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POR UMA TENSÃO CRIATIVA: FRAGMENTOS DE UMA

DISCUSSÃO SOBRE GÊNERO E TEORIA FEMINISTA

Eliane Gonçalves

Publicado em
Fragmentos de Cultura v.15, n. 7 (jul). Goiânia: UCG, 2005, p. 1201-14.
Resumo

Este artigo tem por objetivos elaborar algumas indagações e propor reflexões sobre
gênero enquanto categoria analítica para as ciências sociais, articulando-o a outras
noções tais como democracia radical, pluralidade, igualdade e diferença, sob a ótica
interdisciplinar do feminismo. Gênero é problematizado enquanto categoria
explicativa e analisado em suas potencialidades como ferramenta para a ação política,
no contexto dos movimentos feministas.

Palavras-chave: gênero, teoria feminista, feminismo.

Abstract

This article aims to elaborate some interrogations and reflections on gender as an


analytical category for the social sciences. Gender is articulated with other notions
such as radical democracy, pluralism, equality and difference, under the
interdisciplinary framework of feminism. It is questioned as an explicatory category
and analyzed in its potentialities as a tool for political action in the context of the
feminist movements.

Key-words: gender, feminist theory, feminism.


A luta pela terminologia, pela estratégia e pela teoría, não é mais
que um sinal das dores de crescimento, cada vez maior, de um
campo que está amadurecendo1.
Joan Scott

Precisamos de teorias que nos permitam articular modos de


pensamento alternativo sobre o gênero (…) que vão além de
simplesmente reverter as velhas hierarquias ou confirmá-las2.

Joan Scott

Introdução

Este artigo3 tem por objetivos elaborar algumas indagações e propor algumas
reflexões sobre gênero enquanto categoria analítica para as ciências sociais,
articulando-o a outras noções tais como democracia radical, pluralidade, igualdade e
diferença.
Há muitas compreensões sobre o que venha a ser gênero, porque o conceito se
constrói na tensão constante entre aquilo que já está mais ou menos sedimentado nas
teorias das quais se alimenta e as necessidades emergentes de um processo histórico
do qual as mulheres tomam parte como agentes. Às vezes, a impressão que se tem é
de que, quanto mais buscamos explicar o que gênero significa, tornamos a empreitada
mais complicada. Por que será?
Seria porque aprendemos com as filosofias “dos homens” (NYE, 1995) a falar
num genérico humano totalizado em apenas um dos gêneros subsumindo o outro? E
que tal “Homem” genérico se tornou profundamente inadequado com a revolução
feminista no século XX? Seria porque “gênero” está, na gênese de suas primeiras
formulações teóricas, atado a “sexo”, outra categoria para lá de problemática? O fato
de categorias tais como humano, feminino, masculino, mulher, homem, fêmea,
macho, não obedecer a nenhum acordo lingüístico universal, tornaria a definição
ainda mais difícil? Gênero carece de uma maior “purificação” conceitual? Não seria
inerente ao próprio gênero, categoria que expressa outras tantas variáveis em relação,

1
SCOTT, Joan W. Comentario sobre “Confounding Gender” de Hawkesworth. In: Debate Feminista:
Género (n. 20). México: Metis, 1999a, p. 65. Livre tradução da autora.
2
SCOTT, Joan W. Igualdade versus Diferença: os usos da teoria pós-estruturalista. In: Debate
Feminista: Feminismo e Cidadania. São Paulo: CIA Melhoramentos, 1999b. (edição especial em
português de Debate Feminista, México), p. 203.
3
Escrito originalmente em 2002, como parte dos requerimentos do curso de doutorado interdisciplinar
em Ciências Sociais, Unicamp/IFCH. Sou grata a Vera Alves que um dia me encorajou a publicá-lo.
ser múltiplo e até contraditório? Sendo assim, seria menor o seu mérito ao lado de
outras categorias como ferramenta útil de análise nas ciências sociais?
Não pretendendo dar conta das questões que eu mesma enumero, proponho-
me a realizar um exercício intelectual de continuar a pensar os usos do gênero como
categoria de análise. Não construo estes “fragmentos” desinteressadamente, apenas
por curiosidade acadêmica. Os feminismos4 de há muito me interessam e me
estimulam a pensar o mundo para além das dicotomias estabelecidas. Se ainda for
necessário tecer considerações acerca do caráter interdisciplinar do feminismo, valho-
me das palavras de Machado (1992):

