios futuros” in Santos,
Theotônio et al. (orgs.) (1999). A crise dos paradigmas em ciências sociais e os desafios para o
século XXI. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
114
Glocalização e Estado-nação
O Estado não vai desaparecer na transição histórica atualmente em curso, senão
que será transformado, mas não é certo se tal transformação será necessariamente
glocalizante. O destino da forma atual do Estado-nação está em disputa e essa
disputa é a mesma disputa que se trava em torno da glocalização.
Isso significa, é bom repetir, que a mudança que tem ocorrido nas duas pontas –
no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-
nação atual, embora essa forma esteja sendo ameaçada e, assim, esteja resistindo
ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança.
Ora, novos sistemas globais de governança [como os que seriam exigidos por
uma rede planetária de miríades de comunidades interdependentes – aduzo
agora], para serem realmente novos, deverão ser frutos de novos arranjos de
atores, de uma nova arquitetura de rede e de novos modos democráticos (de
democracia em tempo real, de ciberdemocracy), conectando identidades individuais e
coletivas – sócio-territoriais (comunidades), sócio-culturais (novos movimentos
sociais, organizações da sociedade civil e comunidades virtuais), sócio-produtivas
(novas empresas) e sócio-políticas (novos partidos e tendências de opinião sub-
nacionais e trans-nacionais) – para além da identidade única do Estado-nação.
115
É necessário identificar as insuficiências ou inadequações do Estado-nação para
tentar prever que tipo de transformação ocorrerá na sua estrutura e no seu
funcionamento por força do processo em curso de glocalização.
Além disso, a forma Estado-nação atual não convive muito bem com a
globalização, que lhe retira poder. Como assinalou Castells em um ensaio de
2001, “confrontado com fluxos globais de capital, de produção, de comércio, de
gestão, de informação e de crimes, o Estado-nação foi perdendo, na última
década, boa parte do seu poder... A crescente falta de operacionalidade do
Estado-nação para resolver os problemas econômicos, de meio ambiente, da
insegurança cidadã produz uma crise de confiança e legitimidade em boa parte da
116
população em quase todos os países... [De sorte que] o Estado é cada vez mais
inoperante no global e cada vez menos representativo no nacional” (3).
Castells vai mais além ao supor que, “se essas tendências se confirmarem, na era
da informação, na qual já nos encontramos, poderemos desembocar em uma
justaposição generalizada de mercados globais e tribos identitárias enfrentando-se
sobre as ruínas do Estado democrático e da sociedade civil, que foram
construídos com tanto esforço no trajeto histórico da era industrial” (7).
Nem tanto. O que ocorre, ao meu ver, é que, como o próprio Castells afirma,
citando o ensaio de Guéhenno (1993) sobre o fim da democracia (ver Box S), “o
conjunto da construção do Estado-nação democrático da era industrial, baseada
nos conceitos inseparáveis de soberania nacional e representação democrática
cidadã, entra em crise” (8). Mas entra em crise, sobretudo, porque sua forma
antiga não foi capaz de se adequar às novas dinâmicas introduzidas pela transição
histórica – inclusive no sentido da democratização (com a queda dos “muros”
que mantêm o isolamento das populações imposto pelo Estado, visando ao seu
controle pelo confinamento dentro de “fronteiras” sócio-político-culturais) e da
glocalização (ou seja, da formação de uma nova cultura, conforme a uma nova
sociedade cosmopolita global e de um reflorescimento da perspectiva
comunitária ou da volta ao local) – e não porque, supostamente, esteja sendo
atingido nos seus melhores valores de democracia e cidadania universais (o que é
117
muito questionável de vez que democracia e cidadania existem, a rigor, apenas
“para dentro” no Estado-nação industrial).
Por outro lado, o Estado não vai mesmo desaparecer na transição histórica
atualmente em curso, senão que será transformado. E nem é certo se tal
transformação será necessariamente democratizante, globalizante e pós-
modernizante (para mencionarmos as trajetórias dominantes da transição,
segundo Offe) ou glocalizante (como prefiro sintetizar). Talvez haja uma reação à
essa transição, com um recrudescimento do estatismo, que tudo fará para manter
um sistema internacional cristalizado em algumas poucas centenas de núcleos
duros de poder formalmente democrático “para dentro” e substancialmente
autocrático “para fora” (ou de um número menor de blocos pluri-nacionais
seguindo a mesma receita) por meio da instalação de um “estado de guerra”
generalizado no mundo.
118
em uma mistura que consiga evitar que cada um deles se sobreponha aos outros e
os elimine” (9).
Para Offe, uma “mistura cìvica” dessas três esferas deve evitar seis “abordagens
patológicas para a construção de instituições sociais e políticas, ou ao que
denominamos seis falácias. Três delas resultam da permanência de uma
abordagem “bitolada” em um de nossos blocos, e as outras três advêm da
premissa de que algum dos três ingredientes pode ser inteiramente deixado de
fora na arquitetura da ordem social” (10). Essas falácias são: 1) a do estatismo
excessivo; 2) a da capacidade de governo “pequena demais”; 3) a da excessiva
confiança nos mecanismos de mercado; 4) a de uma limitação excessiva das
forças de mercado; 5) a do comunitarianismo excessivo; e 6) a de negligenciar
comunidades e identidade (11).
Nos termos empregados neste livro, poder-se-ia dizer que isso ocorre quando
nos deixamos impregnar por ideologias estadocêntricas, mercadocêntricas ou
sóciocêntricas. Há, todavia, uma importante diferença entre estatismo,
neoliberalismo e qualquer coisa que se pudesse propriamente chamar de
“socialismo” enquanto expressão de um sociocentrismo (não o que foi chamado
nos dois séculos anteriores de socialismo que, freqüentemente, era uma forma de
estatismo, a não ser em algumas de suas versões anarquistas).
119
padrões institucionais do que qualquer autoproclamado especialista ou
protagonista intelectual de uma das doutrinas “puras” da ordem social” (13).
O Estado-rede
De qualquer modo o Estado-nação não poderá mais ser como antes ou se
comportar da maneira como se comportava ou se estruturar da maneira como se
estruturava, se – digo: se – a glocalização avançar no rumo da formação de redes
de comunidades subnacionais e transnacionais. Neste caso ele terá que se
transformar, como quer Castells (por esse e por outros motivos: além da
transferência de atribuições e iniciativas aos âmbitos regionais e locais, a própria
crise que o assola e o desenvolvimento de instituições supranacionais), em uma
espécie de Estado-rede.
120
autonomia em benefício dos níveis supranacional e subnacional. Daí a
importância de que o processo de redistribuição de atribuições e recursos seja
acompanhado por mecanismos de coordenação entre os diferentes níveis
institucionais em que se desenvolve a ação dos agentes políticos. A fórmula
político-institucional que parece mais efetiva para assegurar essa coordenação é o
que denomino Estado-rede” (16).
A reação a glocalização
Todavia, isso pode não acontecer. Se não acontecer será porque a disputa em
torno da glocalização conseguiu bloquear de alguma forma a expansão das
conexões no interior dos âmbitos locais e interlocais ou entre o local e o global.
Ou seja, se isso não acontecer será porque o „local separado‟ conseguiu
prevalecer sobre o „local conectado‟ ou porque uma dinâmica de
interdependência não conseguiu se instalar em grau suficiente para desencadear
uma mudança na configuração global do sistema.
Uma outra maneira, mais otimista e também mais ousada, de dizer a mesma
coisa, é a seguinte: isso não acontecerá enquanto nodos locais – em número
suficiente e com um número suficiente de conexões – não estiverem conectados
em rede. A questão de saber qual seria a “massa crìtica” necessária para
desencadear a predominância de uma nova dinâmica de interdependência em
âmbito global e de qual seria o grau de conectividade (a extensão característica de
caminho) para reduzir o tamanho do mundo de sorte a permitir que a
glocalização seja consumada é, ao meu ver, o mais importante tema da
investigação de vanguarda contemporânea. Trataremos desse assunto no
próximo capítulo, sobre a localização.
121
ausência de “estado de guerra”, ele só é estável por curtos perìodos e que, na
presença de guerras (“quentes” ou “frias”), ele não possa admitir uma
multipolarização (dificilmente administrável do ponto de vista dos interesses
econômicos dos pólos individuais), tendendo para a bipolarização, a qual, por sua
vez, também não se mantém por longo tempo na medida em que um pólo acaba
predominando sobre o outro, levando à unipolarização que conduz, então, à
multipolarização.
Diz-se que Creta (a minóica) conseguiu ficar um milênio sem guerras não
obstante estar imersa em um mundo de guerras. Creta, em si, era um mundo
autosuficiente, uma ilha em todos os sentidos. Mas hoje não podem mais existir
ilhas (em todos os sentidos). E não se conhece na história recente longos
perìodos de ausência de “estado de guerra” (“quente” ou “fria”) generalizados. A
única exceção foram os dez anos entre a derrocada da URSS e o atentado ao
World Trade Center, no quais, como assinala Friedman, o sistema da guerra fria foi
substituído pelo que ele chama de sistema da globalização (18). Não por acaso
foram aqueles os anos 90, onde pôde avançar o processo da glocalização.
ii) tal disputa ensejou o surgimento de novos fatores que questionam o velho
modelo de Estado baseado em uma noção de soberania vinculada a fronteiras
territoriais;
122
iii) em decorrência disso, um novo tipo de Estado – o Estado-mercado – está se
sobrepondo ao Estado-nação; e
iv) a antiga sociedade de Estados-nação está sendo substituída por uma nova
sociedade de Estados-mercado.
Bobbit elenca os cinco principais fatores que estão questionando o velho tipo de
Estado-nação:
123
constitucional de cada Estado, [no plano externo são] os grandes acordos de paz
[que] dão forma à ordem constitucional da sociedade de Estados” (22).
Para Bobbit não existe sociedade civil, não pelo menos como uma esfera da
realidade social subsistente fora da ordem do Estado. Sua perspectiva é tão
mercadocêntrica que ele é obrigado a supor, diante da mudança social em curso
no mundo atual, um processo de transição para um hipotético “Estado-
mercado”, uma nova forma de Estado que estaria sucedendo a forma Estado-
nação. Ou seja, para ele, parece que nem o mercado pode ter uma existência per
se, uma “lógica” e uma racionalidade próprias.
Assim, ao invés de tratar dos novos padrões de interação entre Estado e mercado
e dos novos padrões de interação entre Estado e sociedade civil, entre mercado e
sociedade civil e entre Estado, mercado e sociedade civil, ele – simplesmente –
reduz tudo à realidade estatal, supondo que todo esse processo poderá ser
revelado pelo desenvolvimento de uma estranha disciplina chamada “estadìstica”.
124
É uma pena porque, apesar disso, a periodização introduzida por Philip Bobbit
poderia ajudar a compreender melhor o século 20 (ver Texto 5). Ou, pelo menos,
poderia ajudar a compreender o significado dos anos 90, como uma espécie de
interregno no que tange a instalação de um estado de guerra generalizado
(embora ele não diga – e, ao que parece, nem pense – isso).
Um software diabólico
Ocorre que não estamos mais na década de 1990. Nos primeiros anos do
presente milênio, ao que tudo indica, a “America‟s new war” está se instalando, ou
seja, está sendo novamente inicializado um software diabólico: um “estado de
guerra” generalizado no mundo (e de novo tipo: ao mesmo tempo focalizado e
“quente”, aplicado preventivamente contra potenciais inimigos localizados – os
Estados-nações “fora da lei” – e universalizado e “frio”, contra um inimigo
invisível, o terrorismo globalizado). Sobretudo essa última forma, „o estado de
guerra permanente contra o inimigo invisìvel e onipresente‟ é a maior ameaça que
poderia ser concebida e praticada contra a planetarização.
Reconheço que as dificuldades atuais são imensas para manter o mundo como
um quebra-cabeça de peças rígidas compostas de locais separados diante dos
interesses multilaterais. Seria preciso, por exemplo, tirar “do ar” ou controlar a
Internet, o que não agradaria muito aos sistemas financeiros e comerciais já
globalizados. Mas, ainda assim, creio que se pode retardar por longo tempo o
processo de emersão da sociedade rede (e do seu correspondente Estado-rede).
Quero dizer que o avanço da glocalização não ocorrerá por força de qualquer
determinação extra-política, por algum tipo de desdobramento de uma tendência
histórica imanente. Embora a glocalização não teria podido começar sem um
conjunto de condições objetivas determinadas (como a inovação tecnológica
telemática, por exemplo) seu desfecho está em disputa. E se, no âmbito global, a
planetarização pode ser enfreada pela ação política de atores nacionais poderosos
(como os USA na “Era Bush” e seus aliados), no âmbito local isso será muito
mais difìcil de fazer. Esse, aliás, é um dos sentidos da expressão „revolução do
local‟.
125
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Offe, Claus. (1991). “A atual transição da história e algumas opções básicas para as
instituições da sociedade” in Bresser Pereira, L.C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em
Transformação. Brasília: ENAP, 1991.
(6)-(8) Idem.
(18) Friedman, Thomas L. (1999). O Lexus e a Oliveira. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
(19) Bobbit, Philip (2002). The Shield of Achilles. New York: Alfred A. Knopf – Randon House,
2002 (publicado no Brasil como A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos grandes
conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003).
(20)-(25) Idem.
126
Texto 4 | Guéhenno, o fim da democracia e o futuro da
liberdade
“O ano de 1989 marca, efetivamente, o crepúsculo de uma longa época histórica, da qual o
Estado-nação, surgindo progressivamente dos escombros do Império Romano, foi o coroamento”.
“Parece-me que a evolução contemporânea deva provocar o fim das construções institucionais
herdadas do Renascimento e do Século das Luzes, do Estado-nação e das formas tradicionais de
soberania democrática que lhe são associadas”.
127
democrático no âmbito global), Guehénno observa que “o que se cria não é
nenhum corpo político mundial, mas sim um tecido sem costuras aparentes, um
acréscimo indefinido de elementos interdependentes” (3). Logo... isso aponta
para o fim da democracia.
Cerca de cinco anos depois, Guehénno volta ao tema para tentar “definir as
novas condições da democracia dentro da globalização”. Sua pergunta continua
sendo, basicamente, a mesma: “como construir as comunidades polìticas do
futuro?” (4).
“Por um lado, com efeito, a globalização faz de nós órfãos, pois não mais
herdamos de uma comunidade, pelo acaso do nascimento. Temos que, de agora
em diante, construir a comunidade. E esta passagem de um mundo de
comunidades de memória para um mundo de comunidades de escolha é uma
liberdade difícil de carregar, para a qual estávamos mal preparados. A fuga para
dentro do “comunitarismo”, a xenofobia e, finalmente, a tirania podem seduzir
aqueles a quem esta nova liberdade inquieta, pois, não sabendo mais de onde
vêm, não sabem quem são e não têm força para escolher para onde ir”... (5).
Essa evolução – ele assinala – não é pouco importante, pois, se é verdade que a
praça do mercado foi o primeiro lugar do debate público, seu desaparecimento
terá conseqüências sobre a definição do “espaço público” onde a comunidade de
cidadãos se encontra: ele não pode ser a simples soma dos espaços virtuais da
Internet, e a multiplicação dos “fóruns de discussão” não é suficiente para fazer
dos internautas cidadãos de uma nova república virtual da Internet...
128
libertado de suas origens e que sua liberdade de moderno vai se consumar:
territórios novos se abrem. Mas, ao mesmo tempo, a ausência de um espaço
público comum e a enorme concorrência que resulta da própria abertura do
campo de possibilidades forçam as comunidades particulares a procurarem antes
de mais nada a semelhança entre seus membros, em vez de procurarem a
comunicação com os outros. Assim, em meio a essa liberdade, que pareceria ser
o remate da liberdade “moderna” e o triunfo do indivìduo, aparece um novo tipo
de comunidade mais parecida com Esparta do que com Atenas” (6).
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Guéhenno, Jean-Marie (1993). O fim da democracia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1999.
(2)-(3) Idem.
(4)-(6) Guéhenno, Jean-Marie (1999). O futuro da liberdade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2003.
129
Texto 5 | Bobbit e a emergência do Estado-mercado
“Enquanto o Estado-nação, com sua educação pública gratuita de massa, voto universal e
políticas de previdência social, propunha-se a garantir o bem-estar da nação, o Estado-mercado
promete, por sua vez, maximizar as oportunidades do povo; assim, tende a privatizar diversas
atividades estatais, bem como a restringir a influência do voto e do governo representativo,
tornando-os mais sensíveis ao mercado”.
Para ele, “as guerras momentosas podem ser compostas por vários conflitos
considerados pelos participantes guerras separadas; podem compreender
períodos de paz aparente (incluindo até mesmo elaborados tratados de paz); e
com freqüência não mantêm o mesmo alinhamento de adversários e aliados ao
longo de seu desenvolvimento. A Longa Guerra (que abrange a Primeira e a
Segunda Guerras Mundiais, a Revolução Russa e a Guerra Civil Espanhola, as
Guerras da Coréia e do Vietnã e a Guerra Fria), assim como as guerras
momentosas anteriores, girou em torno de uma questão constitucional
fundamental: que tipo de Estado-nação – comunista, fascista ou parlamentar –
herdaria a legitimidade antes atribuída aos Estados-nação imperiais do século 19”
(2).
130
Tese 3 – “O Estado-mercado está sobrepondo-se ao Estado-nação, em
decorrência do fim da Longa Guerra”.
Para Philip Bobbit, “o fim da Longa Guerra foi rapidamente sucedido pelo
surgimento de uma nova ordem constitucional. Essa nova forma é o Estado-
mercado. Enquanto o Estado-nação, com sua educação pública gratuita de
massa, voto universal e políticas de previdência social, propunha-se a garantir o
bem-estar da nação, o Estado-mercado promete, por sua vez, maximizar as
oportunidades do povo; assim, tende a privatizar diversas atividades estatais, bem
como a restringir a influência do voto e do governo representativo, tornando-os
mais sensíveis ao mercado. Os Estados Unidos, um dos principais inovadores no
desenvolvimento do Estado-mercado, deve elaborar suas políticas estratégicas
tendo em vista essa mudança constitucional fundamental” (4).
131
ser compreendido em termos dessas constituições – e, portanto, como tendo se
desenvolvido em vários períodos distintos. O estudo desse desenvolvimento
proporciona um fundamento para que se compreenda a era constitucional
seguinte da sociedade de Estados” (6).
Para Philip Bobbit, “os desafios com que se defronta a sociedade de Estados são
uma conseqüência direta das inovações estratégicas que venceram a Longa
Guerra. As maneiras como as diversas formas básicas do Estado-mercado vão
lidar com tais desafios é que estruturarão os conflitos de uma nova sociedade. É
preciso agir tendo em vista esse desenvolvimento, aceitando os conflitos onde
forem necessários para evitar guerras cataclísmicas ou o colapso da superinfra-
estrutura global e criando instituições que legitimem a nova sociedade de
Estados-mercado” (7).
132
3 – Para que a economia cresça, faz-se necessário assegurar o acesso a todos os
mercados e reduzir a regulamentação do comércio.
4 – Para que os bens dos Estados consigam penetrar nos mercados estrangeiros
– e, assim, tomar parte desse crescimento – a política comercial de cada Estado
precisará tornar-se mais livre.
Caso nada disso ocorra o Estado entrará em um círculo vicioso, que Bobbit
descreve sumariamente assim:
e) Uma carga tributária cada vez mais pesada produzirá arrecadação cada vez
menor.
g) O Estado que se esquivar de cortar seus gastos previdenciários não terá outra
alternativa além de recorrer aos cortes quando cair a arrecadação e ele vir-se com
133
uma conta estratosférica de seguridade social nas mãos, à medida que aumentar o
desemprego.
i) O Estado que tentar restringir fugas de capital acabará apartado dos demais, e o
que inibir as importações de capital será ignorado – o que também elevará o
custo de produção e deprimirá o padrão de vida, em mais um volta deste círculo
vicioso” (9).
134
f) Esta, por sua vez, significa uma maior prudência macroeconômica, levando a
mais investimentos estrangeiros, que financiam ainda mais crescimento – o qual
tende a liberalizar o autoritarismo, estimulando a autonomia pessoal” (10).
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Bobbit, Philip (2002). The Shield of Achilles. New York: Alfred A. Knopf – Randon House,
2002 (publicado no Brasil como A guerra e a paz na história moderna: o impacto dos grandes
conflitos e da política na formação das nações. Rio de Janeiro: Campus, 2003).
(2)-(10) Idem.
135
Glocalização e localização
Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de „globalização‟) para
entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão global, torna-se também
necessário gerar outro conceito (o de „localização‟) para entender as mudanças que
estão ocorrendo coetaneamente na dimensão local. Como as duas coisas constituem
aspectos do mesmo processo de glocalização ou de emersão da realidade glocal, isso
significa que a glocalização confere um novo status ao local que, para ser revelado,
exige também um novo construct e uma nova hipótese: a hipótese (no sentido
“forte”) da „localização‟.
Isso significa que, diante da mudança que ora se processa, o local adquire um
novo status que, para ser revelado, exige também um novo construct: o conceito de
„localização‟. Assim como foi necessário utilizar um novo conceito (o de
„globalização‟) para entender as mudanças que estão ocorrendo na dimensão
global, torna-se também necessário gerar outro conceito (o de „localização‟) para
entender as mudanças na dimensão local. As duas coisas, como vimos,
constituem aspectos do mesmo processo de glocalização ou da emersão da
realidade glocal.
136
importação e exportação de conteúdos localizáveis, manipulação de gráficos,
recompilação em um ambiente localizado (no caso de conteúdos
binários/executáveis), especificação e conversão da codificação de caracteres,
redimensionamento de elementos da interface gráfica com o usuário e assim por
diante.
Há, todavia, uma localização em sentido forte e é sobre ela que discorreremos no
próximo capítulo.
