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1ª Edição
ISBN: 978-85-62707-79-7
ANAIS DO CONGRESSO
672 p.
Texto em Português
ISBN: 978-85-62707-79-7
900. Geografia e História
FICHA TÉCNICA
I Congresso do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Imagem NINFA/UFMG
O Borboletear do Método
Belo Horizonte, 12 a 15 de Abril de 2016
Vice-Reitora da UFMG
Sandra Regina Goulart Almeida Diagramação e arte gráfica
Gislaine Gonçalves
Diretor em exercício da FAFICH
Carlos Gabriel Kszan Pancera
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O Borboletear do Método
Belo Horizonte, 12 a 15 de Abril de 2016
ÍNDICE:
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Textos completos:
Das pathosformeln e dos tropos: TV Tropes como atlas da trasmissão e variação da cultura.
pop
Afonso Kassow Tolentino Scliar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Produção artística em Minas Gerais na primeira metade do século XVIII: gosto, território e
oficinas.
Alex Fernandes Bohrer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54
O Aleijadinho arquiteto, a igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto e outras fontes
artísticas de sua obra.
André Guilherme Dornelles Dangelo e Vanessa Borges Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . 122
Leitores não são zumbis: relações retóricas entre imagem e texto em cobertura internacional
da revista Istoé
André Melo Mendes e Mírian Sousa Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132
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Ideias políticas e estéticas em Pier Paolo Pasolini: A crise da cultura e o vazio de poder.
Cristiano Elias de Paulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222
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Ações preservacionistas do patrimônio cultural fora dos centros históricos urbanos: desafios
e perspectivas.
Jussara Duarte Soares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413
Da teoria ao objeto: arte francesa da primeira metade do século XVIII e sua relação com a
vestimenta.
Laura Ferrazza de Lima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 422
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Dois santos e uma missão: a mensagem cristã oculta na pintura do forro da nave da igreja
da Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão de Salvador identificada através das
análises artístico-histórica, iconográfica e iconológica.
Mônica Farias Menezes Vicente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 532
Anexos:
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APRESENTAÇÃO
É com imenso prazer que apresentamos o Anais do I Congresso do Núcleo Interdisciplinar de
Estudos da Imagem – NINFA – O Borboletear do Método. O evento foi o resultado do esforço
de um grupo de alunos da graduação e pós-graduação em História da UFMG que buscavam um
espaço para ampliar as discussões efetuadas durante o ano de 2015, quando foi fundado o NINFA.
Buscamos reunir importantes pesquisadores da área e os estudantes, abrindo espaço para que todos
– desde a graduação – pudessem apresentar as pesquisas sobre imagem que vem sendo efetuadas
e que tivessem a chance de enriquecer seus projetos, não somente pela influência da grande
experiência dos pesquisadores renomados, mas pela troca de ideias com demais estudantes.
A marca do I Congresso do NINFA foi a diversidade, que pode ser apreciada nos textos
presentes nesses Anais: a heterogeneidade de temas, matérias e perspectivas se alia à pluralidade
dos locais de origem dos estudiosos participantes ou das instituições de ensino a que estão filiados.
Esperamos que o encontro seja o primeiro de muitos, e que esse se torne um espaço de
aprendizagem para pesquisadores da imagem, contribuindo para a ampliação do número e da
qualidade dos estudos.
Nessa primeira edição, contamos com a presença ilustre do Professor português Dr. Luís
Alberto Casimiro, que ministrou a palestra de abertura, intitulada “Anjos e Demônios: do
imaginário pagão a iconografia cristã”, além do Minicurso “Iconografia e Iconologia: a imagem e
seu significado”. O Congresso foi composto, ainda, de três mesas redondas, reunindo professores
brasileiros de grande renome nos estudos sobre imagem: Mesa 1 – “Opulência Mineira: a arte
transcendente”, com o Professor Dr. Magno Mello (UFMG), a Professora Dra. Sabrina Mara
Sant’Anna (UFRB), o Professor Dr. Alex Bohrer (IFMG) e o Professor André Dangelo (UFMG).
A Mesa 2 – “As inúmeras possibilidades de pesquisa interdisciplinar”, com o Professor Dr.
Eduardo França Paiva (UFMG), a Professora Dra. Guiomar de Grammont (UFOP), a Professora
Dra. Monica Farias e a Professora Dra. Letícia Martins de Andrade (UFSJ). Tivemos, também, a
Mesa 3 – O borboletear do método: a imagem como fio condutor, composta por alguns
coordenadores do Grupo NINFA, que falaram sobre a criação do grupo, dos objetivos do mesmo
e sobre os resultados desse primeiro ano de discussões.
Por último, mas não menos importante, tivemos 5 Simpósios Temáticos que versavam
sobre os mais diversos assuntos. Esses foram destinados aos pesquisadores que inscreveram seus
trabalhos de pesquisa. Qual não foi nossa surpresa ao receber tantas inscrições de trabalhos tão
formidáveis! Quantidade e qualidade que nos deixaram bastante contentes e concretizaram nossa
proposta de interdisciplinaridade. Foram 4 dias de intensas discussões e de um grande
enriquecimento intelectual.
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Resumo: O conceito de Pós-Fotografia tem sido amplamente usado na última década nos meios
acadêmicos e críticos para fazer referência à quebra de um certo paradigma histórico da imagem
fotográfica e da sua ligação (de verdade e objetividade) com o referente. Reconhecendo, claro está,
uma grande virada no contexto discursivo e nos paradigmas que norteiam as práticas fotográficas
contemporâneas, a presente comunicação propõe a revisão desse conceito de Pós-Fotografia e dos
eixos sobre os quais se assentaria a ideia de um certo “fim” da fotografia e o “depois” dela que a
própria expressão pressupõe. A partir de um mergulho na história, nas práticas e nos discursos
sobre o fotográfico o presente texto propõe um deslocamento do paradigma indicial como suposta
base da objetividade e da verdade da imagem fotográfica para razões culturais e socioeconômicas.
Não seria na semiótica, e sim no encontro e “matrimonio” com outro sistema de “verdade”
estabelecido culturalmente, o jornalismo, que a fotografia teria ganho a sua suposta relação
privilegiada com a verdade e com a objetividade. Dita ligação estaria baseada então não numa teoria
do signo e sim na sua cooptação pelo “quarto poder” das industrias e monopólios da informação,
política e economicamente interessados em estabelecer a ideia de uma neutralidade e de uma
objetividade da “informação” que constitui a sua mercadoria e a sua razão de existir.
1Dentre outras presenças discursivas do discurso do pós-fotográfico podemos fazer menção do livro Post-Photography:
The Artist with a Camera de Robert Shore (Londres 2014, Laurence King Publishing) e do seminário Pós-Fotografia
ministrado pelo professor francês Philippe Dubois durante o primeiro semestre de 2015 em Belo Horizonte no
contexto das Cátedras Francesas da UFMG.
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define o signo indicial, ideia e classificação herdadas por sua vez do apogeu da semiótica
estruturalista.
Reconhecendo, claro está, uma grande virada nos paradigmas que norteiam as práticas
fotográficas contemporâneas, proponho nesta comunicação uma revisão crítica dessa doxa: o
químico não foi nunca uma transferência “direta” senão, justamente, uma tradução química. Nem
a imagem nem a objetividade se concretizaram nunca no papel, nem no negativo, senão nos regimes
de uso e circulação, isto é, na série de acordos e negociações simbólicas e culturais dentre as quais
a mais importante não seria de origem semiótica, mas sim de origem socioeconômica: o nascimento
e desenvolvimento das poderosas economias da mídia, que acharam na imagem fotográfica um
aliado insubstituível dos discursos de “objetividade” e “verdade” que constituem o coração das
indústrias e monopólios da “informação”.
O discurso semiótico aplicado a uma leitura da imagem fotográfica, ao associá-la a um tipo
de signo (indicial) foi bastante tardio: ela surgiu a partir de 1980, com a publicação d’A Câmera Clara
de Roland Barthes2. Os conglomerados da mídia, por sua vez, nasceram e se desenvolveram bem
antes: nas primeiras décadas do século XX, paralelamente à evolução das técnicas de fotomecânica3
2 A primeira edição francesa foi publicada em 1980 pouco depois da morte de Barthes acontecida em março desse ano.
(BARTHES, Roland. La chambre claire: note sur la photographie. Paris: Gallimard; Seuil, 1980). Para versões em português
ver BARTHES, Roland. A câmara Clara. Lisboa: Edições 70 Ltda., 2006, p. 126-127. Tradução de Manuela Torres ou
a versão brasileira BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia: Editorial Nova Fronteira: Rio de
Janeiro, 2015, tradução de Júlio Castañon Guimarães.
3 “Em resumo, o processo fotomecânico era um conjunto de operações fotográficas utilizado na preparação do material de impressão. Na
sequência do processo de produção gráfica, ocorria a transferência do original para uma matriz de impressão.” (Captado em:
http://portal.in.gov.br/museu/acervo/maquina-fotomecanica portal da Imprensa Nacional Casa Civil da Presidência
da República. Acesso em: 10 maio 2016.)
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4 Hippolyte Bayard (1801-1887) pioneiro da fotografia, contemporâneo de Niépce, Daguerre e Talbot, aperfeiçoou em
1839 um processo fotográfico que devido a vários fatores passou desapercebido do grande público e não teve o
reconhecimento monetário que a invenção de Daguerre conseguiu. Desconsolado pela injustiça Bayard comete um
“suicídio simbólico” através de uma famosa foto-ficção que daria conta da sua própria morte e que fez circular, em
1840, com o seguinte texto escrito no verso: "Este cadáver que os senhores veem é o do senhor Bayard, inventor do procedimento
que acabam de presenciar, ou cujos maravilhosos resultados logo presenciarão. Segundo eu soube, este engenhoso e incansável pesquisador
trabalhou durante uns três anos para aperfeiçoar seu invento. [. .. ] Isso lhe trouxe grande honra, mas não lhe rendeu nenhum centavo. O
governo, que deu demais ao senhor Daguerre, declarou que nada podia fazer pelo senhor Bayard e o infeliz resolveu se afogar. [. .. ] será
melhor se os senhores passarem longe para não ofender seu olfato. pois, como podem observar, o rosto e as mãos do cavalheiro começam a se
decompor. GONZÁLEZ Flores, Laura. Fotografia e pintura: Dois Meios Diferentes? São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. 45.
5 As encenações de Fred Holland Day e Julia Margaret Cameron, dentre muitas outras, por exemplo.
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vezes a sua vida. Quero dizer, simplesmente, que temos hoje vários fotógrafos destacados e vários
corpus sólidos de trabalho feitos por criadores e pesquisadores da imagem fotográfica que nunca
trabalharam para nenhum jornal, que cresceram, formaram-se, moraram e desenvolveram-se,
sempre, no interior do sistema que chamamos “Arte” e que, portanto, não têm o mesmo tipo de
compromisso com os sistemas de representação, os códigos, a história e o olhar do projeto
jornalístico, incluso se, de vários modos, podem estar envolvidos, desde outras margens, em
projetos e olhares que podemos considerar documentais.
A década de 1970 viu, em seu início e em seu final [...] duas formas opostas de
afrontar a imagem. Consideremos, por exemplo, a passagem de Diane Arbus a
Cindy Sherman. Apenas oito anos separam o suicídio de Arbus, ocorrido em
1971, da publicação dos primeiros trabalhos de Sherman, então jovem e
desconhecida. Assistimos com elas a uma substituição geracional, na qual
evidentemente, mais do que a cronologia das idades, importa o desajuste
programático que manifestam.6
6 FONTCUBERTA Joan. O beijo de Judas. Fotografia e verdade. São Paulo: Editora Gustavo Gili Brasil, 2010, p. 30.
7 Fazemos referência aqui à famosa Parábola do joio e do trigo que aparece no evangelhos de Mateus 13:24-30 na qual
a narrativa tem a ver tanto com a dificuldade de separar um do outro quanto com a importância crucial de fazê-lo, pois
um é sustento de vida e o outro erva inútil.
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fotojornalismo, foi por décadas exatamente o mesmo filme de 35 mm usado pelo cinema
hollywoodiano para fazer ficções cinematográficas. Da mesma forma, o pixel que constitui a base
da foto 3x4 digital para documentos oficiais é o mesmo pixel com que se fazem os efeitos especiais
na pós-produção do cinema digital. Os sistemas bancários usam hoje a pegada digital eletrônica,
digitalizada por sistemas de biometria, para comprovar identidade da mesma forma que os cartórios
usam a pegada digital gravada com tinta nos documentos para comprovação dessa mesma
identidade. Não é o tipo de suporte (digital Versus “analógico”) o que faz com que o sistema de
verdade e autenticidade seja avaliado, senão a série de controles e protocolos administrativos de
segurança que fazem com que o sistema confira um aval de verdade a essa pegada digital.
Na cronologia proposta por Fontcuberta na citação acima não é a mudança de plataforma
tecnológica o que marcaria esse fim e esse começo. Seria pelo contrario uma certa relação com o
referente, uma certa intencionalidade no ato de fotografar os que marcariam a ruptura do
paradigma de verdade. E essa mudança teria acontecido nos anos 1970: a morte de Diane Arbus,
em 1971, e os trabalhos pioneiros de Cindy Sherman, nos finais dessa mesma década, constituiriam
as marcas do final e começo do um novo paradigma: a fotografia como verdade estaria
emblematicamente representada pelos ensaios documentais de Arbus, e a fotografia como ficção e
encenação pelos Film Stills de Sherman, os quais constituiriam um diálogo não com o referente,
senão com as construções culturais e ideológicas que fazemos desse referente. Sintomaticamente
essa cronologia é proposta num livro que já desde o seu título (O Beijo de Judas) e logo na sua
introdução declara o princípio binário verdade/ficção como eixo reitor de uma análise sobre o
fotográfico (“Toda fotografia é uma ficção que se apresenta como verdadeira [...] a fotografia mente
sempre, mente por instinto, mente porque sua natureza não lhe permite fazer outra coisa”, pág.
13). As décadas subsequentes, porém, demonstraram claramente que o modelo documental
continua, se reinventa e se perpetua de várias formas: de Nan Goldin (1953 ―) a Martin Parr (1953
―) ou de Claudia Andujar (1931 ―) a Miguel Rio Branco (1946 ―) ou Mario Cravo Neto (1947-
2009), no caso do Brasil, importantes corpus de trabalho que se enquadram de várias formas no
modelo “documental” têm sido realizados justamente durante e a partir dessa década de 1970 na
qual o modelo de nexo com “o real” teria colapsado. É claro que esse nexo com a “verdade” e com
“o real” que cada um desses corpus de trabalho apresenta não é homogêneo, nem a atitude
documental quer dizer sempre a mesma coisa, todos eles, porém, se fundamentam de vários modos
nos nexos que a fotografia pode chegar a estabelecer com uma realidade e um contexto dados. E
essa diversidade de nexos que cada um desse autores constrói com os contextos particulares que
trabalha mostra, justamente, que o modelo documental nunca foi nem unívoco nem estabelecido
unicamente pelo viés de umas certas propriedades do meio técnico chamado “fotografia”. É isso
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justamente porque a “realidade” é uma dimensão complexa cuja definição está longe de ser um
problema ligado unicamente à fotografia ou à imagem. Longe disso, as definições da “realidade”,
do “real” e da “objetividade” têm raízes profundas. A “realidade” é e será sempre uma pergunta e
não um simples fato já dado. Além disso, no campo das artes a realidade é, e sempre foi, um
problema estilístico-formal. Os realismos foram sempre um horizonte de trabalho e uma série de
acordos formais e de convenções estilísticas e discursivas.
Ainda mais: o campo da ficção atravessa a história da fotografia desde as suas origens, como
constatávamos antes com Hippolyte Bayard, Fred Hollan Day, Marcel Duchamp, William
Mortensen ou Grete Stern, e não foram certamente nem Jeff Wall, Cindy Sherman ou Joan
Fontcuberta que a inventaram. Da mesma forma os limites entre fotografia e arte foram
problematizados desde a suas primeiras décadas de existência. Já em 1857, a famosa composição
fotográfica The Two Ways of Life, realizada por montagens sucessivas por Oscar Gustav Rejlander,
gerou vários tipos de disputas e mal-entendidos ao ser selecionada para a exibição da Manchester
Art Treasures Exhibition (uma das primeiras a exibir fotografias junto a pinturas, e esculturas). A
própria rainha Vitória adquiriu a fotografia (quadro?), mas mesmo assim a Scottish Society se
recusou a exibi-la na exposição de Edimburgo por causa da nudez de várias das figuras. Nudez
certamente não faltava em muitas das pinturas alegóricas exibidas na mesma exposição, mas o
problema com a obra de Rejlander era o realismo e a sensação de presença outorgada pela imagem
fotográfica, a qual fazia aparecer como demasiado literal essa nudez 8, chamando mais a atenção
para as modelos, explícita e impudicamente peladas, do que para a dimensão alegórica contida na
obra.
Os desenvolvimentos posteriores da fotografia, a partir das primeiras décadas do século
XX, desacreditariam essa entrada da fotografia na arte pelo viés da pintura, como um sucesso infeliz
e nocivo para a história do meio e se deram à tarefa de apagar e desconstruir essa herança espúria
para construir uma história da fotografia “pura”, isto é, como meio específico. Mesmo assim,
porém, essa “segunda” história das relações entre arte e fotografia também começou cedo: já em
1937 Alfred Barr, o primeiro diretor do MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque)
convidou Beaumont Newhall a organizar a primeira exposição retrospectiva de fotografia realizada
por uma instituição museográfica de grande porte. O amplo sucesso da mostra fez com que ela
8 É interessante assinalar aqui os depoimentos Thomas Sutton, editor da Photographic News em defesa da negativa da
Scottish Society a expor a obra: “Não existe nada inapropriado na exibição de trabalhos como as Banhistas Usurpadas por um Cisne
de Ettys, mas não é apropriado exibir publicamente fotografias de prostitutas nuas com um realismo detalhado que evidencia de forma
gritante a sua pele e carne.” (Tradução livre do autor desta comunicação [“There is no impropriety in exhibiting works of
art such as Etty’s Bathers usurped by a swan, but there is impropriety in publicly exhibiting photographs of nude
prostitutes in flesh and blood truthfulness and minuteness of detail.”. Captado em:
http://www.codex99.com/photography/10.html acesso em abril 10, 2016.
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cortes é sempre complexo e que, no campo estético, talvez seja ainda mais difícil desenhar essas
linhas divisórias que separam um período de outro, pois eles dizem respeito não só a cortes e
mudanças formais e estilísticas, senão também, e talvez especialmente, a cortes e viradas culturais
e econômicas, a variações e transformações nos protocolos de uso e inserção cultural. A presente
comunicação não pretende instaurar ou fundar uma cronologia definitiva pelo viés desse paradigma
jornalístico proposto aqui como eixo central que guiou (e guia até hoje) um importante segmento
das práticas fotográficas.
A nossa intenção é simplesmente chamar a atenção para a centralidade desse eixo como
coluna vertebral que norteou os discursos, teorias e fazeres fotográficos durante várias décadas.
Queremos, porém, salientar o fato de que, apesar da sua relevância e centralidade, esse “paradigma
jornalístico” não chegou nunca a constituir uma prática totalitária que excluísse outros
procedimentos e pesquisas. Falar hoje do seu esgotamento também não seria, portanto, decretar
simplesmente a sua morte ou fim, senão assinalar a sua convivência com outros modelos
igualmente importantes que instauram uma forte presença do fotográfico em segmentos da cultura
e da sociedade que não estão mais ligados ao eixo de informação. Isto é a quase exclusividade da
relação que, via jornais e revistas, foi imposta à fotografia durante décadas pelos oligopólios da
mídia impressa.
Resumindo, e já para concluir: a nossa proposta central seria que não existe uma “pós-
fotografia”, simplesmente porque nunca houve uma fotografia: a imagem, o projeto fotográfico
sempre foram múltiplos e multifacetados. Houve, sim, um paradigma discursivo que reinou por
certo tempo: uma dobra semiótica que correspondeu mais a um auge da semiótica estruturalista do
que a uma “natureza” do fotográfico propriamente dita. Houve práticas, como o fotojornalismo,
que foram dominantes, mas houve sempre, também, práticas paralelas e alheias a esses modelos e
modos de uso.
Do mesmo modo, hoje, quando o modelo jornalístico-testemunhal implodiu de várias
maneiras ―à mesma medida em que implode o modelo do jornal e do telejornal clássicos― as
práticas jornalísticas e documentais nem desapareceram nem estariam fadadas à morte. Elas tiveram
e tem que reinventar, sim, os seus modus operandi e revisar criticamente os seus códigos e usos. Ou
seja, e já para fechar e para me despedir, agradecendo a atenção: a fotografia morreu, viva a
fotografia!
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O jardim de caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do
universo tal como o concebia Ts’ui Pen. Diferentemente de Newton e de
Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto.
Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de
tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se
aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas
as possibilidades.9
Invoco aqui Ts’ui Pen, nas palavras de Borges, não para justificar a inextinguibilidade destas
veredas bifurcadas, mas sim para me orientar numa errância labiríntica; pois aqui se trata de trilhar
um caminho cujo mapa não é teleológico, cujo seu fim, enquanto término e enquanto objetivo,
assemelha-se demasiadamente a um recomeço. Esse mapa é um que nos orienta em vias de
desencontros e descontinuidade, mas cujo estranho artifício mantém presente e ausente, como que
simultaneamente, aquilo que cremos buscar; afinal, esse mapa aparenta se tratar não do atlas de
9 BORGES, J. L. O Jardim de caminhos que se bifurcam. In: BORGES, J. L. Ficções. São Paulo: Globo, 1995.
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inscrições fixas no papel, que se supõe também fixas à terra, mas sim do Atlas mitológico, que
sempre traz sobre os ombros as inscrições astrais que o acompanham num deslocamento que
partilham conosco, próximas através da sua astronômica distância.
Destarte, arrisco-me a fiar um caminho por tal labirinto em mise en abyme que é a cultura, sem
me ater aos seus nomes, aproximando assim o televisivo com o clássico, o literário com o gestual
e o patético com o lógico. As suas definições e fronteiras relego ao segundo plano, enquanto
possível, para eleger como prioritárias as relações complexas que opera e com as quais lidamos: o
tropo narrativo-mnemônico10, a partir do website TV Tropes, e a fórmula de páthos, a partir de Aby
Warburg11, na sua leitura por Giorgio Agamben12, entre outros. Nessa ordem seguiremos.
O website TV Tropes (http://tvtropes.org/), também conhecido por Television Tropes and
Idioms, surge, em 2004, de uma outra rede virtual voltada também a produções midiáticas, neste
caso, aquelas em torno de Buffy, a caça-vampiros, série estadunidense de grande sucesso, centro dessa
rede virtual, o fórum Buffistas. A própria série, veiculada entre 1997 e 2003, já apresenta vários dos
elementos que seriam posteriormente registrados e analisados pelos criadores de TV Tropes, como
ter dado origem a um “universo expandido” (expanded universe) “não-canônico” – isto é, fora, mas
em diálogo com o roteiro oficial, “canônico” –, e por se relacionar com um “clichê” da narrativa
hollywoodiana – o da “garotinha loira que sempre é vítima”, o qual Joss Whedon, diretor e roteirista
da série, quis “subverter e transformar em um personagem que seria um heroi”, a fim do propósito
primeiro da série, a saber, o da afirmação do poder feminino13. Portanto, não surpreende que quem
futuramente criaria TV Tropes tenha desenvolvido uma sensibilidade, potencializada pela discussão
conjunta possibilitada pela internet, à narrativa, suas artimanhas e consequências (literárias, sociais,
etc). Esta sensibilidade na descrição de um lugar comum da narrativa hollywoodiana, seu jogo e
discussão, premeditada pelo staff de Buffy, será repetida através elementos presentes em TV Tropes.
Surge um fórum tentacular, wiki e inter/transdisciplinar de outro fórum de iguais
características, cujo objeto de discussão é, por si só, dialeticamente expansivo enquanto universo e
ipseidade enquanto cânon. Suas ferramentas de análise, por princípio, despertam a alteridade dentro
do cânone original – a própria protagonista é a decomposição, e logo subversão, da fórmula da
10 As definições e elaborações utilizadas aqui para o conceito de tropo narrativo são as de Linda Börzsei em Literary
Criticism in New Media. Budapeste: Loránd Eötvös University, abril de 2012. Para tropo mnemônico, ver OLIVEIRA,
M. C. D. A arte da memória e as máquinas para lembrar. Trama Interdisciplinar, São Paulo, v. 6, n. 3, p. 13-32, set./dez.
2015.
11 Entre outros, WARBURG, A. Dürer e a antiguidade italiana; _____. A arte italiana e astrologia internacional no
Palazzo Schifanoia, em Ferrara. In: _____. A Renovação da Antiguidade Pagã: contribuições científico-culturais para a
história do Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
12 AGAMBEN, G. Ninfas. São Paulo: Hedra, 2012.
13 “the very first mission statement of the show, which was the joy of female power: having it, using it, sharing it”.
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“mulher indefesa”, “vítima” ou “passiva” –, puxando todo o cosmos narrativo através dos fios que
costuram sua originalidade, embolando-os num labirinto tecido como que por uma Ariadne
perversa. Parecemos rever, aqui, a “fábrica de homens que se confunde com a de anjos” de Tlön, o
realista mundo ficcional que, passando a tomar seu lugar enquanto realidade, relega os anjos
demiúrgicos a um papel de “excelentes contistas de realismo fantástico”.
O contato e o hábito de Tlön desintegram este mundo. Encantada por seu rigor, a
humanidade esquece e torna a esquecer que é um rigor de enxadrista, não de anjos.
Penetrou nas escolas o (conjetural) “idioma primitivo” de Tlön; já o ensino de sua
história harmoniosa (e cheia de episódios comoventes) obliterou o que presidiu
minha infância; já nas memórias um passado fictício ocupa o lugar de outro, do
qual nada sabemos com certeza – nem, ao menos, que é falso. [...] Uma dispersa
dinastia de solitários mudou a face do mundo. Sua tarefa prossegue. Se nossas
previsões não errarem, daqui a cem anos alguém descobrirá os cem volumes da
Segunda Enciclopédia de Tlön.14
Uma relação entre a atividade dos tropers (autodenominação dos colaboradores de TV Tropes)
e a daqueles que buscam os hrönir borgianos de Tlön se destaca: em ambos os casos, vemos esse
abuso da ficção sobre a realidade (seria Borges um troper avant-la-lettre?) – a arcaica questão da
repetição vida-arte, onde não se sabe qual das duas se contamina mais.
De todo modo, ambas as práticas buscam certas linhas de conexão que, vez ou outra,
mostram-se mais independentes da sua mídia que a princípio imaginado. Na “produção metódica
de hrönir”, são apresentadas certas informações (“[...] no antigo leito de um rio havia certos
14 BORGES, J. L. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. In: _____. Ficções. São Paulo: Globo, 1995, assim como em _____.
Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. In: BORGES, J. L., CASARES, A. B., OCAMPO, S. [org.]. Antologia da literatura
fantástica. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
15 ____________, . Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, p. 123
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sepulcros e prometeu liberdade para os que trouxessem um achado importante.”16) e mídias, como
lâminas fotográficas. Na investigação de tropes, pressupõe-se que tropers tenham já algum nível de
familiaridade com as mídias e narrativas onde se encontram os primeiros, faltando descolá-los do
mise en scène; afinal de contas, os tropes estão diluidos nas muitas produções culturais, sendo alguns
mais arcaicos, mais arquetípicos que se imagina – e isso constitui um trope, a saber, o “Mais velho do
que pensam”17. Tanto na busca dos hrönir como na dos tropes, portanto, é um processo coletivo de
sentido que se dá, na mediação, apropriação ou semiose – enfim, na transmissão, repetida ou
variada desses artefatos e esquemas. Nos tropes, a sensação é “já vi isso antes em algum lugar”18, e,
a partir deste déjà vu primeiro, se lança uma coleção de lugares onde um traço comum dessa
sensação se delineia. Seja a partir de uma sensação vaga, fragmentária ou “troperífica”19, seja de um
roteiro de ligações já delineado, é na apresentação à comunidade que se traça tal atlas sentimental
e memorioso, através do “Sabe quando tem aquilo que...”20, espaço destinado ao processo de
descrição e catalogação de tropes novos – e discussão dos já existentes.
tropes” (“Trope launch pad”) cf. YKTTW Guidelines. TV Tropes. 26 fev 2016. Disponível em:
<http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Administrivia/YKTTWGuidelines>. Acesso em 13 jun 2016.
21 Literalmente traduzido de “Your Mileage may vary”, a dizer “sua experiência pode ter sido outra”. Cf. YMMV. TV
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São surpreendentes as remissões longuíssimas que volta e meia os tropes encadeiam. Kurt
Cagle, por exemplo, conta ter ficado surpreso ao ver “uma séria análise de profundidade de
personagens” feita pela sua filha adolescente – ela avaliava a pergonagem Bella, da saga Crepúsculo,
a partir do trope “Mary Sue”, ligado diretamente a uma fanfic (“fan-fiction”, escrita apropriativa de
fãs a partir da adaptação da obra original) de Star Trek, datada de 1974, mas cujas raízes podem ser
traçadas até revistas infantis do século XIX.25
Será menos supreendente, portanto, que a história dos tropes seja vasta; em verdade, os
próprios tropers vêem em Aristóteles o primeiro entre eles, em sua Poética, no sentido de codificador
e mesmo criador de tropes.26 Afinal de contas, a etimologia da palavra aponta origem grega: trópos,
“volta, direção, mudança”, substantivo a partir de trepein, “virar, pôr num caminho ou direção”; nas
suas listas de derivação, temos ainda “troféu” (cuja origem pode ser também throphé, quando sufixo)
e “trópico”. Aceita, também, “maneira”, “modo”.
No caminho da sua virada ao latinizado tropus, verte-se numa entropia com a retórica, talvez
através de Cícero no Rhetorica ad Herennium, podendo assumir ambas as ascepções: um “modo” ou
“maneira”, como também uma forma de verter, um caminho a direcionar o conteúdo do discurso.
Como sabiamente escreve Oliveira, remetendo às observações de Mary Carruthers sobre o estudo
da mnemônica, a divisão desse tratado epistolar inicia-se na inventio, para então avançar em outros
estágios – dispositio, elocutio, memoria, acto. “Assim, na tradição manualística medieval, a invenção
precede a memória.”27. Com isso já adiantamos que, assim, nem a retórica, nem a mnemotécnica,
são meramente técnicas engessantes de manuais obsoletos; seguindo nessa direção e inquirindo o
23 “[...] “Destacar na moda o que ela pode conter de poético no histórico, retirar o eterno do transitório” [...].
BAUDELAIRE apud Cauquelin, A. Arte Contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins, 2005. p. 26.
24 BORGES, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, p. 124
25 CAGLE, Kurt. From Mary Sue to Magnificent Bastards: TV Tropes and Spontaneous Linked Data. Dataversity, 1
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que seria tal “invenção” para a retórica, chegamos a uma definição interessantemente frutífera em
desenvolvimentos etimológicos:
O termo latino inventio deu origem a duas palavras distintas. Uma delas é invenção –
ou criação de qualquer coisa nova – que pode tomar forma a partir de ideias e
objetos materiais. A outra é inventário, que se refere aos muitos materiais colocados
em quartos ou armários, sem que estejam casualmente guardados [...] – os
inventários exigem uma ordem. [...] Inventariar ou catalogar é um requisito
fundamental para inventar. Essa informação, segundo Carruthers, pressupõe que
nada se pode criar sem um “arquivo” ou “armário” de memórias [...]28.
still implicated in the philological quest for origins, attempt to prove or disprove a medieval writer’s knowledge of a
classical or Christian auctor on the basis of exact lexical matches between an earlier text and a reference or citation in
a medieval work. On this model, source and target text have to match in order to prove that, say, Chaucer read
Seneca. That a writer may not reproduce exactly […] does not mean that he or she got it wrong […]. What it does
mean is that the writer is probably recalling the text ad res, by its subject matter, theme, or wider significance. This
form of recollection, however, begins with the firsthand reading and meditation on the text to be stored away in the
memory “places” (loci) […] Auctores were texts, not persons, and composition was understood to start in “memorized
reading”.” (IRVINE, M. Reviewed Work: The Book of Memory: A Study of Memory in Medieval Culture by Mary
Carruthers. Modern Philology, Vol. 90, No. 4. Mai, 1993, p. 533-537. Disponível em:
<https://www.jstor.org/stable/438672 >. Acesso em 13 jun. 2016.)
32 _________, A arte da memória e as máquinas para lembrar, p. 23
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e alegorias como da justiça, da beleza, etc. A partir de ferramentas como esquemas de enredo,
impovisava-se:
O que os tropers entendem por trope é, portanto, exatamente tais maneiras de se direcionar
uma narrativa, que tornadas convencionais, passam a ser utilizadas como “blocos de construção”
destas narrativas. “Pode ser artimanha de enredo, montagem, estrutura de narração, tipo de
personagem, expressão linguística... você sabe quanto o vê.”34 É contudo necessário atentar-se para
não confundir trope e cliché: por justamente não ser inerente aos tropes ser disruptivo à história, estes
tornam-se clichés somente quando passam a distrair a audiência, ao invés de servir como um “atalho”
(remarcando aqui a etimologia grega) narrativo.
São extensas as formas nas quais os tropers recoletam os tropes, inventariando um também extenso
repertório de usos35: usado diretamente, onde é reconhecido facilmente como trope e arrisca torna-
se um “Trope cavalo-morto”36; justificado, onde a razão do trope é alguma narrativa apresentava (no
trope “Poder brilha”, por exemplo, quando se justifica o brilho de um elemento – kriptonita,
digamos – por sua natureza química, mágica, etc); invertido, onde seus elementos são invertidos
(“a kriptonita brilha, mas não enfraquece o super-homem”); subvertido, onde há uma preparação
do enredo para uso do trope, que é então anulado (“Lex Luthor consegue ter kriptonita e aprisionar
o super-homem; tudo falha”); parodiado, quando elementos do trope são exagerados e se remete,
metalinguisticamente, ao próprio (a arma mortífera da narrativa é uma caneta fluorescente);
desconstruído, quando elementos característicos do trope são mostrados em sua impraticabilidade
e irrealidade (a arma que brilha causa a fuga dos inimigos, ou cega seus portadores); explorado,
quando os elementos do trope são usados diferentemente da sua natureza original (a arma mortífera
que brilha é usada para iluminar, ao invés de matar); conversado, onde o trope é “denunciado” à
narrativa por ele mesmo para se tornar em elemento da narrativa – isto é, em cliché. Usar o cliché como forma de
narração, a despeito de ser um cliché, configura “Trope cavalo-morto-zumbi”. Cf. DEAD Horse Trope. TV Tropes.
Disponível em: <http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Main/DeadHorseTrope>. Acesso em 15 jun. 16.
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audiência pela própria narrativa (numa fala o super-homem diria “Mas armas brilhantes só existem
em filmes ruins como este!”37); entre vários outros.
Essa forma de aplicação de narrativas em muito remete à composição formular: ela varia o
conteúdo, retransmitindo ainda assim a forma, enquanto atualiza sua tradição, de certa forma
traduzindo-a no novo contexto, reelaborando suas questões, remetendo à sua poética. E são essas
as características que Agamben ressalta na Pathosformel; como ele escreve, Warburg poderia
perfeitamente ter escrito Pathosform. Elucubrando, podemos imaginar que isso poderia enquadrar a
ideia de Warburg em um lugar muito próximo ao do arquétipo; afinal de contas, se o conteúdo da
antiguidade, se a bewegtes Leben (“vida em movimento”) se endereçasse numa forma específica, a
criação dos artistas seria apenas a aplicação de um molde, como sabemos não ter sido, assim como
não haveria mais que cópias, e nessa medida tanto a originalidade da criação se comprometeria,
como também o original estaria em sérios apuros – talvez como nas esculturas greco-romanas. Em
suma, a questão de Warburg, “o que significa a influência da Antiguidade para a cultura artística do
início do Renascimento?”38 seria muitíssimo abreviada. Optando por formel (fórmula) ao invés de
form (forma), não podemos deixar de ver a hibridez de “matéria e forma, de criação e performance,
de novidade e repetição” como diz Agamben; “Do mesmo modo, a composição formular implica
a impossibilidade de distinguir entre criação e performance, entre original e repetição”39, dirá ele,
após sugerir a proximidade da fórmula das Pathosformeln à das composições orais homéricas,
fundada
A própria métrica, dirá ele citando Nagy e Lord, é, provavelmente, derivada da fórmula
retransmitida e recoletada; “o poema não é composto para execução, mas na execução”, dirá Lord.
Isso afasta, portanto, a formel daqueles que a vêem como algo imobilizante, doutrinário, démodé; se
ela é próxima do arquétipo, é daquele sutil, de nexos frágeis, sem demais apelos ao sublime ou à
idealidade pura; mas, ao mesmo tempo, é possível imaginar qualquer tipia, alguma repetição
37 Este trope costuma se tornar o “Encostar-se na quarta parede”, que fala da quarta parede do teatro, que dá a
impressão de observar a realidade ao espectador. Cf. LEANING on the fourth wall. TV Tropes. Disponível em:
<http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Main/LeaningOnTheFourthWall>. Acesso em 15 jun 2016.
38 WARBURG, Dürer e a antiguidade italiana, p. 453
39AGAMBEN, Ninfas, p. 28
40 _________, Ninfas, p. 28
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qualquer, sem arché? Isso, evidentemente, seria então repetição de quê? E, ainda, como se saberia
que se tratam de repetições se prescindirmos de uma identidade? Seriam estes vazios especulares,
onde reina só o eco daquilo em que, para nos vermos, miramos o outro? Agamben, em O ser especial
41
, liga species (“aspecto”, “visão”) com speculum (“espelho”) pela raiz em comum: “olhar, ver”; para
ser especial, portanto, o “aspecto” deve coincidir com o ser; o ser que vemos no speculum seria uma
especulação: ele acontece no ser, como um acidente: “O ser especial é absolutamente insubstancial.
Ele não tem lugar próprio, mas acontece a um sujeito, [...], assim como a imagem está no
espelho.”42. Paradoxalmente, aquilo que nos confere identidade, difere. É a partir da variação que
mantemos a repetição, e não a partir da cópia; como na memória medieval, onde o lugar comum é
a base para a construção do particular. De certo modo, é como se o genérico servisse como fundo,
sobre o qual fulguram nossas particularidades – “O ser especial é [...] o ser comum ou genérico, e
isso é algo como a imagem ou o rosto da humanidade. A espécie não subdivide o gênero, mas o
expõe. [...] Especial é, assim, um ser [...] que, não se assemelhando a nenhum, se assemelha a todos
os outros.”43. O trope não é a forma de uma obra, mas sim a articulação de um todo, enquanto uma
covenção narrativa, que se expressa na criação autoral. A Pathosformel não é a tentativa de cópia, não
anseia ao arquétipo: sua relação com as demais imagens nos quadros do Atlas Mnemosyne não é tanto
de plágio quando de Nachleben, isto é, a vida póstuma, pós-vida – sobrevivência, sim, mas sob um
novo viver: a sobrevivência das imagens, diz Agamben, mais que dado, é uma operação, é pôr em
movimento a “carga mnésica”, por meio da qual “o passado – as imagens transmitidas pelas
gerações que nos precedem [...] torna-se de novo possível”.
41 AGAMBEN, G. O ser especial. In: _____. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 45.
42 _________, O ser especial, p. 46
43 _________, O ser especial, p. 47
44 _________, O ser especial, p. 47
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medieval, que é o “amor com que cada ser deseja [...] perseverar no próprio ser”45, o desejo de
concatenar a imagem de si com seu ser – cuja exteriorização e permanência, para além da
efemeridade, é a identidade. Tensionando essa balbúrdia conceitual convergente, lembremo-nos:
intentio, dirá Oliveira, é a tradução latina de Cícero para a tonoi estóica, “ou seja, a tensão ou
ressonância harmônica da mente no ato de memorizar as coisas a partir de sua experiência.” 46. A
retórica e a mnemônica não ignoravam a “carga mnésica” das memórias, seu dinamismo, e
percebiam, assim como Warburg, “que as imagens transmitidas pela memória histórica não são
inertes e inanimadas, mas possuem uma vida especial diminuída”47 – essas primeiras chamarão tal
vida de tonos, e saberão ver seu “tom” ou “coloração” nas lembranças.
Relacionar-se com a imagem, portanto, é um intencional caso de amor, no que isso tem de
tonos e species – Filóstrato dirá:
Os amores fazem a colheita das maçãs, como tu bem vês. Não te surpreendas com
o nome que levam, pois são filhos das ninfas, que governam todo e qualquer mortal
e são inumeráveis em razão dos também inumeráveis desejos dos homens. Há
entre eles, dizem, um amor celeste que no céu desempenha funções divinas [...].48
As ninfas, essas “deusas pagãs no exílio”, como genialmente as chama Warburg49, são os
espíritos elementares que Agamben50 busca em De Nymphis, sylphis, pygmeis, et salamandris et caeteres
spiritibus [Sobre ninfas, silfos, pigmeus, salamandras e outros espíritos]; afinal, elas seriam as
portadoras desse amor que constitui a relação da humanidade com a sua imagem, e não à toa são
espíritos vinculados ao elemento água – essa mesma água onde pousa nosso reflexo, nossa imagem,
objeto do olhar e do desejo de Narciso, ao qual Eco assiste.
Criadas não à imagem de Deus, mas à imagem do homem, elas constituem uma
espécie de sombra deste, ou de imago [imagem] e, como tais, perpetuamente
acompanham e desejam – e são, por sua vez, por eles desejadas – aquilo do que
são imagem. [...]A história da ambígua relação entre homens e ninfas é a história
da difícil relação entre o homem e suas imagens.
As relações com a imagem, portanto, em todos seus níveis, apresenta uma tensão, uma
vibração, uma fanstasmata que, a qualquer momento, pode saltar à dissimilaridade, ao flagrante da
diferença, do despertencimento. Seja nessa imagem de certo aspecto holográfico, onde a imagem
do todo está presente em cada parte, seja na imagem pessoal, que já não mais é especial ou específica
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ao se tornar identidade. São talvez problemas nunca resolvidos, insolúveis, da nossa relação com
as imagens e, consequentemente, com nossas identidades; algo que Warburg provavelmente sabia,
mas que não quisera dar um nome – ou uma identidade. Afinal de conta, já prevenidos por
Agamben do caráter efêmero e acidental da specie na speculum-imago, como poderíamos buscar
qualquer identidade absolutamente formal? Basta lembrar dos croquis de Warburg apresentados
por Didi-Huberman51, “esquemas oscilatórios nas polaridades constantementes instauradas: “balanço”
do idealismo e do realismo, “ritmo” das “labilidades” do estilo ou a maravilhosa “gangorra
eterna””52. Cada vez mais, parece-me, seguimos as imagens rumo a um tropikos, onde não há senão
o paradoxo das fixidez e mobilidade dos astros, lugar esse que Filóstrato, como citado acima, elege
como o do amor entre humanos e ninfas. Por isso, estejamos atentos, também, ao quão
internalizadas estão essas “polaridades instauradas” das quais fala Didi-Huberman, para não as
relegarmos a um campo de conflitos acadêmicos, conceituais, etc., correndo assim o risco de
esquecer da paradoxal (pós) vida das imagens, e do amor celeste que as dedicamos, sempre que as
consideramos (com + sidus, sideris) ou especulamos (speculari, tendo à mão o speculum).
Não podemos, aqui, deixar de considerar a constellatio em seu movimentos, seus giros
tropicais. Uma boa analogia ao tropo seria, digamos, a das constelações astrais: a imagem que têm
são as imagens que intencionamos ver nelas, uma questão de concomitância, tão efêmera quanto
outras relações imagéticas – a mais leve discrepância desmancha sua forma. Todavia, sabemos, as
constelações não são imagens em si; como já discutido, sequer podemos chamar de imagem algo
mais que uma contigência. A sua intenção, seu desejo, seu amor habita em nós mesmos. E para
descobrir um trope, os tropers dedicam febrilmente o seu amor: descolam-no da matéria das
narrativas, das imagens, para que fulgure nessa paradoxal specie. Citando Benjamin, Agamben
considerará: “Não é que o passado lance sua luz sobre o presente, ou o presente sua luz no passado,
mas a imagem é aquilo em que o que foi se une fulminantemente com o agora (Jetzt) em uma
constelação.”53. É assim que, à maneira da constelação, os tropes são ambiguidades inexpugnáveis à
suprassunção; e também as manifestações das Pathosformeln no Atlas Mnemosyne, pois não há “entre
essas epifanias um arquétipo ou um original do qual as outras derivariam. Nenhuma das imagens é
original, nenhuma é somente cópia.”54.
51 DIDI-HUBERMAN, G. Campo e veículo dos movimentos sobreviventes: a Pathosformel. In: _____. A imagem
sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Cotraponto, 2013.
52 DIDI-HUBERMAN, A imagem sobrevivente, p. 157. Croquis nas páginas 158-9.
53 AGAMBEN, Ninfas, p. 40
54 __________, Ninfas, p. 29
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Se o Atlas Mnemosyne pode parecer hermeticamente erudito para alguns, afastado em sua
“ciência sem nome” e num mundo antigo, o TV Tropes poderia ser seu diametral oposto,
mergulhado na vicissitude contemporânea da cultura pop, da cultura de massa, num confuso mundo
globalizado. Sabemos, todavia, que ambos contém suas próprias diversidades, não se limitam a uma
só expressão cultural, como também chegamos a sua imbricação mútua, nos paradoxos da imagem.
Despóticos ou anárquicos, apolíneos ou dionisíacos57, tais deuses em exílio ou criaturas astrais
podem nos redimir da predestinação ou nos amaldiçoar terminantemente;58
Os nomes que damos às divindades e aos trópicos varia a cada giro do mundo; como
tensionamos os trópicos de constelação, desejando-os em imagens (astronômicas, astrológicas,
mitológicas, etc), pelos quais transitamos, idem. Invariável, parece, é nosso laço astral com as
55 AGAMBEN, Ninfas, p. 61
56 GINZBURG, C. De A. Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de método. In: Mitos, emblemas,
sinais. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. p. 45.
57 “Warburg remontou às atitudes fundamentais da civilização renascentista, vista, segundo os passos de Burckhardt,
na sua oposição radical à Idade Média. Mas a Antiguidade, que oferecia generosamente à sociedade florentina do
final do século XV o tesouro das suas expressões-limite estilizadas, não era para Warburg a Antiguidade apolínea dos
classicistas, mas uma Antiguidade embebida de “pathos dionisíaco”. Não é preciso ressaltar o quanto essa visão de
Warburg devia a Nietzsche.” (GINZBURG, De A. Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de
método, p. 45)
58 O interesse de Warburg pelas imagens astrológicas tem usa raiz na consciência de que “a observação do céu é a
graça e a maldição do homem”, que a esfera celeste é o lugar no qual os homens projetam sua paixão pelas imagens.
(AGAMBEN, Ninfas, p. 61)
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imagens, as quais consideramos (sideris) sempre que, especulando (speculum) nossa species, choro de
Eco, o que vemos sobre os ombros é o próprio “cosmos, que o mítico Atlas sustenta em seus
ombros”; “é o mundus imaginalis [mundo imaginário].”59
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Resumo: O principal objetivo desse artigo é refletir sobre a arte ativista na história da arte. Pontua-
se a fervorosa relação entre arte e política no século XX por meio de uma digressão histórica
das vanguardas antiartísticas do modernismo. Levanta-se questões sobre os limites das
classificações e do historicismo, principalmente na história da arte. E por último, utiliza-se
principalmente as obras de Jacques Rancière para analisar aspectos do modernismo e entender por
meio dos regimes da arte sua relação com a arte ativista.
Introdução
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Os coletivos artísticos buscam se organizar via Facebook e e-grupos – muitas vezes esse
formato inicial do grupo se expande, extrapolando o coletivo que iniciou o processo de formação,
culminando em uma microrrede. Essas iniciativas visam buscar um caminho coletivo para as ações
e questionamentos de forma mais democrática do que o tradicional sistema de arte. O sistema
artístico formal e a indústria cultural, suas teorias e questionamentos, se constituem em um
ambiente restrito e seletivo formado por artistas, críticos, curadores e estudiosos de arte. A massa
(grande público) fica à margem das discussões. Muitos dos coletivos artísticos trocam o espaço
expositivo da galeria pela rua, dessa forma o processo detrabalho dos artistas e o resultado,
60 No dia 1 de maio de 2014, o coletivo Andróides Andrógenos, em parceria com o Estúdio Lâmina, ocuparam o prédio de
número 63 da Rua do Ouvidor no Centro Histórico de São Paulo, depois de passar mais de dez anos abandonado.
61 O Ateliê Compartilhado, fruto de ocupação, realizada no final de fevereiro de 2014, pelo Movimento de Ocupação de
Espaços Ociosos, em casarão amarelo que se encontra na Rua da Consolação esquina com a Rua Visconde Ouro Preto,
no centro de São Paulo.
62 Em 2 de maio de 2014, artistas do Laboratório Compartilhado com o apoio da Cooperativa Paulista de Teatro,
Movimento de Ocupação de Espaços Ociosos, Ateliê Compartilhado Casa Amarela, além de vários artistas
independentes, ocupam a antiga sede da Escola de Ballet do Teatro Municipal, situada no Vale do Anhangabaú.
63 Desde de 25 de janeiro de 2014, um grupo de jovens começou a utilizar a entrada da via de acesso leste-oeste para
ruas Caio Prado, Augusta e Marquês de Paranaguá, na região central de São Paulo e sofre com a ameaça de construírem
prédios no local.
65 MESQUITA, A. Insurgências poéticas: Arte Ativista e Ação Coletiva. São Paulo: Anna Blume, 2011.
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culminam em ações efêmeras, pontuais e coletivas, na cidade. Isso acontece pois não são mais uma
obra de arte nos padrões da arte moderna, e sim no conceito da arte contemporânea.
As ações dos coletivos são de curta duração, atacam a reprodução das normas sociais
viciosas, crenças preconceituosas, desigualdades e opressões. Utiliza-se um vocabulário oriundo
das “ciências da guerra” como os conceitos: táticas e estratégias.66 Para o situacionista Raoul
Vaneigem, em sua obra A Arte de Viver para as Novas Gerações 67, tática serve para conter a dispersão
da espontaneidade, enquanto a estratégia é a construção coletiva de um espaço ativado para a
revolução utilizando as táticas da vida cotidiana.
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nos modelos de pensamento até então adotados e essas questões se tornaram preponderantes para
a Arte Contemporânea como a arte da instalação e as performances.
A arte ativista, para André Mesquita, consiste na “atuação do artista envolvido nas lutas,
nos conflitos e nas transformações sociais de sua época”.70
Tomando como ponto de partida essa definição de Mesquita sobre a arte ativista e a
perspectiva histórica da Revolução Industrial, que se inicia na segunda metade do século XIX, será
mostrado como o artista moderno não só representa a luta de sua época por meio da pintura mas
como também participa ativamente dela. A Revolução Industrial traz mudanças sociais e
econômicas significativas, como o surgimento da classe burguesa, e consequentemente a partir do
seu poder econômico surge um mercado de arte internacional e surge a noção de arte como
investimento.
O modernismo europeu em suas primeiras décadas desde o programa de Gautier (“arte
pela arte”), passando pela concepção de Manet (pintura como percepção auto-reflexiva) foi
caracterizado, ou assim classificado pelo autor Peter Burguer71, como primeiro modernismo.
Segundo Burgüer o esteticismo, característica marcante do primeiro modernismo, foi o ponto alto
da autorreflexão burguesa, intensificando a experiência estética isolada e contemplativa. Pautando
assim, uma tal “autonomia da arte”.
O realismo – movimento artístico que surgiu na segunda metade do século XIX e foi
liderado por Courbet e Daumier – apontava uma nova concepção de arte social, engajada com os
movimentos sociais e políticos da época, discutindo pela primeira vez a função social da arte. A
partir desse movimento, caracteriza-se o segundo modernismo. Nesse artigo prevalece o foco no
segundo modernismo, analisando as vanguardas históricas antiartísticas a fim de possibilitar uma
compreensão acerca da conjuntura que origina, de certa forma, a arte ativista.
O Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo e Construtivismo são responsáveis pela falência da
arte centrada nas suas questões formais e a abertura da mesma para novas percepções do objeto,
do público, de autoria, de suportes e do espaço institucional, características de ruptura que levarão
ao fim de uma narrativa linear de superação e que permitirá uma nova concepção, a arte
contemporânea. As novas concepções de arte serão denominadas como arte contemporânea e
muitas dessas concepções possibilitarão alargar e até classificar um universo relativamente novo,
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pelo menos enquanto objeto de estudo e como terminologia, que aqui se denominará como arte
ativista.
As vanguardas históricas antiartísticas têm em comum o engajamento político e a inovação
estética, indo de encontro com às convenções da arte burguesa. O interessante é notar que mesmo
esses movimentos negando a arte, as “novas propostas” para a arte, foram cooptadas e rotuladas
como “Arte”. E além dos manifestos e inserção em um século caracterizado por significativas
guerras e revoluções, ideologias e utopias, esses movimentos apresentam muitas singularidades
temporais, espaciais e conceituais.
Antes de adentrar nas vanguardas da antiarte faz-se necessário alertar para um perigo que
72
Benjamin pontuou em seu artigo A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica que é o da
“estetização da política” pela arte, é a proposta do fascismo, o regime político coopta a arte e
confisca sua liberdadede, obrigando-a seguir e reproduzir ideologias impostas pela ordem vigente.
Foi o que aconteceu com o Realismo Socialista, por exemplo. E o autor contrapõe com a proposta
comunista de “politização da arte”.
No início do século XX o Manifesto Futurista, escrito em 1909 por Marinetti e publicado
no jornal francês Le Figaro, inaugura a era dos manifestos artísticos. E pode-se notar a influência
do “Manifesto Comunista”, 1848, escrito por Marx e Engels como um presságio da tradição
moderna dos manifestos artísticos. Os futuristas glorificavam não só a velocidade e a energia
mecânica, como também a guerra e a violência, sintetizando assim os elementos de afinidade
ideológica entre o Futurismo e o Fascismo.
72BENJAMIN, W. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, In: LIMA, Luiz Costa (org.), Teoria da
Cultura de Massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 209-239.
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O Dadaísmo chego a Paris, levado por Picabia e Tristan Tzara, que se juntam a André
Breton e seu grupo. O movimento parisiense logo se cindirá em duas tendências antagônicas: uma
chefiada por Tzara, que se mantém fiel ao espírito dadá de Zurique, e a outra, por Breton, que dará
origem ao Surrealismo. Esse grupo, que estudava Freud e fazia experiências com o sonho e com o
sono hipnótico, procurou superar o sentido de grupo destinado apenas à divulgação de suas ideias
para se transformar numa equipe de estudos e experimentações psicanalíticas. Ao niilismo dadaísta
opunham agora o conhecimento total do homem, tanto a poesiaquanto a pintura não passavam de
meios de investigação que lhespermitiam, como cientistas, explorar o inconsciente, o sonho,
omaravilhoso. Assim, o grupo foi se organizando como frente única de pesquisas, contando com
poetas e pintores, dentre os quais Artaud, Soupault, Aragon, Vitrac, Desnos, Prévert e Eluard,
liderado por Breton, que em 1924 lançaria o primeiro manifesto definindo afinal as diretrizes desse
grande movimento cultural, chamado surrealismo.
Ao abandonar a ideia de negação da arte (conceito fortemente estabelecido no dadaísmo),
os surrealistas darão início à criação espontânea e à subversão do senso comum criando jogos de
livre associação, como os cadavre exquis (cadáveres esquisitos) que se desenvolviam por meio de
desenhos e frases. No primeiro manifesto surrealista, escrito em 1924 por Breton, dava-se ênfase
ao maravilhoso e à liberdade, que proviam da libertação da lógica, ato que só seria possível por
meio do inconsciente. “Não se poderia aplicar o sonho, ele também, resolução de questões
73A República de Weimar foi criada no contexto de derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial em que a
liderança militar alemã prestes a peder a guerra passa o poder para os democratas que ficam incubidos de negociar a
paz; ficando um contraste entre a nação que outrora fora poderosa, nos tempos do imperador, em relação a realidade
democrática, abastecida de derrota. Devida a associação negativa a democracia implantada sobre essas circunstâncias,
possibilitou para que mais tarde Adolf Hitler se posiciona-se com um discursoregressista ao passado imperial e
antidemocrático e implanta-se o nazismo na Alemanha.
74 Manifesto escrito por Raoul Hausmann e Richard Huelsenbeck, em 1917, eles queriam unir todos os homens
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fundamentais da vida?”76. O segundo Manifesto Surrealista foi publicado pelo mesmo escritor em
1930, e tratava da posição política e dos princípios surrealistas.
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deve ter um uso e a responsabilidade social é aderida a arte 78. A participação e a ação coletiva nas
vanguardas artísticas da primeira metade do século XX foram determinadas por programas
políticos específicos e reinvindicações distintas que podem ser categorizadas, de acordo com
Christian Kravagna (1998), como “participação revolucionária” (dissolução da arte na vida),
“reformista” (democratização da arte) ou “ didática” (educação e alteração das percepções do
público).79
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surpreendeu aqui no Brasil, porque as ordens, “se mesmo necessárias, eram e são recortadas,
díspares e co-presentes”. 82
Já se é dito com uma certa recorrência sobre uma história da arte ocidental, assumindo uma
certa obtusidade em relação a arte oriental. A Arte Africana, assim como a arte de diversas outras
etnias, não foram legitimadas na história da arte ocidental que estão reivindicando essa inclusão.
OkwviEnwezor, no artigo Onde, o quê, quem, quando: Algumas notas sobre o conceptualismo., pretende
alargar a restrita certeza da arte conceitual que aconteceu no eixo euro-norte- americano. A arte
africana é centrada no objeto, mas em seu significado, o objeto e a linguagem interpelam-se
mutuamente, a comunicação verbal é altamente valorizada e a política assume um papel central.
Enquanto na concepção restrita da arte conceitual detêm-se a noção da desmaterialização do
objeto, a arte baseada na linguagem, na crítica institucional e no não-visual.
Em uma entrevista com Gilles Deleuze ele fala da “maioria” que é constituída por homens,
brancos e ocidentais. Hegel fala sobre o “mundo histórico”, que reconhece somente certas regiões,
banindo o resto para fora da “fronteira da história”. Esse olhar etnocêntrico se perpetuou também
com os chamados movimentos de vanguarda, que recusam o “ do outro”, aceitando apenas aquilo
que era legítimo “seu”.
Olhar ao redor sem se ater aos paradigmas estabelecidos é essencial para a construção do
conhecimento. Questioná-lo e reformulá-lo, se assim for preciso. Beatriz Preciado, no Manifesto
Contrasexual83, fala de como é fácil em filosofia tomar partido de determinadas escolas e
pensadores, apelando para a autoridade da tradição, e usa o exemplo de Marx. Ao escrever O
Capital a direção convencional seria começar sua análise econômica partindo da noção de
população mas Marx surpreendeu a todos e focou sua análise em torno da noção de mais valia,
evitando assim os paradigmas das teorias precedentes. As perguntas que convêm serem feitas
quando pensado dentro dessa conjuntura “marginal”, são: O que ainda não foi explorado? E aquilo
ou aqueles que ainda não foram vistos? Porque tais fatos, tais artistas, tais movimentos tiveram
visibilidade para a história e para a história da arte?
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concluída, que ela exige refundações incessantes, sustentações, reavaliações, em suma, um trabalho
de reconstrução permanente”. 84
Por fim, o objetivo desse artigo é refletir sobre os paradigmas já estabelecidos e mostrar
teorias que abordam a partir de outro ponto de vista os movimentos e os regimes estéticos. E
assim, mapear a arte ativista como uma possibilidade plausível dentro da história da arte e da
reflexão estética.
Mas Rancière acredita que talvez as noções de modernidade e de vanguarda “não tenham
sido bastante esclarecedoras para se pensar as novas formas de arte desde o século passado, nem
as relações do estético com o político”. Pois, segundo o autor, há uma confusão eminente,“uma
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coisa é a historicidade própria a um regime das artes em geral. Outra, são as decisões de ruptura ou
antecipação que se operam no interior desse regime”87. Portanto Rancière acredita que o
modernismo se apoiou numa historicização simplista: como a passagem à não-figuração na pintura,
uma passagem teorizada de forma categórica e antimimética; quando a modernidade foi invadida
por todo tipo de objetos e máquinas, trataram logo de anunciar a “tradição do novo”, “ uma
vontade de inovação que reduziria a modernidade artística ao vazio de sua autoproclamação”88.
Quando os pilares simplistas do modernismo vieram abaixo, fazendo um “corte temporal efetivo”
decretando o fim de um período histórico, chamaram-no de pós-modernidade como uma maneira
de trazer à tona os equívocos da modernidade, o que não seria preciso, pois para o autor, tanto o
modernismo quanto o pós- modernismo fazem parte de um mesmo regime, que ele denominou
de regime estético:
O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no singular
e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de
temas, gêneros e artes. Mas ao fazê-lo, ele implode a barreira mimética que
distinguia as maneiras de fazer arte das outras maneiras de fazer e separava sua
regras da ordem das ocupações sociais. Ele afirma a absoluta singularidade da
arte e destrói ao mesmo tempo todo critério pragmático dessa singularidade.89
Nessa citação o autor, além de explicar o que caracteriza o regime estético das artes - a
desobrigação de qualquer regra - ele analisa que ao romper com a mimese, que caracterizava o
regime anterior ao regime estético, na verdade, paradoxalmente afirma-se a singularidade da arte.
A arte passaria a constar no singular destruindojustamente o que a distinguia diante das outras
maneiras de fazer, e das regras da ordem das ocupações sociais. E o autor descredita o fato “crise
da arte”, pois é simplesmente a derrota de um equívoco simplista modernista, que se afastou das
“misturas de gêneros e de suportes, como das polivalências políticas das formas contemporâneas
das artes.”90
Rancière aponta também duas grandes formas de confusão. A primeira quer uma
modernidade identificada apenas à autonomia da arte, uma revolução antimimética da arte. Sendo
assim “cada arte afirmaria então a pura potência de arte explorando os poderes próprios do seu
medium específico”91. E a segunda confusão, que ele chama de modernistarismo que
estárelacionado à valorização da arte como forma e autoformação davida, ou, a expressão “arte e
87 RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: 34, 2005, p.27.
88 ___________. A partilha do sensível, p. 34-35.
89 ___________. A partilha do sensível, p. 34.
90____________. A partilha do sensível, p. 38.
91 ___________. A partilha do sensível, p. 38.
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vida”. Ranciére acredita que a modernidade tem como referência anoção de educação estética do homem,
de Schiller, em que o pensávele o sensível perdem a hierarquia, e constituem “algo como uma
novaregião do ser, a da aparência e dos jogos livres”. A partir domomento que o homem passa a
habitar o mundo sensível ele está aptoa “viver numa comunidade política livre”, portanto, pode-se
dizerque essa revolução estética “ produziu uma nova ideia da revolução política”92. Mas quando
há a falência da revolução, há também a falência do modernitarismo, ou seja, essa ideia que ligou a
arte e a vida em uma coisa só. O Surrealismo, de uma certa forma, identificou esse equívoco do
modernitarismo, da arte e vida.
É possível refletir sobre a arte ativista dentro da perspectiva teórica de Rancière. Se a ideia
de “arte e vida” foi na verdade um equívoco, pois não havendo revolução, seu significado se esvazia
de sentido, principalmente considerando que a “autoemancipação da humanidade” terminou nos
campos de extermínio nazista93, não faz sentido falar em arte ativista nos moldes do modernismo,
ou do modernitarismo segundo o autor. Será que não cabe pensar segundo o regime estético que
possibilita uma leitura por meio de releituras livres e que coloca a arte no “singular” e apontar no
sentido de que toda arte é política?
Alguns autores iluminaram essa questão, entre eles, Agamben e Rancière. Para Agamben, a
arte é política por “operar” com os sentidos, portanto permite abrir possibilidades de uso e ação:
A arte não e uma atividade humana de ordem estética, que pode, eventualmente
e em determinadas circunstâncias, adquirir também um significado político. A
arte e em si própria é constitutivamente política, por ser uma operação que torna
inoperativo e que contempla os sentidos e os gestos habituaisdos homens e que,
desta forma, os abre a um novo possível uso. Por isso, a arte aproxima-se da
política e da filosofia até quase confundir-se com elas. Aquilo que a poesia
cumpre em relação ao poder de dizer e a arte em relação aos sentidos, a política
e a filosofia tem de cumprir em relação ao poder de agir.94
Trabalhando além do campo sensível, a arte “opera” num comum, e segundo Rancière, a
“partilha do sensível” causa rupturas, ou recortes nesse comum, definindo lugares e portanto
formando nessa partilha, um “comum partilhado e partes exclusivas”. Rancière demonstra como
os mesmos padrões de ruptura são encontrados na estética e na política.Para o autor a política é:
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dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para
dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo”.95
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Resumo: Neste artigo será descrita uma experiência etnográfica sobre o coletivo Parque
Augusta. A pesquisa de campo ocorreu no primeiro semestre de 2013, investigando um
coletivo de arte ativista que luta pela não construção de prédios em uma área que detêm o
último resquício de mata atlântica no centro da metrópole paulistana. O objetivo é entender
a luta do coletivo e a relação com a ressignificação dos espaços públicos, como se desenvolve
o favorecimento de interesses privados no panorama contemporâneo das cidades e
contextualizar as ideologias do coletivo, que criticam as normas do atual modelo operante.
Serão utilizadas as reflexões de David Harvey sobre as forças econômicas e os entraves
políticos dentro do modo de produção capitalista e as consequências no espaço urbano
devido a uma lógica de livre fluxo de mercadorias e serviço.
Introdução
O artivismo é compreendido como a relação entre as práticas estéticas e discursivas
da arte e o ativismo político. Esse movimento, dialoga com a arte contemporânea e suas
inúmeras inquietações tais como o que é arte, o engessamento do ambiente de exposição de
arte, a não autoria, a retomada do espaço público, a contemporaneidade como um simulacro,
e também qual o papel do público como receptor dessa arte. O debate acerca da questões
que envolve a arte contemporânea é tratado, por exemplo, em autores como o Brian
O´Doherty, cuja obra No interior do Cubo branco99 analisa os espaços expositivos. Também
relevante para o debate a curadora e professora associada do Museu de Arte Contemporânea
da Universidade de São Paulo, Katia Canton, autora da obra Do Moderno ao Contemporâneo100
que pode ser considerada uma introdução à coleção Temas da Arte Contemporânea.
No panorama atual da cidade de São Paulo atuam coletivos artivistas que se
movimentam no sentido de se apropriarem dos espaços públicos e de espaços privados
ociosos para ressignificá-los. Esses grupos procuram variação das possibilidades de
99 O´DOHERTY, B. No interior do Cubo branco: A ideologia do espaço de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
100 CANTON, K. Do Moderno ao Contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
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utilização que normalmente trazem articulações voltadas para ações sociais e políticas que
se apoiam em atividades artísticas. Como exemplo destas atividades, podemos citar: a
“Ocupa Ouvidor 63”101, a “Casa Amarela”102, o “Laboratório Compartilhado TM13”103, o
“Buraco da Minhoca”104 e o “Parque Augusta”105. Esses movimentos citados optam pela
auto-gestão autônoma em um modelo que prega a horizontalidade, ou seja, uma não
representatividade unilateral. Produzem, assim, uma formação em que todos se representam
e deliberam suas questões, tomam decisões e conduzem ações através de assembleias
públicas.
Na concepção de André Mesquita106 há influência da arte conceitual na arte ativista,
pois para ele os coletivos de arte privilegiam o processo do trabalho e a variedade dos
campos teóricos mais do que a produção do objeto em si. As ações na arte ativista não se
restringem apenas a intervenções e performances, mas abrangem uma postura de
movimentação social e política: as ações se ramificam para manifestações, protestos,
mobilizações comunitárias, projetos artísticos e até ocupações de prédios abandonados
como o Cine Marrocos pelo MSTS107 no centro de São Paulo onde promovem saraus com
intervenções estéticas e projetos de residência artística e pedagógicos como oficinas de
pintura, poesia, teatro e circo para os moradores e a comunidade carente do entorno. Os
resultados destes processos não se configuram mais como obra de arte, embora se utilizem
de experiências estéticas, não são objetos com preocupações formais, mas ideias. A
necessidade de “verdadeiros artistas” se foi, abrindo espaço para os “não artistas”.
Os coletivos artísticos buscam se organizar via Facebook e e-grupos – muitas vezes
esse formato inicial do grupo se expande, extrapolando o coletivo que iniciou o processo de
formação, culminando em uma microrrede – iniciativas que visam buscar um caminho
101 No dia 1 de maio de 2014, o coletivo Andróides Andrógenos, em parceria com o Estúdio Lâmina, ocuparam o prédio
de número 63 da Rua do Ouvidor no Centro Histórico de São Paulo, depois de passar mais de dez anos
abandonado.
102 O Ateliê Compartilhado, fruto de ocupação, realizada no final de fevereiro de 2014, pelo Movimento de Ocupação de
Espaços Ociosos, em casarão amarelo que se encontra na Rua da Consolação esquina com a Rua Visconde Ouro Preto,
no centro de São Paulo.
103 Em 2 de maio de 2014, artistas do Laboratório Compartilhado com o apoio da Cooperativa Paulista de Teatro,
Movimento de Ocupação de Espaços Ociosos, Ateliê Compartilhado Casa Amarela, além de vários artistas
independentes, ocupam a antiga sede da Escola de Ballet do Teatro Municipal, situada no Vale do Anhangabaú.
104 Desde de 25 de janeiro de 2014, um grupo de jovens começou a utilizar a entrada da via de acesso leste-oeste para
ruas Caio Prado, Augusta e Marquês de Paranaguá, na região central de São Paulo e sofre com a ameaça de
construírem prédios no local.
106 MESQUITA, A. Insurgências poéticas: Arte Ativista e Ação Coletiva. São Paulo: Anna Blume, 2011,
p. 14.
107 Movimento Sem Teto De São Paulo foi formado em 2012, por integrantes da sociedade civil, que tem como
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O Movimento Parque Augusta iniciou sua luta em meados de 2013 com um único
objetivo: impedir que as atuais construtoras proprietárias do terreno construíssem três
prédios dentro da última área do centro de São Paulo com resquício de mata atlântica e que
estava sendo utilizada como parque. Esse espaço é popularmente conhecido como Parque
Augusta pelo habitantes, trabalhadores e frequentadores da região, até o momento que os
portões foram fechados por determinação das construtoras Setin e Cyrela. O terreno em
questão possui uma área de 24.750m² e é dividido em três lotes. Em um desses lotes,
ocupando cerca de 40% do local, há um bosque que conta com mais de 800 árvores. Além
do valor ambiental, o espaço apresentava uma função social, visto que a área era utilizada
como parque, antes das incorporadoras fecharem os portões, no dia 29 de dezembro de
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2013. O seu valor histórico também é inestimável, o tradicional colégio feminino Colégio
Des Oiseaux foi inaugurado em 1907 e encerrou suas atividades 1969.
As questões jurídicas levantadas pelo movimento decaem em transações irregulares
e leis não cumpridas. A venda do terreno ocorreu ilegalmente, devido a dívidas ativas de
IPTU,
Termo de Ajuste de Conduta108 não cumpridas e o Direito de Preempção109 que não
foi respeitado pela prefeitura, que abdicou da compra do terreno sem as devidas consultas
públicas. O antigo proprietário, o banqueiro Armando Conde, não poderia ter realizado a
venda que ocorreu em novembro de 2013, para as construtoras Setin e Cyrela, mas assim o
fez, através de um contrato entre particulares. Porém, na matrícula atual do terreno o
proprietário ainda é Armando Conde. Outro ponto negligenciado foi a clausula pétrea
presente na escritura do terreno, que afirma a obrigatoriedade de se manter aberta ao passeio
público uma passagem permanente que ligue o bosque às ruas Caio Prado e Marques de
Paranaguá, passando pelo lote do estacionamento do terreno. O terreno encontra-se
atualmente com os portões fechados, negando o acesso de passagem ao público.
Diante das irregularidades jurídicas relacionadas à venda ilegal do terreno, as regras
neoliberais imperam, substituindo as “instituições democráticas” por leis e parcerias
público-privadas feitas sem transparência, que imperam no lugar das decisões “baseadas em
solidariedades sociais”110. A política foi “despolitizada e mercantilizada” agindo conforme
os interesses da classe dominante e o Estado está ligado ao capital111. Portanto, a classe
política e o Estado seguem favorecendo o lucro da classe econômica dominante.
Essa simbiose entre a classe política e a classe econômica dominante é praticada, por
exemplo, por meio do financiamento de campanhas eleitorais por parte de instituições
privadas. Os resultados desses financiamentos são gestões sob fortes influências
corporativas que trabalham para garantir interesses particulares que visam ao lucro. Deixam
de lado o crescimento urbano favorável à população, a preservação das áreas verdes e
espaços públicos que favoreçam as relações sociais. A arquitetura e o projeto urbano
também são orientados para o mercado, o que traz um sério risco “de atender às
108 Os termos de ajustamento de Conduta ou TACs, são documentos assinados por partes que se comprometem a
cumprirem determinadas condicionantes.
109 Direito de Preempção é um instrumento que visa conferir ao poder público, a preferência para adquirir imóvel
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112 HARVEY,D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Ed. Loyola
,1993, p.78.
113 HARVEY. Condição pós-moderna, p.94.
114 HARVEY. Cidades rebeldes Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, p.28.
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Para Harvey, em sua obra O enigma do capital e as crises do capitalismo, nas crises do
sistema capitalista surgem inúmeras possibilidades para a burguesia explorarem algum
território novo, mas também para os “movimentos radicais desafiarem a reprodução de um
poder de classe já desestabilizado [...] As crises são momentos de paradoxo e possibilidades,
das quais todo tipo de alternativa, incluindo socialistas e anticapitalistas, podem surgir”. 115
O sistema capitalista busca o lucro, sempre. E para lucrar é preciso estar em
constante crescimento, não importando "as consequências sociais, políticas, geopolíticas ou
ecológicas" na corrida pela acumulação do capital. Portanto, quando há crescimento há
lucro, mas se não tem crescimento, tem crise.116 O crescimento no sistema capitalista deriva
"da diferença entre o que o trabalho obtém e aquilo que cria", portanto a exploração ocorre
por meio do trabalho vivo na produção. Nesse sentido, a luta de classes se formaliza para
ver quem serão aqueles que controlarão o trabalho na produção e no mercado. 117
A busca pelo crescimento constante no capitalismo ocasiona não apenas a
exploração da força de trabalho, mas leva também à exploração desenfreada dos recursos
naturais e exploração econômica das cidades. A vida do indivíduo é também explorada
quando não há vida social por excesso de trabalho e falta de espaços públicos destinado à
convivência. O sistema se apoia na exploração como forma de crescimento, dessa maneira
estará sempre propenso a constantes crises, que apresentam “fases periódicas de
superacumulação” que poderiam ser definidas como “uma condição em que podem existir
ao mesmo tempo capital ocioso e trabalho ocioso sem nenhum modo aparente de se unirem
esses recursos para o atingimento de tarefas socialmente úteis”118. Portanto, a
superacumulação gera ou desemprego, ou excesso de mercadorias e de estoques, ou um
excedente de capital, ou até mesmo, todas as alternativas podem ocorrer ao mesmo tempo
gerando uma crise global como a ocorrida em 2008, inicialmente, nos Estados Unidos, a
“crise das hipotecas subprime”, que levou ao destruimento de todos os grandes bancos de
Wall Street e o congelamento dos mercados globais de crédito.
Para que a acumulação do capital volte ao crescimento de 3%, que é o crescimento
almejado para se obter lucro, são necessárias medidas radicais, para poder absover o capital
excedente e encontrar uma nova base para lucrar. Harvey chama de “destruição criativa” as
formas de destruir os “êxitos de era precedentes por meio de guerra, desvalorização de bens,
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Estratégias “menos radicais” são acionadas pela política burguesa para suprimir a
superacumulação como, por exemplo, a desvalorização do preço das mercadorias
(liquidações), a desvalorização do valor do dinheiro (inflação). A absorção do capital
excedente também pode ocorrer por meio da expansão geográfica, pois representa uma
nova área a ser explorada e com capacidade de acolher capital e trabalho excedentes.
Quando países desenvolvidos emprestam dinheiro à América Latina ou para países atingidos
pela guerra ou por desastre natural para a construção de infraestruturas que trarão retorno
a longo prazo, são exemplos de estratégia para absorver a superacumulação.
Em um sistema onde as pessoas “válidas” são apenas aquelas que venderam sua
força de trabalho e estão aptas a produzir e alimentar uma engrenagem que visa apenas o
lucro é importante encontrar as lacunas do sistema capitalista que são espaços onde o
capitalismo não consegue manipular por meio de estratégias de extração de mais-valia e
mantenedoras da ordem social. Os coletivos artivistas identificam discurso neoliberal que
prega a liberdade individual, a responsabilidade pessoal, as vantagens das privatizações e as
virtudes do livre fluxo de mercado como forma de consolidar o poder da classe capitalista,
procuraram a lacuna do sistema, espaços ociosos a espera da valorização, para ocupar e
resistir aos ideais neoliberais.
A ideologia política do Movimento Parque Augusta, num âmbito geral se identifica com
o que se aproxima da democracia direta, tomam decisões e conduzem ações através de
assembleias públicas. Uma forma de organização que foge do controle e da cooptação do
sistema, por não apresentar um líder, todas as questões são debatidas e votadas antes de
serem encaminhadas. Essa forma não possui vínculo institucional, não depende de repasse
de verba da prefeitura nem do governo do estado, as assembleias são públicas e realizadas
em espaço público: se articulam de forma autônoma e por meio da autogestão.
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121 HARVEY. Cidades rebeldes Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil, p.33.
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Resumo: Apesar de marcar em Minas o nascimento de uma época criativa sem precedentes na
América Portuguesa, o nosso Barroco inicial não havia recebido até o momento a atenção devida.
Focados no período rococó e, num segundo plano, nas pesquisas acerca da talha joanina, os
levantamentos empreendidos no último século praticamente ignoraram a produção estética
efervescente que a região mineradora abarcou no princípio do setecentos. A talha, a pintura e as
oficinas, todos primordialmente fundamentais para se ter um quadro completo do cenário cultural
das Minas, paradoxalmente permaneceram como um hiato historiográfico, lacuna visível na
História da Arte Luso-brasileira. É com o intuito de dar um passo inicial na reparação desse vazio
acadêmico que propomos o presente estudo. Nele é apresentada rápida abordagem sobre o gosto
e o modismo da época, as escolas circulantes e os territórios abarcados pelo embrionário surto
inventivo de nossa arte.
Breve apresentação
A principal realização artística do período inicial de Minas Gerais reside num característico
desenho de retábulo, composto de arquivoltas e colunas torsas, invenção tipicamente lusitana. Esse
tipo de barroco é chamado, em geral, de Estilo Nacional (nomenclatura que iremos problematizar
rapidamente abaixo) e é encontrado em determinadas regiões de Minas, desde localidades da antiga
Comarca de Vila Rica e Sabará até o norte, na Comarca do Serro. Contudo, salta aos olhos, pela
quantidade e qualidade artística, a confecção deste tipo de peça na Bacia do Rio das Velhas. Há
retábulos afins em Sabará (Matriz de Nossa Senhora da Conceição, Igrejinha de Nossa Senhora do
Ó e Capela de Santo Antônio de Pompéu), Raposos (Matriz de Nossa Senhora da Conceição),
Caeté (Capela de Nossa Senhora do Rosário), Itabirito (Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem
e Capela de Nossa Senhora do Rosário de Acuruí) e em Ouro Preto, justamente em distritos
localizados nas cabeceiras do citado rio (Matriz de Nossa Senhora de Nazaré de Cachoeira do
Campo, Igreja de Santo Antônio de Glaura, Igreja de São Bartolomeu e Capela de Nossa Senhora
das Mercês, essas duas últimas no distrito de São Bartolomeu, e a capelinha de Santo Amaro no
povoado de Bota Fogo). Apesar da ligação inequívoca com criações portuguesas coetâneas, tais
obras apresentam características próprias, que transitam desde um gosto vernáculo (Raposos) até
complexas criações ornamentais (Matriz de Cachoeira do Campo).
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Subindo o Rio das Velhas, São Francisco e o Jequitinhonha, também encontramos peças
muito antigas. Há remanescentes em Matias Cardoso (Matriz de Nossa Senhora da Conceição),
Minas Novas (Igreja de Nossa Senhora do Rosário), Chapada do Norte (Matriz de Santa Cruz e
Igreja do Rosário) e, mais ao sul, São José de Itapanhoacanga, Costa Sena e Diamantina (Catedral).
Outra área que merece ser citada é aquela compreendida no antigo Termo de Mariana e
parte do de Vila Rica, no Vale do Rio Gualaxo (afluente do Rio Doce), sobretudo em distritos
marianenses como Camargos, Monsenhor Horta, Furquim e Ribeirão do Carmo. Ainda que as
criações dessa região estejam muito alteradas ou apresentem por vezes um gosto de transição, são,
contudo, importantes para compreendermos a difusão desse estilo em áreas de mineração intensa
em inícios do século XVIII.
O epíteto ‘Estilo Nacional’ passa atualmente por uma série de revisões. A partir da defesa
de nossa tese de doutoramento foi sugerido o termo ‘Barroco Português’, o qual vamos usar como
sinônimo de ‘Estilo Nacional’, terminologia antiga alcunhada por Robert Smith. O termo ‘Barroco
Português’, a nosso ver, foge dos problemas ligados ao uso do conceito ‘nacional’ aplicado a um
estado do Antigo Regime (conforme críticas diversas), mas ainda demonstra a especificidade
lusitana desse tipo de talha, inventada e difundida por entalhadores portugueses.122
Retábulos seiscentistas
Minas possui dois retábulos que julgamos serem os mais antigos ainda existentes (os quais
talvez até mesmo procedam de outras regiões): ou eles tem origem seiscentista, ou pelo menos sua
morfologia é toda arcaizante. Analisemos primeiro uma pequena peça da Igreja de Nossa Senhora
da Conceição de Matias Cardoso, que hoje abriga um São Vicente de Paulo.123 Trata-se de elemento
entalhado, de dimensões modestas, hoje desprovido de sotabanco e altar, restando somente o
tramo superior. Apresenta uma composição sui generis, não possuindo, entre outras peculiaridades,
uma arquitrave a separar os capitéis dos arcos (há, por outro lado, uma espécie de aduela a fazer tal
papel). Duas colunas torsas externas dão origem ao arco único e, no lugar que esperaríamos ver a
segunda coluna, existe uma espécie de lambril escultórico, desprovido de nichos, composto por
folhas de acanto (esse painel possui uma espécie de capitel e dá lugar, acima, a um apainelado
semicircular) - tal disposição faz com que as aduelas se conjuguem mal, dando impressão que se
desprendem dos arcos. Um grosso rendilhado guarnece a boca do camarim. Abaixo estão um
122 Vide BOHRER, Alex Fernandes. A Talha do Estilo Nacional Português em Minas Gerais: Contexto Sociocultural e Produção
Artística. 427f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Belo Horizonte, 2015.
123 Certamente é um orago posteriormente introduzido.
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pequeno pseudo-sacrário e duas mísulas (essas tem desenho bem corriqueiro e são quase idênticas
às da Igreja do Rosário de Chapada do Norte).
124Com vista a preencher da melhor forma possível a parede de fundo da Capela do Santíssimo, muito ampla nessa
Matriz. Há no batistério dessa igreja uma pequena porta, feita para cobrir o nicho dos santos óleos, que possui fatura
muito semelhante à talha desse retábulo do Santíssimo - teria pertencido originalmente a tal retábulo? Talvez tenha
sido a primeira porta de sacrário desse oratório móvel, colocada originalmente sobre um desaparecido altar.
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Percival Tirapeli já havia percebido a possível origem ou modelo formal dessa estrutura:
pequenos altares paulistas seiscentistas, como o da Fazenda do Piraí, tido como um típico padrão
bandeirante (a disposição da talha e a predominância de adornos fitomórficos lembra o artefato
cachoeirense). Teria essa peça mineira se originado em São Paulo? Corre tradição no distrito que
ela veio com os fundadores do arraial, abrigando uma pequenina Nossa Senhora de Nazaré
(substituída posteriormente pela atual).125 O interessante é que a imagem da lenda existe, guardada
no tesouro da igreja: uma escultura de terracota, talvez seiscentista, com tipologia semelhante ao
que se fazia em São Paulo e cujas dimensões se adequam ao camarim mencionado. É bem provável
que tanto o de Piraí, quanto o de Cachoeira, tenham sido oratórios móveis, tal como observa
125 COSTA, João Baptista da. Memória Histórica I. Cachoeira do Campo: manuscritos, 1965, s/p.
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Em geral, esses conjuntos apresentam arremates em arcos simples, que são continuações
de pilastras inferiores. Se simplificarmos o arcabouço complexo dos retábulos do Estilo Nacional
e focarmos na armação que está por trás das colunas e arcadas entalhadas, teremos o mesmo ritmo
encontrado nessas estruturas de carapinas, como demonstra a ilustração abaixo.
Uma possível prova de antiguidade pode estar nos dois pequenos altares laterais da igrejinha
de Nossa Senhora dos Prazeres de Lavras Novas, Ouro Preto. Apresentando desenho singelo, com
arremate fechado em arco simples, poderíamos toma-los como obra tardia, não fossem as duas
mulheres que ladeiam o camarim, à moda de cariátides - são análogas às numerosas figuras
femininas típicas do Barroco Português. Talvez sejam reaproveitamentos de peças anteriores, mas
também podem ser motivos escultóricos previstos em projeto, encomendados por uma irmandade
pobre ou destituída de mão de obra mais especializada. Esses pequenos ornamentos, nesse caso,
seriam uma forma de obedecer ao modismo da época.
Outro pormenor que mostra a ancianidade dessas peças são algumas janelas de prospecção
em retábulos laterais da Capela de Santana, no Morro de Ouro Preto. Essas janelas revelam os
característicos dentículos e acantos sobre fundo negro, típicos do Barroco Português, encontrados,
por exemplo, na Capelinha do Ó ou na Matriz de Cachoeira do Campo.
126TIRAPELI, Percival. Retábulos Paulistas. In.: Congresso Internacional do Barroco Iberoamericano, 2006, Ouro
Preto, Anais, p.276.
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Entre os retábulos mineiros que possuem essa forma e que se inserem em capelas do
primeiro quartel do XVIII (ou em templos posteriores dos quais temos notícia de traslado de
trastes), podemos citar: o da Capela de São João de Ouro Preto (muito semelhante ao de São
Miguel, em São Paulo), o mor de Santa Quitéria da Boa Vista (zona rural do município de Ouro
Preto, com profunda descaracterização em uma reforma recente), o da ermida de Santo Antônio
dos Tabuões (nas proximidades de Cachoeira do Campo, possui, inclusive, pintura fingindo
colunas torsas), os laterais da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres de Lavras Novas etc.
Esses artefatos eram, em geral, feitos por carapinas, usando-se serrotes e plainas. No
entanto, havia outro tipo de retábulo intermediário que necessitava do trabalho mais especializado
de marceneiros ou entalhadores, com cinzel e formão, os quais apresentavam espiras lisas. Essa
tipologia possui os mesmos componentes dos exemplares complexos, contudo não ostenta
nenhuma, ou quase nenhuma, talha. Arquitetonicamente tem os tradicionais sotabancos, mísulas
(ou atlantes em casos raros), colunas torsas lisas, arquitraves, arquivoltas com espiras, aduelas e
medalhões.
Esses objetos deviam ser uma alternativa para irmandades mais pobres ou eram
funcionalidades provisórias que acabaram por permanecer. Seus modelos podem estar em São
127Entre as peças lusitanas desse momento, podemos citar o retábulo-mor da antiga Capela do Paço Real de Salvaterra
de Magos, Portugal, onde arcos concêntricos simples se alinham com colunas de fuste liso cobertas de brutescos.
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Paulo (com alguns retábulos de técnica parecida) ou em Portugal (onde detectamos o mesmo
artifício, especialmente em regiões rurais - como um altar da Igreja de Santa Bárbara de Chaves).
129
-Ornamentação zoomórfica: compõem-se especialmente de pássaros, que podem ser fênix
(em geral bicando uvas ou sustentando putti e festões), águias (em lampadários) ou pombas (em
sacrários ou medalhões). Também é possível encontrar peixes, dragões (como em dois ‘bicheiros’
do coro de Cachoeira do Campo), cavalos, serpentes aladas etc.
-Ornamentação antropomórfica: composta por anjos (em geral mais adultos e de asas, podendo
ser trombeteiros e corneteiros, ocupando comumente áticos), putti (sempre nus), atlantes,
cariátides (muitas vezes vestidas à moda romana), mulheres seminuas (com braços arrematados em
volutas ou asas, de meio corpo, múltiplos seios, pingentes ao pescoço etc), querubins (só esculpidos
com cabeças e asas azuis e vermelhas), mascarões etc.
128 Em alguns exemplos o douramento foi posteriormente coberto por tinta, mas ainda é visível sob as camadas
pictóricas com desprendimento.
129‘Fenis’, conforme o português da época, constante em documentos. Vide ALVES, Natália Marinho Ferreira. A arte
da talha no Porto na época barroca. Vol. 1. Porto: Arquivo Histórico/Câmara Municipal do Porto, 1989, p.216, 277.
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-Plantas planas: as plantas mais comuns são aquelas de corte plano, com todas as colunas
emparelhadas, paralelas à mesa do altar, e recuadas em relação a este. É um desenho muito
encontrado em Portugal e em geral os retábulos mores tem essa consecução. De todas tipologias,
é a que apresenta arcabouço arquitetônico mais simples, estando toda ênfase estética na
ornamentação. Podemos citar como representantes desse modelo os retábulos mores de Cachoeira
do Campo, Ó de Sabará e Sé de Mariana. Em Portugal temos, entre outras, a Igreja do antigo
Convento de Nossa Senhora da Conceição de Marvila, em Lisboa.
-Plantas côncavas: as plantas côncavas tem um tramo arquitetônico mais elaborado, com o
uso de pilastras em forma de moldura e as colunas e arcos que vão se ‘afundando’ na composição,
em direção ao camarim. Algumas vezes esse tipo de arranjo - cujos mais importantes exemplares
no Brasil parecem ser os de Manoel de Matos na Matriz de Cachoeira do Campo (Rosário e São
Miguel) - é visto como uma tendência joanina, todavia, trata-se de solução que aparece em Portugal
antes das ondas italianas do século XVIII e lá é muito comum. Dos 211 retábulos lusitanos
catalogados por Paulo José Fernandes Lopes, 135 tem concepção parecida à de Manoel de Matos. 130
Lameira e Serrão, após citar o mor da Igreja do Mosteiro de São Bento, no Porto, também frisam
essa prevalência. Inclusive, citam documentos de época onde esse projeto côncavo aparece
explicitamente:
-Plantas convexas: muito mais raras são as plantas convexas, tanto no Brasil, quanto no reino,
sendo únicos representantes em Minas o Bom Jesus de Bouças e Santo Antônio, ambos em
Cachoeira do Campo. Chama atenção, nessas duas estruturas, a projeção das colunas centrais e,
consequentemente, da arquivolta correspondente. Em Portugal podemos citar o retábulo de Nossa
Senhora da Enfermaria na Igreja do Mosteiro de São Vicente de Fora, Lisboa.
-Mores com arremate trípede: essa tipologia foi a mais comumente usada nos retábulos mores,
sendo encontrada desde conjuntos mais simplificados (como a Matriz de Raposos), até estruturas
130 LOPES, Paulo José Fernandes. Os retábulos de Estilo Nacional na região da Terra Fria. 311f. Dissertação (Mestrado em
História) - Universidade do Porto, Faculdade de Letras, Porto, 2007, p.18.
131 Francisco Lameira “Documentos para a História do Barroco no Algarve”, Anais do Município de Faro, vols. XXXI-
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mais elaboradas (como a capela-mor de Pompéu). Seu esquema nasce provavelmente da dificuldade
de se harmonizar o semicírculo das arcadas com o vulgarizado teto trifacetado e sua solução pode
ter se inspirado em retábulos rurais portugueses (como os discretos apainaleados superiores da
Matriz de Escarigo) ou criações paulistas mais antigas (como o mor de Embu).
-Com nichos: são mais raros em Minas os nichos. Os vemos mais em retábulo-mores, como
o de Cachoeira do Campo (exemplar que conjuga nichos e pilastras) ou as duas grandes charolas
da Matriz da Conceição de Sabará. Alguns outros parecem ser modificações posteriores, como os
da nave da Matriz de São Bartolomeu.
-Com cortinado: variação menos comum são os cortinados sobre ou sob as arquivoltas. Vemos
isso especialmente no retábulo-mor da Matriz de Sabará (onde pesada cortina pende do teto
cobrindo todo conjunto) e na Matriz de São Caetano de Monsenhor Horta (com pequeno dossel
que se projeta do centro, abaixo dos arcos).
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antigas). Outro fator também apontado como artifício modernizante é o uso de nichos. Vejamos
um excerto do verbete ‘retábulo’, no clássico Glossário de Arquitetura e Ornamentação: “em
exemplares mais evoluídos, surge e presença ainda discreta de anjos e a adoção no altar-mor de
nichos laterais ao camarim ou tribuna do trono.”132
O uso de tal ornamentação, por outro lado, é mais típico de regiões centrais, seguindo
tradição longeva (lembremos que esse motivo iconográfico é comum desde o manuelino, passando
pelo maneirismo de Gaspar Coelho). Escultores mais gabaritados, com prática na anatomia
humana, deviam, certamente, provir ou se dirigir para cidades como Lisboa, Coimbra, Braga e
Porto.
Portanto, podemos sugerir uma nova forma de leitura morfológica, especialmente no que
diz repeito aos adereços antropomórficos: o uso ou desuso de anjos ou putti é sintomático da
origem geográfica dos entalhadores e/ou das dificuldades técnicas de confecção. Regiões
periféricas desenvolveram desenho escultórico que evita a figura humana; regiões centrais, com
artistas mais gabaritados, prezaram pela sua utilização.
Acreditamos que a talha de Cachoeira, tida como um conjunto mais evoluído, é resultado
da presença de artistas de regiões importantes (como bem ilustrado por Antônio Rodrigues Bello,
comprovadamente do Porto) ou de mãos tecnicamente capazes. Não nos surpreenderia se Manoel
132 ÁVILA, A. & GONTIJO, João. Barroco Mineiro - Glossário de Arquitetura e Ornamentação. Belo Horizonte: Fundação
João Pinheiro, 1980, p.173.
133 TELES, Augusto Carlos da Silva. A obra de talha em Minas Gerais, necessidade de pesquisa e de estudo. In: Revista
de escultores com despreparo na figuração humana e, posteriormente, deve ter virado modismo nas zonas rurais e
insulares (Açores, por exemplo).
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de Matos fosse de uma das principais cidades lusitanas ou lá pelo menos tivesse sido aprendiz
(contudo, somente pesquisas futuras revelarão isso).135
Outro equívoco a nosso ver é a afirmação de que nichos, ausentes em quase todos
elementos, sejam evidência de modernizações estilísticas. Também existem nichos no seiscentos,
incorporados na talha maneirista e Nacional, desde modelos mais antigos até os mais evoluídos.136
O uso desse artifício nos demonstraria o contrário do que em geral se aventou: o joanino os herdou
de momentos estilísticos anteriores (e não foi o Nacional que, influenciado pelas primeiras ondas
italianizantes de Dom João V, incorporou-os).
Todas essas obras de talha, mesmo quando não conhecemos documentação que
confirme as datas de fabricação, são, evidentemente as mais antigas da área
mineira, muito anteriores ao período que estamos estudando (1750-1850), ligadas
que são, completamente, a um padrão seiscentista que já estava sendo
ultrapassado no resto do Brasil, com o surgimento de outro tipo de gosto mais
evoluído, caracterizado pelo aparecimento, de doceis (sic), e pela diluição da
trama estrutural em voltas plenas dos coroamentos.137
135 Se Matos concebeu bem, com volumetria e anatomia satisfatória, seus meninos e anjos, o mesmo não ocorreu com
os escultores dos outros retábulos (os dois restantes da nave e o mor). Mesmo que usando ornamentação
antropomórfica de forma abundante (meninos, cariátides, querubins e anjos), o desenho final se mostrou canhestro.
Seguindo certamente um projeto proveniente de Portugal (ou feito por um artista português), tiveram evidente
dificuldade em representar os antropomorfismos. Sobre essa diferença estilística trataremos nos estudos de caso,
especialmente no tópico específico para a Matriz de Nossa Senhora de Nazaré de Cachoeira do Campo.
136 Citamos vários exemplos de retábulos lusitanos com nichos quando analisamos as tipologias portuguesas em outras
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criativas aparecidas lá surgem aqui, quase simultaneamente (como nichos, putti, mesmos projetos
e motivos etc). Talvez tenhamos uma possível explicação para esse aparente paradoxo.
É certo que a migração de artistas foi mais intensa durante as três primeiras décadas do
século XVIII e isso é justificável por não haver, nesse momento, mão de obra local. Quase todos
eram lusitanos e traziam as novidades estéticas atualizadas, agradando os comitentes (também
portugueses em sua maioria, prováveis conhecedores do que se fazia na metrópole).138 Nos anos
ulteriores isso deixou de ocorrer. Uma nova classe de encomendantes nativos surgiu juntamente
com a primeira geração de artífices locais, com destaque para os mulatos (dos quais Aleijadinho é
o principal exemplo). Houve então (e agora sim) uma separação maior, uma certa assincronia
criativa que conjugava novidades e arcaísmos, facilmente explicáveis pela distância do litoral e da
metrópole. Além dos tratados, esses novos artistas e mecenas tinham para si as velhas igrejas do
Nacional Português como fontes visuais (como os já citados bustos da Matriz de Cachoeira
reapresentados no Chafariz do Alto da Cruz de Ouro Preto). Despontava certo ‘desapego’ cultural
com relação à Europa, já que esses produtores construíram aqui sua realidade inventiva. Não
desconsideraram o Velho Mundo - longe disso - mas aqui as contingências dalém mar eram
reinventadas, movidas por uma nova sociedade em ebulição.
Essa conjuntura era muito diferente da situação inicial das Minas, quando não havia ainda
uma sociedade autóctone estabelecida: quem fez nossa arte inicial foi uma horda de estrangeiros
numa terra nova, com ideias recentes e contextos estéticos advindos dos lugares de origem.
Pela análise detida dos elementos antropomórficos, sugerimos que esse mestre atuou, como
dito, na Matriz de Nazaré (na capela-mor, arco e altares do cruzeiro), em Santo Antônio de Pompéu
(no arco-cruzeiro e no lavabo da sacristia, cuja carranca se assemelha aos dois mascarões sob os
nichos do mor da Nazaré, com desenho parecido das sobrancelhas, nariz e bigode), na Penha de
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Caeté (em fragmentos esparsos), no Rosário de Caeté (especificamente nos nichos das peças
laterais) e no medalhão do coro e sacristia da Matriz de Sabará (cuja posição dos anjos, dos putti-
estípites e dos porta-cortinas é exatamente a mesma daquelas encontradas nos retábulos laterais do
Rosário de Caeté e na densa decoração da matriz cachoeirense). Levantamos também a hipótese,
pela análise dos elementos fito e zoomórficos, que esta seja a mesma oficina que atuou no retábulo-
mor do Ó de Sabará.
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Portanto, a capela estava sendo ‘fabricada’ em 1717. Por outro lado, no testamento de
Antônio de Barros, benfeitor da matriz cachoeirense, datado de 1714, se entende que a capela-mor
(a qual recebeu esmolas pessoais dele), estava sendo construída já naquele ano. 141 São ambos os
templos, portanto, quase concomitantes, na talha e decoração, não subsistindo a hipótese que o
mor de Cachoeira é um retábulo tardio.
Teria sido esse escultor não identificado quem popularizou na capitania a ornamentação
antropomórfica? O certo é que no período subsequente tal decoração seria comum (como vemos
em Manoel de Matos e no joanino posterior). Seria esse mesmo mestre que difundiu o trono
anforado, infrequente em Portugal e tão comum no Vale do Rio das Velhas? Nos grandes centros
portugueses o trono mais corriqueiro é o escalonado (que nas Minas só aparecerá depois).
Desse mesmo mestre anônimo é o pequeno trono móvel confeccionado para se acoplar ao
trono principal do altar-mor (em ocasiões festivas este recebia a primitiva imagem de Nossa
Senhora de Nazaré).142 Ainda de sua lavra é a escultura do Divino Espírito Santo cujo aro que
guarnece a pomba é ornado com as características mulheres com pingentes.
139 Esses putti e anjos da capela-mor e arco-cruzeiro estão de tal forma repintados que foi impossível resgatar a
policromia original na recente restauração. Talvez muito da diferença notada entre esses e os da nave se deva a essa
repintura (a policromia da nave é indelevelmente superior).
140 Apud VASCONCELLOS, Sylvio de. Capela de Nossa Senhora do Ó. Belo Horizonte: Escola de Arquitetura da UFMG,
1964, p.11.
141 Arquivo da Casa do Pilar (Ouro Preto). Códice 23. Auto 239, 1º Ofício, p.2.
142 Essa engenhosa solução faz com que ambas as imagens da Virgem de Nazaré (a pequena e a grande) possam se
acomodar no retábulo-mor.
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Sobre a obra retabulística de Manoel de Matos não falaremos aqui, pelo espaço exíguo.
Antes, queremos frisar seu possível papel como estatuário, atuando em Cachoeira e Fidalgo (lugar
do qual temos comprovação documental de sua presença). A Matriz de Cachoeira do Campo
preserva expressivo acervo de imagens e, entre elas, nos chama atenção um grande São Miguel,
abrigado originalmente sobre o altar de sua invocação. É nítida a afinidade dessa peça com os
ornatos antropomórficos de Matos nos dois retábulos que confeccionou: possui o mesmo arranjo
distintivo dos cabelos, da testa, olhos, nariz comprido e reto, boca pequena, queixo arredondado.
Essas características são realçadas notadamente nos anjos que portam cornucópias e nos atlantes.
É evidente que o retábulo da Igreja de Fidalgo não é o original feito por Matos em 1727 e
sim uma alteração posterior. Contudo, o Ministério Público de Minas Gerais conseguiu resgatar
recentemente a imagem original que essa estrutura acolhia, uma Nossa Senhora do Rosário, furtada
há alguns anos. Existem algumas similaridades com elementos cachoeirenses: temos a mesma
representação do rosto, boca pequena, queixo leve e boleado e a dobradura do tecido (semelhante
àquela do saiote de São Miguel). Serão ambas da lavra de Manoel de Matos? O estado de
conservação e a dificuldade de acesso ao acervo de Cachoeira nos impossibilitou análise mais
aprofundada dessa hipótese.
Conclusão
Sabemos que essa abordagem sobre o Barroco Português, apesar de pioneira, é incipiente.
Muito ainda há por ser descoberto, especialmente em igrejas rurais afastadas, muitas delas,
inclusive, sem nenhuma lei protetiva. Do estudo desses novos retábulos, muita coisa pode ser
trazida à tona, mostrando verdadeiros momentos de especificidade criativa nas Minas do século
XVIII. Certa liberdade inventiva poderá ser constatada, mais até do que as grandes obras centrais,
constantemente alardeadas. Escultores e pintores populares, longe dos grandes centros, terão nos
legado uma arte sui generis de rara beleza, severa e rudimentar ou alegre e improvisada - isso é o que
notamos em retábulos da região de Itacambira, Minas Novas ou Chapada do Norte, por exemplo.
Aprofundar a pesquisa nas áreas centrais e alastra-la para áreas distantes deve ser a tônica dos
próximos trabalhos sobre a talha mineira.
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ARAÚJO, Íris Morais. Versões do “progresso”: a modernização como tema e problema do fotógrafo Militão
143
Augusto de Azevedo. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.18. n.2. p. 147-201. jul.- dez. 2010.
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144 SEVCENKO, Nicolau. O Prelúdio Republicano, Astúcias da Ordem e Ilusões do Progresso. In: História da vida
privada no Brasil. República: da belle époque à era do rádio. Organizador: Nicolau Sevcenko. Coordenador da coleção:
Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.7.
145 A escola dos Annales foi um movimento historiográfico que se iniciou na década de 1930, gravitando em torno do
periódico Annales d'Histoire Économique et Sociale, que renovou metodologicamente o campo de investigação da História,
buscando uma abordagem que contestava a visão propriamente positivista e que contemplava uma aproximação das
diversas Ciências Humanas e privilegiava métodos e fontes multidisciplinares.
146 BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: Edusc, 2004.
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Belo Horizonte, 12 a 15 de Abril de 2016
A herança da cafeicultura
A história recente da cidade de São Paulo, especialmente aquela referente ao século XX, é
conhecida por seu grande movimento de transformação econômica, urbana e social, oriundo,
principalmente, da riqueza advinda da cafeicultura do século XIX e pelo processo de
industrialização que se opera na primeira metade do século XX. Este processo apresentou
especificidades importantes que merecem uma leitura pormenorizada.
As transformações ocorridas no início do século XX, decorrentes da pujança econômica
que a cidade demonstrava, sintetizada a partir de 1890, e oriunda dos excedentes financeiros
provenientes da cafeicultura, marcou a ascensão de uma elite majoritariamente imigrante destituída
de tradições, que apresentava um caráter comercial e, posteriormente, industrial.
Esta destituição de tradições locais deve ser considerada com especial cuidado, pois será
responsável por caracterizar o modelo de transformação ocorrido: das moradias nas fazendas
provincianas cafeicultoras à ostentação de estilos diferenciados e misturados, quase todos de
origem européia (Art Noveau, Neoclássico e o ecletismo), que se afirmaram na arquitetura da cidade,
e que serão apropriados pela mesma elite e pelo governo provincial de São Paulo, na gestão de
Antonio Prado, como modelo e símbolo de desenvolvimento (a “europeização” do seu centro),
sendo este o período preferencial registrado por Aurélio Becherini. O projeto de uma civilização
moderna, branca e de perfil europeu, mesmo que procurasse obliterar os vestígios de uma barbárie,
147 Tradição historiográfica decorrente diretamente do movimento dos Annales, tendo como expoentes seminais Marc
Bloch e Lucien Febvre.
148 KOSSOY, Boris. Fotografia e História. São Paulo: Editora Ática, 1989.
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representada pela população pobre e uma cidade provinciana, era lugar comum no imaginário das
elites dominantes no início do século XX149.
149 SANTOS, Carlos José Ferreira dos Santos. Nem Tudo Era Italiano: São Paulo e Pobreza: 1890-1915. São Paulo:
Annablume, 1998.
150 SAES, Flávio. São Paulo republicana: vida econômica. In: História da Cidade de São Paulo, volume 3, a cidade na primeira
de São Paulo, volume 3, a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
152 SEGAWA, Hugo. São Paulo, veios e fluxos: 1872-1954. In: História da Cidade de São Paulo, volume 3, a cidade na primeira
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transformações acabou por tensionar o cenário. A cidade registrada nos cartões postais e álbuns
oficiais era muito diferente daquela registrada nos jornais operários. Apesar destas tensões, observa-
se na década de 1940 o anseio pelo modelo conhecido como american way of life, uma vez mais
rompendo com o padrão vigente153.
Em São Paulo não há nada acabado e nem definitivo, as casas vivem menos que
os homens e se afastam rápido, para alargar as ruas.154
O processo de transformação, definitivamente, se inseriu como elemento constituinte da
alma paulistana.
153 RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950. In:
História da Cidade de São Paulo, volume 3, a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
154 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Política e poder público na cidade de São Paulo: 1889-1954. In: História da Cidade
de São Paulo, volume 3, a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p.51.
155 KUBRUSLY, Cláudio. O que é fotografia. São Paulo: Brasiliense, 1983.
156 SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986.
157 DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. São Paulo: Ed. Papirus, 1994.
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da imagem ao seu referente foi superada. Na visão de Dubois, a fotografia apresenta alguns
corolários importantes: a singularidade, ou seja, a existência de um único negativo,
independentemente da quantidade de cópias que se deseja obter; a atestação, na medida em que,
na sua gênese, confirma ontologicamente a existência daquilo que mostra e, por último, o da
designação, intimamente relacionado ao referente, que revela o traço indiciário.
A complexidade na análise conceitual sobre o papel da fotografia se aproxima do limite do
inclassificável, pois ela reproduz um momento que poderá ser repetido mecanicamente por muito
tempo de algo que não se repetirá existencialmente nunca mais. Ela revela mais do que o simples
objeto, ela revela também questões sobre determinado tempo. A fotografia traz consigo uma
abordagem contingencial, sempre representando alguma coisa, uma espécie de emanação do
referente e, devido a isso, fornecendo detalhes que constituem um material de saber etnológico que
revelam e propiciam o acesso a uma espécie de infra-saber. A fotografia transmite um aspecto da
experiência humana compartilhada, contemplando três atores principais: o fotógrafo, operador da
ação, nós, os espectadores das fotografias e coleções (Spectator) e aquele que é fotografado, o alvo,
o referente (Spectrum)158.
Especialmente no que se refere ao conceito de mimese e da pseudo-objetividade da
fotografia, reforça-se seu estatuto de algo codificado sob os mais diversos aspectos, sejam eles
técnicos, culturais, sociológicos ou estéticos. Vale ainda lembrar que a fotografia prefigura o
estereótipo instrumental constituidor do mundo contemporâneo, e que a sua importância se
reforça na medida em que vem a substituir o predomínio dos textos e dos conceitos próprios à
sociedade industrial159.
É nesta perspectiva, especialmente no sentido de complementar ou suplantar a
predominância da fonte textual, que procuraremos nos valer da riqueza de sentidos e significados
presentes nos registros fotográficos de Becherini e Haberkorn.
158 BARTHES, Roland. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1985.
159 FLUSSER, Vilem. A filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985.
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A obra de Panofsky representa fonte obrigatória na análise das imagens. Seus conceitos de
iconografia e iconologia permeiam, em menor ou maior grau, qualquer trabalho consistente que se
propõem a trabalhar com este tipo de fonte. Tais conceitos se diferenciam da seguinte forma:
Iconografia é o ramo da história da arte que trata o tema ou mensagem das obras
de arte em contraposição à sua forma. Iconologia é método de interpretação que
advém da síntese mais que da análise (das imagens, estórias e alegorias).160
Como critério prático, a análise das fontes imagéticas deve ser composta numa espécie de
crescente, um roteiro de análise gradativo. A análise da fonte deve se iniciar com a busca de seus
significados primários (ou naturais), ou seja, aquilo apresentado como fato, como expressional e
que transita na esfera do sensível. Tal fase pode ser classificada como uma análise pré-iconográfica.
Vencida esta etapa, devem ser buscados os significados secundários ou convencionais,
aquilo que transita na esfera do inteligível. É nesta fase que a interpretação da imagem à luz do
mundo que a cerca assume grande importância. Tal fase pode ser classificada como análise
iconográfica. Por último, encontra-se a análise que se debruça mais detidamente na síntese de
conhecimentos (daquele que se propõem à análise) do que na própria análise das imagens. Esta
etapa é conhecida como análise iconológica.
Observa-se que a análise de imagens e, em especial, a fotografia, pode ser empreendida por
três enfoques distintos: o enfoque psicanalítico que considera o papel do inconsciente na produção
de imagens; o enfoque estruturalista, focado na análise da imagem como um sistema de signos; e o
enfoque da história social da arte, contemplando a pluralidade de enfoques que concorrem entre si
e que, muitas vezes, revelam a característica ambígua e polissêmica das imagens161.
Apesar de importante, a abordagem iconológica também mereceu algumas considerações
críticas, especialmente evitando a atribuição de um caráter excessivamente objetivo da imagem no
campo da historiografia. A ambiguidade das imagens sempre causará inquietação e deixará um
espaço vazio, difícil de ser superado. Uma espécie de dialética do olhar se faz presente na obra de
Didi-Huberman:
O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto
de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis
a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do ‘dom visual’ para se satisfazer
unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu
sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida,
inquieta, agitada, aberta. Entre aquele que olha e aquilo que é olhado.162
Ainda no aspecto metodológico, somos alertados para o fato de que construir histórias
requer do pesquisador uma visão ampliada, superando a limitação imposta pela moldura, pelo filme
160 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2007, p.47.
161 BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: Edusc, 2004.
162 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo, ed. 34. 2010, p.77.
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ou pela fotografia, conferindo a algo tido como imutável uma vida infinita e inesgotável. A pesquisa
deve estar norteada também pela desconfiança, pela abdicação do estático e pelo anseio de produzir
sentidos163.
Cuidados adicionais no tratamento da fotografia como fonte documental não devem ser
ignorados. Se a fotografia pode descrever literalmente a aparência visual de uma situação ou objeto,
por outro lado, ela também pode ser alterada e manipulada de maneira subjetiva. Tal falta de
absoluta objetividade existente na fotografia reside em alguns aspectos relevantes. A intenção do
fotógrafo, a perspectiva literal do fotógrafo, a intenção do sujeito, a abordagem técnica e o valor
atribuído pelo público são alguns fatores que exemplificam e corroboram esta proposição.
163 MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
164 SHORT, Maria. Contexto e Narrativa em Fotografia. São Paulo: Gustavo Gili, 2013, p.77.
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Num contexto de transformação urbana, pelo qual passava São Paulo, Becherini faz uso da
principal referência iconográfica da época – a fotografia – como instrumento de captação desta
transição. Sua obra revela a busca incessante por estes espaços em transição.
A produção de Becherini está diretamente relacionada ao seu ofício profissional e ao
patrocínio do poder público, representado pelo prefeito Antonio Prado, e seu esforço em registrar
o “embelezamento da cidade” em curso. Tais fatores são importantes para contextualizar os
objetivos da produção do fotógrafo e contribuir na análise do seu conteúdo.
Outra questão relevante diz respeito à sua apurada técnica. Fazendo uso de objetivas
grande-angulares, o fotógrafo conseguia obter um efeito de ampliação do espaço, característica
fundamental do seu trabalho. Inovação adicional de Becherini também se revela no
posicionamento da câmera, permitindo o registro da dinâmica do espaço urbano. O campo aberto
utilizado, além da amplitude no registro do objeto principal, permitia também o registro de uma
série de atividades individuais. A respeito de Becherini, Fernandes Junior afirma:
Werner Haberkorn, por sua vez, situava-se em uma conjuntura distinta daquela vivida por
Becherini. Apesar de também marcado por um período de transformação, as mudanças da década
de 1940 apresentam diferentes características.
Haberkorn chegou ao Brasil na década de 1930, assim como outros inúmeros imigrantes,
impactado pela diáspora causada pela Segunda Guerra Mundial. Ele gozava de boa condição
financeira na Polônia, possuía origem judaica e formação em mecânica de aviões e exercia a prática
de fotógrafo amador em seu tempo livre.
Habitando no Brasil por quase uma década, e após trabalhar em empregos diversos, funda,
em 1940, com seu irmão, o Estúdio Fotolabor, focado na fotografia comercial (catálogos) e
arquitetura. O Estúdio Fotolabor funcionou até 1990, sete anos antes da morte de seu fundador,
em 1997, com 90 anos.
A sua produção está diretamente relacionada com a conjuntura econômica vivida nas
décadas de 1940 e 1950, especialmente no tocante à expansão do consumo. O seu estúdio e, por
FERNANDES JUNIOR, Rubens Fernandes. Lições e Demolições do Olhar. In: Aurélio Becherini. São Paulo: Cosac
165
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conseguinte, sua produção, revelava uma prática funcional, sendo que o próprio Haberkorn não
atribuía estatuto artístico ao seu trabalho. Ainda assim, cumpre lembrar que a sua obra ainda se
mostra rica e interessante para o campo de estudos da História e demais Ciências Humanas.
A formação de Haberkorn como engenheiro de máquinas pode ser considerada um dos
fatores mais importantes na sua predileção pela modernidade e sua respectiva representação do
cotidiano (meios de transporte, construção civil e comunicação). Neste sentido, documentou
transformações importantes que ocorriam nestas dimensões na cidade de São Paulo. Sua produção
nestas décadas estava focada no processo de verticalização e automobilização da cidade,
direcionando, dessa forma, sua câmera para lugares de grande carga simbólica urbana.
A despeito das tendências do fotoclubismo e do fotojornalismo, vigente à época, a obra de
Haberkorn parece situar-se num nova dimensão: a fotografia aplicada, representada, especialmente,
por registros com objetivo comercial ou industrial, tais como folhetos, catálogos e anúncios
publicitários. Este tipo de fotografia apresentava-se muito mais alinhado ao modelo de negócio do
seu estúdio do que qualquer intenção propriamente artística. No aspecto técnico, Haberkorn,
gradativamente, por necessidade de mercado, foi atualizando seu instrumental. Iniciando como
uma tradicional câmera Leica com 3 objetivas, passou por uma câmera com corpo de madeira e
filmes em formato 18x24cm, chegando a utilizar câmeras mais leves como uma profissional Linhof
e filmes em formato 13x18cm e 4x5pol.
Sua produção apresentava um acento modernista, com tomadas ascensionais e
descensionais, rotação de eixos e articulação de planos, fazendo uso de efeitos de contraste e
inversão de escalas, resultando em uma produção de grande qualidade estética. Estas características
reforçam o papel desempenhado por Haberkorn na construção do estereótipo de São Paulo, como
a cidade do progresso, dos automóveis e dos arranha-céus166.
As obras de Aurélio Becherini e Werner Haberkorn, selecionadas para este trabalho, foram
obtidas em meio digital, respectivamente, no Acervo Fotográfico do Museu da Cidade de São Paulo
e no Acervo Werner Haberkorn do Museu Paulista da Universidade de São Paulo – USP. Vale
lembrar que esta seleção, face à natureza deste artigo, não possui um caráter sistematizado.
Procurou-se, de forma aleatória, buscar fotografias que registrassem lugares simbólicos no
imaginário urbano paulistano, de fácil reconhecimento, e que permitissem uma problematização
sobre as transformações da região central da cidade de São Paulo
166 BUOSI, Rafael; CALLEGARI, Bruna; JUNIOR, Rubens; LIMA, Solange Ferraz de; MENDES, Ricardo. Fotolabor,
a fotografia de Werner Haberkorn. São Paulo: Espaço Líquido Editora, 2014.
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FOTO 1 FOTO 2
Av. São João Av. São João
Fotógrafo: BECHERINI, Aurélio (Becherini) Fotógrafo: BECHERINI, Aurélio (Becherini)
Data: 1914
Data: 1914
FOTO 3 FOTO 4
Vale do Anhangabaú Viaduto do Chá
Fotógrafo: BECHERINI, Aurélio (Becherini) Fotógrafo: BECHERINI, Aurélio (Becherini)
Data: 1919 – 1920 Data: 1917 - 1918
FOTO 5 FOTO 6
Viaduto Santa Ifigênia Largo da Misericórdia
Fotógrafo: BECHERINI, Aurélio (Becherini) Fotógrafo: BECHERINI, Aurélio (Becherini)
Data: 1910 Data: 1910
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FOTO 7 FOTO 8
Largo São Bento Rua Direita
Fotógrafo: BECHERINI, Aurélio Fotógrafo: BECHERINI, Aurélio
(Becherini) (Becherini)
Data: 1920 Data: 1916 – 1918
FOTO 9 FOTO 10
Avenida São João Avenida São João
Fotógrafo: HABERKORN, Werner Fotógrafo: HABERKORN, Werner
Data: 1940 Data: 1952
FOTO 11 FOTO 12
Panorâmica do Centro de São Paulo Vale do Anhagabaú
Fotógrafo: HABERKORN, Werner Fotógrafo: HABERKORN, Werner
Data: 1950 Data: 1945
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FOTO 13 FOTO 14
Viaduto do Chá Viaduto Santa Ifigênia
Fotógrafo: HABERKORN, Werner Fotógrafo: HABERKORN, Werner
Data: 1939 Data: 19?? (Aproximadamente 1945)
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167 SEVCENKO, Nicolau. O Prelúdio Republicano, Astúcias da Ordem e Ilusões do Progresso. In: História da vida
privada no Brasil. República: da belle époque à era do rádio. Organizador: Nicolau Sevcenko. Coordenador da coleção:
Fernando A. Novais. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.26.
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Resumo:
O artigo expõe análises de obras de arte de resistência à ditadura civil-militar brasileira (1964-1985)
e também do período democrático que remontam à memória daqueles anos. Todos esses trabalhos
artísticos que atendem a um “dever de memória” são aqui compreendidos como monumentos da
cultura essenciais na construção da memória social. O título faz alusão ao termo
“documento/monumento” usado por Jacques Le Goff em um artigo do livro História e Memória
para classificá-los como os criadores e denominadores da “memória coletiva” em função dos
diferentes usos que fazem da memória. Atenta à abertura dos arquivos proibidos do século XX, a
Arte mostra grande interesse pelos “arquivos do mal”, particulares ou institucionais. Rememorar
o trauma pela arte se torna um desafio por ser ainda uma memória recente, quando é improvável
um olhar distanciado para representá-los ou presentificá-los.
Os documentos e os monumentos
Os monumentos e os documentos são tipos de suportes da história e da memória que
constituem matéria de escolha efetuada pelos historiadores, mais do que um conjunto daquilo que
existiu do passado, portanto, são lembranças provocadas. O título deste artigo alude ao termo
“documento/monumento” usado por Jacques Le Goff no livro História e Memória 168 para classificá-
los como os criadores e denominadores da “memória coletiva” em função dos diferentes usos que
fazem da memória. Interessa-nos especialmente o papel de pesquisador da história e da memória
exercido por alguns artistas contemporâneos.
Ao passar pela escolha do historiador, o documento torna-se o resultado de uma
montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, e da sociedade que o produziram,
mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante
as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio:
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. 5ed. Campinas: Editora da UNICAMP,
168
2003. p. 525.
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ser o centro em torno da qual gravitam os discursos sobre a ética da representação das catástrofes,
inclusive da memória da violência de Estado nos países que sofreram ditaduras na América Latina.
Todos os trabalhos artísticos que atendem a um “dever de memória” no que diz respeito à
memória da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) são aqui compreendidos como
monumentos da cultura essenciais na construção da memória social. Tais artes são como os
“lugares de memória” de Pierre Nora, ou seja, espaços onde a memória social se ancora e pode ser
apreendida pelos sentidos, surgidos a partir do movimento em defesa das memórias das minorias.
O “mal de arquivo”
A organização e classificação com um caráter totalizante é a tarefa-síntese da modernidade
no início do século XX, através de instituições que colecionam, conservam, organizam e classificam
todo tipo de coisa e até pessoas. A este fenômeno de desejo de memória através dos arquivos
institucionais e pessoais, Jacques Derrida denominou “mal de arquivo” 173. Ele não existiria sem a
174
ameaça de um esquecimento além do recalcamento, sem a ameaça da “pulsão de morte” , de
agressão ou de destruição. Esta ameaça é infinita, e varre as condições espaço-temporais da
conservação. Ela é uma espécie de abuso, que abre a dimensão ético-política do problema: “o mal
de arquivo toca o mal radical”175.
Derrida nos fala sobre uma “perturbação de arquivo”, que implica precisamente aquilo que
“turva a visão, o que impede o ver e o saber”; ela é também a “perturbação dos segredos dos
complôs, da clandestinidade, das conjurações meio privadas, meio públicas, sempre no limite
instável entre o público e o privado, entre a família, a sociedade e o Estado”.176
O filósofo francês refere-se aos desastres do fim do milênio, como os “arquivos do mal:
dissimulados ou destruídos, interditados, desviados, ‘recalcados’”177, enfim, meio eficaz de
tratamento refinado de manipulações privadas ou secretas. O termo é semelhante ao que Le Goff
designou por “documento/monumento”178.
No contexto brasileiro, o silenciamento da memória da ditadura civil-militar não se
restringe à Lei da Anistia de 1979, como também veio a ser prolongado por um decreto (nº
4.553) de Fernando Henrique Cardoso, de 2002, nos últimos dias de seu mandato, quando instituiu
a figura do “sigilo eterno”. Os documentos ultrassecretos (onde se encontravam os arquivos da
ditadura) passaram a ter sigilo de trinta a cinquenta anos, com a possibilidade de prazos renováveis
173 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: Uma impressão freudiana. Tradução de Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001, p. 118.
174 ____. Mal de arquivo, p.122.
175 ____. Mal de arquivo, p.122.
176 ____. Mal de arquivo, p.117.
177 ____. Mal de arquivo, p.7.
178 LE GOFF, História e Memória, p.525.
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indefinidamente (Art. 7º, § 1), conforme critério de autoridades . O decreto só foi derrubado
através da Lei de Acesso à Informação, sancionada em 2012 pela presidenta Dilma Rousseff, que
obriga órgãos do Executivo, Legislativo e Judiciário a abrirem seus registros para consulta popular
para facilitar as investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
A cultura da memória ganha fôlego no Brasil com a abertura desses “arquivos do mal” e o
mea culpa assumido pelo Estado, após pressões da sociedade civil que se estendiam desde
documentos elaborados anteriormente como Projeto Brasil: Nunca Mais. A instalação da CNV em
2012 e a entrega de seu Relatório Final em 2014 no ano do cinquentenário do golpe militar de 1964
impulsionaram uma onda de eventos que rememoravam a data, nos lugares de memória já
existentes ou nos novos monumentos inaugurados.
Apesar de a ditadura ter sido marcada pelo conservadorismo e a violência do regime militar,
naquela época viveu-se um dos períodos mais férteis da produção cultural do país, quando
apareceram para o grande público e consolidaram-se nomes que seguem como referência nas artes
até a atualidade. Isso apenas foi possível porque os artistas engajados conseguiram driblar a censura
através de estratégias da arte e do ativismo político para alcançar o público.
Em uma primeira fase da ditadura, artistas e intelectuais de esquerda até conseguiram
continuar a produzir com certa liberdade, à exceção do Centro Popular de Cultura, posto na ilegalidade
junto com a União Nacional dos Estudantes (UNE) desde a madrugada do golpe.
