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Lumen &/«m f^kitom
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E d it o r e s
J o ã o d e A lm e id a
J o ã o L u iz d a S ilv a A lm e id a
D ir e it o P e n a l
P a rte G era l
4a edição
Completamente revista e ampliada
E d i t o r a L u m en J u r i s
Rio de Janeiro
2008
Sum ário
Sumário
Primeira Parte
FUNDAMENTOS DO DIREITO PENAL
Capítulo I - Introdução............................................................................................................ 3
1. Conceito de direito penai................................................................................................ 3
1.1. Relação entre Direito Penal e Direito Processual Penal.............................. 5
1.2. Mas o que é de fato o Direito?................................. ........................................... 7
1.3. Ainda o conceito de Direito: o Direito não existe............. ........................... 9
1.4. Leis são necessárias?...................................... ................................................ .......... 16
1.5. Direito e arte..................................................................................................... ......... 18
2. Direito penal, critníiiologia. e política crim inal................... ............................ 19
2.1. Direito penal e política criminal; há distinção realmente?........................... 20
3. Direito penal e controle social.................................................. ..................................... 24
4. Direito penal e m oral..................... ................................................................................. .26
4.1. Deus e o Direito......................................................................................................... 27
5. Caráter subsidiário do direito penal..................................................................... ...... 30
6 . Caráter fragmentário do direito penal..................................................... ................... 33
7 . Ilícito penal e ilícito não penal.................. ............................... ....... ........................... 33
8. Legislação especial......................................................................................... .................. 34
9. Contagem dos prazos penais e processuais penais..... .................. ........................... 34
Capítulo II - Direito Penal e Constituição.......................................... ........................... 37
1. Direito penal e Constituição............................................................................... ......... 37
2. Direito penal e Estado............................. ........ ............. ....................... ........................ 38
3. Princípio da liberdade................................................................ ..................................... 39
4. Princípios fundamentais................................................ ........................ ........................ 39
4.1. Introdução.................................................................................................................. 39
. 4.2. Princípio da legalidade e irretroatividade da norma penal mais severa. »
"Niülum crimen, milla poena sine praevm le g e ”...................... ...................... 40
4.2.1. Princípio da taxatividade (certeza ou determinação)....................... 42
4.2.2. Princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal....... 42
4.2.3. Leis penais em branco e princípio da reserva legal............................ 43
4.3. Princípio da proporcionalidade (em sentido amplo),................ .............. . 46
4.3.1. Princípio da necessidade (nuíhim crim en, nuJla poena sine ne~
cesshate) ..................................................... ...... ...... ............................... .... 47
4.3.2. Princípio da adequação (ou exigibilidade ou idoneidade)............... 48
4.3.3. Princípio da proporcionalidade das penas (proporcionalidade em
sentido estrito)......................................................................... ................... 48
Sumário
Sumário
Primeira Parte
FUNDAMENTOS DO DIREITO PENAL
Capítulo I - Introdução.................................................................................................... 3
1. Conceito de direito penal........................................................................................ 3
1.1. Relação entre Direito Penal e Direito Processual Penal............................ 5
1.2. Mas o que é de fato o Direito?........................................................................ 7
1.3. Ainda o conceito de Direito: o Direito não existe........................................ 9
1.4. Leis são necessárias?.......................................................................................... 16
1.5. Direito e arte....................................................................................................... 18
2. Direito penal, criminologia e política criminal................................................... 19
2.1. Direito penal e política criminal: há distinção realmente?......................... 20
3. Direito penal e controlesocial................................................................................. 24
4. Direito penal e moral............................................................................................... 26
4.1. Deus e o Direito.................................................................................................. 27
5. Caráter subsidiário do direito penal...................................................................... 30
6 . Caráter fragmentário do direito penal.................................................................. 33
7. Ilícito penal e ilícito não penal............................................................................... 33
8. Legislação especial.................................................................................................... 34
9. Contagem dos prazos penais e processuais penais............................................... 34
Capítulo II - Direito Penal e Constituição.................................................................. 37
1. Direito penal e Constituição................................................................................... 37
2. Direito penal e Estado.............................................................................................. 38
3. Princípio da liberdade.............................................................................................. 39
4. Princípios fundamentais........................................................................................... 39
4.1. Introdução........................................................................................................... 39
„ 4.2. Princípio da legalidade e irretroatividade da norma penal mais severa.
"Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege".......................................... 40
4.2.1. Princípio da taxatividade (certeza ou determinação)...................... 42
■ 4.2:2. Princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal...... 42
4.2.3. Leis penais em branco e princípio da reserva legal.......................... 43
4.3. Princípio da proporcionalidade (em sentido amplo)................. •:................ 46
4.3.1. Princípio da necessidade (nullum crimen, nulla poen a sine ne-
cessitate).................................................................................................. 47
4.3.2. Princípio da adequação (ou exigibilidade ou idoneidade).............. 48
4.3.3. Princípio da proporcionalidade das penas (proporcionalidade em
sentido estrito)....................................................................................... 48
Paulo Q ueiroz
Segunda Parte
TEORIA DO DELITO
12. Erro de tipo, erro de proibição e erro sobre causas de justificação: uma dis
tinção a ser superada.............................................................................................. 209
13. Erro provocado por terceiro................................................................................. 211
14. Erro sobre a pessoa: aberratio ictus..................................................................... 212
14.1. Crítica à disciplina legal da aberratio ictus................................................ 213
15. Resultado diverso do pretendido (aberrado delicti)............................................ 215
Capítulo VII - Teoria do Crime Culposo.................................................................... 217
1. Introdução................................................................................................................ 217
2. Excepcionalidade do crime culposo.................................................................... 218
3. Conceito de culpa: requisitos................................................................................ 218
4. Princípio da confiança........................................................................................... 220
5. Estrutura do crime culposo................................................................................... 221
5.1. Estrutura do crime culposo: causas de justificação e de exclusão de cul
pabilidade .......................................................................................................... 222
5. Culpa consciente e culpa inconsciente............................................................... 223
7. Imprudência, negligência, imperícia................................................................... 224
}. Autocolocação em perigo...................................................................................... 225
Zapítulo VIII - Consumação e Tentativa................................................................... 227
l. Introdução................................................................................................................ 227
!. Crime consumado: significado.............................................................................. 227
2.1. Consumação nos crimes materiais, formais, de mera conduta e outros ... 229
I. Consumação e exaurimento.................................................................................. 229
L Tentativa: conceito e requisitos............................................................................ 229
4.1. Tentativa e dolo eventual: incompatibilidade?............................................ 231
4.2. Preparação e tentativa: distinção................................................................... 231
4.3. Crimes que não admitem tentativa............................................................... 233
4.4. Punição da tentativa: fundamento político-criminal.................................. 233
4.5. Tentativa e princípios da ofensividade e proporcionalidade..................... 234
. Desistência voluntária (da tentativa).................................................................... 236
. Arrependimento eficaz (da tentativa).................................................................. 237
6.1. Posição sistemática.......................................................................................... 237
Tentativa inidônea ou crime impossível.............................................................. 237
Crime impossível em razão de preparação deflagrante - a Súmula 145 do STF.. 238
8. 1. Preparação do flagrante.................................................................................. 239
8 .2. Impossibilidade de consumação.................................................................... 240
8.3. Flagrante retardado......................................................................................... 240
Arrependimento posterior..................................................................................... 240
apítulo IX - Concurso de Pessoas: autoria e participação...................................... 243
Introdução................................................................................................................ 243
Conceito e momento.............................................................................................. 243
Requisito: adesão subjetiva ou nexo psicológico................................................ 244
3.1. Desistência voluntária e arrependimento eficaz......................................... 245
Autoria e participação: distinção.......................................................................... 246
4.1. Teoria unitária................................................................................................. 247
D ire ito P e n a l - P a rte G eral
Terceira Parte
CONSEQÜÊNCIAS JURÍDICO-PENAIS DO CRIME
Da Pena............................................................................................................. 311
1. Conceito, fins e limites............................................................................ 311
I. Pena de Prisão.................................................................................................. 312
1. Falência da pena de prisão?..................................................................... 312
2. Limites do discurso “reformista-liberal”................................................ 313
II. Individualização Judicial da Pena (sanção penal)........................................ 317
1. Significado e importância........................................................................ 317
1. 1. Individualização da pena e pessoa jurídica.................................... 318
2 . Individualização e garantismo................................................................. 318
2.1. Concurso de agentes e concurso de crimes.................................... 320
2 .2. Emendatio e mutatio libelli.............................................................. 321
2.3. Sistema acusatório e emendatio libelli........................................... 321
3. Pode o juiz fixar pena abaixo do mínimo legal?................................... 324
4. Erros freqüentes na aplicação da pena................................................... 325
y* Método de fixação da pena............................................................................. 327
1. Primeira fase: fixação da pena-base....................................................... 328
D ire ito P e n al - P arte G eral
xix
Nota do Autor
O texto que o leitor tem em mãos, dirigido basicamente, mas não exclusiva
mente, a alunos do curso da graduação em direito, pretende tratar o direito penal
a partir de uma perspectiva crítica e comprometida com o sistema de valores e
princípios da Constituição Federal, alfa e ômega do ordenamento jurídico e, pois,
começo e fim da juridicidade. De acordo com essa perspectiva, todos aqueles que
lidam com o direito (juizes, membros do Ministério Público, advogados, autorida
des administrativas, alunos, professores etc.) hão de deixar de ser meros espectado
res da lei, para exercerem ativamente, como seus intérpretes e aplicadores vivos,
um papel bem mais dinâmico, complexo, crítico e criativo do direito, tendo como
referência a legalidade constitucional. E esse novo e desafiador papel mais cresce
de importância e mais exige de seus operadores quando se editam e se multiplicam
leis penais simbólicas, demagógicas e que, por conseguinte, só desacreditam mais
ainda o já desacreditado sistema penal, pois servem para só criar uma impressão -
e uma falsa impressão - de segurança jurídica.
Além disso, com a constitucionalização dos direitos e garantias fundamentais
do homem (CF, art. 5Q), a questão dos fins do direito penal deixou de ser pura espe
culação teórica para tom ar-se uma questão de direito positivo de fundamental
importância para juizes e legisladores, visto que a Constituição Federal, fundamen
to de validade da ordem jurídica, deve orientar tanto a elaboração das leis quanto
a sua concreção, vale dizer, deve ser o ponto de partida e o ponto de chegada de
toda construção e elaboração doutrinária e jurisprudencial.
Naturalmente que um direito penal assim concebido - um direito penal da
Constituição ou conforme a Constituição - há de ser necessariamente mínimo,
garantista, instrumental e subsidiário da política social geral e, em particular, da
política de prevenção e controle da desviação, que deve ter como prioridade máxi
ma a integração social do homem e a realização de suas necessidades básicas (em
prego, escola, saúde, lazer), em cujo contexto o direito penal, como parte de uma
política de proteção integral dos direitos humanos, há de ocupar e desempenhar
um papel bastante modesto.
Direito penal m ín im o, porque a vocação libertária do constituinte de 1988 é
manifesta, conforme demonstra seu amplíssimo rol de direitos e garantias indivi
duais (art. 5q), de sorte que, sendo a liberdade a regra, a não-liberdade, a exceção,
medidas constritivas da liberdade, sobretudo as de caráter penal, devem constituir
a exceção das exceções, é dizer, devem ser o último recurso de defesa da juridici
dade. Garantista, porque, por maior que seja o interesse do Estado em reprimir
determinadas condutas, tal só será legítimo quando respeitadas, formal e material
mente, as garantias penais e processuais constitucionalmente consagradas. Instru
m ental, porque, não constituindo o direito penal um fim em si mesmo, mas um
meio de proteção de bens jurídicos, sua intervenção só se justifica quando e se
necessária para a consecução dos fins que se lhe assinalem. Por fim , subsidiário,
porque sua atuação há de pressupor o fracasso de outras instâncias menos lesivas de
controle social, com as quais deverá concorrer utilmente.
A questão fundamental reside assim em dar efetividade ao projeto democráti
co, maximizando a proteção do cidadão e minimizando a violência, projeto para o
qual pouco pode contribuir a intervenção penal, inevitavelmente traumática,
cirúrgica e negativa, i Afinal, um Estado que se define Democrático de Direito (CF,
art. 1Q), que declara, como seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana, a
cidadania, os valores sociais do trabalho, e proclama, como seus objetivos funda
mentais, constituir uma sociedade livre, justa e solidária, que promete erradicar a
pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover
0 bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade (art. 3Q), não
pode nem deve pretender lançar sobre seus jurisdicionados, prematuramente, esse
sistema de violência seletiva e discriminatória, que é o sistema penal, máxime
quando é esse mesmo Estado, por ação e/ou omissão, em grande parte co-responsá
vel pelas gravíssimas disfunções sociais que vicejam e pelos dramáticos conflitos
que daí derivam.
Antes, e para não os trair com a mera retórica constitucional, há de assumir
! não uma postura passiva-negativa (garantismo negativo), mas uma postura ativa-
i positiva (garantismo positivo), em face de seus jurisdicionados, é dizer, há de ali-
I mentá-los, há de dar-lhes teto, há de prestigiar-lhes a saúde, o trabalho, há de rea-
| lizar a função social da propriedade, há de possibilitar-lhes efetivamente o exercí
cio da cidadania, proporcionando-lhes as condições mínimas de desenvolvimento
de suas potencialidades, e assim reduzir os níveis de desigualdade social (realização
dos direitos sociais), sob pena de esse Estado carecer de toda legitimidade para exi
gir de tais pessoas qualquer prestação, já que, como ressalta Ferrajoli, a declaração
constitucional dos direitos dos cidadãos eqüivale à declaração constitucional dos
deveres do Estado .2 Urge assim trabalhar com o mínimo de direito penal e com o
máximo de direitos sociais.
Por fim, por não ser o direito penal uma “ciência de professores”, mas uma
“ciência de casos”,3 toda e qualquer construção doutrinária deve ter como priori
dade absoluta a resolução de conflitos reais, evitando-se abstrações excessivas e
inúteis, de interesse puramente acadêmico, de modo que decisivo é aparelhar as
agências judiciais dos instrumentos necessários à solução justa (ou minimamente
FUNDAMENTOS DO
DIREITO PENAL
D ire ito P en al - P a rte G era l
Capítulo I
Introdução
1 Por conceito, entende-se todo o processo que to m e possível a descrição, a classificação e a previsão dos
objetos cognoscíveis. Assim entendido, esse term o tem significado generalíssimo e pode incluir qualquer
espécie de sinal ou procedimento sem ântico, seja qual for o objeto a que se refere, abstrato ou concreto,
próximo ou distante, universal ou individual. Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. S. Paulo:
M artins Fontes, 2003, p. 164.
2 De acordo com Juarez C irino, o d ireito penal é o setor do ordenam ento ju ríd ico que define crim es,
com ina penas e prevê medidas de segurança aplicáveis aos autores das condutas incrim inadas. D ireito
Penal. Parte Geral. Rio de Jan eiro: Lum en Juris, 2 0 0 6 , p. 3. Eis ainda o con ceito de Luis Jim énez de
Asúa: “co n ju n to de norm as e disposições ju ríd icas que regulam o exercício do poder sancionador e
preventivo do Estado, estabelecendo o co n ceito do delito com o pressuposto da ação estatal, assim
como a responsabilidade do sujeito ativo, e associando à infração da norm a um pena finalista ou uma
medida de segurança.” La ley e el delito: curso de dogm atica penal. Caracas: ed itorial Anrés Bello,
1945, p. 17.
3 Tratado d e direito penal alemão, trad. José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: Briguiet, 1899, v. 1, p. 1.
4 Tratado d e d erech o penal, 2. ed. Madrid: 1946, v. 1, p. 27-28.
5 D erecho pen al alemán, trad. Bustos e Pérez. Santiago: Ed. Jurídica de Chile, 1993, p. 1.
6 P ireito pen al , trad. Juarez Tavares, 5. ed.. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1976, p. 5.
Paulo Q ueiroz
plina, também, outras relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabi
lidade de medidas de segurança e a tutela do direito de liberdade em face do poder
de punir do Estado.”7
Mas tais definições não são de todo exatas, estando o objeto do direito penal
além delas. Basta referir algumas normas: “não há crime sem lei anterior que o defi
na, nem pena sem prévia cominação legal”; “ninguém pode ser punido por fato que
lei posterior deixa de considerar crime”; “considera-se praticado o crime no mo
mento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado” (CP, arts.
fo a 40). “a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo
mesmo crime” (art. 8e); “o resultado, de que depende a existência do crime, somen
te é imputável a quem lhe deu causa” (art. 13); “entende-se em legítima defesa
quem...” (art. 25); “é isento de pena...” (art. 181); “considera-se funcionário públi
co...” (art. 327).
Vê-se assim que as normas jurídico-penais não se limitam à definição de com
portamentos delituosos, cominando-lhes as respectivas sanções. A prevalecer tão
restrito conceito, só teremos como normas penais aquelas previstas na chamada
Parte Especial dos códigos e leis penais extravagantes que prevêem as condutas
delituosas. A Parte Geral, e não raro também a Parte Especial, em vez de declarar
quais são os comportamentos criminosos ou contravencionais, trata sobretudo de
delimitar o âmbito de atuação das normas penais e de estabelecer os critérios de
interpretação/aplicação do direito penal.
Mas não apenas isso. A Constituição Federal (principalmente) e o Código
Penal definem ainda as bases e os princípios que informam o direito penal, traçan
do-lhe o perfil, limites e contornos. Numa palavra, dão-lhe a conformação políti-
co-jurídica.
Assim, por exemplo, quando adota o princípio da legalidade, o princípio da
não-perpetuação das penas, o princípio da proporcionalidade etc.. Enfim, as nor
mas tipicamente penais - previstas ou não num diploma penal - , ao tempo em que
fundam e estruturam o poder punitivo do Estado, fixam os princípios e regras fun
damentais que vão governar a intervenção jurídico-penal, criando, paralelamente,
um sistema de garantias em face do exercício deste poder.
Ademais, tais definições, ao ressaltarem a relação Estado/infrator, marginali
zam a vítima, desconsiderando o papel fundamental que esta vem de assumir no
direito penal e processual penal.8
Cabe conceituar assim, e prelim inarm ente, o direito penal como o conjunto
das normas jurídicas que, materializando o poder punitivo do Estado, define as
infrações penais (crimes e contravenções) e comina as sanções correspondentes
(penas, medidas de segurança ou outra conseqüência legal9), estabelecendo ainda
os princípios e garantias em face do o exercício deste poder, ao tempo em que cria
os pressupostos de punibilidade.
Pode-se ainda conceituá-lo, como faz García-Pablos, sob o enfoque dinâmico
e sociológico, como sendo um dos instrumentos do controle social formal por meio
do qual o Estado, mediante determinado sistema normativo (as leis penais), castiga
com sanções negativas de particular gravidade (penas e outras conseqüências afins)
as condutas desviadas mais nocivas para a convivência, assegurando desse modo a
necessária disciplina social e a correta socialização dos membros do grupo.10
É certo também que, por meio da expressão Direito Penal, é designada a “ciên
cia do direito penal”. Nesse sentido, o saber ou a ciência penal tem por objeto o co
nhecimento, a interpretação, a sistematização e a crítica do direito positivo .11
Finalmente, convém advertir que todos esses conceitos são também passíveis
de crítica por confundirem, mais ou menos claramente, direito penal com legisla
ção penal, isto é, confundem lei e direito, conforme se esclarecerá mais adiante.
9 Ao me referir a outra conseqüência legal , quero aludir a medidas despenalizadoras, como a suspensão con
dicional do processo e a transação (Lei nQ9.099/95), e efeitos não penais da sentença penal condenatória
(obrigação de reparar o dano etc.), bem como adm itir a possibilidade de redefinição e flexibilização da res
posta penal, segundo o princípio da adequação. No particular, entendo que o direito penal deve ampliar,
sensivelmente, os modos de responder ao conflito, conform e as particularidades de cada caso concreto,
buscando, à sem elhança do direito não penal (civil, administrativo), uma solução para o caso, solução que
não precisa ter necessariamente caráter de pena.
10 D erecho penai: introducción, Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1995, p. 1-2.
11 García-Pablos, cit., p. 298.
12 Maier, Julio B. J. D erecho Procesal Penal.Tom o I: Fundamentos. 3. ed. Buenos Aires: Editores dei Puerto,
2004, p. 75.
13 Conforme assinala Aury Lopes Júnior, o processo, como instituição estatal, é a única estrutura que se reco
nhece como legítima para a imposição da pena, visto que o direito penal é desprovido de coação direta e, di
rá, por exemplo, se há ou não crime, se o crime está ou não provado, se a prova
obtida é ou não lícita, se o autor agiu ou não em legítima defesa, se ele é ou não cul-
pável, se houve ou não prescrição. Por isso é que entre o direito penal e o proces
so penal há uma relação de mútua referência e complementaridade,14 visto que o
direito penal é impensável sem um processo penal (e vice-versa). Daí dizer Calmon
de Passos que a relação entre o direito material (penal, civil) e o processo não é uma
relação apenas de meio e fim, isto é, instrumental, mas uma relação integrativa,
orgânica, substancial, uma vez que o direito é socialmente construído, historica
mente formulado, atende ao contingente e conjuntural do tempo e do espaço, e,
por isso, somente o é depois de produzido.15
Exatamente por isso, os princípios e garantias inerentes ao direito penal (lega
lidade, irretroatividade da lei mais severa etc.) devem ser aplicados, por "igual, ao
processo penal, unitariamente, não cabendo fazer distinção no particular. Também
por isso, os constrangimentos gerados pelo processo penal jamais poderão exceder
àqueles que poderiam resultar da própria condenação, sob pena de conversão do
processo em pena antecipada, além de violação ao princípio da proporcionalidade.
Assim, não é legítima a prisão provisória sempre que à infração penal cometida for
cominada pena não privativa da liberdade ou for cabível a sua substituição por pena
restritiva de direito ou semelhante.16
Apesar disso, direito penal e processo penal não se confundem, porque, por
exemplo, a prisão provisória (prisão em flagrante, prisão preventiva) não é a pró
pria pena cominada ao crime, nem sua antecipação, a qual pressupõe um processo,
sob pena de se confundir o processo de conhecimento com o processo de execução
(a própria execução da pena); e, neste caso, o processo, que deveria assegurar ao réu
as garantias que lhe são inerentes, com vistas à realização de um julgamento justo
ou ao menos conforme a Constituição seria um simples pretexto para se impor um
castigo antecipado a alguém e legitimar decisões arbitrárias, como se de fato pro
cesso algum existisse.
O mesmo deve ser dito quanto à execução penal, última etapa de realização
do direito penal, a qual deve ser regida pelos princípios constitucionais do direito
e processo penal, afinal, o direito, apesar de compartimentado em ramos, pretende
ser um só. Assim, modificações legislativas criadas em desfavor do condenado não
podem atingir as condenações por crimes cometidos anteriormente à sua entrada
em vigor, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade da lei mais severa
ferentem ente do direito privado, não tem atuação nem realidade concreta fora do processo corresponden
te, in Introdução crítica ao Processo Penal. 4* edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 3.
14 Figueiredo Dias, Jorge. Direito Processual Penal. 1. ed„ 1974 (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora,
2004, p. 28.
15 J. J.Calmon de Passos. Direito, poder, justiça e processo. Forense: Rio de Janeiro, 1999, p. 52 e 68.
16 Sobre isso, conferir Antônio Vieira. O Princípio da Proporcionalidade e Prisão Provisória, in Leituras
Complementares de Processo Penal. Salvador: JUSPODIVM, 2008.
D ire ito P e n al - P arte G eral
(v.g., uma lei que abolisse o livramento condicional deveria ser aplicada somente
aos crimes cometidos posteriormente à sua vigência).
Em conclusão, e contrariamente à doutrina e jurisprudência ainda hoje majo
ritária, temos que tudo que se disser sobre o direito penal há de igualmente valer
para o direito processual penal e execução penal, necessariamente, a fim de confe-
rir-lhes tratamento unitário e conforme a Constituição .17
Em primeiro lugar, o direito é um conceito, tal qual justiça, moral, ética ou esté
tica. E como conceito, remete necessariamente a outros conceitos: lei, ordem, segu
rança, liberdade, bem jurídico etc., que também reenviam a outros tantos, motivo
pelo qual só se pode obter um conceito de direito por meio de remissões, associações.
Em segundo lugar, o mais elaborado ou prestigiado conceito de direito é apenas
um entre vários conceitos possíveis, de sorte que traduz em última análise o ponto de
vista de seu autor ou de quem o adota, afinal outros tantos conceitos, mais ou menos
exatos, mais ou menos amplos, são igualmente possíveis. Também por isso, um con
ceito constitui uma apreensão sempre parcial do mundo, dentro de um universo de
representações possíveis; um conceito é uma simplificação, uma redução.
Em terceiro lugar, todo conceito, como representação formal do pensamento,
pouco ou nada diz sobre o seu conteúdo, isto é, pouco ou nada diz sobre as múlti
plas formas que ele pode histórica e concretamente assumir, até porque, embora
pretenda valer para o futuro, é pensado a partir de uma experiência passada, a reve
lar que definir algo é de certo modo legislar sobre o desconhecido. Também por isso,
um conceito, como expressão da linguagem, é estruturalmente aberto, e, pois, pode
compreender objetos históricos os mais díspares (v.g., o conceito de legítima defesa
depende do que se entenda, em dado contexto, por “injusta agressão”, “atual ou imi
nente”, “uso moderado dos meios necessários”, “direito próprio ou alheio” etc.).
Em quarto lugar, um conceito, que é assim socialmente construído, só é com
preensível num espaço e tempo determinados, motivo pelo qual, com ou sem alte
17 De modo diverso, Elm ir Duclerc (Curso Básico de D ireito Processual Penal, v. 1. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 4) sustenta que não é correto vincular a existência do direito processual ao direito penal,
mesmo porque o processo penal “nem sempre será decidido com amparo em normas de direito material
(pense-se, por exemplo, nos processos por crim e de furto, em que pode ser necessário discutir se a coisa
subtraída era ou não alheia à luz do D ireito Civil)”. Não estamos de acordo com isso, evidentemente.
Desde logo, porque o direito é um só, apesar de compartimentado em ramos, que não são compartimen
tos estanques; segundo, porque o recurso ao conceito jurídico-penal de infração penal (no caso, crim e de
furto) é absolutamente indispensável; terceiro, porque não se pode justificar um conceito a partir de uma
exceção; finalm ente, porque o só fato de um processo penal poder ser anulado por meio de habeas eorpus
por violar normas processuais não desm ente a vinculação essencial entre direito penal e processo penal.
Além disso, o direito processo penal, am es de ser processo, é direito, e não é qualquer processo (civil,
administrativo etc.), mas processo p e n a l isto é, relativo ao direito penal. Enfim , os argumentos invocados
em favor da independência do direito processual penal dizem respeito a aspectos acidentais, não essen
ciais, da relação político-jurídica em questão.
Paulo Queiroz
8
ração de seus termos, está em permanente mutação, afinal um conceito encerra
uma convenção (sempre provisória), e está condicionado por pré-conceitos ou pré-
juízos. Por isso é que o legal ou ilegal, o lícito ou ilícito variam no tempo e no espa
ço, independentemente (inclusive) da alteração dos termos da lei, até porque o direi
to existe com ou sem leis (v.g., comunidades ou países que seguem um direito costu
meiro). Todo conceito, assim como todo texto, pressupõe um determinado contexto.
Exatamente por isso, o que é justo hoje ou o foi ontem não será necessaria
mente amanhã. Pode ocorrer inclusive de se ter por justo e legal num determina
do momento algo que se tornará injusto e ilegal - e eventualmente criminoso - em
momento posterior (v.g., a discriminação de homossexuais ou de filhos havidos
fora do casamento, danos ao meio ambiente), podendo-se imaginar que no faturo,
tal como já ocorre nalguns países, muito do que atualmente é ilegal se tornará legal
(e vice-versa), como a eutanásia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a ado
ção por tais casais, a mudança de sexo etc. Aliás, historicamente, nem todas as pes
soas foram consideradas como sujeitos de direito (v.g., estrangeiros, prisioneiros de
guerra, mulheres, escravos).18
Em quinto lugar, o conceito de direito, tal qual o conceito de justiça, liberda
de, igualdade, e diferentemente do conceito de cavalo, automóvel etc., que dizem
respeito a algo concreto, não remetem a uma coisa, a um objeto, propriamente, mas
a relações e conflitos que daí resultam (v.g., pais/filhos, empresa/empregados, auto
res/vítimas, Estado/criminosos etc.). Exatamente por isso, o direito não é um con
junto de artigos de lei, mas um conjunto de relações humanas.19
Finalmente, todo conceito é construído pela equiparação de coisas desiguais e,
por isso, constitui uma universalização do não-universal, do singular; um conceito
nasce, portanto, da postulação de identidade do não idêntico .20 O conceito de cri
me, por exemplo, refere-se a um sem-número de condutas que a rigor nada têm em
comum, à exceção da circunstância de estarem formalmente tipificadas: matar
alguém, subtrair coisa alheia móvel, emitir cheque sem provisão de fundos, portar
droga para consumo pessoal, abater espécime de fauna silvestre etc. (espécime que
pode variar de uma borboleta a uma onça pintada), conceitos, que, por sua vez, uni
ficam coisas díspares. Com efeito, não existe um homicídio absolutamente igual a
outro homicídio, nem um furto absolutamente igual a outro furto, nem um crime
ambiental absolutamente igual a outro, pois as múltiplas variáveis que sempre
envolvem tais atos tornam cada ação humana singular, única, irrepetível. Enfim,
um conceito é formado pela eliminação do que há de particular em cada ato; e
18 Também por isso, não é correto criticar a justiça ou injustiça de um ato ou instituição (v. g., a escravidão)
desconsiderando o contexto em que surgiram. Não é de admirar, por isso, que no futuro, tal como já ocor
re nalguns países, se for abolida a repressão ao tráfico ilícito, drogas passem a ser vendidas livremente em
drogarias e a história da sua repressão seja vista como selvageria ou algo similar.
19 Arthur Kaufmann. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
20 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Madrid: Tecnos, 1996.
D ire ito P en al - Parte Geral
quanto mais exato, mais abstrato e mais vazio de conteúdo se tom a .21 Os fatos são
mais ou menos semelhantes, nunca idênticos.
Aliás, a analogia, que tradicionalmente tem merecido um tratamento secun
dário, não constitui (conforme se verá mais tarde) um elemento acidental, mas
essencial ao conhecimento/interpretação, pois o belo e o feio, o justo e o injusto, o
legal e o ilegal são construídos em verdade a partir de comparações (analogias), isto
é, recorrendo-se, conscientemente ou não, a experiências (sempre novas) de bele
za, de justiça e de legalidade.
De tudo isso resulta que o direito não está previamente dado, pois é parte da
construção social da realidade; e, portanto, o direito não preexiste à interpretação,
mas é dela resultado, razão pela qual a interpretação não é um modo de desvelar
um suposto direito preexistente, mas a forma mesma de produção do direito.
Enfim, não é mais a interpretação que depende do direito (ou da lei), mas o direi
to (ou a lei) que depende da interpretação.
O que é então o direito? Sob essa perspectiva, uma multidão móvel de metá
foras e metonímias.22
É preciso insistir ainda que o direito não é uma coisa, isto é, não tem uma
essência, uma substância; não existe ontologicamente, independentemente da
representação que fazemos a seu respeito, porque constitui uma criação humana,
que nasce e morre com o homem, ou seja, o direito não é sólido, nem líquido, nem
gasoso, nem animal, nem vegetal.24
Com efeito, “aquilo que uma teoria do direito objetiva como d ireito ”, são pala
vras de François Ewald, “como natureza do direito, como essência do direito, não
tem existência real. O Direito - demos-lhe maiúsculas - não existe. Ou antes, não
existe a não ser como um nome que reenvia a um objeto, mas serve para designar
uma multiplicidade de objetos históricos possíveis - que, como realidades, não têm
21 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Madrid: Tecnos: 1996.
22 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Madrid:Tecnos: 1996. Naturalmente
que com esse conceito generalíssimo, aplicável a outros saberes, fica por esclarecer o que há (se há) de
peculiar no “fenômeno" jurídico.
23 Conforme se infere de alguns conceitos: “o direito é, pois, o conjunto de condições sob as quais o arbítrio
de um se pode harmonizar com o arbítrio do outro, segundo uma lei universal da liberdade” (Kant,
Metafísica dos costumes, parte I. Lisboa: Edições 70, p. 36); “o domínio do direito é o espírito em geral; aí,
a sua baseprópria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua
substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espí
rito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo” (Hegel, Princípios de filosofia do direi
to , trad. Orlando Vitorino. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 12); “Direito é a ordenação heterônoma,
coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos
segundo valores” (Miguel Reale, Lições prelim inares de direito. São Paulo, Saraiva, 2005, p. 67).
24 Calmon de Passos. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 67-68.
Paulo Queiroz
25 Foucault, A norma e o direito. Lisboa: Vega, 1993, p. 160. De modo similar, Calmon de Passos afirma que
o direito “enquanto apenas formulação teórica, enunciado normativo, proposição ou juízo, ainda não é o
Direito", pois “o Direito é o que dele faz o processo de sua produção. Isso nos adverte de que nunca é algo
dado, pronto, preestabelecido ou pré-produzido, cuja aplicação é possível mediante simples utilização de
determinadas técnicas e instrumentos, com segura previsão das conseqüências”, razão pela qual “O
Direito, em verdade, é produzido a cada ato de sua produção, concretiza-se com sua aplicação e somente
é enquanto está sendo produzido ou aplicado” . Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 67-68). Não por outra razão, Oliver W endell Holmes afirmava que o que o direito realmente faz
é criar profecias sobre o que os tribunais farão de fato. Textualmente: “the prophecies o f what the courts
will do in fact, and nothing more pretentious, are what I mean by the law”, apud Arthur Kaufmann,
Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
26 Nietzsche, Friederich. Para além do bem e do mal, trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 92.
27 Só assim se explica, por exemplo, que, interpretando a Constituição americana, que vigora há séculos,
tenha a Suprema Corte entendido, inicialmente, que o racismo era constitucional; mais tarde (década de
1950), passou-se a considerá-la parcialmente inconstitucional; e, finalmente, a partir da década de 1970,
prevaleceu o entendimento de que o racismo é inteiramente inconstitucional. O que mudou, se o texto da
lei é o mesmo desde então? A resposta é simples: o homem que o interpreta!
28 Roberto Machado. Por uma genealogia do poder, in Michel Foucault, Microfísica do Poder. Rio de
Janeiro: Graal, 1995, p. XIV.
29 Não sem razão, Boaventura de Souza Santos refere, além do direito estatal ou territorial, o direito domés
tico, o direito de proteção, o direito da comunidade e o direito sistêmico, classificação que não é exausti
va. O direito doméstico - grandemente informal - é o direito do espaço doméstico, o conjunto de regras,
de padrões normativos e de mecanismos de regulação de conflitos que resulta da, e na, sedimentação das
relações sociais do agregado doméstico; o direito da produção é o direito da fábrica ou da empresa, o con
junto de regulamentos e padrões normativos que organizam o quotidiano das relações do trabalhado assa
lariado: códigos de fábrica, regulamentos da linha de produção, códigos de condutas dos empregados etc.;
o direito da comunidade, como sucede com o espaço da comunidade, é uma das fontes de direito mais
complexas, na medida em que cobre situações extremamente diversas, podendo ser invocado tanto pelos
grupos hegemônicos como pelos grupos oprimidos; finalmente, o direito territorial ou estatal é o direito do
D ireito Penal - Parte Geral
mas jurídicos, e os faz, ou tenta fazê-los prevalecer, nos seus espaços de intera
ção/exercício de poder.
Dizemos, por exemplo, o direito penal, primeiro, por meio dos processos de
criminalização primária que vão culminar na edição de uma lei que diga o que é e
não é crime, porque assim o exige o princípio da legalidade (CF, art. 5e, XXXIX30);
segundo, por meio dos processos de criminalização secundária, isto é, através das
ações e reações das pessoas e instituições direta ou indiretamente relacionadas com
o crime (Judiciário, Ministério Público, Polícia, advogados, imprensa, autor, víti
ma, parentes etc.).
Assim, se não há crime nem pena sem lei anterior que os defina, segue-se que,
por mais que uma conduta humana seja moralmente reprovável (v. g., o incesto),
se não houver lei que a declare criminosa, criminosa não é, sendo jurídico-penal-
mente irrelevante. É a lei, portanto, que cria o crime, é a lei que cria o criminoso.
Numa palavra: crime é só o que o legislador diz que é .31
Mas esse discurso não cessa aí, porque prossegue por meio dos processos de
definição e reação social, isto é, os processos de criminalização secundária, que
nada mais são do que continuum daquele. E que de certo modo a lei nada prescre
ve, proíbe, autoriza ou permite, pois a lei prescreve ou não prescreve, proíbe ou não
proíbe, autoriza ou não autoriza, permite ou não permite o que dizemos que ela
proíbe, autoriza ou permite, de modo que a lei diz o que dizemos que ela diz.32
espaço da cidadania e, nas sociedades modernas, é o direito central na maioria das constelações de ordens
jurídicas, sendo que, ao longo dos últimos duzentos anos, foi construído pelo liberalismo político e pela
ciência jurídica como a única forma de direito existente na sociedade, in Crítica da razão indolente , São
Paulo, Cortez, 2000, p. 290 e s.
30 Prescreve o aludido artigo que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia comi-
nação legal”.
31 Apesar disso, tem razão Niklas Luhmann quando, de uma perspectiva distinta, assinala que “o direito não
se origina da pena do legislador. A decisão do legislador (e o mesmo é válido, como hoje se reconhece,
para a decisão do juiz) se confronta com uma multiplicidade de projeções normativas já existentes, entre
as quais ele opta com um grau maior ou menor de liberdade. Se não fosse assim, ela não seria uma deci
são jurídica. Sua função, portanto, não reside na criação do direito, mas na seleção e na dignificação sim
bólica de normas enquanto direito vinculativo. Ele envolve um filtro processual, pelo qual todas as idéias
jurídicas têm que passar para se tornarem socialmente vinculativas enquanto direito. Esses processos não
geram o direito propriamente dito, mas sim sua estrutura em termos de inclusões e exclusões; aí se deci
de sobre a vigência ou não, mas o direito não é criado do nada. É importante ter em mente essa diferen
ça, pois de outra forma a concepção do direito estatuído através de decisões pode ser ligada à noção total
mente errônea da onipotência de fato ou moral do legislador. É necessário, em outras palavras, diferen
ciar entre atribuição e causalidade. A proeminência especial do processo decisório (por instâncias legisla
tivas ou por juizes) e sua relevância na positivação na vigência do direito não podem levar à interpretação
como algo criativo ou causai; o direito resulta de estruturas sistêmicas que permitem o desenvolvimento
de possibilidades e sua redução a uma decisão, consistindo na atribuição de vigência jurídica a tais deci
sões” Sociologia do direito, II. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário 80, 1985, p. 8.
32 Por isso afirma Lênio Luiz Streck que em rigor não existem julgamentos de acordo com a lei ou em desa
cordo com ela, porque o texto normativo não contém imediatamente a norma (Müller), a qual é construí
da pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito, de sorte que, quando o juiz profe
re um julgamento considerado contrário à lei, na realidade está proferindo um julgamento contra o que a
doutrina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário. Conclui então que “é necessário ter em conta que
Paulo Queiroz
Aliás, e conforme assinala Umberto Eco, “um texto, uma vez separado do seu emis
sor (bem como da intenção do seu emissor) e das circunstâncias concretas da sua
emissão (e conseqüentemente de seu referente implícito), flutua no vácuo de um
espaço potencialmente infinito de interpretações possíveis. Conseqüentemente,
texto algum pode ser interpretado segundo a utopia de um sentido autorizado fixo,
original e definitivo. A linguagem sempre diz algo mais do que o seu inacessível
sentido literal, o qual já se perdeu a partir do início da emissão textual”.33
Explicando mais concretamente: a lei prescreve que o crime de estupro con
siste em constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça (CP, art. 213); parece óbvio saber em que consiste o crime, pois. No entan
to, o que vem a ser m ulher para efeitos penais? Transexual, por exemplo,, pode ser
considerada mulher para fins penais, e, portanto, vítima de estupro? Há algum
tempo uma conhecida judoca brasileira foi impedida de participar de competição
por não ser mulher segundo as regras desportivas: não seria ela, então, passível de
estupro? Práticas sadomasoquistas podem ser consideradas criminosas? Não faz
muito tempo, autores importantes afirmavam que o marido não podia responder
por crime de estupro contra a esposa, pois, diziam, entre os direitos inerentes ao
casamento estava o de o marido poder dela dispor sexualmente, razão pela qual não
lhe era dado oferecer resistência lícita .34 Ainda hoje, parte da doutrina entende que
haverá estupro nesse caso, “desde que ela tenha justa causa para a negativa”.35 Não
bastasse isso, o Código equipara a estupro violento o estupro com violência presu
o Direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais
que palavras, é também comportamentos, símbolos, conhecimentos, expressados (sempre) na e pela lin
guagem. É o que a lei manda, mas também o que os juizes interpretam, os advogados argumentam, as par
tes declaram, os teóricos produzem, os legisladores criticam. É, enfim, um discurso constitutivo, uma vez
que designa/atribui significado a fatos e palavras", in Hermenêutica jurídica em crise. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 1999, p. 210-211.
33 Os limites da interpretação. S. Paulo: Editora Perspectiva, 2000, p. XIV. Apesar disso, e conforme sugere o
próprio título do texto (os limites da interpretação), Umberto Eco entende, com razão, que há limites à
interpretação, de sorte que nem toda interpretação é aceitável ou válida. Vide capítulo sobre interpretação.
34 Assim, Nélson Hungria: “questiona-se sobre se o marido pode ser, ou não, considerado réu no estupro,
quando, mediante violência, constrange a esposa à prestação sexual. A solução justa é no sentido negati
vo. O estupro pressupõe cópula ilícita (fora do casamento). A cópula intra matrimonium é recíproco dever
dos cônjuges (...). O marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena cor
respondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões,
porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente), pois é lícita a violência necessária para o exer
cício regular de um direito”, in Comentários ao Código Penal Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 125-126.
Assim também, Magalhães Noronha: “as relações sexuais são pertinentes à, vida conjugal, constituindo
direito e dever recíproco dos que casam. O marido tem direito à posse sexual da mulher, ao qual ela não
pode se opor. Casando-se, dormindo sob o mesmo teto, aceitando a vida em comum, a mulher não se pode
furtar ao congresso sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie. A violência por parte do
marido não constituiria, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder à
união sexual seja mero capricho ou fútil motivo, podendo, todavia, ele responder por excesso cometido”.
Direito penal , v. 3. São Paulo: Saraiva, 27. ed., 2003.
35 Damásio de Jesus. Direito Penal. Parte Especial, 3° volume, p. 96. São Paulo: Saraiva, 2002. Paulo José da
Costa Júnior ainda hoje defende que mulher casada não pode ser vítima de estupro praticado pelo mari
do. Curso dç Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2008.
D ireito Penal - Parte Geral
m ida, isto é, praticado contra menores de catorze anos (CP, art. 22436) ou mulher
que padeça de alienação mental, o que significa dizer que muitos namoros poderão
ser interpretados como autênticos estupros. Finalmente, o que significa ou pode
significar “constranger”?
Consideremos um outro exemplo. A Constituição veda, expressamente, as
penas de morte e cruéis (CF, art. 5Q, XLVII37). Mas o que vem a ser pena de morte
ou pena cruel? A resposta não é tão óbvia como parece.
E evidente que haverá pena de morte sempre que um juiz ou um tribunal pro
clamar a culpa de um réu e condená-lo criminalmente à pena capital, seja com um
tiro de fuzil, seja por enforcamento, seja por qualquer outro meio. A pena de morte
é, enfim, um homicídio levado a cabo pelo Estado, legalmente. Mas veja: o art. 303,
§ 2e, da Lei n° 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáuti
ca), alterada pela Lei ne 9.614/98, bem assim o Decreto ns 5.144, de 16 de julho de
2004, que o regulamentou, previu a destruição de aeronaves “hostis ou suspeitas de
tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins”. Pergunta-se: não seria isso
pena de morte/cruel por juízo de exceção, constitucionalmente vedada? Apesar
disso, apreciando petição que argüia a inconstitucionalidade (não recepção) da alu
dida lei, o Procurador-Geral da República, contrariamente, assinalou que “a medi
da de destruição não guarda relação com a pena de morte. Aliás, sequer pode ser
considerada uma penalidade, porquanto não se busca, com sua aplicação, a expia-
ção por crime cometido. Em realidade constitui, essencialmente, medida de segu
rança, extrema e excepcional, que só reclama aplicação na hipótese de ineficácia
das medidas coercitivas precedentes. E importante frisar que tal medida tem por
objeto a preservação da segurança nacional e a defesa do espaço aéreo brasileiro ”.38
Esse exemplo também demonstra claramente que o direito é realização/manifesta
ção de poder: diz o que é o direito quem tem atribuição/poder para tanto.
Aliás, a própria pena privativa da liberdade, que em geral consiste no encarcera
mento do sujeito por anos a fio num ambiente antinatural (artificial), em espaço físi
co minúsculo, superlotado, sem salubridade, privado quase que integralmente de con
tato com o mundo exterior, não seria ela mesma pena cruel? Não seriam as medidas
de segurança uma forma disfarçada de seqüestro por tempo indefinido?
36 Diz o referido art. 224 do Código Penal que “presume-se a violência se a vítima: a) não é maior de 14
(catorze) anos; b) é alienada mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer
outra causa, oferecer resistência”.
37 Dispõe o artigo: “não haverá penas: a) de morte, salvo no caso de guerra declarada, nos termos do art. 84,
XIX; e) cruéis."
38 Processo PGR 1.00.000.000836/2005-71, pronunciamento subscrito por Cláudio Lemos Fonteles, então
Procurador-Geral da República, datado de 14-3-2005. Na representação formulada (também por mim
subscrita), os autores sustentaram a violação dos seguintes princípios: a) inviolabilidade da vida (art. 5°,
caput); b) proibição da pena de morte em tempo de paz (art. 5°, XLVII, a); c) presunção de inocência (art.
5o, LVTI); d) proibição de juízo ou tribunal de exceção (art. 5o, XXXVII); e) devido processo legal (art. 5a);
f) prevalência dos direitos humanos (art. 4a, II); g) defesa da paz (art. 4&, VI); h) solução pacífica dos con
flitos (art. 4a, VII); i) repúdio ao terrorismo (art. 4°, VII); j) legalidade; 1) proporcionalidade; e m) inviola
bilidade da propriedade (art. 5°, caput).
Paulo Queiroz
39 Um caso real bem ilustra isso: A foi flagrada por abusar sexualmente de sua filha (B), de dois anos, e por
isso foi presa, processada e condenada a 7 anos e 6 meses de reclusão por crime de atentado violento ao
pudor (CP, art. 214), crime hediondo (Lei nB8.072/90). O exame criminológico assim a diagnosticou: "per
sonalidade primitiva, com nível mental baixo e conseqüente imaturidade intelectual e afetiva, que m oti
vam os comportamentos regressivos que em ite e que demonstram a dificuldade de adaptação ao m eio
social. Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações, às quais reage com atitudes oposicionistas e
agressivas, manifestadas através de descargas emocionais intensas, que refletem a dificuldade de controle
sobre os impulsos. Em conseqüência, o processo de inter-relação social torna-se difícil, sobretudo quando
adota atitudes de supervalorização de si mesma com o uma forma de compensar o sentimento de inferio
ridade que procura dissimular.” Ora, tivesse essa história se passado numa família de classe média ou alta
e outro seria o desfecho: certamente, a família submeteria A a tratamento psicológico/psiquiátrico, a ses
sões de análise ou semelhante, e, no máximo, tiraria dela, provisória ou definitivamente, a guarda da
criança (B). Assim, não haveria polícia, nem crime, nem pena, nem prisão; tudo não passaria de um “pro
blema de família” e resolvido em família.
40 Por essas e outras razões, Rosa Maria Cardoso da Cunha atribui ao princípio da legalidade um caráter
puramente retórico, pois não cumpre as funções que lhe são cometidas pela dogmática; antes, desempe
nha uma função retórica que orienta a interpretação, a aplicação e a argumentação referida à lei penal.
Textualmente: “o princípio da legalidade dos delitos e das penas não constitui um garantia essencial do
cidadão em face do poder punitivo do Estado. Não determina precisamente a esfera da ilicitude penal e,
diversamente do que afirma a doutrina, não assegura a irretroatividade da lei penal que prejudica os direi
tos do acusado. Tampouco estabelece a lei escrita como única fonte de incriminação e penas, impede o
emprego da analogia em relação às normas incriminadoras ou, ainda, evita a criação de normas penais pos
tas em linguagem vaga e indeterminada. O caráter retórico do princípio da legalidade.” Porto Alegre:
Síntese, 1979, p. 17 e 128.
D ireito Penal - Parte G eral
41 No sentido do texto, Carlos Maria Cárcova escreve que “frente aos tradicionais reducionismos da teoria
jurídica (normativismo/facticismo) sustentamos a tese de que o direito deveria ser entendido como dis
curso, com o significado que os lingüistas atribuem a essa expressão, isto é, como processo social de cria
ção de sentido - como uma prática social discursiva que é mais do que palavras, que é, também, compor
tamentos, símbolos, conhecimentos; que é, ao mesmo tempo, o que a lei manda, os juizes interpretam, os
advogados argumentam, os litigantes declaram, os teóricos produzem, os legisladores sancionam ou os
doutrinários criticam e sobretudo o que, ao nível dos súditos, opera como sistema de representações”.
Direito, Política e Magistratura. S. Paulo: LTR, 1996, p. 174.
42 A frase parece ser de Oscar Romero.
43 Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 219. Diz Del Vecchio, no entanto, a
partir de postulados kantianos, que a noção universal do direito é anterior à experiência jurídica, aos fenô
menos jurídicos singulares, sendo a experiência apenas a aplicação ou verificação daquela forma. Assim,
“uma proposição só é jurídica na medida em que participar da forma lógica (universal) do Direito. Fora
desta forma, indiferente ao conteúdo, nenhuma experiência jurídica é possível. Sem ela, falta a qualidade
que permite adscrevê-la a esta espécie de experiência. A forma lógica do Direito é um dado a priori - ou
seja, não empírico - e constitui, precisamente, a condição da experiência jurídica em geral”, in Lições de
filosofia do direito , Coimbra, 1979, p. 344-345.
44 A expressão é de Louk Hulsman.
45 Não sem razão dizia Kelsen, de uma perspectiva distinta, que “todo e qualquer conteúdo pode ser Direito.
Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de ser con
teúdo de uma norma jurídica”. Teoria Pura do Direito. S. Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 221.
Paulo Queiroz
abstração sem valor e à espera de conteúdo, cor e significado de acordo com as cir
cunstâncias particulares que as incrementam .46
Releva notar, por fim, que, mesmo no âmbito jurídico-penal, ramo do direito
em que a dogmática parece ter atingido maior nível de sofisticação, o recurso às
categorias da tipicidade, ilicitude e culpabilidade não é capaz de desmentir o que se
vem de afirmar. É que, se sob o aspecto material, o delito não existe, segue-se logi
camente que também o seu conceito formal-analítico - crime como fato típico, ilí
cito e culpável - é socialmente construído, de sorte que uma dada conduta será cri
minosa somente quando dissermos (aceitarmos) que é, uma vez que tais categorias
remetem a conceitos os mais variados: dolo, culpa, significância/insignificância, cau
salidade, legítima/ilegítima defesa, estado de necessidade/desnecessidade, coação
física/moral/resistível/irresistível, obediência hierárquica, erro de proibição vencí-
vel/invencível, embriaguez voluntária/involuntária etc., os quais reenviam, por sua
vez, a uma infinidade de conceitos outros, como vida, honra, patrimônio, agressão
justa/injusta, intenção, previsão, consciência/inconsciência, boa/má-fé, prova líci
ta/ilícita, exigível/inexigível, valores, princípios etc. Não bastasse isso, o manuseio
de tais conceitos se faz por vezes de modo francamente arbitrário, como acontece,
por exemplo, nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, formado que é por leigos.
Daí dizer Castanheira Neves que “o direito é linguagem, e terá de ser conside
rado em tudo e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer
que seja, o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque, o direito é-o
numa linguagem e como linguagem - propõe-se sê-lo numa linguagem (nas signi
ficações lingüísticas em que se constitui e exprime) e atinge-nos através dessa lin
guagem, que é”.47
46 In A minha irmã e eu. Editora Moraes: S. Paulo, 1992, p. 42-43. Anoto que se trata de um texto um tanto
apócrifo, cuja autoria atribuída a Nietzsche não foi reconhecida por Walter Kaufmann, um de seus maio
res estudiosos.
47 Metodologia jurídica. Coimbra: Coimbra editora, 1993, p. 90.
D ireito Penal - Parte Geral
folha de papel não mudará absolutamente nada. E leis são, antes de tudo, folhas de
papel com mensagens impressas.
Parece razoável supor ademais que ninguém deixa de matar, estuprar, furtar etc.
porque existam leis que incriminam tais comportamentos; afinal, as pessoas cometem
ou deixam de cometer crimes porque têm ou não motivação para tanto: emocionais,
psicológicas, morais, culturais, religiosas, econômicas etc. Enfim, as complexas moti
vações humanas dificilmente podem ser eficientemente debeladas pelo poder mítico
das leis. Não bastasse isso, que legitimidade pode decorrer de leis ditadas por um par
lamento (em geral) justamente desacreditado, fundado que é num sistema represen
tativo caduco e a serviço (quase que exclusivamente) dos grupos econômicos que
patrocinam a eleição de deputados e senadores, vereadores, prefeitos etc.?
No particular, a questão fundamental parece residir nisso, porém: pretender
mudar a realidade por meio de leis é grandemente utópico. O melhor exemplo
disso é a própria Constituição Federal cujo projeto de um Estado (Social) e
Democrático de Direito tem sido sistematicamente desacreditado pela realidade,
particularmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos sociais: direito à edu
cação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, entre outros. Aliás,
combater o racismo, a desigualdade social, o preconceito, o desemprego, a fome
etc. por meio de leis é apenas um modo particular de proclamar retoricamente:
“sejam bons, sejam solidários, sejam éticos, respeitem o próximo etc.”; no essencial,
a Constituição encerra, portanto, uma simples carta de (boas) intenções.
Mas os exemplos disso - inadequação da lei para transformar a realidade - são
inumeráveis no âmbito jurídico-penal, especialmente: a edição de uma lei de cri
mes hediondos não diminuiu os índices de criminalidade; a promulgação de uma
lei de tortura não fez com que os nossos policiais se tornassem menos violentos; leis
em favor da ordem tributária não impediram que a sonegação fiscal deixasse de
crescer; leis contra a falta de decoro não obstam parlamentares de reincidirem na
infração; leis proibitivas de estupros, tráfico de drogas não parecem evitar tais deli
tos, mesmo porque o criminoso, antes de decidir praticar uma determinada infra
ção, não parece fazer uma prévia consulta ao Código Penal para deliberar a esse res
peito. Pergunte sinceramente a si mesmo: “por que ainda não pratiquei estupro”?
“por que ainda não matei alguém?”, “por que ainda não assaltei um banco?” É pouco
provável que a resposta seja: “porque há uma lei que o proíbe; e se a lei for revoga
da, eu o farei”! Pois quem tiver chegado a uma tal resposta, jamais seria obstado
pela simples existência da lei. Ordinariamente, inclusive, o autor de uma infração,
seja qual for, acredita que não será descoberto e segue adiante, se tiver motiva
ção/disposição bastante para tanto. Note-se ainda que a eventual abolição desses
crimes não significaria autorizá-los, uma vez que tais condutas são proibidas desde
sempre pela moral, pelos costumes, pelas convenções sociais etc.
Parece certo aliás que de certo modo somos todos criminosos, reais ou poten
ciais, seja por ação, seja por omissão, porque somos capazes de cometer as maiores
violências sob as mais diversas motivações e pretextos, as quais variam de pessoa
Paulo Queiroz
para pessoa, e são mais ou menos vis (poder, dinheiro, ciúme, ódio, inveja etc.).
Enfim, cometemos crimes pelas mesmas razões que não os cometemos: o decisivo
são sempre as motivações humanas, que mudam permanentemente, as quais podem
ter inclusive, como a história (de ontem e de hoje) o demonstra fartamente, os mais
nobres pretextos: a pátria, o bem, o amor, a honra, a Lei, a Justiça, Deus48 etc.
E de convir, assim, que as leis são (não infreqüentemente) um instrumento
retórico e demagógico de criar uma impressão, uma falsa impressão, de segurança,
criando no imaginário social a ilusão de que os problemas foram ou estão sendo
resolvidos, até porque de nada valem se não existirem mecanismos reais de efeti
vação. E as leis parecem assumir nos dias atuais, cada vez mais, uma função mítica,
simbólica. E o legislador tem sabido tirar proveito disso, ao decidir legislar em pro
fusão, como se a edição de novas leis, ao invés de proteção, não significasse apenas
a multiplicação de novas violações à lei e, pois, mais arbitrariedade.
Por isso é que, se se quiser tomar a sério a legislação, urge adotar um corpo
mínimo de leis: claras, precisas, absolutamente necessárias e com um mínimo de
efetividade social, pois, como há muito disse Montesquieu, as leis desnecessárias
enfraquecem e desacreditam as leis necessárias.
Problemas estruturais demandam soluções também estruturais, mesmo porque
no mais das vezes intervenções individuais apenas servem para manter as coisas
como estão, a pretexto de mudá-las e, pois, têm caráter essencialmente conservador.
Parece certo que, por mais que estudemos literatura, teatro ou pintura, é
pouco provável que um dia escreveremos como um Tolstoi, representaremos
como um Charles Chapim ou pintaremos como um Picasso. E que a arte, movida
grandemente pela inspiração, requer qualidades que estão além da técnica, que
pode eventualmente ajudar a aperfeiçoá-las, mas que dificilmente fará de um
desafinado um virtuoso.
Talvez se possa dizer o mesmo do direito: uma excelente formação dogmática
não é garantia de decisões justas, porque a técnica, no direito como na arte, só pode
oferecer, na melhor das hipóteses, isso: decisões tecnicamente corretas. Mas deci
sões tecnicamente corretas não são necessariamente decisões justas, assim como
decisões tecnicamente incorretas não são necessariamente decisões injustas (v.g.,
algumas decisões do tribunal do júri). E que uma boa interpretação, na arte como
no direito, mais do que técnica e razão, exige talento e sensibilidade. E a técnica
jurídica é apenas um meio a serviço de um fim: a justiça.
48 Em nome de Deus, por exemplo, foi e é cometida toda sorte de violência: a noite de São Bartolomeu, o
extermínio dos cátaros (ou albigenses), as cruzadas, a inquisição, os massacres patrocinados por Moisés
(Êxodo, 32: 27 e 28) ou Josué (6:21) e seus atuais seguidores: Bin Laden, Bush, além de outras formas sutis
atuais de violência, como a discriminação contra homossexuais etc.
D ireito Pen al - Parte G eral
Existem outras semelhanças entre direito e arte. Ainda hoje é muito comum
confundir lei e direito, como se fossem a mesma coisa. No entanto, confundir lei e
direito eqüivale a confundir partitura e música, que são, obviamente, coisas distin
tas, podendo inclusive existir uma sem a outra. Com efeito, é perfeitamente possí
vel produzir sons, melodias e música, como é comum aliás, e principalmente com
por, sem partitura alguma, a revelar que a música independe da partitura. Pois bem,
o mesmo ocorre com o direito: é possível decidir casos sem nenhuma lei: basta pen
sar nos conflitos havidos em comunidades mais primitivas (v.g., indígenas) ou no
com m on law , além dos inúmeros casos não disciplinados pela lei (lacuna legal). O
direito, como a música, existe com ou sem lei, com ou sem partitura.
Mas o mais importante parece residir nisso: uma mesma partitura pode ser
tocada de mil formas e ritmos, como, por exemplo, na forma de música clássica,
rock, samba etc. E cada um desses ritmos e sons variará conforme o seu intérprete,
suas influências, experiência, talento, necessidades etc. Também assim é a lei: uma
lei, por mais clara e precisa, pode ser interpretada de diversos modos, variando con
forme os pré-conceitos, influências, experiências, motivações e sensibilidade do
seu intérprete. A lei é uma partitura que pode ser interpretada de mil formas,
embora nem todas possam ser plausíveis.
Não se deve, pois, confundir lei e direito, assim como não se deve confundir
partitura e música: a música é o que decorre da execução do músico; o direito é o
que resulta da interpretação do juiz ou tribunal. O direito, como a música, não é a
lei nem a partitura: o direito é interpretação. Algumas interpretações julgamos boas
e aplaudimos, outras julgamos ruins e condenamos.
49 García-Pablos, Criminologia: uma introdução a seus fundamentos teóricos, trad. Luiz Flávio Gomes. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. Kaiser define a criminologia como “o conjunto ordenado dos saberes
empíricos sobre o delito, o delinqüente, o comportamento socialmente negativo e sobre os controles de sua
conduta”. Incroducción a la criminologia, trad. Rodriguez Devera, 7. ed., Madrid: Dykinson, 1988, p. 25.
50 A chamada criminologia positiva, cujos principais representantes foram Ferri, Lombroso e Garofalo, preo
cupava-se essencialmente em identificar as causas do crime e meios de combatê-lo eficazmente; propu
nha uma classificação dos criminosos (nato, habitual, ocasional, louco etc.) e meios de corrigi-los, a fim de
evitar novos crimes.
o estudo da vítima e, em especial, da reação e do controle social mesmo. Diferen
temente do direito penal, que é uma ciência do dever-ser (normativa), a crimino-
logia é uma ciência do ser, empírica, baseada na análise e na investigação da reali
dade, por isso que, enquanto a criminologia se serve de um método indutivo, empí
rico, o direito penal se utiliza dum método lógico, abstrato e dedutivo.51
Já a política criminal, como parte da política, constitui a sistematização das
estratégias, táticas e meios de controle social da criminalidade,52 penais e não
penais; diz respeito enfim à gestão política dos conflitos humanos por parte do
Estado, gestão que compete não só ao legislador e autoridades administrativas, mas
a todos aqueles que de algum modo operam com o direito penal, especialmente jui
zes, membros do Ministério Público, polícias etc.
Apesar disso, criminologia, política criminal e direito penal caminham, como
ressalta García-Pablos, no sentido de um modelo integrado, imposto pela necessi
dade de um método interdisciplinar e pela unidade do saber científico. A crimino
logia deve incumbir-se, assim, de fornecer o substrato empírico do sistema, seu
fundamento científico; a política criminal, de transformar a experiência crimino-
lógica em opções e estratégias concretas de controle da criminalidade; por último,
o direito penal deve encarregar-se de converter em proposições jurídicas, gerais e
obrigatórias, o saber criminológico esgrimido pela política criminal,53 devendo o
direito penal ser criminologicamente fundado e político-criminalmente orientado.
Cabe afirmar, finalmente, com Baratta, que, dentre todos os instrumentos de
política criminal, o direito penal é o mais inadequado,54 sobretudo em razão da vio
lência estrutural que lhe é inerente, de sorte que não se deve confundir controle da
criminalidade com controle penal, em face das múltiplas possibilidades de política
social utilizáveis pelo Estado para a prevenção e controle da desviação.
Afinal, sua existência mesma não decorre de uma necessidade moral, religiosa ou
ética, mas política: se num determinado momento o Estado entendeu - e ainda
entende - de se valer de leis e instituições penais para responder a determinados
conflitos, assim o fez por julgá-lo necessário à sua própria afirmação enquanto
poder. Além disso, e conforme assinala Foucault, “a lei nasce das batalhas reais, das
vitórias, dos massacres, das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror; a
lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos
inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo. Mas isso não quer dizer que
a sociedade, a lei e o Estado sejam como que o armistício nessas guerras, ou a san
ção definitiva das vitórias. A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua
a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regu-
lares. A guerra é que é o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor de suas
engrenagens, faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guer
ra sob a paz: a guerra é a cifra mesma da paz. Portanto, estamos em guerra uns con
tra os outros; uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e per
manentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo
ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém”.57
Segundo, porque a atividade do juiz é uma tarefa inevitavelmente criado
ra, por quatro razões, ao menos, conforme assinala Robert Alexy: l 3) a incerteza da
linguagem jurídica; 2a) a possibilidade de conflitos entre normas; 3a) a ocorrência
de lacuna da lei; 4a) a possibilidade, em casos especiais, de se tomarem decisões con
tra a letra da lei .58 E num contexto que se pretende democrático mais se acentua o
caráter criador da atividade judicial, porque a Democracia é o lugar da indetermi-
nação e da invenção, não havendo, conseqüentemente, espaço para verdades defi
nitivas e, portanto, um único sentido, uma única resposta.59
Ademais, os limites impostos à atividade judicial e doutrinária, por traduzi
rem, essencialmente, garantias em favor do cidadão (legalidade, proporcionalidade
etc.), as quais têm, assim, um caráter marcadamente político, tudo isso aliado à abs
tração e vagueza dos conceitos e institutos jurídico-penais (v. g., estado de necessi
dade, culpabilidade, crime continuado), permitem múltiplas possibilidades de in
terpretação e aplicação válidas do direito. Por último, desde 1970 entende-se que a
suas principais vítimas, e é sob este aspecto que se deve entender a arbitrária e discriminatória seletivida
de do sistema penal. Conseqüentemente, o direito, como realização da política, será menos injusto à medi
da que houver menos injustiças sociais e maior equilíbrio entre as forças políticas, pois ele é a vestimen
ta, e não o corpo. Portanto, tinha razão, no particular, Ihering, quando dizia que o fim do direito é a paz,
o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injusti
ça - e isso perdurará enquanto o mundo for mundo ele não poderá prescindir da luta, pois a vida do
direito é a luta: luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos (cf. A luta p elo direito, São
Paulo: Ed. Martin Claret, 2004, p. 27).
57 Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pp. 58-59.
58 Teoria da argumentação jurídica , trad. Zilda Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 268.
59 Samantha Chantal Dobrowolski, A justificação do direito e sua adequação social: uma abordagem a partir
da teoria de Aulis Aarnio. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2002, p. 120-121.
Paulo Queiroz
60 Roxin, Funcionalismo e teoria da imputaçao objetiva, trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.
231-232. No mesmo sentido, Munoz Conde, seu discípulo, assinala que “uma dogmática absolutamente
neutra, política ou valorativamente, não pode existir. A relação entre Dogmática jurídico-penal e Política
criminal é, portanto, inevitável. Trata-se de saber, então, de que Política estamos falando; se de uma coe
rente com os valores do Estado de Direito, a democracia, e o respeito dos direitos humanos; ou de uma
baseada na manutenção das desigualdades sociais, dos privilégios de uns poucos sobre a maioria, a supe
rioridade da raça ariana, a instrumentalização do ser humano a serviço de valores coletivos ou estatais, ou
a negação dos direitos humanos mais elementares, como ocorreu com o Estado nacional socialista”.
Edmundo Mezger y el derecho penal de su tiempo. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 77.
61 A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Ed., 1997, p. 260.
D ireito Penal - Parte Geral
62 Não necessariamente político-partidária, exceto naqueles países em que os juizes são eleitos pelo voto e
são filiados a um partido político.
63 Como observa Hassemer, carece de sentido afirmar que o juiz tem de se ater, estritamente, ao sentido lite
ral da lei, desconhecendo a vagueza e porosidade dos conceitos legais e as diferentes formas que têm os
juizes de compreendê-los, pois, se é verdade que a atuação judicial tão-só estabelece o marco do significa
do das palavras da lei mediante a interpretação desta em relação ao caso, então a concepção rigorosa da
vinculação do juiz não mudará este fato, senão que o ocultará simplesmente (El pensam iento filosófico
contem porâneo. Madrid: Debate, 1992, p. 210).
64 Funcionalismo, cit., p. 245.
Paulo Queiroz
70 Munoz Conde. D erecho penal y control social, Fundación Universitaria de Jerez. ferez: 1985, p. 24.
71 Munoz Conde, D erecho penal y control social, cit., p. 17.
72 Munoz Conde, D erecho penal y control social, cit., p. 17.
73 Munoz Conde, D erecho penal y control social, cit., p. 37.
Paulo Queiroz
ção civil); e, por fim, já agora intervindo o direito penal: indiciamento em inquéri
to policial. E, a se tomar a sério todo esse controle prévio e/ou concomitante ao
direito penal, resultará bastante questionável a sua necessidade e adequação mesma.