137
Capítulo Três | Localização
138
Entendendo a localização
Neste capìtulo vou tratar do tema da „localização‟, tomando essa hipótese no seu
sentido forte e não apenas como sinônimo de “nacionalização” (por exemplo, a
tradução de softwares) ou “climatização” (por exemplo, a “tropicalização” de
carros europeus e americanos para venda e uso no Brasil). Ou seja, não vamos
tratar da „localização‟ em seu sentido fraco, como adaptação de ofertas globais de
produtos e serviços aos gostos, cultura, condições socio-ambientais e
necessidades locais.
139
Localização e „tamanho do mundo‟
O local é necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial ou populacional
e sim no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de alta “tramatura”
social.
A assertiva acima diz que o local é necessariamente o pequeno. Ora, isso parece
estar em contradição com o que escrevi há três anos, em “Por que precisamos de
desenvolvimento local integrado e sustentável”. Naquela ocasião afirmei que “a
palavra „local‟... não é sinônimo de pequeno e não alude necessariamente à
diminuição ou redução. O conceito de local adquire, pois, a conotação de alvo
socioterritorial das ações e passa, assim, a ser retrodefinido como o âmbito
abrangido por um processo de desenvolvimento em curso, em geral quando esse
processo é pensado, planejado, promovido ou induzido” (1). Neste sentido,
afirmei ainda que “de certa maneira, todo desenvolvimento é local, seja este local
um distrito, um município, uma microrregião, uma região de um país, um país,
uma região do mundo” (2).
Minha investigação dos últimos anos, entretanto, vem revelando que o local é
necessariamente o pequeno, mas não no sentido territorial ou populacional e sim
no sentido daquilo que foi tornado pequeno por força de alta “tramatura” social.
Como chegamos a isso? Vou tentar mostrar em seguida, de modo resumido por
questões de espaço – o que, freqüentemente, ao invés de simplificar, acaba
complicando.
140
O mais importante aqui, porém, é o outro lado da moeda, ou seja, é a
constatação de que a globalização do local é uma localização do global (como
comentaremos mais adiante). Isso significa, em primeiro lugar, que a conjunção
particular de fatores que possibilita a globalização também possibilita a
localização. E, em segundo lugar, que a localização diminui o tamanho do
mundo, torna o mundo um local, torna qualquer mundo – qualquer realidade
socioterritorial ou virtual, independentemente do número e do tamanho de seus
elementos componentes e da distância entre eles – um mundo pequeno. Daí
porque local é, nesse sentido, sempre um „mundo pequeno‟, aquilo que os
teóricos que trabalham com análise de redes estão chamado de SWN (“small-world
networks”).
Rede e hierarquia
O que caracteriza fundamentalmente uma rede é a existência de caminhos
múltiplos. Forçando um pouco a intenção do conceito e estabelecendo um
paralelo geométrico, poder-se-ia dizer que, se uma rede é uma coleção de nodos
ligados por muitos caminhos (ou um conjunto de vértices interconectados por
muitas arestas) uma hierarquia é um caso particular de rede caracterizado pela
existência do menor número possível de caminhos (ou uma linha quebrada que,
conquanto possa ter múltiplos vértices, nunca chega a formar uma figura
geométrica fechada). Neste sentido uma hierarquia “máxima” (ou uma
organização com o máximo grau de hierarquização) poderia ser vista como um
conjunto de nodos (vértices) conectados por caminhos únicos.
141
figurando como os vértices de um triângulo) podemos ter o dobro de caminhos:
AB e ACB (ou AC e ABC). Enquanto que na hierarquia o número máximo de
caminhos diferentes possíveis entre todos os nodos é igual a 3 (AB, BC e ABC),
na rede o número máximo de caminhos possíveis é igual a 6 (AB, BC, ABC, AC,
ACB e CAB).
142
É fácil mostrar que, no caso de termos cinco nodos, a rede mais tramada possível
produz, em relação a hierarquia, um “encurtamento” de 16 vezes no mundo. Em
outras palavras, um mundo com 5 elementos conectados segundo um padrão de
rede (com o número máximo de conexões) é um mundo com 16 vezes mais
caminhos do que a hierarquia (com o número mínimo de conexões, quer dizer,
nunca mais do que 2 conexões para um nodo). Enquanto na hierarquia teríamos
apenas 10 caminhos entre todos os nodos, na rede teríamos algo como 160
caminhos. E enquanto na hierarquia (“máxima”), uma mensagem emitida de um
nodo só dispõe de um mesmo caminho para chegar a outro nodo qualquer, na
rede ela possui 16 caminhos diferentes.
Tudo isso significa que duas localidades com o mesmo número de habitantes,
podem ter tamanhos de mundo completamente diferentes na medida em que a
143
„extensão caracterìstica de caminho‟ (ou seja, o número de “estações” ou
intermediações que são necessárias, em média, para fazer uma mensagem chegar
de um nodo qualquer a outro qualquer) de cada uma delas for diferente. Uma
cidade sumeriana de 2 mil habitantes com toda a certeza seria muitas vezes maior
do que um subúrbio novaiorquino atual de mesma população.
Ainda não temos uma equação que permita calcular o „tamanho do mundo‟ do
ponto de vista do padrão de organização, mas já podemos prever que o fator
„conectividade potencial‟ nesta equação (ou seja, o número de caminhos possìveis
entre os nodos) tem um peso muito maior do que os fatores „tamanho dos
nodos‟, „número de nodos‟ e „distância entre os nodos‟ (3).
Assim, pode-se supor que uma cidade sumeriana de 2 mil habitantes (como
Uruk, sobretudo a Uruk do início do terceiro milênio, da invenção da escrita, das
muralhas colossais e do zigurate dedicado ao supremo AN) seria um mundo
muito maior do que, por exemplo, todo o Silicon Valley atual. Por que? Porque
(essa) Uruk, do ponto de vista do padrão de organização, era uma cidade-Estado-
Templo rigidamente centralizada e verticalizada, onde as pessoas eram separadas
por graus de poder e dispostas como os degraus de uma escada (não por acaso os
zigurates eram pirâmides feitas de escadas) – ou seja, Uruk era a materialização de
uma hierarquia, de uma ordem (arché) sacerdotal (hieros) e também não é por
acaso que “sagrado” na lìngua sumeriana tinha o mesmo sentido de “separado”.
Isso significa que o acesso de uma pessoa a outra, era muito mais difícil, em
Uruk, do que em Silicon Valley onde, de repente, um pesquisador de uma empresa
e o dono de uma outra empresa concorrente almoçam no mesmo restaurante e
sentam-se à mesma mesa várias vezes por mês (coisa que não poderia mesmo
ocorrer em Uruk, mas que também não ocorre, por exemplo, nos e entre os
Keiretsu japoneses atuais). Ou seja, em Silicon Valley existem mais redes sociais do
que em Uruk e, assim, o mundo da primeira é muito menor do que o mundo da
segunda não obstante o seu território ser muito maior e o seu número de
habitantes idem.
144
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Franco, Augusto (2000). Por quê precisamos de desenvolvimento local integrado e
sustentável. Brasília: Instituto de Política, 2000.
(2) Idem.
(3) Vale a pena ler os textos do jovem pesquisador Duncan Watts, sobretudo Small worlds: the
dynamics of networks between order and randomness. New Jersey: Princeton University Press, 1999 e
Six degrees: the science of a connected age. New York: W. W. Norton & Company, 2003. Cf. Texto 6
e Texto 7.
145
Texto 6 | Small-World Networks: transformando o vasto
mundo em um mundo pequeno
“Mesmo que grupos locais sejam altamente agrupados, desde que uma pequena fração (1 por
cento ou menos) dos indivíduos tenha conexões de longo alcance fora do grupo, as extensões de
caminho serão baixas”.
“Em 1967, o professor Stanley Milgram, de Harvard, enviou 160 cartas pelo
correio, para um conjunto de pessoas escolhidas aleatoriamente que moravam em
Omaha, Nebraska. Pediu a elas que participassem em uma experiência social
incomum, na qual tentariam passar essas cartas a uma determinada pessoa-alvo,
um corretor de valores que trabalhava em Boston, Massachusetts, utilizando
apenas intermediários que se conhecessem pelo nome de batismo. Ou seja, cada
pessoa passaria a carta a um amigo que julgasse poder levar a carta para mais
perto do alvo; o amigo por sua vez a passaria a outro amigo, e assim por diante
até que a carta chegasse a alguém que conhecesse o alvo pessoalmente e pudesse
entregá-la a ele. Por exemplo, um engenheiro em Omaha, ao receber a carta, a
passou a um nativo da Nova Inglaterra que morava em Bellevue, Nebraska, que a
passou para um professor de matemática em Littleton, Massachusetts, que a
passou a um diretor de escola em um subúrbio de Boston, que a entregou a um
lojista local, que a entregou ao bastante surpreso corretor de valores.
146
sendo e coleção de pontos (chamados vértices) conectados em pares por linhas
(chamadas arestas).
Sendo possível ir de qualquer vértice para qualquer outro por meio de algum
caminho, a pergunta seguinte seria quanto à extensão desses caminhos. Uma
medida útil a ser considerada é a seguinte: para cada par de vértices no grafo,
encontre a extensão do caminho mais curto entre eles; depois, tire a média entre
todos os pares. Esse número, que denominaremos extensão característica de caminho
do grafo, nos dá uma idéia do quão distanciados são os pontos na rede...
147
questões, vamos retornar à experiência de encaminhamento de cartas em maior
profundidade. Então veremos se podemos aplicar quaisquer esclarecimentos à
situação peer-to-peer.
148
umas às outras. Um atalho não beneficia apenas um único indivíduo, mas
também todos os que estão ligados a ele e todos ligados àqueles ligados a ele, e
assim por diante. Todos podem beneficiar-se do atalho, em muito encurtando a
extensão característica de caminho. Por outro lado, mudar uma conexão local
para uma de longo alcance tem apenas um efeito pequeno sobre o coeficiente de
agrupamento” (3).
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Hong, Theodore (2001). “Desempenho” in Oram, Andy (2001). Peer-to-peer: o poder
transformador das redes ponto a ponto. São Paulo: Berkeley, 2001.
(2)-(3) Idem.
149
Texto 7 | O recente experimento sobre Small-World de
Peter Dodds, Roby Muhamad e Duncan Watts
"Laços “fracos” são desproporcionalmente responsáveis pela conectividade social”.
150
buscas sociais ao sucesso sob diferentes condições". Ou seja, como eles dizem "a
rede não é tudo", porém, existindo a rede, basta um peteleco...
Excertos das conclusões desse novo experimento são reproduzidos abaixo (1).
Entretanto, muito do que se fala sobre essa hipótese de “mundo pequeno” é mal
compreendido e carece de substância empírica. Em particular, em redes sociais
reais os indivíduos dispõem apenas de informações limitadas e locais sobre a rede
social global e, portanto, encontrar atalhos representa um esforço de busca
significativo. Ademais, e contrariamente à sabedoria aceita, a evidência
experimental no que se refere a comprimentos de correntes globais curtas é
extremamente limitada. Por exemplo, Travers e Milgram relatam 96 correntes de
mensagens (das quais 18 foram concluídas), iniciadas por indivíduos selecionados
aleatoriamente em uma cidade que não a do alvo. Quase todos os demais estudos
empíricos de redes de larga escala focalizaram redes não-sociais ou substitutos
grosseiros de interação social tal como cooperação científica, e estudos
151
específicos de redes de e-mail têm-se limitado, até o momento, a instituições
individuais.
152
Tanto nas correntes bem sucedidas quanto nas mal sucedidas, os indivíduos
geralmente usavam laços com conhecidos que consideravam “relativamente
ìntimos”. Entretanto, nas correntes bem sucedidas, laços “ocasionais” e “não
ìntimos” foram escolhidos com uma freqüência 15,7 e 5,9% superior àquela
registrada nas correntes mal sucedidas, agregando suporte, e alguma resolução, à
duradoura asserção de que laços “fracos” são desproporcionalmente responsáveis
pela conectividade social.
153
em comprimentos menores de correntes porque, por exemplo, os indivíduos
mais próximos ao alvo apresentam maior probabilidade de dar continuidade à
corrente... [mas] a falta de interesse ou de incentivo, e não a dificuldade, foi a
principal razão para a ruptura da corrente...
154
que, no momento, os e-mails indesejáveis representem 40% de todos os e-mails
recebidos (ver http://zdnet.com.com/2100-1106-977809.html, por exemplo).
Evidências indicam que filtros automatizados de e-mails indesejáveis bloqueiam
os e-mails do experimento, levando indivíduos dispostos a participar do
experimento a tomar esses e-mails por correspondência comercial. Entretanto, a
taxa média de participação em cada link após o primeiro foi de cerca de 37%,
excedendo a taxa típica de resposta em pesquisas de e-mails. Como indicamos no
documento, a baixa taxa de conclusão de correntes (0,4%) resulta da atenuação
exponencial das correntes de mensagens, uma característica inevitável do
protocolo experimental. Para esclarecer esse ponto, considere o efeito do
aumento de nossa taxa de resposta por link (37%) em relação àquela obtida por
Travers e Milgram (75%): em uma corrente de comprimento 6, a taxa de
conclusão de corrente correspondente aumentaria em um fator de
aproximadamente 64” (2).
REFERÊNCIAS E NOTAS
(2) Idem. As tabelas, equações, referências e notas originais deste artigo podem ser acessadas
em sciencemag no endereço http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/301/5634/
155
Localização e „poder social‟
Quanto mais conectado é o mundo menor ele é, porém mais potente socialmente ele é
(small is powerful).
Na seção anterior mostrei que quanto mais conectado é um mundo, quanto mais
caminhos existirem entre seus elementos (nodos de uma rede, necessariamente,
se o número de conexões ou caminhos entre eles for maior do que 1 e se o
número total desses elementos for maior do que 2) menor ele é.
Agora vamos ver que quanto mais conectado é o mundo mais potente
socialmente ele é. Small is powerful. Se quanto maior a tessitura social, ou seja,
quanto mais conexões ou caminhos puderem ser estabelecidos, menor o
„tamanho do mundo‟, então „pequeno‟, do ponto de vista (e por força) de uma
alta “tramatura” do tecido social, é uma força poderosíssima.
Por quê? Porque quanto mais caminhos existirem mais possibilidades existirão de
um pequeno estímulo, proveniente de qualquer lugar do mundo, se propagar e se
amplificar por “reverberação”, por feedback positivo, i. e., por laços de
realimentação de reforço, atingindo o mundo todo. Ora, isso significa, por um
lado, que os elementos do mundo (os nodos da rede) terão mais chances de
verem suas idéias – ou os seus “memes” – se replicarem; ou seja, eles estarão
mais empoderados. Mas significa também, por outro lado, em primeiro lugar, que
é o sistema como um todo que empodera seus componentes e, em segundo
lugar, que tal sistema funciona como amplificador e macro-processador dos
estímulos recebidos/emitidos por seus componentes.
Vamos ver primeiro o primeiro lado da questão. Lanço mão aqui da poderosa
metáfora aventada por Richard Dawkins em 1976 (em “O gene egoìsta”) e
brilhantemente comentada por Daniel Dennett, sobretudo em 1995 (em “A
perigosa idéia de Darwin”), como um recurso lateral de argumentação.
156
A idéia de que haveria uma unidade autoreplicadora, análoga ao gene, chamada
“meme”, é instigante. Não tenho certeza se seria possìvel construir uma “teoria
memética” com status de teoria científica, como a genética. E também não tenho
certeza se comprar a idéia de “meme” (ou o “meme” de „meme‟) implica ter que
assumir também a visão neodarwinista, da qual discordo bastante (1). Desconfio
que a ideologia que vem junto no pacote (segundo a qual os “memes” se
propagariam por “replicação egoista”, disputando o tempo todo entre si pelos
cérebros que vão parasitar ou infectar viroticamente) possa ser espancada sem
que, com isso, precisemos abrir mão da hipótese de que existem replicadores
independentes, ou melhor – a meu ver – inter-dependentes, (“softwares culturais”)
capazes de instruir comportamentos (tal como os genes são capazes de instruir a
síntese de proteínas).
Essa concepção de „poder‟ como capacidade de afirmar sua própria forma de ser,
ainda que não seja incompatível com uma concepção shimittiana da política e
com outros realismos políticos, traz, obviamente, muitos outros problemas ao
deslocar o sentido relacional do conceito de poder para identificá-lo com alguma
coisa que possa conotar capacidade intrínseca de um sujeito de agir sobre outros,
fazendo, por exemplo, como sugerem à primeira vista as teorias dos “memes”,
com que suas idéias prevaleçam sobre as idéias dos outros (conquanto nessas
teorias o sujeito não tenha necessariamente consciência disso, haja vista que os
“memes” seriam autoreplicadores independentes e, assim, eles é que seriam
egoístas – e não nós, os humanos, seus hospedeiros). Este, porém, não é o nosso
tema agora (2).
157
Dessarte, ninguém é “dono” de uma idéia, mas não porque seja a idéia,
autonomizada, que o possui (como querem os adeptos da tese do “virus in the
mind”) e sim porque as idéias são geradas em um indivíduo e reproduzidas no
meio em um processo de troca permanente entre o indivíduo e o meio (os outros
indivìduos). Além disso, nesse processo as idéias (ou os “memes”) se combinam,
recombinam e se modificam – como uma tela exposta no hall de um cinema que
é pintada por todos os expectadores que entram, cada qual dando apenas umas
poucas pinceladas; ou como um texto publicado na Internet para ser re-escrito a
muitas mãos – de tal sorte que não é possível identificar exatamente quais foram
seus “autores” – nem em que medida o resultado final estava nos “planos
originais” (supondo que pudesse haver um ponto de partida, ou seja, uma idéia
que não tivesse nascido de combinações de outras idéias).
De outro ponto de vista, ainda, parece que “as idéias estão no ar”. Alguém as
“capta” em certo momento e às vezes várias pessoas “captam” simultaneamente
a mesma idéia (por exemplo, Newton e Leibnitz ao conceberem simultaneamente
o cálculo infinitesimal). De qualquer modo, esse também não é o nosso tema;
não, pelo menos, agora (5).
158
por si mesmo para outros meios a medida que os indivìduos que o “possuem” (ou
são por ele “possuìdos”) o replicam sem intenção de fazê-lo, pelo simples fato de
serem como são. (Não devemos esquecer aqui, como nos ensinou há décadas
Norbert Wiener, que “um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como
tal”). E que esse poder (ou essa capacidade de propagação) é tanto maior quanto
menor for o mundo no sentido de ser mais tramado.
Pois bem. O que tudo isso tem a ver com a nossa hipótese, segundo a qual
quanto mais conectado (quanto mais small no sentido dos „small-worlds‟) é o
mundo, mais potente socialmente ele é (small is powerful)?
Para dar uma resposta a essa pergunta temos que definir o que entendemos por
“potente socialmente”, um “poder” que nasce da configuração particular de um
sistema social. Não se trata do poder de um sistema de obrigar ou compelir
outros sistemas a adotarem comportamentos, desejáveis pelo primeiro e contra a
vontade dos segundos, em virtude da sua capacidade de destruí-los ou de
prejudicá-los de alguma forma – em geral pelo uso da força ou pela ameaça
explicita do uso da força ou pela ameaça implícita, como dissuasão exercida sobre
os segundos (que evita comportamentos indesejáveis ao primeiro) baseada em
demonstrações específicas ou genéricas de força. Esse, em geral, é o poder,
regido ou não por lei, dos Estados e de outras organizações piramidais e
internamente autocráticas (como corporações e sociedades privadas de diferentes
naturezas, compreendendo até organizações criminosas como a Máfia). Poder-se-
ia dizer que, ao contrário, o “poder social” é um poder de induzir
comportamentos coletivos em virtude da capacidade de exportar padrões de
comportamento que são adotados por imitação e sem violência, o que parece
óbvio. Trata-se portanto, como sugeriu o próprio Dawkins em 1986 (em “O
relojoeiro cego”), de um “poder replicador” – mas sinto que ainda não é bem
isso (7).
Pegando agora o segundo lado da questão vamos ver que, em primeiro lugar, é o
sistema como um todo que confere esse tipo de poder aos seus componentes – e
159
isso está longe de ser trivial face às concepções correntes: examine-se, por
exemplo, um pressuposto (talvez o principal) da ideologia chamada de ciência
econômica, segundo o qual o comportamento das sociedades pode ser explicado
a partir do comportamento dos indivíduos, sendo esse último comportamento
basicamente egoísta e que tudo o mais decorre daí, inclusive a separação entre
fortes e fracos que está na raiz do poder político; e, em segundo lugar, que tal
sistema funciona como amplificador dos estímulos recebidos/emitidos por seus
componentes, vale dizer, como uma espécie de processador capaz de realizar
múltiplas operações em paralelo simultaneamente por meio de seus
componentes.
Talvez esteja aqui pelo menos uma parte da explicação para os processos de
inteligência coletiva. Como percebeu Joël de Rosnay em 1995 (em “O homem
simbiótico”) “um dos pontos fundamentais da ação em rede... [é que] milhares de
agentes atuando em paralelo, a partir de regras simples, podem resolver
coletivamente problemas complexos... [e que] enquanto as grandes manifestações
públicas mostram que as multidões estão longe de dar prova de uma inteligência
significativa, determinados sistemas adaptados de retroação societal podem fazer
emergir uma inteligência coletiva superior à dos indivìduos isolados”. Mas esse,
conquanto apaixonante, ainda não é o nosso tema no momento (8).
Vimos até agora que dizer que small is powerful significa dizer que o mundo
pequeno (no sentido de muito tramado socialmente) é mais empoderante de seus
componentes do que o mundo grande e que ele tem mais capacidade de usinar
softwares que instruem a construção de comportamentos e de replicar tais
programas. Porém, muito além disso tudo, significa dizer que uma mudança de
comportamento, mesmo periférica, ensaiada no mundo pequeno, tem mais
chances de se propagar para o sistema como um todo afetando o
comportamento dos outros agentes que o compõem. Ou seja, mundos pequenos
são mundos mais susceptíveis à mudança social do que mundos grandes.