Nesse período aconteceu a mostra Opinião 65, que reuniu jovens artistas, dentre os quais,
nomes como Antônio Dias, Rubens Gerchman, Hélio Oiticica, Carlos Vergara, Waldemar
Cordeiro, Wesley Duke Lee, além de estrangeiros. Dentre as obras, sob o mal-estar do golpe
recente, ainda se podia ver alusões ao governo militar como em Os generais (1965), de Roberto
Magalhães ou em Vencedor (1964), de Antônio Dias, um cabide de pé com construção em madeira
pintada, tecido acolchoado e capacete militar; entre outras.
Mas, instituído o Ato Institucional-nº 5, em dezembro de 1968, a repressão recrudesceu,
levando artistas e intelectuais à prisão e/ou ao exílio, impactando negativamente a produção
cultural do período, que culminou com um “vazio cultural”180 devido à censura, mas também à
179 JOFFILY, Mariana. Direito à informação e direito à vida privada: os impasses em torno do acesso aos arquivos da ditadura
militar brasileira. Estud. hist. (Rio J.) [online]. 2012, vol.25, n.49, pp. 129-148. ISSN 0103-2186. p.135-136.
180 Em julho de 1971, o jornalista Zuenir Ventura cunhou a expressão “Vazio Cultural”, título de um artigo escrito
para a revista Visão, como forma de provocação diante da paisagem desoladora que se via após o AI-5 em 1968, quando
o processo de criação artística tornou-se estagnado em contraste com a efervescência cultural criativa do início dos
anos 1960 e com a vitalidade do processo de desenvolvimento econômico. GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloisa
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autocensura provocada pelo medo e à “censura econômica” dos produtores. As leis de fomento à
cultura eram destinadas somente àqueles afinados com os valores e identidade nacionais dos
militares. O júri do prêmio de aquisição do Itamaraty, por exemplo, recusou-se a conceder prêmios
a trabalhos de pesquisa, eróticos ou de fundo político.
A principal mostra de arte do país, a IX Bienal Internacional de São Paulo (1967/1968)
enfrentou censura assim como outros eventos de artes plásticas. No dia da inauguração, antes da
abertura ao público, a Polícia Federal retirou a obra de Cybèle Varela, a pintura O presente por tê-la
julgado ofensiva às autoridades, considerada antinacionalista. A obra foi destruída e a artista quase
presa no DOPS. Outra obra retirada foi a série Meditação sobre a Bandeira Nacional, de Quissac Júnior,
que foi ameaçado de prisão por ter “retrabalhado” a bandeira do Brasil por desrespeito à
Constituição da época que proibia o uso livre de símbolos nacionais se não fossem para fins oficiais
ou “patrióticos”.
A repressão espalhada pelo país também fechou a II Bienal da Bahia, em 1968 e encerrou
de forma chocante a exposição dos artistas brasileiros selecionados para a Biennale des Jeunes, Paris,
que se realizava no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), devido a certas obras
comportarem o protesto ou serem de natureza erótica. 181
Tais ocorridos geraram um manifesto de repúdio a qualquer limitação relativa à “criação da
obra de arte e o livre exercício da crítica de arte” – redigido pela Associação Brasileira de Críticos de
Arte (ABCA), do Rio de Janeiro, presidida por Mario Pedrosa – e o boicote à X Bienal de São
Paulo, de 1969. Sem nenhum apoio da imprensa paulista, o protesto transcendeu as fronteiras e
dezenas de países recusaram-se a participar daquela bienal, em solidariedade aos artistas brasileiros,
com 321 assinaturas, uma manifestação de caráter político e de repercussão internacional 182.
Quando em 1970, Antônio Manuel concebeu O corpo é a obra e apresentou-se nu diante do
Júri de Seleção do Salão de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a proposta foi recusada, mas o ato serviu
de protesto contra o sistema político, artístico e social em vigor. Como represália, o artista foi
proibido de participar em salões oficiais e afastado do sistema das Artes Plásticas durante dois anos
por determinação da Comissão Nacional de Belas Artes junto ao Ministério da Educação e da
Cultura.
Buarque de; VENTURA, Zuenir. 70/80 Cultura em Trânsito: Da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora,
2000.
181 GUIMARÃES, Andréa Camargo... [et al.] Cronologia de artes plásticas - referências 1975-1995. São Paulo: Centro
Cultural São Paulo-IDART. 1ª ed. São Paulo, 2010. 300p. Captado em:
<http://www.centrocultural.sp.gov.br/livros/pdfs/artesplasticas.pdf> Acesso em: 01 ago. 2015. p.6.
182 Aderem ao boicote: França, Holanda, Suécia, União Soviética, Yugoslávia, Venezuela, Chile e vários artistas norte-
americanos; o muralista mexicano Siqueiros recusa uma sala especial. GUIMARÃES, Cronologia de artes plásticas, p.7.
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O artista plástico Lincoln Volpini foi preso devido à sua obra e não pela militância
exclusivamente, em julho de 1978, quando o Conselho Permanente de Justiça da 4º Região Militar
de Juiz de Fora o condenou a um ano de prisão sob a acusação de que seu quadro Penhor da Igualdade
continha “mensagens altamente subversivas”.
Driblar a censura se torna necessário e para isso a arte ganha as ruas, fora dos circuitos
tradicionais da arte tais como galerias e museus. Isso ficara notório desde o gesto de Hélio Oiticica,
que, proibido de desfilar seus parangolés com passistas da Mangueira no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, faz o desfile no jardim, aplaudido por artistas, jornalistas, críticos e público em
agosto de 1965, na abertura da mostra Opinião 65.
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A operação X galeria, por sua vez, foi um ato que consistiu em lacrar com um “X” em fita
crepe as portas das galerias, acompanhado do bilhete “O que está dentro fica/ O que está fora se
expande”.
Essa vertente da arte durante a ditadura mostrou-se politicamente engajada, revolucionária
não só pelo comprometimento político, mas pela inovação da própria arte, suas estratégias para
driblar a censura e chegar ao público em outros espaços e suportes que podiam ser desde a rua, até
os objetos do consumo e os jornais.
Os monumentos/documentos artísticos
184BUENAVENTURA, Julia. Isto não é uma obra: arte e ditadura, em Revista do Instituto de Estudos Avançados, USP,
vol. 28, no. 80, São Paulo, 2014. Captado em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v28n80/11.pdf> Acesso em: 5 abr.
2016. p. 123.
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os sentidos pela máquina capitalista consumitiva, cria os seus ídolos anti-heróis como o animal a
ser sacrificado”185, uma vez que Cara de Cavalo foi sumariamente executado pela polícia em
outubro de 1964 com nada menos do que cem disparos 186. Com a obra, Oiticica não deixa cair no
esquecimento a arbitrariedade do Estado na época, inclusive comparando esse “herói anti-herói”,
ao “anti-herói anônimo” militante político.
O artista Antônio Manuel tem o jornal como um dos meios institucionais mais
questionados ao longo de sua carreira. Criava notícias, trazia à tona materiais censurados, ou fundia
notícias paralelas à impressão original do jornal, distribuídos nas bancas, como os demais. A ideia
da exposição impressa, Zero a 24 horas, surgiu após o cancelamento da mostra individual que faria
no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, ato de “autocensura institucional”. Em Repressão
outra vez – eis o saldo (1973), imagens de protesto alternadas a palavras, chamam atenção para a
violência produzida pelo momento político. Na obra, um conjunto de informações visuais e
textuais em vermelho e preto – lembrando a impressão de jornal, mas também as histórias em
quadrinhos, massivamente repetidas – são cobertas por panos negros, precisam ser descortinadas
pelo espectador, em uma metáfora da censura durante a ditadura brasileira.
A ousada série de Situações com materiais orgânicos como lixo, papel higiênico, detritos
humanos e carne putrefata de Artur Barrio, as Trouxas ensanguentadas (Situação T/T, 1 - 2ª parte)
lançadas em 1970 no Ribeirão Arrudas no Parque Municipal de Belo Horizonte, viraram por sua
vez, matéria nas páginas policiais. As trouxas que aparentavam serem partes de cadáver humano
causaram medo, até que o Corpo de Bombeiros e a Polícia retiraram a obra para investigar. Poucos
meses após o AI-5, as trouxas faziam clara referência ao destino dos desaparecidos políticos.
Atenta à abertura dos arquivos proibidos do século XX, a Arte mostra grande interesse
tanto pelos particulares como pelos institucionais, sobretudo, os “arquivos do mal”. Após as
anistias políticas e a instalação de comissões da verdade nos países vitimados por ditaduras militares
e a consequente abertura dos arquivos, rememorar o trauma pela arte se torna um desafio por ser
ainda uma memória recente, quando é improvável um olhar distanciado.
A exposição MemoriAntonia, realizada em 2003, em São Paulo, mesmo temporária,
funcionou como um “lugar de memória”. Uma das mais relevantes do ponto de vista artístico, a
mostra teve a colaboração dos artistas Marcelo Brodsky, Fúlvia Molina, Horst Hoheisel e Andreas
185 OITICICA, Hélio. O Herói Anti-Herói e o Anti-Herói Anônimo. 1969. Reproduzido no panfleto Sopro da revista
Cultura e Barbárie. Fev. 2011. Captado em: <http://www.culturaebarbarie.org/sopro/arquivo/heroioiticica.html>
Acesso em: 8 nov. 2015.
186 Cara de Cavalo era um cafetão morador da Favela do Esqueleto que ligou-se ao jogo do bicho e durante um tiroteio
em cerco encomendado por um bicheiro para pegá-lo, acaba matando o detetive Le Cocq, motivo pelo qual é alçado
de reles marginal à um dos criminosos mais procurados do Rio de Janeiro. Armou-se uma grande operação à sua cata,
mobilizando dois mil policiais em quatro estados. Quando Cavalo foi encontrado, foi sumariamente executado ela
polícia em outubro de 1964.
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Knitz. Os artistas foram convidados a voltar seu olhar para a história do próprio prédio que abrigou
a exposição, o Centro Universitário Maria Antônia (USP), e assim fizeram uso de rastros em um
local que sofreu marcas da repressão política durante a ditadura187. Além das obras individuais,
chama a atenção uma instalação assinada pelos quatro artistas: as entrevistas com testemunhas do
antigo local exibidas a partir de sensores de movimento couberam à Molina, as fotografias à
Brodsky, e a escultura à Knitz e a apresentação dos restolhos do antigo prédio dispostos em vitrines
coube à Hoheisel. 188
Figura 2 Rosângela Rennó, Operação A3-1, 2014 da série Operação Aranhas/Arapongas/Arapucas (2014). papel de seda,
acrílico e objetivas antigas. 141 x 80 x 6 cm. (Fonte: Site da artista 189).
187 O conjunto de edifícios que hoje é reservado à Instituição serviu até 1968, como espaço da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras (FFLCH) da USP e foi palco de defesa da liberdade durante a ditadura. Após ataque entre alunos do
Instituto Mackenzie apoiados pela Polícia Militar e a morte do estudante José Guimarães, o conjunto de prédios passou
a ser utilizado por repartições do Governo do Estado, dentre elas o setor de administração carcerária.
188 SANTOS, Vívian Braga. Reflexões sobre o lugar do trauma: uma análise da exposição “MemoriAntonia”, ou “A alma
dos edifícios”. VIII EHA - Encontro de História da Arte – UNICAMP: Campinas, 2012. Pp. 716-724. p.720.
189 Captado em: <http://www.rosangelarenno.com.br/obras/exibir/60/1> Acesso em: 10 jun. 2016.
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período segundo seu autor. Completa a obra uma lança, que simboliza a violência sofrida pelos
homenageados 190.
E, por fim, um monumento localizado na Universidade de São Paulo (USP) foi concluído
em 2012 na Praça do Relógio na Cidade Universitária, com o nome Memorial em homenagem aos
membros da comunidade USP que foram perseguidos e mortos por motivações políticas durante o regime militar
(1964-1965) (FIG. 3). O monumento é formado por 22 placas de concreto, como um biombo. Na
primeira placa, logo abaixo do nome, é citado um trecho da Declaração Universal de Direitos
Humanos: “Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante”. As demais placas trazem grafados os nomes de 38 uspianos – professores,
pesquisadores, funcionários e estudantes desaparecidos e/ou mortos – sem obedecer à ordem
alfabética.
Figura 3 Memorial em homenagem aos membros da comunidade USP que foram perseguidos e mortos por motivações políticas durante o
regime militar (1964-1965). (Fonte: Jornal do Campus191).
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Considerações finais
192O projeto de Libeskind foi formado por duas linhas principais: uma linha reta, denominada linha do vazio; e outra
linha em ziguezague, tortuosa, corresponde à forma externa do museu, é denominada linha de conexão, simboliza as
transformações culturais entre judeus e gentios e suas mútuas influências. Ela representa a estrela de Davi
desconstruída.
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Resumo: Rosângela Rennó é uma artista que por meio da fotografia desenvolve um discurso
político de resgate de memórias coletivas a partir de edições técnicas feitas pela artista em
fotografias descartadas de sujeitos, em sua obra Imemorial (1994)193, ela propõe a articulação entre
o factual e o ficcional, acessando a memória do sujeito, no sentido de traumas e experiência vivida,
tecendo relações entre uma memória oficial e uma outra memória subterrânea.
193 ROSÂNGELA, Rennó. O arquivo universal e outros arquivos. São Paulo, Editora. Cosac Naify, 2006.
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Em seu processo artístico, Rosângela Rennó trabalha exatamente com essa questão, do
levantamento de memórias coletivas subterrâneas. E através de edições técnicas nas fotografias por
meio de clareamento, escurecimento e alterações de contraste, a artista retira informações, registros
e referências que são índices para a construção de identificações individuais, facilitando a criação
de narrativas artísticas e políticas para seus trabalhos.
194 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2006.
195 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio. In: Estudos Históricos, vol. 2, n. 3, Rio de Janeiro, 1989.
196 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio, p.6.
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No Brasil, assim como outros países latino-americanos temos uma história de genocídios,
extermínios, massacres, como as ditaduras no Brasil (1964), na Argentina (1976), no Chile (1973),
no Uruguai (1973), esses momentos históricos trazem consigo, uma memória silenciada como
tentativa de esquecimento histórico desses períodos. Entretanto, as marcas sociais desses
197ANJOS, Moacir dos. Mesmo diante da imagem mais nítida, o que não se conhece ainda. In: Rosângela Rennó,
Catálogo de exposição, Recife, 2006.
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processos ainda estão presentes em muitos cidadãos e famílias desses países, como descreve Michel
Pollak198 abaixo:
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A fotografia aqui é inserida como o meio de acesso às memórias do sujeito, a ponte que
liga ele aos fatos já ocorridos. Sabemos que quando um sujeito se aproxima de seu registro
fotográfico, ele tem o chance de acessar suas memórias de traumas, afetos e recordações.
Porém, mais que isso a artista apresenta um trabalho de resgate de memórias de sujeitos
outrora descartados como possibilidade de reconstrução de uma memória coletiva contemporânea,
através das suas edições técnicas, seria possível construir uma memória coletiva de um país com
base em retratos descartados de brasileiros?
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Nesse sentido a fotografia se tornou um patrimônio que conserva a memória não somente
do sujeito, mas de todo o conjunto histótico social que a representação do sujeito através da
fotografia elucida.
Em Imemorial Rosângela Rennó além de trazer essas fotografias em um processo de crítica
social em relação a memória coletiva oficial que foi definida, ela ainda evidencia a possibilidade de
termos outras formas de patrimônio, que pela dimensão artística conseguiram alcançar uma
memória coletiva real, ampliada e diversificada.
A partir da configuração contemporânea em relação as sistematizações de
patrimonialização, utilizando o trabalho de Rosângela Rennó como meio para analisar como
fotografias relacionam com uma memória subterrânea e a partir do momento que essa memória
são reconhecidas e legitimadas, o processo de patrimonialização dela inicia.
Na tentativa de fazer essa assimilação do passado, a artista trabalha de forma diferente com
essa matéria-prima de memórias, ao contrário de fortalecer dogmas, tradicões e padrões de
reafirmação dessa memória oficial.
TARDY, Cécile (dir.) ; DODEBEI, Vera (dir.). Memória e novos patrimônios. Nouvelle édition [en ligne]. Marseille:
203
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poucos sujeitos ali representados, a artista consegue ampliar essa demarcação com as edições
realizadas nessas fotografias.
Utilizando da fotografia como meio e matéria-prima em seu trabalho, Rosângela acaba
possibilitando outras linhas de reflexão complementares em seu trabalho, como a relação entre a
fotografia analógica e digital.
Desde a criação da fotografia analógica, a fotografia passou por muitas evoluções, porém
sempre com sua principal característica de ter uma chapa de negativo, onde a partir dela a fotografia
era revelada.
O processo fotográfico, foi ficando cada vez mais tecnologico, seja por conta de muitas
novas técnicas criadas no decorrer das décadas ou pela constante evolução dos estudos de estética
em fotografia.
E consequentemente criaram o desenvolvimento de uma história da fotografia, fizeram
desse processo uma longa caminhada entre a fotografia analógica e até a recente fotografia digital.
O processo analógico de revelar a fotografia, garante à ela um outro tempo, em relação ao
processo digital, além de ter pouco controle em relação ao registro realizado, as máquinas
analógicas trazem uma peça técnica onde o fotógrafo testa o enquadramento, porém, nem sempre
esse teste garantirá uma foto de boa qualidade.
204 ROUILLÉ, André. A Fotografia: entre documento e arte contemporânea. Editora SENAC. São Paulo, 2009, p50.
205 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutividade técnica. Alemanha. Primeira Versão, 1955.
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com ato de resgatar fotografias descartadas, a artista reconfigura o valor social dessas fotografias
que foram jogadas fora, principalmente por vivermos em uma geração líquida, instantânea e fast.
Onde bilhões de novas fotografias são feitas diariamente e compartilhadas
instântaneamente. O lugar da memória se desloca entre a fotografia analógica e digital, a fotografia
analógica tinha ou ainda tem como principal objetivo documentar momentos, fragmentos do
tempo, como meio de acesso físico à memórias de acontecimentos, fatos, registros históricos.
Já a fotografia digital, realiza o processo inverso ela fotografa para esquecer, como a
quantidade de fotografias extrapola a capacidade humana de lembrança, essas milhares de
fotografias acabam por empacotadas em grandes arquivos em computadores ou em drives de
memórias digital.
Por consequência podemos observar que após a inclusão da tecnologia de fotografia digital,
o ato fotográfico foi amplamente comercializado, publicitárizado, elevando a quantidade desses
registros fotográficos, seja pela facilidade de registro ou pela quantidade de agentes de
armazenamento e redes sociais de compartilhamento de fotografias.
Nesse processo de seleção e curadoria de fotografias de sujeitos descartados, a artista
questiona o processo de escolha de quais fotografias são arquivadas e quais são descartadas,
dialogando diretamente com esse processo de de digitalização da fotografia.
Com a possibilidade de acesso a esse material artístico e histórico, essa memória clandestina
emerge como resistência, impondo-se mesmo que visualmente como patrimônio registrado desses
momentos históricos.
O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de
sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço
público e passar do "não-dito" à contestação e à reivindicação; o problema de toda memória oficial
é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização.
Para que emeria nos discursos políticos um fundo comum de referências que possam
constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar
a simples "montagem" ideológica, por definição precária e frágil.
A partir do momento em que Rosângela Rennó evidencia o resgate de memórias coletivas
em sua obra Imemorial, por meio da fotografia, através de seu processo estético, compreendemos
que essa proposta apresenta caráter revolucionário em relação a incapacidade de outras disciplinas
do conhecimento em resgatar as memórias coletivas de um país.
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206 POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio. Estudos Históricos, vol. 2, n. 3, Rio de Janeiro, 1989, p2.
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Resumo: Neste artigo, discutirei aspectos da participação do artista suíço Jean-Pierre Chabloz
(1910-84) como desenhista publicitário de um dos organismos brasileiros vinculados ao esforço
das nações aliadas na Segunda Guerra Mundial: o Serviço Especial de Mobilização de
Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA). Trabalhando no SEMTA de janeiro a julho de 1943,
Chabloz realizou grande quantidade de material gráfico, dentre cartazes, ilustrações para
conferências, cartilhas, desenhos de seringueiras e de biótipos nordestinos. Todo esse material
pertence ao vasto arquivo do artista no Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC),
onde realizei minha pesquisa de campo.
Palavras-chave: Jean-Pierre-Chabloz; material gráfico; SEMTA; “Campanha da Borracha”;
Segunda Guerra Mundial.
O presente artigo expõe parte dos resultados da dissertação de mestrado intitulada Rumo à
Amazônia, terra da fartura: Jean-Pierre Chabloz e os cartazes concebidos para o Serviço Especial de
Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, defendida em 2012, junto ao Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais da Universidade Estadual de Campinas207. A pesquisa focou-se na
análise de quatro cartazes desenvolvidos pelo artista suíço no período em que permaneceu naquele
serviço. Durante a pesquisa de campo, realizada sobretudo no Museu de Arte da Universidade
Federal do Ceará (MAUC), tive a oportunidade de entrar em contato com o vasto arquivo de
Chabloz mantido nas dependências no museu. Parte do acervo é composta por peças gráficas por
ele produzidas durante os seis meses em que trabalhou para o SEMTA (janeiro a julho de 1943),
dentre as quais selecionei os seguintes documentos para análise neste artigo: desenhos de biótipos
nordestinos, ilustrações para conferências, ilustrações para cartilhas destinadas a potenciais
migrantes, fotografias de grandes composições com letreiros, cartazes, painéis, etc. dispostas em
MORAES, Ana Carolina Albuquerque de. Rumo à Amazônia, terra da fartura: Jean-Pierre Chabloz e os cartazes
207
concebidos para o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia. 373 f. Dissertação (Mestrado
em Artes Visuais) – Universidade Estadual de Campinas, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Campinas,
2012. 353 p.
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Valho-me, sobretudo, das informações contidas nos dois diários de serviço que Chabloz
escreveu ao longo do período em que trabalhou para o SEMTA. Escritos originalmente em francês,
foram por mim traduzidos para o português durante a realização da pesquisa. Trata-se de dois
cadernos de pequenas dimensões, repletos de informações manuscritas e desenhos ilustrativos.
Neles, Chabloz relatou, com clareza e riqueza de detalhes, suas atividades no SEMTA dia após dia.
A relevância da atuação profissional de Chabloz no SEMTA pode ser atestada por dois
motivos principais: a qualidade gráfica das peças criadas (por um artista cuja maestria em desenhos,
óleos e cartazes já se vinha consolidando por mais de uma década), e a complexa rede de
agenciamentos nacionais e internacionais na qual estava inserido seu ofício. Um suíço aportara no
Nordeste do Brasil com a missão de mobilizar nordestinos a migrarem para a Amazônia, onde
deveriam produzir enorme volume de borracha. Tal borracha deveria ser enviada aos Estados
Unidos, a fim de suprir as necessidades de sua volumosa indústria bélica. Esse país então investia
grandes montantes financeiros na reativação do extrativismo gomífero na Amazônia, uma vez que
quase todo o território de seringais cultivados no Sudeste Asiático – desde 1913, a principal fonte
produtora de borracha mundial - havia sido ocupado por tropas japonesas, que atuavam ao lado
da Alemanha na guerra. Assim, Chabloz trabalhava para o governo Vargas, que, por sua vez,
alinhava-se aos Estados Unidos e às nações aliadas. A análise do material gráfico desenvolvido pelo
artista para o SEMTA permite o vislumbre, em sua própria iconografia, de um momento histórico
em que a apologia à ação em nome da pátria brasileira servia a um intrincado plano de guerra que
extrapolava os limites do continente americano.
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Biótipos nordestinos
Segundo Chabloz, o trabalho efetivo para o SEMTA começou a vinte e oito de janeiro de
1943, quando iniciou a realização de uma série de desenhos de biotipologia destinados aos médicos
da instituição, para auxílio na seleção dos indivíduos que migrariam para a Amazônia.208 Cada
biótipo era desenhado de frente e de perfil, sempre em completa nudez [Fig. 1]. Na parte superior
central do papel, encontra-se, à guisa de título, a expressão “Biótipos Nordestinos”, seguida por
um subtítulo designador do biótipo ali apresentado. Descendo o olhar na direção central,
observamos enumeradas algumas características peculiares àquele biótipo.
208 Enumération des TRAVAUX exécutés pour le S.E.M.T.A. Dessins etc. en relation +- Directe avec ce service. – S. Luiz –
BELEM – TERESINA – FORTALEZA. dès le 2 janvier 1943. Texto manuscrito de autoria de Jean-Pierre Chabloz.
Arquivo do artista. MAUC.
209 Cópia heliográfica do quadro sinóptico de biótipos nordestinos elaborado por Jean-Pierre Chabloz em abril de 1943.
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GONÇALVES, Adelaide; COSTA, Pedro Eymar Barbosa (Orgs.). Mais borracha para a vitória. Fortaleza:
210
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Chabloz ainda trabalhou com afinco na confecção de ilustrações para conferências, que
deveriam ser realizadas em municípios do interior do Ceará. Sua atuação teria englobado a
elaboração das ilustrações que seriam projetadas, bem como a procura, a aquisição e a manutenção
do equipamento necessário à projeção epidiascópica das imagens. Teria trabalhado praticamente
sozinho a maior parte do tempo, o que rendeu longas reclamações nas páginas do diário, acusando
o isolamento e a indiferença de que se via como vítima.211
Dentre as imagens que deveriam ilustrar as conferências, Chabloz elaborou a ilustração cujo
texto clamava “Cada um no seu lugar para a vitória” [Fig 2]. Tal peça aproximava o trabalho dos
seringueiros na floresta àquele dos militares que defendiam a costa brasileira, pondo-os no mesmo
patamar de valor. É importante ressaltar que o discurso oficial do período correntemente chamava
os seringueiros de “Soldados da Borracha”, atribuindo-lhes, portanto, uma denominação militar.
Essa expressão, entretanto, era apenas uma das estratégias retóricas do governo, que costumava
fazer uso da linguagem bélica a fim de revestir de importância e solenidade as medidas
empreendidas e os atores envolvidos. No entanto, como aponta Secreto212, os indivíduos
recrutados para a produção de borracha na Amazônia não ficavam equiparados, em termos legais,
aos soldados de fato. Aos primeiros, era concedida isenção do serviço militar, bem como igualdade
de direitos em relação aos trabalhadores urbanos protegidos pela legislação trabalhista, recém-
surgida na década de 1940. Legalmente, portanto, os seringueiros eram civis, e não militares, como
clamavam os meios de comunicação. Assim, a equiparação valorativa, na imagem em questão, entre
seringueiros e soldados visava a elevar o status do trabalho do seringueiro aos olhos da opinião
pública, estimulando mais homens a alistarem-se no SEMTA.
Outra ilustração, O equipamento de viagem fornecido pelo SEMTA, mostrava os objetos que o
SEMTA oferecia aos migrantes antes da partida para a Amazônia: chapéu, camisa, calças, prato,
caneca, garfo e colher atados, rede, mochila e sandálias [Fig. 3]. No entanto, ao observarmos
fotografias de migrantes pouco antes de partirem para a Amazônia, percebemos que suas bagagens
eram conduzidas no interior de sacos de pano, e não em mochilas [Fig. 4]. Como não se tratava de
desconhecimento da parte de Chabloz, que havia já assistido a rituais de partidas de indivíduos
recrutados, conforme relatou no primeiro diário, a mochila possivelmente constituía mais uma
estratégia retórica visual utilizada pelo suíço, nesse caso com a provável finalidade de conferir um
“upgrade” ao visual dos migrantes.
211 Enumération des TRAVAUX exécutés pour le S.E.M.T.A.... Texto manuscrito de autoria de Jean-Pierre Chabloz.
Arquivo do artista. MAUC.
212 SECRETO, María Verónica. Soldados da Borracha. Trabalhadores entre o sertão e a Amazônia no governo Vargas.
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[Fig. 2] CHABLOZ, Jean-Pierre – Cada um no seu lugar para a vitória – [Fig. 3] CHABLOZ, Jean-Pierre – O equipamento
Ilustração para conferências – mai. 1943 - Nanquim, gizes coloridos e de viagem fornecido pelo SEMTA – Ilustração para
colagem sobre cartão – 11,5 x 14 cm – MAUC, Fortaleza213 conferências – mai. 1943 - Nanquim e gizes
coloridos sobre cartão – 17 x 13,5 cm – MAUC,
Fortaleza214
[Fig. 4] Migrantes momentos antes da partida do Ceará para a Amazônia - Fortaleza, 1º. fev. 1943
Fotografias Abafilm – MAUC, Fortaleza (Imagens digitalizadas cedidas por Pedro Eymar Costa)
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O livreto conteria dez páginas, nas quais figurariam nove ilustrações. Deveria ser impresso
tipograficamente em papel jornal e reproduzido a milhares de exemplares, entre dez e vinte mil.215
Dentre as nove ilustrações realizadas para o guia, oito seriam desenhos, realizados a
nanquim, aplicado com bico-de-pena, enquanto a última consistiria em uma fotografia do contrato
de encaminhamento firmado entre o SEMTA e os migrantes. Duas das ilustrações internas do
livreto foram decalcadas de imagens já elaboradas para as projeções luminosas: aquela que mostra
o equipamento de viagem e outra que equipara valorativamente os seringueiros aos soldados. Uma
imagem que compunha o breviário do seringueiro, mas que não parece coincidir com alguma das
ilustrações das conferências, consiste em uma vista aérea de um “pouso”216 do SEMTA [Fig. 5].
Segundo registros de Chabloz, tal desenho consiste em uma redução manual da cópia heliográfica
de outro desenho, realizado pelo artista em janeiro, em São Luís. O desenho original teria sido
elaborado com base no segundo projeto de “pouso” executado pelo engenheiro e arquiteto Álvaro
Vital Brazil, destinado à concentração máxima de mil e duzentos migrantes.217
[Fig. 5] CHABLOZ, Jean-Pierre – Vista aérea de “pouso” do SEMTA – Página do primeiro breviário – jun.1943
Impressão tipográfica – 15,2 x 10,2 cm – MAUC, Fortaleza218
215 Enumération des TRAVAUX exécutés pour le S.E.M.T.A.... Texto manuscrito de autoria de Jean-Pierre Chabloz.
Arquivo do artista. MAUC.
216 Grandes alojamentos onde os migrantes ficavam hospedados dias antes da partida para a Amazônia, bem como em
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modo adequado de utilizá-los [Figs. 6 e 7]. Segundo registros do artista, essa brochura, no entanto,
não chegou a ser impressa.219
[Fig. 6] CHABLOZ, Jean-Pierre – Ilustração para o [Fig. 7] CHABLOZ, Jean-Pierre – Ilustração para o segundo
segundo breviário - jun. 1943 - Nanquim (bico-de-pena) breviário – jun. 1943 - Nanquim (bico-de-pena) sobre papel - 11
sobre papel - 9 x 13 cm – MAUC, Fortaleza220 x 15,5 cm – MAUC, Fortaleza221
Grandes composições
219 DIARIO Nº. 2. dos meus trabalhos e ATIVIDADES para o Semta em Fortaleza (CEARÁ). desde o 1º. de
junho de 1943. Texto manuscrito de autoria de Jean-Pierre Chabloz. Arquivo do artista. MAUC.
220 GONÇALVES; COSTA (Orgs.). Mais borracha para a vitória, p. 124.
221 ____________. Mais borracha para a vitória, p. 125.
222 DIARIO Nº. 2... Texto manuscrito de autoria de Jean-Pierre Chabloz. Arquivo do artista. MAUC.
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[Fig. 8] CHABLOZ, Jean-Pierre – Composição com letreiros, cartazes e painel na agência dos Correios, em Fortaleza – jul. 1943
Fotografia Abafilm – MAUC, Fortaleza224
Já na Estação Ferroviária João Felipe, Chabloz conseguiu obter o “efeito global” que havia
planejado [Fig. 9]. Em uma grande parede, afixou o letreiro “Mais borracha para a Vitória” acima
de três exemplares de seus cartazes litográficos: ao centro, figurava um exemplar de Vai também
para a Amazônia, protegido pelo SEMTA, ladeado por dois exemplares de Mais borracha para a vitória.
De ambos os lados da tríade de grandes cartazes, Chabloz posicionou dois exemplares de um
pequeno cartaz em prol da “Campanha da Borracha Servida”, que estimulava a população a coletar
produtos de borracha já gastos para entregá-los ao governo. Esses pequenos cartazes não foram
elaborados por Chabloz: foram entregues ao suíço por Fran Martins, diretor do Departamento
Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP) do Ceará, para que fossem afixados juntamente ao
223 DIARIO Nº. 2... Texto manuscrito de autoria de Jean-Pierre Chabloz. Arquivo do artista. MAUC.
224 GONÇALVES; COSTA (Orgs.). Mais borracha para a vitória, p. 98.
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restante do material.225 Logo abaixo de cada uma dessas pequenas peças, figuravam dois exemplares
do cartaz tipográfico elaborado por Chabloz.
[Fig. 9] CHABLOZ, Jean-Pierre – Composição com letreiro e cartazes na Estação Ferroviária João Felipe, em Fortaleza (da
esquerda para a direita, Chabloz é o quarto homem sentado) – jul. 1943 - Fotografia Abafilm – MAUC, Fortaleza226
225 DIARIO Nº. 2... Texto manuscrito de autoria de Jean-Pierre Chabloz. Arquivo do artista. MAUC.
226 GONÇALVES; COSTA (Orgs.). Mais borracha para a vitória, p. 99.
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[Fig. 10] CHABLOZ, Jean-Pierre – Composição com letreiro, painel, cartazes, panfletos, pneu, colunas e corda no Palácio do
Comércio, em Fortaleza – jul. 1943 - Fotografia Abafilm – MAUC, Fortaleza227
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desenho pode ser observado na parte superior direita de uma fotografia que retrata o evento [Fig.
11].
[Fig. 11] Detalhe da “Grande Parada do Mês da Borracha”. Acima, à direita, o cartaz manual Cada um no seu lugar para a vitória,
realizado por Chabloz – 1º. jul. 1943 - Fotografia Diários Associados – MAUC, Fortaleza229
O segundo grande desenho também foi realizado tomando como base uma pequena
imagem, igualmente ampliada a partir de projeção luminosa.230 A pequena ilustração clama
textualmente “Mais pneus para a vitória!”, frase encimada por um conjunto de pneus, volumosos
e robustos, que se sobrepõem entre si [Fig. 12]. Trechos da marca Goodyear são entrevistos na
superfície de alguns pneus. Talvez a presença dessa informação esteja relacionada ao fato de
Valentim Bouças, diretor executivo da Comissão de Controle dos Acordos de Washington
(CCAW), ser também diretor da subsidiária brasileira da Goodyear.231 O desenho ampliado que
Chabloz realizou a partir dessa imagem, destinado a ilustrar um dos caminhões da “parada”, pode
ser observado em outra fotografia que ilustra o evento [Fig. 13].
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[Fig. 12] CHABLOZ, Jean-Pierre – Mais pneus para a [Fig. 13] Detalhe da “Grande Parada do Mês da Borracha”. Acima,
vitória – 1943 - Nanquim e colagem sobre papel - 12 x 16 ao centro, o cartaz manual Mais pneus para a vitória, realizado por
cm - MAUC, Fortaleza (Fotografia da autora) Chabloz – 1º. jul. 1943 - Fotografia Diários Associados – MAUC,
Fortaleza232
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[Fig. 14] CHABLOZ, Jean-Pierre – Antiga fonte de abastecimento de borracha / Fonte nova (Brasil) – jun. 1943
Nanquim e gizes coloridos sobre cartão – 12 x 16,5 cm – MAUC, Fortaleza233
Considerações finais
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não chegaram a ser efetivadas, apesar dos esforços do artista. Por outro lado, composições com
cartazes, letreiros e painéis foram dispostas em locais de bastante visibilidade na cidade de
Fortaleza. Com a possível exceção da estação de trem, as demais localidades aqui mencionadas (a
agência dos Correios e o Palácio do Comércio) certamente não eram costumeiramente
frequentadas por agricultores do interior do estado. Mesmo com relação à estação ferroviária, a
grande composição mostrada e comentada neste artigo foi disposta na sala de espera da primeira
classe, conforme Chabloz registrou em seu segundo diário de serviço. Quanto à “Grande Parada
do Mês da Borracha”, seu trajeto também se restringiu às ruas da cidade de Fortaleza.
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Resumo:
O presente artigo trata das fontes de imagem em circulação durante o século XVIII e que serviram
de inspiração para a criação da arte em Minas Gerais no que tange à pintura, à arquitetura e à
escultura. O artigo procura mapear e divulgar os prováveis textos em circulação em Minas Gerais
naquele período e sua relação com a produção do Aleijadinho, com ênfase na igreja de São
Francisco de Assis de Ouro Preto.
Palavras-chave:
Cultura arquitetônica; Barroco mineiro; Fontes artísticas.
Antônio Francisco Lisboa nasceu provavelmente em 1738, em Vila Rica. Mulato, era filho
bastardo de Manoel Francisco Lisboa (1687-1767), um dos mais importantes empreiteiros da
primeira metade do século, que tinha por formação a carpintaria, mas que em Minas também atuou
como arrematante de obras públicas e privadas, perito de construção e arquiteto. Como arquiteto,
Antônio Francisco Lisboa foi o principal herdeiro da corrente mais criativa da arquitetura religiosa
desenvolvida a partir da segunda metade do século XVIII em Minas Gerais. Foram seus mestres
em arquitetura, tanto João Gomes Baptista (1705 – 1788), abridor de Cunhos da Casa de Fundição
de Vila Rica238, com quem estudou e se ligou ao desenho assimétrico de gosto francês, rococó,
como o português Antônio Pereira de Souza Calheiros, Doutor em Sagrados Cânones por
Coimbra, arquiteto amador, cuja obra é profundamente influenciada pela tratadística do barroco
italiano, com seus planos de elipses entrelaçadas. Bazin239 ainda atribui a presença do mestre
português Jose Coelho de Noronha como seu mestre de entalhe e arquitetura a partir de 1758,
quando inicia sua carreira artística na obra da Matriz de Caeté.
238 MENEZES, Ivo Porto de. João Gomes Baptista: mestre do Aleijadinho. Revista Barroco. Belo Horizonte, n. 5, p. 99-128,
1973.
239 BAZIN, Germain. O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1971.
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Imagem 1: Estrato de arrecadação de quintos na Capitania de Minas feitos por João Gomes Batista.
Dentro desse contexto, quando falamos sobre as possíveis influências e modelos artísticos
que influenciaram a carreira artista de Antônio Francisco Lisboa, cabe falarmos inicialmente, numa
análise preliminar, que muitos desse modelos, em primeira instância, circularam cronologicamente
na evolução da pintura em Minas Gerais na segunda metade do século XVIII. Recorrendo ao texto
clássico da pesquisadora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira240 sobre a evolução da pintura do
ciclo Rococó em Minas Gerais, vê-se que o início da pintura ornamental em rocalha aparece
utilizada numa pintura de forro, em Minas, por volta de 1768, da nave da Capela de Santa Efigênia
do Alto da Cruz, em Ouro Preto. Por volta de 1773-1774, esses motivos já estariam, segundo a
pesquisadora, incorporados em trabalhos como a pintura da capela-mor do Santuário do Senhor
Bom-Jesus do Monte de Matozinhos, em Congonhas, de autoria de Bernardo Pires da Silva. Esses
mesmos motivos também estão presentes no celebre risco do Aleijadinho para a igreja dos
franciscanos de São João del-Rei, de 1774. São riscos nitidamente influenciados pela renovação do
gosto que se fazia em Minas, onde, certamente, as coleções de gravuras das oficinas de Augsburg,
que difundiam o gosto pelo Rococó em Portugal a partir do inicio da segunda metade do século
XVIII, se disseminavam na região das Minas.
OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac e
240
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Imagem 2 – Detalhe do risco original do Aleijadinho para a igreja dos Franciscanos de São João del-Rei de 1774.
Imagem 3 – Detalhe do risco original do Aleijadinho para a igreja dos Franciscanos de São João del-Rei de 1774.
Para entendermos melhor essa mudança de gosto, devemos lembrar que, nas origens das
pesquisas de circularidade cultural no século XVIII, a disseminação e circulação da ornamentação
de motivo rocaille aparecem após uma primeira aclimatação na região de Lisboa, na transição da
primeira para a segunda metade do século XVIII, sob a denominação do Estilo Regência,
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241 SMITH, Robert C. The seventeenth and eighteenth-century architecture of Brazil. In: TRINDADE, Cônego
Raimundo. São Francisco de Assis de Ouro Preto - crônica narrada pelos documentos da ordem. Rio de Janeiro:
DPHAN, 1951.
242 MANDROUX-FRANÇA, Marie-Thérèse. Information artistique et ‘mass media’ au XVIIIe. siècle: la diffusion de
l´ornament gravé rococo au Portugal. CONGRESSO A ARTE EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII, 1973,
Braga. Actas... Bracara Augusta. Braga, t.II, v.XXVII, n.64, p.412-445, 1973. E MANDROUX-FRANÇA, Marie-
Thérèse. La circulation de la gravure d´ornament en Portugal du XVIe. au XVIIIe. siècle”. CONGRESSO
INTERNAZIONALE DI STORIA DELL’ARTE, XXIV, 1983, Bologna. Le stampe e la diffusione delle imagini e degli
stili. Bologna: CLUEBb, 1983, p.8-108.
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importado e assimilado de forma mais fantasiosa, abstrata e extrema no sul da Alemanha, sendo
aplicado até na obra de categoria monumental. É nesse momento que as oficinas de Augsburg
viram um centro de produção e circulação internacional daqueles modelos e de outras obras de
origem italiana que alimentam o tardo barroco internacional, como, por exemplo, o Tratado de
Pintura e Arquitetura, do Padre Andrea Pozzo (1642-1709), e o Studio de Arquitetura Civile, de
Domenico de Rossi. Assim, editores bávaros como Jeremias Wolf, Jean-George Merz, Jean George
Hertel, Martin Engelbrecht, e Franz Xavier Habermam, entre outros, entre 1684 e 1756, num
trabalho cooperativo, inundaram as regiões que ainda viviam seu ciclo de barroco tardio, com
modelos baseados na linguagem descomprometida e solta do Rococó. Segundo a visão de
Mandroux-França, a circulação desses modelos no norte de Portugal se deu principalmente pela
via da Congregação Beneditina, de grande expressão também no sul da Alemanha. Entre os
modelos impressos, talvez os mais influentes para o Rococó no Brasil e na região de Minas sejam
os ligados ao editor de Augsburg, J. G. Hertel, com mais de 500 tipos de rocailles impressos.
Imagem 4 – Serie de Gravuras procedentes dos impressor de Augsburg J. G. Hertel, que circulou na Europa Central,
Portugal e no Brasil entre 1700 a 1760.
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Imagem 5 – Detalhe de arquitetura efemêra de linguagem tardobarroca do Tratado do Padre jesuíta Andrea Pozzo,
impresso em Roma em 1693 e em circulação na Europa Central, Portugal e no Brasil entre 1700 a 1760.
No que tange ao estudo específico da transição para o Brasil destes modelos, coube
principalmente à já citada professora e pesquisadora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, no seu
livro de 2002, “O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes europeus”, avançar sobre o tema, tentando
dar sentido aos poucos estudos que existiam sobre os modelos da arte no Brasil. Em Minas,
principalmente, os estudos resumem-se ao já citado livro de arquitetura que pertencia a Manuel
Francisco de Araújo, do qual não se sabe o título, ao livro “Segredo dos artistas” e à “Bíblia Ilustrada”
– que Hannah Levy (1944) identificou como sendo a de Dermane – pertencentes a Manoel da
Costa Athaide, e às informações esparsas, como as que constam do testamento do pintor João
Nepomuceno Correia e Castro, que deixa suas estampas de trabalho para seus ajudantes: “Declaro
que todas as estampas que tenho, riscos e debuxos, os deixo a Francisco de Paula e Bernardino de
Sena, meus aprendizes.”243
Dentro desse quadro, foi a própria Myriam Ribeiro, na sua investigação sob a expansão dos
modelos do Rococó no Brasil, já citado anteriormente, que deu especial atenção ao papel das fontes
impressas dentro da seguinte avaliação:
ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de, Antecedentes e Modelos dos Pintores Coloniais, In Rodrigo e seus Tempos;
243
MINC, 1986.
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Do ponto de vista da análise arquitetônica, podemos dizer que sua concepção está ancorada
em duas estratégias arquitetônicas distintas. Do ponto de vista decorativo, é influenciado pelas
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estampas rococó que invadiram o mundo ibérico durante o século XVIII, a partir da produção das
oficinas de Augsbrug, na Alemanha. Do ponto de vista arquitetônico, é influenciado pela
tratadística do barroco italiano, sendo esta assimilada, principalmente, pelo estudo e conhecimento
das regras de perspectiva do tratado do padre jesuíta Andrea Pozzo, como também das obras de
Borromini e Guarini. Também fazem parte da suas influências de repertório italiano, obras mais
antigas, de gosto mais português, ligada à produção dos arquitetos “maneiristas” como Sebastiano
Serlio (1475-1555), Vicenzo Scamozzi (1548-1616) e Giacomo Barozzi da Vignola (1507-1573),
como demostrou o crítico de arquitetura Norberg-Schuls244, no seus diversos estudos sobre a
formação e desenvolvimento da arquitetura tardobarroca na Europa Central.
Criticamente, se analisarmos o descompasso formal entre “tradição e invenção”, que de
certa maneira, o projeto da igreja de São Francisco de Ouro Preto apresenta (independente do
mérito de toda sua elegância compositiva e de proporção), encontraremos a dicotomia: um
arquiteto talentoso, mas ainda em formação, que, por esta mesma, tenta encontrar uma unidade
compondo com diversas linguagens ao mesmo tempo. Por outro lado, estas circunstâncias estão
vinculadas à busca e ansiedade por novas fontes de inspiração, ligadas a um projetista de gênio, que
acredita que ainda seja possível encontrar um equilibro sustentável entre as duas escolas de
arquitetura a que ele está ligado: a de matriz barroca italiana, que lhe apresenta a chance da aventura
do novo através do movimento, e a outra, mais tradicional, do seu aprendizado, estruturada dentro
do formalismo clássico português do mundo dos mestres-construtores, com o qual ainda esta
pactuado em grande parte desse projeto no que tange ao esquema da estrutura funcional. Essas
dicotomias podem ser sentidas de forma mais direta, se comparamos a diferença estilística entre
os desenhos elegantes e “modernos” das janelas da capela-mor com os desenhos conservadores
utilizados nas demais portas e janelas do edifício, ligados a uma influência totalmente portuguesa,
que soam como um testemunho vivo das dúvidas do arquiteto de São Francisco.
As principais qualidades formais do projeto de São Francisco de Assis de Ouro Preto
podem ser melhor avaliadas, principalmente quando olhamos a igreja de perfil. Nesse plano,
podemos ver o esforço que o arquiteto mineiro exerceu para dispor de maneira diferenciada as
partes volumétricas do edifício de forma que elas tivessem identidade formal própria, mas também
um sentido de unidade. Para a construção desse efeito formal foi preciso, principalmente, tirar
partido da utilização da inversão e diferenciação de leituras das linhas das cumeeiras, como também
do estudo cuidadoso da inserção volumétrica entre os telhados, além de compreender com clareza
NORBERG-SCHULZ, Christian. Architettura tardobarroca. Tradução: Michele Lo Buono. Milano: Electa, 1989a.
244
217p.
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a relação que devia ser construída entre edifício e paisagem, numa topografia tão acidentada quanto
é o Sítio de Ouro Preto.
Imagem 6– Fachada principal igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, projeto de 1766.
Imagem 7 – Fachada lateral da igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, projeto de 1766.
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245DANGELO, André. G.D. A cultura arquitetônica em Minas Gerais e seus antecedentes em Portugal e na Europa: arquitetos,
mestres-de-obra e construtores e o trânsito de cultura na produção da arquitetura religiosa nas Minas Gerais setecentistas – Tese de
Doutoramento. FAFICH/UFMG – 2006.
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Resumo: A fim de investigar as relações estabelecidas entre imagem e texto na prática editorial
contemporânea, este artigo traz para o âmbito do jornalismo o conceito de pathosformel,
desenvolvido por Aby Warburg, e busca perceber as possíveis implicações desse conceito na análise
de uma cobertura publicada pela revista Istoé em 30 de julho de 2014. O objeto de estudo aqui em
foco intitula-se “Sob as bombas, vivo como um zumbi”. Nele, o depoimento de um palestino,
publicado ao lado de fotografias que ilustram a guerra entre israelenses e palestinos, propõe relações
retóricas entre o texto e a imagem que modificam e/ou reforçam o posicionamento político diante
do conflito internacional.O artigo dialoga ainda com conceitos propostos por Roland Barthes e
Susan Sontag no que diz respeito à utilização da fotografia pelo jornalismo contemporâneo.
Introdução
Em 2015, o teórico francês Roland Barthes completaria 100 anos. Apesar de não ter sido
muito lembrado pela academia nos últimos anos, seu trabalho tem sido reconhecido em vários
campos do conhecimento. Nos anos 1960, o ensaísta francês escreveu dois textos fundamentais
para o campo da comunicação, especialmente no que se refere à análise das imagens e suas relações
nos processos de edição: A mensagem fotográfica e A retórica da imagem.
Desde essa época, muito já se refletiu sobre a capacidade retórica da imagem e suas relações
com os textos aos quais estão vinculadas. Tal abordagem é particularmente importante para os
estudos de jornalismo e publicidade porque são áreas frequentemente obrigadas a se ver com essas
relações. Apesar dessa importância, já amplamente reconhecida, percebe-se ainda certa desatenção
na edição dos textos jornalísticos, mesmo naqueles veiculados em revistas de grande circulação
nacional.
O objetivo deste artigo é contribuir para os estudos das relações entre imagem e texto, o
que se pretende atingir a partir da análise da matéria intitulada “Sob as bombas, vivo como um
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zumbi”, veiculada pela revista Istoé de 30 de julho de 2014246. A matéria aborda a invasão da Faixa
de Gaza pelo exército de Israel, a partir da publicação do depoimento de um palestino - concedido
em entrevista exclusiva à revista – junto com a veiculação de fotografias produzidas por grandes
agências internacionais de notícias que cobriram o acontecimento, Reuters e Associated Press (AP
Photo), uma imagem produzida por algum familiar do entrevistado, além de um infográfico que
procura mostrar ao leitor o local onde ocorreu o conflito.
Neste trabalho serão utilizadas como referências teóricas as ideias desenvolvidas por
Roland Barthes sobre a capacidade retórica da imagem (leitura e interpretação de signos
fotográficos) e pela ensaísta americana Susan Sontag acerca das imagens da guerra e dos usos da
fotografia pelo jornalismo. Complementando essas ideias será utilizado o conceito de pathosformel
desenvolvido pelo teórico alemão Aby Warburg, no que se refere à noção da sobrevivência das
imagens aplicadas ao campo das produções editoriais.
No texto analisado, que ocupa quatro páginas da revista, sendo a principal matéria
internacional da semana, é possível perceber uma série de equívocos decorrentes da falta de cuidado
(ou desconhecimento) na escolha das imagens e dos elementos textuais que com elas dialogam:
legendas, títulos, subtítulos e intertítulos, nomes de seções, trechos em destaque (“olhos”) e outras
inserções textuais feitas ao longo do processo de edição.
Para a leitura das relações estabelecidas entre as fotos e o texto, utilizaremos um método
de base semiótica desenvolvido por Mendes (2011) que consiste em uma adaptação do método de
Erwin Panofsky. Na parte relativa à interpretação, no entanto, a base intuitiva é substituída por
dados objetivos levantados durante a análise. Esses dados objetivos consideram as qualidades
formais dos signos, tais como a composição, o enquadramento, o contexto histórico em que esses
signos estão situados, a capacidade expressiva do texto (cor, forma, tamanho) etc. 247
A essa metodologia, acrescentamos o conceito de Pathosformel desenvolvido pelo
pesquisador alemão Aby Warburg, no início do século XIX, para estudar a capacidade de a imagem
permanecer no universo simbólico de determinada sociedade e, assim, influenciar a produção de
sentido de outras imagens. Pathosformel ou as “formas do patético” seriam estados de ânimo
convertidos em imagens, “autênticos e verdadeiros topoi figurativos”, que encarnariam “traços
permanentes das comoções mais profundas da existência humana”.248 Segundo Warburg, “as
246 BARBOZA, M. Q. Sob as bombas, vivo como um zumbi: palestino relata o sofrimento de morar em Gaza sob
intenso ataque de Israel, com racionamento de água, comida e eletricidade. Revista Istoé, São Paulo, ano 38, n.
2331, p. 68-71, 30 jul. 2014.
247 Por constrangimento de espaço, foi apresentada uma versão simplificada do método de análise. Para maiores
informações sobre esse método, consultar o livro MENDES, André. Mapas de Arlindo Daibert: diálogos entre imagens
e textos. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2011.
248 O termo topoi deriva de Aristóteles, que chamava de topoi os consensos que formam a base de nosso pensamento e
que orientam as escolhas que fazemos no dia a dia. Esse conceito pode ser adaptado para se falar de imagens, como
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formas pictóricas podem ser transmitidas, transformadas e restauradas numa nova e vigorosa
vida”.249 Esse conceito interessa às análises deste artigo porque trata de uma importante
característica das imagens: sua sobrevivência no tempo por meio dos sentidos provisoriamente
sedimentados e cristalizados nelas. Esta qualidade permite que as imagens estabeleçam, em
determinado momento histórico, ligações entre si.250
Primeiras páginas
Na publicação do dia 30 de julho de 2014, a revista Istoé dedicou quatro páginas à invasão
da Faixa de Gaza por Israel. A principal matéria da seção Internacional, intitulada “Sob as bombas
vivo como um zumbi”, é aberta com uma grande foto colorida (FIG.1), ocupando quase
completamente duas páginas espelhadas da revista.
é o caso desse artigo. GINZBURG, Carlo. Mitos emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das
letras, 1989, p. 45 e 55.
249 Esse conceito utilizado por Warburg estaria relacionado com a ideia de que a persistência de determinadas formas
na cultura levaria ao revigoramento de forças psíquicas arraigadas na memória coletiva. Apesar de ser um aspecto
interessante da sua pesquisa e ter interessado destacados pensadores contemporâneos, a parte que trata das “energias
psíquicas primordiais” não nos interessa nesse artigo. WARBURG apud GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror:
quatro ensaios de iconografia política. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 74.
250 “O conceito de Pathosformel aparece pela primeira vez no ensaio de 1905, Dürer e a antiguidade italiana, que liga o
tema iconográfico de uma gravura de Dürer à “linguagem gestual patética” da arte antiga, por meio de uma
Pathosformel testemunhada em uma pintura em um vaso grego, em uma gravura de Mantegna e nas xilogravuras de
um incunábulo veneziano.[...] Warburg não escreve, como também teria sido possível, Pathosform, mas Pathosformel,
fórmula de páthos, ressaltando o aspecto estereotipado e repetitivo do tema imaginário com o qual o artista, a cada
vez, contendia para dar expressão à “vida em movimento”. AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. Trad. Renato Ambrosio.
São Paulo: Hedra, 2012, p.27-8.
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Na análise dessas páginas, vamos nos concentrar, incialmente, na imagem, passando depois
para os textos inseridos dentro da imagem e, finalmente, tratando do texto da matéria. No que se
refere à imagem, vamos nos concentrar primeiro na mulher em primeiro plano, passando pelo
cenário e concluindo com os outros personagens que compõem à fotografia. Essa ordem foi
escolhida em função da hierarquia de importância expressiva dos elementos que compõem a
imagem. À medida em que fizermos a análise, procuraremos evidenciar as possibilidades retóricas
criadas a partir da escolha dos signos e de sua distribuição no espaço. Posteriormente, trataremos
da inserção do texto sobre essa fotografia, ou seja, observaremos como a escolha da forma,
tamanho e cor do texto - além do seu conteúdo - contribui para a produção de significados pela
matéria.
Em uma imagem, existe uma série de pontos de maior ou menor tensão visual que são
251
socialmente definidos. Segundo Dondis (2000), o centro de uma imagem é um ponto ao qual
estamos acostumados, portanto, com pouca tensão visual. Por outro lado, elementos posicionados
em certos pontos da imagem convencionalmente chamados de “pontos áureos” possuem grande
tensão visual e tendem a ser mais “vistos” pelos leitores.
Em meio ao cenário devastado da fotografia feita por Mohammed Salen (Reuters), no canto
esquerdo da imagem, destaca-se uma mulher com uma expressão de desespero, enquanto dois
homens parecem procurar por algo no meio dos destroços (FIG. 2). A única mulher da imagem
ocupa um lugar privilegiado na composição. É enquadrada em primeiro plano e está próxima a um
dos pontos considerados de maior tensão visual em uma imagem fotográfica: um dos pontos
áureos. Além de possuir um tamanho maior - por estar em primeiro plano -, e de ocupar um lugar
estratégico; a mulher é retratada quase de frente para o leitor, de modo que ele possa perceber com
clareza sua expressão de dor (pathosformel).
A expressividade da mulher em destaque na foto, em contraposição à falta de eloquência
dos outros personagens aumenta a tensão visual sobre ela. Não apenas seu rosto nos apresenta sua
aflição como também sua linguagem corporal, com as mãos próximas, sobre o peito. A disposição
do corpo, somada ao olhar (mirando um ponto fora da imagem) e à contração do rosto da mulher
fotografada, retoma uma pathosformel que evoca a iconografia católica da Mater Dolorosa, comum à
tipologia cristã desde o século IV (FIG.2). A evocação dessa tipologia, na qual é representada a dor
da mãe de Cristo diante do seu filho morto, contribui para potencializar a sensação dramática da
cena.
O conceito é desenvolvido por Donis A. Dondis em seu livro Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins
251
Fontes, 2000.
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FIGURA 2 - À esquerda e à direita, versões da Mater Dolorosa e ao meio recorte da mulher que protagoniza a
fotografia de Mohammed Salen (Reuters)
A pathosformel dessa mulher, inserida nesse cenário desolador, também evoca, de forma
indireta, uma série de outras, vinculadas à dor na cultura ocidental, das quais nos vem à mente a
primeira gravura de Goya da série Os desastres da guerra (FIG. 3). Nessa imagem, um homem está de
joelhos, os braços esticados com as palmas à mostra, enquanto uma expressão assustada cobre seu
rosto. Seus olhos miram um ponto acima do horizonte que não nos é possível identificar. Sua roupa
está suja e rasgada, o peito exposto.
Ao seu redor, há um cenário escuro onde é possível perceber rostos e corpos tomando
forma assumindo uma postura ameaçadora. O contraste entre o fundo negro e a figura
predominante branca em primeiro plano projeta a imagem desse homem em direção ao leitor,
aumentando o impacto da sua expressão de angústia e medo. Tal como na imagem da Reuters
(FIG. 3), a composição destaca a aflição do personagem que está em primeiro plano.
FIGURA 3 - À esq., detalhe da imagem da Reuters publicada pela revista Istoé e à dir. prancha de Os desastres da guerra
de Francisco Goya
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252 O trabalho do artista espanhol parecia mesmo apontar para uma forma de representação visual da guerra que
marcaria a história do fotojornalismo. Não foi à toa que a prancha 36 da série “os desastres da guerra” foi escolhida
para ilustrar a capa da edição brasileira do livro de Susan Sontag “Diante da dor dos outros”, obra dedicada, dentre
outros temas, a uma reflexão sobre o fotojornalismo e a fotografia de guerra.
253 A esse respeito, ver Susan Sontag, em Diante da dor dos outros.
254 MATTOS, Cláudia Valadão. Arquivos da memória. Revista Cult, São Paulo, n. 108, p. 28-30, nov. 2006.
255 TODOROV, Tzvetan. Goya : à sombra das luzes. Trad. Joana A. d’Avila Melo. São Paulo: Companhia das Letras,
2014, p. 141.
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infligido pelos soldados de Napoleão não se restringiu aos seres humanos, mas também ao espaço
em que eles viviam. A esse respeito, Susan Sontag comenta:
[...] prédios destroçados são quase tão eloquentes como cadáveres na rua. (Cabul,
Sarajevo, Mostar oriental, Grosni, 6,5 hectares da baixa Manhattan depois do 11
de setembro de 2001, o campo de refugiados em Jenin...) Olhem, dizem as fotos,
é assim. É isso o que a guerra faz [...] A guerra dilacera, despedaça. 256
256 SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 13.
257 TODOROV, T. Goya : à sombra das luzes, p. 141.
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FIGURA 4 - À esquerda, pontos áureos da primeira página mostram personagem da foto em destaque e, à direita,
página dupla com a fotografia na íntegra
Nessa imagem, mesmo com a composição bem construída, existem poucos elementos que
indicam que ela se refere a vítimas palestinas dos mísseis de Israel. Graças ao seu khimar, a mulher
é a única referência visual que nos indica se tratar de civis palestinos. Nesse contexto, fica evidente
que o texto escrito cumpre a importante função comunicativa de ajudar a explicar a imagem e a
fixar seu sentido.
Como destacou Roland Barthes, em A retórica da imagem, toda fotografia possui múltiplos
sentidos e uma das funções da linguagem verbal é justamente fixar alguns desses significados. Dessa
forma, as reportagens exigem a utilização de um texto escrito para ancorar e fixar os sentidos, a
fim de controlar os significados que a imagem possui em potência.258
O texto que usa as fontes de maior tamanho, localizado no centro da imagem, está escrito
em caixa alta e com aspas do início ao fim da frase, uma convenção que indica se tratar da fala de
alguém: “Sob as bombas, vivo como um zumbi”. Logo acima desse conjunto, está inserida uma
faixa vermelha em que se lê, em caixa alta, mas em corpo menor, a palavra “exclusivo”, também
impressa com a cor branca, de modo a criar contraste com o vermelho da faixa.
Como já mencionado, o foco dessa composição, a mulher, não parece ser a autora da frase
em destaque; afinal, os zumbis - seres criados pela imaginação humana- são caracterizados
predominantemente por sua falta de ação e de expressão, o que não está de acordo com a postura
da mulher fotografada. Por outro lado, pensar nos homens como sendo zumbis é possível, apesar
de pouco provável, já que eles são representados como aqueles que realizam a ação na imagem.
Além disso, o verbo da frase está no singular, o que indica que apenas um dos personagens poderia
ter dito a frase.
258 BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
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259 BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 32.
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a leitura das diversas frases distribuídas pela imagem, o leitor irá perceber que esse conjunto de
blocos de texto vai fixar o sentido de que a mulher que apresenta uma postura semelhante à Mater
Dolorosa é uma palestina e que aquele cenário destruído já foi um prédio em que viviam civis árabes.
Com essa confirmação, fica mais evidente para o leitor que essa mulher que ocupa o lugar de
destaque na imagem encarna o sofrimento imposto pelos bombardeios israelenses ao povo
palestino, além de representar o desespero do seu povo diante da destruição da sua casa, da sua
cidade, do seu cotidiano.
É interessante observar que, se por um lado, é fácil aceitar que a mulher pode representar
metonimicamente o povo palestino, a legenda “População em pânico” não nos parece totalmente
adequada à imagem, já que a maior parte dos personagens retratados - os dois homens - não tem
uma atitude que sugere pânico. Ao contrário, a expressão corporal desses sujeitos evoca até certa
conformidade. Depois de contextualizar o conflito em uma breve introdução, utilizando a narrativa
na terceira pessoa do singular, o texto assume a narrativa em primeira pessoa, dando voz ao
palestino Nimer. Basicamente, o relato de Nimer descreve a precariedade da sua vida e da sua
família naquele momento, reforçando aquilo que já foi afirmado pela imagem de abertura e pelos
textos inseridos na imagem – a narrativa é uma mistura de drama e tragédia.
Virando a página
Ao virarmos a folha, vamos perceber outra página espelhada com novas fotografias. A
primeira delas retrata uma explosão numa cidade, sendo seguida por uma tradicional foto de uma
família, fundida a um gráfico (FIG. 7). Na base da quarta página, está localizada a última fotografia.
Nela, tanques escuros se deslocam numa paisagem inóspita.
A fotografia que se segue à imagem de abertura exibe, em primeiro plano, um conjunto de
prédios brancos entre os quais são visíveis algumas torres mais altas e finas, que podem ser
minaretes (FIG. 5), o que sugere se tratar de uma cidade muçulmana. Esses prédios estão
localizados abaixo da linha do horizonte, ocupando aproximadamente um terço da fotografia. O
resto da imagem é tomado por um céu azul com duas grossas colunas azuladas de fumaça. Entre
essas colunas, no centro da fotografia, há uma forma oval amarelada, provavelmente uma explosão.
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FIGURA 5 - À esquerda, a cidade no momento da explosão provocada por Israel e, à direita, plano-detalhe destaca o
minarete
O objetivo dessa imagem é explicar visualmente ao leitor o ataque que Israel está
desfechando contra a Faixa de Gaza, ao mesmo tempo em que comprova que o território palestino
está sendo bombardeada pelo exército de Israel. A forma como foi composta a foto, com um
horizonte baixo, mas apresentando uma explosão e duas grossas colunas azuladas, confere
dramaticidade à cena. Mesmo assim, não podemos afirmar que o impacto visual seja grande, e
talvez por isso tenha sido realizada uma inversão cronológica das imagens na matéria: as
consequências das ações do exército de Israel são apresentadas ao leitor antes da imagem que
mostra essa ação (FIG. 6).
FIGURA 6 - Inversão da ordem cronológica: à esquerda, cena dos destroços e à dir, momento da explosão na Faixa
de Gaza. FONTE – Revista Istoé, 30 jul 2014, p. 68 e p. 70
Assim, primeiro foi apresentado ao leitor a imagem de um prédio destruído, para depois
lhe ser exibido a imagem da cidade sendo bombardeada. Essa inversão tem um objetivo retórico
que é o de usar inicialmente uma imagem capaz de causar maior impacto. Pretende-se que o leitor
seja capaz de estabelecer uma relação causal entre essa imagem e a fotografia de abertura da matéria,
inferindo que a primeira imagem seja a consequência de um ataque como o que foi posteriormente
retratado. O “título” da legenda reafirma o que vemos na imagem, acrescentando um ar mais
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dramático, apelando para o sentido emocional do leitor. As duas frases que seguem ao título
explicam que aquele conjunto de prédios se encontra dentro da Faixa de Gaza e que a explosão a
que assistimos é fruto de um bombardeio (de Israel) e que há muitos mortos (o que não é visível
nem na primeira nem em nenhuma outra imagem dessa matéria).
260 Ao longo do texto, Ayman Nimer afirma morar no último piso de um prédio de sete andares, no coração de
Gaza, e comenta que, como faz muito calor, ele mantem as janelas do apartamento todas abertas.
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“lutando para sobreviver”. Ao contrário, nela, as meninas posam confortavelmente para a câmera,
com um gato de estimação no colo.
O mapa da tragédia
Ainda no topo da última página, há um diagrama que parece mais confundir do que
esclarecer. O quadro, ao mesmo tempo em que mostra ao leitor que parte do mundo vive a família
de Nimer, procura explicar a gravidade do conflito por meio de números. Segundo esse texto, 1,2
milhão de pessoas estão sem acesso a água ou saneamento – como consequência das ações de
Israel.
Os tanques de Israel
A última imagem representa veículos se deslocando num espaço vazio, levantando poeira.
Apesar de ser uma foto colorida, predominam basicamente duas cores, o negro e o branco roseado
(FIG. 8). A luz sugere que a foto foi realizada no início ou final do dia. Nessa fotografia, quatro
tanques se deslocam numa linha diagonal levantando uma grande quantidade de poeira. Essa massa
de areia cria diagonais que estão no sentido inverso àquele da diagonal formada pela linha dos
tanques, o que sugere contraste e tensão visual, dando um aspecto dramático à cena. A maior parte
do lado esquerdo da imagem é tomada pela fumaça dos tanques, enquanto podemos ver um
pequeno triângulo negro do lado direito.
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A legenda exibe em caixa alta os dizeres: “Por terra”. Seguindo a convenção adotada pela
matéria, a primeira frase da legenda é curta, apesar de não ser necessariamente impactante. A
princípio, esse texto não acrescenta nada a respeito da imagem – é desnecessário dizer que os
tanques estão se movimentando pela terra. Em seguida, lê-se em caixa baixa: “Tanques israelenses
avançam pela fronteira, ao norte da Faixa de Gaza. Os ataques ocorrem também por ar e mar”. Se
a primeira frase cumpre a função de título da legenda, sem muito sucesso, a segunda compõe com
a primeira uma estrutura argumentativa em que fica claro que essa imagem representa uma das
formas de ataque do exército de Israel. A legenda, entretanto, revela outras formas de ataque - pelo
ar e pelo mar -, ou seja, os ataques ocorrem “por todos os lados”. Reforça-se, assim, a ideia de que
os palestinos estão completamente cercados.
Coincidentemente (ou não) na matéria da Carta Capital, veiculada na mesma semana, os
israelenses também são representados metonimicamente por meio de tanques, o que contribui para
a fixação da representação desse povo no imaginário da sociedade brasileira como uma nação
belicosa. O uso dos tanques para representar os israelenses naturaliza a ideia de povo guerreiro
além de ressaltar sua força. Ao mesmo tempo, o contraste entre um pai e sua família representando
os palestinos e os tanques representando os israelenses acentua o contraste e a ideia de força
desproporcional.261
FIGURA 8 - À esquerda, tanques de guerra representam o Estado de Israel na revista Istoé e, à direita, na revista
Carta Capital (30 jul. 2014)
Conclusão
Na esteira dos escritos de Barthes, teóricos como Martine Joly (2006)262 sustentam a ideia
de que a leitura de imagens não é um dom natural do ser humano, antes se constitui em uma
aprendizagem cultural, na qual os sujeitos de uma sociedade são apresentados a um conjunto de
regras que orientam seu entendimento. Além desse aspecto cultural da linguagem imagética,
261 CARTA, G. Quando Golias é judeu: Gaza – a invasão ofende os Direitos Humanos diante da indiferença
cúmplice das potências ocidentais. Revista Carta Capital, São Paulo, ano20, n. 810, p. 60-64, 30 jul. 2014.
262 JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas: Papirus, 2006.
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Barthes (1990) percebeu também que os signos que compõem uma matéria, tanto verbais, quanto
visuais (como tamanho, cor, disposição espacial, entre outras características) podem alterar ou
reforçar os sentidos culturalmente associados a esses signos, constituindo uma retórica dessa
imagem.
Pudemos comprovar que a escolha das fotos que ilustram o texto, bem como sua
organização no espaço, a diagramação, entre outros aspectos, visa não apenas a chamar a atenção
do leitor, como também a constituir, junto com o texto, uma narrativa. As imagens de maior área
ocupam lugar de destaque na primeira e na última página da matéria e marcam visualmente a
tragédia que vive o povo palestino, enquanto uma pequena imagem representa a força militar de
Israel. Houve casos em que o uso dos recursos visuais e textuais não esteve bem afinado. Nas
imagens veiculadas pela revista Istoé, há poucas referências diretas ao povo palestino. Nimer e sua
família, por exemplo, vestem roupas ocidentais, assim como os homens que passeiam pelos
escombros. A maneira como foram criados e distribuídos o título, subtítulo e legendas também
não facilitam a compreensão do leitor, o que obriga o texto a suprir essa deficiência.
Por outro lado, o fato de haver, na imagem de abertura da matéria analisada, a presença de
uma mulher vestida com um khimar, com uma expressão que dialoga com as pathosformels da cultura
cristã, contribui para aumentar o poder expressivo dessa fotografia. Da mesma maneira, a presença
de um fundo em que predomina um cenário de destruição que dialoga com o imaginário ocidental
amplia sua potência para sensibilizar o leitor. Por meio da combinação de textos e imagens, a revista
Istoé procurou sensibilizar a opinião pública brasileira sobre a situação crítica e injusta que
atravessava o povo palestino, responsabilizando o exército de Israel e pedindo pelo fim da
indiferença a essa situação.263
A estratégia adotada para veicular esse ponto de vista pretendeu fixar os palestinos como
vítimas inocentes em contraposição aos judeus, máquinas de guerra implacáveis, o que ajuda a
reforçar a ideia de ação desproporcional do exército de Israel. Para fixar esse sentido, a revista
utilizou-se de um depoimento de um palestino para destacar como o cotidiano dos inocentes, leia-
se civis (inclusive crianças), tem sido destruído pelas tropas de Israel. Ao divulgar sua perspectiva
sobre o conflito entre judeus e palestinos, a Revista Istoé contribui para um tensionamento na forma
como vai se produzindo na sociedade brasileira simbolicamente as posições do Estado Israelense
e do Estado Palestino. Essa proposição simbólica tem potencial de afetação do real, contribui para
organizar sentidos dispersos, ao mesmo tempo em que seleciona sentidos potenciais.264
263 Essa abordagem foi alinhada àquela adotada pela diplomacia brasileira, que condenou a ação militar de Israel
devido ao uso da força desproporcional.
264 FRANÇA, Vera. Acontecimentos: reverberações. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p.46.
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Resumo: A noção de discurso ultrapassa a ideia reducionista de algo que é pronunciado oralmente,
sendo assim o discurso é mais do que apenas códigos linguageiros. Com Charaudeau (2001) 265 e
Mendes (2013)266, assumimos que discurso é o lugar da encenação da significação, significação esta
que pode ser encenada por vários códigos linguageiros, a exemplo do código icônico (linguagem
da imagem). Neste trabalho, abordaremos a construção discursiva de imagens (ethos) de Lili Elbe,
uma das primeiras mulheres trans a ganhar notoriedade no mundo. Para tanto, serão analisadas duas
imagens fixas dessa mulher que ficou ainda mais conhecida no filme A garota dinamarquesa. Nesse
sentido, faremos uso da grade de análise de imagens fixas elaborada pela pesquisadora Emília
Mendes (2013) e nos utilizaremos da proposta de pesquisadores contemporâneos sobre o ethos,
como Charaudeau e Amossy. Sendo assim, verificaremos como a utilização de determinadas cores
(elementos plásticos), de determinados planos, ângulos etc. contribuem para a construção de ethé
vinculados a Lili. Observaremos, pois, o irromper de uma mulher intrépida e vívida envolvida pelo
drama daquilo que hoje é conhecido como Transtorno de Identidade de Gênero.
Introdução
Desde o seu lançamento pelo mundo, o filme A garota dinamarquesa (The Danish Girl),
dirigido por Tom Hooper, foi um dos favoritos à indicação ao Oscar de 2016 e uma das mais
notáveis representações do universo LGBTT do cinema atual. O drama, em parte biográfico, e
inspirado em livro homônimo narra a descoberta de Einar Wegener (Eddie Redmayne) como
mulher transexual e sua árdua transformação em Lili Elbe, em uma época em que a transexualidade
265 CHARAUDEAU, Patrick. Uma teoria dos sujeitos da linguagem. In: MARI, H et alii. Análise do discurso:
fundamentos e práticas. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso – FALE/UFMG, 2001, p. 23-37.
266 MENDES, Emília. Análise do discurso e iconicidade: uma proposta teórico-metodológica. In: MENDES, Emília;
MACHADO, Ida Lúcia; LIMA, Helcira; LYSARDO-DIAS, Dylia (orgs.). Imagem e Discurso. Belo Horizonte:
FALE/UFMG, 2013, p. 125-156.
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não era apenas um tabu, mas uma doença mental. Os perigos, os obstáculos e o tormento de viver
como pessoa trans em 1930 parecem ser amenizados por Gerda (Alicia Vikander), esposa de Einar,
que não mede esforços e não recusa apoio para ver seu marido plenamente realizado antes e após
a efetivação de sua cirurgia - ilegal na época - de readequação sexual. Seria fácil imaginar a imagem
(ethos) de uma mulher fragilizada pela condenação de uma sociedade em que não se encaixava, pelo
repúdio ao corpo que não lhe servia e pela ignorância científica e social da época.
Com o objetivo de verificar quais ethé (imagens) foram criados para representar essa mulher
que entrou na história como símbolo da luta trans, analisaremos sob a luz da Análise do Discurso
de linha francesa um dos pôsteres267 do filme A garota dinamarquesa e também outra imagem de Lili
pintada por sua própria esposa. Para tanto, retomaremos o conceito de ethos, de Aristóteles,
apresentando também algumas releituras desta que é considerada uma das três provas retóricas,
juntamente com o pathos e o logos.
O presente artigo será, pois, dividido em três seções, além desta que nos serve de
introdução. Na primeira seção, a fim de contextualizar nosso estudo, discorreremos sobre o enredo
de A garota dinamarquesa, o seu destaque no Oscar, entre outros pontos. A segunda seção terá por
finalidade apresentar o aparato teórico a ser utilizado para a realização da análise. Nesse sentido,
trataremos do quadro de imagens fixas proposto por Emília Mendes e, também, do ethos, uma das
três provas retóricas propostas por Aristóteles, entretanto sob um viés atual. Por fim, na última
seção, apresentaremos, finalmente, a análise de nosso corpus e teceremos considerações sobre
possíveis efeitos discursivos alcançados pelas estratégias utilizadas nas imagens fixas.
A relevância deste breve estudo se dá por fatores de ordem linguística e social. Em primeiro
lugar, vale lembrar que, antes mesmo da escrita, a imagem era utilizada para a comunicação nas
pinturas rupestres e que, portanto, é um dos meios mais antigos de comunicação e produção de
sentido. Sendo assim, muito já foi dito a respeito da análise de imagens. Em nosso estudo,
apresentaremos, ainda que sucintamente, uma das mais atuais teorias do discurso a respeito do
universo verbo-icônico, a qual pode contribuir como instrumento para outras áreas do
conhecimento também. Além disso, pensar a questão do gênero social na atualidade é fundamental,
uma vez que valores tradicionais estão sendo revistos e os indivíduos queers268 estão ganhando cada
267 É preciso explicar que vários pôsteres referentes ao filme podem ser encontrados, entretanto apenas um deles foi
escolhido para nossa análise, pois é aquele que mais atende à nossa proposta.
268 Nas linhas de MUSSKOPF, André Sidnei. A teologia que sai do armário: um depoimento teológico. Impulso,
Piracicaba, v. 14, n. 34, p. 129-146, 2003. p. 137, a utilização da terminologia queer é mais adequada que outras porque:
“o ser homossexual –, demonstrou aos poucos que não cabia dentro da terminologia homossexual, nem gay, mas carecia
de um termo mais abrangente para acabar com a polaridade hetero-homossexual. Isso porque homossexual e gay
estabelecem outra hierarquia sexual, excluindo, por exemplo, transexuais, bissexuais, transgêneros... Por essa razão, o
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vez mais visibilidade em comerciais, novelas e filmes. Portanto, acreditamos estar contribuindo,
ainda que insuficientemente, para desvendar algumas das representações atribuídas a eles em nossa
sociedade.
A história de Lili teve início quando, em uma tarde, a modelo que posaria para Gerda, sua
esposa, não apareceu. A jovem pintora sugeriu, então, que Einer (posteriormente, Lili) posasse para
que ela pudesse terminar seu esboço. Marido atencioso que era Einar concordou em colocar um
vestido, sapatos femininos e meia calça, e servir de modelo para sua amada. Um fascínio quase
imediato tomou conta de Einar à medida que ele sentia o tecido do vestido. A partir daí, o que,
incialmente, era uma brincadeira começou a tomar outras proporções. Einar passava cada vez mais
tempo com roupas femininas, ele começou a acompanhar sua esposa como se fosse, na verdade, a
irmã dele mesmo e, por fim, percebeu que tinha uma alma feminina presa em seu corpo, foi quando
assumiu sua nova identidade, Lili.
Gerda não mediu esforços para que seu marido, Lili, vivesse plenamente sua vida como a
mulher que era. Sempre acompanhando Lili em consultas médicas e cirurgias, Gerda a ajudava a
enfrentar os desafios de ser uma mulher trans em 1930, já que era vista como tendo uma doença
perversa. A primeira cirurgia de Lili foi uma castração, o início de sua readequação de gênero.
Posteriormente, outras cirurgias se seguiram até a última, na qual seria criada uma vagina em Lili e
um útero seria implantado em seu corpo. Entretanto, ela não sobreviveu a este procedimento e
faleceu com cerca de 50 anos.
Apesar de ter sido a primeira mulher trans registrada historicamente, a trajetória de Lili Elbe
só se tornou conhecida pelas mãos de David Ebershoff, que escreveu um romance sobre sua vida.
Entretanto, como todo romance, a história contada em seu livro e, posteriormente, no filme de
Tom Hooper, ganha contornos muito mais leves. Essa desconexão com a realidade, por sua vez,
já explicitada pelo autor em uma nota inicial de sua obra:
Esta é uma obra de ficção inspirada na história de Lili Elbe e sua esposa, Gerda.
Escrevi o romance a fim de explorar o espaço íntimo que definia esse casamento
único, e tal espaço só poderia ganhar vida por meio de conjetura, especulação e
termo queer tem por objetivo central ser mais amplo a ponto de abarcar diferentes perspectivas e experiências.” (grifo
do autor).
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O fato de se tratar de um romance fez com que tanto o livro quanto o filme fossem
criticados por muitos, uma vez que as obras não retratariam, de fato, as dificuldades, o preconceito
e a depressão vividos por Lili à época. É válido ressaltar que em 1933 foi publicada uma biografia
semificcional intitulada Man Into Woman (Homem para Mulher) e que esta, sim, detalharia todo o
drama da situação. As críticas destinadas ao filme e à obra não impediram, entretanto, que o filme
concorresse a alguns dos prêmios mais cotados do Oscar 2016, o de melhor ator e o de melhor
atriz coadjuvante, este que teve como vencedora Alicia Vikander, a protagonista de Gerda.
Por fim, ainda nos cabe ressaltar que o filme surge em um momento oportuno para a causa
trans, um momento de maior visibilidade, de busca e reconhecimento por direitos. Provavelmente,
não é coincidência que o filme tenha estourado na mesma época em que personalidades ganharam
destaque midiático por se assumirem trans e por viverem sua identidade na frente dos holofotes, a
exemplo de Bruce Jenner e Laverne Cox. De modo geral, o momento também é favorável não só
à discussão sobre a transexualidade, mas também a todas as outras sexualidades, a exemplo da
legalização do casamento civil entre homoafetivos no Brasil e nos Estados Unidos e a maior
visibilidade conferida ao grupo queer de maneira geral em novelas e comerciais também.
Nesta seção, apresentaremos de maneira breve o aparato teórico que sustentará nossa
análise posterior. Para tanto, utilizaremos como referência o capítulo escrito pela pesquisadora
Emília Mendes e intitulado Análise do discurso e iconicidade: uma proposta teórico-
metodológica.270 Segundo Mendes (2013)271, o estudo da imagem não é um fenômeno novo ou
269 EBERSHOFF, David. A garota dinamarquesa. Tradução de Paulo Reis. 2. ed. Fábrica 231, 2016, p. 9.
270 MENDES, Emília. Análise do discurso e iconicidade.
271 ______. Análise do discurso e iconicidade.
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recente. Nesse sentido, ela menciona os estudos de Erwin Panofsky e de Leonardo da Vinci que,
entretanto, pareceram ficar mais restritos ao âmbito das artes. Além disso, a autora ainda lembra as
pesquisas desenvolvidas nos anos de 1950 na semiótica e na semiologia, os quais tiveram uma
abrangência maior. E na cena mais recente, Mendes (2013)272 chama atenção aos trabalhos de Kress
& Van Leween, de Amont e de Gervereau. A proposta inovadora da pesquisadora é de trabalhar a
imagem com algumas das mesmas categorias utilizadas para analisar textos verbais:
O quadro que será apresentado a seguir e que foi proposto por Mendes (2013)274 deixará
evidente que embora algumas categorias possam ser utilizadas para analisar tanto o verbal quanto
o icônico, outras categorias se restringem a apenas uma das áreas. Além disso, é válido ressaltar que
nem toda análise contemplará todas as categorias, cabe ao analista selecionar aquelas que serão mais
frutíferas para atingir seu objetivo. Devido às dimensões deste artigo, não discorreremos acerca de
todas as categorias do quadro, mas apenas a respeito daquelas que serão utilizadas em nossa
posterior análise, as quais já estão assinaladas na grade de análise de imagens fixas (Figura 1) que se
segue.
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Como é possível perceber, os elementos com os quais trabalharemos fazem parte daquilo
que Mendes (2013)276 chamou de “Macrodimensão retórico-discursiva dos elementos icônicos”,
sendo eles: elementos plásticos, planos e ângulos e elementos etóticos, mostrados na Figura 1. De
modo breve, apresentaremos os três. Quando abordamos esses elementos e pretendemos analisar
uma imagem, devemos saber que eles envolvem uma vasta gama de opções e que de maneira geral
são apresentados de determinada forma para engendrar determinados efeitos de sentido. Não
podemos pensar, por exemplo, que certa cor seja colocada em uma imagem sem função alguma,
como se fosse uma escolha aleatória. Principalmente, quando estamos tratando de algum gênero
do discurso mais persuasivo, isso deve ser levado em consideração. Em gêneros menos persuasivos,
ainda que não exista esta finalidade explícita, é necessário pensar em possíveis efeitos de sentido
ocasionados por determinada escolha deste ou daquele elemento.
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Em relação aos planos e ângulos, existem nomenclaturas variadas para tratar do assunto,
seguindo o artigo de Mendes (2013)277, apresentaremos aqui as mesmas escolhidas pela
pesquisadora:
-Ângulo de visão médio: a cena ocorre na mesma altura dos olhos de quem vê a imagem.
Os possíveis efeitos de sentido gerados por esses elementos serão apresentados mais
adiante em nossa análise.
Por fim, trataremos dos elementos etóticos. O ethos juntamente com o pathos e o logos
formam aquilo que ficou conhecido como a tríade aristotélica, ou três provas retóricas. Embora
saibamos que essa tríade funciona em conjunto, acreditamos também em uma certa independência
de cada prova, de modo que elas podem ser isoladas e trabalhadas separadamente dependendo dos
objetivos de cada pesquisador. Sendo assim, aqui, retomaremos primordialmente o ethos.
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A ideia de ethos teve seu início marcado com Aristóteles, que em sua Retórica apresentou a
estrutura que um discurso deveria ter para que fosse persuasivo. Em Aristóteles, essa prova estava
ligada ao caráter moral do orador e, por isso, era chamada de caráter. Desde então, muitos
pesquisadores já desenvolveram a ideia do ethos, ora se aproximando ora se afastando de Aristóteles.
Como assevera Eggs,
Dessa forma, percebemos a presença do ethos em pesquisas recentes, ainda que esteja
“escondido” por outras nomenclaturas. Ainda poderíamos citar, por exemplo, os trabalhos de
Oswald Ducrot e aquilo que ele chamou de Locutor, dentre outros. Mais propriamente na Análise
do Discurso, Dominique Maingueneau retomou a noção antiga de ethos e ligou a ela outros
conceitos, o de tom, caráter e corporalidade. Patrick Charaudeau trouxe o conceito de ethos coletivo, e
Ruth Amossy relacionou essa prova retórica aos estereótipos. De maneira bem sucinta279, o ethos
diz respeito às imagens de si e/ou do outro construídas discursivamente.
Após essa breve contextualização, primeiro sobre o filme A garota dinamarquesa e, depois, a
respeito de nossa teoria-base, daremos seguimento à nossa proposta de trabalho. Analisaremos,
então, duas imagens de Lili Elbe, uma delas (Figura 2) se trata de um dos pôsteres do filme, embora
278 EGGS, Ekkehard. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In: AMOSSY, Ruth (org). Imagens de si no
discurso: a construção do ethos. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2011, p.30.
279 Devido às dimensões deste artigo, não desenvolveremos de maneira exaustiva a noção de ethos e nem as diferentes
perspectivas teóricas que a abordam. Para uma abordagem mais aprofundada do tema sugerimos as seguintes leituras:
AMOSSY, Ruth. L’argumentation dans le dicours. 3 éd. Paris: Armand Colin, 2010, p. 1-256; LIMA, Helcira Maria
Rodrigues de. Na tessitura do Processo Penal: a argumentação no Tribunal do Júri. 260f. Tese (Doutorado em Estudos
Linguísticos). Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Belo
Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2006, 260p.
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outros possam ser encontrados. A outra imagem (Figura 3) diz respeito a uma pintura produzida
pela própria Gerda, uma artista à frente de seu tempo.
Figura 2: o pôster280
280MAIA, Pedro. Listão de filmes que você tem que ver em 2016. Captado em:
https://hqeetc.wordpress.com/2016/01/06/listao-de-filmes-que-voce-tem-que-ver-em-2016/. Acesso em: 29 mai.
2016.
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A próxima imagem a ser analisada diz respeito a uma das representações de Lili pintadas
por Gerda. A pintura de Gerda era livre dos preconceitos sexuais da época, era ousada, era livre e,
por isso, a artista foi, durante muito tempo, excluída por seus colegas pintores. Em muitos de seus
quadros, Gerda retrata seu marido, que por sua vez, está sempre vestido com roupas femininas.
TORRES, Silvio de Oliveira. Museu de Arte Moderna de Copenhague (Dinamarca) traz uma justíssima
282
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Mesmo quando não estava pintando seu marido, Gerda pintava mulheres, pintava a feminilidade,
o corpo feminino, o erotismo lésbico – retrato de sua própria sexualidade ambígua.283
Considerações finais
Com este trabalho, o que pretendíamos era mostrar a importância da imagem para a
construção de certos efeitos discursivos. Ao analisarmos o discurso icônico do pôster do filme e
283 Para conhecer mais sobre a pintura de Gerda e ter acesso a várias outras imagens pintada pela artista, sugerimos
como fonte o blog acima citado: TORRES, Silvio de Oliveira. Museu de Arte Moderna de Copenhague
(Dinamarca) traz uma justíssima homenagem a GERDA WEGENER.
284 MENDES. Análise do discurso e iconicidade.
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da pintura a partir da Análise do discurso, vimos que as cores, os ângulos e os planos não são
escolhidos de maneira aleatória, ou seja, cada detalhe é uma escolha precisa para engendrar
possíveis efeitos de sentido, no nosso caso possíveis imagens relacionadas à personagem principal
ali retratada. Como vimos, essas imagens representam uma pessoa melancólica, mas, ao mesmo
tempo, vívida, intrépida e pronta para enfrentar os desafios da vida.
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Bárbara Dantas
Mestranda em História da Arte
Universidade Federal do Espírito Santo – UFES
babicovre@gmail.com
Resumo: Este trabalho demonstrará algumas nuances da conexão entre a imagem e o texto no
decorrer da História da arte. Por meio de alguns exemplos de obras, veremos que esta relação
oscilou, porém, sempre existiu. Estas duas formas de expressão têm suas particularidades visuais e
conceituais, mas, por vezes, compartilharam o mesmo suporte artístico, como ocorreu na Idade
Média. No Renascimento e no Modernismo, a imagem e a linguagem separaram-se materialmente,
mas, permaneceram unidas pelo enunciado (pela idea).
Palavras-chave: Imagem; Texto; Arte; História.
Figura 4: Marcel Duchamp (1887-1968). À esquerda, A noiva despida por seus celibatários, mesmo (1915-23),
o Grande Vidro. À direita, Caixa Verde, 1934.
285BENJAMIN, Walter. Origin of german tragic drama. Londres: NLB, 1977, p. 175.
286BASBAUM, Ricardo. “Migração das palavras para a imagem”, in Revista Gávea, Rio de Janeiro, ano I, no1, setembro
de 1984, p. 385;
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conceitos pensados e estudados. Para Rosalind Kraus (1941-), a arte encontrou um novo lugar, uma
nova prática: “o campo ampliado possibilitando considerar diferentemente a prática do artista,
localizada não mais, evidentemente, dentro da noção pré-moderna dos gêneros artísticos”.287 Os
suportes e os meios pelos quais a arte atuaria se diversificaram. A ideia das Belas Artes perdeu sua
aura e a produção artística se fundiu, a partir de então, com as produções industriais destinadas a
suprir as necessidades cotidianas do homem. O retorno da palavra nas artes visuais: cartas,
fotografia, pia, colher, jornais... tudo poderia ser arte a partir de então.
Se a história deve ser escrita a partir do tempo do pesquisador, segundo os apelos do
historiador Georges Duby (1919-1996) e do crítico de arte Didi-Huberman (1953-)288, nossas
análises nesse trabalho tem como pressuposto realizar a escrita da história da arte em conexão com
o contexto atual. Desta forma, a contemporaneidade parece o tempo no qual ocorre a síntese de
todos os tempos passados. Não existe uma unicidade artística, nem conceitual.289 É desta forma
que a secular relação entre a imagem e o texto se apresenta hoje, nas mais diversas formas.
Para que escrever a história, se não for para ajudar seus contemporâneos a ter
confiança em seu futuro e a abordar com mais recursos as dificuldades que eles
encontram cotidianamente? O historiador, por conseguinte, tem o dever de não
se fechar no passado e de refletir assiduamente sobre os problemas de seu
tempo.290
287 KRAUSS, Rosalind. “Notes on the index: seventies art in America.” October, 1977, p. 68-81.
288 “[...] uma colisión donde el Otrora se encuentra interpretado y ‘leído’, es decir, puesto al día por la llegada de un
Ahora resueltamente nuevo.” DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tempo: historia del arte y anacronismo de las
imágenes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2011, p. 265.
289 “Essa confusão de gênero, antecipada por Duchamp, reaparece hoje na hibridização, em trabalhos ecléticos que,
ostensivamente, combinam de antemão meios distintos da arte.” OWENS, Craig. “O impulso alegórico: sobre uma
teoria do pós-modernismo”. Revista do programa de pós-graduação em artes visuais da EBA, UFRJ, 2004, p. 117.
290 DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. São Paulo: UNESP, 1999, p. 9.
291 FLUSSER, Vilém. “Texto/imagem enquanto dinâmica do Ocidente”, in Cadernos Rioarte, Rio de Janeiro, ano II, n o
8.
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sentido de ser. A gradual decadência da espiritualidade associada à Era das Máquinas e do Capital
submeteu o homem a objetos fora de si.293 As capacidades humanas tanto físicas quanto intelectuais
se subverteram em uma dependência fetichista a objetos e a máquinas construídos para auxiliar as
atividades cotidianas, mas que, na verdade, escravizam a humanidade em sua funcionalidade
considerada essencial. Desta forma, “crescemos e vivemos (e morremos) em meio a
mercadorias”294.
Figura 5: Édouard Manet (1832-1883). A estrada de ferro, 1873. Óleo sobre tela. National Gallery of Art,
Washington.
“A própria noção moderna de arte não se faz sem um preciso agenciamento entre práticas
visuais e práticas discursivas”.296
A visualidade se desprendeu da linguagem na modernidade. Mas a linguagem tornou-se o
enunciado desta nova visão imediatista do olhar artístico. O movimento modernista abrangeu uma
gama de práticas e de pensamentos estreitamente ligados às práticas visuais. Édouard Manet,
precursor do movimento, estendeu seu olhar para além das luzes artificiais dos estúdios dos artistas
acadêmicos. Ganhou o ambiente externo e tentou expressar visualmente em sua pintura a miríade
293 SINGER, Paul. “Apresentação”. In: RICARDO, David. Princípios de Economia Política e de tributação. Lisboa: Fundação
C. Gulbenkian, 2 ed., 1965, p. 13. “O religioso assume a imagem do marginal e do atemporal.” CERTEAU, Michel de.
A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 10.
294 BRAZ, Marcelo; NETTO, José Paulo. “Produção de mercadorias e modo de produção capitalista”. In: Economia
florescimento crítico que se deu em França por alturas do séc. XIX, a propósito da pintura moderna”. VENTURI,
Lionello. História da crítica da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1984, 36.
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de luzes e cores que desordenada e incessantemente se debatia sobre os homens e sobre a superfície
das construções e dos objetos. O movimento impressionista cresceu e legitimou-se graças ao papel
enunciador de uma nova vertente artística: os críticos de arte.297
Na Contemporaneidade, a civilização é constantemente questionada. No período moderno,
no entanto, os ganhos civilizacionais foram enaltecidos como o ápice da história da humanidade.
O movimento intelectual e científico da Era Moderna logo reavaliou o conhecimento humano e
sentiu a necessidade de fragmentar o saber em áreas do conhecimento específicas. Novas
modalidades e perspectivas criaram outros parâmetros do pensamento a partir de experiências do
momento, do instante fugaz, como mostra a pintura da Figura 2.298
Nas artes, as vias foram duplas. Ocorreu tanto uma adaptação à modernidade quanto uma
negação dela. Os movimentos neoclássico e neogótico aderiram a um revival de estilos anteriores e
elevaram os séculos precedentes – a Antiguidade e a Idade Média - a portadores de uma estética
idealizada, romantizada e, portanto, merecedora de novas obras que o dinheiro pudesse pagar. 299
No entanto, simultaneamente, existiram grupos que se viam cada vez mais presos às agruras das
cidades, ao consumismo e, gradativamente, sofreram uma perda de seus enunciados mais
entranhados.300
Outra vertente, o Ecletismo, considerava-se estreitamente ligada às novas tecnologias e
materiais da Revolução Industrial e do Capitalismo: “No plano econômico, a primeira Revolução
Industrial fez surgir a fábrica, a produção em larga escala mediante o uso de máquinas movidas a
vapor”.301 As volutas a que as formas metálicas foram moldadas pretendiam representar a arte de
uma Era feliz e bem adaptada às novas tecnologias, aos novos tempos. A Art Noveau e a Art Décor
como uma extensão sensível e bela da indústria pesada do ferro e do carvão ao atuar paralela e
conjuntamente com o novo paradigma visual que nasceu com a modernidade, o design.302 Toulouse-
Lautrec (1864-1901) e seus panfletos atuaram como a legitimação deste parâmetro artístico a favor
da modernidade, mesmo que fosse uma aceitação também das contradições daquela nova
realidade.303
estação ferroviária, escola ou museu, queriam Arte pelo dinheiro investido. Assim, quando as outras especificações
tinham sido preenchidas, encarregava-se o arquiteto de fornecer uma fachada em estilo gótico, de converter um edifício
num arremedo de castelo normando, palácio renascentista ou até mesquita oriental.” GOMBRICH, Ernest Hans.
História da arte. São Paulo: Círculo do livro, 1972, p. 395.
300 BRAZ; NETTO, Produção de mercadorias e modo de produção capitalista, p. 64;
301 SINGER, Apresentação, p. 11;
302 GOMBRICH, História da arte, p. 426.
303 “A arte de Toulouse-Lautrec é a do contraponto. Ele escolhe temas notoriamente vulgares [...] não para mostrar-
lhes a feiúra, mas para descobrir-lhes a beleza.” ADOFTPT, Radptonl. In: ABRIL Coleções. Toulouse-Lautrec. São
Paulo: Abril, 2011.
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Aqueles movimentos artísticos de fins do séc. XIX persistiram na ideia Renascentista Italiana
de separar a imagem do texto. Cada qual em seu suporte, o papel para um, a tela para outro. As
imagens continuaram com a aura das Belas-Artes e os textos adquiriram seu caráter de portadores
de normas, de regras como formadores de conhecimento.304
A classificação de uma obra como arte, encontraria seu ápice nas obras consideradas “obras-
primas”. Igualmente, ocorreu uma classificação das obras artísticas segundo uma hierarquia que
separou as obras em “maiores” (arquitetura, escultura e pintura) e “menores” (ourivesaria, vitrais,
obras em marfim, entre outras). Mas quem elegia tais obras como objetos artísticos? Quem foram
os que escolheram as obras-primas? Antes de respondermos a estas questões, pensemos por qual
via estas escolhas foram feitas. A via foi a escrita.305
304 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1955, p. 71.
305 “O conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor de um crime (do quadro) baseado em indícios
imperceptíveis para a maioria.” GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989, p. 145.
306 GASKELL, Ivan. “História das imagens” In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. Novas perspectivas. São
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“Na medida em que os textos iam explicando as imagens, as imagens, por sua vez, iam
ilustrando os textos. A história do Ocidente passou a ser dialética entre texto e imagem, graças a
qual ambas as consciências se iam fortalecendo mutuamente.”310
O homem medieval fundiu os saberes em uma única forma de conhecimento. As mais
variadas expressões, assim, poderiam ocupar o mesmo suporte. Ainda não existia no medievo uma
noção definida de separação entre as expressões dos saberes ou das sensibilidades. Na Antiguidade
e na Idade Média, o homem caminhava lenta e gradualmente rumo a práticas discursivas e
imagéticas cada vez mais independentes, mas, naquele período, ainda estavam intrincadas tanto
material quanto conceitualmente. O códice medieval era o abrigo do texto manuscrito e da imagem
plástica.311 Na figura 3 vemos um códice do séc. XIII, período áureo do movimento gótico. Ápice
também de um tempo no qual a imagem, por vezes, superou o texto nos manuscritos. O reino
castelhano de Afonso X, o Sábio (1221-1284) enalteceu a expressão imagética nos manuscritos ao
engrandecer a presença das imagens nos códices iluminados. São centenas de imagens – entre
iluminuras, capitulares e ornamentos – que compartilham o mesmo espaço com os textos. Para
nos afeiçoar mais ainda à obra, este códice possui notações musicais que estão ali como mais uma
forma de expressão. O que nos faz arguir se este manuscrito é formado por canções também
representadas em forma textual ou imagética; ou são imagens associadas a notações musicais e
literatura; ou, ainda, é literatura galego-portuguesa e sua vertente gótica imagética e trovadoresca
musical. Na verdade, para nós, pouco importa. O mais importante é verificarmos que a imagem e
o texto, o visual e a linguagem, a linguagem e o símbolo, no códice de Afonso X, estão
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A passagem da expressão imagética para a alfabética foi lenta, no entanto, perene. Dos
hieróglifos egípcios e da escrita cuneiforme dos sumérios, mais imagem que símbolo.317 E da escrita
chinesa, mais símbolo que imagem. A partir de um número imensurável de imagens que se
converteram em linguagem, o Ocidente se particularizou como uma região na qual todas as
312 Ver alguns artigos escritos a respeito desta obra em parceria com o professor medievalista Ricardo da Costa na
internet em: ricardocosta.com; A Biblioteca Central da PUC-Minas abriga dois fac-símiles desta obra. O Códice Rico:
AFONSO X, o Sábio. Cantigas de Santa Maria. Edição fac-símile do Códice T.1.1 da Biblioteca de San Lorenzo El Real
de El Escorial. Séc. XIII. Madri: Edilán, 1979 e o Códice de Florença: AFONSO X, o Sábio. Cantigas de Santa Maria.
Edição fac-símile do Códice B. R. 2B da Biblioteca Nacionale Centrale de Florença. Séc. XIII. Madri: Edilán, 1989; o
filólogo alemão Walter Metmann é referência na pesquisa dos textos dos manuscritos: AFONSO X, o Sábio. Cantigas
de Santa Maria. Edição crítica de Walter Mettmann. 4 v. Madri: Castalia, 1986-1989.
313 FLUSSER, Texto/imagem enquanto dinâmica do Ocidente, p. 66.
314 GINZBURG, Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história, p. 171.
315 PANOFSKY, Idea: a evolução do conceito de belo, p. 23.
316 LOUREIRO, Robson. A dialética civilização e barbárie: considerações a partir do conceito de trabalho. Vitória:
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Figura 4: Letra capitular. Cantigas de Santa Maria. Afonso X, o Sábio. Códice de Florença.
“O que distingue o Ocidente do Oriente extremo é tal longa passagem entre conceito e
ação através da língua, longa passagem esta iniciada pela invenção do alfabeto.”321
As letras capitulares são ornamentos presentes no início dos textos dos manuscritos. 322 É
um fenômeno inaugurado pelos medievais. Tornou-se o reflexo da junção de duas culturas. Os
embates entre os bárbaros e os romanos que culminaram com a Queda do Império Romano no
séc. V legaram a nós exemplos de um sincretismo cultural alheio às rixas militares e políticas. A
cultura bárbara foi, por fim, absorvida pela cultura latina do cristianismo. No entanto, muitas das
particularidades dos bárbaros - povos celtas, gauleses, saxões e godos, por exemplo – se
mantiveram e tornaram-se parte da cultura latina posterior. Uma delas foi a prática do
entrelaçamento de formas como ornamento de objetos de uso cotidiano praticado pelos artífices
bárbaros. Este entrelaçar de conjuntos florais, geométricos ou figurativos das obras bárbaras
migrou para as obras cristãs. Das fíbulas e broches bárbaros aos manuscritos iluminados e obras
em marfim da cristandade medieval.323 As capitulares são, portanto, além de uma recodificação
artística bárbara em uma expressão latina e cristã, um dos mais emblemáticos resquícios de uma
318 “Ser um homem de boa aparência é uma dádiva das circunstâncias, mas saber ler e escrever provém da natureza.”
MARX, A mercadoria, p. 78.
319 LOUREIRO, A dialética civilização e barbárie: considerações a partir do conceito de trabalho, p. 2.
320 GINZBURG, Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história, p. 157.
321 FLUSSER, Vilém. “Prétextos para a poesia”, in Cadernos Rioarte, Rio de Janeiro, ano I, no3, 1985, p. 19.
322 MARCOS, Ruan-José. Letras capitulares: concepto, historia, evolución y uso tipográfico. Cáceres – Espanha, 2007.
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mentalidade na qual a imagem e o texto se uniram de tal forma que se misturaram. As letras
capitulares são imagens em palavras, são palavras em imagens. São letras imagéticas poeticamente
enlaçadas.
Como num salto temporal, voltemos ao nosso tempo. A heterogeneidade é a palavra chave
para entendermos como hoje a imagem abraça seu parceiro, o texto, em uma existência que
remonta aos primeiros tempos nos quais o homem descobriu que podia pensar, sentir e se expressar
por imagens e símbolos.324 A Arte Contemporânea reacende o fogo da paixão entre a imagem e o
texto e os une novamente. As mais contundentes formas de expressões dos artistas
contemporâneos da Arte Conceitual aderem às relações entre a imagem e o texto, entre a linguagem
e a visualidade, como norteadores de suas ideias e de suas obras. As instalações da década de 1970
são as obras paradigmáticas desta vertente artística.325
podem ser relegadas apenas ao papel de ‘Bíblia dos iletrados’ como se tornou comum afirmar entre os pesquisadores,
porque as imagens não podem ser lidas. A imagem tem uma forma diferente de ser apreendida: “O texto evoca seus
significados na sucessão temporal das palavras; a imagem organiza espacialmente a irrupção de um pensamento
figurativo radicalmente diferente” SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade
Média. São Paulo: EDUSC, 2007, p. 34.
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insólitos, meios e objetos para suas criações. As normas não mais eram bem-vindas. Dentre elas, a
imagem como objeto aurático e a palavra como expressão essencialmente linguística, de “um
discurso que contém o texto de autoridade”.327 Na figura 5, notemos uma das mais emblemáticas
obras conceituais de Oiticica. Nela, é visível a inversão da posição da imagem e do texto. Estão
presentes, mas perderam seus papéis normativamente estabelecidos no decorrer da História da
Arte.
Estamos diante de um tempo efêmero. A contemporaneidade tem um poder sem
precedentes para assimilar e repudiar, com a mesma intensidade, tanto a história pregressa quanto
a atual. A Aura do objeto de arte, o seu caráter de unicidade, perdeu-se no tempo pretérito.328 A
contemporaneidade se impõe de forma áspera e crítica a respeito dos conceitos das épocas
pregressas. Esboços e anotações, documentos que enfatizam o processo do fazer artístico, não
teriam seu valor como arte até o início do séc. XX. Gravuras e outras obras reprodutíveis - como
a litografia, por exemplo - até então estariam mais ligados à publicidade, à propaganda e tinham
um caráter mais informativo e caricatural.329 Os modernistas descobriram o valor do processo
artístico, o artista contemporâneo fez do processo, obra de arte.
Figura 6: Tarsila do Amaral. A Negra, 1923. Óleo sobre tela, 100x80 cm.
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP).
“Se me perguntassem qual o filão original com que o Brasil contribuiu para este novo
Renascimento que indica a renovação da própria vida, eu apontaria a arte de Tarsila. Ela criou o
pau-brasil. Se nós, modernistas de 22, anunciamos uma poesia de exportação contra uma poesia de
importação, ela foi quem ilustrou essa fase de apresentação de materiais, plasticizada por Di
Cavalcanti, mestre de Portinari. Foi ela que deu, afinal, as primeiras medidas de nosso sonho
327 “Avant perdu leur rôle religieux, elles reçoivent de nouvelles fonctions de représentation de l'art.” BELTING, Hans.
Image et culte: une histoire de l’image avant l’époque de l’art. Paris: Les éditions du cerf, 2007, p. 617.
328 ____________ , Image et culte: une histoire de l’image avant l’époque de l’art, p. 6.
329 CERTEAU, A escrita da história, p. 4.
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bárbaro na Antropofagia, de suas telas da segunda fase, A Negra, Abaporu, e no gigantismo com
que hoje renova seu esplêndido apogeu” (Oswald de Andrade).330
Tarsila do Amaral (1886-1973), filha de um grande fazendeiro do café de fins do séc. XIX
formou-se em meio a uma educação erudita nas melhores escolas de São Paulo e da Espanha.
Tornou-se uma das principais figuras do Movimento Modernista do início do séc. XX no Brasil.
Soube, de forma insigne, ajustar sua gênese campestre, sua formação erudita e os conceitos dos
Movimentos de Vanguarda da Europa. Construiu um corpus artístico que aliou motivos simples –
baseado no traço, na linha - e cores puras com temáticas que remetiam ao ideal nacional brasileiro.
A ideia de uma cultura mais brasileira, menos europeia, em busca das raízes do que nos tornou uma
nação brasileira.331
“Uma figura solitária monstruosa, pés imensos, sentada numa planície verde, o braço
dobrado repousando num joelho, a mão sustentando o peso-pena da cabecinha minúscula. Em
frente, um cactus explodindo numa flor absurda”.332
Nesta vertente do modernismo brasileiro, encontramos um emblema desta nova forma de
atuação do visual e do verbal. Constituiu-se de uma legitimação das obras por meio de textos de
teóricos e de críticos de arte. Assim foi o Movimento Antropófago idealizado por Oswald de
330 ANDRADE, Oswald. “O caminho percorrido” (conferência pronunciada em Belo Horizonte), 1944, In: Ponta de
Lança, (Oswald de Andrade, Obras Completas, V vol.), 3ª. ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1972, p. 109-110.
331 TARSILA sobre papel. Exposição no Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo. Vitória: MAES, 2011, p.
7-13. Ver também o belo exemplar realizado pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo em comemoração aos 50 anos
da instituição. AMARAL, Aracy. Tarsila do Amaral. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 1998.
332 Depoimento pessoal de Tarsila do Amaral em texto de sua autoria publicado no Catálogo do RASM (revista Anual
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Andrade (1890-1954). Este, ao se deparar com a obra Abaporu, sentiu o devir de algo mais
vanguardista para a cultura artística no Brasil. Mais exportar nossa cultura e menos importar as
ideias prontas vindas da Europa. Tarsila e seus colegas do grupo Pau-Brasil ou do Movimento
Antropófago não negaram as regras do academicismo, transformaram-nas para valorizar,
principalmente o valor do traço e do desenho. A ideia começa a se sobrepor, desta forma, aos
motivos.333
As fronteiras se abriram na modernidade. No Brasil, esta abertura e consequente
sincretismo entre culturas diversas originou uma exaltação de princípios fundamentados no
nacionalismo. Valores dados a uma cultura que necessitava encontrar suas particulares formas de
expressão. Nas artes - tanto a visual quanto a escrita - as influências dos movimentos das
vanguardas europeias e das ideias em torno do Cubismo de Pablo Picasso (1881-1973) foram
desencadeadores do Movimento Antropófago e do Clube dos Cinco.334
Enfatizemos, adveio a separação. A modernidade separou o texto da imagem. A imprensa
foi a grande fomentadora deste fenômeno. A partir do séc. XV, a era dos manuscritos se tornaria
mais um passado melancólico e cada vez menos uma prática recorrente.335 O Renascimento elevou
as obras visuais a um patamar de tal forma abstrato que as imagens relegaram as palavras a um
papel diverso do estético. A letra imagética, profusamente utilizada na Idade Média sobre diversos
suportes artísticos, perdeu gradativamente seu sentido na modernidade. O caminhar da obra visual,
da imagem, para um patamar no qual ele seria considerado “obra de arte” elevaria o significante
das obras visuais e, paralelamente, relegou o texto, a palavra, a um papel informativo ou
normativo.336
Conclusão
Ao longo da história, o visual e o verbal estabeleceram seus papéis nos movimentos artísticos.
Não seguiram uma linha definida de atuação. Foram, por vezes, díspares. A imagem e o texto como
um mesmo elemento nos manuscritos iluminados medievais, especialmente presente, nas letras
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capitulares. Na modernidade, A formação de uma crítica e legitimação da arte ocorreu por meio de
textos de autores que escreveram, fundamentalmente, sobre arte.
Na contemporaneidade, os tempos se unificaram. As relações entre a imagem e o texto são
profusamente reestabelecidas ou, simultaneamente, negadas. De fato, parece-nos que a imagem e
o verbo se entrechocam na atualidade. Um choque não necessariamente agressivo. Por vezes,
trasveste-se apenas de uma troca de papéis: imagem como texto, texto como imagem ou do texto
escrito a respeito de imagens.
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Resumo: Este trabalho fundamenta-se na análise das imagens em Vanitas (2010) e em Banzo
(2012), obras da artista carioca Leila Danziger. Essas imagens vinculam-se às imagens da melancolia
que como forma se torna a figuração de um pensamento histórico. Devido as suas operações e
gestos de apagamento, suspensão e reaparição da imagem, aos seus pensamentos sobre a memória
e temporalidade, busca-se aqui tentar saber como se movimentar em meio à perda e ao
esquecimento, como resistir e conviver com os destroços e estilhaços mundanos, como rastrear os
vestígios que fazem sonhar.
Figura1: Leila Danziger, série Vanitas, jornais apagados e encadernados, 2010. Fonte:
http://www.leiladanziger.net/#!sobre-1/cqs7
338Leila Danziger é artista plástica formada na França, com pdh em História da arte pela PUC-RJ, em 2003, participa
de exposições desde o final dos anos 1980. Atualmente, é professora da UERJ, onde trabalha desde 2006. Já realizou
várias exposição no Brasil , na França e na Alemanha.
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não dominarão o transbordamento das imagens, além disso, tanto as imagens da artista quanto este
estudo partem do desejo de ver, atraindo-nos a uma abertura a todos os ventos de sentido339. Desta
forma, este trabalho será, em certa medida, um jogo entre imagens e teoria, entre o mundo das
imagens e o mundo da lógica que investe em estabelecer vínculos entre as imagens e a noção de
melancolia.
Conceitualmente, a melancolia é reconhecida por ser uma afecção do corpo e da alma que
instiga tentativas plurais de a nomear, identificar e localizar algo que afeta o homem desde a
Antiguidade, tempo em que aparece a teoria dos humores que relacionou a melancolia à bílis
negra340. Objeto de interesse, no Ocidente, da filosofia, da história, da psicanálise e da arte, dentre
outros, este sintoma de uma quieta revolta (da ordem da reflexão e meditação), de uma perplexidade
frente ao transitório e ao impermanente fez surgir certos substantivos ao longo dos séculos: melaina
khole, acedia, vanitas, atrabile, spleen, blues, banzo, e, segundo a artista Leila Danziger, até a preguiça de
Macunaíma.341
O filósofo italiano Giorgio Agamben, em Estâncias342, no início deste livro se ocupa de
uma genealogia da melancolia que pela cosmologia medieval a associa à terra, ao outono (ou ao
inverno), ao elemento seco, à cor preta, à velhice (ou à maturidade), ao planeta Saturno. A síndrome
fisiológica inclui, por exemplo, o enegrecimento da pela, do sangue, da urina, o enrijecimento do
pulso, a ardência do estômago e um zumbido na orelha esquerda. Sintoma este que levaria os
melancólios a apoiar a cabeça com a mão esquerda, como aparece em muitas ilustrações populares
medievais.
Agambem fala da existência de uma antiga tradição que tratava a melancolia como o humor
mais miserável de todos e a associava ao exercício da poesia, da filosofia e das artes. Aristóteles já
tratava da melancolia como uma característica de gênios meditativos, como os filósofos e
pensadores que tenderiam ruminar. De acordo com Walter Benjamin (1892-1940), esta tendência
a ruminar era algo como cavar um buraco sem fundo343.
Em relação ao estado psicológico genérico, a melancolia é um abatimento mental, um
desestímulo físico e desânimo emocional, além da sensação de impotência perante o mundo. Diz-
se do melancólico como alguém que segura com as mãos sua cabeça tombada devido à densidade
339 DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 188.
340Galeno de Pérgamo (c. 129-c. 210) sistematizou os temperamentos humanos e seus humores sangue, fleuma, bílis
amarela e negra, esta referente a melancolia que seria gerada pelo excesso de sua produção. Captado em
http://www.esocite.org.br/eventos/tecsoc2011/cd-anais/arquivos/pdfs/artigos/gt002-aalegoria.pdf. Aceso em: 06
març 2014.
341 DANZIGER, Leila [et al.]. Leila Danziger: todos os nomes da melancolia. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012, p.54.
342 AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007,
p. 33.
343 LAGES, Susana Kampff. Walter Beanjamin: Tradução e melancolia. São Paulo: Editora da Universidade de São
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de seus pensamentos ou devido ao excessivo zumbido no ouvido ou as duas coisas. Ainda que este
nome se entrelace à ordem dos sentimentos, à subjetividade, à percepção da vida, ao humano e seu
sentido, estas questões não se distanciam da ordem da visibilidade e da objetividade das formas.
A melancolia como forma é a figuração de um pensamento histórico – em Galeno, em
Aristóteles, em Marsílio Ficino (1433-1499), em Hugo de São Vitor (1096-1141), em Sigmund
Freud (1856-1939), em Erwin Panofsky (1892-1968), em Albrecht Dürer (1471-1528), em Anselm
Kiefer (1945-) – que pretende tornar visível a dispersão da memória e do esquecimento em meio à
impermanência das coisas, instaurada fortemente nos tempos de hoje pela aceleração dos
acontecimentos, pela suspensão da experiência e duração dos fenômenos.
Notoriamente, o tempo atua contra a permanência dos elementos naturais e humanos, a
questão é como resistir e conviver com o constante devir e com o constante desaparecer, com o
fluxo infindável que a todos acomete sem restrição, de vida e de morte. Como se movimentar em
meio à perda e ao esquecimento?
Se uma resposta para tal questão é possível, ela está na especificidade da arte que se esforça
intelectual, espiritual, esteticamente para que algo se reconfigure, torne perceptível e se forme.
Reconfigurar, tornar perceptível e dar forma são práticas e operações cotidianas para o artista que
está sempre disposto a dar um corpo sensível à sua ideia, assim como as leituras extrativas e os
gestos repetitivos de apagar da artista Leila Danziger.
É com sua obra plástica que entramos/saímos nos palácios da memória entre processos de
edição e atualização de imagens do mundo, desativando a hegemonia mundana com sua potência
poética. As figuras apropriadas por Leila Danziger fazem parte de sua memória figurativa e
histórica, vinculadas a um pensamento vanguardista da cultura brasileira: a antropofagia.
Por memória figurativa entende-se a organização visual, sensitiva e acumulativa da artista,
que expressa por meio de figuras, formas, silhuetas carimbadas, além de partir de seu material
imagético ligado à história da arte e à cultura brasileira bem como à história da arte em geral.
Esta memória manifesta-se pela criação de carimbos que imprimem a silhueta de figuras
como o escravo amordaçado e escrava e seus cajus344, oriundos da obra do francês Jean-Baptiste
Debret (1768-1848); como a figura em Abaporu (1928), pintura da brasileira Tarsila do Amaral
(1886-1973); como os anjos e desenhos geométricos em referência a gravura homônima Melancolia
I (1514), do alemão Dürer (1471-1528); como a figura de Os jogos terríveis (1925), uma pintura do
italiano Giorgio de Chirico (1888-1978).
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Em especial, a figura que Leila Danziger recorta de Tarsila do Amaral – cujo título345
significa antropófago e é emblemática para o Movimento Antropofágico346: “Só me interessa o que
não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” – surge como sintoma, evidenciando sua relação
com a cultura e história por meio das imagens.
Neste contexto, o antropófago é o ser de índole canibal que deglute as culturas europeias
(portuguesa, francesa, espanhola principalmente) por um processo de digestão (absorção e
corrosão) no qual ao comer o outro e suas formas resultariam em novas formas, pertencentes
àquele que as ingere, tornando-as genuinamente nacionais. Dessa maneira, tudo poderia ser
absorvido, passando por um processo de ressignificação reelaborado, na esfera da arte e da cultura,
pelo antropófago que permite a assimilação crítica das ideias e modelos europeus e, como evocou
Oswald de Andrade, une social, econômica e filosoficamente os brasileiros.
Interessante resaltar que Agamben, em Estâncias, faz lembrar que na psiquiatria legal do
século XIX, se classificava como formas da melancolia os casos de canibalismo, em que o ato de
comer canibalesco destrói e, ao mesmo tempo, incorpora o objeto desejado, o objeto da libido,
como ecreveu Freud em “Luto e Melancolia”, publicado em 1917.
Figura 2: Leila Danziger, série Vanitas, jornais apagados e encadernados, 2010. Fonte:
http://www.leiladanziger.net/#!sobre-1/cqs7
345Abapuru é um nome escolhido pelos escritores Oswald de Andrade (1890-1954) e Raul Bopp (1898-1984) em
homenagem à língua indígena tupi-guarani, por uma vontade de encontrar a identidade do Brasil, suas raízes e suas
origens culturais.
346O movimento inicia-se por um manifesto literário, escrito por Oswald de Andrade, publicado na Revista de
Antropofagia, Ano 1, No. 1, maio de 1928, na qual interpreta o conceito de antropofagia como maneira singular de
desenvolver uma expressão cultural verdadeira, em busca da descolonização cultural do povo brasileiro.
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Para a artista, a melancolia pode ser vista como algo positivo. Danziger a considera “uma
estratégia reativa a um tipo de temporalidade – excessivamente veloz e voraz – em que não apenas
o passado, mas também o presente e o futuro nos parecem barrados e inacessíveis”.347
Pode-se perceber que quando Danziger une imagens dispersas em um âmbito comum,
ajuntando culturas diferentes em torno de uma mesma questão, incitando-nos, a saber, sobre a
memória/esquecimento, a impermanência do tempo, a um sentimento humano e universal, a artista
se movimenta onde o melancólico imobiliza-se. E destes movimentos surgem mais imagens.
Vanitas (2010) é uma pesquisa que surge da interferência em jornais cotidianos (jornais
guardados por ela) por meio dos gestos de rasgar e descascar o papel. Este gesto retira a primeira
pele do jornal, esvaziando quase toda a superfície, ainda que a estrutura e dimensão da página sejam
mantidas, consrvadas em seu formaro padrão comercial. Esta materialidade escolhida pela artista
antecipa a noção da efemeridade do homem e dos elementos do mundo. Na história da pintura,
vanitas (em latim) ou vaidades refere-se à pintura do gênero natureza-morta, trabalhada
intensamente na Europa, nos séculos XVII e XVIII. Caracteriza-se pelas alegorias do tempo, da
riqueza, da juventude, do conhecimento, dos prazeres dos sentidos e da transitoriedade da vida
humana que é representada por uma lâmpada ou vela e os crânios, simbolizam a morte.
O Glossário da instituição The Nacional Gallery define vanitas como “vaidade”, no sentido
de vazio ou uma ação inútil. "Vaidade das vaidades, diz o pregador, tudo é vaidade" (Eclesiastes
12: 8). A implicação dessas palavras do Antigo Testamento é que toda ação humana é transitória
em contraste com a natureza eterna da fé”348 .
Leila Danziger refere-se ao seu procedimento como uma leitura, entrementes, sua leitura
extrai e corrói aquilo que lê, é uma leitura gestual (com o corpo como diria Barthes), ao mesmo
tempo, delicada e ritual, repetitiva e violenta. Seu gesto prepara a página assim como um pintor
prepara sua tela, tornando o papel uma superfície de criação translúcida e frágil.
Este trabalho com os jornais vem de uma ação construtiva da artista que passou alguns
anos perfurando papéis, verso e reverso. Nas palavras dela:
Queria penetrar em sua substância opaca, ir além da pele, virá-la pelo avesso,
buscar a área ínfima entre as camadas da pele. Acho que buscava a interioridade
da superfície. Perfurar o papel era uma forma de escrita: constelações de signos
construídos pelos vazios que iam aparecendo no papel. A escrita era pensada não
como deposição de tinta sobre uma superfície, mas como falta, subtração de
matéria, ou como reação do tecido (lesão, cicatriz) (DANZIGER, 2007).
347 DANZIGER, Leila [et al.]. Leila Danziger: todos os nomes da melancolia. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012, p .53.
348 Captado em: http://www.nationalgallery.org.uk/paintings/glossary/vanitas. Acesso em: 06 març 2014.
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Esse gesto incisivo e insistente foi refinado. Desde 2001, Danziger trabalha com uma
grande coleção de jornais sobre os quais marca, por impressão de carimbo e de monotipia, e rasga
a camada textual, principalmente. Neles a artista constrói um plano em que tensiona a linguagem
jornalística ou midiática e a linguagem artística e poética, pelo seu processo de apagamento da
função informativa para fazer aparecer uma função estética. Seu apuro perceptivo está em
evidenciar o caráter indiciário da imagem quando desmancha o visível deixando restos e
produzindo rastros. Uma operação em que o visual (aspecto, aparência) da imagem aflora do visível
(aquilo evidente) na superfície que recebe o carimbo como sinal de um gesto preciso, que apaga
para escrever.
Em 2014, perguntei à Danziger, em uma entrevista, por que o gesto de apagar nos faz ver
e, ainda, por que o desaparecimento do visível no jornal nos faz lembrar?
Segundo a artista, as imagens precisam de alguém que as apague para que assim se faça
lembrar o esquecimento, o desaparecimento, a morte.
Dessa forma, ao procurar por imagens – como as de flores, caveiras, homens na postura
intelectual –, que devido à sua potência estética continuam a emitir certa luz, Danziger as reconhece
e as faz brilhar ao silenciar determinadas vozes. O jornal, este objeto comercial que pretende ao
documento e ao crédito (à credibilidade), na verdade, é oferta de discursos que trabalham em
homogeneizar os fenômenos, indiferenciando-os, diluindo-os diariamente em uma publicação
pronta para desaparecer. Iisto é, o jornal/mídia está carregado demais de uma fala ágil e incansável
onde suas imagens diárias também se perdem em um fundo de imagens/palavras sem interlocução,
sem pausa, sem retomada. O exagero/excesso e a estetização promovem um falso diálogo e a
colonização de nosso pensamento, impedindo-nos de sermos ouvidos.