Muito próximas, e não raro confundidas, são as relações entre direito penal e
moral.74 Há quem afirme inclusive, como Maggiore, que o direito não é senão um
momento da vida moral ou ética.75 Entretanto, sob a égide de um Estado formal
mente secular, como é o Estado Democrático, moral e direito não podem ser con
fundidos, porque, enquanto a primeira visa ao aperfeiçoamento ético do homem, o
segundo quer exclusivamente possibilitar a convivência social, independentemen
te de lograr, com fazer prevalecer suas prescrições, adesões morais por parte de seus
destinatários. Porque, como diz Rodriguez Mourullo, o direito se ocupa dos com
portamentos na medida em que transcendam à ordem social exterior, e não pelo
que estes representam em si mesmos do ponto de vista moral, uma vez que sua fun
ção é bem menos ambiciosa: pretende unicamente evitar as conseqüências pertur
badoras da paz que tais condutas produzem na ordem social exterior .76
E não poderia ser diferente, até porque o respeito à moral supõe espontanei
dade, ao passo que o direito não pode existir senão por meio da coercibilidade, isto
é, por meio da possibilidade de apelo à força, para impor suas determinações.
Assim, não pode haver uma coincidência absoluta entre preceitos morais e jurídi
cos, pois do contrário o Estado, violando o pluralismo ideológico que a adoção do
sistema democrático implica, se converteria em Estado policial simplesmente, tal
como se pretendeu com o Livro V das Ordenações Filipinas.77 Por isso é que, por
mais imorais que sejam ou pareçam ser certos comportamentos, não se justifica a
intervenção penal salvo se forem especialmente lesivos de bem jurídico alheio
(princípio da lesividade ou de proteção de bens jurídicos).78 Não obstante isso, ain
74 A rigor, não existe uma moral, mas “morais”, de sorte que a própria lei, independentemente de seu con
teúdo, não deixa de ser a expressão de uma determinada moral; e mesmo uma proposta de abolição da
moral - assim, um hedonismo à Sade na verdade, abolição de uma certamoral (a moral dominante),
seria ela mesma uma forma moral; mais: não existem fenômenos morais,mas apenas uma interpretação
moral dos fenômenos (Nietzsche).
75 D erecho penal, trad. J. Ortega Torres. Bogotá: Ed. Temis, 1971, p. 24-25.
76 Derecho penal: parte general. Madrid: Ed. Civitas, 1978, p. 20.
77 Já o nome de alguns dos títulos revela a confusão entre crime e pecado, entre moral e direito: "dos here-
ges e apóstatas”, “dos feiticeiros”, “dos que benzem cães”, “dos que cometem pecado de sodomia e com ali-
márias”, respectivamente, Títulos I, III, IV e XIII.
78 Como diz Fernández Carrasquilla, o direito penal não é um instrumento de moralização ou de aperfeiçoa
mento espiritual do homem, senão um instrumento para a preservação da paz social, pois, supor que ele
se presta à persecução do primeiro fim, significaria contrariar a liberdade de consciência e, portanto, o
pluralismo ideológico e a tolerância moral e ideológica que aquela implica. Concepto y limites dei dere
ch o penal. Bogotá: Ed. Temis, 1992, p. 23-24,
D ireito Penal - Parte Geral
da existem no Código Penal diversos crimes que há muito deveriam ser abolidos,
como casa de prostituição (CP, art. 229), mesmo porque, a pretexto de afirmar a
liberdade sexual, a lei acaba por suprimi-la, legitimando dupla violência: contra a
suposta vítima, a quem se nega o direito de decidir por conta própria, e contra seu
parceiro/cliente, que é tratado como criminoso, ficando sujeito à pena.
Existe assim um âmbito da vida pessoal intocável pelo poder do Estado e a res
guardo do controle público e da vigilância policial: não só as interações e os proje
tos, mas também os erros de pensamento e de opinião.79
Apesar da distinção, não convém que as normas jurídicas contradigam as
morais, não propriamente para moralizar seus destinatários, mas para que possam ser
efetivamente respeitadas como referencial normativo, porque, como disse Savigny, o
direito serve à moralidade, não porque execute seus preceitos, mas porque assegura a
livre evolução de sua força.80 Ignorá-lo constitui um dos problemas mais sérios da
legislação penal contemporânea, que se expande sem qualquer critério, criminalizan
do condutas moralmente indiferentes, a exemplo da legislação ambiental, que, den
tre tantas tolices, tipifica a ação de “destruir, danificar, lesar ou maltratar, por qual
quer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em pro
priedade privada alheia”, ainda que culposamente (Lei ne 9.605/98, art. 49).
Daí dizer Baumann que uma comunidade que, para sua convivência, tenha
adotado normas com cominações penais contrárias à lei moral não seria uma comu
nidade jurídica, mas uma quadrilha de ladrões.81 Obviamente que seria um absur
do manifesto, por exemplo, uma norma penal que, a fim de assegurar o crescimen
to demográfico, considerasse crime “resistir ao estupro” ou similar.
Portanto, é correto dizer, com Ferrajoli, que a imoralidade é uma condição
necessária, mas jamais por si só suficiente para justificar politicamente a interven
ção coercitiva do Estado na vida dos cidadãos.82
Mas é certo que o legislador por vezes transige com institutos claramente imo
rais, a demonstrar que o direito é (também) uma dimensão da política. Assim, por
exemplo, quando adota nalguns casos específicos a chamada delação premiada, por
cujo meio premia o criminoso - prêmio que pode consistir na redução da pena ou
na extinção da punibilidade - que delata/trai seus comparsas.
Diz Michel Onfray que, apesar do triunfo (aparente) dos ideais do Iluminis-
mo, que sonhara com um direito laico e que, portanto, distinguisse e separasse,
muito claramente, direito e moral, direito e religião, crime e pecado, ainda hoje a
episteme do direito permanece judaico-cristã, pois no essencial se mantém fiel aos
seus valores fundamentais.83 Afirma que, embora os tribunais de justiça da França
não possam ostentar símbolos religiosos nem proferir decisões com apoio na Bíblia,
no Alcorão ou na Torá, “nada existe no direito francês que contravenha essencial
mente as prescrições da igreja católica, apostólica e romana”.84 Diz mais: o saber e
a metafísica do direito provêm diretamente da fábula do paraíso original, versão
monoteísta do mito grego de Pandora: o homem é livre, e, pois, responsável e cul-
pável; logo, por ser dotado de liberdade, pode decidir e preferir uma coisa a outra
num universo de possibilidades.85*86
Assim, o direito não seria outra coisa senão uma continuação da tradição
moral cristã por outros meios, já que todos aqueles que dele se utilizam (legislado
res, juizes, promotores, advogados etc.) seriam meros portadores, conscientes ou
não, dos valores cristãos; por sua vez, a moral seria a continuação da religião; o
conhecimento, um continuum da moral e da religião, embora por meios diversos.87
Por conseguinte, a tão propalada separação entre direito e moral, entre direito e
religião, entre crime e pecado, seria mais aparente do que real, afinal os dois mil
anos de história e dominação ideológica do cristianismo continuariam a forjar os
sujeitos, ditando-lhes o modo correto de nascer, viver e morrer.88
Será isso exato, especialmente em relação ao direito brasileiro?
Bem, se tomássemos como referência o Livro V das Ordenações Filipinas, que
vigorou, entre nós, de 1603 a 1830, típica legislação medieval contra a qual se
83 De acordo com Emst Cassirer, a consciência teórica, prática e estética, o mundo da linguagem e do conhe
cimento, da arte, do direito e da moral, as formas fundamentais da comunidade e do Estado, todas elas se
encontram originariamente ligadas à consciência mítico-religiosa. Linguagem e mito. S. Paulo: 2006, p. 64.
84 Tratado de ateología, física de la metafísica. Buenos Aires, Ediciones de la Flor, 2005, p. 73.
85 Idem, p. 73.
86 No particular, ele escreve o seguinte: “a máquina da colônia penitenciária de Kafka repercute diariamen
te nos palácios chamados de Justiça europeus e em suas prisões contíguas. O choque entre o livre-arbítrio
e a eleição voluntária do Mal que legitima a responsabilidade, portanto, a culpabilidade, portanto o casti
go, pressupõe o funcionamento de um pensamento mágico que ignora o que a obra pós-cristã de Freud
ilustra através da psico-análise e a de outros filósofos que demonstram o poder dos determinismos incons
cientes, psicológicos, culturais, sociais, familiares, etológicos etc.”, cit., p. 75.
87 Giles Deleuze. Nietzsche e a filosofia. Lisboa: Rés-Editora, 2001, p. 148.
88 Naturalmente que isso não constitui uma exclusividade do direito, atingindo todo o conhecimento huma
no (ético, bioético, pedagógico, político, filosófico etc.). Quanto à psiquiatria, por exemplo, Thomas Szasz
assinala que “o que denominamos Psiquiatria contemporânea e dinâmica não é um progresso notável com
relação às superstições e práticas das caças às bruxas, segundo a interpretação dos propagandistas da
Psiquiatria contemporânea, nem um retrocesso com relação ao humanismo do Renascimento e ao espíri
to científico do Huminismo, tal como pensam os românticos tradicionalistas. Na realidade, a Psiquiatria
Institucional é uma continuação da Inquisição. O que mudou foi apenas o vocabulário e o estilo social. O
vocabulário se ajusta às expectativas intelectuais de nossa época: é um jargão pseudocientífico que paro
dia os conceitos da ciência. O estilo social se ajusta às expectativas políticas de nossa época: é um movi
mento social pseudoliberal que parodia os ideais de liberdade e racionalidade”. A fabricação da loucura.
Um estudo comparativo entre a inquisição e o movimento de Saúde Mental. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1976, p. 56.
D ireito Penai - Parte Geral
insurgiria a filosofia das luzes, não se teria nenhuma dúvida a esse respeito, uma
vez que ali a confusão entre Estado e Igreja era manifesta, conforme se lê de alguns
títulos, como, por exemplo, “dos hereges e apóstatas”, “dos que arrenegão ou blas-
femão de Deos, ou dos Santos”, “dos feiticeiros”, “dos que benzem cães, ou bichos
sem autoridade d’El-Rey, ou dos Prelados” (títulos I, II, III e IV) etc.
Mas poder-se-á dizer o mesmo do Brasil de hoje, que é formalmente uma
“República Federativa”, que se constitui em “Estado Democrático de Direito”, Es
tado secular, portanto, e que tem como objetivos declarados, dentre outros, “pro
mover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais
quer outras formas de discriminação”89 (CF, arts. I 9 e 3e, IV)?
Parece-nos que sim. Desde logo, porque foi o próprio Constituinte que, já no
preâmbulo da Constituição, fez consignar que a promulgava “sob a proteção de
Deus”; conferiu, ainda, efeitos civis ao casamento religioso; reconheceu a união
estável entre o h om em e a m ulher, e não simplesmente entre pessoas, independen
temente da orientação sexual, restrição que terá importantes (e discriminatórias)
implicações no direito civil, como, por exemplo, sobre a adoção, a sucessão, direi
tos previdenciários etc., decretando, assim, a clandestinidade das relações entre
pessoas do mesmo sexo, bem como entre parentes, tal como a lei mosaica, que dis
põe sobre os casamentos ilícitos e as uniões abomináveis. Entre nós, sequer existe
a proibição (explícita) de os juízos e tribunais ostentarem símbolos religiosos, razão
pela qual não é incomum encontrar algum crucifixo exposto em salas de audiência.
Semelhantemente, o Código Penal pune, entre outras coisas, o aborto, a biga
mia, a mediação para servir à lascívia de outrem, o favorecimento à prostituição, a
casa de prostituição, o rufianismo etc.; o mesmo ocorrendo quando a legislação
especial proíbe a produção, o comércio e o porte de droga ilícita, a revelar quão
presente está no direito o ideal ascético, próprio do cristianismo. É que, no parti
cular, o legislador, tal como Moisés, está a nos dizer o que é lícito fazer e não fazer
com o corpo, assim como o que é permitido e não permitido consumir/fumar.
No essencial, aliás, as proibições penais coincidem com os dez mandamentos
(não matar, não furtar, não prestar falso testemunho).
Também é certo que muitos temas e discussões não avançam ou sequer são
colocados em pauta, a exemplo do aborto e da eutanásia, justamente em razão de
contrariarem os interesses da Igreja, para a qual a vida é um dom de Deus; logo, um
bem jurídico de que não se pode dispor.
Mas isso não é o mais importante; o mais relevante consiste no seguinte: edi
tar uma legislação democrática ou laica não significa, necessariamente, adotar um
89 De acordo com Scarlett Marton, para Nietzsche, que critica duramente os valores do cristianismo como
falsos valores, considerado moral dos fracos, a revolução francesa, e seus ideais de igualdade e fraternida
de, é filha e continuadora do cristianismo, tendo cabido ao primeiro a inversão de valores, ao segundo, a
sua preservação. Scarlet Marton: Nietzsche e a Revolução Francesa, in Extravagâncias: ensaios sobre a filo
sofia de Nietzsche. S. Paulo: Discurso Editorial, 2001.
Paulo Queiroz
como o direito à vida, à liberdade ou à honra .92 Entre nós, Cezar Bitencourt diz que
é preciso reconhecer a natureza primária e constitutiva do direito penal, e não sim
plesmente acessória, uma vez que protege bens e interesses não protegidos por
outros ramos do direito, e, mesmo quando tutela bens já cobertos pela proteção de
outras áreas do ordenamento jurídico, ainda assim o faz de forma particular,
dando-lhes nova feição e com distinta valoração .93
Em verdade, o significado do que seja caráter constitutivo ou sancionador do
direito penal já é em si algo mal compreendido (problemático), resultando numa
resposta conseqüentemente obscura. Pensamos, porém, que em ambos os sentidos,
lógico-sistemático ou político-social, se discute uma só e mesma coisa, qual seja, a
conveniência política de apelar ou não ao direito penal para regulação de determi
nados conflitos, é dizer, saber se são ou não suficientes outras formas de interven
ção, jurídicas inclusive. Não se discute, portanto, como sugere Jescheck, questão
cronológica, e sim lógica: saber se o ilícito penal pressupõe um ilícito não penal. Em
qualquer sentido, o direito penal é sempre subsidiário e não primário.
Com efeito, a natureza subsidiária - e não principal - do direito penal diante
de outras formas de controle social decorre, em primeiro lugar, da circunstância de
o direito penal constituir como regra a forma mais violenta de intervenção do
Estado na vida dos cidadãos. E se o é, impõe que somente quando não forem real
mente suficientes outros modos de intervenção cabe recorrer legitimamente ao
direito penal para proteção de bens jurídicos (princípio da proporcionalidade em
sentido amplo). Assim, já não se justifica nos dias atuais a punição da bigamia, por
exemplo, visto ser suficiente a disciplina do direito civil para resguardo da fideli
dade conjugal e preservação da instituição do casamento: separação, divórcio, anu
lação. E também discutível para repressão do contrabando ou descaminho (CP, art.
334) a necessidade da pena, em razão da sanção de perda do produto em favor da
União, imposta administrativamente.
O caráter subsidiário do direito penal em face de outras formas de controle
social resulta, portanto, de imperativo político-criminal proibitivo do excesso: não
se justifica o emprego de um instrumento especialmente lesivo à liberdade se se dis
põe de meios menos gravosos e mais adequados de intervenção, sob pena de viola
ção ao princípio da proporcionalidade. A natureza secundária das normas penais é,
assim, como diz Maurach, uma exigência político-jurldica dirigida ao legislador.94
92 Tratado de derecho penal, trad. José Luis Manzanares Samaniego, 4. ed.,Granada: Ed. Comares, 1993, p.
46. Não é exato dizer, porém, que a lei criminal tenha precedido à lei civil ou queas comunidades primi
tivas só tenham conhecido o direito criminal, seja porque é um tanto arbitrário estabelecer, em relação às
comunidades selvagens, uma clara delimitação entre normas civis e penais, seja porque o acasalamento, o
parentesco, as permutas etc. seguiam regras próprias e não necessariamente criminais. Nesse sentido,
Bronislaw Malinowski. Crime e costume na sociedade selvagem. Brasília: Ed. UnB, 2003.
93 Manual de direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 36.
94 D erecho penal: parte general. Buenos Aires: Astrea, 1994, p. 34.
Paulo Queiroz
Mas além dessa subsidiariedade social, existe, como dito, uma subsidiariedade
lógico-sistemática (do direito penal em relação aos demais ramos do direito), que
decorre da unidade lógica do direito, já que, apesar de compartimentado em discipli
nas, o direito é um só, não devendo haver contradições dentro do sistema. Portanto,
o ilícito, latente ou manifesto, precede à sistematização do direito penal, pois tal já é
antes objeto do direito civil, processual, tributário etc., mas sobretudo objeto do
direito constitucional, porque toda ilicitude nasce originariamente na Constituição
Federal e só derivadamente na ordem infraconstitucional. Dito de maneira mais
clara: quando a Constituição Federal declara (art. 59) que a propriedade é inviolável,
ela está criando a um tempo o lícito e o ilícito. Sim, porque, ao proclamar a inviola
bilidade da propriedade, a Constituição está por óbvio declarando, de forma originá
ria e genérica, a ilicitude dos atos que atentem contra esse bem jurídico.
Em conseqüência, caberá ao legislador ordinário, detalhando os limites dessa
ilicitude, eleger com critério os instrumentos de defesa (civil, administrativo, penal)
desse interesse constitucional. Disso cuida o direito civil, quando, disciplinando a
propriedade e a posse, outorga ao proprietário ou ao possuidor o direito de recorrer
à ação reivindicatória ou aos interditos possessórios, ao desforço incontinente etc.,
ante a turbação ou esbulho, de modo a atender e a dar efetividade àquele manda
mento constitucional de inviolabilidade da propriedade. Também disso trata o legis
lador penal quando define como crime o furto ou o roubo, que não são senão modos
qualificados de esbulho. Portanto, há uma subsidiariedade lógica entre o direito
penal (e certamente de todo o direito) e a Constituição. Porque, como disse Luiz
Carlos Perez, o direito penal é o braço armado da Constituição nacional.95
Mas essa subsidiariedade se estende também às demais formas de intervenção
jurídica (civil, administrativa, tributária), pois o direito penal quando criminaliza
determinados comportamento o faz, ou deve fazê-lo, só depois de verificado o fra
casso dessas formas menos danosas de intervenção do Estado. O direito penal não
constitui o ilícito, portanto, limitando-se a reforçar a proteção de interesses já pro
tegidos, ao castigar mais gravemente condutas que já são sancionados pelo direito
como um todo. O direito penal é um direito residual.
Assim, o direito penal não cria um sistema exclusivo, autônomo, de ilicitudes,
fora ou além da ordem jurídica vigente, mesmo porque, como disse Hungria, a ilici
tude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só é o dever jurídico,96 ou seja, todos
os preceitos primários penais pressupõem um outro preceito não penal, do qual são o
complemento e reforço.97 Mas isso não^significa que se lhe recuse autonomia em face
dos outros ramos do direito, utilizando-se de conceitos e institutos próprios que nem
sempre coincidem com os utilizados pelos demais ramos do direito.
Em razão do que se vem de afirmar, não se pode cogitar, por força da unida
de do direito inclusive, duma distinção qualitativa, mas quantitativa, entre o ilíci
to penal e o ilícito não penal. Com efeito, definir ou não determinados comporta
mentos como delituosos ou contravencionais, para os submeter a seguir a uma dis
ciplina especialmente dura (o direito penal), é uma questão de conveniência polí
tica. A distinção entre, por exemplo, as sanções penais e as administrativas é pura
mente quanto ao maior rigor entre elas (diferença de grau). Assim, enquanto o
direito administrativo/tributário pune o autor dç contrabando ou descaminho com
a perda das mercadorias apreendidas, o Código Penal (art. 334) responde a essa
mesma conduta com pena de prisão de um a quatro anos; enquanto o direito civil
reprime o homicídio culposo com a reparação do dano, o direito penal apela à pena
de um a três anos de prisão (CP, art. 121, § 3a). E em todos os casos, se julgar bas
tante a repressão administrativa ou civil, o Estado pode renunciar à intervenção
8. Legislação especial
De acordo com o Código Penal (art. 10), na contagem dos prazos penais (v.g.,
o tempo exato de pena a ser cumprido), é incluído o dia do começo, não havendo
100 A Súmula 310 do STF dispõe textualmente: “quando a intimação tiver lugar na sexta-feira, ou a publica
ção com efeito de intimação for feita nesse dia, o prazo judicial terá início na segunda-feira imediata, salvo
se não houver expediente, caso em que começará no primeiro dia útil que se seguir”.
101 Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal de justiça:
“RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA.
ARTIGOS 10 E 103 DO CÓDIGO PENAL. CONTAGEM EM MESES.
Segundo precedentes “o prazo de decadência do direito de queixa, expresso em meses, conta-se na forma
preconizada no art. 10, do estatuto punitivo, na linha do calendário comum, o que significa dizer que o
prazo de um mês tem início em determinado dia e termina na véspera do mesmo dia do mês subseqüen
te.” Recurso especial conhecido e provido (grifo nosso) (Resp. 203574 - SP. Rei. Min. José Arnaldo da
Fonseca. DJ 06.11.2000).
“PENAL. PRESCRIÇÃO. CONTAGEM EM ANOS. TERMOS INICIAL E FINAL. CP, ART. 10.
O prazo de prescrição é prazo de natureza penal, expresso em anos, contando-se na forma preconizada do
art. 10, do Código Penal, na linha do calendário comum, o que significa dizer que o prazo de um ano tem
início em determinado dia e termina na véspera do mesmo dia do mês e ano subseqüentes.” (grifo nosso)
(Resp. 188681 - SC. Rei. Min. Vicente Leal. DJ 25.09.2000).
Paulo Queiroz
102 Art. 10 do CPP - “O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em fla
grante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se exe
cutar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela”.
103 Nesse sentido: Paulo Rangel. Direito Proccssual Penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 648.
104 MIRABETE, Julio Fabbrini. C ódigo PenaI Interpretado. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 139.
105 O Decreto-lei n° 2.284/86 criou o cruzado; a Lei nQ8.024/90 voltou a instituir o cruzeiro; a Lei n9 8.697/93
criou o cruzeiro real, sendo que, por fim, a Lei n- 8.880, atualmente vigente, criou o real.
106 MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 139.
D ireito Penai - Parte Geral
Capítulo II
Direito Penal e Constituição
5 Paulo Bonavidcs. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 260.
meio. A Constituição é claríssima no particular, quando, alóm de elevar a dignida
de da pessoa humana ao status de fundamento do Estado Democrático de Direito
(art. 3"), declara que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de repre
sentantes eleitos ou diretamente...” (art. I 0, parágrafo único).
3. Princípio da liberdade
4. Princípios fundamentais
4.1.Introdução6
J .*0 re^er*r 0 princípio da adequação social formulado por W elzcl, entendido como princípio gera]
cid1If|tT *)reta<^ 0 ('^>crcc^° penal alemán, cit., p. 69), por cujo meio se afastaria a tipicidade (ou antijuridi-
P 228 ) COn^utas soc>almente “adequadas” ou irrelevantes, por julgá-lo, com Jescheck ( Tratado , cit.,
chegar 6 ^ ° X'n ^ crcc^° penal , cit., p. 296-297), desnecessário, a par de vago e impreciso, podendo-se
; nadora ^ meSni0 rcsu' t;i^° Pe^a simples interpretação teleológica (e restritiva) da norma penal incrimi-
venção do -maiS 3 mais’ seu í' ' e;mCf- é, em todo 0 caso, reduzidíssimo, pois, mesmo na hipótese da contra-
cit., p 49 w ® ° blcho- que admitiria sua invocação em favor do "apontador” (Cezar Bitcncourt, ManuaL
per eitamente cabível a adoção do princípio da insignificância.
sistema de valores que a Constituição consagra, como o princípio da proporciona
lidade e lesividade. Tais princípios representam limitações importantes, formais e
materiais, ao poder punitivo do Estado, por isso que constituem autênticas garan
tias, visto que oponíveis pelo indivíduo ao exercício do poder punitivo do Estado
Assim agindo, o Estado pretende, como observa Roxin, proteger o bem jurídico
duplamente: através do direito penal e ante o direito penal, cujo uso excessivo pro
voca precisamente as situações que pretende combater.7
Convém sublinhar que tais princípios nasceram historicamente e permane
cem constitucionalmente (art. 5S) como autênticas garantias individuais, de modo
que, para bem compreendê-los e interpretá-los, é fundamental não perder de vista
que existem para proteger o cidadão contra possíveis reações públicas ou privadas
arbitrárias, e não para pretextar atuações abusivas do Estado em nome da seguran
ça pública ou semelhante.
11 No sentido do texto, Luiz Flávio Gomes. Estado constitucional de direito ç a nova pirâmide jurídica. S.
Paulo: Premier, 2008, p. 42.
'2 Luiz Flávio Gomes, idem, p. 38-39.
Por fim, cumpre ressaltar que o princípio da legalidade, conforme se verá a
seguir, compreende: 1) o princípio da reserva legal: só a lei pode em princípio dis
por sobre matéria penal; 2) taxatividade: a lei deve descrever com o máximo de pre
cisão possível os tipos penais incriminadores; 3) irretroatividade da lei mais severa:
lei penal não pode retroagir para prejudicar o réu.
Há quem, como Ferrajoli, considere que o princípio em sentido estrito com
preende todas as demais garantias penais e processuais como condições necessárias
à legalidade penal: Proporcionalidade, devido processo legal etc.13
Mas o Estado poderia iludir uma tal garantia - e o faz com alguma freqüência -
por meio da edição de leis penais de conteúdo vago ou obscuro (tipos penais abertos),
como ocorreu na Alemanha nazista, em que determinada lei previa a punição de
“quem atente contra a ordem jurídica ou atue contra o interesse das Forças Aliadas”,14
bem assim diversas das disposições da Lei de Crimes Ambientais (ne 9 .6 0 5 / 9 8 ),p0r
exemplo. Por isso, materialmente o princípio implica a máxima determinação e taxa
tividade dos tipos penais, impondo-se ao Poder Legislativo na elaboração das leis que
redija tipos penais com a máxima precisão de seus elementos, bem como ao Judiciário
que os interprete restritivamente, de modo a lhe preservar a efetividade.
Porque a máxima taxatividade possível e de real vinculação do juiz à lei é,
como diz Silva Sánchez, um objetivo irrenunciável para o direito penal de um
Estado Democrático de Direito, que implica a máxima precisão das mensagens do
legislador e a máxima vinculação do juiz a tais mensagens quando das suas decisões,
motivo pelo qual trata-se de um princípio de legitimação democrática das inter
venções penais como garantia da liberdade dos cidadãos derivada do princípio da
divisão de poderes.16
lítiiizo aqui a expressão cm sentido estrito (Binding), e não cm sentido amplo (Mezger), pois, do contrá
rio, confundir-se-ão leis penais em branco com leis penais incompletas. Conceito ainda mais restrito dá-
nos Rodriguez Mourullo, para quem, as leis penais em branco são sempre leis que remetem, expressa ou
tacitamente, a determinação concreta do preceito a uma autoridade distinta de nível inferior. Derecho
penal, cit., p. 87-89.
18 Parece fazer essa confusão Sídio Rosa de Mesquita Júnior, que se posiciona no sentido da constitucionali-
dade das leis penais em branco, argumentando, dentre outras coisas, que o reconhecimento da inconsti-
tucionalidade acabaria por inviabilizar praticamente toda a legislação penal. Comentários à lei antidrogas.
São Paulo: Atlas, 2007.
bém por isso a classificação entre elementos objetivos, subjetivos e normativos do
tipo deve ser adotada com reservas e criticamente; talvez até abandonada.
De todo modo, só há autêntica lei penal em branco quando o tipo legal de
crime, apesar de descrever a ação típica com seus elementos essenciais (objetivos,
subjetivos ou normativos) e cominar a respectiva pena, remeter, expressa ou taci-
tamente, a complementaçâo do preceito primário incriminador a uma norma de
mesmo grau hierárquico (homogênea) ou de grau inferior (heterogênea). Há auto
res que restringem ainda mais esse conceito, entendendo que não se pode conside
rar como lei penal em branco aquelas normas que remetem a sua complementaçâo
a uma norma de mesmo nível hierárquico.19
Exatamente por isso, não são leis penais em branco os tipos ditos abertos, em
virtude da vagueza da descrição de seus termos (v.g., culposos), nem tampouco os
que simplesmente recorrem a elementos normativos, como, por exemplo, o “sem
licença ou autorização da autoridade competente”, ou o “em desacordo com a lei”
etc., presentes em muitos tipos penais, inclusive em tipos penais em branco, como
a lei de droga, a demonstrar que, apesar da distinção que se deve fazer, tais classi
ficações não são incompatíveis entre si, podendo a lei penal ser simultaneamente
em branco e aberta.
Pois bem, questão das mais relevantes diz respeito à compatibilidade desse
tipo de norma com o princípio da reserva legal.
A doutrina em geral tem as leis penais em branco como constitucionais e com
patíveis com o aludido princípio, embora exija o atendimento de certos requisitos.
Assim, por exemplo, Luzón Pena, para quem o recurso à técnica de remissão há de
ser absolutamente excepcional por resultar estritamente necessário e imprescindí
vel para completar a descrição típica da conduta.20 De modo semelhante, Cerezo
Mir diz que essa técnica de remissão só é aceitável quando necessária por razões de ;
técnica legislativa e pelo caráter sempre mutável da matéria objeto da regulação,
que exigiria uma revisão muito freqüente das ações proibidas ou ordenadas, moti- '
vo pelo qual na lei penal em branco já deve estar contida a descrição do núcleo
essencial da ação proibida ou ordenada.21 Por fim, Jescheck considera que, quando
a norma que há de completar a lei penal em branco tiver caráter delegado, o legis- v.
lador deve prever a cominação legal, bem como descrever com precisão o conteú- s
do, a finalidade e o alcance da autorização que o cidadão possa extrair já na lei mes- -J
ma os pressupostos da punibilidade e a classe de pena, pois do contrário não se res- - ^
peitaria o princípio da determinação legal do delito e da pena.22 Entre nós, mani- .
festam-se pela constitucionalidade Luiz Régis Prado.23 Guilherme de Souza Nucd2 4 |
19 Nesse sentido, Rodrigues Mourullo. Derecho Penal. Parte general, Madrid: Civiras, í 97 8.
20 Curso d e dcrccho pena). Madrid: Ed. Universitas, 1996, p. 146 c s. .
21 Curso dc derecho penal espanol: introdueción, Madrid: Tccnos, )997, p. 156. 4-
22 Tratado, cit., p. 98. ^ T
23 C.uiso dc direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 'i
24 Código Penai comentado. São Paulo: Revista do.s Tribunais, 20D2. %j
e Pablo Alfen,^5 enire outros. Defendem a inconstitucionalidade Rogério Greco,
André Copetti, Zaffaroni/Batista26 e Andrei Schm idt.27
Sobre o assunto, o Tribunal Constitucional espanhol (sentença 127/1990, de 5
de julho) já teve ocasião de se pronunciar pela constitucionalidade das leis penais em
branco, exigindo, porém, que "o reenvio normativo seja expresso e esteja justificado
em razão do bem jurídico protegido pela norma penal; que a lei, além de prever a
pena, contenha o núcleo essencial da proibição e seja satisfeita a exigência de certe
za, ou... se dê a suficiente concreção, para que a conduta considerada criminosa
fique suficientemente precisa com o complemento indispensável da norma a que a
lei penal faz remissão e resulte, desta forma, salvaguardada a função de garantia do
tipo com possibilidade de conhecimento da atuação penalmente comínada”. De
acordo com esse entendimento, portanto, são necessários os seguintes requisitos: a)
necessidade estrita da remissão; b) que a norma, embora incompleta, já preveja a
sanção específica; c) que o preceito contenha o “núcleo essencial da proibição”.
Temos que as leis penais em branco que remetem o complemento a norma
inferior (normas penais em branco heterogêneas) são inconstitucionais, por impli
carem violação aos princípios da reserva legal e divisão de poderes.
Com efeito. Tomemos como referência o tráfico ilícito de drogas. Inicial
mente, não há dúvida de que a lei brasileira específica atende aos requisitos exigi
dos pelo tribunal espanhol, uma vez que, ao descrever o núcleo essencial da con
duta típica, criminaliza mais de uma dezena de verbos e comina a pena cabível.
Além disso, pode-se dizer que o bem jurídico supostamente protegido - a saúde
pública - justifica plenamente a remissão. Estariam assim satisfeitas as exigências
daquela corte constitucional.
No entanto, quando a lei permite que o “núcleo essencial da proibição” seja
completado por simples ato administrativo, é o Poder Executivo quem dirá, em
última análise, o que constitui ou não tráfico ilícito de drogas; afinal é ele que, um
tanto arbitrariamente, discriminará as drogas que devem constar do rol do núcleo
essencial da proibição.
Caberia então indagar: quem acaba por definir realmente o que é tráfico ilíci
to de entorpecentes? Parece claro que não é o Poder Legislativo, mas o Poder
Executivo, mais exatamente o Ministério da Saúde (Anvisa), que se utiliza de sim-
pies portaria, decretando, dentro do vastíssimo universo das drogas, as que devem
s^r consideradas ilícitas. Enfim, quanto ao assunto drogas ilícitas, quem legisla sobre
bateria penal é em última instância o próprio Ministério da Saúde, o Poder Exe
cutivo, mesmo porque a lei penal em branco era até então uma “alma errante em
^ Leis Penais em bran m ^ r, rjsco , Rj0 jan eiro : Lumen juris, 2004.
Dra«tóiro /, p. 205-206, para os quais "a lei penal em branco sempre foi lesiva ao princípio
e fonnal c, além disso, abriu as portas para a analogia e para a aplicação retroativa, motivos
para considerá-la inconstitucional”.
a legalidade penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 150-156.
busca de um corpo” (Binding), e, portanto, carente de auto-aplicação, ante a mani
festa imprecisão de seus termos e conseqüente necessidade de complementação. Até
aí a lei penal era uma espécie de cheque em branco emitido em favor do Executivo.
Por conseguinte, semelhante ato viola a um tempo, ainda que indireta e sutil-
mente, o princípio da reserva legal, por tolerar que simples portaria emanada do
Poder Executivo possa dispor sobre matéria penal, criminalizando uma dada con
duta, bem como o princípio da divisão de poderes, já que é aquele poder, e não o
Legislativo, que acaba legislando em um tal caso.
Mas isso não quer dizer que as leis penais em branco sejam sempre inconsti
tucionais; inconstitucional é apenas a remissão à norma inferior que não ostente o
status de lei em sentido formal, bem assim o preceito de norma que não contenha
o núcleo essencial da proibição ou que nem sequer preveja a pena. O primeiro obs
táculo poderá ser superado com a edição de lei pelo Congresso Nacional declarató-
ria das drogas ilícitas, ainda que meramente homologatória de proposta (portaria)
do Ministério da Saúde, de sorte a converter uma norma penal em branco hetero
gênea em homogênea; o segundo, com a redação de tipos penais com a máxima pre
cisão de seus elementos constitutivos, conforme o princípio da taxatividade. Em
isso não ocorrendo, tolerar-se-á mais uma violação ao princípio da reserva legal,
entre tantas violações que o silêncio ou conveniência vai perpetuando.
Por último, quanto à circunstância de a matéria objeto da remissão ser ordi
nariamente instável, o que a justificaria, temos que a instabilidade e a incerteza
recomendam o contrário: que não deveria ser objeto de criminalização ou que
somente o fosse depois de exaustiva discussão sobre o assunto, motivo pelo qual,
também por essa razão, sobre ela deveria previamente se manifestar o Poder
Legislativo, seja para aprovar, seja para rejeitar.
29 Dos delitos e das penas, trad. Paulo Oliveira. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1980, § XL1I.
30 Sobre o assunto, Ingo Wolfgang Sarlet, Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fun
damentais entre proibição de excesso e de insuficiência, Revista Brasileira de Ciências Criminais. São
Paulo: Revista dos Tribunais, ano 12, n. 47, mar./abr. 2004.
31 O espírito das leis. trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Matos Rodrigues. Brasília: Ed. UnB, 1995,
Livro XIX, Cap. XIV, p. 232.
32 Por meio de Aviso de 28 de agosto de 1822, o príncipe D. Pedro determinara que os juizes do crime devi
am guiar-sc pelas bases da Constituição monárquica portuguesa, de 10 de março de 1821, destacadamente
o art. 12, que dispunha: “Nenhuma lei, e muito menos a lei penal, será estabelecida sem absoluta necessi
dade. Toda pena deve ser proporcionada ao delito, e nenhuma pena deve passar da pessoa do delinqüente.”
33 Por meio do princípio da proporcionalidade se condiciona, portanto, como afirma Canotilho, o exercício
da função legislativa, de modo a coibir abusos à Constituição por meio da lei, apud Suzana Toledo. O prin
cípio da proporcionalidade e o controle das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília
Jurídica, 2000, p. 74). Segundo Suzana Toledo, sob a perspectiva da adequação, fica excluída qualquer con
sideração atinente ao grau de eficácia dos meios tidos como aptos a alcançar o fim desejado, visto que a
questão sobre a escolha do meio melhor, menos gravoso ao cidadão, já entra na órbita do princípio da
necessidade (p. 76). O princípio dc subsidiariedade expressa, como assinala García-Pablos, uma exigência
elementar: a necessidade de hierarquizar e racionalizar os meios disponíveis para responder ao problema
criminal adequada e eficazmente. El principio de intervención mínima com o lim ite dei poder penal dei
Estado, disponível no site www.direitocriminal.com.br, Ia 6 2001.
4.3.2. Princípio da adequação (ou exigibilidade ou idoneidade)
De acordo com esse princípio, o castigo deve guardar proporção com a gravi
dade do crime praticado ou, dito de outra forma, tal princípio requer um juízo de
ponderação entre a carga de privação ou restrição de direito que a pena comporta
e o fim perseguido com a incriminação e com as penas em questão.38 Divide-se em:
34 Descriminalizar (= abolir o crime) significa deixar dc considerar como criminosa, por lei ou interpreta
ção, determinada conduta; já despenalizar significa, basicamente, utilizar alternativas à pena privativa da
liberdade.
35 Gênesis dei derecho penal, trad. C. Conzálos Cortina e Jorge Gucrrero. Bogotá: Ed. Temis, 1956, Libro L
Caps. 1 c 11, p. 158 164.
36 A expressão proccdc de E. Schur.
37 Sobre o assunto, Karam. De crimes, penas o famasias, 2. ed. Niterói: Ed. Luam, 1993.
38 Gómez de la Torre e outros. Lecciones , cit., p. 47.
a) proporcion alid ad e abstrata (ou legislativa), que ocorre quando se tem de eleger
as sanções (penas e medidas de segurança) mais apropriadas (seleção qualitativa),
bem assim ao estabelecer a graduação (mínimo e máximo) dos castigos (seleção
quantitativa); b) proporcion alid ad e con creta ou ju d icial (ou individualização), que
deve orientar o juiz quando do julgamento da ação penal, promovendo a individua
lização da pena conforme a culpabilidade do réu, aferida segundo as circunstâncias
jurídico-penalmente relevantes, podendo chegar em alguns casos à absolvição
mesma, se se entender, por exemplo, pela aplicação do perdão judicial ou do prin
cípio da insignificância; c) p rop orcion alid ad e executória, que corresponde à indi
vidualização da pena durante a execução penal conforme o mérito do condenado,
progredindo de regime, obtendo livramento condicional, indulto ou eventualmen
te regredindo de regime etc. O princípio tem, portanto, tríplice destinatário: o
legislador, o juiz e os órgãos da execução penal.
Em nome do princípio da proporcionalidade,39 urge que a pena, a ser comina
da ou a ser aplicada, guarde justa proporção com o grau de ofensividade da condu
ta delituosa, objetivando orientar a criminalização de comportamentos pelo legis
lador, bem como a sua individualização judicial, devendo a reação penal retratar o
merecimento do autor da infração, de acordo com as circunstâncias jurídico-penal-
mente relevantes (CP, art. 59). Portanto, tal princípio rechaça o estabelecimento de
cominações penais (proporcionalidade abstrata) e a imposição de penas (proporcio
nalidade concreta) que careçam de toda relação valorativa com o fato, contempla
do na globalidade de seus aspectos.40
Exatamente por isso, o STF decidiu, recentemente, em caráter liminar, pela
inconstitucionalidade do preceito secundário da receptação qualificada (CP, art.
180, § l 2: reclusão de 3 a 8 anos), em virtude de cominar, para a hipótese de crime
com dolo eventual, pena superior à prevista para a receptação com dolo direto (CP,
art. 180, caput: reclusão de 1 a 4 anos), sob o argumento de que o dolo eventual
pode ter pena igual ou inferior ao dolo direto, mas jamais superior.41
39 Ferrajoli entende, quanto às penas privativas da liberdade, que não se justifica o estabelecimento dc um
mínimo legal, acreditando que seria melhor confiar ao poder eqüitativo do juiz a eleição da pena abaixo
do máximo estabelecido pela lei, sem vinculá-lo a um limite mínimo ou vinculá-lo a um mínimo bastan
te baixo. Devecho y razón, cit., p. 400. No mesmo sentido, Edson 0 ’Dwyer. Se eu fosse juiz criminal.
Boletim do IBCCrim. São Paulo, n. 8 6 , jan. 2000.
40 Silva Sánchez. Aproximación, cit., p. 260.
41 HC 92525 MC/R}, Relator Ministro Celso de Mello.
Paulo Qu n ro z
a duplicidade de sanções para o mesmo sujeito, por um mesmo fato e por sanções
que tenham um mesmo fundamento, isto é, que tutelem um mesmo bem jurídico.42
O legislador, porém, não raro o viola claramente. Exemplo disso é a adoção do ins
tituto da reincidência (CP, arts. 61, I, e 63), uma vez que, ao se punir mais grave
mente um crime, tomando-se por fundamento um delito precedente, está-se em
verdade valorando e punindo uma segunda vez a infração anteriormente pratica
da, em relação à qual já foi o autor sentenciado, chegando-se por vezes a absurdos,
como, por exemplo, estabelecer o juiz, depois de fixar a pena-base em seis anos de
reclusão (tráfico de droga), um aumento de dois terços em face da reincidência,
aplicando pena definitiva de dez anos. Nota: o crime anterior (um furto) fora ape-
nado em dois anos de prisão, pena inferior ao aumento decorrente da reincidência
(4 anos) (!). A reincidência, por constituir bis in idem , é inconstitucional, por vio
lação aos princípios da legalidade e proporcionalidade.43
Cumpre notar ademais que nem sempre o réu reincidente é mais perigoso que
o primário, como se presume. Assim, o autor de estupros seguidos, embora primá
rio, certamente é bem mais ameaçador do que o condenado reincidente por peque
nos furtos ou lesões corporais leves, por exemplo. Enfim, a reincidência, sobretudo
nos termos em que se encontra hoje definida, pouco significa, não constituindo
garantia de maior perigosidade do infrator, a justificar, também por isso, a sua abo
lição pura e simples.
Mas se a reincidência for tolerada, o agravamento que dela decorrer jamais
poderá implicar aumento igual ou superior, mas sempre inferior, à pena que fora
imposta na sentença condenatória anterior que a ensejou, uma vez que o acessório
(agravante da reincidência) não pode exceder o principal (a pena aplicada). Assim,
se o réu foi condenado anteriormente a uma pena de dois anos por furto, não pode
ria a agravante acarretar, na nova condenação a seis anos por tráfico, aumento de
dois terços (quatro anos) e assim fixar a pena definitiva em dez anos de prisão.
Idem, se a condenação anterior fosse por lesão corporal leve a pena de um ano,
parece evidente que na nova condenação por latrocínio a vinte anos de prisão, o
aumento decorrente da reincidência não poderia ser de metade (dez anos), isto é,
dez vezes a pena precedente.
44 O princípio da insignificância com o exciudente da tipicidade no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1993,
p. 58.
45 Nesse sentido, decisão do STj: “A apreensão de quantidade ínfima de droga - 0,25g de cocaína - sem qual
quer prova de tráfico, não tem repercussão penal, à vista da míngua de lesão ao bem jurídico tutelado,
enquadrando-se o tema no campo da insignificância. Habeas corpus concedido” (6 a T., HC 8.020/RJ, rei.
Min. Fernando Gonçalves, j. 25-3-1999, DJU, 13 jun. 1999, p. 227).
vel que o agente que subtraia, mesmo com emprego de violência ou grave ameaça
à pessoa, quantia economicamente insignificante tenha de responder por delito con
tra o patrimônio cuja pena varia de quatro a dez anos de prisão. Numa tal hipótese,
ante a insignificância do objeto subtraído, não há propriamente ofensa ao patrimô
nio; logo, não há crime patrimonial, razão pela qual o autor deverá responder uni
camente pela infração residual, isto é, constrangimento ilegal46 (CP, art. 146).
Em se tratando de crimes contra a Fazenda Nacional (contrabando ou desca
minho, tributários etc.), tribunais há que, com base na Lei ns 10.522/2002, art. 20,47
que previu o arquivamento das execuções fiscais de débitos de valor consolidado
igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), têm adotado o princípio da insig
nificância.48
Efetivamente, tendo a União renunciado à execução forçada do crédito, por
entender que os custos daí resultantes não justificam a mobilização do Judiciário,
sentido algum faria promover a ação penal em tais casos, em razão do caráter resi
dual (subsidiário) do direito penal, que é um plus relativamente à intervenção civil.
Mas o caso não é propriamente de insignificância jurídico-penal da ação, pois
é evidente que não se pode ter à conta de irrelevante uma soma próxima de R$
10.000,00, tanto que a Fazenda Nacional renuncia só à execução forçada do crédi
to, mas não à cobrança administrativa, ou seja, não perdoa a dívida. O caso é, mais
exatamente, de adoção do princípio da proporcionalidade/subsidiariedade, uma vez
que, se não é necessária/adequada a intervenção menos grave (civil), tampouco será
a mais grave (penal).
Não é preciso dizer que, embora a lei, que é federal, se refira à execução fiscal
da Fazenda Nacional, tem ela de ser aplicada a todos os Estados da Federação e ao
Distrito Federal, em respeito ao princípio federativo, à competência da União para
legislar sobre matéria penal e também ao princípio da isonomia.
Com relação aos crimes contra a fé pública, malgrado juizes e tribunais ainda
relutem em admitir a adoção do princípio, alegando que nesses casos não cabe falar
46 No sentido do texto, Rogério Greco. Direito Penal. Parte Geral. Rio: Impetus, 2003, p. 71, e Antônio de
Padova Marchi Júnior, citado por este autor. Idem, precedente do TJ/MG: “Penal. Roubo. Princípio da
insignificância. É possível a incidência do princípio da insignificância mesmo nos crimes cometidos com
violência ou grave ameaça à pessoa, porque o juízo de tipicidade material não passa pela análise do com
portamento da vítima, ou seja, seu dissenso ou contrariedade à ação do agente e, sim, em um juízo de lesi-
vidade da conduta - nuílum crimem sine iniuria. Sendo o delito de roubo espécie de crime complexo, a
lesividade da conduta para se adequar a este tipo penal deve abranger necessariamente os dois valores pro
tegidos pela norma, sendo imprescindível significativa lesão ao patrimônio e à pessoa, cumulativamente.
Não havendo lesividade relevante ao patrimônio da ofendida, ocorre a descaracterização do crim e com
plexo de roubo” (TJ/MG - 5 3 C. Crim. - Apel. 1.0024.99.087682-3/001 - Rei. para acórdão Alexandre
Victor de Carvalho - j. 13.02.2007 - DOE 10.03.2007 - ementa oficial).
47 Dispõe o art. 20, textualmente: “Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do
Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da
União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, dc valor consolidado igual ou
inferior a R$ 10.000,00 (dez. mil reais)”. (Redação dada pela Lei n^ 11.033, de 2004).
48 Em sentido contrário vem se posicionando o STJ, conforme julgados recentes.
D ire ito Penal -- Parte G e ra l
52 A ponderação de interesses na Constituição Federa]. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 195-196.
53 Ferrajoli, D erecho y razón , cit., p. 396.
54 García-Pablos, Derecho penal , cit., p. 296. Entendendo que o princípio de humanidade das penas também
importa o acolhimento do sistema progressivo de penas, Silva Franco, para quem “um texto legal que pros
creva toda e qualquer possibilidade de um sistema progressivo de pena privativa da liberdade, deixando o
recluso subordinado unicamente ao regime fechado, num estabelecimento prisional de segurança máxi
ma, tem, assim, um significado claro e preciso: transformar a finalidade da pena numa resposta estatal que
paga o mal causado com outro mal, de igual ou superior intensidade, dela eliminando não apenas qual
quer intento ressocializador, mas também o ‘mínimo ético' que é exigível na execução penal” ( Código
Penal e sua interpretação jurisprudência!, cit., p. 35).
D ire ito Penal - P a rle Cicrul
55 Com acerto, portanto, a 5 9 Turma do STJ, sendo relator o Ministro José Arnaldo da Fonseca, apreciando
habeas corpus , decidiu: “Pena a ser cumprida em semi-aberto. Condenado recolhido em presídio de segu
rança máxima, incompatível com o regime fixado na sentença, à alegação de inexistência de vagas no esta
belecimento adequado. Constrangimento ilegal configurado. Assentada jurisprudência desta Corte no
sentido de que a falta de vagas em estabelecimento adequado para o cumprimento de pena imposta para
o regime semi-aberto não justifica a permanência do condenado em condições prisionais mais severas.
Ordem concedida em parte para determinar a transferência do paciente para o estabelecimento adequa
do ao regime semi-aberto ou, persistindo a falta de vagas, assegurar-lhe, em caráter excepcional, o cum
primento da pena em regime aberto, sob as cautelas do Juízo das Execuções, até que surjam vagas no esta
belecimento prisional adequado” {5dT., HC 13.897, rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 7-11 -2000, v. u.,
DJU, 11 dez. 2000, p. 223).
56 Nesse sentido inclusive manifestou-se o Tribunal de Justiça de São Paulo. HC n 5 978.305.3/0-00.
Paulo Queiroz
57 Admitindo a pena perpétua e inclusive a entrega de nacionais para o TPI, Valério Mazzuoli. Curso de
direito internacional público. S. Paulo: RT, 2007. Apesar da distinção técnica/formal entre os institutos da
entrega e extradição, é evidente que, materialmente, ambos implicam o mesmo tipo e grau de constrangi
mento à liberdade individual, tal qual a própria abdução, que consiste num seqüestro criminoso. Na ver
dade, se a extradição é a entrega de um indivíduo por um Estado a outro para aí ser julgado, força é con
vir que ela (a entrega) é uma espécie do gênero extradição, compreendida que está no seu conceito; ou, se
preferir, a entrega é uma forma de extradição com nome diverso. Exatamente por isso a entrega e a
extradição devem estar subordinadas aos mesmos princípios e regras, em virtude de encerrarem a mesma
sorte de constrangimento à liberdade e, pois, aos direitos e garantias individuais. Com efeito, a só altera
ção do nomen juris não pode ter o condão de legitimar certas práticas de violência institucional, ainda que
admitidas a pretexto de castigarem violências maiores. Mutatis mutandis, o mesmo deve ser dito quanto
à possibilidade de aplicação de penas perpétuas pelo TPI, mesmo porque, do contrário, estar-se-ia, ainda
que indiretamente, a atribuir status supraconstitucional a tratado internacional e a negar o caráter resi
dual dessa jurisdição. Evidentemente que, a ser admitida a prisão perpétua, obstáculo algum haveria à
pena de morte e semelhantes, se assim dispuser o tratado.
58 Fundamentos de) derecho pen ai parte general, 2. ed. Granada: Universidad de Granada, 1991, p. 174-175.
59 A expressão é Ferrajoli.
Direito Penal - Parle Gera
Por isso autores há que, como Luiz Flávio Gomes, propõem que as medidas de
segurança tenham como parâmetro ou limite o máximo da pena cominada. Aliás já
há decisões mais ousadas e justas, procedendo à individualização judicial da pena e
a seguir substituindo-a por medida de segurança pelo prazo da pena aplicada, con
forme se verá mais tarde. Tratando-se de medida de segurança aplicada em substi
tuição à pena, em virtude de superveniência de doença mental, seu prazo corres
ponderá ao tempo restante de cumprimento da pena.60
Releva notar que discussão restou grandemente superada com a Lei de Refor
ma Psiquiatria de 2001 (Lei n9 10.216), que revogou boa parte das disposições
penais a respeito das medidas de segurança, conforme se verá no capítulo próprio.
que os pais não respondem pelos filhos, nem os tutores pelos pupilos, nem os cura
dores pelos curatelados, exceto se houverem concorrido dolosamente para tanto ou
tiverem agido com culpa.64
Quanto à ressalva constitucional de que a obrigação de reparar o dano e a de
cretação de perdimento de bens poderá se estender aos sucessores do condenado
até o limite do valor do patrimônio transferido, não há aí, como supunha Mirabe-
te,65 afronta ao princípio, uma vez que o que se estende aos sucessores do conde
nado não é a pena, mas só os efeitos civis da sentença, exclusivamente em relação
aos bens adquiridos com o produto do crime e “até o limite do patrimônio transfe
rido”, possibilidade há muito permitida.
64 Dispõe a esse respeito o art. 29 do Código Penal: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime inci
de nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.”
65 Manual de direito penai, São Paulo: Atlas, 2000, p. 244.
66 Conforme Nilo Batista, o princípio da lesividade tem quatro funções: proibir a incriminação de uma atitude
interna, proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do autor, proibir a incriminação
de simples estados ou condições existenciais e proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetam
qualquer bem jurídico (introdução crítica, cit., p. 91-97). Penso, porém, que, em realidade, a última função
apontada - que, em rigor, é a função de proteção de bens jurídicos - compreende todas as demais.
67 Com base nesse dispositivo, a Corte Suprema de Justiça argentina, em decisão de 29 de agosto de 1986,
concluiu pela inconstitucionalidade do art. 6 ° da Lei ns 20.771, que corresponde ao nosso art. 16 da Lei de
Tóxicos, que pune o porte de droga para consumo. Em sentido análogo dispunha o art. 4° da Declaração
de Direitos de 1789, ao estabelecer que a liberdade consistia “em poder fazer tudo que não prejudica aos
demais; desse modo, a existência dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites que aqueles
que asseguram aos demais membros da sociedade o desfrute desses direitos. Esses limites não podem ser
determinados senão pela lei”.
68 De crimes, penas e fantasias, cit., p. 130.
Direito Penal - Parte Geral
5. Direito e Interpretação
5.1. Introdução
69 Tenho, pois, como inconstitucionais as contravenções de vadiagem, de mendicância (LCP, arts. 59 e 60),
além da norma do art. 16 da Lei ne 6.368/76, que pune o porte de entorpecente para consumo, entre out
ras disposições.
70 Sobre a liberdade , trad. Alberto da Rocha Barros, Petrópolis: Vozes, 1991, p. 137.
71 Ferrajoli, D erecho y razón, cit., p. 704.
72 Como diz Eros Grau, “interpretação e aplicação não se realizam autonomamente. O intérprete discerne o
sentido do texto a partir e em virtude de um determinado caso dado (Gadamer, 1991:397); a interpreta
ção do direito consiste em concretar a lei em cada caso, isto é, na sua aplicação (Gadamer, 1991:301).
Assim, existe uma equação entre interpretação e aplicação: não estamos, aqui, diante de dois momentos
distintos, porém, frente a uma só operação (Marí, 1991:236). Interpretação e aplicação consubstanciam um
processo unitário (Gadamer, 1991:381), se superpõem”. Ensaio e discurso sobre interpretação/aplicação do
direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 84.
constituem momento dos mais importantes da (re)construção social da realidade, arbi
trária e seletiva, como vimos. Além disso, a aplicação da lei em cada caso particular
requer necessariamente, como todo e qualquer texto, interpretação do seu significado,
com vistas a decidir casos concretos, realizando o direito, daí que o aforisma in claris
non fít interpretado não é mais que uma falácia: confunde a ausência de dificuldades
interpretativas com a ausência de interpretação,73 mesmo porque afirmar que um
texto é claro ou que dispensa interpretação já é um modo de interpretá-lo.
Normalmente a doutrina parte dos seguintes pressupostos ao tratar do tema:
a) a lei já contém o direito, que está assim previamente dado; b) a finalidade da
interpretação é encontrar o sentido exato/correto contido na lei, isto é, a “vontade
da lei” ou a “vontade do legislador” etc.; c) a esse sentido correto da lei se chega por
meio dos métodos de interpretação (lógico, teleológico, histórico etc.), de modo
que interpretação correta é uma interpretação conforme o método; d-) o juiz quan
do julga um caso faz ou deve fazer um juízo lógico de subsunção do fato à lei.
Também por isso, o tema costuma merecer, nos manuais e monografias jurí
dicas, tratamento absolutamente marginal.
No entanto, e conforme dissemos ao tratar do seu conceito, o direito não exis
te (fisicamente), pois é socialmente construído, razão pela qual tais pressupostos
não resistem a uma análise minimamente crítica. É que não é possível pensar que
haja um mundo pré-fabricado e um sentido prévio que simplesmente estejam à
nossa disposição aguardando por sua representação em nossa consciência, afinal
nos processos de interpretação não se trata de descobrir/desvelar uma vontade
preexistente e pronta, pois não é a interpretação que depende do direito (ou da lei),
mas o direito (ou a lei) que depende da interpretação.74 Dito de outro modo: os
juristas em geral pensam fundamentar a priori, dedutivamente, o que em verdade
é fundamentado a posteriori, empiricamente.75
Sintetizando: o direito não preexiste à interpretação, mas é dela resultado, razão
pela qual constitui a forma mesma de produção do direito, afinal não existem fenô
menos jurídicos, mas apenas uma interpretação jurídica dos fenômenos (Nietzsche).
Parece certo também que, ordinariamente, por mais que tenhamos motivos,
legais ou não, para condenar, condenamos por queremos condenar e porque julga
mos importante fazê-lo; inversamente: por mais que tenhamos motivos, legais ou
não, para absolver, absolvemos porque queremos absolver e julgamos importante
fazê-lo. Em síntese: sempre que condenamos ou absolvemos, fazemo-lo porque
queremos fazê-lo, de sorte que, nesse sentido, a condenação ou a absolvição não são
atos de verdade, mas atos de vontade.
Ainda hoje é assim corrente a afirmação de que interpretar é dar ao texto legal
seu correto significado, idéia que pressupõe a existência de um sentido prévio à inter
pretação mesma, sentido a ser descoberto por meio dos métodos interpretativos,
como se o direito já estivesse previamente dado, como se existisse ontologicamente;
e subjacente a isso está uma confusão, mais ou menos consciente, entre lei e direito.
No entanto, interpretar é compreender e argumentar corretamente num sis
tema aberto,77 argumentação de que participam, sobretudo, advogados, promoto
res e juizes (mas não só eles). E se múltiplas são as possibilidades de argumentação,
múltiplas também hão de ser as possibilidades de interpretação correta do texto e
da realidade a que se refere.78 Por isso, a interpretação de uma lei não deve neces
sariamente conduzir a uma solução como sendo a única correta, mas a diversas
soluções que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar - têm igual
valor.79 Ou seja, interpretar é escolher entre várias possibilidades igualmente váli
das, pois, como disse Kelsen, o direito a aplicar forma, em todas as hipóteses, uma
moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é con
forme o direito todo ato que se mantenha dentro desse quadro ou moldura, que
preencha essa moldura em qualquer sentido possível.80
Mas fato é que, a pretexto de preservar o “princípio da segurança jurídica”, a
doutrina costuma defender a necessidade de se adotarem critérios/métodos no sen
tido de encontrar a (única ou melhor) resposta correta, invocando, para tanto,
metáforas como o “espírito da lei” e semelhantes, já em si uma tática argumentati-
va. Isso, além de incorreto, não seria nem justo nem conveniente, pois uma tal
idéia, absolutamente incompatível com uma sociedade multicultural e multifaceta-
da, é própria de uma ideologia antiliberal, que não acolhe, antes rechaça, as dife
renças - de sexo, de raça, de cultura etc. Ademais, pretender unir ciência à idéia de
unidade, de pureza, de perfeição, quer se refira à política, quer se refira à religião,
quer se refira ao direito, é sempre perigoso e tendencialmente tirânico, e que há de
ser, por isso, permanentemente combatido. No particular, nada há a lamentar, por
tanto, muito ao contrário: com abolir semelhante preconceito, surgem novas pos
sibilidades de um direito penal democrático (plural), porque reconhecer a incerte
za e a diversidade no direito é reconhecer a incerteza e a diversidade mesma do
homem. A não ser assim, poder-se-á substituir, no futuro, os atuais juizes, promo
tores e advogados por sofisticados programas de computador.
Portanto, afirmar que só uma resposta é correta é assumir uma postura arro
gante diante de outras respostas igualmente possíveis e válidas. Como bem observa
Margarida Camargo, ao contrário dessas posições monolíticas, o que se aponta agora
sob o viés da pós-modemidade é que, no lugar do universal, encontra-se o históri
co; no lugar do simples, o complexo; no lugar do único, o plural; no lugar do abstra
to, o concreto; e no lugar do formal, o retórico, pois o direito consiste na realização
de uma prática que envolve o método hermenêutico e a técnica argumentativa.81
reito, ou pelo costume. Do ponto de vista de sua aplicação pelojuiz, pode mesmo dizer-se que a lei penal
não cem lacunas”. Comentários, cit., v. 1, p. 13).
79 Kelsen, Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.390.
80 Teoria pura do direito, cit., p. 390.
81 Hermenêutica e argumentação. Rio de Janeiro-Sao Paulo: Renovar, 2003, p. 250.
82 Como assinala Hassemer, não há uma meta-regra das regras interpretativas, isto é, não há uma pauta que
prescreve ao juiz a aplicação de um determinado método em cada caso, pois, metodicamente, o juiz é livre
D i r c i m Pe n a l - Pa rt e C or al
na eleição das regras interpretativas, e como as diferentes regras conduzem a resultados diferentes quan
to à compreensão “correta” da norma, não podem elas, por conseqüência, garantir a vinculação estrita do
juiz à lei (Ei pensam iento jurídico contemporâneo, cit., p. 212). No mesmo sentido, Kelsen, Teoria pura
do direito, cit.
83 Gadamer, Verdade e m étodo. Petropólis: Vozes, 1999, p. 31.
84 Gadamer, Verdade c m étodo , cit., p. 708-709. Escreve o citado autor textualmente: “Aquele que com
preende já está sempre incluído num acontecimento, em virtude do qual se faz valer o que tem sentido.
Está justificado que, para o fenômeno hermenêutico, se empregue o mesmo conceito do jogo que para a
experiência do belo. Quando compreendemos um texto nos vem os tão atraídos por sua plenitude de sen
tido como pelo belo (...). Na medida em que compreendemos, estamos incluídos num acontecer da verda
de e quando queremos saber o que temos que crer, parece-nos que chegamos demasiado tarde (...). Assim,
é certo que nao existe compreensão que seja livre de todo preconceito, por mais que a vontade do nosso
conhecimento tenha de estar sempre dirigida no sentido de escapar ao conjunto dos nossos preconceitos.
No conjunto da nossa investigação evidencia-se que, para garantir a verdade, não basta o gênero de cer
teza, que o uso dos métodos científicos proporciona. Isso vale especialmente para as ciências do espírito,
mas não significa, de modo algum, uma diminuição de sua cientificidade, mas, antes, a legitimação da pre
tensão de um significado humano especial, que elas vêm reivindicando desde antigamente. O fato de que,
em seu conhecimento, opere também o ser próprio daquele que conhece, designa certamente o limite do
‘método’, mas não o da ciência. O que a ferramenta do ‘método’ não alcança tem de ser conseguido e pode
realmente sê-lo através de uma disciplina do perguntar e do investigar, que garante a verdade.”
85 Arthur Kaufmann, Panorâmica..., in El pensamiento, cit., p. 129. Já Heidegger escrevera que “a interpre
tação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia.
A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da
interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que ‘está’ no texto,
aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais do que opinião prévia, indiscutida e
supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo
aquilo que a interpretação necessariamente já ‘põe’, ou seja, que é preliminarmente dado na posição pré-
via, visão prévia e concepção prévia” (S e re tempo, Petrópolis: Vozes, 2002, p. 207).
empreende a leitura do texto”.86 Dito de outro modo: à semelhança do pintor, que
não pinta sobre uma tela virgem, e do escritor, que não escreve sobre uma página
em branco, pois a tela ou a página já estão cobertas de clichês preexistentes,87 tam
bém o juiz não julga a partir apenas dos dizeres da lei, isto é, a partir do nada.
Em conseqüência, não é possível, como assinala Arthur Kaufinann, interpre
tar corretamente segundo métodos ou segundo a hierarquia de argumentos, pois
em última análise sobre o valor e a hierarquia de um meio interpretativo ou de um
argumento decide o próprio intérprete,88 mesmo porque não há um método para a
escolha do método.89 E o juiz que supõe tomar seus critérios de decisão unicamen
te da lei é vítima de fatal engano, pois (inconscientemente) permanece dependen
te dele mesmo, quando em realidade só o juiz que tenha plena consciência de que
sua pessoa se co-implica no processo interpretativo pode ser verdadeiramente inde
pendente.90 Por isso que o ato de interpretar não é algo meramente contemplativo
da norma, não é uma revelação - não é um ato declarativo, mas constitutivo91 - ,
por cujo meio se investiga e se descobre a (prévia) “vontade da lei” ou a “vontade
do legislador”, como ainda entende grande parte da doutrina, mas um ato de cria
ção do direito, a partir de argumentação que empresta certo e determinado signifi
cado àquilo que se interpreta.92 Numa palavra: com a interpretação não se extraem
sentidos da lei, mas sentidos lhe são atribuídos por meio da interpretação.
Parece aliás haver algo de mágico nessa crença de que o juiz julga segundo
uma (suposta) vontade da lei ou do legislador, pois seria como acreditar, por exem
plo, que, a partir do sopro de um sax ou do dedilhar de uma guitarra, se pudessem
produzir todos os sons e melodias, já que, de acordo uma tal concepção, importa
86 Citado por Amilton Bueno de Carvalho, Papel dos juizes na democracia, Doutrina, Rio de Janeiro, nç 1,
2002.
87 Deleuze, Giles e Guattari, Félix. O que é filosofia? S. Paulo; Editora 34, 2005.
88 Arthur Kaufmann, Panorâmica..., in Elpensamiento , cit., p. 129.
89 Lédio Rosa de Andrade, O que é direito alternativo? Florianópolis: Habitus, 2001, p. 54.
90 Arthur Kaufmann, Panorâmica..., in El pensamiento, cit., p. 130.
91 Como ensina Kelsen, “uma decisão judicial não tem, como por vezes se supõe, um simples caráter decla-
ratório. O juiz não tem simplesmente de descobrir e declarar um direito já de antemão firme e acabado,
cuja produção já foi concluída. A função do tribunal não é simples ‘descoberta’ do Direito ou juris-‘dição’
(‘declaração’ do Direito) neste sentido declaratório. A descoberta do Direito consiste apenas na determi
nação da norma geral a aplicar ao caso concreto. E mesmo esta determinação não tem um caráter simples
mente declarativo, mas constitutivo.” Teoria pura do direito , cit., p. 264.
92 De acordo com Lênio Streck, não existem em verdade julgamentos de acordo com a lei ou em desacordo
com ela, porque o texto normativo não contém imediatamente a norma (Müller), a qual é construída pelo
intérprete no decorrer do processo de concretização do direito, de sorte que, quando o juiz profere um
julgamento considerado contrário à lei, na realidade está proferindo um julgamento contra o que a dou
trina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário. Conclui então que “é necessário ter em conta que o
Direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais que
palavras, é também comportamentos, símbolos, conhecimentos, expressados (sempre) na e p e h lingua
gem. É o que a lei manda, mas também o que os juizes interpretam, os advogados argumentam, as partes
declaram, os teóricos produzem, os legisladores criticam. E, enfim, um discurso constitutivo, uma vez que
designa/atribui significado a fatos e palavras” (Hermenêutica jurídica em crise, Porto Alegre: Livraria do
Advogado Ed., 1999, p. 210-211).
Direito Penal - Parte Geral
93 Na verdade, no âmbito do direito penal não se pode falar rigorosamente de uma relação sujeito/objeto,
simplesmente porque o seu objeto é o próprio sujeito, isto é, o homem, autor de uma conduta pretendi-
damente típica, antijurídica, culpável e punível, de modo que aqui o que se estabelece é mais exatamente
uma relação sujeito/sujeito - o homem que compreende, que interpreta, que julga o seu semelhante e que,
portanto, compreende e julga a si mesmo. Daí dizer Boaventura de Souza Santos que todo conhecimento
é uma forma de autoconhecimento e todo desconhecimento é autodesconhecimento. Um discurso sobre
as ciências. São Paulo: Cortez, 2003, p. 92.