Ora, se interpretarmos (pelo menos algum tipo ou classe de) mudança social
como desenvolvimento, então mundos pequenos são mundos mais aptos a
experimentarem (isso que interpretamos como) desenvolvimento do que mundos
grandes. Esse tema é extremamente importante e voltaremos a ele mais adiante.
Por enquanto é bom dizer que “poder social”, nesse particular sentido, pode ser
encarado como capacidade de desenvolvimento – entendido esse último não
como qualquer crescimento (e. g., da variável econômica – o PIB –, ou de outra
variável qualquer: humana, social, ambiental etc.), mas como movimento
sinérgico; em suma, como o que se chama, um pouco redundantemente, de
„desenvolvimento sustentável‟ (e entendendo sustentabilidade como função de
160
integração e conservação da adaptação). Temos assim uma concepção de “poder
social” como capacidade de mudança social sustentável, como “aptidão” ou
adaptabilidade de um sistema para realizar uma coreografia estrutural que garanta
a sua co-evolução com o meio, como vocação para a sinergia, para construir e
reconstruir, continuamente, congruências múltiplas e recíprocas com o meio...
Isso tudo também é muito apaixonante, mas por ora vamos ficar por aqui, uma
vez que o assunto será tratado no epílogo deste livro.
Tal redução das distâncias muda a qualidade dos fenômenos que ocorrem no
“meio social” porquanto altera propriedades desse meio (como a isotropia, por
exemplo). Pode-se dizer que a sociedade torna-se mais “social” no sentido de que
aumenta o seu “poder social” – ou seja, o meio torna-se mais condutor, mais
favorável à replicação – a medida que sua tessitura aumenta e, portanto, que seu
tamanho diminui. É possível que a partir de certo grau de tessitura (ou de certo
tamanho de mundo) surja o que chamamos de comunidade. Altos graus de
tessitura podem possibilitar a ocorrência de um fenômeno novo, que chamei, em
outro lugar, de comunalidade (9).
Para que isso aconteça, como parece óbvio, é necessário que os sistemas em
questão estejam afastados do estado de equilíbrio (senão não poderão mutar),
mas é necessário também que sejam sistemas estáveis. Sistemas conformados,
por exemplo, por pessoas em filas de ônibus, não terão a permanência necessária
para gerar uma dinâmica própria capaz de empoderar seus elementos e processar
coletivamente seus impulsos usinando programas replicadores (ou seja, unidades
culturais imitáveis).
161
NOTAS E REFERÊNCIAS
(2) Os interessados na extensa literatura sobre “memes”, devem ler Richard Dawkins (“O gene
esgoìsta”, 1976; “The extended phenotype”, 1982; “O relojoeiro cego”, 1986; e “Desvendando o
arco-ìris”, 1998), Daniel Dennett (op. cit., 1995; e também “Consciousness explained”, 1991),
Richard Brodie (“Virus in the mind”, 1995) e Susan Blackmore (“The meme machine”, 2000). Mas
existem vários outros investigadores interessantes. Vale a pena visitar o sites
http://users.lycaeum.org/~sputnik/Memetics/index.html que contém uma boa lista intitulada
“Memetics Publications on the Web” e o site http://jom-emit.cfpm.org/biblio que contém “A
Bibliography of Memetics” atualizada porém até 1997).
(3) O próprio Dawkins admite como possìvel “um modelo “simbiótico” em vez de
virulentamente parasita”. Em “Desvendando o arco-ìris” (1998) ele cita o trabalho de Terrence
W. Deacon (1997) “que faz uma abordagem da linguagem à luz dos memes... traçando a
comparação com as mitocôndrias e outras bactérias simbióticas nas células. As línguas evoluem
para se tornar boas em infectar os cérebros das crianças. Mas os cérebros das crianças, essas
lagartas mentais, também evoluem para se tornar bons em serem infectados pela língua:
coevolução mais uma vez”. Cf. Dawkins, Richard (1998). Desvendando o Arco-Íris. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. Cf. ainda Deacon, Terrence W. (1997). The symbolic species: the co-
evolution of language and the brain. New York: W. W. Norton & Company, 1997.
(4) Thompson, William Irwin (org.) (1987). “Prefácio” in Gaia: uma teoria do conhecimento.
São Paulo, Gaia/Global, 1990.
(5) Os “memes” como novos tipos de replicadores (para além dos genes) podem ser encarados
como idéias, mas apenas grosso modo. Eles não são – como afirma Dennett (1995) – “as
„idéias simples‟ de Locke e Hume (a idéia de vermelho, ou a idéia de redondo, quente ou frio),
mas o tipo de idéias complexas que se reúnem em unidades memoráveis distintas... unidades
culturais mais ou menos identificáveis... [e essas unidades de transmissão cultural ou unidades
de imitação] são os menores elementos que se replicam com confiabilidade e fecundidade”. Cf.
Dennett, Daniel C. (1995). A perigosa idéia de Darwin: a evolução e os significados da vida.
Rio de Janeiro: Rocco, 1998
(6) Em “Memes, mentes e egos”, Susan Blackmore (1996) relembra que Dawkins “sugeriu que
toda vida em toda parte do universo deve desenvolver-se pela sobrevivência diferenciada de
entidades auto-replicadoras levemente imprecisas” (cf.
162
http://www.memes.org.uk/lectures/mms.html#Minds-Memes-and-Selves). Daniel Dennett
(1995) afirma que, “as linhas gerais da teoria da evolução pela seleção natural deixam claro que
ela ocorre sempre que existem as seguintes condições: i) variação: há uma contínua abundância
de elementos diferentes; ii) hereditariedade ou replicação: os elementos têm a capacidade de
criar cópias ou réplicas de si mesmos; e iii) “aptidão” diferenciada: o número de cópias de um
elemento que são criadas em um determinado tempo varia dependendo das interações entre as
características desse elemento e as do ambiente em que ele subsiste. Observe que essa
definição, embora baseada na biologia, não diz nada específico sobre as moléculas orgânicas, a
nutrição ou mesmo a vida... Como Dawkins observou, o princípio fundamental é „que toda
vida evolui pela sobrevivência diferenciada de entidades replicadoras...‟ [Dawkins, 1976]” (op.
cit.). Cf. Dawkins, Richard (1976). O gene egoísta. Belo Horizonte: Itatiaia, 2001.
(7) Em “O relojoeiro cego” (1986), Richard Dawkins explica que “os replicadores de DNA
construìram “máquinas de sobrevivência” para si mesmos – os corpos dos organismos vivos,
incluindo nós mesmos. Como parte do seu equipamento, os corpos desenvolveram um
computador de bordo – o cérebro. O cérebro desenvolveu a capacidade de se comunicar com
outros cérebros por meio da língua e das tradições culturais. Mas o novo meio de tradição
cultural abre novas possibilidades às entidades auto-replicadoras. Os novos replicadores não
são DNA e não são cristais de argila. São padrões de informação, que apenas prosperam no
cérebro ou em produtos fabricados artificialmente pelo cérebro – livros, computadores, etc.
Mas dado que o cérebro, os livros e os computadores existem, estes novos replicadores, a que
atribuí a designação de memes para os distinguir dos genes, podem propagar-se de cérebro
para cérebro, de cérebro para livro, de livro para cérebro, de cérebro para computador, de
computador para cérebro. À medida que se propagam podem modificar-se – mutam. E talvez
os memes “mutantes” possam exercer os tipos de influência que aqui designei por “poder
replicador”. Não esquecer que este se refere a qualquer tipo de influência que afete a
probabilidade de propagação própria. A evolução sujeita à influência dos novos replicadores –
evolução memica – está ainda na infância... [mas] está se iniciando...”. O neodarwinista
Dawkins não resiste à tentação de usar um padrão competitivo para explicar o fenômeno da
chamada evolução cultural. “A evolução cultural – diz ele – processa-se a uma velocidade de
uma ordem de grandeza muito superior à da evolução fundada no DNA, o que nos faz pensar
ainda mais na idéia de “tomada do poder”... E se um novo tipo de tomada do poder
replicadora está se iniciando, é concebível que parta para tão longe que deixará muito para trás
o DNA seu progenitor... Se assim for, podemos estar certos de que os computadores estarão
na vanguarda”. Doze anos depois (em “Desvendando o arco-ìris”, 1998), Richard Dawkins iria
retomar a comparação evocada pelo computador ao supor que “os genes constroem o
hardware. Os memes são o software. A coevolução é que pode ter impulsionado a inflação do
cérebro humano”. Ele estava procurando “inovações de software [como a linguagem] que
poderiam ter iniciado uma espiral auto-alimentadora de coevolução software/hardware para
explicar a inflação do cérebro humano”. Isso significa admitir que os “memes” (os softwares)
podem ser capazes de produzir modificações neuroestruturais; ou – como aventou Dennett em
1991 – que “a própria mente humana é um artefato criado quando os memes reestruturam um
cérebro humano para torná-lo um melhor hábitat para os memes”. Cf. Dawkins, Richard
(1986). O relojoeiro cego. Lisboa: Edições 70, 1988.
(8) Ver o Capítulo 5 do livro de Rosnay, Joël (1995). O homem simbiótico. Petrópolis: Vozes,
1997 – sobretudo a seção “Democracia participativa e retroação societal” –; os livros de Pierre
Levy (em particular “A inteligência coletiva” de 1994; op. cit.) e a literatura mais recente sobre
163
ciberpolítica e democracia digital. Por exemplo, “Cyberdemocracy: technology, cities and civic networks”
editado por Rosa Tsagarousianou et al. (London: Routledge, 1998); “Cyberpolitics: citizen activism
in the age of the Internet” de Kevin Hill & John Hughes (Maryland: Rowman & Littlefield, 1998);
“Digital democracy: discourse and decision making in the information age” editado por Barry Hague &
Brian Loader (London: Routledge, 1999); e “Democracy in the digital age: chalenges to political life in
cyberespace” de Anthony Wilhelm (New York: Routledge, 2000), entre outros.
(9) Em Capital social: leituras de Tocqueville, Jacobs, Putnam, Fukuyama, Maturana, Castells e
Levy. Brasília: Instituto de Política, 2001.
164
Localização e geração de identidade
Localização não significa isolamento, mas um campo configurado com certo grau de
estabilidade para permitir a conservação e a reprodução de uma mesma dinâmica
endógena.
Coletividades eventuais não são capazes de gerar um padrão durável. Padrões que
se conformam eventualmente também se desfazem eventualmente.
Comportamentos coletivos particulares gerados em filas, aglomerados ocasionais,
manifestações de massa, platéias de shows e multidões em geral, dificilmente se
propagam para outras regiões do tempo, isto é, não inventam tradições nem se
transmitem como cultura.
Geração por repetição e replicação por imitação: essas são condições para afirmar
uma identidade local, sem o quê se desconstitui o próprio conceito de local. Cada
local é único porquanto possui uma identidade própria. Se os locais pudessem ser
iguais não faria sentido o conceito de local. Ademais, cada local existe na medida
165
em que é percebido como tal, tanto pelos seus integrantes quanto pelos que a ele
não pertencem (ou não reivindicam pertencer).
Tais programas existem em qualquer local que é tratado, no âmbito global, como
“um” local, quer dizer, uma unidade divisável. No nosso exemplo, em Bologna,
eles existem com alto grau de desenvolvimento. Se não existissem, nesse alto
grau, Bologna não seria um local com tanta visibilidade (ou divisabilidade).
166
A afirmativa acima lança nova luz para a compreensão do processo de
desenvolvimento. Dela (aliada a outras premissas) podemos inferir pelo menos
três conseqüências importantes que redefinem o próprio conceito de
desenvolvimento: i) todo desenvolvimento é social; ii) todo desenvolvimento é
local; e iii) todo desenvolvimento local só se define completamente pelas suas
conexões com o global. Mas, como o assunto será tratado no epílogo deste livro,
não vamos enfrentar agora o desafio de construir argumentações para tentar
justificá-las (nem enunciar as outras premissas que seriam necessárias para uma
exposição lógica desses teoremas).
Existem aqui, além disso, outros problemas mais complicados para resolver. Não
copiamos somente aquilo que desejamos. Freqüentemente, aliás, copiamos
padrões de comportamento que não desejamos. Padrões que impedem o
desenvolvimento (social) vêm se replicando há milênios por si próprios (ou como
se assim fosse, quer dizer, uma vez usinados eles ganharam algum tipo de
autonomia e se transmitiram). O cetro, a coroa, o bastão e a espada, constituem
exemplos de símbolos de padrões que se replicam há pelo menos seis milênios e
que comparecem, por incrível que pareça, na maioria das atuais projeções
futurísticas contidas nos romances e nos filmes de ficção ambientados em
milênios vindouros...
O processo de localização
A localização é um processo. Todavia, o que constitui tal processo? Afirmei que a
localização é, fundamentalmente, um processo de geração de identidade e de
replicação de características próprias dessa identidade gerada. E afirmei também
que quanto mais tramada for uma coletividade, mais condições ela terá de gerar
padrões capazes de se replicar.
167
Como estamos falando aqui da geração de replicadores é quase impossível –
conhecendo a hipótese dos “memes” – deixar de estabelecer uma comparação
com a dinâmica de replicação genética.
A metáfora do “meme” é, sem dúvida, muito interessante. Mas ela tem alguns
problemas graves. Em primeiro lugar ela se baseia em alguns pressupostos de
“comportamento” do gene que parecem não corresponder ao que realmente se
passa na reprodução e na evolução biológicas de um ponto de vista sistêmico.
168
A concepção do determinismo genético, do DNA como uma espécie de
programa autônomo (por analogia aos programas de computadores), acabou
contaminando a concepção do “meme”, como se este fosse também um
programa autônomo (e podemos comprovar isso facilmente lendo, por exemplo,
as considerações de Dawkins, em 1998, em “Desvendando o Arco-Íris”) (3).
Qual é o problema aqui? O problema é que, no caso dos genes, ao que tudo
indica, o “programa” não pode ser tão autônomo assim, uma vez que ele não está
arquivado propriamente no genoma e sim em uma rede celular (que envolve
muitos outros nodos além dos genes: proteínas, hormônios, enzimas e
complexos moleculares), que compõe o ambiente no qual o genoma pode existir
enquanto tal. No caso dos “memes”, os programas, correspondentemente,
também não estão em uma espécie de “diretório memético” de arquivos (o
“caldo” ou “fundo” de “memes” ou a “memesfera” aventados por Dawkins,
Dennett, Blackmore e outros) – nem em algo do tipo de The Matrix (do filme dos
irmãos Wachowski) – e sim em uma rede social que regula a produção e a
reprodução de comportamentos.
Todavia, apesar disso tudo, de todos esses problemas apontados acima, continuo
achando que é útil considerar a hipótese do “meme” e quero tentar dizer por quê.
O problema não me parece ser propriamente o “meme” e sim algo que possa
sugerir um determinismo memético (tal como o problema não é o gene e sim o
determinismo genético). Assim como a focalização exclusiva no gene embaça a
visão do organismo como um todo, uma focalização excessiva no “meme”
dificulta que se veja os fenômenos que ocorrem no campo de interação que
chamamos de sociedade.
169
Mas, tal como deve existir alguma coisa como o gene – independentemente do
papel mais ou menos autônomo, mais ou menos abrangente e mais ou menos
determinante que queremos atribuir a isso que conotamos com o conceito de
„gene‟ –, tudo indica que deve existir também alguma coisa como o “meme”
como um replicador de idéias e comportamentos.
Creio que precisamos de alguma coisa pelo menos parecida com o conceito de
„meme‟, para explicar porque certos padrões de comportamento se replicam para
outras regiões do tempo (ou o que se chama de tradição), para explicar a
transmissão não-genética de comportamentos (ou o que se chama de cultura),
para explicar, em suma, por quê o general chinês do que seria o exército do povo
se comporta de maneira tão semelhante ao general do exército norte-americano e
por quê o militar espartano materializava – no seu comportamento cotidiano –
valores tão parecidos com os do militar inglês do século 19, dois mil e trezentos
anos depois!
Uma coisa parece certa: padrões de comportamento coletivos (ou replicáveis por
coletivos) são gerados por coletivos. Afirmei na seção anterior que os coletivos
que têm mais chances de gerar padrões replicáveis são comunidades, ou seja,
mundos pequenos que atingiram certo grau de “tramatura” do seu tecido social.
Porque quanto mais caminhos existirem entre os elementos do mundo, mais
170
circularidades geradoras de padrões replicáveis poderão ocorrer e mais usinagem
comunitária estará em andamento.
Mas é preciso ver que comunidades em um mundo globalizado não têm quase
nada a ver com as comunidades tradicionais que conhecemos em um mundo
cujas partes estavam isoladas. Em um mundo interligado por laços de
interdependência, onde existam múltiplos caminhos entre seus nodos-elementos,
comunidades assumem um papel diferente. Nesse tipo de mundo novos
comportamentos sociais usinados dentro de âmbitos comunitários podem se
espalhar pela rede, contaminando o sistema como um todo a medida que podem
ser amplificados por laços de realimentação de reforço de sorte a modificar o
comportamento de outros agentes do sistema ao induzi-los a realizar cópias dos
“programas” gerados.
É por isso que localizar não é encontrar um local, é criar um local. Mas esse já é o
tema da próxima seção.
171
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Quem quiser conhecer uma perspectiva não darwinista, não neo-darwinista e não
determinista em termos genéticos deve ler, fundamentalmente, os livros de Lynn Margulis e
Humberto Maturana. E também: Ho, Mae-Wan e P. T. Saunders, orgs. (1984). Beyond
darwinism: introduction to the new evolutionary paradigm. London: Academic Press; Ho, Mae-Wan e S.
W. Fox, orgs. (1988). Evolutionary processes and mataphors. London: Wiley; Ho, Mae-Wan (1998).
Genetic engineering: dream or nightmare? Bath: Gateway Books; Strohman, Richard (mar., 1997).
“The Coming Kuhnian Revolution in Biology”, Nature Biotechnology, vol. 15 e, sobretudo o mais
recente Keller, Evelyn Fox (2000). The century of the gene. Cambridge, Mass.:Harvard University
Press. Para uma abordagem simplificada de divulgação, pode-se ler ainda: Harman, Willis e
Sahtouris, Elisabet (1998). Biologia revisada. São Paulo: Cultrix:, 2003; e Capra, Fritjof (2002).
As conexões ocultas. São Paulo: Cultrix/Amana-Key, 2002 (em especial o capítulo seis).
(3) Cf. Dawkins, Richard (1998). Desvendando o Arco-Íris. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
(4) A acreditar no que diz o erudito Samuel Noah Kramer (por exemplo, em History Begins at
Sumer. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1981) parece incrível que há 6 mil anos,
na antiga Mesopotâmia, já haviam se esboçado os protótipos de boa parte das instituições
religiosas e laicas do chamado mundo civilizado posterior: o panteão de doze seres divinos
(que depois foi replicado por praticamente todas as culturas subseqüentes), templos e
sacerdotes, a monarquia, exércitos, artes da guerra e armamentos, escolas e parlamentos, justiça
e tribunais, música e artes, construção, entalhação em madeira e gravação de metais, uso do
couro e tecelagem, escrita e matemática e muitas outras coisas, totalizando mais de uma
centena de “programas” (chamados de “ME”, espécies de “fórmulas divinas”). O mais incrìvel
é que esses misteriosos “ME” eram conhecimentos armazenáveis. As várias versões da
autêntica narrativa suméria “Enki e Inanna” sugerem, curiosamente, que os “ME” podiam ser
transportados, ou seja, eram objetos físicos, como se fossem disquetes. Segundo a assirióloga
Gwendolyn Leick (2001), em Mesopotâmia: a invenção da cidade (Rio de Janeiro: Imago,
2003), “ME” é um “termo sumeriano que abrange todas aquelas instituições, leis, formas de
comportamento social, emoções e símbolos... que, em sua totalidade, eram vistos como
indispensáveis ao funcionamento regular do mundo”.
172
Localização e transformação de utopia em topia
Localizar não é encontrar um local, é criar um local.
Dando continuidade a essa reflexão vamos comentar agora mais uma hipótese
(do elenco original de proposições sobre a localização em seu sentido “forte”)
segundo a qual „localizar não é encontrar um local, é criar um local‟.
173
Assim como profetizar (para os hebreus do Norte da Palestina por volta do
setecentos a. C.) não era adivinhar o futuro mas inventá-lo, localizar não é
encontrar um local, é criar um local. A comparação com a profecia – quer dizer,
com a utopia – não é fortuita. Localizar é transformar uma utopia (u-topos = não-
lugar, uma realidade almejada, projetada no futuro) em uma topia (um lugar
concreto, uma realidade localizada e presentificada, aqui-e-agora).
Isso significa que o local não é um dado, é uma construção. Não é um ponto de
partida e sim um “ponto de chegada”. Em outras palavras, o local é definido no
final. Só no final ele se desenha e se recorta... e mesmo assim nunca
completamente (ver Texto 8).
Pois bem. Vimos nas seções anteriores que a localização é um processo. E que
uma vez desencadeado o processo, é necessário não propriamente isolamento,
mas conservação e reprodução de uma mesma dinâmica endógena para que as
inovações que chamamos de desenvolvimento possam aparecer. Coevoluindo
por adaptação, por congruências dinâmicas, feitas e refeitas continuamente com
o meio, quer dizer, por conservação da adaptação: isso é, aliás, o que chamamos
de desenvolvimento sustentável. Nada mais.
174
humano estável, para subsistir, requer cooperação. Uma sociedade com grau zero
de cooperação não seria estável e, portanto, não seria uma sociedade.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Wright, Robert (2000). Não Zero. Rio de Janeiro: Campus, 2001.
(2) Idem.