Porém, quando o jornal recebe outra espécie de pequena iluminação que nos permite ver
suas nuances, seus tons e texturas, uma luz que vem de fora dele, que vem do outro, que vem do
artista que o percebe como superfície sensível, essas imagens então desaparecem do regime de
comunicação e publicidade para reaparecerem no regime de estética da arte e, assim, assumir a
latente indeterminação que a torna forma, não discurso. Esta indeterminação nos faria perceber
seus desejos não realizados, esperanças apagadas, mas que ainda estão prenhes de futuro.
Portanto, as imagens tocam a ponta do real aberto em uma arena entre o céu e as ruínas,
podendo agir como intensificadoras das experiências buscando dar sentido e inteligibilidade as
coisas do mundo, podem, ainda, nos fazer elaborar um pensamento e nos fazer imaginar e falar.
Leila Danziger pesquisa imagens adormecidas e suspensas que precisam ser atualizadas, que
precisam retomar a lucidez, pois condensam esperanças extraviadas que o artista deve tornar-se
capaz de ouvir, uma certa ética que a artista declara e pratica. Para isso, é preciso muitas vezes
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apagar e deixar quase nada, evidenciar o esvaziamento das páginas para deixar que apenas uma
figura as atravesse.
Em Banzo (2012), retomar a lucidez significa atualizar o livro de ficção escrito por Coelho
Neto (1864-1934), autor de crônicas, contos e romances. Livro ficcional349, hoje esquecido, contava
a história do negro errante Sabino, que banzava sem destino com o fim da escravidão e a recém
liberdade adquirida. A escolha por este livro de literatura, do início do século XX, como suporte e
conceito, é uma apropriação que silencia o objeto para que outra ideia possa surgir e dar-se a ver.
No intuito de aproximar o espectador da obra e ideia de Banzo, é necessário buscar o que significa
este nome que foi incorporado a nossa linguagem, a exemplo de outros vocábulos oriundos da
África, a saber: cafuné, quitute, moleque, batuque, mocotó, caruru, banzé, jiló, mucama, quindim,
catinga, mugunzá, cachimbo.
Figura 3: Leila Danziger, livro Banzo, livro apagado e carimbado, 2012. Fonte:
http://www.leiladanziger.net.
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qual só tornaria a voltar graças ao processo de ressurreição”351. Dentre estudos recentes352, o banzo
envolve a história do tráfico transatlântico de escravos e as teorias médicas e psicopatológicas.
No livro que Danziger canibaliza, a leitura se constitui criticamente pela literatura negada
ao leitor, que somente poderá ser um espectador e, associar banzo – única palavra que ainda pode
ser lida – a algo que fica, perdura e sobrevive, mesmo que calado e amordaçado, ao
desaparecimento do conteúdo escrito. Retomar este livro como obra de arte é ressignificar as
palavras apagado-as, esquecendo-as de alguma maneira, para que não mais sejam lidas, tão pouco
repetidas e ouvidas – a fim de encerrar um pensamento como se encerrou historicamente a
escravidão, ainda que não a tenhamos encerrado por completo socialmente.
Em Banzo, percebe-se a presença do passado em dois corpos, pelo menos. Um passado
imagético é a presença da figura Negro com máscara, um dos estudos de escravos de rua desenhados
por Debret, em cujo original ele mesmo escreveu: “máscara de ferro usada nos escravos que tem a
paixão de comer terra” 353. Tal figura um tanto fantasmal – que parece surgir e sumir – dá a ver um
corpo em pé e altivo, ao contrário de outras representações de negros escravos agachados ou
sentados no chão, reclinados, cabisbaixos, quietos. A máscara que lhe tampa a boca evidencia sua
decisão de deixar-se morrer comendo terra, estratégia de muitos escravos para o suicídio ou de
puro desespero trazido pela fome e desnutrição, que também os levaria à morte.
A outra presença de passado estaria no corpo do livro, pela superfície apagada, mas não
destruída, pelo papel amarelado do tempo no qual se pode ver manchas onde provavelmente
estariam impressas as palavras agora desterradas e expatriadas, tornadas sombra, retiradas de sua
“terra” e “origem”, restando a escrita apenas bazar.
A figura que parece sair do livro se repete duas vezes (ou quatro) nas extremidades das
páginas abertas dos três exemplares expostos, provocando uma pequena e visível fenda que parte
ao meio a forma carimbada. Cindida da cabeça aos pés, a figura parece caminhar, pé ante pé, de
um exemplar ao outro. A escolha da composição, onde se carimba a forma de linha preta, faz ver
os espaços vazios, no centro da figura, e faz ver o intervalo entre os exemplares, cuja superfície
poderia ser como um rolo contínuo e as páginas poderiam estar em outra conformação, contudo,
Leila Danziger mantém a folha e sua dimensão padrão, cortada e encerrada, indicando, assim, a
impossibilidade do contínuo, da memória, ou seja, a figura marca a passagem e, a presença do
carimbo, marca o esquecimento.
351VENÂNCIO, Renato Pinto. A última fuga: suicídio de escravos no Rio de Janeiro (1870-1888). Captado em
http://www.ichs.ufop.br/lph/images/stories/Numero_1.pdf. Acesso em: 12 fev. 2013.
352ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. Escravidão e nostalgia no Brasil: o banzo (2008). Captado em
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A figura carimbada por Danziger parece vagar em uma única direção, mesmo fatiada, mas
essa direção sem saída sugere algo cíclico gerado por um jogo de ótica e ilusão, como se os livros
fossem fotogramas que, se colocados um após o outro, em sequência e em velocidade específica,
despertariam juntos realmente um movimento cinemático, tal quais as experiências óticas de
Étienne-Jules Marey (1830-1904).
Portanto, quando a artista pretende despertar as imagens do recente ou mais longe passado
(dos séculos XXI, XX e XIX), restaura a questão da atualização na arte, competências da
apropriação, edição e reconfiguração, que produziriam um sentimento de “tardividade”, que é uma
sensação de ter chegado tarde demais, como se o que restasse desse translado, dessa canibalização,
fossem apenas destroços, vestígios, estilhaços.
Esse sentimento de “tardividade” ronda - como uma assombração que some e reaparece -
quem se ocupa dos resquícios de pessoas e objetos, como um catador de formas sensíveis no
mundo. Comprometer-se em “catar” imagens/palavras, como o trapeiro de que fala Benjamin, é
entrar em um núcleo de energia que atrai conceitos como a experiência ordinária/extraordinária; o
tempo e a sensação de sua aceleração, a memória/esquecimento, o desaparecimento. Núcleo em
que Danziger cria seus pequenos monumentos – isto é, um patrimônio que ultrapassaria os tempos
– porque desenvolve uma interpretação sensível que inaugura uma visualidade do possível, dando
ao jornal e ao livro mais tempo de vida, por um gesto estético que coloca suas imagens em um
pensamento visual tornando também forte a formação de um pensamento crítico sobre o mundo.
Essa investida plástica em algo que vigora no hoje, amanhã se torna velho e logo
desaparecerá (pelo desuso ou destruição de sua matéria: essencialmente a ideia das vanitas), essa
dedicação em algo atrelado à linearidade do tempo e fadado ao esquecimento é um ato que inverte
a ordem do jogo do mundo, é dialetizar. Falar em dialética não é restringir o trabalho a algo
intelectual, pois não basta ter inteligência para dialetizar; dialetizar é inteligir na direção de algo. A
inteligência não opera separada dos afetos e das pulsões. Porque o trabalho do artista acontece por
meio de atividades de ordem intelectual e espiritual, na medida em que essa investida estabelece
um compromisso ético com a memória por meio da imagem, estimuladora do intelecto, do
pensamento, do sensível, do simbólico, dos afetos e das pulsões.
As imagens de Leila Danziger atentam para o fato de que o jornal, meio que nos informa
sobre o mundo também o neutraliza ao usar e abusar das formas que dão a ver nossa realidade
compartilhada; o jornal aniquila a permanência das palavras e das imagens feitas para serem
consumidas, engolidas (de modo diferente do antropófago) e novamente substituídas, recicladas.
Em Vanitas (2010), assim como em Banzo(2012), não se relaciona imagem e palavra (ou o
que delas restam) para construir um regime de confiabilidade, antes, as colocam em relação no
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campo da visão para dissimular uma capacidade de deter o infinito dentro de uma forma finita que
permite ao espectador, já em uma dimensão ficcional, exercitar livremente as sensações e os
pensamentos. Infinito encarnado na imagem presente no suporte trabalhado pela artista, que faz
com que a cor, a forma, os rastros imagéticos remetam a uma espécie de imagem lembrança, como
um detalhe reminiscente, fragmento de algo maior já esquecido.
De alguma maneira, a transitoriedade da vida a qual a artista tenta nos lembrar – seja pela
fragilidade do jornal, pelos gestos de desaparecimento das palavras ou pela presença de figuras da
história da arte e das imagens produzidas pela mídia – é um modo sensível de fixar o tempo em
uma nova ordem. Ordem da experiência regida pelas imagens da arte, em seu pleno devir que pode
fazer surgir outras existências, de onde a cada instante principia e floresce o real, o ficcional e o
imaginário para fazer sobreviver e cintilar sobre toda destruição imagens dentro de imagens dentro
de outras imagens em abismo.
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Resumo: Este trabalho busca encontrar a temática mineira dentro de algumas obras de um pintor
mineiro, que aparentemente não representa essa sociedade. Contudo, através de uma análise mais
específica podemos encontrar elementos importantes. Dentre esses temas mineiros, teremos como
tema central a estrutura familiar em Minas Gerais em relação à sociedade e o papel social
desempenhado, principalmente, pela mulher, que será analisada através de uma relação com a igreja
católica e como essa religião influenciou os padrões sociais da época.
Palavras chave: Mulher; Belmiro de Almeida; Minas Gerais; Igreja.
Introdução:
Belmiro de Almeida é um importante artista do seu tempo que nasceu no Serro, em Minas
Gerais, em maio de 1858, e morreu 1935 em Paris. Entre 1868 e 1880 estudou no Liceu de Artes
e Ofícios e na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro. . Durante sua formação inicial,
estudou com Agostinho da Motta354, Zeferino da Costa355 e José Maria Medeiros356, já em 1878 se
aproximou de dois conhecidos pintores brasileiros Henrique Bernardelli e Rodolfo Amoedo.
Posteriormente, lecionou desenho no Liceu de Artes e Ofícios, durante 1879 a 1883, e na
Escola Nacional de Belas Artes, em 1893 a 1896, substituindo Pedro Weingartner. Durante seu
período na Academia brasileira foi premiado com medalhas de ouro e de prata por diversas vezes,
entre 1874 e 1883.
Sua primeira viagem a Paris foi em 1884, o que resulta em uma mudança da estética do
seu trabalho, que passou a ser diretamente influenciado pela academia francesa. Assim, chegamos
num momento muito importante para a carreira do pintor, visto que, na Europa, principalmente
em Paris, onde ele estabeleceu a maior parte dos seus contatos. Logo, alguns desses contatos
passaram a se tornar também inspirações.
Pensar sobre as influências obtidas por esse objeto de análise, de certa forma, é um começo
para entender a sua formação, o que nos mostra a construção das habilidades desse importante
354 Foi um pintor, professor e desenhista que estudou na Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro. E veio
a dar aula de desenho no Liceu de artes e Ofícios do Rio de Janeiro.
355 Destacou-se na Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro como aluno de Victor Meirelles. Durante sua
brasileiro.
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pintor mineiro, que culminaram em quadros que nos possibilitam entender um pouco da historia
de Minas Gerais e do Brasil.
Sendo que, desde o começo da sua formação, no Rio de Janeiro, percebeu-se uma forte
ligação com a academia, que ainda estava muito ligada à pintura clássica. Assim, ao retomar a
Academia de Belas Artes percebemos uma influência da arte Francesa, que tinha a École des Beaux-
Arts como a academia mais importante. Além desta academia outra que influenciou muitos pintores
brasileiros e a própria Academia de Belas Artes foi a Académie Julian, que de certa forma, funcionou
como uma filtragem das novidades artísticas em que:
Dessa forma, Ana Paula Cavalcanti Simioni, neste artigo sobre a análise da trajetória de alguns
pintores brasileiros em suas experiências na Europa, nos mostra a preocupação que a academia
tinha com o desenho, sendo essa uma característica da obra do Belmiro de Almeida. Assim, ao
voltarmos às influências do pintor percebemos uma forte ligação com a Academia, tanto na sua
formação no Rio de Janeiro, sendo que a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro se inspirava
no que acontecia em Paris, quanto na sua formação em Paris. Visto que, o próprio Belmiro de
Almeida chega a estudar na Académie Julian durante 1896 e 1899. O que possibilita que seu
contato com a Academia se estabeleça de forma mais contundente, visto que, em Julian pôde
absorver diretamente a importância do desenho nas suas técnicas de pintura, o que é visível na
maioria de seus quadros, em que o desenho se sobrepõe às cores. Essa característica nos chama
atenção, por servir de base para algumas críticas recebidas pelo pintor, em que apontam que
mesmo Belmiro de Almeida ter sido um dos primeiros a retratar o cotidiano das pessoas ele ainda
estava ligado ao conservadorismo acadêmico.
357 SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. (2004), Profissão artista: pintoras e escultoras brasileiras entre 1884 e 1922. São
Paulo. Tese de Doutorado. Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas de
Universidade de São Paulo.
358 Foi caricaturista nas revistas Comédia popular, Diabo a quatro, A Cigarra, Bruxa e O Malho. Além de fundar dois
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Ainda, Samuel Mendes mostra que outros gêneros também serviram para compor esse
cenário, como a natureza morta, o retrato, a paisagem, que irão compor essa “ilustração’’ do país.
Contudo, aos poucos, muito por causa da burguesia da época, os temas relativos à sociedade
passam a atrair atenção de alguns artistas. Belmiro absorve essa tendência e pinta alguns quadros
em que escolhe momentos da vida privada para representar. Apesar de a maior parte dos quadros
representarem a intimidade de uma família abastada este não é o único objeto escolhido como tema
dos seus quadros, sendo que o pintor também retrata indivíduos vulneráveis economicamente.
E é justamente a sua característica de retratar cenas da história da vida privada que serão
o foco da analise proposta por este trabalho. Por mais que Minas Gerais não estivesse visivelmente
como foco da temática do pintor, podemos estabelecer algumas semelhanças com a sociedade
mineira da segunda metade do século XIX, visto que, Belmiro de Almeida nasceu no Serro.
Dessa forma, quando ele representou, por exemplo, uma mulher abastada ele não se
manteve somente na representação do que se esperava socialmente de uma típica mulher que
pertença a uma família rica. E esta é a inovação da sua temática, ele trás a tona assuntos velados
pela população da segunda metade do século XIX, que é a frustração e histeria da mulher diante
da apatia e frieza do homem.
VIEIRA, Samuel Mendes. Porta adentro: Cenas de intimidade na pintura de Belmiro de Almeida. VIII EHA-
359
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Muitos autores discorrem o fato de Minas Gerais ser um estado em que a economia e
cultura acabam contribuindo para uma divisão geográfica. Assim, Jonh Wirth, em seu trabalho O
fiel da Balança, trás o termo “minissistema feudal” para denominar esse recorte regional.360 Essa
divisão do território contribuiu para que, com exceção das áreas de plantation aonde se cultivavam
o café, as propriedades em Minas não se caracterizavam por grandes complexos, ou seja, era
formada por mais propriedades de um tamanho menor. Essa característica influência diretamente
na formação da estrutura familiar. A família mineira tem “como resultado um crescimento
demográfico mais reduzido que em outras sociedades humanas e uma tendência ao predomínio da
361
família simples ou conjugal.” Natalidade reduzida também é uma das características de uma
família abastada.
Outra questão importante a ser considerada sobre a sociedade mineira é a relação entre os
casamentos formais e a etnia. Em um estado em que o número de escravos era considerável é
evidente que o número de pessoas negras também seja alto. Logo, a mistura racial é uma
característica importante nessa sociedade. Contudo, essa mistura, pelo menos em seu momento
inicial, aconteceu fora dos casamentos formais363.
360 WIRTH, John D. Fiel da balança: Minas Gerais na Federação Brasileira 1889-197. Tradução de Maria Carmelita,
Editora: Paz e Terra. P. 67.
361 BOTELHO, Tarcísio R. A família mineira do século XIX. In: História de Minas Gerais: A província de Minas. P. 271.
362 BOTELHO, Tarcísio R. A família mineira do século XIX. In: História de Minas Gerais: A província de Minas. P. 269.
363 BOTELHO, Tarcísio R. A família mineira do século XIX. In: História de Minas Gerais: A província de Minas. P. 278.
364 BOTELHO, Tarcísio R. A família mineira do século XIX. In: História de Minas Gerais: A província de Minas. P. 279.
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podemos atribuir à presença da igreja católica na sociedade, de certa forma, mais significativamente
em famílias em que os casamentos foram mais “formais”, estavam de acordo com os parâmetros
da Igreja católica.
Logo, a mulher burguesa estava ‘’submetida’’ aos ensinamentos da Igreja, visto que, a
burguesia estava mais comprometida e preocupada com os padrões sociais da época a serem
seguidos, e esses padrões passavam pela ordem cristã.
Para entender melhor a relação social da burguesia é preciso voltar um pouco no inicio da
ascensão dessa classe burguesa, através dos estudos do Eric Hobsbawn. A impressão que se tem,
com fim do Antigo Regime, é de que as possibilidades se “abrem”, ou seja, passa a existir chances
de certa mobilidade social. Logo, a distinção social se torna uma questão cada vez mais importante
para essa classe em ascensão. Por mais que essa ascensão tenha se dado durante a modernidade, ou
seja, um período em que as novas descobertas davam origem a uma atmosfera de aturdimento,
turbulência e novidade, e isso era facilmente visualizado nas cidades. Para Hobsbawn, no entanto,
encontramos uma burguesia que, por mais que usufrua dessas novidades, não consegue se
desvencilhar dos valores tradicionais.365 E por valores tradicionais podemos entender que parte
deles está ligada à moralidade cristã.
Além desses valores tradicionais, alguns outros foram criados, como por exemplo, essa
estrutura familiar, já citada anteriormente como exemplo da família mineira, em que a mãe deve se
comportar como uma lady e o pai representar a figura do chefe de família366. Ainda na análise do
Hobsbawn ele discorre que embora se pregasse uma moralidade internamente se praticava
outra367,o que nos mostra uma sociedade com certa dualidade, em que temos um padrão social a
ser seguido, e provavelmente essa era a face que a família deixava transparecer para a sociedade em
geral. Em contrapartida temos um comportamento real que é velado por essa sociedade.
365 HOBSBAWN, Eric. O mundo burguês. In: A Era do Capital 1848–1875. Tradução: Luciano Costa Neto. 5ª Edição.
Editora: paz e terra. 2005. p. 323.
366 HOBSBAWN, Eric. O mundo burguês. In: A Era do Capital 1848–1875. Tradução: Luciano Costa Neto. 5ª Edição.
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está representada uma mulher bem vestida: com uma saia de cor azulada, blusa cobrindo os braços
e o busto, sapatos fechados e um chapéu ornamentado com flores, suas roupas mostram certo
requinte. O ambiente é bem decorado, com quadros na parede e almofadas em algo que aparenta
ser um sofá. Todos esses detalhes indicam que esta é uma jovem que pertence a uma família
abastada, visto que, essa ostentação denota um requinte comum a esse grupo.
Contudo, o que chama a atenção é a expressão desta jovem, sentada com as mãos sobre
suas pernas, nos transmitindo uma sensação de frustração, que está visível na expressão de seu
olhar. A partir dessa imagem é possível fazer diversas interpretações, contudo, vou me ater aqui
somente as que remetem a análise do papel dessa mulher dentro do contexto familiar e que está de
acordo com o padrão que a Igreja acaba estabelecendo. Podemos visualizar na imagem a seguir:
Portanto, para entender a respeito do papel da mulher relacionado à Igreja é necessário uma
analise mais especifica sobre a mulher, assim como Ludmila Giovanna Ribeiro de Mello se propõe
em seu artigo: Um panorama sobre a história das mulheres.
Segundo Ludmila Mello, a Bíblia proporciona duas visões sobre a mulher: a da perdição e
a da santidade, tendo como exemplos, respectivamente, Eva e Maria.368 E complementa que “a
mulher era imperfeita por ter-se derivado de uma costela defeituosa de Adão, e, por essa razão,
devia ao homem obediência e submissão.”369. O que confirma a ideia de que a mulher estava fadada
a viver uma vida não somente submissa às vontade do pai ou do marido, como também da Igreja.
368 MELLO, Ludmila Giovanna Ribeiro de. Carolinas ou Aurélias Um panorama sobre a história das mulheres. Ciências &
Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 129-147, jul./dez. 2013. P. 130.
369 MELLO, Ludmila Giovanna Ribeiro de. Carolinas ou Aurélias Um panorama sobre a história das mulheres. Ciências &
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Logo, é interessante entender que culturalmente, enquanto mais nobre mais reclusa essa mulher
estaria.
Tania Quintaneiro, em seu artigo ‘’Entre vistas e imaginadas: as mulheres de Minas nos
relatos dos viajantes estrangeiros’’, complementa essa ideia através do estudo de relatos de viajantes
que afirmam:
Sendo que, nas casas abastadas mineiras a separação da mulher da vida social chegava a ser
física. O que revela uma sociedade muito conservadora em relação à mulher. E essas características
estão representadas na obra do Belmiro de Almeida, em que a figura representada por ele frustra-
se de tal forma que chega a amuar-se, o que é visível no próprio titulo da obra: Amuada. Porque
“quanto mais alto o valor social da mulher, mais regulado os seus contatos com os estranhos.”371
Seguindo essa logica, então se a mulher detinha um valor social menor ela gozava de certa
‘’flexibilidade’’. Ludmilla de Mello destaca que a mulher na sociedade mineira era um mal
necessário, e que em Minas Gerais sua vida chega a se aproximar de uma vida masculina372 que
possibilitava essa aproximação era o trabalho, sendo que a mulher que pertencia a uma classe mais
baixa trabalhava por necessidade.
370 QUINTANEIRO, Tania. Entre vistas e imaginadas: as mulheres de Minas nos relatos de viajantes estrangeiros. In:
História de Minas Gerais a Província de Minas 2. Belo Horizonte: Autêntica Editora: Companhia do tempo, 2013.p.
301.
371 QUINTANEIRO, Tania. Entre vistas e imaginadas: as mulheres de Minas nos relatos de viajantes estrangeiros. In:
História de Minas Gerais a Província de Minas 2. Belo Horizonte: Autêntica Editora: Companhia do tempo, 2013.p.
303
372 MELLO, Ludmila Giovanna Ribeiro de. Carolinas ou Aurélias Um panorama sobre a história das mulheres. Ciências &
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Este quadro foi pintado em 1893 com óleo sobre tela e está localizada no Museu Nacional
de Belas Artes no Rio de Janeiro. Em que o pintor nos mostra uma mulher simples, que parece
estar no meio de seu trabalho, varrendo a casa e de avental, e dá uma pausa no intuito de nos contar
alguma novidade. Sua posição: sentada em uma cadeira, com os cotovelos apoiados no joelho e as
mãos cruzadas sobre o avental, junto do sorriso em seu rosto e olhos arregalados nos mostram
uma mulher animada, feliz e ansiosa para nos contar algo.
É um quadro que representa uma mulher que ocupa um lugar mais baixo na sociedade e
exerce uma função social equiparada a do homem. Essa equidade é possibilitada pelo trabalho que
daria certa flexibilidade a ela. Ao retomarmos o Tarcísio Botelho, que afirma que a mestiçagem foi
fruto dos concubinatos, portanto as classes mais baixas da sociedade provavelmente foram frutos
desses casamentos informais, realçamos a ligação da igreja católica com a sociedade. Em que nesses
casos dos casamentos informais a igreja não está tão presente na vida das pessoas. Logo, as
mulheres com “menor valor social” não estariam tão submissas às ordens religiosas quanto às
mulheres que pertencem a uma alta classe.
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Fazendo uma comparação entre as duas imagens trazidas pelo Belmiro de Almeida, temos
a Amuada, que é uma mulher burguesa frustrada com a vida que leva, e A Tagarela, que é uma
mulher simples, porém, trás um sorriso no rosto. Essa é uma comparação interessante por nos
mostrar como a submissão aos valores morais da sociedade pode refletir na postura da mulher
consideravelmente. Sendo importante considerar o título da obra: ao passo que a mulher burguesa
está amuada por algum motivo, a mulher mais simples é a Tagarela.
Além dessa comparação visível, também temos o fato da possibilidade de voz que a mulher
tem na sociedade mineira, na verdade da voz que não lhe é dada. Então o pintor ao retratar essa
mulher mais simples e intitular seu trabalho de tagarela expressa um significado. Mostra certa
liberdade que essa mulher teria até mesmo para ter um pouco de voz social.
Considerações finais:
O Objetivo desse trabalho foi buscar a temática mineira dentro da obra do pintor Belmiro
de Almeida, que é mineiro. A princípio, esses temas não estão evidentes em sua obra, visto que, a
maior parte da sua formação tenha se dado fora de Minas Gerais, no Rio de Janeiro, e até mesmo
fora do Brasil, na França. Contudo, os estudos de história da arte apontam uma dualidade na obra
do pintor, em que este se confunde ora como um pintor conservador, devido às técnicas de pintura,
ora como inovador devido sua temática, e é justamente o aprofundamento acerca da temática do
pintor que nos permite estabelecer esse contato com a história de Minas Gerais.
Por isso, o pintor representa duas diferentes figuras, a burguesa Amuada, que está oprimida
e frustrada com a vida que lhe é permitida e que não voz social, e A Tagarela, que aparece muito
mais animada, e o mais importante é que está prestes a nos contar alguma coisa. Essa é a sua
característica principal, e que permite entender todos os argumentos deste trabalho: o fato de ter
uma porcentagem considerável de mulheres chefes de família, da mulher que pertence a uma classe
mais baixa ter que trabalhar e por isso ter mais ‘’liberdade’’. Nomear um quadro que representa
uma mulher como A Tagarela sugere, mesmo que minimamente, a possibilidade de voz desse
personagem.
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Resumo: Por meio das obras de Yukio Mishima (Japão, 1925-1970) e Nathalie Gassel (Bélgica,
1964), escritores que utilizaram a proposta corporal do fisiculturismo para construir um corpo
“obra de arte”, o trabalho pretende correlacionar a cultura visual do fisiculturismo e as práticas
específicas desses artistas, abordando como eles remagicizam a interpretação desse corpo por meio
da literatura e da arte. Mesmo que seja perceptível o crescimento no campo acadêmico do número
de pesquisas com a temática da corporeidade e também do interesse de investigar a liberdade
estética do corpo e suas pressões sociais; a abordagem do culto ao corpo é ainda desgastada e
discutida sob a perspectiva das alienações e conformações do indivíduo e a deficiência de uma
conduta crítica perante aos padrões de beleza inacessíveis da sociedade. Em meio a essas
discussões, o fisiculturismo insere-se como estigma e estereótipo dessa prática. O trabalho discutirá
existência de outra função e concepção das imagens geradas pelo corpo fisiculturista, sobretudo, a
procura da visceralidade e a exposição da interiorização desse corpo; questionando também a ideia
de gênero, onde o feminino e o masculino se igualam imageticamente.
Introdução
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parte do seu tempo desenvolvendo massa muscular muito acima da média, além
de participarem, mas não necessariamente, de campeonatos ou competições de
bodybuilding. Sendo tal grupo o maior representante de aficcionados pelo
desenvolvimento muscular, tendo a forma física como, se
não a maior, a principal preocupação de suas vidas [...]374
Yukio Mishima pseudônimo de Kimitake Hiraoka foi um artista conhecido, dentre outros
atributos, como escritor, novelista, dramaturgo, e também como fisiculturista. Ele propôs transpor
corporalmente a beleza que exprimia nas palavras através do fisiculturismo. Buscou em seu corpo
um lugar a ser ocupado, construindo-o como uma moradia. Em seu livro intitulado Sol e Aço
encontramos inúmeras passagens em que o artista descreve como se deu o processo de construção
corporal:
O aço me ensinou muitas coisas diferentes relacionadas aos músculos.
Proporcionou-me um tipo totalmente novo de conhecimento, um saber que nem
livros nem a experiência do mundo poderiam me dar. Músculos, descobri, eram
força tanto quanto forma, e cada complexo de músculos era sutilmente
responsáveis pela direção na qual sua própria força se exercia, como se fossem
raios de luz tomando a forma da carne.
Nada poderia estar tão de acordo com a definição de obra de arte que eu
acalentava como este conceito de forma que englobasse força, e deveria ser uma
obra brilhantemente orgânica.
Os músculos que assim eu desenvolvi eram ao mesmo tempo pura existência e
obras de arte; paradoxalmente, eles até possuíam uma certa natureza abstrata. Sua
374SABINO, César. O Peso da Forma. Cotidiano e Uso de Drogas entre Fisiculturistas. Tese (Doutorado em Sociologia
e Antropologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia,
Rio de Janeiro, 2004, p.10-11.
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Além de apresentar uma intenção artística sobre esse processo, Mishima levanta uma
importante questão: a dificuldade do outro em investigar um corpo que não lhe pertence. As
pesquisas de antropologia e sociologia se confrontam com esse aspecto: lidam com as
generalizações e não conseguem dar conta das exceções. Quando a prática fisiculturista é analisada
a partir do discurso do próprio praticante, dando espaço para sua teoria sem a interferência da
entrevista, comumente utilizada nas pesquisas de campo da antropologia, ela permite a investigação
da subjetividade. A corporeidade do objeto de estudo é investigada por meio de seu próprio
material publicado de forma espontânea. O presente artigo, em hipótese alguma, tem a intenção de
contestar as pesquisas já publicadas sobre o assunto, muito menos desprezar a doxa de que, em
alguns casos, o fisiculturismo se apresenta como um tipo de submissão à forma e à busca da
perfeição corporal inalcançável. Mas, tem a intenção de pesquisar as exceções que expandiram essa
construção do corpo para um viés artístico/subjetivo. Exceções essas, que as pesquisas já
publicadas não estavam focadas e não abarcaram em seus objetos de estudo. É um tipo de
questionamento das práticas hegemônicas que não tem a intenção de criar uma nova hegemonia,
mas defender a pluralidade nos modos de ver e praticar essa construção do corpo. Mishima
exemplifica muito bem essa perspectiva:
Antes, um dos objetivos da minha mente era saber como o homem com um
físico poderoso sentia o mundo em sua volta. Um problema grande demais para
o mero conhecimento pesquisar, pois, embora o conhecimento possa penetrar a
escuridão usando as muitas ramificações rastejantes da sensação, e da intuição
como guias, aqui até as raízes tinham sido arrancadas; a fonte que ansiava saber
pertencia a mim, o direito ao senso puro de existência era privilégio do outro
lado.
Um pequeno pensamento talvez deixe as coisas mais claras. O senso de existência
de um homem com um físico robusto deve, por si mesmo, ser do tipo que abarca
o mundo todo; para esse homem, tomado como objeto de conhecimento,
qualquer coisa fora dele (incluindo a mim) deve ser necessariamente transferida
para o mundo objetivo exterior experimentado por seus sentidos. Nenhum
desenho mais exato pode ser captado sob essas circunstâncias, a menos que
alguém responda com uma perspicácia ainda mais abrangente. É como tentar
saber como o natural de um outro país sente a existência; nesse caso, tudo que
podemos fazer é aplicar conceitos abstratos e inclusivos como humanidade,
espécie humana, etc, e fazer deduções a partir de marcos hipotéticos. Isso, no
entanto, não é um conhecimento exato, mas apenas um método que deixa
intocado os elementos imperceptíveis e deduz por analogia a partir dos elementos
comum a todos. A verdadeira questão é protelada; as coisas que a gente
“realmente quer saber” continuam na obscuridade. A única outra alternativa é a
imaginação surgir intrometidamente, adornando o outro lado com toda uma
variedade de poemas e fantasias.
375 MISHIMA, Yukio. Sol e Aço. Trad. Paulo Leminki. São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 28-29.
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cada vez mais difíceis. E uma vez que havia sempre a visão de um ideal clássico
do corpo para servir como modelo e um objetivo final, o processo se assemelhava
muito ao ideal clássico de educação.379
Notamos que o corpo para Mishima, por meio do fisiculturismo, se instaura como forma
de produção e ação na cultura e também como campo de experimentação. A analogia ao processo
clássico de educação amplia essa produção para uma investigação além da modificação estética da
matéria, algo que não se resume apenas a uma transformação e apropriação do corpo como “massa
modelável”, ele se fundamenta em um conceito mais amplo em que a extirpação da dicotomia
corpo e mente é também o cerne da produção:
Sua educação, experiências e práticas na infância, foram influenciadas pelos cuidados de
sua avó que, em uma espécie de “zelo doentio”, o privou da vivência da carne, o criando como
uma criança extremamente frágil, impossibilitada de brincar como as outras e de exercer as práticas
corporais comuns a todas elas. A infância, como também grande parte da sua carreira como escritor
e intelectual na vida adulta, propiciaram a propagação dessa relação de corrosão do corpo por um
longo espaço de tempo. Mishima alega, em certas passagens do livro, que seu corpo foi corroído
pelas palavras formulando um corpo individual. Essa individualidade se relaciona com o
condicionamento que a prática intelectual exercia sobre ele, com hábitos noturnos de produção,
um atrofiamento dos músculos pela falta de atividade física, um estômago debilitado e uma pele
privada do convívio com o sol. Portanto, seu corpo adquiria características pessoais e individuais
que sua rotina propiciava. Com a prática da musculação, essas diferenças individuais iriam se
desfazer, recriando um corpo universal, em que as características que distinguiam o mesmo como
único e particular desapareceriam.
Era aqui que estavam minhas dúvidas mais abissais; e, por outro lado, o que eu
tinha encontrado nos músculos, através do aço, era o brotar deste tipo de triunfo
de saber que a gente é igual aos outros. À medida em que a pressão implacável
do aço progressivamente ia despindo meus músculos de sua singularidade e
individualidade (produto da degeneração), e à medida em que se desenvolviam,
eles deveriam, eu pensava, começar a assumir um aspecto universal, até que,
finalmente, atingissem o ponto em que correspondessem a um padrão geral no
qual diferenças individuais deixassem de existir.380
A partir dessa perspectiva sobre a prática fisiculturista como saída para desfazer as
particularidades do corpo, recriando um corpo universal e visceral, encontramos na proposta da
artista belga Nathalie Gassel, uma potente intenção de questionar o condicionamento social que se
impõe sobre a feminilidade. O antropólogo francês Stéphane Malisse, que investiga a artista, se
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propõe a praticar musculação, para comparar sua visão e entendimento de antropólogo observador
e antropólogo praticante, e relata a importância de Gassel para seus estudos:
Nathalie Gassel é uma mulher, ainda jovem, que nega seu corpo e questiona sua
feminilidade. Uma mulher que, num arroubo de divindade, pratica a musculação
para forjar um corpo de atleta e estabelecer para si mesma uma nova identidade
sexual: uma mulher viril. Nascida em Bruxelas, em 1964, é fisiculturista e ex-
campeã de boxe tailandês. Sem saber que ela se tornaria minha musa muscular,
meu álter ego trans-gênero, como ela mesma se define, eu me dei conta de que
ela havia se transformado na minha melhor informante ao reler e analisar seu
ensaio corporal “A construção de um corpo pornográfico”, e ao iniciar a troca
de e-mails com ela. Nathalie Gassel tornou-se meu modelo, encarnando
pessoalmente os conceitos antropológicos e as tensões presentes nesta nova
pesquisa empírica sobre a construção do corpo e do gênero. Nós nos tornamos
quase um casal acadêmico, pesquisador/deformando-se e a
pesquisada/deformada.381
381 MALYSSE, Stéphane. Diário acadêmico. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2008, p.3.
382 GASSEL, Nathalie. Construction d’un corps pornographique. Ah! Bruxelas: Editions Cercle d’Art, 2005, p.55.
383 COURTINE. Os Stakhanovistas do narcisismo, p. 83.
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Dessa maneira, a pose insere-se no meio fisiculturista ao mesmo tempo como uma
ferramenta analítica e como uma forma de prazer estético. Ela está envolta a uma série de regras e
funcionamentos que vão muito além do simples gesto de se olhar no espelho. Esse gesto ocasiona
produções imagéticas que interligam a teatralidade do corpo no congelamento, gerando assim,
podemos dizer, fotografias mentais. É, portanto, produto e ao mesmo tempo sujeito dessa
construção corporal. De acordo com o relato de Arnold Schwarzenegger, que dentro deste meio
fisiculturista insere-se como mito e modelo de inspiração, a pose é fundamental e assume papel de
autoconhecimento:
[...] nunca é muito cedo para começar a posar. Você deve começar desde o
primeiro dia em que entra na academia. Estude fotografias de outros
fisiculturistas, vá a concursos e observe como os competidores posam e tente
imitá-los. Comece fazendo suas poses em frente ao espelho até que você ache
que pegou o jeito de executá-las. Depois tente fazê-las sem o espelho, com um
amigo observando. Entre as séries contraia os músculos que você está treinando,
faça algumas poses e estude-se no espelho. Isso irá condicioná-lo a fazer
contrações firmes, sustentadas e também ajudar a analisar o estado de seu
desenvolvimento. Lembre-se da necessidade de resistência! Os juízes
frequentemente irão mandar você posar por vários minutos cada vez; você pode
precisar ficar contraído por horas durante um pré-julgamento cansativo. Então,
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no seu treinamento de poses, não apenas execute as poses por alguns segundos
e relaxe. Sustente-as até que doa, depois sustente um pouco mais – este é o
momento da falência, de ter cãibras musculares, de sofrer de modo que as suas
poses na competição sejam suaves, competentes e poderosas. Mantenha-a por
pelo menos uma hora a cada dia [...]389
A pose permite a encenação de tudo o que pode o corpo, é uma forma de colocar o corpo
em outro patamar. Ela congela dando forma, tamanho e significado a ele. Podemos analogamente
entender a pose no fisiculturismo como um sistema fotográfico. Mesmo que não seja materializado
para a avaliação é um sistema fluido que é codificado mentalmente. Nas palavras de Roland Barthes
“[...] a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a “posar”,
fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em
imagem”390. Aproximando ideia de Barthes ao corpo no fisiculturismo, esse “sentir-se olhado” é
algo rotineiro na fabricação da corporeidade desse grupo, o olhar do outro e o próprio olhar,
constroem diariamente o corpo, produzindo um posar instantâneo que gera um corpo-imagem
sedento por exibição. Ser visto é ser materializado fotograficamente. E posar é se potencializar
como escultura.
O corpo no fisiculturismo é ainda mais intensificado em sua efemeridade. Como é um
corpo em constante construção, sua mutação é contínua, e, portanto, a fotografia desse corpo assim
como para Barthes se insere como algo que “está morto e vai morrer”, esse esmagamento duplo
do tempo é algo com que esses atletas convivem diariamente. Como a matéria prima para a
produção é a carne, um material sujeito a infinitas mudanças, ela não se mantém perene. Está em
processo de construção o tempo todo, e sua finalização não é possível. A fotografa então, só
consegue capturar o corpo que já não existe, tal como o brilho da estrela que já não está ali, se
valendo das palavras de Barthes:
A foto é literalmente uma emanação do referente. De um corpo real, que estava
lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que estou aqui; pouco importa
a duração da transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios
retardados de uma estrela.391
Podemos aprofundar mais nesse aspecto da morte que a fotografia traz, expandindo essa
linha de pensamento para os registros fotográficos das mutações desses corpos no meio do
fisiculturismo. Repetidas vezes o “antes e o depois” são exauridos, e a produção imagética
desgastada no próprio corpo em constante processo de mutação. Mas, como Barthes defende, é
389 SCHWARZENEGGER, Arnold. Dobbins, Bill. Enciclopédia de Fisiculturismo e Musculação. São Paulo: Artmed
Editora, 2001, p. 589-593.
390 BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 19.
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apenas mais uma forma de consagrar essa “morte do corpo”. Em sua instabilidade, esse corpo se
apoia nessas fotografias como memória e ao mesmo tempo presságio de falecimento. Superfícies
inconstantes que se constroem e descontroem o tempo todo.
Sendo a fotografia algo que esmaga o tempo, inserindo-se como um passado constante, o
espelho insere-se como ferramenta de realidade, algo presente que permite o entendimento das
mudanças e permanências desses corpos. Portanto, a idolatria do espelho para a auto avaliação no
presente surge em detrimento da fotografia. Podemos trazer a discussão de Jeudy, para propor um
entendimento desse fenômeno sistematicamente recorrente no cotidiano dos fisiculturistas:
Mesmo o frente a frente com o espelho não impõe limites ao jogo de imagens
corporais. A imagem refletida em sua superfície aparece simultaneamente como
uma “chamada à ordem” e um logro. A imagem de si leva a dizer: “Você pode
imaginar tudo o que quiser, não se esqueça de que você é o que você vê. O
espelho não engana, ele diz o estado presente de seu corpo. E se você não quer
vê-lo vire-se.... 392
A relação que o atleta cria com a pose é a mesma que o escultor manifesta diante da criação
de sua escultura: a observação da obra. A obsessão dita narcisista pelo espelho dentro do
fisiculturismo pode ser ampliada para um entendimento mais abrangente de concepção e
entendimento corporal, pois o espelho se instaura como forma de se auto avaliar enquanto imagem.
Ele é a ferramenta que permite se olhar fora de si, de perceber o corpo como conjunto de detalhes
que se harmonizam como imagem. A teatralidade da pose não desconfigura a realidade, ela apenas
a revela.
A tarefa de posar exige o domínio de uma técnica de esforço aprendida durante
anos de socialização diária nas academias de musculação. Ser capaz de tensionar
tecnicamente a musculatura corporal durante uma competição, flexionando os
músculos, mantendo poses de até uma hora ou mais – com controle pleno do
corpo inteiro e domínio de cãibras – é uma tarefa atlética comparada a de um
pugilista enfrentando doze assaltos em um ringue de boxe.393
Portanto, o ato de posar no fisiculturismo vai muito além de uma leitura superficial já
condicionada socialmente, que decifra essa prática somente como uma obsessão narcisista da
imagem. É uma prática que está intrinsicamente relacionada ao prazer estético da autoconstrução
e com a percepção e potencialização desse corpo, configurando-se sobretudo, como uma
habilidade corporal.
Considerações finais
Para LeBreton “o corpo não é somente uma coleção de órgãos arranjados segundo leis da
anatomia e da fisiologia. É, antes de tudo, uma estrutura simbólica, superfície de projeção passível
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de unir as mais variadas formas culturais”394. As práticas clichês desses corpos fisiculturistas estão
muitas vezes munidas de simbolismos e significados que um estudioso não identifica, por possuir
uma visão externa à prática. Deste modo, o discurso dos praticantes se torna bem díspar do
discurso dos estudiosos que não vivem essa corporeidade cultuada. Os dois escritores Mishima e
Gassel remagicizam essa interpretação do corpo, usando a literatura para criar essa nova imagem.
Mesmo que o número de pesquisas com a temática da corporeidade apresente um
crescimento significativo no campo acadêmico, a abordagem do culto ao corpo é cada vez mais
desgastada e discutida como produto de insatisfações estéticas e socioculturais, sendo pouco
abordada como processo subjetivo. E na contemporaneidade o estereótipo faz desaparecer a
heteronomia dos corpos, fazendo com que exceções lutem para gerar novos significados para os
clichês sedimentos. Segundo Jeudy:
A estereotipia é um processo de resolução da dialética entre a imagem e a
representação; ela impõe um enquadramento de conceituação anterior às
imagens do corpo e provoca uma homogeneidade total das representações. [...]
A produção contemporânea da estereotipia depende da velocidade de
homogeneização cultural [...]. Somos acostumados que o corpo humano sofre
uma análise e uma composição contínua na arte supondo, segundo a
interpretação psicanalítica, que o interesse pela beleza tende ao retorno narcísico
[...]. As imagens corporais logo se tornam elementos já interpretados; elas não
têm mais nada de imprevisível, perdem seu poder de enigma. O corpo é de tal
modo saturado de estereótipos que parece não ter mais segredo.395
394 LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2006, p.29.
395 JEUDY. O corpo como objeto de arte, p. 113.
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Resumo: Com este trabalho nos propomos a entender como os tratadistas ibéricos Gutierrez de
los Rios e Filippe Nunes se posicionaram diante das polêmicas geradas no âmbito da Reforma e
Contrarreforma no que diz respeito à imagem. Como personagens católicos do pós Trento, nada
mais típico do que a presença, em seus textos, de defesas da legitimidade da pintura sacra. Assim,
ambos os tratadistas fazem uma adaptação de preceitos clássicos, revividos pelo humanismo, à
realidade católica pós Concílio de Trento. Nesse contexto de apropriação notamos a importância,
nesses escritos, do nobre objetivo da pintura em instruir, enfocando assim, no poder pedagógico da
imagem cristã.
No ano de 600, o então Papa Gregório Magno trocou uma série de epistolas com Serenus, o
bispo iconoclasta de Marselha que mandara destruir todas as imagens de sua jurisdição. Gregório
aconselhava uma espécie de via média na relação com as imagens, ele recusava as tendências
iconódulas orientais e também o outro extremo, a iconoclastia. Em uma emblemática carta, o Papa
Gregório defende a legitimidade da imagem para a Igreja Latina apontando, dentre outras, sua
função didática entre os menos instruídos. Dizia Gregório Magno:
Uma coisa, com efeito, é adorar uma pintura, e outra aprender por uma cena
representada em pintura aquilo que se deve adorar. O que os escritos
proporcionam a quem os lê, a pintura oferece aos analfabetos que a contemplam
porque assim esses ignorantes vêem o que devem imitar; as pinturas são a leitura
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daqueles que não sabem ler, de modo que funcionam como um livro, sobretudo
entre os pagãos.396
Gregório claramente enfatiza a função pedagógica da imagem, mas não a reduz a essa função,
ele também aponta sua importância na rememoração das histórias sagradas que emocionam o fiel,
a vida de Cristo e dos Santos. Gregório também aborda o poder da imagem de suscitar a compulsão
no fiel, que assim se torna capaz de reconhecer, humildemente, sua posição de pecador e se
arrepender. De acordo com Baschet “Instruir, rememorar, emocionar: tal é a tríade das justificações
da imagem que os clérigos retomam ao longo da Idade Média”397.
Essas funções, por sua vez, se relacionam profundamente com as funções da retórica antiga
que tinha objetivos de deleitar, persuadir, emocionar, ensinar e rememorar. Assim, é impossível
reduzir os argumentos de Gregório e os usos da imagem sacra medieval a uma mera pedagogia
para os iletrados. Não vamos entrar no mérito dos usos e funções da imagem medieval aqui, porém,
é válido apontar que frequentemente vemos essa solução simplista ser aplicada sem critério na
análise das imagens medievais. Entretanto, por outro lado, também é impossível negar que a
importância didática da imagem se tornou central nos debates acerca das funções da imagem sacra
na cristandade ocidental e foi invocada pela Igreja Latina, como argumento de autoridade, sempre
que foi necessária uma defesa da legitimidade da imagem não só durante a Idade Média, mas
inclusive no contexto da Reforma e Contrarreforma.
Se no Ocidente Medieval o debate teórico era restrito aos teólogos, a situação depois do
Concílio de Trento se modifica. O argumento de Gregório vai ser revivido nas deliberações do
Concílio e assimilado vividamente pelos teóricos da pintura como uma verdadeira legislação para
as imagens.
396 GREGÓRIO MAGNO apud BESANÇON, Alain. A Imagem Proibida: uma história intelectual da iconoclastia. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 243.
397 BASCHET, Jérome. A civilização feudal. São Paulo: Globo, 2006, p. 485.
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colocavam suas esperanças nos ídolos, mas porque a honra que é a elas dirigida
volta-se para os modelos que representam [...].”398
No que diz respeito ao uso das imagens, os decretos do Concílio de Trento são breves, porém
seus argumentos se aprofundam e ganham destaque nos escritos de teólogos e teóricos da pintura
como, por exemplo, no Discurso sobre as Imagens, tratado de 1582, escrito pelo Cardeal Gabriele
Paleotti que havia participado ativamente das sessões do Concílio de Trento. Paleotti retoma a
fórmula do Papa Gregório e enfatiza, principalmente, a função didática da pintura mostrando a sua
importância como instrumento para ensinar aos menos instruídos os artigos da fé.
Certamente, é por meio das pinturas que a santa Igreja, em toda a cristandade,
normalmente manda ajuda aos necessitados, pois uma vez entendidos os artigos
da fé, ainda que toscamente, eles podem em seguida, por meio das pinturas,
assimilá-los com mais facilidade e retê-los na memória; do contrário, eles
continuariam privados dos meios de gozar os santos sacramentos.400
Jan Meulen, chamado de Johannes Molanus, um erudito holandês que viveu na Itália,
também ressalta o caráter didático da pintura sacra no seu tratado História das imagens e pinturas
sagradas, de 1570. Também atualizando o argumento de Gregório, Molanus diz que “As pinturas
são chamadas de livros dos leigos e iletrados; para os que não sabem ler, elas são o mesmo que os
livros para os doutos”401.
Textos Essenciais vol. 2 A Teologia da Imagem e o Estatuto da Pintura. São Paulo: Ed. 34, 2004, p.p 77-78.
401 JAN MEULEN. História das imagens e pinturas sagradas. (1570). In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (org). A
Pintura: Textos Essenciais vol. 2 A Teologia da Imagem e o Estatuto da Pintura. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 71
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Os tratados em questão foram escritos no período no qual Portugal estava sob domínio
filipino. Filipe III (II de Portugal) havia assumido o trono de seu pai em 1598. De acordo com a
pesquisadora Ana Paula Megiani402, a dinastia filipina foi responsável por proporcionar em Portugal,
uma cultura impressa, movida principalmente pela ausência da figura do Rei, tanto quanto pelo
desincentivo contra as publicações protestantes que chegavam de forma clandestina na península.
402 MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619).
São Paulo: Alameda, 2004.
403 MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619).
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“demonstrar o carácter nobre e liberal da pintura, que foi o tema central da [literatura artística
espanhola] seguindo a tradição teórica renascentista que tenha talvez seu pivô mais persistente em
Alberti” 405. Portús também demonstra que a construção do convento El Escorial atraiu para Madri
muitos artistas italianos, fato que promoveu um intercâmbio entre os artistas espanhóis e italianos;
fomentando uma ascensão no debate teórico sobre a pintura406. Talvez a mais característica
diferença esteja no fato de que nos territórios italianos essa batalha era motivada por razões
ideológicas, enquanto na Península Ibérica a demanda pelo fim dos impostos era uma realidade
concreta.
O primeiro texto a trabalhar com essas noções no território ibérico foi Noticia general para la
estimación de las artes y la manera en que se conocen las liberales de las que son mecánicas y serviles, publicado
em 1600 pelo espanhol Gaspaz Gutiérrez de los Rios. O tratado é organizado em quatro livros: Del
origen de las artes, segun nuestra religion Christiana (Livro Primeiro), Em que se trata em general de las artes
liberales y mecânicas [...] (Livro Segundo), Em que se defiende que las artes del dibuxo son liberales y no
mecânicas (Livro Terceiro) e, por fim, En que se refieren los antiguos para llamar a la Agricultura arte liberal
(Livro Quarto).
A defesa pela liberalidade da pintura é o argumento central de todo o texto. Em sua defesa,
Gutiérrez se apoia, principalmente, na antiga comparação entre pintura e poesia, que desde a
Antiguidade gozava do status de arte liberal. Gutiérrez, assim como Alberti, também associa a
pintura – devido à aplicação da proporção e perspectiva –, à geometria e aritmética que também
detinham o status de artes liberais. Seguindo essa estratégia, Gutiérrez compara às artes do desenho
a diversas outras atividades consideradas liberais, até mesmo com a medicina.
Gutiérrez também afirma que a pintura é liberal por possuir “três nobrezas”: a nobreza
natural, a política e a teológica, que nos é interessante aqui. De acordo com Raquel Pifano407, a
noção das três nobrezas da pintura foi assimilada do tratado do Cardeal Paleotti, já abordado
anteriormente como uma das possíveis fontes de Gutiérrez. No que diz respeito à nobreza
teológica da pintura Gutiérrez afirma “Pela nobreza Teológica, são também artes nobres porque
405 Tradução livre do trecho:"la demostración del carácter noble y liberal de la pintura, que fue el tema central de
nuestra literatura artística siguiendo la tradición teórica renacentista que quizá tiene su pivote más persistente en
Alberti.” PORTÚS, Javier. Los orígenes: 1600-1724. In.: El concepto de pintura española. historia de un problema. Madrid:
Editora Verbum, 2011, p. 19.
406 _______. Los orígenes: 1600-1724. In.: El concepto de pintura española. historia de un problema. Madrid: Editora Verbum,
NASCIF, Rose (org.) Literatura em Língua Espanhola e Artes Visuais. Juiz de Fora: EdUFJF, 2016 (no prelo).
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produzem efeitos sobrenaturais, e divinos, de piedade, caridade, e religião, segundo se tem dito.
Por serem suas obras milagrosas, se chamam os artífices divinos”408.
Ainda no que diz respeito à esfera teológica da imagem, no Capítulo XI (competencia que tienen
estas artes del dibuxo con la historia) do Livro III, Gutiérrez atesta que uma das funções da pintura é
contar uma história, não menos do que a poesia e, inclusive, com maior propriedade. Revivendo o
argumento da importância pedagógica da imagem, Gutiérrez afirma que a imagem serve para
eternizar na memória as histórias e atinge um público que a palavra escrita não é capaz de atingir
como os “rústicos” e “idiotas”, ou seja, aqueles que não são letrados. “O rústico e outros pobres
idiotas, e os mudos, como se recordariam de Deus e de seus santos, se não vissem pintadas suas
imagens nos templos?”409. Ele ainda diz que “[...] as histórias pintadas [...] vencem as escritas na
facilidade e rapidez em que são entendidas [...]”410. Fazendo referência aos princípios da retórica
antiga assimilados sob a luz da religiosidade contrarreformista. Gutiérrez também diz que a imagem
bem pintada “deleita os olhos, recria a memória, aguça e aviva o entendimento, apacenta o animo,
incita a vontade, e finalmente acende esse desejo, vendo os valores e virtudes de outros para imitá-
los, tanto e às vezes até mais do que pelas histórias escritas”411.
Estima-se que Noticia general para la estimación de las artes tenha sido uma das maiores fontes
para a escrita de Arte da Pintura de Filippe Nunes. Os dois tratados possuem inúmeras similaridades.
De modo geral, ambos estão inseridos em um contexto comum no que diz respeito aos aspectos
408 Tradução livre do trecho: “Por la nobleza Teologica, son tambiẽ artes nobles, porque producen efectos
sobrenaturales, y divinos, de piedad, caridad, y religión, según se ha dicho”. GUTIERREZ DE LOS RIOS, Gaspar.
Noticia general para la estimación de las artes, y de la manera en que se conocen las liberales de las que son Mecanicas y serviles, con una
exortacion a la honra de la virtud y del trabajo contra los ociosos, y otras particulares para las personas de todos estados. Madrid: Pedro
Madrigal, 1600. Fol. 214. Disponível em: <http://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000054264&page=1>. Acesso em
30 de março de 2016.
409 Tradução livre do trecho: “El rústico y otros pobres ydiotas, y los mudos, como se acordarían de Dios y de sus
santos, sino vierse pintadas sus imagene, e historias en los templos?”. GUTIERREZ DE LOS RIOS, Gaspar. Noticia
general para la estimación de las artes, y de la manera en que se conocen las liberales de las que son Mecanicas y serviles, con una exortacion
a la honra de la virtud y del trabajo contra los ociosos, y otras particulares para las personas de todos estados. Madrid: Pedro Madrigal,
1600. Fol. 166. Disponível em: <http://bdh-rd.bne.es/viewer.vm?id=0000054264&page=1>. Acesso em 30 de março
de 2016.
410 Tradução livre do trecho: “[...] las historias pintadas [...] vencen a las escritas em la facilidad y presteza de darse a
entender[...]”. GUTIERREZ DE LOS RIOS, Gaspar. Noticia general para la estimación de las artes, y de la manera en que se
conocen las liberales de las que son Mecanicas y serviles, con una exortacion a la honra de la virtud y del trabajo contra los ociosos, y otras
particulares para las personas de todos estados. Madrid: Pedro Madrigal, 1600. Fol. 167. Disponível em: <http://bdh-
rd.bne.es/viewer.vm?id=0000054264&page=1>. Acesso em 30 de março de 2016.
411 Tradução livre do trecho: “Con las bien pintadas y releuadas se deleytan los ojos, se recrea la memoria, se aguza y
abiua el entendimento, se apacienta el animo, se incita la voluntad, y se esta finalmente encendiẽdo el desseo, viẽdo los
valores y virtudes de otros para imitarlos, tanto y aun algunas vezes mas q por las historias escritas.” GUTIERREZ
DE LOS RIOS, Gaspar. Noticia general para la estimación de las artes, y de la manera en que se conocen las liberales de las que son
Mecanicas y serviles, con una exortacion a la honra de la virtud y del trabajo contra los ociosos, y otras particulares para las personas de
todos estados. Madrid: Pedro Madrigal, 1600. Fol. 167-168. Disponível em: <http://bdh-
rd.bne.es/viewer.vm?id=0000054264&page=1>. Acesso em 30 de março de 2016.
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sociais, políticos e religiosos, capazes de contribuir com o ensino da prática da pintura, além de se
inserirem no diálogo pela sua valorização e liberalização em terras ibéricas.
Arte poética, e da pintura, e symmetria, com princípios da perspectiva412, foi o primeiro tratado sobre
arte da pintura publicado em Portugal, em 1615. Seu autor Filippe Nunes, foi um português nascido
em Vila Real, que ingressou em idade madura na ordem dos dominicanos, no ano de 1591.
O tratado Arte da pintura, symmetria e Perspectiva é dividido em três partes, Prólogo aos pintores –
na qual o autor argumenta suas intenções com o tratado e apresenta a quem está dedicado, no caso,
dedica a obra aos jovens e aprendizes das artes; Louvores da pintura – nessa seção Nunes evoca e
referencia pintores e teóricos da arte da pintura, também apresenta argumentações sobre a pintura
como arte liberal; e Arte da pintura – apresenta a perspectiva, a simetria dentre outras técnicas do
ofício.
O presente texto terá como foco principal a seção Louvores da pintura. É possível observar
diferentes passagens em Louvores da pintura, nas quais Nunes faz uma defesa da pintura como arte
liberal. Nessa seção, o tratadista faz referência e, por vezes, traduz muitas das questões apresentadas
em Noticia general de Gutierrez de los Rios. Como recurso, Nunes também cita diversos exemplos
da antiguidade clássica, como a história do pintor Zeuxis, com o objetivo de afirmar o status do
artista e as funções da imagem. Nunes também se utiliza de autoridades cristãs como S. Gregorio
Nisseno, por exemplo, na passagem que escreve:
E S. Gregorio Nisseno [...] diz de si que muytas vezes pòs os olhos em hum
paynel em que estava pintado o Sacrificio de Abrahão, & que jamais o vio sem
lagrimas lembrando-se da historia verdadeyra. 413
412 Arte poética, e da pintura, e symmetria, com princípios da perspectiva, publicado em 1615 é um códice dividido entre arte
poética e arte da pintura. Em 1767, o tratado recebe uma segunda edição, apenas da parte dedicada a arte da pintura,
com o título Arte da pintura, symmetria e perspectiva.
413 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In.: NUNES, Philippe. Arte da
pintura e symmetria, e perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina
Ventura), p.71.
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dos olhos as historias muyto tempo há acontecidas”414, reforçando mais uma vez o papel educativo
da imagem.
Assim como no discurso de Gutiérrez, a pintura é considerada, por vezes, mais eficiente que
a palavra escrita, porque possibilita ao cristão recordar os ensinamentos, comove e faz mover. O
dominicano apresenta dessa forma diversos exemplos enfatizando também a legitimidade da
pintura. Em sua conclusão afirma que:
Logo se prova bem que he contada entre as liberais, & que se seja nobre não há
divida nenhũa, porq o he portodas as três nobrezas: pela natural, porque produz
grandes efeitos de virtude (porque quem há, que vendo hũ Christo crucificado,
se não compunya? O q esta provado assima de S. Gregorio Nisseno) pela nobreza
Theologica & divina, porque produz efeitos sobrenaturais, & divinos de piedade,
caridade & religião415
De acordo com Raquel Pifano, a defesa da imagem em Nunes tem um teor de defesa da fé
cristã. Em Arte da Pintura, o tratadista enfatiza a função pedagógica da imagem.
414 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In.: NUNES, Philippe. Arte da
pintura e symmetria, e perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina
Ventura) p.70.
415 _______. Arte da pintura, symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In.: NUNES, Philippe. Arte da pintura e symmetria,
e perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura) p.77.
416 PIFANO, Raquel Q. Arte e catequese: a escultura devocional de Aleijadinho. In: Cultura Visual, n. 16,
Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura). p.37.
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Apresentar fontes de autoridade pagãs para uma defesa de valores cristãos é uma prática
presente em muitos discursos tridentinos. De acordo com Baumgarten421, teólogos como Paleotti
e Bellarmino, por exemplo, apoiam seus argumentos não apenas em fontes de autoridade cristãs,
como a própria Bíblia, mas também em autores pagãos como Platão e Aristóteles. Baumgarten
argumenta que “[...] para a justificação das imagens por sua associação com os textos, Paleotti cita
tanto autores pagãos quanto cristãos, de Plínio a Gregório, o Grande, e de Estrabão a João
Damasceno”422. É possível verificar o mesmo discurso nos tratados de Gutierrez e Nunes, que ao
evocarem os autores clássicos afrontam “[...] os escritos da Antiguidade tal como haviam feito os
primeiros Padres, no sentido de mobilizar as letras profanas ao serviço das sagradas [...]”.423
Devido às similaridades e traduções diretas do texto de Gutierrez de Los Rios, alguns autores
contestam a erudição de Nunes e sua capacidade de argumentação, consideram por vezes que o
dominicano teria produzido apenas uma cópia servil. Entretanto é essencial que consideremos
algumas questões a respeito do período e da tratadística portuguesa. Primeiramente, como afirma
418 PIFANO, Raquel Quinet A. Gutierrez de Los Rios e o Elogio da Pintura de Philipe Nunes. In.: MORENO, Patrícia;
NASCIF, Rose (org.) Literatura em Língua Espanhola e Artes Visuais. Juiz de Fora: EdUFJF, 2016 (no prelo).
419 Mons. Daniele Barbaro (1514-1570) foi um humanista veneziano, patriarca de Aquileia, participou de algumas
seções do Concílio de Trento, foi tradutor de Vitrúvio e produziu um tratado sobre perspectiva. Barbaro também foi
mecenas de artistas como Paolo Veronese e Andrea Palladio.
420 VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. In.: NUNES, Philippe. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto:
Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura), p.39.
421 BAUMGARTEN, Jens. A teologia pós-tridentina da visibilitas e o Laocoonte. In.: MARQUES, Luiz (org). A fábrica
do antigo. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. (coleção Palavra da arte), p.p. 205-219.
422 ________. A teologia pós-tridentina da visibilitas e o Laocoonte. In.: MARQUES, Luiz (org). A fábrica do antigo.
Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura), p.44.
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Leontina Ventura “A noção de plágio não existe na época, os autores copiam-se, não há lugar para
a inovação, apensas uma exploração dos achados dos predecessores”424.
Pertence a Gutiérrez de los Rios e a Filippe Nunes um papel importante no que diz respeito
à literatura sobre pintura. Como os primeiros tratados sobre arte da pintura publicados na Península
Ibérica, Notícia General e Arte da Pintura possuíam um sentido muito particular em relação aos
interesses monárquicos e cristãos. Ambos os textos tiveram grande importância no debate pela
liberalização da pintura que, em solo ibérico ainda detinha status de atividade mecânica, e na defesa
da pintura sacra como atividade legitima frente às acusações protestantes, evocando para isso
autoridades da antiguidade clássica – interpretadas à luz da teologia tridentina –, os santos padres
da Igreja, e tratadistas e teólogos contrarreformistas.
424VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. In.: NUNES, Philippe. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto:
Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura), p.45.
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Resumo: Marino Del Favero, italiano imigrado para o Brasil no final do século XIX, é um escultor-
entalhador, quase desconhecido na historiografia da arte sacra brasileira. Várias cidades brasileiras
possuem seus retábulos e imagens sacras em catedrais, igrejas matrizes e capelas, porém são poucos
os pesquisadores e historiadores da arte brasileira que aprofundaram seus estudos sobre o artista.
Descendente de uma família italiana de renomados escultores e formado na academia veneziana, é
criador de retábulos, imaginária sacra e mobiliário religioso durante meio século em sua oficina na
cidade de São Paulo que em menos de uma década se tornou uma pequena indústria. Pioneiro da
industrialização da arte sacra e encomenda por catálogos; participou de várias exposições nacionais
e internacionais, recebendo premiações e atestados de bispos e padres influentes em seu período.
O estudo dá-se através da compreensão da história e evolução da forma dos retábulos e imaginária
sacra, suas funções e morfologia, bem como o estudo tipológico, visando a criar parâmetros para
a atribuição de suas obras. Imprescindível é a pesquisa histórica sobre as origens e vida do artista
no Brasil para compreender e localizar suas obras na História da Arte Sacra Brasileira. O estudo
possibilitou revelar a obra e história de um importante escultor-entalhador e industrial na São Paulo
da Belle Époque e suas origens na Itália.
“Marino Del Favero. São Paulo”, assim assina o escultor e entalhador autor de muitos
retábulos e imaginária sacra que compõem o decoro de Igrejas e Capelas da última década do
oitocentos e primeira metade do século XIX em vários estados brasileiros. Seu nome é conhecido
apenas por alguns admiradores de arte sacra, historiadores e especialistas e moradores das cidades
onde se encontram os seus retábulos e imaginária sacra, mas todos desconhecem a sua história.
Como restauradora e conservadora de obras de arte, sua assinatura foi encontrada pela
primeira vez em 2003, quando da elaboração de um projeto de restauro do retábulo da Capela de
Nossa Senhora do Rosário na cidade de São Luís do Paraitinga, estado de São Paulo. A partir deste
momento o interesse pelo artista aumentou e novas obras foram encontradas ou identificadas
através de comparações formais e estilísticas.
A arte sacra paulista no período de atividade de Marino Del Favero é ainda pouco estudada
no que se refere à imaginária e retabulística, sendo os poucos estudos existentes concentrados na
arquitetura, pintura e escultura monumental, dificultando a identificação do escultor no início da
pesquisa, visto que seu nome não aparecia em nenhum dos estudos de referência brasileiros.
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Poucos sites paroquiais referenciam algumas de suas obras e dão informações díspares sobre
sua origem, alguns afirmando sua origem e outros sua descendência italiana, mas todos confirmam
a procedência de suas obras vindas de um “atelier” ou “oficina” localizado na capital paulista. Raras
são as referências ao seu nome encontrados na bibliografia brasileira, argentina e italiana, porém,
seu nome aparece em muitas citações em periódicos de época.
Assim, a ausência de estudos sobre Marino Del Favero, despertou o interesse e a
possibilidade de pesquisar o artista por si mesmo denominado “Esculptor e entalhador em
madeira”, como se lê nas raras publicidades de seu estabelecimento que foram encontradas. A
definição foi tomada como subtítulo na dissertação de mestrado intitulada “Marino Del Favero,
escultor e entalhador (1864-1943)”, sob a orientação do Prof. Dr. Percival Tirapeli, entregue em
dezembro de 2015 ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP) para a obtenção do
título de Mestre em Artes.
Sem uma bibliografia específica sobre Marino Del Favero, a pesquisa se baseou em fontes
primárias de informação, sendo fundamentada na pesquisa documental (arquivos religiosos,
públicos e particulares; periódicos de época; documentação cartorial brasileira e italiana; cartas;
livros de tombo; iconografia; fotografias); pesquisa bibliográfica (livros raros e atuais; teses,
dissertações, monografias e artigos científicos; imprensa escrita: jornais e revistas; internet; etc.);
pesquisa de campo com visitas aos locais onde as obras de Marino Del Favero se encontram;
entrevistas com historiadores locais, padres, comunidade; etc.
Foram encontradas duas escassas e raras biografias do artista publicadas em 1906 e 1918,
onde ambas indicam a origem italiana e local de nascimento do escultor e seu aprendizado junto
ao tio Giovanni Battista De Lotto. Sobre seu óbito foram encontradas notas de falecimento
publicadas em periódicos de época e a partir desta data, obteve-se sua Certidão de Óbito em
cartório paulista.
Outras referências às origens italianas de Marino Del Favero não existiam, sendo
encontrados apenas os nomes dos pais do escultor, Matteo Del Favero e Orsola De Lotto, em sua
Certidão de Óbito) e do nome de seu irmão Fortunato, citado em uma nota de falecimento de sua
mãe, publicada no Estado de São Paulo em 1912.
Através do cruzamento de dados encontrados em periódicos e Diários Oficiais brasileiros,
conseguiu-se definir a família de Marino Del Favero que chegou ao Brasil, incluindo a filha mais
nova, única nascida na terra nova e que mais tarde foram confirmados e ampliados através do contato
com padres, pesquisadores e descendentes do escultor na Itália, assim como o encontro de novas
obras de Marino Del Favero em território italiano.
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Filho de Matteo Del Favero (1821-1884) e Orsola De Lotto (1833-1912), Marino Stefano
Del Favero “Gorio” nasce em 3 de março de 1864 em San Vito di Cadore, na província de Belluno,
Itália, e suas origens remontam à cerca de 1750, com o nascimento do capostipite da famiglia,
Gregorio Del Fauro. Marino Del Favero teve dois irmãos e casa-se em 1887 em San Vito di Cadore
com Anna Maria Pordon “Pioaneto” (1867-1943), irmã do escultor Giovanni Battista De Lotto
“Minoto” (1841-1924). Da união, nascem quatro filhos, Stella (1888-?), Clellia (1890-1972), Guido
(1892-1981) e Maria Flora (1916 -1935) única nascida no Brasil e todos os quatro falecidos em São
Paulo.
No Brasil, a linha direta de Marino Favero “Gorio” se extingue pelo fato de o único filho
do sexo masculino, Guido, não ter se casado e deixado herdeiros, sendo continuada apenas pelo
ramo feminino com a descendência das filhas Stella e Clelia.
Com a árvore genealógica de Marino Del Favero compreende-se que o artista descende de
uma importante família e de alto nível cultural, dado que nos reporta o fato de existirem três
religiosos em sua ascendência paterna e pelo fato de a família Del Favero “Gorio” ter financiado o
pavimento colocado na última intervenção executada na Chiesa della Madonna della Difesa em San
Vito di Cadore.
Em 2013, após o contato com o pároco de San Vito di Cadore, solicitando um Atestato de
Nascita do escultor, o pedido foi encaminhado ao jornalista e pesquisador cadorino Belli que
realizou uma pesquisa genealógica completa em território italiano, em parte citada acima, e
encontrou a referência da historiadora de arte cadorina Letizia Lonzi à um “semidesconhecido”
Marino Del Favero seguidor de Valentino Panciera Besarel e De Lotto “Minoto”.
Belli contacta ainda os descendentes de um irmão e da esposa de Marino Del Favero, que
desconhecendo a existência de um outro artista famoso na família, prontamente se interessaram e
enviaram fotografias, informações de família e fotos de obras que descobriram entre suas heranças
e de conhecidos conterrâneos.
Até o momento, o nome de Marino Del Favero havia sido citado apenas duas vezes na
historiografia da arte italiana. A primeira em 1903, por Ronzon425, ao apresentar uma listagem dos
artistas cadorinos ainda vivos, entre eles Marino Del Favero, que curiosamente, já encontrava-se
no Brasil há uma década, e a segunda, quase um século depois, através do artigo de Lonzi426, que
identifica as três primeiras imagens sacras de Marino Del Favero na Itália datadas de 1891 e 1892,
anteriormente atribuídas à Giovanni Battista De Lotto.
425
RONZON, Antonio. Archivio storico cadorino: periodico mensile, Anno VI nº8 – Agosto 1903, p.91.
426
LONZI, Letizia. Tra la fitta schiera degli allievi del Besarel, Segnalazione nell alto bellunese. Archivio Storico di
Belluno, Feltre e Cadore, n.384, gennaio-aprile 2012.
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Após este contato com a Itália, outras cinco obras de Marino Del Favero são encontradas:
um Par de Anjos, também datados de 1892, a redescoberta da imagem da Madonna con il Bambino
custodiada na sacristia da Chiesa della Madonna della Difesa de San Vito di Cadore, também
anteriormente atribuída à De Lotto “Minoto”; a Bengala esculpida que pertencera à sobrinha da
esposa de Marino Del Favero e um singular Porta-retrato assinado e datado por Marino Del Favero
em 1894.
Este contato com a Itália proporcionou o entendimento das condições de vida e trabalho
nas oficinas de entalhe vênetas do final do século XIX, o estudo do estilo de seus mestres e das
influências recebidas pelo escultor, assim como a correta atribuição de algumas obras citadas pelos
autores à Marino Del Favero.
Fundamental para o enriquecimento da pesquisa, fonte de muitas ilustrações referentes à
projetos e obras executados pelo artista, o estudo da técnica, estilo e tipologia de suas obras, o
relacionamento do artista com clientes, o entendimento do funcionamento do estabelecimento,
serviços oferecidos e preços cobrados, além de valiosos atestados assinados por padres e bispos,
seus clientes, são as fotos de um raríssimo, talvez único, exemplar de uma Circular Publicitária da
empresa de Marino Del Favero, datada de 1904, com 14 páginas repletas de imagens e informações
redigidas pelo próprio escultor, enviados por Lonzi.
Outras riquíssimas fontes de imagens e informações que possibilitaram identificar obras e
entender a filosofia de trabalho de Marino Del Favero, são as duas únicas páginas de uma outra
Circular Publicitária da empresa datada de 1911, também raríssima e talvez única no Brasil, enviadas
por uma coleção privada do Estado de Minas Gerais, e um exemplar da Revista Santa Cruz
publicada em 1907.
Os registros de entrada de Marino Del Favero e sua família não foram encontrados nos
arquivos de referência à pesquisa imigracional no Brasil e arquivos digitais disponíveis na Argentina
e Itália (referentes à sua saída do país natal), porém, sabe-se que a data aproximada de sua chegada
ao Brasil teria sido no final de 1892, visto que o artista executa obras na Itália até este ano.
Tal data é possível, visto que no dia 27 de janeiro de 1893, o periódico Correio Paulistano
publica uma nota, com o nome erroneamente grafado de Marino Del Favero, informando que o
“distincto e conhecido escultor” havia exibido, no dia anterior, uma obra de sua autoria nas vitrines
do importante estabelecimento comercial Casa Garraux. É esta a primeira referência ao nome de
Marino Del Favero encontrada em solo brasileiro.
Fato é que, em 1877, Marino Del Favero aos treze anos de idade, parte para Veneza para
aprender e trabalhar com o tio Giovanni Battista De Lotto em sua recém-aberta bottega após este
trabalhar 20 anos como colaborador de Valentino Panciera Besarel. Em 1891, De Lotto fecha seu
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estabelecimento em Veneza e Marino Del Favero, aos 20 anos de idade e já um artista qualificado,
retorna com o tio para sua cidade natal, permanecendo alí cerca de um ano produzinho algumas
obras somente agora encontradas e reconhecidas por pesquisadores locais e seus descendentes.
No final do ano de 1892, em data desconhecida, Marino Del Favero desembarca no Brasil,
e no ano seguinte, funda o seu Estabelecimento de Escultura e Entalhe localizado no centro da
cidade de São Paulo.
O fechamento do estabelecimento de De Lotto em Veneza e a busca por uma nova
oportunidade de vida após um período de grandes dificuldade na Itália recém-unificada, parecem
ter sido as grandes razões que levaram Marino Del Favero a imigrar para o Brasil.
Ao contrário da maioria dos artistas italianos que aqui permaneceram por um período curto
de tempo, Marino Del Favero seguiu toda sua vida em São Paulo, deixando além de muitos
descendentes, um imenso legado artístico formado por retábulos, imaginária sacra, vias-sacras e
variado mobiliário religioso econtrados na capital e interior dos Estados de São Paulo e Minas
Gerais, além de obras nos Estados de Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e
Argentina.
Marino Del Favero viverá até 23/06/1943, quando falece aos 79 anos de idade em sua
residência, nos pavimentos superiores de seu estabelecimento, após 50 anos ininterruptos de
atividade artística e comercial no Brasil.
Os pequenos anjos característicos nas obras de Giovanni Battista De Lotto certamente
influenciaram a obra de Marino Del Favero na sua fase italiana e no Brasil onde os anjos músicos,
porta-fitas, orantes, tocheiros, trombeteiros e putti, serão encontrados em toda a obra do artista,
tornando-se, ao lado da técnica do marmorizado em retábulos de madeira, uma de suas caractísticas
mais marcantes.
As Circulares Publicitárias distribuídas pelo Estabelecimento em 1904 e 1911 fornecem
indícios de como funcionava o atelier e a forma de venda de suas obras, bem como uma vasta
listagem de atestados de padres e bispos para os quais o artista trabalhou, juntamente com
fotografias de obras e projetos do estabelecimentos que possibilitaram a identificação de muitas
obras e a confirmação da autoria de outras, provando o bom relacionamento pessoal e profissional
do artista com o clero brasileiro.
O grande número de retábulos, obras de maior valor monetário, em várias igrejas e capelas,
pode ser justificado devido ao fato do escultor-entalhador e exímio empreendedor, facilitar as
compras de seus produtos e possuir uma “Galeria” ou “Sala de Esposição permanente” com grande
quantidade de obras para “pronta-entrega”. O estabelecimento possuía tabelas de preço de suas
obras cujos valores das imagens sacras em madeira eram cobrados de acordo com a sua invocação
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e dimensões das obras e, variavam ainda, de acordo com o tipo de acabamento oferecidos pelo
estabelecimento: “Decoração em branco ou simples”, “Decoração Meia Rica”, “Decoração Rica”
e “Decoração Riquissima”. A maioria das imagens eram oferecidas nos tamanhos de 30 cm à 170
cm e seus valores variavam de acordo com o número de figuras que compunham os grupos
escultóricos.
Nossa Senhora da Paz (1940). Paróquia de Nossa Senhora da Paz, São Paulo, SP.
Foto: Cristiana Cavaterra.
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Retábulo-mor da Igreja de
Nossa Senhora do
Patrocínio, Itú, SP. (c.
1894).
Foto: Cristiana Cavaterra.
Retábulo da Capela do
Santíssimo da Catedral
Metropolitana de
Campinas, SP. (1909).
Foto: Cristiana Cavaterra.
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Retábulo-mor da Capela de Santa Cruz dos Enforcados, São Paulo, SP (c. 1920). Intervenção de Marino Del Favero.
Foto: Cristiana Cavaterra.
Glória para a Imagem de Nossa Senhora do Carmo, Basílica de Nossa Senhora do Carmo, São Paulo, SP (s.d.).
Intervenção de Marino Del Favero.
Foto: Cristiana Cavaterra.
Marino Del Favero foi pioneiro na industrialização da arte sacra no Estado de São Paulo e
inovador na “fabricação” nacional de esculturas sacras, com a introdução do carton-piérre. Sua
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oficina chegou a ter uma equipe de 25 funcionários, mas Marino Del Favero nunca deixou de se
considerar e ser considerado um artista.
A qualidade de suas obras de arte e seu desempenho como empresário de sucesso são
atestadas pela sua participação em ao menos dezoito exposições das quais se tem conhecimento,
sendo premiado em muitas delas. Dentre estas, uma foi realizada em uma residência particular,
duas foram realizadas em vitrines de estabelecimentos comerciais, um concurso público, nove
exposições nacionais oficiais e cinco exposições internacionais.
A pesquisa sobre a vida e obra de Marino Del Favero dificilmente se concluirá somente
com esta dissertação. Certamente muitos fatos e dados sobre sua vida, sua imigração para o Brasil
e obras importantes ainda serão descobertos, assim como o encontro de documentações afins que
provavelmente surgirão com a digitalização de novos documentos, não passíveis de consulta, por
parte dos arquivos históricos e o encontro de documentos relevantes à vida e obra do escultor em
mãos de proprietários particulares, que poderão surgir em decorrência da divulgação do nome do
artista. Também inconcluso é o levantamento de suas obras retabulísticas e escultóricas e
mobiliárias nos estados de São Paulo, Minas Gerais, e ouras regiões do Brasil e exterior. Muitas
destas obras fazem parte de acervos particulares, outras foram suprimidas de seus locais de origem
e outras despareceram em decorrência do mau estado de conservação a que foram submetidos.
Como foi descoberto com a pesquisa que o atelier de Marino Del Favero tratava-se na verdade de
uma pequena indústria em atividade por cinquenta anos ininterruptos, inúmeras seriam as obras
produzidas sob seu legado, portanto muitas igrejas ainda deverão ser visitadas, colecionadores
particulares consultados e suas obras identificadas, catalogadas e estudadas.
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Resumo: O presente artigo versará sobre o escritor-cineasta Italiano, Pier Paolo Pasolini.
Trataremos sobre a questão do “Vazio de Poder” e o neofascimo que tanto inquietou Pasolini. Sua
atitude cética perante o mundo, no que diz respeito às instâncias sociais, culturais e políticas, vem
de uma constatação pessoal: “Faço simplesmente questão de que tu olhes em torno de ti e tomes
consciência da tragédia. E que tragédia é esta? A tragédia é que não existem mais seres humanos;
só se veem singulares engenhocas que se lançam umas contra as outras”. Esta constatação feita
pelo cineasta aparece em seu último filme, Saló ou os 120 dias de Sodoma e ressalta a visão apocalíptica
que ele desenvolveu diante das contradições do século XX. Século para o qual parece confluir o
niilismo moderno, a “tradição da ruptura” e ainda o tempo dos descartáveis que pressupomos
justificar algumas instâncias culturais. Portanto, o presente trabalho pretende analisar as ideias
políticas e estéticas contidas no pensamento do cineasta italiano.
Introdução:
Antes de começarmos a falar sobre o escritor-cineasta italiano, Pier Paolo Pasolini, e suas
ideias políticas e estéticas, talvez seja interessante voltarmos um pouco no tempo para apontarmos
algumas rupturas, pois como afirma Octavio Paz, o Modernismo inaugurou a “tradição da
ruptura427”, entretanto o próprio surgimento da Modernidade em si, traz encrustado essa
427 PAZ, Octavio. Os filhos do barro. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
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necessidade de romper com o vigente, com o estabelecido, ainda que estes rompimentos não sejam
da mesma essência daqueles apontados por Paz.
Para alguns historiadores, como Jean Delumeau da École des Annales, a modernidade inicia-
se com o fim da Idade Média, começo do chamado Renascimento428, e principiaria a se diluir com
o iluminismo, findando-se com a revolução francesa. Há aqueles que apontam para a tomada de
Constantinopla, pelos turcos otomanos, e consequentemente para o fim do império romano do
oriente, como marco inicial da modernidade. Para outros, o início se daria justamente com o
advento do século das luzes na França. No entanto, longe de pretender fixar aqui uma data ou
qualquer acontecimento histórico para o possível surgimento da modernidade, seria interessante
elencar três eventos que, a meu ver, tiveram significativa importância para o surgimento dessa nova
era e que, de algum modo, ajudarão a clarear as ideias que estão por vir.
Visto que nenhum processo, obviamente, social, histórico, político ou estético se dá da
noite para o dia, ainda que às vezes pareça ocorrer justamente o contrário. As raízes estão sempre
mais profundas, elas jamais estão apenas na superfície do agora, mas se entranham profundamente
no ontem. Portanto, alguns apontamentos que Pasolini fará séculos depois são inerentes ao
processo histórico. O desencadeamento de sucessivos eventos no passado influi na percepção do
presente direta ou indiretamente, pois mudando nossa maneira de existência, muda-se a forma
como percebemos o mundo. É claro que, nem todas as sociedades são afetadas do mesmo modo,
nem todos os indivíduos pertencentes a uma mesma sociedade são igualmente afetados. O que
para uns significa crise, para outros significa renascimento. O que para uns é o inferno, para outros,
o paraíso. Mas voltemos aos três eventos. Primeiro, temos a invenção da imprensa por Gutenberg;
segundo, o começo das expansões marítimas e em terceiro, mas não menos importante, a cisão do
catolicismo, no século XVI, que culminou na Reforma protestante.
A invenção da Imprensa possibilitou uma circulação, até então inimaginável, de obras e
consequentemente de conhecimento. Visto que a facilidade de produção, aliada entre outros
fatores, ao relativo baixo preço dos livros, permitiu pela primeira vez na história do mundo cristão,
o transitar, até certo modo mais democrático da cultura letrada, outrora confinada nos mosteiros.
Esse fato refletiu-se nas diversas culturas europeias, que em pouco tempo criaram condições para
o desenvolvimento das ciências. Tais condições culminaram na Revolução Científica, caracterizada
pela independência dos estudos científicos, em relação a filosofia e, principalmente, em relação a
religião.
428DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento – Volume 1. Tradução Manuel Ruas. Lisboa: Editorial Estampa,
1983.
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Os descobrimentos de além-mar, por sua vez, não só proporcionaram aos europeus novos
polos fornecedores de matéria-prima, como também, posteriormente, as áreas colonizadas vieram
a se tornar novos mercados consumidores e, concomitantemente, permitiram o contato com outras
culturas. Ainda que estas, na sua grande maioria, tenham sido subjugadas num primeiro momento.
Mas o mais importante aqui é que: as grandes navegações converteram-se no triunfo do humanismo
e da ciência em detrimento das crendices e superstições religiosas. Por último, a Reforma
protestante, iniciada por Martinho Lutero, colocou em xeque a autoridade papal possibilitando
novas interpretações das “Sagradas Escrituras” que divergiam do cristianismo romano.
Com a cisão iniciada em 1517 surgem outras vertentes religiosas, como o Luteranismo, o
calvinismo e mais tarde o anglicanismo. Após a Revolução Industrial, esses novos segmentos
religiosos se tornaram muito populares no meio da crescente classe burguesa. Como exemplo,
tomemos o calvinismo que tinha como dogma, entre outros, a predestinação. Para os calvinistas a
vida próspera e abundante era marca da salvação, os escolhidos por Deus prosperariam em todos
os sentidos, pois estavam predestinados. Essas novas ideias levam a uma valorização do trabalho e
consequentemente a uma nova configuração das classes sociais.
Ainda que não se pretenda, nestas páginas, desenrolar o fio da história da modernidade, é
de interesse e de relativa importância fazer este breve apontamento sobre os primórdios da era
moderna, principalmente se percebermos aí, algumas rupturas importantes que permitiram aos
seres humanos, ainda que lentamente, um novo relacionamento com o mundo que aos poucos ia
se secularizando. Uma maior circulação de ideias (que conduziria a um aperfeiçoamento das
ciências e das técnicas) aliada ao rompimento com ideologias e instituições tradicionais como a
Igreja Católica e, por conseguinte, com alguns pilares da cultura é uma marca que acompanha a
modernidade desde os primeiros tempos.
O homem passa a olhar mais para si em detrimento do além. O que grosso modo, e dando
um salto histórico, culminará na era das revoluções429 e posteriormente possibilitará o
evolucionismo do inglês Charles Darwin. Com base nessas mudanças, um dos mais importantes e
interessantes pensadores do século XIX, o alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche constatou a morte
de Deus. Deus foi destituído de seu trono, sobretudo pela modernidade. Segundo Daniel Bell, para
o autor de Crepúsculo dos ídolos e O anticristo, o niilismo tinha como fonte o racionalismo, cujo símbolo
máximo era a ciência430. Por intermédio dos avanços da referida ciência os homens assumiram o
lugar da potestade, o médico vem antes dos conselheiros espirituais e instituições como os
hospitais, em caso de urgência, são mais indicadas do que as igrejas. Para o pensador alemão, a vida
429 HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
430 BELL, Daniel. Las contradicciones culturales del capitalismo. Trad. Néstor A. Miguez. Madrid: Alianza Editorial, 1977.
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no “aqui e agora” é superior a qualquer idealismo, como o além-mundo ou ainda, como qualquer
outro empecilho que nos retirem da vida tal como ela se apresenta. Todos os obstáculos à vida
devem ser, para usar uma expressão do próprio filósofo, “martelados”.
O conceito de niilismo tem seu significado subvertido pelo filósofo alemão que busca
adequá-lo à sua filosofia. Se antes, o niilista era aquele que não praticava os valores superiores da
moral cristã, como os dogmas religiosos; se antes, era aquele que se deixava levar pelos impulsos
do corpo, pelos desejos. Agora, na visão de Nietzsche, niilista é justamente quem cultiva os valores
morais, sobretudo, cristãos, é quem não se deixa levar pela vida, é quem tem sua existência moldada
por uma ideia de recompensa futura, uma ideia de além. Pois tudo isto, serve de evasão à vida, visto
que subterfugiando a realidade, tais ideais adiam infinitamente o presente.
Abrir mão de experienciar o “aqui e agora”, por uma busca inalcançável de um passado que
já não existe ou por uma concepção de suposto conforto no futuro, seja no além, seja aqui mesmo
na terra é negar a própria condição de existência humana. A vida alcança somente um instante por
vez, o qual denominamos de presente. O passado é apenas memória e rastros, o futuro uma
projeção nebulosa de incertezas. Por exemplo, os ideais arraigados no marxismo ou no capitalismo,
onde um, pelo vislumbre das lutas de classes, deposita no porvir todas as suas esperanças, e o outro,
pelo acúmulo exacerbado e pela produção febril, em que primeiro vem o trabalho e só depois,
supostamente, os frutos, conduziriam ao chamado niilismo moderno, no qual, o futuro é o lugar
da vida ideal em detrimento do presente.
O presente se torna então, uma espécie de tempo do sacrifício. Se antes os homens
(ocidentais de fé cristã,) almejavam o paraíso e em função disso pautavam suas vidas e seus valores,
fazendo penitências, procurando abolir os excessos e regrando a vida etc., hoje, eles almejam os
bens de consumo, o carro novo, o apartamento ou mesmo o par de tênis importado e para obterem
tais coisas, em sua grande maioria, têm que se entregar excessivamente. Essas mudanças
obviamente modificaram os valores morais e estéticos. As rupturas e destruições influem e
caracterizam as relações sociais, culturais e artísticas do presente. Pois como acentua Walter
Benjamin, “no interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades
humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência431”. Em síntese, é numa Itália
onde o niilismo impera e onde os valores cultivados são os valores burgueses/capitalistas, cujo o
consumo parece ser a nova teologia, que surge e se insurge Pasolini.
431 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Vol. I. Magia e técnica,
arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012, p.183.
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Pier Paolo Pasolini nasce em Bolonha em 1922, num período de turbulência, consequência
dos conflitos gerados pela Primeira Guerra Mundial. Ainda criança presencia os efeitos da Crise de
1929, e no final da adolescência e início da vida adulta vivencia o terror da Segunda Guerra Mundial.
Em casa, convive com um pai fascista, tenente do exército italiano, por medo e desconforto o rapaz
vive agarrado à mãe. Seu irmão mais novo, Guido, como era conhecido, adere ao movimento
antifascista e acaba morto aos 19 anos de idade. Tudo isso deixará marcas profundas em Pasolini.
Anos depois, acusado de homossexualismo e corrupção de menores, ele e a mãe deixam Bolonha
e juntos vão viver em Roma. Ali, em escola da periferia, o futuro cineasta trabalha como professor,
entrando em contato direto com os filhos dos subproletários. E é na periferia que ele ambientará
seu primeiros filmes, é aí também, que ele fará parcerias e amizades que durarão por toda sua vida,
como a amizade com os irmãos Sergio e Franco Citti ou a amizade com Ninetto Davoli.
O diretor cultivava no início de sua carreira predileção por locações cujos temas ressaltavam
a cultura popular, o modo de vida dos subproletários que, mesmo sendo duro, estava carregado de
beleza, de força, por estar cheio de saberes, de expressões próprias, como as gírias do personagem
Accattone (1961), ou como a bela personagem Mamma Roma (1962). O primeiro cinema pasoliniano
trazia os lampejos de resistência, era a resistência, entre outras coisas, aos valores burgueses, ao
consumismo. O próprio cinema pasoliniano, em si, era uma resistência ao cinema hollywoodiano
e à grande indústria do entretenimento. Mas ao final de sua vida, Pasolini, num ato de desespero e,
para alguns, de exagero, irá decretar o desaparecimento desses lampejos. Seu último filme, Saló ou
os 120 dias de Sodoma (1975), é pesado e repleto de simbologia, nele estão colocadas questões que
perpassam problemas históricos, sociais, políticos e estéticos. O poeta-crítico, com uma visão
aguçada e perscrutadora, expõe as mínimas fissuras de uma sociedade em avançado estágio de
transformação. É como se toda cultura, toda resistência tivesse sucumbido aos ideais totalitários e
totalizantes de felicidade da burguesia. Estaria, assim, tudo reduzido a um estado de coisa, todos
os valores humanos dissolvidos, transformados pela era dos descartáveis.
Assim como no inferno de Dante, encontramos na obra de Pasolini as Almas caídas que,
penam por regularidade ou como colocou Luiz Nazário, por normalidade. Mas o que seria essa
normalidade? Nada mais nada menos do que o fim da estratificação cultural; se antes havia várias
camadas culturais, com a adesão total por parte da sociedade italiana ao valores burgueses, passa a
existir um esvaziamento que, na visão do cineasta, leva a uma planificação da cultura. Ou seja, agora
toda a sociedade italiana cultivava os ideais burgueses, a isso Pasolini deu o nome neofascismo.
O neofascismo se tornava então muito pior do que o fascismo dos tempos de Mussolini,
pois surge fantasiado com as vestes da democracia e é disseminado pelo Estado e por empresas
aliadas a esse Estado. E no centro da união entre empresa e Estado está o consumo desregrado e
todos os ideais de massificação consumista. Ocorrendo aí uma linearização do humano onde temos
“um mundo perfeitamente normalizado e aculturado”433.
Em seu livro Os filhos do barro, Octavio Paz discute, como ele próprio afirma logo nas
primeiras páginas, a tradição moderna da poesia. Mas suas explanações extrapolam o texto poético.
Para o autor, a modernidade é uma tradição que desaloja, o que vigorava até então, para logo na
sequência ser também desapropriada. Essa interrupção da continuidade é o que, para Paz, distingue
nossa modernidade de outras anteriores. “(...) nossa civilização não busca seu fundamento no
passado nem em algum princípio inabalável, mas sim na mudança”434. De certo modo, o desespero
pasoliniano vem da percepção da nova perspectiva que aflora na sociedade italiana do pós-guerra,
fruto da grande industrialização que surge na segunda metade do século XX. Os movimentos
vanguardistas do início desse século seriam os agentes maiores dessas rupturas apontadas por Paz,
pois nas suas essências estariam instaladas as forças que buscariam suplantar o passado. Entretanto,
se as vanguardas não assinalam o início das rupturas elas ao menos apontam, segundo o pensador
mexicano, para o fim das mesmas, como algo que se esgota em si próprio: “a vanguarda é a grande
ruptura e com ela se encerra a tradição da ruptura”435.
DADA
está ao lado
do Proletariado revolucionário
Abra finalmente a sua cabeça
Deixe-a livre
Para as exigências
de nossa época
Abaixo a arte
Abaixo o
intelectualismo burguês
A arte morreu
432 NAZÁRIO, Luiz. Pasolini, Orfeu na sociedade industrial. Brasiliense, série: encontro radical. 1982, p.69.
433 _________. Pasolini, Orfeu na sociedade industrial, p.46.
434 PAZ, Octavio. Os filhos do barro. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p.21.
435 _________. Os filhos do barro, p.21.
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Viva
a arte-máquina
de Tatlin
DADA
éa
destruição voluntária
do
mundo burguês das ideias436
436 CHIPP, Herschel B. Dada, Surrealismo e Scuela Metafísica: o irracional e o sonho. In: Teorias da arte moderna. São
Paulo: Martins Fontes, 1999, p.380.
437 BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p. 333.
438 MERQUIOR, José Guilherme. O fantasma romântico e outros ensaios. Petrópolis: 1980, p.10.
439 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, p. 182/183.
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Com a perda da aura, nos deparamos com a estetização do vazio, com a fugacidade das
performances e instalações artísticas, cujo espírito da autonegação romântica paira sobre o próprio
fazer artístico de tais obras, que deixam de lado os suportes tradicionais. Entretanto, não se
desconhece que, algumas dessas obras continham em seu âmago questionamentos profundos que
versavam sobre o fazer artístico, o esvaziamento das relações afetivas, ou mesmo sobre as questões
políticas e sociais, etc.. No entanto, com o desenvolvimento do processo de experiências artísticas,
algumas artes, mais que outras, desenvolveram olhares introspectivos voltados para si mesmas,
distanciando-se do mundo exterior, reflexo da “Fonte” que, como objeto de arte, questiona e ao
mesmo tempo ri do papel da própria arte, daí o desenvolvimento da metarreferencialidade e da
autorreferencialidade.
Obviamente tais mudanças não operaram só no campo estético, mas também no campo
social, político e econômico. Reaparece a ideia de Empreendedorismo e junto um discurso que
obnubila a realidade, onde temos embutida uma noção de sucesso ou fracasso ligada diretamente
ao sujeito. A vida próspera não é mais uma dádiva divina entregue ao predestinado, mas agora é
algo que foi conquistado por aquele que se esforçou, que “pegou o boi pelo chifre”, para ficarmos
no ditado popular, ou seja, surge o tempo do mérito individual, pois a prosperidade passa a
depender única e exclusivamente de cada um. E diante dessa ilusão, como bem observou Pasolini,
valores burgueses se tornam altamente difundidos, pois existe aí uma forma de controle exercida
pelo poder.
“O novo poder é uma forma total de fascismo, e o novo homem não está
mais ligado às tradições socialistas nem é propriamente um burguês, mas
pertence a uma massa despojada de cultura, totalmente manipulada e
retificada, que Pasolini acredita ser capaz de tudo”440.
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não poupando nenhum segmento social. Ele aponta, sobretudo, a letargia que brotava da
intelectualidade italiana que parecia não ver o que acontecia com a cultura. E se o rompimento com
as tradições, com as instituições se tornou inevitável, se experimentar outros suportes fazia parte
do fluxo da correnteza, que vinha se formando há séculos, depois que ela se estagnou ficou a
sensação de um simples oco por vir. Assim, Daniel Bell caracterizou o período:
O problema real da modernidade é o da crença. (...) É uma crise espiritual, pois
os novos suportes se demonstraram ilusórios e os velhos ficaram submersos. É
uma situação que nos leva de volta ao niilismo: a falta de um passado e um futuro
só deixa um vazio442.
No livro Todas as cidades, a cidade, Renato Cordeiro Gomes faz uma pequena caracterização
da cidade moderna, onde podemos perceber inseridos nessa cidade os valores surgidos com as
rupturas.
Pasolini escreveu estas palavras meses antes de ser brutalmente assassinado. Essa
constatação, feita pelo cineasta, aparece em seu último filme e ressalta a visão apocalíptica do autor
diante das contradições do século XX, para onde conflui o niilismo moderno, a “tradição da
ruptura” e ainda o tempo dos descartáveis que parece justificar algumas instâncias culturais.
Entretanto, alguns pensadores apontam para um exagero pasoliniano, para uma descrença
absoluta na capacidade de resistência não só do ser humano, mas também da arte. De tal forma
que, Didi-Huberman, menos pessimista que Pasolini, constata em seu livro intitulado Sobrevivência
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dos vaga-lumes, uma visão apocalíptica que atravessa o pensamento ocidental. Essa visão
desesperadora parece antever um horizonte de destruição, onde diversos autores notaram a vitória
do perecível sobre o eterno e o aparecimento do niilismo como um novo valor enquanto os valores
de outrora, arraigados no cerne da sociedade ocidental-cristã, são suplantados. Dentre esses
apocalípticos se encontram os italianos Giorgio Agamben e Pasolini.
Na era do descartável, o ato de romper com a tradição, virando ele próprio uma tradição,
tornou-se o suporte desta própria era. Quantas exposições “artísticas” não foram varridas, no dia
seguinte, por uma faxineira desavisada? Ou mesmo o oposto, ao invés de retirar, inserir. Um objeto
deixado propositalmente por um brincalhão, nas dependências de um museu, pode ser confundido
facilmente com um trabalho de artista445. A obra de arte como objeto efêmero, portanto,
descartável, dialoga com o tempo, onde as crescentes inutilidades tecnológicas -cuja a vida sem elas
seria, para alguns, a materialização do inferno na terra-, têm se tornado obsoletas ainda nas
prateleiras das lojas. E o que aqui pode parecer um anacronismo, por se fazer tão próximo dos dias
de hoje, já preocupava Pasolini no início dos anos de 1970. Sobretudo, com relação a detecção de
um jogo de espelhamento que perpassa arte e sociedade. É a busca do novo, mas sempre-igual, que
permeia as esferas artística e cultural.
Nesse cenário de mudanças constantes e rupturas, a visão apocalíptica é resgatada à figura
de João e moldada com novos adornos, principalmente nos períodos do modernismo e pós-
modernismo. A imaginação ligada à perda ou à destruição do que estava estabelecido remete
também à esfera política, pois como afirma Didi-Huberman, “em nosso modo de imaginar jaz
fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer política. A imaginação é política, eis o
que precisa ser levado em consideração”446.
Em 1941 Pasolini escreve uma carta que posteriormente se tornou famosa, onde menciona
pela primeira vez os vaga-lumes, carta essa que será mais tarde analisada por Didi-Huberman.
Naquele período, as questões políticas eram o que mais parecia interessar ao autor. Na epístola
destinada ao amigo de adolescência, o jovem Pasolini condena à morte a atitude de inocência diante
do mundo. Diz ele:
Eu não posso perdoar aquele que atravessa com o olhar feliz do inocente as
injustiças e as guerras, os horrores e o sangue. Há milhares de inocentes como tu
através do mundo que preferem se apagar da história ao invés de perderem sua
inocência. E eu devo fazê-los morrer, mesmo sabendo que eles não podem agir
de outra forma, devo amaldiçoá-los como a figueira e fazê-los morrer, morrer,
morrer447.
445 Recentemente, um par de óculos, inserido estrategicamente, por um adolescente no chão de um museu nos EUA,
acabou virando notícia ao confundir alguns visitantes, estes seguros pela autoridade da instituição, pensaram que o
objeto fazia parte do acervo exposto.
446 DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes, p.61.
447 PASOLINI apud DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes, p.23.
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Em 1975, em um artigo que ficou conhecido como o artigo dos vaga-lumes, Pasolini
constata a morte desses seres luminosos. Os vaga-lumes aqui representam a própria inocência.
Aquilo que havia de melhor na humanidade estava morto, a cultura se esfacelava; para o cineasta a
resistência antiga, a força do proletariado que por muito tempo não cedera aos ideais burgueses
estava extinta, era o fim da experiência de vida. Agora eram todos autômatos. Os seres humanos
foram todos assimilados pelos valores burgueses, pelos ritos consumistas e pelo niilismo moderno,
onde o “aqui e agora” é preterido pelo futuro, o futuro passa a ser o lugar da vida ideal, as pessoas
se matam ou se estapeiam no presente em prol de um futuro melhor.
A questão a ser considerada aqui é: enquanto o Pasolini da juventude decreta a morte da
inocência, o Pasolini maduro irá desesperar-se ao constatar tal morte. Pois a inocência possuía em
si algo de puro, sem contaminação e podia ser vista como forma de resistência frente a
industrialização predatória. Os vaga-lumes pasolinianos são essa resistência capaz de abrir as portas
à sobrevivência da cultura, são aquela alegria potente dos corpos com suas autonomias, sem a
corrupção repressiva dos ideais burgueses, sem a degradação capitalista que transforma tudo em
mercadoria ou o moralismo religioso que enclausura os corpos, mas esses vaga-lumes estavam
mortos.
Para o poeta existiam alguns agentes perniciosos, antes de mais nada, disseminadores de
uma cultura vazia e massificada, de uma cultura assimilada. Estes agentes não só intervinham, mas
também condicionavam a liberdade e as ações sociais. A televisão certamente era um desses
agentes. Pasolini, ávido polemista, já nos anos cinquenta havia dirigido duras críticas à televisão e
à massificação da sociedade.
Nos anos 70, O cineasta encontra-se perdido em um labirinto, onde o monstro que ali
reside não é mais a figura mitológica do Minotauro. Agora, o que se vê no centro dessa construção
terrível é o que o cineasta denominou de neofascismo, com suas grandes luzes, com seus olhos
mecânicos devorando os pequenos vaga-lumes. O neofascismo, como microcosmos pulsante,
envolvia a televisão e a superexposição midiática dos corpos, a supervalorização do fugaz e do
descartável em detrimento da alta cultura, entretanto não só a alta cultura fora afetada, mas também
as diversas formas de culturas populares com suas idiossincrasias acabaram por ser massificadas. E
para ampliar ainda mais o quadro apocalíptico, temos a pornografia que, para Pasolini, era uma
degradação, uma forma de desvalorização e comercialização do corpo. Se o moralismo exacerbado
é um entrave, a superexposição não é menos problemática.
Diante da visão do homem de plástico, da aparente desvalorização do humano e defronte
à cultura do descartável, o poeta-cineasta anuncia o aparecimento daquilo que ele denominou de
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“O vazio de poder448”, que nada mais é que assimilação total dos ideais burgueses por parte das
classes populares, que sempre resistiram e cultivaram uma espécie de cultura própria. “Eu vi com
meus sentidos o comportamento imposto pelo poder do consumo de remodelar e deformar a
consciência do povo italiano, até uma irreversível degradação449”. Na mesma linha de pensamento,
José Luís Jobim lendo J. G. Merquior e se referindo ao kitsch, faz a seguinte observação,
A cultura de massa seria um derivado da invasão, pela sociedade de consumo, do
terreno da arte e dos objetos culturais, gerando gosto kitsch. Essa invasão geraria
distorções, tanto no caso da “alta cultura” quanto no da arte “popular”, que
deixaria de ser autenticamente popular. Para ele, na contemporaneidade, a alta
cultura, em função de seu estetismo radical, estaria mais vulnerável à kitschização,
mas a raiz do que há de intrinsecamente aristocrático na tradição moderna é o
compromisso da arte com a crítica da cultura. Por oposição à “cultura autêntica”,
a “cultura de massa” aspiraria apenas a entreter, e os objetos produzidos por ela
seriam tão consumidos quanto os bens materiais mais utilitários450.
Sobre a crise da cultura, Pasolini afirma: “a cultura não é o que nos protege da barbárie e
deve ser protegida contra ela, ela é o próprio meio onde prosperam as formas inteligentes da nova
barbárie451”. Aqui, temos o cerne fundamental do pensamento pasoliniano com relação à cultura,
imprescindível para entendermos o seu desespero com relação à “crise”. É na própria cultura que
se instaura a barbárie e é por meio da cultura que a barbárie, ou seja, aquilo que ele chamou de
neofascismo se propaga provocando o “Genocídio Cultural”452.
ocupada, tendo a cidade de Saló como sede do partido Fascista. Saló se tornou Estado Fantoche da Alemanha nazista,
enquanto esta tentava reestabelecer o governo de Benito Mussolini que havia caído. E é nessa cidade conhecida como
república de Saló que a trama pasoliniana se desenrola.
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como “os senhores”, e representados por: (um presidente de banco, que simboliza o poder
econômico, um bispo, representando a igreja, um duque, que reponde pela nobreza e por fim, um
juiz, como o poder judicial). Os quatro são responsáveis por sequestrar, prender e torturar um
grupo de jovens física e sexualmente.
Oito rapazes e oito moças (as vítimas) são mantidas em um castelo afastado na região de
Saló. Lá, também se encontram algumas senhoras libertinas, responsáveis por narrar suas
experiências sexuais e por último, temos os rapazes que compõem a milícia. Enquanto as velhas
vão contado suas histórias pessoais, os senhores satisfazem seus desejos sádicos. Como no inferno
de Dante, o filme é dividido em círculos. O Círculo das Manias, onde os ditos Senhores saciam
seus desejos sexuais; o Círculo das Fezes, para os desejos escatológicos, sendo as vítimas, obrigadas
a ingerir fezes humanas. Este círculo, termina “literalmente” com um banquete de merda. Onde
todos, incluindo os senhores participam; por último, temos o Círculo de Sangue, no qual as vítimas
que não foram aprovadas nos exames sádicos são punidas com mutilações, torturas físicas, estupros
e para alguns a morte. Os inocentes aparecem sendo massacrados e arrancados à sua inocência.
Na análise que Merquior faz da aura e da alegoria benjaminianas ele diz que: “enquanto o
estilo da aura mostra o rosto amigo do mundo (ideal), a face humanizada das coisas, a escrita
alegórica expõe a cena da desumanização”455. Ora, é a desumanização que Pasolini vislumbra numa
Itália neofascista que o desespera. Depois da tortura, já no fim do filme, vemos a dança sádica de
dois jovens, pertencentes à milícia responsável pela segurança dos Senhores e pela ordem durante
os experimentos, fecha o espetáculo do horror fascista que o cineasta anuncia. É a vitória do terror
e constatação definitiva do apocalipse. Saló, parece dizer muito sobre a forma como o diretor via
as questões sócio-políticas na Itália, em meados dos anos 70. Este filme seria supostamente o
primeiro de uma possível “trilogia da morte”, em oposição à “trilogia da vida” do próprio diretor.
Pasolini escreveu um artigo, no qual renega a primeira e única trilogia que de fato chegou a filmar,
já que foi assassinado poucos meses depois de terminado Saló.
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Resumo: Este artigo traz reflexões acerca da representação da memória na instalação coletiva
Vidro de Cheiro do projeto Diary of Smells da artista brasileira Josely Carvalho, em que a participação
de moradores de uma região foi essencial para a sua realização. A obra esteve presente na exposição
URU-KU as disciplinas esquecidas, proveniente da 2ª edição do Programa de Residência Artística do
município de Viana/ES em que a artista foi convidada a participar. Abrindo diálogos entre sua
experiência pessoal e as experiências destes indivíduos, na residência, que continha a pergunta
“Mas, que arte cabe numa cidade?” norteando as ações, a artista interveio com outra: “Mas que
cheiros trazem a memória de uma cidade?”. Evocando memórias individuais e coletivas em
experiências olfativas foram produzidas obras que culminaram na exposição em 2011. Para a
realização da instalação Vidro de Cheiro, 300 frascos de vidros vazios, semelhantes aos de perfume,
foram distribuídos a moradores para que os mesmos inserissem elementos, como registros,
pertinentes às lembranças ligadas aos cheiros, ou seja, a memória olfativa de cada um. Vários foram
os elementos inseridos dentro dos frascos de perfume, transformando-os em verdadeiros
receptáculos de memórias na região. Neste artigo, as reflexões sobre a representação das memórias
partiram da seguinte pergunta: A catalogação desses cheiros representam os cheiros de Viana e suas
memórias? Logo, são realizados diálogos com autores como Rosalyn Deustche (2008), Claire
Bishop (2008) e exemplos presentes em seus textos para discutir sobre a questão de legitimação de
um grupo de pessoas como “povo”. A partir das pontes criadas entre os exemplos, foram traçadas
conclusões sobre a maneira em que a instalação deve ser analisada, distanciando-se de um olhar
reducionista de “representou ou não” as memórias. As considerações realizadas, neste artigo, acerca
de Vidro de Cheiro, buscam ressaltar a potencialidade da instalação pela mesma abordar a questão
da memória de um lugar sob um aspecto antagônico às “memórias oficiais”, estas que são
comumente “celebradas” nas cidades, representadas por bustos de bronze em praça, por exemplo,
ou por datas comemorativas. Portanto, é apontado que Vidro de Cheiro não encerra a questão da
representação do lugar, mas abre um espaço para as memórias pessoais, individuais, dando “voz”
a várias memórias olfativas de habitantes, participantes e co-autores de um município.
Palavras-chave: Vidro de Cheiro; Memória; Participação; Olfato; Representação.
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empíricos (voz, música, imagem, textos, etc)”456. No dicionário, podemos encontrar diferentes
significados para a memória, como recordação, lembrança, bem como a capacidade de arquivar
impressões e saberes adquiridos e retomá-los pela “ação da vontade”457.
Além de suas diversas definições, encontramos o que chamamos de memória individual e
coletiva. A memória individual é armazenada por uma pessoa e diz respeito às suas experiências,
sendo que esta possui, em sua formação, aspectos da memória do meio social em que a pessoa está
inserida, ou seja, do grupo ao qual está associada. Já a memória coletiva, abordada por Maurice
Halbwachs, é composta por aspectos e episódios considerados importantes por grupos
dominantes, sendo então armazenados, arquivados, como memória oficial de uma sociedade458.
Neste sentido,
A priori, a memória parece ser um fenômeno individual, algo relativamente
íntimo, próprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, já havia
sublinhado que a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um
fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído
coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes459.
Assim como existem diversas definições para memória, também há muitas formas de se
trabalhar com ela, sendo as mais comuns a história oral, o método biográfico e a entrevista462. Sobre
esses modos de realizar o registro das memórias, Seemann explana que “o registro desses relatos
456 VON SIMSON, O. R. Memória, cultura e poder na sociedade do esquecimento. Revista acadêmica Augusto Guzzo. São
Paulo, n. 6, p. 14-18, 2003. p. 14.
457 XIMENES, Sergio. Dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Ediouro, 2001. p. 577.
458 VON SIMSON, Memória, cultura e poder na sociedade do esquecimento, p.14.
459 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992. p.
201.
460 ________, Memória e identidade social, p. 201-202.
461 ________, Memória e identidade social, p. 202.
462 SEEMANN, Jörn. O espaço da memória e a memória do espaço: Algumas reflexões sobre a visão espacial nas pesquisas sociais e
históricas. Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral, v.4/5, p.43-53, 2002, p. 46.
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não se deve restringir ao ambiente aconchegante da sala de estar, porque muitas lembranças
encontram-se ‘lá fora’, na rua, [...] na vizinhança, no bairro, afinal, no espaço”463.
Em seu artigo O espaço da memória e a memória do espaço: algumas reflexões sobre a visão espacial nas
pesquisas sociais e históricas, Seemann464comenta ainda que, mesmo com um número notável de
publicações acerca da memória, a sua conexão com o espaço ainda não é um assunto que receba
atenção pelas ciências humanas. Sobre esta relação, o autor aponta ainda que a geografia pode
contribuir no estudo sobre espaço e memória a partir de duas abordagens, sendo uma delas a
utilização de mapas para recordar situações passadas.
Focando seu estudo na questão da representação do espaço através de mapas, buscando
fomentar o emprego dos mapas em pesquisas, o autor traz um exemplo de uma descrição do Cariri,
Ceará, feita por Irineu Pinheiro, que contém várias informações que descrevem o comércio do
centro de Crato, tais como: nomes de ruas e suas localizações, tipos de comércios, bem como a
transformação da configuração espacial. O autor assemelha essa descrição “à leitura monótona de
uma tabela extensa”465 devido às várias informações que apenas descrevem o comércio do centro
de Crato. Para ele, a transferência desse espaço descrito para um formato de planta de cidade pode
torná-lo mais “concreto e imaginável”. Ao mostrar, mais a frente, uma parte da planta desta região,
com nomes de ruas, antigas e novas, o autor deseja apontar como essa espacialização “(e, ao mesmo
tempo, visualização) é uma ajuda para a memória, tanto para quem não conhece o lugar, quanto
para os habitantes”466 . Segundo o autor, no primeiro caso, essa espacialização
[...] ajuda a revelar uma determinada distribuição espacial do comércio, com
todos os odores (rapadura, pão etc.) e fedores (couros de boi, peles de cabra etc.).
No segundo caso, essa planta elaborada é apenas um ponto de partida ou “mapa
mudo” para outras plantas e um estímulo tremendo para a memória, porque
permite acrescentar informações que jamais serão registradas nos mapas
oficiais.467
Segundo Harley, citado por Seemann, os “mapas são uma rica fonte de história pessoal, e
eles dão um conjunto de coordenadas para o mapa da memória”468. Ao ler um mapa, o leitor acaba
por trazer um significado a esta leitura. Como exemplo disto, Seemann traz em seu artigo uma carta
topográfica de uma região da Alemanha, no qual, ao realizar uma leitura e descrever pontos, regiões,
com base em suas experiências pessoais, como localização da casa dos pais e da avó, os caminhos
percorridos durante a infância, a localização da igreja, do dique, seus trajetos, visa demonstrar como
um mapa é um meio capaz de acentuar a percepção e suscitar a memória espacial do indivíduo.
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Como o mesmo declara, “se analisasse a folha inteira da carta topográfica, provavelmente escreveria
uma biografia espacial completa da minha infância”469.
Diante dessas considerações sobre a memória, podemos concordar que esta, ainda que “seja
basicamente um processo interno, a sua projeção não se realiza em um vazio”, ou seja, “a memória
precisa de espaço para ser ativada e estimulada”470. E que tanto locais em que acontecem eventos,
episódios históricos ou relacionados ao cotidiano, bem como “representações visuais (mapas ou
fotos) e não visuais (literatura, música) podem servir como possíveis referenciais espaciais para a
memória.471
Ao ser especializada em mapa, som, objetos, etc., a memória, esta ainda internalizada no
indivíduo, se relaciona a uma referência externa, esta última possuindo grande importância para o
indivíduo possuidor daquela memória.
Pensemos, então, em algum cheiro que marcou momentos, de tristezas, alegrias, de algum
alimento, terra, planta, roupa, borracha, fumaça, esgoto, plástico de brinquedo novo, flor, roupa
lavada, suor, enfim, qualquer um. Um cheiro marcado na memória olfativa, íntima, individual, e,
também, até certo ponto, coletiva. Imaginemos essa memória olfativa sendo especializada em
elementos, objetos, catalogada, abrigada em outro suporte que não no nosso interior.
Na instalação coletiva Vidro de Cheiro da artista brasileira Josely Carvalho, memórias
olfativas de habitantes de um município do Espírito Santo foram especializadas em objetos que se
tornaram referenciais das mesmas.
Essas memórias das pessoas dessa região, que não são monumentalizadas, não são
representadas por bustos em praças, mas são representadas por objetos e por cheiros dentro de
uma exposição de arte ganham voz e são externalizadas no espaço, como consequência do diálogo
com a poética e proposição de Josely em suas ações desenvolvidas com moradores do município
de Viana, em 2010, para a exposição URU-KU as disciplinas esquecidas.
Josely Carvalho, artista brasileira que possui ateliê no Rio de Janeiro e Nova York, traz em
suas obras questões sociais, culturais, políticas e históricas. Sua produção é perpassada pela ideia
de abrigo e, atualmente, a memória olfativa tem sido explorada intensamente.
Na 2ª edição do Programa de residência artística, promovido pela Secretaria de Cultura de
Viana/ES, e que buscou “pensar a formação e o desenvolvimento da cidade por meio de seu
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Então, Josely propõe a catalogação das memórias olfativas de moradores, que se tornam
participantes, como resposta a pergunta colocada por ela mesma: “Mas onde guardar os cheiros
que desvendam as memórias de Viana?475”.
Foram então disponibilizados 300 frascos de vidros, semelhantes aos de perfumes, porém
vazios, aos moradores para que os mesmos fizessem registros pertinentes às lembranças ligadas aos
aromas, cheiros, da vida de cada um. Vários foram os elementos inseridos dentro dos frascos de
perfume.
esquecidas. Viana: Prefeitura Municipal de Viana, 2011. 20 p. Catálogo de exposição. Disponível em:
https://arteepatrimonio.files.wordpress.com/2011/08/uruku-catalogo-digital.pdf. Acesso em 08 jul. 2015. p. 8.
475 CARVALHO, A memória de uma cidade?, p. 19.
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Gaveta de fichário com fichas preenchidas pelos participantes, 2011. Foto: Josely Carvalho.
Os vidros com a memória olfativa de cada sujeito são expostos em uma instalação na
Galeria de Arte Casarão, em Viana, Espírito Santo. O ato de espacializá-las como exemplares de
um arquivo transforma os frascos em verdadeiros receptáculos de memória. Na reunião de todos
os frascos surge um espaço de ativação que, assim como um mapa, pode servir como referência
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para uma memória. Logo, podemos então concordar com Seemann, quando o mesmo comenta
sobre a memória necessitar de um espaço de ativação e estímulo476.
Vidro de Cheiros, 2011. Instalação coletiva: 300 vidros de perfume com elementos inseridos e frascos de
perfume disponíveis para novas inserções. Foto: Josely Carvalho.
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que preferem morar no campo ou zonas mais próximas de áreas rurais, longe da movimentação
dos grandes centros. Já outras, gostam justamente de morar no centro das cidades, mais próximas
de vias principais, estar perto de teatros, supermercados, movimentação de bares, ruas. Portanto, é
errôneo presumir que o povo pode ser representado por uma identidade, ligado a uma “qualidade
de vida”, uma ideia universal.
O caso da retirada do Tilted arc, do artista Richard Serra, do espaço público pode servir de
exemplo para demonstrar a pluralidade da sociedade, devido as várias opiniões acerca da
permanência e retirada do trabalho. Por causar “ruído” no espaço, como barreira que força a
mudança do transeunte no seu caminhar para atravessar a praça, o trabalho fora retirado abaixo de
uma ideia de acessibilidade democrática. A sua retirada, porém, mostrou como a ideia de um
“povo” fora privilegiada pautada na ideia de um direito de acesso deste “povo” ao espaço, em uma
visão rasa de democracia.
Façamos outra ponte, esta agora com o caso de Jackson Park, um parque em Greenwich
Village, de forma a pensarmos na questão da ideia de “público” sob uma visão de totalidade. O
parque fora reconstruído com verbas de um grupo chamado Amigos do Jackson Park, e esse grupo
resolveu fechar os portões do espaço durante a noite. Tal grupo é chamado pelo New York Times
como “a comunidade” e “o público”. O caso se tornou uma situação forçosa para o desalojamento
das pessoas sem moradia que permaneciam no parque municipal. A figura da pessoa sem moradia
foi transformada na figura de um intruso que abalava a ordem social. Assim como apontado por
Deusche,
Se apresenta a quien no tiene vivenda como um intruso em el espacio público, lo
cual sostiene la fantasia de las personas com vivenda de que la ciudad, y el espacio
social em general, son essencialmente uma totalidade orgânica. Se construye la
figura ideológica de la persona sin vivenda como uma imagem negativa creada
com el fin de restaurar la positividade y el orden en la vida social 478.
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primeiramente essa questão seria o exemplo de um olhar reduzido. A autora Claire Bishop, ao
comentar sobre as críticas quanto à arte socialmente colaborativa, por exemplo, aponta que:
[...] os artistas estão sendo crescentemente julgados por seus processos de
trabalho – o grau em que eles suprem bons ou maus modelos de colaboração –
e criticados por qualquer sinal de possível exploração que falhe em representar
‘completamente’ seus temas, como se isso fosse possível.479
Logo, ao dar voz a essas várias memórias através dos vários cheiros explorados, a artista trabalha
justamente contra a ideia totalizadora de uma memória representante e traz o reconhecimento deste
espaço e de sua história através da pluralidade de memórias pessoais, olfativas, dos habitantes
daquela região.
Considerações
479 BISHOP, Claire. A virada social: colaboração e seus desgostos. In. Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da
Uerj. Rio de Janeiro, n. 12, jul. 2008. p. 148.
480 MENDES, Mas, que arte cabe numa cidade?, p. 5.
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análise quanto da legitimação dos participantes como “povo”, “publico” que representa as
memórias de uma localidade.
Apontando os problemas gerados pela pergunta, o artigo teve como objetivo ressaltar que
a instalação deve ser vista sob outro aspecto e, assim, foi ressaltada a potencialidade da mesma por
destacar memórias individuais, pessoais e olfativas, ou seja, memórias não oficiais dos habitantes
da região. Portanto, a obra mencionada não encerra a representação das memórias de um lugar,
mas dá voz a várias delas e dos vários habitantes.
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Resumo: A arte comercial nos sinaliza um universo visual incessantemente disposto a repetir-se e
ressignificar-se no intuito de adquirir uma iconografia própria. Sutilmente aplicada em embalagens,
etiquetas, anúncios, artefatos, enfim, em diversas mercadorias, temos que assumir esta iconografia
típica do nosso cotidiano como um estilo visual artístico historicamente sustentável. Neste artigo
buscamos associar determinados rastros visuais, inerentes à arte comercial, ao que denominaremos
como “elogios visuais”, estimulando o constante exercício do resgate, da insistência e das
ressignificações da cultura visual do consumo.
Introdução
Dentre as obras realizadas pelo artista Andy Warhol (1928-1987) durante a década de 60
nos deparamos com uma série dedicada à marca americana de sopas enlatadas Campbell’s. Uma
possível crítica ao sistema industrial que avançava junto a chamada American Way of Life apoiada em
um certo elogio ao estilo empregado neste tipo de mercadoria:
Gostamos de pensar na industrialização como algo desprezível. Não sei
realmente o que fazer com ela. Há algo terrivelmente frágil nela. Acho que eu
481 HATJE CANTZ. Andy Warhol: the early sixties. 1. ed. Alemanha: Hatje Cantz Verlag, 2010, p. 144.
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ainda preferiria sentar sob uma árvore com uma cesta de piquenique a sentar no
pé de uma bomba de gasolina, mas placas e histórias em quadrinhos são
interessantes como temática. Há certas coisas utilizáveis, energéticas e vitais na
arte comercial.482
LICHTENSTEIN apud SYLVESTER, David. Sobre arte moderna. 1. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 251.
482
Aqui, interpretamos a arte comercial como aquela produzida junto às mercadorias e ao mercado do consumo:
483
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“Ensinam um cânon singelo e mostram como construir o requerido vocabulário com base em
formas geométricas, fáceis de lembrar e fáceis de desenhar.” (GOMBRICH, p.127, 2007)484
484 GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. 4. ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2007, p. 127.
485 SCHNEIDER, Beat; SPERBER, George Bernard.; BERTUOL, Sonali. Design – uma introdução: o design no
contexto social, cultural e econômico. 2. ed. São Paulo: Blücher, 2010. 299 p.