94 A expressão é de Montesquieu.
95 Não se pode concordar, portanto, atualmente, com Beccaria, que, tendo fundadas razões para temer o
arbítrio dos juizes, afirmava que “o juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a
menor, a ação conforme a lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. Se o juiz for constrangido a fazer um
raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo se torna incerto e obscuro. Nada mais perigoso do
que o axioma de que é preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques e
abandonar as leis à torrente das opinões” (Dos delitos e das penas , cit., § IV, p. 35). No particular, seguia
passagem famosa de Montesquieu, para quem os juizes não são mais que a boca que pronuncia as senten
ças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor (O espírito das leis, cit.,
Livro XI, VI, p. 123).
Paulo Queiroz
Daí dizer Arthur Kaufmann que a hermenêutica jurídica não diz nada dife
rente do que tem sido válido e sempre tem sido praticado, porque o único que real
mente faz é mostrá-lo à luz, destruindo assim algumas ilusões, sobretudo a ilusão
de que a investigação do direito seja mera subsunção lógico-formal do fato à lei.96
Enfim, o raciocínio dos magistrados não é, como assinala Lédio Rosa de Andrade,
silogístico, mas redutivo e classificatório, porquanto, ao atribuir uma interpretação
ao signo “lei”, o magistrado usa ideologia e ressignifica seu conteúdo, de modo que
não só acrescenta algo ao direito, como o modifica constantemente.97
Por conseguinte, a interpretação, à semelhança da fotografia, varia conforme não
apenas as imagens que se vêem e se contemplam, mas também segundo a ciência ou a
insciência, a maturidade ou a imaturidade, a arrogância ou a humildade de quem
interpreta ou fotografa, pois o homem-juiz, ao pretender julgar “o processo segundo a
lei”, julga conforme os seus medos, as suas pretensões e os seus sentimentos, a sua
vocação ou o seu alheamento, a sua grandeza ou a sua pequenez, julga, enfim, segun
do a sua sensibilidade. A interpretação é uma fotografia da alma do intérprete.98
Ademais, o ato de interpretar é um ato singular e único, mesmo porque o con
texto em que são praticados e julgados os fatos é irrepetível, e, como disse Herácli-
to, não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois novas águas estão sempre
fluindo.99 Mais: graças à escrita, o discurso se liberta da tutela de intenção do autor,
das circunstâncias e da orientação voltada para o leitor primitivo, sendo que a auto
nomia semântica que resulta dessa tripla libertação garante uma carreira indepen
dente do texto e abre para a interpretação um campo de exercício considerável.100
Pois bem, se tudo isso é válido para a interpretação em geral e para as situa
ções “normais”, tal vale, com maior força de razões, para a interpretação no âmbi
to do direito penal, em que à superprodução de leis penais sem o menor critério,
editadas, não raro, para criar uma só impressão - e uma falsa impressão - de segu
rança jurídica (leis puramente simbólicas e grandemente demagógicas), soma-se
uma linguagem em geral confusa e imprecisa, tipos de conteúdo de todo vago, já
não bastasse o fato de a interpretação/aplicação das normas competir a órgãos que
atuam de forma autônoma, sem nenhuma coordenação entre si e com grande mar
gem de discricionariedade: Polícia, Órgãos da Execução Penal, Ministério Público,
Judiciário etc. Aqui, mais do que em qualquer outro campo do direito, a interpre
tação/aplicação das normas jurídicas ocorre de forma arbitrariamente seletiva e
criadora de crimes e criminosos. E não se pode ignorar que a construção social do
crime é também, em boa parte, resultado da forma de interpretar e aplicar o direi
to penal; afinal, a pretexto de julgar fatos, julgam-se, de ordinário, homens; a pre
texto de julgar homens, julgam-se estereótipos, mesmo porque, estando as normas
dirigidas à descoberta da verdade processual, e não da verdade existencial, ter-se-á
inevitavelmente uma simplificação um tanto deformadora e descontextualizada -
sempre parcial - da natureza humana.101
No particular, Foucault já assinalara que, por meio do direito penal, julgam-se
também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os
efeitos do meio ambiente ou de hereditariedade; punem-se as agressões, mas, por
meio delas, as agressividades, e, ao mesmo tempo, as perversões, impulsos e desejos
humanos; julga-se, enfim, a “alma” do criminoso, de sorte que a sentença que conde
na ou absolve não é simplesmente um julgamento de culpa, pois implica uma apre
ciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível.102
Por tudo isso, parece-nos inútil estudar interpretação a partir de métodos,
porque; a) não existe um método para a eleição do método, cabendo ao interprete
decidir sobre o método e o argumento a seguir e sua respectiva hierarquia; b) toda
compreensão é precedida de uma pré-compreensão, a qual é determinante para a
compreensão e decisão a ser tomada; c) é possível partir do mesmo método e, não
obstante, chegar a decisões distintas, pois a pessoa do intérprete está co-implicada
no processo de interpretação; d) a eventual adoção de um método, se tiver alguma
relevância, servirá apenas para justificar/legitimar decisões já tomadas previamen
te à eleição do método; e) o direito não é um saber lógico-subsuntivo, mas analógi
101 Segundo Vera Felicidade, para quem “a essência humana é uma unidade, que se polariza enquanto sujei
to e objeto”, “não há um bem, não há um mal; a maldade não resulta de condições sociais e econômicas
adversas, tanto quanto não é um instinto humano, não é uma ausência de Deus, não c a presença do
Demônio. A maldade é a desumanização criada pelo auto-referenciamento, após impasses não enfrenta
dos, limites não aceitos. As pessoas se comportam como se comportam em função de como se percebem,
como percebem o outro e o mundo. É esta relação que estrutura o humano, que estrutura o desumano” .
Desespero e maldade, Salvador: Ed. do Autor, 1999, p. 14.
102 Vigiar e punir, história da violência nas prisões, trad. Raquel Ramalhete, 12. ed., Petrópolis: Vozes, 1995,
p. 21 c s.
co; f) o direito não está previamente construído; g) por meio da interpretação não
se extraem significados da lei, mas significados lhe são atribuídos.
Enfim: não é a interpretação que depende do direito, mas o direito que depen
de da interpretação. O direito é interpretação.
Atualmente parece não haver dúvida de que, por maior que seja a clareza e
exatidão de um texto legal, é sempre possível interpretá-lo de várias formas, em
vfrtude do caráter estruturalmente aberto da linguagem e, pois, dos conceitos jurí
dicos. Há quem afirme inclusive que as possibilidades de interpretação são infini
tas (Derrida, Umberto Eco). Mas isso significa que qualquer interpretação é válida?
Existem limites à interpretação?
Parec«-nos que tais limites existem ou devem existir realmente.103
Em primeiro.lugar, é preciso reconhecer que há interpretações erradas, isto é,
tecnicamente incorretas. Exemplo disso são as que se fundam em leis já revogadas
como se ainda estivessem em vigor; as que desconhecem a legislação específica; as
que validam cálculos matemáticos incorretos, relativamente à prescrição, decadên
cia, prazos etc.; as que se baseiam numa leitura equivocada do texto; as tomadas por
juizes evidentemente incompetentes; as que contrariam princípios e regras por
desconhecimento; as que encerram contradição insuperável, entre outras.
Mas que dizer da interpretação tomada conscientemente e sem erros técnicos?
Pode um juiz deixar de condenar alguém por crime contra a liberdade sexual por
julgar que a vítima, por ser prostituta ou homossexual, não é passível de proteção
jurídica? É sustentável ainda, como no passado, que mulher casada não pode ser
vítima de estupro praticado pelo marido, em razão dos deveres do casamento?
Policiais podem matar fora dos casos legalmente admitidos?
Temos que, seja qual for o rótulo que se associe a cada comportamento (pros
tituta, homossexual etc.), toda pessoa humana, independentemente de qualquer
outra qualidade, tem direito de ser respeitada enquanto tal, fazendo por isso jus à
proteção da vida, da honra e da liberdade em toda e qualquer circunstância, moti
vo pelo qual o juiz não pode negar proteção à prostituta, ao homossexual ou à
mulher casada sob nenhum pretexto.
Pela mesma razão, não se pode considerar legítima a ação de policiais que tor
turam e matam supostos criminosos fora dos casos legalmente autorizados (legíti
ma defesa) em nome da segurança pública ou semelhante, porque do contrário não
103 Ncssc sentido, Umberto Eco: dizer que um texto c potencialmente sem fim não significa que todo ato de
interpretação possa ter um final feliz. Até mesmo o desconstrucionismos mais radical aceita a idéia de que
existem interpretações clamorosamente inaceitáveis. Isso significa que o texto interpretado impõe restri
ções a seus interpretes. Os limites da interpretação coincidem com os direitos do texto, o que não quer
dizer que coincidem com os direitos do seu autor. Os limites da interpretação. S. Paulo: Editora Perspec-
Direito Pena] - Pano Geral
existirá diferença alguma entre policiais e criminosos, entre lícito e ilícito, entre o
direito e o torto.
Não obstante isso, por mais que consideremos determinadas decisões como
incorretas, absurdas ou inaceitáveis, uma coisa parece certa: os limites da interpre
tação são dados por uma outra interpretação, afinal a afirmação de que uma dada
sentença é incorreta, absurda ou inaceitável encerra igualmente uma interpretação.
Naturalmente que a interpretação predominante (majoritária) não é necessa
riamente a melhor, porque tal implica uma manifestação de poder, motivo pelo
qual prevalecerá a de quem (pessoa, órgão ou instituição) tiver atribuição legal
(poder) para a impor ou institucionalizar, podendo inclusive ser a mais arbitrária
dentre as possíveis.
104 Convém esclarecer que o garantismo é um modelo de justificação do direito, e não só do direito penal, mas
aqui nos interessa, de modo particular, o direito penal. A expressão também pode ser adjetivada dc garan
tismo negativo e garantismo positivo. A primeira tem a ver com o respeito às garantias de legalidade, pro
porcionalidade etc. A segunda diz respeito à realização dos direitos sociais.
105 D erecho y razón, cit., p. 34.
106 Ferrajoli, Dcrccho y razón, cit., p. 851.
107 Ferrajoli, D erecho y razón, cit., p. 93.
nal surgiu e se justifica, historicamente, como um instrumento de prevenção (sub
sidiária) de reações públicas ou privadas arbitrárias contra os cidadãos, de tal modo
que os princípios (liberais) de legalidade, proporcionalidade, pessoalidade da pena
etc. constituem autênticas garantias individuais. Ou ainda: o direito penal, por meio
de seu sistema de garantias, constitui a lei do mais fraco diante do mais forte - no
momento do cometimento do crime, pretende proteger a vítima (o mais fraco) con
tra o criminoso (o mais forte); no momento do processo, o réu (o mais fraco) con
tra o Estado (o mais forte). Constitui também um sistema que busca aproximar,
maximamente, normatividade e efetividade, diminuindo, tanto quanto possível, o
abismo existente entre o discurso jurídico-penal e sua realidade operativa.
108 Esclareço que dou à expressão “interpretação conforme a Constituição” significado mais amplo do que o
faz a doutrina constitucional, para referir toda e qualquer interpretação (com e sem redução de texto) de
acorâo com os valores e princípios da Constiruição Federal, isto é, toda e qualquer interpretação garantis-
ta, que traduza, com o máximo de fidelidade, o respeito aos princípios constitucionais, ainda que, para
tanto, tenha o juiz de, eventualmente, atuar como legislador positivo, até porque estou hoje convencido
de que o juiz é, sim, uma espécie de legislador: legislador do caso concreto e, por isso, com maiores limi
tações. Ademais, o art. 28, parágrafo único, da Lei ne 9.868/99, ao dispor que “a declaração de constitucio-
nalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive interpretação conforme a Constituição e a declaração par
cial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em rela
ção aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal”, acabou por
equipará-Ias, dando-lhes tratamento unitário quanto aos efeitos.
109 Lênio Streck, Hermenêutica , cit., p. 215.
qualquer nível, por parte dos poderes públicos,110 significando dizer que o direito
de exigir a observância das garantias constitucionais constitui uma garantia do
cidadão em face do poder punitivo do Estado.'11
Por conseguinte, atualmente não basta à aplicabilidade da lei penal sua vigên
cia - entendida como respeito à competência e procedimento para a sua elabora-
ção; é preciso mais: a sua validade, é dizer, conformação da norma às garantias fun
damentais da pessoa humana. Aliás, exatamente nessa sujeição do juiz à Consti
tuição, e, portanto, no seu papel de garante dos direitos fundamentais constitucio
nalmente estabelecidos, reside o principal fundamento atual da legitimação da
jurisdição e da independência do Poder Judiciário perante os demais Poderes
(Legislativo e Executivo).112
Conseqüentemente, como guardião da legalidade constitucional, a missão pri
meira do juiz, em particular do juiz criminal, antes de apreciar fatos e provas, é
apreciar a própria lei a ser aplicada, é apreciar, enfim, a sua compatibilidade - for
mal e substancial - com o sistema de valores e princípios constitucionais, para, se
a entender ofensiva ao texto, interpretá-la conforme a Constituição ou, não sendo
isso possível, deixar de aplicá-la, simplesmente, declarando-lhe a invalidade.113
Exemplo da primeira hipótese - que se apóia no princípio da conservação das
normas114 - foi dado pelo Superior Tribunal de Justiça, quando, embora reconhe
cendo que a Lei n5 9.455/97 (Lei de Tortura) tivesse, ao permitir para o crime de tor
tura (crime equiparado constitucionalmente a hediondo - CF, art. 5S, XLIII) a pro
gressão de regime, afrontando, assim, a unidade do tratamento dada pela Consti
tuição aos crimes hediondos e assemelhados, entendeu que semelhante benefício
deveria ser estendido aos demais crimes hediondos (latrocínio, estupro, tráfico), vale
dizer, deu à Lei de Tortura interpretação conforme a C o n stitu iç ã o .D e forma aná-
110 D erechos y garantias: la ley dei más débil, Madrid: Ed. Trotta, 1999, p. 26.
111 Para Lênio Streck, a interpretação conforme a Constituição é mais do que princípio, é um princípio imanen-
te da Constituição, até porque não há nada mais imanente a uma Constituição do que a obrigação de que
todos os textos normativos do sistema sejam interpretados de acordo com ela ( Hermenêutica , cit., p. 2 2 1 ).
112 Ferrajoli, D erechos y garantias, cit., p. 26.
113 Conforme Paulo Bonavides, a interpretação conforme a Constituição, que permite, entre as várias inter
pretações possíveis, preferir aquela compatível com o texto constitucional, não é, em rigor, um princípio
de interpretação da Constituição, mas um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a
Constituição (Curso, cit., p. 474).
114 Canotilho (Direito constitucional, Coimbra: Almedina, 1996, p. 229): “o princípio de conservação das nor
mas afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma,
ela pode ser interpretada em conformidade com a Constituição.” Sobre as várias formas de interpretação con
forme a Constituição, ver, também, Alexandre de Moraes, Direito constitucional, São Paulo: Atlas, 2000.
115 A ementa está assim redigida: “A Constituição da República (art. 5a, LXIII) fixou regime comum, consi
derando-os inafiançáveis e insusceptíveis de graça e anistia, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entor
pecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. A Lei 8.072/90 conferiu-lhes
a disciplina jurídica, dispondo: 'a pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em
regime fechado’ (art. 2°, § Ia). A Lei 9.455/97, quanto ao crime de tortura, registra no art. Io, § 7°: ‘o con
denado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2°, iniciará o cumprimento da pena cm regime
fechado’. A Lei 9.455/97, quanto à execução da pena, é mais favorável do que a Lei 8.072/90. Afetou, por
tanto, no particular, a disciplina unitária determinada pela Carta Política. Aplica-se incondicionalmente.
Paulo Queiroz
Ioga, a Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul con
siderou que, embora o art. 34 da Lei n9 9.249/95, ao permitir a extinção da punibí-
lidade pelo recolhimento do tributo nos crimes contra a Ordem Tributária e contra
a Previdência Social, violasse o princípio da igualdade, deveria ter seus efeitos esten
didos para as demais hipóteses de crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa.116
Exemplo da segunda hipótese, de declaração da inconstitucionalidade da nor
ma (controle - tradicional - de constitucionalidade), já que se nega, pura e simples
mente, validade à lei, foi o recente reconhecimento da inconstitucionalidade da
não progressão de regime nos crimes hediondos pelo Supremo Tribunal Federal.117
Nem poderia aliás ser diferente, porque a sujeição do juiz à lei, como assinala
Ferrajoli, já não é mais, como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei,
qualquer que seja o seu significado, senão sujeição à lei enquanto válida, é dizer, coe
rente com a Constituição. E no modelo constitucional-garantista a validade já não é
um dogma associado à mera existência formal da lei, razão pela qual a interpretação
judicial da lei é também sempre um juízo sobre a lei mesma, que corresponde ao juiz
junto com a responsabilidade de eleger os únicos significados válidos, ou seja, compa
tíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por
elas estabelecidos. Isso significa, portanto, a não-sujeição à lei de forma acrítica e
incondicionada, senão sujeição sobretudo à Constituição, que impõe a crítica das leis
inválidas através da sua reinterpretação em sentido constitucional e a denúncia de sua
inconstitucionalidade.118 É que, a prevalecer o comodismo da aplicação acrítica da lei,
sem valorá-la constitucionalmente, se estará a negar efetividade à Constituição, vio
lando-a substancialmente, numa clara subversão da hierarquia das normas.
Assim, modificada, no particular, a Lei de Crimes Hediondos. Permitida, portanto, quanto a esses delitos,
a progressão de regime" (RE 170.841 - Paraná (98/0025379-3), rcl. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro).
116 A ementa está assim redigida: “No estelionato, mesmo que básico, o ressarcimento do dano, antes do ofe
recimento da denúncia, inibe a ação penal. O Órgão acusador deve tomar todas as providencias possíveis
para espancar dúvidas que explodem no debate judicial, pena de não vingar a condenação (magistério de
Afnínio Silva Jardim). Lição de Lcnio Luiz Streck: os benefícios concedidos pela Lei Penal aos delinqüen
tes tributários (Lei 9.249/95, art. 34) alcançam os delitos patrimoniais em que não ocorra prejuízo nem
violência, tudo em atenção ao princípio da isonomia. Recurso provido para absolver o apelante” (ACrim
297.019.937, dc 25-9-1997).
117 Nesse sentido, Karam, De crimes, penas e fantasias, cit.
118 Ferrajoli, Derechos y garantias, cit., p. 26.
119 De acordo com Bobbio, a analogia é um procedimento pelo qual se atribui a um caso não regulamentado
a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante. Teoria do ordenamento jurídico. UnB:
Brasília, 1999, p. 151.
120 Apesar de alguns autores, como Bobbio, reconhecerem que “a analogia é certamente o mais típico e o mais
importante dos procedimentos interpretativos de um sistema normativo: e o procedimento mediante o
qual se explica a assim chamada tendência de cada ordenamento jurídico a expandir-se além dos casos
expressamente regulamentados.” Teoria do ordenamento jurídico, p. 151.
Direito Penal - Parte Cieral
Por isso que os casos habituais de subsunção são em verdade casos de analo
gia, pois, conforme assinala Arthur Kauftnann, só se poderia separar logicamente
subsunção e analogia, se existisse uma fronteira lógica entre igualdade e semelhan
ça, mas tal fronteira não existe, porque a igualdade material é sempre mera seme
lhança e a igualdade formal não ocorre na realidade existindo apenas no domínio
dos números e sinais matemáticos (lógico-formais).121 Daí concluir Castanheira
Neves que a analogia é metodologicamente um elemento da interpretação e a inter
pretação é normativamente um resultado da analogia.122
Mas o certo é que ainda hoje a doutrina distingue analogia e interpretação ana
lógica, afirmando, como faz Damásio, que “a diferença entre interpretação analó
gica e analogia reside na voluntas legis: na primeira, pretende a vontade da norma
abranger os casos semelhantes por ela regulados; na segunda, ocorre o inverso: não
é pretensão da lei aplicar o seu conteúdo aos casos análogos, tanto que silencia a
respeito, mas o intérprete assim o faz, suprindo a lacuna”.523 De acordo com esse
entendimento, haveria interpretação analógica, por exemplo, no art. 28, II, do CP,
quando se utiliza da expressão “substância de efeitos análogos”; no art. 71, caput,
quando refere “e outras semelhantes” etc. Diferentemente, haveria analogia, quan
do, não havendo previsão legal expressa, o intérprete puder aplicar a uma hipóte
se não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante. Exemplo: o art.
128, II, do CP, prevê que não se pune o aborto praticado por médico, se a gravidez
resulta de “estupro”. Então, se se entender que também na hipótese de “atentado
violento ao pudor” (CP, art. 214) é possível aplicar esse dispositivo legal, por ser
também crime contra a liberdade sexual, castigado com a mesma pena, o caso não
seria de interpretação analógica, mas de analogia, pois a lei se referiu especifica
mente ao estupro e não a este e ao atentado violento ao pudor. Só haveria interpre
tação analógica, e não analogia, se o Código dissesse, v.g., “se a gravidez resulta de
estupro ou crime análogo”. Outro exemplo de anologia é a súmula 341 do STJ, que
admitiu a remição pelo estudo, embora a lei só se refira à remição pelo trabalho.
Mas semelhante distinção é ilusória, porque pretende diferençar onde há
identidade. Sim, porque, tanto num como noutro caso, trata-se de fazer um juízo
analógico simplesmente. A diferença consiste unicamente nisto: se a lei expressa
mente permitir o uso da analogia, haveria interpretação analógica; se não o fizer, o
caso seria de analogia. O que ocorre, portanto, é analogia, ora expressa, ora tácita,
mas analogia sempre, isto é, um juízo comparativo entre duas ou mais situações
semelhantes para se extrair uma determinada conclusão, razão pela qual a assim
124 .Arfbur Kaufma nn. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 119-120. De
modo similar, Rosa Maria Cardoso da Cunha assinala que “relativamente à proibição da analogia in malam
partem , há de se considerar que esta constitui um procedimento lógico e semiótico indeclinável no pro
cesso de interpretação da lei. É que o direito, e particularmente o direito penal, não se comunica de uma
forma digital, como a linguagem algébrica, por exemplo. O estabelecimento da significação jurídica recla
ma, em todos os níveis, raciocínios ‘por imagens’, de tipo ou caráter analógico. Assim, quando surge um
caso que os critérios estabelecidos ainda não assimilaram aos casos paradigmáticos relacionados com o
tipo, é necessário ampliar-lhe a significação para fazer caber o novo caso". O caráter retórico do princípio
da legalidade. Porto Alegre: 1979, p. 104.
125 Andrei Schmidt. O Princípio da legalidade penal no Estado Democrático de Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado editora, 2001, p. 189.
126 Diz o art. 3o do CPP que “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva c aplicação analógica,
bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”.
127 Criticamente, A. Castanheira Neves. Metodologia jurídica, cit. Idem, A lf Ross, cit.
Paulo Queiroz
6.1. Introdução
128 Na verdade, tais situações não expressam qualquer conflito, tampouco esse suposto conflito pode ser apa
rente. Primeiro, porque tais normas, antes de se conflitarem, convergem para um propósito único: repri
mir, mais precisamente, determinado comportamento, de modo que, por essa razão, ou bem se superpõem
(concurso de crimes) ou bem se excluem (concurso de normas). Quando, por exemplo, o legislador achou
por bem criminalizar a tortura, quis punir, mais energicamente, atos ofensivos à dignidade da pessoa
humana, inclusive aqueles lesivos à integridade física e à vida, de modo que, quando resultar configurada
a tortura, ficará prejudicada, em princípio, qualquer outra norma, dada a primazia político-jurídica desta.
Logo, se, numa situação concreta, por razões lógicas e de justiça, impõe-se a aplicação de uma única
norma, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade, proibitivo do bis in idem, a questão é de
interpretação correta da norma penal aplicável. Assim, por exemplo, não há, obviamente, conflito, tam
pouco aparente, entre as normas que criminalizam o homicídio praticado mediante tortura e a tortura
qualificada pela morte (Lei nQ9.455/97). Por outro lado, conflitos ou existem ou não existem, sendo um
manifesto contra-senso a idéia de “conflito aparente”, ambíguo termo que já sugere a inexistência de qual
quer conflito.
129 Jescheck, Tratado, cit., p. 670.
130 Jakobs, Derecho penai: parte general, trad. Joaquin Cueilo Contreras e José Luis Serrano Gonzalez de
Murillo, Madrid: Marcial Pons, 1995, p. 1049.
Direito Penal - Parte Geral
Diz-se que uma norma é especial em relação à outra, dita geral, quando, além
dos requisitos que esta prevê, contém ela outros elementos (chamados especializan-
tes), ausentes na descrição do tipo penal genérico, de tal modo que aquele que rea
liza o tipo especial realiza, necessariamente, o tipo geral, embora a recíproca não
seja verdadeira.131 Havendo, pois, essa relação de generalidade e especialidade, a
norma especial prevalecerá sobre a geral: lex specialis derogat legi generali. Existe,
uma relação lógica entre continente e conteúdo, uma vez que o tipo espe
p o r ta n to ,
cial contém o tipo geral.132 E o que ocorre entre os crimes de homicídio (norma
geral) e infanticídio (norma especial), em que este, além de conter o “matar
alguém” referido no art. 121 do CP, alude ainda às circunstâncias especiais (espe-
cializantes): “o próprio filho”, “sob a influência do estado puerperal” e “durante o
parto ou logo após” (CP, art. 123), inexistentes no art. 121. Igualmente, há especia
lidade entre tipos penais qualificados e privilegiados (norma especial) em relação
ao tipo básico (norma geral) de que derivam (v. g., entre o furto simples e o quali
ficado por emprego de chave falsa). Em geral, também as leis penais especiais des
crevem tipos especiais em face do próprio Código Penal, por isso que prevalecem
sobre este último, ordinariamente.
132 Dos Santos, Juarez Cirino. Direito Penal: p a n e geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006, p. 418.
133 Citado por Jescheck, Tratado, cit., p. 672.
!34 Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Tomo 1. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 139.
Paulo Queiroz
Por igual, haverá absorção nos assim chamados crimes progressivos, nos quais
o agente, pretendendo cometer crime mais grave, passa, num mesmo contexto da
ação, de um crime menos grave para outro mais grave, violando o mesmo jurídico
(v.g., agride a vítima objetivando matá-la o que de fato acontece), caso em que
140 Zaffaroni, Eugênio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de Direito Penal brasileiro: parte geral. 4. ed.
São Paulo: RT, 2002, p. 735; Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro:
Forense, 1994, p. 359.
141 A exata situação sistemática de tais crimes é controvertida. Para Jakobs, trata-se de uma manifestação do
princípio da especialidade na modalidade especialidade em virtude da intensidade do fato típico (Jakobs,
Ob. cit, p. 1053). No mesmo sentido: W elzel, Hans. Derecho Penal Aleman. 4. edición. Chile: Editorial
Juridica de Chile, 1993, p. 276. Porém, Regis Prado (Curso de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1. 5. ed. São
Paulo: RT, 2004, p. 232-233) e Fragoso ( Lições de Direito Penal: Parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1994.
p. 358) entendem que a questão deve ser resolvida pela subsidiariedade implícita. Já Asúa, cuja classifica
ção é adotada por Damásio (Ob. cit., p. 116), defende que o princípio da consunção é que é aplicável ao
crime complexo.
Paulo Q u e iro z
haverá o crime mais grave (homicídio e não lesão corporal), existindo relação de
meio (lesões) e fim (homicídio).
O mesmo ocorre - absorção do crime menos grave pelo mais grave - na cha
mada progressão criminosa em sentido estrito, em que o autor visa inicialmente
praticar um crime de menor gravidade e, depois de consegui-lo, resolve continuar
a agressão para consecução de um resultado mais gravoso (v. g., quer só lesionar a
vítima, mas decide matá-la a seguir).
Assim, a diferença básica entre crime progressivo e progressão criminosa é
que nesta há uma mutação no elemento subjetivo do tipo (dolo), ocasionada por
uma sucessão de impulsos volitivos diversos. Já no crime progressivo, existe unida
de de desígnios, tendo em vista que a intenção do autor é única desde o início do
iter críminis, qual seja, praticar o fato mais grave, ainda que para isso tenha que
cometer delitos de menor gravidade.
Por fim, há quem entenda, como Jakobs, que todos os possíveis conflitos de nor
mas podem ser resolvidos pelo princípio da especialidade, unicamente, uma vez que
a especialidade é uma forma de manifestação da primazia de uma lei sobre outra,142
a qual compreende, assim, quatro subdivisões: Ia) especialidade em virtude da inten
sidade do fato típico, que abrange as formas qualificadas, privilegiadas e o crime com
plexo; 2a) especialidade em virtude de concreção da consumação ou de intensidade
do resultado (hipóteses de subsidiariedade); 3a) especialidade relativa ao fato conco
mitante (hipóteses de consunção); e 43) especialidade em virtude de intervenção pré
via. É que, segundo Jakobs, o método para evitar dupla punição consiste em aplicar
somente aquela figura do delito que regula o caso concreto no contexto mais comple
to, método que se baseia no princípio hermenêutico de que, ceteris paríbus, uma
expressão concreta de conteúdo mais amplo abrange o menos amplo.143
Capítulo III
Funções do Direito Penal
(teorias da pena)
Introdução’
A discussão sobre o fins e limites da pena ou, mais amplamente, a discussão so
bre as funções do direito penal, constitui tema dos mais controvertidos; e tema polí
tico por excelência, mesmo porque o direito penal é uma forma de gestão política dos
conflitos mais agudos; nem a única nem a mais importante. Daí dizer Tobias Barreto
que quem procura o fundamento jurídico da pena deve procurar também o funda
mento jurídico da guerra.2 O Direito Penal é a forma da guerra em tempos de paz.
Há quem entenda inclusive ser impossível saber por que realmente se castiga3
ou simplesmente negue qualquer fim racional à pena, a exemplo de Eugênio Raúl
Zaffaroni, para quem a pena é um exercício de poder que está deslegitimado, mas que
existe como um dado da realidade, como um fato político, como um fato de poder.4
Algumas Constituições assinalam, expressamente, uma determinada finalida
de à pena, a exemplo da italiana e espanhola. A italiana (art. 27) dispõe que as penas
não podem consistir em tratamentos contrários ao senso de humanidade e devem
tender à redenção do condenado. E a espanhola (art. 25, § 29) prevê que as penas
privativas de liberdade estão orientadas para a reeducação e reinserção social e não
podem consistir em trabalhos forçados. A Constituição brasileira nada diz a esse
respeito explicitamente, havendo quem defenda, por isso, a plausibilidade de uma
teoria agnóstica da pena a partir dela,5 que deve consistir numa política de redução
de danos. A Lei de Execução Penal (art. 1B) prescreve que “a execução penal tem
por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar
condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.
1 Para uma análise mais detalhada, Paulo Queiroz, Funções do direico p en a i São Paulo: RT, 2008.
2 Fundamentos do direito dc punir, p. 650. In Revista dos Tribunais (727). São Paulo: RT, 1996.
3 Nesse sentido Nietzsche: “quanto ao elemento móbil do castigo, ou seja, a finalidade, num estado de civi
lização muito avençada (por exemplo da Europa), o castigo não tem uma só finalidade mas uma síntese de
finalidades: todo o passado histórico do castigo, toda a história da sua utilização para fins diversos, se cris
taliza por último em certa unidade difícil de resolver, difícil de analisar, e, sobretudo, absolutamente
impossível dc definir. É impossível dizer hoje por que se castiga: todos os conceitos que se resume dum
dado semiótico uma larga evolução, são indefiníveis; só se define o que não tem história.” Genealogia da
moral. S.Paulo: Centauro editora, 2004, p. 45-46.
4 Apud Saio dc Carvalho. Antimanuai de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 139.
5 Nesse sentido. Saio de Carvalho. Antimanuai de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
Paulo Queiroz
I. Teorias legitimadoras
1. Teorias absolutas
Absolutas são todas as teorias que vêem o direito penal como um fim em si
mesmo, independentemente de razões utilitárias ou preventivas, de sorte que a
rigor, conforme diz Roxin, a pena para nada serve,9 uma vez que sua legitimidade
decorre do só fato de haver sido cometido um delito. Por isso a pena se justifica
quia peccatum est (pune-se porque pecou).
Nesse sentido são as teorias de Kant e Hegel. Para Kant (teoria da retribuição
moral), a pena responde a uma necessidade absoluta de justiça, de um imperativo
categórico, isto é, de um imperativo moral incondicional, independentemente de
6 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Tecnos: Madrid, 1996.
7 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Tecnos: Madrid, 1996.
8 A Genealogia da Moral. S. Paulo: Centauro Editora, 2004.
9 Problemas fundamentais, cit., p. 16.
Paulo Queiroz.
considerações utilitárias, porque “as penas são, em um mundo regido por princípios
morais (por Deus), categoricamente necessárias”.10
Com efeito, “ainda que uma sociedade se dissolvesse por consenso de todos os
seus membros (v. g., se o povo que habitasse uma ilha decidisse separar-se e disper
sar-se pelo mundo), então, o último assassino deveria ser executado”.11 Daí consi
derar o princípio talional (dente por dente, olho por olho) como o paradigma da
verdadeira justiça, pois “somente a lei de talião proclamada por um tribunal pode
determinar a qualidade e a quantidade da punição”,12 já que “o mal imerecido que
tu fazes a outrem, tu fazes a ti mesmo, se tu o ultrajas, ultrajas a ti mesmo, se tu o
roubas, roubas a ti mesmo, se tu o matas, matas a ti mesmo”.13
Já para Hegel (teoria da retribuição jurídica), a pena, que não responde não a
um mandato absoluto de justiça, como em Kant,14 é uma exigência da razão, que se
explica e se justifica a partir de um processo dialético inerente à idéia e ao concei
to mesmo de direito. Porque o delito é uma violência contra o direito; a pena, uma
violência que anula aquela primeira violência; a pena é, portanto, a negação da
negação do direito, ou seja, é a sua afirmação (segundo a regra, a negação da nega
ção é a sua afirmação). Como disse Basileu Garcia, para Hegel, o direito é manifes
tação da vontade racional; a pena é a reafirmação da vontade racional sobre a von
tade irracional, servindo a pena para restaurar uma idéia, precisamente para restau
rar a razão do direito, anulando a razão do delito.15
A legitimidade da pena está assim fora de dúvida: “a pena com que se aflige o
criminoso não é apenas justa em si; justa que é, é também o ser em si da vontade
do criminoso, uma maneira da sua liberdade existir, o seu direito.”16 E em relação
ao agente do delito a pena constitui um direito seu, uma maneira de sua liberdade
existir, que o “dignifica como ser racional”, pois “está implicada na sua própria von
tade, no seu ato. Porque vem de um ser de razão, este ato implica a universalidade
que por si mesma o criminoso reconheceu e à qual se deve submeter como ao seu
próprio direito”.17
1 .1 . C r í t i c a
Tais teorias parecem de todo incompatíveis com o perfil dos Estados contem
porâneos - Estados funcionais (ou instrumentais) - que encontram limites consti
tucionais intransponíveis, em especial a dignidade da pessoa humana, razão pela
qual todo poder há de emanar do povo, que o exerce por meio de seus representan
tes eleitos ou diretamente (CF, art. l e, parágrafo único), não podendo o direito
penal responder a nenhum propósito transcendental ou metafísico - absoluto,
enfim. Além disso, tal formulação absolutiza na pena todo controle social, sendo
inconciliável com a crescente relativização dos modos de atuação dos sistemas
penais contemporâneos (penas alternativas, transação, descriminalização, despena-
lização). Por fim, ignora a própria injustiça ligada ao funcionamento ordinário do
sistema penal, até porque não raro a maior violência não consiste propriamente em
contrariar a norma, mas em preservá-la, mantendo-se a proibição de algo que
poderia ser permitido ou reprimido por outros meios mais adequados.
2.1. Introdução
2.2.1. Crítica
19 Feuerbach, Tratado de derecho penal, trad. E. R. Zaffaroni, Buenos Aires: Ed. Hammurabi, 1989, §§ 13 e s.
20 Problemas fundamentais, cit., p. 23.
21 Roxin, Problemas fundamentais, cit., p. 23.
22 introducción a las bases dei derecho penal, Barcelona: Bosch, 1976, p. 67.
Direito Penal - Parte Geral
2.3.1. Crítica
0u como diz Baratta, a teoria sistêmica conduz a uma concepção preventiva inte-
gradora em que o centro de gravidade de norma jurídica penal passa da subjetivi
dade do indivíduo e do mundo axiológico ao sistema e às expectativas institucio
nais, afastando qualquer reflexão crítica alheia à funcionalidade do castigo para o
sistema.35 Nesse modelo tecnocrático o direito penal já não resolve conflitos sociais
(o problema do crime), senão que os integra no sistema, intervindo onde e quando
aqueles se exteriorizam (sintomatologicamente), não onde e quando são gerados
(edologicamente) .36
Por fim, para a teoria da prev en ção positiva, é determ in ado nível de visibili
dade social da desviação, de alarma social, e não as cifras ocultas da criminalidade,
que provoca uma resposta penal baseada na teoria da prevenção positiva; esta, por
conseguinte, legitima o princípio da seletividade do sistema e dos processos de imu
nização da resposta penal, que dependem estreitamente do grau de visibilidade
social dos conflitos de desviação existentes numa sociedade.37
Quanto ao direito penal do inimigo, que parece colocar o homem numa con
dição inferior à de plantas e animais, os quais têm proteção legal,38 diferentemen
te deste, que passam a tratados como não pessoas e, pois, não sujeitos de direito,
mas simples objeto do direito, razão assiste a Munoz Conde quando assinala que “os
direitos e garantias fundamentais próprias do Estado de Direito, sobretudo as de
caráter penal material (princípios de legalidade, intervenção mínima e culpabilida
de) e processual penal (direito à presunção de inocência, à tutela jurisdicional, a
não depor contra si mesmo etc.), são pressupostos irrenunciáveis da própria essên
cia do Estado de Direito. Se se admite sua derrogação, ainda que seja em casos pon
tuais extremos e mui graves, tem-se que admitir também o desmantelamento do
Estado de Direito, cujo Ordenamento jurídico se converte em um ordenamento
puramente tecnocrático o funcional, sem nenhuma referência a um sistema de
valores, ou, o que é pior, referido a qualquer sistema, ainda que seja injusto, sem
pre que seus defensores tenham o poder ou a força suficiente para impô-lo. O
Direito assim entendido se converte em um puro Direito de Estado, em que o direi
to se submete aos interesses que em cada momento determine o Estado ou as for
ças que controlem ou monopolizem seu poder. O Direito é então, simplesmente, o
que em cada momento convém ao Estado, que é, ao mesmo tempo, o que prejudi
ca e faz o maior dano possível a seus inimigos”.39
Parece também evidente que direito p en a l d o cidadão é um pleonasmo e
direito p en a l d o inim igo uma contradição em seus termos.40
Para essa corrente, a finalidade do direito penal é prevenir novos crimes, res-
socializando os seus autores, reeducando-os etc.; ou seja, o sentido do castigo é evi
tar a reincidência, razão pela qual a prevenção não se dirige a todos, mas a algumas
pessoas em particular, os criminosos. O direito penal pretende em última análise a
conversão do delinqüente num homem de bem.41
Diversas correntes de pensamento advogaram ou ainda advogam essa forma
de justificação do direito de punir: o correcionalismo espanhol (Dorado Montero,
Concepción Arenal); o positivismo italiano (Lombroso, Ferri, Garofalo); a chama
da moderna escola alemã, de Von Liszt, e mais recentemente o movimento de defe
sa social, de Filippo Gramatica, Maic Ancel e outros.
Em sua versão mais radical, a teoria da prevenção especial pretende a substi
tuição da justiça penal por uma espécie medicina social, a fim de promover um
saneamento social, seja pela aplicação de medidas terapêuticas, seja pela segregação
por tempo indeterminado, seja pela submissão a um tratamento ressocializador
apto a inibir as tendências criminosas.
Representante dessa tendência foi Dorado Montero, com seu direito protetor
dos criminosos, que defendia, como missão da administração da justiça penal, o
“saneamento social, uma função de higienização e profilaxia”, razão pela qual os
atuais juizes, em vez de julgarem conflitos de interesse, passariam a ser novos médi
cos sociais, visando promover e dirigir o tratamento mais adequado à situação de
cada delinqüente: “O juiz severo, adusto e temível”, profetizou Dorado Montero,
“deve desaparecer para passar o posto ao médico carinhoso e entendido”.42 O pro
cesso penal deveria, por isso, ceder lugar à administração unilateral de tais interes
ses pelo Estado, pois, para a implantação desse novo sistema, cumpria “suprimir-se
todo o aparato de juizes, magistrados, tribunais hierárquicos, ministério público,
advogados, defensores etc.”,43 o que implicaria necessariamente abolir ou relativi-
zar as garantias do direito e processo penal, uma vez que constituem um obstáculo
a esse fim superior.
Outro postulado daí resultante é a indeterminação da pena ou das medidas de
segurança enquanto durasse a necessidade de tratamento. A Ferri, autor de um
ambicioso sistema de substitutivos penais, pareceu que “a experiência secular tem
demonstrado o absurdo teórico e a deficiência prática da pena em medida fixa, que
é conseqüência lógica do conceito de retribuição da culpa, mediante um castigo
proporcionado”,44 motivo pelo qual a defesa social contra a criminalidade deveria
realizar-se “ou com o seqüestro indefinido dos delinqüentes não readaptáveis à vida
livre ou com a reeducação para a vida social dos delinqüentes readaptáveis”.45
Mas coube especialmente a Franz von Liszt universalizar a teoria da preven
ção especial. Para Von Liszt, fim da pena ou das medidas de segurança era preve
nir eficazmente a prática de futuros delitos, conforme as peculiaridades de cada
infrator. Assim, missão da pena para os delinqüentes ocasionais, que não precisam
de correção, é a advertência (função de advertência ou de intimidação); para os que
precisam de correção, é ressocializá-los com a educação durante a execução penal
(função ressocializadora); para o delinqüente incorrigível ou habitual, fim da pena
é torná-lo inócuo por tempo indeterminado (função de inocuização), enquanto
dure a necessidade inocuizadora. Para Von Liszt, função da pena e do direito penal
era, portanto, a proteção de bens jurídicos por meio da incidência da pena sobre a
personalidade do delinqüente com a finalidade de evitar futuros delitos.46
2.4.1. Crítica
3.1. Introdução
50 Para Roxin, as teorias monistas, quer atendam à culpa, quer à prevenção geral, quer à especial, são neces
sariamente falsas, porque, quando se trata da relação do particular com a comunidade e com o Estado, a
realização estrita de um princípio ordenador tem forçosamente como conseqüência a arbitrariedade e a
falta de verdade ( Problemas fundamentais, cit., p. 43).
51 Como observa García-Pablos, metodologicamente, quem propugna por essa solução - ou tese semelhante
- procura ressaltar os graves inconvenientes dos monismos e da denominada pureza de modelos (Derccho
penal, cit., p. 105).
52 Tratado, cit., p. 6 6 .
53 Baumann, Derecho penal, cit.
54 Bacigalupo, Derecho penal: parte general, Buenos Aires: Ed. Hammurabi, 1987, p. 53.
55 jescheck, Tratado, cit., p. 67.
Direito Penal - Parte Geral
56 Sobre o assunto, ver Gamil Fõppel, A função da pena na obra de Claus Roxin, Rio de Janeiro: Forense,
2003.
57 Problemas fundamentais , cit., p. 33 e 45.
58 Claus Roxin, Problemas fundamentais , cit., p. 47.
59 Claus Roxin, Problemas fundamentais, cit., p. 45. No mesmo sentido. Figueiredo Dias: "Desta concepção
básica resulta como conseqüência que não se justifica, nem é conveniente, nem eficaz, assinalar à pena ou
só finalidades de prevenção geral, ou só de prevenção especial. Umas e outras devem coexistir e com bi
nar-se da melhor forma e até o limiie possíveis, porque umas e outras se encontram num propósito comum
de prevenir a prática de crimes futuros” ( Questões fundamentais do direito penal revisitadas , São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, p. 129).
Paulo Queiroz
1. Introdução
circunstância de o direito penal criar mais problemas do que resolve, sendo crimi-
nógeno, arbitrariamente seletivo e causador de sofrimentos inúteis.
Além disso, o direito penal, a pretexto de cumprir finalidades declaradas, de
proteção de bens jurídicos, prevenção geral e especial etc., jamais comprovadas ou
passíveis de comprovação, em verdade cumpriria funções latentes, não declaradas,
que o deslegitimam e, pois, autorizam a sua abolição.
A seguir, alguns dos argumentos mais correntes dessa perspectiva deslegitima-
dora, comuns ao abolicionismo e ao minimalismo radical.63
63 Emprega-se a expressão radicai para distinguir do chamado minimalismo moderado, defendido, dentre
outros, por Ferrajoli, García-Pablos, Larrauri, Hassemer e Naucke.
64 Baratta, Criminologia crítica, cit., p. 109.
65 Expressivas, no particular, são as investigações de Fritz Sack: “1) Os mecanismos de distribuição da quali
dade negativa ‘criminalidade’ são um produto de ajustes sociais como os que regulam a distribuição dos
bens positivos em uma sociedade; 2) A distribuição do bem negativo ‘criminalidade’ acontece da mesma
maneira em que ocorre a distribuição de bens positivos. Para a análise dela se utilizam conceitos que geral
mente têm dado bom resultado em sociologia, como o scatus, modelos de recrutamento, carreira, critérios
de atribuição etc.; 3) A criminalidade, e de maneira absolutamente geral o comportamento desviado, deve
ser compreendida como um processo no qual os partners, por uma parte aquele que se comporta de modo
desviado e, por outra, quem define o comportamento como desviado, são postos um frente ao outro; 4)
Neste sentido, comportamento desviado é aquele que outros definem como desviado. Não é uma qualida
de ou uma característica que concerne ao comportamento como tal, senão que é atribuída ao comporta
m ento” (cf. Baratta, Criminologia crítica, cit., p. 108-109).
66 Hulsman et al., Penas perdidas: o sistema penal em questão, trad. Maria Lúcia Karam, Niterói: Ed. Luam,
1993, p. 64.
67 Los limites dei dolor, México: Fondo de Cultura Econômica, 1984, p. 101.
Paulo Queiroz
fato, ainda que o próprio Deus ditasse as leis, ainda que os juizes fossem santos
ainda que promotores de justiça fossem super-homens, ainda que delegados e poli
ciais formassem um exército de querubins, ainda assim o direito, e o direito penal
em particular, seria um instrumento de desigualdade, porque a igualdade formal ou
jurídica não anula a desigualdade material subjacente.74
Portanto, o sistema penal atua sempre seletivamente, e seleciona conforme
estereótipos fabricados pelos meios massivos de comunicação;75 cria e reforça as
desigualdades sociais;76 é, contrariamente a toda aparência, um sistema injusto por
excelência.77
Argumenta-se que o direito penal constitui uma resposta aos sintomas (ou
conseqüências) do crime, e não às suas causas. Logo, pouco ou nada se pode espe
rar de semelhante intervenção, pois mais leis, mais policiais, mais juizes, mais pri
sões, significa mais presos, mas não necessariamente menos delitos (Jeffery). De
acordo com esse enfoque, a eficácia preventiva do direito penal, se é que existe, é
bastante limitada, uma vez que intervém demasiadamente tarde no conflito social:
não quando este se produz, mas quando e onde se manifesta; e intervém mal, já que
não traduz uma resposta etiológica, adequada às causas do problema, mas mera
mente sintomatológica.78 O sistema penal tecniciza conflitos humanos e, ao fazê-
lo, os despolitiza, os descontextualiza e os desumaniza.
outro, a proibição acaba por estimular uma série de outros males e crimes: contra
ban do de armas, extermínio de grupos rivais, freqüentes confrontos violentos com
a Polícia, lavagem de capitais e evasão de divisas, sonegação tributária, corrupção
de agentes da segurança pública, criação de preços artificiais da droga, falta de con
trole sobre a qualidade da droga consumida etc. Apesar disso, drogas ilícitas são
facilmente encontradas em qualquer Estado da Federação. Assim, o direito penal
não evita a criminalidade; ao contrário, fomenta-a, tomando-se criminógeno.
79 Como exemplo das várias reações possíveis em dada situação conflitiva: punitiva (reação penal típica),
compensatória, terapêutica (curativa) e conciliadora, Hulsman figura hipótese bastante ilustrativa: cinco
estudantes moram juntos e, em determinado momento, um deles sc arremessa contra a televisão e a dani
fica, quebrando também alguns pratos. Como reagem seus companheiros? É evidente, responde, que ne
nhum deles vai ficar contente. Mas cada um, analisando o acontecido à sua maneira, poderá adotar uma
atitude diferente. O estudante número 2, furioso, dirá que não quer morar com o primeiro e fala em expul-
sá-lo da casa; o terceiro declarará: “o que se tem que fazer é comprar uma nova televisão e outros pratos
e ele que pague.” O quarto estudante, traumatizado com o que acabou de presenciar, grita: "ele está evi
dentemente doente; é preciso procurar um médico, levá-lo a um psiquiatra etc.” O último ainda sussurra:
“a gente achava que se entendia bem, mas alguma coisa deve estar errada em nossa comunidade, para per
mitir um gesto como esse. Vamos juntos fazer um exame de consciência” (Penas perdidas , cit., p. 100).
80 Sobre o assunto, Leonardo Sica. Justiça Restaurativa. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2007.
81 Penas perdidas , cit., p. 83-84.
82 Penas perdidas, cit.
83 Limites dei dolor, cit., p. 126.
Paulo Queiroz
2. Conclusão
93 A pena, como assinala García-Pablos, que não convence, só atemoriza, reflete mais a impotência, o fracas
so e a ausência de soluções que a convicção e a energia necessárias para abordar os problemas sociais. Por
isso, uma verdadeira e eficaz prevenção há de ser programada a médio e longo prazo, e não deve ser enten
dida em sua estrita e negativa acepção intimidatória, quase policial, senão positivamente: como prevenção
social e comunitária (El principio de intervención mínima, cit., www.direitocriminal.com.br, l°-6~200l)-
94 Baratta, La política criminal..., Revista, cit.
D ireito Penal - Parte Geral
Capítulo IV
A Lei Penal no Tempo
1.1. Introdução
de sorte que, nas hipóteses em que a retroatividade da lei for mais benéfica, não •
haverá ofensa alguma à pretensão garantista que o princípio encerra.
Ao adotar os princípios da anterioridade e da irretroatividade das leis penais,
objetiva-se, ademais, evitar que os seus destinatários sejam surpreendidos por dis- ,
posições que incriminem fatos novos ou que os agravem, de modo que tais garan
tias constituem também uma exigência infranqueável de segurança jurídica. Por
fim, se a finalidade principal do direito penal é a prevenção subsidiária de delitos,
segue-se que tais infrações devem ser conhecidas por seus destinatários já ao tempo
do seu cometimento, e não depois, haja vista que só assim podem as normas jurídi
co-penais advertir e prevenir.2
Sempre que a lei definir fatos novos como infração penal (novatio legis incri
minadora), passando a criminalizar comportamentos que até então eram jurídico-
penalmente irrelevantes, sua aplicação se limitará às situações consumadas a partir !
de sua entrada em vigor, não antes. Assim, por exemplo, a Lei de Tortura (Lei ne .
9.455/97) e a Lei de Crimes Ambientais (Lei n9 9.605/98), que elevaram à categoria
de crime diversas condutas que não constituíam infração penal. Nesses casos tais
disposições (neocriminalizadoras) não poderão alcançar as pessoas que, anterior- ;
mente à sua vigência, tenham incorrido na prática de tais infrações. Sua aplicação
dar-se-á, em conseqüência, exclusivamente em relação aos fatos ocorridos a partir
da sua entrada em vigor.
Por igual, não retroagirá a norma penal que de qualquer modo der tratamen
to mais severo a condutas já punidas pelo direito penal, seja criminalizando o que
antes constituía simples contravenção, seja de qualquer modo conferindo discipli
na mais gravosa, hipótese em que se limitará a reger unicamente as infrações con
sumadas a partir de sua efetiva vigência. Exemplo disso é a Lei de Crimes Hedion
dos (Lei ns 8.072/90), que, elevando determinados crimes à categoria de hedion
dos (latrocínio, extorsão mediante seqüestro etc.), conferiu-lhes tratamento bem
mais severo, como, por exemplo, aumentando as penas cominadas, vedando a pro
gressão de regime, negando a possibilidade da concessão de graça, anistia e indul- \
Como escreve García-Pablos, seja ou não seja inerente à própria estrutura da lei, o certo é que a proibição
de retroatividade, de algum modo, vem reclamada pelos conceitos de delito, culpabilidade e pena e por
poderosas exigências político-criminais (Derecho penal, cit., p. 247).
D ireito Penal - Parte G eral
Convém saber ainda se semelhante princípio só vale para as leis penais mais
severas ou, se, ao contrário, seria também aplicável ao precedente judicial que con
fira às normas interpretação desfavorável ao réu.
O entendimento francamente majoritário - defendido, entre outros, por Roxin
- é o de que a proibição de retroatividade se refere à lei, exclusivamente. Para
Roxin, com efeito, “se o Tribunal interpreta uma norma de modo mais desfavorá
vel para o acusado que o havia feito a jurisprudência anterior, este tem de suportá-
lo, pois, conforme o seu sentido, a nova interpretação não é uma punição ou agra-
vação retroativa, mas a realização de uma vontade da lei, que já existia desde sem
pre e que somente agora foi corretamente r e c o n h e c id a ”.3
Já Odone Sanguiné sustenta com razão que a posição mais correta consiste em
solucionar essa questão da perspectiva constitucional, estendendo a proibição de
retroatividade às alterações jurisprudenciais desfavoráveis ao réu, postura que se
ampara, por um lado, na idéia de segurança jurídica como fundamento do princí
pio da irretroatividade e, ademais, na proposta de revisão do vetusto significado da
separação dos poderes; por outro, na harmonização dessa doutrina com o princípio
de determinação a fim de substituir a posição tradicional por uma visão superado-
ra da pretendida distinção absoluta entre a função da lei e a função da jurisprudên
cia penal.4 E que a lei e sua interpretação - escreve Sanguiné - se encontram em
um vínculo necessário de complementação, de modo que a realidade jurídica do
princípio da legalidade só será atendida quando, para determinado tipo penal, vigo
re a mesma interpretação que lhe era dada à época do cometimento do fato e que
corresponda à verdadeira pretensão normativa.5
Pela mesma razão, alterações da jurisprudência que favoreçam o réu devem
retroagir, de sorte a admitir a revisão criminal inclusive. Assim, por exemplo, a
recente decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalida
de da Lei ne 8.072/90, quanto à vedação de progressão de regime para os crimes
hediondos e afins.
3. Hipóteses de retroatividade
Se houver dúvida sobre qual é a lei mais favorável para o infrator, quer se con
siderando a norma abstrata, quer concretamente, nada impede, em que pese as opi
niões em sentido contrário, que se consulte o interesse do infrator, em cujo favor
milita a garantia constitucional. Aliás o Código Penal espanhol (1996) assim dispõe
exatamente: no caso de dúvida sobre a determinação da lei mais favorável, será
ouvido o réu (art. 2°, 2).
Finalmente, a definição da autoridade judiciária competente para decidir
sobre a lei mais favorável dependerá do andamento do processo: se estiver na fase
de conhecimento, competente será o juiz de primeiro grau; se em grau de recurso,
será competente o respectivo tribunal; se o processo já se encontrar em fase de exe
cução, será competente o juiz da execução penal, conforme dispõe a Súmula 611 do
STF: “transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execu
ções a aplicação da lei mais benigna.” Mas nem sempre a definição da autoridade
judiciária competente será tão simples, podendo haver necessidade de submeter a
questão à apreciação do tribunal se a matéria transcender a competência dos juizes
de primeiro grau, inclusive do juiz da execução.
No caso de sucessão de leis, pode ocorrer de a nova lei ser em parte desfavo
rável e em parte favorável ao réu, situação que, embora rara, tem como exemplo
recente a revogação do artigo 12, c/c art. 18, I, da Lei n5 6.368/76 pelo art. 33, c/c
o art. 4 0 ,1, da Lei ne 11.343/2006, que tratam do tráfico ilícito de droga para o exte
rior. Com efeito, apesar de a nova lei ter aumentado a pena cominada ao crime, de
3 a 12 anos de reclusão, para 5 a 15 anos de reclusão, e, portanto, é mais severa no
particular, reduziu a causa de aumento de pena relativa ao tráfico para o exterior,
que era de um terço a dois terços, para um sexto a dois terços. Nessa hipótese dis-
cute-se então se seria possível que o réu que praticou crime na vigência da lei
6.368/76 (revogada) poderia ficar sujeito àquela pena inicial (3 a 12 anos) com o
novo aumento (um sexto a dois terços), por lhe ser mais favorável, havendo posi
cionamento da doutrina e jurisprudência em ambos os sentidos, isto é, contrário e
a favor da combinação.6 Aqueles que se posicionam contrariamente alegam em
geral que a combinação implicaria criação de uma terceira lei (lex tertia) e o juiz
estaria assim usurpando função própria do legislador em afronta ao princípio da
legalidade e divisão de poderes.
Pensamos que a questão está mal colocada, porque rigorosamente não há em
tal caso combinação alguma, mas mera retroatividade parcial da lei. E que a nova
6 Admitindo a combinação, Frederico Marques, Francisco de Assis Toledo, Damásio de Jesus, Cezar Roberto
Bitencourt, Juarez Cirino dos Santos, Andrei Schmidt, entre outros. Contrariamente, Nelson Hungria,
Aníbal Bruno, Heleno Cláudio Fragoso etc.
lei sempre pode ser total ou parcialmente favorável ao réu, podendo inclusive ser
benéfica na parte penal e prejudicial na parte processual ou vice-versa.
Pois bem, se a lei posterior for inteiramente favorável ao réu (v. g., diminui os
limites mínimos e máximos de pena), é evidente que retroagirá de forma integral;
mas se o for em parte (v. g., suprime a pena mínima cominada, mas aumenta o limi
te máximo de pena), então o caso não é de combinação, mas de retroatividade par
cial da nova lei. Parece evidente assim que, se a lei deve retroagir quando for inte
gralmente favorável, tal deverá ocorrer, com maior razão, quando o for apenas em
parte, em respeito ao princípio constitucional da retroatividade da lex mitior,
pouco importando o quanto de beneficio encerre; afinal, se a lei deve retroagir no
seu todo quando mais branda, o mesmo há de ocorrer quando somente o for em
parte. Ademais, o Código (art. 2®, parágrafo único) prevê a retroatividade quando a
lei posterior favorecer o agente d e qualquer m odo, isto é, incondicionalmente,
sempre que a nova lei acarretar alguma espécie de atenuação do castigo.
Não existindo, portanto, combinação de lei, mas mera retroatividade parcial
da nova lei, é impróprio falar de criação de uma nova lei, pois o que ocorre é uma
simples aplicação simultânea de leis igualmente válidas. E não admiti-la, a pretex
to de que tal importaria criar lex tertia, é negar vigência ao princípio constitucio
nal da retroatividade da lei mais favorável.7
Finalmente, aqueles que se opõem ao que chamam de combinação de leis par
tem de uma perspectiva hermenêutica há muito superada (vide capítulo sobre o con
ceito de direito; o direito não existe e também interpretação/aplicação do direito).
7 No sentido do texto, Ney Moura Teles assinala que, se a Constituição Federal manda a lei penal mais bené
fica retroagir sempre, o que se pode afirmar é que apenas o dispositivo benéfico retroage, irretroativo o
mais severo, uma vez que a pretensão da lei maior é que retroaja a norma mais benéfica, e não o texto legal
integral, a não ser que fosse ele integralmente mais favorável. Se num texto há vários dispositivos, uns
benéficos, outros prejudiciais, é claro que só aqueles retroagem. Ao combinarem os dispositivos de duas
leis, o juiz não cria uma terceira lei, mas apenas obedece ao preceito constitucional, maior, que não manda
a lei retroagir por inteiro, mas determina a retroatividade de todo e qualquer dispositivo legal que vier
favorecer o réu. Direito Penal. Parte Geral. S. Paulo: Atlas, 2006.
D ireito Penal - Parte Geral
A doutrina considera, em geral, que a nova lei processual penal deve ser apli
cada ao processo desde logo (CPP, art. 2e), podendo incidir sobre crime cometido
anteriormente à vigência, ainda quando mais severa. Assim, por exemplo, se uma
determinada lei passasse a considerar como hediondo crime que não o era até
então, aumentando-lhe a pena cominada, e, além diso, proibisse a liberdade provi
sória, deveria ser aplicada imediatamente quanto à parte processual: proibição de
liberdade provisória, embora o mesmo não pudesse ocorrer quanto à parte penal:
equiparação à crime hediondo com aumento de pena.
Temos, porém, que a irretroativade da lei penal deve também compreender,
pelas mesmas razões, a lei processual penal, apesar do que dispõe o art. 2Qdo Código
de Processo Penal, que determina a aplicação imediata da norma, uma vez que deve
ser (re)interpretado à luz da Constituição Federal. Com efeito, sempre que a nova lei
processual for prejudicial ao réu, porque suprime ou relativiza garantias - v. g., adota
critérios menos rígidos para a decretação de prisões cautelares, veda a liberdade pro
visória, restringe a participação do advogado etc. - , limitar-se-á a reger as infrações
penais consumadas após a sua entrada em vigor; afinal, também aqui, a lei deve cum
prir sua função de garantia, de sorte que por norma processual menos benéfica se há
de entender toda disposição normativa que importe em diminuição de garantias, e
por mais benéfica, a que implique o contrário: aumento de garantias processuais.10
Contrariamente, sempre que a lei processual dispuser de modo mais favorável
ao réu - v. g., passa a admitir a fiança, amplia a participação do advogado, aumen
ta os prazos de defesa, prevê novos recursos etc. terá aplicação retroativa.
Tratando-se de normas meramente procedimentais, que não impliquem
aumento ou diminuição de garantias - como ocorre com regras que modificam a
10 No sentido do texto, Aury Lopes Júnior. Introdução crítica ao Processo Penal. 4. edição. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006.‘Também assim, Paulo César Busato e Sandro Monte Huapaya. Introdução ao Dirito
Penal. Fundamentos para um Sistema Penal Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
D ireito P en al - P arte G eral
11 Não é exato dizer, portanto, com Frederico Marques: “Nada mais condenável que esse alargamento da lei
penal mais branda, porquanto invade os domínios do direito processual, em que vigoram diretrizes diver
sas no tocante às normas intertemporais. Direito Penal é Direito Penal, e processo é processo. Um disci
plina a relação material consubstanciada no jus puniendi, e outro, a relação instrumental que se configu
ra no actum trium personarum do juízo, seja civil ou penal. E inaceitável assim, como lembra Antón
Oneca, ‘a aplicação das regras do Direito Penal intertemporal ao processo penal’. Se a lei penal não é lei
processual, e a lei processual não é lei penal, as regras sobre a ação penal e as condições de procedibilida-
de (queixa, representação e requisição ministerial) não se incluem no cânon constitucional do art. 58, XL,
que manda retroagir, em benefício do réu, tão-só a lei penaV ( Tratado, v. 1, p. 258). Na linha adotada por
Frederico Marques, pensam (ainda) Edilson Bonfim e Fernando Capez, Direito penal: parte geral, São
Paulo: Saraiva, 2004, p. 186, para os quais a lei processual não se submete ao princípio da retroatividade
em benefício do agente, tendo aplicação imediata, nos termos do art. 2a do CPP, ainda que o crim e lhe seja
anterior e a situação do acusado agravada. E Tourinho Filho, que conclui: “entrando em vigor nova lei
processual penal hoje, ela terá aplicação mesmo aos processos que estejam em curso, pouco importando
sua severidade ou brandura”, Processo penalySão Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 114.
Introdução ao direito processual penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 99.
1
Paulo Queiroz
■*r% •
favorável ao réu, por implicar aumento de garantia, pois a redação original do art.
366 previa o prosseguimento do feito no caso de citação por edital e revelia, a parte
alusiva ã suspensão do prazo de prescrição lhe era prejudicial, pois antes a prescri
ção corria normalmente. Num tal caso, a combinação de normas é impossível, uma ^
vez que a suspensão do prazo prescricional pressupõe, logicamente, a suspensão do A
processo. Daí ter decidido o STF, corretamente, que a reforma introduzida pela Lei
na 9.271/96 era irretroativa, pois no todo era nociva aos interesses do acusado.
O mesmo se deve dizer quanto à Lei de Execução Penal, porque também aqui
se trata de preservar o caráter garantidor do princípio da legalidade em seus vários ’
momentos de concretização (cominação, investigação/aplicação e execução da
pena), de modo que sempre que as modificações forem prejudiciais ao sentenciado,
não poderão retroagir, só incidindo, em conseqüência, sobre os crimes consumados -
após a sua entrada em vigor. Exemplo disso foi dado pela Lei n9 10.792/2003, que,.
alterando a Lei de Execução Penal (Lei n9 7.210/84), introduziu (art. 52) o regime . -
disciplinar diferenciado,13 que consiste no cumprimento da pena em condições '*
extremamente penosas para o preso, regime a ser imposto exclusivamente àqueles
que cometeram delito após a sua vigência, e não antes, sob pena de violação ao /
princípio da legalidade da pena.
Aliás, aqui, mais do que no processo de conhecimento, importa respeitar o alu- 1'
dido princípio, pois é na execução penal que se verifica, ordinariamente, o maior
déficit de proteção jurídica (menor grau de garantismo), tal é a relativização ou ine- -
xistência mesma das garantias (contraditório, defesa técnica por advogado etc.) que
o informam. E onde há maior vulnerabilidade, maiores devem ser os níveis de tute-
la legal (maior grau de garantismo), conforme o princípio da proporcionalidade.
________ -j
13 Dispõe o referido art. 52 que “a prática de fato previstocomo crime dolosoconstitui falta grave e, quan- ;
do ocasione subversão da ordem ou disciplina intemas, sujeita o presoprovisório, ou condenado, ao regi'
me diferenciado”. Nesse caso, o preso será recolhido “em cela individual” (inciso II), com “direito à saída
da cela por duas horas diárias para banho de sol” (inciso IV), de modo que só poderá ficar isolado por vinte
e duas horas diárias.
14 Princípios básicos, cit., p. 142.
D ireito Penal - Parte G eral
15 No sentido do texto, Gamil Fõppel. O principio da legalidade com um ideal radicalmente garantista, in
Novos desafios do direito pena! no terceiro milênio. Rio: Lumen Juris, 2008. E Alberto Silva Franco.
Código Penal e sua interpretação judicial. S. Paulo: RT, 2001.
Paulo Queiroz
não há motivo para que os juizes não possam desde logo aplicá-la, já que instituída,
essencialmente, para proteção do indivíduo, sempre que dispuser em seu favor.
Finalmente, também se discute a retroatividade das leis inconstitucionais.16
Sobre o tempo do crime, há três teorias: a) teoria da ação, que considera pra
ticado o crime no momento da ação ou omissão; b) teoria do resultado, que consi
dera como tempo do crime o momento do resultado; e c) teoria mista ou da ubiqüi
dade, que considera como tempo do crime tanto o momento da ação quanto o do
resultado, indiferentemente.
O legislador penal brasileiro adotou a primeira teoria, a teoria da ação. Com
efeito, o art. 4Qdo Código dispõe que: “considera-se praticado o crime no momen
to da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.” Por conse
guinte, no homicídio (CP, art. 121), por exemplo, tempo do crime é o momento em
que o agente desfere os tiros de revólver (momento da ação), ainda que o resulta
do (a morte) só venha a consumar-se meses após. Semelhantemente, se o agente, ao
tempo do disparo, era menor de dezoito anos, será considerado penalmente inim-
putável, ainda que ao tempo da morte da vítima já houvesse atingido a maioridade
penal. O Código, porém, ao tratar da prescrição (CP, art. 111), transigiu com a teo
ria do resultado, estabelecendo que o termo inicial da prescrição é, em princípio, a
data da consumação do crime.
Tratando-se de crimes permanentes, cuja consumação se protrai no tempo en
quanto perdura a ofensa ao bem jurídico (v. g., extorsão mediante seqüestro), o tempo
do crime se dilatará pelo período de permanência. Assim, se o autor, menor, durante
a fase de execução do crime vier a atingir a maioridade, responderá segundo o Código
Penal e não segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei ne 8.069/90).
Quanto aos crimes continuados, que em verdade são vários crimes (concurso
material de crimes), mas tratados como se fosse crime único (tratamento próprio
do concurso formal), atendendo à conveniência político-criminal (CP, art. 71), o
Supremo Tribunal Federal, acompanhando a doutrina majoritária, editou a súmu
la 711, com o seguinte teor: “a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado
ou ao permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da
permanência”, razão pela qual passaram a ter tratamento idêntico ao dos crimes
permanentes. Assim, se o agente comete crime continuado durante meses seguidos,
a continuação delitiva será regida, no caso de sucessão de normas, não pela lei que
vigora à época do primeiro crime, mas do último, isto é, da cessação da continui
dade, ainda que seja a mais gravosa.