(3) Bill Mollison e Reny Mia Slay, no livro “Introdução à Permacultura” (Brasìlia: Ministério da
Agricultura e do Abastecimento / Projeto Novas Fronteiras da Cooperação para o
Desenvolvimento Sustentável, 1998) incluem, dentre as características da Permacultura ou
“(agri)cultura permanente” – um sistema de design voltado para a criação de ambientes
humanos sustentáveis – as relações entre diversidade, estabilidade e cooperação de um ponto
de vista sistêmico. Um dos princípios do planejamento permacultural é a policultura e
diversidade de espécies benéficas que tem como objetivo a conformação de um sistema
produtivo interativo. Nessa agricultura eco-sistêmica, o papel da diversidade nas suas relações
com a estabilidade e com a cooperação (ou sinergia) evoca um paralelo com o processo de
localização. Comentando o livro de Edgar Andersen, Plants, man and life (Berkeley: University
of California Press, 1952), “que descreve os plantios de jardins/pomares agrupados em volta
das casas na América Central”, Mollison e Slay observam que ele “contrasta o pensamento
linear, ordenado, restrito e segmentado dos europeus com a policultura produtiva, mais
natural, dos trópicos secos. A ordem que ele descreve é uma ordem seminatural de plantas em
seu relacionamento correto umas com as outras (consórcios), mas não separadas em vários
agrupamentos artificiais. Não está claro onde ficam os limites entre pomar, casa, campo e
jardim, onde existem [espécies] anuais ou perenes, ou, na verdade, onde o cultivo dá espaço
para sistemas evoluìdos naturalmente”. “Para o observador – explicam Mollison e Slay – isso
pode parecer um sistema desordenado e desarrumado; no entanto, nós não deveríamos
confundir ordem com arrumação. Arrumação separa espécies, cria trabalho e pode, também,
convidar pragas, enquanto que a ordem integra, reduz trabalho e dissuade o ataque de insetos.
Jardins europeus, freqüentemente arrumados de forma extraordinária, resultam em desordem
funcional e baixa produção. Criatividade raramente é arrumada. Poderíamos dizer,
provavelmente, que arrumação é algo que acontece quando a atividade compulsiva substitui a
criatividade imaginativa... A diversidade é freqüentemente relacionada à estabilidade na
Permacultura. No entanto, estabilidade só ocorre entre espécies cooperativas, ou espécies que
não causem prejuízo umas às outras. Não é o bastante, simplesmente, incluir o maior número
175
possível de plantas e animais em um sistema, pois poderão competir pela luz, nutriente e água.
Algumas plantas, como nozes e eucaliptos, inibem o crescimento de outras excretando
hormônios de suas raízes no solo (alelopatia). Outras plantas oferecem habitat de inverno para
pragas e doenças danosas a espécies próximas. Gado e cavalos, deixados no mesmo pasto,
eventualmente causarão degradação. Árvores grandes competem pela luz com cereais.
Caprinos no pomar ou no arvoredo irão comer a casca das árvores. Assim, se vamos utilizar
todos esses elementos em um só sistema, devemos ser cuidadosos na colocação de estruturas
ou plantas que intervenham entre elementos potencialmente prejudiciais... Se tivermos um
sistema com uma diversidade de plantas, animais, habitats e microclimas, a possibilidade de
uma infestação de pragas é reduzida. Plantas espalhadas umas com as outras dificultam a
movimentação de pragas de uma planta para a outra. Todavia, uma vez que a praga se
reproduza em qualquer planta, insetos e predadores irão perceber isso como uma fonte
concentrada de alimentos, e também se concentrarão para aproveitar-se. Na situação
monocultural, a alimentação para as pragas é concentrada; em uma policultura, a própria praga
é uma concentração de alimento para os predadores... Então, a importância da diversidade não
está muito no número de elementos de um sistema, mas no número de conexões funcionais entre
esses elementos. Não é o número de coisas, mas o número de formas nas quais as coisas
trabalham. O que procuramos é um consórcio de elementos (plantas, animais e estruturas) que
trabalhem harmoniosamente juntos”.
176
Texto 8 | Manzano e a ciência do local como ciência da
singularidade
“O local não seria apenas um local entre locais, mas também a encruzilhada entre os locais (ou
entre os tempos, ou ainda entre os contextos)”.
“O local tem a extensão ou ocupa o lugar que lhe atribuìmos. Ou seja, a sua
delimitação não nos é dada de antemão ou imposta de baixo, de cima ou de fora
para dentro, como se fosse um destino ou uma fatalidade, mas resulta de um
exercício de livre escolha contextual, pelo qual decidimos limitar as suas
fronteiras, assim como ocorre quando nos pomos a caracterizar um problema,
em busca da solução.
177
delimitação abstraída de uma realidade por definição indeterminada; "utopos",
como projeção ideal do "topos" no qual me encontro, ponto de apoio das
inspirações e motivações que me instigam a projetar o olhar para outros locais,
para fora ou para dentro do próprio"topos" no qual me encontro. Toda ação
humana no espaço do "topos" tem também um caráter utópico. É uma aposta no
futuro, na expectativa de que o resultado visado se confirme. Ao promover a
coexistência do "topos" e do "utopos" em um mesmo espaço de possibilidades
inconsistentes entre si, tenho consciência de que estou brigando contra os
princípios de identidade e de não contradição, ao mesmo tempo que sei que a
lógica gramatical não é uma ferramenta inteiramente adequada (suficiente) para
pensar a existência, individual ou social, que é também não-lógica...
O estatuto do local, que você busca definir, deveria tomar como matriz a
estrutura da ação humana: enraizamento presente em uma tomada de consciência
crítica do passado, que se projeta na construção imaginária de um futuro com
vistas à reconstrução do presente. Passado, presente e futuro estão fundidos e
inseparáveis na ação humana.
Assim vistas as coisas, o local não seria apenas um local entre locais, mas também
a encruzilhada entre os locais (ou entre os tempos, ou ainda entre os contextos),
sendo o local propriamente dito um "vazio", lugar natural de uma potência capaz
de estabelecer uma distância (crítica), graças à qual se retoma criticamente o
passado, que já não é (o passado pode ser poder, mas não é uma potência), para
construir no presente um futuro que ainda não é. Assumo, pois, a experiência do
local como expressão da simultaneidade ou contemporaneidade dos tempos,
escapando aos engodos das filosofias da História, do hegelianismo, do
positivismo e de todo pensamento linear e mecânico.
178
si, convive na solidariedade da unidade que sou. Conceber o "eu" como
expressão das interfaces em interação corresponde a concebê-lo, pour cause, como
constituído pelo comunal, já que as minhas interfaces são o correlato de
interfaces sociais, que não são eu e também o são: como pai, tenho como
correlato meu filho, e assim por diante. Emerjo, pois, da comunidade ou do
social, como uma irrupção individual, ou um novo modo de ser, inaugural, único,
singular, do social, ou local, que me precede. É dizer também que eu sou o local,
o nodo da rede, o lugar do vazio, o ponto de interseção de minhas interfaces, o
locus da potência, o entrecruzamento de todos os sistemas racionais que
caracterizam os meus papéis. Por isso, quanto a mim, propriamente, não sou em
primeiro lugar ou unicamente o locus da racionalidade (papel reservado aos
tratados de lógica ou às ciências que se apóiam em inferências, estatística ou
probabilidade), e sim um sujeito diverso na minha unidade, ou uno na minha
diversidade (emoção, razão, ética, intuição, estética, sentimentos, lúdico, tudo a
um só tempo).
179
Localização e globalização
Globalização do local tende a ser igual a localização do global.
180
O que é o local? O local não é o que parece... O mundo pode ser um local: se o
local globalizado for um mundo inteiro. Como escreveu Frank Herbert em 1976
(em “Os Filhos de Duna”), “em um universo infinito, local pode abranger algo
tão gigantesco que sua mente se encolhe diante dele” (1).
Assim, uma localidade não globalizada não é pequena, mesmo que seja apenas
uma vila com 500 habitantes. O mundial não localizado é enorme, porque é
inalcançável. O mundo de Dom Manuel em 1500 era um mundo imenso, tão
imenso que as pessoas não sabiam sequer onde estavam as outras pessoas e o que
encontrariam para além do que enxergava a vista... Ou seja, não era um local.
181
se dizer que o sistema como um todo terá uma “mente” (a Global Mind citada por
Morin) (3), mas apenas em sentido metafórico, não de uma consciência unificada
e sim de um processo fractal.
Por certo, „inteligências coletivas‟ (no sentido de Pierre Levy e também, em parte,
no sentido aventado por Joël de Rosnay) (5) tendem a surgir com o processo de
localização e, assim, pode-se dizer que teremos, cada vez mais, “mentes
coletivas” em funcionamento. Mas não é a ligação “em paralelo” entre essas
“mentes” que produzirá o supremo regulador (como se fosse um
supercomputador) e sim as numerosas conexões que cada uma delas estabelecerá
com as demais (ou seja, a conexão local-global) que ensejarão a emergência de
uma dinâmica complexa adaptativa.
182
Parafraseando Herbert, „em um universo finito, tramado por múltiplas redes, local
pode assumir características tão holográficas que nossa “mente coletiva” se
expande para o mundo todo ao concentrar-se nele‟.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Herbert, Frank (1976). Os Filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
(2) Cit. por Lipnack, Jéssica & Stamps, Jeffrey (1986). Networks: redes de conexões. São Paulo:
Aquariana, 1992.
(3) Cf. Morin, Edgar & Kern, Anne-Brigitte (1993). Terra-Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995.
(5) Cf. Rosnay, Joël (1995). O homem simbiótico. Petrópolis: Vozes, 1997 e também Levy,
Pierre (1994). A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola,
1998.
183
Localização e glocalização
Localidades tendem a se tornar holografias do planeta à medida que reflorescem
comunidades no mundo globalizado.
Cada uma dessas questões poderia se desdobrar em várias outras; por exemplo:
estão mesmo surgindo comunidades em um mundo pós-industrial (fenômeno
que não ocorreu, a não ser vestigialmente, ou como remanescência, no mundo
industrial)? Por quê? Se um novo tipo de comunidade que está surgindo implica
(ou abarca) “comunidades virtuais” (ou sem base físico-territorial), tais
“comunidades” poderiam ser consideradas como comunidades de fato? E depois
vêm também todas aquelas questões, já colocadas por Guehénno (em 1993 e em
1999) (1), sobre se as novas comunidades de escolha que estão surgindo isolam
ou unem as pessoas, constroem ou destroem o espaço público comum (e a
possibilidade da política), uma vez que “o mercado global não cria uma
comunidade global” etc. (ver Texto 4).
Por tudo o que foi dito nas seções anteriores deste capítulo fica claro que existe
uma co-implicação entre localização e comunidade. Ora, se está em curso um
processo de localização, então é razoável esperar que esteja em curso também um
processo de criação de comunidades. Mas que comunidades são essas?
184
Quais são as novas comunidades de projeto? São as comunidades originadas por
movimentos sociais de resistência e de geração de identidade a partir das novas
temáticas do ambientalismo, dos direitos humanos e da cidadania (não na velha
noção em que tudo é “direito do cidadão e dever do Estado”, mas como direito-
e-responsabilidade de todos), do feminismo, do ecumenismo e do pacifismo, do
fortalecimento da sociedade civil e da promoção do voluntariado e, sobretudo,
dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de
processos de democracia participativa em redes sociais e de indução ao
desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-
economia alternativa ou solidária, ensaiados em escala local.
Algumas dessas novas comunidades de projeto são virtuais (no sentido de não
terem base físico-territorial), mas não todas. Algumas são sócio-territoriais
mesmo, formadas em torno de processos de desenvolvimento local que estão
acontecendo em povoados, distritos, bairros, municípios, microregiões e outros
âmbitos espaço-territoriais no mundo todo, como causa-e-conseqüência (ou, pelo
menos, como fenômeno acompanhante) desse movimento emergente de volta ao
local observado na contemporaneidade.
No entanto, boa parte dessas novas comunidades que estão surgindo são
subnacionais ou transnacionais. Isso é relevante porque a não-coincidência com
fronteiras nacionais indica que elas, em alguma medida, se subtraem ao controle
central do Estado-nação.
185
O local, no sentido “forte” da hipótese da localização, é sempre futuro
antecipado. O reflorescimento comunitário – ou melhor, o florescimento das
novas comunidades de projeto – antecipa a ecumene planetária.
Ao contrário do que se pensa comumente, a pergunta não é se isso vai ou não vai
acontecer algum dia. Isso já está acontecendo. Não haverá um momento mágico
do desfecho, de inauguração de uma “república planetária de comunas” ou algo
semelhante. Na sociedade-rede, o que globaliza também localiza. Cada
comunidade de projeto constituída no mundo globalizado antecipa o mundo
como rede holográfica de mirìades de “aldeias globais”. Como vimos na seção
anterior, a aldeia são as aldeias; não a soma, mas a configuração geral regida por
múltiplos laços de interdependência. Esse é o sentido da glocalização.
O que está acontecendo é que as pessoas estão descobrindo que as redes sociais
têm muito mais a ver, do que antes se imaginava, com o que chamamos de
desenvolvimento. Mas essa descoberta não se deu a partir da observação das
novas dinâmicas sociais introduzidas pelo funcionamento das grandes redes
mundiais, como a Internet, em meados da década de 1990. Ela é anterior. A
percepção das relações intrínsecas entre rede (como padrão de organização) e
desenvolvimento (como “movimento” social), data do inìcio dos anos 60,
conquanto somente nos anos 90 tenha sido possível interpretar mais
completamente o fenômeno. Foi no estudo das dinâmicas sócio-políticas de
pequenas localidades que antropólogos e urbanistas – como Jane Jacobs –, ainda
nos anos 60, começaram a desconfiar que as redes sociais constituíam um fator
decisivo para o desenvolvimento local, como se fossem uma espécie de “capital”
(e imagino que a expressão „capital social‟ tenha sido introduzida
metaforicamente por Jacobs – a primeira pessoa que empregou o termo no
sentido em que o estamos trabalhando a partir dos anos 70 – não para
mercantilizar uma dimensão social, da vida comunitária e sim para dizer que
tratava-se de uma internalidade (e de uma centralidade), de um fator tão
importante quanto o capital propriamente dito, físico ou financeiro) (2).
186
É significativo, porém, que as relações entre rede e desenvolvimento tenham sido
descobertas no local (no caso de Jacobs, em bairros e distritos que se pensavam,
cada qual, como um local em termos de desenvolvimento).
Redes abertas, que não se constituem como sujeitos, não fornecem evidências
suficientes de serem usinas de capital social. Ou, para usar os nossos termos,
redes não localizadas não são produtoras de capital social (ou, pelo menos, com
tal quantidade e/ou qualidade capaz(es) de ensejar a percepção desse “processo
de produção”).
Ora, como vimos, comunidades são „mundos pequenos‟ que atingiram certo grau
de “tramatura” do seu tecido social e, portanto, adquiriram mais „poder social‟
para usinar padrões de comportamento (programas) capazes de se replicar. Esse
„poder social‟ dá a medida do capital social que ela é capaz de produzir (e é o
próprio conteúdo da expressão „capital social‟). O que chamamos de capital social
é algo assim como se fosse o “combustível” que alimenta a geração de identidade
e a replicação de características (que podem ser vistas como softwares que instruem
a construção de comportamentos) das peculiares identidades geradas.
187
Dessarte, em virtude de geração por repetição e replicação por imitação, se
constrói o mundo como uma rede holográfica de miríades de comunidades. E o
“combustìvel” ou a “energia social” para isso tudo não vem de outra fonte senão
da cooperação.
188
Mas é preciso compreender de uma vez por todas que a cooperação é uma
emocionalidade, não uma racionalidade. Aquilo que explica o trabalho voluntário,
a ação gratuita, e que constitui, em suma, o ethos cooperativo que pode se instalar
em qualquer sociedade humana, é uma emotional motivation e não apenas a rational
choice.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Cf. Guéhenno, Jean-Marie (1993). O fim da democracia. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1999; e também (1999). O futuro da liberdade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
(2) Jacobs, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
(3) Uma parte dos velhos movimentos sociais, embora pertença à sociedade civil, por incrível
que pareça, ainda está possuída por uma espécie de fundamentalismo de Estado. Esse
estatismo, comum a tendências políticas de direita e de esquerda, foi exacerbado pelas reações
contra-liberais ao processo de globalização surgidas na última década do século passado. Não é
a toa que tais movimentos disseminam na sociedade uma cultura adversarial e visões
pervertidas segundo as quais não existem propriamente problemas senão culpados, de vez que
189
a sociedade humana é tomada como um campo inexoravelmente vincado pela relação amigo x
inimigo. Quando na oposição aos governos tais movimentos atuam na base do “quanto pior
para o paìs comandado pelo inimigo melhor para mim” e, quando na situação, em geral
desenham políticas públicas como políticas exclusivamente estatais que, igualmente, não levam
em conta o papel da cooperação.
(4) Cf. Franco, Augusto (2003). Terceiro Setor: a nova sociedade civil e seu papel estratégico
para o desenvolvimento. Brasília: AED, 2003.
190
Texto 9 | Beck e a aliança em favor da atividade
comunitária
“A atividade comunitária poderia se tornar um... centro de atividade que garantiria a
substância democrática da sociedade”.
Segundo Beck, “um novo contrato social deveria partir do seguinte ponto. Nosso
trabalho se tornou produtivo a um tal ponto que necessitamos cada vez menos
do trabalho e precisamos produzir cada vez mais bens e serviços. A integração
sócio-material dos homens por meio do trabalho aquisitivo continuar a ter
grande importância, mas deixou de ser a única forma. Proponho que se reflita
por um instante se aquilo que é identificado por toda parte nos biótipos sociais
como engajamento da sociedade civil – a saber, a capacidade de auto-
organização, e também o interesse em projetos políticos que não foram
percebidos com a clareza suficiente pelas instituições – não poderá ser
considerado como um segundo centro de atividade e integração ao lado do
trabalho remunerado: a atividade pública, a atividade comunitária...
191
Essa iniciativa pressupõe uma concepção política que desestrutura o monopólio
do sistema político. É necessário que se descubra, por exemplo, uma novo
distribuição do poder e do trabalho entre o sistema político nacional-estatal e a
sociedade civil (trans)local. Fortalecer as sociedades civis para além das suas
fronteiras não significa transferir para ela, sob a forma de um palavrório
comunitarista, todos os problemas causados pela ineficiência burocrática. Este
fortalecimento significa: o reconhecimento maduro das responsabilidades é
sucedido por um deslocamento do poder desde o centro até as regiões, até as
cidades; e as iniciativas da população serão a um só tempo viabilizadas pelo
dinheiro da comunidade e provarão deste modo a sua eficácia” (2).
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Beck, Ulrich. O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999.
(2) Idem.
192
Localização em disputa
A localização está em disputa e essa disputa tenderá a pautar, em futuro próximo,
os embates políticos dentro do Estado-nação.
Por quê? Porque tais interventores, se não podem, no nìvel “macro”, refazer
inteiramente o “clima” da guerra fria, impor uma regressão tecnológica, impedir
totalmente o processo de transição para uma nova cultura correspondente a uma
sociedade cosmopolita global, eles podem, por outro lado, dificultar a emergência
193
de padrões de organização em rede e de modos de regulação democrático-
participativos no nìvel “micro”.
194
padrões de organização em rede e de modos de regulação democrático-
participativos – podem se amplificar “contaminando” o sistema como um todo.
Tal processo é caótico, não porque seja – ou esteja condenado a ser – sempre
desordenado e sim porque alcança padrões de ordem flexíveis e mutáveis, que se
constroem e reconstroem continuamente e que, assim, não são impostos “de
fora”, a partir de um modelo preexistente, mas emergem “de dentro”.
Neste particular o fundamental é que sejam governos que não queiram voltar
atrás, reeditando, por exemplo, políticas sociais que venho classificando como de
“primeira geração”; ou seja: “polìticas de intervenção centralizada do Estado...
para as quais: i) o Estado é suficiente; ii) os benefícios são uma espécie de
concessão do poder e/ou de intermediação político-partidária, eleitoral ou
institucional; iii) seus serviços não são encarados propriamente como direitos; e
iv) a gestão governamental não é pública porquanto não é transparente, admite
graus insuficientes de accountability e não incorpora – em uma dinâmica
democrática – outros atores na sua elaboração, na sua execução, no seu
monitoramento, na sua avaliação, no seu controle ou na sua fiscalização” (1).
Em qualquer caso, porém, deveriam ser governos que não pretendessem deter o
monopólio do público e que não se acreditassem protagonistas únicos e
exclusivos do desenvolvimento. Em suma, que não atuassem como se fossem
suficientes. Em qualquer caso, portanto, será necessário contar com o
comparecimento de outros atores não-governamentais, em um tipo de arranjo
semelhante ao proposto por Claus Offe no capítulo anterior, ou seja, capaz de
permitir a constelação de sinergias entre Estado, mercado e comunidade,
mediadas pelo capital social produzido na sociedade civil.
Para entender esse ponto de vista é preciso admitir que a revolução do local não
é uma revolução política nacional, não visa a substituição das elites no poder do
Estado-nação. É uma revolução social stricto sensu, uma mudança no “corpo” e no
“metabolismo” das sociedades.
195
Todavia, é preciso reabrir o debate sobre o que entendemos por mudança,
transformação ou revolução em termos sociais, como será abordado na próxima
seção (cf. também Texto 12).
196
No entanto, tais definições foram tomadas a partir de posições e
comportamentos políticos diante da globalização. Será necessário refazer o
esquema tendo agora como referencial a localização. Ainda que consideremos
que a globalização e a localização são aspectos de um mesmo processo de
glocalização, as ênfases (e, portanto, os fatores evidenciados) serão diferentes se
mudarmos os pontos de vista (ver Diagrama 3).
Se, como vimos, o que se chamará de revolução social daqui a algum tempo
serão os processos de mudanças de relações entre os diferentes tipos de
agenciamento (ou seja, que alterem os padrões de relação entre Estado, mercado
e sociedade civil ou comunidade), então o referencial para classificar as diferentes
posições diante da localização – que parece ser, de fato, uma revolução social
stricto sensu e não apenas uma revolução política feita “em nome” de uma
revolução social, como veremos na próxima seção – é a ênfase conferida ao tipo
de agenciamento que deveria ser predominante. Desse ponto de vista existem
três grandes posições: a dos que privilegiam o mercado, a dos que privilegiam o
Estado e a dos que privilegiam a sociedade civil (ou a comunidade). Ou seja, os
neoliberais, os estatistas e os comunitaristas.