486 LUPTON, Ellen. J. ABC da Bauhaus, p.30.
487 MUNARI, Bruno; SANTANA, Daniel. Design e comunicação visual: contribuição para uma metodologia didática. 1.
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a expressão desta informação, donde o termo “chuva” seria representado na cor cinza, por
exemplo.
Aprofundando esta questão podemos retomar os conceitos medievais: “universais” e
“particulares”. Assim como descreve Gombrich488, substantivos comuns, como “carro”,
“cachorro” ou “flor”, referem-se a classes de coisas das quais os individuais/particulares são meros
exemplos. Diz-se o cão Lassie489 ou as Flores do Mal490, especificando uma celebridade canina e uma
obra literária, ou seja, individuais dentro de uma categoria/universal. Neste mesmo sentido,
encontramos o conceito do arquétipo que segundo Sudjïc491 refere-se a tudo aquilo que abre ou
inaugura uma determinada categoria. Projetos célebres como a luminária de mesa Anglepoise492
(figura 3) nos demonstra o surgimento de um projeto que ao longo da história é ressignificado.
Neste sentido, podemos associar o arquétipo como uma “universal” voltada para o estímulo ao
surgimento de “particulares”.
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virtude da produção de novos “particulares” dentro destas universais. Podemos citar outros
exemplos que seguiram a roupagem “visual do preto e vermelho” como o Golf GT495 lançado em
1980 e a câmera fotográfica Lomo KompaKt496 datada de 1983.
Cabe portanto verificarmos os conceitos que influem na repetição destes cânons
visuais e na perpetuação de determinados elogios visuais. Para tanto, utilizaremos um caso
específico voltado para a indústria de sucos de frutas e de laticínios. A escolha destas classes deve-
se à facilidade de coletar exemplares destes produtos assim como ao interesse desta pesquisa em
dar início a uma análise acadêmica voltada exatamente para a indústria alimentícia.
Repetições e elogios
Tudo aquilo que se repete o faz por alguma razão. Aliás, o exercício da repetição
nos remete à insistência. Quando muito visível incomoda, mas quando realizada sutilmente parece
se pulverizar como uma forma homogênea. Segundo Gombrich (1999)497, quanto mais corriqueira
for a representação de uma determinada história, tanto mais firme será a nossa convicção de que
ela deve ser sempre representada de uma determinada forma. Esta crítica parece nos inspirar a
observar o estilo de algumas mercadorias comerciais interpretadas nesta pesquisa como “arte
comercial”:
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jan. 2016.
505 CAMPONESA. Captado em: http://www.leitecamponesa.com.br/, 23 jan. 2016.
506 PIRACANJUBA. Captado em: http://www.piracanjuba.com.br/home, 23 jan. 2016.
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Seguindo uma consistência visual típica das embalagens de iogurte (figura 6), nos
deparamos com um rastro visual que insiste na representação do produto disposto em uma colher.
A forma do creme segue uma lógica espiral sendo que, em diversos casos, é circundado por uma
áurea luminosa. É de importância observarmos a participação da colher como um elemento
iconográfico imprescindível à sustentação do produto exposto na embalagem. Curiosamente, o
exemplo que nos aponta “Vigor zero calorias”, logo no início da sequencia (figura 6), representa o
cabo da colher em transparência no intuito de esboçar a leveza a que nos remete a palavra light.
Interessa-nos destacar a transição que tais conteúdos visuais exercem dentre os diferentes
tipos de indústria. Ao observarmos os casos expostos anteriormente verificamos iconografias
semelhantes que transitam entre a indústria cosmética e a alimentícia, por exemplo (figura 7):
Figura 7: Apropriações
iconográficas:
Fonte: Adaptado de
NIVEA; DANONE,
2015
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Uma iconografia diz respeito à representação de uma fórmula e parece-nos que, na arte
comercial, quanto mais flexível ou facilmente transitável for tal iconografia, mais disposta a
ressignificações esta se demonstrará. No caso da figura 7, encontramos produtos de beleza que
buscam uma inspiração em odores e sabores convidativos à associação visual entre uma embalagem
de iogurte para uma de hidratante corporal. O creme em espiral, o splash do leite, a laranja fatiada e
os pequenos frutos representados integralmente, são indícios que acumulam significados a um
mesmo tipo visual. Esta transição é autorizada também em vista do objetivo destes produtos:
cuidados com a saúde e beleza.
A arte comercial nos sinaliza um universo visual incessantemente disposto a repetir-se e
ressignificar-se no intuito de adquirir uma iconografia própria. Sutilmente aplicada em embalagens,
etiquetas, anúncios, artefatos, enfim, em diversas mercadorias, temos que assumir esta iconografia
típica do nosso cotidiano como um estilo visual artístico historicamente sustentável.
História & Olhar
Quando consumimos um produto é de praxe o realizarmos antes através do gesto visual.
Fortemente criticada como uma sugestão irreal e geralmente incompatível em relação ao produto
tangível, as imagens comerciais devem ser compreendidas como um estilo visual predisposto ao
encanto do olhar, assim como uma obra de arte.
Nada mais saudável do que resgatarmos a história por trás do afamado Rinoceronte de
Albert Dürer (1471-1528):
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Figura 9: Resquícios
iconográficos:
a) Natureza morta – Willem
Kalf , 1660; Caravaggio,
1597
b) Dobras nas roupas –
József, 1660; Caravaggio,
1660; El Greco, 1608-14
Fonte: Adaptado de WGA,
2016
512CARDOSO, Rafael. Contexto, memória, identidade: o objeto situado no tempo-espaço. In: Design para um mundo
complexo. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 45.
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513 BARTHES, Roland. Mitologias. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993, 180p.
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Resumo: Essa comunicação pretende apresentar resultados parciais de uma investigação sobre o
Grupo de Fotógrafos da Bahia, criado em Salvador, em 1978, por um grupo de fotógrafos de
diferentes gerações e estratos socioprofissionais, estimulando e reunindo larga produção
fotográfica baiana daquele período. Além de promover eventos de formação, exposições e a criação
de um catálogo chamado FotoBahia, os editores e participantes conferiam estatutos distintos à
imagem fotográfica, num delicado diálogo com os espaços discursivos do fotojornalismo, da
fotografia antropológica e da arte. Em torno dessa questão que remexia na historicidade das
acepções do índice fotográfico, o Coletivo definia convergências em torno de uma linguagem,
predominantemente interessada em variações do gênero do retrato, e em geral apartada de outras
experiências brasileiras da fotografia modernista.
Palavras-chave:
Fotografia baiana. Fotografia documental. Artes visuais. Fotojornalismo. Trabalho coletivo.
* Este texto apresenta resultados do trabalho de pesquisa de iniciação científica do projeto intitulado “Espaços
discursivos da imagem fotográfica na publicação FotoBahia”, desenvolvido no âmbito do Laboratório de Cultura Visual
e Cidades, da Universidade Federal do Vale do São Francisco, e com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado da Bahia (FAPESB).
514 FREUND, Gisele. La fotografía, expresión artística. In: ______. La fotografía como documento social. Barcelona:
Gustavo Gili, 2011; YATES, Steve (ed.). Poéticas del espacio: antología crítica sobre la fotografía. Barcelona: Gustavo
Gili, 2002; DUBOIS, Philippe. A arte é (tornou-se fotográfica)? Pequeno percurso das relações entre a arte
contemporânea e a fotografia no século XX. In: DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. 14. ed. Campinas: Papirus, 2012.
p. 251-299.
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da fotografia, qual seja, que ela não se filia à sintaxe visual tradicional dos modos de fazer imagens
que lhe antecederam, em virtude de seu caráter de índice, isto é, de marca, de signo contíguo e
fisicamente próximo ao referente. Tal como as sombras e as pegadas humanas, a feitura da imagem
fotográfica analógica se dá por contiguidade entre o signo e o referente, tendo em vista que a luz
“queima” a superfície sensível, deixando um vestígio indelével515. Por outro lado, a especificidade
dessa indexalidade torna opaco o signo fotográfico, aberto às significações conforme os espaços
discursivos em que se inscreve, na contingência da sociedade e da cultura516.
Uma fotografia, portanto, não surge necessariamente como imagem artística, científica ou
mesmo documental, mas é envolvida em espaços de discurso e de saber, de instituições e de
trajetórias sociais, que definem os sentidos que ela vem a tomar nos círculos interpretativos que
percorre. São as nuances dessas apropriações que legitimam, ainda, os usos investidos pelos
diferentes grupos sociais, como os usos memorativos da burguesia, ou os usos policiais e jurídicos
do Estado, tornando necessário que se investigue essa diversidade de sentidos, suas implicações
com o poder e seus desvios, a fim de desnaturalizar a retórica realista da imagem517.
Sucessivamente, nas sociedades modernas, a fotografia passou a ocupar posições cada vez
mais ambíguas e consideradas medianas, quais sejam, entre o labor da pintura e o automatismo dos
aparatos, entre a informação dos periódicos e os espaços expositivos consagrados, como a galeria
e o museu, entre os abrangentes projetos de documentação do fotojornalismo internacional e as
experimentações abstratas como a dos fotogramas, entre o rigor técnico dos profissionais e o
amadorismo vernacular dos usos cotidianos518. Como foi assinalado desde cedo pela crítica
especializada, talvez o que a fotografia tenha trazido, no seu encalço, tenha sido um novo conceito
de arte, pela abertura à problematização sobre a feitura das imagens, sobre sua garantia de
autenticidade diante da reprodutibilidade técnica, e sobre o lugar que tem sido destinado às
imagens, delimitando a experiência sensória e estética a partir delas519.
Neste trabalho, problematizamos determinados nuances de significações elaboradas pela
produção do Grupo de Fotógrafos da Bahia, surgido no final dos anos 1970 e atuante até meados
dos anos 1980, e que trouxe a público, com certa regularidade, exposições e publicações, sobretudo
o jornal e o catálogo FotoBahia, além de atividades formativas para seus integrantes, como estudos,
Stanford University Press, 1990; CHEVRIER, Jean-François. La fotografía entre las bellas artes y los medios de comunicación.
Barcelona: Gustavo Gili, 2007; LEBENSZTEJN, Jean-Claude. L’espace de l’art. Zig-Zag. Flammarion, Paris, 1981.
519 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ______. Magia e técnica, arte e
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discussões e traduções de textos estrangeiros. A diversidade desses integrantes, aliás, por suas
diferentes trajetórias até aquele momento, permite que coloquemos mais questões à constelação de
imagens criadas nesse trabalho coletivo, a saber: a partir de seu lugar e participação no Grupo,
como os participantes consideravam a imagem fotográfica produzida? Qual a relação com os
campos do fotojornalismo, da fotografia documental e das artes visuais, na Bahia e no Brasil? Quais
formas e temas foram valorizados e como eles se inseriam na produção que lhe antecedeu e na que
lhe era contemporânea? Qual era considerado o lugar social da fotografia e do fotógrafo, naquele
momento que foi decisivo para o final da ditadura militar no país e que, inevitavelmente, afetava a
liberdade de expressão e a produção cultural, de modo mais amplo? Através da análise das imagens
e demais documentos então produzidos, tentamos responder minimamente essas questões.
520 MONTEIRO, Charles. El campo de la fotografía y las imágenes del Brasil en los años 1970-80: entre el
fotoperiodismo y la fotografía documental. Artelogie (Online), v. 7, 2015. p. 3-4; MACHADO JR., Rubens. O inchaço
do presente: experimentalismo super-8 nos anos 1970. Filme Cultura. v. 54, p. 28-32, 2011.
521 COSTA, Helouise. Da fotografia como arte à arte como fotografia: a experiência do Museu de Arte Contemporânea
da USP na década de 1970. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 16. n.2. jul.-dez. 2008.
522 COELHO, Maria Beatriz. Imagens da Nação: brasileiros na fotodocumentação de 1940 até o final do século XX.
Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; EDUSP, 2012; MAUAD, Ana Maria.
Poses e flagrantes. Ensaios sobre história e fotografias. Rio de Janeiro: EDUFF, 2008. p. 171-193.
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sobre as culturas, e ainda o interesse do Estado ditatorial pelo mecenato, como se podia perceber
pelas políticas culturais locais Brasil afora. Ademais, a experiência das Bienais de Artes Plásticas da
Bahia, particularmente a segunda Bienal, sufocada pelo regime civil-militar, no final dos anos 1960,
e a realização das efervescentes jornadas de cinema compunham uma configuração cultural
específica.
Nesse panorama, a partir de 1978, aproximadamente, é constituído o Grupo de Fotógrafos
da Bahia, em Salvador, reunindo fotógrafos em geral de classes médias, mas de experiências
diversas, no fotojornalismo (Aristides Alves), na documentação (Euvaldo Macedo Filho, Adenor
Gondim), nas artes visuais (Mário Cravo Neto, Juarez Paraíso, Juraci Dórea, Miguel Rio Branco),
e mesmo na arquitetura (Silvio Robatto), para discussão sobre os rumos de sua produção. Alguns
dos integrantes mais fixos desse grupo, que durou até meados da década seguinte, eram Aristides
Alves, Célia Aguiar, Adenor Gondim, Isabel Gouvea, Maria Sampaio, Rino Marconi. Suas reuniões
passaram a ser regulares e o grupo cresceu com a adesão de outros fotógrafos da capital e do
interior da Bahia, amadores ou profissionais, iniciantes ou veteranos, que ou compareciam aos
encontros ou enviavam suas imagens, as quais, em seguida, passariam por uma curadoria coletiva
e comporiam exposições e a publicação do catálogo, ambos chamados de FotoBahia – nome que
passou a designar o próprio coletivo.
Questões profissionais como o reconhecimento do direito autoral e a atribuição do crédito,
sobretudo nos usos que a imprensa fazia das fotos, eram de grande importância para o Coletivo, e
eram tematizadas em seus eventos, de que foi exemplo o Seminário “Fotografia: a questão
profissional e cultural”, ocorrido em dezembro de 1981, na Escola de Belas Artes, da Universidade
Federal da Bahia. A realização do seminário nessa instituição, aliás, denota uma ampliação do
universo de alcance a partir legitimação da prática fotográfica conseguidos pelo grupo: de início, as
exposições aconteciam no foyer do Teatro Castro Alves, até que, com o passar dos anos, obteve-
se o apoio do Governo do Estado, através da Fundação Cultural do Estado da Bahia e da
Bahiatursa, empresa oficial de turismo do Estado, e da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE),
a qual garantiu tanto a presença de FotoBahia em eventos nacionais quanto a estada de fotógrafos
e estudiosos da fotografia nos eventos promovidos em Salvador.
Como fruto da produção e da sistematização realizadas nesse curto, porém significativo
período, considera-se que uma luta importante do Coletivo foi ganha: a da atribuição do crédito
das imagens. Mas, além disso, uma indagação possível é se a contribuição mais ampla desse estímulo
dado à prática fotográfica foi tê-la levado para além da encruzilhada que inicialmente se criava entre
o auge da fotografia produzida como documentação – representada, na Bahia, pela obra e pela
atuação impregnantes de Pierre Verger e de Voltaire Fraga, vindas de um passado recente – e o
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início das apropriações artísticas da fotografia, seja como suporte para outras criações que passaram
a caracterizar a arte contemporânea a partir de então, seja enquanto linguagem per se. Essa última
questão era particularmente defendida pelo fotoclubismo, e no entanto, a atuação do fotoclubismo
baiano foi restrita e pouco dialogou com o fotoclubismo de outros espaços, como o paulista, que
precedeu e contribuiu historicamente para a legitimação da fotografia pelos museus de arte523. Ou
seja, em outras palavras, se a fotografia baiana mal se definira como arte, nos espaços institucionais,
e a era de ouro do fotojornalismo nacional e internacional já chegara ao fim, que lugar ocupou
FotoBahia? Como se consideram suas imagens? Por exemplo, a opção pela revelação em preto e
branco, num período de expansão da fotografia colorida nos mais diversos suportes, repõe essa
questão formal e histórica: terá a produção publicada em FotoBahia feito parte de um interlúdio
entre a crise do fotojornalismo e as inovações criativas que vieram a fazer franco uso da cor, da
colagem, ou da própria “contaminação” por outros campos artísticos como a performance524?
O posicionamento sobre essas questões, inclusive, dividia integrantes, tanto em termos de
produção quanto de conceituação sobre a fotografia: havia os que eram chamados artistas
fotógrafos, que tanto não se dedicavam integral e exclusivamente à fotografia como a usavam para
outros fins, não estritamente fotográficos, mas sobretudo plásticos; ao passo que havia o fotógrafo
“stricto sensu”, fotojornalista, documentarista, que poderia até mesmo considerar “arte” uma
instituição elitizada, do ponto de vista sociológico. Isso tudo coloca a importância de se analisar
também a diversidade de imagens que as publicações e exposições de FotoBahia fazia circular, para
situar suas formas, dentro de margens criativas que podem ser discutidas historicamente.
523 DAMASCENO-FATH, Telma C. Memória do Fotoclubismo na Bahia. Discursos Fotográficos (Online), v. 8, p. 175-
195, 2012; COSTA, Helouise; SILVA, Renato Rodrigues da. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo: CosacNaify, 2004.
524 CHIARELLI, Tadeu. A fotografia contaminada. In: ______. Arte internacional brasileira. São Paulo: Lemos Editorial,
2002.
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Cabe observar as múltiplas utilizações, em cada página dos catálogos, além do nome do
autor, da forma do quadro, seja como corte espacial típico do enquadramento fotográfico, com
toda as possibilidades expressivas de gêneros, seja como espaço de experimentação, nem sempre
tomado de maneira respeitosa pelos fotógrafos, e chegando a outros limites, como o uso da
fotografia próximo ao da publicidade ou enquanto arquivo (Figuras 1 e 2)525.
Figuras 1 e 2: Fotos de Antonio Carlos Carvalho e Sérgio Maciel publicadas no Catálogo FotoBahia. FOTOBAHIA
79. Salvador: s; e, 1979.
Talvez o gênero mais recorrente na produção de FotoBahia seja o do retrato. E aqui, cabe
uma digressão: em poucas linhas, o retrato seria uma imagem posada, individual ou em grupo, com
um conjunto de indicadores, como definição do rosto e da expressão, gestual, vestuário e ambiente.
Seu surgimento histórico está relacionado à aristocracia europeia e às autoridades eclesiásticas
retratadas pelos artistas renascentistas, alguns dos quais deixaram autorretratos famosos, como
Dürer e Da Vinci e, posteriormente, Rembrandt526. O retrato se popularizou com a invenção da
fotografia, vindo a ganhar aspectos e usos sociais diversos, e passando, inclusive, a servir à
disciplinarização social promovida pelo Estado, especificamente pela polícia e pela justiça527.
525 CHEVRIER, Jean-François. Las aventuras de la forma cuadro en la historia de la fotografía. ______. La fotografía
entre las bellas artes y los medios de comunicación. Barcelona: Gustavo Gili, 2007.
526 Sobre o retrato na arte renascentista, cf. FERNANDES, Cássio da Silva. Aby Warburg entre a arte florentina do
retrato e um retrato de Florença na época de Lorenzo de Medici. História: Questões & Debates, Curitiba, UFPR, n. 41, p.
131-165, 2004; WARBURG, Aby. A arte do retrato e a burguesia florentina. In: ______. A renovação da Antiguidade pagã.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
527 FREUND, Gisele. La fotografía como documento social. p. 55-75. Sobre os usos da carte-de-visite, por exemplo, pelas
classes abastadas no Brasil, onde houve, inclusive, a produção de retratos de escravos, cf. MAUAD, Ana Maria. Poses e
flagrantes. Ensaios sobre fotografias e história. Rio de Janeiro: EDUFF, 2008. p. 75-92. Sobre o surgimento do uso
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Produto da sociedade capitalista, capturado pelo vórtice das transformações tecnológicas, das
demandas de mercado e das questões políticas do século XIX, o retrato fotográfico se constituiu
como prática representacional moderna que atualizou tanto as referências da cultura ocidental, em
sua atenção à face como espaço da expressão psicológica, do eu e da presença, quanto a construção
da individualidade e da imagem pública reconhecida do sujeito.
Mas o retrato elaborado pelos fotógrafos baianos já apresenta traços de uma reinvenção
tributária do fotojornalismo, que o havia deslocado dos estúdios comerciais e das poses
convencionalizadas para as cenas cotidianas, com a possibilidade do flagrante, franqueada pela
tecnologia. Isso é possível perceber, nos catálogos de FotoBahia, pelos sujeitos clicados (moradores
das periferias, camponeses, pescadores, mães de santo, capoeiristas, crianças) e nos espaços
fotografados (rua, meio rural, palafitas, margem de rio, beira-mar), que compõem, em muitos casos,
cenas públicas, cotidianas, do trabalho, da política, do esporte, da festa, numa abertura que era
buscada pela fotografia, em toda a sua história no século XX, mas que, no Brasil, havia sido
cerceada pela censura e pelas questões políticas impostas pelo regime inaugurado nos anos 1960
(Figura 3). A fotografia participava de um movimento discreto, não necessariamente organizado,
de retomada da investigação visual e poética sobre a cultura e a sociedade brasileiras, que, além de
se afastarem de determinados temas de enaltecimento do progresso contrariava a abordagem
identitária, sobretudo a de Nação, então capturada pelas forças autoritárias e desgastada para a
produção cultural, nos anos 1970.
Figura 3: Foto de Isabel Gouvea publicada no Catálogo FotoBahia. FOTOBAHIA 80. Salvador: s; e, 1980.
Figura 4: Foto de Bauer Sá publicada no Catálogo FotoBahia. FOTOBAHIA 83. Salvador: s; e, 1984.
disciplinador do retrato individual, ver TAGG, John. El peso de la representación. Barcelona: Gustavo Gili, 2005. p. 51-
87.
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Por que um gênero consagrado pela história da arte, depois reinventado pelo
fotojornalismo, era retomado por uma publicação de proposta abrangente que fazia usos
diversificados da forma quadro? Talvez pelas distintas formas de se conceber como um retrato
poderia atender às demandas expressivas dos diferentes fotógrafos. Uma dessas formas estava
traduzida num dos textos de abertura de um dos catálogos, de autoria da jornalista Symona
Gropper, que se refere à fotografia como “um retrato sem retoque”, para narrar a história da
fotografia baiana até aquele momento. Ela toma como chave de leitura uma das premissas do
fotojornalismo que o diferenciou do pictorialismo do final do século XIX e fundou o imaginário
de seu compromisso com o realismo da imagem: a suposta espontaneidade fenomenológica da
inscrição da imagem na câmera. Assim compreendida, a metáfora do retrato fará, ainda, com que
a fotografia seja encarada como forma de denúncia social – “um trabalho que denuncie as sub-
condições de vida do povo brasileiro e, particularmente, do povo da Bahia” 528. Em que pese a
tentativa de aplicar essa leitura ao trabalho do Coletivo, nem a premissa realista nem a inclinação
engajada são seguidas por todos os participantes e por seu modo de tratar o retrato, muitos dos
quais interessados na metalinguagem e em aproximações com a performance (Figuras 4, 5 e 6).
Figura 5: Foto de Tomás Neto publicada no Catálogo FotoBahia. FOTOBAHIA 1983. Salvador: s; e, 1983.
Figura 4: Foto de Rino Marconi publicada no Catálogo FotoBahia. FOTOBAHIA 1983. Salvador: s; e, 1983.
O que a crítica pouco percebeu é que essa concepção de retrato começava a escavar
possibilidades mais amplas de criação fotográfica, que logo escapariam às definições do
fotojornalismo e da documentação e explodiriam na arte contemporânea. Cabe à pesquisa futura
investigar esse trânsito criativo, dentro do Coletivo, a fim de situar como a própria definição poética
do que era considerado arte estava se transformando e como a fotografia participava disso.
GROPPER, Symona. Um retrato sem retoque. In: A fotografia na Bahia (apesar das perdas, um retrato nítido de
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No que diz respeito à exposição no Palais des Beaux-Arts, não havendo intervenção do
governo dos Países Baixos, o envio de obras de arte ficou a cargo dos próprios artistas. A vantagem
é que, na Holanda novecentista, as associações de artistas, como o Pulchri Studio em Haia ou a
associação Arti et Amicitae em Amsterdã, já desempenhavam um importante papel na promoção
de artistas e na organização de exposições. Por isso, formou-se uma comissão de membros dessas
duas instituições para organizar a participação holandesa
Assim, em dezembro de 1888, seis meses antes do início do evento, a comissão convida os
artistas a enviarem suas melhores obras e a lhes “dedicarem um cuidado especial”. O convite foi
feito em uma carta impressa assinada pelos membros das comissões responsáveis pelas diferentes
categorias. No caso da seção de pintura, constam os artistas Adolphe Artz, August Allebé, Jan van
Essen, Greive Jr., Jacob Maris, Willy Martens, Jan Maschhaupt, Hendrik Mesdag e Willem Roelofs.
Assim, a comissão era formada por pintores que compartilhavam algo mais do que a
nacionalidade: o gosto pela observação da realidade, pelas cenas banais e pelo quotidiano. Mas mesmo
com essa característica em comum e embora quatro desses nove pintores fossem considerados
parte da Escola de Haia (Artz, Maris, Mesdag e Roelofs), não se tratava de um grupo homogêneo
de artistas, nem no que diz respeito a suas produções e nem quanto às cidades em que atuavam530.
Na verdade, cada artista representava bem alguns dos diferentes tipos de pintura praticados nos
Países Baixos, inclusive no interior da denominação “Escola de Haia”. A comissão era formada
por uma metade de artistas residentes em Haia, uma outra em Amsterdã e o “delegado em Paris”,
Willy Martens.
O presidente da comissão, Adolphe Artz (1837-1890) era mais jovem que Roelofs e
Mesdag, e um grande admirador da obra de Israëls. Morando em Haia, era um dos pintores que se
interessavam em pintar a vida dos pescadores em Scheveningen e Katwijk. Em 1889, sua
participação em Paris consistiu em quatro cenas de gênero (três óleos e uma aquarela), incluindo a
tela Le départ de la flotte, que recebeu certa atenção da crítica. Os outros três pintores da Escola de
Haia também moravam, de fato, na mesma cidade em dezembro de 1888, inclusive o próprio
Roelofs, que não estava mais em Bruxelas. Hendrik Willem Mesdag (1831-1915) fora aluno de
Roelofs na década de 1860 em Bruxelas e se tornara, posteriormente, reputado por suas marinas,
pintadas sobretudo em Scheveningen. E foram justamente três quadros deste tipo que ele enviou
a Paris. Jacob Maris (1837-1899), por sua vez, era da mesma idade de Artz e transitava entre a
530Tanto o endereço dos pintores quanto as obras enviadas se encontram em uma pasta referente à Exposição
Universal de 1889 do Arquivo Municipal de Haia, em fichas de envio sobre as quais trataremos em detalhe mais adiante.
Arquivo Municipal de Haia. Wereldtentoonstelling te Parijs in 1889, 1888 en 1889. In: Schilderkundig Genootschap Pulchri
Studio. Arquivo 0059-01, pasta 138.
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paisagem e as cenas de gênero, fazendo inclusive alguns retratos, mas sua exposição no Palais des
Beaux-Arts foi apenas de paisagens. Entre esses quatro pintores, Roelofs era, portanto, não somente
o pintor mais velho e que fazia parte da primeira geração da Escola de Haia, como também o único
que se especializara em paisagens do interior holandês e na pintura de animais.
Dos quatro pintores de Amsterdã, August Allebé (1838-1927) era o mais velho e
provavelmente o mais influente: não apenas ele era diretor da Academia Real de Belas Artes em
Amsterdã desde 1880, como havia sido professor de diversos artistas a participarem da Exposição
Universal, inclusive de nomes importantes como Hendrik Breitner, Bastiaan Tholen e do próprio
representante da comissão em Paris, Willy Martens. Diferentemente dos pintores de Haia, sua
pintura se voltava não tanto para a vida no campo, mas sim para a vida na cidade e, principalmente,
para a produção de retratos. Ao Campo de Marte em 1889, no entanto, não enviou nenhum quadro.
Já Johan Conrad Greive (1852-1891) e Jan van Essen (1854-1936) compartilhavam com ele o fato
de terem sido alunos de Petrus Franciscus Greive, mas se dedicavam a outros gêneros da pintura.
No caso de Johan Greive, este gênero era a paisagem e ela diferenciava-se da praticada pelos
pintores da Escola de Haia, em primeiro lugar pela escolha dos motivos urbanos e em segundo
pelo seu tratamento descritivo e detalhista. Na Exposição Universal, seus dois quadros enviados
foram uma cena portuária na ilha de Texel e a Westerkerk em Amsterdã. Jan van Essen, por sua
vez, embora em sua carreira tenha feito algumas cenas de gênero e algumas paisagens, era
conhecido acima de tudo por suas pinturas de animais, que são exatamente o que ele pinta para a
exposição de Paris (um leão e um marabu). O outro membro de Amsterdã, Jan Hendrik
Masschaupt (1841-1903), é aquele sobre quem as informações são mais escassas, não havendo
bibliografia além do dicionário de Scheen e com quase nenhuma obra em museus abertos ao
público. Sua participação em Paris também parece ter se limitado à comissão, uma vez que seu
nome não consta entre os envios da Holanda.
O delegado em Paris, Willy Martens (1856-1927), por fim, era o membro da comissão de
pintores cujo percurso mais destoava dos outros: nascido na Indonésia de pais holandeses, foi
aluno inicialmente de Allebé em Amsterdã e se fixou posteriormente em Paris, onde foi aluno de
Fernand Cormon e Léon Bonnat. Na exposição de 1889, além de expor dois retratos e duas cenas
de gênero, ele se encarregou da decoração da seção holandesa no Palais des industries diverses.
A etapa da submissão das obras de arte pode ser reconstituída através de documentos que
se encontram no Arquivo Municipal de Haia e consistem em fichas de envio preenchidas por cada
artista com os títulos e preços das obras enviadas. Vistos em conjunto, estes documentos mostram
que o grupo de organizadores que descrevemos resumia bem a demografia da pintura neerlandesa
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no Palais des Beaux-Arts. Isto é, a maior parte dos pintores era proveniente de Haia e Amsterdã e
seus envios, normalmente de dois a quatro quadros, eram principalmente (nesta ordem) de
paisagens, cenas de gênero, retratos e representações de animais. Não há entre os títulos das telas
submetidas quase nada que faça referência às grandes narrativas da história, da religião ou da
literatura. Das mais de cento e setenta pinturas a óleo, há apenas três exceções a isto: o quadro
Bélisaire de Louis Charles Bombled e os quadros Une leçon du Talmud e Talmud et Midrash de Édouard
Frankfort. E no caso de Frankfort, na verdade, é mais provável que se trate de cenas de gênero de
cunho religioso do que de narrativas religiosas de fato.
De maneira geral, os preços que se mantinham em uma média eram os da maior parte dos
pintores mais estabelecidos em suas carreiras, como Blommers, pedindo 6 mil francos pelo quadro
Bon voyage!, ou Paul Constantin Gabriël pedindo o mesmo preço por dois de seus quadros, ou
Roelofs, pedindo o equivalente em florins por Après-midi en Hollande. Outros pintores da Escola de
Haia, no entanto, expuseram quadros cujos preços ultrapassaram um pouco essa margem. É o caso,
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por exemplo, de Mauve, com um quadro 6500 francos, e dos irmãos Jacob e Willem Maris,
respectivamente com quadros de 9 mil e 7500 francos.
Os preços com maior diferença eram os pedidos por pintores com maior fama e inserção
no mercado internacional. O próprio ex-aluno de Roelofs, Mesdag, pedia o dobro do preço de
Après-midi em duas de suas marinas. Mas os valores mais altos foram definitivamente os de Hubert
Vos e de Josef Israëls. Vos pedia 20 mil francos por Au réfectoire de l’Hospice des vieillards, à Bruxelles
e Isräels pedia 35 mil por Les travailleurs de la mer, 30 mil por Paysans à table e 25 mil por Enfant qui
dort.
Todos esses números nos ajudam a comparar os valores de mercado entre os artistas
holandeses, mas, nos dias de hoje, talvez não tenham em nós o mesmo impacto que tinham na
época. Diante dos grandes valores do mercado atual, talvez não percebamos tão facilmente a que
ponto estes quadros eram valorizados. Que o leitor nos permita, então, recorrer à literatura para
tentarmos entender a dimensão desses números. Em Bel-Ami, de Maupassant531 (cuja história, por
sinal, é ambientada nos anos 1880), há um episódio muito marcante em que o chefe do personagem
Georges Duroy se torna multimilionário e compra um Jesus andando sobre as ondas de um pintor
eslavo, por 500 mil francos, expondo-o em um grande evento. O preço é, realmente, muito maior
até mesmo que o de Les travailleurs de la mer e é notável como, de um homem moderadamente rico
e de colecionador de paisagens dos pintores de Barbizon, ele se torna um multimilionário que
prefere o quadro religioso e caro do mestre eslavo. Ainda assim, a maior parte dos quadros da seção
neerlandesa na Exposição de 1889 está bem distante do salário inicial de jornalista do próprio
Georges Duroy, de quinhentos francos por mês. E o que não diria então a heroína de Le journal
d’une femme de chambre532, de Octave Mirbeau, com seu salário de cem francos?
Os preços nas fichas de envio de obras de arte são apenas uma maneira incompleta de
analisar a seção holandesa. As fichas sequer dão certeza sobre o que foi o conjunto desta exposição,
pois, além de não virem acompanhadas de descrições ou imagens das obras de arte, suas
informações muitas vezes estão em conflito com as dos catálogos. Alguns pintores e obras
presentes nas fichas não figuram nos catálogos e vice-versa. Com o desenvolvimento futuro deste
estudo, o que realmente ajudará a reconstruir este cenário será a busca por outros quadros presentes
nos catálogos, de forma a se poder encontrar aqueles que mais comunicam com as três telas de
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Roelofs. Enquanto isto não é possível, algumas reproduções e as críticas à seção holandesa nos
ajudam a imaginar o que foi exposto.
Comecemos então pela crítica publicada por Maurice Hamel na Gazette des Beaux-Arts,
que descreve com muita sensibilidade e sabedoria a atmosfera pintada pelos holandeses.
Reconhecendo as intenções despretensiosas e sinceras dessa pintura, o texto de Hamel, assim como
todos os outros publicados na ocasião, deixa transparecer um pouco o saudosismo em relação aos
artistas do século XVII. A pintura na seção holandesa é vista como parte de uma reconciliação
atualizada com a tradição, mas que não chega ao mesmo patamar que a pintura da idade do ouro
holandesa. Seu artigo se inicia da seguinte forma:
Somos acolhidos nas salas holandesas por uma impressão de calma, de certeza e de boa
intenção; lá se respira o calor mole, igual e contínuo dos grandes fogões de faiança que
ronronam nos interiores repletos de bem-estar. Nenhum barulho, nenhuma inquietude
nem tons ambiciosos. Um grande artista como Israëls, espíritos delicados como os Maris,
Bisschop, Henkes recuperaram a tradição do realismo expressivo rompida em outro
momento, e a acomodam sem brusquidão ao gosto do presente. Mais restrita que outrora
às sensações doces, afetuosas e melancólicas, inferior à maravilhosa variedade da arte antiga
que, abraçando toda a vida e todo o sonho, ia das concepções abstratas de Rembrandt às
sanguíneas contrastadas de Steen, a arte moderna dos Países Baixos exprime com uma
simplicidade elegante, com um charme profundo em intimidade, em um perfeito acordo
entre o ofício e o sentimento, as emoções humanas e o sentido ideal da realidade.
Atravessando a atmosfera holandesa, repercutindo no cérebro de uma raça ponderada, as
ousadias dos nossos luministas, a sinceridade radical dos nossos pintores de gênero são
acalmadas e domadas. Como o espelho das águas correntes ao refletir uma paisagem dá um
espesso tremor aos contornos e dissolve por refração o brilho direto das luzes, esse
envelope vaporoso em que todos os seres vivos banhados de cinzas macios, prateados ou
rosados, enriquece os tons, prolonga suas sonoridades e faz com poucas matérias corantes
um colorido harmonioso e potente. 533
Hamel mantém a escrita no mesmo tom e desenvolve, a partir daí, análises e elogios aos
quadros expostos por Israëls e pelos irmãos Maris ao longo de todo o texto. Israëls, sobretudo, é
visto como um mentor que guia a produção pictórica holandesa nessa direção:
Israëls, que criou esse movimento artístico nos Países Baixos, o domina até hoje; a seu
redor gravitam bons artistas, Neuhuys, Artz, que confiam no mestre para a invenção e a
interpretação dos motivos. Os Maris andando em vias paralelas se mantêm independentes;
Jacob, infinitamente delicado, descobridor de acordes elegantes e raros; Willem, mais
potente e mais caloroso; Mauve, excelente harmonista, vivo e espontâneo em suas
aquarelas, um pouco uniforme em seus quadros; Bastert, que aplica amplos tons ricos;
Roelofs, Apol, Blommers, Storm van s’Gravesande , Backuysen [sic], Tholen e Klinkenberg
de sensações tão originais; Ten Cate e Mesdag, bem conhecidos pelo público parisiense;
aquarelistas como Bosboom, Weissenbruch; aguafortistas, Zlicken, Witsen; Jean Veth um
observador por natureza, admiravelmente expressivo em dois retratos femininos: pintores
533HAMEL, Maurice. Les écoles étrangères: Hollande. In : Gazette des beaux-arts : Courrier européen de l’art et de la
curiosité, p. 352. Paris, 1º de outubro de 1889. Tradução minha.
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de gênero ou de paisagem, todos esses artistas formam uma escola sábia e bem disciplinada,
de uma sensibilidade sã e delicada, de uma prática ampla e segura. 534
Outras críticas então publicadas mantinham a mesma postura elogiosa e saudosista que
Hamel. Da mesma forma, recebem grande atenção, primeiramente, as obras de Israëls e em seguida
as de Artz, Maris e Mesdag. Louis Gonse, por exemplo, se refere a Israëls como um mestre de
influência salutar e soberana sobre a pintura holandesa. O artigo de Georges Lafenestre nos
Rapports du jury international é outro exemplo. Embora sua avaliação, de forma geral, seja positiva,
ele parece esperar mais do país de Rembrandt e não se convence totalmente nem das obras de
Israëls, cujo valor ele reconhece. De maneira bastante pertinente, Lafenestre aproxima a produção
holandesa da escandinava, mantendo esses países no mesmo item de seu artigo, introduzido da
seguinte maneira:
534 HAMEL, Maurice. Les écoles étrangères: Hollande. In : Gazette des beaux-arts : Courrier européen de l’art et de la
curiosité, p. 352. Paris, 1º de outubro de 1889. Tradução minha.
535 HAMEL, Maurice. Les écoles étrangères: Hollande. In : Gazette des beaux-arts : Courrier européen de l’art et de la
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Assim, descreve também com muita sensibilidade o “sopro comum” que corre da Holanda
à Finlândia Mais adiante, no artigo, Lafenestre cita o papel de Israëls e seus três quadros expostos
em Paris. É neste momento que ele mostra sua dúvida em relação aos rumos tomados pela pintura
holandesa, se referindo à repetição dos interiores sombrios com grupos familiares pequenos:
O sistema não é sem perigo; essa incerteza das formas, essa tristeza do colorido,
que não são absolutamente nativas do país de Hals, de Metzu, de Rembrandt,
não conduzirão muito longe os holandeses se eles se fecharem nele. É mais fácil,
é verdade, obter assim, por um conjunto de atenuações, essa fusão doce e
melancólica das tonalidades que parece ser sua principal preocupação e da qual
eles tiram, realmente, efeitos bem sucedidos. Les travailleurs de la mer, Les paysans à
table e L’enfant qui dort, do Sr. Israëls, apesar da insuficiência e monotonia dessa
técnica pastosa, se salvam pela grandeza e sinceridade do sentimento. 537
Com exceção de uma, todas as outras críticas que encontramos descrevem a seção
holandesa de maneira semelhante. Na extensa publicação de Monod sobre a Exposição de 1889538,
a crítica à seção holandesa feita por Lafenestre é reduzida a uma versão encurtada do primeiro
parágrafo que citamos anteriormente e os artistas mais importantes são citados ao final, como
exemplos. A Revue de L’Exposition Universelle de 1889, publica um texto de Henri Havard do mesmo
teor do de Lafenestre539: os pintores holandeses são bem vistos e elogiados por sua capacidade de
observação da natureza, mas não teriam tanto a ensinar quanto os mestres do século XVII.
O outro artigo, a exceção da qual falamos, está presente na publicação L’Exposition chez soi
e seu autor é anônimo. Ele é diferente dos outros em quase tudo: embora reconheça valor em
alguns artistas e quadros, sua avaliação da seção holandesa, em geral, é negativa e o tom muitas
vezes escarninho; além disso, ela é muito mais longa e, ao invés de apenas dizer o nome de alguns
artistas mais marcantes, nomeia e descreve diversos quadros específicos, incluindo os que não lhe
agradaram. Ela começa da seguinte forma:
Para as pessoas que gostam de vacas em pintura, a exposição dos Países Baixos
é muito interessante, pois entre os 174 quadros que a compõem, há bem uns
trinta povoados de bestas com chifres.
Meu Deus, eu não tenho nada contra as vacas, eu já comi e comerei
possivelmente com mais frequência do que gostaria, graças à boa lei dos
açougueiros, mas eu acho que é demais.
536 LAFENESTRE, Georges. Peintures à l’huile, peintures diverses et dessins, p. 352. In: Rapports du Jury sur l’Exposition
Universelle Internationale de 1889. Paris : Imprimerie Nationale, 1889. Tradução minha.
537 LAFENESTRE, Georges. Peintures à l’huile, peintures diverses et dessins, p. 352. In: Rapports du Jury sur l’Exposition
Dentu.
539 HAVARD, Henri. Les écoles étrangères. In: Revue de l’Exposition Universelle de 1889.Paris : Ludovic Baschet, 1889.
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Eu sei muito bem que, entre todos esses ruminantes, há alguns muito marcantes,
notavelmente as vacas no cocho do Sr. Backhuyzen van de Sande [sic], que
também tem paisagens muito belas, notavelmente também as do Sr. Anton
Mauve, igualmente paisagista de talento e morto ano passado; mas quando tiver
me virado para as do Sr. Roëlof [sic], muito bom também, eu não terei
mais sete vacas gordas como nas Santas Escrituras, terei bem mais do que
sete vacas magras para engolir em seguida.
Dirão que essas paisagens são perfeitamente corretas e pintadas a partir da
natureza. Que seja, mas qual a necessidade de copiar uma natureza que não é
pitoresca, para produzir paisagens sem cor, sem árvores, sem horizonte e às vezes
sem céu? 540
O articulista continua toda a sua análise sob este ponto de vista e a conclui dizendo não ser
inimigo dos pintores de animais, mas se queixar apenas dos que abusam deles em pintura. Em geral,
mesmo em se tratando de outras temáticas, ele acusa a seção holandesa de ser repetitiva e tediosa.
Até mesmo Israëls, unanimidade entre os outros críticos, é alvo de duras críticas de sua parte: diz
não gostar muito do pintor, que considera lúgubre e um pastiche de Rembrandt, e que “sua
influência sobre a produção artística holandesa teria sido nefasta, se não tivesse sido combatida
pela influência francesa”.
A crítica um tanto injusta do articulista anônimo talvez seja fruto do paradoxo existente
entre aquelas obras e a própria Exposição Universal. Trata-se aqui da ocasião em que se construiu
a Torre Eiffel, do evento em que milhares de cidadãos contemplavam as maravilhas do
desenvolvimento industrial. A realidade pintada por aqueles holandeses era um mundo ainda
intocado pelo frenesi urbano, um modo de vida prestes a acabar. O artista novecentista holandês
não pretende mover o espectador por grandes artifícios ou paisagens exuberantes, mas pelo relato
sincero de sua experiência na natureza. Em seu realismo, essa pintura é moderna na medida em
que seus temas favorecem a exploração do ótico e da pincelada; mas é antimoderna na medida em
que se volta para o arcaísmo do campo e suas formas atemporais. Que mal há então na repetição
de temas, nas paisagens simples e nos coloridos sutis, se a pintura da seção holandesa não tem a
intenção de revolucionar nada, mas sim de nos tocar pela poesia discreta e nostálgica da própria
realidade?
540 ANÔNIMO. L’Exposition chez soi: 1889, p. 852. Paris: L. Boulanger, 1889. Tradução minha, grifo meu.
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Apresentação
A ação em rede é uma prática comum entre diversos coletivos de artistas contemporâneos.
Recentemente um desses Coletivos com o apoio da Rede IP e do #Coletivos desenvolveu um
projeto ambicioso de democratização e acesso à poesia. Com o título de Poste Poesia o Coletivo
Camaradas541 vendeu uma ideia que conquistou adeptos por todo o país. Como o próprio nome
sugere, o Poste Poesia é uma ação de intervenção urbana onde poesias ou trecho são divulgados
por meio de lambe-lambes nos postes das cidades.
No inicio do ano de 2016, um casal de professores, sendo o esposo mestrando em História
da Arte e a esposa em Ciências Ambientais, ambos resolvem formar um Coletivo de arte ativismo.
Usando o nome de Palavras-Chave (Porto Feliz-SP) e sem saber como iniciar suas atividades, o
Coletivo buscou formar parcerias e ao ficarem sabendo da chamada pública do Coletivo Camaradas
mai. 2016.
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aderiram ao Poste Poesia e organizaram sua primeira ação de intervenção urbana na cidade onde
residem: Porto Feliz-SP. As imagens a seguir ilustram esta primeira ação:
Ilustração 1: Fotomontagem da 1ª ação do Poste Poesia do Palavras-Chave, esta imagem junto à outras 2 fotografias
foram exposta para apresentação visual no 3º Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura, que aconteceu na
UNICAMP em marco de 2016. Fonte: Arquivo pessoal.
Para reforçar ainda mais o que foi o emprego desta ação pelo Coletivo Palavras-chave, o
Historiador da Arte Fellipe Eloy, por sua vez, tendo um sítio eletrônico de domínio próprio
542
publicou uma notícia sobre a ação. Sobre o título Poste poesia "Camaradas” explorou de forma
imagética e comunicacional o evento realizado. Nessa ocasião, além de divulgar a ação para os seus
conhecidos e estudantes explica do que se trata.
O Coletivo de origem nordestina, mais precisamente da região do Cariri-CE, que
tive o prazer de conhecer em outubro de 2015, mobilizava a sociedade civil,
sobretudo, grupo de artistas e interessados em realizar ações de intervenções
urbanas em postes, nas mais diversas cidades desse nosso país. A ideia é que se
compartilhem poesias junto a comunidade ou bairro.
Pelo que entendi a poesia que se deve usar para as intervenções precisa de
liberação dos direitos autorais, algo que foi solucionado pelo Camaradas com a
criação de um banco digital, onde poetas e artistas que aderiram ao projeto
divulgam suas obras. Nesse banco os textos são acompanhados de autoria e
autorização para uso dos demais, que podem a partir de requisição incluir e editar
o documento.543
542 ALBUQUERQUE, Fellipe. Palavras-chave: Notícias- Poste poesia "Camaradas". Publicação 02/09/2016. Disponível
em: http://www.palavraschavearte.com/#!Poste-poesia-Camaradas/cd23/56b948e70cf2fd311cdb6c4e Acesso 15
jun. 2016.
543 ALBUQUERQUE. Palavras-chave: Notícias- Poste poesia "Camaradas", 2016.
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Nestes termos, podemos afirmar que o Poste Poesia é um projeto de mobilização nacional
que tem não só associada à sua técnica empregado um campo largo de discussão teórica. A prática
de colar papéis em postes da via pública inclusive é alvo de calorosas discussões entre os membros
fundadores do Coletivo Palavras-chave, afinal o “lambe-lambe” é uma transgressão artística ou
uma poluição ambiental.
Este artigo discutirá como a argumentação do historiador da arte, que defende o uso do
lambe-lambe como manifestação artística das mais modernas e contemporâneas, pois ao fazer isto
o artista está de acordo com seu tempo, pois ocupar os espaços públicos, usar os materiais
disponíveis e alcançar o espectador nos ambientes não institucionais da arte é um dos triunfos da
História da Arte pode se equiparar ou compensar os danos levantados pela tese defendida por sua
esposa. Por esta e pela perspectiva ambiental, a prática de colagem de papéis em postes ou muros
acarreta em danos ao meio ambiente, pois a arte impressa e exposta nas cidades é eliminada do
local, através da exposição à luz solar e chuvas.
O caminho que traçaremos para compreender este embate político e teórico que circunda
o casal de propositores é o de historicizar os procedimentos aplicados a partir de uma análise
empírica e teórica das ações. A princípio a discussão sobre a ação do Poste Poesia, envolve em seu
cerne além das questões ambientais várias outras, mas principalmente àquelas que se relacionam
diretamente com a mobilidade urbana, o patrimônio coletivo, o direito de expressão e manifestação
artística, a transgressão da ordem pública e vigilância policial. Parece amplamente cansativo
abordar todas estas questões em um único artigo, por conta disto tentaremos fazer um apanhado
geral destas questões para só depois focar com mais intensidade nas questões das identidades
culturais presentes no dito artivismo.
Implicações correlatas
Um posicionamento contraditório sobre a intervenção urbana decorrente do uso do lambe-
lambe é evocado por uma das mais conhecidas organizações de ativismo sócio ambiental
internacional, o Greenpeace. Segundo consta em sua página virtual a organização tem como missão
“proteger o meio ambiente, promover a paz e inspirar mudanças de atitudes que garantam um
futuro mais verde e limpo para esta e para as futuras gerações544”. A contradição se manifesta em
outra publicação do Greenpeace, onde a prática do lambe-lambe, não só é incentivada como
também ensinam com fazer e aplicar os lambe-lambes pelas cidades, sobretudo, apontando as
vantagens e desvantagens da atividade:
Como aplicar?
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Adquira uma brocha, pincel grande, rolinho de espuma de pintar parede. Valem
até essas esponjas macias de lavar louça.
Coloque o preparado de cola em garrafa pet ou balde ou pote de sorvete de 2
litros ou qualquer outro recipiente fácil de transportar. O que vale é reaproveitar
coisas que você já tenha em casa e que sejam reutilizáveis.
Aí é só botar bastante cola em todas as superfícies. No verso do papel, na
superfície onde você vai colar e, depois de aplicado, é bom passar a brocha,
rolinho ou esponja por cima do cartaz também. O cartaz fica realmente todo
lambido de cola e água. Tem que ficar bem grudadinho.
Leve sempre um pano pra umedecer com água e limpar o excesso de cola do
entorno, e eventualmente limpar o chão onde a cola respinga. Esse é um jeito
também de evitar sujeira desnecessária.545
Nesta mesma publicação o Greenpeace justifica a intervenção artística nesses moldes com a
seguinte menção: “Todo cidadão tem o direito de se manifestar e protestar livremente. É um direito
garantido pela Constituição Federal. E colar lambe-lambe é um jeito pacífico e poético de
expressão546”. Tal afirmação é um atalho para evidenciar uma característica desta organização.
Embora o Greenpeace seja uma organização internacionalmente reconhecida, boa parte de sua se deu
graças às suas ações radicais de protestos contra as Empresas e Companhias sem compromisso
com o meio ambiente e/ou desastres naturais causados pela ação humana. Um acaso recente destes
atos radicais encabeçados pelo Greenpeace desencadeou um conflito diplomático entre Brasil e
Rússia547.
Enfim, cientes de todas as complicações legais que podem resultar ou não da intervenção
urbana por meio de lambe-lambes, o Greenpeace enumera algumas possibilidades de autuação:
Sobre a ação de colar mensagens em si, as pessoas podem vir a ser
responsabilizadas por desobediência (art. 330 Código Penal), desacato (art. 331
Cód. Penal) ou resistência (art. 329 Cód. Penal), dependendo do trato com a
polícia. Em alguns casos, as pessoas também podem ser responsabilizadas por
dano (art. 163 Cód. Penal), dependendo de onde e como a mensagem for afixada.
Cada cidade tem sua própria lei para definir regras e penalidades relacionadas ao
uso de comunicações impressas aplicadas no espaço urbano, conhecidas muitas
vezes como Lei da Cidade Limpa. Em geral essas leis não abordam os casos de
manifestações de ideias sem conteúdo comercial e se aplicam apenas a
publicidade. No entanto, é sempre recomendável verificar a lei específica da sua
cidade antes de sair colando seu lambe.548
De fato, é preciso que o adepto do Poste Poesia entenda primeiro o contexto de sua cidade
para só depois se inscrever como propositor da ação em rede. Na Chamada Pública que os
____________________. Guia prático de como fazer lambe-lambes em sua cidade. Publicação-20-dez–2013. Disponível
545
em: http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Documentos/Guia-pratico-de-como-fazer-lambe-lambes-em-sua-cidade/
Acesso em 18 mai. 2016.
546 ____________________. Guia prático de como fazer lambe-lambes em sua cidade, 2013.
547 A bióloga brasileira Ana Paula Maciel ficou detida por cerca de dois meses na Rússia após participar de uma ação
do Greenpeace.
548 GREENPEACE BRASIL. Guia prático de como fazer lambe-lambes em sua cidade, 2013.
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O texto da chamada publica elaborada pelo Coletivo Camaradas deixa bem claro no seu
terceiro tópico às recomendações para comprovação da legitimidade da adesão pelos coletivos e
demais que inscreverem suas cidades na ação em rede:
3. Os Coletivos, escolas, artistas, ativistas e poetas que desejarem desenvolver o
POSTE POESIA na sua cidade/comunidade deverão preencher formulário
online
(https://docs.google.com/forms/d/1Y8Ogndm8dEhe4qmpdkjJB54nEHc50N
fkkWWAfRYf3gY/viewform) e criar mecanismos de parceria local visando a
sustentabilidade da ação para custear as despesas com cola, impressão e cópias;549
549 PÁGINA DO FACEBOOK POSTE POESIA. CHAMADA PÚBLICA - POSTE POESIA NA SUA CIDADE.
Publicado 9 de dezembro de 2015. Disponível em:
https://www.facebook.com/1405485296444993/photos/a.1411888805804642.1073741828.1405485296444993/151
9355781724610/?type=3&theater Acesso em 10 de mai. 2016
550 ___________________________________. CHAMADA PÚBLICA - POSTE POESIA NA SUA CIDADE,
2015.
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ALBUQUERQUE, Fellipe; ALBUQUERQUE, Gisele. Conflitos no espaço no Poste Poesia do Coletivo Palavras-chave. In:
551
552 ARGAN, Giulio C. História da Arte como história da cidade. 6ª ed- São Paulo: Martins Fontes, 2014.
553 ARGAN. História da Arte como história da cidade.2014, passim.
554 MESQUITA, Insurgências poéticas: arte ativista e ação colectiva. São Paulo: Ed. Annablume, 2011, passim.
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A configuração artística que nos dispomos a alcançar com o Poste Poesia é a impossibilidade de
preservar a cidade real sem obscurecer a projeção de cidade ideal, ou seja, como as intervenções
artísticas de cunho urbano contribuem ou não para o rompimento entre essas e várias outras
dualidades do contexto atual.
Por conta disto, Argan formula seus dois conceitos chaves: fatos históricos e fatos
históricos artísticos. O primeiro servindo para designar aquilo que ainda existente do antigo
pertence à história, mas que interpretamos como parte de um ciclo histórico já superado, o fato
histórico é um dado de memória. Enquanto para os fatos artísticos abordagem proposta por Argan
sugere que “as técnicas da madeira, do metal, da tecelagem, etc. também concorrem para
determinar a realidade visível da cidade, ou melhor, para visualizar os diferentes existenciais da
cidade”555 sendo assim, tudo o que encontramos na cidade, desde o quarto onde dormimos à ponte
que liga uma parte a outra corroboram para sua configuração plena.
Tais definições servem de acordo com os propósitos de Argan para alertar sobre a delicada
consequência decorrente das leituras equivocadas que certas sociedades possam fazer sobre seu
próprio patrimônio histórico. Aqueles que consideram seus objetos de arte como meros
fragmentos deslocados de uma história remota- ou mesmo recente- de forma descontextualizada,
correm o risco de se auto-induzirem à crença de que arte é apenas aquilo que está dentro do museu.
Ao seu modo e partindo de seu campo de interesse o que Argan tenta é assim como muitos dos
artivistas contemporâneos é romper as fronteiras que mistificam o universo da Arte. Em suma,
Argan vê na postura do espectador diante os fatos históricos o complicador para aceitação dos
fatos artísticos.
É neste ponto os outros autores citamos se aproximam de Argan e começam a falar numa
mesma língua. O primeiro é André Mesquita ao se referir ao Culture Jamming como a arte do cidadão,
esta modalidade de intervenção- que em alguns casos se assemelha ao lambe-lambe- “foi criada
para desafiar a publicidade que se apodera do espaço público com suas mensagens”556 distante de
ser considerado um movimento organizado como propôs seus primeiros idealizadores, partindo
para a agregação de diversas estratégias artísticas e ferramentas táticas de resistência simbólica.
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557 LAMAS, apud INSTITUTO SCHWANKE. Out. Art 2011. Joinville: MAC- Schwanke, 2011, p. 58
558 LAMAS, apud INSTITUTO SCHWANKE. Out. Art 2011, 2011, p. 58.
559 AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. Maceió: EDUFAL: UNESP, 2010. p. 07.
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565 CODATO, Marcos V. F. Poluição visual e sonora: uma relação conturbada entre meio ambiente e sociedade. In: Revista
Eletrônica em Gestão, Educação e Tecnologia Ambiental – REGET - V. 18 n. 4. Dez 2014, p. 1313.
566 __________________. Poluição visual e sonora: uma relação conturbada entre meio ambiente e Sociedade, 2014, p. 1313.
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políticas públicas que incentivem o consumo consciente, além da falta de fiscalização para a fixação
de lambe-lambe, cartazes, banners, entre outras formas de comunicação visual.
[...] crescente ampliação das áreas urbanas têm contribuído para o crescimento
de impactos ambientais negativos. No ambiente urbano, determinados aspectos
culturais como o consumo de produtos industrializados e a necessidade da água
como recurso natural vital à vida, influenciam como se apresenta o ambiente. Os
costumes e hábitos no uso da água e a produção de resíduos pelo exacerbado
consumo de bens materiais são responsáveis por parte das alterações e impactos
ambientais.567
A fixação de lambe-lambe como forma de arte, entra em contradição, pois como discutido
anteriormente é legítima a livre forma de manifestação artística, mas até que ponto essa expressão
implica no meio ambiente urbano?
Refletindo pelos aspectos que os lambe-lambes são papéis impressos, ou seja, um dos
maiores poluidores quando não reciclados, teríamos como negativa sua fixação, agora a pensar
pelos valores culturais e artísticos intrínsecos nos mesmos, passaríamos a defendê-lo como forma
de expressão.
Uma das alternativas propostas pelo Coletivo Palavras-Chave seria a da utilização de papéis
reciclados e reutilizáveis (rascunhos), e que a intervenção ocorra uma vez ao mês, sendo retirados
dos locais após alguns dias. Dessa forma a intenção de manifestação artística continuaria e os danos
seriam minimizados ou sanados com a retirada.
Segundo Carlos Alberto Mucelin e Marta Bellini568, a cultura do povo, os costumes, os
hábitos de consumo do cotidiano e a má destinação dos resíduos podem acarretar em graves
problemas ao meio ambiente. Além da poluição visual, os autores comentam que a destinação
inadequada dos resíduos pode ocasionar em impactos ambientais como a contaminação de corpos
d’água, assoreamento, enchentes.
Outro tópico importante para discussão é acerca da relação entre paisagem urbana e
poluição visual. De que forma a utilização inadequada e em exagero da fixação de lambe-lambe e
cartazes publicitários afetam a aparência das cidades?
Do ponto de vista social, a prática da arte de rua é um meio de comunicação de
grupos de jovens marginalizados da sociedade, que, sem dúvida, têm um objetivo
prático e imediato: fazer-se perceber no seu protesto e nas suas necessidades,
gritar mensagens geralmente ignoradas por aqueles a quem são dirigidas, afirmar
sua identidade seja de forma agressiva ou jocosa.569
BELLINI, M., MUCELIN, M. B. Lixo e impactos ambientais perceptíveis no ecossistema urbano. In: Sociedade & Natureza,
567
BELLINI, M., MUCELIN, M. B. Lixo e impactos ambientais perceptíveis no ecossistema urbano, 2008. p. 113.
568
PROSSER, Elisabeth S. A cidade como suporte da arte de rua em Curitiba: uma perspectiva sociológica e antropológica. Anais IV
569
Fórum de pesquisa científica em arte. Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2006. p.08.
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Sendo assim, conforme a lei as atividades que afetam a condição estética do meio ambiente,
podem ser consideradas poluição ambiental. No contexto urbano, podemos considerar como
ambientalmente incorreta a prática de fixação de papéis em postes e muros, pois danos serão
gerados a partir da sua aplicação. Agora se considerarmos como expressão artística os conceitos
também já relatados deverão ser consultados e vistos como fundamentais para seu exercício.
Considerações finais
Com isso percebe-se que o conflito socioambiental existe, e os dois lados, tanto o
ambiental, quanto o cultural e artístico, possuem argumentos com fundamentação teórica para
promover ou não as ações pretendidas. Cabe uma reflexão constante sobre o tema e um
570 ___________________. A cidade como suporte da arte de rua em Curitiba: uma perspectiva sociológica e antropológica. 2006. p.
09.
571PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA DO BRASIL. Lei 6938/81. Brasília: Casa Civil, 1981.
572 ______________________________________. Lei 6938/81, 1981.
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aprofundamento acerca dessas questões afim de um ambiente equilibrado onde as diversas formas
de manifestações sejam respeitadas.
Se recapitularmos como nossa discussão aconteceu, notaremos que a princípio partimos de
uma relação conflituosa entre membros fundadores de um Coletivo artístico sobre o uso ou não
de determinada técnica de reprodutibilidade. O que nos ajudou a compreender como a técnica em
si trás questões obscuras sobre sua efetividade como obra, o rastreamento de suas origens são
confusas, portanto, questionáveis. Alguns exemplos de ações coletivas nos ajudaram a entender
como a relação entre arte e cidade acontece e como a postura do cidadão diante os fatos históricos
artísticos influenciam o entendimento. A cidade e a vida na cidade envolvem discussões que vão
além do espaço/ambiente, novas questões envolvendo a distopia entre espaços temporais e a
globalização abre novos espaços para discussão. A questão do meio ambiente é tão importante
quanto o acesso à democratização da cultura, mas nem um nem outro deve ser protesto para que
o outro não aconteça.
Algumas das soluções para a discussão foram às propostas de reaproveitar as folhas de
papel que comumente são impressas apenas em um dos seus lados, usarem colas artesanais, expor
poesias de autores regionais e a produção de ensaios visuais das ações do Poste Poesia feitas pelo
Coletivo Palavras-chave. Em suma, o problema está em distinguir o que vale mais a pena,
democratizar o acesso à poesia ou preservar o meio ambiente construído. Logo a tarefa mais sensata
será a de após certo tempo remover o que já foi visto e usar apenas os ensaios visuais como obra
de arte573.
Embora pareça que ao migrar uma ação coletiva para o ambiente institucionalizado das
exposições de imagens, isto não significa que ao aderir a um processo de homogeneização cultural
o Coletivo Palavras-chave esteja deixando de lado a ideia de tradições diversas do mundo. A
adequação se fez necessária para que aquilo que compreendemos como Arte Contemporânea não
dominante- que está aparentemente fora do Sistema das Artes- não seja esquecida. Se
conseguiremos ou não organizar uma exposição com os ensaios visuais pode ser irrelevante, visto
que ao menos mantemos o registro documental da ação. Se uma das recomendações da Chamada
Pública é que “4- A ação deverá ser realizada uma vez por mês e os realizadores deverão publicar
os registros fotográficos e/ou vídeos na pagina da ação no Facebook
(https://www.facebook.com/Poste-Poesia-1405485296444993/…)574”, então será no espaço
virtual que o Coletivo Palavras-chave travará seus próximos conflitos.
573 ALBUQUERQUE; ALBUQUERQUE. Conflitos no espaço no Poste Poesia do Coletivo Palavras-chave, 2016, p. 39.
574 PÁGINA DO FACEBOOK POSTE POESIA. CHAMADA PÚBLICA, 2016.
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Resumo: O artigo procura refletir os modos pelos quais a crítica de Baudelaire contribui para o
edifício da Arte Moderna, na segunda metade do século XIX. O objeto a ser analisado é a obra
Escritos Sobre Arte, que reúne quatro textos de sua produção crítica dos anos 1850 e 1860, em que,
unindo força poética e capacidade analítica, o poeta francês construirá as premissas fundantes de
uma estética moderna. Dentre os quatro textos, a exposição se concentrará em “O Pintor da Vida
Moderna”, trazendo à discussão a emergência, identificada por Baudelaire, de se valorizar a pintura
de costumes e do tempo presente. O contexto é a Paris moderna, fluída, cercada pelas inovações
tecnológicas e permeada pelas reformas de Haussmann (1852-1870), os recém-construídos
Boulevards, que são definidores de novas bases econômicas, sociais e estéticas, a iluminação das ruas,
que possibilita a boemia, a vida nos cafés, nos teatros, nos cabarés, entre outros. Há ainda outros
estímulos profícuos nos tempos de Baudelaire: os anais da guerra, as pompas e solenidades, as
figuras do militar, do dândi, da mulher, da cortesã, do bebedor de absinto, a maquiagem e a moda,
os veículos, a figura do flâneur - bem representada pelo próprio poeta - entre outros. Exposto isso,
a crítica de Baudelaire problematiza a negligência da produção artística de seu tempo que,
privilegiando uma estética passadista, “clássica”; que, “por preguiça”, inspirava-se continuamente
nos cenários tradicionais de outros séculos – “da Renascença ou da Idade Média” – deixavam de
observar a riqueza e a poesia de um cenário atual que deveria bastar-se por si só: a Vida Moderna.
A exposição enfatiza a consciência de historicidade nas reflexões visionárias baudelairianas, além
de mostrar, como prova de que suas ideias não foram ignoradas, o triunfo da arte impressionista
(ainda que, em muitos casos, postumamente), que, compreendendo o caráter da beleza atual,
imprimiram na história, como preconizou o poeta, a marca de um tempo e de uma geração - a
marca da Modernidade - consagrando-se como grandes pintores, mas também como historiadores.
Assim, identificando nas propostas de Baudelaire o embrião de um processo de ruptura histórico
com os preceitos clássicos da Academia de Belas Artes (como fez o Impressionismo, poucos anos
mais tarde) conclui-se que o poeta, ao pontuar que a modernidade artística deveria ser regida pelos
seus próprios elementos - o transitório, o efêmero, o contingente - teria não só valorizado a beleza
de seu tempo, mas sobretudo conferido aos artistas a força que os levaria a um caminho de
liberdade.
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Este trabalho procura refletir os modos pelos quais a crítica de Baudelaire contribui para o
edifício da Arte Moderna, na segunda metade do século XIX. O objeto a ser analisado é a obra
Escritos Sobre Arte, que reúne quatro textos de sua produção crítica dos anos 1850 e 1860, em que,
unindo força poética e capacidade analítica, o poeta francês construirá as premissas fundantes de
uma estética moderna.
Dentre os quatro textos, a exposição se concentrará nos textos Essência do Riso e O Pintor da
Vida Moderna, trazendo à discussão a emergência, identificada por Baudelaire, de se valorizar a
pintura de costumes e do tempo presente.
Em Escritos sobre Arte, C. Baudelaire (1821-1867) declara, com sua crítica, o que seriam as
premissas de uma arte moderna. Com aguçada visão dos signos e uma valorização da vida trivial,
do tema do presente, como “história em ação”, o crítico tecerá, por volta dos anos 1850-1860, o
mote do que se tornaria a estética modernista. Crítico dos assuntos centrados em conteúdos
históricos, religiosos e clássicos (greco-romanos), C. Baudelaire, em Escritos sobre Arte, destaca o
caricaturista como figura importante de seu tempo, por ter uma natureza mista: observador, flâneur,
filósofo, mas, sobretudo, por sua liberdade de execução. Observando o caráter comunicativo dos
desenhos, ilustrações e caricaturas, Baudelaire ressalta a capacidade que tem a caricatura de atingir
a massa de “maneira imediata” e valoriza o humor como uma forma importante de “relação crítica
entre o público e a obra” (obra como possibilitadora de identidade crítica do observador). Isso já
denota de que modo o autor busca subverter o conceito clássico de beleza, presente desde os
primórdios da história da arte, para a valorização de um outro tempo: o tempo presente.
Em seu primeiro capítulo, Da Essência do Riso, e, de um modo geral, do cômico nas artes
plásticas, o poeta desenvolve sua análise acerca da caricatura, tendo como pano de fundo as
especificidades do humor. Ele anuncia, ao início, o seu intuito: desenvolver um artigo (a respeito
da caricatura) “ao mesmo tempo de filósofo e de artista”.
O pensamento sobre a caricatura é, para o autor, digno de nota por mostrar-se uma
“história de fatos”, “uma imensa galeria anedótica”. Assim, afirma Baudelaire, ela merece, como
arte, “tomar lugar nos arquivos nacionais” e nos “registros biográficos do pensamento humano”;
a caricatura contém um elemento “misterioso, durável e eterno”, representando ao homem “sua
própria feiura moral e física!575”. E, a partir da observação sobre as qualidades e o valor da
caricatura, C. Baudelaire desenvolve uma reflexão a respeito do riso, ironizando, sobretudo, a má
concepção que se dele faz no pensamento cristão. Referindo-se à máxima “O sábio só ri ao tremer”,
575 BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre Arte. São Paulo: Edusp, 1991, p.26.
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ele diz que “o sábio teme o riso assim como teme os espetáculos mundanos, a concupiscência”576,
o riso implica, assim, certa “ignorância e fraqueza”. O riso e as lágrimas seriam “no paraíso”, critica
o autor, “os filhos da aflição”, mas é com as lágrimas, ele pondera, que o homem “lava” suas
aflições, assim como com o riso ele “suaviza seu coração”577. O autor relembra que o riso, dizem,
vem da ideia de superioridade - “uma perfeita ideia satânica! orgulho e aberração!”; revela-se numa
espécie de “convulsão nervosa, um espasmo involuntário […] causado pela desgraça alheia”578, de
modo que há, no fundo do pensamento daquele que ri um “certo orgulho inconsciente”. Assim,
teoriza o poeta, o riso é tão “satânico” quanto “profundamente humano”, é a “consequência da
ideia de superioridade”. E como é profundamente humano, atenta, é “essencialmente
contraditório”, quer dizer, ao mesmo tempo sinal de uma “grandeza infinita e de uma miséria
infinita”. É desse choque, diz o autor, que se libera o riso579.
Mas o que quer C. Baudelaire, com o elogio do riso, se não “autorizar” o desprendimento
das convenções e sua austeridade? Essa é a ideia que não se deve perder de vista ao tentar
compreender as motivações deste crítico. A admiração que ele declara ter pela obra do pintor
espanhol Francisco de Goya (1746-1828), ou pelos desvarios pintados por Brueghel, O Velho (c.
1525-1569), por exemplo, já consistia em uma “semente” que floresceria na mentalidade da arte
moderna.
No capítulo em questão, embora o autor faça a crítica da obra de cinco artistas que se
inserem em diferentes períodos e nações, ganha destaque especial os dois caricaturistas
“estrangeiros” supracitados; o primeiro por ter introduzido um elemento “muito raro” no cômico,
diz Baudelaire. F. Goya teria realizado o cômico “feroz”, sendo que o aspecto geral sob o qual vê
as coisas é, sobretudo, o “fantástico”580. Baudelaire refere-se à série “Os Caprichos”, como uma
obra valiosa de Goya, onde o artista teria unido “graça, jovialidade e espírito moderno”. Aprecia-o
pelo “amor ao inapreensível”, pelos “contrastes violentos” e pelas fisionomias humanas
“estranhamente animalizadas” pelas circunstâncias581. O autor chama atenção para as contorções,
para os “rostos bestiais” e as “caretas diabólicas penetradas de humanidade” - uma arte que se
mostrava ao mesmo tempo “transcendente e natural”582.
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Nas caricaturas de Goya, fica evidente uma crítica ao estado atual das coisas, a primeira
fazendo uma alusão ao clero e sua mão grande; a segunda às camadas menos privilegiadas, levando
nas costas, literalmente, o peso da “ignorância” (na figura de um burro) dos exploradores. Esse
tom, de realismo e de questões presentes, embora encobertos sob a forma da caricatura e do
“fantástico”, é o que teria suscitado a admiração de Baudelaire.
Em Brueghel, O Velho, Baudelaire diz encontrar, em suas alegorias, quase indecifráveis, “o
mistério, o diabólico e o divertido, a loucura e a alucinação”. Ele se admira: “como uma inteligência
humana pôde conter tantas diabruras e maravilhas, engendrar e descrever tantos absurdos
assustadores?”.
Sua obra seria uma “prova”, segundo o autor, “do imenso poder dos contágios e do
envenenamento pela atmosfera moral”583. Aqui o poeta reforça mais uma vez o elogio do tempo
presente, sejam os “envenenamentos”, sejam as “inspirações”, como foi em Constantin Guys
(comentado a seguir), a tônica, segundo Baudelaire, deve ser o que se está vivendo, a valorização
do presente, não mais do passado. No campo da caricatura, é a ousadia dos artistas o que fascina
Baudelaire; a ousadia de se fazer uma arte que não se submeta, necessariamente, às premissas
acadêmicas, às convenções arbitrárias da chamada “arte oficial”. Essa é a ideia libertária, basilar
para a arte moderna, que o crítico disseminará em seu tempo.
O segundo momento da crítica baudelairiana que exercerá papel fundamental na
constituição da chamada Modernidade (termo cunhado pelo próprio Baudelaire), é a obra O Pintor
da Vida Moderna. A ideia central pode ser resumida no fato de que, para o crítico, nem tudo está
em Rafael ou Racine e a necessidade de valorizar a “beleza particular, a beleza de circunstância e a
pintura de costumes”, e mesmo os chamados “artistas menores” - não apenas os clássicos - nunca
foi tão latente.
O contexto é a Paris moderna, fluída, cercada pelas inovações tecnológicas e reestetizada
pelas Reformas de Haussmann (1852-1870). Os recém-construídos Boulevards, são definidores de
novas bases econômicas, sociais e estéticas: a iluminação das ruas possibilita a boemia, a vida nos
cafés, nos teatros, nos cabarés. Há ainda outros estímulos profícuos nos tempos de Baudelaire: os
anais da guerra, as pompas e solenidades, as figuras do militar, do dândi, da mulher, da cortesã, do
bebedor de absinto, a maquiagem e a moda, os veículos, a figura do flâneur, bem representada pelo
próprio Baudelaire, entre outros.
Na visão do poeta, tal cenário deveria bastar-se por si só. A modernidade que se
testemunhava conteria elementos bastantes, sobre os quais poderiam nascer as obras, sem ter que
recorrer a elementos do passado; elementos clássicos. A modernidade artística deveria ser regida,
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pois, pelos seus próprios elementos, isto é, pelo elogio ou pelo registro do transitório, do efêmero,
do contingente. Essa imagem desembocará na ideia de que metade da arte seria composta disso -
do efêmero – mas a outra metade do imutável, do eterno. O artista moderno deveria extrair uma
coisa da outra: o eterno do transitório, “tirar da moda o que pode conter de poético no histórico”;
“extrair o eterno do transitório”584.
Baudelaire inicia sua crítica referindo-se às obras que se vê nas exposições, cujas
indumentárias e outros detalhes são os da Renascença ou da Idade Média, “por preguiça”. Critica,
assim, os passadistas, que não se desprendem dos cenários tradicionais de outros séculos
(paisagens, costumes, vestimentas, mobília); que deixavam de observar a riqueza e a poesia de um
cenário atual que deveria bastar-se por si só: a Vida Moderna. Deste modo, embora o poeta
reconheça que o passado constitua um valor monumental, ele atenta que é preciso voltar os olhos
para a pintura de costumes contemporâneos, não somente pela beleza que ela pode ter, mas pela
sua “qualidade essencial de presente” e ressalta: “o que me apraz encontrar (...) é a moral e a estética
da época”.
Baudelaire comenta ainda a transitoriedade das coisas na vida ordinária (a “metamorfose
incessante das coisas exteriores”) como um movimento que exige do artista um ritmo semelhante,
que o acompanhe. Assim, o artista moderno tem o mérito de pintar não as coisas eternas e heroicas
(como o clássico), mas por ser um poeta, aproximando-se do romancista ou do moralista; seria o
“o pintor do circunstancial e de tudo que este sugere de eterno”.
Ele seria, portanto, o “homem do mundo, homem das multidões”. Para ilustrar o que
pretende dizer, Baudelaire destaca o incógnito C.G (posteriormente revelado como Constantin
Guys) como exemplo, como o artista “enamorado pela multidão”, cosmopolita, aquele que assina
suas obras “com sua alma”, em oposição ao simples artista, que seria um “especialista, subordinado
à sua palheta, como um servo à gleba”, em geral um “bruto”, um “simples artesão”585. Baudelaire
elogia-o, sobretudo, por se impor a tarefa de “buscar e explicar a beleza na [própria]
Modernidade”586.
Baudelaire discorre ainda, em sua obra, sobre as características de um Dândi, ao classificar
como tal o pintor C.G. (“aquele que tem a compreensão sutil de todo o mecanismo moral deste
mundo”): o dândi seria “sincero sem ser ridículo”, um “puro moralista pitoresco”. Seu lugar é na
multidão, é um flaneur, um observador apaixonado, vive no movimento, no fugidio e no infinito,
“faz do mundo a sua família” e “frui por toda parte o fato de estar incógnito”; lamenta, ao acordar
e ver a luz do dia, as coisas iluminadas que deixou de ver por causa de seu sono; admira, em uma
584BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. In: Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p.14.
585BAUDELAIRE, Charles. Sobre Modernidade, p.10.
586 ___________________. Sobre Modernidade, p.23.
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palavra, “a beleza da vida nas capitais”587. Assim, Baudelaire decreta: a “Pompa da vida” (“como
ela se oferece nas capitais do mundo civilizado”) seria, pois, o tema favorito do artista moderno:
“a vida elegante, a vida galante, os desejos profundos, o amor e o jogo, as festas […] elementos de
felicidade e infortúnio”588.
Constant Guys
Deux grisettes et deux soldats, (c. 1860).
Coleção Particular.
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Nesse sentido, Baudelaire revela sensibilidade singular ao reconhecer que cada época tem
seu valor; “seu olhar” e “seu gesto” particulares, e que seria um erro negligenciá-los em prol de se
imitar, eternamente, os clássicos590. É o que se destaca, segundo o autor, em C.G, cujas obras
poderiam, dentro de alguns anos, ser “arquivos preciosos da vida civilizada”. Baudelaire encerra
seu texto destacando C.G, como outros artistas que considera excelentes (Debucourt, Moreau,
Devéria e outros) que, por terem pintado “somente o familiar e o belo” teriam se tornado, por
consequência, “sérios historiadores”. CG teria buscado, como esses, “a beleza passageira e fugaz
da vida presente”, que constituía a própria Modernidade591.
Com efeito, se observada a estética impressionista, que nasce ainda na década de 1860,
última em que vive C. Baudelaire, nota-se fortemente a presença dos elementos tão recomendados
pelo poeta, legitimando que sua crítica mostrou-se, de fato, uma espécie de “receituário”, se assim
pudermos chamar, fundamental para a arte que nascia nos anos que sucediam os ensaios
baudelairianos. As obras que ficaram, efetivamente, imprimiram na história, como queria
Baudelaire, a marca de um tempo, de uma geração; a marca da Modernidade. Esses artistas
consagraram-se (embora tardiamente) como grandes pintores, mas também como historiadores.
Suas narrativas, marcadas pelas noções de velocidade, efemeridade, e impermanência, edificam um
dos momentos mais memoráveis na história da arte592.
As Gares (estações) e chaminés de Monet, as pontes de Renoir e Pissarro, os cafés e teatros
de Jean Béraud e Degas, os boulevards de Galien Laloue, Jean François Raffaelli e Luigi Loir, as
multidões de F. A. Houbron, para citar apenas alguns, fundiram no eterno o registro do fugidio,
do trivial e do circunstancial, tão axaltado pelo pensamento baudelairiano.
Valorizado a beleza de seu tempo, eles conquistaram admiradores e seguidores, mas,
sobretudo, abriram caminhos para a liberdade radical da arte moderna e das Vanguardas que
floresceram no início do século XX, atestando, assim, as propostas de Baudelaire como o embrião
de um processo de ruptura histórico com os preceitos clássicos da Academia de Belas Artes593.
pintores desta geração fundam “um estilo urbano que descreve a mutabilidade, o ritmo nervoso, as impressões súbitas,
intensas, mas sempre efêmeras da vida citadina. E justamente como tal é que implica uma expansão enorme na
percepção sensorial, um novo aguçamento da sensibilidade e, com o gótico e o romantismo, significa um dos mais
importantes pontos de mutação na história da arte ocidental”. In: HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura.
S. Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 897.
593 Em suas reflexões acerca da pintura impressionista, G. C. Argan observa que, embora nenhum interesse ideológico
ou político unisse o grupo de artistas e nem houvesse um programa preciso, havia entre eles alguns pontos
rigorosamente observados que os uniam, entre os quais ele destaca “a aversão pela arte acadêmica; a orientação realista; total
desinteresse pelo objeto – preferência pela natureza morta e paisagens; a recusa dos hábitos de ateliê, de dispor e iluminar os modelos e de
começar desenhando pelo contorno para depois passar à cor e; o trabalho en plein-air”. In: ARGAN, G. C. Arte Moderna. São Paulo,
Companhia das Letras, 2013, p.75.
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BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar - A aventura da Modernidade. São Paulo: Companhia das letras,
594
1990, p.155.
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595 SERRÃO, Vítor. A Cripto-História de Arte: Análise de Obras de Arte Inexistentes. Lisboa: Horizonte, 2001. p.12.
596 _______. A Cripto-História de Arte, p. 12.
597 _______. A Cripto-História de Arte, p.13.
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reconstruções ao longo do século XIX. Estas obras reformadoras culminaram, em 1913, com a
destruição do antigo retábulo de altar-mor, que foi então nesta data substituído por um novo
retábulo598. Utilizando-me do conceito de Cripto-História de Arte, pretendo demonstrar a pesquisa
desenvolvida sobre este antigo retábulo, no esforço de melhor compreender esta obra de arte sacra
mineira, que como tantas outras, inexiste.
Durante todo século XIX, o único registro documental que apresenta detalhadamente a
igreja de Santo Antônio e São Francisco foi feito pelo Bispo de Mariana Dom Frei José da
Santíssima Trindade, em visita pastoral à vila de São Bento do Tamanduá, em 1825. Sua descrição
informa bastante sobre as condições materiais da capela então:
Este relato, apesar de sucinto, é valioso para o propósito da Cripto-História de Arte graças
a descrição pormenorizada que Dom Frei José faz do interior da capela da arquiconfraria de São
Francisco no ano de 1825.
Em primeiro lugar, nota-se que já estava forrada; um progresso e tanto se comparada às
demais capelas contemporâneas de São Bento do Tamanduá. Segundo o mesmo relato pastoral, a
capela de Nossa Senhora do Rosário não possuía “nem forro nem pavimento”600; a capela de Nossa
Senhora das Mercês encontrava-se “arruinada e quase sem uso”601; enquanto a matriz de São Bento
estava “forrada de esteira”602.
Dom Frei José informa também a existência do retábulo da capela-mor, todavia sua
descrição é muito superficial. Dá conta apenas de que o retábulo “tem alguma decência”603. O
emprego pelo Bispo do pronome indefino “alguma” acaba dando a impressão de que se não era
uma obra vultosa, também não era um trabalho indigno. Pode-se supor baseados em seu relato, ser
um retábulo singelo.
598 O processo de construção e ornamentação desta capela foi analisado em minha pesquisa de mestrado em
História. FONSECA, Gustavo Oliveira. Produção artística no centro-oeste mineiro nos séculos XVIII e XIX – Estudo sobre a
igreja de Santo Antônio da Arquiconfraria de São Francisco em Itapecerica. Dissertação (mestrado em História). UFSJ, 2014.
263f.
599TRINDADE, Frei José da Santíssima. Visitas Pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade (1821-1825). Belo
trançadas. Sua qualidade é sem dúvida inferior à dos forros de madeira, como da igreja de Santo Antônio.
603 __________. Visitas Pastorais, p. 286.
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Sabe-se que o retábulo da capela-mor hoje existente na igreja de Santo Antônio é obra de
1913, de autoria do carpinteiro Bento Gomes da Gosta604, portanto, definitivamente não é o mesmo
mencionado por Dom Frei José.
Através da análise de indícios materiais da própria capela onde se encontra o altar-mor, é
possível depreender novos elementos. Na parte traseira do atual retábulo do altar-mor permanecem
duas provas da existência do retábulo anterior. A primeira, que é possível observar refere-se ao
friso da cimalha da capela-mor, que, prolonga-se até a parte posterior do retábulo, onde se encerra
deixando um recorte vertical na parede, conforme a fotografia abaixo [fig.1]:
Figura 9: Parte traseira do retábulo-mor. Igreja de Santo Antônio e São Francisco, Itapecerica, MG. Foto: Gustavo
O. Fonseca, 2016.
604 Autoria identificada na pesquisa de mestrado mencionada na nota 4. Ver: FONSECA. Produção artística no centro-
oeste mineiro... p. 100.
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as tábuas do forro atual se sobressaem, assim como o friso da cimalha, à peça retabular. Além disso,
as tábuas sobressalentes apresentam uma pintura que está recuada ao mesmo espaço em que se
encontra o recorte vertical da parede [figuras 2 e 3].
Figura 10: Parte traseira do retábulo de altar-mor. Igreja de Santo Antônio e São Francisco, Itapecerica, MG. Foto:
Gustavo O. Fonseca, 2016.
Figura 11: Parte traseira do retábulo de altar-mor mostrando o forro. Igreja de Santo Antônio e São Francisco,
Itapecerica, MG. Foto: Gustavo O. Fonseca, 2016.
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Tem-se ainda um outro indício bastante seguro de que este retábulo, ao ser substituído, não
foi de todo destruído. A mesa do retábulo de altar-mor, com seu nicho com pinturas de rosáceas,
fornece uma clara sensação de deslocamento do restante do conjunto. A pintura desta mesa não
corresponde a nenhuma outra pintura do atual retábulo-mor. O recorte do nicho, no qual repousa
a imagem de Nosso Senhor Morto, apresenta um emoldurado em rocalhas azuis e vermelhas sobre
fundo branco de execução não encontrada em nenhuma outra parte do retábulo. A pintura desta
mesa, com exceção da pintura do forro, é a única com rocalhas em todo o conjunto artístico da
capela. Sinalização clara do gosto rococó de princípio do século XIX, a presença das rocalhas é um
forte indício de que esta peça não é contemporânea ao retábulo de 1913, e, sim, anterior, e por
alguma razão, foi preservada. [Figuras 4 e 5].
Figura 12: Retábulo de altar-mor. Igreja de Santo Antônio e São Francisco, Itapecerica, MG. Foto: Gustavo O.
Fonseca, 2016.
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Figura 13: Mesa do altar-mor. Igreja de Santo Antônio e São Francisco, Itapecerica, MG. Foto: Gustavo O. Fonseca,
2016.
Atente-se, também, para a aprimorada execução da pintura, tanto das rocalhas quanto das
rosáceas [fig. 6]. O nicho do Senhor Morto é fechado por um vidro e, por ser um espaço reservado,
a pintura do interior encontra-se em bom estado de conservação, sendo uma das poucas desta
capela a não ter sofrido nenhuma intervenção. Já as rocalhas aparentam ter sido repintadas com
uma camada de verniz grosseiro (como praticamente todo retábulo, destaque-se) que, em partes,
está se descascando, deixando entrever as cores originais [fig. 7]. Nota-se que a cor primitiva era
mais clara, mais suave. A oxidação do verniz alterou a paleta original do artista, conferindo ao
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trabalho uma aparência bastante pesada. Salienta-se que uma restauração bem conduzida ajudará
bastante na leitura desta obra.
Figura 14: Pintura decorativa. Nicho do Senhor Morto, retábulo do altar-mor. Igreja de Santo Antônio, Itapecerica, MG. Foto: Gustavo
Fonseca, 2016
Figura 15: Detalhe da rocalha. Mesa do retábulo do altar-mor, igreja de Santo Antônio, Itapecerica, Mg. Foto:
Gustavo Fonseca, 2013.
É bastante provável que o retábulo desaparecido se assemelhasse a esta mesa de altar, ora,
analisada. Possivelmente, tratava-se de uma obra em talha bastante simplificada, mas ornamentada,
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pois o relato pastoral de Dom Frei José informa a existência de dois altares: um com retábulo e
outro colateral sem retábulo. A ausência de retábulo na maioria dos casos correspondia a uma
estrutura de madeira lisa, pintada ou não605.
Não se sabe se o antigo retábulo possuía pinturas. É bem possível, se seguisse o padrão da
mesa do altar. Entretanto, nos livros de despesas da arquiconfraria, encontra-se lançada uma
despesa com ornamentação para este retábulo, em setembro de 1870, na qual se lê: “Quantia
entregue a Leopoldo Christiano Corrêa por custo e carreto de 9 peças de papel pintado para forrar
o camarim do altar mor 28$000”606.
O camarim corresponde nos retábulos ao lugar reservado aos santos padroeiros de cada
igreja. É o ponto central do retábulo. A compra de papel pintado para forrar esta parte do altar-
mor sugere que ou não havia pintura alguma, ou, se havia, estava bastante danificada, podendo ser
substituída por um simples papel pintado sem remorsos.
No mesmo período, setembro de 1870, a arquiconfraria despendeu 3$980 réis “com
fazenda, forro e galão, para cortina dos nichos do altar mor” 607 e ainda mais 6$600 réis com uma
“coleção de sacras”608. A coleção de sacras, provavelmente, se tratava de gravuras religiosas para
dispor na ornamentação da igreja. Mais reveladora é a compra de tecidos para os nichos do altar.
Os nichos, normalmente, localizam-se um de cada lado do camarim, podendo ser uma cavidade ou
vão, onde se colocavam os santos. Provavelmente, os tecidos para os nichos da igreja de São
Francisco tiveram como finalidade complementar a ornamentação do retábulo.
Outra característica do retábulo primitivo que é apenas mencionada pelo relato de Dom
Frei José, em 1825, é seu acervo de imagens sacras. O bispo relata que, no retábulo principal, havia
“boa imagem no trono do Senhor Crucificado e de São Francisco recebendo as chagas” 609. Esta
descrição, também, não corresponde ao retábulo atual da capela de Santo Antônio e São Francisco,
onde hoje se encontram uma imagem de Santo Antônio e dois degraus abaixo, São Francisco.
A representação mais comum de São Francisco recebendo as chagas apresenta Jesus
Crucificado tendo aos pés da cruz São Francisco, ajoelhado, recebendo em seu corpo as mesmas
chagas de Nosso Senhor. Esta tradição imagética, segundo Adalgisa Arantes Campos, teve origem
no seguinte episódio:
605 À semelhança da igreja do Rosário de Tamanduá, cujo altar Dom Frei José descreve no mesmo relato pastoral:
“um altar com um arco de madeira pintado de branco onde sobre alguns degraus, tem a imagem de Nossa Senhora. ”
TRINDADE. Visitas Pastorais, p. 286. Outro exemplar similar pode ser encontrado também na capela do Senhor
Bom Jesus da Pobreza, em Tiradentes, MG.
606 Arquivo Paroquia de São Bento de Itapecerica (APSB) /Fundo Arquiconfraria de São Francisco (ASF) –
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610 CAMPOS, Adalgisa Arantes. Arte Sacra no Brasil Colonial. Belo Horizonte: C/Arte, 2011. p. 64.
611 Imagens de roca têm esculpidas apenas as partes do corpo do santo que ficam expostas, como cabeça, braços e
pés. O restante do corpo possui uma estrutura de madeira que se esconde embaixo das vestes da imagem.
612 Arquivo Eclesiástico Arquidiocese de Mariana - AEAM – Tribunal Eclesiástico. Documento 3231
613 AEAM – Tribunal Eclesiástico. Documento 3231
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O bispo de Mariana Dom Frei José da Santíssima Trindade em seu relato pastoral menciona
ainda a existência de “um altar colateral sem retábulo com a imagem de São Francisco de Paula
veneranda”614, contudo, até o momento, não se identifica semelhante imagem no acervo da igreja
de Santo Antônio. O altar colateral relatado, também, não corresponde a nenhum dos dois altares
colaterais existentes atualmente na capela – altar de Nossa Senhora das Dores e altar de Nosso
Senhor dos Passos; uma vez que ambos possuem retábulos em madeira policromada.
Desta maneira, baseados no relato pastoral do bispo diocesano e na documentação
produzida pela arquiconfraria de São Francisco, compõem-se, então, um retrato possível da
ornamentação da igreja de Santo Antônio e São Francisco durante uma parte do século XIX,
anterior à feitura do retábulo do altar-mor em 1913.
Sabe-se que a construção da capela sede da arquiconfraria foi ocorrendo nas primeiras
décadas do século XIX e que a manutenção da estrutura foi permanente615. Observa-se também
que a parte ornamental da capela-mor, atualmente, não corresponde à ornamentação artística do
século XIX. A igreja possuía apenas um retábulo principal no altar-mor que era de feitio singelo,
provavelmente, em gosto rococó, com pinturas decorativas suprindo a ausência de uma talha
elaborada. O único altar lateral era simples, sem nenhum trabalho em talha. Analisou-se, também,
parcialmente, o conjunto de imaginária da igreja relacionando o acervo remanescente com as obras
mencionadas na documentação consultada.
O Conceito de Cripto-História de Arte, mostrou-se extremamente útil para o caso
português, especialmente, como instrumento de pesquisa de obras destruídas no grande terremoto
de 1755. Contudo, esta ferramenta de estudo ainda é pouco utilizada para pesquisas no Brasil.
Acredito, que em Minas Gerais, onde inúmeras obras de arte sacra desapareceram, seja por furto,
demolições ou vandalismo, este conceito pode tornar-se uma ferramenta profícua para
compreendermos a produção artística mineira remanescente.
Assim, torna-se possível, não apenas, desenvolver plenamente o conceito teórico, mas
também propor outras questões caras a historiografia de Arte, como por exemplo, a questão das
escolhas artísticas, a conservação ou destruição de obras, os critérios de solução em salvaguarda,
entre outros.
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Resumo: Com o propósito de transdisciplinaridade, esse trabalho vem com o objetivo de abordar
áreas muito caras à antropologia, nos quais seus desdobramentos históricos e contextualizações,
podem ser suscitadas através da discussão dos estudos da imagem. A tentativa de esboçar um
panorama geral da relação entre a noção de pessoa ocidental moderna, corpo, imagem e
conhecimento, vem com o objetivo de situar a construção de um indivíduo construído a partir de
prerrogativas científicas apoiadas numa ideia de colonização da carne e legitimação a cerca uma
verdade do ser. A metodologia utilizada tem como tentativa o mapeamento de acontecimentos aos
quais podem-se estabelecer correlações. Com isso, trago para análise os teatros anatômicos,
espetáculos populares em que corpos serviam de encenações públicas com objetivo de
entretenimento e afirmação de saberes científicos durante o século XVI e XVII na Europa. Em
seguida, os conceitos de esquadrinhamento social e processo de individualização, têm importância
para compreendermos a mudança paradigmática da relação indivíduo-sociedade. Por último, as
tecnologias de visualidade são trabalhadas a fim de se repensar mais uma vez o limite do corpo e a
difusão de determinadas ideias sobre a verdade do ser, as quais serão questionadas através da arte,
com algumas artistas em destaque: Susan Aldworth e Justine Cooper.
Primeiramente, precisamos nos situar do tema de análise e das fronteiras desse estudo, pois
será imprescindível ressaltar qual o sujeito de que estamos falando e através do que podemos falar.
Com o objetivo de atrelar os estudos da imagem às noções modernas de indivíduo e discussões
sobre corpo e noção de pessoa, deve-se saber que a delimitação aqui proposta refere-se a um sujeito
ocidental, construído a partir de discursos citacionalizados através de paradigmas científicos e
normas de sociabilidade específicas. Tais normas deixaram rastros que, por meio da ideia de
“acontecimento”616, podemos mapear e reconstituir um caminho, nos quais as evidências que nos
movem, não são de maneira alguma lineares ou então pensadas como algo proposital de
funcionamento em conjunto ordenado ou estrutural. Devemos pensar que todas essas marcas nos
616
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 28 ed. São Paulo: Paz & Terra, 2014, p.11
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guiam para certos princípios ocidentais de se tratar o mundo em que vivemos e, consequentemente,
como devemos nos organizar perante a essa realidade-no-mundo.
A trama a seguir, a partir dos pressupostos descritos acima, é evidenciada a partir de um
modo bem específico trabalhado pela ciência: o modelo científico cartesiano, ao qual as “verdades
do mundo” devem ser clarificadas. Sendo assim, essa escrita vem como discussão acerca do
processo de construção discursiva das verdades do corpo/pessoa ocidental. Dessa forma, a história
das imagens pode nos permitir escavar as formas com que o corpo e a pessoa são pensados e
construídos, tal como o indivíduo moderno.
Assim, esse estudo não se trata de uma história temporal, regulada a partir de princípios de
causa e efeito, mas tende a funcionar através do conceito (já falado anteriormente) que a
historiografia nos situa de “acontecimento”. Aqui, ao evidenciá-los por meio do estudo das
imagens, certas práticas e discursos nos são revelados, bem como seus múltiplos encontros e
desdobramentos. Outra questão que aparece como plano de fundo para a perspectiva proposta e é
fundamental para entendermos o funcionamento desses discursos e práticas científicas: um modelo
de conhecimento. Esse conhecimento que também se deve situar: o conjunto de saberes pautados
numa cultura visual de legitimação da verdade.
A cultura visual será o mote do processo de análise porque é através de sua legitimação que
o conhecimento tomará forma, a de atrelar a imagem à verdade, o ver ao conhecer, o enxergar à
(minha) verdade. Com isso, passemos então para os acontecimentos aos quais o trabalho poderá
tomar conteúdo e se estruturar.
Os teatros anatômicos
Os séculos XVI e XVII foram conhecidos como os “séculos sangrentos” por conta da
popularização dos então chamados Teatros Anatômicos que tomaram conta de países da Europa,
sobretudo Holanda, França e Itália617. Esses teatros eram expostos em ambientes publicamente
acessíveis, que contavam com exibições de dissecações de corpos humanos, com o triplo intuito
de: entretenimento, progresso científico, manutenção de normas e preceitos morais.
617
ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond,
2008, p. 92.
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618
LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2001.
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moderna619. O autor será uma grande influência para a mudança paradigmática da época, cujo
padrão de racionalidade e construção do conhecimento a cerca o corpo está embasada aos
princípios galênicos e, às dissecações como forma última de comprovação textual desse filósofo.
Ao contrário, Vesálio condena os escritos de Galeno, pela falta de credibilidade do médico e
filósofo romano, uma vez que, seus experimentos e estudos com animais são incoerentes aos
funcionamentos do organismo humano. Com isso, a nova abordagem que Vesálio nos traz é a de
que, somente a prática empírica da cirurgia poderá trazer luz a verdade do corpo por excelência.
Tal prática até então tinha sido descartada por valores morais de integridade em vida do sujeito
(mas pensada diferentemente em relação aos mortos).
Os teatros anatômicos revelam então a potencialidade de se enxergar os corpos, no sentido
mais literal possível, como produtores de verdades e legitimação de práticas médicas com o poder
de imperar através dos sujeitos a cultura visual, como modo de conhecer o mundo e de se
(re)conhecer. Com o advento de uma sociedade preocupada e ordenamento dos sujeitos, através
619
ORTEGA, Francisco. O corpo incerto. p. 91.
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Foucault (2014)620 nos mostra como que, a partir do século XVIII, há um novo
reordenamento de como a sociedade é organizada com finalidade a um novo modo de se
construção dos sujeitos, mais do que verdades em relação aos mesmos, como era executado nos
teatros anatômicos, tomando o corpo como escritura ou objeto de escrita.
Esse novo panorama identificado pelo autor, nos situa sob uma nova perspectiva de
construção dos sujeitos modernos. Será necessário que haja um esquadrinhamento da vida social,
ou seja, um modo de operacionalização em que sujeitos sejam ordenados, classificados e repartidos
dentro de diferentes escalas de funcionamento social. Juntamente a essa ideia de escalonamento,
suas atividades práticas, tais como as técnicas que cada um deverá desenvolver, serão articuladas
com finalidades de se produzir individualidades. A execução de um esquema de individualização
será necessário para que se produzam também corpos dóceis, eficazes e, sobretudo, eficientes. Mas,
deve-se ter em mente que todos os processos de aprendizado e construção de individualidades, tais
como corpos e práticas, deverão ser feitos com o mínimo de energia necessária pelos dispositivos
de poder.
Aqui, toca-se em outro conceito imprescindível para a análise de Foucault: o poder.
Devemos observar que aquilo que o autor considera uma mudança paradigmática do século XVIII
em diante, em contramão aos períodos anteriores, remete-se à construção de individualidades por
uma nova forma específica de controle, vigilância e produtividade que está totalmente articulada
ao seu modo de ação sobre o mundo, consistindo sob a forma de poder. O poder está imbricado
em todas as formas de relações, ele é sobretudo, produtivo; o poder produz indivíduos, sujeitos,
corpos, práticas, discursos e regulações.
620
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
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Pode-se pensar que o panóptico seja apenas um modo específico de controle e vigilância
num formato arquitetônico, mas ao contrário, ele é o meio em que subjetividades são construídas
a todo momento, como nós nos portamos socialmente, considerando que estamos sendo ou
podemos estar sendo vigiados pelas regulamentações sociais contidas nas normas. Assim, cria-se
mais um modelo de observação dos corpos dos sujeitos, tal qual um modelo com que nós mesmos
nos percebemos e controlamos nossos comportamentos.
Tecnologias de visualidade
621
ORTEGA, Francisco. O corpo incerto. p. 129-130.
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Podemos então observar que, a partir da descoberta dos raios-X, vários mecanismos de
observação intra-corpórea se desenvolvem e, as técnicas de se compreender o corpo, tal qual os
procedimentos que legitimam a medicina como portadora por excelência nesse esquema de
compreensão do ser, são operacionalizados.
Em 1994, surge o The Human Visible Project, através do qual o primeiro ser humano fora
totalmente digitalizado e disponibilizado na internet. Joseph Paul Jernigan, em 1993, fora
condenado à morte por assassinato, mas aceitou a troca de sua pena por cadeira elétrica à injeção
letal, mediante um acordo no qual autorizava a doação de seu corpo para um projeto do Nacional
Library of Medicine (EUA). O projeto consistiu em escaneamento do corpo por ressonância
magnética, congelamento do corpo em gelatina, corte em blocos, submetido à tomografia
computadorizada, fatiação em 1874 lâminas e totalmente fotografado digitalmente.
Imagem 3: Scaneamento executado pelo projeto The Visible Human Project. NCI NATIONAL FACILITY. The
visible human project: head of male sacaver. 2013: Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=ojCNUoVfzh4 Acesso em: 13 de junho de 2016
622
_________________. O corpo incerto. p. 131.
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Arte intra-corpórea
Afim de se problematizar essa conquista da carne e sua colonização, bem como destacar
como nossos corpos e nossas individualidades são constituídas pelos dispositivos de poder, mais
necessariamente pela prática científica médica, alguns artistas desenvolvem trabalhos e projetos
situando esse mundo moderno de tratamento e compreensão do corpo humano. Com isso, trago
duas artistas, as quais utilizam dessa estratégia de ressignificação, não somente do corpo, mas
também das práticas médicas, para nos interpelar acerca nosso dia-a-dia e como somos vistos e
construídos.
Justine Cooper, nascida em 1968, na Austrália, traz em seus trabalhos vários elementos que
nos remetem a uma nova forma artística de se perceber o corpo e muitos valores arraigados à
medicina e a ciência. Sua exposição chamada Rapt, de 1998, traz seu corpo remontado a partir do
produto de ressonâncias magnéticas realizadas pela artista. Com isso, a intenção é questionar essa
forma de vigilância, de entendimento sobre o que nós somos, como somos enxergados e o
conjunto de dados que são produzidos a partir dos nossos corpos.
Imagem 4: Exposição de Justine Cooper. COOPER, Justine. RAPT II. 1998. Disponível em:
http://justinecooper.com/images/probe600.jpg Acesso em: 13 de junho de 2016
Outra importante artista, Susan Aldworth, nascida em Surrey, condado situado no sudeste
da Inglaterra, em 1955, trabalha com imagens realizadas dos mais diferentes tipos de tecnologias
científicas intra-corpóreas. Susan, ao contrário de Justine, não realiza suas exposições a partir dos
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produtos oriundos dessas máquinas em seu estado final, a artista trabalha com a remontagem desses
produtos a fim de se formar imagens de estética única e corpos reorganizados a fim de nos causar
um distanciamento daquilo que entendemos por nossos corpos. Sua maneira de se trabalhar, a
partir dessa exposição específica, Reassembling of Self, de 2009, toma um maior sentido ao
sabermos que os corpos colaborativos de sua exposição são de pessoas diagnosticadas com
esquizofrenia. Isso toma valor ao analisarmos as obras, a remontagem desses corpos com propósito
de se estabelecer um certo estranhamento, devido ao cotidiano a que essas pessoas são submetidas
através do fato de vivencializarem essa doença. Muitas dessas pessoas são enxergadas como
totalmente disformes em relação à realidade ou a um certo padrão de normalidade, com isso, a
artista vem para nos expor, a partir do corpo, numa relação de distanciamento, os sujeitos e as
realidades que são remoduladas às suas vidas.
Imagem 5: Obra da exposição Reassembling the Self. ALDWORTH, Susan. 2014. Disponível em:
https://susanaldworth.com/ Acesso em: 13 de junho de 2016.
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Concluindo
Com esse trabalho, tive o objetivo de colocar em pauta determinados temas que são
importantes para uma análise antropológica, como a forma com que o corpo é compreendido,
construído e modificado através de algumas rupturas históricas. Tenho que dizer que nem sempre
essas marcas de um estado ao outro de compreensão e de modificação social, em relação a forma
de se abordar esses temas, é totalmente definida ou clara. Vários outros fatores poderiam nos ajudar
a compreender melhor todas essas ocorrências, ou, como chamo aqui inicialmente, todos esses
acontecimentos. Muito do que queria mostrar está ligado às concepções além do corpo, mas como
Foucault nos situa, também sobre um regime de poder623, no qual, todo um conjunto de
conhecimento é colocado em legitimidade ou exclusão, variando de sociedade a sociedade. No caso
da sociedade ocidental., certos conhecimentos são legitimados a fim de se executar um zoneamento
dos campos de verdade e dos fluídos de informação que percorrem nosso dia a dia. Determinadas
informações e práticas de saberes são ordenadas a fim de se classificar certos saberes como
verdades absolutas em contraposição à outras que são excludentes da hegemonia, com isso, cria-se
um campo discursivo em que todos nós, como indivíduos modernos ocidentais, somos imbricados
num jogo em que saber é poder, e vice-versa.
Outro ponto central é a questão da visualidade, que tomo a primeiro momento, como
ponto de interseccionalidade, mediante os estudos que venho fazendo em relação ao corpo e ao
objetivo dos estudos interdisciplinares da imagem. A visualidade toma centralidade a partir do
momento em que todos esses conhecimentos acerca do funcionamento social, tal qual o
entendimento sobre o corpo, toma forma. Isso considerando que, a visualidade é o mecanismo por
excelência de construção do conhecimento, assim como, o modo com o qual nos relacionamos
socialmente e compreendemos o mundo.
623
FOUCAULT, A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 5
ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999 p. 52
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Resumo: O presente artigo foi realizado para um trabalho da disciplina de Metodologia Científica,
na qual ele apresenta os anos de 1950, com seus detalhes do vestuário. Através de seu estudo,
mostra através de criações recentes que tudo retorna, nada é 100% novo, mas possui sua inovação.
Palavras-chave: 1950; Vestuário; Retorno; Inovação.
Introdução
Este trabalho vem para mostrar as pessoas que não existe mais criações novas puramente
dizendo, mas sim, inovações, pois tudo retorna, seja de um livro que lemos, de um filme que
assistimos. Pesquisar bastante é o segredo para bons resultados. Quanto mais se pesquisa, mais
originalidade se tem.
“A crônica do poeta Manuel Bandeira nos confirma que naquele período o colete não era
mais obrigatório no traje masculino. Hoje, essa peça é bastante comum, tanto para os homens
como para as mulheres”.624
A escolha do tema foi uma forma de poder analisar uma década e mostrar que as criações
de hoje não são 100% novas, mas sim inovador. Tudo retorna. Pesquisar sobre o tema na obra A
moda no Século XX, de Senac625. Com isso será feito aprofundamento.
Metodologia
A base de estudo para esta pesquisa foi bibliográfica, que consiste em revisar
bibliograficamente o tema abordado, ou seja, é o passo inicial na construção efetiva de um
protocolo de investigação. Através da obra A moda no século XX, de Senac que serviu como base
para detalhar como foi a moda dos anos 50 e através dos sites Minas trend Preview, Bettys,
624 SENAC. A moda no século XX. 3 ed. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2003.
625 ______. A moda no século XX, 2003.
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Glamurama, Dourados News, GNT e Corpo a corpo citados ao longo do artigo como releituras
dos anos dourados. Segundo Immanuel Kant sou, por meu gosto pesquisador. Experimento toda
a sede de conhecer e a ávida inquietude de progredir, do mesmo modo que a satisfação que toda
aquisição proporciona.
Resultados e Discussão
Alceu Penna era uma desenhista de primeira linha e influenciou com seu traço
os nossos principais desenhistas de moda. Além disso, apresentava roupas bem
modernas e descontraídas, ditando um padrão estético e de comportamento que
fazia as mocinhas esperarem com avidez cada novo número da revista.627
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Figura 1: New Look de Christian Dior, retirada do site Bettys, acessado em 06 de julho de 2016.
Após a guerra os homens voltaram para casa, ocorrendo então o famoso baby boom que
foi pelo fato de muitas mulheres se engravidarem, nesse tempo fez com que elas ficassem mais em
casa cuidando dos filhos e do marido. Além dos sapatos e vestidos os acessórios compunham o
visual como luvas, pulseiras, colares e chapéus nem sempre eram joias verdadeiras mas sim
bijuterias finas. “Embora os anos 50 tenham fama de serem muito pomposos, a mulher americana
adotou a linha casual, refletindo sua imagem de mãe e esposa exemplares.”628.
Já no Brasil não era diferente como tudo que acontecia na moda os brasileiros aderiram ao
New Look trazendo a mesma leitura das roupas da França. Mesmo com uma grande variação de
roupas feitas aqui no Brasil as mulheres importavam roupas de Paris, os anos 50 marcou entre os
adolescentes trazendo um espírito de rebeldia e liberdade, James Jean foi símbolo inspirador para
a geração jovem com seu visual rock and roll, o que ditava principalmente era a aparência todos
queriam estar perfeitos, os cosméticos estouraram em vendas principalmente o batom trazendo a
vaidade a mulher, os adolescentes eram mais despojados. “A respeitável baronesa de Arari dizia:
‘vou a chapelaria, escolho o chapéu, olho no espelho; se não me reconheço, não compro.”629
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Na alta sociedade uma senhora sempre tinha de sair usando um chapéu e roupas com cores
mais escuras. No verão, as mulheres usavam vestidos em modelo balão.
Chanel, sem se deixar se influenciar pelo New Look, continuou com suas criações que
marcaram sua originalidade, desde um casaquinho até os acessórios, eternizados mesmo após sua
morte. Madame Grés se inspirou nos modelos clássicos e recatados usando Jérsei, seda e lã,
trazendo uma beleza grega à mulher. Inovou também nos trajes assimétricos. Pierre Balmain, se
destacou com suas peças, antes que o New Look entrasse para o sucesso, sua sensibilidade fez com
que peças usadas à noite pudessem ter o seu lugar literalmente ao sol, como por exemplo a estola.
As roupas eram um primor, sua técnica impecável. Hubert de Givenchy, causou com seus modelos
geométricos, vestiu várias personalidades como a atriz Audrey Haepburn e Jacqueline Kennedi, e
se imortalizou com suas roupas luxuosas, com seus vestidos sacos, que eram largos na parte
superior e estreitos na parte inferior. Uma forma de representar toda sua inspiração é assistindo o
filme bonequinha de luxo.
“Outros nomes da alta do período foram Guy Laroche – que acabou se dedicando ao prêt-
à-porter -, Madame Carven, Jean Dessès e Yves Saint-Laurent, que começava sua carreira como
sócio de Dior(...)”.630
Figura 2: Desfile Mabel Magalhães e look da Arte Sacra, retiradas do site Minas Trend Preview, acessado
em 20 de setembro de 2015.
Tudo falado, mostra as características do Vestuário de uma década de Ouro, com muitos
detalhes requintados e luxuosos, queridos e venerados por qualquer mulher, onde qualquer homem
à desejava. Mas essas características são ressaltadas nos dias atuais, onde mulheres buscam por esses
requintes inovadores para que homens possam deseja-las e elas possam sentir bem.
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Nas Passarelas do Minas Trend Preview 2016, podemos ver coleções inspiradas nesta
década como a coleção de Mabel Magalhães que entrou no universo das musas do cinema das
décadas de 50 e 60. Conhecida com Glam Appeal, a coleção foi feita pela estilista com saias
afuniladas e volumosas e cinturas marcadas com cós alto, sem dispensar pregas e laços. Arte Sacra
entrou nas passarelas do Minas Trend, mostrando variações de materiais e aplicações e fazem
alusão ao ano de 1950. 631
No Minas Trend Preview de 2013, a estilista Patricia Motta se inspirou no estilo “lady like”
dos anos 1950 para criar sua coleção “Preciosa”632. As peças possuíam detalhes como couro, piton
e chamois em tons suaves como a turmalina paraíba, esmeralda, ágatha e safira, estes que receberam
lindos movimentos e comprimentos diferenciados em saias. O feminino marcou esta década com
modelos tomara que caia, barrigas de fora, tops croped e o que não pode deixar de citar são as
cinturas marcadas.
Figura 3: Looks da coleção “Preciosa” de Patricia Motta, retirada do site Glamurama, acessado em 30 de
maio de 2016.
O design é muito abrangente. Ele se estende para a arquitetura onde podemos ver um
apartamento projetado por Oscar Niemeyer que possui em especial inspirações na decoração com
a cara do Brasil633. Este prédio conta um pouco da história da arquitetura modernista com formas
retas, fachada de vidros, esquadrias de ferro e cobogós – elementos vazados de concreto –,
631 Minas Trend Preview, Mabel Magalhães e Arte Sacra anos 50. Acesso em: 20 Set. 2015.
632 Glamurama, Minas, Patricia Motta apresenta coleção inspirada nos anos dourados. Acesso em 31 mai. 2016.
633 Dourados News, Apartamento dos anos 1950 tem inspiração em Niemeyer. Acesso em: 30 mai. 2016.
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possuindo uma vista para o verde da Praça da República. Para complementar, Oscar Niemeyer é
considerado umas das figuras chave da arquitetura moderna. Criou projetos de edifícios cívicos de
Brasilia, projetou a sede das Nações Unidas em Nova York, colaborou no projeto do atual Palácio
Gustavo Capanema no Rio de Janeiro. Um dos primeiros trabalhos individuais de Niemeyer foram
os projetos de uma série de edifícios na Pampulha, localizado no Norte de Belo Horizonte em
Minas Gerais.
Figura 4: apartamento projetado por Oscar Niemeyer, retirada do site dourados News, acessado em 30 de maio de
2016.
Marc Jacobs, dono de sua própria grife, Louis Vuitton, trouxe em sua campanha de 2010,
expressando o mesmo espírito feminino do desfile. Através de 3 modelos com idades de décadas
diferentes, mostrou que a beleza e o sucesso podem ser alcançados em qualquer fase da vida634. O
intuito foi resgatar o glamour e a elegância que marcaram gerações. O desejo de Marc é criar roupas
para mulheres sensuais, curvilíneas e que sejam ao mesmo tempo elegantes. As saias, apareceram
abaixo dos joelhos ou no tornozelo, fazendo com que tornassem mais comportadas, já os
casaquinhos com caras mais sequinhos e vestidos cinturados com profundos decotes. A coleção
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trouxe ainda um mix de tecidos e padronagens fantásticos com renda, veludo, tweed e algumas
saias em couro acompanhadas de tricôs mais trabalhados.
Figura 5: Campanha de 2010 de Louis Vuitton, site GNT, acessado em 30 de maio de 2016.
Em 2013 a mundial Impala lançou uma coleção inspirada nas divas do cinema como Grace
Kelly e Audrey Hepburn635.
Cinco criações que fazem alusão a algum ponto dessa época. Em primeiro, o “Esmalte
Imala Biquini de Bolinha” vindo na cor amarelo pastel cremoso, que faz referência a Brigitte
Bardot, que marcou a aceitação do look para banhar da década. A segunda criação foi em tom rosa
pastel cremoso “Esmalte Impala Matinê”. Este fez referência as matinês dos anos dourados, que
635 Corpo a corpo, Anos Dourados: Mundial Impala lança coleção inspirada nos anos 50. Acesso em: 30 mai. 2016.
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eram marcadas com muito glamour, laternas e pipocas. Os rapazes eram bem saidinhos e queriam
acariciar mais ousadamente. Através da gíria da época que foi criada para eles “olha a mão boba!”,
foi criado o “Esmalte Impala mão boba”. Não poderiam deixar de citar um sucesso absoluto da
época, as estampas de bolinha, representadas através da cobertura gliter bolinha “Esmalte Impala
paetê preto.
Figura 6: Esmaltes da coleção Impala anos dourados, site corpo a corpo, acessado em 30 de maio de 2016 .
Estilos para casamentos possuem muitas inspirações nos anos 50, onde a cor vermelha é
muito presente, assim como tudo que faz lembrar a América. O rock and roll também surgiu nos
anos 50 com raízes nos estilos musicais afro-americanos conhecidos como country, blues, R&B e
gospel, e que muito rapidamente se espalhou para o resto do mundo. Os penteados mais
estruturados e certinhos surgiram nessa época e serve de grandes inspirações para as noivas que
querem retratar esta época em uma data marcante.
Nisso, podemos perceber que as décadas passadas está sempre voltando com bastante
força. Não é de assustar mais a palavra Vintage, onde faz alusão as indumentárias, acessórios,
vestuário em geral de épocas passadas estão sempre retornando. Podemos ver isto em coleções
criadas onde nada é 100% novo, mas sim, inovador.
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Conclusão
Através dos estudos teóricos e imagéticos, pôde ver claramente que o vestuário retorna de
uma forma inovadora. O que dá o encantamento nos looks hoje em dia são os maiores números
de pesquisas, que dar uma originalidade na coleção. Estas pesquisas são de suma importância, pois
sem elas fica um imenso vazio tanto na criação quanto na conclusão da coleção, pois não existe
nada a se criar, mas sim inovações constantes. Explorar bastante se terá o resultado de novas ideias.
A melhoria contínua está relacionada com inovação, mas além disse deve-se causar um impacto
significativo. Marcas, pessoas, os mínimos detalhes que buscam por inovações ficam em um
patamar com mais vantagens.
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Resumo: A Festa em Louvor a Nossa Senhora do Rosário, acontece na cidade de Catalão (Sudeste
do Estado de Goiás – Brasil), há quase 140 anos, e a cada novo anos que se realiza atrai um número
maior de devotos, turistas e membros dos ternos. Ternos ou guardas são os nomes conferidos aos
grupos de pessoas que saem pelas ruas da cidade louvando seu santo orago, em especial, Santa
Efigênia, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário; em Catalão os ternos são formados, por cinco
categorias que se diferenciam pelo ritmo tocado, vestimenta, instrumentos e acessórios usados, são
eles: congos, catupés, vilões, penacho e moçambiques. Durante o período de realização da Festa,
as ruas da região central da cidade são tomadas pelas barraquinhas (estruturas em aço ou madeira
cobertas por lona, onde são comercializados produtos variados) e fechadas para a realização das
celebrações e eventos que compõem a estrutura da manifestação cultural. Diante dessa Festa, foram
levantadas algumas indagações e a busca pela compreensão de tais questões relevantes, envolvendo
a dinâmica urbana das cidades e das culturas populares, instigaram o interesse no desenvolvimento
de um projeto de pesquisa dentro do programa interdisciplinar de Mestrado em Ambiente
Construído e Patrimônio Sustentável da Escola de Arquitetura, da Universidade Federal de Minas
Gerais. Assim, a Festa do Rosário de Catalão foi escolhida como estudo de caso, para a dissertação
a ser finalizada no ano de 2016. Se pretende, com o trabalho, refletir a respeito dos saberes
tradicionais presentes na Festa e dos lugares onde ela se materializa, de maneira a compreender as
relações estabelecidas nestes lugares. O trabalho, é ancorado em uma metodologia interdisciplinar,
ligada a arquitetura, geografia, antropologia e sociologia, e, possui ainda, uma relação com o campo
das representações gráficas. O desenho, é levado para o trabalho, como uma importante ferramenta
de compreensão do universo da Festa. O artigo aqui proposto, pretende apresentar de maneira
sucinta o estudo de caso escolhido, relacionado aos desenhos usados no trabalho e aos saberes e
lugares da manifestação cultural; demonstrando assim, a interdisciplinaridade presente na pesquisa.
Introdução
Este artigo tem como objetivo mostrar a interdisciplinaridade dos saberes presente na Festa
em Louvor a Nossa Senhora do Rosário, que acontece na cidade de Catalão (estado de Goiás –
Brasil), isso, através da apresentação da manifestação cultural. O estudo da Festa, teve início em
2014, no programa de mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável, que pertence
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A Festa de Catalão, acontece há quase 140 anos, cidade com origem no contexto do ciclo
do ouro, período da terceira década do século XVIII. Localizado em região estratégica do estado
de Goiás (Mapa 1 – Brasil com destaque para Goiás, Mapa 2 – Goiás com destaque para o Distrito
Federal e Mapa 3 - Catalão e cidades vizinhas), o município fica a 100km de Uberlândia – Minas
Gerais, e no eixo de comunicação de Goiânia e Brasília. E, segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística637, a população estimada para o ano de 2015 era de 98.737 habitantes.
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catalanas, com os novos colonizadores, um grande número de escravos e com eles seus costumes. 640
641
Com o passar dos anos, a Festa foi crescendo e se tornando cada vez mais (re) conhecida,
tomando uma grande proporção, o que a fez se tornar uma das principais manifestações populares
com influências africanas em louvor a santos católicos do país. Sua estrutura é complexa e, é
formada pelos polos festivo ou cultural, comercial e religioso (estes podem ser vistos no
Fluxograma 1 – Estruturação da Festa baseada em seus atores). Destacamos que, estes polos estão
interligados e não podem ser entendidos de forma isolada, esta divisão é apenas para uma melhor
compreensão do leitor, visto que os polos comercial e religioso, também podem ser considerados
como festivo ou cultural.
Fluxograma 1 - Estruturação da Festa baseada em seus atores.
No Fluxograma 1, podemos observar os diversos atores que compõe a Festa, estes realizam
os diferentes eventos e celebrações tradicionais durante os 10 dias que a manifestação cultural
acontece. Dentro destas celebrações, possuem papel fundamental os ternos (destacados pela cor
azul escura no Fluxograma 1), eles são conjuntos de pessoas que saem pelas ruas louvando seus
santos oragos nos dias de Festa e também são chamados de guardas em alguns locais. De acordo
640 PAULA, M. V. de. Sob o manto azul de Nossa Senhora do Rosário: mulheres e as identidades de gênero em Catalão (GO). 2010.
245 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Estudos Sócio Ambientais, Universidade Federal de Goiás,
Goiânia. 2010.
641 RAMOS. Histórias e confissões: páginas escolhidas.
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com, Cunha642, o termo terno significa “grupo de três coisas ou pessoas”, e segundo Arouca643, a
palavra seria derivada da trindade de Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito, o
autor ainda define terno como, “agremiações independentes de dançadores”.
Ao analisar os ternos de Catalão, percebemos que além de serem um grupo de pessoas
reunido para louvar ao seu santo orago, são também um conjunto com relações simbólicas entres
seus componentes, com hierarquias e papéis definidos para cada um dos atores que os compõe,
são eles: capitães, bandeirinhas, instrumentistas e soldados (conforme Fluxograma 1). Os capitães,
comandam o terno, são a figura maior dentro do grupo e determinam horários e locais de
encontros, compõe músicas e ditam o ritmo a ser tocado. Os instrumentistas, contribuem para o
ritmo do terno com sanfonas, triângulo, viola ou violão. As bandeirinhas, vêm à frente do terno e
carregam a bandeira dos santos oragos do terno. E por fim, os soldados, compõem o restante do
terno, dançam, cantam e tocam instrumentos, os mais experientes são chamados guias. Os soldados
também são chamados caixeiros, em algumas categorias de ternos, para diferenciar os soldados que
tocam caixa dos que usam outros acessórios. As pessoas que fazem parte dos ternos são também
chamadas, dançadores, brincadores ou congadeiros. Em Catalão, nos anos de 2014 e 2015
participaram da Festa 21 ternos entre as cinco categorias em que se dividem, estas se diferenciam
pelo ritmo tocado, instrumentos, objetos e acessórios usados nas performances, estes podem ser
visto no Quadro 1644645646647 – Categorias de ternos de Catalão:
642 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4. Ed. revista pela nova ortografia. – Rio de
Janeiro: Lexikon, 2010. P. 631.
643 AROUCA, Claudio. Catalão festas e tradições. DBA Dórea Books and Art. Franca, São Paulo, 2005. P. 37.
644 Quadro baseado nas características dos ternos da cidade de Catalão, ressaltamos que estas podem se modificar em
Festas de outras regiões, por exemplo em Minas Gerais são comuns termos que não são usados em Catalão, como
marujada ou marujos, o penacho é conhecido como caboclos ou caboclinhos, existe ainda o candombe. O quadro foi
elaborado através das observações em campo, entrevistas e das seguintes referências: ENCONTROTECA (2016),
KATRIB (2008), MACEDO (2007); com o objetivo de sintetizar as informações a respeito dos ternos, mostrando ao
leitor suas diferenças e semelhanças.