17 Comentários, cit., p. 128. No mesmo sentido, Frederico Marques e Damásio de Jesus, entre outros.
Não bastasse isso, a súmula de certo modo acaba por emprestar ao crime con
tinuado tratamento legal mais severo do que aquele conferido ao concurso mate
rial de crimes. Sim, porque, no caso de concurso material, cada delito é regido pela
lei vigente à época de sua consumação, não podendo ser alcançado por novatio legis
in pejus, ao passo que agora, na continuação, crimes anteriores à nova lei seriam
por ela atingidos.
Também por isso, a súmula é inconstitucional por violar o princípio da irre
troatividade da lei, pois, por meio de um novo conceito de crime continuado, per
mite a incidência da nova lei sobre fatos ocorridos antes da sua vigência, como
reconhece aliás Cezar Bitencourt.18
Quanto à prescrição, o problema é diverso, pois, no caso de concurso de crimes,
continuação delitiva inclusive, cada crime prescreverá isoladamente, como se con
curso não existisse, conforme dispõem o art. 119 do Código e Súmula 497 do STF.
18 Tratado d e direito penal. Parte geral. S. Paulo: Saraiva, 2007, 11. ed., p. 173-174.
D ireito Penal - Parte Geral
Capítulo V
A Lei Penal no Espaço
Cortesia
fasmmhjuris\éãitom
I. Introdução
2. Conceito de território
3. Lugar do crime
4. Extraterritorialidade
TEORIA DO DELITO
D ireito P en al - P arte G eral
Capítulo I
Introdução Geral
A teoria do delito (ou teoria do crime ou teoria do fato punível) ocupa-se dos
pressupostos gerais - formais e materiais - que devem concorrer para que determi
nado comportamento humano possa ensejar a aplicação de uma sanção penal (pena
ou medida de segurança). Estudá-la é estudar as categorias sistemáticas tipicidade,
antijuridicidade e culpabilidade, bem assim os conceitos e institutos que lhes são
inerentes. A teoria do delito cuida, portanto, dos pressupostos jurídico-penais da
punibilidade de uma conduta; ocupa-se, assim, da interpretação, sistematização e
crítica dos institutos jurídico-penais.
Mas é importante perceber que, ao recorrer à teoria do delito e seus concei
tos, o juiz não se limita a constatar um crime e aplicar-lhe uma pena, mas a cons
truí-lo socialmente, afinal o direito, e, pois, o crime, não preexiste à interpretação,
mas é dela resultado, razão pela qual a interpretação da teoria do crime não é um
modo de constatar ou desvelar um direito ou um crime preexistente, mas a forma
mesma de produção do direito e do crime.1
Como mostra a leitura dos diversos tratados, manuais e cursos de direito
penal, trata-se de sua parte mais exaustivamente estudada e, por conseqüência, ela
borada. Mas esse estudo, pelo seu caráter generalizante, foi tradicionalmente mar
cado por excessiva abstração, a ponto de se desvencilhar, quase por completo, da
realidade social a que deveria destinar-se e regular, como se a dogmática penal
constituísse um fim em si mesmo.2 Tal excesso teria ainda como efeito colateral o
franco desprestígio de tema sumamente importante: a teoria da pena. Ainda hoje a
doutrina lhe dá tratamento claramente marginal.
No entanto, é preciso não perder de vista que a teoria do delito tem um papel
instrumental e auxiliar, pois existe e se destina a resolver conflitos de interesses,
tendo declarada vocação pragmática. Por conseguinte, deve estar sempre orienta-
da para a solução de problemas sociais reais, pois o direito penal não é uma “ciên
cia de professores”, mas uma “ciência de casos” (Mir Puig). Além disso, o sistema,
como assinala García-Pablos, não é um estado final de elaboração dogmática, mas
um momento desta, não um fim, mas um meio, flexível, provisório, aberto ao pro
blema, que não se justifica por si mesmo, nem por sua coerência ou rigor lógico,
mas por seus resultados e funções.3 Determinante há de ser sempre a solução da
questão de fato,4 portanto.
Significa dizer, enfim, que a interpretação/aplicação dos institutos jurídico-
penais, isto é, interpretação das categorias dogmáticas (tipicidade, antijuridicidade,
culpabilidade), há de ser feita criticamente, com vistas à justa solução do caso con
creto, à luz dos fundamentos, objetivos e princípios próprios do modelo constitu
cional de direito. Aliás, seria ingênuo supor que a técnica jurídica' fosse bastante
para se decidir justamente; sim, porque a formação técnico-jurídica só pode ofere
cer, na melhor das hipóteses, isso: uma decisão técnica. Mas uma decisão técnica
não é uma decisão justa ou ao menos não o é necessariamente: em particular aque
les que acompanham mais de perto as decisões do Tribunal do Júri sabem que os
jurados, embora leigos em direito, não raro decidem mais justamente do que os jui
zes togados. E que, se, para o juiz técnico, importa primeiramente a técnica, para o
juiz leigo, importa primordialmente a justeza das decisões, por vezes, valendo-se
inclusive de argumentos insustentáveis do ponto de vista estritamente dogmático.
Dito de outro modo: decisões tecnicamente corretas não são necessariamente deci
sões justas, assim como decisões tecnicamente incorretas não são decisões necessa
riamente injustas.
Parece inclusive que no fundo os grandes Juizes de Direito e Promotores de
Justiça, tanto quanto os Advogados talentosos, diferentemente dos meros burocra
tas, à semelhança dos poetas e músicos virtuosos, não se tomam; nascem; e a téc
nica para tais pessoas parece constituir apenas um instrumento de aperfeiçoamen
to de habilidades/qualidades inatas, preexistentes à formação técnica, a qual não é
em si mesma garantia de justiça. E que uma boa interpretação, na arte, como no '¥
direito, mais do que técnica e razão, requer talento e sensibilidade.
Em conclusão, a dogmática penal deve ser não um sistema neutro5 (pretensa- » :
mente neutro) e tecnocrata, mas pragmática e político-criminalmente orientado; '
De acordo com Hans Welzel, a ciência sistemática dá base para uma adminis
tração da justiça uniforme e justa, pois só o conhecimento das relações internas do
direito impede o acaso e a arbitrariedade. E que a renúncia a uma teoria do delito,
tanto generalizadora como diferenciadora em favor de uma valoração individual
qualquer, são palavras de Claus Roxin, faria retroceder a nossa ciência a vários
séculos, ou seja, àquela situação de acaso e arbitrariedade. O sistema, portanto,
implica segurança, previsibilidade e certeza, conclui García-Páblos.12
Apesar disso, a tecnicização não se deu de forma absoluta, porque ainda exis
tem aqui e ali instituições jurídicas cuja composição toca a leigos em direito, a
exemplo do Tribunal do Júri, a quem compete decidir alguns dos crimes mais im
portantes: os crimes dolosos contra a vida (homicídio doloso etc.).
Mas a tecnicização e profissionalização no direito têm uma série de limitações
e, pois, acarretam vantagens e desvantagens.
1) Uma primeira questão diz respeito à própria especialização, isto é: os juris
tas são realmente especialistas, isto é, peritos nos assuntos de que tratam?13
Parece-nos que em grande parte a especialização dos juristas é um mito. Sim,
porque são chamados a se manifestarem sobre praticamente tudo e, portanto, sobre
temas os mais diversos e nos quais é ou pode ser ignorante: imprudência técnica (de
médicos, engenheiros etc.), sistema financeiro etc., por vezes assumindo o papel de
economistas, de administradores ou de todos conjuntamente.
Não raro a maior especialização do jurista é, assim, um simples preconceito,
porque, apesar de sua formação técnica numa área específica (a lei e o direito), tem
em tese competência para todo e qualquer assunto, dada a onipresença do fenôme
no jurídico: medicina, psiquiatria, finanças etc.; são, paradoxalmente, especialistas
sem especialidade. Exatamente por isso, certas interpretações jurídicas podem
eventualmente parecer ridículas aos olhos de um autêntico especialista/perito.
Além disso, tem razão Feyerabend quando afirma que não especialistas freqüen-’
temente sabem mais do que os especialistas e deveriam, portanto, ser consultados.14
2) Outra questão é que decisões tecnicamente corretas não são necessariamente
decisões justas, assim como decisões tecnicamente incorretas não são necessariamen
te decisões injustas. Imagine-se, para ficar num único exemplo, que a esposa queira r*j
matar seu marido em virtude dos maus-tratos que sofre sistematicamente; para tanto,
adiciona veneno na sua refeição, a qual, por desgraça, vem a ser provada pelos filhos, '
que morrem. Pois bem, de acordo com a técnica fria do Código Penal, houve um
homicídio doloso consumado contra o marido, que está vivo e que voltaria a viver com ;
ela tempos depois. Enfim, trata-se de uma tragédia real lida como ficção.
Convém notar ainda que subsistema penal está assentado sobre uma estrutura <
econômica e social profundamente desigual, e, por isso, é arbitrariamente seletivo e y
12 Derecho Penal. Parte general. Madrid: Universidad Complutense, 1995, p. 386. As citações anteriores
constam do mesmo livro e página.
13 Uso a expressão “jurista” no sentido de pessoa versada na lei.
14 Contra o Método. S. Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 17. '
D ire ito Penal - P arte Geral
assim recruta a sua clientela entre os grupos mais vulneráveis, a revelar que a pre
ten sã o de justiça está grandemente comprometida desde a sua concepção. Em sua
majestática igualdade, dizia Anatole France, a lei proíbe tanto ao rico quanto ao
pobre dormir embaixo das pontes, esmolar nas ruas e furtar pão.15 E isso sem falar
na descontextualização e despolitização dos conflitos que resultam da tecnicização.
Assim, pode ocorrer inclusive de ser aconselhável não apenas ignorar deter
minada regra, por mais racional, mas adotar a regra oposta.16 É que a questão fun
damental não reside em produzir decisões tecnicamente perfeitas, mas decisões
minimamente justas e razoáveis.17 Afinal, e conforme assinala Castanheira Neves,
uma boa interpretação não é aquela que, numa perspectiva hermenêutico-exegéti-
ca, determina corretamente o sentido textual da norma; é antes aquela que numa
perspectiva prático-normativa utiliza bem a norma como critério da justa decisão
do problema concreto.18
Quanto às decisões tecnicamente incorretas, mas nem por isso injustas, basta
ria lembrar certas decisões do Tribunal do Júri, formado que é por leigos, e cujos
jurados são chamados a decidir, não segundo a lei, mas conforme “a consciência e
os ditames da justiça” (CPP, art. 472).
3) Também por isso (distinção entre técnica e justiça), segue-se que uma boa
formação técnico-jurídica não constitui garantia de profissionais (juizes, promoto
res, advogados etc.) justos, mesmo porque podem ser, não obstante a excelência
técnica, corruptos, preguiçosos, insensíveis etc. E uma boa interpretação, na arte
como no direito, além de técnica e razão, requer talento e sensibilidade. É que tais
atividades demandam habilidades que estão muito além da simples técnica: matu
ridade, experiência, coragem, capacidade de trabalho.19 E decidir não é exclusivi
dade dos juizes, afinal todos nós decidimos permanentemente, como filhos, irmãos,
pais, profissionais, membros de órgão de classe etc.
15 Citado por Gustav Radbruch. Incrodução à ciência do direito. S. Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 107.
16 Paul Feyerabend. Contra o Método. S. Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 37-38.
17 Como ensina Castanheira Neves, a linha de orientação exata só pode ser, pois, aquela em que as exigên
cias de sistema e de pressupostos fundamentos dogmáticos não se fecham numa auto-suficiência, a impli
car também a auto-subsistência de uma hermenêutica unicamente explicitante, e antes se abrem a uma
intencionalidade materialmente normativa que, na sua concreta e judicativa-decisória realização, se
oriente decerto por aquelas mediações dogmáticas, mas que ao mesmo tempo as problematize e as recons
titua pela sua experimentação concretizadora. Não é outro o sentido da interpretação enquanto problema
normativo, em que, portanto, também estarão presentes as duas grandes coordenadas da racionalidade
jurídica, o sistema e o problema, Metodologia Jurídica, cit. 123.
18 Metodologia jurídica. Coimbra: Coimbra editora, 1993, p. 84.
19 Já Radbruch afirmava que “o novo direito penal não poderá vingar sem um juiz totalmente novo. Exige,
portanto, uma inversão da formação criminalista. O que vale para o juiz em geral vale particularmente
para o juiz penal: para m eio centavo de doutrina deveria corresponder um real de conhecim ento da natu
reza humana e da vida. Por isso a formação do futuro juiz penal não poderá ser uma formação meramen
te jurídica, deverá estender-se a técnica criminal, psicologia criminal, teoria carcerária, antes de tudo tam
bém experiência prática em instituições de todos os tipos. Tudo isso é necessário para o juiz penal, mas de
modo algum suficiente, pois, afinal, o bom juiz penal o é de nascença. O coração bondosamente com
preensivo e a mão que conduz com firmeza, que não lhe podem faltar, não lhe poderão ser dados por
nenhuma formação. Introdução à ciência do direito. S. Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 123.
Paulo Queiroz
JR
20 Radbruch, Gustav, citado por Arthur Kaufmann. Filosofía do Direito. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 121.
21 E a ciência precisa de pessoas que sejam adaptáveis e inventivas, não rígidos imitadores de padrões co m -*r
portamentais estabelecidos. Feyerabend, cit.
22 Paulo Freire. Pedagogia da Autonomia. Paz e Terra: S. Paulo, 2004. Freire chama isso de concepção “ban-
cária” da educação, que consiste em transmitir informação sem nenhum senso crítico. Pedagogia do opn~ ~
mido. S. Paulo: Paz e Terra, 2004. .
23 Saio de Carvalho chama a atenção inclusive para o fato de que os currículos e livros didáticos de direito penal *■£
são pensados e estruturados a partir da disposição dos temas e dos institutos apresentados pelo Código Penal, ■
sendo certo que a codificação determina o conteúdo programático dos cursos. Antimanual, cit., p. 24. 2
D ireito Penal - Parte G eral
Não é preciso dizer o quanto essa cultura da lei e da ordem favorece a legiti
mação de estruturas elitizadas de poder (instituições, tribunais, conselhos) facil
mente criticáveis e eventualmente extinguíveis fosse outro o ambiente.
7) Numa confusão mais ou menos consciente entre lei e direito, ignora-se que
o direito, assim como justiça, ética, estética etc., é, em última análise, uma metáfo
ra associada ao que julgamos bom e razoável, e que por isso tem conteúdo grande
mente indeterminado; afinal, o direito e o torto não preexistem à interpretação,
mas são dela resultado. Pressupõe-se enfim que a interpretação depende da lei e do
direito e não o contrário, que é a lei e o direito que dependem da interpretação.
Exatamente por isso, a lei, por mais clara, pode ser interpretada de formas diversas
e, portanto, conduzir a diversos resultados.
24 Nela defende Roxin que o “caminho correto só pode ser deixar asdecisões valorativas político-criminais
introduzirem-se no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação legal, a clareza e previsi
bilidade, as interações harmônicas e as conseqüências detalhadas desse sistema não fiquem a dever nada à
versão formal-positivista de proveniência lisztiana. Submissão ao direito e adequação a fins político-cri-
minais não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese da mesma forma que Estado de
Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis, mas compõem uma unidade dialética: uma ordem
jurídica sem justiça social não é um Estado de Direito material, e tampouco pode utilizar-se da denomi
nação Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do
Estado de Direito”, afirmando, mais adiante, que "a unidade sistemática entre política criminal e direito
pena], (...) também deve ser realizada na construção da teoria do delito, é somente o cumprimento de uma
tarefa que é colocado a todas as esferas da ordem jurídica” (Política criminal, cit., p. 20 e 22).
25 D erecho penal, cit., p. 203.
26 Roxin, D erecho penal, cit., p. 203.
conseqüência, cada categoria do delito - tipicidade, antijuridicidade, culpabilidade
-deve ser observada, desenvolvida e sistematizada sob o ângulo de sua função polí-
tico-criminal.27
0 funcionalismo pretende unir assim a teoria do delito à teoria da pena ou
integrar política criminal e dogmática penal, temas tradicionalmente tratados de
forma separada, como se nenhuma relação mantivessem entre si (ao menos para a
doutrina).28 De acordo com esse ponto de vista, o sistema de direito penal há de
estar estruturado teleologicamente, atendendo a finalidades valorativas,29 é dizer,
as finalidades que constituem o sistema de direito penal só podem ser de tipo polí-
tico-crirmnal, já que os pressupostos de punibilidade hão de orientar-se aos fins do
direito penal, motivo pelo qual as categorias básicas do sistema tradicional (tipici
dade, antijuridicidade, culpabilidade) se apresentam como instrumentos de valora-
ção política.30
Mas se, por um lado, a adoção da perspectiva funcional constitui, sem dúvida,
um avanço em face do pensamento tradicional (causalista, finalista ou misto, preten-
samente neutro), uma vez que junta definitivamente a teoria do delito à teoria da
pena,31 por outro, incerta é a sua exata repercussão quanto à estrutura da teoria do
delito, tantas são as concepções político-criminais sobre o papel do direito penal, ou
tantos sao os funcionalismos, porque, afinal, e como observa Mir Puig, o problema da
função do direito penal constitui tema inevitavelmente valorativo e opinável.32 No
particular, Roxin entende , em conformidade com a sua teoria dialética unificadora da
pena, que os direitos humanos e os princípios do Estado Social integram as valora-
ções político-criminais, que devem constituir a espinha dorsal do sistema.33
33 Roxin, Funcionalismo, cit., p. 232. No mesmo sentido, Greco, em sua Introdução a esta obra, p. 64, sus
tenta que a política criminal legítima não pode ser do tipo lei e ordem ou abolicionista, mas a “política
socia do Estado Democrático de Direito, que adscreve ao Direito Penal uma função de tutela subsidiária'
ens jurídicos, através da prevenção geral e especial, sempre com respeito absoluto aos direitos e garatt'
tias c°nstitucionalmente asseguradas”.
D ireito Penal - Parte Geral
3.1.Introdução
34 Como o reconhece o próprio Jakobs, ao se referir a Baratta, que tem sua foimulação como “conservado
ra”, e Smaus, que a tem como própria de uma “justiça classista” (D erecho penal, cit., p. 21-22, nota de
rodapé).
35 Sobre a distinção entre o seu sistema e o de Jakobs, Roxin assinala que “a diferença essencial entre os
meus esforços, no plano dogmático e sistemático, e os objetivos de Jakobs é que eu pretendo converter
em categorias dogmáticas e soluções de problemas jurídicos os ideais orientadores de um Estado de
Direito liberal e social, enquanto que, devido ao ponto de partida sistêm ico-teorético de Jakobs, não
constituem dados prévios nenhum conteúdo, nenhuma finalidade de política crim inal...” (Sobre a evo
lução da ciência juspenalista alemã no período posterior à guerra — Universidade Lusíada, 21 de março
de 2000).
36 Aproximación, cit., p. 67.
Funcionalismo, cit., p. 211.
Paulo Queiroz
38 Para Liszt, a ação é mudança do mundo exterior referível à vontade humana, isto é, causação do resulta-
do por um ato de vontade, entendido como movimento corpóreo voluntário, isto é, com tensão (contra
ção) dos músculos, determinada, não por coação mecânica, mas por idéias ou representações e efetuada
pela intervenção dos nervos ( Tratado, cit., p. 193 e 198). *•
39 Citado por W elzel, Derecho penal alemán, cit., p. 46.
40 Jescheck, Tratado, cit., p. 182.
41 introdução à dogmática funcionalista do delito, Revista Jurídica, Porto Alegre, ano 48, p. 36, jul. 200G.
D ireito Penal - Parte Geral
Já para a teoria final da ação, criação de Hans Welzel, a ação humana é o exer
cício de uma atividade final; a ação é, por isso, uma conduta final, e não apenas cau
sai.43 A finalidade - escreveu Welzel - ou o caráter final da ação se deve ao fato de
que o homem, graças ao seu saber causai, pode prever, dentro de certos limites, as
conseqüências possíveis de sua atividade, eleger, em conseqüência, fins diversos e
dirigir sua ação conforme seu plano. Por isso, a finalidade é “vidente”, a causalida
de, “cega”,44 sendo isso que distingue uma ação humana de um evento natural. Por
conseguinte, não se abandonou, com o finalismo, a idéia de causalidade, pois sim
plesmente se lhe acrescentou o elemento finalidade, ou seja, a substituiu, como diz
Assis Toledo, por uma causalidade dirigida.45 Quem se dispõe a matar, elege os
meios, adquire a arma a ser utilizada, adota a melhor forma de levar a cabo a em
preitada criminosa, toma os cuidados para realizá-la com sucesso etc., sendo a cau
salidade apenas uma parte desse processo final.
Por conseqüência, com o finalismo, dolo e culpa são deslocados da culpabili
dade para a tipicidade, já que é a finalidade da ação (o dolo) que dirá, por exemplo,
se estamos diante de um crime de lesão corporal ou de uma tentativa de homicídio
(se a intenção é matar, homicídio; se apenas ferir, lesão), ou se estamos perante um
crime ou um fato penalmente irrelevante (como regra, só são puníveis ações dolo
sas - v. g„ aborto, infanticídio e dano culposos constituem um indiferente penal),
uma vez que, externamente, ou do ponto de vista puramente causai, tais condutas
em nada se distinguem. A doutrina finalista implica, assim, contrariamente ao sis
tema causalista, uma nova subjetivação do injusto e uma crescente dessubjetivação
e normativização da culpabilidade.46
Mas se ação é o exercício da atividade final, como explicar a estrutura dos cri
mes culposos? Cláudio Brandão responde a isso, dizendo que existe, sim, nesses cri
mes, uma vontade dirigida a um fim, só que o fim será conforme o direito, de modo
que a reprovação nos crimes culposos não recai na finalidade do agente, mas nos
meios que o agente elegeu para a consecução de um fim.47 No entanto, parecv que
3.4. Funcionalism o
48 Curso, cit., p. 253. Este autor afirma ainda que o conceito final de ação responde a um modelo demasiadi
racionalista da conduta humana, limitando-se às ações mais perfeitamente elaboradas, as planificaijl
consciente e controladamente para um objetivo, sendo, pois, excessivamente restrito, já que deixa for
muitas formas de ação (p. 254).
49 Como observa Greco, o sistema finalista tenta superar o dualismo metodológico do neokantismo, negajE
do o axioma sobre o qual ele assenta: o de que entre ser e dever ser existe um abismo impossível de ultfii^
passar. A realidade, para o finalista, já traz em si uma ordem intema, possui uma lógica intrínseca: a
ca da coisa (sachiogik ). O direito não pode flutuar nas nuvens do dever ser, uma vez que o que vai regu^
lar é a realidade. Deve, portanto, descer ao chão, estudar essa realidade, submetê-la a uma análise fen£
menológica, e, só após haver descoberto suas estruturas internas, passar para a etapa da valoraçâo juríd^
ca. “Os conceitos científicos não são variadas 'composições' de um material idêntico e avalorado, mj
‘reproduções’ de pedaços de um complexo ser ôntico, ao qual são imanentes estruturas gerais e diferenç*
valorativas, que não foram fruto da criação do cientista (Welzel)” (Introdução..., Revista, cit., p. 39),
50 Assim, Gimbemat: “... ou seja, para Welzel existe ação sempre que se persiga um fim , sendo ‘indiferén]
qual o fim que se persegue. Apesar de meus esforços, não consigo ver diferença alguma entre este conceíj
to de ação e o mantido desde sempre pela doutrina causalista, para a qual há ação quando se quer
sendo ‘indiferente’ o que seja este algo" ( Escudios de derecho penal, Madrid: Tecnos, 1990, p. 169-170)5
51 Problemas fundamentais, cit., p. 91-92.
D ire ito Penal - P arte G eral
venção geral de delitos, motivo pelo qual uma ação é considerada punível inde-
pgndentemente da situação concreta e do seu autor (salvo situações excepcionais)
- passa a desempenhar o seguinte papel: a) cada tipo deve ser interpretado segundo
o fim da lei (teleologicamente), isto é, de maneira que os comportamentos legalmen
te proibidos sejam completamente compreendidos e que o efeito motivador preven-
tivo-geral se mostre livre de lacunas; b) uma prevenção geral eficaz pressupõe,
igu alm en te, a determinação (taxatividade) da lei, com a maior exatidão e fidelidade
ao sentido literal possíveis; c) no âmbito da tipicidade será também analisada a pre
sença dos requisitos que autorizam a imputação objetiva do resultado. Conseqüen
tem en te, a necessidade abstrata da pena, sob o aspecto da prevenção geral, e o prin
cípio da culpabilidade são os pontos de vista político-criminais que regem o tipo,
excluída, nesse contexto, a prevenção especial, que é estranha ao tipo, uma vez que
pressupõe um autor concreto, que aqui não desempenha papel nenhum.52 De notar
que, no sistema teleológico-funcional, a categoria da tipicidade enriquece cada vez
mais com a adoção - e agora vasta literatura - da moderna teoria da imputação obje
tiva, que tem em Roxin e Jakobs seus principais expoentes.
Na categoria do injusto (= fato típico e antijurídico), a ação típica concreta é
, analisada segundo o aspecto da autorização ou da proibição, levando-se em conta
todos os elementos reais da situação particular, que passa a ser moldado, político-
criminalmente, por três funções: a) solucionar colisão de interesses de forma rele
vante para a punição de um ou mais envolvidos no fato; b) servir como ponto de
apoio para as medidas de segurança e outras conseqüências jurídicas; c) ligar o
direito penal à totalidade do ordenamento jurídico, integrando as valorações deci
sivas deste, uma vez que não é uma categoria específica do direito penal, mas do
direito como um todo.53
Finalmente, na categoria da responsabilidade, expressão compreensiva da cul
pabilidade e necessidade preventiva, interessa saber se o autor individual merece,
concretamente, punição pelo injusto realizado, de sorte que, no campo dos pressu
postos da punição, a responsabilidade se apresenta como a realização dogmática da
teoria dos fins da pena, dirigindo-se não ao fato, mas ao seu autor, uma vez que se
pergunta a respeito de sua necessidade individual de pena.54
Reinava absoluto até recentemente o princípio societas d elin qu ere non p otest
(as sociedades não podem delinqüir), contrário à possibilidade de “responsabiliza-
56 Cf. Shecaira, Responsabilidade penal da pessoa jurídica, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.
57 Tratado, cit., t. 1, p. 191.
58 Há quem entenda, como Cezar Bitencourt, que, apesar dessa previsão constitucional, não houve em ver- •
dade pretensão de consagrar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, pois “a obscura previsão do art.
225, § 3o, da Constituição Federal, relativamente ao m eio ambiente, tem levado alguns penalistas a sus-,
tentar, equivocadamente, que a Carta Magna consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica. No :
entanto, a responsabilidade penal ainda se encontra limitada à responsabilidade subjetiva e individual”
(Manual, cit., v. 2, p. 21).
59 Nesse sentido, René Ariel Dotti, Miguel Reale Júnior e Sheila Jorge Selim de Sales.
60 No sentido do texto, Régis Prado, René Ariel Dotti, entre outros.
61 No sentido do texto, precedente do STJ, rei. Min. Félix Fischer, RE 622.724/SC (2004/0012318-8), que tem 'U
a seguinte ementa: “PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIMES CONTRA O MEIO ~
AMBIENTE. DENÚNCIA. INÉPCIA. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. RESPON'
D ireito Penal - Parte Geral
140
de de discernimento e autodeterminação, pode ser sujeito ativo de crime, visto que
só os seres humanos podem ouvir e entender as normas; só eles são passíveis de
motivação e, portanto, de cometer crimes.64 Ademais, se duvidosa é função moti-
vadora da norma penal quanto aos crimes dolosos praticados por pessoas físicas,
ainda mais discutível ela o é quanto aos crimes culposos, que parecem ser os mais
freqüentemente praticados por empresas em matéria ambiental.
Em realidade, a imputação (supostamente penal) que se lhe faz constitui uma
autêntica responsabilidade de natureza civil e/ou administrativa - logo, não penal
- embora decretada por um juiz criminal. Daí afirmar Gracia Martin que, por care
cer de capacidade de ação, e, portanto, de realizar ações típicas, o critério de impu
tação do fato à pessoa jurídica não pode ter caráter jurídico-penal, tendo natureza
bem diversa, como risco objetivo, benefício, enriquecimento sem causa, reafirma
ção do direito de terceiros de boa-fé, afirmação da validez da aparência jurídica
etc., critérios que são, em todo caso, estranhos ao direito penal.65
Convém dizer ademais que não é propriamente a pessoa jurídica que celebra
contratos, uma vez que simplesmente a eles se vincula, os quais em verdade são
celebrados pelas pessoas individuais que atuam como seus agentes.66 Tem razão,
portanto, Gracia Martin, quando, distinguindo entre “sujeito da ação” e “sujeito da
imputação”, sustenta que, no caso das pessoas jurídicas, sujeito da ação e sujeito da
imputação são sempre e inevitavelmente distintos, pois estas só podem atuar por
meio de órgãos e representantes, é dizer, as pessoas físicas (sujeitos da ação).67
Conseqüentemente, não podendo praticar uma ação, não podem realizar um
fato típico, antijurídico e culpável. Por isso é que todo o arsenal de conceitos e ins
titutos jurídico-penais hoje existente é claramente incompatível com a “responsa
bilidade penal” da pessoa jurídica. Assim, por exemplo, a idéia de dolo, de descri-
minantes putativas, de legítima defesa, de erro de proibição, de coação irresistível,’
de concurso de agentes etc.
Também por isso, não basta simplesmente que a lei preveja a possibilidade de
responsabilização penal da pessoa jurídica, como fez a Lei ne 9.605/98. E necessá-
68 Dispõe, com efeito, o art. 129 do Código espanhol: o Juiz ou Tribunal, nos casos previstos neste Código, e
mediante prévia audiência dos titulares ou de seus representantes legais, poderá impor, motivadamente,
as seguintes conseqüências: a) interdição da empresa, seus locais ou estabelecimentos com caráter tempo
ral ou definitivo; b) dissolução da sociedade, associação ou fundação; c) suspensão das atividades da socie
dade, empresa, fundação ou associação por um prazo que não poderá exceder a cinco anos; d) proibição
de realizar atividades no futuro, operações mercantis ou negócios; e) intervenção na empresa para salva
guarda dos direitos dos trabalhadores.
D ireito Penal - Parte G eral
Capítulo II
Conceito de Crime
2. Conceito de crime
O conceito de crime pode ser tomado em dois sentidos: formal e material. Por
força do princípio da legalidade, o conceito de crime é inevitavelmente um concei
to formal. Por conseguinte, crime é o que a lei descreve como tal.
No entanto, por constituir a forma mais violenta de intervenção do Estado na
vida dos cidadãos (caráter subsidiário), não podem ser desprezados critérios mate
riais para a definição legal das infrações penais, motivo pelo qual só devem ser ele
vados à categoria de delitos comportamentos especialmente lesivos de bens jurídi
cos, vale dizer, condutas realmente intoleráveis para a convivência social, cuja pre
venção/repressão não possa ser confiada a outras instâncias de controle social.
Além disso, os pressupostos materiais da intervenção jurídico-penal (proporciona
lidade, lesividade etc.) são relevantes não apenas para editar a norma penal, mas
também para interpretá-la/aplicá-la, evitando sua incidência sobre condutas que,
embora formalmente típicas, não representem em concreto qualquer lesão ou peri
go sério de lesão para o bem jurídico que se quer tutelar jurídico-penalmente.
Não quer isso significar, porém, que seja possível conceituar ontologicamente o
delito, emprestando-lhe consistência material, como pretendeu, sem sucesso, o posi
tivismo criminológico, em especial Garofalo, com o seu conceito de “delito natural”,
que consistiria na “lesão daquela parte do sentido moral que consiste nos sentimen
tos altruístas fundamentais (piedade e probidade) segundo a medida média em que se
encontram as raças humanas superiores, cuja medida é necessária para a adaptação do
indivíduo à sociedade”.1 E sem êxito porque, além de sua vagueza e imprecisão, tal
prescinde dos processos de reação social e não tem em conta que o conceito de deli
to é necessariamente relativo, histórica e culturalmente condicionado.2
Em conclusão, não é suficiente nem um conceito formal, nem um conceito
material, exclusivamente, já que ambos são igualmente importantes para o direito
penal. Daí a atualidade do conceito formal-material de Carrara, para quem o delito
consistia “na infração da lei do Estado, promulgada para proteger a segurança dos
cidadãos, resultante de um ato externo do homem, positivo ou negativo, moralmen
te imputável e politicamente danoso”,3 conceito que compreende os princípios da
legalidade (infração da lei do Estado) e lesividade (ato politicamente danoso).
Infração penal (crime ou contravenção) é, portanto, uma conduta que, descri
ta em lei como tal, se revele em concreto especialmente lesiva de bem jurídico-
penalmente relevante.
4 Outsiders, studies in the sociology o f deviance, cap. 1, in Uma teoria da ação coletiva , trad. Márcia
Bandeira de M. L. Nunes, Rio de Janeiro: Zahar, 1957, p. 53 e s.
5 D erecho penal, cit.
ria], elemento do crime, mas sua conseqüência). Analiticamente, portanto, o crime
é um fato típico, antijurídico e culpável,6-7 havendo entre tais categorias uma rela
ção de sucessão e prejudicialidade, uma vez que a culpabilidade pressupõe a antiju-
ridicidade e esta, a tipicidade. Tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade são assim
predicados de um substantivo, que é a conduta humana definida como crime,8 de
sorte que a análise do caráter criminoso de um ato demanda a verificação sucessiva
do seu caráter típico, antijurídico e culpável.9 O conceito analítico é, pois, um des
dobramento do conceito formal de crime, isto é, crime como infração à lei penal.
Releva notar que, apesar de a doutrina majoritária defender um conceito tri-
partite de crime, há quem adote uma concepção quadripartite (crime como fato
6 Na doutrina brasileira, os autores divergem sobre se a culpabilidade integra ou não a estrutura do delito.
Damásio {Direico p en al cit., v. 1, p. 451 e s.) defende a tese de que o crime se compõe de fato típico e anti
jurídico somente, figurando a culpabilidade como mero pressuposto da pena. Pensamos, em primeiro
lugar, que semelhante discussão não tem importância teórica e muito menos prática. Mas, ao se conside
rar, como quer Damásio, que a culpabilidade é pressuposto da pena, simplesmente, esquece-se, porém,
que, como regra, a ausência de culpabilidade dá lugar não à medida de segurança (exclusiva de inimputá-
veis e semi-imputáveis), mas à absolvição pura e simples (assim, erro de proibição invencível, coação
moral irresistível etc.), não se aplicando a seus autores (imputáveis) qualquer medida de segurança ou
similar. Ora, em tais hipóteses, se há absolvição (sem mais) é porque se reconhece que não se está diante
de uma conduta criminosa, embora tenha o seu autor agido típica e ilicitamente (realizado um injusto).
Portanto, a culpabilidade integra, sim, o conceito de crime, já que sem ela não há, em princípio, qualquer
conseqüência penal. Mas, ainda que assim não fosse, teríamos de convir que não só a culpabilidade como
também a tipicidade e a ilicitude são pressupostos da punibilidade, pois toda e qualquer conseqüência jurí
dico-penal pressupõe tipicidade e antijuridicidade e, a seguir, culpabilidade. Finalmente, ao contrário do
que parece supor Damásio, Welzel (nem Maurach, nem qualquer outro finalista) jamais defendeu a idéia
de que o crime se compõe só de fato típico e antijurídico. Para uma crítica à posição de Damásio, Cezar
Bitencourt ( Manual, cit., p. 313 e s.).
7 Em artigo que chamou “Da punibilidade como terceiro requisito do fato punível” (in www.direitope-
nal.adv.br), Luiz Flávio Gomes defende tese segundo a qual a punibilidade, de conseqüência do crime, passa
a integrar a estrutura do “fato punível”. Diz mais: “a culpabilidade passa a figurar como ‘elo de ligação entre
a teoria do crime e a teoria da pena’, e que a punibilidade não pode deixar de ser admitida como terceiro
requisito do fato punível’; ‘o fato (materialmente típico e antijurídico) só é punível quando ameaçado com
pena’; injusto penal, fato punível e culpabilidade: o injusto penal é composto de dois requisitos: fato mate
rialmente típico e antijurídico. O fato punível exige três requisitos: fato materialmente típico, antijurídico e
punível. A culpabilidade, como se nota, definitivamente, não integra a teoria do delito. Mas como pressu
posto indeclinável da pena, é ela que faz a ligação entre a teoria do delito e a teoria da pena”. Parece-nos,
porém, que toda a argumentação se desenvolve a partir de uma tautologia, pois afirmar que “a punibilidade
é requisito do fato punível” é o mesmo que dizer, v. g., que “a culpabilidade é requisito do fato culpável”, que
“a antijuridicidade é requisito do fato antijurídico” ou que “a tipicidade é requisito do fato típico”. Considera
o autor também que a culpabilidade "está fora do injusto penal assim como do fato punível, vem, cronologi
camente falando, depois dos três requisitos que compõem o fato punível (fato materialmente típico, antiju
ridicidade e punibilidade)”. Há aí, no entanto, clara inversão da ordem natural das coisas, pois antes de cul-
páveis, as condutas seriam puníveis, de modo que, por exemplo, quem age sob o manto de causa de excul-
pação (erro de proibição, coação moral irresistível etc.) já teria praticado um fato punível, uma vez que a
verificação da culpabilidade “vem cronologicamente depois". Segundo esta formulação, portanto, o castigo
precede ao crime; a pena à culpa (!). Cremos, em conclusão, que semelhante tese, apesar da excelência de
quem a subscreve, não é logicamente sustentável, nem se justifica do ponto de vista prático ou sistemático.
8 Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 317.
9 A sistematização da categoria tipicidade deve-se a Ernest v. Beling (1906); a antijuridicidade, a Rudolf v.
Hiering (1867), Franz v. Liszt e Beling; a culpabilidade teve em Adolf Merkel o início de um conceito
específico (cf. Jescheck, Tratado, cit., p. 181).
D ireito Penal - Parte G eral
típico, ilícito, culpável e punível), como é o caso de Francisco Munoz Conde e Mer
cedes Garcia Arán.10
Finalmente, se certo é, conforme vimos ao tratar do conceito de direito, que
o direito não preexiste à interpretação, mas é dela resultado, segue-se que o que é
típico, ilícito ou culpável (e o seu contrário) depende de como se interpreta.
4.1. Tipicidade
Dir-se-á típica uma conduta sempre que se ajuste à descrição prevista numa
norma penal incriminadora (v. g., matar, roubar), de modo que, tratando-se de fato
que não encontre ajustamento típico (v. g., aborto culposo), a conduta será atípica,
ficando prejudicada, em conseqüência, a análise de tudo mais (antijuridicidade e
culpabilidade). Declarar, pois, típica uma ação, é declará-la jurídico-penalmente
relevante; ao invés, afirmá-la atípica é afirmá-la penalmente indiferente.
É que, em razão do princípio da legalidade, só pode constituir infração penal
(crime ou contravenção) o que a lei descreve como tal. A essa descrição legal dos
elementos do crime (ou contravenção) dá-se o nome de tipo. Típica é, em conse
qüência, toda conduta humana que corresponda ao modelo legal (tipo penal).
Tipicidade significa, assim, a coincidência entre dado comportamento humano e a
norma penal incriminadora (v. g., o homicídio, o furto, o estupro). Não é típico
(mas atípico), diversamente, o aborto ou dano culposos, por exemplo, por falta de
previsão legal que os incriminem.
O legislador, portanto, trabalha com tipos e pensa com tipos.11 E, ao se fazer refe
rência à “lei penal” e sua função de garantia, sempre se quer aludir ao “tipo penal”.12
4.2. A n tijuridicidade
vida. Significa dizer que, embora típica a ação, visto coincidir com a descrição do
art. 121 do Código Penal, ela não é considerada ilícita, uma vez que está autoriza
da pelo direito, de sorte que quem mata em legítima defesa mata legitimamente;
atua dentro da legalidade.
A conduta típica, no entanto, será ilícita sempre que não concorra - como é
comum - uma causa de justificação (de exclusão de ilicitude). Em geral o autor de
um fato típico atua fora da legalidade; ilicitamente, portanto.
4.3. Culpabilidade
Assim, se, sob o aspecto material, o delito não existe, segue-se logicamente
que também o seu conceito formal ou analítico - delito como fato típico, ilícito e
culpável - não está previamente dado, pois é construído socialmente, de sorte que
uma determinada conduta será ou não típica, ilícita e culpável quando dissermos
(aceitamos) que ela o é, mesmo porque tais conceitos remetem necessariamente a
diversos outros conceitos: dolo, culpa, significância/insignificância, causalidade, le
gítima/ilegítima defesa, estado de necessidade/desnecessidade, coação física/moral
resistível/irresistível, obediência hierárquica, erro de proibição vencível/invencí-
vel, embriaguez voluntária/involuntária etc., os quais reenviam, por sua vez, a
outros tantos, como vida, honra, propriedade, agressão justa/injusta, intenção, pre
visão, consciência/inconsciência, boa/má-fé, confissão, prova lícita/ilícita, exigí-
vel/inexigível, valores, princípios etc.
Também por isso, não se pode dizer a p riori se um determinado comporta
mento é doloso ou culposo, lícito ou não, culpável ou inculpável, pois, conforme
vimos, o direito não preexiste à interpretação, mas é dela resultado. Significa dizer
que, a depender da interpretação, uma mesma conduta (v. g., agredir a esposa por
flagrá-la em adultério) poderá ser considerada ora lícita, ora ilícita, ora culpável,
ora inculpável. Enfim, não é a interpretação que depende do direito, mas o direito
que depende da interpretação.
D ireito P en al - Parte Geral
Capítulo III
Evolução do Conceito de Tipo
O que hoje chamamos teoria do tipo nasceu com Emest von Beling, que a
difundiu por meio da obra D ie L eh re vom V erbrechen (A teoria do delito), de
1906, e por cujo meio o tipo passaria a constituir uma das notas essenciais do con
ceito de crime, somando-se à antijuridicidade e à culpabilidade, como exigência
infranqueável do princípio da legalidade. De acordo com a formulação inicial de
Beling,! o tipo penal é a descrição abstrata dos elementos do fato ou suposto de fato
(Tatbestand) previsto na norma penal incriminadora, descrição que não supõe
qualquer (des)valoração, razão pela qual o tipo penal constitui assim uma categoria
dogmática valorativamente neutra, pertencendo a valoraçâo da conduta à antijuri
dicidade. Por conseguinte, tipo e antijuridicidade constituem, segundo Beling,
categorias sistemáticas autônomas, mesmo porque o fato, embora típico, pode não
ser antijurídico, sempre e quando praticado sob o amparo de uma causa de justifi
cação. Assim, por exemplo, quem fere alguém em legítima defesa ou em estado de
necessidade realiza um fato típico, mas não antijurídico, porque autorizado pelo
direito. O tipo, portanto, é apenas um indício (ratio cognoscendí) da ilicitude.
Com o neokantismo, que introduz a idéia do valor na teoria do delito, seme
lhante formulação vem a ser criticada (M. E. Mayer, Mezger, Sauer) por seu exces
sivo formalismo. Primeiro, porque não se pode falar de um tipo puramente objeti
vo, pois freqüentemente o legislador, ao descrever ações típicas, recorre a elemen
tos subjetivos (v. g., o “para si ou para outrem”, referido no art. 155 do CP), de sorte
que o tipo não está imune a juízos de valor. Além disso, a redação dos tipos não raro
contém elementos normativos (assim, o conceito de “fraude”, de “funcionário pú
blico” e de “coisa alheia”), supondo quase sempre uma valoraçâo ética, jurídica,
social, cultural etc., concretamente avaliada, não podendo prevalecer a tese de um
tipo penal neutro ou puramente objetivo. Nesse sentido, Sauer, para quem a tipici
dade era a “antijuridicidade tipificada”, afirmaria que “o tipo é já um sintoma da cri
minalidade objetiva, da danosidade social e da perigosidade social de um atuar”.2
1 Digo inicial porque mais tarde (Lehre von Tatbestand, 1930) Beling desenvolveria um conceito ainda mais
abstrato de tipo como Leitbild, conceito não acolhido pela doutrina, que continuaria utilizando o concei-
to inicial por ele formulado.
2 D erecho penal, cit., p. 111.
Paulo Queiroz
152
Com o advento da doutrina finalista, que, coerente com o seu conceito final de
ação, desloca o dolo e a culpa para o tipo penal, como elementos subjetivos, que antes,
com o causalismo, pertenciam à culpabilidade, o tipo seguiria, apesar disso, como um
tipo meramente indiciário da ilicitude,3 de modo que o crime, sob o aspecto analíti
co, permanece sendo fato típico, antijurídico e culpável (sistema tripartido).
3 Como observa Mir Puig, o fmalismo adotou um conceito próximo do ideado por Beling: o tipo como mero
indício - ratio cognoscendi - da antijuridicidade, que não só pode desvirtuar-se pelo concurso de causas
de justificação (nem toda ação típica é antijurídica), senão que tem um significado independente da anti
juridicidade (D erccho penal, cit., p. 129).
4 Entre nós, adota posição similar Assis Toledo: “a tipicidade e a ilicitude implicam-se numa relação indis
solúvel no interior do injusto, mas conceitualmente não se confundem. O tipo, para não reduzir-se a um
abstrato Leitbild , ou a um ‘princípio formal’, só pode ser a descrição de condutas proibidas, portanto, um
‘tipo de injusto’ ( Unrechtstypus). A expressão do injusto, pela incidência de uma norma permissiva (causa
de justificação ou de exclusão de ilicitude), opera-se no momento mesmo da realização do fato justifica
do, não depois, quando do desenvolvimento do raciocínio do julgador, este sim condicionado a um pro
cesso cognoscitivo bifásico. O tipo de injusto, assim entendido, está infiltrado pela ilicitude, que lhe dá o
verdadeiro conteúdo material” ( Princípios básicos, cit., p. 124). Semelhantemente, Reale Júnior, Teoria do
delito, São Paulo: Saraiva, 1998. Também Juarez Tavares, embora critique a teoria dos elementos negati
vos, chega a uma formulação muito próxima, teoria do injusto penal.
5 Cf. Rodriguez Mourullo, D erecho p en al cit., p. 249.
D ireito Penal - Parte Geral
6 Sobre a teoria dos elementos negativos do tipo, por todos, José Cirilo de Vargas, Introdução ao estudo dos
crimes em espécie, Belo Horizonte, texto inédito.
7 La función de la delimitación de injusto y culpabilidad, in Fundamentos de un sistema europeo d ei d ere
cho penal, Barcelona: Bosch, 1995, p. 226.
8 D erecho penal, cit., p. 284-285. Em texto anterior, Roxin já havia notado que “o tipo total é essencialmente
correto”, visto que “todas as ações que se ajustam a este tipo expressam um elemento fundamental comum:
mereceram a reprovação do legislador e são, portanto, socialmente danosas e materialmente contrárias ao
direito” ( Teoria d ei tipo penal, trad. Enrique Bacigalupo, Buenos Aires: Depalma, 1979, p. 274-277).
9 Citado por Assis Toledo, Princípios básicos, cit., p. 181.
mática quanto ao conteúdo do tipo é a problemática mesma quanto à conduta que
o legislador quer motivar ou prevenir.10
Afinal, o legislador, ao permitir, por exemplo, a legítima defesa para proteção
individual, persegue simultaneamente um fim de prevenção geral, pois considera
desejável que o ordenamento jurídico se afirme diante de agressões a bens jurídi
cos individuais.11 ‘
Além disso, quando o legislador recorre a uma lei penal e passa a definir um
dado comportamento como criminoso, pressupõe sua oposição ao ordenamento
jurídico, e não o contrário, mesmo porque fora daí faltariam os pressupostos mate-"'
riais da intervenção penal (lesividade social etc.), nem faria sentido intervir penal
mente. Função primária do tipo é pois declarar, dentro de uma multitude de ações
antijurídicas, aquelas que merecem significação penal, criando uma' “antijuridicida-
de específica”. Não por outra razão, aliás, o ônus de provar a presença de uma causa
excludente de criminalidade incumbe em princípio ao réu. Daí dizer Mezger que o
ato de criação legislativa do tipo contém já a declaração de antijuridicidade, a fun
damentação do injusto como injusto especialmente tipificado.12 É que as normas
proibitivas, de um lado, e as proposições permissivas, de outro, formam uma uni
dade, apesar de sua formulação em separado.13
Parece-nos incorreta, em conseqüência, a doutrina ainda dominante quando
opta por um conceito puramente formal do tipo (tipo indiciário), afirmando que.
um fato, embora típico, não é necessariamente antijurídico, porque pode estar
autorizado pelo direito, até porque fato típico é, por definição, comportamento
proibido penalmente, sendo um manifesto contra-senso falar que uma conduta,”
apesar de penalmente típica (= proibida penalmente), não é antijurídica (= autori-'
zada pelo direito). É como afirmar que o proibido está ou pode estar permitido (=
é típico m as não antijurídico).
Em conclusão, e conforme assinala Luzón Pena, missão do tipo não é descre
ver condutas neutras, nem meramente indiciárias de uma proibição, mas descrever,
para conhecimento geral e para cumprir sua missão de norma de determinação das
condutas dos cidadãos, todos os elementos, positivos e negativos, que fundamen
tam a valoraçâo negativa e, portanto, a proibição geral - em face de todos - de uma
conduta,14 tarefa (prevenção geral) que só pode ser levada a cabo quando não con
corram causas de justificação, evidentemente.
E natural, porém, que, ao relativizar a autonomia de tais categorias, não se esta
a confundir os conceitos de tipicidade e antijuridicidade, pois, apesar de interde
pendentes, não se eqüivalem.
19 Como assinala Arthur Kaufmann, a analogia (comparação), que consiste num modo de inferência misto
de dedução e indução, constitui o próprio critério de determinação do direito, uma vez que nunca existe
uma absoluta igualdade ou desigualdade, mas semelhanças, razão pela qual juizes e legisladores se utili
zam invariavelmente da analogia. Filosofia do direito , p. 119-120.
20 D erecho penal, cit., p. 60.
D ireico Penal - Parte Gera]
21 Segundo Schünemann, “a norma proibitiva, como base do injusto jurídico-penal deve abarcar todos os
pressupostos da lesividade social, salvo a capacidade do autor de com portar-se conform e a norma, cuja
exclusão do mandato normativo se deve a razões lógicas, já que a capacidade de cumprimento só pode for-
mular-se e examinar-se tomando como referência uma norma que está desvinculada daquele, já que se, ao
contrário, a capacidade de cumprimento se formula como pressuposto da norma proibitiva, a negação
desta norma faria desaparecer aquela, porque acerca duma norma inexistente não cabe imaginar nem
constatar capacidade de cumprimento algum. Portanto, a diferenciação sistemática entre poder atuar de
outra maneira e a lesividade social resulta necessária e ostenta pleno sentido...” (La función..., in
Fundamentos, cit., p. 225).
22 Comparem-se, a propósito, alguns conceitos de culpabilidade: “reprochabilidade de um fazer ou de um
omitir antijuridicamente desaprovado, ou, mais brevemente, é um reproche fundado sobre o autor”
(Maurach, D erecho penal, cit., p. 582); “possibilidade de conhecer a exigência do dever e de comportar-
se de acordo com ele, vale dizer, é a possibilidade de uma decisão responsável” (Stratenwerth, D erecho
penal, cit., p. 71); “culpabilidade é reprochabilidade da formação de vontade” (Jescheck, Tratado , cit., p.
364); “é uma responsabilidade por um déficit de motivação jurídica dominante, num comportamento anti
jurídico” (Jakobs, D erecho penal , cit., p. 566); “atua culpavelmente quem pratica um ato antijurídico,
podendo atuar de modo diverso, quer dizer, conforme o direito” (Munoz Conde, Teoria gerai d o delito,
trad. Juarez Tavares e Régis Prado, Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1988, p. 125); “culpabilidade é
exigibilidade” (Silva Sánchez, Aproximación, cit., p. 413).
23 Nisso, aliás, reside, conforme Maurach, a distinção entre antijuridicidade e culpabilidade: a primeira é um
juízo sobre o fato; a segunda, um juízo sobre o autor (D erecho penal, cit., p . 418-419).
24 Munoz Conde, Teoria, cit., p. 162.
^ A idéia de exigibilidade provém de Henkel, que pôs de manifesto que a inexigibilidade é critério regula-
tivo jurídico geral, dividindo-a em inexigibilidade geral e individual: a primeira excluiria a antijuridicida
de; a segunda, a culpabilidade (cf. Luzón Pena, Curso, cit., p. 649).
Paulo Queiroz
26 Como afirma Munoz Conde, “o direito não pode, contudo, exigir comportamentos heróicos: toda normá
jurídica tem um âmbito de exigência, fora do qual não pode exigir responsabilidade alguma” (Curso, cit.,
p. 132).
27 Munoz Conde, Teoria, cit., p. 162.
28 Apesar de adotar semelhante perspectiva, essencialmente nada muda, para esse efeito, se se entender pre
venção como prevenção positiva.
D ireito Penal - Parte G eral
to (assim, os incapazes), seja porque atuam sob erro de proibição, seja porque este
jam sob coação moral irresistível, seja, enfim, porque atuem sob o amparo de quais
quer das causas de exclusão de culpabilidade, visto que, como assinala Mufioz
Conde, a comunicação entre o indivíduo e os mandamentos da norma só pode
ocorrer se o indivíduo tem capacidade para se sentir motivado pela norma, conhe
ce seu conteúdo ou se encontra numa situação na qual não pode ser regido, sem
grandes esforços, por ela.29 Em conclusão: as normas penais só podem ter logica
mente como destinatário quem se encontre em condições de optar entre acatá-las
ou violá-las, já que, como afirma Jescheck, a culpabilidade tem como pressuposto
lógico a liberdade de decisão do homem.30
Mas - e é isso que se quer destacar - é justamente por essa mesmíssima razão
que atos praticados sob, por exemplo, hipnose (ausência de conduta), ou sem dolo
ou culpa (comportamento atípico), em legítima defesa (ação conforme o direito),
ou sob coação moral irresistível (conduta não culpável), conduzem ao mesmo
resultado: uma sentença penal absolutória. Logo, embora possam ter significado
distinto, têm o mesmo tratamento político-criminal. É que em todos esses casos a
norma penal carece do poder de motivar, não sendo exigível, de parte do autor de
um fato assim praticado, uma atitude diversa ou conforme o direito, dada a impos
sibilidade física ou psíquica do seu destinatário. Ou porque, ainda quando exigível,
a pena careceria de todo sentido, tendo em vista os fins (preventivos) do direito
penal, não sendo o agente merecedor de pena.
Dito mais claramente: se é atípica (segundo a doutrina hoje dominante) a ação
praticada sem dolo ou sem culpa, é porque em tal hipótese a norma carece de efi
cácia motivadora, não sendo, por isso, exigível uma ação diversa, já que estamos
ante uma situação de caso fortuito ou força maior, vale dizer, estranha à vontade
do agente (sem pertinência subjetiva); por igual, se alguém, para não morrer, pre
cisa matar, e o faz legitimamente {v. g., em legítima defesa ou em estado de neces
sidade), não responde penalmente porque o Estado não pode exigir uma ação dis
tinta, digamos, no caso de legítima defesa, que tolere sem mais a agressão, ou que,
podendo fugir, assuma, assim, uma postura de covarde etc., uma vez que não é
razoável o sacrifício do bem jurídico lesionado ou ameaçado de lesão (em relação
ao ofendido, está claro).
Parece que idêntica é a situação nas hipóteses das causas de exclusão de cul
pabilidade. Com efeito, nos casos de coação moral irresistível, de obediência hie
rárquica, tampouco é exigível uma atitude diversa do destinatário da norma, pelas
mesmíssimas razões já assinaladas. Conclusão: a exigibilidade de. conduta diversa
está também presente, necessariamente, na análise tanto da tipicidade quanto da
antijuridicidade. Em suma: a exigibilidade, que não é privativa da culpabilidade,
atravessa todas as categorias sistemáticas do delito.
^°r isso é que razão assiste a Mir Puig, quando observa, a propósito do erro de 1^
bens '■^° ' nev't ^ve^ que, “se o Direito Penal se justifica pela função de proteção de •
^ta^rídicos através da motivação da norma - o que estimo necessário num í
0 social e democrático de Direito —, só se pode proibir aqueles comportamen- .<
rnotf15 Podem ser evitados pela motivação. Pois bem, para que o sujeito possa ser ,iv
rec' a^° Pe^a norma Penal que protege um bem jurídico-penal determinado, é -N
elo h- ^Ue ^'t0 sujeito possa saber que se encontra frente a um tal bem protegido : |
ado lre't0'
Pj 0 suje^Co não pode saber que sua ação irá lesionar um bem ampa-
Pelo Direito, como poderá sentir-se motivado a evitar dita ação pela norma *’
^ndcj se não pode ser motivado por ela? E se a norma não pode motivá-lo, não faz
roib'°~^Ue ° Pretenda Pr°ibindo o fato”, razão pela qual concluirá que “o erro de .
ao excluirá o terceiro e último nível necessário para que o dólo seja o dolus f;
3] ,
Semelhante argumento, no entanto, é plenamente válido para toda e qual- í
^ ^ s a de exclusão de culpabilidade, e não somente para o erro de proibição.32, S;
.. ao por outra razão uma causa de exclusão de culpabilidade pode vir a ser con- ‘;
3 eventualmente como excludente da tipicidade sem produzir outra conse- ; „
^nafj3 Senao de or^em sistemática (v. g . , dolo e culpa, que com o advento da dou-
, ^alista passaram a fazer parte da tipicidade, saindo da culpabilidade), o mesmo |Ü
P° «o ocorrer com as causas de justificação, como, por exemplo, com o consenti-; !
. «o ofendido, que, segundo Roxin,33 constitui causa de exclusão de tipicidade,
[ dor ilicitude- c°nforme a doutrina tradicional. Nada impede ainda que o legis- í;]
3 tl^nsforme uma causa de exclusão de culpabilidade em causa de justificação, já
fitllelhante distinção atende em última instância a razões político-criminais. ü
^ distinção entre umas e outras não preexiste à interpretação, mas é dela resul- -;4
0 . '.^Uvo pelo qual o mesmo comportamento ora pode considerado excludente de
^q ora de ilicitude, ora de culpabilidade, ora contrário ao direito.
( . r^> se assim é, resulta que a culpabilidade é, como assinalado, o pressuposto
1°S' dç efetividade (aplicabilidade) das normas jurídico-penais que se prestam à ,
Pre ^Çlo geral e especial de comportamentos socialmente lesivos e que, como tal,
na análise das várias categorias dogmáticas (tipicidade, antijuridicida-
Pabilidade), não constituindo, portanto, categoria autônoma da teoria do
de»0-Afinai como observa García-Pablos, um direito penal que pretenda exigir í
J I mSabilidades Por fatos que não dependam em absoluto da vontade do indiví-
U0 6íece ser qualificado de arbitrário e disfuncional, porque precisamente a
P jyj ece de poder motivador, e o castigo perderia toda sua justificação.34
de(legít^ ^SS° n^° ^uer d*zer que as chamadas causas de exclusão de antijuridicida-
l*tia defesa, estado de necessidade) signifiquem o mesmo que as denomina-
das causas de exclusão de culpabilidade (coação moral irresistível etc.), já que têm,
como dito antes, valor distinto, embora político-criminalmente se equiparem. De
fato, a distinção entre umas e outras radica em que as primeiras, por constituírem
c o n c e ito s do direito em geral, e não apenas do direito penal em particular, valem
para todo o ordenamento jurídico, motivo pelo qual a sentença penal como regra
faz coisa julgada no cível,35 porque constituem conceitos (ou valorações) gerais do
direito. Já as causas de exclusão de culpabilidade - conceitos jurídico-penais - só
valem para o direito penal (a sentença penal não faz coisa julgada no cível, assim,
v. g ., se reconhece a coação moral irresistível). Podemos assim dizer que as primei
ras constituem causas gerais de justificação (válidas para todo o direito); as segun
das, causas especiais de justificação (válidas em princípio só para o direito penal).36
Além disso, as primeiras (causas de exclusão de antijuridicidade) encerram uma
valoração eminentemente - mas não exclusivamente - objetiva37 ao passo que as
segundas (causas de exclusão de culpabilidade) resultam duma aferição essencial
mente subjetiva.
De todo o exposto, pode-se concluir nos seguintes termos: o ato de tipificar
uma conduta como criminosa (isto é, a opção política por criminalizar) já parte do
pressuposto da exigibilidade da conduta conforme a norma, razão pela qual em
todos os momentos de verificação do injusto penal impõe-se indagar sobre tal cir
cunstância. Logo, forçoso é reconhecer que as várias categorias dogmáticas carecem
de autonomia, já que não passam de “momentos” ou “níveis” ou “graus” de aferição
do caráter criminoso do fato. E se assim é, a tipicidade (total) compreende, num sis
tema funcional: a) a realização dos elementos do tipo (positivos, negativos e nor
mativos); b) a ausência de causas de justificação; e c) a ausência de causas de exclu
são de culpabilidade. De modo que se poderia, reformulando a teoria dos elemen
tos negativos do tipo, acrescentar esse terceiro elemento (letra c), ou seja, o tipo
total também compreende a ausência de causas de exclusão da culpabilidade.
Mas como justificar, num sistema funcional, que o direito penal tenha inim-
putáveis como destinatários se não podem compreender a mensagem normativa e
atuar segundo seu comando (não matar, não roubar etc.)? Basicamente duas são as
razões político-criminais que justificariam semelhante intervenção: prevenção
35 Código de Processo Penal, art. 65: “faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o
ato praticado em legítima defesa, em estado de necessidade, no estrito cumprimento do dever legal e no
exercício regular de direito”.
36 Conforme Silva Sánchez, que chama as causas de exclusão dé culpabilidade de “situação de justificação
incompleta ”, “...a diferença entre a justificação e a exculpação é de grau e que, em teoria, o legislador
poderia converter uma causa de exculpação em causa de justificação” ( Aproxim ación , cit., p. 414).
37 Basta pensar, por exemplo, que não se reconhece a legítima defesa se, embora presentes os requisitos obje
tivos, houver sido motivada por vingança. Como observa Juarez Tavares, a adoção de elementos subjeti
vos de justificação significa, simplesmente, que o autor só será acobertado ou só se beneficiará, por exem
plo, da legítima defesa se também, ao lado dos pressupostos objetivos, tiver atuado com a vontade de se
defender; no estado de necessidade, se agir com vontade de salvar o bem jurídico ameaçado etc. ( Teorias
do delito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 69-70).
Paulo Queiroz
38 Uma formulação semelhante encontra-se em Georg Freund, Strafrecht Allgem einer Teil, Heidelberg, '
1998, p. 112-117: “Visto desse modo, não há necessidade de um princípio geral e autônomo de exclusão
de culpabilidade. Os casos concretos devem ser afastados já no campo da tipicidade ou então ser solucio
nados pelo princípio geral da justificação (...) se, considerada a proteção in concreto de interesses maiores'
próprios ou de terceiros, não for possível proferir um juízo de reprovação de determinada conduta, não -
estará configurada a infração à norma de conduta como requisito essencial da incidência de pena (...) a ;
idéia da inexigibilidade de conduta diversa (lícita), freqüentemente discutida apenas sob o aspecto da cul
pabilidade, já adquire importância também para a questão da tipicidade ou, ainda, para a questão da jus- '
tificação: uma norma jurídica que exige o inexigível não possui legitimação jurídica. Caso se tome aquela
idéia como princípio regulativo, como, por exemplo, para a delimitação adequada do alcance dos ‘deveres
de cuidado e ação’ nos delitos culposos e omissivos, resta visível que aqui não se trata de mero problema
de culpa em relação a uma conduta ilícita típica, mas de um problema de delimitação adequada da tipici
dade (...). Se uma pessoa é inimputável (por exemplo, a criança, na forma do art. 19 do Código Penal, ou
em conseqüência de doença, conforme o art. 2 0 ) ou se, por outra razão, está afastada a responsabilidade
do indivíduo pelos próprios atos (exemplo: erro inevitável de proibição, art. 17, Ia frase), não ocorre a >
infração da norma de conduta, que, por motivos axiológicos e de conveniência, é o requisito para a puni
ção como conseqüência jurídica. A conduta do inimputável nem sequer representa perigo de dano para a *
validade da norma. Em momento algum o indivíduo fica aquém do que se pode exigir dele de direito. Ele
não pratica qualquer injusto pessoal; seu comportamento não viola as normas de conduta e, nesse senti
do, não é ilícito. Por isso, é irrelevante para a punição como conseqüência jurídica se alguém age com jus- ^
tificação ou ‘meramente’ sem cuipa (...) a exclusão de tipicidade, a incidência de justificação, a exclusão ‘
da culpabilidade e a escusa têm uma conseqüência comum: exclui-se a punição, de tal sorte que a classi- '
ficação, freqüentemente controvertida, não tem relevância”.
D ire ito Penal - Parte Gera)
Capítulo IV
Classificação dos Crimes
De acordo com o Código (art. 18), há crime doloso quando o agente quer o
resultado (dolo direto) ou assume o risco de produzi-lo (dolo eventual); culposo,
quando der causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia; e preter
dolosos ou pretenrintencionais são os crimes cujo resultado final vai além da inten
ção do agente, havendo dolo quanto à ação, e culpa quanto ao resultado (v. g., agri
de a vítima levemente, sem pretender causar-lhe maior dano, mas essa vem a óbito
por ser fisicamente muito frágil).
São crimes materiais (ou de resultado) aqueles em que o tipo penal descreve um
comportamento cuja consumação - entendida como completa realização dos ele
mentos do tipo - somente ocorre com a produção do resultado nele previsto. Assim,
por exemplo, o homicídio (CP, art. 121) e o aborto (art. 124), em que a consumação
se dá com a morte da pessoa ou do feto, não bastando a prática de atos de execução,
de sorte que, inocorrendo o resultado, o crime será simplesmente tentado.
Crimes form ais (de consumação antecipada) são aqueles cuja consumação
ocorre com a realização da ação, pouco importando o resultado, que constitui, em
conseqüência, mero exaurimento de um crime já previamente consumado. Assim,
por exemplo, a concussão (CP, art. 316) ou a extorsão mediante seqüestro (CP, art.
159), cuja consumação se dá, respectivamente, com o fato de o funcionário público
exigir (ação) vantagem indevida e de seqüestrar pessoa com o fim de obter qualquer
vantagem, independentemente do sucesso da ação (resultado). Por conseguinte, a
eventual obtenção da vantagem constituirá mero exaurimento de um crime já ple
namente consumado, isto é, consumado com a só exigência da vantagem indevida.
Por fim, nos chamados crim es d e m era conduta (crimes sem resultado), o tipo
só descreve uma ação (positiva ou negativa), sem aludir a qualquer resultado, de
niodo que a consumação se dá com a prática da ação ou omissão. Assim, o entrar
ou perm anecer, clandestina ou astuciosamente, em casa alheia (CP, art. 150), o
Paulo Q ueiroz
devassar correspondência alheia (CP, art. 151), o praticar ato ob scen o (CP, art. 233)'
etc., em que a só realização de tais ações basta para consumar o crime. \
Note-se que semelhante classificação decorre de conveniência político-cri-1
minai, de modo que, se o legislador quisesse transformar um crime material em H
formal ou um de mera conduta em formal ou material, bastaria alterar a redação^
do tipo. Assim, a concussão tornar-se-ia um crime material se, em vez de se decla- j
rar que constitui crime “exigir vantagem indevida, com o fim de obter...”, se dis- H
sesse: “obter, mediante exigência, vantagem indevida...”; igualmente, a violação-J
de domicílio, se se acrescentasse a expressão “perturbando a paz de seus morado-‘j|
res” etc. Por conseguinte, é a redação de cada tipo penal, notadamente o verbo 7-
usado na oração, que dirá se estamos diante de um crime material, formal ou de íjj
mera conduta.
O mesmo deve ser dito quanto às demais classificações referidas a seguir, pois
o critério determinante é sempre a redação de cada tipo penal. ‘^
Crime com um (é a regra) é aquele em que o tipo não exige condição especial
a lg u m a do sujeito ativo, podendo ser praticado por qualquer pessoa, a exemplo do
homicídio, do furto ou do estelionato. Já no especial ou próprio (é a exceção), dife
rentemente, o tipo faz referência a uma qualidade especial do agente, só podendo
ser praticado por algumas pessoas em particular, a exemplo do peculato, da concus
são (CP, arts. 312 e 316) e do patrocínio infiel (art. 355), que só podem ser pratica
dos, respectivamente, por funcionário público e advogado.