197
denominação „glocalistas‟ para designar os comunitaristas inovadores ou os
novos localistas em um sentido “forte” do conceito de localização.
Muito embora boa parte dos “novos” social-democratas sejam, em geral, a favor
da globalização (os internacionalistas liberais e os reformadores institucionais da
classificação de Held & McGrew), ainda não é possível divisar claramente as
posições internas nesse campo de modo a definir os que são também a favor da
localização. Um processo de desligamento da referência no Estado-nação está em
curso neste momento no seio dos setores social-democratas de centro-esquerda,
o que deverá levar parte destes setores a abandonar o ideário do estatismo social-
democrata. Provavelmente, uma parte permanecerá estatista (os “novos” social-
democratas anti-liberais), outra parte absorverá uma porção maior do ideário do
liberalismo de mercado, mitigando suas “preocupações sociais” (os “novos”
social-democratas anti-estatistas) e, outra parte, ainda, avançará para posições
pós-liberais e pós-estatistas (talvez uma parte dos reformadores institucionais e
uma parte dos transformadores globais da classificação de Held & McGrew),
assumindo a tarefa de construir uma alternativa de radicalização ou
democratização da democracia e fazendo, portanto, convergir suas posições com
as dos glocalistas, ou melhor, com as de uma parte destes últimos.
198
em torno de processos participativos de democracia em tempo real ou
cyberdemocacy (envolvendo social networks e civic networks) e de processos de indução
ao desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de
sócio-economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local, muitos dos
quais foram considerados como „radicais‟ na classificação de Held & McGrew (2).
199
uma maior descentralização das decisões e pela repartição mais equânime dos
recursos provenientes da receita fiscal.
Tudo isso será acompanhado pelo fortalecimento das sociedades civis locais e
pelo crescimento do número de organizações do terceiro setor que não poderão
ser controladas nem pelo poderes estatais centrais, nem pelos intermediários e,
nem mesmo, pelos locais. Tecendo suas próprias redes, tais organizações estarão
linkadas a organizações de outros países, com propósitos semelhantes ou
convergentes, e farão parte, voluntária e conscientemente, da sociedade civil
mundial.
Ora, é muito improvável que surja daì qualquer coisa como um “partido mundial
da sociedade civil”, mas é bem provável que boa parte dessa sociedade civil
mundial, tecida a partir da conexão local-global, formule objetivos, estratégias e
programas congruentes com um ideário glocalista.
Retomando, mais uma vez, as categorias de Held & McGrew, não é difícil ver
porque um ideário glocalista acabará se estabelecendo como uma referência
importante para parte ponderável dos entes e processos que participam da
emergente sociedade civil mundial.
200
(nacional), mas como funções sistêmicas da participação (voluntária) na
comunidade política.
Em segundo lugar, também parece óbvio que, para boa parte da emergente
sociedade civil mundial, quem deverá governar, no futuro, não são os indivíduos
por meio de trocas de mercado, nem os aparatos estatais-nacionais (“mìnimos”
ou não) e sim as pessoas, por meio de comunidades que se autogovernam e por
meio de mecanismos de governança em múltiplas camadas articulando o local
(em diversos níveis) e o global.
201
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Cf. Franco, Augusto (2003): “Três Gerações de Polìticas Sociais” in Aminoácidos 5;
Brasília: AED, 2003; ou em http://www.augustodefranco.org/conteudo.php?cont=textos&id=P117
202
203
Diagrama 3 | Variantes na política da localização
A favor da Antilocalização
Localização
Estatistas de centro-
esquerda (“novos”
social-democratas)
Estatistas de Estatistas
Comunitaristas Comunitaristas Neoliberais esquerda de direita
inovadores conservadores
(Glocalistas)
Social-democratas Social-democratas
anti-estatistas anti-liberais
Social-democratas
pós-estatistas e pós-liberais
204
205
Texto 10 | Local e global: as cidades na globalização
segundo Manuel Castells & Jordi Borja
“Os grandes desafios a que deve responder à humanidade hoje têm uma dimensão global... Tais
desafios, entretanto, requerem respostas locais”.
Manuel Castells e Jordi Borja, no livro “Local e global: a gestão das cidades na
era da informação”, propõem, a tìtulo de resumo de sua obra, “três conjuntos de
conclusões sobre a democracia local, as políticas urbanas e as cidades nas relações
internacionais” (1). Reproduzimos abaixo excertos desse resumo.
206
A cidade como espaço da democracia
Todos os homens e mulheres que vivem nas cidades são e devem ser iguais em
direitos políticos e sociais. Não há cidadania se não há igualdade jurídica, seja
qual for a origem nacional ou étnica. Portanto, é legítimo o direito de todos os
habitantes e de todas as famílias de participar da vida política local. Tampouco há
cidadania se há exclusão social, se se constituem guetos para a população
imigrante, se não se toleram as diferenças e as identidades de cada grupo e se se
tolera a intolerância. Não há cidadania se a cidade como conjunto de serviços
básicos não chega a todos os seus habitantes e se não se oferece esperança de
trabalho, de progresso e de participação a todos. A cidade deve ser um espaço de
fraternidade.
A inovação democrática
207
i) a estruturação de âmbitos de gestão, representação e participação
metropolitanos;
O governo local, eleito e representativo, deve optar por liderar a gestão coletiva
da cidade porém não pode monopolizá-la. Todos os âmbitos da vida cidadã
podem ser oportunidades de cooperação público-privado e de participação social.
Não há promoção econômica, proteção ambiental, segurança cidadã,
solidariedade social e tolerância cultural sem a cooperação público-privado. Nem
o monopólio político da administração, nem o mercado exclusivo e excludente
resolverão sozinhos os desafios da cidade atual.
A autonomia local não se reduz unicamente – ainda que seja uma dimensão
importante e nem sempre instituída – ao reconhecimento político-legal e à
proteção jurídica de um âmbito de competência [jurisdição] próprio e específico
de ordenação urbana e de gestão de serviços. Tampouco pode apoiar-se na
208
existência de funções claramente separadas entre as distintas administrações
públicas. Hoje a autonomia local, a partir da origem democrática dos governos
locais, deve incorporar novos conteúdos, como:
209
Cidades ricas, cidades pobres
Se bem que seja certo que existem zonas de grande pobreza nas cidades mais
ricas e setores opulentos nas mais pobres, não podemos esquecer as enormes
diferenças existentes entre as cidades do mundo mais desenvolvido, nas quais se
verificam um desperdício e uma ostentação escandalosos, e as cidades do mundo
menos desenvolvidas onde a maioria da população não dispõe dos bens e
serviços indispensáveis. Por isso é preciso elaborar e propor modelos de
crescimento que assegurem um uso racional e austero dos recursos nas cidades
ricas e promovam um intercâmbio solidário com as cidades mais pobres.
210
Educação e formação, saúde e serviços coletivos como direitos
cidadãos
Mas exige também uma reformatação das relações entre Estado e poderes locais.
As relações hierárquicas, quando não são justificadas por critérios de
funcionalidade e igualdade, devem ser progressivamente substituídas por relações
contratuais que garantam uma coordenação eficaz entre os agentes públicos e
permitam ao poder local, segundo suas capacidades, exercer uma função de
coordenação do setor público e de participação da sociedade civil.
211
3 – As cidades, atores nas relações internacionais
Multiplicam-se atualmente as relações de intercâmbio e de cooperação entre as
cidades e criam-se múltiplas redes e associações regionais e temáticas de cidades,
tanto de poderes locais como de instituições da sociedade civil. Progressivamente
se aceita a legitimidade, a conveniência e o direito das cidades e em especial de
seus governos democráticos, de atuar na vida política, econômica e cultural
internacional.
A cooperação descentralizada
212
ii) administrar uma porcentagem importante do conjunto dos fundos públicos
nacionais destinados à cooperação em cada país desenvolvido;
Os grandes desafios a que deve responder à humanidade hoje têm uma dimensão
global, como:
213
Conseqüentemente, devem ser reconhecidas as cidades, ao lado das nações e seus
Estados e das organizações políticas, econômicas, sociais e culturais
internacionais, o direito e o dever de participar, com a mesma legitimidade, nos
fóruns onde se elaboram e aprovam normas e programas e nos organismos
encarregados de sua aplicação” (2).
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) Castells, Manuel & Borja, Jordi (1997). Local e global: a gestão das cidades na era da
informação. Madrid: Taurus, 1997.
(2) Idem.
214
Texto 11 | Michael Shuman e o ideário do localismo
“Nós temos muito mais poder do que imaginamos”.
215
Enquanto estava sendo algemado, o jovem criminoso blasfemava por não poder
ganhar a vida honestamente. O investigador, agindo talvez mais por culpa do que
compaixão, telefonou para um amigo que gerenciava uma oficina mecânica e lhe
pediu que desse um emprego ao jovem quando este deixasse a prisão. O jovem
teve uma segunda chance. Um milagre aconteceu. Alguém se interessou.
216
e qualquer deles, se empreendido isoladamente, estará fadado e produzir um
impacto não mais do que moderado. É crucial que essas iniciativas sejam vistas
como um pacote, no qual uma política reforça as demais.
Nós, o povo de Cleveland, buscamos criar uma cidade melhor para nossos filhos, atraindo
empresas de fora, comercializando nossos produtos internacionalmente e garantindo tanto
dinheiro do governo federal quanto possível. Criaremos um bom clima empresarial mantendo os
salários e a proteção ao meio ambiente a um nível mínimo. Endossaremos o comércio livre em
todos os fóruns, mesmo que isso reduza nossa capacidade para controlar nossa economia. E nos
certificaremos de que nossos representantes em Washington tragam para casa mais do que nossa
merecida parcela de verba paroquial.
Os princípios que hoje regem a vida econômica são um desastre. Em todo o país,
políticos locais privilegiam bens de baixo custo em detrimento de um padrão de
vida de alta qualidade; empresas multinacionais em detrimento de empresas
nacionais; dependência da economia global em detrimento da independência por
meio da auto-suficiência (ou auto-dependência); e a sinecura federal em
detrimento do poder local. Esses princípios, bem como essas prioridades e
políticas florescem não porque representam o que o povo americano quer, mas
porque são invisíveis. Um primeiro passo para a auto-suficiência (ou auto-
dependência) comunitária é submeter todos os aspectos da economia local ao
escrutínio e à discussão.
217
direitos dos trabalhadores? Basta que as empresas atendam aos padrões mínimos
em termos ambientais e de segurança pública previstos nas legislações federal e
estadual, ou devemos exigir mais? Será que nós – e nossos vizinhos – deveríamos
ter direito a um salário mínimo, a uma pensão e a um plano de saúde? Que tipos
de estruturas de propriedade são melhores para a comunidade? Muitos de nós
temos sentimentos fortes em relação a essas questões, embora raramente
tenhamos tido condições de expressá-los em público.
218
A existência de sistemas de classificação de produtos como Relatórios do
Consumidor e Selos Verdes sugere que a participação do governo local não é
necessária. Ainda assim, a Câmara Municipal poderia ajudar realizando
audiências, ratificando a Declaração de Direitos e Garantias e arcando com os
custos de impressão e distribuição do documento. Poderia, ainda, subscrever o
conselho de avaliação, fazer nomeações formais para o conselho e publicar uma
relação de empresas amigas da comunidade (a exemplo do que faz o jornal
quinzenal de Paul Glover, “Ithaca Money”). A Câmara poderia, ainda, realizar
novas audiências anualmente para avaliar emendas.
219
(2) O relatório do estado da cidade
220
Mestres e grupos de centros de recreação extracurricular; clínicas de saúde da
mulher e centros locais de Planejamento Familiar; comitês locais de Democratas
e Republicanos; grupos liberais e conservadores dedicados a causas sociais;
instituições beneficentes como a United Way; vigilâncias de bairros; comitês ad
hocs organizadores de eventos no Natal e 4 de julho; e instituições de
atendimento ao público sem fins lucrativos como igrejas, hospitais e
universidades públicas. Finalmente, contabilize os ativos inanimados que foram
descartados: prédios vazios, maquinaria ociosa, terrenos vazios, áreas industriais
abandonadas (conhecidas como “campos marrons”), energia desperdiçada e água
mal utilizada.
221
diversas profissões. Os indicadores são quantitativos, mas a escolha do que aferir
e de como aferir é inerentemente subjetiva. Kline e outros defensores de
indicadores, como a Redefining Progress, sediada em São Francisco, incentivam as
comunidades a adaptar essa lista genérica aos valores e às necessidades locais.
222
cents de cada dólar ganho por um morador de Chester vinham de empresas
locais, e surpreendentes 87 cents de cada dólar gasto destinavam-se a
proprietários de fora da comunidade. O Projeto de Renovação Comunitária do
Instituto Rocky Mountain utilizou esse tipo de análise para ajudar pequenas
cidades rurais a se revitalizar.
(3) Empresas-âncora
Se bem elaborado, o Relatório do Estado da Cidade ressaltará oportunidades
comerciais maduras de três formas. Primeiramente, necessidades não atendidas
sugerem novos mercados para as empresas locais. Pode ser que os empresários,
ao verem seus vizinhos famintos e desnutridos, construam estufas de plantas ou
entrem no ramo da agricultura urbana. Como salienta o Professor Michael
Porter, da Harvard Business School, essas demandas são especialmente atraentes
para novas empresas por serem tão parcamente atendidas atualmente. “Embora a
renda familiar média no interior da cidade de Baltimore seja 39% mais baixa do
que no restante da cidade”, escreve o professor, “o poder de gasto agregado é
praticamente o mesmo e o gasto estimado no varejo, por estabelecimento, é dois
terços maior no interior do que no restante da cidade” (10).
223
Uma comunidade comprometida com a meta de auto-suficiência (ou auto-
dependência) em sua Declaração de Direitos e Garantia propiciará, obviamente,
um lar mais receptivo para essas empresas de substituição de importação. Uma
comunidade que tenha como meta atender à maior parte de suas necessidades de
alimentos com produtos cultivados localmente, induzirá os empresários a criar
um mercado de agricultores ou mercearias especializadas. Se os consumidores
estiverem dispostos a pagar um preço ligeiramente mais alto por pães feitos
localmente, os empresários naturalmente abrirão padarias no bairro.
224
mudanças abruptas no preço e no fornecimento de produtos importados.
Significa empenho para manter uma fatia cada vez maior do multiplicador
econômico em casa. O processo de substituição de importações nunca termina.
Tão logo um conjunto de dependências é atendido, novas dependências tomam
seus lugares. Mas cada nova dependência se torna cada vez menos vital para a
sobrevivência de toda a comunidade. Novas dependências invariavelmente abrem
novas oportunidades comerciais locais, desde que haja empresários locais
preparados para aproveitá-las.
225
economia” (16). Um estudo surpreendente da Universidade Cornell constatou
que os alunos do curso de pós-graduação em economia, quando tinham a
oportunidade de contribuir para instituições beneficentes, doavam metade do
valor doado pelos alunos de outros cursos (17). Seu impulso caridoso na
realidade diminuía na medida em que esses alunos acumulavam mais anos de
treinamento, e atingiam um nível mínimo quando eles se tornavam professores.
Quase todos nós temos poupança e conta corrente, cartões de crédito, contas de
aposentadoria e Plano Keogh (conta de plano de aposentadoria com tributação
diferida, idealizada para funcionários de pequenas empresas ou profissionais
autônomos) em instituições da nossa escolha, com base em conveniência, taxas
de retorno e grau de amicabilidade – mas não em lealdade à comunidade.
Qualquer pessoa interessada no futuro que persistir nessa prática estará jogando
dinheiro fora. Mesmo que seu banco atual apresente uma boa pontuação em
relação aos critérios da Lei de Re-investimento na Comunidade, há grandes
possibilidades de que ele não esteja financiando empresas da comunidade.
226
cooperativa de crédito) a criar uma divisão especial que invista localmente e
permita que clientes com espírito cívico depositem suas poupanças nessa conta.
Uma outra opção seria convencer sua associação de bairro a criar uma
cooperativa de crédito comunitária. A Administração Nacional de Cooperativas
de Crédito certificou e segurou cooperativas de crédito com ativos totais que não
ultrapassavam US$ 100 mil. Se tiver dificuldade para levantar capital suficiente
para fazer jus ao seguro federal, você pode pressionar sua Câmara Municipal a
comprar ações, transferir folhas de pagamento para o banco, ou oferecer um
empréstimo ou uma garantia de empréstimo.
Você pode ficar nervoso em fazer experiências com seus investimentos se eles
forem essenciais – como o são para a maioria dos americanos – para a educação
de seus filhos e sua própria aposentadoria. Essa pode ser a área na qual mesmo
aqueles de nós com maior espírito comunitário ficaríamos relutantes em sacrificar
ainda que um ou dois pontos percentuais de nossa taxa de retorno.
227
O risco, entretanto, não é exclusivo do investimento local. A maioria de nós
esquece que praticamente todos os nossos investimentos hoje correm risco – e
não estão segurados. Se o mercado de ações entrasse em colapso amanhã, sua
segurança financeira de longo prazo poderia estilhaçar-se. Assim, a questão real é
se você considera a atual economia de cassino, apinhada de especulação e
baseada na exploração de trabalhadores de baixa renda e em ecossistemas em
ruínas mais arriscada, no longo prazo, do que uma economia local revitalizada.
Mesmo que o dinheiro de sua aposentadoria se saia bem em fundos de
investimento convencionais, vale a pena procurar saber quão útil ele seria se sua
aposentadoria precisar ser gasta em uma comunidade que está se desintegrando.
Entretanto, será que o risco aumenta quando restrições geográficas são impostas?
Talvez. Mas o sucesso surpreendente de Mondragon, onde os fundos de pensão
dos trabalhadores foram re-investidos em cooperativas, deveria deter os céticos,
o mesmo acontecendo com a experiência do Fundo de Solidariedade de Quebec,
acima mencionado, que investe estritamente em empresas sediadas na província.
Um levantamento realizado em 1992 constatou que 87% dos investidores do
Fundo, que incluía tanto membros de sindicatos quanto outros investidores,
estavam satisfeitos com a taxa de retorno.
228
(6) Moeda comunitária
229
(7) Uma prefeitura amiga da comunidade
Todos os passos acima podem ser dados por indivíduos e organizações que
atuam oficiosamente. Não há lei nos Estados Unidos que proíba cidadãos que
trabalhem em conjunto de criar um conjunto de princípios, conceder selos,
compilar um Relatório do Estado da Cidade, estabelecer empresas e bancos
locais, treinar empresários com espírito comunitário, empreender uma campanha
em prol de investimentos locais e emitir uma moeda comunitária. Para toda e
cada uma dessas atividades, a participação do governo local não é necessária –
embora possa acrescentar experiência, legitimidade e financiamento.
Ainda assim, conforme detalhado no meu livro [“Going Local”], um governo local
comprometido com a auto-suficiência (ou auto-dependência) da comunidade
pode acelerar o ritmo de transformação. Pode garantir que os únicos
beneficiários de investimentos, contratos, compras e financiamento de títulos
locais sejam empresas da comunidade. Pode ajudar a igualar fornecedores locais
de insumos e trabalhadores a produtores locais. Pode criar fundos de bolsas de
estudo que incentivem os alunos melhores e mais inteligentes a voltar para casa
após a universidade. Pode reestruturar impostos sobre rendas, riquezas e recursos
para privilegiar empresas da comunidade.
230
(8) Reforma política
231
em concorrer a um cargo eletivo ou em participar do sistema político. Um dia,
um Supremo Tribunal Federal mais sábio poderá reconsiderar os princípios de
Buckley v. Valeo, que equiparou a habilidade irrestrita para gastar dinheiro em
campanhas políticas à liberdade de expressão da Primeira Emenda Constitucional
(24). Até lá, os governos locais deveriam refletir sobre a criação de sistemas de
financiamento público de campanhas eleitorais, os quais um candidato poderia
optar por não aceitar (como Buckley exige), mas ao preço da humilhação pública.
Uma terceira reforma valiosa seria limitar os mandatos, que contém a promessa
de colocar um fim no controle monopolista de cargos políticos por parte de uma
categoria profissional de políticos relativamente pequena. Quanto mais tempo
um político permanecer no cargo, maior a probabilidade desse político ser
capturado por interesses especiais. Limites de mandatos aumentam a
probabilidade de que novatos, não-profissionais e pessoas pobres concorram a
um cargo eletivo. Vozes populares também poderão ser mais bem ouvidas nas
eleições se os cidadãos tiverem poder para colocar iniciativas nas cédulas e a
opção de votar em “nenhum dos nomes acima” (o que exigiria que os partidos
retrocedessem e escolhessem outros candidatos).
232
administradas por cidadãos dedicadas a diferentes questões de política que afetam
a comunidade. Essas comissões poderiam ter o poder de fazer pequenas doações
e submeter leis às câmaras municipais. Se os membros das comissões forem
eleitos, eles incrementarão os tipos de inspeções e equilíbrios no governo
municipal que podem ajudar a evitar a insularidade e a corrupção.
233
a interdependência econômica será construtiva apenas se o poder entre os atores
for equilibrado (26). A interdependência que entrega o poder a forasteiros
implica custos econômicos de longo prazo e cria o potencial para um grave
conflito. Poucas comunidades no mundo de hoje têm poder sobre empresas
independentes que orientam a globalização. Nesse contexto, uma maior
interdependência econômica assegura maior dependência, vulnerabilidade e
exploração.
234
Por intermédio da Agência de Desenvolvimento Internacional do Canadá, 22
cidades canadenses transmitiram a funcionários municipais africanos as
habilidades técnicas necessárias para planejar sistemas mais eficientes de água e
transporte. Cada cidade canadense participante deverá fornecer três
administradores ou técnicos urbanos para trabalhar por um curto período de
tempo na África e receber dois ou mais profissionais de sua comunidade parceira
africana por um período de três semanas.