Com relação a vestimenta das bandeirinhas, é comum elas estarem vestidas com saias ou calças, camisa manga longa,
chapéu e/ou luvas de tricô; existindo pequenas variações de terno para terno.
Segundo depoimento coletado através de entrevista com o 2° capitão do terno Moçambique Mamãe do Rosário
Matheus Alves, existem duas lendas que giram e torno do uso das gungas. Uma é de que as gungas são usadas para
imitar o som das correntes que eram amarradas nos pés dos escravos e a outra é a de que o som das gungas espanta os
maus espíritos de perto dos dançadores. As gungas e as pantangongas contem pequenas esferas de chumbo que
conferem a estes instrumentos o som de chocalho.
645 KATRIB, Cairo Mohamad Ibrahim. Nos Mistérios do rosário: as múltiplas vivencias da festa em louvor a Nossa Senhora do
rosário (Catalão-GO 1936-2003). 2004. Dissertação (Mestrado em História, área de concentração História Social) -
Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia-MG. 2004.
646 MACEDO, Robson Antônio, 1972 – Congada – de Catalão / Robson Macedo / Catalão – Go / 2007 / 1ª edição.
100p.
647 ENCONTROTECA. A Biblioteca da Cultura Tradicional Brasileira. Disponível em:
http://www.encontrodeculturas.com.br/encontroteca/grupo/congada-de-catalao#.VqFVudQrLIU. Acesso em 21
de janeiro de 2016.
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648A diferenciação de dançadores, brincadores e congadeiros apenas como os soldados é feita apenas com a intenção
de uma melhor compreensão do leitor, sendo que estas nomenclaturas podem ser dirigidas aos outros membros do
terno.
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Com esta estrutura, os ternos são parte essencial da Festa e participam das principais
celebrações, a primeira acontece 10 dias antes do dia 12 de outubro, na madrugada de quinta para
sexta-feira, é a Alvorada. Ainda na noite de quinta os membros dos ternos se reúnem na casa de
seus capitães, fazem suas orações e seguem em silencia até o Largo do Rosário, onde fica localizada
a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, um dos locais de maior importância simbólica da Festa. No
Largo, após a chegada de todos os ternos, o representante da Igreja abençoa a Festa para que tudo
ocorra bem, os generais dão a ordem e apitam autorizando os capitães a começarem os louvores.
Durante a semana por 10 dias, acontecem novenas, terços, missas, jantares e shows com artistas
locais. Os shows acontecem no Ranchão e os jantares no Centro do Social do Folclore e do
Trabalhador, os dois, localizados na região do Largo. A população e os turistas têm ainda a opção
de fazer compras nas tradicionais barraquinhas, que são estruturas em aço ou madeira, montadas
em lona, instaladas nas proximidades do Largo, onde são comercializados diversos produtos, como
acessórios, vestuário, calçados, brinquedos e alimentos. O Mapa 4 – Localização Igreja, Centro do
Folclore, Ranchão, Barraquinhas, mostra a vista de cima dos itens citados anteriormente:
Mapa 4 – Localização Igreja, Centro do Folclore, Ranchão, Barraquinhas.
649 GOOGLE EARTH – MAPAS. Disponível em: http://mapas.google.com. Acesso em 29 de março de 2016.
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todos deixam de lado as diferenças e dançam juntos, podemos ver essa união na fala do presidente
da Irmandade Leonardo Bueno, no ano de 2014: “Há muitas fardas que nos separa, mas uma Santa
que nos une. Salve Nossa Senhora do Rosário, viva todos os Congadeiros”650. Logo após a fala do
presidente a seguinte cantiga, muito conhecida entre a comunidade, foi entoada:
Catupé, congo, moçambique, vilão e marinheiro
Cautupe, congo, moçambique, vilão e marinheiro
Quem vier pra Catalão vai ter Festa o dia inteiro
Salve Nossa Senhora do Rosário, a congada abençoa
Nossas caixa está tocando e a cidade vai dançar
A Festa do Rosário ela é realidade
Eu quero dar um viva pro povo dessa cidade. 651
Outro pequeno verso improvisado durante o misturado, que reforça o seu objetivo de
manter os ternos unidos foi entoado pelo 2° capitão do terno Moçambique Mamãe do Rosário,
Matheus Alves: “Oi não deixa essa Festa acabar, oi não deixa essa Festa acabar, oi não deixa essa
Festa acabar, oi irmão com irmão não pode brigar”652.
No ano de 2014, aconteceu durante o misturado um fato inesperado, carregado de valor
simbólico, foi quando o presidente da Irmandade Leonardo Bueno improvisou um verso
relacionado a Igreja, onde chamava os padres para dançar com os congadeiros, e os padres, para a
surpresa de todos os presentes, desceram do presbitério e se juntaram ao louvor. Segue a cantiga
improvisada pelo presidente chamando os padres; e os versos cantados pelo capitão, Matheus
Alves, para os Padres dançarem:
Vem dançar mais eu, vem dançar mais eu, nosso Padre vem dançar mais eu
Vem dançar mais eu, vem dançar mais eu, nosso Padre vem dançar mais eu
Ei Salve a casa Santa onde Deus fez a morada, aroeira
Onde mora o cálice bento, aroeira
Oi, a hóstia consagrada, aroeira
Oi a Igreja precisa do Padre como o vinho precisa da uva
Eu preciso de Nossa Senhora como a Terra precisa da chuva.653
A importância desses versos, e dos padres terem ido dançar com os ternos, pode ficar
menosprezada se não nos lembrarmos de que a Igreja está constantemente em conflito com a
manifestação cultural, por esta conter traços de outras religiões e carregar forte sincretismo
religioso. Acompanhando a Festa, é comum ver fiéis ligados à Igreja Católica irem embora quando
os ternos começam a dançar dentro da Igreja, e ainda reclamarem da presença dos mesmos. Assim,
é importante que as autoridades da Igreja, demonstrem interesse e aprovação pela Festa.
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A Figura 6, mostra como o instrumento é construído pelos mestres dos saberes que,
possuem este conhecimento em Catalão, as informações para construção deste desenho foram
obtidas através de observações em campo entrevistas realizadas em pesquisas de campo.
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Resumo: O artigo seguinte surge na procura e reencuentro com minhas raízes culturais, em um
processo que me levou construir uma fala visual no um que a miscigenação, comum a toda a
América Latina, caracteriza seus caráter. Nas despesas da piranha de americano latina colombiana,
cidades de cidades ambulantes e estabelecimentos para a margem Magdalena, uma viagem cheio
com sentimentos e magia, uma investigação que partindo do Carnaval de Barranquilla, me leva e
envolve, pessoal e intimista, para o processo da chegada da cultura africana para a América Latina.
Surgindo um processo de mistura que inunda os sensos. A contribuição deste conhecimento em
terras americanas latinas enriquece o processo cultural e o desenvolvimento da cultura latina;
influenciando muitas das procissões que ano depois de ano em fevereiro, até terça-feira de carnaval,
um dia antes de Cinza quarta-feira, as ruas de viagem de Barranquilla com a música deles/delas,
danças e cumbiambas. Trabalhe rituais que reiteradamente como um para renascido, eles dão
começo a um período novo do ano onde a coisa profana e a coisa sagrada, eles misturam usando
o corpo a dança e a máscara como forma de expressão. O rito nos dias de carnaval a pessoa vive
em todas as despesas de Caribe na América, a decoração cerimonial nos treinadores deles/delas e
a coloração da simbiose de festa entre natureza e ações de humano. Esta contribuição de
convicções, característica de cerimônias ancestral e característica da cultura africana, em território
americano latino gera vivencias e possibilidades novas, enquanto se tornando criações de ricos
estéticas visualmente e eles se tornam.
Palavras chave: Carnaval. Ritual. África. Latinoamérica. Barranquilla.
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Actualmente África tiene un área total de 30.272.922 kilómetros, es hoy la tercera mayor
geografía del mundo en extensión, con cientos de pueblos y distintas culturas. Al sur o al este del
continente se cree ubicar la cuna de la civilización humana de dónde proceden las sucesivas
especies ancestrales, incluido los primeros homo sapiens, que dieron lugar a los seres humanos hace
cerca de 190.000 años, se fueron expandiendo por toda la superficie del planeta. Según las
estimativas de la ONU, se calcula que hoy viven en África más de 800 millones de personas.
En su diccionario de las religiones, Mircea Eliade y Ioan Couliano también hacen referencia
a la aparición del hombre en África, profundizando una problemática la gran diversidad de "razas"
y "áreas culturales” demostrando la carencia para distinguir a los pueblos africanos:
Fuente: Fotografía Javier Mojica Madera - Comparsa Son de Negros de Manatí, Carnaval de Barranquilla 2016
655 COULIANO, Ioan P. y ELIADE, Mircea. Diccionario de las religiones. Paidós Orientalia, Barcelona
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No obstante, las fronteras lingüísticas tampoco son capaces para la delimitación de las
religiones tradicionales africanas. Aunque se podría afirmar que éstas se profesan aún hoy en la
mayor parte del continente, englobándose en el impreciso grupo al que se denomina "animista"
con el que se suele definir a las distintas creencias en las que espíritus, o seres personalizados
sobrenaturales, habitan objetos animados e inanimados.
Aunque también se debe recordar que dentro de dicha concepción cabe una infinidad de
variantes del fenómeno, asimismo, suelen darse bajo la apariencia sincretizada del cristianismo, las
creencias animistas se basan en el hecho que son los seres intangibles los que, a través de ciertos
acontecimientos u objetos, pueden ayudarle al hombre a perder o a conservar la fuerza vital que
fluye de sus ancestros, que debe transmitirse a sus condescendientes. Se trata también de la creencia
de que el espíritu puede abandonar a voluntad el cuerpo que habita y su pérdida definitiva supone
la muerte.
Fuente: Fotografía Javier Mojica Madera – Comparsa Son de Negros de Manatí, Carnaval de Barranquilla 2016
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Al hacer referencia a cualquier elemento cultural de África, se hace necesario evitar el error
de la generalización y hablar de características más comunes o similares a determinados grupos o
características específicas de pueblos concretos. En este caso, se tratará las fiestas y religiones
africanas tradicionales que tienen presencia destacada en América, especialmente las que
constituyen los carnavales en el Caribe Latinoamericano.
Fuente: Fotografía Javier Mojica Madera - Comparsa Son de Negros de Manatí, Carnaval de Barranquilla 2016
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"el mayor número de practicantes (15 millones), en Nigeria y países limítrofes, como Benin.
Recientemente, un número relativamente importante de africanistas ha investigado sus inagotables
sutilezas".
Fuente: Fotografía Javier Mojica Madera - Comparsa Son de Negros de Manatí Carnaval de Barranquilla 2016
El pueblo yoruba, ocupa la parte sudoeste de Nigeria, extendiéndose hasta Dahomey. Los
límites de la cultura yoruba, al norte y este, llegan al río Níger. Las ciudades-estado yoruba formaban
parte de más de 25 reinos centralizados. De todos ellos, se reconoce universalmente a Ile-Ife como
el más importante. Ife-Ife –cuyo significado etimológico es "tierra extendida"– ya mantenía su gran
importancia como una ciudad-estado sagrada de los Yorubas, base de su pensamiento religioso,
cientos de años antes de la llegada de las expediciones portuguesas a África en el siglo XV.
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Fuente: Fotografía Javier Mojica Madera - Comparsa Son de Negros de Manatí Carnaval de Barranquilla 2016
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Fuente: Fotografía Javier Mojica Madera - Comparsa Son de Negros de Manatí Carnaval de Barranquilla 2016
Por lo tanto, el sistema religioso que hoy se conoce como santería, se remonta a una antigua
tradición religiosa que tuvo su desarrollo en una extensa región de África, que comprendía el sureste
de Nigeria y áreas adyacentes como Dahome y Togo, donde se establecieron los grupos que
hablaban yoruba. Los inmigrantes se mezclaron con los nativos trayendo consigo aportes espirituales
importantes que se incorporan como resultado del sincretismo de la religión yoruba, con el
catolicismo, conservando la cosmogonía africana.
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El origen de los cultos y fiestas populares afro brasileños y caribeños, generalmente tiene
distinta procedencia aunque presentan rasgos auténticamente africanos de los yoruba, la danza
extática, como elemento catártico recurrente en la concepción religiosa de esta civilización, las
creencias que poseían los pueblos fueron trasladadas desde el África Occidental, contactándose
con la religión cristiana propia de los esclavistas.
Fueron muchas las aportaciones traídas al Nuevo Mundo, del continente Africano, entre
ellas sus religiones y sus ceremonias de carácter ritual, en las que el culto a los espíritus siempre
estuvo presente. Dichas aportaciones forman un conjunto de signos que hace referencia directa a
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los componentes étnicos de la identidad del afroamericano en conjunto con el modelo cristiano-
europeo, con el que se conforma una de culturas las más coherentes y sólidamente establecidas a
lo largo de la dialéctica de contactos entre las distintas civilizaciones.
Los orígenes del culto ritual en las comparsas del Carnaval de Barranquilla, derivación de
la multiplicidad cultural de la región Caribe Colombiana, las referencias de este jolgorio son el
cimarronaje y la conservación de las prácticas culturales, sus raíces africanas en Latinoamérica.
El hecho de que los colonizadores cristianos, dueños de esclavos, no les permitían practicar las
religiones animistas procedentes de África estos sortearon dicha prohibición, concluyendo que los
santos cristianos no serían más que la simple manifestación de sus dioses. Así, mientras el
colonizador pensaba que sus esclavos se habían convertido en buenos cristianos loando a sus
santos, estos, en realidad, seguían sus prácticas tradicionales. En los estudios del Carnaval
Barranquillero la Antropóloga Nina S. de Friedemann en su indagación etnográfica afirma: “El
ritual en los carnavales es trasmitido oralmente”. Un elemento que aún denota este carácter oral
es la diversidad de grafías de los nombres de las comparsas más tradicionales del Carnaval; Congós,
Son de negro de Manatí. y Farotas de Talaigua. Herencia eminentemente Africana.
Según el profesor José Millet, la impronta de las religiones yoruba no existe división entre
el mundo animado e inanimado, todo está dotado de vida y se consigue integrar el hombre a su
medio ambiente, donde convive con sus ancestros, a quienes veneran, por lo que se establece un
profundo respeto a la naturaleza y hacia todos los seres, creencias y ritos. En ocasiones, estos
caracteres se entrecruzan con otros de naturaleza mágica:
La literatura oral enseña que en una ocasión los dioses del bien abandonaron la
tierra y se convirtieron en esos elementos de la naturaleza. En África occidental
Ogún era un reputado cazador y Oya, Obba y Oshun son ríos. En primera
instancia, con esa identificación la santería busca una relación armoniosa con la
naturaleza en la que las plantas, los animales y las rocas están al mismo nivel
jerárquico que los seres humanos. (...)
El hecho de que los dioses benévolos abandonaran la tierra puede entenderse
como la caída o la muerte de los ancestros, entendidos éstos como aquéllos que
pisaron la tierra antes que nosotros. El orisha puede ser identificado con un
ancestro divinizado, o, como dijera el conocido etnólogo Pierre Verger, "una
forma pura, Ase inmaterial" que hace perceptible al hombre cuando se "monta"
o apodera de él mediante el trance o la posesión ritual.656
656MILLET, José. Tiembla Tierra. Arte ritual afrocubano. Fundación Eugenio Granell. Santiago de Compostela, 1998.
p. 28.
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Fuente: Fotografía Javier Mojica Madera - Comparsa Son de Negros de Manatí, Carnaval de Barranquilla 2010
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Resumo: O presente artigo pretende pensar o conceito de montagem como uma forma particular
e heterogênea de construção do pensamento no projeto Atlas Menmosyne de Aby Warburg. Através
da montagem, Warburg propõe uma reconfiguração dos sentidos habituais das imagens, uma
criação de novas possibilidades de sentido desafiando a lógica, a linearidade, a cronologia do tempo.
Partindo sempre da incidência sobre o que existe entre uma imagem e outra, sobre o que as
aproxima ou as distancia e sobre o intervalo e que ganham novos significados na ativação de forças
potencializadas por uma montagem que age no que as tensões entre cada imagem geram, ou seja,
numa relação de forças e de não contingência. Para isso, fazer-se à necessário estabelecer relações
entre o Atlas Mnemosyne com algumas produções artísticas que estabelecem relações com sua
proposta, permitindo assim uma análise distinta das imagens produzidas e tendo como escopo a
montagem proposta por Warburg: da obra Fragmento amarelo (1962/76) do artista brasileiro Wesley
Duke Lee e da obra intitulada Atlas Eidolon (2014), do artista espanhol Erick Beltrán, será
apreendido os posicionamentos diversos assumidos no regime contemporâneo das imagens, que
num determinado ponto se convergem, tendo como ponto de partida o arcabouço conceitual
warburguiano.
657 “Nous sommes em gros dans un état de quasi-analphabetisme à l'égard de l'image”. DERRIDA, Jacques. &
STIEGLER B. Echographies de la television. Entretiens filmés. Paris: Galilée/INA, 1996. (Tradução do autor)
658 BELTING, Hans. Antropologia da imagem: para uma ciência da imagem. Lisboa: KKYM+EAUM, 2014, p. 8.
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659 MICHAUD, Alain-Philippe. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
660
Ao longo dos anos houve tentativas de exposição do Atlas, como por exemplo a versão Dadealus (2007,) que foi
feita a partir dos originais – versão Letzte (A-79series, 1-79series) – do Atlas que está depositada no Instituto Warburg
em Londres.
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que a cercam.
Mnemosyne introduz na história da arte uma forma de pensamento que, usando figuras, não
almeja articular significações, mas produzir efeitos661. Efeitos esses que são feitos num movimento
intelectual que acontece dentro e fora de cada reprodução fotográfica no Atlas – dentro, no sentido
do estabelecimento que cada elemento interpõem dentro do quadro; e fora, na questão onde o
processo de articulação que Warburg operou nas imagens obedece a uma espécie de estrutura visual
que pretende montá-los de acordo com a relação intrínseca estabelecida com outra imagem.
Movimento perpétuo, montagem através de choques produzidos nas relações entre cada
reprodução fotográfica dentro de cada prancha, processo intelectual que se estabelece entre cada
prancha.
Todo processo imagético construído no Atlas aparelha-se numa espécie de operação
intelectual semelhante aos processos produzidos numa mesa de corte cinematográfico, construindo
não através de blocos imagéticos e pensando a imagem circunscrevendo-a dentro de seus limites –
cada reprodução fotográfica – mas sim através das contingências estabelecidas entre cada imagem,
do intervalo entre cada imagem que proporciona uma nova forma de pensar os modos de visão da
imagem.662 É o intervalo estabelecido entre cada imagem que dispõe das ferramentas necessárias
para pensarmos os conceitos que envolvem, por exemplo, a montagem cinematográfica
desenvolvida pelos cineastas soviéticos – em especial Eisenstein e Vertov. A operação praticada
por Warburg é menos doutrinaria e pedagógica do que aquela pensada pelos russos no inicio do
século XX. Ele estendia suas operações para questões que envolviam o estatuto da imagem –
regime das imagens – através das sobrevivências [Nachleben]663 condicionadas através dos sintomas
psíquicos das imagens.
Podemos inferir que Mnemosyne constituiria como um tipo de inventário das formas antigas
que perpassam até hoje através de elementos postos em movimentos e ativados pela memória
coletiva – num sentido macroscópico – e pela memória de cada sujeito no tempo [Zeit] – estrutura
microscópica do pensamento. Após passar por uma Grande Guerra, e tendo catalisado as tensões
e horrores que estes eventos provocam numa sociedade, Warburg agia como uma espécie de
sismógrafo que descreve através de uma imagética codificada. Partindo de uma catástrofe
[Urkatastrophe] Warburg, como historiador da cultura, teve de se confrontar com uma tragédia da
memória no ocidente prolongada pela crise que uma guerra, mesmo terminada, promove nos
corpos e mentes.
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Mnemosyne seria esse sintoma, essa imagética codificada, que é menos uma tentativa de
inventariar (em sua acepção museológica de catalogação) mais uma exasperação de re-constituir as
partes da memória estilhaçada que uma tragédia se desfaz. Portanto, pode ser encarado também da
seguinte maneira: como forma de inventariar as ações pela qual a sociedade produziu e registrá-las
como documentos que descreve uma vontade exasperada de construir uma genealogia da cultura
ocidental através de uma antropologia dos gestos e sintomas da imagem.664
664 O conceito de Kulturwissenchaft, elaborado por Warburg açambarca essa proposta de pensamento desenvolvida. Ver
WIND, Edgar. Warburg's Concept of Kulturwissenschaft and its Meaning for Aesthetics. In: The Eloquence of Symbols:
Studies in Humanist Art. Ed. Jaynie Anderson. Rev. ed. Oxford: Clarendon, 1993. p, 21-36.
665 DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta, trad. R. C. Botelho e R. P. Cabral, Lisboa,
KKYM+EAUM, 2013. p. 19 – 20.
666 Filme produzido em 1927 no momento de comemoração dos dez anos da Revolução de Outubro, encomendado
pelo estado soviético. Nas palavras de Einsenstein: “[...] se trata mais de uma série de ensaios visuais em torno de temas
extraídos dos fatos de outubro de 1917 do que a tentativa de um relato histórico voltado para a representação integra
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Imagem 1 - Aby Warburg, Der Bilderatlas Mnemosyne [Atlas Mnemosyne], 1927-1929, prancha 79). Londres, The Warburg
Institute Archive. Fonte: WARBURG, Aby. Gesammelte Schriften II-I. Der Bilderatlas Mnemosyne (editado por Martin
Warnke e Claudia Brink). Berlim, Akademie Verlag, 2000, 2a ed. 2002. Versão castelhana: CHECA, Fernando (org.)
Atlas Mnemosyne. Trad. Joaquim Chamorro Melke. Madrid: Ediciones Akal, 2010.
desses mesmos fatos.” In: XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3. ed. São Paulo,
Paz e Terra, 2005, p. 131.
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Alguns apontamentos importantes devem ser feitos para percebermos a ideia de Warburg
de que a cultura ocidental é esquizofrênica e de que essa esquizofrenia é interna às imagens na
medida em que estas trazem consigo, no percurso trans-histórico que efetuam como sobrevivências
espectrais, como Nachleben [sobrevivência] o conflito que está na base da sua formação: entre a
representação racional e a representação mágica da vida, entre o logos e o pathos, entre a emoção
primitiva e a reflexão que pretende dominá-la.670 O conflito está na base da sua formação: entre a
representação racional e a representação mágica da vida, entre o ethos e o pathos, entre a emoção
primitiva e a reflexão que pretende dominá-la. Gestos fundamentais transmitidos até nós.
667 SOMAINI, Antônio. Genealogia, morfologia, antropologia das imagens, arqueologia das mídias. In:
EINSENSTEIN, Serguei. Notas para uma história geral do cinema. Tradução: Lúcia Ramos Monteiro e Sonia Branco. 1.
ed. Rio de janeiro: Azougue, 2014, p. 264.
668 ________________. Genealogia, morfologia, antropologia das imagens, arqueologia das mídias, p. 267.
669 ________________. Genealogia, morfologia, antropologia das imagens, arqueologia das mídias, p. 265.
670 GUERREIRO, António. As imagens sem memória e a esterilização da cultura. Portugal: Porta 33, 2012.
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linguagens e tendências artísticas na qual teve contato em suas viagens pelos Estados Unidos (onde
teria contato com as recentes produções da pop art; e na Europa, onde se inteirou das novas
propostas em torno dos novos processos da figuração na arte contemporânea) sem, no entanto, se
fixar em nenhuma delas, o que talvez explique porque foi chamado por alguns de “atravessador de
estilos”673.
Num processo labiríntico, que remete em vários sentidos à atitude duchampiana, Duke Lee
enredaria, desde o início de sua trajetória, obras, imagens e processos diferenciados ou mesmo
antagônicos, num mesmo contexto. Wesley Duke Lee tornou-se, um dos mentores da fundação
do polêmico e efêmero Grupo Rex674 (criado em junho de 1966), que combatia a supremacia e a
acomodação da crítica formalista, o mercado de arte, os salões e bienais, redutos considerados por
ele e pelos companheiros conservadores em relação aos novos paradigmas visuais.
A obra de Wesley Duke Lee atingirá novos rumos a partir do final da década dos anos 60,
quando tem contato, através das leituras, das teorias do inconsciente de Jung, e então passou a se
interessar pelas diversas camadas presentes entre o sujeito – ou seja, uma psicologia individual – e
a memória coletiva, que é expressa por uma cultura e descarregada nele através de elementos
diversos e do retorno continuo e cíclico de determinadas prerrogativas, temas e imagens. Com isso,
cresce o interesse de Duke Lee pela antiguidade clássica e seu impacto na contemporaneidade; em
como certos elementos, permanecem até hoje, entre nós – sejam eles reativados pela memória,
coletiva ou não.
O interesse de Wesley pela civilização clássica surge como matriz fundamental do arquivo
visual que constitui a cultura ocidental. Dentro dessas novas pesquisas que se inscrevem em sua
produção, estão dois painéis realizados pelo artista entre 1962 e 1976, intitulado Fragmento amarelo
II. Essa obra apresenta uma coleção de imagens, afixadas sobre um painel de madeira, que guarda
uma semelhança inusitada com os painéis que compõem o Atlas Mnemosyne de Warburg. Nesses
painéis, imagens de diversas épocas e origens distribuem-se em torno de uma obra clássica (no
673 COSTA, Cacilda Teixeira da. (org.). Antologia Crítica sobre Wesley Duke Lee. São Paulo: Galeria Paulo Figueiredo, 1981.
674 As origens do grupo remetem às críticas e polêmicas que cercam as exposições de Wesley Duke Lee, na Galeria
Atrium (1964), a de Waldemar Cordeiro (1925-1973) e Augusto de Campos (1931) e a mostra de Geraldo de Barros e
Nelson Leirner (1965), todas em São Paulo. Ao lado disso, a retirada de um quadro (considerado subversivo) de Décio
Bar da exposição Propostas 65, realizada na Fundação Armando Álvares Penteado – Faap, em São Paulo, dá lugar à
saída de vários artistas da exposição (entre eles, Wesley, Leirner e Geraldo de Barros). Desses acontecimentos, resulta
a aproximação de Nelson Leirner e Geraldo de Barros com Wesley Duke Lee e a ideia de criação da cooperativa,
batizada como "Rex", termo utilizado pelo poeta Carlos Felipe Saldanha (1933) no texto de apresentação da exposição
de Wesley de 1964. A consideração da produção do grupo permite entrever a diversidade de estilos, ainda que os
trabalhos produzidos se liguem às novas figurações e ao novo realismo em pauta nos Estados Unidos e na Europa,
sobretudo às experiências da arte pop. Além disso, todos eles dialogam com a realidade urbana, em obras de franco
caráter experimental. As palavras de Wesley Duke Lee à imprensa, por ocasião da abertura da Rex Gallery, são
emblemáticas: "Fazemos parte de uma tendência de experimentação, que podíamos dizer ser nascidas nos Estados
Unidos (...). O espírito de nossa galeria (e do jornal), consequentemente, é mostrar essa arte à medida que ela vai sendo
processada e desenvolvida". In: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo434025/grupo-rex. Acesso em
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primeiro, a cabeça da figura mitológica da Medusa; na segunda o torso de uma escultura retirada
do Parthenon, em Atenas).
Assim, em Fragmento amarelo II, em diferentes expressões da imagem, ele modifica os
sistemas tradicionais de representação, vivenciando intensamente cada meio disponível, da têmpera
à xerox. Para ele, tudo está dentro de um contexto onde se relacionam os diversos procedimentos
necessários para a criação artística, mas não existe nenhum sentido especial se não passar por eles
um conceito, o fazer com significado decorrente da presença de uma verdade profunda. Partindo
a reprodução fotográfica da figura mitológica da Medusa se encontra, em tamanho reduzido (é a
menor reprodução dentro da prancha), próximo no centro. No entorno Wesley Duke Lee monta,
partindo de diversos suportes, uma série de imagens que, num olhar não atento, não estabelecem
uma relação intrínseca entre elas. Porém é essa heterogeneidade das imagens que torna a obra
unívoca e capaz de ativar e estabelecer relações distintas, operando choques pelas imagens,
produzindo efeitos que mostram as similitudes e contrastes que a imagem enfrentam em suas
migrações e sobrevivências pelo tempo e espaço.
Nesse ponto, tanto a obra de Duke Lee e quanto o Atlas de Warburg convergem num
ponto central: realizar um mapeamento das influências de determinadas imagens na cultura na qual
ambos estão inseridos, cada em seu tempo. Ambos sistematizam seus projetos de forma a coloca-
los como catalizadores sobre as tensões causadas pelos agenciamentos imagéticos. Ou seja,
operacionar temporalidades distintas para empreender uma verdadeira genealogia de como cada
imagem comporta, partindo de suas sobrevivências, sintomas oriundos do espaço gerado através
do enfrentamento entre o individuo e o objeto.
Os novos meios de reprodução da imagem – como a invenção da fotocópia, a reprodução
fotográfica – atuam como ato potencializado no intuito de quebras as fronteiras impostas pelos
processos de circulação de obras e imagens anteriormente praticados. Esses novos meios, também
exerceram um grande impacto na formulação do Atlas Mnemosyne, Warburg – desde a primeira
Grande Guerra – monta um grande acervo de reprodução fotográfica que lhe auxiliará na
montagem do seu Atlas. Ou seja, aqui o avanço tecnológico é visto como algo que dá liberdade às
imagens para circular através de tempos e espaços distintos, heterogêneos.
Com isso, vale dimensionar a importância para Wesley Duke Lee dessa herança através das
imagens legadas a nós, e como se comportam perante a contemporaneidade. Aqui, a preocupação
do artista se emparelha com as investigações de Warburg: saber quais os efeitos causados pela
influencia das imagens, provindas de outros tempos, na cultura na qual estão inseridos. Ambos,
tentando compreender esses processos em torno das imagens, se utilizam de uma espacialização
visual para operacionar essas questões, tendo a montagem como meio de construir um arcabouço
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Imagem 2 - Wesley Duke Lee, Fragmento Amarelo II, as Sombra Ações, 1962-1976; colagem, desenhos, gravuras,
estampas, reprografia e têmpera; 123 x 123 cm. São Paulo, Wesley Duke Lee Art Institute. Fonte: COSTA, Cacilda
Teixeira da. (org.). Antologia Crítica sobre Wesley Duke Lee. São Paulo: Galeria Paulo Figueiredo, 1981.
Do outro lado, Erick Beltrán criou uma escultura e uma série de diagramas com imagens e
animações de discos giratórios que põe em movimento elementos imaginários. A intenção é
representar a dinâmica da memória coletiva, através de um efeito visual, hipnótico. Erick Béltran é
um artista investigador, cujo projetos descrevem visualmente teorias científicas, históricas e sociais
para compreensão dos processos de formação e transmissão dos saberes através da memória
coletiva. Seu trabalho é centrado nos sistemas de combinação de símbolos, na qual ele inscreve
como se constituem a realidade através das imagens partindo a incidência e relação com a percepção
do sujeito em apreender essa realidade que o circunscreve. Para isso ele joga com as relações de
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675 Sistema cosmológico de rodas giratórias que introduz, partindo da junção das imagens, um movimento
concêntrico, ativando assim a memória pelas imagens.
676 Palma de Mallorca, 1232-1316. A partir de uma revelação de Cristo, elaborou um sistema de imagens explicativo
ao alcance de todos (arte) com a intenção de difundir o cristianismo e converter judeus e muçulmanos.
677 Esquema de rodas que produz combinações de imagens, funcionando com base em movimentos giratórios que
recordam o sistema de Ramon Llull.
678 Italia, 1548-1600. Astronomo, filósofo e poeta cuja posição questionou a doutrina filosófica e teológica da igreja
católica. Rejeitava a ideia de que a Terra era o centro do universo e chegou a afirmar que vivemos em um universo
infinito repleto de outros mundos. GIORDANO, Bruno. Las sombras de las ideas
(De umbris idearum). Madrid: Siruela,
2009.
679 WARBURG, Aby. Gesammelte Schriften II-I. Der Bilderatlas Mnemosyne (editado por Martin Warnke e Claudia
Brink). Berlim, Akademie Verlag, 2000, 2a ed. 2002. Versão castelhana: CHECA, Fernando (org.) Atlas Mnemosyne.
Trad. Joaquim Chamorro Melke. Madrid: Ediciones Akal, 2010.
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Imagem 3 - Erick Beltrán, Atlas Eidolon, 2014; estrutura metálica de anéis giratórios. México, Museo
Tamayo. Fonte: KAUTZ, Willy. Atlas Eidolon. Cidade do México: Museo Tamayo Arte Contemporáneo
Internacional, catálogo de exposição, 2014.
Para tanto, Béltran busca referências – além de Warburg, claro – no pensamento dos
sistemas da arte da memória medievais e renascentistas, via Ramón Llull e Giordano Bruno. Essa
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classe de arte da memória que começou na idade média e continuou no Renascimento pretendia
culminar a arte clássica em uma nova sintesis, de maneira a alcançar camadas de visisualidades e
poder.680 Essa era à arte da memória que foi desenvolvida por Ramón Llull.
Por fim, a hipótese de Erick Béltran reside na qual existe “máquinas” de montagem de
imagens que nos mantem em uma narrativa cíclica, numa espécie de hipnose. Para contrastar com
essa ideologia e transformar o mundo tem-se que “atacá-la” em seu próprio campo de operação, a
saber, o da imagem. Portanto, para Erick Béltran, Warburg seria o meio pela qual se dá esse ataque
as imagens no intuito de pô-las como epicentro das investigações acerca das interações culturais.
O Atlas Menmosyne, constituiria essa “outra máquina” de montagem, essa mesa operatória que iria
de encontro a essas narrativas cíclicas que incidem sobre as imagens, para confrontá-las e atriblui-
las outro valor.
680 YATES, Frances. A Arte da Memória. Campinas: Editora Unicamp. 2008, p. 200.
681 GUERREIRO. As imagens sem memória e a esterilização da cultura. p. 2.
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entre o mnemônico e o traumático numa forma de rastrear, através das inúmeras camadas de
transmissão cultural, as imagens evocadas como sintomas dessa relação polarizada que mostram
esse lugar de intermédio do processo formação da cultura, através do diálogo entre a imagem e o
mito.
Pensar a complexidade das imagens produzidas em sua época era uma tarefa que Warburg
se propôs a analisar no fim de sua vida. Ele percebeu que somente partindo de um modo crítico
de pensar o que se perde e o que se ganha com essa “salada de imagens” (imagem 24a) é que,
necessariamente podemos chegar a um ponto de intersecção onde, as operações da imagem e sobre
a imagem correspondem a um novo paradigma. Onde, de alguma forma, subverteu as relações
enraizadas pelas formas engessadas de se pensar a historicidade das imagens e suas migrações.
O que Warburg proclama quando diz que as imagens ali dispostas na primeira página do
jornal hamburguês seriam, na verdade, uma “salada de imagens” e que, consequentemente, não
escapariam a uma esterilização. Isso, por suposto, diz mais sobre as imagens – a que estamos hoje
em dia submetidos – que nos são apresentada de forma violenta, numa tensão que revela as suas
diversas formas de utilização682. Aqui, penso eu, Warburg estaria – ao utilizar essas imagens do
jornal – preocupado sobre a violência cometida contra o pensamento e a palavra, da destituição do
caráter do sujeito 683. Observando como a abstração matemática e o vinculo do culto de veneração
cria um ponto de polarização entre a concepção artístico-estético e a prático religioso. Que, num
ponto, se manifesta a partir da destituição do espaço de pensamento[Denkraum]684 que se constrói
entre lógica, criada entre o ser humano e o objeto, por meio da designação e a magia que destrói
esse mesmo espaço reflexivo entre o ser humano e o objeto por meio do vinculo a superstição.
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Resumo:
O presente trabalho apresenta resultados preliminares de uma pesquisa de iniciação científica
(PIBIC) que está sendo desenvolvida no Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória (LPPM) da
UFPB, cujo objetivo é estudar a presença da arquitetura neoclássica na cidade de João Pessoa
através de edifícios institucionais que foram construídos ou remodelados a partir do final do século
XIX segundo as prerrogativas do estilo. A pesquisa destaca os principais indicadores formais que
qualificam os edifícios identificados como neoclássicos, trata dos respectivos históricos
arquitetônicos, e analisa seu grau de fidedignidade a matrizes de metrópoles. Para tanto, o ensaio
recorre à historiografia sobre o tema em geral, e sobre os exemplares arquitetônicos em específico,
consubstanciando o argumento com a pesquisa in loco, onde o levantamento fotográfico constitui
ferramenta basilar para a ilustração do trabalho. Considerando que alguns desses prédios foram
totalmente desfigurados em nome de vertentes arquitetônicas emergentes no segundo quartel do
século XX, a pesquisa iconográfica foi fundamental para a construção de um quadro de edificações
neoclássicas da época, cujo objetivo era conferir à cidade uma tônica urbanística distinta daquela
que caracterizara o período colonial. A partir dos recursos supracitados, o trabalho intenta resgatar
a importância do estilo naquele momento histórico da antiga Parahyba, a fim de reconstruir a
paisagem da cidade como linguagem imagética de um contexto histórico em que a apropriação do
espaço conduziria a construção de um cenário arquitetônico que materializasse os padrões
imperiais. Ao mesmo tempo, o estudo atenta para a necessidade da preservação desse valioso
patrimônio, tendo em vista a irreversibilidade das perdas ocorridas no século passado devido ao
desconhecimento por parte da população, e principalmente à inexistência de instrumentos legais
que protegessem o aludido repertório arquitetônico.
Palavras-chave: Arquitetura; Neoclássico; Parahyba
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O estilo se consolidou cerca de um século depois, no Brasil, apesar de ter seus primeiros
ensaios neoclássicos promovidos por profissionais trazidos pela Missão Francesa, a convite de D.
João VI em 1808. Essa tendência artística teve como sede primeira a cidade do Rio de Janeiro,
enquanto capital do Império, tendo, posteriormente se difundido em outras capitais, como o
Recife, que ainda ostenta precioso legado arquitetônico do gênero. A antiga cidade da Parahyba foi
igualmente contemplada com edificações neoclássicas, tendo algumas delas sido alteradas a posteriori
para atender vertentes ‘modernizantes’.
Considerando o caráter irreversível dessas mudanças e a insipiência da população, até
mesmo da academia sobre a importância do patrimônio neoclássico para a história da cidade de
João Pessoa, o objetivo do presente trabalho é estudar os edifícios construídos segundo os moldes
do estilo na capital, destacando sua localização, função, e os elementos formais que os identificam
como exemplares incontestes do neoclássico.
O trabalho foi desenvolvido segundo uma cuidadosa pesquisa bibliográfica e o acesso à
iconografia de edifícios do gênero na cidade, alguns dos quais já não apresentam feições
neoclássicas. Foram consultados bibliotecas e arquivos – a exemplo do IPHAEP e do IHGP – e
realizadas visitas in loco para fins de levantamento fotográfico do patrimônio.
O corpus do trabalho está fundamentado em três capítulos-chave: o primeiro trata da gênese
do neoclassicismo, apontando a sua consolidação na Europa e a sua disseminação além desse
continente; o segundo aborda a presença da linguagem no Brasil e a conjuntura que o acolheu; e o
terceiro destaca a produção neoclássica na Parahyba, ressaltando as edificações mais relevantes no
âmbito institucional.
O neoclassicismo na arquitetura
O movimento neoclassicista surgiu na Europa por volta de 1760, sendo constituída como
um dos desdobramentos da Revolução Industrial, cujo contexto apontava para a necessidade
urgente de retomada da razão nas ações políticas e sociais através do pensamento iluminista
efervescente nos principais centros europeus.
No âmbito da arquitetura esse pensamento se concretizou através da iniciativa de subtrair
da produção dos edifícios os excessos adotados no barroco tardio e no rococó, caracterizados pela
profusão ornamental e pela utilização de formas complexas e extravagantes, desprovidas do
componente função. Para reverter tal quadro, a produção arquitetônica devia recobrar seu fôlego
nos princípios greco-romanos, que refletiam submissão ao domínio do pensamento e da razão
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685 CZAJKOWSKI, Jorge. Guia da Arquitetura Colonial Neoclássica e Romântica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora
Casa da Palavra, 2000. p. 26.
686 ________. Guia da Arquitetura Colonial Neoclássica e Romântica no Rio de Janeiro, p. 26-27.
687 BENÉVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998. p. 28.
688 ________. História da Arquitetura Moderna, p. 62.
689 SUMMERSON, John. A linguagem clássica da arquitetura. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2014. p. 101.
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O neoclássico no Brasil
Após a chegada da Família Real no Rio de Janeiro, no início do século XIX, são tomadas
as primeiras iniciativas no sentido de modernizar a capital e adequá-la aos padrões imperiais. É
nesse contexto que se inicia a difusão da arquitetura neoclássica no Brasil. 690 A então capital do
Brasil não se encontrava à altura das exigências da Corte, tendo como referência Lisboa, que por
sua vez já ostentava o neoclassicismo nos projetos elaborados para a reconstrução da capital após
o terremoto de 1755.691 Nesse ínterim, os engenheiros militares trazidos de Portugal para o Brasil
praticavam um “classicismo comedido e racionalista”,692 e, segundo tal discurso chegaram a
desenvolver uma vertente de ensino da arquitetura no Brasil oitocentista. Outra vertente que
merece destaque por sua influência é a tradição francesa dos arquitetos acadêmicos, que
preconizava um classicismo teórico típico da École de Beaux-Arts, onde a monumentalidade era um
pressuposto básico.693
Pela reduzida quantidade de arquitetos formados na Academia de Belas-Artes, os padrões
estéticos por ela preconizados foram seguidos também pelos engenheiros locais, civis e militares.694
Esses padrões eram caracterizados pela simplicidade de formas e pela clareza construtiva,
“formando conjuntos, cujas linhas severas evidenciavam um rigoroso atendimento às normas
vitruvianas”. 695
Estudos recentes sobre a volumetria dos edifícios neoclássicos no Brasil evidenciam quatro
soluções gerais cujos partidos se apresentam conforme os esquemas abaixo (Figura 01). 696
690 CZAJKOWSKI. Guia da Arquitetura Colonial Neoclássica e Romântica no Rio de Janeiro, p. 29.
691 MOURA FILHA, Maria Berthilde. O cenário da vida urbana: a definição de um projeto estético para as cidades brasileiras na
virada do século XIX / XX. João Pessoa: Editora Universitária, 2000. p. 48.
692 SOUSA, Alberto. O Ensino da Arquitetura no Brasil Imperial. João Pessoa: Editora Universitária, 2001. p. 84.
693 ________. O Ensino da Arquitetura no Brasil Imperial, p. 29.
694________. O Ensino da Arquitetura no Brasil Imperial, p. 80-81.
695 REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. 4 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978. p. 117.
696 MENDES, Chico; VERÍSSIMO, Chico; BITTAR, William. Arquitetura no Brasil de Dom João VI a Deodoro. Rio de
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Fonte: MENDES, Chico; VERÍSSIMO, Chico; BITTAR, William. Arquitetura no Brasil de Dom João VI a Deodoro. Rio
de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2010. p. 70
No primeiro partido era adotado o pórtico com ordens superpostas, com dois ou três
pavimentos de altura, enquanto o restante da composição permanecia com o térreo. A solução de
origem maneirista, inspirada na Igreja de Gesú em Roma (projetada por Vignola), fora adotada,
por exemplo, no edifício da antiga alfândega do Rio de Janeiro (Figura 02).697
Figura 02: Fachada do edifício da Alfândega, por Grandjean de Montigny (1819-20), Rio de Janeiro
Fonte: TIRAPELI, Percival. Arte imperial: do neoclássico ao ecletismo – século 19. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 2010. p. 16.
Figura 03: Palácio Itamaraty, Rio de Janeiro, 1854 Figura 04: Solar Benfica, Recife
Fontes: TIRAPELI, Percival. Arte imperial: do neoclássico ao ecletismo – século 19. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 2010. p. 10. / SOUSA, Alberto. O Classicismo Arquitetônico no Recife Imperial. João Pessoa: Editora
Universitária, 2007. p. 62.
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Figura 05: Sede da APL, Recife, 1870 Figura 06: Teatro de Santa Isabel, Recife, 1850
Fontes: SILVA TELLES, Augusto Carlos de. Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos do Brasil. 2 ed. Editora MEC –
FENAME, 1980. p. 56 / MONTEZUMA, Roberto. Arquitetura Brasil 500 anos – uma invenção recíproca. Recife:
Universidade Federal de Pernambuco, 2002. p. 149.
O modelo de templo romano também foi uma variante produzida no Brasil, porém com
menor incidência. O prédio que mais se aproximou dessa morfologia foi a Igreja de Nossa Senhora
da Glória do Largo do Machado, no Rio de Janeiro.699 Outras edificações foram erguidas de acordo
com o modelo, a exemplo da igreja protestante dos ingleses (Figura 07), em Salvador.
Fonte: MONTEZUMA, Roberto. Arquitetura Brasil 500 anos – uma invenção recíproca. Recife: Universidade Federal de
Pernambuco, 2002. p. 151.
Outros recursos mais frugais vieram à tona baseados nos partidos que surgiram em meados
de 1830, quando o neoclássico foi sendo adotado no Rio de Janeiro e imediações, bem como na
capital pernambucana. Em 1840, a linguagem já era a eleita pela maioria dos projetistas e utilizada
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nos desenhos de prédios públicos importantes das três maiores cidades do Império: Rio de Janeiro,
Salvador e Recife.700
Em 1860, a maioria dos edifícios importantes do Brasil Imperial ostentava a linguagem.701
A produção não se resumia ao Rio de Janeiro e ao Recife, mas se espraiava em outras cidades do
Brasil, a exemplo da Parahyba (atualmente João Pessoa), cujo legado neoclássico constitui objeto
da seção seguinte. Nela são abordados não apenas os edifícios que ainda hoje preservam
características da linguagem em questão, mas aqueles que já não podem ser identificados como
neoclássicos devido às radicais reformas porque passaram no século passado.
700 SOUSA, Alberto. O Classicismo Arquitetônico no Recife Imperial. João Pessoa: Editora Universitária, 2007. p. 26-27.
701 SOUSA. O Classicismo Arquitetônico no Recife Imperial, p. 37.
702 ________. O Classicismo Arquitetônico no Recife Imperial, p. 37.
703 MOURA FILHA. O cenário da vida urbana: a definição de um projeto estético para as cidades brasileiras na virada do século
XX, p. 159.
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Palácio da Redenção (antigo convento da Companhia de Jesus), ambos situados na atual Praça João
Pessoa, antigo Campo do Comendador Felizardo, que funcionava como Jardim Público da capital
no final do século XIX.
A Biblioteca Municipal, situada na Rua General Osório (antiga Rua Nova), por sua vez, já
teria nascido neoclássica, assim como a sede da Alfândega, à Rua Visconde de Inhaúma, na Cidade
Baixa. É importante registrar que, à exceção deste último, situado nas proximidades do antigo Porto
do Capim, todos os demais edifícios citados no presente trabalho foram erigidos na porção mais
alta da capital, o que confirma a hipótese dessa área constituir na época o centro político e social
da cidade, ainda em tênue expansão em direção ao leste (Figura 08).
A seguir são elencados oito edifícios neoclássicos estudados na capital paraibana:
705 ESCARIÃO, Renata. Teatro Santa Roza. Correio da Paraíba, João Pessoa, 01 de nov. 2009. Caderno 2, p. 1.
706 ARAUJO, Fátima. Santa Rosa - Um Teatro Centenário (1889-1989). João Pessoa: Funesc, 1989. p.23.
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Figura 09: Teatro Santa Roza, 1910 Figura 10: Teatro Santa Roza, 2015
No tocante a morfologia, o prédio é composto não apenas pela sala de espetáculos, mas
também por um imponente vestíbulo de pé direito duplo, com acesso para a plateia e por camarotes
superiores. Já a sala de espetáculos foi executada em pinho de riga natural, desde as colunas de
seção circular que apoiam os camarotes, até os balaústres, os parapeitos, as treliças divisórias, o
forro e as luminárias.
A fachada principal é guarnecida de corpo central com dois pavimentos, arrematado por
um frontão clássico. As pilastras remetem à ordem colossal renascentista, com capitéis jônicos, que
apoiam o entablamento. Sua composição geral apresenta aberturas coroadas por bandeiras em arco
pleno com cercaduras em alvenaria, três das quais providas de balcões de ferro no pavimento
superior.
Biblioteca Pública
Situado à Rua General Osório, nº 253, o edifício da Biblioteca Pública constitui expressivo
exemplar de arquitetura neoclássica do século XIX. Em 1919 abrigou a Escola Normal e a partir
de 1939 passou a funcionar como Biblioteca Pública. O imóvel foi tombado em 1980 pelo IPHAEP
através do Decreto Nº 8.626.
Figura 11: Escola Normal, 1910 Figura 12: Biblioteca Pública, 2015
Trata-se de uma edificação térrea de porão alto, cuja entrada principal é demarcada por
pórtico coroado por frontão triangular apoiado sobre duas colunas de ordem dórica assentadas
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sobre pedestais. O entablamento é contemplado com arquitrave, friso com tríglifos, e cornija
saliente, sobre a qual se apóia a platibanda que percorre todo o perímetro da edificação. Na sua
composição geral, o edifício apresenta aberturas simetricamente dispostas nas fachadas oeste e sul,
todas guarnecidas de esquadrias com bandeiras fixas em arco pleno.
Palácio Episcopal
Conhecido como Palácio do Bispo, o edifício está situado em frente à Praça Dom Adauto,
antigo Campo do Conselheiro Henriques, onde funcionava ainda no século XVIII o Convento dos
carmelitas, conforme afirmou o inglês Henry Foster em sua obra sobre as viagens que fez no
Nordeste do Brasil.707
Tombado em 1980 pelo IPHAEP através do Decreto Nº 8.642, o edifício situado ao lado
da Igreja Nossa Senhora do Carmo teve sua construção iniciada em 1591 e, segundo os dados do
IPHAEP, também abrigou as primeiras acomodações da Polícia Militar, durante os anos de 1832
a 1846, funcionando a partir de então como Palácio do Arcebispado.
Figura 13: Palácio Episcopal, 1910 Figura 14: Palácio Episcopal, 2015
707 AGUIAR, Wellington. Cidade de João Pessoa – A Memória do Tempo. 3ª ed. João Pessoa: Editora Idéia, 2002. p. 68.
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nas edículas que emolduram as aberturas das extremidades da fachada no pavimento superior. O
edifício é arrematado por cornija contínua e coroado por platibanda provida de balaústres.
Figura 15: Alfândega ainda em funcionamento (s/d) Figura 16: Prédio da Alfândega, 2015
O prédio situado na Praça Pedro Américo foi construído por volta de 1808 e tombado em
1980 pelo IPHAEP (Decreto Nº 8.633). Inaugurado em 1811, o imóvel abrigou, além das
708JARDIM, Vicente Gomes. Monographia da cidade da Parahyba do Norte. Revista do Instituto Historico e Geographico
Parahybano. João Pessoa, ano III, vol. 3, p. 106 – 107.
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Figura 17: Assembléia Legislativa, 1910 Figura 18: Sede do Quartel da Polícia Militar, 2015
Localizado entre a Praça Aristides Lobo e a Praça Pedro Américo, o edifício foi
originalmente construído para sediar o Teatro Público da capital; sua pedra fundamental foi lançada
em 1853, contando com o mestre de obras Antônio Plary, que visitou várias vezes Recife a fim de
conhecer a arquitetura empregada por Vauthier ao projetar o Teatro Santa Isabel. 710
Construída com traços notadamente neoclássicos, a edificação apresentava
elementos básicos da linguagem, entre os quais o frontão triangular sobre a cornija na fachada
principal e as pilastras intercaladas entre as aberturas em arco pleno.
MOURA FILHA. O cenário da vida urbana: a definição de um projeto estético para as cidades brasileiras na virada do século
710
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Figura 19: Tesouro do Estado, 1910 Figura 20: Sede do Comando Geral da PM, 2015
Em 1929, o edifício passou por uma grande intervenção confiada à firma Rafaele Abenante
& Cia, que alterou completamente seu partido original e modificou sua volumetria.711 A edificação
ganhou mais dois pavimentos e suas fachadas foram totalmente reformadas, assumindo
características da linguagem neocolonial na versão luso-brasileira.
Palácio da Redenção
Localizado na Praça João Pessoa, o edifício foi construído no século XVI pelos jesuítas a
fim de abrigar o convento da Companhia, compondo um conjunto arquitetônico juntamente com
a igreja (demolida em 1929) e o colégio, onde funcionou a antiga Faculdade de Direito, conforme
atestam os dados fornecidos pelo IPHAEP.
Tudo indica que a reforma de 1858 foi responsável por substituir elementos coloniais pela
sóbria composição neoclássica com dois pavimentos. Possuía janelas e portas com vergas retas no
pavimento térreo, e aberturas com balcões de ferro e bandeiras em arco pleno no pavimento
superior. A fachada principal era coroada na porção central com frontão com brasão do Estado, e
platibanda era contínua sobre a cornija que percorria todo o perímetro do edifício. A composição
da fachada principal apresentava pilastras de ordem jônica que, apoiadas sobre pedestais, venciam
o alçado duplo até a linha da arquitrave.
711Os últimos melhoramentos da cidade de João Pessoa. Revista do Instituto Historico e Geographico Parahybano. João
Pessoa, 1932, vol. 7, p. 117.
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Figura 21: Palácio do Governo e Igreja N. S. da Conceição (s/d) Figura 22: Palácio da Redenção, 2015
Situado na Praça João Pessoa, o prédio da antiga Faculdade Direito também fazia parte do
conjunto arquitetônico construído pelos jesuítas no século XVI. Segundo informações do
IPHAEP, após a expulsão dos jesuítas, o imóvel recebeu diversos usos, mas não sofreu
transformações radicais, acrescentando às linhas originais do período colonial a sobriedade do
modelo neoclássico.
Trata-se de uma edificação de dois pavimentos, com implantação em formato de
paralelogramo. Possui pátio central descoberto, típico dos claustros conventuais. Em termos de
fachada, no período em que assumiu a linguagem neoclássica, o imóvel seguiu o modelo do Palácio
da Redenção, integrante do mesmo conjunto. Possuía aberturas com vergas em arco pleno no
pavimento superior, e com vergas retas no pavimento inferior, emolduradas com cercaduras em
relevo. O frontão triangular na porção central e superior do edifício e a cornija de arremate
encimada por platibanda contínua conferiam o toque neoclássico do imóvel, que não foi
guarnecido com pilastras na sua composição.
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Figura 23: Antigo Lyceu Paraibano (s/d) Figura 24: Prédio da Antiga Faculdade de Direito, 2015
Considerações Finais
Diante dessa breve análise, fica patente que o movimento neoclássico marcou, mesmo que
em circunstâncias diferentes, um momento de transição e progresso na Europa, bem como no
Brasil: no Velho Mundo atendeu às prerrogativas da razão incitadas pela retórica iluminista,
produzindo edificações monumentais sob a égide dos novos materiais e novas técnicas
construtivas; já na América Portuguesa, numa concepção mais formal e menos conceitual,
respondeu à necessidade da nação independente de encobrir a memória colonial por meio de uma
arquitetura condizente com um Império.
Considerando os influxos neoclássicos no país, não se pode ignorar a monumentalidade
que caracterizou as edificações do Rio de Janeiro, emblemáticas e referenciais para outras cidades
brasileiras, sequiosas pela adoção de um tom de nação independente e progressista. Seguindo esse
parâmetro, a capital pernambucana, privilegiada pelo equilíbrio sócio-econômico à época, de certa
forma ofuscou o ritmo da produção do gênero em cidades vizinhas, a exemplo da Parahyba.
Entretanto, apesar do contraste com o desenvolvimento de Recife, as iniciativas de
‘modernização’ na capital paraibana atenderam, ainda que de modo retardatário, à intenção de
suplantar as feições coloniais ainda predominantes na cidade no século XIX, reproduzindo nos
logradouros mais importantes da urbe verdadeiros cenários arquitetônicos, cujo caráter imagético
exalasse os padrões imperiais.
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Por fim, a pesquisa revela que, dos oito exemplares neoclássicos computados, apenas
quatro mantiveram a linguagem, os outros quatro foram completamente alterados no século XX
para assumirem diferentes morfologias – eclética, neocolonial, ou Art Déco. Nesse sentido, a
pesquisa iconográfica foi basilar, pois foram fotografias antigas dos edifícios que denunciaram sua
feição neoclássica. Tal evidência sinaliza para a visibilidade de dois aspectos relevantes: a
importância do registro iconográfico e a pertinência de uma legislação de proteção do patrimônio
histórico e artístico, pois caso as edificações modificadas fossem tombadas à época, como de fato
aconteceu a todas a partir de 1980, sua linguagem arquitetônica jamais teria sido alterada,
salvaguardando assim a imagem da cidade da Parahyba, não só através de gravuras históricas, mas
principalmente através do acervo vivo – a própria arquitetura.
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Introdução
Esse texto integra a pesquisa Enquanto livro que desenvolvo atualmente como bolsista de
iniciação científica (cnpq) na Escola de Belas Artes da UFMG, com orientação da professora Maria
do Carmo de Freitas Veneroso. A pesquisa prioriza o estudo de obras pertencentes à Coleção
Especial de Livros de Artista da Escola de Belas Artes da UFMG. A coleção foi criada em
novembro de 2009 por iniciativa do professor Amir Cadôr e da professora Maria do Carmo de
Freitas Veneroso, no contexto do primeiro evento pan-americano sobre livros de artista,
“Perspectivas do livro de artista” que aconteceu na UFMG, organizado por eles.
No presente trabalho, a partir de uma abordagem intermidiática, analiso três livros de artista
e suas relações com a vídeoarte. Guiada pelo tema o arquivo e a memória no livro e pelo recorte
de obras que exploram o uso da vídeoarte, enfoco o livro Retratos da Garoupa (2010), de Fernanda
Grigolin, pertencente à coleção de livros de artista da Biblioteca Universitária da UFMG, em
diálogo com os livros A Voyage on the North Sea (1974), de Marcel Broodthaers e Espelho diário (2001),
de Rosângela Rennó, também pertencente à coleção.
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pode ser aplicado a fenômenos que envolvem mais de uma mídia e que, portanto,
de alguma maneira acontecem entre mídias712
O conceito de livro de artista que será abordado é um recorte dentro das várias
possibilidades de interpretação desta categoria/produto. Aqui, utilizarei o conceito “livro de artista
no sentido estrito, referente ao produto específico gerado a partir das experiências conceituais dos
anos 60”.713
Feitas essas considerações, passarei agora a abordar o livro Retratos da Garoupa, fazendo
primeiramente uma análise detalhada da obra para, em seguida, construir o raciocínio de
cruzamentos com as obras de Marcel Broodthaers e Rosângela Rennó. Depois, tendo como ponto
de partida as obras analisadas, será feito reflexões sobre as possíveis relações do livro de artista com
a vídeoarte e em qual grau é possível se fazer uma aproximação entre essas mídias tendo em vista
suas origens e desdobramentos na história da arte.
Retratos da Garoupa
Fernanda Grigolin (Curitiba, 1980) é artista visual, editora e pesquisadora. O livro Retratos
da Garoupa foi seu primeiro livro de artista, publicado em 2010.
712 PÓS: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG. Livro de artista. v.1,
n.2, Belo Horizonte, 2012. p. 5.
713 SILVEIRA, Paulo. A página violada. Da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Ed.
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O livro é um diário inventado pela artista Fernanda Grigolin que se apropria das memórias
do pai e escreve em seu lugar. É o diário do pai escrito pela filha que pouco o conheceu. “Fernanda
Grigolin não nega a ausência, as lacunas, a morte. Nelas encontra uma possibilidade vital,
criativa”.716
O pai de Fernanda é um jovem catarinense que, a partir deste diário, conta suas experiências
em determinados acontecimentos de sua vida dos 29 os 31 anos. Ao longo da narrativa e deste
diálogo com o leitor, através de palavras e imagens, fala sobre sua família, sua vida profissional,
seus sentimentos e o cotidiano; sobre a cidade Porto Belo e sobre sua relação com o mar, momento
em que percebemos ainda mais sua ligação com Porto Belo e conseguimos partilhar de suas
lembranças mais sensíveis e sinceras.
As imagens presentes no livro representam, para mim, o leitor entrando nas memórias mais
profundas do narrador. São lembranças que não se encaixam somente na escrita. Parecem ser as
imagens que lhe vinham à cabeça enquanto as palavras eram postas no papel. Lembranças que só
existem como imagens. As palavras, neste caso, seriam insuficientes. Assim, as imagens presentes
no livro quebram a linearidade do pensamento em forma de texto, representando, assim, a forma
como as lembranças e as memórias se dá em nós, de um modo pouco linear.
A narrativa rodeia a cidade de Porto Belo e sua paisagem marítima (Figura 1), as memórias
são construídas a partir deste ponto de referência. Percebe-se que a cidade está presente desde a
infância na vida do pai, mesmo que com alguns desencontros, “Porto Belo é o ponto de partida e
de chegada de Retratos da Garoupa.” 717
Nas fotografias há uma mistura do lugar, Porto Belo, com o álbum de família, e
os meninos que eu encontrei pelo caminho. Eu me mudei para Porto Belo para
produzir o material bruto do livro. E saia para caminhar por todos os lados e
encontrava muitos meninos. Quando eu encontrei um vestido todo de preto, a
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cor que meu avó obrigava o meu pai a vestir por ser o filho mais velho e portar-
se como adulto (sobriamente), decidi que o menino estaria no livro de preto em
um momento importante da narrativa.718
Figura 1
Fonte: GRIGOLIN, 2010, p.31
Figura 2
Fonte: GRIGOLIN, 2010, p. 44-45
Figura 3
Fonte: GRIGOLIN, 2010, p.56-57
718 Entrevista concedida por Fernanda Grigolin a Julia Bernardes Lacerda em 21/10/2015.
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Juntamente com o livro, Fernanda Grigolin produziu um vídeo, com o mesmo nome. Nele,
apresenta as mesmas imagens que aparecem no livro e, enquanto elas vão passando, um homem,
que interpreta o pai, narra o trecho do livro em que ele fala sobre sua relação com o mar.
Trabalhar em barco foi uma das piores coisas que já fiz. Todo dia era aquela
solidão esticada. De noite, diante do mar, não havia nada além da escuridão.
Pouco se conversa nesses momentos. A audição deve ser o principal sentido,
pois o invisível prega peças e o mar braveia a qualquer hora. Quantas madrugadas
de mar revolto. Afoito. Passei a odiar meu antigo companheiro. Justo ele, que
sempre foi meu confidente, minha memória e meu pensamento. Embarcado, era
meu inimigo. Não havia mulheres e músicas compactuando cigarros e beijos.
Não havia trapiche. Havia apenas outros inseguros homens à espera do porto:
nossa mais ansiosa promessa. Em terra firme teríamos o amor rápido e a pesagem
do camarão.719
Foi como dar vida ao momento mais sensível do livro, uma experiência quase tátil.
Podemos ouvir a respiração do homem que se assemelha ao vento em alto mar, e o encontro dos
lábios nos intervalos da fala. É um momento íntimo, que se assemelha a um cochicho aos ouvidos
de quem escuta.
A obra A Voyage on the North Sea, do artista Marcel Broodthaers721 dialoga em diversos níveis
com Retratos da Garoupa, tanto pelo fato de explorar a relação entre o livro de artista e o vídeo,
quanto pela temática e forma adotadas. Esclareço que os aspectos conceituais do livro de Marcel
Broodthaers vão muito além do que será tratado neste texto. No entanto, para que o diálogo entre
as obras pudesse ser construído de forma sucinta, preferi direcionar e, de certa maneira, afunilar as
interpretações sobre o tema do livro para atingir meu objetivo principal.
A Voyage on the North Sea foi publicado em 1973 em três edições, que totalizaram 3100
cópias, sendo que 110 dessas cópias vinham acompanhadas de um filme de aproximadamente 6
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minutos, com o mesmo título do livro. Com esta informação percebe-se desde já outro tipo de
relação entre o livro de artista e o vídeo, comparado com Retratos da Garoupa. Neste caso, o vídeo
faz parte da publicação.
O livro é composto por três imagens e de um barco no mar, das quais duas são reproduções
fotográficas de um barco de passeio do século XX (Figura 4 e 5), e a outra, a reprodução de uma
pintura de um navio europeu em alto mar do século XIX (Figura 6). Marcel Broodthaers apresenta
essas fotografias várias vezes através de focos e distâncias diferentes, que, segundo Rosalind Krauss
(1997), pode ser interpretado como uma possível busca da origem dessas imagens. Além disso, ao
misturar em uma mesma narrativa imagens de tempos distintos, o artista propõe uma conversa
entre o passado e o presente, assim como Fernanda Grigolin propôs em seu livro.
Figura 4
Fonte: Print screen do vídeo A Voyage on the North Sea722
Figura 5
Fonte: Print screen do vídeo A Voyage on the North Sea723
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Figura 6
Fonte: Print screen do video. A Voyage on the North Sea724
A técnica utilizada por Broodthaers de aproximação em detalhes das imagens, que também
foi explorado por Fernanda Grigolin em Retratos da Garoupa, pode ser comparada à técnica
cinematográfica plano detalhe (Figura 7 e 8). Nesse sentido, já se começa a construir um diálogo entre
as mídias vídeo e livro, pois é utilizada uma técnica da imagem em movimento para se construir o
ritmo de leitura e a narrativa do livro. Da mesma forma acontece com o vídeo, no qual o artista faz
referência ao suporte livro.
Figura 7
Fonte: GRIGOLIN, 2010, p.19
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Figura 8
Fonte: Print screen do vídeo A Voyage on the North Sea725
No vídeo, Marcel Broodthaers molda “sua viagem cinemática sob a forma de um ‘livro’, as
tomadas estáticas do filme [...] alternam entretítulos – começando com ‘PAGE 1’ e continuando
até ‘PAGE 15’ – com imagens imóveis de barcos”726.
Com essas informações percebe-se que Marcel B. faz referência tanto ao livro quanto à
fotografia em seu vídeo. Apresenta os frames como se fossem páginas (Figura 9) e ao invés de utilizar
imagens em movimento, utiliza imagens estáticas. Porém, mesmo essas características serem de
outras mídias, no suporte “vídeo” ganham outras especificidades. Um exemplo dessas diferenças é
o tempo de observação das imagens e a autonomia do expectador perante a obra. No vídeo, o
tempo e o ritmo da obra é prederteminado pelo artista, o expectador não possui autonomia de
intervir na sequência nem no tempo de apresentação das imagens. Já no livro, o leitor pode, além
de escolher a ordem das páginas e a sequência que irá vê-las, pode também escolher o tempo que
permanecerá em cada página e imagem.
KRAUSS, Rosalind. A Voyage on the North Sea – art in the age of the post medium condition. New York: Thames
726
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Figura 9
Fonte: Disponível no site christies.com727
A prática de usar princípios de uma mídia em outra para conseguir certo efeito, como foi
observado acima, é discutido por Irina O. Rajewsky (2013) no qual ela cita algumas formas de
relação entre mídias, sendo que este tipo específico poderia ser denominado referência intermidiática.
Este tipo de relação intermidiática ocorre quando há “apenas uma mídia em sua própria
materialidade [...] que evoca ou imita elementos de outra mídia”. 728
Em Voyage on the North Sea, percebe-se que a relação entre o vídeo e o livro tem mais força,
no sentido que o vídeo foi feito buscando esta relação direta, tanto por fazer referência à
características do suporte “livro” quanto por ter sido anexado em alguns exemplares. Já em Retratos
da Garoupa essa relação pode ser vista ou não, pois, de acordo com a própria artista, seu objetivo
não era criar esta ligação direta.729
Espelho Diário
Outra obra que pode ser aproximada do livro Retratos da Garoupa é a vídeo instalação (Figura
10), que depois gerou um livro (Figura 11), intitulada Espelho Diário, da artista Rosângela Rennó730.
intermidialidade. Trad. Thaïs Flores Nogueira Diniz e Eliana Lourenço de Lima Reis. In: DINIZ (Org.).
Intermidialidade e Estudos Interartes (no prelo). 2013. p.10.
729 Entrevista concedida por Fernanda Grigolin a Julia Bernardes Lacerda em 21/10/2015.
730Rosângela Rennó (Belo Horizonte, 1962) é uma artista brasileira. Trabalha principalmente com fotografias
apropriadas.
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Nesta obra, a artista em parceria com Alícia Duarte Penna731, organizou e reescreveu, em forma de
diário, textos que foram sendo colecionados por Rosângela durante oito anos. Estes textos contam
histórias e trazem depoimentos de mulheres que compartilham o mesmo nome da artista. No caso
deste trabalho, o gênero diário não se refere apenas ao diário pessoal, “o título da vídeo-instalação
se refere com ironia ao nome do famoso tablóide Daily Mirror e sua crônica de faits divers, pequenos
assuntos do cotidiano”.732
Figura 10
Fonte: Site Casa da Ribeira733
Figura 11
Fonte: RENNÓ, Rosangela. Espelho Diário. São Paulo: EDUSP, 2009.
731É escritora, crítica de arte, arquiteta e geógrafa. Graduou-se em Arquitetura em 1987 pela Universidade Federal de
Minas Gerais, onde concluiu mestrado e doutorado em Geografia em 1997 e 2011, respectivamente.
732 BIASS-FABIANI, Sophie. Rosângela Rennó: mémoires réfléchies. In: Revista Turbulences vídeo, número 50.
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pela data no canto da tela, como em um diário. Rosângela faz uma observação importante sobre
este trabalho: “Sou sempre eu mesma na tela. Porém, em nenhum instante procurei interpretar os
papéis das mulheres como se fosse uma atriz e é pela ausência de interpretação que se vê, em mim,
todas essas mulheres.” 734
Pensando nas relações entre-mídias, o vídeo Espelho diário estabelece uma forte relação com
o livro, pois, mais do que se referir a ele, o mesmo é apresentado fisicamente como tal. O vídeo foi
mostrado em dupla projeção, ambas formando um ângulo de 120º, dando a sensação de um livro
aberto a ser folheado.
O livro, que foi publicado depois do vídeo, traz as imagens dos frames principais de cada
Rosângela juntamente com as histórias narradas no vídeo. No caso específico deste trabalho, o
livro teve um papel fundamental no que se diz respeito à distribuição da obra. Pelo fato de o vídeo
possuir quatro horas de duração, poucas pessoas assistiam todas as histórias, o livro assim, permitiu,
com mais facilidade, o acesso ao conteúdo completo do trabalho.
Antes de abordar as proximidades que podem existir entre o livro de artista e a vídeoarte,
é interessante pensar por um ângulo mais geral, no contexto que antecede este fato, que seria a
aproximação do cinema com a literatura/poesia e a fotografia.
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Cinema e literatura/poesia
Assim como Raymond Bellour (1997) comenta em seu livro Entre-imagens, as transições que
ocorreram tanto na história do cinema quanto da literatura podem ser comparadas, mostrando que,
apesar de serem mídias diferentes, historicamente, passaram por transformações parecidas.
Talvez fique claro, um dia, que a transição do cinema para o vídeo é comparável
ao que foi em poesia a passagem do verso alexandrino para o verso livre, e que
uma reflexão sobre o destino literário da língua surgiu dessa passagem, como
hoje em dia a reflexão sobre o destino da imagem. 736
No Brasil, o fenômeno que juntou o vídeo e a literatura, que ficou conhecido como vídeo-
poesia, se iniciou na década de 1980, a partir da exploração de novas tecnologias por parte dos
poetas concretistas. Nesse sentido, Augusto de Campos fez uma observação interessante:
Uma obra que ilustra bem este fenômeno é o poema Bomba, de Augusto de Campos, que
teve uma versão em papel (1986), uma em holografia (1987) e uma em vídeo (1992).
Apesar dos suportes papel e vídeo, serem, aparentemente, muito diferentes, assim como o
próprio Augusto de Campos afirmou em uma entrevista a Clemie Blaud, existe uma
compatibilidade que leva a uma facilidade de adaptação entre essas mídias.
O que a gente observa é que há uma compatibilidade muito grande entre este
tipo de sintaxe espacial, mais reduzida, que foi modelo, digamos assim, das
experiências da Poesia Concreta, e a linguagem do vídeo. Ocorre o seguinte: o
texto muito longo, muito discursivo, fica muito cansativo, e até difícil de ler no
vídeo, no estágio em que está a imagem hoje. E esta linguagem mais ágil, que não
tem mais conectivos, de curso não-linear, ela é apropriada para o vídeo, então há
uma certa facilidade de adequação. Por outro lado você tem o som e a imagem.
Isto tudo parece que dá muito certo.738
Assim, pensando por essa perspectiva, se a poesia concreta se adapta bem ao vídeo, não
seria diferente com o livro de artista, que também é um tipo de linguagem isenta de regras fixas, e
que não prioriza a linearidade presente nos livros tradicionais.
736 BELLOUR, Raymond. Entre-imagens. Tradução de: Luciana A. Penna. Campinas, SP: Papirus,1997. p.27.
737 ARAÚJO, Ricardo. Poesia visual – Vídeo poesia. Editora Perspectiva, 1999. p.50.
738 BLAUD, Clemie, 1993, apud ARAÚJO, Ricardo. Poesia visual – Vídeo poesia, p.53.
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Cinema e fotografia
Assim como foi observado nas análises dos livros de artista, torna-se cada vez mais comum
o uso de características específicas de uma mídia em outra, para se chegar a um determinado
resultado, as chamadas “referências intermidiáticas”. Nos casos analisados, foi observado o uso de
imagens estáticas nos vídeos e a comparação do frame com a página, e, no caso dos livros, percebeu-
se o uso de recursos cinematográficos. Assim, se faz pertinente pensar também na relação entre o
vídeo e a fotografia.
Raymond Bellour (1997) escreve sobre essa relação, a partir do pensamento de Barthes.
Com essas considerações Bellour (1997) afirma que o cinema não é definido pelo movimento e
sim pelo tempo e encadeamento das imagens.
O vídeo e o livro de artista
Na década de 1970, o livro de artista começou a ganhar mais espaço no Brasil, época em
que a arte postal também passou a circular pelo país. Na década seguinte, o livro de artista foi
consolidado, quando ganhou espaço na XV Bienal de São Paulo, com curadoria de Júlio Plaza, e
uma grande exposição, Tendências do livro de artista no Brasil, no Centro Cultural São Paulo, com
curadoria de Annateresa Fabris e Cacilda Teixeira da Costa.
Ao mesmo tempo em que o livro de artista foi se firmando no Brasil, a vídeo arte chegava
timidamente no país, e ao longo da década 1970 foi se desenvolvendo e sendo adotada pelos
artistas. Nos Estados Unidos e na Europa, ambos começaram a ser produzidos na década de 1960,
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em um contexto de intensas experimentações por parte dos artistas, como por exemplo, o grupo
Fluxus.
Feitas essas considerações, pode-se perceber que tanto a vídeo arte quanto o livro de artista
são frutos de questionamentos por parte dos artistas em relação aos modelos e suportes
tradicionais. Assim como a vídeo arte tentou se desprender das regras do cinema clássico e explorar
as diversas peculiaridades que o vídeo permite, o livro de artista procurou explorar ao máximo as
potencialidades do livro, tratando-o não apenas como suporte, mas como um espaço de criação.
741 CARRION, Ulises. A nova arte de fazer livros. Tradução de: Amir Brito Cadôr. Belo Horizonte: C/Arte, 2011. p.15
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Resumo: Os vampiros como genuínas personagens do cinema de horror vêm comprovando sua
importância na cultura popular há pelo menos um século e, como consequência desse processo, as
imagens vampirescas constituem um fenômeno que compõem o arcabouço simbólico
contemporâneo com seus signos e significados únicos.
Afirmar que os vampiros no cinema e os signos que dão suporte à sua performance cinematográfica
são oriundos da literatura é um caminho óbvio e pouco relevante para o estudo do tema. Apesar
da incontestável importância dessa influência, o interessante é tratar de influxos muito mais perenes
e, por isso mesmo, mais arraigados à temática como, por exemplo, a Idade Média e a concepção
das Danças Macabras dos séculos XIV e XV. Um estudo prévio sobre a ancestralidade da
personagem e das imagens que a suportam, remontam, tão fortemente ao macabré do medievo,
quando à literatura romântica-gótica dos séculos XVIII e XIX.
Tem-se aqui, portanto, a noção de hibridização da linguagem, que é um fenômeno inerente à
própria evolução e perpetuação das narrativas vampirescas, pois, desde as histórias do vampiro
folclórico, transmitidas pela oralidade, até as imagens complexas do vampiro no cinema, passando
pelas páginas literárias do vampiro romântico, o que se tem é um constante trânsito de códigos que
se misturam e se transformam a cada nova manifestação.
A hibridização da linguagem, como premissa básica teórica, ajuda a elucidar a hipótese de que a
multiplicação da temática vampiresca pelos suportes foi, justamente, o princípio que mais
fortemente corroborou com a evolução da personagem, desde as Danças Macabras até as próprias
transformações nas imagens audiovisuais, impostas sucessivamente pelo cinema. Entretanto, o
rearranjo de códigos em plataformas distintas gera novas, e mais novas, significações. Sendo essa,
uma realidade importante da figura vampiresca no cinema.
Portanto, o objetivo deste trabalho é apresentar essa hibridização como a teoria mais plausível para
o fenômeno vampiresco, pois não é possível imaginar que, ao transpor uma mensagem de um
suporte para outro, o primeiro se apague completamente da composição subsequente. Isso seria
acreditar muito ingenuamente que o meio não influi em nada na manifestação da mensagem e que
os códigos que a ela se aplicam nada mais são do que elementos que concretizam a mensagem,
passíveis de serem filtrados e/ou apagados.
O método de análise que torna possível lidar com o desafio da busca pela ancestralidade das
imagens vampirescas cinematográficas, com coerência e logicidade, mesmo diante de tal
multiplicidade de fontes e assuntos, é o modelo semiótico peirciano, utilizando-o não como um
formato classificatório, mas como um sistema de raciocínio e organização. Com base nas Matrizes
da Linguagem e Pensamento é possível organizar as influências através das modalidades
estabelecidas em cada uma das matrizes e, posteriormente, destacar uma ou duas submodalidades
que a serem empregadas na análise das imagens, propriamente ditas, com o intuito de aprofundar
a interferência dessas influências na composição pictográfica.
As Matrizes da Linguagem e Pensamento, proposta por Lúcia Santaella, representam uma teoria
semiótica que trata, justamente, da hibridização das mensagens. Elas estão diretamente apoiadas
no raciocínio triádico de Charles S. Peirce e apresentam critérios de “organização” lógica das
linguagens, buscando demonstrar como elas interagem no processo de construção de mensagens
que utilizam, pela própria natureza do mundo, códigos infinitamente variados.
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O resultado aqui apresentado demonstra que a função do método semiótico não é fechar uma
questão, mas sim abrir o pensamento em torno da transformação sígnica das imagens que o
conformam, propondo trajetórias de hibridização da linguagem, tão arraigados à cultura que se
torna, via de regra, imperceptíveis, sendo esse, sem dúvida, o fenômeno mais atuante na
perpetuação das imagens vampirescas de horror através da história do cinema.
742 PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 108.
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743 Aqui o termo transmidiático está sendo empregado tanto com referência à multiplicidade de plataformas que
serviram de suporte para a temática vampiresca, quanto em relação à definição mais corrente de transmídia, que trata
da independência das mensagens veiculadas em suportes distintos. Para esclarecimento, basta citar que qualquer pessoa
é capaz de compreender uma narrativa vampiresca, reconhecendo o protagonismo de uma criatura morta-viva,
independente de ter ou não tido acesso à obra original de Bram Stoker ou a qualquer outro texto da literatura romântica
gótica.
744 SANTAELLA, Lucia. Matrizes da Linguagem e Pensamento: sonora, visual, verbal. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 379
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É nesse ponto que uma teoria que postula uma organização virtual do pensamento, que
gera signos hibridizados se torna relevante. A ferramenta teórica utilizada para essa empreitada é a
denominada matrizes da linguagem e pensamento, postulada por Lucia Santaella em 2005. Essas
matrizes são apoiadas no raciocínio triádico de Charles S. Peirce e apresentam critérios de
“organização” lógica das linguagens, buscando demonstrar como elas interagem no processo de
construção de mensagens que utilizam, pela própria natureza do mundo, códigos infinitamente
variados.
Sendo triádica, as matrizes possuem três instâncias que correspondem aos três níveis de
classificação do signo, dentro de uma perspectiva fenomenológica: primeiridade (icônico),
secundidade (indicial) e terceiridade (simbólico). Consequentemente, também são três os níveis
matriciais de organização e composição da linguagem, a saber: sonoro, visual e verbal, cada um
deles relacionado à uma instância do signo, porém, em cada matriz subsequente, encontram-se os
vestígios da matriz anterior, característica primordial para a chamada hibridização da linguagem,
isto é, signos transportados de um suporte distinto ou que se manifestam em códigos diferentes e
que se misturam ao novo suporte, gerando novo formato, constituindo uma nova significação, o
que não significa que a instância anterior tenha desaparecido por completo.
Ressalta-se que, pela própria natureza do trabalho, somente duas matrizes serão utilizadas,
sendo elas: a matriz das modalidades visuais e a matriz das modalidades verbais. O que não significa
que a matriz sonora não seja amplamente possível de ser aplicada, apenas não se adequa à proposta
aqui estabelecida.
Sendo assim, a alocação dos influxos ascendentes ocorrerá pela:
Matriz visual
formas não-representativas;
formas figurativas;
formas representativas.
e
Matriz verbal
descrição;
narração.
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do vampiro. Isto significa que todo o protagonismo da personagem e sua essência como criatura
morta-viva, que desafia a morte e se alimenta de sangue humano, com representações fortemente
sexuais em relação à figura feminina, encontram-se nesse primeiro nível de influências.
Princípios para a determinação do primeiro nível de influências das imagens vampirescas
Filosofias medievais Vampiro Folclórico745
Medo da mulher / sexualidade Formas de ataque de um
Medo do Diabo / Anticristo vampiro
Matriz visual Medo da deterioração do corpo Maneiras de reconhecer e de
Formas não-representativas Medo da condenação da alma matar um vampiro
O processo para se chegar a essa filosofia essencial da personagem foi um extenso estudo
sobre a atmosfera religiosa que interagia sobre o cidadão comum do século XV na Europa, período
onde as Danças Macabras se popularizaram na região.
A Idade Média foi um período histórico notadamente marcado pelo pessimismo e pela
visão apocalíptica do mundo. Os séculos V a XV caracterizaram-se por uma atmosfera sombria
que oprimia o cotidiano das comunidades, ao mesmo tempo em que torturava o homem
individualmente, com angústias intermináveis e pavores incessantes. O que se tinha eram hordas
de histéricos, angustiados, melancólicos e fanáticos que não se ocupavam de outro tema que não a
sobrevivência em meio ao perigo iminente de castigos divinos e do fim da humanidade, isto é, o
tão esperado, Juízo Final.
O pensamento religioso medieval exercia influência determinante para uma tal paranoia
coletiva, muito arraigada na concepção da sobrenaturalidade e daquilo que ocorria fora das vistas
humanas. Essa filosofia do horror que defendia a existência macabra de múltiplos perigos à alma
humana, corroborava para que o medo no nível coletivo, e a angústia, no nível individual, se
convertessem na força motriz da unidade, da ordem e, acima de tudo, da autoridade da Igreja
Católica em toda a Alta Idade Média e em boa parte da Baixa Idade Média.
Apesar do papel preponderante da imaginação para sustentar a intrujice religiosa, alguns
acontecimentos proeminentes da esfera da realidade conspiravam para o mau agouro que pairava
sobre a Europa Medieval. É certo que o sobrenatural permanecia sinistramente associado a esses
O vampiro folclórico possui outras características influenciadoras da performance vampiresca, mas essas são as que
745
mais fortemente se manifestam no vampiro cinematográfico. O domínio do vampiro folclórico nunca se esgota visto
que é a partir dele que se conforma e a essência da atividade vampiresca.
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eventos, mas de fato, as guerras, doenças, pandemias e a escassez de alimento que assolaram a
Europa por décadas, nada tinham de invencionice ou imaginação fértil.
Dando continuidade à pesquisa das influências, em um segundo momento, partiu-se para
o estudo da literatura folclórica vampiresca, que durante séculos permeou a cultura europeia,
especialmente, a dos países do leste europeu. Para viabilizar o estudo, ficou estabelecido como
ponto de partida para o corpus folclórico um texto de 1746, que insere o folclore eslavo vampiresco
na corrente literária romântica-gótica746.
O vampiro folclórico é aquele que insere na literatura romântica a criatura vampiresca com
respaldo nas crenças eslavas. Um olhar superficial pelas mitologias mais antigas da Humanidade
revela a presença unissonante de criaturas que se alimentam do sangue vivo de humanos e animais
para preservar suas existências. Nessas mitologias, os sanguessugas representam seres monstruosos
distintos da concepção de morto-vivo conhecida atualmente. Especificamente na mitologia eslava,
influenciada por crenças e folclores das pequenas regiões do interior da Europa oriental, é que os
sanguessugas (vurdalaki, upyr, brucolaquis) começam a adquirir os contornos de um morto que
retorna para sugar o sangue de parentes e pessoas próximas. Apesar de, claramente, os vurdalakis
e upiros representarem uma forma de condenação ao morto regressante, o vampiro folclórico
revela-se muito mais um problema para aquele que é assombrado constantemente pelas aparições
do morto do que, efetivamente, para aquele que regressa.
Assim, ainda não havia no vampiro eslavo toda a complexa simbologia em torno da
dualidade religiosa céu-inferno, alma-corpo, salvação-condenação, que se constitui nas fases
posteriores. Por enquanto, o vampiro é uma assombração com poderes letais, sem a complexidade
intentada por outros vampiros românticos. Os vurdalakis e ou regressantes são como uma doença
e devem ser exterminados, representam o perigo e o medo, além da tristeza de presenciar um
conhecido naquela situação catastrófica, fora isso, para o vampiro, o que se tem é fome, nada mais
além disso.
Dissertação sobre os Regressantes em corpo, os excomungados, os upiros ou vampiros, brucolaques, etc de Dom
746
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figurativamente, já que foi a partir de lá que a forma do vampiro constitui-se, como também em
termos ideológicos, performáticos e de sentido.
Enquanto a filosofia medieval pulsa na estrutura latente da imagem (abrindo espaço para
uma representação simbólica que se manifesta no último nível de influências), a ideologia nefasta
do vampiro manifesta-se de forma categórica e figurativa, constituindo, assim, a mais atuante das
ascendências do vampiro cinematográfico. Essa afirmação sob nenhum aspecto retira a
importância da Idade Média na composição do vampiro, mas, entre a dimensão medieval e a esfera
cinematográfica, encontra-se o suporte literário que é refletido pelo cinema, ao mesmo tempo em
que reflete as motivações que, outrora, mostraram a força pulsante de sua própria estrutura.
A partir da transposição dos códigos literários para o suporte visual, adentra-se os limites
genuínos da tradução e da hibridização, através de matrizes da linguagem e pensamento. O texto,
em primeira instância, é constituído por unidades de significação que se organizam em uma sintaxe
textual para, juntos, constituírem uma significação que se presta, especificamente, àquele
determinado contexto.
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Logo, as imagens figurativas são aquelas que se direcionam à mimese como seu fim
primeiro, mesmo que a aproximação entre a figura e a realidade esteja distante em um determinado
grau, seja por impossibilidade do suporte, seja por motivações artísticas.
É na mimese que se concentra o sofisma da tradução intersemiótica do tema vampiresco,
entre o texto literário e a imagem cinematográfica, afinal, não há, na realidade, uma forma de
qualquer natureza que represente um vampiro, já que todas as suas compleições, físicas e morais,
são inteiramente referenciadas pelos códigos verbais da ficção literária. Por mais que as imagens
vampirescas estejam, atualmente, em processo de constante retroalimentação, que dilui a relevância
da fonte original, é na intersemioticidade entre verbo e visual que se encontra a gênese das imagens
vampirescas que construíram o ideal moderno de vampiro, sustentado pelo cinema. Uma forma
que intenta mimetizar uma realidade que, de fato, só existe na ficção.
Com relação à ideologia, o vampiro literário é uma personagem cunhada para fazer o mal,
acima de tudo. Essa essência ideológica pode ser incrementada com diversos fatores como a
decadência, o conflito interior experimentado pela criatura, dentre outros, mas independente de
qualquer acréscimo na função ou na personalidade da personagem, nada será suficiente para alterar
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a visceralidade do vampiro: a de ser um agente do mal acima de tudo. Essa ideologia fez com que
a personagem na literatura ganhasse contornos horrorosos, dignos de uma criatura que passa sua
existência esgueirando-se pelas trevas.
O vampiro byroniano representa o ápice do vampiro romântico gótico: por um lado, com
aspecto estranho, decadente, cínico, apaixonado pelos prazeres da vida e com compleições frágeis,
mas, por outro, sinistramente forte, irresistivelmente sensual e com intenso apelo sexual. É também
nessa fase que o elemento vingança passa a influenciar as atitudes do vampiro contra seu
antagonista.
Apesar do vampiro byroniano ter adentrado o perímetro do Romantismo pelas palavras de
John Polidori, essa configuração vampiresca foi totalmente inspirada pela figura de Lord Byron,
paciente e amigo de John Polidori, e símbolo máximo do Romantismo-gótico inglês do século
XVIII.
Byron, que sabia a fundo a arte de se mettre-en-scène, fez muito para manter a
auréola lendária em torno de sua cabeça bela e pálida de um nobre Lorde, rebelde
contra as convenções morais da sua terra, excluído da sociedade humana por um
crime misterioso, perpetrado no passado – falava-se de relações incestuosas com
sua meio-irmã. O divórcio repentino, exigido por Lady Byron, pareceu confirmar
os boatos. Desde então, o poeta viveu na Itália, entregando-se a orgias fabulosas
que roubaram o sono às mulheres da Europa inteira.750
É contra o vampiro byroniano que o papel da religião começa a ganhar força. Apesar de
ainda não constituir propriamente um ritual, alguns critérios para aniquilar um vampiro passam a
existir. O que se tem, até esse momento, é apenas um melhoramento das técnicas apresentadas
contra o vampiro folclórico.
É também nessa fase que o vampiro torna-se um nobre, um aristocrata que expande seus
limites de atuação e, ao contrário dos vurdalakis e regressantes que agiam localmente, o vampiro
byroniano sempre está às voltas com estrangeiros, seja viajando do interior oriental para a
urbanização ocidental, seja aproveitando-se de aventureiros que cruzam seu caminho.
Além desses aspectos gerais, traços relevantes de suas funções para o enredo, bem como
de sua personalidade transformaram-se ao longo da trajetória do vampiro byroniano, através da
permutabilidade do tema pelos textos do período Romântico gótico.
A temática vampiresca possui uma série de termos que constitui uma nomenclatura
recorrente, com aplicação e sentido definidos.
750 CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volumes 2 e 3. São Paulo: Leya, 2012, p. 1593.
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Em um primeiro momento, pode recair sobre a análise dos lexemas isolados (ou palavras,
em termos mais estrito), uma crítica relativa ao fato de cada um deles só significar no plano da
expressão, em função do todo do enunciado. “[...] o lexema enquanto signo possui um formante
que o delimita no plano da expressão, o conteúdo do lexema não é autônomo, porque o enunciado
constitui um todo de significação que não se reduz à soma de suas partes-lexemas”751.
Entretanto, não há como ignorar a importância das relações integrativas752 que consideram
que toda unidade de significação, por menor que ela seja, deve ser considerada como uma parte
contundente na construção do significado no nível superior. O conceito de Barthes torna-se ainda
mais adequado à proposta dos lexemas quando se pensa que cada um desses termos possui uma
rede semântica inerente à história que, efetivamente, influencia o enunciado nos quais se encontra.
O manifestação máxima do vampiro stokeriano é o romance Drácula, de Bram Stoker, de
1897, de extrema importância por ter sido a primeira obra vampiresca adaptada para o cinema e,
consequentemente, por ter influenciado de forma determinante a figura do vampiro perpetuada ao
longo do século XX.
O vampiro stokeriano é um legítimo representante do movimento gótico tardio, que
ocorreu às portas do século XX, ainda em uma Inglaterra enterrada nos costumes vitorianos. Essa
constatação equivale a afirmar que Bram Stoker produziu o vampiro mais importante para o cinema
porque pôde beber o sumo dos vampiros que o antecederam, mesclando as referências românticas,
os elementos históricos e o contexto social da Inglaterra vitoriana em uma personagem repleta de
intertextualidade. O resultado foi uma obra que, até o momento de sua criação, era mais complexa
que as demais do gênero por carregar os traços mais amadurecidos do movimento literário do qual
fazia parte.
Em primeira instância, o vampiro stokeriano tem um nome: Drácula. Esse batismo
perpetuou-se em vampiros posteriores que, de maneira contumaz, assumiram as formas e funções
do primeiro, modificando, vez ou outra, alguns detalhes do contexto de atuação da personagem. A
repetição levou ao aperfeiçoamento e à divulgação. Por isso, durante grande parte do século XX, a
cultura pop presenciou a ampla atuação de um vampiro tão engessado em suas possibilidades que
acabou disfarçando os indícios anteriores, tanto folclóricos, quanto byronianos.
Drácula é o retrato acabado do estilo stokeriano, embebido em seus antepassados. Ele é
um sanguessuga e um morto regressante, oriundo do leste europeu, aos moldes mais fieis do
folclore vampiresco e, é também, um nobre irresistivelmente misterioso, de feições incomuns e
forte apelo sexual, assim como um vampiro byroniano clássico.
GREIMAS, A.J. COURTÉS, J. Dicionário de Semiótica. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2012, p. 283.
751
BARTHES, Roland. Introdução à Análise Estrutural da Narrativa. In Análise Estrutural da Narrativa. Petrópolis:
752
Vozes, 2011.
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Porém, o vampiro stokeriano é acima de tudo, mau. À parte as derivações que surgiram
na segunda metade do século XX, Drácula e seus correlatos não são sentimentais ou melancólicos,
assim como não apresentam nenhum sintoma de culpa ou arrependimento. Ao contrário, são
ardilosos, articuladamente inteligentes e utilizam de todo seu poder para arranjar os fatos a seu
favor.
Drácula é sádico e mantém suas vítimas em lenta agonia, enquanto ele retorna noite após
noite para deleitar-se com seu sangue. O vampiro stokeriano não se relaciona de forma nenhuma
com vítimas masculinas, sendo destinado a eles todo o ódio que essa criatura sente pela
humanidade.
Há no vampiro stokeriano o desejo contido de obter uma companhia pela eternidade, por
isso ele tende a selecionar uma vítima para experimentar de seu sangue e um ritual que se assemelha
a um acasalamento. Essa criatura mantém ao seu lado concubinas que o auxiliam na disseminação
do medo por entre uma atmosfera de sonho e magia.
O vampiro stokeriano adensa sua atuação e sua própria existência com questões que
ampliam a problemática em torno do vampiro como, por exemplo, a inocuidade da passagem do
tempo, a salvação do corpo e a condenação da alma, filosofias que estreitam definitivamente a
relação entre os vampiros e a Idade Média.
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no cinema estão consumadas nessa modalidade da matriz visual e é dele que o cinema concretiza-
se como manifestação artística.
A multiplicidade das imagens vampirescas no cinema, que dão suporte à performance da
figura do vampiro, formam o arcabouço de leis e normas que possibilitam a atuação do signo em
sua terceira e mais completa instância: o símbolo.
Todos os demais níveis de influência encontram-se representados no nível simbólico,
repleto de significados vitais para a temática vampiresca. No entanto, apesar da determinante
presença de ideias e conceitos medievais, bem como da literatura romântica-gótica, há duas
influências que se consubstanciam mais fortemente no núcleo da representação: a narrativa do
romance Drácula, de Bram Stoker, e as Danças Macabras medievais do século XV.
O primeiro é a mais relevante fonte de transmutação dos códigos verbais para os
audiovisuais, representando, portanto, o foco da hibridização da linguagem, que converteu o
vampiro em uma ininterrupta expressão cultural. De toda forma, por ser fruto do gótico tardio, a
narrativa de Stoker é, ela mesma, um terceiro nível de significação que, no processo de ascendência,
representa, na matriz verbal, a amálgama entre dois níveis anteriores: um primeiro, composto pelo
pensamento medieval, e um segundo, composto pelas heranças dos vampiros folclórico e
byroniano.
Por sua vez, as Danças Macabras concretizam, da forma mais simbólica quanto possível,
todos os medos e pensamentos que o homem nutriu em relação à morte, durante séculos da era
medieval.
Essas são as duas fontes diretas que caracterizam o terceiro nível de influência das imagens
vampirescas. Ora, se as imagens são aquelas que suportam a figura, então é nesse nível que a figura
do vampiro realiza-se.
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Estas são formas simbólicas no sentido peirciano, quer dizer, convencionais, mas
são, ao mesmo tempo, motivadas por manterem vínculos de semelhança com
aquilo que representam. Embora essas formas se estruturem em sistemas e
representem seus objetos através de leis gerais, estabelecidas por hábito ou
convenção, há no entanto, entre ambos (signo e objeto), uma relação de analogia
que se caracteriza por um certo teor de semelhança aparente ou diagramática.
Portanto, convenções culturais são necessárias ao entendimento dessas formas,
mas a arbitrariedade de seus símbolos associa-se a elementos de semelhança entre
signo e objeto.754
É interessante notar como as Danças Macabras medievais puderam motivar de forma tão
intensa a performance do vampiro cinematográfico. Enquanto signos, essas gravuras representam,
dentro de uma cadeia semiológica própria, um terceiro nível de significação. Esse fenômeno pode
ser explicado pelo fato de as Danças Macabras serem as imagens representativas, portanto
simbólicas, dos pensamentos que pairavam pela Idade Média em relação à morte e à condenação
da alma.
Quando hibridizadas com o cinema, as Danças Macabras interseccionam com as imagens
cinematográficas, também no nível da terceiridade, repleta de leis que normatizam as
representações que saltam ao primeiro plano da mente interpretante. Mas, antes de materializarem-
se em figura representativa, elas participam, como força qualitativa, da primeira instância da
imagem, ou seja, aquela que representa a força motriz do processo criativo de composição do
quadro, no nível da primeiridade.
O resultado desse fenômeno de dupla aproximação entre as Danças Macabras e as imagens
vampirescas é a relação de semelhança entre as figuras, que se concretizam a partir de leis próprias
da temática narrativa, acarretando significados muito mais profundos e simbólicos do que a imagem
pode fazer notar a partir de sua forma.
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Resumo: Neste trabalho, voltamos nosso olhar para o patrimônio cultural, material, imaterial e
natural de uma forma integrada, resistente longe dos grandes centros históricos urbanos. São
lugares longínquos, onde as crianças brincam nas ruas com os pés na terra, as mães conversam no
portão, onde se ouve o canto dos pássaros, lava-se roupas no rio e a linguagem dos sinos é
facilmente decodificada pelos seus habitantes. Estes pequenos povoados espalhados por todo
estado de Minas Gerais, onde a simplicidade é inversamente proporcional a riqueza cultural e
natural, e, mesmo não sendo considerados de valor excepcional e nem berço de grandes heróis
nacionais, fazem parte da nossa história e merecem ser conhecidos, reconhecidos e preservados.
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casos aqueles de herança portuguesa, representantes de uma elite branca, católica e europeia, se
transformou em defensor obstinado do patrimônio “pedra e cal”756.
Com o afastamento de Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 1967, o próprio nomeia
Renato Soeiro que já trabalhava no SPHAN desde 1938 como chefe da Divisão de Conservação e
Restauro, para assumir a diretoria do SPHAN. Permaneceu neste cargo por 12 anos e iniciou uma
reforma de base nas concepções patrimoniais, alargando o horizonte frente às diversidades culturais
que caracterizavam a sociedade brasileira.
Renato Soeiro foi interessado e participativo nas políticas internacionais, demonstrou uma
preocupação integral com a cultura do passado e do presente, com o patrimônio tangível e o
intangível.757 Foi com ele que a diretoria se transformou em Instituto, com regimento interno, seis
diretorias técnicas, assessoria jurídica e nove distritos regionais, visando o desenvolvimento
econômico das regiões marginalizadas. Desta forma, criou o Programa das Cidades Históricas do
Nordeste (PCH)758, atualmente remodelado e expandido para outras regiões do Brasil.
Aloísio de Magalhães, desempenhou a função de coordenador do Centro Nacional de
Referência Cultural durante a gestão de Soeiro e assumiu, em 1979, a direção do IPHAN. Dando
continuidade aos trabalhos de Soeiro, reconheceu os bens culturais não mais por valores estéticos
ou por suas características eruditas, mas pelo valor que a população local conferia aos mesmos.
Sendo assim, enfatizou o patrimônio imaterial e defendeu a ideia de pluralidade cultural
num período de redemocratização da política brasileira. Designer, Aloísio tinha uma equipe
multidisciplinar que lançavam novos olhares sobre o patrimônio brasileiro, elaborando novas
estratégias de salvaguarda. Com sua morte súbita aos 54 anos na cidade de Pádua, Itália, onde
tomava posse como presidente da Reunião de Ministros da Cultura dos Países Latinos, no ano de 1982,
seus projetos foram interrompidos. Venturosamente, a Constituição de 1988, no artigo 216, definiu
o patrimônio cultural brasileiro de uma maneira abrangente, inclusiva e diversificada, reconhecendo
o valor do patrimônio imaterial, cultural e natural de todo país.
756 Ver: FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural.
In. ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (Org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
757 AZEVEDO, Paulo Ormindo David de. Renato Soeiro e a institucionalização do setor cultual no Brasil. In:
AZEVEDO, Paulo Ormindo David de, Corrêa, Elyane Lins (Org.). Estado e Sociedade na Preservação do Patrimônio.
Salvador: EDUFBA: IAB, 2013. P. 25.
758 AZEVEDO, Paulo Ormindo David de. Renato Soeiro e a institucionalização do setor cultual no Brasil, p.30.
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menos de suas “fachadas”760. Uma alusão ao “fachadismo”, preocupado apenas com o caráter
material e superficial dos monumentos.
No plano nacional, o contexto político e econômico era confuso, cheio de incertezas e
negação aos projetos ligados a proteção do patrimônio a nível federal, mas o Decreto de no 22.928
em 12 de julho de 1933, declarou a cidade de Ouro Preto monumento nacional761. Em 1938, após
a criação do SPHAN, tombaram Ouro Preto a nível nacional, e, em 1980 o Comitê do Patrimônio
Mundial da UNESCO em reunião realizada na cidade de Paris, declarou a antiga Vila Rica
Patrimônio Cultural da Humanidade.
À guisa de informação, atualmente, pelo IPHAN são catalogados 48 bens tombados na
sede de Ouro Preto, dentre eles: capelas, chafarizes, igrejas, pontes, passos, construções civis, e,
apenas um registro dos bens imateriais, representado pela linguagem dos sinos762.
A nível estadual há três tombamentos: dois de conjuntos arquitetônico e uma fazenda;
quanto aos registros imateriais, até o momento não encontramos nenhum. Em contrapartida, como
patrimônio municipal são quatro763 bens registrados: os doces artesanais e a Festa do Divino de
São Bartolomeu, a Festa de Nossa Senhora dos Remédios e as Cavalhadas. Já os bens materiais
tombados pelo município são: a Cadeira de Dom Pedro; Capela Nossa Senhora da Conceição dos
Chiqueiros dos Alemães; a Capela de Nossa Senhora dos Remédios do Fundão do Cintra; a Capela
de Santana; o Cemitério de São Miguel Arcanjo, Chafariz Dom Rodrigo, Conjunto Arquitetônico
e Arqueológico da Capela de Nossa Senhora Auxiliadora de Calastróis, Conjunto Ferroviário de
Miguel Bounier e o Conjunto Ferroviário de Rodrigo Silva, a Igreja de São Gonçalo, Igreja Nossa
Senhora das Dores, Núcleo Histórico de Ouro Preto, Núcleo Histórico de São Bartolomeu, Obras
de Arte da Estrada Real e a Pontes de Ana de Sá764.
Nota-se que os bens classificados com proteção municipal são mais diversificados e
priorizam as representações locais, sem se ater unicamente ao patrimônio “pedra e cal”, como
recomendado nas últimas Cartas Patrimoniais e Conferências Internacionais. Desta forma, cedem espaço
para os bens culturais localizados nos distritos afastados da sede, valorizando-os como patrimônio
material e imaterial de Ouro Preto. Mas, se na teoria vemos esta abertura, a prática segue em
descompasso.
760 SANDOVAL, Carolina da Graça; ARRUDA, Jéssica Silva; SANTOS, Nathália Cabral. Ouro Preto: Impactos da
atividade turística em uma cidade tombada. In: Revista Itinerarium, V.2, 2009, p. 13.
761 Publicações da Secretaria do Patrimônio e Artístico Nacional. N o 31. Proteção e Revitalização no Patrimônio Cultural no
Brasil: Uma Trajetória. Anexo V – Trecho do Decreto no 22.928, de 12 de julho de 1933. IPHAN: 1980. p. 89.
762 O toque dos sinos e o ofício dos sineiros de nove cidades históricas de Minas Gerais - São João del- Rei, Congonhas,
Ouro Preto, Mariana, Diamantina, Serro, Sabará, Tiradentes, Catas Altas, são registrados como patrimônio imaterial
do patrimônio nacional nas categorias de formas de expressão e saberes, respectivamente.
763 Atualmente, foi aberto o processo de registro do ofício das bordadeiras e rendeiras de Ouro Preto.
764 Lista de Registros e Tombamentos do Arquivo do IEPHA. Consultado no dia 04/04/2016. Belo Horizonte. MG.
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Rodrigo Silva foi elevado a distrito pela lei n◦ 2.764, expedida em 30 de dezembro de 1962.
Atualmente, é sede distrital dos povoados de Arrozal, Bico de Pedra, Boa Vista, Quilombo, Fundão
e Morais. Está localizado a 18 km de Ouro Preto, com uma população de aproximadamente 1.070
habitantes, de acordo com o Censo IBGE de 2010.
Sua primeira referência remonta aos tempos coloniais, no antigo arraial da Boa Vista e de
sua setecentista capela de Santa Quitéria. Sabe-se que essa localidade serviu como ponto estratégico
de paragem para viajantes que dali direcionavam os vales do Rio Doce, do Rio das Velhas e o Vale
do Rio Paraopeba, além de avistarem os Picos de Itabirito e do Itacolomy, este último um
importante referencial para se chegar à cobiçada Vila Rica. Conhecido como caminho-tronco,
interligava o litoral à Ouro Preto, como rota de escoamento e abastecimento de mercadorias.766 Sua
terra é rica em topázio imperial, sendo a única mina em funcionamento no mundo com registros
de extração desde o início do século XIX767.
A partir de 1888 com a chegada da Estrada de Ferro D. Pedro II, a população desceu o
Alto da Boa Vista para acompanhar de perto a modernidade. Desta forma, construíram suas casas
junto à Estação e à linha do trem, formando hoje o traçado urbano do distrito de Rodrigo Silva.
Junto com a Estação chegaram os ferroviários com seus costumes e cultura, povoando a região
que hoje compõe o distrito. A presença destes homens foi significativa, e já no início do século XX
765 Amarantina, Antônio Pereira, Cachoeira do Campo, Engenheiro Correia, Glaura, Lavras Novas, Miguel Burnier,
Rodrigo Silva, Santa Rita de Ouro Preto, Santo Antônio do Leite, Santo Antônio do Salto e São Bartolomeu.
766 BOHRER, Alex Fernandes. Ouro Preto, um novo olhar. São Paulo: Scortecci, 2011. P. 181.
767 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, tradução de Vivaldi Moreira.
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formaram a Sociedade Musical de Santa Cecília e a Escola Municipal Dr. Alves de Brito, ambas em
plena atividade.
No final do século XX as ferrovias foram fechadas, em razão das construções das estradas
de rodagem. Com o fim das atividades ferroviárias, a partir da década de 1990, a Estação de Rodrigo
Silva ficou abandonada e grande parte de seus equipamentos “desapareceram”. A edificação resistiu
e foi restaurada em 2002 pela Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP) com apoio da Secretaria de Cultura
do Estado e do IEPHA-MG.
A partir de um pedido da Associação Cultural Amigos de Rodrigo Silva, iniciou um trabalho de
tombamento do seu Conjunto Urbano e Ferroviário (Núcleo Histórico do Distrito de Rodrigo
Silva). O pedido foi encaminhado ao Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural
e Natural de Ouro Preto e oficializado na reunião ordinária de 03 de outubro de 2006. O Dossiê de
Tombamento768 reúne uma série de informações – estudo histórico, descrição do distrito e sua
geografia, caracterização urbana e arquitetônica.
Observa-se que o Conjunto foi efetivamente tombado pela prefeitura municipal de Ouro
Preto, entretanto segue as margens das atuais políticas preservacionistas. Sua edificação está
descaracterizada, cheia de degradações, sem iluminação, há lixos espalhados, pichações, telhas e vidros
quebrados. A comunidade e os guardiões locais com o apoio da Sociedade Musical de Santa Cecília
e da Escola Municipal Dr. Alves de Brito, tentam estabelecer funcionalidades com exposições,
ensaios, aulas de educação patrimonial, um ou outro evento. Mas sem recursos e infraestrutura
adequada, são ações isoladas e sem uma função efetiva, desta forma, vem se deteriorando
aceleradamente ao longo dos anos.
Além do Conjunto Arquitetônico Ferroviário declarado patrimônio municipal de Ouro
Preto, destacamos aqui outros bens não institucionalizados, mas presentes no distrito: a Igreja de
São João e a festa do padroeiro; a Banda – Sociedade Musical de Santa Cecília formada pelos
ferroviários em 1901; a Escola Municipal Dr. Alves de Brito em funcionamento desde 1908; a
capela e a festa de Santa Quitéria, datadas do início do século XVIII; a Gruta Sete Salões; a Ponte
do Bico de Pedra e o Parque Natural da Caveira. Seguindo a Convenção da Unesco de 2003:
768 ANDRADE, Bernardo. Dossiê de Tombamento do Conjunto Urbano e Ferroviário de Rodrigo Silva. Fev/2008. Acervo
Municipal da Câmara de Ouro Preto.
769 Recomendação Paris. Convenção para salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Conferência geral da UNESCO.
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Desta forma, acreditamos que o patrimônio não está confinado apenas aos interesses da
elite, e, sua proteção não depende apenas do apoio do estado (apesar de este ser essencial), mas é
preciso um esforço em conjunto, onde a comunidade reivindica a preservação e possua seus
próprios métodos para sua salvaguarda.
Educação Patrimonial: O Projeto Mais Cultura na Escola Municipal Dr. Alves de Brito.
Apostamos na Educação Patrimonial como chave mestra para preservação dos nossos
patrimônios, e, como um caminho para a educação ser de fato transformadora, formadora de
sujeitos ativos e conscientes historicamente. O Projeto Mais Cultura nas Escolas desenvolvido pelo
Governo Federal, trata-se de uma parceria do Ministério da Cultura com o Ministério da Educação,
regulamentada por meio de resoluções publicadas no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.
Concedido este apoio do poder público, as ações deste projeto foram realizadas sem grandes
empecilhos, onde contamos com: aluguel de transporte, materiais para as oficinas, equipamentos
básicos, lanches e, por fim, produzir um livro de registros do Projeto – Entre as montanhas de
Minas: o patrimônio de Rodrigo Silva771.
Como via de mão dupla, nos encontros foram trocados saberes e vivências, onde
engrandecemos mutuamente, transcendendo o método educacional tradicional que apenas
reproduz informações, em “quadro e giz”. Partimos do pressuposto, que o conhecimento do lugar
onde moram, da história de sua escola, da sua banda, da sua estação, da sua igreja e capela, enfim,
dos seus lugares de origem, permite que se estabeleça uma relação afetiva e direta com os bens de
outros tempos, incluindo-os como parte do processo histórico do munícipio de Ouro Preto. O
lema do Projeto é “Conhecer para Amar e Amar para Preservar”.
Nossos maiores desafios foram encontrar referências históricas sobre o lugarejo e
desenvolver atividades que fossem interessantes e lúdicas, nas quais atendessem aos anseios dos
jovens e adolescentes deste mundo pós-moderno. Desta forma, buscamos formular ações criativas
capazes de transformar efetivamente a relação entre os sujeitos e os seus bens culturais, valorizando
a diversidade cultural e o fortalecimento da identidade local. Para isso, fizemos uso de múltiplas
770 Ministério da Cultura. Educação patrimonial: histórico, conceitos e processos. Iphan 2014. P. 19.
771 SOARES, Jussara Duarte. Entre as montanhas de Minas: o patrimônio de Rodrigo Silva. São Paulo: Scortecci, 2015.
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estratégias como: visitas turísticas no Santuário do Caraça, no centro histórico de Ouro Preto, nos
distritos de Lavras Novas e São Bartolomeu, conhecendo o modo de fazer do tradicional doce de
goiaba, oficinas teóricas, entrevistas com os idosos de Rodrigo Silva, pesquisas em arquivos
buscando a história local, exposição “Pra ver a Banda passar...” – com parceria da Sociedade
Musical de Santa Cecília, mostras de filmes, atividades de conservação, revitalização dos espaços –
Estação Ferroviária, caminhadas eco-culturais, banhos de cachoeiras e assim por diante.
Nossos principais objetivos foram envolver os alunos e disponibilizar as informações e
acervos sobre os bens culturais para a comunidade local, estimulando a participação de todos na
proteção, salvaguarda, valorização e melhor usufruto de seus bens. Algumas etapas foram
inicialmente concluídas, como observação e registros, mas almejamos explorar mais a fim de
contribuir para a preservação e divulgação dos seus mais diversos bens culturais.
Considerações finais:
Acreditamos ser necessário pensar o patrimônio como uma criação humana conflituosa e
contaminada pela lógica do mercado capitalista, sempre parte de um jogo entre “luzes e
sombras”772. O que acarreta na dialética patrimonial, ser um campo tênue entre a teoria construída
e a sua aplicabilidade.
Partimos do pressuposto de que os indivíduos têm o direito de acesso à sua própria cultura,
à sua história, firmando assim uma identidade e desenvolvendo uma memória coletiva por meio da
cidadania. Um ser consciente historicamente é um sujeito ativo em seu meio e, sendo assim, ele
estará presente em todas as etapas da preservação dos seus bens. Ele guarda, conserva e divulga,
ressaltamos aqui bons exemplos de guardiões culturais persistentes no distrito de Rodrigo Silva.
Nas últimas décadas, observa-se a dificuldade dos órgãos públicos de acompanharem as
rápidas transformações e o alargamento do significado de patrimonial. Desta forma, é preciso
buscar um equilíbrio entre os papeis dos Estados, dos municípios, da comunidade, da escola e dos
setores privados, investindo em uma rede ampla de proteção e valorização dos mais diversos bens
culturais que compõem nossas sociedades.
Ressalvamos que a história de Minas Gerais vai além dos documentos oficiais e das grandes
obras do período barroco, privilegiadas por representarem o passado de uma elite colonial, por
estarem nos centros históricos urbanos e por serem tombadas, registradas e consagradas como
legítima identidade nacional. Os bens representativos das classes mais simples e rurais,
constantemente esquecidos, marginalizados, ou apenas inventariados, apesar de não fazerem parte
772CIVALE, Leonardo. Sobre Luzes e Sombras: a revitalização da Praça XV de Novembro no centro histórico da
cidade do Rio de Janeiro e o papel da paisagem urbana como patrimônio cultural (1982-2012). In: Caderno de Geografia
(PUC/MG. Impresso), v. 25, 2015, p.09.
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dos fatos memoráveis da história oficial, também pertencem ao passado, são representes de uma
sociedade e permanecem vivos no presente e cotidiano das comunidades locais.
Constatamos que a negligência das políticas públicas, principalmente no que diz respeito às
comunidades rurais, sempre marginalizadas e as sombras773, acabam colocando em risco a
vivacidade dos bens. Sem o seu devido reconhecimento vão desaparecendo nas brumas do
tempo.... Acreditamos assim, que os mais diversos bens culturais, bem como os consagrados como
os não consagrados pelo poder público, tanto os de natureza material como imaterial e natural,
deveriam ser preservados de forma integrada. Citando Jacques Le Goff: “Devemos trabalhar de
forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.” 774
773 CIVALE, Leonardo. Sobre Luzes e Sombras: a revitalização da Praça XV de Novembro no centro histórico da
cidade do Rio de Janeiro e o papel da paisagem urbana como patrimônio cultural (1982-2012), p.13.
774 LE GOFF, Jacques. Memória. História e Memória. 5ª. Campinas, SP: UNICAMP, 2003, p.471.
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Resumo: O presente artigo propõe colocar em relação algumas pinturas do pintor francês Antoine
Watteau com pinturas produzidas em outras temporalidades. Acredita-se que dessa maneira seja
possível verificar algumas questões suscitadas pela sobrevivência de gestos e temáticas presentes
em sua produção pictórica, mas que encontram correspondência com outras obras que antecedem
e sucedem a produção do artista.
Palavras-chave: Antoine Watteau; Pintura Francesa do Século XVIII; Sobrevivências.
O presente artigo relaciona-se com a pesquisa que venho desenvolvendo desde meu
doutorado, a qual estou dando continuidade em meu pós-doutorado. O objetivo central de meu
trabalho é compreender a dinâmica da relação entre a arte e a moda francesa do século XVIII. Em
minha tese “Na trama das aparências: moda e arte na obra de Antoine Watteau (1684 – 1721) ”,
defendida recentemente775, analisei a relação da obra de um dos mais importantes artistas franceses
do período com a moda. A fonte principal dessa pesquisa foi um conjunto de gravuras em água-
forte realizadas a partir de desenhos de Watteau, intitulado Recueil Jullienne. Essa publicação tem
uma importância crucial na história da imprensa ilustrada, das gravuras de moda e da história da
arte776.
A interdisciplinaridade está presente em minha pesquisa ao abordar uma temática cara tanto
a área da história da moda, como da história da arte. Estabelecer o diálogo entre essas duas áreas,
só é possível através do debate sobre a questão das imagens. A partir de uma reflexão teórico-
metodológico que pensa as imagens em um movimento dinâmico de relações espaço-temporais
que tem sua matriz nos estudos de Aby Warburg e mais contemporaneamente nos de Didi-
Huberman, Philippe-Alain Michaud entre outros. Assim, tanto Watteau como outros artistas que
estão sendo incluídos em meu pós-doutorado, tem sua produção artística pensada não só na época
em que viveram, mas numa dimensão de tempo e espaço mais complexa.
775 LIMA, Laura Ferrazza de. Na trama das aparências: moda e arte na obra de Antoine Watteau (1684 – 1721). 328 f.
Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós Graduação
em História, Porto Alegre, 2015.
776 SAHUT, Marie-Catherine et RAYMOND, Florance. Antoine Watteau et l’art de l’estampe. Musée du Louvre
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A escolha das imagens que são colocadas em relação umas com as outras deve-se ao
objetivo de compreender de que maneira acontece a construção visual da roupa e da moda francesa
da primeira metade do século XVIII. Busco refletir sobre a maneira com que o traje e/ou a moda
participaram na constituição da visualidade dos artistas, além de analisar a construção da memória
em torno dos trajes presentes em suas obras. É importante ainda, verificar o papel desempenhado
pela roupa na construção da gestualidade e do movimento dos corpos das figuras desenhadas. Por
fim, investigar as relações que as imagens selecionadas estabelecem com as sociabilidades e as
formas de vestir da época em que foram produzidas e com outras épocas. Afinal, algumas vezes é
preciso relacionar a produção visual da época escolhida com imagens de outras temporalidades.
É preciso ter em mente que o tempo das imagens é diferente do nosso. As imagens são
perpassadas por tempos heterogêneos e por diferentes memórias777. Tais referências teóricas são
pertinentes no que diz respeito à relação entre o universo da arte e o da moda. É preciso conhecer
esses tempos diversos manipulados pelos artistas que de forma direta ou indireta dedicaram-se a
representar trajes. O tempo da imagem se desdobra: dessa maneira uma imagem pode se relacionar
com outras, de outro tempo e outro lugar778. Isso significa que não podemos situar toda a produção
imagética de determinada sociedade sob uma denominação ou definição únicas. É preciso expandir
o olhar e considerar a intrincada trama de relações que constituem as imagens de uma maneira
abrangente.
O fato de considerar a produção artística de Antoine Watteau em diálogo com diferentes
tempos é uma visão recente. Tal circunstância deve-se ao fato de que olhar sob essa ótica um artista
e sua obra é ainda bastante complexo. Em uma parte de minha tese me propus a fazer um exercício
nesta direção. Alguns teóricos da imagem, tais como Didi Huberman e Regis Debray779, apresentam
a noção de que uma imagem é polissêmica, ou seja, possui sentidos inesgotáveis.
É preciso ir além das intenções do artista com a sua obra. A pesquisa deve buscar a
compreensão da produção de alguém que está separado de nós por muitos séculos e, no caso do
Brasil, por um distanciamento também cultural. Uma pesquisa que leva em conta essas variáveis
deve ser realizada através da análise da questão das sobrevivências presente nas imagens produzidas
pelo artista, que ainda fazem sentido e instigam o conhecimento após um longo período de tempo
e, até mesmo, em uma cultura distante. O que existe para nós - homens e mulheres do século XXI
- na obra de Antoine Watteau?
777 DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Historia del arte y anacronismo de las imágenes. Buenos Aires:
Adriana Hidalgo, 2011. p. 33.
778 ___________. Ante el tiempo, p. 47 e 50.
779 DEBRAY, R. Vida y muerte de la imagen. Barcelona: Paidos, 1992, p. 40.
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Watteau não apresenta uma continuidade cronológica óbvia em relação aos artistas ou
pretensos estilos artísticos que o antecederam. Nesse sentido, utilizar as teorias desenvolvidas pelo
historiador da arte Aby Warburg para analisar a obra de Antoine Watteau pode ser extremamente
produtivo. Certamente, o mais rico viés de análise é o que diz respeito a comparação entre
diferentes imagens que devem ser colocadas em relação.
Uma vez que as imagens são construídas por diferentes memórias e pelo tempo no qual o
artista viveu e com outros tempos com os quais teve contato, devemos considerar não só o passado
histórico de Watteau – a França do início do século XVIII –, mas também seu passado memorativo
e os tempos que ele manipulou. É aí que entram questões como o aparecimento de elementos do
paganismo antigo, ou do teatro italiano do século XVI, assim como suas referências visuais em
imagens anteriores a ele e seus indícios em imagens posteriores.
Precisamos refletir e analisar a maneira com a qual o artista constrói sua visualidade, através
das imagens selecionadas e das suas relações com o tempo e a sociedade em que foram feitas,
porém sem desconsiderar as suas sobrevivências. No final do século XVIII, o artista Jean-Honoré
Fragonard (1732 – 1806) ainda apresentava temas e abordagens semelhantes aos de Watteau780.
Como exemplo, citamos a célebre pintura de Fragonard, O Balanço, de 1767 (figura 1), que apresenta
um tratamento de luz e da paisagem muito semelhante às obras de seu antecessor. O tema central,
inclusive, havia aparecido em um quadro de Watteau reproduzido em gravura em 1726, com o
mesmo título da pintura de Fragonard (figura 2).
No primeiro exemplo, temos uma interpretação que enfatiza a questão do voyeurismo, do
homem que espia por sob a saia da dama e, também, do que embala a mulher e observa a interação
do casal. O volume da saia que se movimenta com o balançar é uma mescla de graça e erotismo,
de sedução por acidente. Por sua vez, a mulher no balanço de Watteau é também embalada, mas o
movimento ainda está no início, não há agitação das saias, e o que chama mais atenção é a questão
da suspensão do corpo no ar.
Os dois artistas apresentam uma certa continuidade, por pertencerem ao mesmo século e à
mesma tradição artística. São como as duas pontas extremas de um objeto idêntico. O próprio tema
do balanço na pintura desse período pode ser associado a questões muito mais complexas do que
a aparente diversão pueril. Em sua tese de doutorado, Etienne Jollet associa o gosto por essa
temática a questões acerca da descoberta da gravidade por Newton no século XVII781. Podemos
perceber igualmente uma recorrência do tema em períodos posteriores, como em um quadro de
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Auguste Renoir (1841 – 1919) de 1876, intitulado igualmente como O Balanço (figura 3). Destaca-
se o fato de que é sempre uma mulher adulta a divertir-se ou a experimentar a sensação de balançar-
se.
A partir do Renascimento, o paganismo da antiguidade tornou-se um tema recorrente na
arte. Contudo, em cada período, esses temas foram ressignificados, servindo a diferentes
propósitos. No âmbito do presente trabalho, cabe a questão: de que maneira a arte francesa do
século XVIII – especialmente a produção de Watteau – retomou os temas da antiguidade? Em seus
estudos, Warburg destacou as ressurgências da figura mítica da ninfa. Para ele, os artistas e
intelectuais do Renascimento a buscaram porque ela representava um signo privilegiado da
vitalidade pagã. A ninfa, naquele momento, tornou-se o elo entre o presente e a evocação do
passado782. Notamos claramente que, na pintura do século XVIII, temas pagãos ainda são
importantes. Ainda assim, é oportuno indagar quais episódios ou personagens da mitologia se
destacam. Os mais apreciados elementos do universo pagão eram os episódios de luxúria, deleite e
sedução.
No que concerne à questão da Ninfa propriamente dita, essas possuíam vestes diáfanas que
sugeriam a nudez783. Em contrapartida, as figuras femininas de Watteau estão, na maioria das vezes,
devidamente vestidas. Contudo, seus trajes não são tão leves, mas, ao mesmo tempo, não parecem
pesados, devido às cores, ao tecido e à forma com a qual moldam o corpo. É muito raro que as
figuras estejam completamente nuas. Elas se movem de forma graciosa, quase flutuam. Devemos
lembrar que os vestidos soltos que aparecem nos quadros do artista chegaram a ser considerados
sensuais e um simulacro de nudez, pela literatura da época.