…Este campo é eminentemente interdisciplinar em função do


estabelecimento, pelo movimento feminista, de um diálogo com a
academia, atravessando especialmente os campos das Ciências
Sociais, Psicanálise, Lingüística e Literatura (…) e com o campo
acadêmico específico do saber sobre a mulher (ou gênero) nascido
já de uma problemática posta pelo movimento feminista
(MACHADO, 1992, p.24).

Mais uma gota no oceano

O que ainda poderia ser escrito acerca de gênero? Uma exuberante produção
teórica tem sido vista desde os anos 1970, nas mais diversas direções analíticas. Há
teorizações que se pretendem inovadoras, redescrições nos marcos de grandes teorias
consideradas clássicas, realocação do termo em diversos campos das ciências
humanas, num cenário de proliferações discursivas que beiram o esgotamento. Sinal
de amadurecimento de uma teoria que busca se firmar e se afirmar e que não parece
ser uma trajetória fácil. A partir da emergência do conceito de gênero em meados dos
anos setenta (Gayle Rubin formulou o sistema sexo-gênero em Traffic in Women em
1975, nos Estados Unidos), o mundo acadêmico, particularmente as intelectuais
identificadas com o feminismo, se contorciona no sentido de tornar compreensível
uma terminologia que extrapola em muito a discussão centrada apenas no dimorfismo
sexual, suas diferenças e assimetrias construídas e significadas culturalmente.
Neste campo de afirmação de saberes (ou de tensões epistemológicas),
algumas autoras têm se posicionado criticamente, questionando o rigor teórico de tão
4
Adoto o plural porque me parece mais condizente com o que expressa tanto a teoria quanto o
movimento político em suas muitas vertentes.
vertiginosa produção. É o caso da acalorada discussão publicada em Debate
Feminista5, em sua edição de número 20, de 1999 a partir de um ensaio de Mary
Hawkesworth, intitulado Confounding Gender, anteriormente publicado em Signs6 e
tendo como contrapontos, argumentos de intelectuais conhecidos nos estudos de
gênero, tais como Joan Scott e Robert Connel, dentre outros. O debate é bastante
instigante porque envolve uma provocação séria, pelo menos teoricamente, digamos
assim, por parte de Hawkesworth e, ao ser respondida pelos autores e autoras que
discute em seu ensaio, cria um ambiente de tensão criativa, de embate agonístico
altamente estimulante. O gênero, no mencionado ensaio e comentários, é posto à
prova, por assim dizer, em suas potencialidades analíticas, em sua apropriação como
categoria explicativa, por algumas autoras, e também, talvez de modo mais
convincente, como ferramenta útil para a ação política, no contexto dos movimentos
feministas.
Parto deste ensaio para continuar realizando reflexões sobre gênero e suas
múltiplas aplicações, menos para explicá-lo, mas muito movida pelo interesse em
compreender suas potencialidades analíticas e como ferramenta política para a
construção da igualdade, outra tensão, discutida mais à frente. O texto segue o
seguinte percurso: localização do ensaio de Hawkesworth e seus argumentos centrais;
discussão a partir do comentário de Joan Scott, por ser o que mais se aproxima da
discussão que pretendo desenvolver no presente trabalho; comentários finais sobre
teoria e política feministas. Esclareço que não me ocupei em descrever, nem mesmo
sinteticamente os trabalhos sobre os quais Hawkesworth discorre em seu ensaio por
estar mais interessada nos desdobramentos da discussão que se trava a partir de sua
crítica.