235
tipo de compartilhamento de informações e de colaboração globais deverá se
tornar mais fácil e barato.
236
empresas. O “bloco neoliberal” de comunidades poderia se beneficiar de
produtos mais baratos e taxas mais altas de retorno para seus investimentos, mas
também teria de suportar condições de trabalho em deterioração, colapso do
meio ambiente, e instabilidade comunitária. O “bloco socialmente responsável”
poderia acabar pagando preços mais altos, mas gozaria de uma melhor qualidade
de vida. Embora as comunidades e as empresas no último bloco constituíssem,
inicialmente, uma minoria, no transcorrer do tempo – na medida em que um
número maior de trabalhadores no bloco neoliberal perdesse seu emprego e
salário, os problemas de poluição e produtos perigosos se multiplicassem e
organizações ecológicas, trabalhistas e de mudança social surgissem para
responder a esses problemas – um número cada vez maior de comunidades e
empresas neoliberais provavelmente começasse a optar por uma melhor
qualidade de vida em detrimento de noções obsoletas de eficiência econômica. A
mera existência de um bloco alternativo daria aos políticos e ativistas
comprometidos com uma nova economia do local e interlocal uma meta concreta
para que se organizassem.
237
sobre a fabricação dos produtos; os lucros algumas vezes são empregados para
pagar por aulas sobre a economia global. Essas lojas também podem ser
encontradas nos Estados Unidos, embora a maior parte das transações
comerciais lícitas no país seja feita pelo correio, por intermédio de empresas
como a One World Trading e a Pueblo to People.
A estratégia liliputiana
Será que uma economia do século XXI pode ser localizada? Os céticos
provavelmente se lembrarão da história do Grande Salto para o Futuro. Em
1958, Mao Tsé-tung e o Partido Comunista da República Popular da China
arrastaram milhões de agricultores relutantes pelo caminho da industrialização,
dando ordens a 25 mil comunas para que estabelecessem suas próprias fábricas.
Milhares de usinas de pequena escala foram montadas às pressas na zona rural
para produzir aço, cimento, fertilizante, energia e maquinário, com tecnologias
inadequadas, sem coordenação central e sem o apoio e as peças necessários. O
resultado foi o caos, e a União Soviética imediatamente decidiu retirar seus
técnicos da China. As imagens do Grande Salto que persistem até os dias de hoje
são as de usinas dilapidadas e ociosas.
238
voluntariamente, não por decreto do governo; devem ser adaptadas às
necessidades de cada comunidade e não a uma ideologia central; devem ser
orientadas pelas realidades de um mercado não subsidiado e não a despeito
dessas realidades. Ademais, mesmo na medida em que pequenas empresas da
comunidade atenderem às necessidades locais, empresas maiores da comunidade
ou redes de empresas da comunidade continuarão a produzir e oferecer produtos
complexos, tais como computadores e aviões, que as comunidades não podem
produzir, de forma eficiente, por conta própria. As empresas comunitárias são
ferramentas para a evolução da auto-suficiência (ou auto-dependência) e não um
princípio totalitário de organização para cada parte da economia.
Mas o Grande Salto suscita uma importante pergunta: Será que a ação
comunitária pode efetivamente definir a agenda econômica de uma nação? Ou do
mundo? As forças das empresas móveis parecem tão grandes, tão globais, tão
refratárias, que qualquer coisa feita no nível local pode parecer insignificante –
algo como combater a seca com um conta-gotas. Mas nenhuma empresa pode
existir sem clientes e investidores. Retire qualquer um deles e até mesmo a
empresa mais poderosa sucumbirá. Nossos próprios poderes para adquirir bens
ou ações próprias são o calcanhar de Aquiles das gigantescas bestas comerciais
que vêm destruindo as comunidades.
Iniciei minha própria jornada na política há vinte anos, durante uma campanha
contra a energia nuclear. Naquela época, a disseminação da energia nuclear e de
suas “externalidades” (resìduos radioativos, fusões, acidentes com combustíveis
usados, proliferação de armas) parecia inevitável. Havia setenta usinas nucleares
em operação, e as empresas de utilidade pública falavam da necessidade de se
construir pelo menos um reator por dia até a virada do século. Dezenas de
milhares de manifestantes tentaram deter uma indústria nuclear de mais de US$
100 bilhões. Esses manifestantes se atiravam na frente de tratores e eram presos
nos locais de construção de reatores. Enfrentaram dezenas de batalhas em
tribunais desafiando as análises de saúde, segurança e meio ambiente e insistiram
na modificação dos projetos. Promoveram plebiscitos e submeteram projetos de
lei às assembléias legislativas estaduais para fechar usinas nucleares.
No final, entretanto, essas iniciativas não mais importavam. Algo muito mais
sutil, inesperado e poderoso acabou por destruir a indústria nuclear: as pessoas
pararam de comprar mais eletricidade. Na medida em que os americanos
começaram a detectar e eliminar os usos ineficientes de energia, as projeções de
demanda de energia despencaram. Às empresas de utilidade pública restou definir
não se as próximas usinas de energia deveriam ser nucleares, mas se novas usinas
de energia seriam de fato necessárias.
239
Há uma importante lição em tudo isso. Por que nos exaurirmos lutando contra
empresas que se comportam mal? Se criarmos nossas próprias empresas com
base em uma nova visão de responsabilidade social e se optarmos por comprar e
investir apenas nessas empresas, as outras empresas se adaptarão ou morrerão. Se
criarmos um número ainda que pequeno de comunidades auto-suficientes (ou
auto-dependentes), nas quais todo morador tenha um emprego decente que
produza bens essenciais para um e para todos, outras comunidades nos visitarão,
aprenderão conosco e nos seguirão. Nós temos muito mais poder do que
imaginamos.
Muitos de nós sabemos, em nossos corações, que há muito mais na vida do que a
próxima liquidação no shopping. Muitos de nós ansiamos por laços mais
profundos com nossas famílias, nossos vizinhos e nosso meio ambiente.
Desejamos desesperadamente adquirir um senso de espaço no qual possamos
alimentar a cultura e nos orgulharmos de nossa história. Trabalhamos longas
horas para legar aos nossos filhos e netos os tipos de comportamento econômico
que dêem prosseguimento à prosperidade. Por que apenas imaginar o que seria
possível fazer em seu quintal? Por que apenas sonhar com um passado remoto
ou um futuro distante? Por que não começar hoje?”
240
NOTAS E REFERÊNCIAS DE MICHAEL SHUMAN
(1) Shuman, Michael (2000). Going Local: creating self-reliant communities in a global age. New York:
Routledge, 2000. Michael H. Shuman (shuman@igc.org), ex-diretor do Institute for Policy Studies,
atualmente é diretor da Village Foundation‟s Institute for Economics and Entrepreneurship
(www.villagefoundation.org). As notas e referências seguintes são do autor.
(2) Ralph Estes, “Tyranny of the Bottom Line: Why Corporations Make Good People Do Bad Things”
(São Francisco: Berrett-Koehler, 1996), pags. 220-31. Veja também Thad Williamson, "The
Content of Ethical Impact Reports: A Two-Tiered Proposal", Tikkun, Vol. 12-4, pags. 36-40.
(3) Wess Roberts, “Victory Secrets of Attila the Hun” (Nova Iorque: Dell Trade, 1993), pag. 59.
(4) John P. Kretzmann e John L. McKnight, “Building Communities from the Inside Out”
(Evanston, IL: Centro para Temas Urbanos e Pesquisas sobre Políticas, 1993).
(5) Elizabeth Kline, "Sustainable Community Indicators" (monografia) (Medford, MA: Consórcio
pela Sustentabilidade Regional, 1995) e Elizabeth Kline, "Defining a Sustainable Community"
(monografia) (Medford, MA: Consórcio pela Sustentabilidade Regional, 1993).
(6) Richard Douthwaite, “Short Circuit” (Devon, Reino Unido: Resurgence, 1996), pag. 336.
(8) Alex MacGillivray e Simon Zadek, "Accounting for Change" (monografia) (Londres: Fundação
New Economics, outubro de 1995), pag. 26.
(9) Um bom resumo desses estudos pode ser encontrado em Christopher Gunn e Hazel
Dayton Gunn, “Reclaiming Capital: Democratic Initiatives and Community Development” (Ithaca, Nova
Iorque: Editora da Universidade de Cornell, 1991), pags. 37-53.
(10) Michael E. Porter, "New Strategies for Inner-City Economic Development", “Economic Development
Quarterly”, fevereiro de 1997, pag. 14.
(11) John J. Berger, “Charging Ahead: The Business of Renewable Energy and What It Means for
America” (Nova Iorque: Henry Holt, 1997), pag. 61.
(13) Ibid.
(14) Kenneth Boulding, “Stable Peace” (Austin, Texas: Editora da Universidade do Texas, 1981),
pag. 93.
(15) Jane Jacobs, “Cities and the Wealth of Nations” (Nova Iorque: Vintage, 1984), pag. 42 (ênfase
no original).
241
(16) Lewis Mumford, “The Transformation of Man” (Nova Iorque: Harper, 1956).
(20) Patrick McVeigh, "Study SRI No More", “Investing for a Better World”, 15 de outubro de 1996,
pag. 1. Veja também Estes, nota 2 supra, pag. 238.
(21) Robert L. Morlan, "Municipal vs. National Election Voter Turnout: Europe and the United States",
“Political Science Quarterly”, Outono de 1984, pag. 462 (Tabela 1).
(23) William Greider, “Who Will Tell the People: The Betrayal of American Democracy” (Nova Iorque:
Editora Simon & Schuster, 1992), pag. 22.
(25) Os exemplos citados nesta seção foram extraídos de Michael H. Shuman, “Toward A
Global Village: International Community Development Initiatives” (Londres: Editora Pluto Press,
1994).
(26) Robert Keohane e Joseph Nye, Jr., “Power and Interdependence”, 2a ed. (Glenview, IL: Scott,
Foresman, 1989).
242
Localização e revolução do local
A localização é o aspecto objetivo da revolução do local, enquanto que seu aspecto
subjetivo é a existência de uma crescente variedade de agentes, conectados em rede e
dedicados a promover movimentos de resistência e de geração de identidade – que
dão origem a comunidades de projeto – a partir das novas temáticas do
ambientalismo, dos direitos humanos e da cidadania, do feminismo, do ecumenismo
e do pacifismo, do fortalecimento da sociedade civil e da promoção do voluntariado e,
sobretudo, dedicados ao experimentalismo inovador que se desenvolve em torno de
processos de democracia participativa em redes sociais e de indução ao
desenvolvimento integrado e sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-
economia alternativa ou solidária ensaiados em escala local.
243
entanto, tais agentes só poderiam lograr seu intento caso estivessem consteladas
as condições favoráveis ao desenvolvimento do processo revolucionário (e essas
condições seriam objetivas, ou seja, independentes da intenção e da posição dos
sujeitos).
A estratégia passa, assim, a ser compreendida como uma urdidura, um plano para
“dar o bote” invertendo a correlação de forças, seja por meio da violência, seja
por meios pacíficos, em geral pela via eleitoral nas democracias. Mas em qualquer
caso o modelo político de atuação é fornecido por essa espécie de “teoria do
bote”. A conquista do aparelho de Estado reflete uma mudança na correlação de
forças existente na sociedade – de vez que exige uma certa “acumulação”, que
desequilibre a balança do poder a seu favor, por parte do contingente
revolucionário (em geral organizado em um partido ou em uma frente de
partidos e outras organizações), sem o que não é possível adquirir o comando
dos centros decisórios (em geral as estruturas do governo central), tomando-os
pela emprego da violência ou ganhando uma eleição decisiva. Para tanto, é
necessário “acumular forças” para “dar o bote” na hora certa.
244
Depois, é claro, restam por fazer todas as tarefas substantivas. O poder de
Estado é o meio, o instrumento fundamental para realizar tais tarefas
(consubstanciadas no programa revolucionário). Mas depois é depois. O
instrumento fundamental a ser conquistado para que se possa realizar as medidas
é tão importante (e coloniza de tal maneira a consciência dos agentes) que o
objetivo intermediário da sua conquista embaça a visão do objetivo final (a
implantação do projeto revolucionário de transformação da sociedade).
É óbvio que essa idéia de revolução – esboçada aqui com tal ênfase em certos
aspectos que a tornam até um pouco caricatural – leva à autocracia. E é óbvio
que ela tem poucas chances de se realizar em uma sociedade-rede nas
democracias modernas na medida em que a posse de aparelhos estatais (e mesmo
o controle sobre os aparatos oficiais de propaganda e sobre os recursos
orçamentários a eles destinados e a capacidade de pressionar e subordinar os
complexos privados de comunicação) não pode garantir o controle sobre as redes
sociais e as novas formas de agenciamento que elas ensejam e dinamizam.
245
A velha idéia de revolução era uma idéia de transformação no âmbito do Estado-
nação e referenciada, portanto, nessa forma de Estado, tendo, na prática, o efeito
de fortalecê-la e não questioná-la, mesmo quando incluía a pregação por uma
revolução mundial (que aboliria, em algum lugar do futuro, todas as fronteiras et
coetera).
A chamada revolução do local como uma revolução social é algo muito diferente
disso, como veremos a seguir.
246
locais, inter-locais, entre o local e o micro-regional, o estadual, o nacional, o
regional e, em suma, entre o local e o global).
247
sustentável, sistemas sócio-produtivos e de sócio-economia alternativa ou
solidária ensaiados em escala local).
Parece que está em curso uma grande revolução silenciosa, que está alterando os
padrões de relação entre o Estado e a sociedade. É a revolução do local.
248
rincões do planeta. E já podem ser selecionados numerosos cases de
protagonismo local, de pessoas e comunidades que se empoderaram, que ao
invés de ficarem esperando uma solução “de cima”, tomaram a dianteira na
solução dos seus problemas de forma inovadora.
Esses novos agentes são, em geral, de dois tipos: a) pessoas comuns, que moram
e trabalham nas milhares de localidades, muitas vezes periféricas, que passaram a
desempenhar o papel de animadores e catalizadores de mudanças sociais na vida
das suas comunidades; e b) integrantes de organizações governamentais,
empresariais e da sociedade civil, em todos os níveis, que se apaixonaram pela
perspectiva de induzir ou promover o desenvolvimento humano e social
sustentável pela via do empoderamento molecular das pessoas comuns, que
moram e trabalham nas milhares de localidades, em geral periféricas, em todas as
regiões do globo. Em suma, pessoas que assumiram e estão realizando seu
compromisso com o desenvolvimento comunitário, da sua própria localidade ou
de outra localidade qualquer.
249
partidária. De sorte que não se trata mais de um contingente reduzido de
militantes e profissionais outsiders, como eram vistos, por exemplo, os velhos
comunitaristas ou os novos “localistas”, no mesmo bolo dos ambientalistas e das
feministas (para citar os três exemplos de movimentos contemporâneos de
resistência aos rumos da globalização excludente, considerados por Manuel
Castells) (2).
Não se pode saber exatamente quantos são. O “exército” desses novos militantes
– ou, melhor, o anti-exército desses novos participantes –, se incluirmos os
agentes locais (e, mesmo assim, na pior estimativa, apenas um pequena
porcentagem dos membros de fóruns, conselhos, agências de desenvolvimento
locais e similares), deve perfazer um total considerável.
250
Essa nova geração de agentes-empreendedores, diferentemente dos militantes à
moda antiga, não caminham cantando uma mesma canção, com “a certeza na
frente e a história na mão”. São, simplesmente, pessoas que começaram a
acreditar na sua própria capacidade de fazer diferente e não de repetir uma
fórmula qualquer.
Ora, o que se busca agora é a sinfonia. “Este novo modelo musical – assinala
Levy – poderia ser o coral polifônico improvisado. Para os indivíduos, o
exercício é especialmente delicado, pois cada um é chamado ao mesmo tempo a:
1) escutar os outros coralistas; 2) cantar de modo diferenciado; 3) encontrar uma
coexistência harmônica entre sua própria voz e a dos outros, ou seja, melhorar o
efeito de conjunto. É necessário, portanto, resistir aos três “maus atrativos” que
incitam os indivíduos a cobrir a voz de seus vizinhos, cantando demasiado forte,
a calar-se ou a cantar em uníssono. Nessa ética da sinfonia o leitor terá percebido
as regras da conversação civilizada, da polidez ou do savoir-vivre – o que consiste
em não gritar, em ouvir os outros, em não repetir o que eles acabam de dizer, em
responder-lhes, em tentar ser pertinente e interessante, levando em conta o
estágio da conversa...” (4). Isso poderia, conclui Levy, “assumir a forma de um
grande jogo coletivo, no qual ganhariam (mas sempre provisoriamente) os mais
cooperativos... os melhores produtores de variedade consonante... e não os mais
251
hábeis em assumir o poder, em sufocar a voz dos outros ou em captar as massas
anônimas em categorias molares” (5).
O fato é que esses novos agentes estão aprendendo (e estão nos ensinando) a ver
as coisas de outro modo. O que os comove não são tanto as necessidades das
populações, mas as suas potencialidades. Como não se acreditam predestinados a
salvar o mundo, como não imaginam possuir a fórmula (única) para resolver
todos os problemas, estão mais preocupados com as multifárias possibilidades e
oportunidades, com as iniciativas de coletividades que contam com seus próprios
ativos para superar os seus problemas.
Todavia, tudo parece tão novo – e, até certo ponto, tão desconcertante – que
muita gente fica em dúvida e quer saber, com toda sinceridade, como isso
poderia acontecer; ou seja, como é que, animando processos de desenvolvimento
local em pequenas localidades periféricas, com PIB baixíssimo, fora dos circuitos
por onde passam os grandes fluxos de capital do mundo globalizado, pode-se
impulsionar uma mudança significativa no processo de desenvolvimento de
países inteiros.
Muitas pessoas querem saber “qual é o milagre” pelo qual pequenas ações,
diversificadas, fragmentadas e feitas, descentralizadamente, sem um comando
unificado, envolvendo pouquíssimos recursos financeiros, podem vir a ter um
impacto ponderável nas condições de vida de grandes contingentes
populacionais.
Já abordei esse tema, de um ponto de vista mais abstrato e com um viés ainda
inevitavelmente especulativo, ao tratar dos supostos de uma teoria sistêmica do
capital social. A hipótese de trabalho que considerei foi a seguinte. Pequenas
perturbações introduzidas na periferia dos sistemas estáveis afastados do estado
de equilíbrio podem se amplificadas por laços de realimentação de reforço se
espalhando para o sistema todo e modificando o comportamento dos agentes
que interagem em termos de competição e de cooperação.
252
Tenho defendido a tese de que essa propagação amplificada da perturbação
ocorre na medida em que o sistema apresente a estrutura (ou “corpo”) de rede e
que sua dinâmica (ou “metabolismo”) seja democrática.
Quanto mais rede, ou seja, quanto mais conexões horizontais forem estabelecidas
entre os nodos (as pessoas e as organizações) – ou quanto mais múltiplos forem
os caminhos (ou arestas) entre esses nodos (ou vértices) – e quanto mais
democráticos (no sentido de mais diretos e participativos) forem os modos de
regulação de conflitos adotados por uma coletividade humana estável, mais
chances existirão de uma pequena ação ser amplificada, vindo a produzir um
grande resultado, desde que essa ação introduza um novo tipo de
comportamento no sistema e que seja, ela própria, feita de modo sistêmico.
Ou seja, desde que ela incida (ainda que tendo como foco inicial apenas uma sub-
região particular do sistema) sobre os mecanismos ou processos pelos quais os
comportamentos são mantidos e reproduzidos. Nas sociedades humanas esses
mecanismos e processos se relacionam aos padrões de organização e aos modos
de regulação, às maneiras como o poder se distribui e como os conflitos são
resolvidos. Em outras palavras, desde que a mudança introduzida seja política.
Esses casos são diferentes de muitos outros casos de sucesso onde um
empreendedor individual conseguiu atingir seu objetivo e realizar um grande
feito.
253
empresas, aumentar o salário mínimo ou distribuir renda por meio de programas
compensatórios estatais.
O motivo pelo qual as pessoas olham com desconfiança para pontos de vista
como esse, é o mesmo motivo pelo qual existe uma realidade escondida, que
quase ninguém vê. É o mesmo motivo pelo qual as pessoas não percebem a
revolução silenciosa que está em curso neste momento, que está alterando os
padrões de relação entre Estado e sociedade em localidades de todo o mundo.
As sociedades humanas tornam-se sistemas cada vez mais complexos, que estão
adquirindo rapidamente características de sistemas adaptativos. A sociologia
necessária para analisar essas coisas ainda precisa ser inventada (ou re-inventada).
O caminho mais promissor são as novas teorias do capital social – sobretudo
aquelas que tentam adotar um ponto de vista sistêmico e utilizar o instrumental
das teorias da complexidade.
254
mercado – e sem os quais não estaria sendo possível a emergência de uma nova
concepção e de uma nova prática de mudança social.
Estou falando do chamado terceiro setor (que é uma denominação para a „nova
sociedade civil‟, aquela esfera da realidade social composta por entes e processos
que não são estatais nem mercantis).
Antes de qualquer coisa é preciso deixar claro que nem todos os novos agentes
de desenvolvimento que estão surgindo na atualidade pertencem ao terceiro
setor. Muitos deles trabalham em governos, em todos os níveis ou em empresas
privadas – o que é um sinal de que a mudança está alcançando todos os setores.
Todavia, sem a participação do terceiro setor não estaria ocorrendo esse
fenômeno que estamos chamando de revolução do local.
Por que? Porque o terceiro setor, pela sua diversidade, pela sua racionalidade e
“lógica” de funcionamento, enfim, pela sua dinâmica própria, introduz elementos
novos que reconfiguram os padrões de relação antes vigentes.