Um exemplo do tema da ninfa nas obras de Watteau é o quadro Júpiter e Antíope (figura 4),
que mostra o episódio no qual Zeus toma a forma de um sátiro e desnuda a ninfa Antíope durante
o sono784. Além de representar uma ninfa propriamente dita, existe nele outra raridade: é um dos
poucos nus realizados pelo pintor. Vale recordar que o sátiro, assim como a ninfa, é também uma
figura associada à lascívia e à sedução. As duas figuras, por sinal, ocupam um papel de destaque no
Atlas Mnemosyne de Warburg.
Dessa maneira, pode-se notar que os temas mitológicos mais usuais no século XVIII eram
de segunda ordem: divindades menores, como as ninfas e os sátiros, e episódios relacionados ao
amor e à sedução, no lugar de grandes conflitos. De que forma essas preferências se relacionavam
com o contexto histórico da época? E como aparecia o paganismo na obra de Watteau?
782 BURUCÚA, José Emílio. História, Arte, Cultura. De Aby Warburg a Carlo Ginzburg. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 2003, p. 15.
783 WARBURG, Aby. O nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli. Lisboa: Imago, 2012, p. 33.
784 LAUTERBACH, Iris. Antoine Watteau. Colônia: Taschen, 2010, p. 13.
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Recorremos ao mais célebre dos quadros do artista francês, Peregrinação a ilha de Citera (figura
5). A ilha de Citera, que serviu de inspiração para diferentes obras do pintor, é um tema que nos
remete à mitologia antiga. Suas representações em tempos anteriores não possuem muita
semelhança com as obras do artista. A ilha normalmente aparece retratada como o local de
nascimento da Vênus, como é o caso de um afresco de Pompéia, intitulado A chegada de Vênus a
Citera (figura 6) ou da célebre obra O nascimento da Vênus (figura 7) de Sandro Botticelli, objeto da
já citada pesquisa de Aby Warbug785.
Segundo esse autor, se quiséssemos dar à Primavera de Botticelli um nome ligado ao
ambiente intelectual da época, então o quadro deveria chamar-se “O reino de Vênus”, pois a ilha
de Chipre ou Citera seriam parte deste reino786. No Renascimento era interessante representá-lo,
mas, no século XVIII, os homens almejam ir para lá. Isso poderia explicar a escolha do tema da
peregrinação para Citera por Watteau. Para Warburg, as duas telas de Botticelli, O Nascimento da
Vênus e A Primavera, se completam. Na primeira, a deusa nasce e, na segunda, mostra a sua
morada787. Para o Renascimento, interessa a vida de Vênus, o seu nascimento, o lugar que habita.
Por sua vez, no século XVIII, é o santuário dela que merece uma visita dos contemporâneos com
o objetivo de gozarem livremente do amor.
Enquanto as imagens antes citadas tratam de um tema semelhante, mas que recebe de
Watteau uma abordagem nova, em outras, igualmente distantes no tempo, encontramos
semelhanças intrigantes com a obra deste artista. Entre as imagens que podem ser comparadas,
está um dos afrescos de Pompéia que representa um sátiro abraçando uma mulher nua (figura 8).
A imagem apresenta uma relação visual com alguns casais retratados por Watteau, tais como os
presentes no quadro O passo em falso de 1719 (figura 9). Esse é um dos exemplos de quadros do
artista que apresentam uma cena, cujo desfecho deve ser completado pela imaginação do
espectador. Qual é a história contida nesta cena?
Ao que indica o título, pode ser apenas o gesto de um passante levantando uma jovem
mulher que tombou na terra? Ou seria melhor, como sugere a gama cromática, um suspiro
voluptuoso que busca superar uma resistência inoportuna? O rubor sanguíneo das bochechas e das
mãos do homem trai um desejo mais que ardente pela moça de nuca branca. O vermelho dos
cabelos e as orelhas que se alongam assemelham esse amante a um sátiro – símbolo do desejo
carnal e do impulso sexual. Os tufos de mato parecem ameaçar o corpo indefeso da mulher. O
jogo das mãos crispadas exprime a intensidade do instante. Não sabemos se a jovem mulher repudia
785 WARBURG, Aby. O nascimento de Vênus e A Primavera de Sandro Botticelli, 1893. In: MICHAUD, Philippe-
Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013, p. 27.
786 WARBURG, O nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli, p. 69.
787 ___________ O nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli, p. 73.
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ou acaricia seu companheiro, e seu rosto oportunamente escondido nos impede de ler a recusa ou
o consentimento788.
Em outros quadros do pintor aparecem casais semelhantes, como na versão de O Embarque
para Citera de 1718 (figura 10), que se encontra em Berlim. No caso destes exemplos, os casais
apresentam uma semelhança na pose que denota erotismo. Contudo, na obra Júpiter e Antíope (figura
4), a relação não está tanto na pose, mas no tema, um sátiro e uma ninfa.
É impossível que o artista tenha visto ou conhecido as imagens de Pompéia, cuja descoberta
ocorreu apenas em 1748. Os maiores achados arqueológicos dos vestígios da Antiguidade
ocorreram no século XVIII, e foi a observação desta arte que levou as gerações do final daquele
século e do início do século XIX a idealizá-las. Contudo, na época de Watteau, nada se conhecia
sobre elas. Talvez a idealização de um universo em que a nudez e o erotismo eram mais naturais
na sociedade tenha encantado os homens de seu tempo. De forma análoga, o fato da pose se repetir
pode ser apenas uma herança visual não consciente. É ainda possível que a presença dessas
referências fosse assimilada pelo contato com a arte italiana do século XVI.
Charles Baudelaire (1821 - 1867) via, nas “princesas descontraídas e elegantes” e nas
“paisagens de fantasia” desse artista, aparições aparentadas, familiarizadas com a intensidade e os
abismos da moderna psique humana789. Elogiava ainda o redemoinho das figuras, “que andam à
deriva, resplandecendo subitamente, como borboletas com asas vistosas”790.
Antoine Watteau foi capaz de unir temas da Antiguidade com desejos da futura geração
romântica. Esses retornos de algo que, na verdade, nunca se fora, ajudam a entender o conceito do
anacronismo das imagens mencionado anteriormente. O artista pode ter sido capaz de representar
uma síntese da sociedade de sua época, mas não se limitou apenas a isso. O impacto visual da
criação seguiu acontecendo após a época de sua expressão. Ela faz sentido e provoca sensações
diversas em períodos posteriores.
Outro elemento interessante para pensar sobre a questão das sobrevivências na obra de
Watteau é o tema da pastoral, com a presença de personagens como o pastor e a pastora ou os
camponeses. A temática estaria relacionada com as fêtes galantes, ou seja, a representação de pessoas
elegantemente vestidas no campo ou de pessoas em meio a uma paisagem rural ou campestre. A
exploração deste tema aproxima a obra do artista com a literatura e com a questão da poesia
pastoral.
788MAFFESOLI, Emmanuelle. Peintures Galantes e Libertines. Watteau, Boucher, Fragonard...ÉditionsArtlys, Paris, 2014,
p. 14.
789 ELIAS, Norbert. A peregrinação de Watteau a ilha do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 09
790 LAUTERBACH, Antoine Watteau, p. 9.
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Aquilo que se valoriza são apenas os aspectos positivos da vida no campo e, assim,
elementos como o trabalho e a solidão não aparecem. Era como vestir uma fantasia: as damas
maquiadas, perfumadas e bem vestidas da alta sociedade eram transportadas para o campo e
transformada em belas, maquiadas e bem vestidas camponesas. Dá-se um toque de simplicidade
tão suave que não perde jamais a elegância. Porém, Watteau é dos poucos que mostra certa
sensibilidade ao verdadeiro camponês e ao possível trabalho no campo, ainda que sem perder de
vista a graça.
É importante notar que, a partir do século XVI, um ideal arcádico passou a fazer parte da
formação cultural da elite francesa. Esse pode ser um dos motivos pelos quais esse ideal alcança
tamanha importância nas manifestações visuais do século XVIII, tanto na arte como na moda.
Vestidos inspirados no traje das pastoras apareceram no decorrer daquele século. Por conseguinte,
a obra de Watteau não escapou do debate sobre o bucolismo.
Uma boa estratégia é comparar a visão bucólica desse artista no século XVIII com a do
pintor francês Nicolas Poussin (1594 – 1665), que viveu no século XVII. Enquanto o primeiro se
foca na figura dos pastores e pastoras através de um clima de erotismo, o segundo prende-se a uma
representação clássica. A Arcádia de Poussin é impressionante, mas jamais faz referência direta à
vida pastoril. O tema é apresentado como mitologia de tipo tradicional, transmitindo uma
impressão heroica e lembrando o classicismo romano. Ou seja, nada do universo galante e dos
trajes exuberantes de Watteau.
Tal distinção fica ainda mais clara ao observarmos o quadro de Poussin intitulado Et in
Arcadia ego (figura 11). Em tal obra, podemos notar o forte respeito e a referência direta à
Antiguidade Clássica, que inicia já pelo título, uma citação em latim. Quando analisamos os
personagens retratados, notamos a tentativa de representá-los como pastores e pastoras vindos
diretamente da Roma antiga, de uma Arcádia idealizada, mas presa ao passado. As figuras parecem
altivas e reflexivas, e não transmitem a impressão de estarem se deleitando no campo.
Do outro lado, temos O embarque para a ilha de Citera (figura 10), de Antoine Watteau. Trata-
se da segunda versão do quadro apresentado para a Academia, tendo merecido as mais variadas
análises. Norbert Elias dedicou um pequeno ensaio somente para ele, no qual afirmou que o quadro
representaria uma utopia amorosa que se encaixava no gosto do público aristocrático do período791.
O resultado final não é teatral, mas uma composição de figuras graciosas que se movimentam à
vontade. A imagem criada estaria entre:
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Ele coloca a obra no meio caminho entre a alegria e a melancolia, apresentando uma
atmosfera de equilíbrio e de graça. A mitologia apresentada no quadro é uma criação do pintor.
Porém, as imagens estão organizadas de forma a contar uma história compreensível ao espectador
não culto, tornando-a universal. É mais acessível ao homem comum, quando comparado aos
quadros de Poussin que exigiam o conhecimento prévio da mitologia clássica ou de textos
bíblicos793, notando-se, desta forma, uma mudança de conteúdo.
Através das possibilidades de abordagem e análise da obra de Watteau aqui esboçadas,
esperamos ter atingido alguns objetivos. O mais importante é perceber a questão da permanência
em sua obra. Algumas vezes de forma consciente, em outras não, o artista foi buscar elementos no
universo imagético que estava à sua disposição. Seu passado flamengo, as influências do gosto
italiano, o teatro, o ballet, a ópera, a música, a beleza dos trajes, todos esses elementos operaram
na construção das imagens de Watteau. Suas criações mostram-se muito além da superficialidade
com a qual sua arte foi, por muito tempo, rotulada. O artista transcende o tempo e faz do idílio
amoroso um espaço de reflexão.
Figura 1 - Jean-Honoré Fragonard. O Balanço, 1767. Óleo sobre tela, 81 x 64,2 cm. Coleção Wallace,
Londres. Fonte: www.wallacecollection.org – consultado em 10/01/2015.
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Figura 2 - Antoine Watteau. L’escarpolette, 1726. Óleo sobre tela, 51,3 x 31,9 cm. Helsinki, Agência Nacional
de artes plásticas da Finlândia. Fonte: www.kansallismuseo.fi – consultado em 02/05/2015.
Figura 3 - Pierre-Auguste Renoir, O Balanço, 1876. Óleo sobre tela, 73 x 92 cm. Museu D’Orsay, Paris. Fonte:
www.musee-orsay.fr – consultado em 05/05/2015.
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Figura 4 - Antoine Watteau. Júpiter e Antíope, 1714. Óleo sobre tela oval, 73,5 x 107,5 cm. Museu do Louvre, Paris.
Fonte: www.louvre.fr – consultado em 05/06/2015.
Figura 5 - Antoine Watteau, Peregrinação para Citera, 1717. Óleo sobre tela, 128 x 193 cm. Museu do Louvre, Paris.
Fonte: www.louvre.fr – consultado em 01/06/2013.
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Figura 6 - Anônimo. Vênus chegando a Citera, séc. I d.C. Afresco de Pompéia, Museu Arqueológico de Nápoles.
Fonte: http://cir.campania.beniculturali.it/museoarcheologiconazionale - consultada 09/11/2014.
Figura 7 - Sandro Botticelli. O nascimento de Vênus, 1485. Têmpera sobre tela, 172,5 x 278,5 cm. Galeria Uffizi,
Florença. Fonte: www.uffizi.com – consultado em 09/11/2014.
Figura 8 - Anônimo. Sátiro e Mulher, séc. I a. C., Afresco de Pompéia. Museu Arqueológico de Nápoles. Fonte:
http://cir.campania.beniculturali.it/museoarcheologiconazionale - consultada 09/11/2014.
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Figura 9 - Antoine Watteau. O passo em falso, 1719. Óleo sobre tela, 40 x 31,5 cm. Museu do Louvre, Paris. Fonte:
www.louvre.fr – consultado em 04/04/2015.
Figura 10 - Antoine Watteau, O embarque para a ilha de Citera, 1718. Óleo sobre tela, 128 x 193 cm. Palácio de
Charlottenburg, Berlin. Fonte: LAUTERBACH, Iris. Antoine Watteau. Colônia: Taschen, 2010. P. 57.
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Figura 11 - Nicolas Poussin. Et in Arcadia ego, 1638-9. Óleo sobre tela, 85 x 121 cm; Museu do Louvre, Paris. Fonte:
www.louvre.fr – consultado em 04/05/2015.
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794Sobre a criação das primeiras vilas em Minas Gerais cf: FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei :
espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
795 Belo Horizonte. Arquivo Público Mineiro – APM. Revista do Arquivo Público Mineiro, Ouro Preto, ano II, vol. 1,
p.86-87, 1897.
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Para além da intensa exploração mineral, a Vila Real de Sabará prosperou, no século XVIII,
em função de sua localização geográfica estratégica: próxima ao Rio de Janeiro e às margens do
navegável Rio das Velhas, importante afluente do Rio São Francisco. Assim, como bem destacou
a historiadora Adriana Romeiro, no século XVIII, Sabará “esteve intimamente conectada aos
movimentos e ritmos planetários que ligavam o Ocidente ao Oriente”, podendo ser chamada de
“encruzilhada do Império português”.796 Rota de entrada e saída das Minas; lugar de encantamento
e de prosperidade, Sabará tornou-se um dos centros urbanos mais populosos dos sertões, onde
floresceu um universo cultural ímpar, a partir da apropriação de diversas tradições. Nesse sentido,
podemos destacar no acervo artístico e religioso local a Igreja Matriz de Nossa Senhora da
Conceição e a Capela de Nossa Senhora do Ó, nas quais o tradicional gosto artístico português
mescla-se, de forma indelével, com o exótico orientalismo presente nas chinesices.797
No entanto, o objeto desse trabalho é a refinada Capela da Ordem Terceira do Carmo,
marcada, sobremaneira, pelo elegante e sofisticado estilo Rococó. Em 1761, cinquenta anos depois
da criação da Vila Real de Sabará, foi instituída, em altar lateral da Igreja Matriz, a Venerável Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, desmembrando-se, de forma não tão concorde,
do sodalício carmelitano de Vila Rica. Uma Ordem Terceira constitui-se em uma associação de
leigos católicos, que, agregados sob a devoção de um patrono, se reúnem em comunhão espiritual,
fraterna e social, tendo por referencial uma Ordem Religiosa. Almejam à perfeição cristã praticando
sua religiosidade conforme os preceitos de um estatuto, todavia não professam os votos solenes de
obediência, castidade e pobreza, típicos de ordens primeiras e segundas – as Ordens Regulares.
Nas Minas Setecentistas,798 a Ordem Terceira Carmelita instalou-se legalmente em São João Del
Rei (1749, anteriormente como uma simples irmandade), Mariana (anterior a 1751), Vila Rica –
Ouro Preto (1752), Tejuco – Diamantina (1758), Sabará (1761) e Vila do Príncipe – Serro (1761).799
Sua localização geográfica é a seguinte:
796 ROMEIRO. Adriana. Sabará em perspectiva: a encruzilhada do Império português no século XVIII. In:MELLO,
Magno Moraes (orgs.). Ars, techné, technica: a fundamentação teórica e cultura da perspectiva. Belo Horizonte.
Argumentum, 2009, p.31-40.
797 Segundo o glossário de arquitetura e ornamentação “chinesice” é o trabalho ornamental, geralmente pintado de
vermelho, azul e ouro, à imitação oriental. Pode-se falar também em chinesices com relação aos painéis e portas
pintados com motivos da China, existentes em algumas igrejas mineiras. cf: ÁVILA, Affonso; GONTIJO, João
Marcos Machado; MACHADO, Reinaldo Guedes. Barroco Mineiro: Glossário de Arquitetura e Ornamentação: Belo
Horizonte. Fundação João Pinheiro, 1980. (CD-Rom).
798 Sobre as Ordens Terceira do Carmo em Minas Gerais, nos séculos XVIII e XIX e seu repertório iconográfico
veja a nossa recente dissertação de mestrado. REZENDE, Leandro Gonçalves de. O Monte Carmelo nas Montanhas de
Minas: arte, iconografia e devoção nas Ordens Terceiras do Carmo de Minas Gerais (séculos XVIII e XIX).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em
História, Belo Horizonte, 2016. 204 p.
799 As datas entre parênteses estão de acordo com a cronologia estabelecida por BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o
Poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986, p.214-223.
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Figura 16. Mapa de localização das Capelas de Ordem Terceira do Carmo em Minas Gerais. Edição: Leandro Rezende.
Tais associações de leigos “foram eretas para se exercer alguma obra de piedade ou
caridade”;800 entretanto, além das obras pias e do culto divino, propunham aos seus membros um
modelo de vida cristã. No Cânone 702, do Código de Direito Canônico, de 1917,801 os terceiros são
aqueles que vivem “conforme o espírito de uma ordem, esforçando-se por adquirir a perfeição
cristã de uma maneira acomodada à vista do século”.802 Conforme a linguagem da época, eles são
“homens do mundo”, ou seja, não são eclesiásticos. Raphael Bluteau, em seu Vocabulario portuguez
& latino, reitera que “secular” é sinônimo de “leigo” e serve de oposição a “regular”, que por sua
vez remete ao religioso professo, que vive debaixo de uma Regra, em comunidades.803
Em virtude das preocupações régias, em Minas, não tivemos a construção de complexos
conventuais, sendo que as grandes experiências arquitetônicas no território recaíram
principalmente sobre as construções religiosas seculares, paroquiais e capelas de confrarias e ordens
terceiras, uma vez que as ordens monásticas e mendicantes estavam proibidas nessa região.804 O
Estatuto da Ordem Terceira do Carmo de Sabará reitera a proibição dos regulares, enfatizando a
800 CÓDIGO DO DIREITO CANÔNICO. Cân. 707. Apud, BOSCHI, Caio C. Os leigos e o poder, p.14-15.
801 O Código de Direito Canônico é uma compilação recente, porém serve de parâmetro para o contexto em estudo,
uma vez que, em termos de definições e de hierarquias entre as associações leigas, ele representa uma continuidade
da legislação canônica anterior, a saber, a Constituição Quaecumque, emitida pelo Papa Clemente VIII em 1604. Assim,
há quatro classes de associações leigas, que, pela ordem de precedência, são denominadas Ordens Terceiras
Seculares, Arquiconfrarias, Confrarias (ou Irmandades) e Pias Uniões.
802 CÓDIGO DO DIREITO CANÔNICO. Cân. 702. Apud, SALLES, Fritz Teixeira de. Associações Religiosas no Ciclo
Resende. Entre a ambição e a salvação das almas: a atuação das ordens regulares em Minas Gerais (1696-1759).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em História, São
Paulo, 2005.
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obediência hierárquica e espiritual que os terceiros deveriam ter em relação os primeiros, ou seja,
ao clero carmelita observante do Convento do Rio de Janeiro. Segundo o texto:
como nas Minas e na dita Cidade de Mariana não haja Convento algum de
Religiosos do nosso hábito a que possa agregar a dita Ordem Terceira [Ordem
Terceira do Carmo de Sabará] nem Religiosos nossos que possam servir de
Comissários da nossa amada ordem, pela proibição de Sua Majestade Fidelíssima
para que nas Minas não assistam Religiosos. Enquanto durar a dita proibição, ou
não haver licença do dito Senhor, havemos por bem [...] nos obrigarmos aos MM.
RR. PP. Provinciais [Mui Reverendos Padres Provinciais].805
805 Sabará. Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de Sabará - AOTCS. Estatuto da Ordem Terceira, século XVIII,
sem data. Capítulo 2. § 2. Agradeço à Rosana Figueiredo, pelo acesso a este documento.
806 Ausência no sentido do não estabelecimento de conventos e monastérios, pois, como bem identifica a
historiografia, clérigos regulares perambularam pelas Minas, por exemplo, como Comissários, visitando as Ordens
Terceiras ou arrecadando esmolas com as devidas licenças apropriadas. Cf. SILVA, Renata Resende. Entre a ambição e
a salvação das almas: a atuação das ordens regulares em Minas Gerais (1696-1759), em especial o capítulo 4.
807 BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o poder, p.14.
808 Sobre o Padroado Régio veja: HONAERT, Eduardo; AZZI, Riolando; GRIJP, Klaus van der; BROD. Benno.
História da Igreja no Brasil. Ensaio de interpretação a partir do povo. Primeira época colonial. Petrópolis: Vozes, 2008;
PAIVA, José Pedro. A Igreja e o poder. In.: AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.). História Religiosa de Portugal. Lisboa:
Círculo de Leitores, 2000, vol. I, p.158-163.
809 ÁVILA, Affonso: Igrejas e Capelas do Sabará. Revista Barroco, Belo Horizonte, n.9, 1977.
810 CAMPOS, Adalgisa Arantes e REZENDE. Leandro Gonçalves de. Aleijadinho – Antônio Francisco Lisboa. Belo
Brasileira, Belo Horizonte, v.1, n.1, p.137-146, 2001; RAMOS, Adriano. Francisco Vieira Servas: o grande artista
português do barroco mineiro: Telas & Artes, Belo Horizonte, Ano 1, n.7, 1997; CUNHA, Edite da Penha e
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no primeiro quartel do século XIX, ao pintor Joaquim Gonçalves da Rocha.812 Quando esteve na
Capela da Ordem Terceira do Carmo de Sabará, Auguste de Sant-Hilaire deixou registradas as
seguintes impressões:
uma das Igrejas de Sabará de que não posso deixar de falar é a do Carmo, situada
abaixo da Intendência, no mesmo monte. É construída de pedra, bonita no
interior, muito limpa, ornada de muitos dourados e muito clara. Pode-se dizer
que em geral as Igrejas da Província de Minas são mantidas mais asseadas que as
nossas, e se as artes não apresentam nenhuma obra-prima, em compensação não
se vê nada bizarro nem ridículo.813
SCHETTINO, Patrícia Thomé Junqueira (orgs.). As Geraes de Servas: Circuito Cultural Vieira Servas. Belo Horizonte:
UFMG, 2014, dentre outros.
812 Sobre a pintura do Carmo de Sabará cf. DEL NEGRO Carlos. Contribuição ao Estudo da Pintura Mineira. Rio de
Janeiro: SPHAN, 1958, p.113-120. Há poucos dados sobre o Mestre Pintor Joaquim Gonçalves da Rocha: consta
que, em 1801, tinha 46 anos e aparece arrolado no Livro de Devassas como “homem pardo, natural da Vila do
Sabará, morador no Arraial do Curral Del Rei, onde vive da arte de pintor”. Cf. Judith MARTINS. Dicionário de
Artistas e Artífices dos Séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Publicações do IPHAN, 1974, v. 2, p.170.
Sabemos que teve importante atuação na região da Comarca do Rio das Velhas na primeira metade do século XIX.
813 SANT-HILAIRE, Auguste de. Apud ÁVILA, Affonso: Igrejas e Capelas do Sabará, p.39.
814 Cf. PASSOS, Zoroastro Vianna. Em torno da História do Sabará. A Ordem Terceira do Carmo e sua Igreja – Obras
barroca, manifestações artísticas e as cerimônias da Semana Santa (século XVIII a meados do século XIX).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em
História, Belo Horizonte, 1999. 172p.
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816 MARTINS, Willian de Souza. Membros do Corpo Místico: Ordens Terceiras no Rio de Janeiro (c.1700-1822). São
Paulo: Edusp, 2009, especialmente o capítulo 4: “A formação da rede de Ordens Terceiras na colônia”, p.85-99.
817 BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário Histórico Geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
1995.
818 SANTA MARIA, Frei Agostinho de. Santuário Mariano e histórias das imagens milagrosas de Nossa Senhora. Reedição
Ilustrada. Rio de Janeiro: INEPAC, 2007, p.250. A primeira edição foi feita em Lisboa no ano de 1723.
819 Mortalhas (ou hábitos) se referem à veste do falecido. No testamento era comum a indicação da veste mortuária.
Todavia, a mortalha era paga, e quando não havia recursos para adquiri-la, usava-se o lençol branco, alusão ao
sudário de Cristo. Sobre Mortalhas ver: CAMPOS, Adalgisa Arantes. Considerações sobre a pompa fúnebre na
Capitania das Minas. Revista do Departamento de História – UFMG, n.IV, p.1-24, 1987; RODRIGUES, Cláudia. Nas
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diversos setores da sociedade desejavam usar a mortalha carmelita, buscando, com ela, o conforto
na hora da morte e a salvação da alma. Geralmente a mortalha está associada à devoção do falecido,
pois se acreditava que o seu uso auxiliaria o fiel no processo de salvação. As mortalhas mais
requisitadas, além do lençol branco, seriam o hábito franciscano e o hábito carmelita. Não por
acaso, é comum na iconografia ibérica cenas heterodoxas, nas quais São Francisco e Nossa Senhora
do Carmo resgatam almas do fogo do Purgatório.820
Vejamos o exemplo de Manoel da Cunha, português natural da Freguesia de São Miguel de
Soutelo e paroquiano da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Sabará. Membro da Ordem
Terceira do Carmo sabarense, Manoel elaborou seu testamento e faleceu na solene festa de Nossa
Senhora do Carmo, em 16 de julho de 1798. Em sua última vontade, deixou claro que queria ser
sepultado e amortalhado no hábito da ordem em que professava. A certidão de funeral assinada
por Joaquim Mariano de Souza Guerra Araújo Godinho, Vigário encomendado na Paróquia de
Nossa Senhora da Conceição da Vila de Sabará, atesta que
falecido da vida presente com seu solene testamento Manoel da Cunha,
paroquiano desta Freguesia, determinou que fosse o seu corpo sepultado na
Capela de Nossa Senhora do Carmo, onde era Irmão e amortalhado no hábito
da mesma Senhora, e foi acompanhado e encomendado por mim e mais oito
Sacerdotes e todos lhe disseram a Missa de Corpo presente por sua Alma o que
importou a despesa do funeral, entrando os Direitos Paroquiais e os da Fabrica
desta Freguesia, cera e todas as mais em cinquenta e cinco mil e duzentos
[55$200] que tudo satisfez [o testamenteiro] Joaquim da Rocha Lima, o que me
constou pelos recibos das pessoas que assistiram com o que foi preciso. 31 de
Agosto de 1798.821
Logo, reunindo membros das “elites” e compartilhando uma devoção cara à sociedade, as
Ordens Terceiras do Carmo trataram de erigir templos próprios, enriquecendo-os com obras que
representassem seus ideais e preceitos inspirados em uma iconografia bem específica, baseada nos
programas das ordens europeias. Em Minas, há um importante e rico acervo iconográfico nas
Ordens Terceiras do Carmo, que representa, de forma significativa, a história da Ordem, repleta de
fatos lendários, místicos e fabulosos. Figurativamente, isso se traduz em símbolos e representações
que remetem à origem emblemática ainda no Antigo Testamento, com Elias e Eliseu; à sua
fundação histórica no século XIII, com Simão Stock; à reforma do Carmelo Descalço, conduzida
Fronteiras do Além: O processo de secularização da morte no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2005; DAVES, Alexandre Pereira; Vaidade das vaidades os homens, a morte e a religião nos testamentos da
Comarca do Rio das Velhas (1716-1755). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em História, Belo Horizonte, 1998, dentre outros.
820 Cf. CAMPOS, Adalgisa Arantes. As irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: culto e iconografia no
(75) 590 1798. Inventário de Manoel da Cunha, fl. 11 e 11v. Agradeço à Ludmila Torres a transcrição e
disponibilização deste documento.
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por Teresa D’Ávila e João da Cruz; e não menos importante, à hierofania, ou seja, a manifestação
do sagrado nas várias aparições de Nossa Senhora do Carmo.
Enquanto imagem devocional Nossa Senhora do Carmo é representada em pé, em sua
iconografia tradicional: túnica e escapulário marrons, sobre capa branca. Padroeira das seis capelas
terceiras dedicadas ao Carmo em Minas Gerais, no século XVIII, a Virgem ocupa lugar de destaque
no templo, ou seja, o trono do altar-mor. Geralmente as imagens de Nossa Senhora do Carmo são
imagens de vestir,822 o que é explicando pela facilidade em representar no autêntico tecido o
escapulário carmelita, conferindo-lhe verossimilhança. Esta peça de pano exerce fascínio no
imaginário cultural carmelitano. Segundo o Estatuto do sodalício de Sabará o escapulário
corresponde à roupa de “gala do céu, que a Virgem Senhora Nossa deu por sua mão para divisa
[ou seja, reconhecimento] a todos os que professam no instituto carmelitano”.823 Encontramos
imagens de vestir representando Nossa Senhora do Carmo no trono do altar-mor do templo
carmelita de Mariana, de Ouro Preto e de Sabará. As três peças são datáveis de meados século
XVIII. Segundo o Inventário de Bens Móveis e Integrados (IBMI) do IPHAN, elas são de fatura
local, usando hábito marrom, longo escapulário, capa branca, véu e coroa de prata. No braço
esquerdo, elas carregam o Menino Jesus. Tais imagens são esculpidas de modo a carregar bentinhos
nas mãos. Estes, por sua vez, são periodicamente trocados, conforme percebemos nas análises
comparativas entre fotos antigas e atuais. Hábito carmelita e escapulário são, sem dúvida, os
grandes distintivos da Senhora do Carmo.
Figura 17. Sabará. Ordem Terceira do Carmo. Imagem de Nossa Senhora do Carmo do altar-mor. Foto:
Leandro Rezende.
822 Em nossa pesquisa utilizamos a classificação das imagens de vulto, ou seja, “aquelas livres no espaço, e
trabalhadas na frente e no verso, permitindo vários pontos de vista”, proposta por Beatriz Coelho e Maria Regina
Emery Quites. Cf. COELHO, Beatriz e QUITES, Maria Regina Emery. Estudo da escultura devocional em madeira. Belo
Horizonte: Fino Traço, 2014, em especial o quadro explicativo da página 39.
823 AOTCS. Estatuto da Ordem Terceira, Capítulo 18 o, § 11.
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824 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.17.
825 CAMPOS, Adalgisa A. A ordem Carmelita. Per Musi, Belo Horizonte, no.24, p.54-61, 2011.
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não padecerá o fogo eterno. Eis o sinal da salvação, a salvação nos perigos, pacto
de paz a aliança para sempre.826
O escapulário tornou-se o símbolo e o modelo de fé para os filhos do Carmelo, que deveriam levá-
lo consigo em sinal de devoção e de pertencimento.
Em Sabará, a composição da pintura da capela-mor tem gosto popular, com cores
carregadas e sombreado mal resolvido. Segundo o IBMI do IPHAN o forro é de tábuas corridas
em abobada de berço.827 A pintura de perspectiva é composta por balcão parapeito azul com frisos
branco e rosa, circundando toda a periferia. Completando a obra temos oito púlpitos, em tambor
semicilíndricos amarelos, em cujos ângulos se encontra santos da ordem828 e oito bases azuis com
frisos rosas, onde se assentam anjos, com símbolos da ladainha de Nossa Senhora. 829 Ao centro
grande rocalha, com a aparição miraculosa da Virgem ao frade inglês.
Figura 18. Sabará. Capela da Ordem Terceira do Carmo. Forro da capela-mor. Joaquim Gonçalves da Rocha, 1818. Foto:
Leandro Rezende.
Visualmente, temos Nossa Senhora do Carmo, cercada por nuvens e anjos, a entregar o
escapulário a São Simão Stock. A demarcação do espaço sagrado é feita pelo fundo dourado,
mostrando a sacralidade da cena. Todavia, o escapulário aqui representado não é o bentinho, e sim
uma peça de pano que se sobrepõe aos ombros. São Simão Stock é calvo, idoso e traz consigo o
lírio, símbolo da pureza e um cão, símbolo da fidelidade. No entanto, o que é mais chamativo na
figura é o anjo intercessor retirando almas que ardem nas chamas do Purgatório, o que resume bem
a promessa feita por Nossa Senhora a São Simão Stock, quando lhe entregou o santo escapulário.
826 HIKSPOORS. Frei Pedro Thomaz, et alli. Vida dos Santos da Ordem Carmelitana. Rio de Janeiro: Imprimatur, 1930,
p.146.
827 Belo Horizonte. IPHAN. IBMI – Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Sabará, bem número MG-86.004.00174.
828 A saber: Santo André Corsini, Santo Alberto, São Luís e Santo Eduardo.
829 A saber: Torre de Marfim, Rosa Mística, Lua, Sol, Casa de Ouro, Sede de Sabedoria, Porta do Céu e Estrela da
Manhã.
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Percebemos que o Termo não foi seguido à risca, pois na capela-mor foi pintada a cena da
aparição de Nossa Senhora do Carmo, com os emblemas marianos nas mãos dos anjos; os santos
da ordem foram pintados na nave e os atlantes foram encarnados e não pintados na cor do bronze
como ficou ajustado. Na capela da Ordem Terceira do Carmo de Sabará não há representação da
Coroação de Nossa Senhora. A pintura do forro da nave representa a visão do arrebatamento do
Profeta Elias, conforme a escritura bíblica de 2Rs 2, 1-18.
830 Carlos Del Negro vê a possibilidade do Alferes José Ribeiro da Fonseca ser o autor de repinturas nos tetos da
capela. Cf. DEL NEGRO Carlos. Contribuição ao Estudo da Pintura Mineira, p.116.
831 PASSOS, Zoroastro, Vianna. Em torno da História do Sabará, p.117-118.
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832 Papa João XXII é o 196º papa da História. Seu pontificado foi de 1316 a 1334.
833 AOTCS. Livros de Termos de 1761, fl145v a 146v.
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foram reafirmados e assim “imperadores, reis, papas, cardeais e outras personalidades importantes
recebe[ra]m o escapulário.” 834
Em Minas, temos duas representações visuais dessa cena hierofânica: uma no forro da nave
do templo carmelitano de São João Del Rei e outra na capela carmelita de Sabará, na “empena
sobre o arco-cruzeiro”, onde geralmente encontramos a tarja de coroamento, inexistente no caso.
De acordo com o IBMI, trata-se de uma pintura em têmpera sobre argamassa, datável de 1818, se
considerarmos que seu autor é Joaquim Gonçalves da Rocha. Como já mencionado, segundo o
termo firmado ele deveria pintar por “cima da cimalha um painel da figura da Santa Madre Igreja,
que consta de um Pontífice com a custódia do Santíssimo Sacramento, e Nossa Senhora com a
Cruz, e por baixo da mesma custódia as Taboas da Lei, e debaixo desta o Novo e o Velho
Testamento”. A julgar pelo que vemos, houve uma benéfica modificação, uma vez que a
iconografia da Bula Sabatina é mais condizente com o repertório iconográfico de uma Ordem
Terceira do Carmo. Na cena a Virgem, envolta em nuvens, entrega um pergaminho ao papa, no
qual se lê “Bulla Sabati/na”. O vigário de Cristo traja capa vermelha e segura uma cruz pontifícia
(cruz com três braços). A tiara papal encontra-se do lado esquerdo, enquanto um anjo com lírio na
mão observa a cena do lado direito.
Figura 19. Sabará. Ordem Terceira do Carmo. Pintura sobre o arco-cruzeiro. Nossa Senhora do Carmo
entrega a Bula Sabatina ao Papa João XXII. Foto: Leandro Rezende
834 GONÇALVES, Flávio. O Privilégio Sabatino na Arte Alentejana. Separata de A Cidade de Évora, p.45-66, 1963.
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vitalidade na Contrarreforma “quando a propaganda do valor dos sufrágios se torna uma das
necessidades da Igreja Católica, em resposta à heresia protestante da negação do Purgatório”. 835
O Concílio Tridentino confirmou o Purgatório como uma topografia do Além e estimulou
a oração e a piedade popular em prol dos aflitos que lá se encontram.836 Essa popularidade logo se
refletiu iconograficamente nas obras de arte, tanto em simples painéis de madeira pintados com o
texto da tradução portuguesa da Bula Sabatina, quanto em telas, azulejos e retábulos de cunho
heterodoxo, nos quais a Virgem literalmente desce ao fogo purificador e, em atitude contrita e
maternal, resgata almas que portam o escapulário sobre os ombros. Todavia, tais representações
foram estritamente proibidas por decreto do Papa Paulo V, em 1613, alertando que a Virgem não
desceria ao Purgatório, antes, pois, intercederia junto ao Senhor pelas almas que lá estavam.
Em Minas, não encontramos esse tipo de composição visual, geralmente dividido em três
partes: a inferior, com o fogo do Purgatório e as almas, a intermédia, na qual uma alma está sendo
resgatada, e a superior, retratando a visão celeste com a Virgem, os anjos e santos. Porém, há
exemplos que atestam a popularidade do uso do escapulário como objeto indulgenciável e
disseminador de graças. Nas representações propriamente ditas da Bula Sabatina não encontramos
referência ao Purgatório, no entanto, como já foi mencionado, o forro da capela-mor da Ordem
Terceira do Carmo de Sabará apresenta a figura do anjo intercessor retirando almas que ardem no
fogo do Purgatório, elemento ambíguo que pune e purifica. A cena resume bem as promessas que
Nossa Senhora fez, tanto a São Simão Stock quanto ao Papa João XXII, acalentando as
preocupações dos devotos carmelitas que depositavam suas esperanças de salvação no uso de seus
escapulários.
Figura 20. Sabará. Ordem Terceira do Carmo. Detalhe do forro da capela-mor. Anjo retirando almas do Purgatório.
Foto: Leandro Rezende.
Sobre a doutrina do Purgatório cf. LE GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatório. Lisboa: Estampa, 1995;
836
VOVELLE, Michel. As Almas do Purgatório ou o trabalho de luto. São Paulo, UNESP, 2010, e CAMPOS, Adalgisa
Arantes. As irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: Culto e Iconografia no setecentos mineiro, dentre outros.
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Assim, ao analisar os padrões devocionais adotados pelos terceiros carmelitas nas Minas,
percebemos que se trata de uma espiritualidade depurada, embasada nas determinações que
provinham de instâncias superiores da Ordem. Isso se justifica, pois, ao definir e delimitar o
repertório iconográfico garantir-se-ia maior controle sobre as ideias cultivadas pelos fiéis seculares
das Ordens Terceiras, uma vez que estas estariam em íntima ligação com os ideais das Ordens
Primeiras e Segundas. Da mesma forma, as representações e os símbolos abrolhavam nas práticas
religiosas uma grande intensidade espiritual, aproximando os fiéis leigos da doutrina católica, além
de transmitir os valores edificantes que norteavam cada Ordem Mendicante.
Destarte, é fundamental salientar que não nos cabe questionar aqui se tais milagres,
aparições e/ou bênçãos foram, de fato, verdadeiros e inquestionáveis. Eles formam um conjunto
de crenças e tradições importantes na constituição da iconografia da Ordem Carmelita, estando
presentes no brasão da Ordem e na decoração das instituições estudas, legitimando realidades
plausíveis para esses fiéis. Acreditamos que tais obras são um deslumbre para a visão, que, em
contexto religioso, elevaria corações e almas à mais plena experiência divina. O homem religioso
sempre buscou meios para ascender-se espiritualmente, e, nesse sentido, as obras estudadas
cumpriram com mérito sua função. Corroborando nossa visão, citamos o teólogo Rudolf Otto,
pois
nas artes, o mais eficiente meio de representar o numinoso é quase sempre o
excelso. (...) Não há dúvida de que a arte dispõe de meios para produzir, sem
qualquer reflexão, um impressão bem específica, no caso, a impressão de 'magia'.
Acontece que essa 'magia' nada mais é que uma forma discreta e atenuada de
numinoso, inicialmente uma forma bruta do mesmo, que depois é enobrecida e
transfigurada na grande arte.837
Na sua origem, a palavra “Carmelo” significa jardim florido e simbolicamente esse jardim
floresceu nas Minas setecentistas, honrando aquela que sempre foi a sublime flos carmeli: a Senhora
e Mãe do Carmo. Assim, os terceiros carmelitas de Sabará, usando do seu espaço de devoção e de
seu zelo espiritual, promoveram o sagrado, ao edificar e ornamentar seu recinto religioso,
transformando-o em lugar de fascínio; de transcendência, de contemplação e de encantamento
diante de sua eloquente, homogênea e elegante decoração Rococó.
OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Petrópolis:
837
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O cinema, enquanto expressão técnica, artística e cultural humana pode ser estudado por
diferentes ângulos e espectros de compreensão. Justamente por sua complexidade, não são raros
os estudos no campo das ciências humanas que se dedicam ao estudo da sétima arte. A vasta
literatura que se avolumou ao longo destes recém-completos 120 anos de desenvolvimento838 do
cinema é incomensurável, rica e pautada por uma ampla abordagem que vai desde a técnica,
passando por sua dimensão estético-artística, bem como simbólica, histórica e sociológica.
O esforço deste estudo será o de tangenciar, nas fronteiras dialógicas existentes entre a
História e Museologia, como o desenvolvimento do cinema analisado através do espectro da
memória, tem como sua consequência mais imediata, a formação de um vastíssimo patrimônio de
alto valor cultural. A partir deste ponto, se aceitamos a conformação de um patrimônio audiovisual,
isto implica que, tanto do ponto de vista histórico quanto museológico, é necessário pensarmos no
estabelecimento de políticas culturais para sua preservação e divulgação. Assim, este trabalho
interessa-se particularmente por refletir sobre este processo, bem como sobre elaboração de
políticas patrimoniais que visem à preservação da memória audiovisual. Para efeitos de análise,
optamos no presente estudo em abordar as políticas de preservação de acervo do antigo Centro de
Referência Audiovisual – CRAV que, após passar por reformulação de sua estrutura e
redirecionamento de suas funções institucionais tornou-se o atual Museu da Imagem e do Som de
Belo Horizonte (MIS-BH). Analisaremos de modo particular, o caso do acervo do cineasta mineiro
Humberto Mauro.
838Texto escrito em Janeiro de 2016. A data que se admite oficialmente como a data de invenção do cinema é 28 de
dezembro de 1895 quando foi realizada no Grand Cafede Paris a primeira exibição de filmes feita pelos inventores do
cinematógrafo, os irmãos Auguste e Louis Lumière. Em dezembro de 2015, portanto, o mundo comemorou os 120
anos de invenção do cinema.
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Se por um lado o cinema deve sua dimensão técnica à invenção do cinematógrafo dos
irmãos Lumière, por outro, o desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica em muito é
devedor de figuras como Georges Méliès e David W. Griffith que consolidaram os primórdios da
linguagem e narrativa cinematográficas. A constituição de técnicas narrativas, recursos e efeitos
estilísticos ainda que parcos fizeram com que o século XX fosse decisivo para a consolidação do
cinema como integrante das chamadas belas artes, recebendo o título de “a sétima arte”.
O desenvolvimento da prática cinematográfica e de suas tecnologias possibilitou a
estruturação não só de uma nova forma de expressão artística, como também de uma das mais
poderosas indústrias conhecidas no capitalismo tardio. A movimentação de capital, o número de
empregos, o desenvolvimento de tecnologias alavancado pela indústria cinematográfica em
diversos países, mas, sobretudo, no mercado norte americano e indiano o aporte de investimentos
e o volume de produção são imensos. O caso do cinema brasileiro é particularmente interessante
e também já foi estudado por autores como Ismail Xavier, Jean-Claude Bernadet e Paulo Emílio
Salles Gomes, por exemplo. A tese central de Paulo Emílio Salles Gomes de que a condição de
subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado, uma condição, ficou célebre e
faz parte do hall de obras incontornáveis que abordam a questão da indústria (ou da não formação
de uma indústria) cinematográfica no Brasil. Temas que voltaremos a abordar neste estudo.
Como vínhamos expondo, o rápido desenvolvimento do cinema principalmente do ponto
de vista técnico/tecnológico acompanhado do contexto de expansão veloz experimentado pelo
capitalismo ao longo do século XIX e início do XX fez com que o cinema se desenvolvesse quase
que simultaneamente em diversas partes do mundo. A primeira exibição paga de filmes de que se
tem notícia acontecia no dia 28 de dezembro de 1895. Fora organizada pelos irmãos Louis e
Auguste Lumierè, inventores do cinematógrafo e ocorreu no Le Grand Cafè, localizado no Boulevard
de Capucines, em Paris. Já no ano seguinte acontecia a primeira exibição cinematográfica no Brasil,
mais especificamente no dia 8 de julho de 1896, no Cinematographo Parisiense, localizado no n°179
da então Av. Central no Rio de Janeiro839. Na época um local improvisado, de propriedade de
Pascoal Segreto e José Roberto Cunha Salles e que hoje abriga o teatro Glauber Rocha. Já o
primeiro filme feito no país, na verdade tratava-se de uma panorâmica da baía de Guanabara, com
tomadas das fortalezas e navios de guerra; feitas a bordo do navio francês Brésil pelo italiano Afonso
Segreto em 19 de julho de 1898.840
COSTA, Renato Gama-Rosa. Os cinematógrafos do Rio de Janeiro (1896-1925). In: Revista História, Ciências, Saúde-
839
840 ALTAFINI, Thiago. Cinema documentário brasileiro: evolução histórica da linguagem. São Paulo, (mimeo), 1999. 24p.
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Na Europa o cinema surgia como a grande novidade do fim do século XIX, em 1895.
Apenas sete meses depois daquela primeira exibição no Le Grand Cafè, os irmãos Segreto traziam
a novidade para o Brasil. Coincidentemente, no ano seguinte, 1897 nascia no interior de Minas
Gerais, na cidade de Volta Grande, aquele que viria a ser um dos maiores expoentes do cinema
nacional, o cineasta Humberto Mauro, a quem Glauber Rocha, por exemplo, considerava o “pai
do cinema nacional”. Tendo se mudado para a cidade mineira de Cataguases ainda criança,
Humberto Mauro viria a ser o grande nome do chamado “ciclo de Cataguases”, importante boom
cinematográfico ocorrido na cidade mineira por volta dos anos 1920. Neste período, juntamente
com o fotógrafo Pedro Comello, Humberto Mauro realiza um filme experimental, o curta-
metragem Valadião, o Cratera em 1925. No mesmo ano Humberto e Pedro com o suporte financeiro
do comerciante português Agenor Cortes de Barros, fundam a companhia cinematográfica Phebo
Sul América, a produtora de filmes de Cataguases na Zona da Mata Mineira, pela qual foram
lançados com relativo sucesso os filmes Na primavera da vida (1926), Thesouro Perdido (1927),
premiado como melhor filme daquele ano, além de Brasa Dormida que fora distribuído a partir de
1929 em breve circuito comercial, e Sangue Mineiro (1929), último filme produzido pela Phebo, e
que contou com a parceria e interferência técnico-estilístico de Adhemar Gonzaga durante a
concepção do enredo e nas filmagens, realizadas partes em Cataguases, algumas cenas em Belo
Horizonte e outras no Rio de Janeiro, objetivando atrair atenção do então governador de Minas
Gerais para futuros patrocínios e incentivos ao cinema brasileiro.
A virada da década de 1920 vai ser especialmente importante na carreira de Humberto
Mauro, com seus filmes tendo obtido considerável sucesso e ganhado expressividade
principalmente no círculo de críticos e especialistas de cinema que ainda remanescentes estavam
ganhando força no cenário cinematográfico nacional. O realizador muda-se para o Rio de Janeiro
em 1930, onde, em dezembro de 1929 Adhemar Gonzaga havia fundado a Cinédia, um dos
principais estúdios de produção cinematográfica do Brasil. Pela Cinédia Humberto Mauro filmou
clássicos do cinema nacional como Lábios sem beijos (1930), Ganga Bruta (1933) e A Voz do Carnaval
(1933). Após deixar o estúdio fundado pelo amigo Adhemar Gonzaga, Humberto Mauro retomou
a parceria com a atriz Carmen Santos com a qual já havia trabalhado no filme Sangue Mineiro. Juntos
eles realizaram os filmes Favela dos Meus Amores (1935) e Cidade Mulher (1936), entre alguns curtas-
metragens, produzidos pelo estúdio Brasil Vita Filmes fundado pela atriz. Em 1936, Humberto é
convidado pelo antropólogo Edgar Roquette-Pinto para trabalhar no INCE (Instituto Nacional de
Cinema Educativo), órgão financiado pelo governo de Getúlio Vargas com intensa produção
durante o Estado Novo. No INCE, Humberto Mauro dirigiu cerca de 350 curtas-metragens, todos
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voltados para a formação educacional através do cinema. As temáticas destes filmes variavam da
astronomia à medicina, abordando também história, geografia, biologia, literatura, música e teatro.
A despeito desta rica produção, a fase de atuação de Humberto Mauro pelo INCE é
geralmente deixada em segundo plano pela maior parte dos historiadores do cinema e de grande
parte dos estudos acerca da produção cinematográfica nacional, por ser considerada uma obra
inferior, desprovida de pretensão artística. Pesa sobre esta fase da filmografia do cineasta mineiro
a carga de estar atrelada aos interesses ideológicos do Estado Novo de Getúlio Vargas na
construção de uma identidade nacional brasileira. Contudo, é preciso ressaltar que o instituto
mantinha certa autonomia com o governo getulista e que o caráter pessoal ‘’independente’’ no qual
estavam atreladas as obras do cineasta, apesar de sua ligação indireta com o Estado por meio do
INCE e a nítida interferência de Roquette-Pinto, Mauro mantinha sua ideologia cinematográfica
no qual a representação do brasileiro bucólico era um referencial nos seus filmes.
No período em que esteve ligado ao INCE como funcionário público, Mauro realizou
paralelamente aos curta-documentários, alguns longas-metragens, como o filme O Descobrimento do
Brasil pelo Instituto de Cacau da Bahia em 1936, vinculado ao INCE e com apoio direto de
Roquette-Pinto e Afonso d’Taunay. Em 1940 ele realiza Argila, obra que retrata a questão da
cerâmica marajoara a partir de um contexto romantizado.
Humberto Mauro mesmo tendo seu trabalho atrelado a uma instituição ideologicamente
alinhada ao Estado, conseguiu manter suas raízes cinematográfica. É preciso lembrarmos que os
sujeitos históricos não são totalmente reféns das estruturas ideológicas capazes de criar e A
presença do caráter mauriano pode ser observado através da análise do seu último longa-metragem,
O Canto da Saudade de 1952, filme todo rodado em Volta Grande cidade na qual nasceu o cineasta,
apresentando aspectos bucólicos regionais muito presente nas primeiras produções da Phebo Sul
América nos anos 1920.
841 CARMAGO-MORO, Fernanda. Museu: Aquisição-Documentação. Rio de Janeiro: livraria Eça Editora, 1986. p.17.
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Assim como para os arquivos os fundos são os centros gravitacionais a partir dos quais se
orienta todo o trabalho no tratamento, organização e divulgação da informação neles contida. Já
para a os museus, este centro é ocupado pelas coleções que constituem os acervos museológicos, cuja
centralidade justifica seu todo o trabalho que deve ser executado por estas instituições no sentido
de empreender a aquisição, preservação, organização, valorização, divulgação de suas coleções.
Além disso, é também função dos museus através delas incentivar a pesquisa e geração de
conteúdos, uma vez que as perspectivas que embasam contemporaneamente a museologia,
entendem que os museus são também espaços de pesquisa, inovação e produção de conhecimento.
O acervo no caso de um museu, muito semelhante aos centros de memória, podem ser
adquiridas através de compra, doação ou permuta. A compra de acervos, principalmente por
museus de caráter públicos é mais rara. A aquisição nestes casos é geralmente feita por doação,
depósitos permanentes, empréstimo, legado ou permuta.
Em relação à aquisição de acervos, um dos problemas enfrentados por instituições que são
espaços de guarda, é a falta ou a não estruturação de uma política e procedimentos para aquisição
842DESVALLÉES, André & MAIRESSE, Fançois. (Orgs.) Conceitos-chave em museologia. Trad. Bruno Brulon e Marilia
Xavier Cury. São Paulo: Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus: Pinacoteca do Estado de São Paulo:
Secretaria de Estado da Cultura, 2013.p.32.
843 ____________________________________________. Conceitos-chave em museologia. p.32.
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844 BUARQUE, Marco Dreer. Estratégias de preservação de longo prazo em acervos sonoros e audiovisuais. In: Encontro Nacional
de História Oral, Outubro de 2008; São Leopoldo, RS. Anais... Rio de Janeiro: Associação Brasileira de História Oral;
São Leopoldo, RS : UNISINOS, 2008. 9f. p.1.
845 Informações concedidas gentilmente pelo Museu de Imagem e do Som – Belo Horizonte.
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projetores, filmadoras, coladeiras, enroladeiras, etc. Uma pequena parcela desses objetos encontra-
se em exposição nas salas da instituição.
Entre as coleções que integram o acervo do MIS-BH, encontra-se obras de importantes
diretores mineiros, no qual a obra de Humberto Mauro integra a instituição com 4 produções. Duas
produções longa-metragem, Ganga Bruta de 1933, e O Descobrimento do Brasil de 1936. Filmes
distintos e importantes para a história cinematográfica nacional, sendo o primeiro realizado ainda
na fase do diretor na Cinédia, última produção antes da ruptura de Mauro e Gonzaga. Quando já
integrante do INCE, ele realiza fora do instituto o filme com intuito, mas que não se tornou épico,
O Descobrimento do Brasil. Apesar de não ser oficialmente uma produção do INCE, o filme desde
a sua concepção possui marcos que remetem ao órgão público. Considerando desde os traços e
influências de Edgar Roquette-Pinto (1884-1954) e Afonso d'Escragnolle Taunay (1876-1956),
orientadores e consultores do filme. Além do que, o filme integra e faz jus ao momento idealizador
do que viria ser a base do Estado Novo, ao conceber uma obra que induz a um ato heroico forjado
e distanciado das noções históricas dos fatos.
As outras produções que constituem o acervo do MIS – BH, são os curtas A Velha a Fiar e Belo
Horizonte, sendo este último uma atribuição a Humberto Mauro, mostrando a cidade de Belo
Horizonte na década de 1950. As quatro obras de Humberto Mauro que constituem o acervo do
MIS - BH, com toda ressalva, são copias autorizadas em rolos e formatos VHS, os originais
encontram-se preservados em outros centros de memória, Cinemateca Brasileira e MAM Rio.
O Centro de Referência Audiovisual (CRAV) foi criado com a intenção de logo vim a se
tornar Museu da Imagem e do Som, em detrimento de problemas burocráticos para conseguir
aprovação de lei, o órgão só se tornaria museu mais de vinte anos depois da sua idealização em
1989 por Berenice Menegalea então Secretária Municipal de Cultura de Belo Horizonte. A criação
do CRAV tem seu marco concreto em 1992 a partir do desenvolvimento do ‘’Projeto de
Implantação do Centro de Referências Audiovisuais da Região Metropolitana de Belo Horizonte’’,
inicialmente provisório, sendo a base para concretizar o desenvolvimento mais robusto, ou seja, a
transição de Centro de Referência para instituição museológica, no caso a implantação de um
Museu da Imagem e do Som. Como estrutura transitória para uma futura criação de um museu na
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cidade de Belo Horizonte, o CRAV objetivava “constituir e difundir um acervo significativo sobre
a memória da diversidade cultural do município, em suportes tecnológicos audiovisuais.846’’
Durante anos o Centro de Referência manteve suas atividades de preservação e difusão do
acervo audiovisual da Região Metropolitana, mas sem perder o desejo e o sonho que desde a
idealização do projeto na transição dos anos 1980/1990 permeiam as várias gestões desde então.
No ano de 2014, devido uma grande demanda por parte da comunidade de Santa Tereza, “trouxe
à tona outras prioridades, que proporcionaram efetivar, estrategicamente, a transição do CRAV
para o Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte, conforme previsto na lei nº 5.553 de 1989,
hoje já regulamentado pelo decreto nº 15.775, de 18 de novembro de 2014, ao incorporar à sua
estrutura a edificação do Cine Santa Tereza, um antigo cinema de rua localizado na Praça Duque
de Caxias, patrimônio histórico tombado da cidade.”847
No clássico texto A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica848 o filósofo e ensaísta
alemão Walter Benjamin destaca a revolução provocada pela fotografia e, posteriormente pelo
cinema no campo das artes, devido ao fato de serem estas terem seu estatuto de existência à noção
e possibilidade de reprodução técnica em larga escala. Para o caso específico do cinema tal
característica é potencializada pelo fato de que, enquanto inovação técnica, a chamada “sétima arte”
surge como produto de um contexto capitalista marcado pela complexificação das forças
(re)produtivas das mercadorias e pelo surgimento do que posteriormente Theodor Adorno e Max
Horkheimer denominariam como cultura de massas ou indústria cultural849.
Os artefatos produzidos no contexto da cultura de massas, como o próprio nome os sugere,
são replicados numa escala numérica que permita à indústria atender ao maior número de pessoas
possível, por esta razão, o cinema – entenda-se a produção cinematográfica – só tem possibilidade
de funcionar dentro do registro da cultura de massas e da distribuição em larga escala de seu
produto final, isto é, os filmes.
846 FREITAS, Marcelo Braga de. O passado tinha um futuro: a trajetória do Centro de Referência Audiovisual de Belo Horizonte,
1992-2014/Marcelo Braga de Freitas. Belo Horizonte, 2015. 130f.:il. (Dissertação Mestrado) – Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. 2015. p.31.
847 ______________________, O passado tinha um futuro: a trajetória do Centro de Referência Audiovisual de Belo Horizonte.
p.76
848 BENJAMIN, Walter.
849 ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialektik der Aufklärung und neue Mythen. (Trad. Guido Antônio de
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852 SOUZA, Carlos Roberto de. A Cinemateca Brasileira e a preservação de filmes no Brasil. São Paulo: 2009 (Tese de
doutorado). – Departamento de Cinema, Televisão e Rádio/Escola de Comunicações e Artes/USP.310fl. p. 296.
853 Incêndio atinge Cinemateca Brasileira e destrói 1.000 rolos de filmes antigos Matéria do Jornal A Folha de São Paulo
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/02/1736525-incendio-atinge-camara-que-guarda-rolos-de-filmes-
antigos-da-cinemateca.shtml
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854 PBH/Diretoria de Políticas Museológicas. Plano Museológico do Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte (MIS-BH).
p.12.
855 _________________________________. Plano Museológico do Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte (MIS BH).
p.12.
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Desejamos expor que as temáticas abordadas neste artigo, resultam de uma pesquisa ainda
incipiente que visa coletar dados para o desenvolvimento posterior de uma monografia no campo
da museologia que terá por objetivo relacionar o cinema de Humberto Mauro e a importância do
cineasta mineiro e de sua produção. Neste sentido, a escolha do MIS como foco inicial da pesquisa
se deu a partir do desejo de compreender a instituição que fortuitamente guarda algumas cópias de
filmes do cineasta mineiro em sua coleção.
Ao longo deste texto buscamos evidenciar, ainda que sucintamente, alguns aspectos da vida
e da obra cinematográfica de Humberto Mauro, a importância de sua produção para o cinema
nacional e apresentamos o dado acerca da presença de cópias preservadas de alguns de seus curtas
e longas-metragem preservados no acervo do Museu Brasileiro da Imagem e do Som de Belo
Horizonte. Além disso, abordamos o processo de transição do antigo Centro de Referência
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Audiovisual de Minas Gerais – CRAV-MG para o atual Museu da Imagem e do Som de Belo
Horizonte – MIS-BH. A inciativa, na avaliação dos autores, marca uma preocupação inicial por
parte do poder público em preservar parte do acervo audiovisual do estado e o reconhecimento de
seu valor enquanto patrimônio cultural de Minas Gerais, o que em si configura-se com um sinal
positivo. Todavia, alguns processos ainda atravancam algumas atividades da instituição, o que
dificulta sobranceira a realização do trabalho.
Adentrar a reserva técnica da instituição e tomar contato com seus processos de
gerenciamento, guarda, preservação e conservação do maior patrimônio audiovisual de Minas
Gerais foi de extrema relevância para a compreensão de aspectos importantes sobre a questão da
preservação de acervos audiovisuais. Enquanto fenômeno relativamente recente, a mudança de
perspectiva em relação à importância da preservação de acervos audiovisuais tanto para a promoção
da cultura quanto para o desenvolvimento pesquisas acadêmico-científicas, torna ainda mais
urgente o debate sobre a questão e o fortalecimento e apoio às instituições e profissionais
responsáveis por este trabalho.
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Resumo: A pesquisa corresponde ao estudo iconológico das pinturas de forro da Capela de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos localizada na Vila de São José del-Rei, Comarca do Rio das Mortes.
O período de investigação corresponde aos anos de 1750 a 1828 e tem como objetivo a
compreensão da obra e sua relação com a experiência religiosa existente no interior da confraria.
Apresentação
A presente comunicação tem como objetivo apresentar a pesquisa em andamento no curso
de pós-graduação em História, área de História da Arte, intitulada Os Mistérios do Rosário: Visão,
Contemplação e Invocação. O artigo pretende relatar as primeiras impressões extraídas de uma
investigação que ainda se encontra em curso com o intuito de identificar, localizar e estabelecer
uma relação entre as pinturas estudadas.
A pintura do forro da capela-mor é uma representação de Nossa Senhora com o menino
Jesus e os santos Domingos de Gusmão e Francisco de Assis, de autoria desconhecida. Constitui,
junto com a pintura do forro da nave, o programa iconográfico da Capela de Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos. A pintura da Nave corresponde aos 15 Mistérios do Rosário e três invocações
a Nossa Senhora e é atribuída a Manoel Victor de Jesus. Com o propósito de colaborar para a
definição do perfil estilístico e o corpus de imagens de um pintor ainda praticamente desconhecido,
estamos produzindo um arquivo de imagens da obra de Manoel Victor. O catálogo constitui o
primeiro passo para uma investigação posterior e pretende colher as primeiras informações sobre
a produção do artista na antiga Vila de São José e região.
Para a realização da pesquisa, utilizamos a abordagem metodológica da iconologia
conforme a elaboração de Rafael García Mahíques856. O historiador apresenta uma proposta que
se baseia na aproximação da História da Arte com a História Cultural, contudo o processo de
análise e interpretação do significado deve sempre partir da obra e não do meio social. Desta
forma, o principal objetivo da investigação consiste em promover o estudo da obra de arte e,
MAHÍQUES, Rafael García. Iconografía e Iconología: Cuestiones de Método. Volumen 2. Madrid: Ediciones
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857 FILHO, Olinto Rodrigues dos Santos. Tiradentes, Monumentos Preservados: Memórias das Restaurações dos
Monumentos Históricos e Artísticos da Cidade. Tiradentes: Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes – IHGT,
2015.
858 Informações colhidas nos arquivos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, Belo Horizonte:
Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Tiradentes, MG –
Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, IBPC.
859 OLIVEIRA, Myrian Andrade Ribeiro de. A pintura de perspectiva em Minas Colonial – ciclo rococó. In: Barroco, v. 12,
p.171-180, 1982/83.
860 OLIVEIRA. Myrian Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac &
Naify, 2003.
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é o primeiro quartel do séc. XIX (c.1820)861, conclusão baseada a partir das informações do relatório
de restauração dos bens artísticos aplicados da Igreja: os exames do Laboratório do IEPHA,
realizados em 1981, constatam a presença de pigmentos utilizados a partir de 1814.
A ausência de documentação não impede o estudo e análise da obra; consideramos que a
imagem fala por si mesma, possui autonomia e nos revela uma mensagem. Mais do que revelar um
conteúdo, ela representa um documento útil para os estudos de diversos historiadores. Peter
Burke862, em seu livro Testemunha Ocular, afirma que a imagem constitui evidência histórica e é
testemunho de formas de religião, de costumes e conhecimento relativos a uma determinada época.
A Igreja foi tombada em 1949 pelo SPHAN/DPHAN e, em 1950, foi submetida a uma
primeira restauração. Em 1962 e 1963, as pinturas de teto – capela-mor e nave – foram restauradas;
e, em 1981 e 1982, a Igreja passou por uma reforma geral executada pelo Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA). Os relatórios informam que os critérios adotados foram de
conservação; ou seja, limpeza, imunização, calafetação e reintegração cromática. Portanto, a obra,
que visualizamos hoje na Igreja e que estamos pesquisando, não foi submetida à repintura e está
bem próxima da sua concepção original, apesar da deterioração evidente da nave.
Capela-mor – Visão
A pintura da capela-mor foi executada em uma abóbada de berço forrada com tábuas
corridas e a técnica empregada foi têmpera sobre madeira. A medida aproximada do forro é
irregular e apresenta um formato retangular (5,49 X 6,19 m).
A obra é um exemplar da pintura de perspectiva ilusionista que simula um espaço
arquitetônico com abertura para o céu – a construção de uma cúpula fictícia – de estilo barroco
com decoração rococó.
861 Informações colhidas nos arquivos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, Belo Horizonte:
Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Tiradentes, MG –
Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, IBPC.
862 BURKE, Peter. Testemunha Ocular: História e Imagem. Bauru, SP, EDUSC, 2004.
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863POZZO, Andrea. Perspective in architecture and painting. Nova Iorque: Dover Publicatons Inc., 1989 [versão integral
da edição de Londres, 1707].
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pintura de quadro recolocado durante todo o período do séc. XVIII e, consequentemente, esse
estilo de composição vai ser levado para o Brasil864.
O quadro recolocado, quadro riportato865, corresponde a um modelo de decoração de tetos
que se baseia na pintura de uma imagem – um quadro de parede ou de altar – que é recolocada no
teto. Esta forma de decorar tetos foi amplamente empregada pelos pintores italianos do séc. XVI
ao séc. XVIII com destaque para a obra de Rafael e seus discípulos na Loggia da Psichê em Roma
(1518). Annibale Carracci pintou, no teto da Galeria Farnese (1600), um conjunto de quadros
recolocados, autônomos e independentes, de perspectiva frontal e conjugado com a quadratura. A
obra de Carracci tornou-se referência para as decorações de tetos italianas posteriores, entretanto
o seu padrão não será predominante nas pinturas de teto do séc. XVII e XVIII na Itália, na medida
em que os pintores vão criar a ilusão de céu aberto a partir da aplicação das técnicas da perspectiva
atmosférica e do escorço associadas à quadratura. Cerca de 1600, os irmãos Alberti, Giovanni e
Cherubino, inauguram um exemplar onde a quadratura é empregada como um elemento de
transição entre os espaços terreno e celestial866. As pesquisas constatam a existência de uma enorme
diversidade na produção de pinturas de teto entre os séc. XVII e XIX na Itália e em toda a Europa,
que revelam uma variedade de soluções provenientes de inúmeros fatores, principalmente, aqueles
relativos ao tema e ao suporte.
A pintura da capela-mor do Rosário de Tiradentes é uma pintura de perspectiva ilusionista
com abertura para o céu que concilia quadratura e quadro recolocado, ilusão e legibilidade, sedução
e informação. A perspectiva frontal do quadro recolocado estabelece um contato direto entre o fiel
e o santo de devoção possibilitando uma percepção clara, objetiva e verossímil da narrativa.
Estratégia de representação que tem como proposta a catequese e a representação hagiográfica dos
santos de devoção, onde a imagem é portadora de um discurso que deve ser concebido pelo fiel.
A quadratura cria a abertura celestial, proporciona a transição entre o espaço real e o espaço
imaginário e delimita os espaços terreno e celestial. A obra apresenta peculiaridades que devem ser
analisadas com atenção e que serão examinadas a partir de um estudo comparativo com outras três
pinturas de falsas cúpulas e aberturas celestiais encontradas em Minas Gerais – as capelas-mores
864 MELLO, Magno Moraes. A Pintura de Tectos em Perspectiva no Portugal de D. João V. Editorial Estampa, Lisboa 1998.
865 O quadro recolocado é à representação ilusionista de quadros emoldurados nos tetos dos edifícios, as molduras
podem ser fingidas ou realistas como aquelas produzidas em estuque. O quadro recolocado é uma pintura
emoldurada e recolocada no teto, como uma imagem que pode ser deslocada. A sua concepção parte de um ponto
de vista frontal em relação ao observador e tem como eixo a linha do horizonte. A ilusão consiste na produção de
um quadro fingido, isto é, ao olharmos para o teto acreditamos que estamos diante de um quadro de parede ou de
altar.
866 REIS, Vítor Manuel Guerra dos. O Rapto do Observador: Invenção, Representação e Percepção do Espaço Celestial na Pintura
de Tectos em Portugal no séc. XVIII. 737f. Tese (Doutoramento em Belas Artes). Universidade de Lisboa, Faculdade de
Belas Artes, Lisboa, 2006. 737 p.
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comprometeu a visão que temos hoje da perspectiva e, consequentemente, dos efeitos ilusionistas da pintura.
870 MELLO. A Pintura de Tectos em Perspectiva no Portugal de D. João V.
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De acordo com Giulio Carlo Argan871, a arte da persuasão tem como fundamento a
verossimilhança, conceito que se associa com o projeto religioso da Igreja Católica de persuadir,
convencer, instigar e convidar o fiel a se integrar ao espaço sagrado.
A arte não é mais do que uma técnica, um método, um tipo de comunicação ou de relação; mais
especificamente, é uma técnica da persuasão que deve levar em conta não só as próprias
possibilidades e os próprios meios, mas também as disposições do público a que se dirige. 872
871 ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão: Ensaios sobre o barroco. São Paulo, SP, Companhia das Letras, 2004.
872 ________. Imagem e Persuasão, p. 35.
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A visão geral da obra nos permite observar uma representação do espaço claramente
dividida em dois planos, o plano interno da cúpula e o plano externo do céu; um plano terreno e
outro celestial. A luz empregada na pintura da capela-mor é uma luz intensa de fortes contrastes
que divide e destaca os espaços, a cúpula escura e o céu iluminado. As cores sóbrias do espaço
terreno são compensadas pelas cores claras do espaço celestial, delimitando os dois ambientes que,
juntos, formam um todo único. O colorido sóbrio da cúpula indica uma devoção austera típica do
barroco, ao mesmo tempo em que a suavidade do céu sugere proteção, esperança, e serenidade.
Apesar dos fortes contrastes, observamos também uma luz celestial difusa que extrapola o centro
da composição e se propaga por todo o espaço atrás da cúpula, uma luz que cria uma atmosfera de
completa abertura para o céu.
A pintura ilusionista barroca se caracteriza pela arte do contraponto visual, a capacidade de
confrontar e integrar elementos diferentes em um todo único e harmônico. A aparente dissonância
entre quadratura e quadro recolocado, ilusão e nitidez, espaço celestial e espaço terreno, claro e
escuro, corresponde a elementos que se contradizem, mas se entrelaçam e se complementam em
uma unidade. A harmonia é conquistada a partir do contraste – a arte barroca do contraponto873.
Em uma pintura de falsa arquitetura, a representação dos elementos estruturais da
arquitetura real é fundamental: as mísulas, os pedestais, as pilastras, as colunas, os fustes, os capitéis,
o entablamento, os arcos e as janelas. Esta representação de formas concretas concede à pintura
maior eficácia quanto à ilusão da realidade, tornando o espaço verossímil. Múltiplos artifícios foram
aplicados pelo artista com o objetivo de criar a ilusão da terceira dimensão como a luz, as gradações
de cor, o movimento, o volume, etc.
A visão central se encontra delimitada por uma forma octogonal circular polilobulada, uma
sucessão de segmentos côncavos. O lóbulo é parte do círculo empregado como ornamento no
desenho das rosáceas, figura simétrica que faz analogia a uma rosa desabrochada. A rosa é símbolo
da Virgem Maria. Na arquitetura gótica, as rosáceas são empregadas como elementos ornamentais
nas catedrais, por meio das quais a luz ilumina o templo simbolizando a conexão com o sagrado e
a revelação divina874. A partir dessa reflexão, surge a primeira questão em relação à iconografia: será
que o artista utilizou de uma forma simétrica empregada nas arquiteturas com o intuito de fazer
uma analogia à Virgem Maria? Se sim, pensamos que a Virgem foi representada como uma rosa
que se abre e revela o Mistério. No decorrer da pesquisa pretendemos desvendar esse Mistério que
está relacionado com a mensagem que o comitente, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário,
quis comunicar aos irmãos do rosário.
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875 RÉAU, Louis. Iconographie de L’Art Chrétien. Tome III, 1.Millwood, N.Y: Kraus Reprint, 1983, p. 391-398
876 CHEVALIER/ CHEERBRANT. Dicionário de Símbolos, p. 554.
877 RÉAU. Iconographie de L’Art Chrétien, p. 391-398.
878 _______________. Dicionário de Símbolos, p. 887.
879 WEISBACH, Werner. El Barroco: Arte de la Contrarreforma. Madrid: Espasa-Calpe, S.A., 1948.
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O grupo que compõe a Visão Celestial foi elaborado a partir da interpretação das fontes
gráficas presentes nos impressos europeus que circulavam em Minas Gerais no período colonial.
O grupo formado pela Virgem e o menino teve como referência um Registro de Santo intitulado
Sancta Maria Mater Dei, localizado nos arquivos da Biblioteca Nacional de Portugal.882 A autoria é
de Martin Engelbrecht, um gravador alemão do período barroco. A representação dos santos
Domingos e Francisco, provavelmente, foi inspirada nas ilustrações do livro de Cesare Ripa883.
Nave – Contemplação
A pintura da nave foi executada em um forro de abóbada de berço com 18 caixotões que
cobre uma área aproximada de 7 x 14 m. A técnica utilizada pelo pintor foi têmpera sobre
880 PUTEI, Andreae. Perspectiva Pictorum et Architectorum. Pars Prima. ROMAE M.DC.XCIII (1693). Apud Joannen
Generosum Salomoni. Typographun, et Bibliopolan. Praesidum Facultate.
881 PUTEI, Andreae. Perspectiva Pictorum et Architectorum. Pars Secunda. ROMAE MDCCLVIII (1758). Apud Joannen
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madeira884. O enquadramento externo é branco, decorado com rocalhas azuis e contornado por
um friso dourado. O encontro dos caixotões é arrematado por um florão e pinha dourada. Cada
quadro possui uma moldura em marmorizado azul, paspatur branco decorado com rocalhas
vermelhas e arrematado por friso dourado. Os quadros são pintados e representam cenas referentes
aos 15 mistérios do rosário e três trechos da ladainha de Nossa Senhora.
À esquerda de quem entra na igreja, estão representados cinco quadros referentes aos
mistérios gozosos: Anunciação, Natividade, Visitação, Circuncisão e Jesus entre os doutores. À
direita, cinco passagens referentes aos mistérios dolorosos: Jesus no Horto das Oliveiras,
Flagelação, Coroação de Espinhos, Senhor dos Passos e Crucificação. Ao centro, os mistérios
gloriosos: Ressurreição, Ascenção do Senhor, Pentecostes, Assunção de Maria e Coroação de
Maria.
O programa iconográfico foi elaborado a partir de um desenho em espiral, uma pintura
narrativa que relata, em quadros, determinadas passagens da vida de Cristo e Maria: Vida, Paixão e
Glória. A contemplação e meditação dos mistérios permite ao fiel rememorar as passagens bíblicas
através das imagens, uma forma de reviver e conservar na mente e no espírito os ensinamentos da
vida de Cristo e Maria, sua mãe. O Santo Rosário é uma prática popular de devoção mariana
aplicada como instrumento de evangelização pela igreja católica. Os irmãos do rosário – os
receptores da obra de arte – são, em sua maioria, negros, africanos e descendentes; escravos,
884Informações colhidas nos arquivos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, Belo Horizonte:
Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Tiradentes, MG –
Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, IBPC.
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libertos, forros e livres. Esses homens e mulheres, provavelmente, estavam sendo evangelizados
através da oração, meditação e devoção ao santo rosário; instruídos e auxiliados por meio da
observação e contemplação das pinturas.
As pinturas da nave também foram elaboradas a partir da interpretação das fontes presentes
nos impressos europeus que circulavam em Minas Gerais no período colonial, especialmente os
Missais e as gravuras avulsas. Manoel Victor de Jesus desenvolveu o seu esquema compositivo
apoiado na iconografia sugerida pela irmandade, imprimiu cor às gravuras impressas em preto e
branco, reorganizou e suprimiu elementos para melhor compor a cena demonstrando uma
habilidade compositiva em relação aos limites impostos pelo suporte. Acredito que tenha associado
às fontes gráficas, fontes literárias, especificamente as passagens bíblicas que se referem
diretamente aos mistérios do rosário.
Coro – Invocação
As pinturas da nave, localizadas acima do coro, representam as três ladainhas de Nossa
Senhora: Domus Aurea (Casa Dourada), Arca Foederis (Arca da Aliança) e Janua Coeli (Porta do Céu)
e é atribuída a Manoel Victor de Jesus. Após a oração do rosário é costume rezar a ladainha, elas
podem ser de súplica ou laudatória. As ladainhas representadas na Igreja do Rosário são de louvor
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e devoção à Virgem Maria. Simbolizam Maria como o caminho para a Misericórdia e a Salvação. A
Virgem é a casa de ouro que acolheu Jesus, o Salvador; a aliança entre Deus e os homens, que
protege os seus filhos e guarda a promessa da salvação; a porta de entrada para o céu e o caminho
para a vida eterna.
A Virgem Maria tem o papel de interceder pelo devoto. As imagens sugerem a anamnesis e
a epiclesis – memória e invocação885. Significa trazer algo do passado para o presente. A
contemplação e a invocação são fundamentais no processo da Salvação, pois, ao invocar a presença
do santo de devoção, o fiel louva, glorifica e suplica por proteção e perdão.
Conclusão:
Acredito que o conjunto da obra pintada no forro da Capela do Rosário foi elaborado com
o propósito de persuadir os fiéis, evangelizar, promover o culto mariano e recomendar uma
conduta de vida através da visão, contemplação e invocação dos mistérios da vida de Cristo e sua
mãe – o caminho para a Redenção.
A imagem sagrada é a representação de uma ideia, de um modo de pensar, de uma
concepção religiosa, de uma crença. Geertz886 afirma que a essência da ação religiosa consiste em
embeber um complexo específico de símbolos – os seus princípios e o estilo de vida que
recomendam – de uma autoridade persuasiva. A imagem tem a função de seduzir e de convencer,
característica de representação que tem como objetivo instigar os fiéis.
O projeto iconográfico da Igreja do Rosário tem como finalidade impor a doutrina cristã
aos membros da irmandade constituída, essencialmente, por pessoas de concepções culturais e
religiosas distintas. Nesse processo de evangelização e encontro entre culturas, acredito que a arte
constitui um instrumento de integração entre a Igreja e os irmãos do rosário, um projeto que
pretende incorporar os negros ao culto católico.
A arte desenvolvida no período colonial mineiro segue as determinações do Concílio de
Trento que fixou a iconografia religiosa do Barroco. Os temas representados pela arte figurativa
do séc. XVIII é um prolongamento do séc. XVII e poucas mudanças foram apresentadas pelo
rococó que deu continuidade aos temas representados pela arte da contrarreforma887.
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Resumen
888Esta comunicación es resultado de un ejercicio académico en el marco de la Maestría sobre la Recuperación del
Centro Antiguo de San Salvador – El Salvador, abordando la preservación del paisaje urbano en conjunto con las
múltiplas dimensiones a él relacionadas. Pesquisa desarrollada con apoyo de la Fundação Amparo à Pesquisa do Estado da
Bahia (FAPESB), T.O. BOL 2324/2014.
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889 TORRES, Alfredo, J.; MOLTENI, Jorge, R.; PEREYRA, Elivira N. Patrimonio cultural inmaterial:
conceptualización, estudio de casos, legislación y virtualidad. 1ª ed. –La Plata: Dirección Provincial de Patrimonio
Cultural CePEI, 2009, 164 p, p.16. Recuperado de: <https://pt.scribd.com/doc/21131700/Patrimonio-Cultural-
Inmaterial>. Acceso: 04 jun 2015.
890 SANT’ANNA, Márcia, G. Patrimônio material e imaterial: dimensões de uma mesma ideia. En: GOMES, Marco
Aurélio Filgueiras e CORREIA, Eliane Lins. Reconceituações Contemporâneas do Patrimônio. Salvador: EDUFBA:IAB,
2011, p.193-198.
891 Según datos de la UNESCO, El Salvador ratificó la convención el 13 de septiembre de 2012. Disponible en:
<http://www.unesco.org/eri/la/convention.asp?KO=17116&language=S>.
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convención había sido objeto de esfuerzos aislados, como breves ediciones etnográficas para citar
un ejemplo.
Diferentemente de Brasil que ha sido el país, en América Latina, pionero en la salvaguarda
del patrimonio cultural, y que para la fecha de la convención ya contaba con la metodología del
Inventario Nacional de Referencias Culturales (INRC)892 y que incluso tiene una trayectoria
definida en ese sentido, pues cuenta desde 1946 con comisiones y/o instituciones dedicadas al
estudio del Folclore, que era lo recomendado por la UNESCO en aquella época.
Lo que respecta al ámbito salvadoreño, se sabe que el Concejo Nacional para la Cultura y
el Arte893 adoptó las definiciones establecidas por la convención para patrimonio Inmaterial,
entendiendo este por:
892 Conforme documentos oficiales del Instituto de Patrimonio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) esta
metodología fue puesta a prueba en el año 2000 en el Museo Abierto del Descubrimiento (MADE) en la Ciudad de
Porto Seguro-Bahía, Brasil.
893 Convertida en Secretaría de Cultura de la Presidencia, a través de la Dirección Nacional de Patrimonio Cultural
0004.
896 R.I. 008/2009 de fecha 19|05|09 publicado en el Diario Oficial 96 Tomo 383 de fecha 27|05|09 de Registro IBCI
0006.
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celebración al patrono del país. Existen otras manifestaciones, modos, oficios y tradición oral
en este espacio, que aún no fueron reconocidos por los órganos oficiales de cultura, pero que
se identifican como significativos en el imaginario colectivo del Centro Antiguo y que en
algunos casos ya se encuentran registrados por diferentes estudios, entre ellos, él efectuado
por el Vice-Ministerio de Vivienda y Desarrollo Urbano (VMVDU), vale destacar, que dichos
estudios no son objeto de esta comunicación.
Para el historiador de las religiones, Eliade897 (2001, p.25) el origen de muchas celebraciones
remonta a la experiencia del espacio sagrado en contraposición de la “homogeneidad espacial”,
en otras palabras, el autor enfatiza, por ejemplo, que la experiencia religiosa de la “no
homogeneidad espacial” corresponde a la “fundación del mundo” y constituiría una experiencia
primordial. Desde el punto de vista ontológico es la manifestación de lo sagrado que permite fundar
el mundo. El espacio sagrado tiene un innegable valor existencial para el hombre religioso.
[…] Es por esa razón que el hombre religioso siempre se esforzó por establecer
se en ‘el centro el mundo’. Para vivir en el mundo es necesario fundarlo – y ningún
mundo puede nacer en el ‘caos’ de homogeneidad y de la relatividad del espacio
profano. El descubrimiento o la proyectación de un punto fijo – el ‘Centro’
equivaldría a la creación del mundo.898
Santana899 destaca que las fiestas populares más expresivas en el Brasil actual tuvieron origen
en las fiestas religiosas portuguesas, análogamente, el mundo hispano heredó de España sus
principales manifestaciones, su génesis se relaciona a la unión entre el Estado y la Iglesia, que
formaba un sistema único de poder y legitimación, donde la fe católica era la religión oficial.900
Lo antepuesto no excluye otras manifestaciones del universo indígena, pero en este texto
nos detendremos apenas a estudiar la manifestación fruto de la relación entre estado e iglesia. Esta
herencia puede ser ilustrada por las ideas de Eliade901 para este autor, la validación de pose de un
territorio en la conquista y ocupación pasaba por la tomada de pose ritual, es decir, la
transformación del “caos en cosmos”, por el acto divino de creación. Así, en el occidente,
portugueses y españoles tomaban pose de nuevos territorios, alzando la cruz en nombre de
897 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.25.
898 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano, p.26. Todas las traducciones del portugués fueron realizadas por la autora
del texto.
899 SANTANA, Mariely C. Alma e festa de uma cidade: devoção e construção na Colina do Bonfim. Salvador: EDUFBA,
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Bajo este aspecto la cuadricula hispana se traduce como la forma perfecta “tan perfecta
como la imagen escatológica de San Juan al referirse a la Jerusalén celestial: ‘La planta de la ciudad
es cuadrada...’”904. Siguiendo el hilo del autor la implantación del modelo alrededor de 1530 en la
América española, revelaría el pensamiento utópico del viejo mundo en aquel período, manifestado
por medio del proyecto de la creación de la Nueva Cristiandad en el Nuevo Mundo. Así, lo
asevera la siguiente citación:
Repenser les limites: l’architecture à travers l’espace, le temps et les disciplines. Paris: l‟Institut national d‟histoire de l‟art (Paris)
et la Society of Architectural Historians (Chicago), 2005.
905 SALCEDO, 2000, p.1992 apud NICOLINI, Alberto. El tipo urbano cuadricular en el espacio y en el tiempo de
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altares procesionales, de tarimas y carrozas alegóricas, de arcos decorados con flores y ramas,
cruces, palios, tribunas, estandartes y pendones.
Conforme Sant’Anna907 la fiesta marca una ruptura en el curso ordinario del tiempo, y abre
un lapso especial, denominado tiempo ‘festivo’. Parafraseando Eliade908 el tiempo ‘festivo’ es el
‘tiempo de origen’ algo como el retorno al pasado, festejar sería vivificar ese tiempo, celebrar,
conmemorar. “La repetición ritual del acto creador de los dioses implica en reencontrar el ‘tiempo
de origen’ […] por esta razón el hombre se esfuerza para re-actualizarla periódicamente, con rituales
propios”. (Énfasis nuestro).
Ese tiempo de fiesta tiene la capacidad de “sacralizar”, destacar, distinguir, marcar el espacio donde
acontece, vinculando memorias y sentimientos de arraigo e identidad para una comunidad, por ese motivo
las “celebraciones colectivas” son de un potencial simbólico inconmensurable. En ese sentido “las fiestas
no son eventos sueltos en tiempo y en el espacio: al contrario, sus vínculos espaciales y temporales son
profundos”.909
Aún con la autora la fiesta debe ser entendida como “un fenómeno sociocultural”
inseparable de las relaciones económicas, históricas, políticas, ideológicas y de organización de las
sociedades involucradas en la celebración. Bajo esos aspectos amplios y muchas veces
contradictorios, ciertamente gran parte de las celebraciones en el mundo contemporáneo coexisten
con los fenómenos de la globalización, con los intereses mercantiles, de mediatización y
espectacularización, pero como ella afirma todo eso hace parte de la fiesta.910
En esa misma dirección Cavalcanti911 advierte que el contexto de la economía capitalista de
hoy en día actúa articulando y distanciando las dimensiones de la sociedad en fiesta, mezclado
símbolos, mercaderías, y que antes de negar las transformaciones, es necesario entender y reconocer
“las (nuevas) dinámicas de la lógica simbólica”. La fiesta que a continuación se describirá tiene
esa caracterización, se de un lado, se trata de una celebración secular, del otro, es un mega evento
de la sociedad de masa salvadoreña. (Énfasis nuestro).
907SANT’ANNA, Márcia, G. Patrimônio material e imaterial: dimensões de uma mesma ideia. En: GOMES, Marco
Aurélio Filgueiras e CORREIA, Eliane Lins. Reconceituações Contemporâneas do Patrimônio. Salvador: EDUFBA:IAB, 2011,
p. 193-198, p.21.
OIC. São Paulo: Itaú Cultural, In: Revista Observatório Itaú cultural: OIC. São Paulo: Itaú Cultural, №14, mai.2013. p. 10-
20, p.14-15. Recuperado de: <http://issuu.com/itaucultural/docs/revista_observatorio_14>. Acceso en: 14 abr 2015.
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Las fiestas son dedicadas al divino Salvador del Mundo, patrono y benefactor de la
población. Inicialmente, era una conmemoración del triunfo del conquistador Pedro de Alvarado
y el sometimiento de la población nativa de esta región al régimen colonial español, puede
observarse en este hecho el mito fundador, enseñado por Elaide.
Se conoce que aún en los primeros años de la colonia la fiesta mudó su carácter,
probablemente como estrategia de cohesión y unión social por parte de la iglesia, esta tenía un
profundo sentido religioso con el propósito inducir a la población que participaba en los
tradicionales actos del paseo del ‘pedón real’ en la Plaza de Armas.912
De acorde con la resolución de reconocimiento y declaración de la fiesta como bien cultural
inmaterial, descrita en el Diario Oficial (2007, p.203) la fiesta tiene sus orígenes en la proclama
evangélica: “Cristo, Nuestro Señor, manifestó su gloria a unos testigos predilectos, y les dio a
conocer su cuerpo, en todo semejante al nuestro, el resplandor de Su Divinidad”, de esa manera,
el texto anterior tendría fortalecido los apóstoles “a sobrellevar el escándalo de la cruz y alentaran
la esperanza de la Iglesia.”.
Desde esta mirada, las fiestas patronales al Divino Salvador del mundo constituyen, rituales
fundacionales, de legitimación sacrificio y renovación. El ritual genera una imagen articuladora de
la sociedad, con su historia remota y sus orígenes, estableciendo la continuidad, cumpliendo de esta
manera una función de conexión del pasado con el presente –in illo tempore913
“Las fiestas no son eventos sueltos en tiempo y en el espacio: al contrario, sus vínculos
espaciales y temporales son profundos”914. Lo anterior relaciona la fiesta al tiempo y al espacio y,
transforma este último en un lugar. Así, para el caso de la fiesta del Salvador del mundo, esta ocurre
en el Centro Histórico de San Salvador, y sus momentos más significativos en el conjunto
monumental alrededor de la Catedral Metropolitana y Plaza Barrios. (FIGURA 01).
Vale destacar que las fiestas en el Centro Histórico, son reclamadas, asumidas, vividas y
protagonizadas por sectores populares, no sólo afincados en esta porción de la ciudad, sino, en
diferentes puntos del gran San Salvador y del país. La amplía convocatoria de las fiestas, trae
consigo la posibilidad de una confluencia de diversas concepciones ideológicas y políticas, frente
912 ESCALANTE apud HERRERA, A. R. El Centro Histórico de San Salvador: cultura e identidades. San Salvador:
FUNDASAL, 2009, p.72.
913 “Comienzo del mundo”, cuya finalidad es comenzar otra vez la existencia, simbólicamente, nacer nuevamente.
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a ese orden ‘establecido’; como frente a la diversidad de símbolos cristianos que en ellas se
despliegan. Como Herrera915 informa el ritual en si, en tanto espacio de experiencia individual y
colectiva, se vuelve un fértil campo de reproducción y afloramiento de ideas de toda orden, de cara
a su “cotidianeidad, supervivencia, compromiso social”.
FIGURA 01 – En destaque la trama fundacional, donde aún hoy en día es palco de importantes fiestas en el
ámbito municipal y nacional.
(FUENTE: DISTINTAS LATITUDES, 2011)
La Fiesta del Divino Salvador del mundo ha tenido transformaciones a lo largo del tiempo
pasando en momentos por una fiesta de carácter comercial, otras civil- religioso hasta llegar a un
punto que mezcla todas ellas dentro del marco complejo de los procesos socioculturales y que la
colocan como producto de la globalización y mundialización de la cultura916.
Lardé Larín917 vincula su origen a la intención de construcción de la primera iglesia
parroquial en la villa de San Salvador, aún en su primer asentamiento, así lo describiría:
[…] Cuando por abril de 1545 la mencionada villa se mudó oficialmente al valle
de Zalcuatitán o de Las Hamacas y se reedificó a 8 kms al levante de su primitivo
asiento en el núcleo indiano de Cuzcatlán, es decir, cuando se trasladó al sitio en
donde hoy está, las autoridades municipales de la colonia destinaron la manzana
situada al rumbo Oriente de la plaza pública o plaza mayor (…) para construir en
ella la iglesia parroquial. […] Ahora bien, en 25 de abril de 1525, con motivo de
la fundación de la primitiva villa de San Salvador por el capitán Gonzalo e
Alvarado, presumiblemente a su iglesia parroquial se le dio la advocación del
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Santísimo Salvador del Mundo, aunque por los azares de la guerra el templo
católico correspondiente no fue construido jamás. Por segunda vez y en esta
ocasión de manera definitiva, la iglesia mayor de la trasladada villa se consagró al
Divino Salvador del Mundo, cuya solemnidad litúrgica instituida en 1457 por su
santidad el Papa Calixto III, en la constitución intitulada ‘Interdivinae despentations
arcana’ tiene efecto el 6 de agosto de cada año918.
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“un marco de referencia identitaria en la sociedad colonial de la provincia de San Salvador” y, que
conforme la autora todavía continúa alimentando el acervo cultural salvadoreño.
Como visto, en los primeros años de la colonia, la fiesta tendrá un enfoque religioso, pero
a partir del siglo XVIII, en el marco de las Reforma Borbónica, se establecieron en las provincias
centroamericanas las ‘ferias’, durante las fiestas patronales, destinadas a dinamizar el mercado
interno, pero sobre todo, el comercio del añil. San Salvador, como capital de provincia, era un lugar
estratégico, de manera que su feria se convirtió en un atractivo, no solo nacional, sino internacional.
Lo antepuesto se ecuacionó con a la vivencia religiosa.
La importancia en la vida económica que las fiestas llegaron a adquirir, fue de tal
envergadura, que en 1861, mientras, fungía como presidente el General Gerardo Barrios, se decretó
el traslado oficial de las Fiestas Agostinas al mes de diciembre, en virtud de que en dicho mes, las
condiciones climáticas eran más propicias para la actividad comercial. El siguiente pasaje confirma
lo expuesto:
[…] Por decreto del 25 de octubre, se dispuso transferir la fiesta del Divino
Salvador que siempre se ha celebrado el 6 de agosto, al 25 de diciembre, o sea
primer día de pascua de Navidad, comenzándose este mismo año, para que la
celebración tenga más aliciente y que los comerciantes concurran a esta capital
para que se verifique una feria en esa época. El gobierno ha hecho contratar una
compañía de acróbatas…2,000 pesos le cuestan al gobierno 4 funciones que
empezarán el 22, dos funciones tendrán lugar en plazas públicas sin gravamen y
las otras dos en presentaciones que se cobrarán. Invitan a los comerciantes de
estados vecinos y de los departamentos para disfrutar de las exhibiciones922.
Existen evidencias que las fiestas conservaron hasta principios del siglo XX su importancia
comercial, de manera que la Feria de San Salvador y sobre todo la venta de añil, atraía a
comerciantes de la región centroamericana y otros países del continente. En 1903, por ejemplo,
hubo una afluencia de 1,000 comerciantes hondureños aproximadamente, dispuestos a realizar sus
transacciones comerciales923.
Todavía Herrara señala que durante las fiestas se generaba una intensa participación entre
los citadinos. Cada barrio celebraba su día con un baile comunal, donde se invitaba a sus similares
radicados en otros barrios, también a los pueblos vecinos de San Salvador. Los barrios presentaban
una carroza en el desfile del 5 de agosto, donde la población manifestaba preocupaciones, valores
y expresiones estéticas del momento924.
922 LA GACETA, 21 de diciembre 1861 apud HERRERA, A. R. Centro Histórico de San Salvador: cultura e
identidades, p.74-75.
923 DIARIO DEL SALVADOR, 09 de agosto 1903 apud HERRERA, A. R. Centro Histórico de San Salvador:
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En ese mismo año hay relatos de que las actividades con carácter cívico, se realizaban en la
Avenida Independencia, una de las vías ampliadas y embellezadas del centro antiguo. Según
descripciones de la época había bailes de historiantes925, carreras de cintas, que consistía en colgar
unas cintas de colares o pañuelos en un cordel colocado a lo ancho de la calle, las cuales tenían que
ser arrancadas en un primer intento por un jinete; los participantes competían por llegar primero
con su propia prenda. También se encuentran descripciones de peleas de gallos y del tradicional
’palo encebado’. Los sectores populares se reunían en los bailes convocados por las capitanas de
cada barrio, la élite en formación se reunía en el Chalet Oriental, un café exclusivo, localizado en
la zona más elegante del ya mencionado Paseo Independencia. Posteriormente, los casinos y clubes
sociales les convocaban a una cena y baile de gala destinado a conmemorar al patrono de la
ciudad.926.
Toda la participación generada durante las fiestas, en el arco temporal del XIX y principios
del XX (FIGURAS 02, 03) han sido ampliamente documentada por medio de diversos estudios.
Estos indican que dicha celebración fomentaba la integración entre las clases sociales y barrios.
Aún la autora llama la atención que esta integración se da en el marco de los procesos de
construcción del proyecto de Estado y Nación, donde las fiestas, propiciaban la convivencia de
diferentes sectores residenciales en la ciudad, en sus organizaciones de barrio, sociales y gremiales,
creando puentes de unidad con las autoridades locales y del país y jugando un papel preponderante.
FIGURA 02 – Carro alegórico de FIGURA 03 –Carroza del Calvário (1935). Alude a uno de los barrios y al
aproximadamente fin del siglo involucramiento de estos en las celebraciones patronales.
XIX. En lo alto la imagen colonial (FUENTE: HERRERA, 2002)
del Divino Salvador del Mundo.
(FUENTE: HERRERA, 2002)
925 Teatro popular que alude a la conquista de los Cristianos sobre los fieles moros, en España. En la actualidad es
presentado durante las fiestas patronales en diversas poblaciones en el país. En todos los casos la representación es
asumida como expresión propia que narra su propia historia, esto fue constatado en Izalco y Panchimalco, dos
comunidades indígenas del occidente y centro del país.
926 HERRERA, A. R. Centro Histórico de San Salvador: cultura e identidades, p.76.
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Contrario a lo expuesto en el decorrer del siglo XX las fiestas se celebraran de una manera
segmentada. Por un lado, los sectores populares en las organizaciones de barrio; y por el otro, la
élite en los casinos y clubes sociales exclusivos. Esto como fruto de los procesos de abandono,
expansión de la trama urbana y tugurización experimentados en la ciudad de San Salvador. El
componente ritual de la Bajada y Transfiguración de El Salvador del Mundo, fue el único que
continuó desarrollándose en forma integradora, con participación de todas las clases sociales y aún
en la trama fundacional. Se destaca aquí que fue en los años 70 con las expansiones que se edifica
en la alameda Roosevelt en monumento a el Salvador del Mundo, este monumento es incorporado
en la actualidad en las fiestas, pues el circuito de los desfiles se extiende hacia esas otras
centralidades.
Lo que respecta a su caracterización morfológica en la actualidad la fiesta presenta un
modelo mixto, de mezcla la tipologia de desfile y de plaza pública. El primero, con los desfiles
cívicos-militares y con los cortejos religiosos, en las palabras de Cavalcanti927 está modalidad es
espectacular, pues “distingue los participantes directos de la audiencia que los observa”, en el
segundo, no hay una clara separación entre actores y espectadores, de una manera general, es una
forma un tanto menos espectacular.
A seguir listamos rápidamente los eventos que configuran la fiesta en el siglo XXI, su
organización y actores, tomando como base un estudio elaborado por la antropóloga herrera en el
año 2000. No obstante, la celebración se realiza en agosto, las actividades preparatorias inician
desde los meses de mayo o junio, cuando se organiza un comité de festejos, dentro del cual existe
una directiva conformada por autoridades municipales, religiosas, empresa privada, comercio,
fuerza armada y cuerpos de seguridad, quienes además, integran comisiones: publicidad, finanzas,
seguridad, de actividades y de protocolo y reina.
Una vez formada la directiva y comisiones se realiza la convocatoria y el proceso de
selección de la reina de las fiestas. Las festividades incluyen, además del ritual religioso y cívico, una
oferta cultural, deportiva y de diversión en el campo de la feria. Las actividades seculares y religiosas
más importantes, son las siguientes: coronación de la reina de las fiestas agostinas, desfile de
correo, el día del comercio, la Transfiguración de El Salvador del Mundo, la misa y
celebración de juegos florales. (Énfasis nuestro).
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Este ritual, de carácter religioso, se desarrolla el día 5 de agosto. Inicia con la misa en la
Basílica del Sagrado Corazón. Luego de la Eucaristía, comienza la procesión que trae la imagen
colonial de El Salvador del Mundo vestido de amarillo, en una carroza. El trayecto del cortejo
religioso pasa por las principales vías del centro antiguo, a saber; la calle Arce, calle Rubén Darío,
coronando en la Plaza Barrios al frente de la Catedral Metropolitana, es allí donde sucede el ritual
de la transfiguración, que consiste performaticamente en la introducción de la imagen procesional
en una esfera, la cual representa el mundo. En el interior, son cambiadas sus ropas; lo que se traduce
como el paso de una cosa hacia otra. El momento culminante del ritual, se da cuando la imagen
emerge de la parte superior de la esfera, con un traje blanco resplandeciente, y una bandera de El
Salvador en la parte frontal del vestido. Simbolizando el renacimiento. (FIGURAS 04-11)
FIGURA 08 – Un mar de fieles contemplando la procesión del FIGURA 09 – Procesión sobre la calle Rubén Darío
Divino Salvador del Mundo
(FUENTE: HURTADO, 2010. Imagen gentilmente cedida)
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El trabajo ya citado, sobre cultura e identidad urbana de esta ciudad durante las primeras
décadas del siglo XX y otro de la misma autora928, plantean que las fiestas patronales cumplían una
función integradora de los diversos grupos que componían en ese entonces la sociedad
salvadoreña. Los inmigrantes rurales o extranjeros encontraron en las expresiones culturales
tradicionales, espacios de sociabilidad, encuentro e identificación y construyó la identidad de los
salvadoreños.
928HERRERA, A. R. San Salvador: Historia urbana 1900-1940. San Salvador: Dirección de publicaciones e impresos,
2002.
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Pintando movimentos:
a relação entre a capoeira e o ngolo através da arte
930 Projeto de Doutorado: “Nzinga Mbandi, Ginga de Angola: memoria e representações da rainha guerreira na
Diaspora” financiado pela FAPESP.
931 http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=gingar ,
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Aqui pretendo discutir as origens da capoeira angola através da pintura de dois artistas. O
primeiro é Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, considerado o “patrono” da Capoeira
Angola. Pastinha começou a aprender capoeira com oito anos de idade com mestre Benedito de
Angola, um ex-escravo sexagenário, morador do bairro da Liberdade, em Salvador. Pastinha
ensinou capoeira na marinha por alguns anos e depois passou a dedicar-se à pintura, até a década
de 1940, quando foi procurado por importantes capoeiristas da época, para que assumisse a missão
de preservar a “verdadeira capoeira legada pelos antigos africanos.” 932
No contexto da criação da Luta Regional Baiana, que a partir da década de 1930 envolveu
capoeira em uma série de transformações que visavam à atração da classe média e a entrada no
mercado esportivo, Pastinha assumiu o papel de zelador da capoeira tradicional, dos
conhecimentos legados pelos antigos africanos, chamada “jogo de Angola” ou “brinquedo de
Angola”.
Com esta missão fundou o Centro Esportivo Capoeira Angola (CECA), em 1941, primeira
academia com método, uniforme, horário de treinos destinada à transmissão dos saberes:
movimentos, cantos, ritmos, instrumentos e filosofia, cosmovisão. Além de ensinar a capoeira,
Pastinha também sistematizou os conhecimentos, escreveu a história da dança-luta, registrou seus
valores e princípios fundamentais. Para mestre Pastinha, a capoeira era um caminho de
aperfeiçoamento moral, para o indivíduo que a pratica e para toda a nação, por ser capaz de
disciplinar o corpo e a mente. Pastinha primava pela cordialidade e respeito entre os camaradas,
explicando que a capoeira, a partir de seus trabalhos, precisava se libertar da violência, que fora
necessária em outros contextos.
É importante explicar que a Capoeira Angola não era praticada apenas no CECA na Bahia,
haviam outros mestres que foram importantes para a articulação e difusão deste estilo, como
Aberrê e seus discípulos Canjiquinha e Caiçara, que pertencem a outra linhagem, não a “pastiniana”.
Como analisou Paulo Magalhães Filho, a busca pela hegemonia na capoeira baiana foi assaz
conflituosa e para que uma linhagem se proclamasse como a “verdadeira guardiã das tradições
africanas” foi necessária intensa articulação com os discursos acadêmicos e culturais já
estabelecidos em Salvador.933
Antes da criação do CECA já havia capoeira angola, com este nome. Segundo mestre Bola
Sete, ainda em 1922 mestre Noronha tentou organizar o Conjunto de Capoeira Angola Conceição
932 PASTINHA, Vicente Ferreira. C.E.C.A- Quando as pernas fazem miserê (metafísica e prática da capoeira). Salvador, [19-].
(Manuscrito)
933 MAGALHÃES FILHO, Paulo Andrade. Jogo de discursos: a disputa por hegemonia na tradição da capoeira angola baiana.
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da Praia.934 Anos mais tarde, os mestres Aberrê (Raimudo ABR), Noronha, Maré, Amouzinho e
outros tentaram organizar um centro no Gengibirra, o Centro Nacional de Capoeira Origem
Angola.935 Evidencia-se assim que não foi Pastinha que “criou” o estilo, tampouco foi ele quem
deu o designativo étnico à capoeira.
É verdade que Pastinha se destaca não apenas devido à incansável luta política de seus
discípulos que o livrou do esquecimento, mas sobretudo por seus registros sobre a capoeira.
Pastinha era filósofo, poeta, pintor e escritor. Publicou um livro sobre os fundamentos e principais
movimentos da capoeira936 e escreveu um manuscrito de grande importância, onde registrou a
história do CECA e os valores que, para ele, deveriam nortear a prática.937 O manuscrito é também
rico em desenhos do próprio mestre em que expunha as bases dos golpes e defesas, além de
registros de ladainhas e quadras antigas que apresentam sua perspectiva histórica sobre a capoeira
e sobre o Brasil.
934 CRUZ, J. L Oliveira ‘Mestre Bola Sete’. A capoeira na Bahia. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
935
COUTINHO, Daniel. ABC da capoeira angola: os manuscritos do Mestre Noronha. Brasília, 1993. P. 17.
936
PASTINHA, Vicente Ferreira. Capoeira Angola. Prefácio de Jorge Amado. Capa de Carybé. Salvador: Gráfica
Loreto, 1964.
937 DECÂNIO, Angelo. Os manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha. Fundação Casa de Jorge Amado.
Salvador, 1983.
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Os escritos de Pastinha são aqui tomados como fonte histórica primária e primordial, que
revelam a visão de um grande ator da institucionalização da capoeira Angola na Bahia e apresentam
os conceitos e fundamentos da arte. Pastinha escreveu a história da capoeira a partir da perspectiva
do mestre, do próprio agente histórico, mostrou como ele aprendeu e defendeu a arte, registrou
seu pensamento sobre a construção da identidade Angola na capoeira. Escreveu ele:
“Não há dúvida que a Capoeira veio para o Brasil com os escravos africanos. Era
uma forma de luta, apresentando características próprias que se conservam até
nossos dias. É meio de defesa e ataque, possuindo grandes recursos, graças a força
muscular, flexibilidade de articulações e extraordinária rapidez de movimentos que
sua prática proporciona. O nome da Capoeira Angola é conseqüência de terem sido
os escravos angolanos, na Bahia, os que mais se destacaram na sua prática.”938
Vicente Ferreira Pastinha nasceu em 1889, filho do espanhol José Señor Pastinha e da negra
santamarense Raimunda dos Santos. Começou a aprender a capoeira entre os oito e dez anos de
938 PASTINHA, Vicente Ferreira. Capoeira Angola. Salvador: Gráfica Loreto, 1964. P.20.
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idade com um ex-escravo sexagenário chamado mestre Benedito de Angola, que lhe apresentou a
capoeira para se livrar de agressões de meninos mais velhos. E “ginga praqui, ginga pra lá, ginga
praqui, ginga pra lá”939, Pastinha foi aprendendo a luta. Chegou a ensiná-la aos colegas da Escola
de Aprendizes da Marinha entre os anos de 1902 a 1910. Nos dois anos seguintes, ensinou capoeira
na rua Santa Izabel, e se afastou da arte até o ano de 1941.
Segundo sua versão, no início da década de 1940, foi procurado por outros mestres, como
Aberrê e Waldemar, que lhe pediram que “mestrasse” aquela capoeira, que ensinasse a “verdadeira”
arte para que ela não perdesse seus valores originais.940 Nesta época, a capoeira vivia uma crise em
decorrência da divulgação da violência das maltas cariocas e da criação da luta regional baiana,
conhecida como capoeira regional, por Mestre Bimba. A capoeira regional misturava vários
movimentos de outras artes marciais, como jiu-jítsu e karatê, e criava competições e hierarquizações
entre os praticantes.
Com esta preocupação, Pastinha dirigiu a primeira academia de capoeira do estilo Angola.
Na porta da escola, colocou uma placa: “Angola, Capoeira mãe.” Com esta frase louvava a terra de
onde viera seu antigo mestre. Contra a onda modernizante preconizada pela regional, a Capoeira
Angola de Mestre Pastinha defendia a conservação e difusão dos saberes africanos, exaltava a
ancestralidade africana e entendia a roda como um ritual, e não como espetáculo para ser exibido.
Seus ensinamentos foram transmitidos com êxito de forma que hoje temos vários grupos
que seguem suas orientações e mantém as tradições por ele fixadas. A escola “pastiniana” é hoje
entendida como práxis educativa fundada na ancestralidade, na oralidade e na comunidade.
Rosângela Araújo aponta estes três pilares como princípios de pertencimento à dinâmica das
tradições africanas no Brasil, dialogando sobre a resistência negra e sua permanência nos fazeres
939 Com estas palavras Pastinha descreveu seu processo de aprendizagem da capoeira com mestre Benedito de
Angola. Documentário “Pastinha, uma vida pela capoeira”. Direção Antonio Carlos Muricy, 1998. 7’’20’’.
https://www.youtube.com/watch?v=-unP_tdBiKI acesso em março de 2015.
940 DECÂNIO, Angelo. Os manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha. Fundação Casa de Jorge Amado. Salvador, 1983.
941 DECÂNIO, Angelo. Os manuscritos e desenhos de Mestre Pastinha. Fundação Casa de Jorge Amado. Salvador, 1983.
P.90.
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A África mãe é exaltada. “Aruanda”, terras dos ancestrais, é reverenciada nos cantos e
gestuais. Destacamos, de forma sintética, alguns elementos presentes na capoeira angola que nos
permite afirmar que a memória de Angola é ritualizada e recuperada na roda:
Ngolo
ARAÚJO, Rosângela. C. Iê, Viva me Mestre: a Capoeira Angola da ´escola pastiniana´ como práxis educativa. Tese de
942
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Albano Neves e Souza integrou uma missão etnográfica que recolhia material para o Museu
de Angola entre os anos de 1955 a 1975, em que foi incumbido de pintar costumes, gentes,
paisagens, festas, ritos dos povos de grande parte de Angola, de Cabinda ao deserto do Namibe
Durante estas viagens pelo interior, Albano Neves e Souza presenciou e pintou o Ngolo,
arte marcial praticada entre os Mucupe, habitantes do sul de Angola, por ocasião do rito de
passagem feminino mufico ou enfundula. Também chamada dança da zebra, por basear seus
movimentos neste animal, o Ngolo é uma luta em que os jogadores se apoiam sobre as mãos e
utilizam os pés para atingir o oponente. Assim como a capoeira, usam cabeçadas, chutes circulares,
esquivas acrobáticas e posições invertidas. Estas posturas de cabeça para baixo, tipo bananeira,
eram consideradas as mais poderosas técnicas do arsenal do ngolo, e a mais importante força
espiritual para harmonizar o corpo com os ancestrais.
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A convite do Itamaraty, Neves e Souza veio ao Brasil na década de 1960, visitar a África
que havia no Brasil. Ao passar por Salvador, visitou a academia de Mestre Pastinha no Pelourinho.
Impressionado com as semelhanças entre a capoeira ali praticada e o ritual combativo que já havia
observado, apresentou ao velho mestre seus desenhos do Ngolo. Pastinha convenceu-se de que o
Ngolo era o ancestral da capoeira e, apesar de já bem idoso e quase cego, passou a contar a seus
alunos sobre as origens africanas da luta da qual era entendido como guardião.
O primeiro intelectual a escrever sobre a capoeira foi Mello Moraes Filho, que enxergou
seu nascimento nos quilombos brasileiros como uma arma utilizada pelo negro contra a opressão
da escravidão. A partir da observação de movimentos de animais, os negros desenvolveram “um
jogo estranho de braços, pernas, cabeça e tronco, com tal agilidade e tanta violência, capazes de lhe
dar uma superioridade estupenda [sobre os capitães de mato]” 943. A teoria de Mello Moraes foi
amplamente aceita e difundida nos primeiros estudos sobre a capoeira no Brasil. Burlamaqui
desenvolveu a ideia de que os quilombolas inventaram a capoeira no interior, sendo uma invenção
944
“genuinamente brasileira”. A teoria da capoeira enquanto criação nossa agradou muito o
sentimento nacionalista da década de 1930. O presidente Getúlio Vargas a reconheceu como
“esporte nacional” em cerimônia oficial com mestres da arte e a tirou da ilegalidade.
Por outro lado, Manoel Querino (1851-1923), intelectual negro nascido em Santo Amaro,
“berço” da capoeira, associava a arte aos angolanos, tão numerosos na Bahia. 945 Arthur Ramos e
Edison Carneiro, considerados a primeira geração de africanistas nas ciências sociais, buscaram
traços das características africanas nas manifestações culturais brasileiras. Em O folclore negro no Brasil,
Arthur Ramos chamou atenção para as danças de guerra, caça e pesca e dos ritos de passagem
centro-africanos introduzidos pelos escravos no Brasil, com destaque para a “cufuinha”, dança
943 MORAES FILHO, A. J. de Mello. Festas e tradições populares do Brasil. Belo Horizonte : Ed. Itatiaia,
EDUSP, 1979. [1ª edição de 1888].
944 BURLAMAQUI, Annibal (Zuma), Ginástica nacional : capoeiragem metodizada e regrada, Rio de Janeiro : 1928.c
945 QUERINO, Manoel. A Bahia de outrora. 3a ed., Salvador : Livraria Progresso, 1946. [1ª edição de 1916].
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guerreira praticada no império da Lunda no século XIX que foi apontada como uma possível
origem da capoeira.946
Carneiro escreveu: “Dá-se o nome de capoeira a um jogo de destreza que tem as suas
origens remotas em Angola”.947 Para ele, a capoeira era inicialmente uma arma violenta de luta
contra a opressão escravista, mas, devido à alta repressão e às novas condições sociais, tornou-se
um jogo, uma “vadiação entre amigos” nas primeiras décadas do século XX. Este estudioso
considerava que muitos povos africanos contribuíram para a formação da capoeira brasileira e que
suas formas mais tradicionais estavam em vias de se extinguir, na década de 1970, quando escrevia.
Jorge Amado, amigo íntimo de Pastinha, também conheceu Albano Neves e sobre o pintor
angolano escreveu: “ não posso senti-lo estrangeiro sob o sol da Bahia, as cores são idênticas,
muitos de nossos hábitos vieram de lá, na beleza das mulheres há um toque de dengue angolano,
na força e na esperança dos homens descortino a decisão da gente da África. Neves e Sousa
encontra aqui a irmandade dos países que têm em comum, além da língua, alguns bens decisivos
de suas culturas nacionais. Não é estrangeiro no Brasil o artista de Angola.” O enlace entre culturas
angolanas e brasileiras era o ponto central da viagem de Neves e Sousa, o que ele via e afirmava o
tempo todo: “Angola é a mãe do Brasil”.
Mas foi o folclorista Câmara Cascudo quem mais contribuiu para a propagação da teoria
do Ngolo como ancestral da capoeira brasileira. Cascudo conheceu o pintor nesta mesma viagem,
enquanto presidia a Sociedade Brasileira de Folclore e seus escritos sobre a origem da capoeira são
nitidamente influenciados pelo contato com este. Escreveu que “a unanimidade das fontes
brasileiras indica a Capoeira como tendo vindo de Angola. Capoeira de Angola, vadiação ou
946 RAMOS, Arthur. O folclore negro no Brasil: demopsicologia e psicanálise. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do
Brasil, 1954.
947 CARNEIRO, Edson. Capoeira. Cadernos de Folclore. N. 01. 1975.
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brinquedo, como dizem na cidade de Salvador.”948 Cascudo afirmou existir em Angola a nossa
capoeira “nas raízes formadoras”. A partir de correspondências trocadas com Neves e Souza,
Cascudo Transcreveu em seu livro Folclore do Brasil a teoria do N’golo no Brasil:
Os escravos das tribos do Sul que foram para aí (para o Brasil) através do entreposto
de Benguela levaram a tradição da luta dos pés. Com o tempo, o que era em
princípio uma tradição tribal foi-se transformando numa arma de ataque e defesa
que os ajudou a subsistir e a impor-se num meio hostil. Razão da sua permanência
nos meios urbanos. O pastor sem rebanhos torna-se um marginal. Os piores
bandidos de Benguela em geral são Muxilengues que na cidade usam os passos do
N’golo como arma. Em Luanda esses passos, possivelmente trazidos do Sul,
chamam-se Bassula. Até no nome há qualquer coisa que sugere a origem da luta nos
povos pastoris do Sul. Ba-ssula, os do Sul. Em Luanda os técnicos deste tipo de luta
são os pescadores da ilha que se engajam como marinheiros dos palhabotes que
fazem viagens pela costa até Mossâmedes. Outra das razões que me levam a atribuir
a origem da Capoeira ao N’golo é que no Brasil é costume dos malandros tocarem
um instrumento aí chamado de Berimbau e que nós chamamos hungu ou
m’bolumbumba, conforme os lugares e que é tipicamente pastoril, instrumento esses
que segue os povos pastoris até Swazilândia, na costa oriental de África. 949
Esta teoria de que a capoeira teria suas origens no Ngolo foi amplamente difundida pelos
capoeiristas. Hoje é comum ver grupos de Capoeira Angola adotando o símbolo da zebra em seus
escudos ou decorações. A zebra (chamadas ongolo em umbundo) aparece como um modelo para
um combate já que apresenta habilidade evasiva e destrezas para defesas. No kunene, a zebra é
símbolo de agilidade e rapidez950
948 CASCUDO, L. da Câmara. Folclore no Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1967, p. 182-87. E Dicionário do
Folclore Brasileiro, 3. ed, Rio de Janeiro : Tecnoprint, 1972, p. 243.
949 CASCUDO, Luís da Câmara. O folclore no Brasil. Pp.186-7. A fala de Neves e Souza reproduzida aqui aparece entre
aspas.
950 DESCHI-OBI. Figthing for honour The History of African Martial Art Traditions in the Atlantic World. Columbia: The
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Atualmente, o maior defensor desta teoria é Desch-Obi, que fez profundo estudo de campo
na região de Kilengue (sul de Angola), nas planícies do Kunene, onde o ngolo é ainda praticado
durante os rituais de passagem para a vida adulta, chamado efundula. Para entender o
desenvolvimento da arte marcial, o autor a conecta ao paradigma da Kalunga (águas dos oceanos,
lagos e rios, mas que também se refere ao mundo espiritual, terra dos ancestrais). Kalunga evoca
um mundo invertido onde os ancestrais andam com os pés para cima. Este paradigma deu origem
a uma arte marcial que se baseia em sustentar o corpo com as mãos e chutar enquanto está de
cabeça para baixo. Uma vez submetidos à travessia atlântica, mestres desta arte espalharam esta
tradição de chutes invertidos para as Américas. Para Desch-Obi, a capoeira brasileira seria apenas
uma forma levemente alterada do ngolo, assim como o jiu-jitsu brasileiro é derivado do jiu-jitsu
japonês.951
951 DESCHI-OBI. Combat and crossing of the Kalunga. IN: HEYWOOD, Linda (org).Central Africans and cultural
transformations in the America Diaspora. Cambridge, Cambridge University Press, 2002.
952 COBRA MANSA, Mestre, e Assunção, Matthias Röhrig, « A dança da zebra ». Revista de História da Biblioteca
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Considerações finais:
Hoje é impossível discordar da tese proposta por Assunção de que a capoeira é uma “arte
crioula”, no sentido de que foi criada no Brasil a partir dos repertórios de vários povos africanos.
Certamente não foram apenas os povos do Kunene, conhecedores do Ngolo que, sozinhos,
recriaram sua arte marcial no Brasil.
953 Matthias Röhrig ASSUNÇÃO, «Capoeira, arte crioula», Cultures-Kairós [En ligne], paru dans Capoeiras –
objets sujets de la contemporanéité, mis à jour le : 16/12/2012, URL :
http://revues.mshparisnord.org/cultureskairos/index.php?id=541.
954 SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no universo atlântico- século XVIII. Tese de Doutorado em História
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africanas e circulação de saberes entre africanos de diferentes origens étnicas. “Quem não pode
com a mandinga, não carrega patuá”, diz um verso de capoeira.
Angola como mãe, como memória, como cultura de raiz, que traz histórias e reatualiza o
passado. Angola define o que é verdadeiro, tradicional, que não se descaracteriza.
Na década de 1960 foi fundamental para a capoeira angola “encontrar” seu correspondente
africano, seu “ancestral”. O encontro de Pastinha com Neves e Sousa é um momento interessante
para observarmos como que, através da arte, da pintura, das representações de movimentos
corporais, dois pintores puderam trocar lições de africanos que foram compartilhadas nas
dinâmicas atlânticas. Reconheceram que golpes de ataques e defesas e conhecimentos a eles
associados foram repassados pelos africanos.
O Ngolo poderia ser até mais um, entre várias tradições marciais dos povos africanos, mas
o encontro deste fundamento, como percepção de praticar algo que já existe milenarmente,
colaborou para o propósito pelo qual passava igualmente a capoeira, como os estudos sobre a
cultura popular.
Mestre Pastinha e a capoeira angola tentavam demonstrar o seu valor, a beleza de seu jogo
e gestual, “manhã, malícia ”955. Em um contexto que a capoeira regional se destacava no mercado,
com seus saltos acrobáticos e velocidade agitavam multidões, Pastinha praticava o ritual
cadenciado, marcado por conceitos e princípios tradicionais.
Ao mesmo tempo, Cascudo enquanto “pai do folclore”, Carneiro e Arthur Ramos como
os primeiros a colocarem a cultura negra como objeto das ciências sociais, buscam “africanismos”,
reminiscências africanas. Estão olhando para as culturas afro-brasileiras de sua época destacando o
que era originalmente africano, e o que era moderno. O ser africano conferia, nestes estudos,
valoração positiva, era mais autêntico, legítimo, menos descaracterizado, “aculturado”.
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Resumo: “Frequentemente ocorre que a duração dos Papéis sobreviva à diuturnidade dos
edifícios” – se referia Andrea Pozzo (1642-1709) na preleção a Leopoldo I no primeiro volume de
seu tratado Perspectiva Pictorum et Architectorum. Publicado em dois volumes em 1693 e 1700, o tratado
de Pozzo se tornou referência nos estudos de perspectiva em função da facilidade do método de
aprendizado, aliada à profusão de imagens que compunha a sua edição. Tal empresa alcançou
expressivo sucesso editorial, sendo traduzida e editada em diversas línguas até o século XIX. A
frase de Pozzo alude à possibilidade de, gravadas nos fólios, as imagens dos grandes feitos
arquitetônicos poderem se sustentar e se tornar ainda mais perenes que seus modelos. O que se
almeja com esse trabalho é apresentar como a imagem - tanto no contexto histórico em que a obra
Perspectiva foi publicada quanto para a Companhia de Jesus, da qual Pozzo fazia parte – toma
importância significativa na elaboração de um tratado de caráter técnico e didático, destinado a
pintores e arquitetos que se valeriam dos preceitos do desenho de perspectiva. Nessa obra, além
da orientação didática, dando às figure uma posição de destaque em relação ao texto, a imagem
adquire três funções expressivas: a de registro e memória, permitindo tornar perenes estruturas
efêmeras, como os aparatos realizados nas festividades religiosas ou mesmo de estruturas que não
sobreviveram ao tempo; a de divulgação, ao perpetuar um conjunto específico de modelos e
temas, tornando-se uma espécie de vocabulário; e por fim, a de criação, uma vez que, sendo
imagem, permite um diálogo livre com a realidade, transformando estruturas reais em ilusórias,
num movimento típico do uso da perspectiva na elaboração de imagens durante o final do século
XVII e XVIII. Desse modo, procura-se entender como a configuração de uma obra baseada em
imagens permitiu uma compreensão diferente tanto do texto-base com as explicações dos
conceitos quanto das formas mais elaboradas que tomaram lugar na produção de Andrea Pozzo
como pintor e arquiteto.
956 [...] essendo che sovente avviene, che la durevolezza delle Carte sopravivva alla diuturnità delle Moli, eziando marmoree. POZZO,
Andrea. Alla Sacra Cesarea Maestà di Leopoldo Austriaco Imperadore. Perspectiva Pictorum et Architectorum. Roma, 1693,
s/p.
957 POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum Andreae Putei e Societate Jesu. Pars Prima. In quâ docetur
modus expeditissimus delineandi opticè omnia que pertinent ad Architecturam. Romae. MDCXCIII. Typis Joannis
Jacobi Komarek Bohemi apud S. Angelum Custodem. POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum Andreae
Putei e Societate Jesu. Pars Secunda. In quâ proponitur modus expeditissimus delineandi opticè omnia que pertinent
ad Architecturam. Romae. Anno Jubilei MDCC. Ex Typographya Jo: Jacobi Komarek Boeemi, propè SS. Vicentinum,
& Anastasium in Trivio.