O ensaio Confounding Gender

O termo confounding é apresentado em nota de rodapé, com o sentido


múltiplo de confundir e confrontar; maldizer, abominar, detestar. Foi mantido em
inglês na versão em espanhol, para preservar sua multivocidade (nota da editora).
Hawkeswoth abre seu ensaio chamando a atenção para as atitudes naturais sobre

5
Debate Feminista é uma publicação de Metis, México. Nesta edição cujo título de capa é Género, a
revista traz o ensaio de Mary Hawkesworth, seguido de comentários.
6
Signs (journal of women in culture and society), vol.22, n. 3, 1997.
gênero, que dizem respeito a uma série de axiomas inquestionáveis e praticamente
incorrigíveis sobre gênero, tais como a crença de que só há dois sexos (e dois gêneros)
ou de que ser homem ou mulher é algo natural. Apesar desta evidência naturalista,
gênero teria se convertido em um conceito controvertido dentro da teoria feminista, na
medida em que foi adotado em áreas muito diversas como política, literatura, história,
lingüística, antropologia, medicina, entre outras, cobrindo uma gama muito extensa de
saberes. Desta observação deriva sua pergunta: “deve ser esta multiplicidade de
significados, fonte de preocupação para as estudiosas feministas? Pode um conceito
abarcar um terreno tão vasto?” (HAWKESWORTH, 1999, p. 6). No intuito de
apanhar algumas contradições internas ao conceito, enumera duas questões críticas
orientadas ao caráter múltiplo do gênero: 1) Uma corrente crítica formada pelas
feministas lésbicas e de cor, pontuando que gênero, devendo ser uma categoria
mediada pela raça, classe, etnia e orientação sexual, possui uma falha grave que pode
mascarar os numerosos privilégios de mulheres brancas, heterossexuais e de classe
média; 2) uma crítica pós-moderna que descreve as narrativas de gênero como ficções
totalizadoras que criam uma falsa unidade a partir de elementos heterogêneos.
Hawkesworth dirá que há respostas para estas duas posições críticas em
trabalhos diversos no campo dos estudos feministas e de gênero7, mas que estão todos
comprometidos com a ideologia da procriação8, ou seja, com os pressupostos da
Biologia que, paradoxalmente, estes autores e autoras tentam refutar. Segundo ela
“cada obra elabora uma análise feminista sistemática do gênero que inclui símbolos
culturais, conceitos normativos, instituições sociais e identidades subjetivas” (op.cit.,
1999, p. 9). Todos desafiam os pressupostos da atitude natural, mas falham, no
entender da autora, por não conseguirem refutar os pressupostos naturalizantes.
A principal crítica de Hawkesworth a estes trabalhos é que, segundo ela, eles
pretendem dar ao gênero uma condição funcionalista, explicativa e causal a
fenômenos muito diversos. A manutenção da atitude natural estaria centrada na ênfase

7
No seu ensaio, analisa quatro obras: Gender thinking de Steven Smith (1992); Gender trouble de
Judith Butler (1990); Gender and Power de Robert Connel (1987) e Gender: an ethnomethodological
approach de Wendy MacKenna e Suzanne Kessler (1978). Respondem ou comentam o ensaio: Smith,
Kessler e MacKenna, Connel e, como é citada ao longo do ensaio, Joan Scott também participa como
comentadora no debate. Pelo que me interessa analisar, vou me ater às discussões travadas por Scott
(que incorpora as críticas a Butler) e a autores e autoras não necessariamente inscritas no debate.
8
Termo tomado de empréstimo a Michelle Barret (1980), que significa concepções da sexualidade que
constroem o comportamento sexual só em relação com a reprodução (nota de Hawkesworth).
concedida à heterossexualidade obrigatória, à atribuição de significados culturais a
partir do corpo e à reprodução como explanans para o gênero.
Para ela, gênero deveria ser usado pelas feministas, para projetos políticos de
emancipação, como ferramenta analítica, mas sempre recortado por distinções tais
como identidade de gênero, papel de gênero, identidade de papel de gênero,
sexualidade, identidade sexual, buscando desvendar que tipo de conexões há entre uns
e outros, e não apenas sob a rubrica totalizadora e explicativa de gênero. Por força
causal e explicativa, Hawkesworth afirma que é quando