A doutrina refere ainda como espécie de crime especial, os crimes d e m ão p r ó
pria, que são aqueles que exigem, de parte do autor, a realização pessoal do tipo, não
se admitindo, por isso, a realização por interposta pessoa (autoria mediata), como
bigamia e falso testemunho. Ao contrário do que comumente se afirma, temos que
a participação nos delitos por mão própria é possível, visto que o partícipe coopera
na ação de outro, e, em conseqüência, não precisa ter a qualidade de autor.1
Crime sim ples é aquele em que o tipo penal descreve uma única lesão jurídi- jj.
ca (homicídio: matar alguém; lesão corporal: ofender a integridade física ou a saúde
de outrem; furto: subtrair coisa alheia móvel). Dizem-se com postos (ou complexos)
os crimes em que o tipo alude a mais de uma lesão; são crimes que resultam, enfim, ';á
da fusão de mais de um tipo penal. Exemplo: roubo (art. 157), que deriva da fusão
de furto (art. 155) + constrangimento ilegal (art. 146); latrocínio, que decorre da
fusão de rou bo + hom icídio. -i;;
A importância dessa classificação decorre sobretudo do disposto no art. 101 do -4
CP, que dispõe que, “quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do 3
tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação penal em relação >
àquele, desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do
Ministério Público”. ‘
i
8. Crimes de dano e de perigo
Crimes d e dano são aqueles em que o tipo penal descreve uma ação lesiva de
um bem jurídico, de modo que a conduta somente assume relevância jurídico- ;
penal quando se verificar dano (lesão) real ou potencial (consumação ou tentativa)
ao interesse tutelado (v. g., homicídio, roubo). Já nos crim es de perigo, o legislador,
ao descrever o tipo, contenta-se com o só perigo que a ação representa para o bem
jurídico. O perigo será concreto quando a descrição do tipo aludir a um perigo ”
ocorrido (real) de lesão, devendo ser comprovado. O perigo é abstrato ou presumi- ;
do quando o legislador tipifica a conduta por julgá-la perigosa em si, independen- ]
temente de qualquer risco efetivo, isto é, a lei o presume ju re et d e jure. !
Objeção corrente aos crimes de perigo abstrato é que, ao se presumir o perigo j
prévia e abstratamente, resulta em última análise que perigo não existe, de modo
D ireito Penal - P arte G eral
De ação única é o crime cujo tipo recorre a um único verbo (matar, subtrair,
seqüestrar); de ação múltipla, quando apela a vários verbos incriminadores, como
na receptação (adquirir, receber, transportar) ou no tráfico de drogas (importar,
exportar, remeter etc.), hipótese em que, havendo a realização de mais de uma ação
(v. g., adquirir droga, transportá-la, vendê-la), configura-se um único delito.
Cumpre notar que os crimes de múltipla ação dificilmente admitem a forma
tentada, visto que, embora em relação a algum verbo a ação possa ser considerada
tentada, o crime em geral é consumado, em face da realização plena de outros ver
bos típicos. Assim, por exemplo, o agente que é preso no aeroporto com droga já
acondicionada no avião para exportá-la responde por crime consumado, haja vista
que, não obstante a ação de exportar seja meramente tentada, ele já havia incorri-
Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes, A contravenção do art. 32 da Lei de Contravenções é de perigo abstra
to ou concreto?, Revista do IBCCrim, ano 2, n. 8 , out./dez. 1994; e A presunção de violência nos crimes
sexuais, Revista d o IBCCrim , ano 4, n. 16, out./dez. 1996.
Paulo Queiroz
do noutros verbos típicos (conduzir, trazer consigo, guardar etc.); afinal, o crime é!
“traficar droga”, formado de múltiplas ações, e não “exportar droga” simplesmente.'
Se se entender que existem vários crimes, violar-se-á o princípio da legalidade e ne%
bis in idem. ‘S
Capítulo V
Relação de Causalidade
1. Introdução
Da relação causai cuida o art. 13, caput, do Código Penal, dispondo que “o
resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe
deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria
ocorrido”. O Código adotou, portanto, a teoria da equivalência dos antecedentes
causais ou teoria da conditio sine qua non (condição sem a qual não),1 embora de
forma mitigada, uma vez que o § l s do referido artigo a relativiza consideravelmen
te, teoria cuja formulação se deve a Julius Glaser (1858) e, em especial, a Maximilian
A despeito disso, o Código, como nota Tavares, tendo em vista a questão das concausas supervenientes e
com o propósito de limitar o regresso infinito do processo causai, procurou dispor acerca da interrupção
da causalidade, por meio de uma fórmula que praticamente desnatura a teoria da condição por ela adota
da: “a superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produ
ziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou” (art. 13, § 1Q) ( Teoria do
injvsco penal , cit., p. 216-217).
Paulo Queiroz
2.1. Alcance
caso a lesão produzida pelo golpe fosse leve ou em região não fatal (causa preexisten
te). Entretanto, se a morte sobreveio em razão do agravamento do quadro hemofíli
co causado pelo golpe (hipótese mais provável), evidente que A responderá pela
morte. Por conseguinte, é também irrelevante, para efeito de estabelecer o nexo cau
sai, se a hipótese é de causa preexistente ou concomitante ou mesmo superveniente.
O importante não é o tempo da causa, mas a sua eficiência no caso concreto.
Para além disso, a questão fundamental reside sempre em dar ao caso concre
to uma solução justa e conforme com os princípios penais.
maneira exatamente idêntica, a ação poderia ser excluída mentalmente sem que o
resultado desaparecesse. A causalidade de seu comportamento, por óbvio, não
deixa de existir; se se quisesse questioná-la, então, uma vez que tampouco o com
portamento hipotético do segundo é causa, chegar-se-ia à absurda conclusão de que
a morte da vítima não teve causa alguma. O mesmo vale para o exemplo da causa
lidade altenativa, em que A e B, de modo independente, adicionam veneno ao café,
mas a quantidade tanto de A como de B já for por si só suficiente para causar a
morte exatamente da mesma maneira, então se poderia eliminar a ação de qualquer
dos dois, sem que o resultado desaparecesse. Não existiria, também aqui, qualquer
causalidade para a morte ocorrida, de modo que A e B só poderiam ser punidos pelo
homicídio tentado, quando o correto seria, se as duas doses tiveram eficácia real,
considerar que A e B tenham causado a morte, devendo ambos responderem por
crime consumado.12
Por fim, em muitas situações de concurso de agentes, notadamente na “partici
pação de menor importância” (CP, art. 29, § l s), poder-se-ia objetar, na grande maio
ria dos casos, que não existe nexo causai, pois, suprimida essa participação, o resulta
do teria ocorrido como ocorreu, a ensejar a absolvição pura e simples do partícipe.
Não obstante, muitos autores há que ainda a defendem, como Luzón Pena,
para quem, apesar de tudo, a fórmula hipotética da con ditio sine qua non continua
sendo um instrumento auxiliar muito útil para determinar se em concreto há ou
não relação causai nos casos duvidosos.13 Também assim Santiago Mir Puig.
'6
especial, porque requer uma qualificação especial do autor. Por isso, Jescheck pre
fere a denominação “omissão simples” e “omissão qualificada” a omissão própria e
imprópria, respectivamente.15
Tanto nos crimes omissivos próprios quanto nos omissivos impróprios, o legis
lador pune a abstenção do comportamento do agente, que deixa de praticar uma
ação que lhe é determinada por lei. Portanto, a omissão não significa “não fazer
nada”, mas “não fazer algo determinado” (Blei), já que todos os crimes omissivos
têm em comum a omissão do dever jurídico, constituindo infrações-de normas pre-
ceptivas,16 ou, como diz Welzel, omissão não significa um mero não fazer, mas não
fazer uma ação possível subordinada ao poder final de uma pessoa concreta.17
No entanto, enquanto os omissivos próprios supõem a violação de um dever
d e agir, simplesmente, nos comissivos por omissão, o agente tem, além desse dever
legal de agir, um dever legal de evitar o resultado, motivo pelo qual o omitente res
ponde como se o tivesse produzido, em razão de o legislador considerar, nos omis
sivos impróprios, mais grave a inação, dado o tipo especial de relação que se esta
belece entre o agente e o bem jurídico tutelado. Dito mais claramente: nos crimes
omissivos impróprios, o legislador equipara a om issão à ação, de sorte que, por
exemplo, responde por homicídio quem, embora não tendo matado a vítima, devia
agir no sentido de evitar-lhe a morte (assim, policiais, bombeiros, salva-vidas), mas
não o fez, podendo fazê-lo.
Naturalmente que, com a ação requerida nos crimes omissivos próprios, pre
tende-se também evitar um resultado valorado negativamente pelo ordenamento
jurídico (no exemplo seguinte, morte da criança), mas o legislador não obriga 0
omitente a impedir o resultado,18 diferentemente do que ocorre nos crimes omis
sivos impróprios, em que há a obrigação de evitá-lo.
Assim, por exemplo, se A, ao passear pela praia, percebe que uma criança se
afoga e deixa de prestar-lhe socorro, embora pudesse fazê-lo sem risco pessoal, res
ponderá por crime de omissão de socorro (CP, art. 135). No entanto, se A for 0
salva-vidas que ali atue, a ele será atribuído o resultado, é dizer, a morte da crian
ça, como se ele mesmo 0 tivesse produzido. Ou seja, se, na primeira hipótese, impu-
ta-se-lhe a só omissão (pelo não-cumprimento do dever), na segunda se lhe atribui
o próprio resultado da omissão (algo mais): a morte. Nos crimes omissivos impr^
prios, enfim, o Código equipara, como dito, a omissão à ação. O Projeto Alcântara
Machado (1969), aliás, dispunha no particular que “não impedir um evento que se
tem o dever jurídico de evitá-lo eqüivale a causá-lo”.
Por conseguinte, se os crimes omissivos próprios são crimes de mera conduta,
os omissivos impróprios são crimes materiais.
Naturalmente que o agente responderá a título de dolo ou culpa, conforme as
circunstâncias do caso concreto, tal como ocorre com os crimes comissivos.
^ Como diz Tavares, a relevância da om issão, com o violação do dever de agir, é que assinala sua própria ex is
tência, pois ela p ertence àquela categoria dos objetos dependentes dc que falava Husserl, de m odo que não
possui existência real por si m esm a, senão quando associada a outro elem en to , representado pelo dever
controvérsias cm torno dos crim es omissivos, Rio de ja n eiro : Institu to L atin o-A n ierican o de
"20 ^0oPen ,Çã° Penal, 1996, p. 29).
■ teoria pura do direito, cit.
_ Welze), Derecho penaU cit., p. 238.
Finalmente, a imputação do resultado nos crimes omissivos impróprios pres
supõe que o omitente tenha o dever legal d e agir, dever que, segundo os termos do
Código, incumbe às pessoas taxativamente indicadas no § 2Qdo art. 13, a saber: a)
quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) quem, de outra
forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) quem, com seu com
portamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. Tratando-se de pes
soa que aí não se inclua, o agente não responderá pelo resultado, sob pena de vio
lação do princípio da legalidade, podendo-se no máximo imputar^lhe crime omis-
sivo próprio [v. g., omissão de socorro).
A primeira hipótese a justificar a equiparação da omissão à ação, devendo o
agente responder como se tivesse ele mesmo produzido o resultado, diz respeito
àqueles que tenham o dever legal de proteger, cuidar ou vigiar (v. g., policiais,
bombeiros, médicos, pais, tutores). A segunda, residual em relação à primeira, pre
tende alcançar situações em que o agente, embora não tendo o dever legal, assume,
por qualquer outro modo, a responsabilidade de impedir o resultado, isto é, assume
o dever de cuidar, proteger ou vigiar, que pode resultar tanto de uma manifestação
unilateral de vontade como de acordo (v. g., guarda de segurança particular, guia
de turismo). Por último, a lei refere a hipótese de o agente criar risco de ocorrên
cia do resultado (v. g., o causador de um incêndio, o alpinista, em relação àquele
que instiga a acompanhá-lo).
Em se configurando a relevância jurídico-penal da omissão, nos exatos termos
do § 2S do art. 13, o agente responderá a título de dolo ou culpa, conforme tenha
se omitido intencional ou imprudentemente, também em respeito ao princípio da
legalidade.22 A estrutura, aliás, do dolo e da culpa no crime omissivo impróprio é
basicamente a mesma do delito comissivo,23 admitindo-se a punição a título de
culpa tão-só quando houver previsão legal expressa.
22 Por isso não me parece correto dizer, como faz Cláudio Brandão, que, se um sujeito atropela um pedestre
em local ermo e deixa de socorrê-lo ao notar que a vítim a é um seu desafeto, aband onando-a, a qual vem
a m orrer, teria de responder, nesse caso, por hom icídio doloso, e não por omissão de socorro, porque com
o atropelam ento causou um perigo para a vida da vítima (Teoria, cit., p. 36). Nesse caso, em verdade, o
agente deverá responder, unicam ente, pelo que fez, isto é, matar culposam ente; incorren do, ipso facto, nas
penas do crim e de hom icídio culposo qualificado pela não-prestação de socorro (C P , art. 121, §§ 3a e 4a).
É que o só fato de não prestar socorro à vítima não pode converter uma ação culposa em dolosa, sob pena
de violação dos princípios da legalidade e proporcionalidade.
23 Nesse sentido, Sheilla Bierrenbach, para quem o dolo exige consciência e vontade de p reen cher o tipo
norm ativo, sendo com preensivo, portanto, da situação típica, do poder de agir e da posição de garante
(Crimes omissivos impróprios , Belo H orizonte: Del Rey, 2002, p. 95),
24 Cf. Jescheck, Tratado, cit., p. 550.
D ireito Penal - Parte Geral
33 Entende, porém, Sancinetti que a teoria da imputação não é, propriamente, uma teoria, no sentido de um
corpo harmônico de proposições teóricas, mas sím o nome sob o qual aglutinou-se um conjunto de prin
cípios delimitadores e corretivos da tipicidade ( apud Fábio Roberto D’Avila, Crime culposo e a teoria da
imputação objetiva, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 136).
34 Tavares, Teoria do injusto penal, cit., p. 222.
35 Mir Puig, D erecho penal, cit., p. 231.
36 Em sentido contrário, Bustos Ramírez, para quem a imputação objetiva constitui uma questão afeta à ili
citude: “a imputação do resultado não pode ser um aspecto de tipicidade, nem conceituai nem sistemati
camente, mas só de antijuridicidade, enquanto aqui entram em jogo todas as outras valorações que recor
rem ao bem jurídico desde o ordenamento em seu conjunto” ( Manual de derecho penal, Barcelona: Ed.
Ariel, 1996, p. 200).
Paulo Queiroz
frente choca-se com um terceiro ciclista, que transitava no sentido contrário e não
o viu, em face da falta de iluminação. Certamente, se o ciclista que vinha atrás esti
vesse iluminando o seu caminho, o terceiro ciclista teria evitado a colisão. Em tal
hipótese, Roxin afirma que a impossibilidade de imputação se dá em virtude da ine
xistência da obrigação de iluminar bicicletas alheias, e que a norma que impõe o
dever de trafegar com faróis acesos tem a finalidade de evitar sinistros com a pes
soa do próprio condutor, e não de terceiros.44 A não-imputação do tipo de lesões
ou homicídio decorreria, enfim, do fato de não se achar o resultado coberto pelo
fim de proteção da norma.
Já no que diz com a imputação nos crimes dolosos, como, por exemplo, se A,
querendo matar ou lesionar B , o convence a praticar esportes violentos ou similar,
conseguindo seu propósito lesivo, tampouco é necessário recorrer a critérios de
imputação objetiva. É que, segundo Gimbemat Ordeig, em tais casos, a se imputar
o resultado lesivo ao autor, violar-se-ia a máxima cogitationis poenam n em o pati-
tur, proibitiva da punição de simples intenções. Com efeito, “o legislador não pode
proibir meros pensamentos nem intenções se estes não se exteriorizam num com
portamento com mínima aparência delitiva (...), porque se tal resultasse proibido
(tipificado), então não se estariam castigando fatos - que são absolutamente corre
tos - senão unicamente pensamentos que não se traduziram numa manifestação
exterior que ofereça aparência alguma de desvalor. O tráfego aéreo, a exploração
de minas de carvão ou as corridas de fórmula 1, quando realizadas'observando a
diligência devida, são atividades expressamente aprovadas - porque nelas não exis
te um mínimo desvalor objetivo - pelo ordenamento jurídico; e se o fato realizado
constitui uma conduta correta - por mais que se realize com más intenções - então,
para um Direito penal regido pelo princípio do fato, não existe tampouco uma
manifestação externa à qual se possa vincular uma proibição (tipificação) penal”.46
O mesmo se deve dizer dos exemplos de que se socorre Damásio, do fugu
assassino (peixe que contém veneno mortal) e do carrasco frustrado: no primeiro
caso, a esposa, desejando que o marido morra, incentiva-o a consumir o fugu, prato
que aprecia, na esperança de que um descuido do cozinheiro (não eliminar o vene
no do fugu ao prepará-lo) proporcione a morte do indesejado companheiro; no
segundo, condenado à guilhotina o autor de estupro, frações de segundo antes de o
carrasco puxar a alavanca, o pai da vítima, que assistia à execução, utilizando-se de
um revólver, dispara um tiro contra a cabeça do condenado, matando-o e frustran
do a execução. Com efeito, na primeira hipótese (do fugu), contrariamente ao que
afirma Damásio, para quem há uma ação dolosa e nexo de causalidade, em verda
de não existe uma ação, nem sequer - logo, não há tipicidade - no sentido jurídi-
co-penal, pois a atuação do agente é objetivamente correta e, como tal, desprovida
de desvalor social. Há, isso sim, um simples desejo de que tal ato (consumir deter
minado prato ou, se fosse o caso, praticar esportes violentos ou viajar de avião)
cause a morte da vítima, não sendo a atuação da mulher que matou o marido, mas
o consumo, espontâneo e normal, do fugu. Por conseqüência, tem toda pertinên
cia, no particular, a máxima invocada por Gimbemat Ordeig, atribuída a Ulpianus:
cogitationis poenam n em o patitur. Não é preciso maior esforço para chegar a tal
conclusão; muito menos apelar à teoria da imputação objetiva.
Já quanto ao segundo caso (do carrasco frustrado), diferentemente do que pre
tende Damásio, existe, sim, nexo causai entre a ação do autor do disparo (pouco
importando de quem parta) e a morte do condenado sob execução, pois, embora o
5.4. Conclusão
52 La imputación objetiva: estado de la questión, in Sobre el estado de la teoria do delito, Cuadernos CiVifas.
Madrid, 20 0 0 .
53 Teoria do injusto penal, cit., p. 222.
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l
Capítulo VI
Teoria do Dolo
3 Binding, Die Normen, citado por Von Liszt, Tratado, cit., p. 285. Nem todos os causalistas assim pensa
vam, porém. Von Liszt, por exemplo, era de opinião de que o dolo não compreendia a consciência da ile
galidade, pois, a se exigir tal coisa, paralisar-se-ia a administração da justiça, impondo-lhe o encargo de
provar, em cada caso ocorrente, que o agente conhecia o preceito violado.
4 Direito penal, São Paulo: Saraiva, 1984, v. 1, p. 145. No mesmo sentido Hungria: “dolo não é só represen
tação e vontade do resultado antijurídico: é também consciência de que se age contrariamente ao direito,
ou, mais concisamente, consciência da injuridicidade. Sem o entendimento de oposição ao dever jurídico
ou de que se incide no juízo de reprovação que informa o preceito incriminador, não há falar de dolo
(Comentários, cit., p. 143). Também Frederico Marques: “a concepção do dolo, sem essa consciência da
ilicitude, além de estreita e limitada, é contrária aos fundamentos éticos do direito penal. Quem atua de
boa-fé, crendo não estar em oposição à ordem jurídica, nada apresenta de reprovável em sua conduta-
diz Beling: só se lhe pode censurar a inadvertência, o que não corresponde ao comportamento doloso,
expressão máxima da culpabilidade. E acrescenta o mestre germânico: ‘a intenção só tem sentido dirigm-
do-se ao tipo de ‘ilicitude’ e não apenas ao externamento típico prescindindo do conteúdo ilícito
( Tratado, cit., p, 258).
5 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., p. 160.
6 Derecho penai alemán, cit., p. 77.
7 Welzel, Derecho penal alemán, cit., p. 92.
D ir e ito P e n a l - P a r te Geral
8 Assim, por exemplo, Luzón Pena: o conceito de dolo que aqui se mantém é: conhecim ento e vontade
de realizar todos os elementos objetivos do tipo total de injusto, tanto os de sua parte positiva ou tipo indi-
ciário, como os de sua parte negativa do tipo, é dizer, a ausência dos elementos de causas de atipicidade e
causas de justificação; uns e outros são ospressupostos da antijuridicidade ouproibição penal. Em contra
partida, o dolo não requer conhecimento ou consciência da própria antijuridicidade ou proibição (nem
geral nem penal) da conduta” (Curso, cit., p. 405).
9 Munoz Conde, Teoria, cit., p. 57.
10 D erecho penal, cit., p. 463.
^ Aproximación, cit., p. 402.
P a u lo Q u e ir o z
entender, com razão, o dolo como dolus malus,12 é dizer, compreensivo da cons
ciência da ilicitude.
Sabemos, por exemplo, que, entre algumas tribos indígenas brasileiras é
comum o acasalamento desde tenra idade. Ora, dizer para um índio de tal tribo que
ele comete umiCrime de atentado violento ao pudor (ou estupro) lhe parecerá estra
nho e absolutamente incompreensível, pois tal prática faz parte de suas tradições e
costumes. Dizer, enfim, com o finalismo, que tal índio age com dolo - embora não
atue culpavelmente - é algo um tanto artificial, pois que constituirá um juízo a-his-
tórico, a-social, a-valorado, enfim. Dito de outra forma: nem sequer possui o índio
o conhecimento profano, pois só poderia ser diferente se tivesse um conhecimen
to de especialista em costumes e tradições “brancas”. Em relação, assim, à imputa
ção do tipo do art. 214, o nosso índio, sua parceira e sua tribo poderão legitimamen
te questionar: atentado violento ao pudor de quem? Imagine-se ainda se a hipóte
se fosse a de imputar-lhe a prática de crime de ato obsceno (CP, art. 233) por man
ter relações sexuais publicamente ou por simplesmente expor sua nudez.
Já não bastasse isso, o índio, atuando dentro do que lhe é constitucionalmen
te assegurado (CF, art. 231, caput), atua legitimamente (exercício regular de direi
to), não praticando sequer um fato típico (segundo a perspectiva aqui adotada).
Ademais, se o dolo é, como diz Welzel, “saber e querer a realização do tipo”,
como afirmar nessas circunstâncias que tais pessoas queiram e saibam que realizam
o tipo de atentado violento ao pudor ou de estupro se carecem do conhecimento
mínimo do significado negativo/desvalor social da conduta? Definitivamente, afir
mar a presença de dolo neste e noutros tantos casos só é possível se descontextuali-
zarmos e abstrairmos o sujeito do seu ambiente sociocultural, ou seja, a idéia de um
dolo natural só é possível à margem da realidade; é pois uma criação artificial. Por
isso é que semelhante conceito valeria, indistintamente, para a criança e o adulto,
alemães e afegãos, apesar das enormes diferenças que os separam. Não existe um
conceito de dolo - nenhum conceito aliás - válido para além do tempo e de espaço.
Consideremos um outro exemplo: suponha que uma pessoa - habitante da
zona rural dos confins do Brasil, que tenha por hábito caçar nos finais de semana,
como faz a maioria das pessoas que habita aquele lugar (coisa que lhe parece abso
lutamente normal e legítima) - venha a ser presa em flagrante delito por crime
contra o meio ambiente e porte ilegal de arma de fogo. Ora, como sustentar que em
12 D erecho penal, cit., p. 240. Escreve o citado autor, textualmente: “a nosso juízo, o dolo com pleco exige a
‘consciência da antijuridicidade’, porém é conveniente distinguir três graus ou níveis de dolo: o dolo típi"
co, que só exige o conhecimento e vontade do fato típico, o dolo referido ao fato típico sem os pressupos
tos típicos de uma causa de justificação, e o dolo completo, que, ademais, supõe o conhecim ento da anti
juridicidade ( dolus malus). A o escudar o tipo doloso importa unicamente o prim eiro nível d e dolo típico,
que corresponde ao conceito de dolo natural usado p elo finalismo. Nesse contexto, e por motivos de bre
vidade, em princípio, utilizaremos o termo dolo no sentido de dolo típico. Quando nos ocuparmos das
causas de justificação, veremos que então o dolo exige o segundo nível de dolo correspondente.
Finalmente, o dolo completo será necessário para a imputação pessoal da antijuridicidade penal.”
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l
iL
P a u )o Q u e ir o z
querendo matar um desafeto, de posse de uma arma de fogo, dispara tiros em sua
direção; de furto, quando, pretendendo apossar-se de um automóvel, aciona o
motor com chave falsa, fugindo a seguir; de receptação, quando adquira mercado
ria que sabe roubada; de estupro, quando, visando manter relações sexuais com
uma mulher, faça uso de violência ou grave ameaça para tanto. Necessariamente o
dolo deverá ser contemporâneo da prática da conduta criminosa, de modo que, se
for posterior ou anterior à conduta, não se caracterizará. Assim, por exemplo, se,
após comprar mercadoria em condições normais e de boa-fé, o agente vier a saber
dias depois que se tratava de coisa obtida criminosamente, não há dolo de recepta
ção na modalidade “adquirir” (CP, art. 180), porque a aquisição do conhecimento é
posterior (e não contemporânea) à consumação do fato.
Portanto, o dolo deve existir ao tempo da execução do crime e nãb depois de con
sumado; mas isso não significa que deva existir durante toda a fase de execução, pois
mesmo que o agente desista ou se arrependa e tente inutilmente evitá-lo, responderá
por crime doloso. Assim, por exemplo, se o autor de um atentado, depois de colocar a
bomba, arrependido, tenta por rádio conseguir uma aterrissagem prematura do avião
e assim salvar os passageiros, responderá a título de dolo, se não tiver êxito.15
Também não basta a existência de dolo antecedente à execução, porque o dolo
na fase de cogitação ou preparação não é punível como tal: quem adquire uma arma a
fim de matar, persegue a vítima, aponta em sua direção e desiste de fazê-lo, mas ainda
assim dispara acidentalmente, responde por crime culposo e não doloso.
alternativo, dolo genérico ou dolo específico.22 Dolo direto há quando o autor quer
o resultado e age no sentido de realizá-lo, como nos exemplos antes citados;23 e
dolo eventual, quando, fora do caso anterior, o agente considera seriamente possí-
vel a realização do tipo e se conforma com isso,24 ou, para dizê-lo com o Código (art.
1 8 ,1, parte), no dolo eventual, o agente assume o risco de produ zir o resultado.
Mas a distinção não é tão fácil assim, conforme se verá logo mais.
A doutrina, especialmente alemã e espanhola, distingue ainda dolo de primei
ro grau de dolo de segundo grau: o primeiro compreende o resultado ou resultados
que o agente persegue diretamente; o segundo, todas as conseqüências que, mesmò ,
que não perseguidas e até eventualmente lamentadas, o autor prevê como inevitá
veis. Assim, por exemplo, quem coloca uma bomba num automóvel pretendendo -
atingir uma pessoa determinada sabe que poderá matar outras pessoas próximas ou,
que acompanhem a vítima. Existirá assim dolo de primeiro grau quanto à primeira
vítima e dolo de segundo grau quanto às demais.
Também aqui não existe distinção quanto ao tratamento legal nem quanto à pena v
cominada, mesmo porque o Código Penal brasileiro não a conhece nem a refere.
22 Como assinala Juarez Tavares, não há mesmo razão cientifica alguma na apreciação da terminologia dej
dolo de ímpeto, dolo alternativo, dolo determinado, dolo indireto, dolo específico ou genérico, quepodè^
trazer confusão à matéria e que se enquadra ou entre os elementos subjetivos do tipo ou nas duas espécies',
mencionadas (Espécies de dolo e outros elementos subjetivos do tipo, Revista de Direito Penal, Rio de-.
Janeiro: Borsoi, n. 6 , p. 22, 1972).
23 A doutrina alemã refere, além do dolo direto e eventual, a intenção (ou propósito), em verdade, espécie ''
do gênero dolo direto (em sentido amplo). Para Roxin, segundo o qual ‘“a realização do plano’ constitui.a^
essência do dolo: um resultado há de se considerar dolosamente produzido quando e porque se correspon' -
de com o plano do sujeito em sua valoração subjetiva”, “sob o conceito de intenção ou propósito cai o quç .
o sujeito persegue; por dolo direto (de segundo grau) são abrangidas todas as conseqüências que, embora.-^
não as persiga, o sujeito prevê que se produzirão com segurança; e com dolo eventual atua quem nãopeT"
segue um resultado e tampouco o prevê como seguro, senão que só prevê que é possível que se produza*:^
porém para o caso de sua produção o assume em sua vontade” (Derecho penal, cit., p. 415). Apesar da dis*Y
tinção, desnecessária, entende Jescheck que, diante da certeza de que em todo caso se realiza o tipo, cabe, ,
equiparar o dolo direto com a intenção quanto ao conteúdo do injusto e da culpabilidade ( Tratado, cit.p ..
269). Adotando a distinção proposta pela doutrina alemã, entre nós, Juarez Cirino dos Santos, A moderDK
teoria do fato punível, 2. ed., Rio de Janeiro: Revan.
24 Jescheck, Tratado, cit., p. 269. ' .«
25 Derecho penal alemán, cit., p. 83.
26 Como diz Silva Franco, tolerar o resultado, consentir na sua provocação, estar com ele conforme, assu®^*
o risco de produzi-lo não passam de formas diversas de expressar um único momento, o de aprova*"0
resultado alcançado, enfim, o de querê-lo (Código Penal e sua interpretação jurisprudencial , cit., p- *■”*'
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l
sem que com isso se aceite o resultado. No dolo eventual, pois, o autor atua segun
do a fórmula: “seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir”
(Frank)- Na culpa consciente há um erro de cálculo enquanto no dolo eventual há
uma dúvida.27
Existe, por conseguinte, entre dolo eventual e culpa consciente, como obser
va Hungria, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico, ma?, enquanto
no dolo eventual o agente presta anuência ao advento desse resultado, preferindo
arriscar-se a produzi-lo, em vez de renunciar à ação, na culpa consciente, ao con
trário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência
do resultado, e empreende a ação na esperança ou persuasão de que este não ocor
rerá,28 pois assumir o risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o
risco: é consentir previamente no resultado, caso venha este a ocorrer realmente.29
Se, por exemplo, A, portador do vírus HIV, mantém relações sexuais com B, sua
parceira, sem adotar qualquer precaução, motivo pelo qual B contrai o vírus (e a
doença), responderá A a título de dolo eventual (de homicídio ou lesão grave, con
forme o caso); se, porém, utiliza preservativo e ainda assim ocorre a contaminação
em razão do seu rompimento, haverá culpa consciente.30 E que no primeiro caso o
agente assumiu o risco de produzir o resultado; no segundo, confiou em que, com
a adoção dos cuidados mínimos, tal não ocorreria.
Pode-se enfim dizer que há dolo eventual quando o sujeito conta seriamente
com a possibilidade de realização do tipo, mas segue atuando para alcançar o fim
perseguido e se conforma com a eventual produção do resultado; contrariamente,
haverá culpa consciente quando preveja a realização do tipo, mas não a toma a sério
e, em conseqüência, tampouco se conforma com sua ocorrência, acreditando,
imprudentemente, que não se realizará.3! Existe culpa consciente em geral por
parte de médicos que realizam cirurgias especialmente perigosas e causam a morte
do paciente por imprudência ou imperícia; com mágicos que submetem a si e a
outras pessoas a truques muito arriscados; com pessoas que praticam esportes radi
cais, com dublês em estúdio de cinema etc., que sabem que podem ferir ou matar,
e produzem resultados imprudentes, mas não agem dolosamente.
Apesar disso, forçoso é reconhecer, com Tavares, que a distinção entre dolo
eventual e culpa consciente continua sendo um dos pontos mais controvertidos e
nevrálgicos da teoria do delito,32 mesmo porque no fundo tanto no dolo eventual
quanto na culpa consciente o agente assume igualmente, segundo pensamos, o
nsco de produzir o resultado. O que de fato distingue uma situação da outra é que
"P Paulo José da Costa Júnior, Curso de direito penal, São Pauio: Saraiva, 1999, p. 83.
29 ^onienfános, cit., p. 116-117.
•jq Hungria^ Comentários, cit., p. 122.
Cf. Tavares, Teoria do injusto penal, cit., p. 289.
Roxin, D erecho penal, cit., p. 427.
Tavares, Teoria do injusto penal, cit., p. 283.
na primeira o autor quer, ainda que só eventualmente, o resultado, ao passo que na
segunda não o quer, nem mesmo indiretamente. Dito de outra forma: no dolo
eventual, o agente assume o risco e assume o seu possível resultado; na culpa cons
ciente, ao invés, o agente assume o risco, mas não assume o resultado, acreditando
(e desejando) que não ocorrerá.
Para distinguir dolo eventual e culpa consciente, a doutrina ora recorre a cri
térios cognitivos (intelectuais), ora apela a critérios volitivos. Dentre as primeiras
teorias, convém referir a teoria da representação (ou da possibilidade), a teoria da
probabilidade, a teoria da evitabilídade e a teoria do risco. Dentre'as segundas, as
teorias do consentimento ou da assunção e a teoria da indiferença.
Para a teoria da representação (Schrõder e Schimdhãuser), que só admite a
culpa inconsciente, negando a existência da culpa consciente, haverá dolo eventual
sempre que o agente admita conscientemente a possibilidade da ocorrência do
resultado, razão pela qual a distinção entre dolo e culpa reside no conhecimento ou
desconhecimento do autor quanto aos elementos do tipo objetivo, de modo que, se
houver conhecimento, haverá dolo, se não, haverá culpa.33
Já para a teoria da probabilidade, que é uma variante da anterior, haverá dolo
eventual sempre que o autor tiver considerado como provável a lesão do bem jurí
dico. Adepto dessa corrente, Jakobs considera que há dolo eventual quando, no
momento da ação, o autor julgar que a realização do tipo não é improvável como
conseqüência de sua ação, mas para tanto não basta o mero pensar na possibilida
de do resultado, pois é necessário ainda um conhecimento que se apresente ao
autor como capaz de produzir o resultado segundo a experiência, não se tratando
de mera especulação, é dizer, para configuração do dolo eventual, exige-se um juízo
refletivo, válido, sobre o poder concreto de lesão de sua ação.34 Assim, por exem
plo, quem, para ganhar uma aposta, atira na direção de uma bola de cristal que uma
pessoa sustenta na mão, atua com dolo eventual de lesões, não o d e s c a r a c te r iz a n d o
o seu esforço para s ó acertar o alvo e não a pessoa.35
Também Puppe entende que um perigo será um perigo doloso, que funda
menta o dolo, quando ele representar em si um meio idôneo para a provocação do
resultado, sendo que os critérios com base nos quais se deve valorar se um perigo e
ou não idôneo não são entregues à disposição do autor, mas determinados norma-
tivamente, como critérios objetivos.36 Assim, de acordo com Puppe, que trabalha
com o critério do conhecimento sobre um perigo qualificado, haverá dolo quando
e determinada, não havendo por que se lhe restringir o alcance a determinados ele
mentos seus - os objetivos. Afinal, não existe, realmente, um “dolo genérico” ou
um “dolo específico”, mas um “dolo de tipo”, isto é, um dolo de matar, de furtar
etc., compreensivo, portanto, de todos os elementos que o formam.
Finalmente, a pretendida distinção entre elementos objetivos, subjetivos e
n o rm ativ o s do tipo é bastante questionável, em virtude do caráter estruturalmen
te aberto da linguagem.42
Por isso, Rosa Maria Cardoso da Cunha, quando afirma que é arbitrária a distinção feita pelo pensamen-
to dogmático entre elementos descritivos e normativos, com o fim de situar apenas estes últimos como
objeto valorativo do juízo, porque tal distinção desconsidera a circunstância de que nenhum elemento do
tipo pode ser conhecido pela simples verificação sensorial. Com efeito, mesmo expressões como homem,
casa, membro etc. apontam para objetos que reclamam um juízo histórico e valorativo. O caráter retóri
co do princípio da legalidade. Porto Alegre: 1979, p. 64.
P a u lo Q u e ir o z
Tem-se objetado, não sem razão, que os crimes qualificados pelo resultado são
inconstitucionais, uma vez que atentam contra os princípios de proporcionalidade
e isonomia.
Nesse sentido, Juarez Cirino assinala que “os crimes qualificados pelo resulta
do, especialmente os tipos com lesão corporal ou roubo com resultado morte
imprudente (por exemplo, A golpeia o rosto de B com um revólver carregado, que
dispara e acidentalmente mata B), são incompatíveis com o princípio da culpabili
dade, porque a gravidade da pena é desproporcional em relação às punições inde-
pendentes do tipo fundamental e do homicídio imprudente, o que transforma a
responsabilidade penal por tais crimes numa versão moderna do velho versari in re
illicita do direito canônico, originando propostas desde a redução corretiva da
pena, como quer Jakobs, até a abolição d e leg e ferenda dos crimes qualificados pelo
resultado, como sugere Jescheck”.43
Posição semelhante adota Tavares, para quem os delitos qualificados pelo
resultado só poderiam ser admitidos se constituídos com o mesmo conteúdo de
injusto dos delitos que resultassem de uma relação de concurso formal, pois do con
trário violam o sistema de fundamentação do injusto penal, porque não represen
tam maior gravidade na lesão ou perigo de lesão ou no perigo de lesão de bem jurí
dico.44 Considera ainda que no que toca à pena cominada, por exemplo, aos crimes
de lesão seguida de morte e latrocínio, pela disparidade das sanções possíveis, acres
cidas no máximo de agravação do concurso formal, pode-se afirmar que se está vio
lando o princípio da proporcionalidade, segundo o qual para resultados danosos
idênticos deve-se seguir a mesma conseqüência penal.45 Já Roxin entende que as
objeções, embora procedentes em parte, não justificam a abolição dos crimes qua
lificados pelo resultado, mas sugerem uma ampla restrição dos mesmos à provoca
ção temerária do resultado mais grave.46
De todo modo, enquanto existirem tipos qualificados pelo resultado será pre
ciso estar atento para a não aplicação de penas desproporcionais, isto é, penas que
excedam àquelas que seriam cabíveis para o concurso de crimes, sobretudo concur
so material de crimes.
Finalmente, além desse erro de tipo (essencial) de que estamos tratando, have
rá erro de tipo acidental, que não afasta nem o dolo nem a culpa, nos seguintes casos:
erro sobre a pessoa (error in person a), erro na execução (aberratio ictus), resultado
diverso do pretendido (aberratio criminis) etc., dos quais se tratará mais adiante.
10.1. Conceito
atingir essa consciência” (CP, art. 21, parágrafo único). Vale dizer: somente terá
lugar a isenção de pena por erro inevitável quando o agente não puder, com um
esforço mínimo, obter concretamente o conhecimento do caráter ilícito do fato.
Portanto, o conhecimento que se exige não é atual, mas potencial (possibilidade de
atingir a consciência da ilicitude). Do contrário, não poderá, sem mais, socorrer-se
da isenção de pena, beneficiando-se apenas da redução da pena, por erro evitável.
55 A moderna teoria* cit., p. 245. Escreve o citado autor, textualmente: “separar conhecimento do injusto e
conhecimeno da lei para atribuir relevância ao desconhecimento do injusto e irrelevância ao desconheci
mento da lei penal, é ignorar que o injusto penal só pode existir como injusto tipificado na lei, hoje gene
ralizado sob o conceito de tipo de injusto que, por força do princípio da legalidade, aparece na lei penal
sob a forma de tipo legal (ou tipo penal), como descrição do comportamento proibido; precisamente por
que injusto penal e lei penal representam, respectivamente, as dimensões concreta e abstrata das proibi
ções ou comandos do direito penal é possível, no direito penal comum, ter ou atingir o conhecimento da
lei através do conhecimento do injusto, mas no direito penal especial é, freqüentemente, impossível ter
ou atingir o conhecimento do injusto, exceto através do conhecimento da lei penal” (p. 245).
56 Juarez Cirino, A moderna teoria, cit., p. 244-245.
57 No mesmo sentido, Mestieri: “Assim, de nenhum modo o sistema jurídico admite a alegação do desconhe
cimento da lei; todavia, essa posição está em franca oposição ao moderno princípio da culpabilidade, o que
exige, obviamente, a capacidade concreta de agir (poder), na qual se insere, induvidosamente, não apenas
o conhecim ento da regra como a estruturação da vontade de maneira reprovável” (Manual de derecho
penal, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 182).
58 Como diz Paulo José da Costa Júnior, é possível ignorar a lei e conhecer a proibição; ou conhecer a lei e
ignorar a proibição da conduta (Curso, cit., p. 89).
D ir e ito P e n a l - P a rte G era l
11.1. Conceito
Como se vê, o tratamento legal dado ao erro sobre causas de justificação é bas
tante semelhante àquele conferido ao erro de tipo, pois em ambos os casos, se evi
tável o erro, terá lugar a punição a título de culpa. Se inevitável, o agente será
absolvido da imputação que se lhe faz. Mas há uma diferença sutil: enquanto no
erro de tipo o Código diz claramente que o erro “exclui o dolo”, “mas permite a
punição por crime culposo”, no erro sobre descriminante o legislador optou por
dizer: “é isento de pena”, e que “não há isenção de pena” “quando o erro deriva de
culpa”, ou seja, não diz, ao menos expressamente, que o dolo fica excluído.
Em razão disso, há muita divergência sobre a exata posição sistemática do erro
em questão. Assis Toledo considera-o um erro de tipo;60 Alcides Munhoz Neto,61
um erro de proibição; Luiz Flávio Gomes, um erro de proibição sui gen eris,62
E bem verdade que as expressões “isentar de pena” e “excluir o dolo” não se
eqüivalem. No entanto, se isso é certo, não é menos verdadeiro que, ocorrendo erro
evitável (vencível), não haverá “isenção de pena”, exatamente porque o “erro deri
va de culpa” e o fato é punível como crime culposo” (art. 20, § l e). Se assim é, força
é convir que, apesar do uso (impróprio) da expressão “isenção de pena”, o erro ven
cível, ao ensejar a punição só a título de culpa, exclui o dolo obviamente, pois do
* contrário o legislador teria de dizer o mesmo que disse quanto ao erro de proibi
«IMWI ção, isto é, “se evitável (o erro), poderá diminuí-la (a pena) de um sexto a um
60 Escreve Assis Toledo, textualmente: “embora a sede das descriminantes putativas seja o § I a do art. 20 ...
(‘quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse tor
naria a sua ação legítima’), pensamos que tal preceito não é exaustivo, não esgota as hipóteses das descri
minantes imaginárias. Percebe-se, com efeito, claramente, que esse preceito, completado pela parte final
do parágrafo (‘não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime
culposo’), aplica-se apenas ao erro de ‘tipo permissivo’, excludente do dolo, não ao erro excludente da cen
sura de culpabilidade, tanto que se permite a punição a título de culpa stríeto sensu (esta é, aliás, a posi
ção da teoria limitada da culpabilidade, que adotamos)” (Princípios básicos, cit., p. 272-273). No mesmo
sentido» Damásio, Direito penal, cit., p. 309.
61 Afirma esse autor, literalmente: “(...), no direito brasileiro cabe afirmar que o erro nas descriminantes
putativas é erro de proibição. Como o conhecimento da antijuridicidade não integra o dolo, mas perten
ce à culpabilidade, segue-se que se age na errônea crença de ser legítimo o seu comportamento procede
dolosamente” (A ignorância da antijuridicidade em matéria penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 112).
62 Erro de tipo e erro de proibição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 144. No mesmo sentido, Cezar
Bitencourt, (Manual, cit., p. 392-393): "o art. 20, caput, do Código Penal determina expressamente que o
erro sobre o tipo exclui o dolo, enquanto o seu § l fl - que trata do erro que incide sobre os pressupostos
fáticos das descriminantes putativas - isenta de pena. Como se percebe, o nosso Código Penal, ao regular
o erro de tipo permissivo (art. 2 0 , § 1°), não estabelece que a sua conseqüência é a exclusão do dolo, como
faz em relação ao erro do tipo incriminador, prevendo, simplesmente, a isenção de pena. E, como é sabi
do de todos, no Direito brasileiro, excluir o dolo e isentar de pena não significam a mesma coisa (...)• Na
realidade, não seria exagero afirmar que o ‘erro de tipo permissivo’ constitui uma terceira espécie de erro.
Seria um misto de erro de tipo e de erro de proibição indireto (...). Em síntese, trata-se de um erro sui
generis, que estruturalmente se parece mais com o erro de tipo do que com o erro de proibição, mas que
também se assemelha com o erro de proibição, porque a causa de justificação exclui a antijuridicidade"
sua conseqüência - e não a tipicidade do fato.”
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l
terço”. Vale dizer: se, com o erro evitável, só se admite a punição a título de culpa,
é porque o erro exclui o dolo. O Código o diz tacitamente, portanto.
Por conseguinte, em face da disciplina do Código Penal, o erro sobre causas
de justificação implica a exclusão do dolo, constituindo uma questão de tipicidade,
e não de culpabilidade.
Semelhante interpretação está aliás conforme a teoria dos elementos negati
vos do tipo, pois, como diz Luzón Pena, se as causas de justificação são elementos
negativos do tipo, porque, tal como os elementos positivos, são pressupostos (nega
tivos) da proibição, a crença errônea de que concorrem em dada situação os pres
supostos de uma causa de justificação constitui um erro de tipo, com todas as suas
conseqüências.63
210
mo entendemos, em razão da adoção da teoria dos elementos negativos do tipo,
resulta que errar sobre a proibição do comportamento é também errar sobre ele
mento constitutivo (implícito) do tipo, qual seja, a sua ilicitude. Logo, todo erro de
proibição é um erro de tipo, pois recai sobre elemento que o integra: a ilicitude.
Além disso, se, conforme assinalamos, o direito não está nos fatos, nem nas
normas, mas na cabeça das pessoas e, pois, o direito não preexiste à interpretação,
mas é dela resultado, também por isso não se justifica a distinção entre conheci
mento do fato e conhecimento da proibição.
Semelhante perspectiva conduz assim à superfluidade da distinção entre erro
de tipo e erro de proibição (afinal, ambos são modos de errar sobre elementos do
tipo), já que recaem sobre seus elementos, mesmo porque, ainda que assim não
fosse, teríamos de reconhecer que ambos os erros, do ponto de vista político-crimi-
nal, têm a mesma importância e por isso que conduzem, quando invencíveis, ao
mesmo resultado prático: uma sentença penal absolutória. Se vencíveis, à atenua
ção do rigor da punição: um punido a título culposo; o outro, com pena reduzida.
Em termos práticos, enfim, equiparam-se, mesmo porque raramente se reconhece
o erro vencível.66
66 Critica-me Luiz Flávio Gomes, primeiro, criticando a teoria dos elementos negativos do tipo, segundo,
argumentando que, “no que diz respeito à função motivadora do Direito penal (da norma penal), o que
cabe sublinhar é que ele não é a única, e tampouco a mais importante. Outras funções (missões) mais rele
vantes desempenha o Direito penal: missão de proteção de bens jurídicos, missão de evitar a vingança pri
vada, missão de constituir um conjunto normativo dotado de garantias” (Erro de tipo e erro de proibição,
cit., 2001, p. 83-84). Semelhante crítica não procede, porém. Inicialmente, tenho que todas as críticas à
teoria dos elementos negativos do tipo somente são admissíveis se se adotar uma perspectiva causalista ou
finalista. Se se entender, no entanto, como parece entender Luiz Flávio, superados esses paradigmas, as
críticas ficam também superadas. Aliás, julgo inteiramente irrelevante o argumento welzelniano, freqüen
temente invocado, de que, para a teoria dos elementos negativos do tipo, tanto é atípica a conduta de
matar um mosquito como o é a de matar um ser humano em legítima defesa. É que, ao se adotar a teoria
dos elementos negativos, não se pretende, por óbvio, equiparar a ação de matar um mosquito à de matar
um ser humano, mesmo porque, no primeiro caso, nem sequer se pode ter o ato à conta de uma ação no
sentido jurídico-penal. Fato é que, adotando ou não essa teoria, o ato de matar um mosquito e o de matar
um homem terão, sempre e sempre, significado diverso, pois o direito penal não cria valores, mas tão-só
regula aqueles - mais importantes - que medram na comunidade. Assim, por exemplo, matar um homem
nunca será o mesmo que abater um animal silvestre (protegido pela legislação ambiental), v. g., uma cobra,
do mesmo modo que matá-lo em legítima defesa jamais significará o mesmo que abater o réptil em esta
do de necessidade. Igualmente, furtar um toca-fitas nunca será o mesmo que furtar o próprio automóvel,
ainda quando ambas as ações sejam consideradas típicas. Vale transcrever, ainda, a crítica que
Schünemann faz a Munoz Conde, que se socorre do mesmo argumento invocado por Luiz Flávio: “o velho
argumento de W elzel e de Hirsch”, escreve Schünemann, “que hoje em dia Munoz Conde volta a reto
mar, de que a morte justificada de uma pessoa é distinta da morte de um mosquito, existindo, portanto,
diferença essencial entre ausência de tipicidade e justificação, é errônea desde o ponto de vista da lesivi-
dade social, já que, querendo ou não, a morte de uma pessoa em legítima defesa é tão pouco lesiva social
mente como a morte de um mosquito” (La fúnción..., in Fundamentos, cit., p. 222). Quanto ao segundo
argumento, de que o direito penal persegue outras funções, além da função motivadora, penso que a ques
tão está mal colocada. É que todas as “missões” a que se refere Luiz Flávio estão, em verdade, compreen
didas na “função motivadora” da norma penal (embora o conteúdo da “função” possa variar de autor para
autor), podendo-se dizer, assim, que tanto a proteção de bens jurídicos quanto a função de garantia (coi
bir reações formais ou informais arbitrárias) são apenas variáveis de uma coisa única, qual seja, da função
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l
Portanto, não se justifica a distinção, porque quem incide num ou noutro erro
carece do mesmo sentimento ou da mesma vontade de atuar contrariamente ao
direito: um, levado por erro de representação (erro de tipo); outro, pela má com
preensão do significado social e jurídico do fato (erro de proibição).
Aliás, a polêmica antes referida a respeito da natureza jurídica das descrimi-
nantes putativas é conseqüência direta da imprecisão dos conceitos hoje utilizados
pela doutrina sobre erro de tipo e erro de proibição, pois em verdade o erro sobre
causas de justificação pode ser considerado, em face dessa inexatidão, tanto um erro
de proibição quanto um erro de tipo. Erro de proibição porque quando o sujeito
atua, v. g., em legítima defesa putativa, toma, segundo sua representação, como
lícita uma ação ilícita, é dizer, supõe agir legitimamente. E também um erro de
tipo, porque, dentre outras razões, assim o Código tratou o assunto.
Frise-se, finalmente, que a pretensão de equiparar tais erros quanto aos seus
efeitos é amplamente difundida na Alemanha, conforme informa Schünemann,
também favorável à equiparação.67
Dispõe o art. 20, § 2e, do Código, que “responde pelo crime o terceiro que
determina o erro”. Com adotar tal dispositivo, o legislador pretende responder a
situações em que o agente é induzido por outrem a praticar um crime. Exemplo: A
entrega um revólver a B, que, supondo-o descarregado ou de brinquedo, aponta em
direção a C, acionando o gatilho e causando-lhe a morte.
Cumpre distinguir provocação dolosa e culposa. Se A tinha a intenção de ma
tar C, induzindo B a erro, responderá por homicídio doloso (autoria mediata). Caso
contrário, responderá por homicídio culposo ou não responderá por crime algum,
se a conduta não lhe for imputável sequer a título culposo. Por sua vez, B respon
de motivar os destinatários da norma a atuarem conforme o direito, pois assim se protegem bens jurídi
cos, assim se previnem vinganças e assim o direito se constitui como um sistema de garantias do cidadão
em face dos abusos praticáveis pelo Estado e pelos próprios indivíduos.
67 Afirma o citado autor: “E finalmente considero recomendável, sem que aqui possa estender-me mais a res
peito, de acordo com uma concepção hoje como ontem amplamente difundida na Alemanha, que o legis
lador equipare erro de proibição e erro de tipo, e trate ambos os erros de acordo com o disposto no p. 16
no âmbito do Direito penal especial” (La función..., in Fundamentos, cit., p. 238). Sobre o assunto, já se
pronunciara Everardo Uma: “Uma vez que os fatos e valores são incindíveis, porque gravitam dentro da
realidade jurídica, que é, a um tempo, direito e realidade, conclui-se que a distinção entre erro de fato e
erro de direito não era uma distinção substancial, existindo apenas para o atendimento de certas finalida
des práticas (...). E afirmou-se que, assim como em todos os erros de fato está ínsito um erro de direito,
assim também em todos os erros de direito insere-se, inapelavelmente, um erro de fato. Desse modo, o
clássico exemplo de Finger, que via erro de direito tanto no fato de conduzir cocaína sem autorização,
quanto no fato de conduzi-la sem conhecê-la (...)• Sucede, porém, que, mesmo considerando-se que a dis
tinção entre erro de fato e erro de direito não ataca substancialmente a realidade, mesmo assim, é inegá
vel a dificuldade para unificar o erro e tratá-lo com a obediência que a justiça material exige” (Direito
penal, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 245-256).
P a u lo Q u e ir o z
derá em ambos os casos por homicídio culposo, se ficar provado que se houve com
imprudência.
Obviamente se, na mesma hipótese, B tiver percebido que se tratava de arma
de fogo carregada, disparando ainda assim, a norma em questão não será aplicada
ao caso, simplesmente porque erro não houve. E não existindo erro provocado, B
responderá por crime doloso ou culposo, conforme o caso.
68 Fernando Galvão, Imputação objetiva, Belo Horizonte: Ed. Mandamentos, 2000, p. 122.
69 Fernando Galvão, Imputação objetiva, cit., p. 123.
D ir e i 10 P e n a l - P a r te G e ra l
70 Essa teoria considera que o dolo só deve abranger o resultado típico quanto aos elementos determinantes
de sua espécie: A quis matar uma pessoa (B) e realmente matou uma pessoa (C), de sorte que o desvio do
curso causai não tem influência no dolo, devido à equivalência típica dos objetos, havendo, assim, homicí
dio consumado. Já para a teoria da concreção (ou concretização), o dolo pressupõe sua concretização num
determinado objeto, motivo pelo qual se o agente atinge pessoa diversa da pretendida não age com dolo
quanto à pessoa realmente atingida. Logo, se pretendia matar B, vem a atingir C, responde, segundo essa
teoria, por homicídio tentado contra B e homicídio culposo contra C (cf. Roxin, D erecho penal , cit., p. 492).
71 A Exposição de Motivos do Código de 1940 dispunha que, “no art. 53, é disciplinada a aberratio ictus seu
actus, que eventualmente pode redundar em concurso de crimes. O projeto vê na aberratio uma unidade
substancial de crimes, ou seja, um só crime doloso (absorvida por este a ‘tentativa’ contra a pessoa visada
pelo agente), ou, no caso de ser também atingida a pessoa visada, um concurso formal de crimes. Na pri
meira hipótese, o erro sobre o ‘objeto material’ (e não sobre o ‘objeto jurídico’) é ‘acidental’ e, portanto,
irrelevante. Na segunda hipótese, a solução dada se justifica pela ‘unidade’ da atividade criminosa. Vê-se,
desta maneira, que o Código abraçou a orientação dos que entendem que deve ser dado idêntico tratamen
to penal quer ao error in persona, quer à aberratio ictus'. A Nova Parte Geral manteve, no essencial, a dis
ciplina do Código de 40, prevendo, apenas, que a pena nunca poderá exceder àquela que seria cabível no
caso de concurso material. Declara expressamente (item 57) que “a inovação contida no parágrafo único
do art. 70 visa tornar explícito que a regra do concurso formal não poderá acarretar punição superior à
que, nas mesmas circunstâncias, seria cabível pela aplicação do cúmulo material. Impede-se, assim, que na
hipótese de aberratio ictus (homicídio doloso mais lesões culposas), se aplique ao agente pena mais seve
ra, em razão do concurso material. Quem comete mais de um crime mediante uma única ação não pode
sofrer pena mais grave do que a imposta ao agente que, reiteradamente, com mais de uma ação, comete
os mesmos crimes”.
P aulo Q u e iro z
dições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria pra
ticar o crime (art. 20, § 35).
De acordo com o Código Penal, portanto, que se utiliza claramente de uma
ficção, A responderá por crime de homicídio consumado contra B (qualificado e
hediondo em razão do emprego de veneno) dolosamente, ainda que de fato tivesse
matado seus próprios filhos culposamente.
Essa solução é francamente desproporcional.
Em primeiro lugar, a teoria da equivalência consagra resquício próprio de um
direito penal do autor,72 devendo ser repudiada. Sim, porque, para ela, não impor
ta, ou só importa secundariamente, o fato efetivamente praticado pelo autor, mas
aquele que pensou ou pretendeu praticar. Não interessa, por conseguinte, que A
tenha matado os próprios filhos, que, presume-se, amava, mas o companheiro que,
por certo, odiava. Numa palavra, para a lei, não importa que tenha matado os filhos
culposamente, mas que tenha pretendido matar seu companheiro dolosamente.
Privilegia-se, pois, uma ficção em prejuízo da trágica realidade.
Em segundo lugar, tal solução é claramente desproporcional. Com efeito, não
é razoável que alguém que tenha se envolvido em semelhante tragédia, que possi
velmente mais necessita do perdão do que do castigo, responda por um crime de
homicídio doloso consumado e qualificado (CP, art. 121, § 2Q, 111) - logo, hedion
do - sujeito a uma pena de doze a trinta anos de reclusão. Note-se que a solução
adotada é bastante gravosa para o agente, uma vez que a pena do homicídio consu
mado é superior à pena resultante do concurso material da tentativa de homicídio
(contra B) e do homicídio culposo (contra os filhos).
E bem verdade que, na hipótese de ser também atingida a pessoa que o agen
te pretendia ofender, o agente responde em concurso formal (CP, art. 73, final),
com o respectivo aumento de um sexto até metade (art. 70) e que a pena não pode
rá exceder à que seria cabível pela regra do concurso material (art. 70, parágrafo
único), mas, desgraçadamente, nada disso tem o condão de corrigir a injustiça da
disciplina legal conferida à aberratio.
Mais razoável, portanto, seria que, adotada a teoria da concretização (ou con-
creção), hoje majoritária, A respondesse unicamente pelo que de fato fez, e não
pelo que pretendeu fazer: matar culposamente seus próprios filhos - com a possi
bilidade de concessão do perdão judicial (CP, art. 121, § 59), inclusive - e homicí
dio tentado contra seu companheiro, se se entender que in casu houve in ício dos
atos d e execu ção (CP, art. 14, II), em relação a este.
Finalmente, outra deveria ser a disciplina legal a respeito, também porque a
aberratio ictus não é uma figura jurídica autônoma, mas um caso especial de des
vio do curso causai e que, por isso, há de ser tratada conforme as regras deste.73
72 No sentido de que se trata de previsão legal de responsabilidade objetiva, Guilherme de Souza Nucci,
Código Penal comentado, cit., p. 274-275.
73 Roxin, D erecho penal, cit., p. 495.
D ireito Penal - Parte Geral
Convém dizer, por último, que, a despeito da solução consagrada pelo legisla
dor, temos que o juiz pode, por meio de uma interpretação conforme a Constitui
ção, adotar este entendimento, de modo a que o agente responda por dois crimes,
em concurso material: homicídio culposo contra os filhos e homicídio doloso ten
tado contra o companheiro, porque ao legislador não é dado transformar, sem mais,
e em prejuízo do réu, em doloso um crime culposo, nem em consumado um crime
tentado. Aliás, o próprio Código Penal (art. 70, parágrafo único), ao determinar que
a pena do concurso formal não poderá exceder a que seria cabível pela regra do art.
69, exige essa leitura/interpretação, pois não seria justo nem razoável que, num tal
caso, a autora sofresse castigo superior àquele previsto para o concurso material. Se
aplicada a regra do concurso material, e se fixada fosse a pena no mínimo legal, a
autora poderia ser punida por duplo homicídio culposo a pena de dois anos de
detenção (CP, art. 121, § 39) - passível de perdão judicial (§ 5B) - e homicídio dolo
so tentado contra o marido a pena de dois anos de reclusão (CP, art. 121, caput, c/c
o art. 14, parágrafo único).
Capítulo VII
Teoria do Crime Culposo
1. Introdução
Nem todos estão de acordo com a idéia de uma sociedade de riscos, seja porque riscos sempre existiram,
seja porque o avanço tecnológico implicou a redução de riscos nas mais diversas áreas.
Como escreve Juarez Cirino, do ponto de vista de sua freqüência real, crimes de homicídio e de lesões cor
porais imprudentes representam a maioria absoluta dos fatos puníveis e, do ponto de vista dos bens lesio-
nados, integram a criminalidade mais relevante, de modo que se pode dizer que a antiga exceção é, atual
mente, a regra da criminalidade, razão pela qual a teoria dos crimes imprudentes se transformou de entea
da em filha predileta do trabalho científico do direito penal (A m oderna teoria, cit., p. 97-98).
Convém notar, com Cobo dei Rosai e Vives Antón, que toda definição de culpa há de conter uma refe
rência ao dolo. Certo é que a culpa não representa em face do dolo simplesmente um minus, senão um
aliud. A culpa é distinta do dolo; porém, a presença do dolo exclui a culpa (D erecho penal , cit., p. 570).
Paulo Queiroz
7 Jakobs, D erecho penal, cit., p. 249. No mesmo sentido, Fábio D’Ávila assinala que “as regras regulamen-
tadoras de atividades perigosas propiciam um padrão de análise para circunstâncias ideais, não podendo
ser admitidas como limites absolutos para toda e qualquer conduta. A imensa variedade de circunstâncias
concomitantes que podem concorrer para a criação do perigo de lesão ou da própria lesão acarretam,
necessariamente, a admissão de um risco não permitido variável, flutuante, a ser avaliado em face das
peculiaridades do caso concreto" (Crime culposo e a teoria da imputação objetiva, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2001, p. 51).
8 D erecho penal, cit., p. 1003.
o agente teria atropelado a vítima que avançou contra o veículo, fugindo de uma
perseguição), pois não se pode pretender absolutizar o que é relativo por natureza,
isto é, as regras de cuidado, as quais têm caráter instrumental, uma vez que visam
preservar a segurança do tráfego e a integridade física das pessoas em condições
normais. E tanto a observância quanto a inobservância das regras técnicas podem
ser in concreto comprovadamente irrelevantes para a realização do evento.9 O
decisivo é apurar concretamente se houve criação de risco não permitido e se o
resultado decorreu desse risco proibido.
Pode assim acontecer de, apesar da criação de risco proibido, não ocorrer a
realização desse risco no resultado. E que a imputação do crime culposo pressupõe
que o resultado se apresente como realização justamente do risco que o autor criou,
razão pela qual haverá exclusão da imputação quando, mesmo tendo o autor cria
do um risco para o bem jurídico protegido, o resultado não for conseqüência desse
perigo, mas fruto do acaso.10
4. Princípio da confiança
9 O mesmo - exclusão da imputação pela não-realização do risco proibido - ocorre no exemplo citado por
Roxin, do gerente da fábrica de pincéis que entrega aos trabalhadores pêlos de cabras chinesas sem tomar
as devidas medidas de desinfecção. Quatro trabalhadores são infectados pelo bacilo antrácico e falecem.
Uma investigação posterior conclui que os meios de desinfecção prescritos seriam ineficazes contra o baci
lo, até então desconhecido na Europa. Entende, então, Roxin que “o autor, ao deixar de proceder à desin
fecção, criou um grande perigo segundo um juízo ex ante, perigo esse que, como pôde verificar-se poste
riormente, nào se realizou. Se lhe imputássemos ainda assim o resultado, ele estaria sendo punido pela vio
lação de um dever cujo cumprimento seria inútil. Isso viola o princípio da igualdade, pois o curso causai
corresponde exatamente àquilo que ocorreria se o autor se mantivesse dentro dos limites do risco permi
tido, não se justificando um tratamento diverso. Se o fabricante tivesse dolo de homicídio, ele poderia ser
punido unicamente por tentativa. Na hipótese mais freqüente, de simples culpa, ele estaria isento de pena
( Funcionalismo , cit., p. 332). Referindo-se a esse exemplo, Fernando Galvão escreve que, “nos te rm o s da
legislação brasileira, a omissão não é considerada causa do resultado, pois este não seria evitado com a
desinfecção. Contudo, o fornecimento do pêlo de cabra caracteriza crime comissivo, o que significaria
homicídio consumado” (imputação objetiva, cit., p. 65).
10 Roxin, Funcionalismo , cit., p. 327.
11 Roxin, Derecho penal, cit., p. 1004.
D ireito Penal - Parte Geral
proteção, que são independentes da individualidade do sujeito. Se se fizer depender a realização do tipo
de baremos individualizadores, então se anulará em parte a separação entre injusto e culpabilidade
(Derecho penal, cit., p. 1015).
15 D erecho penal, cit., p. 386-388.
16 Criticamente, Fábio D’Ávila, Crime culposo, p. 92 e s.
17 Stratenwerth, Derecho penal, cit., p. 324.
18 Derecho penal, cit., p. 331.
D ireito Penal - Parte G era!
sível ocorrência de causas de justificação, que, em princípio, são as mesmas dos cri
mes dolosos. Haverá legítima defesa em delito culposo, portanto, sempre que o
agente repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, por
meio de uma ação culposa.19 Assim, por exemplo, age em legítima defesa quem dis
para um tiro de advertência contra o seu agressor, atingindo-o, porém, por falta de
atenção, se, dada a situação fática, o disparo com esse fim esteja também justifica
do; igualmente, atua em estado de necessidade o médico que, para prestar socorro
a um paciente, imprime velocidade excessiva ao veículo vindo a atropelar alguém,
causando-lhe lesões.20
O mesmo deve ser dito quanto à culpabilidade, quando deverão concorrer a
capacidade de culpabilidade, a exigibilidade de conduta diversa e, mais, conforme
a doutrina, o potencial conhecimento da ilicitude. Quanto ao erro de proibição,
Fábio D’Ávila entende com razão que ele só é possível na hipótese de culpa cons
ciente, ou seja, quando o autor acreditar ser lícita a sua ação descuidada em virtu
de de circunstâncias especiais; não cabendo, portanto, sua argüição no caso de
culpa inconsciente, uma vez que, se o agente não tem consciência do caráter des
cuidado da ação, tampouco terá consciência da ilicitude de seu ato, de modo que,
sempre que houver culpa inconsciente, haverá também ignorância quanto à licitu-
de ou ilicitude da conduta.21 Se, por exemplo, o condutor de veículo, em razão da
precariedade da sinalização, supõe, fundadamente, dirigir pela preferencial, estan
do, em realidade, a trafegar pela contramão, causando lesões a terceiros, não será o
caso de invocar erro de proibição, mas erro de tipo. Afinal, no erro de proibição, o
agente sabe exatamente o que faz, mas supõe lícito um comportamento ilícito, ao
passo que no erro de tipo tem-se uma falsa representação da realidade, isto é, o
autor não sabe o que faz, como no exemplo citado.
*9 Entende Tavares, todavia, que o resultado deve ser objetivamente necessário para repelir a agressão, mas,
mesmo que o resultado vá além do necessário, cabe reconhecer a legítima defesa, pois, faltando ao agen
te a consciência de seus pressupostos, é admissível e justificável um erro no uso dos meios (Direito penal
da negligência, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 160).
20 Exemplos de Jescheck, Tratado, cit., p. 535-536.
21 Crime culposo, cit., p. 131.
22 Como assinala Jescheck, na culpa inconsciente, o autor, embora infrinja dever de cuidado, não pensa na
possibilidade da realização do tipo legal por sua parte, enquanto na culpa consciente percebe a presença
do perigo concreto para o objeto protegido da ação, porém, por infravaloração do grau daquele, pela sobre-
valoração de suas forças ou por simples confiança na sua sorte, confia, indevidamente, em que não se rea
lizará o tipo legal ( Tratado, cit., p. 516).