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diversas línguas no continente europeu e fora dele958. Com essa afirmação Pozzo parece apresentar
uma possibilidade legítima de que os papéis, ou seja, os textos – e por extensão, os tratados – sejam
compreendidos a partir da sua durabilidade temporal, aquilo que a arquitetura, mesmo sendo
marmórea, não permite a qualquer de seus edifícios. Uma vez que os edifícios construídos têm a
possibilidade de se perderem, de serem destruídos ou tornarem-se ruínas, os papéis gravados
poderiam ser a chave da permanência e da fixação através dos tempos, permitindo que haja uma
memória daquilo que fora produzido. Tal contribuição eleva o texto à durabilidade das obras de
arquitetura, como uma possibilidade de criar uma situação monumental para o texto. No caso do
tratado de Andrea Pozzo, texto escrito e imagem são indissociáveis e se tornam fundamentais para
a compreensão de uma determinada estrutura arquitetônica realizada ou concebida como um
projeto. Por isso o autor estrutura toda a sua obra a partir dessa relação imagem-texto, dispondo
as imagens (figure) e seus respectivos textos explicativos em paralelo (figura 1), dando destaque
primordial à imagem gravada e apresentando uma organização clara e prática959. Composto em dois
volumes totalizando 208 gravuras, Perspectiva Pictorum et Architectorum alcançou expressivo sucesso
editorial e definiu um momento culminante na tradição dos livros ilustrados de perspectiva960.
958 Consideram-se aproximadamente 16 edições somente da obra em latim e italiano, além da tradução em pelo menos
6 línguas europeias até o final do século XVIII. Cf. PALMER, Rodney. ‘All is very plain, upon inspection of the figure’:
the visual method of Andrea Pozzo’s Perspectiva Pictorum et Architectorum. In: PALMER, Rodney e
FRANGENBERG, Thomas. The rise of the image: essays on the History of the Illustrated Art Book. Aldershot: Ashgate,
2003, p. 168.
959 MARIANI, Ginevra. Perspectiva Pictorum et Architectorum. Le matrici originali. In: BÖSEL, Richard e
INSOLERA, Lydia Salviucci (orgs). Mirabili Disinganni. Andrea Pozzo (Trento 1642 – Vienna 1709) Pittore e architetto
gesuita. Roma: Istituto Nazionale per la Grafica, 2010, p. 189.
960 PALMER, ‘All is very plain..., p. 157. Ver também MENICHELLA, Anna e CARTA, Marina. Il sucesso editoriale
del trattato. In: DE FEO,Vittorio. MARTINELLI, Valentino. Andrea Pozzo. Milano: Electa, 1996, p. 230-233.
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961 Cf. ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão. Ensaios sobre o Barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
962 BAILEY, Gauvin Alexander. Il contributo dei Gesuiti alla pittura italiana e il suo influsso in Europa (1540-1773).
In: SALE, Giovanni. Ignazio e l’arte dei Gesuiti. Milão: Jaca Book, 2003, p. 125.
963 ________. Il contributo dei Gesuiti..., p. 125.
964 ________. Il contributo dei Gesuiti..., p. 126.
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A literatura artística que antecede o tratado de Pozzo é vasta e se destaca pelo progressivo
uso das imagens, sobretudo nas obras que elucidam passagens relativas à arquitetura e à perspectiva
em particular. Os tratados do final do século XVI e início do século XVII já demonstram a
necessidade da imagem para apresentar e discutir determinados fundamentos da perspectiva, uma
vez que essa ciência só pode ser apreendida a partir dessa visualidade. A disposição das imagens
em relação aos textos também vai mudando ao longo do tempo, dando cada vez mais espaço para
as gravuras acrescidas de comentários965.
Esse conjunto de obras serviu de base para o trabalho desenvolvido por Andrea Pozzo. O
autor as referencia logo na abertura de sua obra, considerando sobretudo os textos de Jacopo
Barozzi da Vignola (1507-1573), Sebastiano Serlio (1475-1554), Andrea Palladio (1508-1580) e
Vicenzo Scamozzi (1548-1616) como os principais textos para a constituição do seu tratado.
No que diz respeito à visualidade e uso das imagens, tomamos por base esses tratadistas
citados, por apresentarem características que serão reforçadas quando da construção de Perspectiva
Pictorum et Architectorum. O tratado de arquitetura de Sebastiano Serlio constitui a possível base para
a utilização dos preceitos arquitetônicos ligados à perspectiva. Em sua obra Tutte l’Opere
d’Architettura et Prospettiva (1560) o autor insere as imagens como referências explicativas para o
texto em que discorre sobre as formas construtivas da arquitetura, suas ordens e elementos (figura
3).
Nos textos de Jacopo Barozzi da Vignola, Pozzo se vale fortemente da estrutura
apresentada em Le cinque ordini d’Architettura (1562), obra publicada ainda em vida do autor e que, à
semelhança de Serlio, também trata dos elementos arquitetônicos, das ordens e da maneira correta
de se elaborar as devidas proporções em um determinado projeto. Mais do que apresentar as
965 Ver
os importantes estudos sobre os tratados publicados e não publicados de perspectiva e a relação com as imagens.
Cf. MASSEY, Lyle (ed.) The treatise on perspective: published and unpublished. Washington: National Gallery of Art, 2003.
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medidas dos módulos e a disposição de cada elemento segundo a nomenclatura clássica (utilizados
expressamente por Pozzo como referência, já que ele parte dessas medidas para a composição das
suas figuras), a obra de Vignola também pode ser entendida como um fundamento para a
disposição das imagens em relação ao texto: em Le cinque ordini... O autor dispõe texto e imagem
em paralelo, dando às últimas certa predominância ao colocar os textos como explicativos dessas.
Fig. 3 (esq) – SERLIO, Sebastiano. Tutte l’opere d’architettura et prospettiva. 1584. f. 179 e 233.
Fig. 4 (dir) – VIGNOLA, Jacopo Barozzi. DANTI, Egnatio. Le due regole della prospettiva pratica. 1583. f. 69 e 137.
Essa forma de disposição foi amplamente utilizada por Pozzo em suas gravuras.
Se Le cinque Ordini... permite a configuração estrutural do tratado de Pozzo, o outro texto
importante de Vignola, Le due Regole della Prospettiva Pratica (1583), de publicação póstuma editada e
comentada por Egnatio Danti966, se torna a referência do método utilizado por Pozzo. Vignola
apresenta dois modos distintos de se realizar a perspectiva e Pozzo toma ambas por base e lhes
acrescenta a sua própria maneira de construir (figura 4). E nessa obra também Vignola se utiliza
constantemente das imagens para a exposição das regras para se construir em perspectiva,
tornando-se referência também para o tratado de Andrea Pozzo.
Por fim, considerando os demais tratadistas citados, Palladio e Scamozzi, Pozzo alude aos
preceitos apresentados por esses autores ainda que de maneira rápida, mas que pode ser
considerada como uma exposição alusiva do repertório tradicional acerca da arquitetura, sobretudo
no que diz respeito à discussão sobre as proporções para a construção de uma determinada ordem
arquitetônica. Na figura 52 do primeiro volume (figura 5), Pozzo interrompe a progressão da obra
para realizar um breve comentário acerca das diferentes concepções sobre a proporção nesses
autores. Nas palavras do próprio autor,
Das Ordens da Arquitetura, além de Vignola também escreveram com excelência
Palladio e Scamozzi, cada qual com seus seguidores e detratores. Portanto, para
966Sobre essa obra ver FIORANI, Francesca. Danti Edits Vignola. The Formation of a Modern Classic on Perspective.
In: MASSEY, The Treatise on Perspective..., p. 127-159.
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que possam ver a maneira desses notáveis Autores em fazer Perspectivas, quis
desenhar nestas páginas todas as Ordens, como se encontram em seus livros967.
Considerando pois essa trajetória de obras de referência para o tratado de Andrea Pozzo,
cabe agora passar ao entendimento dos modos como a imagem é entendida pelo próprio autor na
concepção de seu texto. Elencamos, para esse fim, três aspectos fundamentais para essa presença
dessas imagens considerando sua utilização prática. Pozzo se vale da imagem não apenas para
apresentar os fundamentos da técnica da perspectiva e sua forma construtiva, mas vai além,
evocando as funções de registro e memória, de divulgação de repertório e também de possibilidades
criativas e inventivas. Essas funções serão analisadas a seguir.
967 Degli Ordini d’Architettura, oltre il Vignola, ne hanno scritto con eccellenza, il Palladio e lo Scamzzi; ognuno de’ quali ha meritamente
i suoi seguaci e disensori. Per tanto, accioche possiate ancor con le maniere di sì riguardevoli Autori far le Prospettive, ho voluto disegnare in
questa pagina tutti gli Ordini, come si trovano ne’ loro Libri. POZZO, Perspectiva..., v. I, f. 52.
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o autor parte para a representação de estruturas inteiras, muito bem representadas em planta, alçado
e perspectiva. E é aí que a profusão de exemplos arquitetônicos possíveis se apresenta, sobretudo
aqueles ligados à arquitetura religiosa cristã, como aparatos efêmeros para festividades religiosas,
altares, tabernáculos, etc968. Além desses também são representadas outras estruturas de arquitetura
civil que, juntamente com os exemplos da arquitetura religiosa constituem um repertório de
possíveis imagens a ser difundido através do tratado.
Dentre esse conjunto, de imagens, algumas chamam atenção: são as arquiteturas efêmeras
realizadas por Andrea Pozzo, sobretudo para as festividades das 40 horas durante a Semana Santa,
de acordo com o calendário litúrgico cristão (figura 6). Como exposto pelo próprio autor em um
desses exemplos,
Utilizei deste tabernáculo algumas vezes para as exposições das 40 horas. Se for
bem pintado e adaptado em duas ordens de telas contornadas, enganará a que o
observa e parecerá feito em relevo969.
Percebe-se aqui claramente uma necessidade de se registrar, de tornar perene uma estrutura
que tinha por sua própria condição a efemeridade. E essas estruturas efêmeras, pintadas sobre
diversas telas de madeira e dispostas segundo uma ordenação precisa, são a abertura do tratado
para os diversos usos da perspectiva, após os exemplos de todas as ordens arquitetônicas. E parece
ser exatamente por isso que o autor busca fixá-las, ainda que em gravura, mantendo a memória
para além das narrativas que normalmente se faziam desses feitos durante as festividades religiosas.
Essa aplicabilidade prática da perspectiva na transmutação de uma determinada estrutura real em
968 Sobre os “teatros sacros” em que figuram principalmente as estruturas efêmeras, ver: BÖSEL, Richard e
INSOLERA, Lydia Salviucci. Teatri sacri: apparati per le Quarantore. In: BÖSEL e INSOLERA, Mirabili Disinganni,
p. 231-235.
969 Di questo tabernacolo mi son servito alcune volte per l’espositione delle 40 hore. Se sarà ben dipinto e adattato su due ordini di telari
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uma fictícia, pictórica, modificando ainda que provisoriamente a realidade durante um pequeno
período, toma lugar no tratado de Pozzo como se fosse uma estrutura real, uma vez que expressa
em gravura, tanto a arquitetura real e perene quanto a arquitetura pintada e efêmera assumem o
mesmo grau de importância. O registro aqui, portanto, se torna fundamental para permitir que se
institua uma memória visual daquilo que se pretendia como efêmero.
No grande aparato realizado no ano de 1685 na Igreja de Jesus, a igreja central da
Companhia em Roma, temos a preparação minuciosa de todo o projeto, apresentado em 5 figuras
detalhadas incluindo a disposição das telas para sua justa apreciação. Importa salientar que a
construção desse aparato nesse edifício marca a presença a entrada de Pozzo no centro romano da
Companhia de Jesus, como uma marca da sua habilidade como pintor de perspectiva.
Produziu um belo efeito e também enganou aos olhos de tal forma uma estrutura
que fiz no ano de 1685 para a exposição das 40 horas na Igreja de Jesus em Roma,
que estimei contentar os curiosos e publicar os desenhos não só de todo o
Edifício mas também das plantas e alçados, os quais feitos com tamanha
diligência que a Obra não parecia ter sido colorida com pincéis, mas como se
fosse realmente fabricada em pedra970.
970 Fece sì bell’effetto, e talmente ingannò l’occhio una machina che io misi in opera l’anno 1685 per l’espositione delle 40 hore nel Gesù di
Roma, che ho stimato per contentar i curiosi di pubblicare i disegni non solo di tutto l’Edifitio, ma anche delle piante ed elevationi, i quali
ho fatti con tal diligenza, come se l’Opera non dovesse colorirsi co i pennelli, ma dovesse realmente fabbricarsi con pietre. POZZO,
Perspectiva... v. I, f. 67.
971 ARGAN, Giulio Carlo. O valor crítico da gravura de tradução. In: Imagem e persuasão..., p. 16-22.
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esse problema instalando uma falsa cúpula, com o ponto de observação oblíquo ao espectador,
para que pudesse ser admirada antes de um centro geométrico perpendicular a ela, ou seja, na qual
o espectador pudesse observar o efeito perspéctico antes mesmo de chegar próximo à imagem972.
A mesma mensagem apresentada pelo autor na obra construída adquire relevância no momento
em que é colocada como exemplo no tratado, também à semelhança dos aparatos efêmeros
apresentada em detalhes pormenorizados, facilitando a sua possível reprodução ou referência para
demais obras (figura 7).
Fig. 7 – POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorum. 1693. v. I, f. 88. e Falsa Cúpula. Igreja
de Santo Inácio de Loyola, Roma.
972 INSOLERA, Lydia Salviucci. Finte prospettive: cupole e soffitti. In: BÖSEL e INSOLERA, Mirabili Disinganni, p.
223-225.
973 Cf. INSOLERA, Lydia Salviucci. I capolavori nella chiesa di S. Ignazio. In: BÖSEL e INSOLERA, Mirabili
Disinganni, p. 119-121.
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elementos estruturais da arquitetura pintada já finalizados quando da edição. Ora, com a obra ainda
em andamento, demonstrar o seu processo criativo é valorizá-la de imediato, reconhecendo o
alcance da mesma obra com o auxílio da divulgação pelo tratado.
E todo esse intuito se amplia quando, na reedição de 1702 do primeiro volume, a obra é
inserida em sua totalidade, como uma nova figura e explicada em seus pormenores (figura 9). Tal
como se a eficácia desse programa iconográfico tivesse de fato se solidificado, expô-lo como
gravura no tratado seria fundamental para fazer circular a mesma ideia considerando os limites de
uma exposição puramente textual do programa iconográfico974.
Fig. 8 – POZZO, Andrea. Glória de Santo Inácio de Loyola (Triunfo da Companhia de Jesus). Igreja de
Santo Inácio, Roma 1684-1695.
Fig. 9 – Girolamo FREZZA e Arnoldus van WESTERHOUT, sobre obra de Andrea POZZO. Delineatio
Picturae in Fornice Templi S. Ignatii. Inserido na edição de 1702 de Perspectiva Pictorum et Architectorum (I, 100)
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O terceiro e último exemplo da imagem como divulgação foi um projeto executado por
Andrea Pozzo que lhe rendeu grande notoriedade devido a sua importância: o altar de Santo Inácio
de Loyola na Igreja de Jesus (figura 10). Nos anos finais do século XVII houve a necessidade de
mudança da composição dos altares da Igreja, definindo assim um local específico para os restos
mortais de Santo Inácio. Através de um concurso que deu lugar a uma grande disputa documentada,
o jesuíta acabou se sobressaindo e conseguindo a vitória do projeto, apesar dos constantes
discursos contrários a sua escolha975. Fato é que, finalizado o processo e escolhido Pozzo como
vencedor, o altar foi construído e sua imagem também se tornou mais um exemplo de divulgação
presente no tratado.
No segundo volume, junto a outros exemplos, está presente o altar de Santo Inácio de
Loyola, na figura 60. A exposição de Pozzo obviamente omite a problemática do concurso, mas
define claramente a importância desse projeto que além do fato de ser uma obra significativa devido
a sua importância para a Companhia, assume outro lugar também no tratado: a possibilidade de
uso dos preceitos da perspectiva para a realização de projetos arquitetônicos edificáveis, além de
demonstrar o dinamismo de Pozzo como artista capaz de realizar obras em diferentes suportes.
A Imagem como criação
BÖSEL, Richard e PAPOTTO, Giovanni. L’altare di sant’Ignazio nella chiesa del Gesù. In: BÖSEL e INSOLERA,
975
Mirabili Disinganni, p. 137-140. Ver também LEVY, Evonne. Propaganda and the Jesuit Baroque. California: University of
California Press, 2003.
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Por fim, não se pode deixar de mencionar um ponto significativo das possibilidades de uso
das imagens no tratado de Pozzo e que diz respeito à inventividade que o desenho de perspectiva
permite. Em função das projeções em perspectiva garantirem um lugar de simulações fictícias em
um espaço real, as estruturas não necessariamente precisam corresponder unicamente aos preceitos
dessa arquitetura real. Nesse sentido, o simples fato de se continuar um espaço real em um ilusório
já demonstra essa capacidade criativa, ancorada nas estruturas reais. Pozzo, contudo, vai além,
permitindo ao seu leitor que experimente estruturas mais “extravagantes” em relação àquilo que
fora colocado pela tradição, sobretudo a tradição clássica da arquitetura. Há um limite, mas o autor
parece explorar esse limite trazendo estruturas não muito usuais, como as colunas sustentadas por
mísulas e as colunas “assentadas” (com um giro forçado em um dos terços).
O exemplo da coluna “assentada” presente no segundo volume da obra é singular nesse
aspecto (figura 11). Ao elaborar um projeto de altar para uma Igreja em Roma, Pozzo apresenta
uma invenção ao colocar as colunas como se se assentassem sobre uma base elevada, e já recorre
na explicação do texto à possível crítica que viria a sofrer:
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976 Avendo udito, che in una Chiesa principale di Roma si doveva fare un’Altar Maggiore, che variasse da tanti altri, con qualche novità,
e bizzarria, ho fatto anch’io questo disegno da adattarsi a quel luogo, e ve lo mostro quì sol per mostra. Ma perchè egli può esser condannato
per la novità delle colonne; onde nessuno vorrà esser il primo a servirsene, come di cosa insolita presso gli antichi; io voglio purgarmi di questa
accusa, se non coll’autorità, almen colla ragione. Gli antichi adunque (se diamo fede a Vitruvio) non di rado servironsi per colonne, ò pilastri
per variar l’architettura, di Statue di Uomini, e Donne, che egli chiama chariatidi. Or mi si dica, che necessità v’è, che abbian a star sù
ritte in piè, e non possan fare il loro officio sedendo? E se in ciò non v’è inconveniente, non sò vedere, che inconveniente sia in far anche le
colonne sedenti, che sono figura di quelle. POZZO, Perspectiva Pictorum et Architectorum, v. II, f. 75.
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977 Adunque produco in mezzo un’Arte, con cui tutt’i Dipintori possano maestrevolmente, e con leggiadria adombrare, anzi pur esprimere
al vivo quelle Moli Trionfali, ch’altri formerà o di bronzo, o di marmi, ad eterna rimembranza delle ammirabili Vostre Imprese. Così
avverrà, che da per tutto si rappresenti alcun Monimento de’ Vostri Trionfi, e che almeno ne rimanga una qualche Immagine, dapoi che le
Colonne, gli Archi, e i Colossi dagl’incontrastabili urti del Tempo saranno rovesciati. Impercioche, quantunque la lunga età con tacito
invisibil dente stritoli, divori, e consumi eziando le più salde e diamantine Moli (quali singolarmente miriamo in questa Città, una volta
Signora del Mondo) non ha però ella similmente questa ingorda balia sobra tutte le loro Imagini, come che lavorate sieno in più frale materia.
POZZO. Alla sacra maestà... s/p.
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Resumo:
A paisagem, enquanto conceito moderno e ocidental, oriundo das artes plásticas, foi aos poucos se
impondo ao espectador, seja através dos afrescos de Giotto di Bondone (1267-1337), seja através
das janelas renascentistas que cavavam no quadro uma abertura à realidade profana, até virar,
posteriormente, o próprio tema da pintura, nos países baixos, com os pintores flamengos, no século
XVI. Configurou-se, no desdobrar desse processo, uma concepção clássica do termo que implica
um observador – um personagem, um ponto de vista, ou o próprio espectador – que contempla
determinada porção do espaço que se oferece ao seu olhar. No entanto, a paisagem pode ser
pensada também não apenas como algo da ordem da contemplação, mas enquanto uma experiência
imersiva do sujeito no espaço. A paisagem se daria, nesse sentido, na fronteira sensível entre o
sujeito e o mundo, estando presente, antes mesmo da sua configuração nas artes plásticas, na
própria atitude do sujeito em face à natureza. Assim, o presente artigo considerará o conceito de
paisagem enquanto experiência pré-reflexiva entre o sujeito e o espaço, para propormos um
pequeno panorama que visa pensar a paisagem, no cinema, além da concepção clássica do termo,
advinda das artes plásticas. Dessa forma, nossa proposta investigativa não almejará a análise de
filmes específicos, mas terá como foco obras que apresentam propostas e formatos díspares, que
se configuram sobre cidades desoladas, “outras paisagens”, como a cidade em ruínas de
“Permanent Vacation” (1980), de Jim Jarmusch, a paisagem pós-apocalíptica de “Stalker” (1979)
de Andrei Tarkovski , a paisagem urbana desolada de “Cães errantes” (2013) do cineasta malaio
Tsai Ming Liang, e a New York vista de dentro no filme “Lost Book Found” (1996) de Jen Cohen.
Nessa perspectiva, o intuito do presente trabalho é apresentar um quadro, aberto e múltiplo, que
transita entre diversas propostas cinematográficas, com o intuito de pensar a paisagem para além
da mera contemplação de um sujeito diante de um espetáculo que se descortina ante seus olhos.
Palavras-chave: Paisagens; Cinema contemporâneo; Ruínas.
A paisagem, enquanto conceito moderno e ocidental, oriundo das artes plásticas, foi aos
poucos se impondo ao espectador, nas telas dos pintores dos séculos XIV e XV. Neste processo,
situado no limiar da modernidade, na transição entre o sagrado e o profano, a paisagem se apresenta
como imagem ambígua, que se quer “realista”, aberta à realidade profana do mundo, mas ainda se
vê presa ao caráter simbólico do ícone, como se observa nos afrescos de Giotto de Bondone (1267-
1337), por exemplo (Figura 1).
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Tal processo, no entanto, não remete apenas à pintura dos artistas plásticos, mas também
à própria atitude do sujeito em face à natureza. Quer dizer, é nesse momento de transição que a
natureza – antes considerada como perigosa, assustadora e fonte de pecados –, começa a ser
contemplada pelo homem. Nesse sentido, a paisagem já estaria presente no gesto inicial do poeta
Francesco Petrarca em sua subida ao Monte Ventor, realizada em 1336, cujo intuito era o de
contemplar a natureza do alto do elevado. Permeada de contradições e ainda marcada pela
meditação religiosa, a subida ao monte do poeta italiano se erige enquanto um marco da teoria da
paisagem moderna e ocidental978. No entanto, seria necessário elencar outros fatores que fizeram
parte desse processo, como, por exemplo, a laicização dos elementos naturais, favorecida
sobretudo pela criação da perspectiva, uma vez que essa instaura no espaço bidimensional da tela
a tridimensionalidade, contribuindo para a representação dos elementos naturais. Outro fator que
seria importante salientar é o contexto da reforma protestante nos Países Baixos. A nobreza e o
clero, até então os principais clientes dos pintores, perderam a força que exerciam e o poder de
compra, sendo substituídos pela burguesia comerciante. Burguesia esta que não se interessava pelas
pinturas ligadas à História Sagrada, ao catolicismo, ou até mesmo às pinturas ligadas à Antiguidade
clássica, mas preferia temas banais do cotidiano, como a vida, o trabalho e a paisagem – até então
considerada como gênero menor. Assim sendo, o contexto da reforma protestante favoreceu o
destaque dado à paisagem em alguns pintores flamengos dos séculos XV e XVI.
O que cabe destacar neste decurso é o surgimento de uma concepção clássica do termo
paisagem, que diz respeito não só à representação de determinada realidade física em um quadro,
mas também à construção da subjetividade do “eu” moderno, clássico, que “se constrói sobre o
modelo do ‘olho’, concebido ele mesmo como fonte da visão e de nosso conhecimento do real: o
Ego é o olho mágico no interior do nosso olho físico, que relaciona tudo o que nós vemos com a
cf. RITTER, Joachim. Paysage : fonction de l’esthétique dans la société moderne. Les éditions de l’imprimeur,
978
1997.
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O cinema incorpora o ponto de vista fixo da perspectiva linear na sua constituição. Além
disso, ele submete “o mundo visível ao arbítrio de um sujeito” 981, a uma instância narradora ou a
um sujeito cinematográfico. Como observou Arlindo Machado, a respeito da criação da
perspectiva: “[o] mundo visível passa então a ser exposto sob o prisma incontornável da
subjetividade: ele não é apenas uma paisagem que se abre ao nosso olhar, mas uma paisagem já
olhada e dominada por um outro olho que dirige o nosso”.982 O cinema, ao transportar os códigos
da perspectiva para o dispositivo fílmico, também herdara a submissão do olhar a uma
subjetividade ordenadora, no momento em que o plano se liga a um ponto de vista:
979 OUELLET, Pierre. Poétique du regard : Littérature, perception, identité. Québec : Septentrion ; Limoges : Presses
Universitaires de Limoges, 2000, p.11. “ Le « je » moderne, c’est-à-dire classique, se construit sur le modèle de l’« œil
», conçu lui-même comme source de la vision et de notre connaissance du réel : l’Ego est l’œil magique à l’intérieur de
notre œil physique, qui rapporte tout ce que nous voyons à notre propre existence de sujet pensant et percevant”.
(Todas as traduções foram realizadas por mim).
980 cf. JAY, Martin. Downcast eyes. University of California Press, 1993; CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e
2007, p.23.
982 ______. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço, p.22.
983 ______. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço, p.24.
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maneira aberta e transversal, para propormos um pequeno panorama, sem nos determos na análise
específica dos filmes.
Paisagens em movimento
STALKER. Direção: Andrei Tarkovski. União Soviética/Alemanha Oriental. 1979. Colorido e p&b, 163 min.
984
985MONS, Alain. Le bruit-silence ou la plongée paysagère. In: MOTTET, Jean (Org.). Les paysages du cinéma. Seyssel:
Champ Vallon, 1999, p.242. “les personnages sont atomisés dans l’épaisseur de la nature, ils sont dans un devenir-
immense de la forêt russe. Nous plongeons avec eux dans une trouée, dans une échappée d’un paysage naturel, pourtant
contaminé ici ou là”.
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986
Essa ligação entre o sujeito e o espaço também aparece no filme Cães errantes , de Tsai
Ming Liang. Entretanto, no caso do cineasta malaio, existiria talvez uma nostalgia maior com
relação à perda dos liames que uniria os sujeitos ao mundo. Sobretudo quando se trata de paisagens
urbanas, a sensação que se tem é de desconexão, como se o espaço urbano ao redor, em sua
presença preponderante, acentuasse a solidão dos protagonistas. Como cães errantes que vagam
sem destino certo nas grandes metrópoles, os personagens procuram transformar alguns não-
lugares987 – paradas de ônibus, o banheiro de um supermercado, uma casa abandonada – em lugares
habitáveis. Embora essa desconexão seja visível no filme do cineasta malaio, ao mesmo tempo,
através da rigorosidade dos enquadramentos e dos planos, o que se observa é a tentativa de
apresentar a cena através de um ponto de vista não-humano, o que leva à imersão dos personagens
na paisagem. Na constituição dos planos, os personagens aparecem como que engolfados na
grandiosidade da paisagem (figuras 6,7,8,9). A paisagem, aqui, não é aquela orientada pelo modelo
clássico e ocidental, mas remete a uma concepção oriental, que não considera a perspectiva linear
da pintura ocidental. Na pintura chinesa, por exemplo, diferentemente da perspectiva linear que
supõe um ponto de vista privilegiado e uma linha de fuga, a perspectiva é qualificada, conforme
986 STRAY Dogs (Cães errantes). Diretor: Tsai Ming Liang. Taiwan/France. 2h16 min. Cor, 2013.
987 cf. AUGÉ. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade, Campinas: Papirus, 2003.
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salientou François Cheng, ora de “aérea”, ora de “cavalière”, uma espécie de perspectiva dupla: “O
pintor, em geral, se supõe estar em um elevado, fruindo assim de uma visão global da paisagem[...];
mas ao mesmo tempo, ele parece se mover através do quadro, desposando o ritmo de um espaço
dinâmico e contemplando as coisas de longe, de perto e de diferentes lados [...].988 A pintura, nesse
sentido, deve suscitar naquele que a contempla o desejo de se encontrar naquele espaço, de também
fazer parte do quadro. E, ainda segundo o escritor chinês François Cheng, “[d]esde que inserimos
personagens em uma paisagem, os traços utilizados para desenhar estes personagens devem estar
em acordo com aqueles utilizados para desenhar as montanhas, as rochas, as árvores e as plantas”.989
A pintura chinesa, neste sentido, considera a comunhão entre o homem e a paisagem, ela figura o
contemplador no interior da paisagem, como um elemento entre outros. Nesta pintura, portanto,
existe o apagamento do sujeito que é reabsorvido no universo, além disso, a profundidade
horizontal (linha do horizonte) é substituída pela disposição vertical dos planos:
988 CHENG, François. Vide et plein. Le language pictural chinois. Paris : Éditions du Seuil, 1991, p. 101. “Le peintre,
en général, est censé se tenir sur une hauteur, jouissant ainsi d’une vision globale du paysage [...] ; mais en même temps,
il semble se mouvoir à travers le tableau, épousant le rythme d’un espace dynamique et contemplant les choses de loin,
de près et de différents côtés [...]”.
989 CHENG, François. Souffle-Esprit. Textes théoriques chinois sur l’art pictural. Paris : Éditions du Seuil, 1989, p.
145. “Lorsqu’on insère des personnages dans un paysage, les traits utilisés pour dessiner ces personnages doivent être
en accord avec ceux utilisés pour dessiner les montagnes, les rochers, les arbres, les plantes, etc”.
990 COLLOT, Michel. La Pensée-paysage. Arles: Actes Sud; École Nationale Supérieure du Paysage, 2011, p.92. “Dans
ce dispositif, il est rare que la ligne d’horizon apparaisse nettement tracée : l’espace tend à s‘illimiter, parce qu’il ne se
réduit pas au champ visuel d’un seul observateur. Si l’horizon paraît brouillé, c’est que le point de vue est flottant : il
n’est ni fixe ni même unique. Lorsque le tableau adopte un format horizontal, il fait se dérouler sous nos yeux un
panorama mobile, qui présente divers aspects du paysage, correspondant à autant de points de vue différents”.
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Assim, apesar de termos salientado no filme Cães errantes o rompimento dos liames que
uniriam o sujeito ao mundo, o cineasta busca, através da subversão do olhar orientado pelo ponto
de vista humano, ou por um ponto de vista fixo, que toma o homem como medida, mostrar que
existe uma ligação possível entre o sujeito e o mundo. E esta ligação é dada pela paisagem enquanto
experiência sensível do espaço, uma paisagem dessubjetivizada, dada no contato naïf do sujeito com
o mundo. Como afirmou o filósofo Maurice Merleau-Ponty acerca da pintura de Cézanne, a
tentativa de romper com ponto de vista humano, com o mundo de objetos fabricados pelo homem,
busca desvelar o fundo de natureza inumana onde o humano se instala:
Vivemos em meio aos objetos construídos pelos homens, entre utensílios, casas,
ruas, cidades e na maior parte do tempo só os vemos através das ações humanas
de que podem ser os pontos de aplicações. Habituamo-nos a pensar que tudo
isto existe necessariamente e é inabalável. A pintura de Cézanne suspende estes
hábitos e revela o fundo de natureza inumana sobre o qual se instala o homem.
Eis por que suas personagens são estranhas e como que vistas por um ser de
outra espécie.991
991 MERLEAU-PONTY, Maurice. A dúvida de Cézanne. In: O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p.131.
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A busca de uma paisagem dessubjetivada pode ser relacionada aqui àquilo que o filósofo
francês Gilles Deleuze compreendeu como a paisagem não-humana da natureza, o seu caráter de
percepto:
A paisagem, antes de ser algo da ordem da contemplação, se configura como esse fundo
inumano no qual o humano se instala. A experiência sensível, enquanto fonte de sentido, desvela
uma relação originária, primordial entre sujeito e mundo, tal qual ocorre na pintura de Cézanne,
que intenta captar a paisagem não humana da natureza:
Dessa forma, na pintura de Cézanne, por exemplo, não faria sentido falar da separação
conceitual entre alma e corpo, inteligência e sensação. O fundo desumano, a “fulguração do mundo
antes do homem” é o solo primitivo onde se dá a experiência. O percepto estaria, nesse sentido, nesta
experiência sensível do sujeito com o mundo, nessa relação primordial, onde se dá a experiência da
paisagem. Mas é a própria arte que também pode ser compreendida como um composto de
sensações, um bloco de perceptos e afectos que elevam a percepção ao estatuto do percepto, uma
percepção sem sujeito. Quer dizer, o próprio sujeito se desfaz em favor de um modo de
individuação impessoal, neutro. A paisagem, de acordo com essa leitura, deixa de ser uma porção
do espaço captada a partir de um ponto de vista fixo, único. Ela é da ordem de um encontro pré-
reflexivo, pré-subjetivo, entre aquele que caminha e tudo aquilo que o rodeia, sendo configurada
nesta zona intermediária, fronteiriça, de ressonância mútua. O encontro com a paisagem é um
992 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São
Paulo: Editora 34, 1992, p.213.
993 CHAUÍ, Marilena de Souza. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins
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Paisagens em ruína
994 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São
Paulo: Editora 34, 1992, p.218-219.
995 BUCK-MORSS, Susan. A tela do cinema como prótese de percepção. Trad. Ana Luiza Andrade. Florianópolis, SC: Cultura
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potência anterior aos corpos dos sujeitos que atravessam estes espaços, ou seja, quando a paisagem
é dada enquanto ruína.
Georg Simmel, em seu clássico ensaio intitulado A ruína, afirma que a arquitetura é a mais
sublime vitória do espírito sobre a natureza. É o domínio do humano sobre o ambiente. No
entanto, quando um edifício rui, quer dizer que as meras forças da natureza começam a predominar
sobre a obra humana: a equação entre natureza e espírito desloca-se neste sentido em favor da
natureza, e o desabamento do edifício aparece agora “como a vingança da natureza pela violação
que o espírito lhe impingiu como se a formação artística houvesse sido apenas um ato de violência
do espírito, ao qual a pedra se submeteu a contragosto, como se ela deitasse fora paulatinamente
essa canga e retomasse às leis autônomas de suas forças”.996
996 SIMMEL, Georg. A Ruína. In: SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold. Simmel e a modernidade. Brasília: UnB. 1998. p.
137.
997 Oxidação geralmente esverdeada que aparece na superfície do bronze e do cobre quando expostos ao ar durante
algum tempo. Depósito escurecido que se forma sobre objetos ou prédios antigos. Ex.: a p. de um monumento, de
um castelo (HOUAISS, 2009, v. “pátina).
998 HUYSSEN, Andreas. Nostalgia for ruins. Grey Room, No. 23 (Spring, 2006), p.16. “Masonry and soil are
organically coupled and made to look as if the ruins have grown out of the innards of the earth”.
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Sentem-se [Os Japoneses] atraídos pelo tom escurecido de uma velha árvore, pela
aspereza de uma rocha ou até mesmo pelo aspecto sujo de uma figura cujas
extremidades foram manuseadas por um grande número de pessoas. A todos esses
sinais de uma idade avançada eles dão o nome de saba, que significa, literalmente,
‘corrosão’. Saba, então, é um desgaste natural da matéria, o fascínio da antiguidade,
a marca do tempo, ou pátina. Saba, como elemento do belo, corporifica a ligação
entre arte e natureza.999
As ruínas no filme de Tarkovski, além do seu caráter estético e da marca do tempo que
pousa sobre as coisas, revelam também a força da natureza, da vida, a força autônoma da “zona”
que independe dos sujeitos para realizar os seus movimentos: “[a] Zona não simboliza nada, nada
mais do que qualquer outra coisa em meus filmes: a zona é uma zona, é a vida, e, ao longo dela,
um homem pode se destruir ou se salvar”.1000
Os sujeitos que caminham por ruínas geralmente se sentem desconectados, o que ocorre
com os personagens do cientista e do professor, sendo que apenas o Stalker, espécie de iniciado,
1001
sabe se orientar sensivelmente pelo espaço. No filme de Jim Jarmusch, Permanent vacation ,o
personagem também se sente desconectado, como se o liame que o unia ao mundo houvesse
rompido. Essa sensação de não pertença pode ser observada no filme, quando o personagem
perambula dentre algumas ruínas urbanas (figura 10 e 12). Como afirmou Nelson Brissac Peixoto,
no livro Cenários em ruína, “para o estrangeiro, aquele que não tem mais nada, tudo é ruína”1002.
Ruínas, que neste caso se assemelham mais a escombros (figura 11 e 13), pedaços de ferro, cimento
e pedra, como se não possuíssem mais um componente histórico. A paisagem, dada como
escombro, é percebida através dos deslocamentos sem rumo certo do personagem. A cidade se
configura como um labirinto a-cêntrico, percorrida pelo protagonista errante (figura 10). Mas aqui
também as ruínas demonstram aquela força da natureza mencionada por Georg simmel, força de
uma potência não-humana.
999 OVCHINNIKOV apud TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
p. 66-67).
1000 ______. Esculpir o tempo, p.241.
1001 PERMANENT Vacation. Direção: Jim Jarmusch. EUA. 1980. Colorido, 71 min.
1002 PEIXOTO, Nelson Brissac. Cenários em ruínas: a realidade imaginária contemporânea. São Paulo: Editora
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Figura 10: Frame do filme Permanent Figura 11: Frame do filme Permanent
Vacation (1980), de Jim Jarmusch. Vacation (1980), de Jim Jarmusch.
Figura 12: Frame do filme Permanent Figura 13: Frame do filme Permanent
Vacation (1980), de Jim Jarmusch. Vacation (1980), de Jim Jarmusch.
Se em filmes como Permanent Vacation e Cães Errantes predomina uma visão em desalento,
a New York de Jem Cohen e a “zona” de Stalker abrem a possibilidade de uma aproximação
sensível da cidade. Em Stalker, as ruínas pós-apocalípticas remetem àquela força da natureza da
qual falara Georg Simmel, um mundo autônomo, erigido sem a tutela do homem – ainda que tenha
1003
sido provocado por este. Em Lost Book Found , a cidade é percebida em sua singularidade.
Captada por vários pontos de vista, a cidade se mostra ao espectador através dos fragmentos,
recortes do espaço urbano acompanhados pela voz off do narrador. Vista do alto de um prédio
(Figura 14), do mesmo plano da rua (figura 17), ou através de alguns enquadramentos oblíquos
(Figura 16), a paisagem aqui também não se embasa no modelo clássico. Predominantemente
urbana, ela se avizinha do “cine-olho” do cineasta russo Dziga Vertov. Jem Cohen busca captar o
espaço urbano em sua singularidade ao tentar captar o invisível das cidades: detalhes, fragmentos,
imagens efêmeras e precárias, prestes a desaparecer. O invisível também habita nas diversas
inscrições que a cidade acolhe em seus muros, placas e vidros. Muitas vezes ilegíveis, apenas um
emaranhado de grafias (figura 15), estas inscrições são como marcas, rastos de histórias de
transeuntes que configuram um grande palimpsesto, ilegível, mas cuja presença dos signos
estilhaçados atestam a circulação de pessoas e afetos pelo espaço.
1003 LOST book found. Direção: Jem Cohen. EUA. 1996. Colorido, 37 min.
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Conclusão
Pode-se dizer que o espaço se transforma em paisagem nos filmes aqui considerados
quando, salientaremos mais uma vez, essa deixa de ser mero cenário para o desenrolar de uma ação.
A paisagem se dá no encontro fundamental entre o sujeito e o espaço, ela é da ordem dos devires,
dos atravessamentos, das fronteiras. Os personagens afetam e são afetados por tudo aquilo que os
rodeia, e é nessa zona que se configura a paisagem. Ela não está subordinada ao olhar de um sujeito
constituidor, soberano, uma vez que os personagens a experienciam de maneira intensiva,
imanente. Se as cidades nos filmes aqui selecionados se apresentam como cidades desoladas,
cidades em ruínas ou devastadas, ao mesmo tempo é possível observar, através da construção dos
planos e dos enquadramentos, uma abertura às singularidades do espaço, como ocorre no filme de
Jem Cohen, ou até mesmo colocando em questão a antiga aliança entre o sujeito e o mundo, caso
sobretudo dos filmes Stalker e Cães errantes. Em Permanent vacation, entre escombro e ruína, a
paisagem urbana também se liga de alguma maneira a Allie, o protagonista, jovem errante urbano
que vive às margens do sonho americano de maneira melancólica e desencantada. A paisagem,
enquanto ruína, revela uma potência primordial, incrustada na pátina, nos musgos, nos destroços,
assim como o nomadismo urbano do protagonista também revela uma força desterritorializante,
um desejo de rebelião contra a funcionalidade, contra a divisão de trabalho, como salientou o
sociólogo Michel Maffesoli, “contra uma descomunal especialização a transformar todo o mundo
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numa simples peça de engrenagem na mecânica industriosa que seria a sociedade. Assim se
exprimem o necessário ócio, a importância da vacuidade e do não-agir na deambulação
humana”.1004
1004
MAFFESOLI, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.32-33.
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Introdução
A Ordem Terceira dos Dominicanos baiana teve sua fundação em 30 de Outubro de 1723,
com sede, inicialmente no Mosteiro de São Bento e posteriormente transferiu-se para a Igreja de
Nossa Senhora da Palma onde ordenavam os Agostinhos Descalços. Segundo o Livro I de
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José Antônio da Cunha Couto foi um artista que também muito produziu para esta igreja, mas se trata de uma
1006
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1007 MÂLE, Émile. El arte religioso de la Contrarreforma. Estudios sobre la iconografía del final del siglo XVI y de los siglos XVII e
XVIII. Trad. Ana Maria Guasch. Madrid: Ediciones Encuentro, 2001, p. 411.
1008 A pintura oitocentista estava presente no conjunto de obras aprovadas no contrato de reformas datado de
12/12/1875, no entanto parece ter sido feita em 1887, quando a Comissão da Ordem teria tratado com Cunha Couto
sobre esta e ainda mais 4 quadros para o arco cruzeiro. Arquivo da Venerável Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão
[A.V.O.T.S.D.G.] Atas 1869-1882, f. 43v e 99r.
1009 Documentos indicam que em 1875 a Irmandade já havia discutido sobre a fatura de uma pintura neste local, e que
o nome de Cunha Couto deveria ser consultado para executá-la. A atual restauração [2016] identificou intervenção
sobre a mesma e tem feito limpeza, consolidação da camada pictórica e preenchimento de perdas.
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com tinta única, densa e uniforme, possui pintura imitando pedra e presença de prata nos filetes
que as separam, com possível datação do século XVIII.
Pelo limite deste texto estes personagens não serão interpretados em suas identificações e funções. Em texto mais
1010
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dos Apóstolos Pedro e Paulo, como se representasse a aceitação da parte celestial, faltando assim,
a lei dos homens. Foi quando o referido Papa teve uma visão, semelhante a que o fez aprovar a
Ordem Franciscana (1209), culminando no consentimento para fundação da Ordem Dominicana
com expedição da Bula, desde que São Domingos tomasse como referência uma (Ordem) já
aprovada. Sua escolha foi pela Regra de Santo Agostinho, acrescentando-lhe ainda o silêncio, o
jejum e a pobreza. O Sonho do Papa Inocêncio III revela exatamente a sua igreja caindo sendo
sustentada por São Domingos, ou ainda, que a Ordem dominicana seria um dos pilares da Igreja.
Na pintura estão representadas as figurações os dois Santos [Domingos e Francisco], exatamente
os que, em visões separadas, foram presságios do Papa; àqueles que estariam predestinados a salvar
a Igreja das heresias.
Figura 2 – O Sonho do Papa Inocêncio III, XVIII Figura 3 – A Batalha contra os Albigenses: queima dos
Igreja da Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão. livros, XVIII. Igreja da Ordem Terceira de São Domingos
Fonte: fotografia digital. A autora. 2015. de Gusmão. Fonte: fotografia digital. A autora. 2015.
A tela que retrata a queima de livros traz [Fig.03], na sua identidade, a história dos Cátaros,
uma espécie de sociedade secreta da Idade Média francesa (Languedoc) que refutava as crenças do
catolicismo e, sobretudo, a figura papal. Segundo os escritos, esta sociedade então considerada
herege, certa noite, ao redor de uma fogueira, discutia acerca dos escritos de São Domingos.
Lançaram ao Juízo Divino a defesa de quem estaria certo, atirando seus livros heréticos à fogueira,
junto com os que continham os ensinamentos de São Domingos; a ideia era que um milagre
revelasse o que estaria certo, o que possuísse a verdade. Por três vezes repetiram a ação e em todas
elas o pergaminho dominicano saía do fogo intacto. Mateus (10:20) trata do ocorrido registrando
que no momento do julgamento, não seriam eles que falariam, mas o Espírito do Pai. O milagre
relacionado à vida de São Domingos identificado como A Batalha contra os Albigenses: queima dos
livros, terminou convertendo grande número de cátaros, que voltaram à Igreja.
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A terceira tela que compõe a decoração deste espaço retrata o Milagre da ressurreição do jovem
Napoleão Orsini [Fig.04]. A narrativa iconológica trata quem em 28 de fevereiro de 1218 São
Domingos estava reunido com alguns Cardeais [Ugolino, Estevão de Fossanova e Nicolau] e a
Abadessa de Santa Maria do Tibre com propósito de receber todos os direitos sobre o Convento
de São Sisto (Itália). De repente entrou um homem assustado informando que o jovem Napoleão,
sobrinho do Monsenhor Estevão, sofreu uma queda do cavalo e faleceu. Dirigindo-se ao local,
vendo o corpo do rapaz mutilado e ferido, São Domingos pediu que o resguardassem em um
quarto fechado enquanto preparasse a missa do óbito. Durante a celebração, no momento em que
a hóstia era erguida, o Santo foi arrebatado e com ela também foi erguido do chão aos olhos de
todos os presentes. Ao final, prostrou-se perto do corpo em oração e choro, tocando a face e o
corpo do jovem, endireitando-o, três vezes. Ao final da terceira prostração, fez o sinal da cruz sobre
o morto e com as mãos erguidas para o céu e novamente com o corpo arrebatado acima do chão,
clamou em voz alta: "Jovem Napoleão, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, levanta-te!". E
imediatamente ele levantou e ainda pediu o que comer e o que beber, diante de todos.
Figura 4 – Milagre da ressurreição do jovem Napoleão Figura 5 - O Milagre da Multiplicação dos Pães, XVIII.
Orsini , XVIII. Igreja da Ordem Terceira de São Domingos Igreja da Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão.
de Gusmão. Fonte: fotografia digital. A autora. 2015. Fonte: fotografia digital. A autora. 2015.
A quarta e última tela retrata o milagre da Multiplicação dos pães [Fig.05]. Segundo a
iconologia, o Convento Dominicano de São Sisto vivia de esmolas pedidas de porta em porta e um
dia o Procurador avisou ao Santo que não havia o que comer além de três pães para alimentar a
comunidade formada por 43 Irmãos. São Domingos pediu que repartisse o que havia na quantidade
exata para cada Irmão e disponibilizasse no jantar, na hora habitual. Reunidos em volta da mesa e
a frente de sua porção, fizeram a oração e sentaram-se. Sensibilizado com a situação, São Domingos
continua em oração, quando de repente anjos adentram o recinto segurando cestos cheios deste
alimento e os colocam sobre a mesa do Prior.
Para reforçar as narrativas acerca da vida deste Santo retratada nas telas, ou mesmo
inversamente, o forro possui uma cena em que São Domingos observa Cristo jorrar do seu peito
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um jato de sangue que se dirige diretamente ao globo terrestre em que o Santo tem sob os pés. Ao
lado direito do Cristo está sua mãe, com uma mão sobre o peito e a outra segurando o Rosário e
direcionando-o a São Domingos, seu propagador, tendo também o jorro sanguíneo transpassando
exatamente pela medalha que tem nele. Do lado esquerdo um anjo segurando a cruz, que representa
simultaneamente a salvação pela morte em Cristo e a igreja em sua simbologia.
São Domingos olha para o alto, em direção ao Cristo e está com os braços abertos,
aceitando, mais uma vez, a doação do sangue do pai em auxílio para a salvação da vida humana.
Resplandece o halo iluminado em volta de sua cabeça e no alto a estrela, um dos seus atributos.
Aos seus pés e um pouco mais a frente, também estão outros dos seus atributos sob o globo
terrestre: o ramo de açucena, o cão com tocha na boca sentado sobre um livro – as regras da
Ordem. O livro, ainda fechado, pode representar que São Domingos ainda não havia conseguido
propagar por toda a terra seus ensinamentos, crendo na doação do Pai, que neste momento
entregava seu próprio sangue a humanidade. Ao lado direito de São Domingos está o anjo Gabriel
segurando com a mão esquerda o cálice sagrado com a hóstia, com a mão direita uma espada com
labareda na ponta, e calcando com o pé esquerdo a pré-figuração da heresia, sem vestes e cobrindo
a face com o braço. Um livro fechado e outro aberto apoiado diagonalmente sobre ele [como se
em posição de leitura], ao lado desta personificação induz, neste momento, a entender que o anjo
está exorcizando-a ou repelindo-a, pois seu posicionamento remete a essa interpretação. Além
disso, a heresia representava a indisciplina eclesiástica que culminava na queda da Igreja pelo
Ocidente. Outros anjos representados em meio corpo ou só cabeça e asas compõem a cena. “São
Domingos veio a ser uma luz extraordinária de caridade e de zelo apostólico, que dissipou grande
1011
parte das trevas das heresias e restabeleceu a verdade em milhares de corações vacilantes.”
Esta pintura reforça iconograficamente a presente no forro da nave como se verá adiante.
Na parte superior da igreja há duas grandes telas que também merecem atenção pela sua
representatividade em relação ao entendimento do que retrata a cenografia do forro da nave. Uma
está no corredor e a outra na Sala dos Irmãos ou Salão Nobre. Será explorada a leitura da do Salão
Nobre por estar mais completa até o momento.
A do São Nobre, até o presente momento foi interpretada pela historiografia como sendo
Nossa Senhora do Rosário com rosas vermelhas no colo e Nossa Senhora do Rosário entregando o Rosário a São
Domingos [Fig.06]. No entanto, o Santo já o possui, e na referida pintura claramente mostra ele
entregando-o a uma jovem, ou seja, o Rosário sendo perpetuado para além das figuras sacras, para
o povo; a missão a que este se destina sendo cumprida. Esse tem ao final uma cruz coroada.
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Um pouco mais atrás outra Santa, a Catarina de Sena (1347-1380), jovem analfabeta italiana
proclamada, pela sua doutrina espiritual, “Doutora da Igreja”. Ela recebe das mãos do Menino
Jesus também um Rosário, mas a cruz sacerdotal que tem na extremidade tem relação direta a uma
de suas visões enquanto criança quando Jesus lhe apareceu, revestido de paramentos sacerdotais, e
a abençoou traçando no ar três cruzes em sua direção. Nossa Senhora está sentada em um trono,
mais alta que todos os personagens, segurando com a mão esquerda um livro aberto, e com a direita
o braço do Menino, que está de pé sobre uma banqueta almofadada. Um tecido branco circula o
corpo do Menino apenas tapando a genitália. Ele olha para Santa Rosa de Lima, jovem leiga do
Peru, primeira santa canonizada do novo Mundo.
Na cena ainda há dois anjos mais crescidos que seguram cestas com rosas e Rosários, um em voo
e o outro de pé olhando para São Domingos. Toda ela é composicionada em escalonamento
crescente, pela ordem hierárquica dos personagens, com pelo menos 5 níveis. No inferior estão as
jovens representando o povo; depois a genealogia sacra menor com as Santas, sendo que Santa
Catarina superior a Santa Rosa, como se pode observar no próprio contexto biográfico de ambas;
no nível acima destas está São Domingos; e acima dele a Nossa Senhora. O Menino Jesus não está
assentado em nenhum dos degraus, mas sua localização o coloca acima do Santo, à frente de sua
Mãe, e ainda no centro da composição. Duplas de querubins ainda compõem a representação do
espaço celestial.
A presença destas duas santas ocorre pela relação direta entre ambas e São Domingos, e
também entre si. Santa Catarina desde criança apresentou dons místicos, já tendo sido abençoada
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por Jesus em uma visão, e ainda jovem viu São Domingos aparecer-lhe em sonho com outros
fundadores de Ordens religiosas diversas, que procuravam atraí-la para fazer parte de uma delas,
sendo ele quem a “levou”. Segurando na mão um lírio branco e radiante, e o hábito das Irmãs
Dominicanas da Penitência dobrado sobre o braço, disse-lhe: “não deves temer nenhum obstáculo,
1012
pois, segundo teu desejo, eu te asseguro que vestirás este hábito.” O voto da jovem trouxe
angústia a mãe que via a filha irredutível na escolha pela obediência a Deus e em castidade corporal,
e porque não aceitar, ela adoeceu, projetando em seu corpo a dor espiritual. Após a comunhão em
um Domingo de Ramos, Catarina foi arrebatada em êxtase, chegando a subir tão alto que recebeu
estigmas através de “[...] cinco raios de sangue, dirigidos para minhas mãos, meus pés e meu coração
1013
[...]” como relatou. Convertida à Ordem, e ao lado de São Domingos, foi importante líder
espiritual em uma época de grandes conflitos de resgate cristão, exercendo inteligente persuasão
em prol da Igreja dividida. Seus atributos estão relacionados à conversão dominicana [hábito
dominicano], ao sofrimento e a morte de Jesus Cristo pela salvação da humanidade como seu ideal
[crucificado], a representação das chagas de Jesus – pedido pessoal [estigmas], a disposição de
suportar a dor em benefício ao outro [coroa de espinhos], ao casamento místico [anel], a devoção
à Santíssima Virgem [ramo de açucena], ao título de escritora da Igreja - seus “Diálogos” [livro].
Há ainda outros que não estão presentes por não estarem relacionados à cena.
Santa Rosa de Lima nasceu Isabel Flores de Oliva (1586-1617). Sua mãe viu seu rosto
transformar em uma rosa em uma visão, e posteriormente a Virgem lhe aparecera para confirmar
tal premonição, seu nome então foi mudado para Rosa de Santa Maria. Santa Catarina entra na vida
de Santa Rosa por vontade desta, que a quis como protetora e seguidora. Aos 20 anos, recebeu o
hábito dos terceiros dominicanos das próprias mãos de Santa Catarina, e em outro momento
recebeu de Jesus o privilégio de fazê-la sua esposa. Há vários atributos que lhe acompanham, e
estes dependem da cena em que esteja inserida. A presença de Jesus ainda menino nesta tela reforça
a representação de Santa Rosa em alusão aos muitos encontros que teve com ele. A flor [rosa] está
para esta santa com o significado de ser a mais perfeita e perfumada, tendo sido assim ela
apresentada por São Domingos a Nossa Senhora, e essa a Deus1014.
Neste contexto, e a partir das observações aqui exploradas, há uma pintura com temática
diminuída em relação à sua extensa e profunda iconografia que merece uma identidade mais
coerente: A propagação do Rosário pelos Pregadores Dominicanos [São Domingos, Santa Catarina Sena e Santa
Rosa de Lima], Nossa Senhora e Seu Filho [Menino Jesus].
1012 SESÉ, Bernard. Catarina de Sena: uma biografia. São Paulo: Paulinas, 2008. p.20.
1013 SESÉ, 2008. Catarina..., p.58-59.
1014 RÉAU, Louis. Iconografía del arte Cristiano. Iconografía de los santos. P-Z. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2000. p.153-
154; ROIG PBRO, Juan Ferrando. Iconografía de los Santos. Barcelona: Ediciones Omega, 1950. p.240-241.
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O estudo sobre a vida de São Domingos1015 e os religiosos ligados a ele, relatam claramente esses
episódios, e o conjunto das telas citadas e a cenografia central presente no forro da Sacristia, cria
um espaço narrativo completo sobre sua iconografia que vai, de certa forma, respaldar o que está
presente no forro da nave1016.
1015 VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: Vida de Santos. Trad. Hilário Franco Jr.. São Paulo: Companhia das Letras.
p.614-631
1016 Ainda na Capela Mor há uma pequena parte de decoração azulejar com símbolos e frases que tratam sobre a
biografia do Santo. A parte superior, em que havia cenas narrativas, se perdeu com a reforma ocorrida no século XIX.
Se no teto desta capela também tivesse pintura, a mesma se perdeu com a respectiva reforma.
1017 OTT, Carlos. A escola Baiana de Pintura. Bahia: Editor Emanuel Araújo, 1980.
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1018 VICENTE, Mônica Farias Menezes. A pintura de Falsa Arquitetura em Salvador: José Joaquim da Rocha 1750-1850. 1024
f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais,
Salvador, Bahia, 2011, p. 755-756; VICENTE. Mônica Farias Menezes. António Simões Ribeiro, José Joaquim da Rocha e a
Escola de pintura quadraturística na Bahia: autoria e atribuições. In.: OLIVEIRA, Aurélio de; PEIXOTO, José C.;
GONÇALVES, Eduardo; PEREIRA, Varico (orgs.). O Barroco em Portugal e no Brasil. Braga. Braga, Portugal: Confraria
do Bom Jesus do Monte, 2012, p.393-409; VICENTE. Mônica Farias Menezes. Tesouros no alto: o patrimônio artístico,
científico e iconográfico nas pinturas de teto da Bahia. In.: SANT’ANNA, Sabrina Mara; CAMPOS, Adalgisa Arantes; FREIRE,
Luiz Alberto R. (orgs.). Cultura artística e conservação de acervos coloniais. Belo Horizonte: CLIO/UFRB, 2015, p.163-181;
310-313.
1019 Neste momento fui convidada inicialmente a emitir um parecer sobre a respectiva obra, e a partir daí a fazer parte
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18821027 A Irmandade decide por outro pintor a continuar a restauração da pintura da nave e tem predileção por José
Antônio da Cunha Couto, ao invés do espanhol e fundador da Escola de Belas Artes, Miguel Navarro y
Cañyzares.
18881028 Conclusão da restauração por José Antônio da Cunha Couto.
XIX1029 [...] [José Joaquim da Rocha]. Homem culto e de/ lettras, foi Rocha igualmente um artista de merecimento,
/ que á posteridade recommendou-se; [...] quanto pelos seus importantes trabalhos, ain=/da em grande
parte existentes, como gloriosos padrões de / sua memoria distincta: / - Na magnifica cúpula da igreja matriz
/ de Na. Sra. da Conceição da Praia. /[...] Na igreja da ordem 3ª / de São Domingos, com paineis na
Sacristia. Depois retoca- / da a cupula. [...]
idem1030 Bento José Rufino Capinan retocou o teto da igreja da Ordem 3ª de S. Domingos “original do mestre capital
José Joaquim da Rocha”.
19501031 A folha 132, situada no Livro I de Acórdãos da Irmandade, cujo teor era o contrato de execução da referida
pintura em que apareceria a autoria da obra está desaparecida.
19801032 Afirmativa que a pintura do forro da nave pertence ao Mestre José Joaquim da Rocha, tendo sido pintado
“por volta de 1781”.
20111033 Historiadora questiona autoria proposta por Ott, pois a pintura que se apresenta[va] foge por completo dos
padrões estéticas, cromáticos, compositivos e geométricos do autor, além da ausência de comprovação
documental. “Se a pintura da nave da igreja da Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão de Salvador
pertence, de fato, ao José Joaquim da Rocha, teria que ser algo que estava oculto, velado, ou por baixo do
que se representava hoje, pois em nada a que estava ali se parecia com a gramática figurativa e paleta artística
do pintor”.
20141034 Diagnóstico: Houve intervenções e repinturas completas no forro da nave. Foram várias intervenções, onde
algumas estão documentadas e outras não. Segundo o restaurador responsável as não documentadas foram
feitas em tempos mais modernos.
06/2014 Inicia-se a restauração artístico-decorativa mais completa que esta igreja tenha merecido em tempos mais
modernos, envolvendo equipe multidisciplinar e acompanhamento historiográfico para as pinturas, dos
forros e painéis, então indicadas terem saído do pincel de José Joaquim da Rocha e, sobretudo a de referência
ilusionista [nave].
Em relação às intervenções ocorridas na pintura deste forro, buscou-se entender quem as fez, com
intuito de tentar traçar um relato substancial do que de fato ocorrera e em que situação, visto que
a quantidade de modificações constatadas, em níveis técnico e plástico, de certa forma auxiliava na
construção de uma possível cronologia no que se refere a estas ações. Deste modo, entender quem
eram Bento Capinan, Rufino de Sales e Cunha Couto, além de resgatar os estudos já existentes do
Mestre Rocha, foram essenciais para fundamentar o que ocorreu com esta obra.
Sobre José Joaquim da Rocha (1737-1807) cabe dizer que a solidez de seu conhecimento sobre
projeção de falsas arquiteturas assim como figurações, parecem ser substancialmente profundas em
mesma proporção aos conhecimentos acerca de técnicas artísticas e iconografia sacra. Embora
pouco acanhado na parte figurativa se correlacionado aos pintores europeus, vê-se claramente que
o uso de cores, sobretudo em suas passagens tonais e esfumato, não o tira de uma formação
europeia consagrando, para posteridade, sua aprendizagem mestra. No que consiste a parte da
d´arte de Pintura na Província da Bahia. s/a, s/d, 8 folhas figuradas [16 páginas]. (Cota II 33, 34,10). f.1.
1030 _______, Noções..., f.18.
1031 ALVES, Marieta. Ordem 3ª de São Domingos. Pequeno Guia das Igrejas da Bahia, vol. 6. Prefeitura Municipal de
Salvador, 1950.
1032 OTT, A escola Baiana de Pintura. p. 71.
1033 VICENTE, 2011. A pintura de Falsa Arquitetura..., p. 755-756.
1034 MAIA, Júlio César Garrido. Relatório de Restauro da igreja da Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão. MEHLEN
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1035 Refere-se à profunda pesquisa que esta autora tem dedicado ao artista desde 2006, com Dissertação de Mestrado
defendida em 2011 e em continuidade no Doutorado a partir de 2015.
1036 Refere-se aqui a concorrência que este artista participa pleiteando a decoração de vários espaços da igreja de Nossa
Senhora da Saúde e Glória, principalmente “com pintura em Perspectiva”. Rocha não foi o escolhido, mas o fato de
se apresentar como Mestre e para uma obra grande, em importância de tamanho, como indicava a Mesa da Irmandade,
o insere em um grupo específico de artistas com conhecimento para a tipologia pictórico-decorativa que se desejava,
então avançada na Europa. Sobre este contrato ver Arquivo da Irmandade de Nossa Senhora da Saúde e Glória
[AINSSG] Lv. de Resoluções 1767-1888, fos.12r-15v e em leitura mais completa e atual VICENTE, 2011. A pintura de Falsa
Arquitetura..., 2011, p. 575-585; 968-969.
1037 Ver a cadeia de formação que atinge a Escola em VICENTE, 2011 A pintura de Falsa Arquitetura..., p. 269-270 e
942.
1038 BNRJ/CCU. Noções..., f.18.
1039 QUERINO, Manuel Raymundo. Artistas Bahianos – indicações biographicas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909,
p.71. QUERINO, Manuel Raymundo. Artistas Bahianos – indicações biographicas (2ª edição melhorada e cuidadosamente revista).
Bahia: Officinas da Empreza A Bahia, 1911, p.72-73.
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Esse pintor está situado na 4ª geração de artistas que receberam ensinamentos de Falsas
Arquiteturas em Salvador1040, incluindo cenografia e perspectiva, mas não atuaram como
Quadraturistas na cidade, ou seja, sabiam manipular as projeções, mas não executaram uma obra
autoral1041. Em relação às pinturas de grande porte, aparecem como restauradores. Isso faz com
que se levante a hipótese de que, em momento que o forro da nave da Ordem Terceira de São
Domingos tenha necessitado intervenção, os Dominicanos sabiam a quem tinham recorrido, visto
que interceder em uma pintura nesta tipologia necessitava conhecimento profundo.
Outra situação que se insere é que, não havendo referências que indiquem ter havido, antes do
início do século XIX, interferência de restauro neste teto, a ação de Bento Capinam tenha sido, a
priori, de preenchimento das falhas entre as tábuas. Isso porque, observando e estudando o
madeiramento e as intervenções, a atual restauração indica ter sido o preenchimento, possivelmente
a primeira delas. Segundo Júlio Maia, a madeira utilizada no forro ainda era verde e ao secar, por
ação natural do tempo e ações climáticas sobre ele, encolheu em sua largura. Ao preencher tais
espaços com lâminas de madeira, que atualmente denomina-se “bacalhau”, houve a necessidade de
retocar esses espaços unificando a pintura. O fato de, possivelmente, não garantir a mesma
tonalidade e uniformidade, as demais áreas também receberam uma policromia mais leve.
A ação de Francisco José Rufino de Sales (1825-1836) nesta igreja, e neste forro, surge, como
indicado na cronologia, quase meio século após a de Bento Capinam. Em estudo breve sobre sua
biografia, constata-se que foi discípulo de Capinam e que foi considerado “[...] habilitado retratista
e prático [...]”1042. Era um nome com currículo artístico na área de restauro em diversas igrejas,
como ele mesmo se apresentou ao pleitear a obra. Duas condições podem ter favorecido a escolha
da Irmandade por este pintor: o fato de ter sido discípulo de Capinam e a comprovação de atuação
em outras igrejas. Qualquer que tenha sido a condição é sabido que na época havia critérios rígidos
acerca de materiais, qualidade e cumprimento na decoração sacra, e ele não fugiria a esta regra. No
entanto, a dissolução do contrato com este artista parte de um problema de uso “inadequado” de
material na capela-mor1043, e pelo que reflete também os documentos, prazo de entrega da reforma
decorativa. Porém os fólios não fazem qualquer referência de como tenha deixado a intervenção
no forro da nave.
1040 Ver Geração de artistas que estavam vinculados ou receberam ensinamentos de Falsas Arquiteturas em Salvador
em VICENTE, 2011. A pintura de Falsa Arquitetura..., p.264.
1041 Bento Capinam foi discípulo de um dos principais alunos de José Joaquim da Rocha, o Antônio Joaquim Franco
Velasco (1780-1833) que é indicado como único continuador da escola do Mestre. VICENTE, 2011 A pintura de Falsa
Arquitetura..., p.270; 285 e 942.
1042 BNRJ/CCU, Noções..., f.9.
1043 Em 01 de agosto de 1880, houve uma vistoria pela Comissão de Obras no douramento da capela-mor, detectando
imperfeição relacionado a uso inadequado do material. Rufino Sales haveria usado pão de prata ao invés de ouro como
acordado no Compromisso. A.V.O.T.S.D.G. Atas 1869-1882, f.159r.
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O pleito da entrada de José Antônio da Cunha Couto (1823/32/371044 – 1894) para atuar no forro
da igreja ocorre em 1880, após o desacordo com Rufino Sales. Parece, no entanto, que este artista
já estaria trabalhando para a Ordem na execução de painéis, pois os documentos relatam seu nome
desde 1875 avançando até, para a mesma indicativa, 18871045.
Cunha Couto já apresenta em suas produções uma estética bastante peculiar ao século XIX,
e o que se percebe é que no momento em que atua, de fato, na referida pintura da nave, evoca
todas as características da época. Para a historiografia, este pintor era “[...] retratista e prático” 1046
e “[...] bem feliz no colorido e na fisionomia [...]” 1047, ao mesmo tempo encontra-se acusações de
ser considerado “plagiador [...] mudando, muitas vezes a sua forma e a pintura, atendendo ao gosto
e modismo de época” 1048. O que é certo é que ele foi o pintor mais requisitado para pintar e efetuar
obras nas igrejas na segunda metade dos oitocentos.
Como referido, não é sabido em que ponto Rufino havia deixado o forro da nave, mas o
que se encontra em 2014 é 100% de repintura com ocultamento de muitos detalhes, elementos
decorativos, retraço do desenho da falsa arquitetura, descaracterização de figurações e elementos
simbólicos e, velação por completo da paleta original e seu esfumato. Tudo isso sobreposto por
sucessivas intervenções. Parece que, após a primeira, o que houve foi superposição de novas
camadas de tinta, não havendo um restauro no modelo clássico de resgate da pintura original. Sobre
este aspecto, duas condições podem ser sinalizadas: a de que a estética barroca deveria ser
minimizada frente ao novo gosto em vigor [Neoclássico] ou, o fato de haver menos tempo para
conclusão da obra, detalhes que exigiriam maior acuidade foram descartados e ocultos com camada
pictórica densa e uniforme por cima. Considerando a segunda condição, os arquivos revelam que
os Dominicanos eram os únicos que ainda não tinham seu templo reformado em avançado século
XIX. As demais Ordens Terceiras presentes na cidade (Franciscana, Carmelita, Boqueirão e
Santíssima Trindade) já abriam suas portas revelando as readaptações ao movimento reformista
oitocentista. No entanto, Mayer1049 afirma que
o fato de as igrejas do período colonial terem sofrido reformas ao longo dos anos,
que consistiam, muitas vezes, na substituição de apenas parte da decoração
interior, fez com que muitas dessas igrejas resultassem com um interior
totalmente eclético, apresentando-se com dois ou três estilos ao mesmo tempo.
153 [7].
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O autor ainda afirma que de um modo geral essas reformas não atingiam a estrutura, a planta, que
continuava com nave única com corredores laterais sobrepostos por tribunas.
Diante desse levantamento, observa-se que a longa obra de restauração nesta igreja, e,
sobretudo o que ocorreu com este forro, objeto deste texto, seguia a intenção de um
embelezamento do que representaria a principal obra de pintura da Ordem propagadora dos
arautos da fé e missão Dominicana. Vê-se claramente que apesar da decoração retabular e outros
elementos decorativos terem sofrido como o novo gosto estético do XIX, ela se mantinha intacta
na sua composição geométrica, temática e iconográfica, sendo apenas retaliada na sua camada
pictórica, ocasionando assim, furtos e incoerências em alguns elementos decorativos e gráficos.
Neste contexto, a leitura que será feita agora, tratar-se-á do que representa a cenografia
deste forro, então motivo máximo da missão desta Ordem, e embora sofrido tantas intervenções
de restauro incoerentes, não deixou que a mensagem litúrgica presente destruísse o verdadeiro
mistério que ela guarda.
São Domingos de Gusmão (1170-1216) foi canonizado em 1234, 10 anos após sua morte.
Não foi considerado um santo popular, mas muitas igrejas e monastérios difundiram sua
iconografia em todo mundo cristão. Foi considerado o criador da Oração do Rosário, que lhe foi
ensinado pela própria Virgem.
Iconograficamente veste hábito bicolor branco com manto preto, cores que representam a
pureza e a austeridade, e tem farto cabelo, podendo, ainda, aparecer com ou sem barba.
Possui como atributos um livro fechado ou aberto em uma das mãos; um ramo de açucena,
representando castidade e sua veneração à Virgem Imaculada; um Rosário recebido pelas mãos da
Virgem; uma estrela vermelha sobre a cabeça; e um cão manchado sentado a seus pés que traz
preso à mandíbula uma tocha acesa. Esse animal é denominado Cão do Senhor (Dominis canis),
aquele que foi encarregado de latir contra os demônios que rondam as almas [Predicador]1050.
Feita apresentação deste orago, que em importante entendimento será auxílio para a etapa
que se segue, realizar-se-á a análise iconográfica e a interpretação da mensagem subjacente à
pintura. Lembremos aqui que as demais pinturas já tratadas neste texto reforçam esta cenografia
da nave e a composição presente nela é carregada de vários símbolos, que serão sintetizados em
seus entendimentos, pelas complexas leituras que podem sugerir, sendo tratados neste momento
os aspetos mais relevantes que auxiliam na compreensão da mensagem que ele esconde.
1050 RÉAU, Louis. Iconografía del arte Cristiano. Iconografía de los santos. A-F. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2000. p.43.
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Uma vez já referido sobre as pinturas presentes na Sacristia e Salão Nobre, e como elas
reforçam iconologicamente a do forro da nave, tratar-se-á desta a partir daqui.
A pintura situada na nave possui tipologia conhecida como Falsa Arquitetura e é formada
por uma composição complexa, impregnada de vários símbolos. Toda a gramática quadraturística
é elaborada para que o olhar do observador seja direcionado para a cenografia central. Nesta cena,
a presença do Santo da Ordem [Domingos] faz com que a interpretação de sua identificação
recaísse, exclusivamente, sobre o momento em que este estivesse ingressando ao reino celestial
sendo recebido por seu companheiro de cristandade [São Francisco], a autoridade sacra máxima
[Cristo] e sua mãe [Nossa Senhora]. No entanto, os estudos aprofundados sobre o programa
iconográfico desta igreja e, para além disso, a missão a qual ela se destina, percebeu-se que há uma
incoerência nesta interpretação. A análise a seguir cuidará de explicar, sendo esta já formatada após
a recente restauração. Deve-se tomar como referência o observador diante da obra.
A cena é celestial e emoldurada por uma balaustrada concheada formada por pináculos e
com vasos de flores sobre cada vértice da concha, padronização comum às pinturas desta época e
nesta tipologia. Está dividida em dois planos, no superior há a presença de Cristo, centralizado,
altivo, semi-nú, com perizônio e manto vermelho envolvendo parte de suas pernas e costas. Nossa
Senhora está ao seu lado esquerdo, e um anjo empunhando uma espada ao lado direito. Estão
rodeados por anjos em várias hierarquias que sustentam as nuvens onde estão situados e se
distribuem pelo céu, em pares ou individualmente. No inferior estão São Domingos e São
Francisco com seus respectivos atributos – veste dominicana, estrela oa alto da cabeça, cachorro
com tocha acesa na boca sobre livro aberto e ramo de açucena [SD]; veste franciscana com cordão
de 3 nós, chagas nas mãos e caveira sobre livro aberto [SF] sobre outra nuvem, mas representando
a parte terrena, pois há entre eles um globo circular azul. Cristo segura flechas com o braço
esquerdo e com a mão direita, semi-fechada, aponta para baixo, Nossa Senhora tem o corpo
levemente inclinado para frente, mão esquerda ao peito e mão direita para baixo como se a
apresentar os dois santos, e estes ainda se posicionam como se recebendo a convocação Deles –
olhando para o alto, de braços abertos [SF] e com mão no peito e em côncava para o globo [SD].
Esta parte superior reforça não se tratar do ingresso de São Domingos ao reino do céu, pois em
nenhum momento ele se movimenta em ascenção ou se posiciona ao centro da cena como se
estivesse indo para o alto. Cristo e Nossa Senhora também não se mostram em recepção, contrário
a isso, a autoridade celestial parace estar em repreensão.
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Buscando relações para traduzir este tratado iconográfico, duas referências foram fulcrais
para a nova leitura, a primeira uma tela situada no Convento de Mafra [Portugal] [Fig. 08] em que
retrata exatamente a mesma cena, e a outra, a iconologia do próprio São Domingos que registra o
seguinte sonho e passagem: estando em Roma para aprovar a regra da sua Ordem, em uma
determinada noite teve uma visão de Cristo em pé no céu, irritado contra a humanidade, e se
preparando para disparar flechas como castigo dos 3 vícios - Orgulho, Avareza e Luxúria. A Virgem
então apareceu para dirimir a cólera do Filho, mostrando-lhe dois monges, São Domingos e São
Francisco, que buscavam um mundo das virtudes opostas - Obediência, Pobreza e Castidade. No
dia seguinte ao sonho, São Domingos, que nunca havia visto São Francisco, fazia suas orações em
uma igreja, e vendo um homem com vestes de frei ajoelhado fazendo também suas orações, o
reconheceu. Correu até ele, pediu que se levantasse, o abraçou e disse: “Sereis o meu companheiro,
caminhemos juntos, amparemo-nos um ao outro e ninguém poderá prevalecer contra nós”. A
partir de então tiveram um só coração e tentaram unir a duas Ordens Religiosas de carismas
diferentes. Não sendo possível, cultivaram forte amizade e carinho um pelo outro e passaram a se
considerar “primos” 1051.
Outra menção de grande relevância é a indicação de São Domingos por Nossa Senhora
para ser o defensor da igreja e, em paralelo, a propagação do Rosário, fato que reafirma a temática
desta pintura através da cartela situada na malha quadraturística e a esquerda da pintura [Fig. 09].
Conforme consta na biografia do Santo estava ele na capela do convento das monjas do primeiro
mosteiro da Ordem Dominicana [Albi] rezando pela redenção das almas quando Nossa Senhora
segurando o Menino Jesus apareceu-lhe e entregou-lhe o Rosário pedindo que rezasse em honra
dos mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos de sua vida e dizendo: “como a saudação angélica foi
1051PHD LACORDAIRE. Vida de São Domingos de Gusmão. Captado em: www.microbook.studio.com, Cap. VII, pág.
51; FRACHET, Gerard de. Lives of the Brothers (Vitae Fratrum), translated by Joseph Kenny. Captado em:
www.josephkenny.joyeurs.com/vitaefratrum.htm Acesso em: 07.Jul.2016.
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o princípio da redenção do mundo, é necessário também que essa saudação seja o princípio da
conversão dos hereges; que assim, pregando o Rosário, você terá um sucesso maravilhoso em seus
trabalhos e os mais empedernidos sectários se converterão aos milhares”. A partir deste momento
São Domingos começou a pregar sobre o Rosário e converter milhares de hereges à fé católica.
Figura 9 – São Domingos recebendo o Rosário das mãos Figura 10 – São Domingos recebendo o hábito dos
de Nossa Senhora, XVIII. pregadores de Nossa Senhora, XVIII.
Igreja da Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão. Igreja da Ordem Terceira de São Domingos de Gusmão.
Fonte: fotografia digital. A autora. 2015. Fonte: fotografia digital. A autora. 2015.
Outra cartela, também situada na malha, no lado direito e oposta em posição à citada acima,
também reafirma a cenografia central deste forro, e retrata São Domingos recebendo o hábito dos
pregadores de Nossa Senhora [Fig. 10]. São Domingos quando optara pela conversão tinha como anseio
missionário levar a Palavra de Deus a “todas as nações”, ao mundo dos crentes de Jesus Cristo.
Este detalhe da cena reforça essa missão e ainda a relação direta do Santo com a Mãe de Cristo,
sendo então ele um dos eleitos para salvar a Igreja e fé.
Apenas estas grandes cartelas reforçariam o plano desta cenografia, mas a sua complexidade
e, talvez, a necessidade de reafirmar a vida e objetivo desta Ordem e o que seu Orago representa,
ainda estão dispostas, ao longo da pintura e em posições cuidadosamente pensadas, outras cartelas
emblemáticas: 8 em tons monocromáticos róseos figurando aves e crianças, e 2 em tons
monocromáticos azuis também figurando crianças. Elas traduzem as Virtudes Cardeais (Justiça,
Temperança, Prudência e Fortaleza) [Fig. 11 a 14], que orientam a conduta a partir da disciplina
dos desejos; duas das Virtudes Teologais (Caridade/Amor Fraternal e Fé) [Fig. 15 e 16], que
representam dons próprios da relação com Deus; duas que traduzem relações diretas com a
iconologia de São Domingos [Dominis Canis] [Fig. 17] e os Mistérios da Salvação [Eucaristia]
[Fig.18]1052; e quatro relacionadas a salvação e expiação cristã através das aves (Fênix, Pelicano e
Pomba) [Fig. 19 a 22].
1052Indica-se a possibilidade que a referência iconográfica para uso como modelos desses Emblemas em que aparecem
crianças [Emblematas] podem ter sido encontradas em Otto Van Veen na Amorum Emblemata [1608] e Raphael Custodis
na Emblemata Amoris [1622].
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Fig. 11
Fig. 15 Fig. 17
Fig. 19 Fig. 22
Fig. 13 Fig. 14
Fig. 20
Fig. 21
Fig. 18 Fig. 16
Fig. 12
Síntese Iconológica
Finalizada esta breve leitura iconográfica faz-se necessário pensar sobre o que de fato
desejava os Irmãos desta Ordem ao contratar um artista e sua equipe para decorar o forro desta
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nave e, ainda, levar a outros espaços da igreja a mesma intenção. A presença dos símbolos
constituídos pela emblemática, a mensagem oculta que cada um traz, o significado correto da cena
central, a importância de cada personagem presente, e, ainda, o reforço desta cenografia pelas
outras obras presentes na igreja, faz pensar que mensagem, de fato, trata essa obra?
Entender o programa iconográfico é complexo porque as pinturas não se isolam, pelo
contrário, traçam o alicerce para entender qual a epístola do forro da nave. Situadas em lugares
específicos, possuem objetivos próprios, mas não se desvinculam da obra principal. Parece que
propositalmente se desejava constituir a lembrança para a qual a Ordem está ali. Indica pensar que
no momento em que se abre para atuar em conjunto com outra Ordem Pregadora [Franciscanos],
e sustenta isso em mais de uma composição pictórica, busca a união de todos (tela do Sonho do
Papa) para travar a luta contra as heresias do espírito da Contra Reforma, situação claramente
comprovada quando figurada no forro da Sacristia (anjo calcando a heresia).
Atenta-se também que busca transmitir que é uma Ordem alicerçada nas virtudes, na fé
eucarística e na salvação (cartelas emblemáticas), bem como na propagação da crença dos mistérios
dolosos e gozosos de Maria e do papel a que foi dado ao santo missioneiro (cartelas laterais da
Quadratura), em um momento que a Igreja desejava resgatar sua solidez (simbolizada pela
impetuosa estrutura arquitetônica em falsas arquiteturas).
Se analisarmos que a composição pretendesse apenas indicar que São Domingos estaria
ingressando no reino celestial, as posturas e personagens presentes não se apresentariam como
estão. Por que então o Cristo que deveria recebê-lo de braços abertos estaria com flechas nas mãos?
E como justificar, por exemplo, a presença de emblemas significando a Temperança, a Fortaleza,
a Justiça e a Prudência, cujos principais significados estão relacionados à conduta humana? E o que
dizer da presença da cartela figurando o Dominis Canis na parte do forro à entrada da Capela Mor,
termo latim de significado “cão do Senhor” em alusão de como a Ordem Dominicana dos
Pregadores ficou conhecida por pregar a doutrina da Igreja contra os hereges, em oposição à da
Eucaristia, situada acima da entrada da igreja, que representa o sacramento da transformação do pão
e do vinho no corpo e sangue de Cristo?
É fato que ao adentrar a igreja e olhar para o alto se está diante de um verdadeiro tratado
teológico que traduz passagens da sua vida de São domingos que se conglomera em todas as
pinturas presentes na igreja, e, ainda, certamente com o conjunto [inexistente] de azulejos
setecentistas das paredes da Capela Mor.
A mensagem continua quando no teto da Sacristia Cristo revela seu amor pela humanidade
e mais uma vez a redimi dos seus pecados, “doando-lhe” seu sangue e oferecendo-lhe um dos seus
mais fortes anjos para combater a heresia, espírito da Contra Reforma.
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Em suma, é fulcral dirigir um novo olhar sobre a pintura do teto da igreja da Ordem
Terceira de São Domingos de Gusmão de Salvador, um olhar mais atento, com intuito de perceber
a mensagem subjacente, visto que, como indicado, a nova leitura dedicada a esta obra manifesta
interpretação mais densa e rica do que se pode perceber à primeira vista.
A Igreja deseja afirma o seu caráter universal e força através de figurações que propagem
sua mensagem, neste caso, os santos Domingos e Francisco. O mundo é vigiado por Cristo e tem
a mediação da Virgem Maria e Santos para salvá-lo. Cristo revela piedade pela humanidade lhes
dando a oportunidade de ser salva pela intercessão e obediência de “outras” pessoas. Francisco e
Domingos são os intercessores dos homens perante Cristo e, também, salvadores, que através das
suas virtudes recebem a chance de redimir o povo de Deus1053.
Diante do exposto, a necessidade de redefinir a identificação desta pintura, então nomeada
por historiadores e publicações como A chegada de São Domingos ao céu sendo recebido pela Nossa Senhora
e São Francisco de Assis, inrompe outro olhar fundamentado na leitura apresentada e pela significativa
presença de códigos que ela oferece. Nesse contexto, é assertivo nomeá-la por A Missão de uma
Igreja Triunfante reportada às mãos de São Domingos e São Francisco.
MÂLE, Émile. El arte religioso de la Contrarreforma. Estudios sobre la iconografía del final del siglo XVI y de los siglos
1053
XVII e XVIII. Trad. Ana Maria Guasch. Madrid: Ediciones Encuentro, 2001, p. 437.
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Resumo: Este trabalho tem por objetivo abordar um recorte de minha pesquisa de iniciação
científica realizada ao longo do ano de 2015, na Universidade Federal de São Paulo, com orientação
da Prof.ª Dr.ª Elaine Dias e o apoio financeiro da FAPESP. De modo geral, a pesquisa trata do
estudo da obra “Cena de família de Adolfo Augusto Pinto”, de José Ferraz de Almeida Júnior
(1850-1899), que integra o acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Neste estudo, analisamos
o retrato em seus conceitos formal, temático e estilístico, assim como sua relação com o contexto
social e artístico ao qual foi produzido e também com demais obras do pintor na temática de
retratos de grupos ou familiares. Procuramos também analisar a importância da encomenda do
retrato e conhecer os retratados, em busca de estabelecer possíveis relações que a família manteria
com a sociedade do período, e que possam ter influenciado na maneira escolhida para retratá-los.
Para ocasião, nos concentraremos em apontar algumas relações do retrato da família com as
referências da retratística coletiva e também com a pintura de gênero, aquela voltada à vida
cotidiana e as cenas domésticas. Identificamos certas afinidades com alguns retratos coletivos, e
ainda a existência da relação com a pintura de gênero presente no próprio pedido do comitente,
que por certo foi refletida na execução do quadro pelo pintor Almeida Júnior, como veremos a
seguir.
Palavras-chave: Almeida Júnior; Adolfo Augusto Pinto; Pintura de gênero; Retrato; Século XIX.
“Cena de família de Adolfo Augusto Pinto”1055, produzida em 1891, é um óleo sobre tela
de autoria do pintor José Ferraz de Almeida Júnior, artista ituano do século XIX. A pintura mede
o equivalente a 106 centímetros de altura por 137 centímetros de comprimento, e a obra integra o
acervo de arte brasileira da Pinacoteca do Estado de São Paulo. A instituição obteve a guarda deste
retrato devido à sua doação no ano de 1981, por Vera Hermanny de Oliveira Coutinho, neta do
1054 Esta comunicação refere-se a um recorte de minha pesquisa de iniciação científica realizada entre dezembro de
2014 a novembro de 2015, na Universidade Federal de São Paulo (Campus Guarulhos), com orientação da Prof.ª Dr.ª
Elaine Dias e o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). No semestre
atual, estamos prosseguindo com este estudo em vista de sua apresentação como monografia para conclusão do curso
de bacharelado em História da Arte.
1055 Conservada como parte do acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo. Imagem disponível em:
<http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-pt/default.aspx?mn=545&c=acervo&letra=A&cd=2335> ou
<http://warburg.chaa-unicamp.com.br/obras/view/7162>. Acesso em: 17 mar. 2016. Mencionamos que devido à
necessidade de autorização para reprodução de imagens, em razão de seus direitos autorais, disponibilizamos ao longo
deste trabalho o link das mesmas nos endereços eletrônicos das Instituições que as abrigam. Contudo, quando estas
não se encontram em fácil acesso, oferecemos a possibilidade de sua observação em outras plataformas de imagens.
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engenheiro Adolfo Augusto Pinto, a fim de atender a vontade de sua falecida mãe, Carmem Pinto
Hermanny, uma das crianças retratadas no quadro.
Nesta tela, Almeida Júnior representa a família do engenheiro Adolfo Augusto Pinto,
mostrando a intimidade da família que desfruta de um momento de reunião com seus integrantes.
No quadro, estão retratados o patriarca e a senhora Generosa Liberal Pinto, junto a cinco crianças,
seus cinco filhos, três meninas e dois meninos. O engenheiro aparece sentado confortavelmente
em uma cadeira próxima ao piano e sustenta em suas mãos a “Revista de Engenharia”, na qual se
concentra na leitura. Ao seu lado esquerdo, recai sobre o braço da cadeira uma espécie de manta
que acolhe o repouso de um cachorro de pelagem escura. À sua direita, uma das crianças, um
menino de pé folheia um álbum de fotografia. No sofá posicionado ao fundo da cena, a esposa e
mãe D. Generosa ensina à filha o oficio da costura, enquanto outras duas meninas - uma delas
segura um bebê - são retratadas sentadas no chão sobre o tapete. A primeira localizada à esquerda
do quadro, próxima ao sofá, brinca com o bebê que parece direcionar o olhar ao patriarca da
família. A criança a seu lado, por sua vez, projeta seu corpo para frente e volta seu olhar à ação do
irmão concentrado nas fotografias. O ambiente é decorado seguindo os padrões burgueses, que
expressam os costumes da família e sua relação com as artes, presentes no retrato na representação
de pinturas, esculturas, mobiliários e instrumentos musicais. No canto esquerdo do quadro,
observamos uma porta de madeira aberta, por onde a luz se insere e ilumina o recinto familiar,
também avistamos uma modesta paisagem composta por plantas e pelo telhado de uma casa da
vizinhança, sendo este um indício que a residência se encontra na cidade.
A encomenda deste retrato parte do pedido do patriarca da família, o engenheiro Adolfo
Augusto Pinto que, em meados do ano de 1890, comunica a sua vontade ao pintor Almeida Júnior,
conforme rememora no trecho a seguir:
[...] comuniquei-lhe um dia, em 1890, o desejo que eu acariciava de possuir bons
retratos a óleo dos membros de minha família, mas não queria retratos isolados,
individuais, desses que, no fim de anos, quando caem nas mãos de terceiros, são
como os trastes velhos, inúteis, que acabam atirados nos quartos baixos das
habitações tradicionais, queria os retratos de todos os meus, colhidos em
conjunto, vivendo uma cena de família, queria uma tela que valesse não só pela
imagem das pessoas que nela figurassem – e êsse seria para mim seu grande valor
subjetivo – porém que tivesse também um merecimento objetivo, de estimação
em qualquer tempo e para qualquer amador de arte, em suma, um quadro de
gênero, que bem poderia se intitular ‘o lar’ ou ‘um interior familiar’.1056
Percebemos que o pedido do engenheiro foi atendido, tendo resultado no retrato de sua
família em uma elegante sala de estar, onde os integrantes são registrados imersos em atividades
cotidianas, a fim de evidenciar a tradição e a moral cultivada no seio da família, onde o patriarca é
1056PINTO, Adolpho Augusto. Minha vida: memória de um engenheiro paulista, São Paulo, Conselho Estadual de
Cultura, 1970, p. 127. Gráfia original. Negrito meu.
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seu grande representante, ocupando o primeiro plano do retrato e, posteriormente, o título da tela
quando a mesma foi exposta1057. Adolfo Augusto Pinto foi uma figura imersa nos debates culturais
e políticos do período, que escolhe ser retratado ao lado de sua família, vivendo um momento de
exaltação das virtudes familiares e de confirmação de sua presença no moderno ambiente das artes
e da cultura. Estas observações se relacionam à tradição da pintura de gênero, sobretudo, na
valorização das virtudes familiares.
Como vimos na orientação do engenheiro, temos evidenciado essa aproximação do retrato
de família com a pintura de gênero, onde figurariam as virtudes familiares no contexto de um lar
ou interior familiar, sendo um ponto em destaque na menção do engenheiro. Vale recordarmos
que a relação entre a pintura de retratos com a pintura de gênero possui certa tradição nas Belas
Artes e são muitos os exemplos desta influência na produção artística de alguns pintores. Se
levarmos em consideração a definição de “pintura de gênero” presente na Encyclopédie Larousse online,
entendemos o termo como a: “categoria pictórica com cenas anedóticas, familiares, íntimas ou
populares”1058. Nesse sentido, podemos facilmente assimilar o retrato da família do engenheiro com
a pintura de gênero, visto que este evidencia uma cena familiar e íntima em uma concepção
narrativa, que busca enfatizar os princípios vigentes em uma rotina doméstica de um lar burguês
paulistano em fins do século XIX. A sala de estar, onde a cena de família se desenrola é um
ambiente requintado, totalmente condizente às posses de uma tradicional família da elite paulista,
que também busca destacar os afazeres de seus membros, de acordo com a hierarquia familiar, no
qual o pai ocupa a posição de patriarca e intelectual ao ser retratado em primeiro plano lendo um
jornal, enquanto a esposa aparece ao fundo ensinando a filha a costurar, enquanto as demais
crianças estão próximas a ela - sob seu olhar, como era de convir para uma dona de casa e mãe
respeitável do período.
A relação com a pintura de gênero aparece novamente em outra menção do engenheiro
em continuidade a anterior, porém este trecho refere-se ao quadro finalizado, onde Adolfo Augusto
Pinto aponta que:
1057 Conforme consta na ficha catalográfica do quadro, registrada no banco de dados da Instituição, a tela foi
inicialmente nomeada como “sem título – Cena de família de Adolfo Augusto Pinto” e foi alterado em virtude de
revisão para uma nova exposição de longa duração do acervo. Neste processo, o “sem título” foi retirado, deixando
apenas “Cena de família de Adolfo Pinto” como título atribuído. Agradecemos ao núcleo de Gestão Documental do
Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, que possibilitou à consulta a pasta catalográfica do quadro.
1058 Tradução livre do seguinte trecho: “Catégorie picturale comprenant les scènes de caractère anecdotique, familier, intime ou
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A menção a esta tela nos interessa particularmente, uma vez que pode evidenciar a relação
de Cena de família com a pintura de gênero. O próprio quadro mencionado pelo engenheiro, o
“Descanso do Modelo”1060, aponta alguns elementos semelhantes ao retrato de sua família.
Ressaltamos que esta tela não se trata, inicialmente, de um retrato – embora represente uma modelo
e um artista, sem identificações -, pois traz como tema uma cena de ateliê que exalta a habilidade
do pintor em descrever os objetos dispostos no ambiente, sendo visivelmente idealizado como
peça de apreciação no museu, isto é, o quadro foi dirigido ao público, afastando-se da esfera privada
ou familiar.
Este fim poderia diferi-lo do quadro da família do engenheiro, onde prevalece a valorização
das virtudes familiares em um contexto doméstico para a observação da própria família. No
entanto, destacamos a questão moderna presente em ambos os quadros, que trazem uma
representativa quantidade de objetos dispostos em um mesmo ambiente, reveladora das atitudes
de seus personagens e de sua cultura igualmente valorizadas, e também uma composição bastante
semelhante entre as duas telas, dos quais podemos começar a destacar por alguns elementos.
Temos a identificação dos instrumentos musicais representados nos dois quadros: o piano
presente nas duas telas segue acompanhado da visível partitura; os instrumentos de corda estão
presentes, respectivamente, no contrabaixo em “Cena de família de Adolfo Augusto Pinto” e no
alaúde representado em “Descanso do Modelo”. Estes aspectos revelam eventuais modelos para
serem incluídos na tela, mas também a cultura musical do próprio artista. As estampas dos tapetes
em ambos os quadros trazem uma tipologia oriental, remetendo mais uma vez à modernidade do
artista; vasos acolhem traços de vegetação ao serem preenchidos por plantas ou flores; a utilização
de um recurso de enquadramento usufrui da moldura retratada no lado superior dos dois quadros,
sendo que no retrato da família do engenheiro aparece recortada no canto superior direito da tela
e na cena do ateliê a moldura é restringida no canto superior esquerdo; o cair dos panos se
assemelham nas duas representações, compondo dobras para os tecidos. Em “Cena de família de
Adolfo Augusto Pinto”, o tecido recai junto à costura da matriarca e em “Descanso do Modelo”
no pano que cobre o banquinho onde a modelo senta para dedilhar o piano à sua frente. Dada esta
indicação de elementos recorrentes, também é válido observar a fatura de ambas as obras, dando
destaque para a paleta de cores terrosas que se sobressai nos mesmos.
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qualidade do quadro. Procuramos encontrá-lo como parte do acervo de algum museu, mas nada foi localizado. No
entanto, em busca eletrônica identificamos uma gravura desta tela, no seguinte direcionamento:
<http://www.ebay.ca/itm/1882-UI6-FRANCISQUE-EDOUARD-BERTHIER-MUSIQUE-EN-FAMILLE-
PIANO-ENFANT-FEMME-LAMPE-/390819362301>. Acesso em: 20 mar. 2016.
1063 Informação presente em: KAREL, David. Dictionnaire des artistes de langue française en Amérique du Nord: peintres,
aqui exposta foi obtida através da consulta a base de donnees Archim. Disponível em:
<http://www.culture.gouv.fr/Wave/image/archim/0008/dafanch99_76571402_2.jpg>. Acesso em: 20 mar. 2016.
1065 Conforme consulta ao Benezit Dictionary of Artists in Oxford Art Online, o pintor francês Paul Robert participou do
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em fevereiro para Paris e só retornou em junho ao Brasil1066. Nesse sentido, tendo o salon
inaugurado no dia 1 de maio, conforme consta no catálogo, provavelmente o pintor tenha tido a
oportunidade de visitá-lo. A imagem encontrada também não traz as cores deste retrato, mas assim
como no exemplo anterior interessa-nos avaliar a construção deste quadro, que também segue a
temática da representação de um concerto de música em um ambiente de aparência burguesa. Na
obra, vemos quatro músicos com seus instrumentos musicais e dois outros homens próximos a um
piano, parcialmente encobertos pelo homem sentado diante deste instrumento; o mais alto parece
olhar para as partiras sobre calda do piano, enquanto o mais baixo direciona seu olhar para a mulher
no canto inferior direito do quadro, sentando em uma poltrona com um leque em sua mão direita.
No entanto, o que mais desperta nosso interesse nesta obra é o ambiente retratado, que traz
algumas semelhanças encontradas em “Cena de família de Adolfo Augusto Pinto”, como o
posicionamento do piano no canto direito e o quadro pendurado na parede acima do piano, que
se utiliza de um recurso de enquadramento ao usufruir de sua moldura como uma espécie de
continuidade para estes dois quadros. Além disso, no segundo plano de Musique de chambre, temos
alguns contornos, que não conseguimos identificar com precisão, mas que são semelhantes ao que
no retrato do engenheiro seriam os dois quadros pendurados acima do sofá, o vaso de planta no
centro e os porta-retratos laterais.
Existem ainda outros exemplos encontrados na base de donnees archim1067, de algumas obras
expostas no salon anual organizada pela Société nationale des Beaux-Arts, no Palácio de Belas Artes, no
Champ de Mars, em 1891, sendo este o mesmo ano de realização de “Cena de família de Adolfo
Augusto Pinto” e da própria viagem de Almeida Júnior a Paris1068. Conforme informação, este salon
inaugurou a partir de 15 de maio e, portanto, existiria a possibilidade de nosso pintor tê-lo visitado,
no entanto, não podemos afirmar tal cenário em vista de falta de documentação a respeito. Mas
neste aspecto, vale mencionarmos duas obras que apresentam retratos coletivos dentro de um
ambiente aparentemente burguês.
1066 A informação é mencionada na “Cronologia em primeira mão”, de Ana Paula Nascimento e Maia Mau. Disponível
em: LOURENÇO, M. C. F. (Org.). Almeida Júnior: um criador de imaginários. Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Catálogo, 2007, p. 11. No espaço reservado ao ano de 1887.
1067 Portal eletrônico dos arquivos nacionais da França. Disponível em:
<http://www.culture.gouv.fr/documentation/archim/dossiers.htm>. Acesso em: datas diversas
1068 A informação da viagem do pintor à Paris é mencionada em: LOURENÇO, Almeida Júnior: um criador de
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1069 Exposta no salon anual organizada pela Société nationale des Beaux-Arts, no Palácio de Belas Artes, no Champ de Mars,
em 1891. Imagem disponível em:
<http://www.culture.gouv.fr/Wave/image/archim/0007/dafanch99_76603402_2.jpg>.
1070 Conforme consulta ao Benezit Dictionary of Artists in Oxford Art Online, identificamos que o pintor Pierre-Georges
Jeanniot nasceu em Genova e seus pais eram franceses. O pintor teve uma longa carreira militar, mas com regularidade
expunha seus quadros, até efetivamente abandonar o militarismo e se dedicar somente a arte, expondo em alguns
salões.
1071 Conservada em La Piscine - Musée d'art et d'industrie André Diligent, Roubaix, France. A imagem desta tela não está
pinturas e aquarelas de flores e era membro da Société Nationale des Beaux-Arts desde 1900. E ainda, era proprietária de
um salão em Paris, o qual atendia artistas, músicos e escritores, possivelmente, este salão, seja o retratado no quadro
de Pierre-Georges Jeanniot.
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denominada Jeunes filles (intérieur)1073, de Marie Louise Catherine Breslau1074 traz a representação de
três moças em um ambiente doméstico em atividades distintas. A primeira localizada de pé próxima
ao canto direito do quadro é retratada de perfil; suas mãos estão apoiadas sobre a mesa, onde se
encontram espalhados alguns utensílios e louças de chá, e a jovem está servindo-se de uma xícara.
Atrás desta mesa, outra jovem é retratada, com seu olhar direcionado para o observador, no
entanto, percebemos que seu ato interrompe a leitura que provavelmente estava realizando, pois
um livro se encontra sobre a mesa e a jovem aponta com sua mão direita uma passagem da leitura,
possivelmente para não perder o parágrafo que interrompeu. E, por último, vemos uma jovem no
canto inferior esquerdo da tela, sentada em uma cadeira com as costas voltadas para nos
observadores. Sua atenção, assim como a de D. Generosa no retrato do engenheiro Adolfo
Augusto Pinto está voltada para a costura ou, neste caso, para o tear localizado à sua frente sobre
a mesa; próxima a ela, no chão, observamos uma cesta com fios de lã, com uma tesoura, algo que
também encontramos no retrato da família do engenheiro. E ainda, nesta perspectiva de
comparação, apontamos também a presença do cachorro, que mesmo sendo de raça e pelagem
diferentes do cachorro retratado próximo ao engenheiro, representa um elemento recorrente em
alguns quadros familiares, sobretudo, no sentido de companheirismo que o animal detém e de sua
simbologia de fidelidade relacionada ao casal. Atrás destas jovens, observamos um grande espelho
com moldura rebuscada e abaixo dele estão alocados dois vasos com flores, dispostos um de cada
lado. No canto direito, observamos uma grande janela encoberta pela cortina, por onde a luz se
infiltra e ilumina o recinto, semelhante ao que ocorre em “Cena de família de Adolfo Augusto
Pinto”.
A pesquisa de imagens nos ofereceu ainda outras novas possibilidades de entendimento
desta tipologia do retrato familiar e coletivo. Não podemos afirmar com certeza se Almeida Júnior
viu ou teve conhecimento destas telas através de gravuras, e ao pesquisarmos sobre a carreira destes
artistas, identificamos que alguns destes não passaram por Paris. No entanto, muitos destes quadros
nos mostram algumas semelhanças com nosso objeto de pesquisa, tornando-se, possivelmente, um
modelo recorrente para a produção de várias telas em lugares distintos, como a presença das
esposas e mães retratadas no segundo em: Christmas-Time, The Blodgett Family1075, The Colgate
1073 Somente encontramos uma imagem em preto e branco desta obra. Disponível no portal eletrônico dos arquivos
nacionais da França – base de donnees Archim. Imagem disponível em:
<http://www.culture.gouv.fr/Wave/image/archim/0007/dafanch99_76603202_2.jpg>. Acesso em: datas diversas.
1074 Conforme consulta ao Benezit Dictionary of Artists in Oxford Art Online, Marie Louise Catherine Breslau nasceu em
Munique, mudou quando criança para Suíça e começou seus estudos de arte em Zurique, mudou-se para Paris em
1878, onde se inscreveu na Académie Julian, local que estudou até 1881. A artista expôs suas obras no Salon de la Société
Nationale des Beaux-Arts em Paris entre 1881 à 1891.
1075 Conservada no The Metropolitan Museum of Art, New York, United States. Imagem disponível em:
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Family1076, The Lesson1077 e The Brown Family1078. Algumas destas matriarcas estão sentadas
confortavelmente em poltronas ou cadeiras, portando uma peça de crochê ou tricô em suas mãos,
sugerindo a prática da costura. Algo semelhante ocorre com os personagens masculinos retratados
absortos na leitura de um jornal ou induzindo à interrupção de sua leitura, ao manterem os jornais
em suas mãos e sua atenção dirigida a outro ponto, como ocorrem em The Lesson e The Brown Family.
As crianças aparecem, na maioria das vezes, entretidas em atividades infantis na companhia de seus
pais, que as observam. O ambiente retratado também aponta relações com o nosso retrato, ao
apresentarem um recinto requintado, composto por mobiliários, tapeçarias e demais itens
decorativos e ornamentos como os quadros dispostos nas paredes.
Ao observarmos, mais uma vez, a tela “Cena de família de Adolfo Augusto Pinto”,
percebemos que as referências da pintura de gênero e da tradição da retratística coletiva são
valorizadas na construção deste retrato, a fim de evidenciar a tradição e a moral familiar cultivada
no seio desta família, onde o patriarca é seu grande representante. O engenheiro Adolfo Augusto
Pinto foi uma figura participativa nos debates culturais e políticos do período, que escolhe ser
retratado ao lado de sua família e vive, através desta pintura, um momento de exaltação das virtudes
familiares e de confirmação de sua presença no moderno ambiente das artes e da cultura no
contexto de um lar burguês paulistano em fins do século XIX.
1076 Conservada no Museum of Fine Arts, Boston. Imagem disponível em: <http://www.mfa.org/collections/object/the-
colgate-family-338683>. Acesso em: 18 mar. 2016.
1077 Conservada em coleção particular. Imagem disponível em: <http://www.the-
athenaeum.org/art/detail.php?ID=11862&msg=You+were+sent+here+because+this+artist+only+has+one+artw
ork+in+our+database.++This+is+it>. Acesso em: 18 mar. 2016.
1078 Conservada na National Gallery of Art, Washington, DC. Imagem disponível em:
<http://www.nga.gov/content/ngaweb/Collection/art-object-page.56720.html>. Acesso em: 18 mar. 2016.
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Pablo Gobira
Doutor em Literatura Comparada
Universidade do Estado de Minas Gerais
pablo.o.gobira@gmail.com
Fernanda Corrêa
Graduanda em Artes Plásticas
Universidade do Estado de Minas Gerais
fernandalcorrea@gmail.com
Introdução
1079 Este artigo é um dos resultados de pesquisa desenvolvida no Laboratório de Poéticas Fronteiriças
(http://labfront.tk) apoiada pela FAPEMIG, pelo CNPq, pela Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte e
pela PROPPG/UEMG aos quais agradecemos.
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discutir como vem sendo realizada a preservação digital da arte computacional. Essa reflexão será
alcançada considerando as possibilidades de preservação levadas a cabo pela curadoria
contemporânea.
Para dar base a esta proposta enfocaremos dois casos: o Museu da Língua Portuguesa e o
Festival de Arte Digital (FAD). Enquanto o primeiro é um espaço que sofreu um incêndio em 2015
e teve seu acervo preservado, o FAD é um evento cuja curadoria também reflete sobre a questão
acervística. Criado em 2007, ele tem a curadoria de Tadeus Mucelli e Henrique Roscoe.
O Museu da Língua é dirigido pelo sr. Antônio Carlos Sartini. Após o incêndio de 21 de
dezembro de 2015 a notícia que mais chamou a atenção na mídia é de que o acervo mantinha-se
preservado.
A curadoria digital, aqui, é compreendida a partir do intercâmbio dos conceitos de curadoria
de dados1080 e de preservação digital1081. A ideia de preservação digital já é compreendida em vários
campos, sobretudo nas Ciências da Informação: como preservação (enquanto dados) de
documentos importantes (considerados historicamente ou culturalmente).
Neste trabalho também se propõem e se reconhece a preservação digital através do registro
audiovisual daquilo que se deseja preservar, sejam obras de arte, ou peças do patrimônio cultural e
histórico sustentando a formação da categoria “documento”. Porém, tanto “dados”, “informação”
ou “documento/documentação” serão aqui considerados como sinônimos tendo em vista o seu
caráter de documentar a existência ou a exposição da obra de arte digital. A partir da noção de
preservação digital pode-se pensar a curadoria digital em uma abordagem não apenas das coleções
digitais, mas também da necessidade de mudanças diante das novas condições tecnológicas e novos
conceitos acerca da obra de arte.
A pergunta que nos guia é: como preservar a arte computacional? Para respondê-la vamos
até os métodos de preservação do Museu da Língua Portuguesa e do Festival de Arte Digital
pensando a partir de seus exemplos e em como mantém/mantiveram seus acervos até os dias de
hoje.
A arte exposta hoje, considerada até então como “arte contemporânea”, configura-se a
partir das experiências do último século. Essa experiência a fez considerar como materiais da obra
1080 SAYÃO, Luis Fernando; SALES, Luana Faria. Curadoria digital: um novo patamar para preservação de dados
digitais de pesquisa. Inf. & Soc.:Est., João Pessoa, v.22, n.3, p. 179-191, set./dez. 2012.
1081 NATIONAL LIBRARY OF AUSTRALIA. Directrices para la preservación del patrimonio digital. Austrália: UNESCO,
2003.
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de arte tudo o que está disponível e além dessa disponibilidade. Justamente por essa nova
incorporação avançada de novos elementos, que remete às ações das vanguardas do início do século
XX, fez com que essa arte fosse conhecida por sua efemeridade.
Sabemos que a efemeridade não é uma característica generalizada da obra de arte
contemporânea, porém grande parte do seu reconhecimento está justamente nos choques
provocados por ela quando, por exemplo, uma instalação se desfaz após uma exposição, ou uma
performance não pode ser repetida como foi realizada da primeira vez.
Podemos também considerar que as obras de arte contemporâneas, a partir de autores
como Arthur Danto, ocupam um lugar diferente do que ocupavam no século XIX, pois agora se
configuram como um pensamento do artista e demanda-se do espectador o deslocamento para o
lugar de pensá-la1082.
Temos, então, na arte contemporânea o seguinte problema: a efemeridade nas obras de arte
que se constituem a partir de considerações, pensamentos e ações associadas à realidade do artista
coexiste com a necessidade de preservação da arte.
Ao considerarmos, tal como se faz aqui, a entrada da arte denominada digital no âmbito da
arte contemporânea a estamos também considerando efêmera1083, ou seja, seu processo de
preservação também se torna um problema contemporâneo.
O termo “arte digital” incorpora, de maneira ampla na visão dos autores deste trabalho,
tanto as imagens produzidas com softwares diversos e equipamentos fotográficos digitais, quanto
obras que envolvem o processamento em tempo real de códigos e imagens utilizando o
computador. Arte digital é, aqui, arte de novas mídias, mas também arte computacional, arte
binária, arte numérica, arte tecnológica e quaisquer outros desdobramentos que hajam a partir
desses termos. Porém, como se verá, há um enfoque no problema de preservação digital da arte
digital que tenha uma estrutura de funcionamento complexa, que envolva (em muitos casos) a
interatividade do espectador (interator) no que poderíamos chamar de instalações artísticas.
O campo da arte digital é ao mesmo tempo um movimento cultural e de arte, derivado dos
processos de desenvolvimento computacional (hardwares e/ou softwares). Esse tipo de arte também
pode ser definida como aquela arte que não poderia existir sem esse elemento como, por exemplo,
a software art, a arte generativa, as instalações em arte digital, game art, as performances audiovisuais
e web art. Essa arte de suporte computacional possui atores diversos, desde artistas nativos da era
digital a artistas de várias áreas artísticas, bem como os “não artistas”, como engenheiros,
programadores, biotecnólogos e profissionais de Tecnologia da Informação.
DANTO, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
1082
GOBIRA, Pablo. A preservação da obra de arte digital: reflexões críticas sobre sua efemeridade. In: 23º
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1084 GOBIRA, Pablo; MUCELLI, Tadeus; PROTA, Raphael. Instabilidade digital: a preservação e a memória da arte
digital no contexto contemporâneo. In: 13° Encontro Internacional de Arte e Tecnologia (#13.ART): arte, política e
singularidade, 2014, Brasília. Anais... Brasília: Medialab, 2014.
1085 GOBIRA, Pablo; MUCELLI, Tadeus; PROTA, Raphael. Instabilidade digital: a preservação e a memória da arte
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divulgação. Para o diretor, devido a questões físicas e orçamentárias, fica impraticável a preservação
de tudo.
Podemos perceber por essas declarações que há certa prioridade em se manter o acervo
armazenado digitalmente. No entanto, ao ser questionado sobre como seria a preservação de
peças/obras/trabalhos digitais para que elas se mantivessem permanentemente passíveis de serem
expostas novamente, o diretor declara que é preciso condicionar os trabalhos da melhor forma
possível com constante observação, ao mesmo tempo em que é preciso manter os estudos e
documentos que os geraram.
Ainda, podemos notar que a curadoria do Museu da Língua Portuguesa está preocupada
com um modo prioritário de preservação dos trabalhos expostos. Sua atenção principal à
preservação do máximo de informações, projetos, e outros documentos das exposições
(temporárias ou permanente) apontam essa direção preservacionista. Porém, esse caminho da
preservação como documento, quando enfocamos a obra de arte, pode dificultar o processo de
retorno da obra de arte ao espaço expositivo.
O Festival de Arte Digital (FAD) é um projeto que apresenta ações inventivas que se
constituem a partir de novas tecnologias nos campos da comunicação e das artes. O festival,
idealizado pelos curadores e diretores Henrique Roscoe e Tadeus Mucelli, possui sete edições e
tem como sede de suas principais realizações a cidade de Belo Horizonte. O festival promove ações
durante um período de 30 dias que vão desde exposições a debates e workshops. Além da criação de
programas de conteúdo artístico, o FAD é um projeto que dá acesso ao público às novas tendências
e manifestações artísticas e também estimula a formação de novos artistas e conceitos através da
exposição de instalação, performances e outras apresentações que têm como foco a arte produzida
por máquinas e softwares, ou seja, por mídias digitais1088.
O evento, que conta com a participação tanto de artistas nacionais quanto internacionais e
traz obras inéditas para o Brasil, teve em sua primeira edição (2007) categorias como web art, arte
generativa, poesia interativa, games, screen magazine e vídeos com a participação de artistas como
Golan Levin e Stanza, além do brasileiro Roberto Bellini. A edição também ofereceu oficinas como
a de Circuit Bending que propõe a modificação de circuitos eletrônicos para a produção de
instrumentos musicais. A mesa de debate trouxe a discussão da mídia digital em comunicação com
a arte através da apresentação de novas ideias e trabalhos.
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Em 2010, o festival foi organizado enfocando mostras de galeria, web art, performances,
simpósio, laboratório e vídeo. O FAD galeria exibiu os trabalhos de artistas como o brasileiro
Jarbas Jácome e o alemão Jörg Niehage. A mostra FAD performance trouxe a apresentação de
Nosaj Thing (Estados Unidos) e o grupo Zilch (Brasil). No FAD laboratório, teve oficinas como
a de Sampleamento Radical em que são desenvolvidos projetos musicais a partir de gravações
através de um software de edição sonora multipista. Houve também um seminário em que se
desenvolve uma teoria básica sobre Live Media e apresenta ao público o conceito de FLOSS
(software livre) com o artista italiano Marco Donnarumma.
Em sua quinta edição em 2011, o festival apresenta trabalhos em que o uso do digital não
é imprescindível, mas que é possível perceber seu surgimento de maneira periférica na criação da
obra. Ainda, os curadores optam por escolher um eixo temático para o festival: o cinético. O festival
faz uma homenagem ao artista plástico brasileiro Abraham Palatnik, referência em arte cinética no
Brasil. O festival é ordenado por galeria, laboratório, performances e simpósio. Dentre os artistas
e obras que fizeram parte dessa edição, encontram-se nomes como Laurent Debraux (França) com
sua nuvem de algodão que flutua no ar, Karina Smigla-Bobinski (Alemanha) e sua obra Ada (globo
transparente preenchido com hélio com pedaços de carvão) e O Grivo (Brasil) com a obra Passo-a-
passo.
Obras de arte experimentais criadas a partir da tecnologia digital têm expandido o novo
cenário da arte no Brasil, e festivais de arte, como o FAD, são responsáveis pela promoção e
exibição de tais obras fazendo com que se estabeleça um circuito de arte digital no Brasi 1089l. O
FAD é o precursor desse novo cenário em Minas Gerais e é um dos mais importantes festivais do
país. A direção do evento se preocupa não só com a exibição das obras, mas também com questões
como a preservação e a promoção da arte digital e seus criadores para um público mais amplo
através de diferentes mídias.
A relação dos curadores/criadores do FAD com a tecnologia digital e o espaço de
exposição se desenvolveu a partir das suas próprias produções e atuações artísticas que os levaram
a buscar festivais e eventos de arte digital em todo o mundo. Com a criação do FAD, os
curadores/criadores passaram a atuar não só artisticamente, mas também crítica e reflexivamente
na política que tem sido implantada no campo da arte digital. Ao longo dos anos, a estruturação do
festival tem sido fundamentada em adequações e elaborações de conceitos reconstruídos também
em toda a arte digital. Dentre eles, encontra-se a problemática do acervo.
1089 GASPARETTO, Débora. O “curto-circuito” da arte digital no Brasil. Santa Maria: Ed. do autor, 2014.
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como o FAD - Festival de Arte Digital - 2010 que reúne as edições de 2007, 2009 e 20101090, o banco
de dados (acesso restrito), o acervo digital do FAD1091 (http://www.festivaldeartedigital.com.br) e
o acervo digital dos próprios artistas expostos no festival (como, por exemplo, a obra Floccus de
Golan Levin apresentada em 2007 e mantida no acervo digital do artista1092).
Ao estabelecer que o arquivamento feito pelos próprios artistas é parte integrante do acervo
do festival, a responsabilidade na preservação da arte se direciona também para os artistas,
originando uma relação curatorial interdependente. A arte digital requer que curadores e artistas
colaborem para a manutenção de sua preservação, ou seja, tanto os curadores quanto os artistas
devem criar estratégias de preservação. Sendo que a tentativa de preservar do curador será mais
bem-sucedida, acarretando maior estabilidade da obra, se ela for amparada por formas de
preservação também por parte do artista. A responsabilidade da preservação é tanto de um como
do outro.
Como já afirmado, há o entendimento por parte dos curadores/criadores do FAD de uma
impossibilidade de existência de obras de arte digital que sejam permanentemente estáveis. Todavia,
a compreensão de que uma base estável é fundamental no que se refere à arte faz com que critérios
de seleção e formas de armazenamento dos dados das obras sejam elaborados não somente para
se obter um acervo, mas também uma exposição estável.
Os curadores do FAD também têm consciência da dificuldade em se manter um acervo
físico. Essa dificuldade consiste na inviabilidade de se manter um espaço físico, além da
impraticabilidade em se manter máquinas que irão perecer rapidamente. Ao se assemelhar em
alguns pontos com a posição do curador do Museu da Língua Portuguesa, aqui se expõe uma das
questões da arte digital: a busca pelo arquivamento de dados e não das obras em sua plenitude.
Na arte contemporânea nem sempre é possível preservar a obra na sua plenitude. Essa não
é uma escolha, pois as obras de arte contemporânea, muitas vezes, são constituídas para se
desfazerem com: o tempo, a participação do espectador, com a atuação climática etc. Diferente
desse caminho tomado pela arte contemporânea sem a presença do digital, a arte computacional
opta, em geral, por ser uma “obra que funciona”. Opta-se intensamente pela “estabilidade” da obra
de arte digital.
Ao fazê-lo, escolhas diferentes daquelas costumeiras no campo artístico – e da sua
preservação – são tomadas como é o caso de não se preservar as CPUs (Central Processing Unit) ou
notebooks utilizados nas instalações interativas, por exemplo. Quando não conservamos esses
1090 ROSCOE, Henrique; MORAN, Patrícia; MUCELLI, Tadeus. FAD - Festival de Arte Digital - 2010. Belo
Horizonte: Instituto Cidades Criativas, 2010.
1091 FAD, disponível em: <http://www.festivaldeartedigital.com.br>
1092 LEVIN, Golan. Floccus, 1997. Disponível em: <http://www.flong.com/>
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hardwares ou mesmo licenças de softwares proprietários (ou cópias de softwares livres) que são parte
do todo da arte digital, temos a opção clara pela conservação apenas da obra enquanto dados seja
por comodidade ou pela impossibilidade espaço-orçamentária.
Para Boris Groys (2010, p.125), desde o advento da arte do vídeo e a sua chegada ao espaço
expositivo, temos nos acostumado a expor como arte o que ele chama de “documentação de
arte”1093. Essa documentação artística é desde os vídeos de uma performance executada, até mesmo
um vídeo realizado a partir de uma instalação ou até como uma instalação. Groys acredita que a
documentação de arte, por definição, não é arte. Ao trazermos o seu pensamento para o campo da
arte digital, parece que a escolha em se preservar a arte digital como dados, tal como tem sido feita,
encerra uma escolha arriscada em prol das dificuldades espaço-orçamentárias citadas.
1093 GROYS, Boris. Camaradas do tempo. Caderno SESC-Videobrasil, São Paulo, n. 6, p. 119-127, 2010.
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Seria importante, ainda, haver uma conscientização dos artistas em relação à qualidade
técnica do seu trabalho, a fim de que sejam utilizadas tecnologias que permitam atualizações sem
haver perda significativa no conceito primeiro desenvolvido na obra.
Por fim, é preciso também que o artista desenvolva formas de acesso à memória de suas
obras através de disponibilização de: portfólios online que contenham a descrição da obra
(equipamentos utilizados, softwares utilizados etc.); informações sobre os códigos utilizados (ou os
códigos disponibilizados integralmente); roteiro, design document (para design da interface, design da
interação etc.), dentre outros. Com isso, entendemos que a associação entre artista e curador é de
máxima importância dentro do contexto da arte digital para que haja maior efetividade na
preservação sem restrição à obra de arte como dados.
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Resumo: O presente trabalho visa analisar os recursos icônicos e etóticos usados pela marca
Melissa, em dois momentos distintos de sua história, para captar e seduzir seu público-alvo, para
tanto, utilizaremos como corpus o editorial Passe de Mágica (2010) em contraste com a campanha
publicitária Melissa Verão (1980). Desse modo, propõe-se inicialmente, uma análise qualitativa que
terá como quadro teórico os estudos de Amossy (2011) sobre o conceito de ethos e o modelo de
análise de imagens proposto por Mendes (2013). O principal objetivo proposto é verificar como
elementos plásticos influenciaram na construção do ethos da empresa e na captação de seu público
alvo. A partir do exposto, partimos de pelo menos duas hipóteses, a saber: (i) a marca Melissa
construiria, através dos editoriais e publicidades, uma imagem de mulher moderna e ousada para
suas consumidoras, ou seja, uma "imagem de si" que funcionaria numa relação especular entre o
público-alvo ideal e o público real; (ii). O uso do design e de celebridades como modelos com a
função de captação criaria, para seus produtos, uma espécie de mitologia, no sentido barthesiano,
na qual estes produtos estariam numa posição simbólica de dever solucionar os mais diversos
problemas e conflitos.
Introdução
Considerando a crescente evolução dos meios de comunicação, em especial as mídias
audiovisuais e a internet, pode-se observar que existe um movimento em ascensão no que diz
respeito à veiculação de informações por meio de recursos exclusivamente imagéticos. Em
detrimento desse fenômeno, é possível observar que as imagens1094, imersas em nosso dia-a-dia,
estão permeadas de elementos que nos direcionam a uma multiplicidade de saberes e pontos de
vistas correspondentes, muitas vezes, a recortes particulares de mundo.
Os elementos que compõem essas imagens, por sua vez, estão permeados de significados
e por isso podemos apreendê-los como um tipo de texto não-verbal que carrega em si resquícios
1094 É importante salientar que, neste artigo, tomaremos a imagem como “objeto simbólico concreto (não-verbal),
formado por suportes ou canais comunicativos que não são nossos neurônios, como, por exemplo, páginas de revistas,
telas de cinema, visores de TV, fachadas ou laterais de prédios usados para afixar imagens publicitárias, o mármore das
esculturas, os papéis das fotografias, as telas e tintas das pinturas e demais obras artísticas (etc.). ” GALIARI, Meliandro
Mendes. Hipóteses para uma análise discursiva das imagens In: MENDES, Emília (coordenadora); MACHADO, Ida
Lucia; LIMA, Helcira; LYSARDO-DIAS Dylia (organizadoras). Imagem e discurso. Belo Horizonte: FALE/UFMG,
2013, p.358.
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da sociedade a qual está inserida. Desse modo, podemos observar, em conformidade com Mendes
(2013)1095, que;
As imagens têm a faculdade de nos comover, nos indignar, nos fazer rir, nos
persuadir, nos distrair, nos fazer fantasiar; podem ser produtos de alucinações,
estabelecer o cenário de nossos sonhos, povoar nosso inconsciente, enfim, são
parte integrante de nossa paisagem cotidiana – seja ela urbana ou rural, seja ela
consciente ou inconsciente. Não escapamos das imagens, pois mesmo aqueles
com problemas de visão - ou até mesmo acometidos pela cegueira - possuem
tipos específicos de percepções de dados imagéticos, conforme estudos já o
demonstram.
Diante do exposto, não podemos ignorar o papel significativo que a imagem desempenha
em nossa sociedade e que sua atuação em meios de comunicação possui uma função muito mais
complexa que apenas a de acessório ou recurso ilustrativo de textos verbais, como podemos
observar na indústria da Moda, um dos setores que mais se beneficiam do poder de persuasão que
o discurso icônico nos oferece.
Segundo, Deyan Sudjik (2010)1096 a indústria da Moda “é reduzida a uma série inexorável
e sem-fim de imagens de virar a cabeça”, como em catálogos e editorias publicados em revistas e
desfiles de coleções, e “capaz, por mais fugazmente que seja, de agarrar o público enfastiado pela
jugular.” Por isso, um olhar mais apurado diante de uma peça publicitária, como as de grifes
internacionais, pode nos mostrar muito mais que apenas uma nova tendência a ser utilizada na
próxima estação; a escolha das cores, da iluminação, dos protagonistas da cena, a disposição dos
produtos, podem nos revelar uma multiplicidade de interdiscursos relevantes tanto para a
construção da imagem da marca quanto do público que ela deseja alcançar.