se concede ao gênero um estatuto ontológico e que é descrito como


a causa de certas crenças sobre o mundo; a força que molda a
humanidade plástica, produz corpos naturalizados ou impõe um
dimorfismo sexual; a determinante da identidade, o processo que
estrutura trabalho, poder e catexis; ou a categoria mental que
estrutura uma forma de percepção dicotômica (op.cit., p.43).

Para Hawkesworth, se a compreendo corretamente, gênero é uma categoria


analítica que não opera isoladamente nem possui caráter explicativo ou universal.
Reconheço a preocupação da autora, mas considero estranha a sua posição porque
encontro nas mesmas autoras que analisa (Butler e Scott, por exemplo), um esforço
intelectual monumental para desconstruir o gênero dos seus marcos funcionalistas e
de qualquer causalidade mecânica em relação a sexo (no sentido biológico do termo),
além de não considerarem gênero como categoria a ser tomada isoladamente.
Como não dá para negar a materialidade dos corpos, e o fato de sobre ela se
assentar uma distinção fundamental, a diferença sexual, os quatros trabalhos citados
por Hawkesworth elaboram o conceito de gênero à luz de algumas dicotomias dela
resultantes. A própria noção de diferença sexual (ou de diferença entre os sexos) não é
unívoca para o feminismo. Grande parte dos estudos de gênero se valeu das grandes
narrativas clássicas como o liberalismo, o marxismo, o estruturalismo e a psicanálise,
tratando de encontrar uma “brecha” para compreender o estatuto inferiorizado da
mulher e têm, portanto, matrizes explicativas muito diferentes. As primeiras tentativas
das feministas radicais nos anos 1970, por exemplo, formulavam, com base no
marxismo, teorias sobre a dominação baseadas no corpo, no sexo e na reprodução.
Tomar a anatomia como destino, entretanto, tornou-se mais problemático que
liberador. Hoje, consideradas todas as tensões e instabilidades na teorização sobre
gênero, as teorias sobre corporização (embodiment) tentam encontrar saídas para o
que parece ser um problema eterno: como conciliar reivindicações políticas de
especificidade baseadas nos processos corporais (menstruação, gestação, parto,
amamentação, etc.) e a recusa ao determinismo biológico tanto para mulheres como
para homens (HARDING, 1986). Pode não surpreender, deste modo, que gênero seja
concebido como uma categoria explanans, como afirma Hawkesworth.
Scott discorda com veemência de Hawkesworth. Para ela, os autores e autoras
mencionados realizam um trabalho eminentemente analítico, dissecam o problema em
suas partes e tratam de entender suas inter-relações. Sobre a atitude natural,
argumenta que não pode ser refutada pela força da lógica ou do repúdio, mas que é
necessário entender como opera na constituição subjetiva do gênero, para poder
desnaturalizá-la. Afirma que “reconhecer o poder do pensamento biológico não é
atribuir o gênero à biologia” (SCOTT, 1999a p.68).
A narrativa de Hawkesworth, produzindo uma crítica de dentro do feminismo
(a autora se posiciona como feminista) é encarada com muita reserva e até com uma
certa ira por Joan Scott em vários trechos de seu comentário, como o que se segue:
Qual é o objetivo do artigo de Mary Hawkesworth? (…) Se o artigo
fosse uma peça isolada não valeria a pena fazermos estas perguntas
e nem sequer nos preocuparmos em abordá-lo, mas como é um
exemplo de um tipo de texto acadêmico que está cada vez mais
notório nos círculos feministas, creio que sua importância deve ser
ponderada. Por que há, agora, uma proliferação de trabalhos que
tratam de patrulhar as fronteiras de investigação feminista em nome
da emancipação? Por que esta ânsia de impor uma forma de
disciplina mal concebida num campo que se orgulha de seu caráter
interdisciplinar? (op.cit., p. 64).

