TQ 2 (2002) 37-55
Conflito e paz na Teologia da
Libertacgao: uma leitura de Gustavo
Gutiérrez
Joxo Cartos ALmeiDA*
O né da questao
4 foram feitos muitos balancos sobre a produgdo teolégica latino-
americana destes tiltimos 30 anos'. Sem divida que se trata de um
periodo extremamente fecundo e original. Certamente 0 Concilio
Vaticano Il, traduzido para a “Igreja dos Pobres” em Medellin, foi
* Mestre em teologia pelo CES-ISI de Belo Horizonte. Doutorando em Teologia no
Centro Universitario Assuncao (UniFAD, e em Educagao, na USP.
Professor de teologia sistematica e liturgia na Faculdade Dehoniana. Tem ampla
presenga nos meios de comunicagio, onde 6 conhecido como Pe. Joaozinho s¢j
E sacerdote da Congregacio dos Padres do Coracdo de Jesus (dehonianos).
1. Vale a pena revisar a literatura em torno do Congresso da SOTER ocorrido em
Belo Horizonte, no ano 2000, com a presenca de significativos tedlogos latino-
americanos. Este encontro foi preparado por um texto base: SUSIN, Luiz C.
O mar se abriu - Trinta anos de teologia na América Latina, Sao Paulo: SOTER/
Loyola, 2000. Ali podem ser lidos autores como Clodovis Boff, Hugo Assmann,
37A paz é possivel?
um dos grandes responsaveis por toda esta efervescéncia eclesial e teo-
logica, Nao pretendemos, nem é posstvel, fazer uma anélise panoramica
deste vasto universo de autores ¢ livros. Queremos tao somente focar
nossa atengéo em uma das linhas de pensamento que se destacou em.
nosso continente nestes tiltimos anos: a Teologia da Libertacéo. Aiguém
ja disse que na verdade existem teologias da libertacao. Por isso ndo nos
parece exato falar em nome de um slogam que pode significar tudo e ao
mesmo tempo nada. Para evitar este equivoco, escolhemos um dos autores
mais relevantes deste pensamento: Gustavo Gutiérrez.
A questéo que queremos aprofundar € como este autor trabalha
os conceitos de conflito e de paz. O senso comum dificilmente teré
sensibilidade suficiente para fazer criticas a Mariologia ou a Eclesiologia
de autores como Leonardo Boff*, Certamente também nao teré restri-
Ges ao conceito de “historia” em Gutiérrez. Mas é extremamente
sensfvel aos conceitos de conflito-paz. Nas rodas de conversa, nor-
malmente a critica popular a Teologia da Libertacdo se restringe a
sensacao de que ela estimula a “luta de classes”. Vivemos um tempo,
no Brasil, em que os partidos politicos que sempre se caracterizaram
por um discurso mais combative oPTam por um amaciamento. Vol-
tam a cena palavras como “negociacdo”, “harmonia”, “solidariedade”.
Prega-se um grande “pacto social”, que envolva lobos e cordeiros,
Joao Batista Libanio, Johann Baptist Metz, jon Sobrino, Jorge Pixley, Carlos
Palacio, José Comblin, José Gonzalez Faus, Juan Catlos Scannone, Jtirgen
Molumann, Leonardo Boff, Pablo Richard, Sergio Silva Gatica, Christian Duquoc,
Diego Inarrazaval, O resultado do Congresso apareceu publicado em: SUSIN,
Luiz C. A Sara Arderite — Teologia na América Latina: Prospectivas, Sao Paulo:
Paulinas/SOTER, 2000, Vale a pena ler ainda o resultado de um encontro de
revisio teolégica promovido pelo CELAM, em 1996, que colocow frente a
frente Gustavo Gutiérrez e D, Joseph Ratzinger: CELAM, O futuro da reflexao
teologica na América Latina, Sao Paulo: Loyola, 1988.
2. Sao conhecides os “ensaios teoldgicos” de L. Bof que poderiam identificar
uma relagdo de hipéstase entre Maria e 0 Espirito Santo, Outra tese questio-
nada é sua leitura da comunhao trinitéria como matriz eclesiologica: segundo
alguns, L. Boff transpde muito rapidamente a koinonia trinitaria para o plano
social-comunitério, Além disso, a hierarquia poderia ser considerada uma
espécie de subordinacionismo prético.
38Conflitos e paz na Teologia da Libertacdo
ticos e pobres, empresdrios e trabalhadores. Alguns movimentos
sociais, como o MST (Movimento dos Sem Terra), assistem a esta
mudanga escandalizados. Os lideres do MST declaradamente reco-
nhecem algumas de suas inspiracdes na teologia de autores como
Gutiérrez. Precisamos desatar este nd. Qual seria mesmo o pensa-
mento deste autor sobre 0 conflito?
Apés passarmos em revista a vida e a obra de Gutiérrez, faremos
uma anélise comparativa de dois pequenos textos do seu primeira
livro: “Teologia da Libertacdo”®. O capitulo dedicado a “Igreja, sacra-
mento da histéria” era conclufdo com um pequeno item de seis pagi-
nas que recebeu o sugestivo titulo de: “Fraternidade e luta de classes”.
Esta primeira edicéo apareceu em 1971. O que poucos sabem € que
Gutiérrez praticamente reescreveu 0 seu classico no final da década de
oitenta, Apenas recentemente esta segunda edicdo revista foi publicada
no Brasil. Mas passou praticamente despercebida. A nova edicdo traz
uma longa introducdo, muitas notas de rodapé explicativas que nao
estavam na primeira edicdo. Além disso, o autor reescreveu completa’
mente um dos itens, justamente aquele a que nos referimos acima. O
texto foi ampliado para dez paginas e preservou apenas fragmentos do
texto original. Até o titulo mudou: “Fé e conflito social”. Poderia pa-
recer ao leitor desatento apenas uma mudanca nominal: sai a
fraternidade crista € entra a fé... Sai a luta de classes e entra o contflito
social. Porém, conceitos muito profundos estéo em jogo. Faremos uma
leitura comparativa dos dois textos. Isto nos permitira ver de que
maneira o autor evolui no seu pensamento de “luta de classes” para
“conflito social”. Vejamos um pouco da vida e da obra de Gustavo
Gutiérrez para podermos situar este pequeno ¢ fundamental ponto de
sua teologia: como ser cristao em uma sociedade de conflitos?
3. Utilizamos traducdo da primeira edigdo: GUTIERREZ, G. Teologia da liberta-
cao; perspectivas, Petrpolis: Vozes, 1975. Citaremos simplesmente: Tdl. —
Texto 1. Para a segunda edicdo utilizamos: GUTIERREZ, G. Teologia da Liber-
taco; perspectivas, Sdo Paulo: Loyola, 2000. Comparamos sempre esta edicao
com o original: GUTIERREZ, G. Teoiogia de la liberacién; perspectivas, Lima:
CEP, 1996, 9* edicdo segundo a 6* edicao revisada e corrigida. Neste caso,
citaremos simplesmente: Tdl. — Texto 2
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