Observando o papel significativo da imagem em nossa sociedade, propomos uma análise
dos elementos técnicos e plásticos do editorial “Passe de mágica” da revista Plastic Dreams-Melissa et
circense (2010)1097 em contraste com a campanha publicitária “Melissa Verão” (1980)1098, também da
referida marca, a fim de verificar como tais elementos influenciaram na construção do ethos da
empresa para a captação de seu público alvo em dois momentos distintos da história. Destacamos
1095 MENDES, Emília. Análise do discurso e iconicidade: uma proposta teórica metodológica. In: MENDES, Emília
(coordenadora); MACHADO, Ida Lucia; LIMA, Helcira; LYSARDO-DIAS Dylia (organizadoras). Imagem e discurso.
Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2013, p.13
1096 SUDJIC, Deyan. A linguagem das coisas. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010, p.136
1097 Disponível em: << https://site-melissa-novo.s3-sa-east-1.amazonaws.com/repositories/php3r14xM-plastic-
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ainda que o quadro teórico utilizado será constituído pelas teorizações de Amossy (2011)1099 sobre
o conceito de ethos e pelo modelo de análise de imagens proposto por Mendes (2013)1100.
Percurso teórico
A imagem fixa e seus elementos técnicos
A imagem e suas representações
A imagem possui uma grande gama de significações potenciais, algumas exploram apenas
seus aspectos estéticos estimulando os sentidos, outras potencializam o intelecto como no caso da
imagem que construímos através de um discurso ou até mesmo na leitura de um texto. Tanto a
imagem visual quanto a imagem discursiva apresentam para a sociedade uma variedade de
imaginários1101 que evidenciam o modo de ser e de agir de diversas culturas. Por esse valor
significativo, a imagem vem sendo explorada como um importante meio de expressão e
comunicação no cenário mundial, difundindo ideias e valores funcionando como um instrumento
importante no alcance do poder.
É bem certo que o estudo sobre a imagem não é nenhuma novidade, observamos,
principalmente nas artes plásticas, muitos estudos que visam elucidar técnicas de composição de
diversas construções imagéticas, como fotografias, pinturas, filmes etc1102. Tal objeto de estudo
mostrou-se tão importante que até mesmo estudiosos não pertencentes ao campo das artes
teorizaram sobre o tema, como Roland Barthes que se interessou pela fotografia, publicidade,
pintura e cinema buscando um diálogo com a perspectiva da semiologia em trabalhos como O óbvio
e o obtuso de 1982, lançado na França.
Embora existam muitas propostas metodológicas para a análise da imagem, principalmente
no campo das artes plásticas, utilizaremos neste trabalho uma abordagem voltada para a perspectiva
da Análise do Discurso Franco-Brasileira. Tal metodologia, proposta por Mendes (2013), busca
por meio de uma grade de análise a partir de três grandes categorias, a saber, (i) Macrodimensão
situacional, (ii) Macrodimensão retórico-discursiva e (iii) Dados paraimagéticos e paratextuais
pensar o verboicônico conjuntamente. Buscando ilustrar a metodologia escolhida para análise,
apresentamos a referida grade a seguir:
da iconologia, método histórico que tem por objetivo fazer a síntese dos dados obtidos por uma análise iconográfica.
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Como a proposta elaborada pela autora permite que o pesquisador utilize apenas uma das categorias
da grade de acordo com os objetivos da pesquisa, gostaríamos de salientar que no presente trabalho
teremos como eixo central a Macrodimensão retórico-discursiva dos elementos icônicos e
especialmente os elementos técnicos da imagem fixa (elementos plásticos, planos e ângulos, pontos
de vista e funções da moldura), visto que nosso propósito é analisar como tais elementos colaboram
para a construção da imagem de si da marca Melissa.
Partiremos, neste artigo, da noção de imagem de si ou ethos esboçada por Ruthy Amossy1103
em seus estudos sobre o tema. Para a autora todo ato enunciativo implica a construção de uma
imagem de si. Dessa forma, ao ativar suas competências linguísticas, enciclopédicas e seu estilo, o
locutor, apresenta em seu discurso uma representação de si imersa na interação.
A construção da imagem de si está intrinsicamente relacionada a enunciação, portanto, para
compreendê-la é importante observar a inscrição do locutor e a construção da sua subjetividade na
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Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para
tanto, não é necessário que o locutor faça seu autorretrato, detalhe suas
qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas
competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes
para construir uma representação de sua pessoa.
Assim sendo, podemos compreender que o ethos pode ser construído, até mesmo, em um texto
puramente imagético, posto que as escolhas de composição de cores, o enquadramento, a luz e os
objetos inseridos à cena contribuem para representação tanto de uma instituição quanto de uma
pessoa. Dessa maneira, a noção de ethos como a representação do locutor que se depreende tanto
por quem enuncia quanto pelas modalidades de sua enunciação, pela sua postura, por seu estilo é
de suma importância para a abordagem proposta neste trabalho.
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si só sendo um veículo de expressão do sujeito que através dela concretiza seus anseios de
manifestação do eu.
Considerando a importância sócio histórica que a Moda desempenha veio à necessidade de
se refletir sobre duas das ferramentas mais usadas por essa instituição na atualidade, os editoriais e
as publicidades.
Com o intuito de ampliar seu público alvo a indústria da Moda, a partir da década de 60,
começa a estabelecer novos meios para difundir tendências. Nesse contexto, as revistas de Moda,
que até então desempenhavam um papel de vitrine para as peças produzidas em famosas maisons,
passam a proporcionar uma nova experiência para seus leitores, influenciando não apenas o que
eles deveriam consumir, mas também o seu estilo de vida. As revistas Cosmopolitan (Revista Nova
no Brasil) e Vogue1107 são exemplos desse novo momento da Moda, já que a partir da década
supracitada observa-se uma mudança em sua estrutura, composição e conteúdo, principalmente,
no que se refere aos editoriais que ganham ambientações mais elaboradas, temáticas e formatos
que envolviam o público alvo da revista em mundo de sedução e desejo, como podemos observar
através das imagens:
1107A Cosmopolitan (inicialmente publicada nos Estados Unidos – 1886 e no Brasil com o nome Nova em 1973 pela
editora Abril) é, segundo Joffily (1991, p.73), uma revista feminina destinada às mulheres com ambições profissionais
e certa liberação sexual. Sua linha editorial mistura temas como moda e sensualidade, explorando a construção de uma
identidade de mulher independente. Já a Vogue (primeira edição publicada em Nova York – 1892) apresenta matérias
destinadas à vários mercados, mas prioriza moda, beleza e dicas de gastronomia, viagens e entrevistas com
personalidades. Seus editoriais são famosos pelas belas fotos e pelos produtos com luxuosos e exclusivos.
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Podemos perceber que, em ambos exemplos, há certo cuidado com ambientação das
fotografias, tanto na Figura – 2 quanto na Figura - 3 encontramos cenas que brincam com a
sensualidade, e o requinte do universo praiano proporcionado pela indumentária e pelos adornos
utilizados na cena. O interessante na concepção das duas imagens é que as personagens fazem parte
da ambientação e dialogam com a atmosfera construída de forma natural. Nesse momento,
podemos encontrar uma mudança de perspectiva das revistas de Moda que sai da roupa para o
contexto, o imaginário construído nas imagens dos editoriais.
Entende-se editorial de moda como um gênero caracterizado por aplicar, através de ensaios
fotográficos marcantes, conceitos e comportamentos que diferenciam os produtos divulgados
despertando no consumidor inspirações e desejos. Segundo Joffily1110:
Assim sendo, o principal objetivo desse gênero é mostrar ao consumidor um estilo, uma
forma de interação com o mundo através da roupa, criando, assim, uma tendência. O editorial de
Moda agrega valor às peças expostas e dão sentido a elas, sua função extrapola o consumo puro,
1108 Editorial Vogue, janeiro de 1963, fotografia de Louise Dahl Wolfe. Disponível em:
<https://br.pinterest.com/pin/472526185879584914/>. Acesso em: 15 de maio. 2016
1109 Editorial Cosmopolitan, 1970, fotografia de Duffy/Getty Images. Disponível em
<http://www.gettyimages.fi/license/98695854>. Acesso em: 15 de maio. 2016
1110 JOFFILY, Ruth. O jornalismo e produção de moda. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991, p.12.
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Gostaríamos de ressaltar, no entanto, que optamos por não analisar todas as peças do editorial,
uma vez que o trabalho se caracterizaria como repetitivo, visto que a empresa Melissa, responsável
pela linha editorial da revista analisada, utiliza dos mesmos meios de construção da imagem de si
em todas as fotografias. Desse modo, utilizaremos como corpus, representando o editorial, a Foto
1 PM- Vermelho.
O gênero Publicidade
2016.
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Nesse sentido, podemos entender como é difícil identificar a ação da publicidade em nosso
cotidiano, visto que tal gênero pode incorporar múltiplas facetas sendo assim aplicável a qualquer
zona do universo do discurso. Outra particularidade da publicidade, em especial a moderna, é seu
descompromisso com a apresentação de informações factuais, seu intuito na verdade configura-se
na construção de um ethos que seja favorável ao seu público colocando seu produto como algo de
extrema necessidade para a vida de seu cliente.
Para Maingueneau1113 o texto publicitário mantém uma relação privilegiada com o ethos,
ou imagem de si; ele busca efetivamente persuadir ao associar os produtos que promove a um
corpo em movimento, a uma maneira de habitar o mundo. Esta visão nos permite considerar que
uma publicidade nos confronta a algo que extrapola ao produto vendido, em uma publicidade
podemos identificar a encenação de imaginários sociais, visões de mundo e até mesmo a
disseminação de estereótipos. A partir do exposto, nos atentando à importância do gênero
publicidade, propomos como parte do corpus a campanha publicitária Melissa Verão (1980) veiculada
pela empresa Grendene1114. Tal campanha, divulgada impressa e em meios de comunicação áudio
visuais, é composta por 5 peças, como podemos observar a seguir;
1112 MAINGUENEAU, Dominique. Doze conceitos em análise do discurso. Organização de Sírio Possenti, Maria
Cecília Perez de Souza-e-Silva. Tradução Adail Sobral et al. São Paulo: Parábola, 2010, p. 169 – 170.
1113 _________________________. Cenas da enunciação. Curitiba: Criar, 2006, p.63.
1114 Empresa responsável pela fabricação e divulgação dos produtos da marca Melissa.
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Assim como salientamos no tópico sobre o gênero editorial de Moda, gostaríamos de ressaltar que,
para a análise apresentada no presente artigo utilizaremos como referência apenas uma peça
publicitária (Peça 1 Denise Dummont), por acreditarmos que todas as demais publicidades
compartilham dos mesmos elementos para a construção da imagem de si da marca Melissa.
Análise do corpus
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Foto 1 PM - Vermelho
determina, forma sutil, a imagem do público alvo ideal que a Melissa pretende alcançar ou seduzir,
mulheres modernas, atraentes, misteriosas e divertidas. No contexto esboçado, os sapatos
protagonistas da cena, funcionariam como um elo concreto entre o mundo construído pela marca
e a vida comum de seus consumidores.
Para a Peça 1- Denise Dummont, constatamos a estrutura: a imagem é predominantemente
composta pela cor laranja e alguns traços da cor branca e amarela. A paleta de cores (Paleta –
Denise Drummont) escolhida para compor a publicidade, assim como em Fot 1 PM-Vermelho,
possui um papel significativo. Os tons quentes que vão do amarelo ao laranja estabelecem um
diálogo com a proposta da marca Melissa para o tema da coleção, o verão. Além disso, o uso dos
tons apresentados ressalta a juventude da modelo e sua graciosa sensualidade, o que estabelece uma
interlocução com o público alvo da marca no contexto da publicação da peça publicitária. O
posicionamento das mãos é um fator relevante para a composição da cena, visto que na imagem as
mãos da modelo apontam de forma sutil em direção aos seus pés. Essa estratégia direciona o olhar
do espectador para o produto que percorre um caminho de cima para baixo ao visualizar a imagem.
Em contraposição à imagem do editorial Passe de Mágica que usa figuras anônimas em seu
ensaio priorizando o design dos calçados e a cena construída, em Peça 1 – Denise Drummont é
utilizado como estratégia de captação uma atriz famosa dos anos 80, essa estratégia, comum para
publicidades da época, explora a composição de uma imagem para seu consumidor que se aproxima
ao da atriz, uma jovem bela, delicada e sedutora. A prioridade da campanha, ao optar por uma
celebridade, é a relação do produto com a imagem da atriz e seus hábitos, neste caso, o calçado
proporcionaria uma aproximação entre a protagonista da publicidade e seu consumidor final, já
que as principais referências de estilo e moda estavam relacionadas à televisão (telenovelas). Desse
modo, a marca Melissa nos anos 80, com uma visada mais popular, constrói para si e para seu
público uma imagem de juventude, sensualidade e praticidade em contraposição à imagem
construída no editorial, posto que, a marca apresenta-se como moderna, divertida e inovadora.
Proporcionando ao seu público alvo não apenas um produto mais uma visão de mundo legitimada
pela instituição Moda e que tem a credibilidade financiada por indivíduos de diversas áreas, como
fotógrafos, designers, estilistas, arquitetos, modelos e artistas reconhecidos no cenário mundial.
Considerações finais
A imagem, embora estática na perspectiva visual, pode ter diversos significados conforme
a interpretação dos recursos usados em sua composição, dada por cada cultura e contexto. A
disposição dos elementos em uma imagem, as cores usadas, os tipos de moldura e close são
aspectos de extrema relevância que carregam em si significações que devem ser decodificados.
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A partir da comparação das grades de análises, pode-se perceber que ocorreram mudanças
significativas no modo de apresentação dos produtos da marca Melissa. Apesar de ainda recorrer à
visadas patêmicas e ao ethos de sedução para chamar a atenção de seu público alvo, percebe-se que
atualmente há uma preocupação maior com a qualidade do que é apresentado ao consumidor. Na
década de 80 as publicidades visavam à apresentação do produto como símbolo para a construção
de um estilo de vida. Para isso a marca recorria ao uso de atrizes de grande prestígio da época que
usavam o calçado mostrando em suas publicidades um padrão de beleza e uma postura a ser
almejada. Já no editorial podemos perceber uma postura diferente da marca, já que não existe uma
tentativa explicita de amalgamar a imagem de uma figura pública ao produto apresentado, em
contraposição a essa estratégia, a Melissa opta pelo anonimato dos indivíduos participantes da cena.
Desse modo, em um primeiro olhar, a marca deixa de trabalhar apenas com um único objetivo
‘fazer/comprar’ para dedicar-se, também, a difusão de uma visão de mundo própria do universo
construído pela empresa.
No que se refere aos elementos plásticos, observamos que tanto nas publicidades quando
no editorial usa-se como recurso de captação a luminosidade voltada para o produto e que as cores
participam com um elemento importante, visto que em ambos os gêneros são utilizadas de maneira
harmônica, com blocos de pouca variação de cor. Este recurso serve como uma forma de
evidenciar o designer dos calçados. Percebe-se ainda que nos editoriais o principal objetivo é o de
mostrar que os calçados possuem um certo requinte e que foram feitos para mulheres modernas a
frente do seu tempo. Nesse contexto, não é o produto que dita o estilo de vida e sim o consumidor
que cria para si um imaginário que equipara a sua realidade e seu ethos com o da mar. Conclui-se
que os profissionais envolvidos na construção da imagem da marca estão cada vez mais
preocupados com detalhes que agem tanto no olhar de seu consumidor alvo como também em seu
psicológico. Estudos voltados à exploração da imagem como forma potencial de captação são cada
vez mais recorrentes, visto que a imagem possui uma linguagem própria e de fácil acesso.
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Resumo: Oswaldo Goeldi e Murilo Mendes são duas figuras importantes para a Arte Moderna
Brasileira, Goeldi como primeiro gravador moderno no Brasil e Mendes como poeta, crítico e
colecionador de arte. Através dos seus contatos com artistas e uma recíproca admiração, Medes
adquire um grande acervo de arte, tanto brasileira como internacional. Dentre as obras presentes
neste acervo, quatro são de autoria de Goeldi. O presente artigo busca apurar uma relação de
admiração entre ambos artistas que expliquem a trajetória das obras de Goeldi até Murilo
Mendes.
Introdução
Murilo Mendes nasceu na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, no ano de 1901 e desde
muito jovem o ato de ver foi de suma importância para sua atividade como poeta. O primeiro
relato deste ato se dá no ano de 1910, com a passagem do cometa Halley pela Terra, esta passagem
o impactou profundamente, deslumbrando-o1116 por completo e sendo o primeiro momento em
que Murilo tem sua visão atraída por cores, movimentos e arte em si. Como veremos mais adiante,
o poeta possuía íntima relação com as artes plásticas, música, literatura e teatro, sendo tais
expressões artísticas fundamentais a seu ofício.
O ato de ver para Mendes tem um caráter muito mais peculiar do que apenas seu significado
verbal, pois se aplica ao modo de observação do mundo. É o que o poeta chama de olho armado 1117,
1116 Mas ainda hoje, a visão do cometa Halley é uma das impressões mais fortes que guardo. Nunca vi coisa mais bela
que aquele corpo luminoso, com sua enorme cauda resplandecente de estrelas, passeando pelo céu de minha cidade
natal. Durante três noites em que apareceu não dormi um minuto sequer e talvez tenha sido o primeiro instante em
que me senti tocado pela Poesia. MENDES, Murilo in GUIMARÃES, Julio Castañon (São Paulo, 1986).
1117 O prazer, a sabedoria de ver chegavam a justificar minha existência. Uma curiosidade inextinguível pelas formas
me assaltava e assalta sempre. Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver, rever. O olho armado me dava
e continuava a me dar força para a vida. (MENDES, 2014).
MENDES, Murilo. Convergência, São Paulo: Cosac Naify, 2014.
MENDES, Murilo. A idade do serrote. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
______________. Antologia Poética. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
______________. Poesia completa e prosa. Luciana Stegagno Picchio (Org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
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No ano de 1920, Murilo muda-se para o Rio de Janeiro, a convite do irmão, para trabalhar
como arquivista da Diretoria do Patrimônio Nacional e em 1921, conhece o então pintor e
arquiteto Ismael Nery. Foi através da influência principal de Nery que Murilo tomou conhecimento
dos movimentos da arte moderna que ocorriam na Europa. Nery era recém chegado do continente,
local onde teve contato com a arte surrealista que já interessava tanto a ele como a Murilo.
Em seu livro Recordações de Ismael Nery [uma reunião de 17 artigos previamente publicado no
Suplemento Dominical Letras e Artes do Jornal A Manhã] Mendes demonstra o quão profícua foi
a amizade para ambos artistas. Segundo Eleotério1118, este memorial relata o aprendizado estético
que Murilo recebeu de Nery e a partir dele é possível perceber toda a repercussão que este encontro
projetou na vida do poeta. Sendo assim, é possível dizer que Ismael foi o grande responsável pelo
primeiro conhecimento e interesse artístico de Mendes, enquanto que a Nery, além da amizade,
Murilo é considerado o principal responsável pela preservação1119 de sua obra, já que por muitas
vezes recolheu e guardou muitos trabalhos que eram jogados fora pelo artista.
Através de Nery, Mendes entra em contato com outros artistas, criando um grande círculo
de amizades em volta de si. Tais amizades serão matéria de sua produção poética, prosa e crítica,
assim como Murilo será, por sua vez, matéria para a produção estética destes amigos. Dentre este
grupo próximo de amigos-artistas estão Jorge de Lima, Di Cavalcanti, Portinari, Flávio de Carvalho,
Guignard e o casal Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes1120. Além de importantes críticos
da época como Mário Pedrosa1121.
Tais amigos geralmente se reuniam, de maneira informal, a fim de falar sobre arte,
principalmente sua vertente surrealista. A Murilo, este contato também era mais uma forma de
aprimorar seu olhar crítico e esta maneira de relacionar-se entre artistas e críticos irá persistir em
sua vida, mesmo no final dos anos de 1950, quando muda-se para a Itália.
1118 ELEOTÉRIO, Maria de Lourdes. Murilo Mendes, Colecionador. Remate de Males, Departamento de Teoria literária
IEL/UNICAMP, Campinas: UNICAMP, no. 21, 2001.
1119 Em suas memórias, Emmanuel [Nery, filho de Ismael] afirma: Murilo salvou a memória das obras escritas e
pintadas por meu pai [é] o único responsável pela preservação do acervo. (ELEOTÉRIO, 2001, p.37).
1120 DAIBERT, Arlindo. Caderno de escritos. GUIMARÃES, Julio Castañon (Org.), Rio de Janeiro, Sette Letras,
1995.
ELEOTÉRIO, Maria de Lourdes. Murilo Mendes, Colecionador. Remate de Males, Departamento de Teoria literária
IEL/UNICAMP, Campinas: UNICAMP, no. 21, 2001.
1121 AMOROSO, Maria Betânia. Murilo Mendes: o poeta brasileiro em Roma. São Paulo: Editora da Unesp; Juiz de Fora:
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É através deste contato com amigos que Murilo vai se descobrindo colecionador e
compondo sua coleção de arte. Diferentemente do que ocorria com colecionadores que não
pertenciam ao métier, a coleção muriliana dá-se como forma de apreço entre amigos1122, ou seja, ao
invés de compras de obras, estas geralmente eram presentes, em datas de ocasiões especiais, ou até
mesmo em agradecimento a uma crítica positiva feita pelo poeta. Este apreço é confirmado através
das dedicatórias1123 existentes em muitas obras de seu acervo, assim como escritos do próprio poeta,
que uma forma própria de catalogação, não raro datava o momento de recebimento do presente,
além da ocasião.
A partir desta coleção é possível perceber como se perpetuou a história do próprio poeta,
além de nos dar uma visão do meio artístico principalmente brasileiro e italiano no momento em
que este viveu. Além, como observou Giulio Carlo Argan1124, a coleção do poeta é também
considerada uma maneira de Mendes pesquisar, aprender e construir um olhar a respeito de seu
próprio ofício.
Dentre os artistas estrangeiros que compõe atualmente a coleção, que hoje se encontra no
Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, em Juiz de Fora podemos encontrar: Magnelli, Ernst,
Arp, Braque, Picasso, Miró, Ensor, Leger, Dorazio, Perilli, Turcato, Fontana, Capogrossi, Corpora,
Biggi, além de Maria Helena Vieira da Silva. Dentre os brasileiros é possível encontrar Di
Cavalcanti, Flávio de Carvalho, Portinari, Guignard, Fayga Ostrower, Marcelo Grassmann, Reis
Júnior, Atos Bulcão, Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi. Esta parte do acervo é composto
principalmente por retratos de Murilo, como os feitos por Carvalho, Reis Junior e Guignard e por
litografias, xilogravuras e técnicas mistas.
Mesmo a coleção muriliana sendo composta em sua grande maioria por presentes
oferecidos de amigos, também revela um caráter da personalidade do poeta, que dá importância ao
ato de possuir uma coleção de arte. Possuir uma coleção de arte revelava, no período e atualmente,
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uma espécie de aura de civilização à figura do colecionador. Percebe-se tal fato pela possível compra
que Murilo Mendes fez de obras de Pablo Picasso.
Embora o expressionismo exaltado por Goeldi se relacione, ele não possui as mesma bases
do Alemão1129. Goeldi, mesmo tendo nascido no Brasil, passou a adolescência e o início da vida
adulta na Europa, retornando a América do Sul quando já encontrava-se com vinte e dois anos. Ao
1125 Em ocasião ao 60º aniversário do artista, Jayme Maurício escreve no Correio da Manhã de 25 de Outubro de 1955
(grifo nosso): Oswaldo Goeldi vai fazer 60 anos na próxima segunda-feira, 31. É uma grande data para os meios
artísticos brasileiro, onde o esplêndido desenhista e gravador é das mais sólidas vigas mestras.
1126 No Jornal Correio da Manhã de 6 de Março de 1955, Rubem Braga escreve: É mesmo um artista de grande classe
internacional esse bom e torturado Goeldi, tão autêntico em seu expressionismo doloroso.
1127 O primeiro contato de Goeldi com Kubin dá-se em 1917, quando o primeiro realiza sua primeira exposição, na
Galeria Wyss, na cidade de Berna. A amizade e admiração entre estes dois artistas pode ser constatada através de cartas
trocadas entre ambos, nas quais Goeldi, por vezes, pede a Kubin aprovações a suas obras: "Caro Senhor Kubin, queira
ter a bondade de olhar meus desenhos [...] Nota-se logo, a forte influência que o senhor exerce sobre mim [...] Num
momento crítico em minha vida foi o senhor que me deu força." (GOELDI, 1926).
FILHO, Paulo Venâncio. Goeldi: Um expressionista nos trópicos. Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo: Edição nº
40, 1994.
GULLAR, Ferreira. Artes Plásticas. Jornal do Brasil, Suplemento Dominical. Rio de Janeiro: 12 de Janeiro de 1957.
Disponível em:
<http://www.centrovirtualgoeldi.com/paginas.aspx?Menu=biografia_entrevista&opcao=EN&pagina=0&iditem=4
0> . Acesso: 23 de setembro de 2014.
Carta de Goeldi a Kubin de 4 de Agosto de 1926. Disponível em:
<http://www.centrovirtualgoeldi.com/paginas.aspx?Menu=cartas_interior&pagina=0&opcao=A> Acesso: 23 de
setembro de 2014.
Carta de Goeldi a Kubin de 16 de Agosto de 1930. Disponível em:
<http://www.centrovirtualgoeldi.com/paginas.aspx?Menu=cartas_interior&pagina=12&opcao=A> Acesso: 23 de
setembro de 2014.
1128 CABO, Sheila. Goeldi: Modernidade Extraviada. Rio de Janeiro: Diadorim, 1995.
1129 FILHO, Paulo Venâncio. Goeldi: Um expressionista nos trópicos. Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo: Edição
nº 40, 1994.
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se estabelecer aqui após este período, não reconhece o país como àquele de sua infância, causando-
lhe um sentimento de estranhamento e falta de conexão com as terras brasileiras, como é possível
constatar pelo relato que dá a Ferreira Gullar, em 1957:
Tendo nascido no Brasil, estava em Berna em 1916, e nesse tempo, com meus
vinte anos, fazia desenho, não gravava. A guerra devastava tudo e o sentimento
era de desespero e angústia. [...] Em 1919 vim para o Brasil com a minha família.
A paisagem brasileira me pareceu estranha, era como se eu nunca houvesse
estado aqui. Procurei então assimilar as formas que, com a minha ausência,
tinham mudado de fisionomia e de expressão.
Assim sendo, em terras brasileiras, o conflito, o entrechoque de Goeldi com o mundo dá-
se pela ausência de vínculos com a realidade brasileira da época1130. Para Filho, através das obras de
Goeldi é possível perceber seu olhar estrangeiro. O trabalho do artista apresenta-nos o choque
cultural daquele ser que não mais se compreende em sua própria pátria após anos no exterior.
A poética de Goeldi nos apresenta o mundo dos rejeitados pela modernidade. Sendo assim,
seus desenhos, ilustrações e xilogravuras são permeados por imagens de pescadores, prostitutas,
ladrões e casarões sombrios. Os animais, em sua grande maioria são os urbanos: o cachorro e o
urubu, animais que só vivem onde o ser humano vive e com ele compartilha o mesmo destino.
Nota-se em seu trabalho uma quase total negação do espaço perspectivado e as figuras nelas
apresentadas são criadas por linhas através do gesto que é manifesto pelo rápido corte da goiva na
madeira. É criado um efeito de luz que contrasta com blocos escuros criados pela tinta preta na
madeira.
Nas obras que pertenciam ao poeta Murilo Mendes é possível encontrar estas mesmas
características citadas. Também é importante ressaltar que todas as obras pertencentes ao poeta
foram datas e assinadas a lápis pelo próprio artista, logo abaixo do final da gravação, sendo que
uma delas possuí a indicação do número de cópias e em outras a informação é omitida.
A primeira obra a ser descrita é datada de 1925 e foi denominada Centro Virtual de
Documentação e Referência Oswaldo Goeldi como Mulheres no Mangue. Nesta obra nos são
apresentadas duas mulheres, uma sentada e outra de pé em um ambiente interno de uma casa, na
qual é possível ver o sol através de uma janela entreaberta. A gravação é feita a partir de poucas
linhas e há grande presença de uma massa e embora não fosse comum a Goeldi, há uma perspectiva
marcada pelos ladrilhos do chão, que vai em direção a janela, na qual vemos o sol.
FILHO, Paulo Venâncio. Goeldi: Um expressionista nos trópicos. Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo:
1130
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O corpo das mulheres se contrastam, já que um é formada por uma grande massa negra de
cor e a outra pela sua ausência, sendo marcado somente por linhas. Embora a gravação seja um
ofício difícil devido a rigidez da matriz, o rosto de ambas mulheres são expressivos e suaves, sendo
que em uma delas há o sinal de um leve sorriso.
Mulheres no Mangue, assim como outras obras de Goeldi pertencentes ao acervo do Museu
Murilo Mendes, chegou colado em um paspatur, sendo mantido desta maneira a fim de promover
sua conservação. Era comum por parte dos artistas à época, tanto por Murilo Mendes, escrever
dedicatórias ou informações relevantes no verso da obra, sendo assim, a colagem ao paspatur
dificulta a observação de alguma comunicação entre estes artistas. Nesta também não há a
numeração de quantas cópias foram realizadas, porém sabe-se que não é única, já que no catálogo
da Associação Artístico Cultural Oswaldo Goeldi1131 a mesma obra está catalogada em outras
coleções, como a Coleção Hermman Kümmerly.
Na xilogravura há também a representação de uma placa onde se lê: Bôas Entradas, Rio,
1933 e logo abaixo a assinatura do artista [O.Goeldi]. Tal escrito confere certa peculiaridade a obra,
já que Goeldi não tinha o costume de gravar textos em suas gravuras, além de assiná-las,
1131Grande parte do acervo de obras de Oswaldo Goeldi estão catalogados online e estas informações são passíveis de
pesquisa no website da Associação Artístico Cultural Oswaldo Goeldi, que atualmente trabalha com o objetivo de
divulgação, catalogação e conservação das obras do artista. A associação é presidida por Lani Goeldi, sobrinha-neta do
gravador.
GOELDI, Lani. Catálogo da Exposição: Cassiano Ricardo gravado por Oswaldo Goeldi.
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principalmente na matriz.1132 A julgar pelo texto, Bôas Entradas é um "Feliz Ano Novo", supõe-se
a princípio que esta obra não tenha sido realizada com a finalidade de ilustrar algum jornal ou
revista, mas sim como um cartão de felicitação de ano novo, a ser presenteado a um amigo.
Oswaldo Goeldi, embora a primeira vista aparentava ser uma reservada e de poucas
amizades, era muito afetuoso para com seus amigos e tinha como hábito presentea-los com
pequenas obras, assim como também recebia presentes. Em artigo para o Correio da Manhã, de 6
de Março de 1955, o cronista Rubem Braga relata que havia presenteado a Goeldi com um pedaço
de peroba. Da mesma maneira, era hábito de Murilo Mendes receber cartões de amigos, com
pequenos desenhos e a julgar por cartas com pequenas ilustrações trocada por Goeldi e outros
amigos, como Alfred Kubin, tal gesto era comum entre artistas.
Por fim, esta é a única obra de Goeldi dentro do acervo de Murilo Mendes que não chegou
ao acervo do Museu Murilo Mendes colado em um paspatur, ou seja, um papel no qual a obra de
arte é fixada, impedindo que esta entre em contato com o vidro ao ser emoldurada. Isto reforça
ainda mais o argumento que o poeta a tenha guardado como um cartão de felicitações ao ano de
1933.
A terceira xilogravura é Vilarejo, de cerca de 1927. Nesta gravura é possível observar três
casas, duas delas formadas pela tinha preta, delimitada por linhas claras e uma das casas formada
por uma massa ser cor, delimitada por linhas negras. No campo posterior as casas, vê-se em finas
linhas um morro, também composto por um sol que se põe, ao lado, há também um poste de
fiação elétrica. A frente das casas vê-se um carro de boi e uma figura humana que carrega uma
espécie de balde na cabeça, demonstrando o estado de pobreza de tal vilarejo. Esta é uma das obras
que está assinada a lápis por Goeldi e é possível observar por entre a tinta os veios finos da madeira
de impressão e, assim como Mulheres no Mangue, a obra chegou ao museu colada em paspatur,
levando a acreditar que já havia sido exposta anteriormente em outro lugar.
A última obra de Goeldi que atualmente se encontra no Museu de Arte Moderna Murilo
Mendes é também a que se tem mais informação a seu respeito. O Ladrão, foi gravada no ano de
1955 com a finalidade de ilustrar conto de Mário de Andrade, provavelmente o conto homônimo,
que foi publicado postumamente a morte do poeta, na coletânea Contos Novos. É a maior obra em
1132Em entrevista realizada com Lani Goeldi, a sobrinha-neta de Oswaldo Goeldi revela que o artista era muito crítico
a respeito de sua própria arte e que somente assinava obras caso as considerasse um primor.
BRAGA, Rubem. Goeldi, etc. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 6 de março de 1955.
MAURÍCIO, Jayme. O Itinerário das Artes Plásticas. O Correio da Manhã, 25 de Outubro de 1955.
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tamanho dentre as de Goeldi que pertencem a coleção do museu, assim como também a mais
complexa.
Em primeiro plano é possível ver, composto por uma massa negra e delimitado por linhas
finas sem cor, a figura de um homem, que usa roupas de manga comprida e um chapéu, este apoia-
se em um guarda-chuva com o braço esquerdo enquanto no direito carrega uma espécie de pacote.
Na rua representada é possível ver [aos moldes goeldianos] objetos solitários, como uma
vassoura, além de outro que se assemelha a uma mangueira, como se após a chuva, tivessem sido
levados até a via pela água. Em segundo plano há a representação de três grandes casas, também
compostas pelo negro e delimitado por linhas "brancas". Em uma perspectiva que se forma no
campo superior direito da gravura, vê-se ruelas.
Aqui, Goeldi colore alguns pontos do espaço: o vermelho compõe algumas janelas das
casas, além de ser utilizado para delimitar a sombra de ambas figuras humana, ponto de ônibus e
guarda-chuva. O amarelo preenche o que seria a placa de um ponto, possivelmente de ônibus. O
que percebemos na utilização de cores quentes, em especial nesta gravura, é que o artista as utiliza
com o efeito de gerar dramaticidade a cena, em pequenos pontos específicos.
Outros aspectos que também auxiliam na criação desta dramaticidade são as linhas que
compõe o céu da gravura, assim como as que formam as ruas, são finas, porém dão a impressão
de que foram criadas através de um forte movimento da goiva na madeira. As linhas do chão
ajudam, além , a compor o espaço, demonstrando o caminho feito pelas ruas, enquanto as do céu
não possuem uma direção específica. Por fim, é perceptível os veios da madeira por entre as massa
de tinta, levemente sutis.
Assim como as demais, esta obra também esta assinada a lápis pelo artista [Osw.Goeldi],
além de também nomeada com a mesma letra [O Ladrão]. É a única dentre as do museu que possuí
referência quanto ao número de cópias, em letra a lápis que se assemelha a mesma da assinatura do
gravador, sendo a número 391 de 400 cópias. O tamanho da obra, maior do que o habitual pode
ser justificado pelo fato de, após o prêmio da I Bienal de Arte de São Paulo, em 1951, no qual
Goeldi recebe o prêmio de gravura há um maior interesse em sua obra, o que faz com que o
gravador busque trabalhar em formatos maiores, encomendando madeiras tropicais de maior
resistência, como a peroba rosa.
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Porém de acordo com Nehring1133, Mendes era um autor que possuía grande complexidade
em sua escrita, sendo assim não pode ser reduzido a esquemas, como que se, por identificar-se a
determinada vertente da arte automaticamente rejeitava outras. Nota-se que, se em algum
momento, principalmente após a década de 1950, Mendes apresentou maior afinidade a um
determinado estilo em detrimento do outro, foi opção devido ao momento histórico-social da arte
no período.
Um dos aspectos ideológicos do modernismo era a questão da criação de uma arte a serviço
do homem, ou seja, a criação de uma arte que promovesse o saber crítico e o desenvolvimento das
potencialidades humanas1134. É a partir destas características da arte moderna que podemos
justificar o interesse de Mendes a arte expressionista. Segundo Marta Moraes Nehring:
Um aspecto a ser destacado na crítica de arte de muriliana é a escolha dos artistas que serão
retratados criticamente por ele. O crítico italiano Giulio Carlo Argan1136 relata em artigo a respeito
do poeta que as escolhas de Mendes não se baseavam na finalidade de inserir os retratados por ele
dentre um período histórico da arte, mas sim devido a afinidade, admiração e principalmente
amizade deste artista com o poeta. Sendo assim, a afinidade com os expressionistas pode ser
demonstrada através de textos críticos tanto em prosa como em poesia.
1133 NEHRING, Marta Moraes. Murilo Mendes crítico de arte - a invenção do finito. São Paulo: Nankin Editorial, 2002.
MENDES, MURILO. Lasar Segall - A importância de Segall. Letras e Artes, Suplemento de A Manhã, Rio de Janeiro, n.
207 e 208, 20 e 27 de maio de 1951.
1134 GUIMARÃES, Julio Castañon. Territórios e Conjunções: Poesia e prosa críticas de Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Imago,
1993
1135 NEHRING, Marta Moraes. Murilo Mendes crítico de arte - a invenção do finito.
1136 O artigo de Argan foi escrito nos anos de 1970, como a introdução de uma antologia de escritos a respeito de
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Um exemplo a ser dado são os textos críticos a Lasar Segall1137, escritos em 1951, no qual
Murilo Mendes parte em defesa da arte segaliana. Àqueles que criticavam as obras de Segall,
alegando sentimento de tristeza nela contidos, Murilo rebate com o discurso de que não é objetivo
da arte a diversão. O poeta em sua crítica trata a respeito da técnica do gravador, especificamente
a respeito da utilização da cor por parte de Segall. Mendes apresenta a preferência de cores do
gravador, que utilizava tons de terra, cinzas e verdes pálidos. A Murilo, as obras de Segall são
neutras, sossegadas, porém impressionam na capacidade do trabalho de Lasar com as cores,
dizendo que "este aí sabe pintar". Para Mendes, em argumento no mesmo artigo, a inteligência no
emprego das cores por parte dos artistas é o que distingue um pintor acadêmico do moderno. Este
último possui maior consciência a respeito do pigmento, entendendo que não oferece apenas um
dado psicológico, mas também a uma luz própria, sendo encarregada de dar profundidade a obra.
Logo após, aproxima Segall dos pintores do Quattrocento Italiano, o que expõe a importância
que dava a Segall àquele momento da arte brasileira. Finaliza a crítica mais uma vez, ressaltando o
gravador com um discurso humanista, caro ao período:
Até o momento não foi possível encontrar nenhuma crítica formal feita pelo poeta sobre
Oswaldo Goeldi. Mas, como afirma Argan, a crítica muriliana não se distingue de sua criação
poética, o que nos permite elencar o poema de Mendes Homenagem a Oswaldo Goeldi, publicado na
série Parábola e atualmente no livro Poemas - 1925-1955, a uma crítica de arte:
Oswaldo Gravas,
1137 No ano de 1951, Murilo Mendes escreve uma crítica a Lasar Segall no Suplemento Dominical "Letras e Artes" do
Jornal "A Manhã". A crítica é divida em três partes, sendo a primeira publicada em 20 de maio de 1951, a segunda em
27 de maio de 1951 e a terceira em 03 de junho de 1951.
GUIMARÃES, Julio Castañon. Murilo Mendes. São Paulo: Brasiliense, 1986.
MAMMI, Lorenzo. Murilo Mendes, crítico de arte. Campinas-SP, (32.1): pp. 81-93, Jan./Jun. 2012
1138 MENDES, MURILO. Lasar Segall - A importância de Segall. Letras e Artes, Suplemento de A Manhã, Rio de Janeiro,
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Silêncio e Solidão,
Oswaldo Gravas.
Neste poema, nos é apresentado a visualização das obras do gravador, assim como o
processo de criação do mesmo. O poeta intercala elementos temáticos da obra de Goeldi [Os
peixeiros que partilham peixe e onda, Pássaros de solidões de água e mato], com elementos estéticos
[No preto, no branco, no vermelho e no verde].
No verso "Não sujeitas o desenho a gravação", Murilo Mendes chama atenção ao processo
de gravação de Oswaldo Goeldi. Este artista não iniciou seu ofício diretamente na gravura, mas
sim, através de ilustrações, as quais não abandonou quando começou a fazer xilogravuras. Goeldi,
"fiel a teu ofício" foi um artista que não gravou diretamente na madeira, mas sim ilustrava muito,
as vezes por anos para enfim ter uma base do que gostaria de passar para a placa, como em 1951,
relata a Ferreira Gullar: "Toda minha gravura é desenhada muitas vezes, tomo apontamentos e só
depois, as vezes anos, nasce a gravura." Conclui-se que, Murilo Mendes, conhecia este hábito do
gravador.
Por fim, Mendes ainda consegue retratar em seu poema os sentimentos que já eram caros
as obras de Goeldi: Solidão, Abandono e Incomunicabilidade [Gravas o abandonado, o triste, o
único, Oswaldo Gravas, gravas qualquer solidão].
De acordo com Mammi1139, o poema também marca uma nova postura crítica por parte do
poeta:
Tal poema demonstra que Murilo possuía grande interesse pela obra de Goeldi, de forma
a entendê-la a partir de pontos específicos, além de admirá-lo como artista, já que, como foi
explicado, o poeta, em sua grande maioria escrevia, principalmente poemas, somente àqueles que
eram caros a sua admiração. 1141
1139 MAMMI, Lorenzo. Murilo Mendes, crítico de arte. Campinas-SP, (32.1): pp. 81-93, Jan./Jun. 2012.
1140 MAMMI, Lorenzo. Murilo Mendes, crítico de arte.
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O poema Homenagem, na maneira como foi escrito, a partir de versos curtos, apontando
elementos opostos [Preto, Branco], assemelha-se a uma ode, na qual Murilo celebra a arte e o
processo criativo do gravador. E aos modos expressionistas, Murilo descreve cenas nas quais
apresenta o conflito entre o belo e o feio, entre a beleza das cores e do traço do artista que se
conflagram com as imagens da realidade nelas apresentadas1142.
Considerações Finais
Goeldi, mesmo a primeira vista, sendo uma pessoa solitária, possuía seu círculo de
amizades, da mesma maneira de Mendes. Um destes amigos era Reis Júnior, que junto com sua
companheira o acolheu logo após a decisão familiar de mandá-lo a Europa. José Maria dos Reis
Júnior, também artista, no ano de 1923 pintou um retrato de Murilo Mendes1143, o mais antigo do
poeta. Como os demais retratos da coleção de Murilo foram presentes de amigos artistas, há fortes
indícios de que o retrato feito por Reis Júnior também o tenha sido. Sendo assim, este pode ter
sido o contato que apresentou Oswaldo Goeldi a Murilo Mendes.
Porém, os sinais de admiração entre estes dois artistas já estão extremamente claros. O
caráter colecionador de Murilo Mendes, juntamente com os poemas demonstram tal fato. Estes
primeiros pontos de contato entre os dois, nunca antes estudados em conjunto podem explicar os
meios que levaram as obras de Goeldi a coleção de Mendes e assim aprofundar ainda mais o
conhecimento que existe atualmente a respeito do acervo do poeta.
De acordo com Renata Oliveira (2012), no ano de 2011 ocorreu a exposição "Retratos de Murilo Mendes", no
1143
Museu de Arte Murilo Mendes, de 24 de Maio a 31 de Julho. A exposição contou com várias obras, sendo uma delas
denominada "Retrato de Murilo Mendes", em óleo sobre tela, datada de 1923, cedida ao museu pela coleção Luiz Pinto.
CAETANO, Renata Oliveira. Murilo Mendes por Flávio de Carvalho: Relações Intelectuais através de retratos. 2012. 177 páginas.
Dissertação de Mestrado. História. Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora.
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Adolfo Cifuentes,
Doutor em Artes, UFMG
professor EBA, UFMG.
adolfocifuentes27@gmail.com
Resumo: Desde o cartaz à fotonovela, desde a publicidade ao design gráfico, passando pela matéria
jornalística e pelas narrativas contemporâneas de escritores como Winfried Georg Sebald ou Mario
Bellatin fotografia e texto passaram já por vários tipos de relações, interconexões e
experimentações. A própria noção de studium barthesiano assinala uma relação essencial entre
fotografia e palavra: a informação da foto não está contida na foto, senão na narração que a
acompanha, na sua inserção em cadeias culturais e discursivas que, por definição, estão fora da
foto. Também os usos do fotográfico realizados pela arte conceitual em geral, e as experimentações
inter-mídia realizadas por artistas como Ian Hamilton Finlay assinalam um rico campo de diálogos
e articulações não só entre palavra e imagem, mas também entre fotografia e texto, fotografia e
narrativa, fotografia, palavra, pensamento, arte e linguagem. Há já vários anos Tida Carvalho (Maria
Aparecida de Oliveira Carvalho) formada em Letras com pesquisas de doutorado e pós-doutorado
em poesias concretas e visuais brasileiras e latino-americanas e Adolfo Cifuentes (artista visual,
professor na área de fotografia na EBA, UFMG) vêm pesquisando esse leque de relações entre
Fotografia e Texto e Narrativa. Esta comunicação faz um mapeamento básico dessas relações e
deseja instigar pesquisas teóricas e práticas nesses pontos de encontro entre fotografia e palavra.
Palavras-chave: Fotografia; Palavra; Imagem; Fotorreportagem; Foto-textualidade
Um buraco negro povoa a história da fotografia: boa parte das imagens clássicas dessa
história, de Cartier-Bresson a Robert Capa ou Evandro Teixeira, constituem apenas o segmento
visual de fotorreportagens, ou seja, de narrativas foto-textuais. A foto foi isolada da matéria (foto-
jornalística) da qual fazia parte. Essa separação, porém, aconteceu não só no processo de
construção da história da fotografia como mídia ou medium específico. Foi também através desses
1144 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas 3: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, pág. 94.
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isolamentos que escrevemos a história da “Arte” e da “Pintura” ao longo do século XIX e primeiras
décadas do XX: unir os bisões de Altamira, um ícone bizantino, a Gioconda e as Marylins Monroe
de Andy Wharhol sob a denominação de "Pintura" foi um exercício estratégico realizado pela
modernidade para historiar: dotar de unidade narrativa um fenômeno disperso, multiforme e
heterogêneo. Uma fotografia, como toda imagem, está ligada a usos e práticas enunciativas,
1145
discursivas, simbólicas e culturais. A noção de studium barthesiano assinala esse nexo entre
fotografia e palavra narrativo-descritiva: a informação da foto não está contida na foto, senão no
contexto cultural, técnico, referencial que dá sentido à imagem, na narração que a acompanha e
que a insere em cadeias discursivas que estão, por definição, fora da foto.
A famosa frase “Uma imagem vale mais do que mil palavras”, atribuída a Confúcio, e também
ao poeta chinês Lin Yu-Tang entrou no domínio da nossa época pelo viés das industrias da
publicidade e dos oligopólios da mídia. Exalta-se nela o poder da imagem, mas essa exaltação
acontece, justamente, no contexto da virada que a cultura Ocidental viveu nos meados do século
XIX: o desenvolvimento das tecnologias e indústrias da imagem e do audiovisual, que
acompanharam e evidenciaram o avanço do capitalismo ao longo da modernidade, e que são
igualmente constitutivas, hoje, via as redes e plataformas digitais, das revoluções tecnológicas e
sociais das últimas décadas destes tempos que, dependendo do contexto, denominamos pós-
modernos ou contemporâneos. Paradoxalmente, porém, é nesses contextos especialmente (mídia,
publicidade), que a imagem nunca circulou sozinha. No telejornal, na capa da revista, a foto, o
“registro” do evento, não só “ilustram” a matéria apresentada, eles têm funções gramaticais e
discursivas bem mais complexas que o puro nível representacional: foram selecionados dentre
vários outros, ocupam a primeira ou a última página, têm ou não um destaque ditado pela lógica
discursiva e os interesses político-econômicos dos donos do jornal ou da emissora. Relacionam-se
com os objetivos e tipos de impacto que a matéria quer direcionar no contexto dos eventos que se
tem interesse em influenciar, destacar ou apagar, respondem a lógicas estratégicas: fazem caricatura,
exaltam, minimizam, sugerem como irrelevante, urgente, ridículo, perigoso, bondoso, de interesse
público (ou não), etc. Essas afirmações são igualmente verdadeiras para a indústria do desejo que
constitui a publicidade: por definição, longe de um simples nível representacional as imagens desse
campo estão totalmente carregadas pelos discursos e gramáticas da intencionalidade e do desejo.
Mas nas histórias particulares da pintura e da fotografia temos também os encontros diretos
entre palavra e imagem nas superfícies de inscrição dos signos. A escrita é sonoridade traduzida a
signo gráfico, a imagem, linha e cor. A “literatura” é uma invenção recente na história da língua,
1145BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia: Editorial Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2015,
tradução de Júlio Castañon Guimarães.
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todas as tradições literárias nasceram todas na oralidade, e continuaram desse modo em grandes
zonas do planeta até datas recentes. Só em alguns pontos geográficos do planeta apareceram e se
desenvolveram, aos poucos, diferentes sistemas de escrita para capturar a essência passageira da
palavra, feita de som, de ondas sonoras que o vento leva. Ela só se fez matéria perdurável através
da escrita que a traduziu a signos gráficos e a depositou num corpo material: tabela de barro
queimada no forno para que permanecesse, como fizeram os sumérios, ou então numa folha de
fibra vegetal, como os papiros, empregados no Egito a partir de meados do III milênio A.C.
Homero, se existiu, pertenceu a esse universo da oralidade. Ele foi um aedo, um poeta-cantor, não
um escritor no sentido moderno da palavra. Só três séculos mais tarde, no século VI A.C, foram
feitas as primeiras versões escritas da sua épica, e foram necessários ainda vários outros séculos
para chegar, através de Pérgamo e Bizâncio, às versões em língua grega que o Ocidente tem hoje
como "oficiais" e definitivas. Também as inscrições rúnicas, os manuscritos iluminados da Idade
Media, as caligrafias chinesa e japonesa nos lembram muito bem desses encontros entre palavra
signo visual e imagem, entre grafismo e desenho, entre iconicidade, grafema e artes plásticas.
Pesquisar o cerne dessas relações faz alusão então a uma faca de dois gumes, um na palavra,
outro na imagem. Há vários anos nós, Tida Carvalho, formada em Letras, e Adolfo Cifuentes
(artista visual, professor na área de fotografia da Escola de Belas Artes da UFMG) pesquisamos,
cada um segundo o seu escopo disciplinar, esse leque de relações, e foi no trabalho híbrido do
escritor alemão W. G.Sebald (alemão que viveu entre 1944–2001) que achamos um ponto de
ancoragem e contato. Queremos então, no contexto desta comunicação, além da arqueologia básica
e do mapeamento dessas relações que acabo de apresentar, focar nas relações entre texto e
fotografia na obra de Sebald.
Pensemos que, pelo menos até datas recentes na entrada do verbete Não Ficção na
Wikipédia a fotografia estava incluída nos gêneros da Não Ficção, isto é, pertencente, por definição,
ao gêneros testemunhal e documental. Transcrevemos: "A não-ficção é uma das duas grandes divisões das
obras literárias (sendo a outra a ficção), usada particularmente em catalogação de obras por bibliotecas. Todavia,
não-ficção não precisa ser necessariamente um texto escrito, visto que fotografias e filmes também podem representar
a descrição factual de um assunto."1146 Em linhas gerais, trata-se ali de um lugar comum na hora de
pensar o fotográfico: como registro e impressão deixada por um evento num instrumento de
captura fotográfica. Mesmo sabendo que esse tem sido o uso mais comum e corriqueiro da imagem
fotográfica (arquivo, documento, registro, memória), a história da fotografia mostra que,
paralelamente ao modelo jornalístico-documental a imagem fotográfica foi utilizada desde os seus
primórdios, para usos ficcionais, encenando universos para a câmara e experimentando todo tipo
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de processos e procedimentos “artísticos”. Da mesma forma, e ao longo da sua história, ela foi
manipulada para diversos fins através do retoque, da fotomontagem e dos diversos procedimentos
que no cinema conhecemos como “efeitos especiais”.
São esses os limites, encontros e desencontros que Sebald explora na sua obra: não só entre
meios técnicos (palavra/imagem, texto/fotografia) senão sobretudo entre protocolos culturais de
uso, tanto da imagem (mapas, fotografias, cópias de documentos, gráficos, etc.) quanto dos limites
entre gêneros literários: história, diário de viagem, memórias, novela, tragédia, autobiografia, relato
intimista, pesquisa jornalística se misturam em romances que, acompanhados sempre de fotografias
entretecidas no texto, e ao lidar com fatos reais da história europeia do século XX, constroem um
território híbrido: entre realidade e ficção, entre sonho e vigília, entre consciente e inconsciente.
Entre estória e história: a história micro-relato (memória pessoal, íntima) e a História-Ciência,
macro-relato (sociológico, nacional, antropológico-cultural).
Fotos e textos não completam um quebra-cabeça, mas estabelecem um complexo jogo em
que a tentativa de fazer compreender a história – por imagens e palavras – é constantemente
atravessada pela invisibilidade, pelo silêncio. Susan Sontag define o ponto a partir do qual podemos
avançar para compreender as relações entre as imagens e a ética na escrita de Sebald: ao recordar,
o escritor queria que seu leitor também recordasse. Quais os sentidos da fragmentação das séries
formadas por palavras e imagens? Para entrar no jogo, esperamos aceitar a proposta que foi feita
por Sebald a seus leitores: impregnar-se pelo relato não para obliterar o entendimento, mas para
recordar, com todo o rastro de esquecimento, de não dito que essa tarefa exige.
As sombras que fraturam a enunciação são iteradas pelo episódio inaugural de Austerlitz1147.
Ao chegar à estação de Antuérpia, o narrador é tomado por súbito e incompreensível mal-estar.
Guiado por passos incertos, é levado ao Nocturama, imagem do confinamento e da escuridão que
“nos cerca”1148. O relato é acompanhado pelo primeiro conjunto de fotos: dois olhos de animais
estão ao lado de olhos humanos. As fotografias parecem ter como função corroborar o conteúdo
da narrativa: assim como os olhos dos animais confirmam o espanto de quem foi parar “à sua
revelia” em um mundo ilusório, pode-se descobrir no olhar humano a tentativa de superar o pasmo
e penetrar a escuridão difundida. De fato, há coincidências temáticas entre as palavras e as imagens.
No entanto, a leitura excessivamente funcionalista deixa escapar o essencial na relação entre as
imagens e o texto escrito: há interstícios entre essas duas séries. (veja Imagem 1).
1147 SEBALD Winfried George. Austerlitz. Companhia das Letras: São Paulo 2008. Tradução de José Marcos
Macedo.
1148 ______________. Austerlitz. Companhia das Letras: São Paulo 2008. P. 8 e 9
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A imagem dos olhos de Wittgenstein certamente poderiam suscitar um ensaio mais longo
acerca das proximidades entre Austerlitz e a errância do filósofo, de que não se separa a busca por
um saber não submisso à racionalidade técnica. Porém, essa análise exigiria um espaço – e um
conhecimento – de que não dispomos.
Toda fotografia funciona numa série complexa de camadas discursivas e narrativas. Uma
imagem é só a ponta de um iceberg: a sua base está inserida em milhares de palavras e práticas
discursivas. As fotografias não se restringem a repetir o conteúdo do texto, mas constituem
elementos irredutíveis à estrutura do relato. Essa fenda não diz respeito apenas à evidente cisão
espacial entre texto e fotos, sempre separados por uma margem branca. A fratura decorre de uma
diferença fundamental entre a linguagem verbal e as imagens fotográficas. Enquanto lemos as
primeiras páginas a respeito da visita do narrador à Bélgica, podemos confiar no teor estritamente
ficcional da narrativa. Essa fiança não decorre exclusivamente de conhecimentos prévios em
relação ao gênero do relato, mas do próprio caráter ficcional, arbitrário, da linguagem escrita:
Se a língua pode ser vista como uma velha cidade com o seu labirinto de ruas e
praças, com quarteirões que remontam no tempo, enquanto outros foram
demolidos, saneados e reconstruídos, e com subúrbios que avançavam cada vez
mais rumo ao interior, então eu próprio era como um homem que, devido a uma
longa ausência, não sabe mais se orientar nessa aglomeração, que não sabe mais
para que serve uma parada de ônibus, nem o que é um pátio dos fundos, um
entroncamento, uma avenida ou uma ponte. A estrutura inteira da língua, o
arranjo sintático das partes isoladas, a pontuação, as conjunções e finalmente até
mesmo os nomes de objetos comuns, tudo estava envolto em uma névoa
imponderável. Mesmo o que eu próprio havia escrito no passado – aliás,
sobretudo isso – eu não compreendia mais1149.
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O leitor, por sua vez, deve ler nas fraturas entre palavras e imagens as letras da viagem de
regresso a um tempo soterrado. (Imagem 2)
O crítico
Imagem 2: SEBALD e historiador
W. G. de arte norte-americano
A. Austerlitz. Companhia Hal2008.
das Letras: São Paulo Foster
P. 88propõe
e 89 no seu famoso texto
Funeral para um Cadáver Errado1150 quatro eixos que constituiriam uma espécie de coluna vertebral
que seguraria a força e permanência de uma grande arte no contexto contemporâneo, apesar das
declarações de morte permanentes que se fazem da instituição Arte. Um desses eixos seria o
traumático: o trauma histórico de uma civilização que duas vezes no último século esteve ao borde
do colapso, o trauma de uma arte, de vanguardas e de sonhos de utopia libertária que têm sido
constantemente adiados, derrotados, traídos e pospostos. Mas, ao mesmo tempo, o trauma de uma
vida impossível de viver sem o horizonte e a reencenação continua da utopia. Essas as memórias,
as tragédias, as fotografias e os relatos que dão sustento à narrativa de Sebald:, histórias,
This Funeral is for the Wrong Corpse. In_ FOSTER, Hal. Design and crime. Verso, London, New York, 2002.
1150
Págs. 123-143
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documentos fotografias pessoais que evidenciam fantasmas, traumas e tragédias de um povo que,
como o alemão, se debate continuamente com o seu passado recente. Mas também fotos, memórias
e percursos e trajetos que exploram, num contexto mais amplo a história europeia em seu conjunto.
Imagens, estórias pessoais que reverberam e ecoam o drama da civilização e dessa tragédia que
chamamos História.
Austerlitz, por exemplo, é o sobrenome do protagonista do romance que leva esse título,
mas esse nome remete também, irremediavelmente, ao nome da grande batalha napoleônica1151 e,
portanto, a um momento central da história traumática da Europa. Ao longo do romance a
escavação da infância pessoal realizada por Austerlitz, uma infância que nem ele mesmo conhecia
de maneira consciente, vai se tornando, ao esmo tempo, a escavação de várias camadas de traumas
e esquecimentos da história europeia dos dois últimos séculos. A história como grande relato e as
memórias particulares vão se entrelaçando de maneira complexa, e constituindo gradualmente o
verdadeiro enredo do relato.
Nesse e em toda a obra de W. G. Sebald, a força e encantamento de sua obra ficcional, ou
documento-ficcional, estão para além da união entre o visual e o escrito, o que encanta e espanta é
a perturbação representada pelo uso fotográfico num texto que não define seu estatuto, e que por
isso expõe o leitor a uma hesitação e excitação entre imagem e sentido. Junte-se a isso, o lugar
particular da fotografia entre as imagens, a relação da fotografia com o referente e com a atribuição
de valor dado à imagem fotográfica como “comprovação” ou indício do que passou.
Nos textos de Sebald, percebemos que a incorporação de imagens é um procedimento
complexo e inusual. As fotografias e imagens não aparecem apenas para ilustrar, para documentar
ou evitar descrições. As imagens são textos que atuam no jogo ficcional, entre os múltiplos
elementos narrativos. A interpolação de imagens fotográficas é constituinte do texto, do modus
operandi de Sebald.
Se se pensa que a fotografia funciona para comprovar algo, ou seja, que às vezes ela possa
ser redundante ou óbvia, torna-se importante enfatizar, como o faz Barthes num texto de 1961,
dedicado à fotografia jornalística, que entre texto e imagem "nunca se dá uma incorporação
verdadeira, pois que as substâncias das duas estruturas (aqui gráfica, lá icônica) são irredutíveis".
Desse modo, continua Barthes, é impossível "à palavra 'duplicar' a imagem; pois, na passagem de
uma estrutura a outra, elaboram-se, fatalmente, significados segundos” 1152.
1151 Também conhecida como a Batalha dos Três Imperadores, foi uma das grandes vitórias de Napoleão Bonaparte
na sua conquista imperial da Europa. Nela o Império Francês derrotou a Terceira Coligação no dia 2 de dezembro de
1805.
1152 BARTHES. A mensagem fotográfica. Teoria e Cultura de massa. Luiz Costa Lima, Org. Rio de Janeiro: Ed. Paz e
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1153SEBALD, Winfried George. Os anéis de saturno: uma peregrinação inglesa. Trad. José Marcos Macedo. São Paulo: Cia
das Letras, 2010, p. 129-130.
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Imagem 3: SEBALD, Winfried George. Os anéis de saturno: uma peregrinação inglesa. São
Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 130.
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As indagações que movem este texto podem ser assim introduzidas: por que escolher a
crítica de arte de arte, especificamente das artes plásticas, como objeto para uma pesquisa? Haveria
um campo de pesquisa, no Brasil, que se dedique a esse tema – e, consequentemente, há uma
historiografia sobre ele? Seria esse um tema mais propriamente da História da Arte, da História
Social da Cultura ou da História Cultural? É possível qualificar ou classificar os “críticos” como
“intelectuais”? Em caso afirmativo, quais formulações da História Intelectual ou dos Intelectuais
ou da Sociologia do Conhecimento nos seriam úteis?
Para uma primeira aproximação do tema, selecionei o Suplemento Literário do jornal Minas
Gerais, na década de 1960 por ser nele o lugar onde alguns dos principais críticos que atuaram na
constituição do campo da crítica como atividade prática e teórica tiveram como suporte para a
publicação de sua produção escrita. Dentre nomes possíveis, selecionei o crítico Márcio Sampaio
por seu lugar ocupado no impresso como o responsável pela coluna fixa intitulada “Artes
Plásticas”.1154 Antes, entretanto, de tratar especificamente de sua atuação, uma breve apresentação
da história do impresso em questão.
Criado no ano de 1966 como suplemento inserido no jornal Minas Gerais, órgão oficial do
governo de Minas Gerais, o impresso “tornou-se espaço precioso para a expressão de escritores e
artistas, de ensaístas e criadores de vanguarda, que tinham em suas páginas um território
1154Publicaram também no Suplemento Literário Roberto Pontual, Frederico Morais, Celma Alvim, Mari’Stella Tristão,
Jacques do Prado Brandão, Olívio Tavares de Araújo, dentre outros.
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Período marcado pelo governo de Israel Pinheiro, “eleito pela oposição ao regime militar”,
foi sua iniciativa da criação do Suplemento, assim como da Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP),
em 1968, da Pinacoteca do Museu Mineiro e retomada da construção do Palácio das Artes.
Para Affonso Ávila,
[…] o Suplemento surge num momento político em que Minas Gerais reage ao
golpe de 64 e os grupos progressistas conseguem eleger, com maioria
esmagadora, o governador Israel Pinheio, derrotando o candidato dos militares.
[…] Israel Pinheiro era um homem muito aberto e inteligente, mas de
temperamento um pouco explosivo, apoiou a ideia de se fazer um suplemento
1155 SAMPAIO, Márcio. Um testemunho sobre o Suplemento Literário. Suplemento Literário. Belo Horizonte: Secretaria
de Estado da Cultura, n. 1339, dez. 2011, p. 4.
1156 Um dado curioso é perceber que Márcio Sampaio, na época de criação do suplemento, era o mais novo da
turma, com 25 anos. Em 1966, Murilo Rubião encontrava-se com 50 anos, Afonso Ávila, 38, e Laís Corrêa de
Araújo, 37. Márcio Sampaio, contudo, havia iniciado sua carreira no jornalismo profissional em 1965, como repórter
cultural e crítico de arte do Diário de Minas.
1157 ________. Um testemunho sobre o Suplemento Literário, p. 4.
1158 Valorizar o círculo de amizades desses intelectuais, na tentativa de recuperação de suas experiência culturais, sociais,
políticas e institucionais, nos parece sugerir uma importante forma de entender as suas relações com o projeto de
construção do Suplemento. Heloísa Pontes, a analisar os críticos do Grupo Clima de São Paulo, entre os anos 1940-1968,
balizou seu estudo em uma perspectiva comparativa, ao analisar as “estruturas de sentimentos” e a formação do ethos
daquele grupo. Em seu estudo, para além das escolhas feitas por intelectuais como Antonio Candido, Décio de Almeida
Prado, Paulo Emílio Salles Gomes, Lourival Gomes Machado, dentre outros, em suas trajetórias intelectuais, Pontes
identifica nessa primeira experiência mais consistente de grupo elementos que vão perpassar as escolhas individuais
feitas posteriormente como, por exemplo, as especializações escolhidas por cada um daqueles críticos. Para esse
empreendimento, sua perspectiva analítica se valeu do trabalho do sociólogo inglês Raymond Williams, ver: PONTES,
Heloísa. Destinos mistos. Os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940-1968). Companhia das Letras: São Paulo, 1998.
1159 ________. Um testemunho sobre o Suplemento Literário, p. 4.
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Para Laís Corrêa de Araújo, foi árduo o trabalho “para a valorização profissional do artista”,
tanto no que diz respeito à sua remuneração quanto à “criação de um espaço onde fosse possível
a liberdade de expressão”.
[…] de minha parte, mais ligado às artes plásticas, pude, através das páginas dos
jornais, divulgar toda a produção jovem e de vanguarda, dando, contudo, a
melhor cobertura para os artistas das gerações anteriores, divulgando não
somente a arte mineira, como a brasileira e, na medida do possível,
acontecimentos internacionais.1163
[…] desde o princípio de minha atuação como crítico, foi meu propósito centrar
o trabalho sobre os artistas e as manifestações da arte mineira; isso decorreu da
consciência de que a crítica do eixo Rio/São Paulo, muito mais influente,
praticamente ignorava ou desconhecia a produção de Minas, que, a meu ver,
apresentava qualidades no nível do que melhor se realizava nos grandes centros.
[…] Para os artistas jovens, abrimos a primeira página do Suplemento, os espaços
de ilustração de textos e divulgação de exposições, além de possibilitar-lhes
experimentações gráficas e conceituais. Foi aí que vários desses artistas
começaram a realizar trabalhos remunerados e a se projetar no cenário nacional:
Liliane Dardot, Madu, Eliana Rangel, Luiz Eduardo Fonseca, Carlos Wolney,
1160 RIBEIRO, Marília Andrés. Neovanguardas, anos 60. Belo Horizonte: C/Arte, 1997, p. 136.
1161 _______ . Neovanguardas, anos 60, p. 136.
1162 Pierre Bourdieu chama a atenção para o que ele considerou ser “uma ilusão biográfica” o fato das narrativas
retrospectivas tenderem a expor a trajetória de uma vida como um caminho linear que englobaria, em forma etapas,
um começo/meio/fim. Para ele, ao contrário, “os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos
no espaço social”, o que colocaria para pesquisador a desafio de perceber os vários desvios nos movimentos dos
indivíduos durante o percurso de sua vida social. Ver: BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. FERREIRA, Marieta
de Moraes; AMADO, Janaína (Orgs.). Usos e abusos da história oral. Fundação Getúlio Vargas: Rio de Janeiro, 5a. Edição,
2002, p. 183-191.
1163 SAMPAIO. Um testemunho sobre o Suplemento Literário, p. 5.
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Vale salientar que poucos, até o momento, são os estudos que se ocupam do Suplemento
Literário como fonte, seja para os estudos culturais ou para a história da literatura ou da arte. Dois
trabalhos, entretanto, se destacam, mais diretamente, sobre a história das artes plásticas em Belo
Horizonte.1165
Marília Andrés Ribeiro, no livro Neovanguardas: Belo Horizonte, anos 60, publicação originária
de sua tese de doutoramento defendida na década de 1990 na USP (Universidade de São Paulo),
buscou reconstruir, em um trabalho de fôlego, os vários momentos chaves que contribuíram para
formação da neovanguarda brasileira e belorizontina dos anos 60.
Utilizando-se de um universo de fontes variadas – entrevistas, manifestos, catálogos de
exposições, artigos e ensaios publicados em jornais e revistas, dentre outros – buscou historicizar
os vários momentos que, das vanguardas históricas e neovanguardas internacionais, expressas em
movimentos como, por exemplo, o Grupo Phases, o Novo Realismo, Pop Art, as Artes Ambientais,
Ecológicas e Land Art, teriam influenciado e conformado propostas para as experiências mais
inovadoras da arte no Brasil, o que teria dado origem aqui aos principais grupos de vanguarda do
início da década de 50, por exemplo, o Concretismo, o Neoconcretismo e, como foco central de
seu trabalho, a neovanguarda belorizontina.
Em seu estudo, em linhas gerais, é perceptível um trabalho que une uma pesquisa de cunho
sociológico, ao seu ocupar dos trânsitos dos artistas pelos salões, festivais, galerias, ateliês,
exposições, enfim, percebendo os intercâmbios culturais, e uma preocupação em ler as
manifestações artísticas dos principais artistas eleitos como exemplares para as propostas da
neovanguarda. Entretanto, e esse é o ponto que mais nos interessa, pouco destaque é dado para a
crítica (ou aos críticos) de arte que atuaram naquele momento. Eles são mencionados ou
referenciados em momentos pontuais, sempre que necessários, para enfatizar um determinado
acontecimento como, por exemplo, alguma repercussão polêmica sobre a organização ou
premiação aos salões de arte acontecidos em Belo Horizonte, ou fora da capital.
Em uma pequena parte de seu trabalho intitulado “Ideário da crítica teórica e militante em
Belo Horizonte” encontramos o rápido e pouco aprofundado tratamento da crítica de arte. Ao
eleger apenas os intelectuais Frederico Morais e Márcio Sampaio, que a autora considera como
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“exemplares”, aquele pela “formulação do ideário das neovanguardas” e esse pela “construção da
neovanguarda mineira”, sua análise os colocou única e exclusivamente em função da formação das
bases que sustentam essa proposta artística. Ao (re)narrar seus itinerários, é perceptível um caráter
teleológico e instrumental de suas atuações no que tange as necessidades de sua argumentação. Ao
fim e ao cabo, outros importantes nomes da crítica em Belo Horizonte não foram privilegiados.
Outro trabalho que se mostra importante para este estudo é o livro Por uma história da arte
em Belo Horizonte: artistas, exposições e salões de arte, também fruto de uma tese de doutoramento,
defendida no ano de 2009 na UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). Nela, o autor se
propôs a fazer uma releitura, em “perspectiva crítica”, da história da arte em Belo Horizonte, com
o intuito de proceder uma “revisão conceitual e estilística para os períodos que vão de 1918 a 1970”,
cobrindo um recorte temporal vasto da produção artística em Belo Horizonte.
Em sua pesquisa, foram contemplados três momentos distintos, segundo a definição
empregada no livro: a arte acadêmica (1918-1936); arte moderna (1936-1963) e a arte
contemporânea (1964-1970). No percurso da pesquisa, o autor utilizou-se de uma vasta pesquisa
em instituições como a Hemeroteca do Arquivo Público Mineiro, Arquivo Público da Cidade de
Belo Horizonte, Biblioteca do Museu Mineiro, Museu da Pampulha Abílio Barreto, Museu
Guignard (Ouro Preto) e de pesquisas sobre os Salões Municipais de Belas Artes da Prefeitura de
Belo Horizonte, entre outros. Entretanto, sua pesquisa, como o próprio autor declara no início, foi
largamente prejudicada devido a “ausência de um acervo permanente disponível ao público, [o que]
praticamente inviabiliza a pesquisa em história da arte” assim como “o número reduzido de
pesquisadores de história da arte, que exige um trabalho ainda inaugural”.
Centrando sua análise nas relações entre as produções artísticas e as organizações dos salões
e exposições, nos objetos artísticos (as obras), seus significados e premiações, a análise de Vivas
privilegiou aspectos importantes para o estudo do campo da história da arte. Em sua análise, é
evidente a sua preocupação com os aspectos da visualidade e da materialidade, mesmo que o livro
seja prejudicado por trazer imagens em p&b, das obras analisadas ao construir um rico itinerário
da produção em Belo Horizonte, em análises de rigor metodológico. Entretanto, devido a esse
recorte, outros aspectos acabaram por não ser abordados, que são importantes para o
entendimento de uma história que se queira social ou cultural ou mesmo política da arte, quais
sejam, as relações desses artistas com o tecido social de que são parte.
Em relação a atuação da crítica, mesmo recorrendo às suas opiniões de importantes nomes
sobre os salões ou exposições que ocorreram, Vivas, assim como a Ribeiro, utilizou-se delas de
forma ilustrativa, sem lhes dar o tratamento adequado no diálogo de construção de uma prática
intelectual.
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No caso do Por uma história da arte em Belo Horizonte a sugestão ainda ganha um contorno
adicional, uma vez que não há nenhum espaço para a discussão do papel da crítica na formação
dessa história, sugerindo que a sua participação possa ter sido insignificante.
Se, como sustenta Giulio Carlo Argan, é conceitualmente e empiricamente possível se
pensar a “história da arte como a história da cidade”,1166 um desafio possível também seria analisar
a história da arte como a história da crítica de arte ou se pensar uma história da arte sem negligenciar
ou tangenciar a atuação dessa importante prática.
Há um certo consenso sobre a importância da I Bienal de Arte ocorrida em São Paulo, em
1951, como um marco fundamental para as mudanças no debate sobre o papel ocupado pela crítica
de arte no Brasil. Acompanhando as mudanças que estavam em curso nos anos 50, nas esferas
política e socioeconômica, constata-se algumas alterações no debate cultural brasileiro.
Nesse momento, as questões nacionais desenvolvimentistas vividas durante o governo de
Juscelino Kubitschek tiveram repercussões importantes na configuração dos lugares destinados à
produção artística nacional, desaguando em questões nacionais populares no governo de João
Goulart. Os movimentos artísticos que se articularam a partir dessa bienal se propunham a
reavaliações críticas sobre o papel do crítico e intelectual em relação a arte brasileira e a sua inserção
no circuito internacional segundo as orientações do Concretismo e do Neoconcretismo.
No bojo das principais discussões sobre o lugar que o Brasil deveria ocupar em relação ao
momento pós-Segunda Guerra Mundial, destacou-se a ideologia nacional desenvolvimentista
formulada pelo ISEB, que visava, dentre outros fins, a inserção do país no capitalismo internacional.
Em consonância com essa “utopia”, somaram-se a construção de Brasília e as formulações em
torno do Concretismo. Segundo essas interpretações, a expansão das neovanguardas centradas,
nesse momento, no eixo Rio/São Paulo, iria conhecer alguma projeção e a criação de manifestações
autônomas, ou de expressão, apenas no desenrolar de meados dos anos 60, com exposições, bienais
ou mostras de arte em diálogo com artistas e críticos daquelas duas cidade em cidades como
Salvador, Recife, Brasília, Goiânia, Porto Alegre e em Belo Horizonte. Nesse sentido, as histórias
das manifestações artísticas nessas “regiões periféricas”, ou de manifestações de vanguarda
“tardias”, se explicariam a partir dos marcos temporais e históricos demarcados pela referência,
novamente, às vanguardas paulistas e cariocas, como o foi (e ainda o é) o advento da Semana de
Arte Moderna de 1922 em relação ao processo de modernização artística brasileira. E nesse
desenrolar argumentativo, teria se instalado a construção da crítica e do lugar dos críticos, como
espécies de procuradores que acompanhariam esse desenvolvimento lógico da história da arte, no
que Miceli caracterizou, para o caso da literatura, mas perfeitamente aplicável aqui, de um “trabalho
1166 ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
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1167 São quase inexistentes os volumes organizados por pesquisadores e estudiosos do tema da crítica brasileira
publicados até agora. A pesquisa conseguiu identificar os seguintes, até o momento: SEFFRIN, Silvana; MORAIS,
Frederico; Frederico Morais. Rio de Janeiro: Funarte, 2004 e MEDEIROS, Jacqueline.; PUCU, Izabela. Roberto Pontual:
obra crítica. Rio de Janeiro, RJ: Azougue Editorial, 2013.
1168 RIBEIRO. Neovanguardas, anos 60, p. 65.
1169 _______ . Neovanguardas, anos 60, p. 65.
1170 _______ . Neovanguardas, anos 60, p. 65.
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neoconcretismo).1171
Em Belo Horizonte, constata-se uma efervescência intelectual desde os anos 20,
concentrada em intelectuais que se moviam em torno e em relação a produção e a vida literária na
capital mineira. Concentradas em torno dos diálogos com o modernismo estreado e propagado em
São Paulo, depois da Semana de Arte Moderna de 1922, inicia-se em Belo Horizonte a reunião de
intelectuais e escritores ligados a quatro revistas literárias: A Revista (1925), Electrica (1927), Verde
(1927) e a leite criôlo (1929).
Nos anos 40, circulou, segundo Ieda Maria Ferreira Nogueira, “durante alguns meses de
1946”, a revista literária Edifício, de Francisco Iglésias, Autran Dourado, Sábato Magaldi, Wilson
Figueiredo, Jacques do Prado Brandão, Octavio Mello Alvarenga e Francisco Pontes de Paula Lima.
“Todos eram comunistas e montavam revistas nesses moldes. Também por falta de financiamento,
a revista dura de janeiro a julho”.
Ainda segundo informações de Nogueira, […] no início da década de 50 destaca-se “A
geração Tendência”, com Fábio Lucas, Rui Mourão, Affonso Ávila. Sua atividade extraliterária
consistia em reuniões em porta de livraria, ou a encontros, nas manhãs de domingo, para esperar a
chegada dos suplementos do Rio e de São Paulo”.1172
Na década de 1960, nasceu o Suplemento Literário do jornal Minas Gerais, como referido
anteriormente, que terá um papel importante para o surgimento e espaço para manifestação da
critica artística na capital mineira, criando uma importante rede de saberes entre a literatura, história
e as artes plásticas. Acompanhando as principais manifestações dos críticos e suas trajetórias
durante as primeiras décadas do século XX, constatamos que foi na virada década de 50 para a 60
que se iniciou uma atividade mais consistente e frequente da crítica nos meios de divulgação
existentes na cidade, especialmente nos jornais.
Márcio Sampaio nasceu em Itabira/MG, em 1941. Em sua trajetória intelectual, atuou (e
ainda atua) como artista plástico, crítico de arte, curador, professor e escritor. Teve as primeiras
noções de pintura com a professora Emília de Cause, em Itabira. Transferiu-se para Belo Horizonte,
em 1959, quando começou a publicar os primeiros poemas na imprensa. Criou o Grupo Ptyx,
voltado para a de literatura e arte, responsável pela publicado dois cadernos homônimos, que
marcaram presença no movimento literário de Minas Gerais no início dos anos 1960.1173 Participou
1171 Esse momento foi marcado também por várias formulações, por partes dos artistas plásticos, sobre o fazer artístico
ou sobre as novas teorias e conceitos. Nesse sentido, destaca-se os textos-manifestos de Hélio Oiticica, sobre a Nova
Objetividade Brasileira e de Frederico Morais, sobre a Arte Guerrilha e o Contra a Arte Afluente.
1172 NOGUEIRA, Ieda Maria Ferreira. A indexação do Suplemento Literário Minas Gerais. Dissertação de mestrado,
da ilustração da publicação, do artista plástico Jarbas Juarez. Compuseram, junto com Márcio Sampaio, João Paulo
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Sua crítica pode ser entendida como herdeira das principais discussões iniciadas pelo
modernismo paulista de 1922, principalmente no que concerne aos postulados localizados na
vertente antropofágica, que teve a frente o escritor Oswald de Andrade e os manifestos Pau-Brasil
(1924) e Antropófago (1928).
Há bem pouco tempo discutia-se ainda o fato de que as nossas vanguardas (do
Brasil) se limitavam à mera cópia de modelos norte-americanos, principalmente
do pop então em efervescência na costa do Pacífico, e para os quais nossos
artistas se voltavam curiosos e famintos tomando-os de imediato para relançá-las
não de todo digerida, ao público que no tempo ainda se desfazia em pânico e
estupefato diante da pintura abstrata. A antropofagia representada no caso pela
antenagem imediata das invenções estrangeiras relançadas no Brasil por artistas
Gonçalves Costa, Maria do Carmo Vivacqua Martins, Misabel de Abreu Machado, Dirceu Xavier, Myriam de Abreu
Machado e Paulo Alvarenga Junqueira. O Caderno II, de 1964, manteve os mesmos participantes, mas ilustrações.
1174 Atuante ainda nos dias de hoje, destacamos, entre as suas atividades como produtor de textos críticos que
acompanham produções editoriais de importantes artistas e catálogos de exposições de arte, os recentes livros Nello
Nuno: a poética do cotidiano (2013) e Eliana Rangel, construções afetivas (2013) publicados por Márcio Sampaio. Também vale
ressaltar a sua coordenação no projeto CRAP/MG (Centro de Referências das Artes Plásticas em Minas Gerais), que
se concentra “nos levantamentos e nas pesquisas de arquivos públicos e privados, em Belo Horizonte, e em centros
de produção artística do Estado”. Para saber sobre o projeto, ver http://www.crap-mg.art.br/agenda/index.asp.
1175 SAMPAIO, Márcio. O Primeiro Salão Nacional de Arte Universitária (I). Minas Gerais, Belo Horizonte, set. 1968.
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Como responsável por manter uma coluna fixa no Suplemento, a escrita de Sampaio
estruturou-se no sentido da criação de uma identidade fruto da criação de seu ethos como crítico
e fala autorizada, dentro do projeto político editorial maior do impresso, que conjugou uma dupla
perspectiva: a invenção deste lugar do crítico e da crítica e o sentido pedagógico de sua escrita. Em
vários de seus textos, conseguimos perceber a necessidade da criação de genealogias dos artistas
brasileiros ainda pouco conhecidos, principalmente mineiros, e a “redescoberta” de outros que
supostamente teriam ficado fora do panteão ou do cânone das artes brasileiras.
Essa forma de se colocar como crítico é sugerida, por exemplo, em seu artigo “Anita
Malfatti e os outros artistas modernistas”. Segundo Sampaio, a memória da semana de 22 teria
legado às gerações que a sucederam alguns poucos nomes que acabavam por ofuscar a importância
de outros artistas e intelectuais no evento.
1176 SAMPAIO. Noviello: o ôlho da angústia. Minas Gerais, Belo Horizonte, abr. 1969. Suplemento. Literário, v. 4, n.
139, p. 12.
1177 ________. Anita Malfatti e outros artistas do modernismo. Minas Gerais, Belo Horizonte, nov. 1968. Suplemento.
Literário, v. 3, n. 116, p. 6.
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produção nacional, esse cenário foi grandemente enriquecido pelos posicionamentos de seus
principais intelectuais.
Em 1969, ano em que deu lugar a X Bienal, em um momento oposição dos artistas à
ditadura militar ganha expressão ampliada, a Fundação Bienal de São Paulo se preparava para a sua
realização, em setembro, ao mesmo tempo que comemorava os vinte anos da “criação do grande
certame internacional de artes plásticas”.
Sampaio, nas páginas do Suplemento, escreveu um artigo intitulado “Duas ou três coisas
sobre a bienal de São Paulo” aproveitando-se do momento de efervescência política para criticar o
processo seletivo que teve lugar na versão anterior da Bienal, a IX.
Depois de dois anos de projetos e estudos, ainda não se tem a palavra final para
a escolha dos artistas que integrarão a representação brasileira na X Bienal. O
resultado da seleção para a IX Bienal foi – para a maioria dos críticos e para o
público – bastante infeliz. A nossa representação parecia um parque xangai dada
a variedade imensa de tendências e estilos, onde as poucas obras de qualidade se
perdiam na enorme mediocridade. Diz-se que a IX Bienal foi o grande prêmio
para todos os artistas brasileiros. O júri deliberara naquela época aceitar o
máximo a fim de se ter a medida real do desenvolvimento das artes plásticas no
Brasil, mas o que se teve foi uma mostra da mediocridade brasileira, aliás notada
e muito comentada pelos críticos estrangeiros que aqui vieram em 67.1178
Como foi observado logo acima, as formas de inserção da crítica em Belo Horizonte, do
Suplemento Literário, da arte mineira e do próprio Márcio Sampaio podem ser entendidas como
inseridas em uma espécie de agenda própria. O ano de 1967 é sintomático. Foi exatamente nesse
momento que Sampaio escreveu um artigo para o Suplemento chamando a atenção para o lugar
ocupado pelo XXII Salão Municipal de Belas Artes. Inaugurado no dia 12 de dezembro no Museu
de Arte da Pampulha, ele marcaria, na opinião do crítico, “o início de uma nova fase na história da
arte de Minas”. Para Sampaio, ele teria se transformado “num acontecimento da mais alta
importância, superado apenas pela Bienal de São Paulo, por ser mais amplo e de âmbito
internacional”. O XXII Salão, com “os seus prêmios aumentados em valor, a presença de artistas
de renome, a seleção feito sob um rígido critério de vanguardismo, tudo isso contribui para atribuir-
lhe um caráter documental da arte brasileira contemporânea”.
Talvez seja precipitado afirmar que as formas de se pensar a arte, a crítica e o lugares
ocupados pelo crítico estavam em consonância com uma ideia ou projeto de uma mineiridade, mas
pode-se afirmar, com certa segurança, que há elementos que sugerem a tentativa da criação de um
lugar específico de uma cultura mineira frente às representadas historicamente por São Paulo, berço
do modernismo, e pelo Rio de Janeiro, a capital da bella époque cultural do século XIX brasileiro.
1178SAMPAIO. Duas ou três coisas sobre a X Bienal de São Paulo. Minas Gerais, Belo Horizonte, mai. 1969.
Suplemento. Literário, v. 4, n. 141, p. 9.
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1179 Apresentação. Minas Gerais, Belo Horizonte, set. 1966. Suplemento. Literário, v. 1, n. 1, p. 1.
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Resumo: A apresentação tem como objetivo central traçar alguns apontamentos sobre um novo
paradigma que tem ganhado força em diversas áreas ligadas ao campo das Humanidades e que se
mostra como um reflexo de uma insatisfação crescente com as chamadas teorias “pós-modernas”
– entre as quais o construtivismo e o “giro linguístico”. Nesse quadro, emergiu o paradigma da
presença. Apresentaremos o que se entende por este conceito e demonstraremos como o paradigma
possibilita novas formas de analisar os fenômenos humanos, com destaque para a nossa relação
com o passado. Para tanto, a referência privilegiada para esta discussão será a obra de Hans Ulrich
Gumbrecht, um dos mais importantes teóricos da presença.
Esta apresentação tem como objetivo central traçar alguns apontamentos iniciais sobre um
novo paradigma que tem ganhado força em diversas áreas ligadas ao campo das Humanidades.
Reflexo de uma insatisfação crescente com as chamadas teorias “pós-modernas” – entre as quais o
construtivismo e o “giro linguístico” –, muitos teóricos contemporâneos veem buscando uma nova
forma de se relacionar com o mundo, bem como de se pensar e praticar as ciências humanas. É
nesse quadro que emergiu o paradigma da presença.
Nosso objetivo é apresentar o que se entende por “presença” e demonstrar como esse
paradigma possibilita novas formas de analisar os fenômenos humanos, com destaque para a nossa
relação com o passado. Para tanto, a referência privilegiada para esta discussão será a obra de Hans
Ulrich Gumbrecht, um dos mais importantes teóricos da presença. Mas antes de mais nada, será
necessário traçar uma breve história da epistemologia moderna ocidental, de modo a situar o
paradigma da presença temporal e semanticamente. Depois, vamos refletir sobre o que significar
ver e pensar o mundo a partir da presença, relacionando esse conceito com o de “sentido”. Em
seguida, discutiremos como o fenômeno da memória pode ser analisado à luz desse novo
paradigma.
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Segundo o pensador alemão, toda a história da epistemologia moderna está fundada nessa
compreensão metafísica do conhecimento. A interpretação – enquanto busca pelo sentido
profundo das coisas – passou a ser vista desde então como o único procedimento válido para as
Humanidades. Mesmo as sucessivas crises desse modelo – por exemplo, a “crise da representação”
estudada por Foucault1181 a partir da segunda metade do século XVIII – não resultaram na ruptura
com o paradigma sujeito/objeto. A institucionalização das “ciências do espírito” realizada por
Dilthey no final do século XIX – opostas às ciências da natureza justamente pelo método
hermenêutico que as caracterizariam – é apenas uma dentre as diversas evidências apontadas por
Gumbrecht.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.
1180
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª ed. São Paulo: Martins
1181
Fontes, 1999.
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Gumbrecht assinala que a primeira grande ruptura do paradigma sujeito/objeto se deu com
a fenomenologia de Edmund Husserl, que alcançou enorme repercussão no campo filosófico
durante o século XX. Ao se virar contra a crença “ingênua” de muitos cientistas naturais da sua
época (e que ainda se faz presente em nossos dias), Husserl sugeriu, de acordo com Gumbrecht,
que “os objetos exteriores ao pensamento humano eram pura e simplesmente inacessíveis. Era um
dos finais do paradigma sujeito/objeto, do campo hermenêutico e da metafísica ocidental”.1183
Husserl contrapôs essa pretensão “ingênua” com o método fenomenológico, segundo o qual
apenas os fenômenos da consciência eram passíveis de uma apreensão filosófica.
Entretanto, essa premissa fenomenológica foi apropriada de muitas formas, entre elas o
que Gumbrecht chama, de maneira geral, de construtivismo. Segundo os construtivistas, a
impossibilidade de se apreender as coisas exteriores ao pensamento implicaria que todas as
realidades que compartilhamos com outros seres humanos são “construções sociais”. Assim, de
maneira contraditória com suas origens filosóficas, o construtivismo teria se transformado na
crença trivial de que tudo estaria facilmente ao dispor da vontade humana de mudar, porque tudo
não passa de “construções sociais”. Assim, a realidade seria algo inerte, uma superfície sobre a qual
nós atribuímos sentidos que, por sua vez, nunca são definitivos, cabendo sempre “mais um pouco
de sentido”.
1182GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro:
Contraponto; PUC-Rio, 2010, p. 63.
1183 ____________. Produção de presença, p. 65.
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Para ilustrar essa “perda do mundo”, façamos uma breve menção a um fenômeno que tem
acometido a historiografia brasileira nos últimos anos. Até meados do século XX, constituiu-se
uma rica tradição intelectual que ficou conhecida como as interpretações do Brasil, que inclui as obras
de Silvio Romero, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e muitos outros.
Esses autores elaboravam as suas interpretações pela análise das relações políticas e sociais que
consideravam as mais fundamentais do espaço brasileiro, por meio da análise das fontes ou pela
observação in loco. A partir da segunda metade do século XX, e sobretudo a partir da década de
1970, ocorreu um deslocamento de perspectiva: passa-se agora a analisar criticamente as próprias
interpretações do Brasil – ou, para usar uma figura de redundância, passou-se a fazer
“interpretações das interpretações do Brasil”. Se, por um lado, esse deslocamento possibilitou
conquistas intelectuais importantes (sobretudo denunciar o caráter ideológico presente nas análises
anteriores) e contribui à sua maneira para a elucidação da realidade nacional, por outro lado essa
mesma realidade ficou cada vez mais opaca ou “sobremetiaziada”, uma vez que ela só poderia ser
pensada a partir das narrativas de interpretação tradicionais, tornando inviável qualquer afirmação
mais direta sobre o que caracterizaria o espaço social, político e cultural brasileiro.1186
Os problemas da tese de que o passado só pode ser apreendido enquanto uma “construção
social” que, no limite, estariam ao dispor da vontade dos sujeitos, podem ser ilustrados com uma
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passagem do romance 1984, de George Orwell, quando o inquiridor O’Brien, membro do Partido,
tenta abalar a fé de Winston Smith num passado remoto:
- Tolice. A Terra é tão velha quanto nós, e nada mais. Como poderia ser mais
velha? Nada existe exceto pela via da consciência humana.
- Mas as rochas estão repletas de ossos de animais extintos – mamutes,
mastodontes e enormes répteis que viveram aqui muito antes do homem
aparecer.
- Já viste esses ossos alguma vez, Winston? Naturalmente não. Os biólogos do
século dezenove os inventaram. Antes do homem, não havia nada. Depois do
homem, se por acaso acabasse, nada haveria.1187
O que esse diálogo parece nos dizer é que a materialidade do mundo é inelidível, a despeito
de uma certa concepção construtivista mais radical. E a teorização desse aspecto material das coisas
– incluindo o passado – vem sendo feita pela noção de presença. E a premissa básica desses teóricos
é que, enquanto inelidível, a materialidade do mundo não é, por isso, inefável.
Em termos sucintos, a presença pode ser entendida como a dimensão material das coisas do
mundo, o fato de que os objetos ocupam um espaço e são tangíveis por mãos humanas ou sentidas
pelo corpo – as emoções, as sensações e os afetos. Para Gumbrecht, “presença não se refere (pelo
menos, não principalmente) a uma relação temporal. Antes, refere-se a uma relação espacial com o
mundo e seus objetos – o que implica, inversamente, que pode ter impacto imediato em corpos
humanos”. Nesse sentido, para o historiador todos os objetos disponíveis “em presença” são
considerados, em suas análises, “as coisas do mundo”.1188 De acordo com Eelco Runia, a presença
significa “‘estar em contato’ – literalmente ou figurativamente – com pessoas, coisas, eventos e
sentimentos que faz de você a pessoa que você é”.1189 A presença faz referência a tudo aquilo que
escapa ao domínio da linguagem – embora a linguagem seja também capaz de produzir efeitos de
presença1190 –, mas que são também elementos constitutivos da vida cotidiana e da forma como as
pessoas se relacionam consigo mesmas, com os outros e com o mundo. Em seu livro Produção de
presença: o que o sentido não consegue transmitir, Gumbrecht explicita que o seu compromisso não seria
a de “uma simples substituição do sentido pela presença”. Ao contrário, em última análise,
“defende uma relação com as coisas do mundo possa oscilar entre efeitos de presença e efeitos de
sentido”.1191
1187 ORWELL, George. 1984. 17ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1984, p. 246.
1188 GUMBRECHT. Produção de presença, p. 13.
1189 RUNIA. Presence, p. 5.
1190 GUMBRECHT. A presença realizada na linguagem: com atenção especial para a presença do passado. História da
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b) Segue-se daí que, nas culturas de presença, o aspecto físico não está submetido ao espiritual,
ou seja, a dimensão material não é considerada como superficial ou contingente em relação
ao significado das coisas, como estabelece as culturas centradas na produção de sentidos.
“Em culturas de presença os seres humanos se consideram como parte do mundo de
objetos ao invés de serem ontologicamente separados dele”1192.
c) Em terceiro lugar, nas culturas de sentido predomina uma visão segundo a qual a existência
humana se revela e se realiza em tentativas contínuas de se transformar o mundo pelas
ações (baseadas nas interpretações das coisas e visando a um futuro almejado); enquanto
nas culturas em que a presença predomina, esse impulso pela mudança é substituída pelo
desejo de estabilidade e inscrever seus comportamentos dentro de uma cosmovisão mais
ou menos fixa.
Essa exposição esquemática é útil para apreendermos melhor o que se entende pela
categoria da “presença”, mas com a ressalva de que ela não visa invalidar a interpretação e a
produção de sentidos como um modo de relação com o mundo. Em outros termos, a presença
não é uma postura “anti-interpretação”. Apenas procura ressaltar que nossa relação com o mundo
não se esgota na interpretação, enfatizando a dimensão da materialidade que escapa à construção
de sentidos. Gumbrecht faz questão de ressaltar em vários momentos que a sua proposta teórica
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centrada na presença não significa, de modo algum abandonar o sentido e a interpretação como
prática elementar das Humanidades:
Mais correto seria pensar a presença como uma tentativa de se voltar contra a
exclusividade/universalidade da interpretação. Isso porque ver o mundo a partir da categoria da
presença não significa eliminar o sentido, pois este também é parte constitutiva da nossa relação
com o mundo. Mas como seria possível lidar com algum fenômeno humano oscilando entre
presença e sentido?
David Lowenthal faz considerações semelhantes que apontam para essa presença do
passado no presente:
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 7ª ed. Petrópolis (RJ), Bragança Paulista (SP): Editora Vozes, Editora
1194
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A consciência do passado é, por inúmeras razões, essencial para o nosso bem-estar. [..]
O passado nos cerca e nos preenche; cada cenário, cada declaração, cada ação conserva
um conteúdo residual de tempos pretéritos. Toda consciência atual se funda em
percepções e atitudes do passado; reconhecemos uma pessoa, uma árvore, um café da
manhã, uma tarefa, porque já os vimos ou já os experimentamos. E o acontecido
também é parte integral da nossa própria existência: “Somos a qualquer momento a
soma de todos os nossos momentos, o produto de todas as nossas experiências”, como
coloca A. A. Mendilow. Séculos de tradição subjazem a cada momento de percepção e
criação, permeando não apenas artefatos e culturas mas as próprias células de nossos
corpos.1195
A citação acima destaca, sem utilizar o termo, essa presença do passado nas nossas vidas.
A memória aparece, então, como um modo de acesso ao passado que evidencia de maneira mais
clara essa dimensão de presença. Afinal, não há razão para analisar e compreender o fenômeno da
memória apenas pelo prisma do sentido. Há uma dimensão corporal, material e afetiva da memória
que não se deixa aprisionar pela interpretação. Como afirmou Pierre Nora, “a memória é a vida,
sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à
dialética da lembrança e do esquecimento [...]. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no
gesto, na imagem, no objeto”.1196
Embora seja possível discordar da tese de Nora de que há uma incompatibilidade total entre
memória e história1197, é ponto pacífico entre os especialistas que elas guardam suas diferenças
específicas na forma de acessar o passado. Sobretudo porque, enquanto a história pretende ser um
discurso crítico – o que pressupõe um certo distanciamento por parte do historiador –, a memória
se limita ao que é verossímil, uma vez que não põe entre parênteses “as paixões, emoções e afetos
do sujeito-evocador”.1198 Assim, enquanto na narrativa histórica são utilizados uma série de critérios
de prova para a validação de suas afirmativas (argumentos racionais, apresentação de fontes,
comentários de outros historiadores, notas de rodapé, etc.), na narrativa memorialista o único
critério é o apelo à fidelidade e boa-fé do narrador. Essa diferença é decisiva na forma como ambas
as formas de narrativa se referem ao passado: a primeira pretende explicar e compreender o
passado; diferentemente, a memória “será sempre axiológica, fundacional, sacralizadora e
reatualizadora de um passado que tende a fundir, no presente, a subjetividade com a
objetividade”.1199
1195 LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Projeto História, São Paulo, v. 17, p. 63-201, nov. 1998. p.
64.
1196 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 1, p. 7-28, dez.
1993. p. 9.
1197 Para uma visão crítica dessa presumida dissociação entre história e memória, ver CATROGA, Fernando.
Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto Editora, 2001; DOSSE, François. A História. São Paulo: Editora
Unesp, 2012.
1198 CATROGA. Memória, História e Historiografia, p. 39.
1199 _________. Memória, História e Historiografia, p. 40.
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Um exemplo dessa possível contribuição do paradigma da presença (em sua relação com o
passado) pode ser tomado do maior memorialista brasileiro: Pedro Nava (1903-1984). Sua obra
monumental, composta por sete volumes – sendo o último deles incompleto devido ao falecimento
do autor – abre diferentes possibilidades de leitura, e inclusive permite captar dimensões próprias
da presença do passado na tessitura da narrativa. No primeiro volume, Baú de Ossos, lançado em
1972, Nava nos apresenta em diversos momentos as suas sensações vivenciadas durante suas
viagens ao Ceará, terra de sua família paterna, ainda na infância. Em certa passagem, o narrador
explicita como uma simples batida (um certo tipo de rapadura típica do Ceará) lhe permite se
transportar pelo tempo:
Se a batida do Ceará é uma rapadura diferente, a batida de minha avó Nanoca é para
mim coisa à parte e funciona no meu sistema de paladar e evocação, talqualmente a
madeleine da tante Léonie. Cheiro de mato, ar de chuva, ranger de porta, farfalhar de
galhos ao vento noturno, chiar de resina na lenha dos fogões, gosto d´água de moringa
nova – todos tem a sua madeleine. Só que ninguém a tinha explicado como Proust –
desarmando implacavelmente, peça por peça, a mecânica lancinante desse processo
mental. Posso comer qualquer doce, na simplicidade do ato e de espírito imóvel. A
batida, não. A batida é viagem no tempo. [...] Docemente mastigo, enquanto uma longa
fila de sombras vem dos cemitérios para tomar o lugar ao sol das ruas e à sombra das
salas amigas.1201
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1202
GUMBRECHT. “Perdido numa intensidade focada”: esportes e estratégias de reencantamento. Aletria, Belo
Horizonte, v. 15, p. 11-17, jan./jun. 2007. p. 12.
1203 RUNIA. Presence, p. 16.
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visam alterar os rumos da história efetiva, pois o que importa é menos reforçar o sentido dessa
história do que propiciar aos jogadores a sensação de presença do passado.1204
Considerações finais
A proposta fundamental defendida pelos teóricos da presença é buscar uma relação com as
coisas fora da exclusividade da interpretação. O eixo principal desta apresentação é refletir sobre o
que esse novo paradigma permite pensar em nossa relação com o passado. Nesse sentido, o
fenômeno da memória apareceu como um campo privilegiado, já que ela possui traços que não se
deixam reduzir à pura interpretação.
É preciso reafirmar, no entanto, que a presença não visa substituir a interpretação por
completo, pois isso significaria cair num novo tipo de exclusivismo. A interpretação não deixa de
ser um procedimento essencial – diríamos até inevitável – das Humanidades. Mas o que os teóricos
da presença sublinham é que a nossa relação com as coisas não deve se pautar exclusivamente na
busca por sentidos, pois essa postura acabou nos levando para o que Gumbrecht chamou
polemicamente de “vertigem do construtivismo”.
O paradigma da presença ainda está numa fase bastante inicial de desenvolvimento. Isso
explica a ausência de conceitos capazes de dar conta da nossa relação com o mundo fora da
interpretação. Este é um trabalho ainda a ser desenvolvidos pelos estudiosos da área. Além disso,
como ficou indicado acima, ver o mundo sob o prisma da presença significa, entre outras coisas,
conceber esse mundo a partir da continuidade e da estabilidade – o que pode ser traduzido, em
termos políticos, a uma visão potencialmente conservadora. Também por isso faz-se necessário
combinar essa proposta com a cultura de sentido, que vê o mundo a partir da mudança e da
descontinuidade.
1204 Sobre a franquia Assassin’s Creed, cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Assassin's_Creed. Acesso em: 10 mar. 2016.
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Resumo: O trabalho propõe uma leitura das imagens de moda representadas pela arte de rua
dentro de uma iconologia urbana, que prevê a efemeridade de produtos e conceitos vinculados a
um sistema de moda.
Street Art
A terminologia Street Art significa produzir arte diretamente na rua ou em espaços públicos
utilizando os meios disponíveis sejam eles paredes, muros, portas e portões ou qualquer superfície
material que possa ser explorada de acordo com a criatividade do artista. A arte de rua reivindica
espaços para a produção de imagem e sua exposição. Por esse motivo também é denominada, em
algumas ocasiões, arte fixa ou ainda arte urbana.
1205 TOLEDO, Natália Alves de. O contemporâneo: uma leitura através do grafite e da moda. São Paulo: USP, 2014.
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Convêm ressaltar que muitos desses artistas de rua ainda hoje não são respeitados como
“artistas” e vivem no anonimato das cidades, muitos utilizam nomes artísticos ou ainda possuem
um estilo tão característico que a própria imagem produzida se torna sua assinatura.
Outros, entretanto, tornaram se reconhecidos e até mesmo famosos por seus trabalhos.
Bom exemplo são os irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo, mais conhecidos como OSGEMEOS.
Naturais do interior de São Paulo cresceram na cena Hip Hop dos anos 80 e utilizavam dos
desenhos para denúncia as condições de periferia e exclusão em que viviam. Apresentam uma típica
iconografia nos seus trabalhos - o desenho lúdico de figuras humanas e o uso predominante de
cores em tons de amarelo. Curioso ressaltar nestes artistas é que os dois desenham em conjunto,
de forma que a imagem feita a duas mãos é complementar.
Atualmente eles são convidados para grafitar painéis em diversas cidades do mundo e
estampam acessórios como echarpes da marca Louis Vuitton; no Brasil seus trabalhos encontram-
se em sua maioria em São Paulo, e muitos deles possuem apenas registro fotográfico, pois muitos
destes trabalhos já foram removido a cidade. Mas o avião que transportou a seleção brasileira na
copa de mundo de 2014 no Brasil foi estampado pela dupla OSGEMEOS.1206
E existem ainda aqueles que mantêm o anonimato por opção, mesmo gozando de certa
notoriedade como é o caso do artista britânico intitulado Banksy. Considera-se que esse artista
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ultrapassou o limite do grafite e arte de rua, já que propõe trabalhos que além de serem intervenções
urbanas são também propostas estéticas de instalações contemporâneas. Banksy propõe
questionamentos políticos, sociais, denuncia situações conflitantes como guerras e refugiados, o
poder da mídia e o próprio estilo de vida do cidadão ocidental.
Houve uma performance dentro do parque Disney, onde Banksy instalou em uma das
curvas de uma montanha russa, um boneco com um saco preto na cabeça, algemado e usando
uniforme dos presidiários de Guantánamo, essa performance pode ser vista no documentário “Exit
Through The Gift Shop”1207 como também parte do processo de criação e produção dos artistas de
rua (norte americanos, em sua maioria). Já o happening nomeado “Sirens of Lambs” na qual um
caminhão de um matadouro chamado “ Farm Fresh Meats Inc.” carrega 60 animais (porcos, vacas,
cordeiros e galinhas) de pelúcia que podem se vistos através das grades da caçamba do caminhão -
as pelúcias emitem sons e movimentam as cabeças enquanto trafegam pelas ruas, denunciando a
crueldade com os animais da indústria alimentícia. O parque temático criado por Banksy, intitulado
Dismaland, nos moldes de uma Disneylândia decadente com sonhos permeados de refugiados e
tragédias, são manifestações transgressoras a qual o artista se manteve fiel há longos anos.
1208
1207 http://www.banksyfilm.com/videos.html?reload
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Foto em Greenwich Village, duas obras de Banks juntas 'Sirens of the Lambs' e 'Shoe Shining Ronald McDonald'.
http://www.dailymail.co.uk/news/article-2475471/Banksy-creates-new-work-outside-Hustler-Club-New-
York.html#ixzz4B1dytBao
A arte urbana já está institucionalizada, é estudada como movimento artístico, e muitos dos
seus representantes já foram expostos em galerias de arte contemporânea. Sempre em tom
provocativo, a arte urbana agrupa diversas técnicas como grafite, pôsteres, stickers, e estêncil,
processo que iremos abordar. Todas essas técnicas, vale lembrar, possuem tutoriais em diversos
idiomas, que permitem a qualquer cidadão com acesso á internet aprendê-las.
O Estêncil é feito com um molde vazado de papel, acetato ou similares, no qual a figura
vazada e “impressa” nas paredes e muros e portões com tinta spray ou rolo. O trabalho (a
impressão) é feito rapidamente e por mãos “invisíveis”. Possuem duração relativamente curta, pois
em geral são apagados pelos proprietários do espaço seja público ou privado. De maneira furtiva
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essas imagens permanecem até a “limpeza” do local, ou vão se diluindo/apagando pela ação das
intempéries.
Sobretudo a internet foi o meio que favoreceu o crescimento destes artistas, que anônimos
percorriam as ruas instalando “ilegalmente” os seus trabalhos e geralmente, uma câmera de vídeo
que registrava o momento da produção desta manifestação artística, que como a instalação tinha
seu registro circulando na rede.
A moda e XOOOOX
A moda ocupa um lugar dinâmico na sociedade sendo assim, possui várias possibilidades
de análises e discursos que dificulta a delimitação precisa do campo de conhecimento. Em
contrapartida, permite que possa ser estudada em diversos ramos de pesquisa. Muitos
pesquisadores já estudam a moda em diferentes perspectivas, enquanto muitas outras ainda
ignoram. A dificuldade de estabelecer o sistema da moda dentro de um domínio único da ciência
dificulta o estudo pormenorizado do tema. A moda está sempre associada ao presente
contemporâneo, é claro que existe a Historia da Moda que nos mostra a moda proposta por
sociedades pretéritas, mas a associação tratada aqui se refere ao caráter renovador da moda que
mesmo se inspirando em estéticas do passado, propõe releituras modernizantes autorizando assim
o acesso de informações do passado a contemporaneidade.
È comum se dizer que a moda dá status social às pessoas, e de certa maneira inclui ou exclui
cores, estampas, texturas, modelos de vestimentas e também pessoas. A iconografia utilizada em
catálogos e revistas de moda normalmente é permeada por figuras humanas, salvo raras exceções,
em posições ditas fotogênicas. A maior parte destas imagens é produzida para estimular e inspirar
o público sobre o que vestir, usar e comprar. Sem abordar as técnicas das ações publicitárias, sejam
as pessoas estrelas da mídia ou modelos fabricados as imagens de moda produzidas apresentam
características próprias e distinguíveis na nossa sociedade, principalmente nos meios urbanos.
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o fato de que não se apega senão a uma imagem, é êxtase da aparência. O que
transporta os fervorosos não é nem uma qualidade humana, nem uma mensagem
de salvação, é o charme de uma imagem sublimada e estetizada. Culto da
personalidade, não culto ao sagrado; culto estético, não culto arcaico.1209
Dessa maneira, temos exemplos de homens e mulheres bem sucedidos ou fracassados cujos
comportamentos inspiram nos modos de vestir ou se apresentar socialmente. As imagens desses
seres humanos desejados são utilizadas em escala global e se apoiam nos aparatos da indústria, pois
a partir dessa situação cria-se uma aura em torno de determinados produtos, criando a possibilidade
de o consumidor se sentir parte desse segmento desejado simplesmente por possuir algo simbólico
como um carro, uma roupa, ou um acessório vinculado a esta ou àquela personalidade desejada.
Imagens estas são divulgadas há muitos anos em meios como revistas, panfletos
publicitários, internet e televisão. As produções de moda convencionalmente utilizam modelos -
pessoas - que melhor simbolizam sua ideia de marca comercial, bem como o público que deseja
conquistar1210. E pode-se considerar que o público desejado, ou inspirado, deva ser feliz, rico,
sensual, magro e bem vestido - noções que circundam um bom editorial de moda.
O artista berlinense denominado XOOOOX, selecionado para este trabalho, garantia seu
anonimato para expor seus estêncils na rua atrás destas seis letras. Os estêncis deste artista que em
geral trazem mulheres possuem dimensões variadas. São sempre elegantes, magras, e vestem roupas
consideradas glamorosas, ou de alta costura (de acordo com o autor). A imagem é melancólica e
solitária. Nos trabalhos iniciais a imagem era monocromática, hoje já podemos encontrar versões
coloridas dos estêncis.
Essas figuras não têm função decorativa e, segundo a galeria de arte que hoje representa o
artista, essas imagens representam o reconhecimento do trabalho da alta costura além de criticar a
1209 LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. p.254.
1210 KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
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excessiva industrialização. Comércio a parte, este trabalho de rua não foi encomendado por
nenhum crítico, produtor cultural ou cliente; ele foi simplesmente executado e exposto na rua da
mesma forma que muitos outros trabalhos de artista de rua.
Pode ser percebida através das suas obras, a paródia de imagens de moda muito além de
qualquer apelo á alta costura. A fim de gerar grande contraste com o aspecto luxuoso das revistas
de moda, a figura do estêncil, está impressa em locais previamente escolhidos na cidade: locais
obscuros, como becos, cantos, suportes enferrujados, portas e portões envelhecidos, construções
e demolições, e etc. E sempre, este aspecto destruído do suporte do estêncil corrobora com a
estética da obra e proporciona ao espectador uma sensação de desolação e abandono.
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Tempo
Das modelos e símbolos da moda aos becos da cidade, a destruição passiva destas imagens
pode propor uma inquietação com o momento de decadência, que um dia deteriorará a imagem,
as coisas e as pessoas e assim o tempo acaba se tornando uma realidade incômoda. A indiferença
dos habitantes das cidades, e o poder higienizador da ordem pública reforçam a efemeridade do
estêncil e destacam seu papel apocalíptico.
1211 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 31.
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superficiais, mais céticos e menos profundos” e nesta mesma linha de raciocínio este retorno ao
passado teria meramente emocional, estético e lúdico:
E neste contexto, a efemeridade das modelos dos estêncis compreende seu papel dentro
do sistema da moda, que inclusive calcula e prevê a sazonalidade em tudo. Tratar as construções
do passado como objetos “vintage” é, por exemplo, uma das formas de reaproximar o passado com
novas roupagens. A moda possui como característica básica a mudança, e neste processo sua forma
de agir, criar, e vender produtos está amplamente adaptada a absorver rapidamente as alterações.
1212 LIPOVETSKY, Gilles; SÉBASTIEN, Charles. Os tempos Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004, p. 89-90.
1213 LINS, Jacqueline Wildi Lins. Anais do XIX Seminário de Iniciação Científica. Artigo (resultado de projeto de
pesquisa com o mesmo título) publicado no VI Colóquio Franco Brasileiro de Estética (UFBA), realizado em maio de
2009, em Salvador, Bahia. 6 páginas
1214 DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as Imagens Tocam o Real . Tradução de Patrícia Carmello e Vera Casa Nova.
Revista Pós: Belo horizonte, v.2 n.4, p. 204, nov 2012. 14 páginas
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Agambem em seu ensaio O que é contemporâneo? observa que “o tempo presente tem
propensão pelas formas arcaicas, no imemorial e no histórico, fazendo com que o antigo sempre
retorne; revisitando uma vanguarda que se extraviou no tempo. O contemporâneo é a proximidade
com o não vivido em todo o vivido, e construir este tempo é retornar a um presente que não se
esteve”1215. Neste sentido, pode ser concluído que ser contemporâneo inclui estar atento às
imagens visualizadas bem como as outras que não foram apreendidas pelo olhar.
A arte contemporânea conserva ambivalências na sua poética, desta maneira permite que
essas obras inseridas neste tempo e espaço acenda uma fagulha de pensamento para ponderarmos
o presente que revisita constantemente o passado - refazendo opções e questionando decisões - e
hoje dentro de um movimento avant guard que sonha em projetar o futuro, mas procura nas formas
arcaicas a sua libertação e solução.
Ao contrário das pinturas expostas nos museus, e dos novos estêncis de galeria, a moças
de XOOOOX sofrem as ações das intempéries, das cidades, de seus habitantes e de nossos olhares,
assistem silenciosamente sua diluição nas paredes e muros sabendo que sua natureza a proíbe de
viver eternamente nas paredes, contudo pode imaginar sua reprodutibilidade como tem acontecido
através da internet. Mesmo como cinzas do nosso olhar, as formas e imagens continuam a
transformação temporal até o seu fim.
“Então começamos a compreender que cada coisa a ver, por mais exposta,
por mais neutra de aparência que seja, torna-se inelutável quando uma
pedra a suporta – ainda que pelo viés de uma simples associação de ideias,
mas constrangedora, ou de um jogo de linguagem –, e desse ponto nos
olha, nos concerne, nos persegue.” 1216
1215 AGAMBEM, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Santa Catarina: Argos, 2009, p. 70.
1216 DIDI-HUBERMAN. O que vemos, o que nos olha, p. 33.
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Introdução
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O Neoclássico
A Revolução Industrial e suas transformações nos meios de produção trouxeram consigo uma
série de efeitos que refletiram nos pensamentos da sociedade setecentista. Atrelado à Revolução
Industrial, surgiu, na França, uma corrente filosófica e antropológica que pregava a democracia, a
liberdade de expressão, a liberdade econômica e, principalmente, o pensamento racional. Tal corrente
ficou conhecida como Iluminismo. O discurso iluminista criticava as frivolidades e desvios morais da
sociedade moderna e pregava uma nova ordenação racionalista do mundo.
CZAJKOWSKI, Jorge. Guia da Arquitetura Colonial Neoclássica e Romântica no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora
1217
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1218 BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998, p. 28.
1219 GLANCEY, Jonathan. A História da Arquitetura, São Paulo: Edição Loyola, 2001, p.120.
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Fonte: SUMMERSON, John. A linguagem clássica da arquitetura. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2014.p.55
Fonte: COLE, Emily. História ilustrada Fonte: _________ A linguagem clássica da arquitetura
da arquitetura. São Paulo: Publifolha p. 55
2011, p.276
O Neoclássico no Brasil
TIRAPELI, Percival. Arte imperial: do neoclássico ao ecletismo – século 19. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1220
2010. p. 10.
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para aproximarem os jeitos da nova capital aos parâmetros que os europeus estavam
acostumados a chamar de civilizados. 1221
Figura 04: Palácio Imperial, Petrópolis. Figura 05: Solar da Marquesa de Santos, Rio de Janeiro.
Fonte: REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Fonte:__________. Arquitetura Neoclássica Brasileira
Arquitetura no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973. P.49 P. 44
Fonte: MONTEZUMA, Roberto. Arquitetura Brasil 500 anos – uma invenção recíproca. Recife: UFPE, 2002. P. 150.
1221 CZAJKWOSKI. Guia da Arquitetura Colonial Neoclássica e Romântica no Rio de Janeiro, p.29
1222 ____________. Guia da Arquitetura Colonial Neoclássica e Romântica no Rio de Janeiro, p.29
1223 SOUSA, Alberto Arquitetura neoclássica brasileira. João Pessoa: Editora Universitária, 1994. p.84 – 87.
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A cidade da Parahyba viu seu patrimônio institucional ser animado pelo estilo classicizante
imperial, conduzindo a cidade, outrora considerada pequena e pobre, ao status de centro
desenvolvido e moderno. Dentre os exemplares dessa arquitetura estão o Teatro Santa Roza (1889)
e o Palácio da Redenção, sede do governo do Estado, na sua versão anterior à atual eclética (Figuras
07 e 08).
Fonte: Acervo Anibal Moura Neto. Acesso em: 15 abril 2016. Fonte: Acervo Humberto Nóbrega. Acesso em: 15 abril 2016.
Assim como noutras capitais, em João Pessoa o neoclassicismo atingiu a alçada residencial.
Entretanto, a imagem produzida na cidade era aquela de um neoclássico pitoresco, limitado à
profusão de elementos decorativos. Dessa maneira fica explícito que a influência do estilo
classicizante nas residências da cidade foi de cunho superficial, de fachada, sendo muito
provavelmente resultado de reformas para adequação ao modelo arquitetônico vigente à época.
Foram analisadas seis edificações de uso original residencial situadas em quatro importantes
eixos viários da cidade alta – Rua General Osório, Rua Visconde de Pelotas, Rua Odon Bezerra e
Rua Treze de Maio, localizadas nos bairros do Centro e de Tambiá. Atualmente, nenhuma das
edificações estudadas tem uso residencial pois, a área onde se encontram mudou de vocação,
atendendo atualmente a comércios, serviços e administração pública. Para uma melhor visualização
dos locais onde estão situadas, foi editado um mapa que as referencia em relação a marcos
importantes da cidade alta (Figura 09).
1224MOURA FILHA, Maria Berthilde. O cenário da vida urbana: a definição de um projeto estético para as cidades brasileiras na
virada do século XIX / XX. João Pessoa: Editora Universitária, 2000. P. 158.
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Legenda:
A residência de Nº 164 está inserida num cenário importante da cidade de João Pessoa.
Considerada a primeira rua propriamente dita da cidade,1225 a atual Rua General Osório possui
edificações de grande valor para o patrimônio pessoense. Segundo a obra, desde o século XIX há
registros de edificações neoclássicas na citada artéria (10 e 11).
Figura 10: Rua General Osório, 1920. Figura 11: Rua General Osório, 2016.
Fonte: Acervo Stuckert Filho . Acesso em 16 de abril 2016 Fonte: Acervo Yanna Garcia, 2016
TINEM, Nelci. Fronteiras Marcos e Sinais – Leituras das ruas de João Pessoa. João Pessoa: Editora Universitária,
1225
2006.p. 59.
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Por estar inserida numa rua de importância para a construção da cidade, esta edificação é o exemplar
neoclássico de maior relevância na tipologia residencial da urbe, e ostenta a característica de inovação
e modernização da cidade à época (Figura 12).
Em sua fachada pode-se observar a aplicação harmônica de elementos clássicos, tais como
frontão, platibanda e aberturas de arco de volta perfeita. A casa é flanqueada por dois cunhais que
sustentam uma arquitrave trabalhada com friso e cornija. Na fachada principal, seu arremate é
composto por frontão na parte central e platibanda balaustrada em todo o perímetro da edificação
(Figura 13). A fachada norte destaca a declividade do lote, o que propicia a funcionalidade do porão
alto.
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Figura 14: Residência Nº 261B, Rua Odon Bezerra | Planta baixa da edificação.
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ocupação do lote, apesar de sua fachada frontal estar alinhada com a rua. Neste caso, as duas laterais
(leste e oeste) são recuadas dos respectivos limites, ensejando a adoção de aberturas (Figura 16).
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verticalmente a fachada frontal, arquitrave e cornija, e por fim, uma platibanda composta de
balaústres (Figura 18).
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do pavimento, aberturas em verga reta, entablamento, frontão e platibanda com balaústres (Figura
20).
Figura 20: Pórtico dórico da antiga residência Nº 192, Rua Visconde de Pelotas.
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arquitrave, a platibanda, as aberturas em vergas retas e pilastras que, embora não possuam capiteis,
marcam verticalmente a fachada (Figura 22). No todo, a composição é simétrica e possui ritmo.
Considerações Finais
A partir do exposto na presente pesquisa, alguns pontos relevantes podem ser levantados
sobre o componente neoclássico presente nos exemplares de arquitetura residencial estudados na
cidade de João Pessoa.
Primeiramente pode-se destacar a vontade de se adequar, ainda que de forma tardia, aos
moldes das grandes capitais utilizando-se da arquitetura para tal. No entanto, as edificações são
marcadas por serem modestas e provincianas. Isso é perceptível na incipiência dos elementos
morfológicos neoclássicos presentes nas fachadas estudadas. Nesse campo, pode-se afirmar que as
limitações de recursos dos proprietários ocasionaram tal predicado, o que não ocorreu nos edifícios
palacianos do Rio de Janeiro, financiados pela Corte imperial.
Outra evidencia a ser destacada é que o neoclássico residencial de João Pessoa privilegia
apenas o aspecto externo das edificações. Os arranjos físicos atendem basicamente a dois modelos:
aqueles provenientes do período colonial, que permaneceram inalterados, e aqueles mais
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“modernos” construídos à época, que apresentam recuo lateral. Os arranjos simétricos mais
ambiciosos não foram contemplados na capital paraibana.
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PROGRAMAÇÃO
SIMPÓSIOS TEMÁTICOS:
MESA 1
Sala C412 (CAD 2)
MESA 2
Auditório Baese (4º andar FAFICH)
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ST 2 – MODA E DESIGN
MESA 1
Sala C314 (CAD 2)
MESA 1:
Sala B404 (CAD 2)
MESA 2:
Auditório Sônia Viegas (1º andar FAFICH)
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MESA 1:
Sala 1012 (FAFICH)
MESA 1:
CEPAMM (1º andar FAFICH)
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MESA 2:
Auditório 2001 (2º andar FALE)
MESA 3:
CEM (sala 3013 – FAFICH)
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MESA 3:
Auditório 2001 (2º andar FALE)
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Mesa 3:
Sala C412 (CAD 2)
MESA 3:
Auditório Bicalho (1º andar FAFICH)
MESA 4 - I:
Sala C207 (CAD 2)
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MESA 4 - II:
Auditório Baese (4º andar FAFICH)
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MESA 4:
Sala C412 (CAD 2)
ST 2 – MODA E DESIGN
MESA 2
Sala B515 (CAD 2)
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MESA 4:
Sala B513 (CAD 2)
MESA 5:
Auditório Sônia Viegas (1º andar FAFICH)
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MESA 3:
Auditório Baese (4º andar FAFICH)
MESA 4
CEM (sala 3013 – FAFICH)
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MESA 5:
Sala 1012 (FAFICH)
MESA 6:
Auditório Bicalho (1º andar FAFICH)
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Integrantes:
Clara Abrahão Leonardo Pereira:
Atualmente cursando História (Licenciatura) na Universidade Federal de Minas
Gerais. Coordenadora e uma das fundadoras do grupo NINFA - Grupo
Interdisciplinar de estudos da Imagem - UFMG.
Gabriela Castro:
Estudante do curso de História (Bacharelado) na Universidade Federal de Minas
Gerais. Tem interesse de pesquisa nos campos da História da Arte e História da
Cultura. Integrante do Grupo NINFA-Grupo Interdisciplinar de estudos da Imagem
- UFMG.
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Mônica Lage:
Doutoranda em História - Universidade Federal de Minas Gerais (2013). Mestre em
História Social pela Universidade Federal do Amazonas (2010). Graduação em
Historia - Faculdades Integradas de Pedro Leopoldo (2006). Pesquisadora do Grupo
de Pesquisa Gênero, Sociabilidade, Afetividade e Sexualidade. Membro do
Laboratório Estudos de Gênero - LEG. Filiada a ANPUH/MG. Membro do Grupo de
Pesquisa de História da Arte- Perspectiva Pictorum, e associada ao grupo de estudos
NINFA - Núcleo Interdisciplinar do Estudo da Imagem. Autora de Capítulos de Livros
e Artigos em periódicos Nacionais e Internacionais. Tem experiência na área de
História, com ênfase em História do Brasil Colonial, Império e História da Arte.
Fanpage: https://www.facebook.com/ninfa.ufmg/
Site: http://ninfaufmg.wix.com/ninfa
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