É quase uma surpresa o tom com o qual Scott responde ao ensaio. Numa visão
descrita como pessimista, dirá que este tipo de narrativa é uma espécie de “traição”,
fruto da impotência política de um movimento que perdeu sua radicalidade e que tem
gerado, no mundo acadêmico, forte competição por recursos e posições “fazendo com
que aliados políticos se tornem inimigos profissionais na área dos estudos feministas”
(op.cit, p.65).
A tentativa de depurar as contradições e impor uma limpeza conceitual (no
caso de Hawkesworth, uma rígida separação das fronteiras entre o biológico e o
cultural, inclusive sem autocrítica ao seu próprio dualismo) representa, no modo de
ver de Scott, “sintomas da condição paradoxal e incurável do feminismo” (op.cit., p.
65) que, por sua vez, são efeito de contradições na teoria democrática liberal, ao tratar
do tema da igualdade. Segundo ela, o liberalismo oferece garantias universais de
inclusão, mas sustenta um critério singular: a individualidade masculina. Diferenças e
multiplicidade não se encaixariam neste esquema. Segundo ela, este tem sido o dilema
que as mulheres têm enfrentado reiteradamente desde as revoluções democráticas do
século XVIII: a oposição igualdade versus diferença. Oposição que a autora considera
uma contradição insolúvel, noção que melhor desenvolve em outro artigo9, ao falar
sobre a dicotomia igualdade/diferença nos discursos e estratégias feministas que,
segundo ela, “encarna e protesta contra as condições da teoria política liberal” (op.cit.,
p. 65).

Igualdade e Diferença: pares de opostos ou termos em relação?

As diferenças entre os sexos (não só as corporais, mas as diferenças


percebidas a partir da construção cultural das representações do masculino e do
feminino, diferenças de gênero, portanto) costumam ser invocadas como elemento
para justificar tratamento desigual a mulheres no mundo do trabalho, nas relações de
família, na lei, entre outros, como se a diferença sexual fosse uma evidência imediata
e falasse por si mesma. Desta noção de diferença resultam outras dicotomias pensadas
para operar sempre por oposição, tal como ocorre com mulher/homem;
masculino/feminino. Para os movimentos feministas isso é um dilema. Para superar a
desigualdade (também referida como dominação masculina ou dominação patriarcal),
as mulheres devem lutar para abolirem as diferenças, pois o masculino dominante é o
modelo a ser assimilado. Nesta perspectiva, que Collin (1992a) denomina de
iluminista, a igualdade é confundida com identidade. Ser igual ao modelo dominante
implica ter que apagar toda e qualquer singularidade, pois “a igualdade na teoria
política sobre os direitos que existem por trás da exigência de grupos excluídos,
significa ignorar as diferenças entre os indivíduos para um propósito particular”.
(SCOTT, 1999b, p.207).
Scott argumenta que a estruturação dicotômica igualdade/diferença, elimina a
possibilidade de eleição, pois “se alguém optar pela igualdade estará forçado a aceitar
que a noção de diferença é sua antítese; se alguém optar pela diferença admitirá que a
igualdade é inalcançável”.(op.cit., p. 217). Segundo ela, as feministas não podem cair

9
Igualdade versus diferença: os usos da teoria pós-estruturalista. Ver referência completa no final.
na armadilha de categorias pré-existentes de uma dicotomia que não foi inventada por
elas e devem desmascarar a relação de poder construída ao colocar a igualdade como
antítese da diferença. Se a luta é no campo democrático,
A busca da igualdade supõe um acordo social para considerar as
pessoas obviamente diferentes como equivalentes (não idênticas)
para um propósito dado. Com este uso, o oposto de igualdade é
desigualdade ou não equivalência (op.cit., pp. 217-218).