A nova sociedade civil (ou o terceiro setor) atua, freqüentemente, junto com o
Estado e com o mercado. Mas não faz muito sentido buscar qualquer tipo de
equilíbrio de forças entre essas três esferas da realidade social. Só teria sentido
essa busca se estivéssemos falando da interação de sujeitos em conflito. Mas
Estado, mercado e nova sociedade civil são esferas da realidade social, e não
sujeitos políticos em conflito.
255
Por outro lado, o conceito de equilíbrio não é bom para sistemas complexos
como as sociedades. Sociedades são sistemas que só se desenvolvem se estiverem
afastados do estado de equilíbrio. O que não quer dizer que não sejam sistemas
estáveis. Mas estabilidade nada tem a ver com equilíbrio. Tudo indica que o que é
necessário alcançar não é um "equilíbrio de forças", mas uma sinergia entre
iniciativas provenientes desses três setores. Por quê? Porque nenhum deles,
isoladamente, é suficiente para promover o desenvolvimento desse sistema
complexo e estável, que só pode se desenvolver quando afastado do estado de
equilíbrio, chamado de sociedade humana.
Mas não estou falando da “sociedade civil organizada”, nossa velha conhecida.
Aliás, foi somente a partir de meados da década de 90 que parte dessa “sociedade
civil organizada” (em geral corporativamente ou partidariamente) tomou
consciência de que existia uma outra sociedade civil (“desorganizada”) muito
maior do que ela e começou a desconfiar que, em sistemas complexos como as
sociedades humanas (como escreveu Frank Herbert em 1969 em “O Messias de
Duna”), “não reunir é a derradeira ordenação” (6). Estou falando mesmo da
“força da dispersão”.
Não é, portanto, por acaso, que esses novos agentes de desenvolvimento que
estão surgindo sejam, em grande parte, participantes de organizações do terceiro
setor.
256
pressupõe a avaliação de que elas ainda estão aprisionadas pelos sistemas
políticos vigentes em nossas sociedades.
257
São, todavia, características conformes tanto às evidências da revolução do local
(em termos subjetivos) quanto ao processo (objetivo) de localização atualmente
em curso no mundo.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) “Pode portanto dizer-se que a política é guerra sem derramamento de sangue e, a guerra,
polìtica sangrenta”. Cf. Tsé-Tung, Mao (1936). “Problemas estratégicos da guerra
revolucionária na China” in Escritos Militares. Goiânia: Libertação, 1981.
(2) Cf. Castells, Manuel (1996). O Poder da Indentidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
(3) Levy, Pierre (1994). A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São
Paulo: Loyola, 1998.
(4) Idem.
(5) Idem-idem.
(6) Herbert, Frank (1969). O Messias de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
258
Texto 12 | Offe e a sinergia entre Estado, mercado e
comunidade
“Instituições de governo justas e transparentes, a prosperidade que mercados cuidadosamente
regulados podem gerar e a vida das comunidades restringida pelo princípio da tolerância podem e
devem, todos, contribuir para a (assim como se retomarem beneficiários da) formação e
acumulação de capital social no interior da sociedade civil”.
259
a “construção” da história ao contrário da exposição a forças e a destinos
históricos anônimos.
A teoria que relaciona tais resultados com a cegueira e outras deficiências da ação
humana é uma teoria das crises. Como é sabido, Marx e alguns marxistas
acreditavam que as instituições que fazem com que os humanos não consigam
prever as conseqüências de suas ações, podem elas próprias, ser alteradas através
de uma forma especial de ação conceituada em termos de “revolução” ou “luta
de classes”. Grande parte da evidência acumulada no século XX, entretanto,
sugere que tipos revolucionários de ação de segunda ordem (ou sobre o quadro
institucional que emoldura as ações) sofrem da mesma forma de cegueira e de
deficiência que se considera que caracterizem a ação de primeira ordem.
260
(nominalmente, os cidadãos), assim como suas formas de ação (nominalmente, a
civilidade), que podem vir a ser capazes de transformar as forças de mudança que
inevitavelmente confrontaremos em resultados toleráveis e até mesmo desejáveis.
Partindo da discussão da civilidade, finalmente, especificarei seis falácias que
devem ser evitadas de forma que alcancemos uma configuração de ação capaz e
adequada.
1. Democratização
Quais foram as razões que levaram tantas pessoas – tanto massas como elites – à
adoção de alguma forma de regime democrático? O que se supõe que a
democracia seja capaz de alcançar e seja “boa para”? Quatro respostas
cumulativas se apresentam. Primeiro, há o feito “liberal” dos direitos e liberdades
serem garantidos e o registro de uma linha clara de demarcação entre o que pode
ser contingente, com respeito aos resultados do processo político, os conflitos de
interesse aí contidos, e o que não pode ser objeto de tais conflitos por estar
registrado constitucionalmente. Vale a pena notar que, em uma democracia, a
maior parte das condições que são de grande interesse para os cidadãos (por
exemplo, quem pode sustentar quais opiniões ou possuir quais recursos) não é
um objeto potencial de decisão coletiva de maiorias por estar definido
constitucionalmente. Como conseqüência de que tanto os direitos quanto os
procedimentos são garantidos e supostamente implementados através da
operação diuturna do sistema judicial, as democracias dão ao conflito político um
caráter não-violento, limitado e civilizado, assim como características
incrementais às mudanças. O potencial de civilidade do regime democrático é
261
provavelmente seu atrativo mais poderoso para aqueles que são oriundos dos
horrores e terrores dos regimes predecessores.
262
supranacionais. Além disso, investidores (cujo investimento é urgentemente
necessário a novas democracias para desenvolvimento e recuperação
econômicos) preferem sempre operar sob formas democráticas que apresentem
as condições mínimas para o mando da lei, a segurança dos contratos e a
accountability das elites políticas.
2. Globalização
263
às repercussões negativas que a antecipação de qualquer “movimento errado"
pode provocar na arena internacional externa. As fronteiras, ao que parece,
perderam não apenas sua característica de limite, mas também sua característica
protetora, e portanto capacitadora de respostas independentes e autônomas. A
forma pela qual as ações de governo dos Estados nacionais são parcialmente
incapacitadas pode ser resumida através da seguinte fórmula**: dinheiro,
matemática, música, migração, força militar e meteorologia (ou clima):
=> Migração: como muitos Estados nacionais não podem proteger ou prover
condições mínimas de vida e liberdade para todo o seu povo, muitos outros
Estados recebem em sua população residente (e não têm, prática e legitimamente,
como evitar receber) números crescentes de estrangeiros, refugiados,
trabalhadores migrantes, residentes estrangeiros etc.;
264
atividades econômicas. A disponibilidade desses recursos também é sabidamente
dependente da estabilidade de um sistema imensamente complexo de interação
que pode ser perturbado, em uma escala global, de uma forma totalmente
independente de fronteiras nacionais por externalidades na produção e no
consumo.
265
ocidentais, mas a grande maioria não obterá sucesso. O resultado combinado das
duas más notícias é o seguinte: o número de proprietários de automóveis de luxo
e apartamentos com ar condicionado no que antes era o Terceiro Mundo tende a
aumentar, mas da mesma forma se eleva o número de pessoas que procuram
comida nas latas de lixo no que antes era o Primeiro Mundo.
3. Pós-modernização
Depois de ter relembrado algumas das trajetórias que têm conduzido à transição,
tanto nas comunidades políticas – a assim chamada democratização –, como nas
economias – a denominada globalização –, observemos de forma rápida a pós-
modernização como uma força promotora de transformação cultural.
266
II – INOVANDO NO DESENHO DAS RELAÇÕES ENTRE ESTADO,
SOCIEDADE E COMUNIDADES
267
Da mesma forma que fizeram os teóricos políticos do século XVII, o Estado
pode ser pensado como uma criatura construída pela razão humana, tanto em
termos da sua instituição por meio de um contrato racional como pela sua
operação diuturna “racional forma” através do governo burocrático (Weber). A
razão é a capacidade dos indivíduos para encontrar e reconhecer o que é bom
para todos. Nesse sentido, Hegel pode até equiparar o Estado à razão.
268
mesmo se eles de nenhuma forma “tenham ganho” a reivindicação para tal
assistência através de contribuições feitas por eles ou através de titulações legais a
eles orientadas por autoridades estatais. Nesse caso, o grupo decide, de acordo
com padrões e tradições, quem tem a necessidade legítima à assistência de seus
pares.
269
O problema de desenhar e defender relações Estado-sociedade, no entanto, não
está em simplesmente escolher um dos três padrões de forma simplista, mas de
se engajar, ou, na pior hipótese, tolerar um processo de desenho processual,
reajustamento e sintonização fina de uma mistura rica e adequada na qual os três
blocos da ordem social tenham papéis variáveis que se limitem entre si. A
capacidade de inventar, implementar e tolerar essas “colchas de retalho” de
ordem social impura ideológica e substancialmente, é a marca da civilidade ou do
“comportamento cìvico”, isto é, a habilidade e a vontade dos cidadãos de utilizar
deliberação aberta e pacífica, assim como métodos institucionais para enfrentar
os conflitos sociais e políticos. O comportamento cívico e os recursos políticos
garantidos pela democracia liberal nos permitem lidar com os dilemas colocados
pelo fato de que vivemos para além do tempo em que bastavam (se não apenas
aparentemente) os pronunciamentos de alguma “linha correta”, “doutrina
governante”, “melhor forma” ou, nesse particular, do “Consenso de
Washington”. O comportamento cìvico, em outras palavras, pode ser concebido
como o ponto de Arquimedes fora do centro de gravidade de qualquer dos três
paradigmas da ordem social, a partir dos quais o seu escopo respectivo pode ser
avaliado e reconfigurado.
270
A única resposta correta a uma questão como “qual é o tamanho ótimo do
governo” é: Ninguém sabe! Ou, ao invés disso, a resposta não é passìvel de ser
dada na forma de um argumento econômico e filosófico, mas somente como
resultado de uma deliberação democrática construída processualmente e bem
informada, levada a cabo no interior de e entre os atores coletivos da sociedade
civil, tanto formais como informais. Na verdade, a demonstração por métodos
acadêmicos de inconsistências e impossibilidades pode ajudar o público a fazer
escolhas mais bem informadas. Mas a resposta é, em última instância, uma
questão de “voz”, e não de “prova”, ou de alguma medida objetiva de
“racionalidade”. A relação e a demarcação da linha entre mercado, Estado e
comunidade é ela própria uma questão de política (16). Como conseqüência,
quase qualquer resposta à questão do papel adequado e do desejável tamanho
relativo dos princípios macrossociais que organizam a economia política será
controversa e essencialmente contestada.
Pode parecer que depois da queda do tipo de socialismo de Estado que reinou no
império soviético, assim como depois do colapso da hegemonia intelectual do
keynesianismo nos anos 80, a ortodoxia do estatismo excessivo se tornou uma
aflição improvável. A queda do socialismo de Estado tornou obsoleto um
modelo de proteção estatal autoritário e dirigismo produtivista, deixando para
trás em muitos regimes pós-socialistas a busca de uma “economia de mercado
sem adjetivo". (Essa é uma receita do antigo primeiro-ministro da República
Checa, Vaclav Klaus, que propôs deslocar a especificação da economia de
mercado como “social”.)
271
Entretanto, parece muito importante manter viva na mente a diferença entre um
Estado grande (medido em termos do tamanho de seu orçamento ou do número
de seus funcionários públicos) e um Estado forte, isto é, um Estado cujas ações
de governo têm um impacto significativo no nível e na distribuição das
perspectivas de vida dos indivíduos na sociedade civil (17). Pode mesmo
acontecer que um Estado seja ao mesmo tempo superdimensionado e pouco
eficiente, e que os bens por ele gerados não sejam na verdade bens públicos, mas
bens de certas categorias (ou “clubes”) apropriados pelo que tem sido chamado
de “burguesia estatal”, que pode existir tanto em versões militares como civis.
Entretanto, Estados grandes, freqüentemente, também tentam ser Estados
“fortes”. Em vez de servir à sociedade civil de alguma forma tangìvel, eles
exercitam controle oligárquico sobre atores na sociedade civil. Ainda está aberto
o debate no interior das sociedades avançadas com respeito a que esferas da vida
e da provisão coletiva deveriam ser adotadas ou mantidas pelas autoridades
estatais, e quais deveriam ser deixadas de fora ou transferidas para mercados e
comunidades.
272
desconsideradas indevidamente por aqueles (número que encolhe rapidamente)
que ainda acreditam que maiores gastos públicos e mais empregos públicos são
necessários para, e realmente resultarão em, uma melhor produção e uma
distribuição mais eqüitativa dos bens públicos.
De forma similar, mercados para ativos financeiros, bens e serviços não podem
se constituir nem mesmo continuar existindo quando já em funcionamento, sem
a contínua geração e ajustamento de normas de lei civil, assim como a garantia
organizada pelo Estado da aplicação dessas normas através de um sistema de
tribunais nos limites da lei, para não nos referirmos às políticas industriais
direcionadas para promover o crescimento em setores particulares da indústria.
Muito disso se aplica à proteção da “vida” que os Estados têm que providenciar
através da defesa militar, além de prover serviços básicos de saúde e proteção dos
cidadãos da violência “civil” cometida contra eles por outros cidadãos (e, mais
tarde, pelos próprios agentes estatais). Com o objetivo de levar a cabo essas
funções que são essenciais para o Estado, os Estados devem ser capazes de
extrair os recursos necessários para a performance dessas funções através de um
regime de impostos que seja, e deve ser, ao mesmo tempo justo e efetivo.
273
da hipertrofia estatal, embora os liberais de mercado de forma rotineira enfatizem
a segunda. Colocando de outra forma, talvez estejamos sofrendo dos males
combinados de um Estado superdimensionado com uma performance abaixo da
necessária.
274
eficiência. Esse argumento é virtualmente tão poderoso quanto o argumento de
que cerejeiras são preferíveis a todas as outras árvores porque elas dão cerejas.
Além disso, supõe-se que mercados sejam “livres”, mas as mesmas condições que
fazem do mercado especial do trabalho um arranjo social tolerável (22) – o
estatuto de direitos dos trabalhadores e a regulação protetora do emprego
(sumariamente referida como “desmercantilização”) – impedem a abertura
completa do mercado de trabalho e excluem números crescentes de potenciais
trabalhadores da possibilidade de se tornarem verdadeiramente trabalhadores,
particularmente depois que o nível de eficiência da produção foi elevado através
da economia do trabalho possibilitada pelo avanço técnico. Essa exclusão
infligida pelo mercado ao mercado de trabalho, entretanto, é, em si, uma das mais
fortes causas conhecidas do declínio na satisfação da vida e da felicidade sentida
pelas pessoas.
275
fugir da apreciação da legitimidade de uma competição de segunda ordem entre o
mercado e outros métodos de gerar e distribuir itens de valor.
276
4. A falácia de uma limitação excessiva das forças de mercado
Uma outra dimensão positiva dos mercados está em que eles favorecem o
aprendizado. Já se afirmou que os mercados, através da imposição contínua de
sanções positivas e negativas sobre os participantes das transações, fazem as
pessoas mais inteligentes do que elas seriam fora do contexto do mercado. Mas
essa proposição deve ser qualificada, pois se aplica somente se as recompensas
positivas e negativas vêm na forma de incrementos ou perdas relativamente
moderados. Ao contrário, se as recompensas mudam aos saltos, as pessoas param
de aprender e começam a confundir o mercado com uma loteria (25) (no caso
dos grandes ganhos que não podem ser explicados em termos do
comportamento individual) ou respondem de forma fatalista ou em pânico, no
caso de grandes perdas, já que as proporções desastrosas de mudança excedem a
capacidade individual para ajustamento inteligente (26). Finalmente, o mercado
tem um poderoso potencial libertador, já que ele permite que o possuidor de
277
ativos mercantilizáveis escape ao controle tanto das comunidades como de
burocracias estatais (27). Na medida em que se pode efetivamente demonstrar
que o mercado tem realmente potencial para redimir o espírito de interação
pacífica e civilizada, de responsabilidade, de ajustamento inteligente e de
liberação do controle do autoritarismo e dos poderes paternalistas, eles
certamente não podem ser desconsiderados como blocos essenciais para a
construção da estrutura institucional da vida social.
278
diferença tende a ser exclusivista, antiigualitária e notoriamente difícil de
reconciliar com os princípios cívicos da neutralidade e da tolerância. Mesmo que
não seja abertamente exclusivista, a ênfase em características e solidariedade de
grupo viola os padrões igualitários pelo simples fato de que nem todos fazem
verdadeiramente parte ou se identificam com o grupo definido daquela forma.
Mesmo aqueles que compartilham as características imputadas aos que
supostamente fazem parte do “grupo” podem optar por “pular fora” de sua rede
de solidariedade por causa dos padrões freqüentemente autoritários e
paternalistas que esses grupos quase tribais tendem a desenvolver.
Mas aqui, novamente, esse é apenas um lado do debate. Do outro lado se afirma,
com alguma razão, que as comunidades e identidades nas quais somos “nascidos”
são as mais poderosas fontes geradoras de compromissos e capacidades morais.
Comunidades como famílias, associações religiosas ou nações étnicas oferecem
aos indivíduos uma sensação de sentido e missão, assim como sentimentos de
orgulho, confiança, amor, culpa, honra, compromisso etc. que talvez somente
possam ser alcançados em comunidades. Estas representam um papel importante
e único na reprodução das tradições culturais e valores étnicos. Somente
comunidades podem gerar, ou pelo menos assim afirma o argumento
comunitário, indivíduos fortes que desejam ser considerados responsáveis por
seus atos e pensamentos, em oposição a oportunistas sem firmeza de caráter. E
essa não é a única contribuição que se presume que as comunidades possam dar
para resolver problemas da ordem social e de integração social. Elas também
merecem reconhecimento e proteção através de políticas de Estado porque,
quase como caldo genético da cultura de uma sociedade, não podem ser
279
manufaturados ou reproduzidos artificialmente. A necessidade de proteger as
culturas comunitárias se aplica especificamente, ou ao menos é isso que se afirma,
quando elas são vistas como expostas ao risco de extinção pelo mercado ou pelas
forças políticas da modernização.
IV – CONCLUSÃO
As três antinomias da ordem social e política que discutimos não podem ser
resolvidas pelos esquemas grandiosos que filósofos ou ideólogos políticos podem
produzir. O que nos sobrou foi um repertório de argumentos e observações
complementares, em parte contraditórios, que podem ser trazidos à baila sob a
crítica e a reconstrução dos arranjos institucionais existentes. Isso porque não
existem instituições ou relações Estado-sociedade somente racionais. Ao
contrário, essas antinomias e rivalidades ideológicas devem (e eu acredito que
possam) ser resolvidas através de uma cultura de civilidade que se desdobre entre
os pólos de nosso triângulo conceitual de soluções “puras", em grande parte
obsoletas.
280
necessidade de autolimitação dos proponentes de cada uma delas se torna
evidente. Formas institucionais de ação pública recentes enfatizam as limitações
necessárias entre as três forças da construção institucional, mesmo que apenas
através da negação. Por exemplo, falamos de organizações “não-governamentais”
ou do setor “sem fins lucrativos”. Por razões tão boas quanto essas, devìamos
nos referir a organizações “não-sectárias”, isto é, tipos de comunidades não-
exclusivistas ou não-discriminatórias. Essas três negações combinadas são, ou ao
menos assim parece, uma aproximação conceitual muito boa da idéia de
associativismo cívico e de capital social que capacita as pessoas a se engajarem em
práticas associativas.
O uso cívico do capital social e das práticas associativas nas quais ele se manifesta
pode estar fadado a ser um caminho harmonioso e idílico para se escapar ao
dilema da ordem social. Defensores de tais práticas com freqüência parecem
ignorar ou diminuir as realidades do poder social e da impotência. Categorias de
atores sociais podem ter interesse racional na disseminação dos discursos
hegemônicos que favorecem as versões de ordem social centradas na
comunidade, no Estado ou baseadas no mercado. Os cientistas sociais não
compreendem ao certo quais estratégias, condições e percepções orientam esses
discursos hegemônicos que realmente conseguem privilegiar um modelo de
ordem social em prejuízo de suas alternativas desacreditadas efetivamente. Nós
também não entendemos as transformações, às vezes abruptas, que dão origem a
novos discursos hegemônicos, como o da ortodoxia do mercado livre, e à rápida
desmobilização de modelos de ordem social institucionalizados previamente.
Tudo o que podemos talvez dizer é que as lutas de classe semânticas que levam à
disseminação e à consolidação dos quadros cognitivos hegemônicos e intuições
morais estão sujeitas, assim como seus resultados, à formação de julgamentos e
ao confronto autônomo de padrões de avaliação e experiência que podem se
originar nas associações cívicas. Nesse sentido, o capital social não é neutro com
respeito ao poder, mas a própria essência da capacidade da sociedade civil é
desafiar e limitar o seu alcance.
281
outros cidadãos anônimos (assim como às autoridades políticas que, em última
instância, são investidas pelos cidadãos do poder polìtico), à prática da “arte da
associação” (34) e a estarem atentos aos problemas e às questões públicas (em
oposição às questões estreitas circunscritas a seus próprios grupos). Instituições
de governo justas e transparentes, a prosperidade que mercados cuidadosamente
regulados podem gerar e a vida das comunidades restringida pelo princípio da
tolerância podem e devem, todos, contribuir para a (assim como se retomarem
beneficiários da) formação e acumulação de capital social no interior da
sociedade civil. As forças associativas são mais capazes de definir e redefinir de
forma constante a “mistura correta" de padrões institucionais do que qualquer
autoproclamado especialista ou protagonista intelectual de uma das doutrinas
“puras” da ordem social”. (Tradução: Eduardo César Marques).
* Neste e em outros momentos do texto o autor utiliza a palavra inglesa “accountability”, que
não apresenta tradução direta na língua portuguesa. Trata-se de uma característica do sistema
político que implica transparência dos atos dos governantes e capacidade de sanção destes
pelos governados, que têm os instrumentos para acompanhar o comportamento dos primeiros
e responsabilizá-los por seus atos. (N. T.)