Pauio Queiroz
Na segunda, ao contrário, o agente não prevê, embora lhe fosse concretamente pre
visível, a realização do tipo.23 A distinção reside, então, nisto: na culpa consciente,
há previsão do resultado; na inconsciente, imprevisão do resultado. Mas em ambos
os casos o autor não quer nem assume, direta ou eventualmente, o resultado, pois
do contrário haveria dolo direto ou eventual. Se, por exemplo, durante uma caça- .
da, o agente, embora percebendo que atirando na caça poderá também acertar o
companheiro, mas acreditando em sua pontaria, atira contra o animal, atingindo
seu parceiro, haverá culpa consciente.24
O tratamento legal em ambos os casos é o mesmo: o agente sempre responde
por crime culposo.
imperícia, que não é mais que uma forma especial de imprudência ou de negligên
cia: é a inobservância, por despreparo prático ou insuficiência de conhecimentos
técnicos, das cautelas específicas no exercício de uma arte, ofício ou profissão.27
8. Autocolocação em perigo
Por fim, fala-se de heterocolocação em risco quando é a vítima que move o &
autor a praticar uma ação perigosa, assumindo conscientemente os riscos da ação .ft
provocada (v. g., o empregador determina ao seu motorista que siga viagem, apesar
da resistência deste em virtude das condições da estrada, à noite e em dia chuvoso, '
dando ensejo a um acidente que mata o primeiro). A solução para tais casos é seme
lhante à autocolocação.
D ireito Penal - Parte Geral
Capítulo VIII
Consumação e Tentativa
1. Introdução
No sentido de que também o exaurimento faz parte do iter criminis » Rogério Greco, cic.
expressa, portanto, como diz Damásio, a total conformidade do fato praticado pel0
agente com a hipótese abstrata descrita pela norma penal incriminadora,2 é dizer, o
crime se consuma quando a conduta levada a efeito realiza, integralmente, os ele- ■
mentos descritos no tipo legal de crime, objetivos e subjetivos. Fora daí, a hipótese
será de crime tentado ou simplesmente preparado e, pois, impunível (em princípio)
Nesse sentido, o Código (art. 14, II) considera consumado o crime “quando nele
se reúnem os elementos de sua definição legal”, significando dizer que só é possível"
saber se um crime está consumado (= tipo consumado) verificando se o comporta
mento de que se trate perfaz todos os requisitos que compõem o tipo penal, ou seja,
somente é possível saber se há ou não consumação confrontando-se o fato praticado
com a redação (especialmente o verbo empregado) do tipo em questão. Daí se dizer
que a tentativa é um tipo dependente, pois não existe uma tentativa em si mesma,
mas tentativa de um determinado crime, isto é, tentativa de homicídio, de furto etc.3 :
Assim, a consumação do aborto dá-se com a morte do feto (art. 124: provocar abor
to); a do seqüestro, com a privação da liberdade de alguém (art. 148; privar alguém'
de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado); a do furto, com a efetiva*,
subtração da coisa alheia móvel (art. 155; subtrair coisa alheia móvel) etc. s
Por essa razão é incorreta a Súmula 610 do Supremo Tribunal Federal,4 que con
sidera consumado o crime de roubo seguido de morte ou latrocínio (CP, art. 157, § 3e,
segunda parte) quando o agente mata a vítima, mas não consegue subtrair a coisa. É
que em tal caso não se reúnem “todos os elementos da definição legal” (CP, art. 14, II),
mas apenas parte deles, já que o tipo se compõe de morte e subtração. Além disso, tra
tando-se de crime contra o patrimônio, não se pode considerá-lo consumado quando,
embora realizado o crime-meio (homicídio), não se realize o crime-fim (roubo), razão ,
pela qual só se pode falar de latrocínio consumado quando se consumarem a morte é
a subtração, pois fora daí (morte tentada ou subtração tentada), a hipótese será dè '
crime tentado. Também é inadmissível falar de concurso de crimes (v. g., homicídio
em concurso com roubo), visto que tal implicaria quebra da unidade concebida pelo
Código, dando margem a um casuísmo ofensivo ao princípio da legalidade.5
3. Consumação e exaurimento
^ Dispõe o Código alem ão ( § 2 1 ) que há tentativa quando o au tor "dá in ício d ireta m en te à realização do tipo
segundo a sua representação do fato”.
Direito Penal, cit.
Paulo Queiroz
go de lesão ao bem jurídico protegido; critério, porém, que não satisfaz, já que.
mesmo nos atos meramente preparatórios, há no mínimo perigo de lesão. Além
disso, e mais importante, sua adoção poderia resultar, em última análise, em viola
ção ao princípio da legalidade. Já para o segundo, os atos executórios começam com
o início da realização do tipo penal ou, como diz o Código, in ício da execu ção do
crime. Assim, a execução do homicídio começa com o ato de m atar alguém, o furto,
com o ato de subtrair, o estupro, com o constranger.
Mas a expressão “início da execução do crime” não coincide necessariamente
com in ício d e realização do tipo.11 Exemplo: A é preso no quintal de uma residên
cia antes de adentrar seu interior para furtar; B, fmgindo-se cliente de um banco,
é preso minutos antes de anunciar o roubo. No primeiro caso, h4 um fato punível
(furto tentado); no segundo, não. Por quê? Porque na primeira hipótese o ato de
transpor os muros do quintal - quando A já operava ilegalmente (saltara o muro) -
já constitui, sem dúvida, o início de “execução de um crime”, embora não consti
tua um “início de realização do tipo penal de furto", isto é, não se iniciara o “sub
trair”; já na segunda hipótese, B, ainda operando dentro da legalidade (adentrar
lugar de acesso público), não iniciara crime algum, tampouco começara a realiza
ção do tipo de roubo, de sorte que somente se poderia falar de tentativa a partir do
momento em que B anunciasse o “assalto”.
A tentativa, segundo o Código, ocorre, assim, com o “início da execução do
crime” - o que supõe um atuar ilegal imediatamente anterior à realização do tipo -,
ainda quando tal não signifique começo “da realização do tipo”. Por conseguinte, as
ações que caracterizam a tentativa são os atos “que se encontram situados imediata
mente antes da realização do tipo” (Bokelmann). Têm razão, por isso, Cobo dei Rosai
e Vives Antón quando assinalam que o início da execução há de ser delimitado a‘
partir dos aspectos constitutivos da infração: a materialidade do fato, o conteúdo do
injusto e o conjunto dos dados típico-formais que a individualizam.12
Enfim, o conceito de execução, como o de consumação, é de natureza formal
e, como tal, refere-se ao tipo delitivo de cuja execução se trate,13 sob pena de, par
tindo de critérios outros, como o plano do autor ou a ofensividade da ação, exclu
sivamente, acabar-se por violar o princípio mesmo da legalidade. Por exemplo,
ainda que, do ponto de vista do plano do autor decidido a matar, seja já ato execu
tivo procurar a vítima para matá-la, atalaiá-la, sacar a arma do coldre ou comprá-
la, do ponto de vista do princípio da legalidade, tais ações não podem ser conside
radas por um observador imparcial como “início de execução” da ação de “matar”,
que é a ação típica do homicídio, e, portanto, não constituem tentativa desse deli
to, mas atos preparatórios.14
11 Executar um delito - escrevem Cobo dei Rosai e Vives Antón - é dar início à realização do tipo (Derecho
penal, cit., p. 642).
12 D erecho penal, cit., p. 646-647.
13 Mufioz Conde, Teoria, cit., p. 183.
14 Munoz Conde, Teoria, p. 184-185.
D ireito Penal - Parte G eral
Nem todos os crimes admitem tentativa, porém. Assim, por exemplo, os cri
mes culposos, pois são sempre consumados (se, v. g., atropelou e não matou, res
ponde por lesões culposas; se matou, por homicídio culposo), vale dizer, só se pode
cogitar de tentativa em face de crimes dolosos. Por igual, não comportam a tenta
tiva os crimes omissivos próprios, uma vez que, não exigindo resultado naturalísti-
co, consumam-se com a só abstenção da ação devida; os habituais, visto que atos
isolados são insuficientes à sua configuração; os preterdolosos, porque ou o fato
conseqüente culposo ocorre, caso em que estará consumado o crime, ou não ocor
re, quando então a hipótese será de crime doloso (consumado ou tentado, confor
me o caso); e, finalmente, não admitem a tentativa as contravenções penais, por
expressa disposição legal (LCP, art. 4o).16
15 Exemplo dessa hipótese excepcional é o art. 352 do CP, que pune, indistintamente, "evadir-se ou tentar
evadir-se.
16 Aníbal Bruno, Direito penal, cit., p. 246.
va e consumação: em ambos os casos o agente quer a realização do tipo e atua no
sentido de consumá-lo (dolo de consumar). Excepcionalmente a lei dá ao crime ten
tado o mesmo tratamento do crime consumado, equiparando-os inclusive quanto à
pena cominada. Exemplo disso é o art. 352 do CP, que pune igualmente o “evadir-
se ou tentar evadir-se o preso”, bem assim o art. 309 do Código Eleitoral, que castiga
igualmente “o votar ou tentar votar duas vezes”; idem, Lei n9 7.170/83, arts. 9° e 11.
Não obstante parte da doutrina pretenda uma justificação especial para o
crime tentado, assiste razão a Munoz Conde quando assinala que o fundamento da
punição de todos os atos de execução do delito, idôneos ou não, deve ser necessa
riamente unitário, e corresponder à mesma finalidade político-criminal e preven
tiva que preside todo o direito penal, uma vez que as formas imperfeitas de execu
ção são causas de extensão da pena, que correspondem a uma mesma necessidade:
estender a ameaça ou a cominação penal às condutas que, embora não consumati-
vas de crime, estão muito próximas disso e que importam em grave ofensa ou peri
go concreto de ofensa a bem jurídico.17 Pune-se, portanto, a tentativa pela mesma
razão que se pune o crime consumado.
Enfim, e como diz Welzel, se o delito é uma lesão ao ordenamento da comu
nidade, intolerável social e especialmente ofensiva, segue-se que o fato punível
começa fundamentalmente quando o autor inicia uma ação insuportável desde um
ponto de vista ético-social, isto é, com a tentativa.18
■M T *
^ " --
Damásio, Direito penai, cit., p. 336.
B irejtopenal , cit., p. 334.
a consumação do crime nas circunstâncias dadas. Nesse sentido, dispõe o C ódigo
(art. 17) que “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou
por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”. Assim,
conforme exemplos clássicos, quando o agente, com dolo de homicídio, ministra
açúcar no café da vítima supondo arsênico; aciona o gatilho de arma descarregada
(exemplos de ineficácia absoluta do meio); ou quando atira contra um cadáver; pra
tica manobras abortivas supondo-se equivocadamente grávida (exemplos de impro
priedade absoluta do objeto da ação).
A impossibilidade pode resultar assim tanto de meio ineficaz (revólver sem
munição), como de impropriedade do objeto (matar um cadáver) ou da conjugação
de ambas as formas.
Portanto, o crime impossível ou tentativa inidônea ocorre sempre que se veri
ficar, concretamente, que era absolutamente impossível a consumação do crime.
Por isso não basta a só impossibilidade abstrata da ação, pois um instrumento pode
ser inofensivo em abstrato mas se tomar ofensivo em concreto (v. g., açúcar, rela
tivamente ao paciente diabético), assim como o meio lesivo abstratamente pode ser
inofensivo no caso (v. g., arma de fogo desmuniciada). A possibilidade ou impossi
bilidade do crime deve assim ser aferida concretamento, de modo a verificar o grau
de ofensividade que a ação representa para o bem jurídico tutelado, avaliada a par
tir das múltiplas variáveis do caso.
Tratando-se, porém, de tentativa só relativamente inidônea, isto é, meio ou
objeto que só acidentalmente é ineficaz ou impróprio, haverá tentativa punível (v. g.,
dispara contra a vítima, mas a arma nega fogo).
Não se deve confundir a tentativa inidônea com delito putativo (espécie de
erro de proibição às avessas), pois neste, diferentemente, o agente supõe praticar um
fato criminoso que, no entanto, constitui fato penalmente indiferente, como prati
car incesto. O delito putativo só existe na imaginação do próprio agente, portanto.
A Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal dispõe que “não há crime quan
do a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”, ou
seja, “não há crime quando o fato é preparado mediante provocação ou induzimen-
to, direto ou por concurso, de autoridade, que o faz para fim de aprontar ou arran
jar o flagrante” (STF, RTJ, 98/136). Ao editar a referida súmula, o STF pretendeu
disciplinar aquelas situações em que a polícia, objetivando prender suspeitos de
crime (sobretudo suspeitos de tráfico de drogas), cria uma situação com vistas a
atraí-los a cometer o delito, a fim de surpreendê-los em flagrante. Em tal caso, eW
que o crime não passa de uma encenação, não apenas nulo é o flagrante como tam
bém impossível o delito, sendo atípico o fato cometido em razão da preparação.
D ireito Penal - Parte G eral
9. Arrependimento posterior
C ap ítulo IX
C o n cu rso de Pessoas: au to ria e p articip ação
1. Introdução
O crime, como toda e qualquer ação humana, pode ser praticado por uma ou
mais pessoas. Na hipótese de ser cometido por mais de uma pessoa - concurso
eventual —, cumprirá saber quais as condições que deverão reunir-se para que possa
assumir relevância jurídico-penal, a fim de se estabelecer e precisar a respectiva
responsabilidade e promover a individualização judicial da pena de cada um dos
concorrentes: autor, co-autor ou partícipe. Trata-se de problema específico dos
chamados crimes unissubjetivos, os quais podem ser praticados por uma ou mais
pessoas, haja vista que nos crimes plurissubjetivos (ou de concurso necessário) a
participação de mais de um agente faz parte da própria descrição típica (rixa, qua
drilha ou bando etc.), sendo inerente à realização do tipo legal de crime.
qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a ele cominadas, na medi
da de sua culpabilidade” (CP, art. 29). Relevante é saber, portanto, se o agente de
alguma forma contribuiu dolosamente para o crime de que se trate, hipótese em
que, reconhecido o concurso, o co-autor ou partícipe incidirão nas penas comina
das ao delito. Para essa teoria, enfim, toda pessoa que concorra para a produção do
crime, causa-o em sua totalidade, motivo pelo qual se imputa o delito integralmen
te a cada um dos partícipes (Antolisei).
Não quer isso significar que a punição dos vários agentes do crime se dará
indistintamente, isto é, à revelia da importância e gravidade da participação de
cada um dos envolvidos, pois, ao se adotar um critério puramente objetivo de res
ponsabilização penal dos autores e partícipes, violar-se-iam os princípios de pro
porcionalidade e culpabilidade, entre outros. Daí estabelecer o Código que o agen
te responderá “na medida de sua culpabilidade” (art. 29, caput), dispondo ainda
que, “se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um
sexto a um terço” (§ Ia). Também por isso se consagra a “participação dolosamente
diversa” (§ 2S).
Nada obsta ainda a que o juiz, invocando o princípio da insignificância, por
exemplo, decrete a absolvição do acusado, tendo em conta a irrelevância jurídico-
penal da participação.
E comum dizer-se que, se, por um lado, a teoria unitária tem a vantagem de
simplificar o tratamento legal dos múltiplos problemas relacionados à autoria e à
participação, por outro, tem a desvantagem de ampliar consideravelmente a puni-
bilidade, e por isso seria dificilmente compatível com um Estado Democrático de
Direito.15 Mas a crítica só será procedente se, primeiro, a teoria for adotada em ter
mos absolutos, isto é, sem os devidos ajustes; segundo, se o intérprete não tiver a
preocupação - que deve existir sempre - de privilegiar a interpretação mais con
forme os princípios penais.
Para esta teoria, que trabalha com um conceito restritivo de autor, fundamen
tal é a realização de todos ou alguns dos atos executivos previstos expressamente no
tipo legal, ou seja, autor é quem pratica a ação típica enunciada pelo verbo da ora
ção,16 de sorte que autor é aquele que, no tipo de homicídio, pratica a ação de
“matar”; no furto, a ação de “subtrair”; no estupro, a ação de “constranger”. Nos
demais casos haverá participação.
Apesar de ser ordinariamente aceito semelhante conceito de autor, critica-se
com freqüência o fato de não poder explicar as hipóteses de autoria mediata, quan
15 Nesse sentido, Roxin. Autoria y dominio dei hecho en el derecho penal, cit., p. 489.
16 Magalhães Noronha, Direito penal, cit., p. 217.
D ir e ito P e n a i - P a r te G e ra l
Para a teoria do domínio do fato, uma teoria mista que combina critérios obje
tivos e subjetivos, especialmente impulsionada por Welzel e Roxin, autor, como
sugere a denominação, é a pessoa que detém o domínio da conduta delituosa, isto é,
decide, em linhas gerais, o “se” e o “como” de sua realização,17 ou, como diz Welzel,
autor é o senhor da realização do tipo, o qual, por meio do domínio final da ação,
distingue-se, assim, do mero partícipe, que é quem o auxilia num ato dominado
finalmente pelo autor ou que o incita à decisão de delinqüir.18 Por conseguinte, na
hipótese de “crime de mando” (v. g., um homicídio), tanto é autor o mandante do
crime quanto o mandatário (executor); ambos são co-autores, mesmo porque a co-
autoria é uma forma de autoria, cujo domínio do fato é comum a várias pessoas.
A teoria do domínio do fato tem, em conseqüência, as seguintes implicações:19
a) é autor quem executa, por sua própria mão, todos os elementos do tipo (quem
mata, quem estupra etc.); b) é autor quem executa o fato utilizando outro como ins
trumento (autoria mediata); c) é autor ou co-autor quem realiza uma parte neces
sária da execução do plano global (domínio funcional do fato), ainda que não seja
um fato típico em sentido estrito, mas participando da resolução criminosa. Nos
demais casos haverá participação.
5. Formas de autoria
A autoria pode se manifestar por três modos distintos: autoria direta (ou ime
diata), co-autoria e autoria mediata (ou indireta). Autor direto é aquele que come
te pessoalmente o delito. É enfim o sujeito ativo que está implícito em todo tipo
penal de crime: no homicídio é o que dispara o revólver; no furto, o que subtrai a
coisa; no estupro, o que constrange a mulher à conjunção carnal. A co-autoria
ocorre quando várias pessoas tomam parte, conjuntamente, no delito, de modo que
20 Ibidem, p. 501-504.
21 De acordo com Roxin, uma formação de conceitos segundo o qual o “domínio do fato” do omitente se
baseia na possibilidade de intervir e evitar o resultado é incorreta e inviável na prática, por isso não exis
te domínio do fato nos casos de omissão e, se houvesse, com sua ajuda não seria possível fazer uma deli
mitação das formas de participação. Ibidem, p. 504.
22 Nesse sentido, Mir Puig: “em que consiste realmente o domínio do fato? Tem-se acusado esta fórmula de
carecer de um conteúdo preciso para servir para resolver com nitidez a questão da delimitação entre auto
ria e participação. Uma possibilidade de concreção do conceito de domínio do fato é entender que con
corre no sujeito que tem o poder de interromper a. realização do tipo. Poder-se-ia dizer, então, que o exe
cutor material tem o domínio do fato, e é autor, porque todas as contribuições anteriores (por exemplo,
do indutor) dependem de que aquele culmine a execução e não a deixe inacabada. Mas a doutrina tem
advertido que o poder de interrupção não pode bastar para autoria, pois tal possibilidade pode achar-se
em mãos do indutor, do cúmplice e até de terceiros”, entendendo, em conseqüência, que se deve adicio
nar a idéia de “relação de pertinência”, por isso “só são autores aqueles que causam o fato imputável a
quem se pode atribuir a pertinência, exclusiva ou compartida, do delito” (Derecho penal , cit., p. 366-367).
23 De modo similar, Cobo dei Rosai e Vives Antón, os quais consideram que a teoria do domínio do fato é
mais uma imagem do que um autêntico conceito e é, em todo caso, uma fórmula imprecisa: in te rp reta d a
rigorosamente, resulta inaplicávei, pois um homem nunca chega a dominar por inteiro o curso dos acon
tecimentos; e, ao contrário, entendida em sentido amplo, poderia predicar-se de qualquer classe de ação
voluntária, pois todas elas supõem certo domínio do fato (Derecho penal , cit., p. 669).
D ir e ito P e n a l - P a rte G e ra l
5.1. Co-autoria
Juarez Tavares entende que nem a co-autoria nem a participação são possíveis
nos crimes culposos. E que, diferentemente do crime doloso, em que o agente atua,
desde o início, contrariamente à norma, lesando ou pondo em perigo de lesão o bem
jurídico, para a configuração do delito culposo, é preciso, primeiro, que o agente rea
lize uma ação perigosa; segundo, que essa ação perigosa contravenha a norma de
cuidado que se destina a regular aquela espécie de atividade que está sendo desen
volvida; e, por fim, que a execução dessa atividade descuidada tenha se realizado no
resultado proibido.30 Portanto, em virtude dessa estrutura complexa do crime cul
poso, se duas ou mais pessoas têm um dever de cuidado e atuam negligentemente de
modo a causarem lesão jurídico-penalmente relevante a bem jurídico, então cada
uma haverá de responder por seu próprio crime, autonomamente (autoria colateral),
e não em co-autoria (v. g., equipe médica que decide em conjunto levar adiante
cirurgia de risco, causando a morte do paciente por imperícia ou imprudência).
De acordo com Tavares, também não é possível falar, pela mesma razão, de
participação (dolosa ou culposa) em crime culposo. Assim, por exemplo, o carona
que instiga o motorista a correr mais do que o legalmente permitido não pode res
ponder por crime culposo, porque não há relativamente a ele um dever de cuida
do, e, pois, infração a uma norma de cuidado. Em verdade, está-se num impasse:
não pode o instigador ser autor, porque não tem dolo de autor; não pode ser partí
cipe, porque se seu dolo se estender à ação descuidada, será então autor e não mais
partícipe; não pode igualmente ser partícipe, porque, para tanto, deveria executar
a ação perigosa e, se o fizesse, seria autor, bem como, não a executando, está deso
brigado ao cuidado necessário.31 Conseqüentemente, a participação é logicamente
inadmissível nos crimes culposos, devendo cada um dos participantes responder
como autor pela sua respectiva ação, dolosa ou culposa.32
De modo similar, Juarez Cirino dos Santos entende que, do ponto de vista con
ceituai, o concurso no crime culposo é impossível, e, do ponto de vista prático, é des
necessário, porque na hipótese de comportamentos imprudentes simultâneos cada
lesão do dever de cuidado ou do risco permitido estaria ligada ao resultado, motivo
pelo qual seria imputável a cada um dos agentes a título de autoria colateral.33
Não estamos de acordo com isso. Com efeito, temos que tanto a co-autoria
quanto a participação são perfeitamente compatíveis com os crimes culposos.
Desde logo, porque o Código, ao adotar a teoria monista, não fez distinção expres
sa entre autoria e participação, nem entre concurso doloso e culposo, de sorte que,
quem de qualquer modo concorre para o crime, a título culposo inclusive, respon
de penalmente na medida de sua culpabilidade, desde que adira à ação impruden
te do autor. Assim, por exemplo, se duas pessoas ajustam entre si a realização de um
30 Juarez Tavares. Direito Penal da Negligência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 416-417.
31 Juarez Tavares, idem.
32 Juarez Tavares, ibidem.
33 Direito Penal, cit.
“pega” ou “racha” (Código de Trânsito, art. 308) e um deles vem a colidir com um
terceiro, causando-lhe a morte, o causador do evento letal responderá como autor
de crime culposo (abstraída a discussão sobre a possibilidade de dolo eventual),
enquanto o outro responderá por participação culposa; se este eventualmente tiver
também colidido com o terceiro, haverá co-autoria.
Também porque, no caso de crime culposo, a co-autoria e a participação não
dizem respeito à produção de um resultado não querido e geralmente não previs
to, mas à ação negligente tomada conjuntamente.
Finalmente, porque, se assim não for, freqüentemente o co-autor ou partícipe
ficarão impunes, pois, negada a possibilidade de co-autoria ou participação em
crime culposo, dificilmente poderão ser considerados como autor, apesar da rele
vância causai da conduta.
Releva notar ainda que, nos crimes culposos, a adesão subjetiva não se refere
ao resultado, obviamente, mas à vontade no sentido de atuar imprudentemente
(dirigir embrigado, em alta velocidade, competir etc.).
Naturalmente que se não existir nenhum tipo de adesão subjetiva entre tais
pessoas, haverá autoria colateral em crime culposo, sempre que derem causa a um
mesmo resultado por meio de ações imprudentes autônomas.
Não basta, porém, tais circunstâncias para qualificar alguém como autor
mediato, pois é necessário que o erro ou a violência sejam de tal natureza que con
vertam realmente em instrumento aquele que atua sob sua influência,36 porque do
contrário haverá concurso de pessoas. Não há assim autoria mediata, mas concur
so, quanto a adolescentes ou mesmo crianças que tomam parte em crime com cri
minosos adultos, como executores materiais ou não, atuando livremente, indepen
dentemente de serem puníveis, uma vez que a punibilidade do autores é um dado
acidental, não essencial, para a configuração jurídico-penal da autoria mediata.
Dito de outro modo: embora infreqüente, nem sempre a criança ou adolescente que
praticar crime a mando de outrem, estará numa situação de instrumento, e, pois,.
de autoria mediata, porque pode ocorrer, inclusive, de ser o mentor da infração
penal e ter eventualmente ascendência sobre os demais.37 E que quem pode ser
autor pode igualmente figurar como co-autor ou partícipe, independentemente de
ser punível no caso concreto.
Não comportam autoria mediata os crimes culposos, já que nessa situação falta
o domínio do fato e, mais, tal figura é desnecessária, pois qualquer pessoa que crie
risco não permitido e cause resultado desaprovado seria considerada autor parale
lo de crime imprudente. De acordo com a doutrina majoritária, não há também
autoria mediata nos chamados crimes de mão própria, visto exigirem atuação pes
soal do autor (bigamia).38
36 Cobo dei Rosai e Vives Antón, D erecho penal, cit., p. 678. Entendem esses autores que “para falar-se de
autoria mediata o instrumento há de atuar: se não realiza uma ação, como sucede com a hipótese de vis
absoluta, então a autoria do ‘homem de trás’ (hitermann ) não é mediata, sino imediata” (idem).
37 No sentido do texto, Welzel, para quem a criança ou o enfermo mental pode desenvolver vontade pró
pria, motivo pelo qual no caso de participação de terceiro nesses fatos haverá instigação ou cumplicidade,
Derecho Penal, cit., p. 124; também Jescheck, Tratado, cit., p. 609; e Jakobs, que afirma que se, contra
riando a presunção legal, a criança é já capaz de conhecer e observar a norma, haverá participação ou co-
autoria, Derecho Penal, cit., p. 779. Criticando Welzel e defendendo posição diversa, Roxin assinala que,
quando houver uso de crianças o sujeito que está por detrás, que determina a ação é sempre autor media
to. Não obstante, entende que quando a criança, por sua conta e risco, decidir cometer o crime e alguém
o auxilia, haverá cumplicidade. Autoria y domínio dei hecho en Derecho Penal, 73 editión, Madrid:
Marcial Pons, p. 266-267.
38 Assim, Jescheck, Tratado, cit. No sentido contrário, de entender que também os crimes culposos admitem
a autoria mediata, Cobo dei Rosai e Vives Antón, Derecho penal, cit., p. 679.
39 Toma-se aqui a expressão em sentido estrito, pois, em sentido amplo, a participação compreende também
a co-autoria.
40 Munoz Conde: do ponto de vista dogmático, é fundamental a distinção entre autoria e participação, por~
que é um conceito de referência e supõe sempre a existência de um autor principal em função do qual se
tipifica o fato ( Teoria , cit., p. 195).
D ir e ito P e n a l - P a r te G e ra l
41 A dependência da participação em face do fato principal, como escreve Juarez Cirino, refere-se ao conteú
do do injusto respectivo: a participação não tem conteúdo de injusto próprio e, por isso, assume conteúdo
de injusto do fato principal; por outro lado, a dependência da participação é limitada à tipicidade e antiju
ridicidade do fato principal, ou seja, ao tipo de injusto do fato principal (A moderna teoria, cit., p. 291-292).
42 MAYER, Marx Ernest apud BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004, p. 164.
Paulo Queiroz
43 Nesse sentido: WELZEL, Hans. Derecho Penal Alemán. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 1993, p.
135; JESCHECK, Hans-Heírich. Tratado de D erecho Penal: Parte General. 4. ed. Granada: Editorial ;
Comares, 1993, p. 596-597. No Brasil: DE JESUS, Damásio. Direito Penal: Parte Geral. 27. ed. Vol. 1- São
Paulo: Saraiva, 2003, p. 416; BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 11.
ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 423-424; BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes. 2. ed. Rio de Janeiro: ^
Lumen Juris, 2004, p. 164-165; GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Vol 1. 8.>ed. ’■
Niterói: ímpetus , 2007, p. 453-454; ZAFFARONI, Eugênio Raúl et al. Manual de Direito Penal B ra sü e ito ■ _
Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 684-686. Contrariamente, adotando a teona
da acessoriedade limitada: Bruno, Aníbal apud BATISTA, Nilo. Concurso de Agentes. 2. ed. Rio ^e_ i;
Janeiro: Lumen Iuris, 2004, p. 165; BARROS, Flávio Augusto Monteiro. Direito Penal: Parte Geral. Vol
J. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 416-417; RAMOS, Beatriz Vargas. Do Concurso de pessoas. Belo Horiz°fl . . .
te: Del Rey, 1996, p. 42. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Vol. I. 9. ed. São Paulo: Saraiva, , ^
2005, p. 342-343. u
44 GALVAO, Fernando. Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro: ímpetus, 2004, p. 471-472. %
quem ajuda o agente que se encontra em tal situação não pode responder autono-
mamente pelo crime do art. 168-A do Código, pois tampouco lhe é exigível con
duta diversa. Também não faz sentido que o autor seja absolvido por erro de proi
bição inevitável c o partícipe condenado (v. g., o caçador e quem o auxilia; aquele
absolvido, este condenado).
Quanto à objeção de que o partícipe seria beneficiado por circunstância pes
soal que não lhe diz respeito, tal é perfeitamente aplicável às excludentes de
tipicidade (v. g., erro de tipo) e ilicitude (v. g., legítima defesa), e, pois, não procede.
Finalmente, tudo o que acaba de ser dito não se aplica à hipótese de inimputa-
bilidade por alienação mental ou menoridade, porque, diversamente dos demais
casos de exclusão de culpabilidade, aqui o autor (inimputável) sofrerá uma sanção
adequada à sua situação; medida de segurança ou medida sócio-educativa, confor
me o caso. Exatamente por isso, o partícipe, tendo tomando parte numa ação típica,
ilícita e culpável, logo, punível, será castigado na forma da lei. Aqui, sim, a circuns
tância de caráter pessoal do autor não lhe aproveita. E mesmo que pudesse apro
veitá-lo, não seria para deixá-lo impune, mas para lhe impor medida de segurança
ou medida sócio-educativa, sanções legalmente incompatíveis com a sua condição
de imputável.
Por último, não é correto dizer que o Código Penal adotou a teoria da acesso-
riedade limitada por conta do disposto nos arts. 29, § 2Q, 30, 31 e 62, todos do CP.45
Sim, porque, embora tais artigos afirmem a acessoriedade da participação, nada di
zem sobre o seu grau, que é assim uma questão doutrinária.46 Mais: dizem respeito
essencialmente à punibilidade e à individualização judicial da pena, e só aciden
talmente à teoria do crime.
® Nilo Batista. Concurso d e agentes, cit, p. 165 e GALVÃO, Fernando. Direito Penal, cit, p. 472.
Flávio Augusto Monteiro de Barros. Direito Penal, cit, p. 417.
Juarez Cirino, A m oderna teoria , cic., p. 294.
Pauio Queiroz
Dispõe o art. 29, § 2fi, que, “se algum dos concorrentes quis participar de crime
menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até a meta
de, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave”. Com semelhante dis
positivo, o legislador pretendeu dar tratamento adequado àquelas situações - basi
camente de excesso de mandato - em que o autor do crime vai além do combina
do com o co-autor ou partícipe, cometendo um delito mais grave. Exemplo: A acer
ta com B que dê uma “surra” em C; B, porém, se excede e mata C. O sentido da
norma é evitar que o partícipe responda não por um ato seu, mas por ato de res
ponsabilidade de terceiro, de modo a coibir a responsabilidade penal objetiva, asse
gurando-se ademais a vigência do princípio da proporcionalidade.
De acordo com a norma adotada pelo Código, portanto, cada um responde
somente até onde alcança o acordo recíproco,52 devendo o concorrente responder
em consonância com o que quis, segundo o seu dolo, e não conforme o dolo do
autor.53 Em conseqüência, no exemplo citado, A responderá, em princípio, por
lesões corporais simplesmente (leves ou graves, conforme o caso concreto); se pre-
visível, porém, o resultado mais grave, responderá, ainda assim, por lesões corpo-
rais, já agora com pena aumentada até a metade. Evidente que, se imputável o
resultado mais grave a título de dolo eventual, não haverá autêntico desvio subje-
tlvo de conduta, respondendo o partícipe por homicídio.
A norma em questão deve então ser assim entendida: se o resultado mais grave
não for imputável ao partícipe a título culposo, porque imprevisível, responderá
nos limites do ajustado com o autor (se foi uma lesão, responderá por lesão; se uiu
furto, responderá por furto); se, ao contrário, tal lhe for imputável a título de culpa,
porque previsível, responderá nos limites do ajustado, mas com pena aumentada
até a metade; finalmente, se o resultado mais grave for imputável a título de dolo,
inaplicável será o dispositivo em causa, pois em tal contexto não existirá verdadei
ra “cooperação dolosamente diversa”, mas “dolosamente idêntica”. Assim, tem-se
reconhecido freqüentemente que partícipe de roubo com emprego de arma de fogo
responde por latrocínio, se morte houver, visto que este resultado, além de previ
sível, decorre de dolo eventual ao menos.
Capítulo X
Teoria da Ilicitude
Causas de Justificação
1. Introdução
8 Latrauri, Justificación material y justificación procedimental en el derecho penal, Madrid: Tecnos, 1997,
p. 6 1 .
9 Roxin, D erecho penal, cit., p. 597.
10 Derecho penal, cit., p. 597.
11 Em sentido contrário, autores “causalisras”, coerentes com o conceito objetivo de a n tiju rid icid a d e , a
exemplo de Hungria: “a legítima defesa,por isso mesmo, éuma causa objetiva deexclusão de in ju r id ic i'
dade, só pode existir objetivamente, isto é, quando ocorrem, efetivamente, os seus pressupostos objetivos*
Nada têm estes a ver com opinião ou crença do agredido ou do agressor. Devem ser reconhecidos de uni
ponto de vista estritamente objetivo (...). Assim, se Tício, ao voltar à noite para casa, percebe que dois
víduos procuram barrar-lhe o passo em atitude hostil, e os abate a tiros, supondo-os policiais que o va«
prender por um crime anteriormente praticado, quando na verdade são ladrões que o querem desp°jar’
,
não se pode negar a legítima defesa” ( Comentários cit., p. 289).
12 Fragoso, Lições, cit., p. 185.
D ireito Penal - Parte G eral
ser sempre aferido objetivamente, bastando assim que o sujeito tenha tomado como
possível a verificação de uma situação justificante.13
O Código Penal (art. 23, parágrafo único) prevê que o agente responderá, em
qualquer das causas de justificação, por excesso doloso ou culposo. Naturalmente
que o excesso que aí se supõe é aquele que não descaracteriza, pela desnecessidade
ou desproporção dos meios, a própria descriminante (v. g., matar uma criança que
subtrai frutas), pois do contrário não se cogitará desse tipo de excesso, mas de
ausência pura e simples da justificativa, por não ser necessária, já que a autodefesa
e a proteção da ordem jurídica encontram a sua limitação conjunta no princípio da
proporcionalidade, que, atravessando a ordem jurídica como um todo, faz com que
se negue, por exemplo, a legítima defesa, quando houver total desproporção entre
os bens jurídicos em conflito.14
Pressuposto, portanto, da aplicação do dispositivo é que, não obstante o exces
so, haja o reconhecimento da causa de justificação, ou seja, há excesso nas causas
de justificação quando o sujeito, achando-se inicialmente em legítima defesa ou em
estado de necessidade etc., vai além dos limites da justificativa, ultrapassando-a, 15
de modo que, para a admissão do excesso, é indispensável que a situação caracteri
ze a presença da excludente, cujo exercício, em um segundo momento, mostra-se
excessivo.16 Em tal caso, há, por assim dizer, uma legítima defesa, um estado de
necessidade ou um exercício regular de direito excessivos. Exemplo: A, após imo
bilizar B, que tentava agredi-lo com uma faca, dá-lhe outros golpes (desnecessá
rios), causando-lhe lesões, hipótese em que responderá pelas lesões subseqüentes à
situação justificante reveladoras de excesso; se eventualmente der causa à morte,
poderá responder por homicídio doloso inclusive. Em conclusão, há excesso quan
do o agente, embora inicialmente amparado por uma causa de justificação e mesmo
depois de fazer cessar a agressão que contra ele começara, prossegue lesionando seu
agressor, desnecessariamente, que agora se converte em vítima, causando-lhe
lesões ilícitas. Enfim, havendo excesso, o agente que se defendia passa da legalida
de à ilegalidade, devendo responder jurídico-penalmente a título de dolo ou culpa,
conforme o caso. E assim é porque, cessada a agressão injusta, cessa também a auto
rização legal para a defesa, que, embora inicialmente legítima, converte-se em ile
gítima. Assim, por exemplo, se A, depois de imobilizar B, que, de posse de uma
faca, tentara roubar-lhe o veículo, resolve matá-lo desnecessariamente, responde
rá pelo excesso: homicídio doloso.
Havendo excesso, poderá ocorrer inclusive a chamada legítima defesa suces
siva: o agressor converte-se em vítima do agredido, podendo reagir legitimamente.
Reconhecido o excesso, o agente responderá a título de dolo ou culpa, confor
me seja intencional ou não a sua atuação excessiva. Obviamente que a punição do
excesso culposo só ocorrerá quando se tratar de fato punível a esse título e tal não
for exculpável.
4. Efeitos
17 Em sentido contrário, Larrauri (Justificación , cit., p. 66), para quem nem sempre há essa exclusão da res
ponsabilidade penal: “a persistência da responsabilidade civil (ou administrativa) não é, em minha opi
nião, um critério válido para afirmar ou negar a presença de uma causa de justificação. Expressando em
outros termos, o fato de que uma causa de justificação não elimina todo efeito jurídico ulrerior - seja uma
responsabilidade civil ou sanção administrativa - é porque a pena, sanção ou responsabilidade civil, têm
distinto fundamento”. Cita como exemplo a declaração judicial de que um guarda municipal tenha atua
do no cumprimento do dever, o que não impediria que um terceiro acionasse a Administração Pública
para obter indenização, com base na responsabilidade objetiva (p. 66-68). Apesar disso, afirma: “em sín-,
tese, em minha opiniào, é correto afirmar que as causas de justificação marcam o âmbito dos co m p o rta
mentos autorizados, que estas têm como função delimitar o justo do injusto’ (Roxin, 1987:234; 1994:496).:
que representam o ‘dever ser’ (sollerí) frente ao ‘poder’ (Aónnen) próprio da culpabilidade (Welzel
1976:200; Hassemer, 1987:194), porém disso não deriva que eliminem toda conseqüência jurídica ou que
devem ter um paralelo direito ou dever noutros setores do ordenamento jurídico” (p. 73-74).
18 Luzón Pena, Curso, cit., p. 577-578.
D ireito Pen al - P arte G eral
situação anterior, se obrigue, por exemplo, alguém a prestar socorro quando possí-
vel fazê-lo sem risco pessoal (CP, art. 135), bem como se constranja o médico a
notificar doença (CP, art. 268).
A agressão, para poder ensejar a defesa legítima, deverá ser também injusta,
isto é, não autorizada pelo direito, não precisando constituir necessariamente infra
ção penal (crime ou contravenção), podendo ser exercitada, por exemplo, para pro
teção da posse, nos termos do Código Civil, pouco importando se tal fato constitui
ou não crime. Sendo justa a agressão, evidentemente que não se admitirá a defesa,
como, v. g., a reação contra prisão regular em flagrante delito ou cumprimento de
mandado judicial. Por essa razão, não pode haver legítima defesa contra legítima
defesa, contra estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal, exercício
regular de direito ou consentimento do ofendido, exceto se um dos contendores
estiver em situação putativa, pois obrigatoriamente alguém terá de estar atuando
antijuridicamente.25 Tal agressão, embora injusta, não precisa ser culpável,26 po
dendo, pois, partir tanto de imputável quanto de inimputável, bem como de incul-
páveis de modo geral, mesmo porque não pode a ordem jurídica impor a ninguém
um sacrifício de direito seu diante de ataque de pessoa inculpável por qualquer
motivo (v. g., agente sob coação moral irresistível).
Mas nesse caso, tendo-se em conta a especial vulnerabilidade do agressor, sobre
tudo quando se tratar de crianças, alienados mentais e ébrios sem sentido, é de convir,
com Roxin,27 que o recurso à legítima defesa somente deve ocorrer em último caso,
pois do contrário não haverá necessidade da reação, a justificar a defesa: a) o agredido
tem de esquivar-se sempre que for possível fazê-lo sem risco pessoal; b) deve-se bus
car auxílio alheio se possível assim repelir, menos duramente, a agressão.28
Não afasta a legítima defesa eventual provocação do agredido, isto é, não eli
mina a injustiça da agressão, exceto se isso constituir uma simulação para oportu-
nizar uma situação de legítima defesa. Também não pode invocar a excludente o
agente que aceita desafio ou duelo.
Com relação ao chamado agente infiltrado, cuja atuação requer autorização
judicial que estabelecerá clara e fundamentadamente os poderes e limites de sua
atuação, não detém ele permissão legal para cometer crimes, mas, se eventualmen
te os cometer, em tese é possível invocar em seu favor a legítima defesa própria ou
25 Como nota Damásio, tal é possível, contudo, se alguém se achar numa situação de justificação putativa,
bem como é possível, obviamente, estado de necessidade contra estado de necessidade (Direito penal, cit.,
p. 383-384).
26 De modo diverso, Jakobs, D erecho penal, cit.
27 D erecho penal , cit., p. 638.
28 No mesmo sentido, Jescheck: “frente a crianças, jovens, ébrios, enfermos mentais, pessoas sujeitas a erro e pes
soas que atuam imprudentemente ou em estado de necessidade (§ 35), não se precisa de nenhuma afirmação
do ordenamento jurídico, pois sua vigência, ou não é questionada pela agressão, ou só o é de modo acidental.
Por isso, em tais casos a razão do direito de legítima defesa consiste, unicamente, na faculdade de autodefesa.
Isso significa que o agredido deve limitar-se à proteção dos bens jurídicos e só se acha autorizado para lesio-
nar o agressor quando não possa defender-se sem abandonar o interesse protegido” ( Tratado, cit., p. 310).
de terceiro, se preenchidos os requisitos legais para tanto; caso contrário, incorre
rá na prática de infração penal. Não seria a hipótese de estrito cumprimento do
dever legal simplesmente porque não existe entre nós o dever legal de praticar deli
tos, uma vez que a legislação prevê apenas a infiltração de agentes de polícia ou de
inteligência em tarefas de investigação mediante circunstanciada autorização judi
cial e ouvido o Ministério Público (Lei ns 11.343/2006, art. 5 3 ,1; e Lei ne 9.034/95,
com a redação da Lei ns 10.217/2001). Aliás, se se tolerasse sem mais que o agente
infiltrado pudesse cometer crimes, o Estado se colocaria no mesmo nível dos cri
minosos e estaria incentivando a prática de delitos, ao invés de preveni-los, numa
clara subversão dos princípios e fins próprios do Estado de Direito
Mas não é qualquer agressão injusta que pode ensejar a legítima defesa, deven
do ser atual, isto é, que está se consumando, ou iminente, que está por se consu
mar. Tratando-se, por conseguinte, de agressão passada, não se configurará a defe
sa legítima, situação em que haverá vingança puramente, não amparada pelo direi
to. Por igual, se se cuidar de agressão futura - logo, nem atual nem iminente, incer
ta, enfim - , não se admitirá a invocação da excludente, pois, como dizia Magalhães
Noronha, a legítima defesa não se funda no temor de ser agredido nem no revide
de quem já o foi.29 A reação é, portanto, em qualquer caso, preventiva: preventiva
no começo de ofensa ou preventiva de maior ofensa, não sendo cabível contra
agressão que já cessou ou contra simples ameaça desacompanhada de perigo con
creto e imediato.30 E que, não sendo nem iminente nem atual a agressão, não exis
tirá propriamente uma reação, tampouco necessidade de defesa.
Releva notar, porém, que, cuidando-se de agressão criminosa, a atualidade ou
iminência pode dar-se ainda na fase de exaurimento do crime, e não apenas duran
te a fase de execução (tentativa e consumação e, excepcionalmente, até na prepa
ração imediatamente anterior ao início da execução). Assim, em qualquer fase da
extorsão mediante seqüestro, já consumada com a exigência de vantagem como
condição ou preço do resgate (CP, art. 159), poderá a vítima defender-se legitima
mente, inclusive depois de iniciada a fuga do cativeiro.
A defesa poderá amparar tanto direito próprio como alheio. E qualquer direi
to - vida, integridade física, honra, patrimônio etc. - é passível de proteção por
meio da defesa legítima. A razão é simples: se a sua função é assegurar a vigência
ou integridade de um bem jurídico, ela deverá ter lugar diante de qualquer interes
se digno de proteção jurídica. A expressão “direito”, assim, é aqui empregada em
sentido amplo, de sorte a abranger qualquer interesse passível de proteção jurídica,
por isso que até a vida em formação pode e deve ser protegida legitimamente, de
sorte que o nascituro é protegível não só contra agressão de terceiro como ainda de
agressão da própria gestante que pretenda abortar. Também maus-tratos e tortura
contra animais são passíveis de legítima intervenção. Não o é, porém, em princípio,
o mero inadimplemento contratual, pois do contrário qualquer credor poderia
fazer valer seu direito violentamente, o qual deverá socorrer-se dos meios jurídicos
postos à sua disposição, sob pena de incorrer no crime de exercício arbitrário ou
abuso de poder (CP, art. 350), inclusive.
A honra, como qualquer outro bem jurídico, merece proteção penal, poden
do haver legítima defesa em seu favor. O que se poderá discutir, no entanto, é a
necessidade e a moderação da reação. Assim, por exemplo, não pode dizer-se em
legítima defesa quem, a pretexto de defender a sua honra de marido traído, preten
da matar sua companheira, como ainda reconhece, nalguns casos, o Tribunal do
Júri, sobretudo em comarcas do interior. Tais comportamentos são claramente cri
minosos e plenamente puníveis, podendo invocar-se, no máximo, o privilégio do
art. 121, § le, do CP.
Também é perfeitamente admissível a legítima defesa de bens jurídicos do
Estado ou de pessoa jurídica quando se tratar de bens jurídicos individuais (v. g„ a
propriedade de bens públicos contra furtos e roubos), bem assim para defesa de
bens jurídicos da comunidade sempre que uma pessoa individual resultar direta
mente afetada pela agressão.31
Tratando-se, porém, da preservação de direito de terceiro, o exercício da legí
tima defesa há de ser relativizado, de modo a ser admitido só quando o titular do
direito ofendido tiver interesse, real ou presumido, na proteção jurídica que se lhe
quer emprestar, pois se não há, concretamente, um bem jurídico individual neces
sitado de proteção, não se pode pretender defendê-lo legitimamente.32 Assim, não
pode, em princípio, o caseiro argüir legítima defesa, se, embora terminantemente
orientado de que, em caso de furto de determinados materiais guardados em depó
sito, se limitasse a dar tiros de advertência ou chamasse a polícia, jamais atirando
contra o agressor, venha a atingi-lo intencional e mortalmente. É que em tal caso
não há, a juízo do titular do direito, necessidade de uma tal defesa. Pela mesma
razão, se houver consentimento do titular do direito ofendido, não se justifica a
defesa em seu favor - v. g., não pode invocá-la quem, a pretexto de proteger uma
zes etc.) podem também ensejar a legítima defesa, pois, não obstante alguns auto
res ainda opinem no sentido de que se trata de exercício regular de direito,36 fato
é que quem predispõe o offendiculu m não se encontra em situação diversa, por
exemplo, daquele que se arma de um revólver, prevendo a eventualidade de um
assalto, não importando que a instalação do aparelho insidioso preceda ao momen
to da agressão, desde que só entre em funcionamento na ocasião em que o perigo
se fizer atual.37 No entanto, os riscos que tais instrumentos comportam correm a
cargo de quem se defende de tal modo,38 motivo pelo qual o autor poderá respon
der penalmente, a título de culpa ou mesmo dolo, sobretudo quando atingir ino
centes. Ademais, os dispositivos perigosos para a vida quase nunca são necessários:
não são legitimáveis disparos automáticos ou minas explosivas quando bastem dis
positivos de alarme, descargas elétricas ligeiras etc.39
Conviria saber, por último, se, ocorrendo lesão a terceiro estranho ao confli
to havido entre os contendores, poderá o agredido invocar a proteção legal. Roxin
considera que, se o prevalecimento do direito junto à proteção individual é carac
terística de toda legítima defesa, isso só tem sentido em face do agressor, e não em
face de terceiro, circunstância que não excluiria, contudo, eventual estado de
necessidade exculpante, de modo que, quem, por exemplo, dispara contra autor de
roubo, admitindo a possibilidade de atingir um transeunte, deverá responder em
princípio pelas lesões causadas a este,40 a título de dolo ou culpa, conforme o caso.
Mas semelhante posicionamento não é sustentável ao menos em face da legis
lação penal brasileira, porque tal importará erro de execução (aberratio ictus),
razão pela qual, na forma do art. 73 do Código, o agredido responderá como se
tivesse atingido o agressor; valer-se-á da legítima defesa, portanto.41 A despeito
disso, responderá civilmente pelos danos causados ao terceiro inocente.
42 De modo diverso, Fragoso: “A legislação vigente, adotando a fórmula unitária para o estado de necessida
de e aludindo apenas ao sacrifício de um bem que, ‘nas circunstâncias, não era razoável exigir-se’, com
preende impropriamente também o caso de bens de igual valor (é o caso do náufrago que, para reter a
única tábua de salvamento, sacrifica o outro). Em tais casos subsiste a ilicitude e o que realmente ocorre
é o estado de necessidade excludente da culpa (inexigibilidade de outra conduta)” (Lições , cit., p. 189).
43 Nesse sentido, Assis Toledo, para quem não é possível invocar estado de necessidade, sacrificando bem de
maior valor para proteção de bem de menor valor, tendo-se, aí, uma ação típica e antijurídica. No entan
to, tal não impede que, eventualmente, seja reconhecida a falta de culpabilidade, de modo que “admiti
mos, pois, com as ressalvas expostas, o estado de necessidade exculpante, como causa extralegal de exclu
são da culpabilidade, por ser isso resultado de simples desdobramento do princípio da culpabilidade”
(Princípios básicos, cit., p. 181).
44 Com efeito, dispõe o art. 39 do COM: Não é igualmente culpado quem, para proteger direito próprio ou
de pessoa a quem está ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição, contra perigo certo e atual,
que não provocou, nem podia de outro modo evitar, sacrifica direito alheio, ainda quando superior ao
direito protegido, desde que não lhe era razoavelmente exigível conduta diversa. Art. 42. Não há crime
quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em legítima defesa; III - em estrito cum
primento do dever legal; IV - em exercício regular de direito. Art. 43. Considera-se em estado de neces
sidade quem pratica o fato para preservar direito seu ou alheio, de perigo certo e atual, que não provocou,
nem podia de outro modo evitar, desde que o mal causado, por sua natureza e importância, é considera
velmente inferior ao mal evitado, e o agente não era legalmente obrigado a arrostar o perigo.
D ire ito P en al - Parte G eral
Do estado de necessidade cuida o art. 24, caput, do Código Penal, que tem o
seguinte enunciado: “considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato
para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro
modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era
razoável exigir-se”. § 1Q: “não pode alegar estado de necessidade quem tinha o
dever legal de enfrentar o perigo”. § 2a: “embora seja razoável exigir-se o sacrifício
do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços”. Seu reconhe
cimento reclama, portanto, o concurso dos seguintes requisitos: a) existência de
perigo atual e inevitável; b) perigo não provocado pelo agente; c) inexistência de
dever legal de enfrentar o perigo; d) inexigibilidade do sacrifício do bem ameaça
do; e) ameaça a direito próprio ou alheio.
52 No mesmo sentido, Cezar Bitencourt: este dever não tem caráter absoluto, a ponto de negar-se qual
quer possibilidade de ser invocado o estado de necessidade. A exigência de sacrifício no exercício dessas
atividades perigosas não pode atingir o nível de heroísmo. O princípio do razoável também vige aqui,
embora em sentido diverso: para se salvar um bem patrimonial é inadmissível que se exija o sacrifício de
uma vida” (Manual, cit., p. 261).
53 Hungria, Comentários, cit., p. 276.
P a u lo Q u e ir o z
Evidentemente que também crime algum haverá - nem sequer será típica a
conduta, conforme a perspectiva aqui adotada - quando o agente praticar o fato no
estrito cumprimento do dever legal (CP, art. 23, III, I a parte). Ao contrário, have
rá ilícito administrativo ou mesmo crime contra a Administração Pública (v. g.t
prevaricação - CP, art. 319) se o funcionário público deixar de praticar o que a lei
lhe impõe. Daí entendermos que, independentemente da adoção da teoria dos ele
mentos negativos do tipo, a atipicidade da conduta praticada sob o manto do estri
to cumprimento decorre de uma razão tautológica: quem cumpre um dever legal
estritamente não pode ao mesmo tempo realizar tipo penal algum.
Assim, por exemplo, o policial que prende em flagrante delito ou o oficial de
justiça que cumpre mandado judicial de despejo não respondem por crime, ainda
quando para tanto façam emprego de violência e causem lesões, moderadamente'.
Se é de dever estrito que se trata, segue-se que só estará legitimada a ação rea
lizada rigorosamente dentro do que a lei autoriza, sob pena de descaracterizá-lo (v. g.,
prisão fora dos casos legalmente permitidos). O dever, por sua vez, há de provir de
norma de direito positivo (lei, decreto, regulamento), não valendo, para tanto,
deveres simplesmente sociais, morais, religiosos, nem meramente contratual.
Em sendo a pena de morte constitucionalmente vedada, devendo o Estado;
ademais, emprestar a máxima proteção à vida, não se pode contemporizar, eviden
temente, com ações arbitrárias e criminosas de agentes do poder público, em espe
cial da polícia, que, a pretexto de combaterem o crime, pretendem justificar atos de
“execução sumária”, eliminando supostos criminosos, mesmo porque não existe,
nem pode existir, o dever legal de matar, exceto se se tratar de carrasco legalmen
te investido nas suas funções.55 Mas nada impede a invocação da legítima defesa,56
sempre que se tenha de repelir injusta agressão, atual ou iminente, para defesa dev
direito próprio ou alheio, utilizando, moderadamente, dos meios necessários (CP,1
art. 25). Mas, mesmo nessa situação, maiores devem ser as exigências para reconhe
cer-se a legítima defesa, uma vez que se trata de um agente especializado do Estadó
a quem incumbe preservar a vida das pessoas e que em geral é (ou deveria ser) um
perito no uso de arma.
54 Para uma análise exaustiva do tema, ver Luís Augusto Sanzo Brodt, Do estrito cumprimento do dever
leg al tese de doutorado, UFMG, 2003.
55 No mesmo sentido, Cezar Bitencourt: “essa norma permissiva não autoriza, contudo, que os agentes do
Estado possam, amiúde, matar ou ferir pessoas porque são marginais ou estão delinqüindo ou então estao.
sendo legitimamente perseguidas. A própria resistência do eventual infrator não autoriza essa excepciO"
nal violência oficial. Se a resistência - ilegítima - constituir-se de violência ou grave ameaça ao e x e r c íc io
regular da atividade de autoridades públicas, configura-se numa situação de legítima defesa, p e r m it in d o a
reação dessas autoridades, desde que empreguem moderadamente os meios necessários para impedir ou
repelir agressão” (Manuai, cit., p. 270).
56 De modo diverso, entende Jakobs que o policial, quando do exercício do seu dever funcional, não p°^e
invocar legítima defesa, podendo fazê-lo apenas na condição de particular (D erechopenal, cit., p. 479-48®)'
D ireito Penal - Parte G eral
Embora o dever legal suponha naturalmente que seu executor seja agente do
poder público, também o particular poderá invocá-lo eventualmente, desde que
exerça função pública (jurado, perito etc.). Cabe dizer ainda que o estrito cumpri
mento poderá concorrer com outras causas de justificação, por exemplo, quando
policial fere autor de crime preso em flagrante não apenas para efetivar a prisão,
mas também para repelir a agressão por ele praticada,57 hipótese em que o estrito
cumprimento coexiste com a legítima defesa.
Nos demais casos, em que o dissentimento não fizer parte do tipo, a hipótese
constituiria causa excludente de ilicitude, desde que proviesse de pessoa capaz de
dispor. Assim, por exemplo, o consentimento em relação ao crime de dano (art.
163) e a lesão corporal (art. 129).
Cremos, porém, como Roxin, que o consentimento do ofendido sempre cons
titui causa de exclusão da tipicidade.58 E que, se os bens jurídicos servem para o livre
desenvolvimento do indivíduo, não pode existir lesão alguma a este quando uma
ação se fundar em disposição válida do titular do bem jurídico, que assim não depre
cia seu desenvolvimento, mas ao contrário constitui sua expressão.59 Assim, se o
proprietário, em virtude de decisão livre, consente que se destrua coisa sua, não
existe lesão ao bem jurídico, e sim cooperação para seu exercício livremente tolera
do, o mesmo se devendo dizer do cirurgião plástico, que não viola a liberdade do seu
paciente no trato do seu corpo, mas o ajuda na realização de sua imagem corporal.6*)
Bem jurídico e poder de disposição sobre o bem jurídico formam, assim, como
assinala Rudolphi, não só uma unidade, senão que objeto de disposição e faculdade
de disposição são, em sua relação mútua, o bem jurídico protegido no tipo.61
Naturalmente que, tratando-se de bem jurídico indisponível ou de consenti
mento emitido por agente incapaz, tal será inválido e, em conseqüência, penalmen
te ineficaz. Assim, por exemplo, há crime de homicídio na hipótese de o paciente
consentir no desligamento dos aparelhos, antecipando-lhe a morte (eutanásia).
Pressupostos do consentimento são: a) a disponibilidade do direito; b) a disposição
por agente capaz de consentir.
E de convir, porém, que rigorosamente falando não existem bens jurídicos
indisponíveis ou pelo menos a indisponibilidade não é absoluta, porque absoluto
nenhum direito é. Em verdade, o que há são graus diversos de disponibilidade,
maior ou menor, pois, v. g„ a integridade física, a liberdade e a própria vida com
portam relativização, a depender do contexto e dos interesses em jogo. Assim, em
princípio é perfeitamente válido o consentimento quanto a lesões leves entre sado-
masoquistas, a esterilização (laqueadura), a extração de órgãos para transplante, a
mudança de sexo etc., não respondendo os autores de tais lesões-intervenções (con
sentidas) jurídico-penalmente,62 exceto se o consentimento partir de agente inca
paz ou se houver vício do consentimento (coação, erro etc.)
Quanto à vida, cabe lembrar que, além de se admitir a sua supressão nalguns
casos excepcionais, v. g„ aborto necessário e aborto no caso de gravidez resultante
58 No sentido do texto, Juarez Cirino (A moderna teoria , cit., p. 194): “do ponto de vista teórico, os argumen
tos favoráveis à concepção do consentimento real como excludente do tipo parecem convincentes: o con
sentimento real exclui o desvalor de ação e o desvalor de resultado e, por conseqüência, descaracteriza o
próprio tipo de crime; o consentimento real exprime desinteresse na proteção do bem jurídico e, portan
to, indica situação de ausência de conflito, ao contrário da situação de conflito do sistema de justificações".
59 Derecho penal, cit., p. 517.
60 Roxin, D erecho penal, cit., p. 517.
61 Citado por Roxin, D erecho penal, cit., p. 518.
62 Nesse sentido, Roxin, D erecho penal, cit., p. 530-531.
D ireito Penal - P a n e Geral
Capítulo XI
Teoria da Culpabilidade: Causas de Exclusão de culpabilidade
l. Introdução
sócio-econômicas do agente são de tal modo adversas que o juiz, ao proceder à indi-
vidualização da pena, não pode ignorá-las, devendo lhe atenuar o castigo por isso
desde que haja relação casual entre tais condições e o delito cometido, motivo pel0
qual a sua aplicação ocorrerá principalmente, mas não exclusivamente, nos crimes
patrimoniais (furto, estelionato etc.).
Convém notar, aliás, que alguns códigos penais a referem claramente, embo
ra sem recorrer, em geral, a essa denominação, como o código colombiano, ao dis
por que a pena será atenuada se o autor praticar a infração penal sob a influência
de profunda situação de marginalidade, ignorância ou pobreza extrema que hajam
influenciado diretamente o cometimento do crime e não sejam suficientes para
excluir a própria responsabilidade jurídico-penal (art. 56).
Trata-se, portanto, de um conceito que se aproxima muito do estado de neces
sidade e da inexigibilidade de conduta diversa, mas que com estes não se confun
de, e em relação aos quais tem caráter residual/subsidiário, pois a adoção da ate
nuante da co-culpabilidade pressupõe, logicamente, a rejeição ou o não reconheci
mento da causa de justificação (estado de necessidade) ou da excludente supra-legal
de culpabilidade (inexigibilidade de conduta diversa) com as quais guarda seme
lhança. É que tais excludentes conduzem à absolvição pura e simples; a co-culpa
bilidade, ao contrário, pressupõe a condenação. *
Temos, porém, que em verdade a chamada co-culpabilidade não é senão uma
dimensão do próprio conceito de culpabilidade enquanto circunstância legal, a ate
nuar ou agravar a pena,3 conforme o caso, uma vez que, se culpabilidade é exigibi
lidade (maior ou menor), a ser aferida tomando em conta as múltiplas variáveis do
caso concreto, tal há de ser menor quanto àquele que comete delito premido por
condições sócio-econômicas especialmente adversas. Em suma, parece-nos que co-
culpabilidade é um nome novo para designar coisa velha: a própria culpabilidade. ■
Finalmente, quando se afirma que um crime é, do ponto de vista analítico, um
fato típico, ilícito e culpável, quer-se dizer que, além da tipicidade e ilicitude, a
punibilidade de um comportamento reclama a comprovação de que, no caso con
creto, era perfeita e razoavelmente possível e exigível do seu autor um comporta
mento diverso, isto é, conforme o direito; o agente não atuará, por isso, culpavel-
mente, mas inculpavelmente, sempre que lhe faltar a imputabilidade, a potencial
consciência da ilicitude ou a exigibilidade de conduta diversa. É neste exato senti
do que o conceito nos interessa no presente capítulo.
Conforme vimos, do ponto de vista formal/analítico, o crime é um fato típico,
ilícito e culpável, constituindo a culpabilidade o último dos requisitos do fato puní
vel. A culpabilidade é assim um juízo de reprovação sobre o autor de um fato típi
co e ilícito, em razão de lhe ser possível e exigível, concreta e razoavelmente, um
comportamento diverso, isto é, conforme o direito, motivo pelo qual pode-se dizer
Tanto é assim que se fala também de co-culpabilidade ás avessas, situação que agravaria a pena.
D ireito Pen al - P arte Geral
vras de Von Liszt, culpabilidade é a ligação subjetiva entre o ato e o autor,6 concei
to que se mantém coerente com a sua concepção naturalista da ação. De fato, se,
como pregavam os causalistas, a conduta se dividia em duas partes, uma externa -
a antijuridicidade, de caráter objetivo - e outra interna - a culpabilidade, de natu
reza subjetiva - , resulta que nesta última devia residir todo o subjetivismo ou psi-
quismo do delito, vale dizer, o dolo e a culpa. Nesse sentido, afirmava Von Liszt que
“não basta que o resultado possa ser objetivamente referido ao de vontade do agen
te; é também necessário que se encontre na culpa a ligação subjetiva. Culpa é a res
ponsabilidade pelo resultado produzido”.7
Por conseguinte, dolo e culpa constituíam as formas possíveis dessa conexão
psíquica (subjetiva) entre o autor e seu fato,8 ou seja, age culpavelmente quem atua
com dolo ou culpa (culpa em sentido estrito). Em conseqüência, o delito, segundo
a perspectiva causalista, apresenta-se como dupla vinculação causai: a relação de
causalidade material, que dá lugar à antijuridicidade, e a conexão de causalidade
psíquica, que é a culpabilidade.9 Dentro de tal construção, o dolo e a culpa não só
eram as duas espécies de culpabilidade como também a totalidade da culpabilida- <
de, admitindo-se, porém, como pressuposto jurídico-penal, a imputabilidade, 1
entendida como capacidade de ser culpável.10 4,
Semelhante formulação sofreria diversas críticas, sobretudo por não explicar. >
a contento tal conexão (psicológica) nos crimes culposos (salvo na culpa consr. .■>
ciente), nos quais não existe, a exemplo do que ocorre nos crimes de trânsito., ■'
Como assinala Damásio, se o dolo é caracterizado por um querer, a culpa, por um
não querer, conceitos positivo e negativo, tais conceitos não podem, em conse
qüência, ser espécies de um denominador comum, qual seja, a culpabilidade,
mesmo porque na culpa (sobretudo na culpa inconsciente) não existe essa preten
dida relação psíquica.11 Além disso, com o advento da doutrina finalista, o dolo e
a culpa viriam a ser deslocados da culpabilidade para a tipicidade. No entanto,
nem por isso a culpabilidade deixaria de existir como categoria sistemática da
teoria do delito, mesmo porque, apesar de o autor agir com dolo ou culpa, a cul- ;
pabilidade pode ser excluída, como, por exemplo, se tiver atuado sob coação
moral irresistível. .t . ,
Sintetizando, a culpabilidade, segundo a formulação causalista (clássica), com- ~
punha-se de: a) imputabilidade; b) dolo e culpa em sentido estrito. ";v
_______
6 Von Liszt, Tratado, cit., p. 249. Igual conceito é adotado pela doutrina penal brasileira menos reccnte^7 '
Assim, por exemplo, Basileu Garcia: “a culpabilidade é o nexo subjetivo que liga o delito ao seu autor. i
(Instituições, cit., p. 273). . .
7 Tratado, cit., p. 249. s v;
8 Mir Puig, Derecho penal, cit., p. 540.
9 Mir Puig, Derecho penal , cit., p. 541. ‘VyVT'. ■“?
10 Assis Toledo, Princípios básicos, cit., p. 220.
11 Direito penal, cit., p. 456. ' .<
D ireito Penal - Parte G eral
22 Roxin, D erecho penaly cit., p. 811-812. Adota idêntico posicionamento Figueiredo Dias: “A v e rd a d e ira :
função da culpabilidade no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de exces ^
so; a culpabilidade não á fundamento da pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultra ^
passável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas — sejam de prevenção geral
tiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de s o c ia b z a g p
ou antes negativa de segurança ou neutralização. A função da culpabilidade, deste modo inscrita,
tente liberal do Estado de Direito é, por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda
tível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvúnfiigjí-
sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta v ia ,
lecer uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e o veto incondicional a o s
tes abusivos que ele possa suscitar” (Quesfões fundamentais, cit., p . 134).
23 La función..., in Fundamentos, cit., p. 162-172.
D ireito Penal - P arte G eral
Dispõe o art. 26, caput, do Código, que “é isento de pena o agente que, por
doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo
5.1.2. Efeito
Se o autor for menor de dezoito anos à época do crime, responderá então por
ato infracional (ECA, art. 103) - conduta descrita como crime ou contravenção
ficando sujeito às medidas sócio-educativas previstas no art. 112 do ECA, cuja
forma mais dura (a internação) sujeita-se, dentre outros, aos princípios de excep-
cionalidade e brevidade, não podendo, em nenhuma hipótese, exceder a três anos,
sendo compulsória a liberação aos vinte e um anos de idade, conforme dispõe o
ECA, art. 121 e parágrafos.
Embora por coação se deva entender o emprego de violência física (vis abso
luta) ou m oral (vis compulsiva) para constranger alguém a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa, somente a coação moral irresistível constitui autêntica causa de
exclusão de culpabilidade, uma vez que quem atua sob coação física irresistível não
pratica sequer uma ação típica, seja por ausência de vontade, seja por não existir
relação causai entre o fato praticado e a atuação do coagido, que assim é mero ins
trumento em mãos do autor da coação (autor mediato). Portanto, enquanto o coa
gido físico pratica uma não-ação, isto é, um comportamento atípico, o coagido
moral comete fato típico, antijurídico, mas inculpável, em virtude da inexigibilida
de de conduta diversa. Em ambos os casos, porém, o autor da coação responderá
pelo ato, pois, nos termos do art. 22, segunda parte, do Código Penal, só é punível
o autor da coação (autoria mediata). No caso de coação, física ou moral, resistível,
o fato será típico, ilícito e culpável, punível, enfim, mas com pena atenuada.