No par binário, as identidades são fixadas nos pólos, em cada uma das
categorias, eliminando dentro delas mesmas as suas diferenças. Assim, na dicotomia
mulher/homem, cada um é percebido como um grupo portador de características
homogêneas. Não é difícil compreender o porquê de, nas origens do feminismo, ter
havido a crença (ou utopia) de uma irmandade fundada nos princípios de uma
identidade comum. O embate pela igualdade teria que ser travado eliminando-se as
diferenças entre os sexos (o dominador e as dominadas), mas não intra-sexos.
Imbuídas de um desejo comum de libertação, as feministas colocaram o feminino de
um lado, com atributos de uma natureza superior e o masculino em oposição, de outro
(COLLIN, 1992b).
O feminismo rechaçava o discurso etnocêntrico e androcêntrico dominante,
mas não percebia que criava, no seu próprio discurso uma clivagem entre as
experiências das portadoras da voz e outras tantas excluídas. Não tardou para que as
próprias mulheres começassem a colocar em agudo questionamento aquela ilusória
homogeneidade que ocultava as diferenças de classe, cor, etnia e sexualidade entre
elas. Com as críticas ao discurso da feminista branca, de classe média e heterossexual,
“mulher” perde sua força como um coletivo construído com base numa pressuposta
identidade comum, mas que era, em realidade, excludente. Emergem as discussões
sobre o sujeito e surge uma epistemologia da diferença liderada principalmente por
feministas negras, lésbicas e do chamado “terceiro mundo”.10
O problema da intersecção entre gênero, classe, raça, etnia, idade, sexualidade,
em teoria feminista, forja, portanto, novos estudos e uma redefinição da categoria
“mulher” (BUTLER, 1990; 1992). “Mulher” continua sendo uma ferramenta política

10
Pelas óbvias limitações deste trabalho, não me ocuparei desta discussão que possui vasta literatura e
que tem nos estudos pós-coloniais, uma outra grande contribuição para pensar as interseções
racialização/etnia/gênero/sexualidade. Para Adriana Piscitelli (referência a uma aula sua neste
programa de doutorado, 2002), a grande produção sobre raça/etnia, classe e gênero responde às
pressões políticas das diferenças no interior do feminismo, sendo marcadas ora pelo primado da raça,
ora da classe, ora do gênero.
importante, mas precisa ser deslocada das matrizes identitárias e essencialistas que
evoca: uma “natureza feminina” orientada para a maternidade, a emoção, o cuidado
do outro, etc. Mesmo as “outras vozes” ao falarem de raça, etnia e sexualidade correm
o risco de transformar cada uma destas categorias em explicações naturalizantes.
Como reconstruir, então, “mulher” sem cair nas armadilhas essencialistas,
universalizantes, totalizadoras e descontextualizadas? Se as mulheres são o sujeito
político do feminismo, as teorias de gênero buscam ressignificar a categoria mulher,
com vistas a tornar a ação política possível.
É neste ponto que autoras identificadas com os estudos pós-coloniais tais
como Gayatri Spivak e Gloria Andalzua propõem que, a fim de obter avanços
políticos, sejam preservados alguns essencialismos estratégicos, aqueles que
permitiriam às mulheres operar em conjunto, como força política organizada
(BUTLER, 1990). Butler (1992), por sua vez, propõe que, ao invés da recusa, a
própria noção de “universal” permaneça sempre aberta, seja sempre contingente,
como forma de evitar o potencial risco de exclusão que a terminologia pressupõe,
porque haverá sempre a necessidade de novas inclusões, daquilo que não pode ser
previsto. Reconhece que, apesar das políticas de identidade conduzirem facilmente a
essencializões, elas são necessárias num contexto democrático. Em Bodies that matter
(1993), entretanto, a esta mesma autora afirma que os estudos feministas e queer que
mobilizam categorias identitárias baseadas no sexo ou na sexualidade com objetivo
político, precisariam considerar que a categoria “sexo” não é de nenhum modo estável
e a-histórica; um construto dado e sobre o qual o gênero é artificialmente imposto. Ao
contrário, sexo é uma norma cultural que governa os corpos dotados de gênero
(gendered bodies). O que Butler está dizendo, no meu entender, é que tanto gênero
quanto sexo são categorias produzidas, significadas e sujeitas a regulações normativas
na cultura, afastando, assim, qualquer dicotomia simplificadora entre natureza (dada)
e cultura (produzida).
Todas essas considerações tiveram por finalidade pensar o feminismo como
um lugar no qual as mulheres ainda são os seus sujeitos políticos (o quem e o para
quem do feminismo). Para muitas autoras e autores, o feminismo tem sido o lugar por
excelência da inclusão das diferenças e uma crítica permanente e incisiva às
hierarquias e dicotomias. Mas não se trata nem de um “alegre pluralismo” (SCOTT,
1999b, p.223) nem de uma “diversidade colorida” que não ameaça as posições
privilegiadas de poder (STRICKLAND, 1994, p. 270); para ambas autoras o
reconhecimento da diferença vem do fato de eu experimentar em mim mesma uma
mudança gerada pela experiência do outro. Não adianta apenas reconhecer que
existem diferenças se as posições que elas ocupam nas relações de poder não forem
também transformadas.
Aliás, a diferença como “ingrediente” na cultura globalizada, assunto do qual
não me ocupo neste trabalho, mas que considero importante mencionar, se mostra
bem mais fácil de ser integrada e incluída. Strickland (1994) e Hall (1997) chamam a
atenção para o fato das diferenças comporem um cenário “mix”, mas para deleite do
consumidor ou do observador que aprecia. Ao apreciar imagens num museu, as
comidas étnicas, o vestuário e outras tendências de moda inspirada no “exótico”, tem-
se a ilusão de uma integração cultural, mas este “outro” diferente permanece “fora”.