** No original em inglês o autor denomina o conjunto de fatores como a fórmula dos seis M,
referindo-se à letra inicial das seis palavras. Na tradução para a língua portuguesa, a
denominação da “fórmula” perdeu o sentido e foi retirada.
*** A “regra de Tina” designa a idéia veiculada de forma freqüente, recentemente, de que não
há alternativas para a atual situação internacional globalizada e para o receituário neoliberal de
ajuste, A palavra Tina se origina das iniciais da frase inglesa “There Is No Alternative”;
literalmente: "Não há alternativa”.
(1) Para a realização deste artigo, o autor se beneficiou de comentários úteis feitos por David
Abraham, John Ballard, Robert E. Godin, Stephen Holmes e Osvaldo Sunkel.
(2) Em vez das forças desejáveis e diretas descritas pela “mão invisìvel” de Adam Smith!
(4) Conferir o titulo revelador da coletânea organizada por Barry & Hardin (1982).
(5) A escola “estruturalista” dos teóricos da democracia costumava sustentar que uma
economia avançada seria um determinante ou um pré-requisito para a democracia, e que a
democracia iria aumentar da mesma forma o potencial para crescimento e prosperidade.
Nenhum dos lados desse modelo de feedback é apoiado pela maior parte da evidência histórica
recente.
282
(6) Ver Beetham (1994).
(9) Como alguns autores têm afirmado, isso tem ocorrido até o limite de tornar a democracia
inútil. Ver Guéhenno (1993).
(10) Qualquer que seja o critério, de Katanga (província do Congo rica em minerais) no inicio
dos anos 60, ao crescimento das demandas catarás por independência nos anos 80, passando
pela independência do Estados Bálticos, assim como pela Croácia e pela Eslovênia no período
pós-soviético no início dos anos 90, foram sempre as regiões subnacionais mais ricas dos
Estados preexistentes que tiveram motivos fortes para se retirar das unidades anteriores.
(13) Ver Etzioni (1961) para uma conceitualização similar dos modos de coordenação através
de normas sociais, poder de coerção e incentivos materiais. Ver também Schuppert (1997)
(15) Os casos clássicos dessa superposição e deslocamento mútuo são, de um lado, o "Estado
dependente" cuias capacidades regulatórias e de governo são reduzidas por mercados
monetários nacionais e internacionais e pelas decisões de investidores e, de outro, a economia
“super-regulada”. Ver também a noção de “depleção da herança moral” pela modernização
política e econômica em Hirsch (1976).
(18) Por exemplo, pode ser facilmente demonstrado que o sistema de educação terciária na
Alemanha, um sistema quase totalmente estatal, serve à classe média alta profissional e seus
filhos muito melhor do que a qualquer outro estrato social da sociedade alemã. Ao contrário, o
sistema de universidades privadas poderia ser facilmente regulado em formas que dessem
maior peso a considerações de igualdade social.
283
(23) Há também, é verdade, o paradoxo reverso da “armadilha do alto nìvel”, como os
“grandes” Estados do Bem-Estar (como o da Holanda) impedindo revisões que signifiquem
reduções e apresentando grande inércia.
(25) Essa visão de como os mercados operam pode ser encontrada em grande escala nas
economias pós-socialistas com sua rápida e notável explosão de “novos ricos‟.
(26) Isso é bem ilustrado por uma história que se contava na Polônia no contexto da transição
econômica. Suponhamos que o preço do carvão dobre durante um inverno rigoroso. As
pessoas iriam economizar em aquecimento e trabalhar mais (o que já em si as aquece), de
forma a ganhar o adicional necessário de renda para comprar carvão. Agora, suponhamos que
o preço do carvão quintuplique. Qual seria então a resposta? As pessoas desistiriam e
simplesmente permaneceriam na cama.
(27) É essa experiência de escapar ao controle dos detentores do poder que os jovens que
entram no mercado de trabalho experimentam pela primeira vez “ganhando seu próprio
dinheiro” e, conseqüentemente, escapando ao controle dos pais. Também é o que clientes de
empresas de telefonia recentemente privatizadas experimentam quando lhes é dada a chance de
organizar seu próprio pacote, em vez de serem forçados a pagar pelo que a antiga monopolista
pública oferecia como único pacote existente. Devemos notar, entretanto, que a experiência de
tais sensações entusiásticas de libertação pode ser mais do que um fenômeno transitório
associado ao estado estático das rotinas do mercado, No entanto, o desejo tanto dos Estados
como das comunidades de estender o controle autoritário ou paternalista sobre indivíduos
pode apenas ser impedido mantendo permanentemente abertas as opções de saída do
mercado.
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286
Epílogo | Localização e desenvolvimento
287
Globalização, glocalização, localização
e desenvolvimento humano e social sustentável
A volta ao local, em uma época de globalização, está se afirmando como uma
alternativa de indução ao desenvolvimento que promete transformar milenares
relações políticas e sociais de dominação.
Há quem, cavando ainda mais fundo, tente mostrar que a economia ortodoxa é
uma economia que só vale para o modelo de crescimento, podendo haver,
entretanto, um modelo estacionário (de „crescimento zero‟), supostamente – sob
certas condições ambientais latu sensu – mais sustentável para as sociedades
humanas.
Por último, nos anos 90, apareceram aqueles que, como Brian Arthur (1996),
tomando a sociedade (e a economia) como um sistema complexo, questionam
288
dogmas universalmente aceitos, como a famosa Lei dos Retornos Decrescentes
de Turgot (1767), mostrando que tais retornos podem sim ser crescentes e, muito
além disso, abrindo um novo referencial conceitual e introduzindo novos
instrumentos analíticos para estudar as múltiplas interações (e retroalimentações)
que se dão nesse tipo de sistema (4).
Só para dar um exemplo, estima-se que entre 500 e 1.500 d. C, o PIB do mundo
cresceu em média apenas 0,1% ao ano, se é que tanto. A coisa só começou a
exigir explicação no século 18, quando a Grã-Bretanha passou a crescer a taxas,
dramáticas, de 1% ao ano (6). Foram pessoas fascinadas com esse fenômeno –
como Adam Smith (1776) e Thomas Malthus (1798), entre tantas outras – que
revolveram inventar uma ciência para explicá-lo. Por isso, a ciência econômica
vigorante é uma ciência do crescimento. Surgiu para explicar uma coisa e, a partir
289
daí, se pôs a explicar todas as coisas através de uma coisa (o crescimento). E por
isso é legítima a dúvida de Melvin Reder (1998), da Universidade de Chicago, de
se a economia é realmente uma ciência ou uma “ideologia disfarçada” (7).
Assim, existem muitas teses que são dadas como certas pelo pensamento
econômico, mas que não estão “provadas” por critérios cientìficos e se
assemelham mais a crenças. Vejamos alguns exemplos.
Um segundo exemplo pode ser dado pela crença de que “a mão invisìvel do
mercado” possa promover mais equidade em sociedades onde todas as (ou várias
das) variáveis do desenvolvimento (como o conhecimento e o poder ou
empoderamento, para além da renda e da riqueza) estão concentradas.
290
sociedades cooperativas. Ou seja, a economia pode – e deve – ser “de mercado”,
mas a sociedade não.
291
Desenvolvimento humano não é a mesma coisa que
desenvolvimento social
Absorver a temática do desenvolvimento humano não foi tão difícil assim para
uma parte dos economistas. Afinal, o fator humano pode sempre ser visto como
um fator individual, pilar sobre o qual se assenta toda a construção econômica
ortodoxa: são indivíduos que, agindo a partir do cálculo racional de seus
interesses egoístas, ao fim e ao cabo constituem a sociedade. Portanto, de um ou
outro modo, são os (ou alguns dos) indivíduos que, ao se desenvolverem (no
caso, ao prosperarem economicamente em seus empreendimentos – como
donos, sócios, acionistas ou empregados – ou ao auferirem marginalmente os
resultados do crescimento geral da economia) desenvolvem as nações e, ao
mesmo tempo, se desenvolvem a si próprios em termos humanos (aumentando
seus níveis de renda, de escolaridade, de saúde, de expectativa de vida e de outros
fatores que porventura se queira introduzir na composição do chamado “capital
humano”).
Todavia, absorver a temática do desenvolvimento social não está sendo tão fácil,
na medida em que a compreensão de que “o comportamento do sistema pode
ser bem diferente daquilo que é possível prever a partir da extrapolação do
modelo de comportamento dos indivìduos” exige uma certa superação da
abordagem mecanicista que ainda predomina entre os economistas e em todos
aqueles cuja consciência foi colonizada pela sua visão de sociedade.
292
elementos humanos (indivíduos) co-presentes sobre um território por longo
tempo. Não percebem que o conceito de „social‟ se aplica a um sistema complexo
(a sociedade), que não significa apenas a reunião ou a soma dos indivíduos e cujas
funções (que explicam o chamado comportamento social) não podem ser
derivadas daquelas que são desempenhadas pelos indivíduos.
293
valores ótimos) para que o efeito de conjunto possa ser a capacidade de
conservar a adaptação.
294
nível sub-nacional, em pequenas localidades pelas quais não trafegam os grandes
fluxos de recursos do mundo econômico. Não é a toa que essa gente ande tão
nervosa nos últimos anos, ao constatar que o processo de globalização retira
também boa parte da autonomia macroeconômica do Estado-nação, que, em
alguns casos, vira uma localidade tão periférica no mundo econômico global
quanto os pequenos municípios do interior que sempre desprezaram.
295
é ele que determina o comportamento das demais variáveis do desenvolvimento
(e isso quando se admite que existam outras variáveis na equação do
desenvolvimento, uma vez que, em geral, todos os demais fatores, além do
capital físico e financeiro, são tratados como externalidades e, quando são assim
tratados, são considerados também como não-centralidades). Muitas pessoas que
pensam dessa maneira em geral assumem o desenvolvimento local quando se
convencem de que isso será útil para gerar trabalho e renda.
296
Para a visão sistêmica não há, portanto, nenhuma variável a ser maximizada
isoladamente e nem há qualquer variável que possa ser responsabilizada por
produzir o efeito de conjunto chamado desenvolvimento. Em determinada
localidade o valor da variável „capital humano‟ pode ser muito maior do que em
outra e isso não significa que tal localidade é mais desenvolvida do que a outra.
Valores menores de „capital humano‟ podem ser “compensados” por valores
maiores de „capital social‟. Se não fosse assim o Brasil seria um país muito menos
desenvolvido do que a Argentina. Ou valores menores do PIB podem ser
“compensados” por altos valores do „capital humano‟. Se não fosse assim a
Islândia ou a Suiça seriam países muito menos desenvolvidos do que os Estados
Unidos. As pessoas que não vêem isso em geral confundem desenvolvimento
com pujança econômica ou, às vezes, infelizmente, com capacidade político-
militar de se impor ao mundo, unilateralmente, a partir de posições e argumentos
de força. Ora, estamos falando de desenvolvimento ou de capacidade de dominar
e de mandar nos outros? Se ambas são a mesma coisa, ou se uma leva
inexoravelmente à outra, então se poderia medir o grau de desenvolvimento de
uma localidade pelo número de ogivas nucleares e mísseis balísticos operacionais
que possui em estoque e não deveríamos ficar perdendo tempo e quebrando a
cabeça com a elaboração de índices humanos, sociais ou ambientais de
desenvolvimento. Mas não me consta que apesar de seu número de ogivas e
mísseis intercontinentais alguém em sã consciência prefira viver na Rússia do que
no Canadá baseado no cálculo de que lá, na primeira, exista mais
desenvolvimento.
297
Para compreender esse ponto de vista é preciso ver as relações intrínsecas entre
localização e desenvolvimento.
7 – Quanto mais tramada por dentro (por redes sociais) for uma localidade e
quanto mais conectada para fora ela estiver, maior será o seu „poder‟ de gerar
padrões replicáveis de comportamento.
8 – Quanto mais tramada por dentro (por redes sociais) é uma localidade, menor
ela é (adquirindo o status de „mundo pequeno‟).
298
9 – Quanto menor o mundo (no sentido de mais tramado por redes sociais ou da
existência de mais caminhos entre seus nodos) mais potente socialmente ele é
(small is powerful).
11 – Quanto mais „poder social‟ tem uma localidade, mais capacidade ela tem de
usinar unidades culturais imitáveis (softwares replicáveis, capazes de “rodar” em
outros hardwares, ou seja) em outras localidades.
12 – É o sistema como um todo (a rede social) que confere „poder social‟ ao seus
componentes (humanos).
15 – Comunidades são sociedades com mais „poder social‟ para usinar padrões de
comportamento (programas).
18 – Quanto mais conectada para fora estiver uma comunidade mais condições
ela terá de exportar padrões de comportamento (programas) que serão adotados,
por imitação, por outros coletivos humanos.
299
21 – Quanto mais localizado estiver um mundo mais apto a experimentar o
desenvolvimento ele estará.
300
processo em curso de globalização, são comunidades de projeto, ou seja, futuros
desejados, projetados e antecipados em experiências concretas por coletivos
humanos estáveis.
Mas assim como, em geral, economistas e policymakers ainda não se deram conta
das relações entre desenvolvimento e democracia, nem mesmo os teóricos do
capital social parecem ter se dado conta das relações entre a produção de capital
social e o processo de democratização, ou melhor, de democratização da
democracia.
301
A relação entre revolução do local e radicalização ou
democratização da democracia
Do ponto de vista da democracia realmente existente, o relevante é que os
modos de regulação de conflitos sejam não-violentos. Do ponto de vista da
radicalização ou da democratização da democracia, não basta que esses modos
sejam não-violentos, porquanto é necessário que eles sejam cada vez menos
adversariais e cada vez mais cooperativos (“pazeantes” ou construtores de paz).
Ou seja, enquanto a democracia que temos (representativa | política | formal) se
conforma com a regulação majoritária da “inimizade polìtica” (pela via da
prevalência da vontade da maioria em eleições), uma democracia em processo de
radicalização (representativa participativa | política social | formal
substancial) almeja transformar a “inimizade polìtica” em “amizade polìtica”.
302
incremento só pode se dar no local – incremento que constitui, aliás, o próprio
objetivo da revolução do local.
É uma revolução com significado global que, entretanto (ou por isso mesmo), só
pode ser feita no âmbito local. Atinge a todos na medida em que é realizada em
um; ou melhor, estabelece que o caminho para a transformação do todo é aquele
que passa pela transformação de um. Um a um.
Há quem ache que isso não é possível, sobretudo em uma época de globalização
que dissolve, dispersa, fragmenta... Mas é exatamente o contrário. Isso só é
possível em uma época de globalização. É preciso dissolver mais, dispersar mais,
fragmentar mais. Por quê? Porque é preciso globalizar mais para localizar mais.
Por isso, estou cada vez mais convencido de que grande parte de nossos
problemas não decorre de excesso e sim de falta de globalização, no sentido em
que o termo é empregado aqui, ou seja, como um dos aspectos de um processo
de mudança social global que implica também localização. Neste sentido, o que
chamamos de dominação só ocorre por insuficiência de glocalização; ou melhor:
existe dominação na medida inversa da existência de globalização-e-localização,
uma vez que não se conhece na história nenhum sistema ou prática de
dominação que tenham conseguido se implantar na ausência de padrões
303
hierárquicos de organização (e de modos autocráticos de regulação, que parecem
lhes ser próprios).
E, por isso, faz sentido a expressão „revolução do local‟. A volta ao local, em uma
época de globalização, está se afirmando como uma alternativa de
desenvolvimento que promete transformar seculares, melhor dizendo, milenares
relações políticas e sociais de dominação. Ora, se isso não é uma revolução, não
sei o que poderia ser assim chamado.
De uns anos para cá muitas pessoas e organizações vêm tentando estimular essa
revolução por meio de estratégias de investimento em capital social. Mas só
muito recentemente estão sendo elaborados argumentos teóricos mais
consistentes e reflexões mais sistematizadas sobre as milhares de experiência
práticas que estão em curso, para tentar mostrar o que está “por trás” de tudo
isso, ou seja, para explicitar uma “filosofia” capaz de justificar o que estamos
chamando aqui de revolução do local.
304
Portanto, para uma estratégia de investimento em capital social, induzir o
desenvolvimento humano e social sustentável como forma de estimular a
revolução do local é manter a esperança centrada no empoderamento molecular
das populações, para que elas próprias se emancipem.
Em segundo lugar é preciso ver que não é necessário (nem seria possìvel) “fazer”
a revolução do local no (espaço abstrato do) mundo. A revolução do local (como
o nome, aliás, está dizendo) é “feita” no local.
305
seja, não é necessário engajar a população toda de uma localidade, nem
conquistar a maioria dessa população.
Isso tem a ver com o que chamamos de „poder social‟, com o „tamanho de
mundo‟ de uma localidade, com o grau de “tramatura” social, com a capacidade
de mediar conflitos de modo democrático-participativo, com os níveis de
confiança e cooperação existentes e, portanto, com o “estoque” ou fluxo
disponível de capital social.
Entretanto, uma nova disciplina científica dedicada a análise das redes sociais
vem avançando bastante ultimamente. Não é improvável que, daqui a algum
tempo, possamos justificar o insight de Jane Jacobs (1961) (12), de sorte a
estabelecer uma relação “forte” entre „tamanho de mundo‟ (ou „extensão
característica de caminho‟ ou „comprimento de corrente‟) e capacidade de
replicação de programas que instruem a construção de comportamentos, dentro
de uma mesma localidade e entre localidades diferentes conectadas em rede.
Como comentei em meu livro “Capital Social” (Franco, 2001), “Jacobs estava
preocupada com os fatores que tornam "viva" uma localidade, que fazem com
que ela se torne aquilo que chamava de uma "Entidade real", com a teia de
relações tramada por pessoas humanas reais, que vivem naquela localidade: ela
escreveu que “as inter-relações que permitem o funcionamento de um distrito
306
como uma Entidade não são nem vagas nem misteriosas. Consistem em
relacionamentos vivos entre pessoas específicas, muitas delas sem nada em
comum a não ser o fato de utilizarem o mesmo espaço geográfico... São as
relações ativas entre pessoas, geralmente líderes, que ampliam sua vida pública
local para além da vizinhança e de organizações ou instituições específicas e
proporcionam relações com pessoas cujas raízes e vivências encontram-se, por
assim dizer, em freguesias inteiramente diferentes” (13).
Jane Jacobs está tratando de algo muito mais profundo... Ela investiga a
formação do "ser social", que chama de "Entidade real" (com 'E' maiúsculo): "É
necessário um número surpreendentemente baixo de pessoas que estabeleçam
ligação, em comparação com a população total, para consolidar o distrito como
uma Entidade real. Bastam cerca de cem pessoas em uma população mil vezes
maior. Mas essas pessoas precisam dispor de tempo para descobrir umas às
outras, para investir em colaboração proveitosa – e também para criar raízes nos
diversos bairros menores locais ou de interesse específico" (14) (Jacobs, 1961:
147).
307
“para fora” estiver uma localidade, mais chances teremos de que o processo
venha a acontecer.
308
poderes de Estado não ajuda a transformação da sociedade – se, digo: se – não
procurarmos transformar também o padrão de relação entre Estado e sociedade,
começando por zelar pela qualidade da “atmosfera democrática” (para que as
pessoas possam ter “ar” para respirar e, assim, possam inventar e experimentar
coisas diferentes daquelas que imaginamos, nós, os que queremos conduzi-las) e
por estabelecer procedimentos democráticos que evitem (ou, pelo menos,
atenuem) o intervencionismo, a centralização, o paternalismo e o clientelismo. E,
sobretudo, se nossa atuação não for inibidora das iniciativas locais. Já seria muito
se os ocupantes do Estado se esforçassem por não fazer essas coisas.
O que não é tão óbvio assim é que quanto mais bilhões você injetar a partir do
Estado, mais capital social exterminará se – digo: se – os desenhos das políticas
não forem alterados; ou seja, se o padrão de relação entre Estado e sociedade não
for modificado. Mas vá-se lá dizer-lhes!
Ocorre que desenvolvimento parece não ter mesmo muita coisa a ver com o que
pensa boa parte dos economistas e dos policymakers. Um pequeno Estado árabe
produtor de petróleo, com altíssimo PIB per capita, poderá promover a educação
superior de todos os habitantes e médico em casa para todos os habitantes e
residências de luxo para todos os habitantes etc. etc. E poderá mandar todos os
caras estudar em Oxford. Pergunto: é isso? Esse hipotético Estado alcançou um
patamar, desejável por nós, de desenvolvimento?
309
humanos. Porque, ao contrário do que tanto se repete, não se trata apenas de
melhorar condições de vida e sim de melhorar também as condições de
convivência social.
310
O tempo, aliás, é função da taxa de crescimento ou da velocidade de propagação
das mudanças moleculares. Se há mudança, o tempo está correndo. Quanto mais
mudança houver, mais tempo estará sendo ganho a favor da revolução do local.
Com efeito, em um universo finito, tramado por múltiplas redes, local pode
assumir características tão holográficas que...
NOTAS E REFERÊNCIAS
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sustentável. São Paulo: Cultriz/Amana-Key, 2003.
(2) Idem.
(3) Ormerod, Paul (1994). A morte da economia. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
(4) Arthur, W. Brian (1996). “Increasing returns and the new world of business”, Harvard
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(6) Idem.
(7) Cit. por Henderson (1999). Cf. Reder, M. (1999). Economia: a cultura de uma ciência
controversa. Chicago: Chicago University Press, 1999.
(9) Franco, Augusto (2002). Pobreza & Desenvolvimento Local. Brasília: AED, 2002.
311
(10) Comunicação pessoal ao autor.
(11) Tocqueville, Alexis (1835-1840). A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
(12) Jacobs, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
(13) Jacobs; op. cit. em Franco, Augusto (2001). Capital Social. Brasília: Instituto de Política /
Millennium, 2001.
(16) Hong, Theodore (2001). “Desempenho” in Oram, Andy (org.). Peer-to-peer: o poder
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312