Na coação moral irresistível, exercitável por meio de intimidação grave, como
ameaça de revelar segredo ou de matar alguém, o coagido é efetivamente o autor
de uma ação típica e antijurídica, mas inculpável, uma vez que não atua livremen
te, devendo, em conseqüência, responder pelo crime o autor da coação unicamen
te, que também sofrerá a incidência da agravante prevista no art. 62, II, do Código.
De notar que ameaças vagas e imprecisas não podem ser consideradas graves para
configurar coação irresistível e justificar a isenção de pena, devendo tratar-se de
mal efetivamente grave e iminente, sendo indiferente que se dirija ao próprio coa
gido ou a alguém de suas ligações afetivas.37
Naturalmente que a verificação da gravidade da coação e de sua resistibilida-
de há de ser feita concretamente, segundo a natureza e a importância dos interes
ses em jogo, conforme o princípio da proporcionalidade, bem assim a capacidade
de resistência do coagido, em especial sua sensibilidade, não bastando tomar como
referência para tanto, ao contrário do que sustenta Hungria,38 o h o m o medius, sob
pena de se punir alguém com base e a partir de uma simples ficção, passando a pena
Também exclui a culpabilidade o estrito cum prim ento d e ordem não m an ifes
tam ente ilegal d e superior hierárquico, entendendo-se por ordem hierárquica a
manifestação de vontade do titular de uma função estatal a um funcionário que lhe
é subordinado, para que realize determinada ação ou omissão.40 Somente haverá a
exclusão de culpabilidade quando o subordinado atuar rigorosamente dentro dos
limites da ordem determinada, pois do contrário responderá pelo excesso.
A natureza jurídica do instituto é ambígua, porque, embora a doutrina o tenha
como uma forma especial de erro de proibição,41 pois quem cumpre ordem hierár
quica não manifestamente ilegal supõe praticar fato autorizado pela lei, carecendo,
assim, da consciência do injusto, não se pode ignorar que o subordinado em tais
5.5. Embriaguez
A
D ireito Penal - Parte G eral
agente se houve com dolo ou culpa.42 Nada impede ademais que o autor possa invo
car em seu favor, a depender da hipótese, a presença de uma causa de justificação
(legítima defesa, estado de necessidade etc.) ou causa excludente de culpabilidade
(coação moral irresistível, erro de proibição etc.). Em conclusão, o art. 28, II, do
Código, de conformidade com o princípio da culpabilidade, deve ter a seguinte
interpretação: a embriaguez voluntária ou culposa não exclui a imputabilidade
penal, mas a imputação do resultado por dolo ou por culpa depende, necessaria
mente, da existência real (nunca presumida) dos elementos do tipo subjetivo res
pectivo no comportamento do autor.43
Sintetizando: a exclusão da culpabilidade por embriaguez somente ocorrerá na
hipótese de embriaguez involuntária completa; nos demais casos, inclusive embria
guez involuntária incompleta, o fato será culpável, se previamente típico e ilícito.
Mas isso não significa que sempre que o agente se achar em estado de embriaguez
voluntária será necessariamente culpável, uma vez que poderá se valer de outras
causas excludentes de culpabilidade (erro de proibição inevitável, coação moral irre
sistível etc.), além de excludentes de tipicidade e ilicitude, eventualmente.
Por último, cuidando-se de embriaguez preordenada - espécie de embriaguez
voluntária dolosa, em que tem plena aplicação a teoria actio libera in causa (ação
livre na causa) - , em que o agente propositadamente se coloca nessa situação para
cometer o delito, responderá, com maior força de razões, por crime doloso, inci
dindo, além disso, a agravante prevista no art. 61, II, 1, do Código.
Finalmente, a embriaguez reconhecidamente patológica equipara-se à doença
mental, aplicando-se ao inimputável a norma do art. 26 do CP.
Prevê o Código (art. 2 8 ,1) que não excluem a imputabilidade penal a emoção
e a paixão - amor, ódio, medo, prazer, cólera - , previsão, aliás, absolutamente des
necessária, mesmo porque são inimagináveis crimes sem emoção ou paixão, maior
ou menor, mais ou menos reprovável.44 No entanto, a influência de violenta emo
42 Convém evitar, assim, com o assinala M ir Puig, o equívoco consistente em pensar que o d elito com etido
sob o efeito de embriaguez voluntária sempre tenha sido provocado voluntariam ente (dolosam ente), ou
que a embriaguez culposa supõe que o delito que se com ete nesse estado haja podido p rev er-se e se deva
atribuir à imprudência. A em briaguez voluntária (não preordenada) pode dar lugar a um fato não só não
querido previam ente com o nem sequer previsto ou previsível; e, do m esmo modo, a em briaguez culposa
tam bém pode m otivar um fato imprevisível. Em suma: que o sujeito se tenh a em briagado volu ntariam en
te ou por imprudência não significa que, se pratica delito em tal estado, haja querido o fato nem que este
era previsível, pois se pode querer ou prever a embriaguez sem qu erer nem ser previsível que se vai pro
duzir a lesão de um bem juríd ico (Derecho penal, cit., p. 605).
43 Juarez Cirino, A moderna teoria, cit., p. 225.
44 C ritica a disciplina do Código, entendendo que o legislador deveria ser mais sensível aos problem as que
podem derivar da em oção e da paixão, M estieri {Manual, cit., p. 178-179). Idem, Juarez C irino, para quem
“a em oção, com o gênero, e a paixão, com o espécie do gênero - ou seja, em oção extrem ada - são forças pri
márias das ações humanas, determ inantes m enos ou mais inconscientes das ações individuais, cuja in ev i
D ireito Penal - Parte G eral
ção provocada por ato injusto da vítima constitui circunstância atenuante (CP, art.
65, III, c, última parte). Nalguns crimes específicos (v. g., homicídio, lesão corpo
ral) pode ainda ocorrer diminuição de pena, como no homicídio privilegiado (CP,
art. 121, § 1Q), sempre que for cometido sob o domínio de violenta emoção logo em
seguida à injusta provocação da vítima.
Emoção é a agitação de sentimento, abalo afetivo ou moral, turbação, como
ção; paixão é sentimento, gosto ou amor intensos a ponto de ofuscar a razão, gran
de entusiasmo por alguma coisa.45 A doutrina as distingue dizendo que a emoção é
um estado afetivo de momentânea perturbação da personalidade, ao passo que a
paixão é uma emoção-sentimento, isto é, um processo afetivo duradouro.46
Eventualmente a emoção e a paixão poderão assumir caráter mórbido apto a
comprometer, total ou parcialmente, a capacidade de autodeterminação do autor,
hipótese em que incidirá o art. 26 do Código.
tável in fluên cia nos atos psíquicos e sociais do ser hum ano precisa ser com patibilizada com o princípio da
culpabilidade, em futuros projetos p o lítico-crim in ais brasileiro s” {A m oderna teoria , cit., p. 222).
45 Dicionário Houaiss, R io de Jan eiro: Ed. Objetiva/Instituto A n tô n io H ouaiss, 2 001.
46 Fragoso, Lições , cit., p. 202.
D ireito Penal - Parte G eral
Capítulo XII
Concurso de Crimes
Já no concurso formal (CP, art. 70), menos freqüente, o agente pratica uma
única ação ou omissão (= uma única conduta), causando, no entanto, dois ou mais
crimes. Exemplo: A atira contra B, vindo a ofender, porém, B e C; ou, dirigindo
^prudentemente, vier a causar morte culposa de várias pessoas.
Reconhecido o concurso formal, aplica-se ao agente a mais grave das penas
cabíveis, ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de
um sexto até a metade (critério da exasperação), devendo o respectivo aumento
variar conforme o número de vítimas. Assim, se, no exemplo dado, B morre e C
sofre lesões corporais, aplicar-se-á a pena do homicídio doloso, com aumento
(decorrente do concurso) que variará de um sexto até a metade. Vale dizer: dife
Paulo Queiroz
14
rentemente do concurso material, no concurso formal as penas dos vários crimes
não são somadas, devendo ser aplicada uma única, mas com o aumento decorrente
do concurso.
É possível, porém, excepcionalmente, a aplicação ao concurso formal da regra
do concurso material. Tal ocorre quando os vários crimes, embora decorrentes de
uma ação única, resultam de desígnios autônomos (concurso formal imperfeito),
isto é, quando o agente quer praticar, mediante uma ação, os vários crimes, e não
um só, dolosamente. Assim, se, no exemplo antes referido, A agisse com dolo de
abater, com tiro de fuzil, ambas as vítimas, B e C . E o que dispõe o art. 70, final: “as
penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou a omissão é dolosa e
os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no
artigo anterior”.
Cumpre assinalar, por fim, que nalgumas hipóteses a aplicação da regra do
concurso formal poderá resultar numa apenação mais severa do que aquela que
seria cabível no concurso material (concurso material benéfico). Assim, se, confor
me o exemplo antes referido, resultando homicídio (B) e lesão corporal leve (Q , se
aplicasse a pena do homicídio doloso (digamos 12 anos de reclusão) com aumento
de metade, chegar-se-ia a uma pena de dezoito anos de reclusão, ao passo que, se
se aplicasse a regra do concurso material, resultaria uma pena de treze anos, já que
a lesão leve (art. 129) é punida com pena máxima de um ano de detenção, situação
bem mais favorável ao agente, não obstante a aplicação cumulativa de penas.
É para evitar tal incoerência que o Código determina, em respeito ao princí
pio da proporcionalidade, que a pena do concurso formal não poderá exceder àque
la que seria cabível para o concurso material (art. 70, parágrafo único).
Diz o Código (art. 71) que quando o agente, mediante mais de uma ação ou
omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo,
lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havi
dos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se
idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto
a dois terços.
O chamado crime continuado constitui, assim, uma forma de concurso mate
rial (o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes),
mas o legislador, por motivos de conveniência político-criminal, tratou como se
fosse concurso formal, isto é, como se constituísse um só crime, cuidando-se de
uma ficção legal (unidade jurídica de ação). Em síntese: o crime continuado tem a
natureza de concurso material, mas recebe tratamento de concurso formal.
Semelhante equiparação tem por objetivo assegurar a efetividade do princípio
da proporcionalidade, pois, reconhecido o concurso material puramente, o agente
poderia sofrer em muitos casos pena absolutamente incompatível com a lesividade
D ireito Penal - P arte Geral
dos crimes praticados. Assim, por exemplo, a empregada doméstica que praticasse,
em dias distintos, furtos sucessivos, poderia ser castigada com penas altíssimas, se
se mantivesse a autonomia de cada crime. E para evitar tais excessos que o Código
consagra o instituto da continuidade delitiva.
Ainda hoje muitas são as críticas que lhe são feitas. Assim, Jescheck assina
la que se trata de uma concessão imprópria, propugnando, inclusive, por sua
abolição.1 Também Stratenwerth afirma que carece de todo fundamento legal,
constituindo, do ponto de vista político-crim inal, um fenômeno altamente pro
blemático.2
No entanto, fato é que o instituto do crime continuado é uma realidade que
se impôs e se consolidou histórica e juridicamente. Apesar disso, força é convir que
os critérios para sua delimitação são ainda bastante vagos e incertos, sendo mui
larga a margem de discricionariedade para o seu reconhecimento.
Conforme se verá, atualmente a continuação delitiva é possível inclusive
quando se tratar de crimes violentos contra vítimas diversas, estando assim revoga
da a Súmula 605 do STF, anterior à reforma da nova parte geral de 1984, que não a
admitia nos crimes contra a vida.3
3.1. Requisitos
3.2. Pena
O Código prevê ainda que nos crimes dolosos contra vítimas diferentes, come
tidos com violência ou grave ameaça à pessoa, o juiz poderá, considerando a culpa
bilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como
os motivos e circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou
a mais grave, se diversas, até o triplo (CP, art. 71, parágrafo único).
Trata-se, portanto, de uma forma mais severa de apenação do crime continua
do, visto atentar contra bens jurídicos especialmente importantes (vida, liberdade
etc.). Portanto, além dos requisitos gerais já referidos, a continuidade específica
reclama os seguintes: a) crimes dolosos, ficando excluídos, em conseqüência, os
culposos; b) contra vítimas diferentes; c) com violência ou grave ameaça à pessoa,
entendendo-se como tal a violência física contra a pessoa, não bastando a violência
contra a coisa; d) circunstâncias judiciais favoráveis.
Obviamente que todos os requisitos hão de estar presentes, sem exceção,
pois do contrário, isto é, ausente qualquer deles, a hipótese será a de não ocor
D ireito Penal - Parte G eral
3.3.1. Pena
CONSEQÜÊNCIAS
JURÍDICO-PENAIS DO CRIME
D ireito Penal - Parte G eral
I. Da Pena
5 Não se deve confundir, obviam ente, a prisão enquanto pena, da prisão enquanto providência cau telar des
tinada a assegurar a efetividade do processo (prisão em flagrante, prisão preventiva e tc.), pois a prim eira
constitui a própria execução da sentença penal condenatória transitada em julgado, ao passo que a segun
da constitui um instrum ento processual penal destinado a assegurar-lhe a utilidade. D evo reconh ecer,
porém , que na prática as prisões cautelares têm -se convertid o em autênticas penas antecipadas, que per
duram indefinidam ente.
6 Assim, G am il Foppel, A fu n ç ã o d a p e n a , cit.
7 Foucault, V igiar e p u n ir , cit., p. 209.
8 D e r e c h o y r a z ó n , cit., p. 413.
9 D e r e c h o y r a z ó n , cit., p. 412.
10 L iç õ e s , cit., p. 288.
D ireito P en al — P arte G eral
nas atuais condições de vida nas prisões.11 Por isso, o cárcere ordinariamente, longe
de reeducar ou ressocializar, em realidade, corrompe, embrutece, dessocializa.
Aliás, com alguma freqüência o agente continua a delinqüir mesmo preso.
Mas se de fato a pena privativa da liberdade faliu há tanto tempo - o que em
grande parte traduz a “falência” do próprio sistema penal - , como explicar sua
extraordinária longevidade?
M ichel Foucault tem uma explicação originalíssima para isso. Para ele, a
função real (oculta) da pena, ao contrário do que pregam os juristas, não é pro
priamente combater a criminalidade, mas produzi-la. Por isso que, ao aparente
mente fracassar, escreve Foucault, “a prisão não erra seu objetivo; ao contrário,
ela o atinge na medida em que suscita no meio das outras uma forma particular
de ilegalidade, que ela permite separar, pôr em plena luz e organizar como um
meio relativamente fechado, mas penetrável”, porque “ela contribui para estabe
lecer uma ilegalidade, visível, marcada, irredutível a um certo nível e secreta
mente útil - rebelde e dócil ao mesmo tempo; ela desenha, isola e sublinha uma
forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as outras, mas que
permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar”.12 Por conseguinte,
se do ponto de vista das suas funções declaradas (oficiais) a pena é um fracasso
manifesto, do ponto de vista das funções ocultas a prisão é um grande sucesso, daí
a sua longevidade.
Portanto, não é sem razão que a prisão tem passado ao longo de sua existên
cia por sucessivas reformas, merecendo destaque, presentemente, os institutos da
suspensão condicional do processo e da transação (Lei n5 9.099/95). Com o primei
ro, permitiu-se que nos crimes de médio potencial ofensivo, isto é, punido pena
mínima não superior a um ano, o Ministério Público possa propor a suspensão do
processo por dois anos, findos os quais, havendo cumprimento regular das condi
ções pelo denunciado, declarar-se-á extinta a punibilidade. No segundo caso,
admitiu-se a possibilidade de acordo entre as partes nos crimes de menor poten-
314
ciai ofensivo, vale dizer, infração penal cuja pena máxima não exceda a dois anos.
Outra reforma importante foi introduzida pela Lei nQ9.714/98, que possibilitou a
aplicação de penas restritivas de direito a crimes cuja pena imposta não exceda a
quatro anos.
Ocorre que, apesar de tão importantes reformas, os cárceres só têm aumenta
do seu contingente de presos. As reformas de hoje, como as de ontem, mero palia
tivo para o problema da superlotação carcerária, são grandemente inócuas.
E por que o são?
Em primeiro lugar, porque a maioria esmagadora das prisões está composta de
presos não alcançados pelo processo despenalizador. Afinal, a maior parte dos in
ternos está condenada por crimes patrimoniais: extorsão mediante seqüestro, latro
cínio, roubo, furto, estelionato, condenados que ordinariamente não são beneficia
dos pelas reformas, mesmo porque são com freqüência reincidentes. Outra parte
responde por crimes sexuais (estupro e atentado ao pudor), crimes contra vida
(homicídio), tráfico de drogas etc., em geral também excluídos das reformas.
Não bastasse isso, o surgimento da lei, em vez de contrair o sistema penal, fez
multiplicar uma infinidade de procedimentos sobre condutas insignificantes que
antes sequer chegavam aos juizes e tribunais.
Enfim, as medidas despenalizadoras têm uma clientela bastante específica e
restrita, pessoas que, antes mesmo das reformas surgidas a partir de 1995, já não
iam mesmo para as prisões, uma vez que eram contempladas com outros institu
tos jurídico-penais (sursis, regime aberto, prisão domiciliar, comutação, indulto,
prescrição etc.). E se eventualmente passavam pela prisão, logo retomavam a
liberdade.
Outra razão - e mais importante - é que, apesar das reformas, continuamos a
insistir numa velha receita: o castigo (o sistema penal), isto é, mudamos a dose do
remédio, mas o remédio continua sendo rigorosamente o mesmo: o castigo. Dito de
outra forma: insistimos em buscar no sistema penal, seja tomando-o mais severo,
seja tomando-o mais brando, ao menos no que toca à pena, uma cura que ele, por
melhor que seja, não nos pode proporcionar, dadas as limitações estruturais de sua
atuação: seletividade (recruta sua clientela entre os miseráveis), conseqüencialida-
de (atua nas conseqüências, não nas causas dos problemas), excepcionalidade (atin
ge um número reduzidíssimo de casos) etc.
È que em ambos os casos - maximizando ou minimizando o sistema de penas
- estamos a apostar numa intervenção não causai, mas conseqüencial, não etiológi-
ca, mas sintomatológica. Noutros termos: permanecemos dentro do círculo vicio
so, que é histórico: crime/castigo, ainda quando suavizamos ou flexibilizamos o sis
tema de penas, através do processo de despenalização. Significa dizer que não cas
tigamos menos, castigamos melhor, isto é, aperfeiçoamos a forma de castigar; mas
insistimos apostando na filosofia do castigo, ou, para dizê-lo com Foucault, não se
pune menos, pune-se melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para
D ireito Penal - P arte Geral
rias (Montesquieu) não significa prevenir os crimes que delas possam resultar, mas
tão-somente criar outros novos (Beccaria).
Descriminalizar, segundo um modelo de direito penal mínimo, não é suficien
te, todavia, haja vista que direito penal mínimo não é em si solução, mas parte da
solução, já que não significa menos violência nem mais proteção, inevitavelmente.
E preciso ir muito além de um simples projeto descriminalizador e despenali-
zador. Inicialmente, cumpre eficientizar e democratizar as instâncias primárias de
controle social, a começar pelos órgãos administrativos (eficientização e democra
tização do controle administrativo). Por exemplo, a proteção do meio ambiente, do
Sistema Financeiro Nacional, bem como a proteção do cidadão contra os abusos
praticados por autoridades públicas (tortura, corrupção) dependem .menos do
Judiciário, do Ministério Público, da Polícia - órgãos de atuação cirúrgica - do que
de um IBAMA forte e minimamente aparelhado, de um Banco Central indepen
dente e minimamente transparente, de ouvidorias e corregedorias minimamente
eficientes e, sobretudo, da democratização do acesso (e participação) do cidadão às
instâncias administrativas de controle. Reformas políticas e administrativas -
estruturais - são inadiáveis, portanto.
Paralelamente, é fundamental criar as condições mínimas para que os cida
dãos possam realizar suas potencialidades, assegurando-lhes o acesso à saúde, à
escola, ao trabalho, assegurando-lhes a igualdade de oportunidades. Em conclusão,
o controle da criminalidade tem pouco a ver com o controle penal, é dizer, a efeti
va proteção do cidadão tem pouco a ver com a “proteção penal”.
Porque, como assinala Baratta, a necessidade de segurança dos cidadãos não é
só uma necessidade de proteção da criminalidade e de processos de criminalização,
pois a segurança dos cidadãos corresponde também à necessidade de estar e sentir-
se garantidos no exercício de todos os seus próprios direitos: direito à vida, à liber
dade, ao livre desenvolvimento da personalidade e das suas próprias capacidades;
direito de expressar-se, de comunicar-se, direito à qualidade de vida, assim o direi
to de controlar e influir sobre as condições das quais depende, em concreto, a exis
tência de cada um. Enfim, a relação existente entre garantismo negativo - limites
ao poder punitivo - e garantismo positivo - assegurar as condições de poder viver
condignamente (realização dos direitos sociais) - eqüivale à relação que existe
entre política de direito penal e política integral de proteção dos direitos.15
15 La política crim in al..., R evista, cit., p. 4 8 -4 9 . Benthan já assinalava a propósito que “um bom legislador
deve cuidar mais em prevenir os crim es do que um despicar a Justiça, m áxim a trivial no dia de h o je , mas
que não deve ficar em palavras, já que tem os a fortuna de viver debaixo de um G overno C onstitucional;
para que se não diga que as leis humanas não têm senão escravos, porque não têm senão suplícios. O s tira
nos gostam de sangue, nem se podem sustentar senão pela força, u ltim a r a tio reg u m , um bom G overno e
imagem de um pai, que não m ortifica, nem desterra seus filhos, senão depois de esgotar todos os m eios de
os poder em endar. Facilitai os meios de cada um poder ganhar a sua vida, desterrai a ociosidade, e os deli
tos serão menos, educai a m ocidade; na boa educação e na paz e felicidade das fam ílias estão as sem entes
da felicidade geral” (T e o r ia das p e n a s leg a is e tratad o d o s so fism a s p o lít ic o s , São Paulo: Edijur, 2 0 0 2 , p. 13).
D ireito P en al - Parte G eral
1. Significado e im portância
16 G arcía-Pablos de M olin a, A n tô n io. T ratad o de crim inología, to m o I/III, 2 a ed ición . V a len cia : T ira n t lo
blan ch , 1999, p. 28.
17 Jesch eck , T ratad o , cit., p. 785.
18 G u ilh erm e de Souza N ucci. In d iv id ualização da pena. S. Paulo: R T , 2 0 0 4 , p. 31.
19 Jesch eck , T ra ta d o , cit., p. 787.
Paulo Queiroz
O art. 59, como de resto todo o Código, está estruturado para a responsabili
dade penal da pessoa física, motivo pelo qual as circunstâncias judiciais e legais
nada têm a ver com a apenação da pessoa jurídica, uma vez que a culpabilidade, a
conduta social, a personalidade do agente, os motivos do crime etc. são incompatí
veis com este tipo especial de imputação.
No entanto, a Lei de Crimes Ambientais (Lei nQ9.605/98, art. 6S), que previu
a responsabilidade da pessoa jurídica, estabelece alguns critérios para que tenha
lugar a individualização judicial da pena a ela imposta, tais como: a gravidade do
fato, tendo em vista os motivos da infração e suas conseqüências para a saúde públi
ca e para o meio ambiente; os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da
legislação de interesse ambiental; e a situação econômica do infrator.
Nada diz, porém, quanto a aspectos fundamentais dessa individualização; ante a
omissão, a doutrina propõe que sejam adotados os mesmos princípios aplicáveis à pes
soa física, aplicando-se o Código Penal subsidiariamente, sempre que compatíveis
com a pessoa jurídica. Assim, por exemplo, deve ser obedecido o método trifásico de
aplicação:20 o juiz fixará inicialmente uma pena-base; a seguir, uma pena provisória;
finalmente, uma pena definitiva. As circunstâncias atenuantes e atenuantes são em
princípio aquelas previstas nos arts. 14 e 15 da lei, quando compatíveis com a pessoa
jurídica. As causas de diminuição e aumento de pena são as previstas em lei e no
Código penal, desde que a legislação ambiental não disponha de forma contrária.
2. Individualização e garantismo
Para a individualização da pena (CF, art. 5«, XLVI; CP, arts. 59 e 68), uma das
mais importantes tarefas confiadas ao juiz criminal, é preciso não perder de vista os
20 Nesse sentido, Fernando Galvão. R e sp o n s a b ilid a d e p e n a l da p e ss o a ju ríd ica . Belo H orizonte: D el Rey, 2 003.
D ire ito Pen al - Parte G eral
21 Cobo/Vives, D e r e c h o p e n a l, c it., p. 8 3 3 .
22 Cobo/Vives, D e r e c h o p e n a l, cit., p. 8 4 1 . N o m esm o sen tid o, F errajo li, para quem , num sistem a garantis
ta, a função ju d icial não pode ter outros fins que a ju stiça no caso co n cre to , de m odo qu e o ju iz não pode
perseguir finalidades de prevenção geral que fariam de cada um a de suas co n d en ações um a sen ten ça
exem plar (D e r e c h o y r a z ó n , c it., p. 4 0 6 ). D e m odo diverso, Jesch eck , T r a ta d o , cit., p. 791.
23 No m esm o sentido, Zugaldía Espinar, para quem , se prescin dirm os das co n cretas exig ências preventivas
especiais e operarm os apenas com critério s de prev en ção geral, o autor do crim e deixaria de ser um fim
em si m esm o para se co n v erter num m eio para o b te r efeito s sobre outros, o que im plicaria in stru m en ta
lizá-lo e violar a dignidade da pessoa h um ana, c it., p. 174/175.
Paulo Q ueiroz
24 P en a e garan tias: um a leitura do garantism o de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lum en Juris, 200 1 ,
p. 154.
D ireito Penal - P arte G eral
cada delito. Havendo concurso formal, hipótese em que o autor, mediante uma
única ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes (CP, art. 70) e, não obstante,
responde por crime único, com aumento de um sexto até a metade, cumpre, por
igual, proceder inicialmente à aplicação da pena para cada crime objeto do con
curso, até para apurar se a pena final resultante do concurso não excede àquela
que seria cabível para o concurso material, possibilidade que é legalmente veda
da (art. 70, parágrafo único). Com maior razão, tal deverá ocorrer na hipótese de
concurso formal impróprio, resultante de desígnios autônomos, tratado que é
como concurso material.
Igual procedimento deve ser observado nos casos de crime continuado (CP,
art. 71) e, quando houver mais de um resultado lesivo, erro na execução (aberratio
ictus - art. 73) e resultado diverso do pretendido (art. 74).
Decidindo pela condenação, o juiz dará a definição jurídica dos fatos, poden
do divergir daquela pretendida pelo Ministério Público ou querelante. Assim,
poderá entender que houve estelionato, e não peculato; furto, e não roubo; difama
ção, e não calúnia, e vice-versa. Em havendo simples erro na classificação jurídica,
não obstante a denúncia ou a queixa tenha narrado corretamente os fatos, o juiz
dará a definição jurídica exata (em en d a d o lib e lli - CPP, art. 383), uma vez que, de
acordo com a doutrina, o acusado se defende dos fatos articulados pela acusação e
não da capitulação jurídico-penal dada aos fatos. No entanto, verificando o juiz que
essa redefinição jurídica decorre de circunstância não contida, explícita ou impli
citamente, na denúncia ou queixa, a exigir por isso a mudança dos termos da peti
ção inicial (m utatio lib elli - CPP, art. 384), terá de previamente ouvir a acusação a
fim de aditá-la, e à defesa, para falar a respeito, de sorte a preservar o contraditó
rio e a ampla defesa; podendo ser reaberta a instrução com novo interrogatório do
acusado inclusive.
322
talmente, que o juiz, ao condenar o réu por crime diverso do capitulado na denún
cia, estaria fazendo as vezes de acusador, violando o sistema acusatório e, pois, agin
do sem um mínimo de isenção. Isso significaria em termos práticos o seguinte: ou o
juiz absolve o réu ou o condena como o órgão da acusação quer e propõe.27
A crítica ao artigo 384 restou superada com a redação que lhe deu a Lei n»
11.719, de 20 junho de 2008, pois a partir de agora, se o Ministério Público não
fizer o aditamento na forma da lei, o juiz só poderá julgar nos termos da denúncia,
em respeito ao princípio acusatório.
O mesmo não ocorre, porém, quanto à em endatio libelli (CPP, art. 383), por
cujo meio o juiz corrige ou simplesmente diverge da classificação jurídico-penal
dada aos fatos articulados na denúncia.
Desde logo, porque, a pretexto de preservar o sistema acusatório, se está em
realidade negando o direito à divergência: o juiz, se condenar, só poderá fazê-lo nos
exatos termos da proposição ministerial (denúncia e/ou alegações finais), por mais
equivocada que seja a definição jurídico-penal proposta. Com efeito, de acordo com
esse entendimento, se o Ministério Público descrever, precisamente, um crime de
roubo e o capitular, por erro, má-fé ou convicção pessoal, como furto, o juiz só po
derá condená-lo por furto, ainda que o caso seja a toda evidência de roubo. Tam
bém o contrário está proibido: se narrar um furto e o capitular como roubo, não se
poderia condenar senão por roubo; se o juiz entender que o caso é de furto, embo
ra capitulado como roubo, então, deverá absolver (!). Não há meio-termo. Ora, isso
não é outra coisa senão a violação pura e simples dos princípios da legalidade e pro
porcionalidade: condenar por mais quando cabe o menos; condenar por menos
quando cabe o mais; e absolver por puro formalismo quem se sabe culpado.
Converte-se assim o processo num fim em si mesmo, fazendo prevalecer a forma
sobre a matéria, perdendo-se de vista o seu fim último: possibilitar uma decisão
minimamente justa.
Também por isso a tese é antidemocrática, visto que, ao fomentar uma
espécie de ditadura ministerial, dificulta ou impossibilita a existência de contro
blico deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instau
rado o processo em crim e de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralm ente.
27 Na verdade, a tese principal, de violação do sistema acusatório e com prom etim ento to ta l ou p arcial da
isenção, teria diversas outras im plicações, tais com o: 1) im possibilidade de prosseguir no processo do juiz
que decretou medida constritiva contra o réu (v. g ., busca e apreensão, prisões etc.); 2) im possibilidade de
o juiz d ecretar qualquer medida constritiva de ofício; 3) impossibilidade de o juiz proceder ao in terro ga
tório e in quirição de testem unhas diretam ente, tarefa que deverá ser conferida ao órgão da acusação
exclusivam ente; 4) impossibilidade de o juiz recorrer de oficio de certas decisões; 5) im possibilidade de o
juiz condenar quando o M inistério Público pedir a absolvição em alegações finais; 6) im possibilidade de
o juiz rejeitar pedidos de arquivam ento; mas se o fizer, não poderá atuar na eventual ação penal; 7 ) im pos
sibilidade de o juiz que proferiu sentença voltar a atuar no processo posteriorm ente anulado; 8) im possi
bilidade de o juiz que recebeu a denúncia prosseguir na ação penal; 9)im possibilidade de o ju iz requisitar
inquérito de ofício; 10) impossibilidade de o M inistério Público recorrer nos casos em que pediu a absol
vição por falta de interesse de agir; 11) etc.
D ireito Penal - Parte G eral
324
3. Pode o juiz fixar pena abaixo do mínimo legal?
Devendo o juiz fixar a pena com base nos limites legais previstos (máximo e
mínimo), convém questionar o seguinte: é lícito aplicar pena abaixo do mínimo
legal ainda quando não concorram causas de diminuição de pena ou circunstâncias
atenuantes?
De acordo com a doutrina e a jurisprudência, isso não é possível por afrontar
o princípio da legalidade das penas, mas tal objeção não procede; primeiro, porque
não há aí nenhuma violação ao princípio da legalidade;28 segundo, porque aplicar
a pena justa, não importando se no mínimo legal, aquém ou além dele, é uma exi
gência de proporcionalidade;29 finalmente, porque o compromisso fundamental do
juiz garantista não é com a pena mínima, mas com a pena justa.30
Com efeito, o princípio da legalidade, como de resto todos os princípios penais,
constitui, como se vem de demonstrar, autêntica garantia política que existe e se jus
tifica, histórica e constitucionalmente, para proteger o cidadão contra os excessos do
Estado e não para pretextar ações arbitrárias contra o réu. Por isso é que não há falar
de violação ao princípio sempre que a lei tiver de retroagir para beneficiar o réu, por
exemplo, pois não há aí ofensa ao caráter garantidor que o informa.
Aliás, é justamente em razão desse caráter garantista do princípio que o con
trário não pode acontecer, vale dizer, fixar o juiz a pena acima do máximo legal.
Além disso, se o juiz pode o mais - absolver, em razão da insignificância da
ação, por exemplo - , pode o menos, evidentemente: aplicar pena aquém do
mínimo legal. Assim, se, v. g., não obstante a ínfima quantidade de droga e
outras circunstâncias (CP, art. 59), entender, na hipótese de tráfico, inaplicável
o princípio da insignificância, poderá fixar a pena em dois anos de prisão (abai
xo do mínimo legal).
O que realmente importa é aplicar uma pena justa para o caso, proporcional
ao delito, conforme as múltiplas variáveis que o envolvem, e fundamentadamente,
ainda que para tanto tenha de fixá-la aquém do mínimo legal; legítima é a fixação
de pena abaixo do mínimo legal, portanto. Entender o contrário é adotar postura
antigarantista.
Com maior força de razões, legítima será a aplicação da pena abaixo do míni
mo legal se houver circunstâncias atenuantes em favor do condenado, como já
28 Este é o argumento principal, aliás, daqueles que, como Damásio (O juiz pode, em face das circunstâncias
atenuantes genéricas, fixar a pena aquém do mínimo legal abstrato?, Boietim do IBCCrim, São Paulo, n.
73,2003), são contrários à possibilidade de as circunstâncias atenuantes reduzirem a pena abaixo do míni
mo legal.
29 Não sem razão, tem-se proposto a abolição da pena mínima. Nesse sentido, Ferrajoli ( D erecho y razón ,
cit., p. 400), Edson 0 ’Dwyer (Se eu fosse juiz criminal, Boletim do IBCCrim, São Paulo, n. 86, jan. 2000)
e Saio de Carvalho (Pena e garantias, cit.).
30 No sentido do texto, Andrei Schmidt, O princípio da legalidade penal no estado dem ocrático de direito,
Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2001, p. 301-307.
D ireito Penal - P arte Geral
31 STJ, 6a T., REsp 151.837/MG, rei. Min. Luiz Vicente Cem icchiaro, j. 28-5-1998. No mesmo sentido,
Carmen Silva de Moraes Barros: “Assim, adotados os princípios de individualização da pena e da culpabi
lidade, não se pode mais falar em impossibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal - qualquer
vedação nesse sentido é inconstitucional. Assim não fosse, e a aplicação de pena poderia seguir critérios
exclusivamente matemáticos. No entanto, a análise do caso individual, em razão de sua complexidade e
diversidade, obsta a culpabilidade vinculada a limites mínimos. Portanto, cabe ao juiz, relevando as cir
cunstâncias do caso concreto: grau de exposição do agente à criminalidade, suas condições pessoais, a si
tuação particular em que levou a cabo a prática delitiva, forma de execução e conseqüências do crime,
comportamento da vítima, estabelecer a medida da pena compatível com a culpabilidade vista sob a ótica
do direito penal mínimo (A fixação da pena abaixo do mínimo legal: corolário do princípio da individua
lização da pena e do princípio da culpabilidade, Revista do IBCCrim, ano 7, n. 26, abr./jun. 1999). De
modo similiar, João Batista Herkenhoff (Uma porta aberta para o hom em n o direito criminal, Rio de
Janeiro: Forense, 2001), que admitiu, em sentença condenatória por latrocínio, a aplicação da pena abai
xo do mínimo legal, fazendo, inclusive, uma interessante comparação das penas mínimas do estupro com
morte (atualmente, 12 anos) com o latrocínio (atualmente, 20 anos).
Paulo Queiroz
Para a individualização da pena, o juiz, que o fará de forma motivada (CF, art.
93, IX), é dizer, declarando expressa, clara e objetivamente as razões de fato e de
direito que fundamentam sua decisão, deverá adotar um método trifásico de apli
cação (CP, art. 68), que compreende, sucessivamente, e sob pena de nulidade do
julgado: a) a fixação da pena-base (art. 59, caput); b) a fixação da pena provisória;
c) a fixação da pena definitiva. Na primeira, será fixada a pena inicial com base nas
circunstâncias judiciais previstas no caput do art. 59. Na segunda, considerar-se-ão
as circunstâncias atenuantes e agravantes (CP, arts. 65 e 61). Na terceira, sopesar-
se-ão as causas de diminuição e de aumento de pena. Nesta última fase, o juiz fixa
rá ainda o regime inicial de cumprimento da pena e a eventual substituição por
pena restritiva de direito.
Parece razoável que a decisão faça expressa referência ao método trifásico,
mas, se não o fizer, como é comum, tal não implicará nulidade alguma, desde que
da sua leitura se possa concluir claramente que o juiz o seguiu e respeitou.
Paulo Queiroz
32 Cf. Gilberto Ferreira, Aplicação da pena , Rio de Janeiro, Forense, 2004, p. 59-60.
33 Nesse sentido, Paganella Boschi, Penas e seus critérios, cit., p. 277-278.
D ireito Penal - Parte G eral
Sempre que uma mesma circunstância figurar como agravante genérica e tam
bém qualificar o crime, prevalecerá como qualificadora. Assim, por exemplo, o moti
vo fútil ou torpe que qualifica o homicídio (CP, art. 121, § 2S) e estabelece novos
parâmetros de pena e o toma crime hediondo (Lei ne 8.072/90). Pode acontecer, no
entanto, de um mesmo crime ser qualificado por mais de uma circunstância, a exem
plo do próprio homicídio, que pode ser dupla ou triplamente qualificado, por moti
vo fútil, torpe, meio cruel etc. Isso ocorrendo, parte da doutrina e da jurisprudência
considera perfeitamente possível e legítimo que as demais qualificadoras (remanes
centes) possam ser utilizadas como circunstância agravante; isso somente no caso de
as qualificadoras também figurarem como circunstância agravante, como, no exem
plo dado, o motivo futil ou torpe e o meio cruel (CP, art. 61, II, a e d).
No caso de as qualificadoras remanescentes não constituírem circunstâncias
agravantes, como ocorre com o furto qualificado (CP, art. 155, § 4e, I a IV), em que
o rompimento de obstáculo, a escalada, a destreza, o emprego de chave falsa etc.,
embora o qualifiquem, não fazem parte do rol das circunstâncias genéricas, alguns
autores entendem que tais dados podem ser considerados como circunstâncias judi
ciais para efeito de fixação da pena-base.
Parece-nos, todavia, que ambas as formas de aproveitamento das qualificado
ras ofendem o princípio da legalidade, em evidente prejuízo ao réu, mesmo porque,
de acordo com o art. 61, caput, do Código, as circunstâncias agravantes somente
incidem “quando não constituem ou qualificam o crime”, razão pela qual fora des
sas hipóteses a incidência é ilegal.34
34 No sentido do texto, José Cirilo de Vargas, que escreve textualmente: “há certa orientação jurisprudencial
no sentido: havendo duas circunstâncias qualificadoras (como exemplo: motivo fútil e emboscada, no deli
to de homicídio), uma será apreciada na fixação da pena-base e outra como agravante. O critério é ilegal
e demonstra escasso conhecimento do assunto. No primeiro caso, ou seja, na fixação da pena-base, é evi
dente que se deve levar em conta o delito qualificado, com os limites de pena devidamente alterados para
mais. Quanto a considerar uma qualificadora como agravante, é ferir de morte o princípio contido na
segunda parte do art. 61: ‘quando não constituem ou qualificam o crim e’. Se qualificou, é óbvio que não
pode agravar” (Instituições de direito penal: parte geral, tomo II, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 62).
Paulo Queiroz Direito Penal - Pane Geral
Uma vez superada essa segunda fase, em que restou fixada a pena provisória: mo e as de diminuição reduzi-la aquém do mínimo legal confinado. Nesse sentido,
o juiz a seguir apreciará, quando houver, as causas de aumento e de diminuição (j£ Paganella Boschi, embora reconheça que as causas especiais de aumento ou dimi
pena, previstas na Parte Geral e Especial do Código. n u ição diferem das agravantes e atenuantes sob a perspectiva meramente topográ
fica, pois as primeiras estão espalhadas pelo Código, ao passo que as últimas apare
3. Terceira fase: fixação da pena definitiva tJt; cem definidas só na Parte Geral, entende, acompanhando a doutrina, que as agra
vantes não autorizam, à luz do sistema legal vigente, individualização da pena-base
3.1. Causas de aumento de pena e qualificadoras: distinção além dos limites definidos em abstrato, mas “tal restrição não se aplica às causas
e sp e c ia is de aumento”, uma vez que “a possibilidade de extrapolação da margem
Não há distinção ontológica entre qualifícadora e causa de aumento de pena;?.! su p e r io r cominada no tipo não ofende o princípio constitucional da legalidade (art.
tampouco há distinção essencial entre causa de diminuição de pena e atenuantes 5s, inc. XXXIX), pois decorre da funcionalidade do sistema adotado pelo nosso
genéricas, tanto que determinadas circunstâncias (v. g„ motivo torpe, motivo futiTpspg Código (art. 68 do CP )”.35
etc.) ora aparecem como qualifícadora, ora como causa de aumento; outras tantas X lS Um tal entendimento, porém, no que toca à possibilidade de fixação da pena
circunstâncias (v. g., motivo de relevante valor social ou moral), que ora figuramgajÉ além do máximo legal por força de causa de aumento, é claramente antígarantista,
como simples atenuante genérica, ora como causa de diminuição de pena. Seme-,J3jf devendo ser rechaçado. Sim, porque se o legislador cominou um máximo legal de
lhante tratamento, um tanto casuístico, atende a critério de conveniência política $ 3 pena (v. g., no furto, cuja pena varia de 1 a 4 anos de reclusão), em hipótese algu
puramente. Com efeito, quando o legislador pretende reprimir mais duramente uma a S ma o juiz poderá estabelecer novos parâmetros legais máximos. Portanto, em nome
determinada circunstância, trata-a como qualifícadora; se não tão severamente^,"® da garantia constitucional da legalidade da pena, cumpre dar tratamento unitário a
como causa de aumento; se mais brando, como circunstância genérica agravante, w todas as situações: quer se trate de circunstância agravante, quer de causa de
No entanto, a distinção é relevante para efeito de aplicação da pena. Sim, por! aumento, a pena jamais poderá ser fixada além do máximo legal confinado. Mas o
que as qualificadoras, que implicam a fixação de novos limites - mínimo e máximo contrário não está vedado: tanto as circunstâncias atenuantes quanto as causas de
- de pena (v. g., o homicídio qualificado por motivo fútil - CP, art. 121, § 2Q, II — , ■ diminuição podem justificar a aplicação da pena aquém do mínimo.
cuja pena é de doze a trinta anos de reclusão, e não seis a vinte anos de reclusão),
devem ser levadas em conta já no momento mesmo da aplicação da pena-base (pri- ;' * 3.3. Concurso de causas de aumento e diminuição de pena: possibilidades
meira fase). Diferentemente, as causas de aumento ou de diminuição serão consi--?
deradas somente na terceira fase. 5*58 Nessa terceira fase, o juiz poderá deparar com as seguintes hipóteses: a) inci
Naturalmente que a mesma circunstância não poderá ser tomada em contá de mais de uma causa de aumento de pena; b) incide mais de uma causa de dimi
mais de uma vez na mesma sentença, sob pena de bis in idem . Assim, se a mesma nuição de pena; c) incide simultaneamente mais de uma causa de aumento e de
circunstância já figurar como qualifícadora, deverá ser ignorada como causa de
diminuição.
aumento ou agravante; se já figurar como causa de diminuição, deverá ser despre Pois bem, para as duas primeiras hipóteses, o Código prevê solução única: o
zada como atenuante genérica. No particular, vigora o seguinte princípio: as qua juiz pode limitar-se a um só aumento ou a uma só diminuição, prevalecendo, toda
lificadoras prevalecem sobre as causas de aumento de pena, que prevalecem sobre via, a causa que mais aumente ou mais diminua (CP, art. 68 , parágrafo único).
as circunstâncias agravantes. As agravantes só têm aplicação, portanto, quando Significa dizer que, em homenagem ao princípio da proporcionalidade, o legislador
não constituírem nem qualifícadora nem causa de aumento. O mesmo deve ser entendeu de, à vista da incidência simultânea de várias causas de aumento ou de
dito quanto às causas de diminuição de pena, que prevalecem sobre as circunstân- diminuição, privilegiar uma única - a que mais aumenta ou a que mais diminui -
cias atenuantes.
em prejuízo das demais, de modo a evitar que a consideração de múltiplas causas
de aumento ou de múltiplas causas de diminuição conduzisse o juiz a fixar uma
3.2. Limites máximos e mínimos decorrentes das causas de aumento e pena desproporcional: alta demais no primeiro caso ou baixa demais no segundo,
diminuição
podendo chegar teoricamente à pena zero inclusive.
Cumpre notar que, embora não exista previsão semelhante quanto às circuns
tâncias agravantes, pensamos que nada impede que se lhe aplique a tais casos, pois
a razão político-criminal é a mesma, ou seja, havendo concurso de agravantes ou
atenuantes sobre um mesmo crime, seria razoável que o juiz preferisse uma, a mais
importante, em prejuízo das demais.
Discute-se se tal possibilidade constitui uma faculdade ou um dever do juiz.
Temos que, a despeito de opiniões em contrário, trata-se de um dever, e não de
simples faculdade. Outra questão relevante é a seguinte: o Código fala expressa
mente de concurso de causas previstas só na parte especial. De acordo, portanto,
com a literalidade da norma, tal regra não se aplicaria aos casos de concurso entre
causas da Parte Especial e da Geral ou só da Parte Geral. Esse, aliás, é o entendi
mento majoritário: se o concurso se der entre causas previstas só na Parte Geral ou
previstas na Parte Especial e na Geral, não cabe invocar a regra do art. 68, parágra
fo único. No entanto, nenhuma razão de fato ou de direito justifica uma tal restri
ção, nem um tal apego à letra da lei. Afinal, se se quer preservar o princípio da pro
porcionalidade, deve-se admitir a irrelevância do lugar onde se acha localizado no
Código a causa de aumento ou de diminuição, devendo dar-se tratamento isonômi- ,
co a tais situações.
Finalmente, na terceira hipótese, em que ao mesmo tempo incidem causas de
aumento e de diminuição, a solução é diferente: o juiz apreciará sucessivamente
todas as causas presentes, de aumento e de diminuição, não podendo invocar a
regra do art. 68.
Como vimos, o Código determina que, fixada a pena-base com a aplicação das
circunstâncias judiciais (art. 59), se passe a seguir à mensuração das circunstâncias
atenuantes e agravantes (pena provisória); e por último às causas de diminuição e
aumento de pena (pena definitiva). O Código estabelece uma ordem de preferên
cia, portanto.
Em princípio, o cálculo será feito conforme o método sucessivo, vale dizer, a
operação seguinte tomará por base a anterior e assim sucessivamente. Ex.: fixada a-
pena-base em seis anos; incidindo uma agravante de um terço, resulta uma pena
provisória de oito anos; a seguir, em razão de uma causa de diminuição de pena de
metade, chega-se à pena de quatro anos; havendo uma causa de aumento de meta
de, resulta uma pena de seis anos. Nota - embora o Código adote uma ordem de
preferência (primeiro as atenuantes, depois as agravantes; primeiro, as causas de
diminuição, depois as de aumento), sua inversão não implicaria nulidade da sen
tença, porque irrelevante matematicamente. Assim, se a pena de oito anos fosse,
primeiro, aumentada para doze anos e depois diminuída de metade, resultaria ao
final na mesma pena: seis anos.
D ireito Penal - Parte Gera]
36 No sentido do texto, Fernando Galvão, Direito p en a l parte geral, Rio de Janeiro, Impetus, 2004, p. 616.
Idem, Gilberto Ferreira, cit., p. 156-162.
37 Cf. Fernando Galvão, idem, p. 618.
P a u lo Q u e ir o z
1/3, e aplicado o método sucessivo, obter-se-ia uma pena final de 1 ano e quatro
meses, conforme a operação seguinte: 3 - 2 (= 2/3) = 1; 1 + 4 meses (= 1/3 de 1 ano)
= 1 ano e quatro meses. )á a aplicação do método isolado ensejaria uma pena final
de 2 anos; a operação seria: 3 - 2 = 1; 1 + 1 (= 1/3 de 3) = 2.
Em conclusão:38 1) no concurso entre causas de aumento, o método sucessivo
prejudica o réu; 2) no concurso entre causas de diminuição, o método isolado é
impraticável (ilógico); 3) no concurso entre causas de aumento e de diminuição, o
critério isolado prejudica o réu. Por isso temos que, como regra, o método a ser
aplicado é o sucessivo; e só excepcionalmente o isolado, sempre que for mais favo
rável ao réu.
Introdução
1. Culpabilidade
40 Com razão, portanto, Cezar Bitencourtao observar que constitui um equívoco, freqüentemente com eti
do no cotidiano forense, quando, na dosagem da pena, afirma-se que “o agente agiu com culpabilidade,
pois tinha consciência da ilicitude do que fazia, pois nessa acepção a culpabilidade funciona como funda
mento da pena, isto é, característica negativa da conduta proibida e que já deve ter sido objeto de análise
juntam ente com a tipicidade e a antijuridicidade, concluindo-se pela condenação e presume-se que esse
juízo tenha sido positivo, porque do contrário nem se teria chegado à condenação” ( Manual, cit., p. 551).
41 D erecho penal, cit., p. 286.
42 Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 551.
43 Cezar Bitencourt, Manual, cit., p. 551.
44 Problemas fundamentais, cit., p. 3 8 -3 9 .
P a u lo Q u e ir o z
336
Mas a culpabilidade é analisada não só aí, como também durante todo o pro
cesso de individualização da pena, a exemplo do que ocorre quando do reconheci
mento da participação de menor importância, do erro de proibição evitável, da
semi-imputabilidade etc.
Não é preciso dizer que na prática forense há freqüentes erros na aplicação da
pena quando se analisa a culpabilidade, como, por exemplo, afirmar-se que “o réu
é culpável, pois tinha plena consciência da ilicitude do fato”, “sabia exatamente o
que fazia”, ou, ainda, “agiu livremente”. Ora, não fosse o réu culpável por quaisquer
desses motivos e seria o caso de absolvê-lo ou diminuir-lhe a pena, seja por erro de
proibição (inevitável ou evitável), seja por coação física ou moral (irresistível ou
resistível), pois as excludentes de culpabilidade constituem pressupostos da conde
nação (vide erros freqüentes na aplicação da pena).
2 . Antecedentes do réu
3. Conduta social
4. Personalidade do réu
Mais difícil ainda será, como assinala Paganella Boschi, a avaliação da perso
nalidade do réu, seja porque como regra o juiz não domina conteúdos de psicolo
gia, antropologia ou psiquiatria, seja porque possui, como todo indivíduo, atributos
próprios de personalidade, por isso que a valoraçâo que se faz nas sentenças crimi
nais é quase sempre precária, superficial, e não raro preconceituosa, limitada a afir
mações genéricas do tipo “personalidade ajustada”, “desajustada”, “agressiva”,
impulsiva”, “boa”, “má”, que nada dizem tecnicamente.51
Já não bastassem tais dificuldades, aliada a sua irrelevância mesma, semelhan
te avaliação é de todo ilegítima no contexto de um direito penal do fato, pois, além
de possibilitar ao julgador invadir arbitrariamente âmbito da liberdade onde não
lhe é lícito opinar (interioridade da pessoa), estabelece uma verdadeira porta aber
ta para a perversão do princípio da culpabilidade pelo fato.52 Logo, e de acordo com
um direito penal garantista, são admissíveis apenas normas que proíbam e previ
nam fatos, e não normas que proíbam ou desmoralizem identidades, apenas juízos
que acertem a prova de uma ação e não valorações sobre a personalidade do réu;
apenas tratamentos punitivos relacionados ao fato previsto como crime e resolvido
mediante provas e não tratamentos individualizados e modelados sobre a persona
lidade do imputado ou recluso,53 em geral argumentos potestativos e, por isso, difi
cilmente refutáveis.
5. Motivos do crime
As circunstâncias são dados ou fatos (lugar, modo de execução etc.) que estão
em derredor do crime e que devem ser tomados em conta para efeito de individua
lização da pena.
Já as conseqüências do crime são os efeitos principais e secundários decorren
tes da infração cujo grau (maior ou menor) de lesividade (social e individual)
devem ser considerados, de modo a ensejar a aplicação de uma pena justa. Mas ao
contrário do que por vezes se afirma,54 tanto nos crimes dolosos quanto nos culpo
sos tais conseqüências devem influir na dosagem da pena, mesmo porque a lei não
faz nenhuma distinção no particular.
Como assinala Paganella Boschi, as conseqüências do crime a que se refere o
art. 59 são evidentemente aquelas que se projetam para além do fato típico, por
que, se assim não fosse, poderiam acarretar a quebra da regra do n e bis in idem ,
especialmente naqueles casos em que aparecem compondo a figura penal. Daí por
que é inviável na dosimetria da pena-base do homicídio valoraçâo negativa das
conseqüências, porque a morte da vítima é condição para que o tipo se realize; a
incapacidade para o trabalho não pode ser considerada como circunstância judi
cial no crime de lesões corporais gravíssimas porque integra o tipo; no infanticí-
dio, o estar a vítima à mercê da ré é circunstância co-natural ao delito. Já o desam
paro da prole e os inconvenientes dos reiterados tratamentos médicos para a cor
reção ou eliminação da grave perturbação emocional da vítima podem ser perfei
tamente considerados.55
Também é relevante para a aplicação de uma pena justa saber sobre o compor
tamento da vítima no desenrolar do episódio criminoso, vale dizer, a forma como
a conduta da vítima pôde favorecer ou motivar a atuação criminosa do agente.
Cumpre notar, porém, que o comportamento do ofendido deve ser apreciado de
modo amplo no contexto da censurabilidade do autor do crime, não só podendo
diminuir como aumentar eventualmente a pena.56 Claro que o comportamento que
aí se supõe não é aquele que enseja a invocação da legítima defesa, por exemplo,
nem o privilégio de alguns crimes (assim, o homicídio - CP, art. 121, § l e), mas
condutas que em nada afetam a tipicidade ou a ilicitude do fato.
54 Assim, Delmanto ( Código Penal com entado , 6. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002), para quem, tratando-
se de crimes culposos, as conseqüências não devem influir.
55 Das penas e seus critérios de aplicação , Porto Alegre: Livr. do Advogado Ed., 2002, p. 212.
56 Delmanto, Código Penal comentado, cit., p. 95.
P a u lo Q u e ir o z
340
VIII. Segunda fase: fixação da pena provisória
Fixada a pena-base com base nas circunstâncias judiciais do art. 59, o juiz pas
sará à segunda fase (fixação da pena provisória), sopesando as circunstâncias legais
atenuantes (CP, art. 65) e agravantes (CP, arts. 61 e 62), as quais têm por fim limi
tar a discricionariedade judicial, de modo a assegurar uma pena proporcional à
infração cometida. Tais circunstâncias constituem dados ou fatos acidentais que,
embora não modifiquem a tipificação da conduta, devem ser obrigatoriamente
considerados na fixação da pena.
Não incidem, porém, sempre que já figurem como causas de diminuição ou de
aumento de pena ou qualificadoras (ne bis in idem ). E que, constituindo^ circuns
tâncias genéricas, devem ser desconsideradas quando o tipo penal especificá-las.
Assim, por exemplo, o motivo de relevante valor social ou moral, em relação ao
crime de homicídio, visto que já integra o tipo de homicídio privilegiado (art. 121,
§ l e); o motivo torpe ou fútil, quanto ao homicídio, porque já faz parte do homicí
dio qualificado (art. 121, § 2e, I e II) etc.
Também por essa razão (ne bis in idem), jamais uma circunstância atenuante
ou agravante poderá ser valorada mais de uma vez.
Introdução
1. Reincidência
agente praticar diversos crimes sucessivamente e, apesar disso, ser considerado não
reincidente em todos os processos contra si instaurados. Exemplificando: se o agen
te, depois da prisão em flagrante em delito, vem a confessar outros delitos cometi
dos anteriormente, cuja autoria era até então ignorada, será primário nas várias
ações penais a que responder, uma vez que nenhum dos crimes foi praticado pos
teriormente ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Por isso que para a configuração da reincidência não basta o cometimento de
novo crime; é necessário que esse novo crime tenha sido cometido após transitar
em julgado a sentença que, no Brasil ou no estrangeiro, o tenha condenado por
crime anterior. Também não é suficiente que tenha havido uma sentença conde
natória, se esta, ainda pendente de recurso, não passou em julgado. Ademais, é irre
levante se o agente cumpriu ou não a condenação anterior que gerou a reincidên
cia (reincidência ficta).
Não têm caráter condenatório e, pois, não induzem reincidência: a) a sentença
concessiva de perdão judicial (CP, art. 120); b) a sentença que aplica medida de segu
rança (conforme doutrina majoritária); c) a decisão que aplica pena restritiva de
direito em transação penal (Lei 9.099/95, art. 76, § 4S); d) a decisão concessiva de sus
pensão condicional do processo (Lei 9.099/95, art. 89); e) a decisão que homologa a
composição civil (Lei 9.099/95, art. 74). À exceção da prescrição da pretensão execu-
tória, o reconhecimento da prescrição (retroativa ou superveniente) afasta a reinci
dência, uma vez que implica desconstituição da própria sentença condenatória.
Como a lei refere especificamente o cometimento de crim e anterior, segue-se
que contravenção an terior não gera reincidência. Entretanto, por força do que dis
põe o art. 7e da Lei das Contravenções Penais (Dec.-lei ne 3.688/41), haverá reinci
dência quando o agente praticar uma contravenção depois de passar em julgado
sentença que o tenha condenado por outra contravenção (no Brasil) ou por qual
quer crime (no Brasil ou no estrangeiro). Em conclusão, tem-se a seguinte e inex
plicável situação: se o agente comete duas contravenções, há reincidência; se pra
tica dois crimes, também; idem se for crime e contravenção. Todavia, se praticar
contravenção e crime, não haverá reincidência(?).
A reincidência produz diversos efeitos penais, de modo a restringir ou invia
bilizar o exercício de certos direitos, tais como: a) figura como circunstância agra
vante obrigatória; b) constitui circunstância preponderante quando houver concur
so de agravantes e atenuantes; c) amplia os prazos de livramento condicional; d) im
pede o livramento condicional quando houver reincidência específica em crime
hediondo ou afim; e) interrompe e aumenta o prazo da prescrição da pretensão exe-
cutória; f) impede a substituição da pena de prisão por restritiva de direito quando
houver reincidência específica etc.
A prova da reincidência deverá ser feita mediante certidão do cartório com
petente, não bastando a simples exibição de folha de antecedentes, nem sempre
exata, nem sempre atualizada.
Paulo Queiroz
cessa a reincidência, principal forma de maus antecedentes, ela não pode ser apro
veitada para outros fins, frustrando a finalidade da lei, até porque o acessório (maus
antecedentes) deve seguir a sorte do principal (a reincidência). Mais: os maus ante
cedentes acabariam assumindo caráter perpétuo.
d) Inconstitucionalidade da reincidência. Apesar de consagrada pela maioria
dos Códigos, a reincidência, que encerra uma presunção absoluta de maior perigo
sidade do réu, é sem dúvida incompatível com os princípios penais, particularmen
te com os princípios da proporcionalidade e da ofensividade.
Cumpre notar, inicialmente, que, com a relativização determinada pelo prin
cípio da presunção legal de inocência, o instituto perdeu grandemente o seu senti
do, uma vez que nem sempre o réu reincidente é mais perigoso do que o não rein
cidente. Afinal, o agente pode ser primário, não obstante ter praticado diversos
delitos, assim como pode ser reincidente, mas em crimes de menor potencial ofen
sivo.58 É de reconhecer, portanto, que a reincidência já não constitui um sintoma
seguro de maior perigosidade, não se justificando, também por essa razão, sua exis
tência. Por isso não é exato dizer que a reincidência é um sinal de periculosidade,
como a febre é sinal de infecção, como a putrefação é sinal de morte (Hungria).
Além disso, a reincidência não passa, como assinala Munoz Conde, de uma
pena tarifada, na medida em que ela atua como causa de agravamento da pena fun
dada em fato diverso, gerador de culpabilidade e de responsabilidade próprias, de
modo que o plus de gravidade decorrente da reincidência eqüivale à pena sem cul
pabilidade, estranho ao fato e que importa dupla valoração da mesma causa, cons
tituindo bis in idem .59
Por isso é que Cobo dei Rosai e Vives Antón propõem a abolição pura e sim
ples do instituto, porque, além de incompatível com um direito penal da culpabi
lidade pelo fato, está evidenciada sua total ineficácia.60
58 Sem razão, portanto, Mirabete, quando afirma que “a exacerbação da pena justifica-se plenamente para
aquele que, punido anteriormente, voltou a delinqüir, demonstrando com sua conduta criminosa que a
sanção normalmente aplicada se mostrou insuficiente para intimidá-lo ou recuperá-lo. Há, inclusive, um
índice maior de censurabilidade na conduta do agente que reincide” (Manual, cit., p. 301).
59 Apud Paganella Boschi, Penas, cit. No mesmo sentido, André Copetti, para quem, ao aumentar a pena do
delito posterior pela existência da circunstância agravante da reincidência, em realidade se está punindo no
vamente a situação já sentenciada (Direito penal, cit., p. 194). Idem, Saio de Carvalho ( Aplicação da pena,
cit.) e Lênio Streck ( Tribunal do Júri: símbolos e rituais, Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2001).
Com razão, Paganella Boschi assinala que a reincidência não pode ser sempre e necessariamente justifica
da como imperiosa punição ao condenado que, por má formação, desvio de conduta, tendência ao crime,
insiste em continuar violando a lei, como tradicionalmente se afirma, mas, isto sim, deve ser compreen
dida, também, como expressão final do processo de perversão e de estigmatização do homem pela prisão
ou peJa absoluta falta d e políticas oficiais de amparo ao egresso, criadoras de novas oportunidades para a
harmônica reintegração ao mundo livre pelo trabalho (Penas, cit., p. 269). Por isso, entende Juarez Cirino
que em verdade a reincidência ou deveria ser atenuante, quando houvesse o cumprimento da pena, em
virtude da dessocialização decorrente da experiência carcerária, ou deveria ser penalmente indiferente,
quando não tivesse havido o cumprimento da pena ( Direito penal , Rio de janeiro: Forense, 1985» p. 245).
60 D erecho penal, cit., p. 815. Escrevem os citados autores, textualmente: “a reincidência, pois, não nos deve
situar em outro Direito Penal. De um Direito Penai distinto ao da mera e única repressão por meio da
pena; de um Direito Penal preventivo e de medidas de segurança, que conhece e concede maior relevância
P a u lo Q u e ir o z
344
Mas se a reincidência for tolerada, como o é ordinariamente, temos que o
agravamento que dela decorrer jamais poderá implicar aumento igual ou superior,
mas sempre inferior à pena que fora imposta na sentença condenatória precedente
que a ensejou, sob pena de violação ao princípio da proporcionalidade, uma vez que
o acessório (agravante da reincidência) não pode exceder o principal (a pena
imposta). Assim, se o réu foi condenado anteriormente a uma pena de dois anos por
furto, não poderá a agravante acarretar na condenação (posterior) a seis anos por
tráfico aumento de metade (três anos) e assim fixar a pena definitiva em nove anos
de prisão. Idem se a condenação anterior fosse por lesão corporal a pena de um ano
parece evidente que, na nova condenação por latrocínio a vinte anos de prisão, não
poderia o aumento decorrente da reincidência ser de metade (dez anos), isto é, dez
vezes a pena precedente.
Cumpre dizer, por fim, que existem autores que propõem que a reincidên
cia, em vez de ensejar o agravamento da pena, deve, ao contrário, justificar sua
atenuação. Nesse sentido, Juarez Cirino dos Santos, para quem é necessário reco
nhecer: a) se o novo crime é cometido após a passagem do agente pelo sistema
formal de controle social, com efetivo cumprimento da pena criminal, o proces
so de deformação e embrutecimento pessoal do sistema penitenciário deveria
induzir o legislador a incluir a reincidência real entre as circunstâncias atenuan
tes, como produto específico da atuação deficiente e predatória do Estado sobre
sujeitos criminalizados; b) se o novo crime é cometido após a simples formalida
de do trânsito em julgado de condenação anterior, a reincidência ficta não indi
ca qualquer presunção de periculosidade capaz de fundamentar circunstância
agravante. Conclui, então, que, no caso de reincidência real (o condenado cum
priu de fato a pena, passando pela experiência carcerária), deve ela ensejar a ate
nuação da pena; na hipótese de reincidência ficta (o condenado não chegou a
cumprir pena alguma, por qualquer motivo, como fuga, por exemplo), tal cir
cunstância é irrelevante, devendo ser ignorada.61
não tanto ao delito, mas ao estado perigoso, entendido como pressuposto da aplicação daquelas. E dentro
deste marco, seguimos, apesar de tudo, propugnando o desaparecimento do instituto da reincidência , em
suas distintas manifestações, assim como em sua consideração como agravante da pena, pois está eviden
ciada a sua total inoperatividade”.
61 Direito Penal, cit.
D ireito Penal - Parte Geral
trariada etc.62 É preciso, porém, não perder de vista que, para alguns crimes, tal
motivo pode simplesmente constituir um “estado normal” de quem se determina a
praticá-lo, e, em conseqüência, deve ser desprezado, sob pena de dupla valoraçâo
do fato (bis in idem ). Assim, não cabe tomar em conta a motivação lasciva para os
crimes sexuais, o motivo de lucro para os delitos contra o patrimônio (extorsão
mediante seqüestro, receptação, estelionato) etc.
Fútil é o motivo frívolo, insignificante, absolutamente desproporcionado, que
exprime total indiferença do sujeito para com o bem jurídico tutelado. Apesar isso,
não pode ser considerado fútil a simples falta de motivo, nem a só injustiça do
motivo. Assim, se o motivo torpe revela um grau particular de perversidade, o
motivo fútil traduz egoísmo intolerante, prepotente, mesquinho, que vai até a
insensibilidade moral.63 Também aqui é preciso estar atento para a possibilidade de
ocorrência de bis in idem , já que o caráter fútil do crime pode já integrar a própria
tipificação, sendo inerente à sua estrutura.
Discute-se se o ciúme pode ser considerado motivo fútil. Parece-nos que,
sobretudo quando se tratar de ciúme havido entre casais, tal não pode ser tomado
à conta de fútil, especialmente em virtude da tradição moral cristã (que nos afeta a
todos) que atribui à fidelidade conjugal extraordinária relevância, e mais ainda
quando se tratar de ciúme fundado.
Finalmente, de acordo com a jurisprudência, o motivo fútil é em princípio
incompatível com a embriaguez.
O crime é também agravado sempre que for praticado para facilitar ou asse
gurar a execução, a ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro crime. Na pri
meira hipótese, o que agrava não é prática efetiva do crime, mas o fim de cometer
outro crime. Assim, por exemplo, o indivíduo que, ao tentar uma extorsão median
te seqüestro, mata a pessoa que se interpõe para evitá-lo, não deixa de responder
por homicídio qualificado, ainda quando a seguir desista de consumar a extorsão
mediante seqüestro. Também nas outras hipóteses a agravante não depende da real
consecução do fim a que se propõe o agente. Na segunda e terceira hipóteses, o
escopo do agente é destruir a prova de outro crime ou evitar as conseqüências pro
cessuais ou penais dele decorrentes (v. g., executanto testemunha do crime). Na
última hipótese, o propósito do agente é garantir a fruição de qualquer vantagem,
patrimonial ou não, direta ou indireta, resultante de outro crime, não importando
em nenhuma desses casos se o agente atua em favor próprio ou de outrem.64
Também aqui é discutível se não há bis in idem , haja vista que o agente pode
rá também responder pelo crime que pretendeu facilitar, assegurar a execução, a
ocultação ou a impunidade.
6. Embriaguez preordenada
ao contrário do que sustenta este autor tal rol não pode ser ampliado para incluir
outras pessoas com as quais o autor do crime tenha especial estima ou relação de
intimidade (concubina etc.), sob pena de violação ao princípio-garantia da legali
dade da pena.70 Tampouco incidirá a agravante se o réu desconhecer o parentesco
por algum motivo, a evitar a responsabilidade penal objetiva.
Naturalmente que sempre que o parentesco já fizer parte da descrição legal do
tipo ou já o qualificar ou aumentar a pena não incidirá a agravante, como, v. g., lesão
corporal no âmbito doméstico (art. 129, § 9°), omissão de socorro (CP, art. 135),
bigamia (art. 235), abandono material (CP, art. 244), abandono intelectual (CP, art.