Teoria e política feministas em movimento

Na esteira desconstrucionista de certas verdades tidas como universais, o


pensamento ocidental etnocêntrico, androcêntrico e autocentrado figura como mais
uma das feridas narcísicas da humanidade (para usar os termos de Freud) ou, em
outras palavras, mais um caso dos grandes abalos sofridos pelos dogmas que por
muitas gerações sustentaram esta mesma cultura ocidental: a terra não é o centro do
universo (revolução copernicana); o “homem” tem um parentesco com os primatas e
não uma descendência direta de Deus (revolução darwinista); a consciência humana, a
razão universal ou o “eu” não comandam sozinhos o espetáculo, mas são perturbados
por toda ordem de interferências inconscientes (revolução psicanalítica) e o primado
do próprio pensamento ocidental parece perder o lugar de hegemonia que sempre
ocupou, sendo alvo da crítica feroz do pós-modernismo e pós-estruturalismo; dos
estudos culturais, pós-coloniais, feministas e queer.
Mas, como nos lembra Nye (1995), as teorias feministas têm que começar de
algum lugar e se a filosofia e as ciências são sexistas, é sobre elas que devem começar
a tecer. E foi assim que o feminismo fez, tomando de empréstimo as “idéias dos
homens” para desorganizá-las e reconduzi-las numa outra ordem. O feminismo, como
salienta Valcárcel (1999, p.240) “obriga a redefinir a história da cultura em primeiro
lugar, o próprio conceito de cultura, as relações com a natureza e a comunicação”.
As teorias feministas não deveriam se contentar em apenas adicionar a
perspectiva da mulher às teorias clássicas, mas fazê-lo pela necessidade radical de sua
revisão e de sua transformação (STRICKLAND, 1994). Flax (1992) considera que
desconstruir a filosofia é uma responsabilidade política e a contribuição mais
subversiva à cultura ocidental contemporânea. Strathern (1988) por sua vez, dialoga
com a teoria feminista, na antropologia, criticando a transposição de significados da
cultura ocidental a outros contextos culturais nos quais gênero não está referido nem a
relações de dominação e hierarquia nem a uma referência direta e causal à diferença
biológica dos corpos. Disse em outro lugar (GONÇALVES, 1997), que repensar a
mulher (e também o feminino) nos marcos conceituais das disciplinas clássicas
obrigaria a um repensar o homem (e também o masculino), pois mulher e homem;
masculino e feminino só podem ser pensados em relação, ainda que os termos desta
relação sejam assinalados por uma complementaridade romântica e idealizada e por
assimetrias rígidas que promovem a desigualdade. Penso que gênero operaria aí,
enquanto categoria analítica. Gênero, mais amplo que mulher ou homem,
seria um instrumento que mapeia um campo científico
específico de distinções, aqueles cujos referentes falam da
distinção sexual. Quer onde estão sujeitos concretos,
substantivos, homens e mulheres, quer onde nem mesmo
encontremos estes sujeitos. (KOFES, 1993, p. 28-29).

Tensões permanentes: feminismo, pluralismo e democracia

Nas democracias ocidentais, ou nas sociedades pós-industriais ou pós-


tradicionais (BECK, 1995), o político ainda é pensado e vivido no seu modelo
tradicional; a democracia representativa buscando um consenso despolitizante
(ORTEGA, 2000) e negando formas não institucionalizadas do acontecer político.
Para Mouffe (1992) a política é o lugar do ágon, que não significa necessariamente
dissenso, mas a possibilidade de uma tensão permanente, o lugar do embate criativo,
participativo. O feminismo, ou pelo menos o feminismo como movimento não só
cultural, mas também político, está mais próximo desta noção agonística que nos fala
Mouffe. Sua tentativa de não apenas atuar na conquista de reformas políticas e sociais
(RORTY, 1996), mas de investir na transformação profunda dos modos de pensar
acerca do que sejam igualdade e diferença, desigualdade, identidade, sexualidade,
dominação, subordinação, e assim por diante, o coloca como um dos principais
acontecimentos hoje, no mundo, capazes de fazer algo próximo ao conceito de
revolução. Porque o feminismo alterou de modo consistente as relações no âmbito
privado, na produção de um novo conceito de intimidade (GIDDENS, 1993) e como
resultado, a transformação das relações sociais.
Foucault afirma que a partir do século XIX, as grandes instituições políticas
confiscaram o processo de criação política e destaca o papel dos movimentos sociais
pós 1960, em comparação aos velhos estilos de atuação política, como uma verdadeira
tecnologia do si mesmo, na medida em que permitiram aos seres humanos operar
mudanças em suas vidas:

Esses movimentos sociais mudaram realmente nossas vidas, nossas


mentalidades, nossas atitudes e as atitudes e mentalidades de outras
pessoas – pessoas que não pertencem a esses movimentos. E isso é
algo muito importante e positivo. E repito, não é a velha e
tradicional organização política que levou a esse exame.
(FOUCAULT, 1998, p. 173)

Para retornar ao ponto onde esta discussão começou, o ensaio de Mary


Hawkesworth, propondo maior rigor conceitual nas formulações sobre gênero nas
teorias feministas, creio que o mais importante é reconhecer a dívida intelectual para
com as fontes nas quais as teorias se reinventam (as teorias feministas inclusive) e
encarar as tensões teóricas e políticas como embates criativos e não como uma
ameaça, porque não pode haver a verdade sobre o gênero, uma vez que o próprio
conceito tem recusado sistematicamente todas as verdades tradicionalmente cúmplices
de todas as formas de violência e exclusão.
Para encerrar, sabedora que sou das limitações do exercício de teorizar em si
mesmo, evoco as palavras de Flax (1992) que nos lembra da necessidade de nos
situarmos dentro de contextos que são sempre contingentes e imperfeitos e da
necessidade de reconhecermos certos privilégios de raça, gênero, localidade
geográfica, sexualidade, dentre outros, e aos contextos discursivos nos quais tais
privilégios são produzidos e legitimados.
REFERÊNCIAS

BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização


reflexiva. In: GIDDENS, A; BECK, U. and LASH, S. Modernização Reflexiva. São
Paulo: Unesp, 1995.

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