246) etc. Não é preciso dizer que a prova do parentesco deverá ser feita mediante
documento hábil, como certidão de casamento ou nascimento, conforme o caso.
soas civilmente casadas, não sendo possível fazer interpretação analógica ou extensiva, por ser
partem. Entretanto, a agravante poderá incidir com fundamento na alínea f, se o delito foi com*
prevalecimento de relações domésticas ou de coabitação”. Aplicação da pena, cit., p. 240.
71 Paganella Boschi, Penas, cit., p. 279.
9. Abuso de poder ou violação inerente a cargo, ofício,
ministério ou profissão
.^2 ~~~---------------------
G u ilh e r m e d e Souza Nucci, Individualização da pena, cit., p .2 5 5 / 7 .
Paulo Q ueiroz
384.
73 Ney Moura Teles. Direito Penal. Parte Geral. S.Paulo: Atlas,
74 Fernando Galvão. Direito Penal, p. 728.
75 Fernando Galvão, idem.
D ireito Penal - P arte Geral
que exerce função de liderança, o assim chamado autor intelectual, merece maior
censura, devendo sofrer pena agravada, afinal sua ação é essencial para o êxito da
empreitada criminosa, cabendo-lhe em geral definir como e quando se dará a ação
delituosa. Para que tenha lugar a agravante, é necessário que haja de fato comando
do agente relativamente à ação dos demais criminosos, porque do contrário, isto é,
se os co-réus decidirem praticar o crime sem que haja prevalência da decisão de uns
sobre os outros, a agravante em questão não incidirá. Enfim, a agravante só é cabí
vel quando ficar claramente caracterizada a situação de liderança: promoção, dire
ção ou organização para um agir criminoso.
Também aqui o Código quer apenar mais gravemente pessoas que exerçam
algum tipo de influência importante sobre o autor, co-autor ou partícipe do crime,
Por fim, a pena será agravada sempre que o crime for motivado pelo pagamen
to ou promessa de recompensa, ainda que não cumprida, hipóteses que já consti
tuem motivo torpe, inclusive. Para que tenha lugar a agravante, não é preciso que
a vantagem prometida seja necessariamente patrimonial, podendo consistir em
outros meios, como promessa de emprego, favores sexuais etc. No entanto, o assun
to é controvertido, havendo quem entenda, como Fragoso, que a promessa de
recompensa deve ter caráter econômico obrigatoriamente.77
Discute-se se a agravante é também aplicável ao mandante. Temos que de fato
só o executor deva responder por ela, uma vez que a lei quis atingir diretamente o
sujeito que, não tendo motivo algum para cometer o delito, nele intervém por
dinheiro, aceitando-o, ou até se dedicando, profissionalmente ou não, à atividade
criminosa. Aliás, quanto ao mandante, é irrelevante, do ponto de vista da censura-
bilidade da conduta, se ele comete o crime pessoalmente ou se vale de terceiro para
tanto, já que a culpabilidade é a mesma em ambos os casos, em nada se alterando.
Além disso, em geral, o mandante atua com motivação diversa do executor, poden
do inclusive agir por motivo de relevante valor social ou moral. Como assinala
Fragoso, a qualificação do crime mercenário se justifica pela ausência de razões pes
soais por parte do executor e pelo motivo torpe que o leva ao delito, algo que não
ocorre, em princípio, com o mandante, que busca a impunidade e a segurança, ser
vindo-se de um terceiro.78 Desnecessário dizer que mandatos gratuitos não ense
jam a incidência da agravante.
Naturalmente que a agravante não incidirá quando a vantagem econômica ou
de outra natureza for inerente ao tipo legal de crime {ne bis in idem). Assim, por
exemplo, não tem aplicação nos crimes patrimoniais, apropriação ou desvio de
dinheiro público (peculato), corrupção, tráfico de entorpecentes etc.
77 Lições de direito pena1, parte especial, v .l, Rio: Forense, 11. ed., 1995, p. 40.
78 Lições de direito penal, parte especial, v. 1. Rio: Forense, 11. ed., 1995, p. 40.
D ireito Penal - P arte G eral
Introdução
1. Idade do agente
2. Desconhecimento da lei
354
3. Motivo de relevante valor social ou moral
Também atenua a pena o fato de o agente ter procurado por sua livre e espon
tânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as
conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano. A eficiência a que se
refere a lei tem a ver com o esforço feito pelo agente para minorar as conseqüên
cias e não quanto ao resultado lesivo da sua ação. Já a reparação do dano, que ora
figura como causa de extinção da punibilidade (v. g„ peculato culposo - CP, art.
312, § 3q, I a parte), ora como causa de redução de pena (arrependimento posterior
- art. 16), funciona como simples atenuante, desde que ocorra até o julgamento da
ação penal. Ambos os institutos têm aplicação subsidiária, uma vez que somente
incidirão quando não for o caso de invocação dos institutos principais, como a
desistência voluntária ou arrependimento eficaz, quando então sequer haverá
crime tentado (CP, art. 15), respondendo o agente somente pelos atos já praticados.
Também não serão aplicados nos casos em que já funcionarem como causa de redu
ção de pena ou de extinção de punibilidade (v. g., arrependimento posterior).
Por igual, a pena será mais branda quando o autor do crime tiver sido injus
tamente provocado pela vítima ou, mais exatamente, quando o delito for cometido
sob a influência de violenta emoção provocada por ato injusto da vítima. Even
tualmente a violenta emoção provocada por ato injusto da vítima poderá constituir
causa de diminuição de pena, como ocorre no homicídio e lesões corporais (CP, art.
121, § l 9, e art. 129, § 4<*).
6. Confissão espontânea
80 Fernando Galvão, Direito Penal, parte geral, Rio de Janeiro, 2004, p. 763, citando Pedro Vergara.
81 HC 91654/PR, rei. Min. Carlos Britto, 8.4.2008.
Paulo Queiroz
356
7. Influência de multidão em tumulto, se não o provocou
regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada”, pois do contrá
rio haveria ofensa ao princípio da individualização.
O Código prevê ainda que, tratando-se de condenado por crime contra a
administração pública, a progressão de regime de cumprimento da pena ficará con
dicionada à reparação do dano causado ou à devolução do produto ilícito pratica
do, salvo impossibilidade de fazê-lo.
No regime fechado, o condenado será submetido, no início do cumprimento
da pena, a exame criminológico de classificação para individualização da execução,
ficando sujeito a trabalho durante o período diurno internamente, de acordo com
suas aptidões, e a isolamento durante o repouso noturno. O trabalho externo é
admissível em serviços ou obras públicas. Já no regime semi-aberto, o condenado
ficará sujeito a trabalho interno durante o período diurno, sendo admitido o traba
lho externo, bem como freqüência a cursos supletivos profissionalizantes, de ins
trução de segundo grau ou superior. Finalmente, no regime aberto, baseado na
autodisciplina e senso de responsabilidade, o condenado deverá, fora do estabele
cimento e sem vigilância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer outra atividade
autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga.
Excepcionalmente o cumprimento do regime aberto (LEP, art. 117) poderá dar-se
em residência particular (prisão domiciliar) quando se tratar de: a) condenado
maior de setenta anos; b) condenado acometido de doença grave; c) condenada
com filho menor ou deficiente físico ou mental; d) condenada gestante. Como se
vê, a prisão domiciliar constitui um modo especial de cumprimento do regime
aberto. Apesar disso, alguns autores propõem que, mesmo quando se tratar de con
denação a regime fechado ou semi-aberto, seria razoável que o condenado também
fizesse jus ao beneficio, se se encontrar nessas mesmas condições.82
A progressão para regime mais brando de execução, conseqüência natural da
determinação da pena e admitida como forma de possibilitar a reinserção gradual
do preso à comunidade, exige o cumprimento de ao menos um sexto da pena no
regime anterior e comportamento prisional satisfatório (LEP, art. 112). Para tanto,
o juiz, que decidirá fundamentadamente, ouvirá previamente o Ministério Público
e o defensor. Tratando-se de nova progressão, o cálculo deverá ser feito com base
no restante da pena e não com base no total da pena aplicada.
Tratando-se de condenação por crime hediondo e assemelhados, o condena
do poderá progredir depois de cumprir 2/5 da pena, se primário, e 3/5, se reinci
dente, conforme redação dada pela Lei ne 11.464/2007. A nova lei, apesar de ser
mais favorável se comparada à Lei ns 8.072/90, somente é aplicável às infrações
penais ocorridas a partir da sua entrada em vigor (irretroativa), em virtude da
declaração de inconstitucionalidade da não progressão pelo STF, a qual, embora
proferida em caráter incidental, há de produzir efeito erga om nes, conforme tem
83 De modo similar, Silva Franco e outros, Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, cit., 1. 1, v. 1, p. 544. ;
84 Manual, cit., p. 429.
D ireito Penal - Parte Geral
Dispõe a Lei ns 8.072/90 (art. 2e, § l e) que o cumprimento da pena por crime
hediondo ou assemelhado (tráfico de drogas, tortura etc.) dar-se-á integralmente
em regime fechado de execução, estando assim vedada a possibilidade de progres
são para regime mais brando de execução. Incoerentemente, porém, admitiu-se a
possibilidade de o preso obter livramento condicional após cumprir mais de dois
terços da pena e desde que não seja reincidente específico nesse tipo de infração
(CP, art. 83, V). Atualmente a Lei de Drogas (Lei n® 11.343/2006) veda expressa-
360
mente a anistia, a graça, o indulto, o sursis, a conversão da pena de prisão em pena
restritiva de direito etc.
Ocorre que lei posterior - Lei nQ9.455/97 - , que tratou da tortura, crime asse
melhado a hediondo, passou a admitir a progressão. Por isso, já se entendeu que to
dos os crimes hediondos e afins, e não apenas o crime de tortura, passaram a admi
tir a progressão,86 embora o regime inicial deva ser o fechado. Nesse sentido, Silva
Franco, que já havia se pronunciado pela inconstitucionalidade da não-progressão,
afirma que não há razão lógica para justificar a aplicação do regime progressivo aos
condenados por tortura e que negue, ao mesmo tempo, igual sistema prisional aos
condenados por crimes hediondos ou tráfico ilícito de entorpecentes.87
O Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula 698, decidiu que “não se
estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de
execução da pena aplicada ao crime de tortura”; mas recentemente o mesmo STF
acabou por declarar a inconstitucionalidade da referida vedação.
Atualmente, como vimos, a Lei ne 11.464/2007 prevê que o condenado pode
rá progredir quando tiver cumprido 2/5 da pena, se primário, e 3/5, se reincidente. -
86 No mesmo sentido, Cezar Bitencourt (Código Penal comentado, cit., p. 431), para quem, a partir da ed i-.
ção da Lei n9 9.455/97, deve-se reconhecer a aplicabilidade do sistema progressivo aos crimes hediondos -
e afins, sem restrições, inclusive retroativamente. Idem, Delmanto (Código Penal comentado, cit.). Con
trariamente, Guilherme de Souza Nucci, que, socorrendo-se de diversos julgados, entende que o fato de a
Lei nQ9.455/97 ter alterado o regime de cumprimento da pena para os delitos de tortura não pode afetar
os demais crimes previstos em outra lei (Lei n0 8.072/90) (Código Penal com entado , cit., p. 180-181).
87 O regime progressivo em face das Leis ne 8.072/90 e 9.455/97, Boletim do IBCCrim, n. 58, edição especial
de setembro de 1997.
88 Crimes hediondos, 5. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005, p. 231-232.
D ireito Penal - Parte Geral
362
nhecer em favor do réu a progressão de regime, sempre que as circunstâncias (judi
ciais e legais) lhe forem favoráveis. É que a só gravidade abstrata do crime, embo
ra necessária, não é suficiente para justificar o cumprimento integral da pena em
regime fechado. Além disso, nem toda ofensa ao princípio da proporcionalidade
implica violação à Constituição, necessariamente.
Mas, como vimos, semelhante discussão restou grandemente superada com a
recente decisão do STF (HC 82.959) que declarou a inconstitucionalidade da proi
bição de progressão de regime nos crimes hediondos previstos na Lei nB 8.072/90.
Como regra, a execução penal só deverá ter lugar após transitar em julgado a
sentença condenatória, sob pena de violação ao princípio da presunção legal de
inocência (CF, art. 5Q, LVII; LEP, art. 105; CPP, art. 675), vale dizer, só depois de
exauridos todos os recursos legalmente admitidos é lícito fazer expedir mandado de
prisão contra o réu para cumprimento da pena imposta, vindo ele a gozar eventual
mente dos direitos inerentes à execução, como a progressão de regime,89 livramen
to condicional, remição da pena, indulto etc., sempre que tiver atendidos os requi
sitos legais para tanto.
A doutrina e a jurisprudência têm admitido, porém, a execução provisória em
favor do condenado preso provisoriamente (prisão em flagrante, prisão preventiva
etc.), sempre que houver trânsito em julgado para a acusação, mas pender ainda de
julgamento recurso da defesa,90 admissão absolutamente legítima, uma vez que em
nada ofende o princípio em causa, instituído que é histórica e constitucionalmente
em favor do indivíduo. Assim, se o réu, condenado à pena de seis anos de prisão, já
se achar preso há três anos, não seria justo que, tendo a sentença passado em julgado
para o Ministério Público, que se conformara com a decisão por lhe parecer razoável,
fosse prejudicado pela demora na apreciação de recurso que ele mesmo interpôs e lhe
fosse negado, por exemplo, o direito ao livramento condicional, embora já tivesse
cumprido mais de metade da pena, quando lhe bastava cumprir mais de um terço.
Ademais, havendo exclusivamente recurso da defesa, não há a possibilidade legal de
reforma da decisão em seu desfavor (reform atio in pejus). Não seria razoável, enfim,
89 Nesse sentido a Súmula 716 do STF dispõe que “admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena
ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sen
tença condenatória”. Para esse fim, é irrelevante a circunstância de o réu achar-se eventualmente em pri
são especial, conforme dispõe a Súmula 717 do STF: “não impede a progressão de regime de execução da
pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontra r em prisão especial”.
90 Nesse sentido, a Súmula 716 do STF: “admite-se a progressão de regime de cumprimento de pena ou a apli
cação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença con
denatória”. Também assim, a Súmula 717: “não impede a progressão de regime de execução de pena, fixa
da na sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial”.
D ireito Penal - P arte Geral
que o réu condenado provisoriamente não pudesse fazer jus a benefícios (livramen
to condicional etc.) que são reconhecidos ao condenado definitivo.
A jurisprudência tem ido inclusive além, para a admitir em prejuízo do réu
solto, quando pender de julgamento recurso especial ou extraordinário, por não
terem efeito suspensivo (Súmula 267 do STJ91).92 Assim, o réu que sempre esteve
em liberdade e ainda aguarde o julgamento de seu recurso especial (STJ) ou ex
traordinário (STF), que poderá considerá-lo inocente, pode ter contra si expedido
mandado de prisão provisório. Mas uma tal possibilidade - execução provisória
contra o réu que aguardava o julgamento em liberdade - ofende o princípio da pre
sunção legal de inocência, logo inconstitucional, por isso que estando livre o sen
tenciado a expedição de mandado de prisão deverá necessariamente aguardar o
trânsito em julgado da sentença condenatória, salvo se for justificável cautelarmen-
te, hipótese que reclama fundamentação expressa/idônea.
91 Dispõe a Súmula 267 do STJ: “a interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condena
tória não obsta a expedição de mandado de prisão”. No entanto, há precedente recente do próprio STJ,
contestando a referida súmula. Assim, Habeas Corpus n. 25.310, de 2-2-2005, da 6a Turma, rei. Min. Paulo
Medina, cuja ementa está assim redigida: “Penal e processo penal. Habeas Corpus. Condenação. Recurso
especial e extraordinário. Efeito suspensivo. Inexistência. Cumprimento provisório de pena restritiva de
direito. Ilegalidade. Inconstitucionalidade. Ordem concedida”. Também assim, precedente do STF: HC n.
84.741/RS, 3a Turma, rei. Min. Sepúlveda Pertence, j. 7-12-2004, m. v., DJU, 18-2-2005, p. 29, n. 412.
92 Recentem ente o STF, no HC N* 91.232-0/PE, Relator MINISTRO EROS GRAU decidiu:
“HC. Inconstitucionalidade da chamada “execução antecipada da pena. Art. 5e, LVÍ1, da Constituição do
Brasil.
1. O art. 637 do CPP estabelece que “o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arra-
zoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execução da
sentença.” A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em
julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5°, inciso LVII,
que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”
2. Daí a conclusão de que os preceitos veiculados pela Lei ns 7210/84, além de adequados à ordem consti
tucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP.
3. Disso resulta que a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a
título cautelar.
4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restritivo. Engloba todas as fases processuais, inclu
sive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recur
so de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pre
tensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão.
5. A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas pode
ria ser justificada em nome da conveniência dos magistrados - não do processo penal. A prestigiar-se o
princípio constitucional, dizem, os tribunais (leia-se STJ e STF) serão inundados por recursos especiais e
extraordinários, e subsequentes agravos e embargos, além do que “ninguém mais será preso”. Eis o que
poderia ser apontado como incitação à “jurisprudência defensiva", que, no extremo, reduz a amplitude ou
mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a m elhor operacionalidade de funcionamento do
STF não pode ser lograda a esse preço.
6. Nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se
transformarem em objetos processuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação
constitucional da sua dignidade. É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejam consideradas, em
quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar plena
mente quando transitada em julgado a condenação de cada qual.
Ordem concedida.
Paulo Queiroz
93 No sentido do texto, Sídio Rosa de Mesquita Júnior, Execução criminal, São Paulo, Atlas, 2005.
D ireito Penal - P arte G eral
XII. Detração
1. Conceito e cabimento
2. Conexão processual
tença” (art. 5e, LXXV).97 E certamente a detração é a forma mais adequada e pron
ta de se lhe atenuar, ao menos em parte, o ilegal constrangimento.
Por isso que a detração deve ocorrer em qualquer hipótese, pouco importan
do se há ou não conexão processual, se houve absolvição ou se sua admissão impli
ca estabelecer uma conta corrente com o sentenciado.
97 Recentemente decidiu o STF de modo contrário: HC 93979/RS. Rei. Min. Carmen Lúcia, 22.04.2008.
Paulo Queiroz
98 Art. 36, § 1», do CP - O condenado deverá, fora do estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, freqüen
tar curso ou exercer outra atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos
dias de folga”. Art. 83, III: O juiz poderá conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa
de liberdade igual ou superior a 2 (dois) anos, desde que (...) III - comprovado comportamento satisfatório
durante a execução da pena, bom desempenho no trabalho que lhe foi atribuído e aptidão para prover à
própria subsistência mediante trabalho honesto. Art. 1 1 4 ,1, da LEP: Somente poderá ingressar no regime
aberto o condenado que: I - estiver trabalhando ou comprovar a possibilidade de fazê-lo imediatamente.
99 Nesse sentido, Luiz Antônui Bogo Chies. Prisão - Tempo, Trabalho e Remição: Reflexões Motivadas pela
Inconstitucionalidade do Artigo 127 da LEP. Crítica à execução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
100 Nesse sentido, Alexandre Wunderlich. Muito além do bem e do mal: Considerações sobre a Execução
Penal Antecipada. Critica à execução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
101 Andrei Schmidt. A crise da legalidade na execução penal. Crítica à execução penal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2002 p. 66.
102 Andrei Schmidt, idem, p. 64-65.
D ireito P en al - Parte G eral
consumado com redução de 1/3 a 2/3 (CP, art. 14, II), o mesmo deve ocorrer rela
tivamente às faltas disciplinares.
Também não é infreqüente ocorrer de o condenado que praticou falta grave
sofrer a incidência de múltiplas punições disciplinares indiretas, como, por exem
plo, após decretada a regressão de regime, ser-lhe negado o direito a livramento con
dicional e, sucessivamente, pela mesma falta, o direito a indulto, comutação de pena,
perda dos dias remidos etc., em flagrante bis in idem , ofensivo à Constituição, pois,
a se tomar a sério os princípios constitucionais, uma única pena disciplinar deverá
ser-lhe aplicada. O mesmo ocorre quando se nega ao condenado o direito ao livra
mento condicional em virtude de possuir maus antecedentes, os quais já foram
tomados em conta na sentença penal condenatória, razão pela qual considerá-los
novamente, na fase de execução, constitui dupla valoraçâo da mesma circunstância.
Exemplo de violação ao princípio da pessoalidade reside no dever do preso de
se opor a movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou
à disciplina, situação em que a lei está a lhe imputar um insólito dever de garante,
como se autoridade fosse e pudesse ele agir sem riscos pessoais, hipótese em que o
condenado acaba por responder por ato de exclusiva responsabilidade de terceiro.
Ademais, e conforme assinala Andrei Schmidt, ao estabelecer um dever de “condu
ta oposta”, está o legislador, a bem da verdade, proibindo a própria inércia do preso
em relação a desvios verificados no estabelecimento prisional, ao mesmo tempo em
que o simples fato de não estar ele participando do movimento de “subversão à
ordem e à disciplina” já constitui um seu mérito. l°3
Por fim, todos os deveres previstos no art. 39 da LEP que não impliquem lesão
concreta a bem jurídico alheio (v. g., higiene pessoal) são de todo ilegítimos, uma
vez que dizem respeito exclusivamente à pessoa do próprio condenado.
XIV. Remição
Pelo instituto da remição (LEP, arts. 126 a 129), aplicável a todos os crimes,
hediondos inclusive, o condenado que cumpre pena em regime fechado ou semi-
aberto tem direito a remir (abater, resgatar) parte do tempo de execução da pena,
à razão de um dia de pena por três dias de trabalho (externo ou interno), sendo que
o preso impossibilitado por acidente de prosseguir na atividade continuará a bene
ficiar-se. Apesar de a lei se referir ao condenado, também o preso provisório que
exerça atividade laborativa (LEP, art. 31, parágrafo único; e CP, art. 2°, parágrafo
único) tem direito ao benefício. A remição é, portanto, uma forma de abreviar a
pena e facilitar a reinserção social do condenado, constituindo um direito seu.104
Mas não há abatimento do total da pena porque o tempo remido é em realidade
contado como de efetiva execução da pena privativa da liberdade.105
103 Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal, in Crítica à Execução Penal, Lumen Juris, Rio, 2002, p. 287.
104 Gamil Fõppel, Remição versus fuga, Boletim do IBCCrim, ano 9, n. 102.
105 Mirabete, Execução penal, São Paulo: Atlas, 2000, p. 426.
Paulo Queiroz
1. Significado e justificação
106 Nesse sentido, Mirabete, Rogério Greco e Fernando Galvão; em sentido contrário, Cezar Bitencourt.
107 Gamil FÕppel, Remição..., Boletim, cit. Em sentido contrário, Mirabete, Execução penal, cit., p. 437.
108 Nesse sentido, Alberto Silva Franco. Crimes Hediondos, cit.
109 Carlos Vico Manas e outros, apud Alberto Silva Franco, idem.
D ireito Penal - Parte Geral
da liberdade não poderá ser superior a trinta anos,110 devendo, na hipótese de con
denação a penas privativas da liberdade cuja soma exceda a esse limite, proceder-
se à unificação para atendê-lo (§ l s).
De acordo com a Exposição de Motivos d o Código Penal (item 61), a adoção
desse limite objetivou alimentar no condenado “a esperança de liberdade e a aceita
ção da disciplina, pressupostos essenciais da eficácia do tratamento penal”. Mas em
realidade o legislador ao fazê-lo atende a uma exigência político-criminal, coerente
com a relatividade dos fins da pena e com o princípio da proporcionalidade, enten
dendo que toda pena que exceder a esse limite é absolutamente desnecessária e con
trária à idéia de prevenção geral e especial —subsidiárias - de futuros delitos.
Pode-se assim dizer que pena perpétua é toda pena que ultrapasse trinta anos.
Tratando-se de contravenção, a duração máxima da pena de prisão simples não
poderá ser superior a cinco anos (LCP, art. 10).
Mas isso não impede que eventualmente o condenado possa cumprir pena
superior a trinta anos, pois tal poderá acontecer desde que ele venha a cometer
novo crime durante a execução da pena, posteriormente à unificação.
Apesar de se referir à pena, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunida
de de decidir que o limite de trinta anos é também aplicável às medidas de segu
rança, contrariamente ao Código Penal, que prevê a indeterminação do prazo
máximo da sanção.
2. Alcance
Ainda hoje a doutrina e a jurisprudência divergem sobre se tal limite deve ser
vir de parâmetro para a concessão de “benefícios” legais, como o livramento con
dicional, o indulto, a progressão de regime, a remição etc. Para uns,111 deve ser
considerada a pena efetivamente aplicada; para outros, a pena unificada em trinta
anos. De acordo com a primeira posição, se o réu primário foi condenado a cento e
vinte anos, só poderia ter direito a livramento condicional depois de cumprir no
mínimo mais de quarenta anos, isto é, mais de um terço da pena. Já para a segunda
110 No sentido de que a pena de prisão não deve exceder a dez anos, Ferrajoli (D erecho y razón, cit.). Con
forme informa Saio de Carvalho, o limite máximo da pena de prisão na França, Bélgica, Suíça, Noruega,
Luxemburgo e Grécia é de vinte anos; Dinamarca e Islândia, dezesseis anos; Alemanha, Hungria e Polônia,
quinze anos; Finlândia, doze anos; Suécia, dez anos (Pena, cit., p. 208).
111 Nesse sentido, Damásio, Cezar Bitencourt, Rogério Greco, entre outros. No sentido contrário, dentre
outros, Mirabete, Delmanto, e Alberto Silva Franco et al., que escrevem textualmente: “Não há, assim,
cogitar de dois parâmetros autônomos: um para estabelecer o máximo de tempo de duração das penas pri
vativas de liberdade (pena unificada) e outro para o cálculo do prazo dos benefícios legais (total de penas
não unificadas). Se o intento do legislador fosse o de exclusivamente fixar o limite máximo de cumpri
mento das penas privativas da liberdade, constituiria um verdadeiro contra-senso unificar penas privati
vas da liberdade para um só fim e, ao mesmo tempo, manter uma dualidade de penas para os demais fins.
‘Unificar’, como observa Julio Fabbrini Mirabete, ‘quer dizer transformar várias penas em uma só”’
(Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, cit., v. 1, t. 1).
1 Paulo Queiroz
| ■'§
I *;•
posição, o sentenciado teria de cumprir mais de um terço de trinta anos, isto é, mais”
de dez anos.
O primeiro entendimento, embora ainda amplamente defendido e inclusive'
prestigiado pela Súmula 7151 12 do Supremo Tribunal Federal, é claramente antiga-
rantista e criticável por várias razões.
Em primeiro lugar, porque, a se considerar que, para efeito de livramento
condicional, por exemplo, seja tomado em conta o tempo de pena aplicado, estar-
se-ia submetendo o condenado a cumprir, pela via indireta, pena superior a trinta
anos, inclusive por ser o livramento condicional um modo legal de cumprimento
de pena. Enfim, sujeitar-se-á o réu a cumprir indiretamente o que é vedado pela via
direta, em afronta ao princípio da legalidade das penas.
Em segundo lugar, porque, ao contrário do que afirma Rogério Greco,U3 ao
adotar tal postura não se ofende o princípio da isonomia, pois ao estabelecer o limi
te máximo de trinta anos o legislador igualou todos que se encontrem nessa situa
ção, pouco importando se condenados a trinta, sessenta ou noventa anos, devendo
todos, sem exceção e indistintamente, cumprir tão-só o máximo de trinta anos;
razão pela qual o argumento em verdade se volta contra a própria previsão legal da
unificação em trinta anos.
Em terceiro lugar, porque a lei não faz qualquer ressalva no particular, de
sorte que, ao ser desprezado o limite de trinta anos, faz-se analogia in m alam par
tem, violando-se, também por esse motivo, o princípio da legalidade. Finalmente,
a prevalecer um tal entendimento, inviabilizar-se-ia a individualização na execu
ção da pena, visto que nenhuma utilidade teria, v. g„ o trabalho para efeito de
remição, tampouco a excelência do comportamento para efeito de progressão, rela
tivamente ao condenado à pena muito alta. O mesmo deve ser dito do livramento
condicional, pois a se exigir que o cálculo seja feito com base na pena aplicada fica
rá impossibilitada a sua concessão em muitos casos. A solução, aliás, é de tal modo
absurda que, se sentenciado a cento e vinte anos, o condenado teria de cumprir, na
melhor das hipóteses, tempo superior à pena unificada (quarenta anos).
Releva notar, finalmente, que, com a recente decisão do STF declarando a
inconstitucionalidade da não progressão em crimes hediondos, é possível que a
Súmula 715 venha a ser questionada e eventualmente revista, já que em muitos
casos sua adoção acaba por impedir a progressão, o livramento condicional etc.
112 Diz a Súmula 715 o seguinte: “a pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento,
determinado pelo art. 75 do Código Penal, não é considera da para a concessão de outros benefícios, como
o livramento condicional ou regime mais favorável de execução”.
113 Curso, cit., p. 689. Assinala este autor, textualmente: "A nosso ver, entendemos que a razão se encontra
com a nossa Corte Maior. (...) se adotássemos a unificação como regra geral para todos os cálculos, além
de ser o teto máximo de cumprimento da pena, estaríamos ofendendo o princípio da isonomia, que deter
mina, simplificadamente, que os iguais sejam tratados igualmente, bem como que os desiguais tenham tra
tamento desigual. Não podemos comparar aquele condenado a duzentos e cinqüenta anos de reclusão com
aquele que praticou um número bem menor de crimes e fora condenado a trinta anos".
D ireito Penal - P arte Gera)
1. Introdução
116 De modo diverso, Cezar Bitencourt, Código Penal comentado , cit., p. 168.
117 Nesse sentido, Mirabete, cit.
118 Penas e medidas alternativas à prisão, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 115. Em sentido contra
rio, Cezar Bitencourt, Código Penal comentado, cit., p. 169.
119 No sentido do texto, entre outros, Luiz Flávio Gomes, Penas e medidas alternativas, cit.; Damásio de Jesus,
Penas alternativas, São Paulo: Saraiva, 1999; Cezar Bitencourt, Código Penal comentado, cit.; Guilherme
de Souza Nucci, Código Penal comentado , cit.
120 Nesse sentido, de entender inadmissível a substituição, Mirabete, Manual, cit., 2001, p. 278.
D ireito Penal - Parte Geral
121 HC 84.928-8/Minas Gerais, rei. Min. Cezar Peluso, I a Turma, v. de 27-9-2005, que tem a seguinte em en
ta: “SENTENÇA PENAL. Condenação. Tráfico de entorpecente. Crime hediondo. Pena privativa de liber
dade. Substituição por restritiva de direitos. Admissibilidade. Previsão legal de cumprimento em regime
integralmente fechado. Irrelevância. Distinção entre aplicação e cumprimento de pena. HC deferido para
restabelecimento da sentença de primeiro grau. Interpretação dos arts. 12 e 44 do CP, e das Leis ncs
6.368/76; 8.072/90 e 9.714/98. Precedentes. A previsão legal de regime integralmente fechado, em caso de
crime hediondo, para cumprimento de pena privativa da liberdade, não impede seja esta substituída por
restritiva de direitos”.
Paulo Queiroz
122 Sídio Rosa de Mesquita Júnior entende, no entanto, que a lei não proíbe a substituição, mas a conversão,
a cargo do juiz da execução. Textualmente: “a Lei ne 11.343/2006 não proíbe a substituição da pena priva
tiva de liberdade por restritiva de direito. Por isso, ela só se volta ao juiz da Execução, não atingindo o Juiz
criminal, Este, no momento da sentença, não encontrará obstáculo legal ao impor a norma de conteúdo
material, isso em face do aspecto garantista da norma criminal”. Comentários à lei antidrogas. S. Paulo:
Atlas, 2007, p. 79. Parece evidente, porém, que o legislador utilizou a expressão conversão no sentido de
substituição.
D ireito P en al - Parte G eral
Mas isso não impede que o juiz, senhor que é da individualização da pena, de
dar à nova lei interpretação conforme a Constituição, tomando como parâmetro a
legislação infraconstitucional inclusive, especialmente o Código Penal.
Com efeito, não parece razoável que sentenciados por crimes de tráfico e simi
lar não tenham direito à substituição, enquanto outros condenados por delitos tão
ou mais graves (v. g., peculato, concussão, corrupção passiva, crime contra o siste
ma financeiro) possam fazer jus ao benefício. Note-se, aliás, que o condenado por
este e outros crimes (de dano, e não de simples perigo, como é o tráfico), a exem
plo do homicídio culposo, tem em tese direito à substituição, apesar de se tratar de
crime contra a vida, e, pois, mais grave, desde que a pena não seja superior a qua
tro anos, diversamente do condenado por tráfico à mesma pena ou à pena inferior
a quatro anos, que não faria jus ao beneficio. Ora, é evidente que semelhante tra
tamento ofende o princípio da isonomia, sobretudo porque o critério de aferição da
maior gravidade do crime (desvalor de ação e resultado) e, portanto, da condena
ção, é essencialmente formal: objetivamente, a pena cominada ou imposta; subjeti
vamente, a existência ou não de antecedentes.
Logo, não faz sentido, por exemplo, que duas pessoas, igualmente primárias e
sem antecedentes, que cometam crime sem violência ou grave ameaça à pessoa,
sofram a mesma pena (digamos, dois anos de prisão), mas tenham tratamento sen
sivelmente desigual: uma fará jus à substituição, e a outra não, só por ser tráfico de
droga o seu crime e, pois, existir vedação legal no particular. Note-se que o crime
do beneficiado pela substituição poderá ser eventualmente hediondo inclusive (v. g.,
falsificação de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais), a demonstrar,
ainda mais contundentemente, a violação ao sistema de valores e princípios cons
titucionais.
Portanto, não parece justo ou razoável, nem conforme os princípios de pro
porcionalidade, individualização da pena e isonomia, que o juiz, ao condenar o réu
por crime de tráfico à pena não superior a quatro anos, não possa substituí-la em
virtude da só vedação legal, mesmo porque a missão do juiz já não é mais, como no
velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu signifi
cado, mas sujeição à lei enquanto válida, isto é, coerente com a Constituição
(Ferrajoli). O juiz não é a boca que pronuncia as palavras da lei, como pretendeu
Montesquieu.
Parece-nos enfim que, apesar da vedação legal do art. 44 e 33, § 4S, final, ao
juiz é dado substituir, fundamentadamente, a pena de prisão por pena restritiva de
direito, desde que as circunstâncias judiciais sejam favoráveis ao réu e a substitui
ção seja socialmente recomendável, nos termos da lei e do Código Penal (art. 44),
por ser a legislação penal fundamental.
O mesmo deve ser dito, mutatis mutandis, de outras legislações que prevêem
vedações semelhantes.
Paulo Queiroz
ter cumprido quatro meses de uma pena de dez meses o sentenciado precisará cum
prir o restante apenas: seis meses.
Desnecessário dizer que qualquer período de pena eventualmente cumprido
deverá ser deduzido no caso de conversão, mas, na melhor das hipóteses, o réu terá
de cumprir no mínimo trinta dias de prisão, ainda que faltassem apenas alguns dias
para o integral cumprimento da pena restritiva. E que a lei prevê expressamente
que no cálculo da pena a ser deduzida deverá ser “respeitado o saldo mínimo de 30
(tinta dias) de detenção ou reclusão”. Parece evidente, porém, que essa ressalva,
que visaria desestimular o descumprimento injustificado nos últimos dias da subs
tituição,126 constitui manifesto bis in idem , já que o sentenciado terá de cumprir
pena além da que efetivamente restava.
semanais e será realizado aos sábados, domingos e feriados ou mesmo em dias úteis,
desde que compatíveis com a jornada normal de trabalho.
Como o Código não diz com precisão quais os serviços que podem e devem ser
prestados, o juiz tem grande margem de discricionariedade para determiná-los.
Para tanto, em respeito ao princípio da humanidade das penas, não poderão ser
atribuídas atividades vexatórias, humilhantes, cruéis, degradantes ou de qualquer
modo lesivas à dignidade da pessoa humana (CF, arts. l s, III, e 5Q, XLVII).
Finalmente, é possível o cumprimento da pena superior a um ano em tempo
menor (art. 46, § 4e), mas nunca inferior à metade da quantidade da pena substituí
da, de modo que réu condenado a dois anos de prisão poderá prestar serviços
durante um ano. Semelhante possibilidade atende ao Enunciado 11.2 das Regras de
Tóquio: “deve ser prevista a interrupção antecipada da medida, caso o delinqüente
tenha reagido favoravelmente a ela”.
Apesar de aplicada pelo juiz quando da prolação da sentença penal condena
tória, competirá ao juiz da execução: a) designar a entidade credenciada para a
prestação do serviço; b) determinar a intimação do condenado quanto à entidade,
dias e horário em que deverá cumprir a pena; c) alterar a execução da pena, a fim
de ajustar às modificações ocorridas na jornada de trabalho (LEP, art. 149, § 2e).
das atividades educativas. Na prática, tal pena tem-se revelado um grande fracasso,
porque poucos foram os Estados que se dignaram a criar as tais casas de albergado,
impossibilitando a sua execução grandemente.
Compete ao juiz da execução determinar a intimação do condenado, infor-
mando-o do local, dias e horário em que deverá cumprir a pena, que terá início
a partir da data do primeiro comparecimento (LEP, art. 151), devendo o estabe
lecimento designado encaminhar relatório mensal sobre o cumprimento da pena
(art. 153).
135 No mesmo sentido, Régis Prado, Curso, cit., p. 485. Contrariamente, Luiz Flávio Gomes, Penas e medidas
alternativas, cit.
Paulo Queiroz
Ainda que não haja previsão legal expressa, isolada, alternativa ou cumulati
vamente, o juiz também poderá substituir a pena de prisão por pena de multa sem
pre que a condenação for igual ou inferior a l(um) ano; se superior a 1 (um) ano, a
pena privativa da liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direito
e multa ou por duas restritivas de direito (CP, art. 44, § 2Q). Aqui a pena de multa
seguirá os princípios e regras que lhe são próprios, dos quais se tratará a seguir. O
art. 60, § 2S, está revogado.
1. Significado e crítica
140 Dispõe o art. 20, textualmente: “Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do
Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da
União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou
inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais). (Redação dada pela Lei n. 11.033, de 2004)".
141 D erecho y râzón , cit., p. 416.
Paulo Queiroz
142 Como assinala Ferrajoli, se quisermos ser coerentes com um modelo de direito penal mínimo, que proíba
unicamente infrações graves, nenhuma pena pecuniária pode ser considerada suficiente para sancioná-las
de modo adequado, mesmo porque, ao sancionar condutas irrelevantes jurídico-penalmente, tal pena só
contribui para a inflação penal (D erecho y razón, cit., p. 417).
143 Ferrajoli, Derecho penal, cit., p. 417.
144 Derecho penal, cit., p. 417. Em sentido similar, André Copetti, Direito penal, cit.
145 No sentido do texto, Rogério Greco, Direito Penal, cit.
D ireito P en al - Parte G eral
A multa deverá ser paga dentro de dez dias depois de transitada em julgado a sen
tença, podendo o pagamento ser parcelado, a requerimento do condenado (art. 50).
Se não houver pagamento da multa, não poderá, como no passado, ser conver
tida em pena privativa da liberdade, mesmo porque isso importaria prisão por dívi
da (CF, art. 5Q, LXVII). Nesse caso, a multa será convertida em dívida de valor, apli-
cando-se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública
(atualmente, Lei ne 6.830/80), inclusive no que concerne às causas interruptivas e
suspensivas da prescrição. Por isso que a execução da pena de multa convertida em
dívida de valor competirá não ao Ministério Público, mas à Fazenda Pública, esta
dual ou federal (a depender de qual órgão jurisdicional provenha a sentença), e o
respectivo processo deve ser encaminhado às varas especializadas da Fazenda
Pública, não mais às varas de execução penal.146147
1. Conceito e pressupostos
O Direito Penal responde às infrações de que cuida por meio de penas e medi
das de segurança. As penas, que constituem a resposta penal por excelência, estão
destinadas aos imputáveis, isto é, às pessoas com capacidade de discernimento e auto
determinação; com capacidade de culpabilidade, enfim. Já as medidas de segurança
destinam-se aos maiores de dezoito anos declarados inimputáveis por não serem
capazes de compreenderem o caráter ilícito do fato em virtude de doença mental ou
de desenvolvimento mental incompleto ou retardado (CP, art. 26, caput).148
146 Rômulo Moreira, Direito processual penal. Rio de faneiro: Forense, 2003, p. 109-116.
Í47 Em sentido contrário, Rogério Greco, cit.
148 O Código Penal de 1940 adotava o sistema duplo binário e, pois, admitia a aplicação de ambas as sanções;
a reforma de 1984 aboliu, no entanto, este sistema, adotando o vicariante, negando a possibilidade de apli
cação cumulativa ou sucessiva de pena e medida de segurança.
Paulo Queiroz
149 Em termos semelhantes, Paulo César Busato e Sandro Monte Huapaya. Introdução ao Dirito Penal.
Fundamentos para um Sistema Penal Democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
150 Questões fundamentais , cit., p. 145.
151 Figueiredo Dias, Questões fundamentais, cit., p. 155.
D ireito Penal - P arte G eral
do estrito) seria um castigo inútil. Mais: a distinção entre pena e medida de segu
rança é puramente formal; materialmente, a medida de segurança pode ser mais
lesiva à liberdade inclusive.
Além dos pressupostos ordinários de punibilidade, a aplicação da medida de
segurança exige a comprovação, mediante perícia, da perigosidade do agente, que
é presumida quando se tratar de inimputável (art. 26) e real, quando se tratar de
semi-imputável (art. 26, parágrafo único).
A perícia médica será realizada ao final do prazo mínimo fixado e deverá ser
repetida anualmente ou a qualquer tempo, se assim determinar o juiz da execução
(art. 97, § 2e).
Apesar de a lei prever a possibilidade de se poder aplicar a medida de seguran
ça também ao contraventor inimputável (LCP, art. 13), parece-nos que tal é, em prin
cípio, incompatível com o requisito da periculosidade necessária à sua aplicação.155
O mesmo pode ser dito quanto aos delitos culposos e de menor potencial ofensivo.
155 Haroldo Caetano defende que a nova parte geral (Lei nQ7.209/84) revogou o art. 13 da LCP, pois ela só
refere a aplicação de medida de segurança para as infrações (crimes) punidas com reclusão e detenção,
motivo pelo qual estaria vedada nas contravenções, punidas que são com prisão simples (Execução Penal,
cit., p. 297). Ocorre, porém, que o CP só define crimes, os quais, de acordo com o seu conceito legal, são
punidos com reclusão ou detenção; não faria sentido, portanto, que também fizesse referência às contra
venções e à prisão simples, objeto que é de lei especial. Não há falar, assim, de violação ao princípio da
legalidade, ao menos com base em semelhante argumento. Além disso, em princípio a lei especial (LCP)
prevalece sobre a lei geral (CP) e não o contrário: lex specialis derogat legi generali.
156 Assim, Paulo Jacobina. Direito Penal da Loucura: Medidas de Segurança e Reforma Psiquiátrica. Boletim
dos Procuradores da República, n® 70, ano V I, maio/2006. O autor também defende a inconstitucionali
dade das medidas de segurança.
Paulo Queiroz
tratamento menos invasivos possíveis (arts. 45 e 2a, parágrafo único, VIII). Por isso
que, independentemente da gravidade da infração penal cometida, preferir-se-á o
tratamento menos lesivo à liberdade do paciente, razão pela qual, independente
mente da pena cominada (se reclusão ou detenção), o tratamento ambulatorial
(extra-hospitalar) passa a ser a regra, e o ambulatorial, a exceção, apesar de o Códi
go dispor em sentido diverso.157 Também por isso é vedada a internação de pacien
tes em instituições com características asilares (art. 4a, § 3e).
3. Revogação dos prazos mínimos da medida de segurança. Parece certo tam
bém que a fixação de prazos mínimos restou revogada, pois são incompatíveis com
o princípio da utilidade terapêutica do internamento (art. 4®, § 1°) ou com o prin
cípio da desintemação progressiva dos pacientes cronificados (art. 59). Além disso,
a presunção de periculosidade do inimputável e o seu tratamento em função do tipo
de delito que cometeu (se punido com reclusão ou detenção), baseado em prazos
fixos e rígidos, são incompatíveis com as normas sanitárias que visam à reinserção
social do paciente.158
4. Alta planejada e reabilitação psicossocial assistida. No caso de paciente há
longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave depen
dência institucional, decorrente de quadro clínico ou de ausência de suporte social,
será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assis
tida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente (art. 5e).
5. O paciente tem direito ao melhor tratamento do sistema de saúde, de acor
do com as suas necessidades, garantindo-se-lhe, entre outras coisas, livre acesso aos
meios de comunicação disponíveis (art. 2Q, parágrafo único).
2. Finalidade
As medidas de segurança, como sanção penal que são, têm, à semelhança das
penas, uma finalidade exclusivamente preventiva e sobretudo preventiva especial,
visto que por meio delas pretende-se evitar que o inimputável que tenha cometido
um injusto penal volte a repeti-lo.159 Sua finalidade principal é evitar a reincidên
cia, portanto.
Secundariamente, as medidas de segurança têm uma finalidade de prevenção
geral negativa, no sentido de prevenir reações públicas ou privadas arbitrárias con
tra o inimputável, haja vista que por meio delas não apenas se previnem atos de
vingança por parte de particulares (v. g., “linchamento” do inimputável que tenha
cometido homicídio), como também se evitam reações abusivas do próprio Estado,
que poderia, por exemplo, por meio de uma intervenção puramente “administrati
157 No sentido do texto, Haroldo Caetano. Execução Penal. Porto Alegre: Magister editora, 2006, p. 295.
158 No sentido do texto, Paulo Jacobina, cit.
159 No mesmo sentido, Roxin, para quem pena e medida de segurança não se diferenciam quanto ao fim, mas
quanto à limitação, exclusivamente (D erecho penal, cit., p. 105).
D ireito Penal - Parte G era!
160 Em sentido contrário, entendendo que a medida de segurança tem finalidade preventiva geral positiva,
Figueiredo Dias ( Questões fundamentais , cit.) e Eduardo Reale Ferrari ( M edidas de segurança e direito
penal no Estado Democrático de Direito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001). No sentido, porém, de
entender que nenhuma teoria é capaz de justificar, suficientemente, as medidas de segurança, as quais pre
tenderiam “legitimar o ilegitimável”, Gamil Fbppel (A função da pen a, cit.).
161 D erecho penal, cit., p. 811.
162 Assim, o Código espanhol (art. 101) prevê que o internamento não poderá exceder ao tempo que de pena
que seria cabível se fosse imputável o sujeito, devendo o juiz ou tribunal fixar na sentença esse limite
máximo.
Paulo Queiroz
396
Mas uma tal indeterminação do prazo máximo é francamente inconstitucio
nal, visto ofender os princípios da proporcionalidade, da não-perpetuação da pena
e da igualdade. Com efeito, não é razoável, por exemplo, que alguém que respon
da por lesão corporal leve (CP, art. 129, caput), cuja pena máxima é um ano de
detenção, possa ficar sujeito à medida de segurança superior a esse prazo, indefini
da ou desproporcionalmente. Também se viola o princípio da não-perpetuação das
penas, haja vista que, embora as medidas de segurança não sejam penas em sentido
estrito (formalmente), não se pode ignorar que constituem um gravíssimo cons
trangimento à liberdade de quem as suporta. Por último, ao fixar penas determina
das, apesar de eventualmente persistir a periculosidade do réu imputável, e mesmo
a probabilidade de reincidência, o Código, ao dispor diferentemente quanto às
medidas de segurança, fere o princípio da igualdade, pois dispensa ao réü inimpu
tável tratamento injustificadamente diferenciado: os imputáveis perigosos e não
perigosos, ao final da pena, serão postos em liberdade; os inimputáveis, ao contrá
rio, e a pretexto de não ter cessado a perigosidade, permanecerão em tratamento
indefinidamente, privados da liberdade, não raro.
No particular, tem razão Ferrajoli quando assinala que a duração indetermi
nada das medidas de segurança traduz uma espécie de segregação da vida dos inter
nados em hospitais psiquiátricos, cárceres-hospitais ou hospitais-cárceres, por cujo
meio se consuma uma dupla violência institucional - cárcere e manicômio.163
Por todas essas razões, e em nome dos princípios de igualdade e proporciona
lidade e não perpetuação das penas, as medidas de segurança não podem, nem
devem, exceder ao tempo de pena que seria cabível na mesma hipótese, sendo
mesmo recomendável que o juiz proceda à individualização da pena, substituindo-
a a seguir pela medida de segurança pelo mesmo prazo, conforme tem decidido o
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Cumpre dizer ainda que tais ponderações são também aplicáveis ao tempo
mínimo da medida de segurança, e não só ao tempo máximo, porque não faz sen
tido, por exemplo, que o agente inimputável que tenha cometido um crime (ou
contravenção) punido com pena de seis meses de prisão tenha fixada a duração da
medida em um ano (prazo mínimo).
No caso de superveniência de alienação mental no curso da execução de pena
(CP, art. 41; LEP, art. 183), o réu será tratado em local apropriado e, se recuperar a
saúde mental, voltará a cumprir a pena regularmente. No entanto, se não o recu
perar, a pena será substituída por medida de segurança pelo tempo de pena que res
tava por cumprir. E que, a não ser assim, estar-se-ia a violar o princípio da legali
dade da pena, já que o réu fora condenado a uma pena por tempo determinado,
bem como o princípio da intangibilidade da coisa julgada, visto que se estaria a
modificá-la em prejuízo do réu, que foi julgado e condenado a uma pena certa e por
tempo determinado.
Cumpre notar, finalmente, que há precedente do STF no sentido de que o
prazo máximo da medida de segurança não poderá exceder ao limite de trinta
anos.164
164 HC ne 84219/SP, l 8 Turma, Rei. Ministro Marco Aurélio, julgado em 16/08/2005, publicado no DJ em
23/09/2005, p. 16.
165 Conforme Damásio de Jesus, Direito p en a l v. 1 São Paulo, Saraiva, 2003, p. 545. Idem, Flávio Augusto
Monteiro de Barros, para quem “a ausência de culpabilidade não impede a aplicação da medida de segu
rança, pois o juízo de culpabilidade é substituído pelo de periculosidade. Poder-se-ia obtemperar que esse
tratamento díspar viola o princípio da isonomia. Ledo engano, pois a ausência de imputabilidade tom a
inadmissível o questionamento da culpabilidade”, Direito pen al - parte geral, v. 1 São Paulo, Saraiva,
2003, p. 479. De modo similar, Cezar Roberto Bitencourt, Tratado d e direito penal, São Paulo, Saraiva,
2004, p. 681. A despeito disso, Cezar Bitencourt reconhece que a medida de segurança pressupõe “práti
ca de fato típico punível”, pois “é indispensável que o sujeito tenha praticado um ilícito típico. Assim, dei
xará de existir esse primeiro requisito se houver, por exemplo, excludentes de criminalidade, excludente
de culpabilidade (erro de proibição invencível, coação moral irresistível e obediência a ordem hierárqui
ca, embriaguez completa fortuita ou por força maior) - com exceção da inimputabilidade ou ainda se
não houver prova do crime ou da autoria etc. Resumindo: a presença de excludentes de criminalidade ou
de culpabilidade e a ausência de prova impedem a aplicação de medida de segurança” (p. 682).
166 Damásio, cit., p. 545.
Paulo Queiroz
167 Como assinala Fragoso, a propósito (ainda) da medida de segurança aplicável ao imputável, “pena e medi
da de segurança têm o mesmo fundamento. Ambos servem à proteção de bens jurídicos e se destinam a
prevenir a prática de crimes. Na execução, ambas tendem à reintrodução do agente na sociedade, sem que
venha a cometer novos crimes. É certo que a pena, em sua natureza jurídica, é, em essência, retributiva,
porque é perda de bens jurídicos imposta ao transgressor. Mas a medida de segurança detentiva para impu-
táveis, que o condenado recebe e sofre como uma pena, também é perda de bens jurídicos, tendo nature
za aflitiva, por vezes, mais grave do que a pena”, Lições de direito pen al Rio de Janeiro, Forense, 1994, p.
387. Também no sentido de que a medida de segurança persegue fins de prevenção geral (positiva) e espe
cial, Figueiredo Dias, Questões fundamentais do direito penal revisitadas, São Paulo, Revista dos
Tribunais, 1999. Para uma crítica à prevenção (geral ou especial), no que toca à medidas de segurança,
Gamil Fõppel, A função da pena na visão de Claus Roxin , Rio de Janeiro, Forense, 2004.
D ireito Penal - Parte G eral
ser minimamente aflitivas para o criminoso inimputável, pois encerram dupla vio
lência: hospital e cárcere.
Cumpre notar ainda que, se, analiticamente, crime é, conforme a perspectiva
aqui adotada, fato típico, ilícito e culpável, segue-se que, faltando a culpabilidade,
em razão de o réu se achar numa situação de exclusão da culpabilidade, faltará o
crime, motivo pelo qual também por essa razão não se justificaria a aplicação de
uma medida de segurança.
Assim, diferença ontológica nenhuma há entre penas e medidas de seguran
ça, pois ambas perseguem os mesmos fins e reclamam o concurso de idênticos pres
supostos de punibilidade: fato típico, ilícito, culpável e punível. A distinção reside,
portanto, unicamente nas conseqüências: os imputáveis estão sujeitos à pena; os
inimputáveis, à medida de segurança, atendendo-se a critério de pura conveniên
cia político-criminal ou de adequação. Mais: as medidas de segurança requerem
ainda o requisito da periculosidade por parte do agente. Desnecessário dizer que
todas as garantias processuais (contraditório, ampla defesa, devido processo legal
etc.) militam em favor do inimputável.
Não sem razão o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sendo relator
Amilton Bueno de Carvalho, tem, nos casos de inimputabilidade, procedido (inicial
mente) à individualização da pena, como se o réu fosse imputável, para só em segui
da a substituir pela medida de segurança cujo prazo máximo é aquele da pena fixa
da, sem prejuízo de ser liberado antes, quando verificada a cessação da periculosida
de, estabelecendo, ainda, o limite máximo de um ano para a sua averiguação.168
400;
no Código de Processo Penal inclusive (CPP, art. 386, V), entendem que a decisão
é absolutória imprópria, sob o argumento de que a medida de segurança não é pena
e nem pressupõe culpabilidade. A tese minoritária seria em princípio mais correta,
segundo pensamos.169 Primeiro, porque, conforme já assinalamos, a imposição de
medida de segurança requer o concurso de todos os pressupostos da condenação
(fato típico, ilícito e culpável); segundo, porque na prática constitui uma interven
ção jurídico-penal por vezes bem mais séria e lesiva à liberdade de quem a sofre do
que a própria pena; terceiro, porque a não admissão do caráter condenatório da
sentença lhe é de todo desfavorável, inclusive para efeito de prescrição. Final
mente, a sentença penal constitui um título executório que permitirá ao Estado
executar coativãmente a medida curativa, restringindo a liberdade do indivíduo na
forma da Lei n? 7.210/84.
Apesar disso, temos que a natureza da sentença concessiva da medida de segu
rança tem caráter misto: a um tempo condenatório e absolutório. A sentença é
absolutória porque não impõe a aplicação de pena em sentido estrito (formal), mas
medida de segurança (internação ou tratamento), além de ser assim tratada legal
mente (CPP, art. 386, V, e parágrafo único, III), não gerando reincidência etc.; é
condenatória por exigir todos os pressupostos jurídico-penais da condenação
(crime punível) etc.
5. Espécies
169 Nesse sentido, José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal. Vol. III. Campinas:
Bookseller, 1997. p. p. 42-43; Eduardo Reale Ferrari, Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado
Democrático de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 210; e Antônio Rodrigues Porto,
Prescrição Penal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 95, entre outros.
170 SMANIOTO, Edson Alfredo Martins. Da Medida de Segurança. Revista Brasileira de Ciências Criminais,
n. 06. 2001.
D ireito Penal - Parte G eral
6. Extinção
prir. É que, a não ser assim, estar-se-ia a violar o princípio da legalidade da pena, já
que o réu foi condenado a uma pena por tempo determinado, bem como o princípio
da intangibilidade da coisa julgada, visto que se estaria a modificá-la em prejuízo do
réu, que foi julgado e condenado a uma pena certa e por tempo determinado.
173 Sobre o assunto, Alberto Silva Franco, Crimes hediondos , São Paulo, Revista dos Tribunais, 2005.
D ire ito Penal - Parte Geral
404
Se eventualmente o condenado estiver respondendo a outro processo por
crime ou contravenção praticado antes ou durante o sursis, o juiz não poderá decre
tar a revogação, em razão do princípio da presunção de inocência. Apesar disso, o
prazo da suspensão ficará prorrogado até o julgamento definitivo do processo que
ensejar a prorrogação (CP, art. 81, § 2S).
Cumpridas regularmente as condições da suspensão, a pena será extinta.
1. Conceito e requisitos
176 C ezar B iten cou rt, Código Penal comentado, cit., p. 279.
Paulo Queiroz
Para tanto, parece-nos que não há necessidade de que os crimes sejam idênti
cos (dois estupros qualificados, dois latrocínios); é suficiente que ambos os delitos
sejam hediondos ou equiparados (v. g ., um latrocínio e um homicídio qualificado).
Mas o assunto é controvertido. Alberto Silva Franco entende que só se pode falar
de reincidência específica em crime hediondo quando houver reincidência no
mesmo tipo penal hediondo (v. g., dois latrocínios) ou ao menos entre tipos seme
lhantes (v. g., latrocínio e extorsão qualificada pela morte), pois fora dessas hipóte
ses não existirá a alegada reincidência específica e, portanto, em tese é cabível a
concessão do livramento.177
Naturalmente que se um dos crimes tiver sido praticado antes da entrada em
vigor da lei que o equiparou à condição de hediondo (Lei nQ8.072/90), não haverá
reincidência específica, pois do contrário a lei retroagiria em prejuízo do réu, vio
lando-se os princípios da legalidade e irretroatividade. Assim, por exemplo, se o
agente for condenado por dois crimes de homicídio qualificado, mas um deles tiver
sido cometido antes da vigência da Lei ns 8.930/94, que incluiu esse crime no rol dos
previstos como hediondos, poderá fazer jus ao livramento após o cumprimento de
mais de dois terços da pena em relação ao crime hediondo e mais de um terço, quan
to ao crime não hediondo, se primário; ou mais de metade, se já era reincidente.
177 Crimes hediondos, cit., p. 200/201. No m esm o sentido, Rogério G reco, cit.
P a u lo Q u e ir o z
Há quem entenda que tal exigência não é aplicável ao roubo impróprio (CP,
art. 157) nem ao homicídio com emprego de veneno, ao argumento de que em
ambos os casos não haveria emprego de violência.178
2. Revogação do livramento
YT~
2.2. Revogação facultativa
179 Art. 141 da LEP: se a revogação for motivada por infração penal anterior à vigência do livramento, com-
putar-se-á como tempo de cumprimento da pena o período de prova, sendo permitida, para a concessão
de novo livramento, a soma do tempo das duas penas; art. 142: no caso de revogação por outro motivo,
não se computará na pena o tempo em que esteve solto o liberado, e tampouco se concederá, em relação
à mesma pena, novo livramento.
Paulo Queiroz
410
condições do livramento, não raro longos e árduos anos de cumprimento, acaban
do por conduzir o condenado a cumprir a mesma pena uma segunda vez.
3. Extinção da pena
180 Sobre o assunto, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal, cit., e Aury Lopes Júnior, Direito Processual
e sua conformidade constitucional. Rio: Lum en Juris, 2008.
Ji
D ire ito Penal - Parte G eral
dual. No segundo caso, cuja petição recebe o nome técnico de queixa, a legitimida
de para deflagrar a ação toca ao próprio ofendido ou ao seu representante legal.
E também possível na hipótese de cabimento de ação pública, diante da inér
cia do titular da ação, a propositura de ação privada subsidiária, a qual é admitida
com a finalidade de suprir a omissão injustificada do Ministério Público (CF, art.
5°, LIX; CP, art. 100, § 3®).
mente que, à falta de tais elementos de prova que amparem a acusação, deverá pro
por o arquivamento do procedimento (inquérito, representação etc.) ou requerer
novas diligências quando necessário. Caber-lhe-á também requerer a transação
penal quando se tratar de crime de menor potencial ofensivo (pena máxima não
superior a dois anos de prisão) ou a suspensão condicional do processo nos crimes
de médio potencial ofensivo (pena mínima não superior a um ano), nos casos em
que couber (Lei ne 9.099/95).
Conseqüentemente, a ação penal é também indisponível, haja vista que o seu
titular não pode propor acordos, sugerir perdão etc., exceto nos casos legalmente
admitidos. Por igual, não poderá desistir da ação que tenha iniciado ou do recurso
que haja interposto.
Finalmente, a ação penal é indivisível, já que deve ser proposta contra todos
os autores conhecidos, não se lhe permitindo escolher uns em prejuízo de outros,
sempre que dispuser de prova da participação de todos. Mas a indivisibilidade da
ação penal pública é controvertida, havendo precedentes, do STF inclusive, admi
tindo a sua divisibilidade.18!
181 Sobre o tema, Humberto Fernandes. Princípios constitucionais do processo penal brasileiro. Brasília:
Brasília Jurídica, 2006.
182 Admitindo a retratação da requisição, Delmanto, Código Penal comentado, cit.; contrariamente, Cezar
Bitencourt, Código Penal comentado, cit.
D ireito Penal - P arte Geral
A ação penal privada subsidiária (CF, art. 5S, LIX) tem por finalidade suprir
eventual inércia do titular da ação penal pública (Ministério Público), que, embo
ra dispondo de elementos de prova para oferecer denúncia, deixa de fazê-lo no
prazo legal (CP, art. 100, § 3B). Reconhece-se, assim, ao ofendido ou a quem o
represente (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão) o direito de ofeíecer quei
xa, de sorte a suprir a omissão ministerial.
Não implica, porém, inércia do Ministério Público e, em conseqüência, não se
admitirá a ação privada subsidiária o requerimento de novas diligências ou o pedi
do de arquivamento do inquérito.
Releva notar que a ação penal subsidiária, que é originariamente pública,
não se converte em ação privada, preservando a sua natureza pública e, por essa
razão, o querelante não pode dela desistir, renunciar, perdoar ou ensejar a
perempção,183 razão pela qual o Ministério Público pode aditar a queixa, ofere
cer denúncia substitutiva, requerer diligências, produzir provas, recorrer e a
qualquer momento retomar o prosseguimento da ação, se houver negligência do
querelante (CPP, art. 29).
1. Introdução
Por fim, dispõe o art. 108 do Código que “a extinção da punibilidade de crime
que é pressuposto, elemento constitutivo ou circunstância agravante de outro não
se estende a este. Nos crimes conexos, a extinção da punibilidade de um deles não
impede, quanto aos outros, a agravação da pena resultante da conexão”, disposição
que tem as seguintes implicações: a) a extinção da punibilidade de crime que é
pressuposto de outro não se estende a este. Essa norma é aplicável aos crimes aces
sórios cuja configuração pressupõe um outro, principal (assim, a receptação em
relação ao furto), sendo que a extinção da punibilidade do principal (no caso, o
furto) não se comunica ao acessório (no caso, a receptação); b) a extinção da puni
bilidade de crime que é elemento de outro não se estende a este. Essa norma é apli
cável aos crimes complexos (assim, a extorsão mediante seqüestro), caso em que a
extinção da punibilidade do seqüestro (já contido na extorsão - CP, art. 148) não se
estende à extorsão mediante seqüestro (CP, art. 159); c) a extinção da punibilidade
de crime que é circunstância agravante ou qualificadora de outro não se estende a
este. Essa norma é também aplicável aos crimes complexos, como, v. g., ao furto
qualificado pela destruição de obstáculo (CP, art. 155, § 4e, I, l 5 parte), em que a
extinção da punibilidade do dano (CP, art. 163) que qualifica o furto não o atinge;
d) nos crimes conexos, a extinção da punibilidade de um deles não impede, quanto
aos outros, a agravação da pena resultante da conexão, v. g., o agente que, para estu
prar uma mulher, mata pessoa que testemunha o crime terá a pena do homicídio
qualificada pela conexão (CP, art. 121, § 2e, V), ainda que venha a ocorrer a extin
ção da punibilidade do estupro por qualquer motivo (prescrição, decadência etc.).185
de. Toda pena deve ser proporcionada ao delito, e nenhuma pena deve passar da
pessoa do delinqüente”.
A prova da morte é feita por meio da certidão de óbito (CPP, art. 62) ou por
outros meios idôneos.
Arquivada a ação penal, prosseguirá a ação civil que se propuser com o fim de
reparar o dano, dada a autonomia das instâncias civil e penal.
Quanto ao aquivamento de inquérito ou ação penal com base em certidão de
óbito que se constatou falsa posteriormente, nada impede que o inquérito/ação
penal retome seu curso normal, desde que ainda não tenha havido extinção da
punibilidade por um outro motivo legal (v. g., prescrição). Mas esse assunto é um
tanto controvertido, havendo posionamento em sentido contrário.
A declaração de ausência por juízo cível não eqüivale à morte e, pois, não
implica extinção da punibilidade. No entanto, a morte presumida reconhecida por
sentença (CC, art. 7S, I e II)186 tem status de morte legal, com expedição de certi
dão de óbito inclusive, motivo pelo qual é de se lhe emprestar o efeito extintivo da
punibilidade.187 Se eventualmente o morto presumido ressurgir, a ação então pros
seguirá, se já não estiver atingida por outra causa extintiva de punibilidade, uma
vez que a presunção legal não é absoluta (juris tantum), admitindo prova em sen
tido contrário.
186 Eis o que dispõe o art. 7° do CC: Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência: I - se
for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II - se alguém, desaparecido em
campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Parágrafo
único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas
as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento.
187 Em sentido contrário, Ney Moura Teles, Manual de Direito Penal, cit.
Na prática, os decretos de indulto (anualmente editados) já prevêem os casos
que comportariam a graça, mas a doutrina os distingue dizendo que a graça é indi
vidual e solicitada, enquanto o indulto é coletivo e espontâneo.
Em princípio, todos os crimes são passíveis de anistia, graça e indulto. Mas a
Constituição Federal fez uma ressalva para declarar insusceptíveis de anistia e graça os
crimes hediondos e assemelhados (CF, art. 5S, XLIII). Nesse sentido também dispõe a
Lei nQ9.455/97, que proíbe a graça e a anistia para os condenados por crime de tortu
ra. Já a Lei n9 8.072/90, art. 2® (Lei de Crimes Hediondos), foi além da Constituição e
referiu também o indulto, a cujo respeito o texto constitucional fora omisso, motivo
pelo qual a doutrina diverge sobre a constitucionalidade desta lei no particular.
Alberto Silva Franco, defensor da posição minoritária, entende que se a
Constituição Federal incluiu a concessão de indulto e a comutação de perías entre as
atribuições privativas do Presidente da República (CF, art. 84, XII) e se ele próprio
não excepcionou o exercício dessa competência, não poderia fazê-lo o legislador
ordinário, motivo pelo qual o inciso I do art. 2a da Lei 8.072/90 é inconstitucional.188
Discute-se também sobre a aplicabilidade do indulto às penas restritivas de
direito. Saio de Carvalho entende que tal possibilidade é perfeitamente possível, seja
porque as penas restritivas são substitutivas das penas privativas da liberdade, seja
porque assim recomenda o princípio da proporcionalidade, pois, se as penas mais gra
ves admitem o indulto, as menos graves hão de também admitir com maior razão.189
Finalmente, não se confunde o indulto, causa de extinção de pena, com a
comutação de pena, que consiste na só redução da pena, quando incabível o indul
to e o condenado atender às condições legais para comutar. Numa palavra: se o
indulto extingue a punibilidade, a comutação apenas a atenua.
2.3. Perempção
Mas isso não ocorrerá quando se tratar de ação penal privada subsidiária, visto
que no caso de negligência do querelante o Ministério Público poderá retomar a
ação como parte principal (CPP, art. 29). Portanto, descabe a perempção sempre
que se tratar de crime de ação pública ainda que eventualmente instaurada por pro
vocação do ofendido (ação penal privada subsidiária).
2.4. Retratação
O perdão judicial, que não deve ser confundido com o perdão do ofendido, é a
possibilidade conferida ao juiz de deixar de aplicar a pena ao réu em determinadas
e especiais circunstâncias taxativamente previstas em lei. Trata-se, obviamente, de
uma circunstância de caráter pessoal, que por isso não se comunica aos eventuais co-
autores ou partícipes do crime. São passíveis de perdão judicial: homicídio e lesão
corporal culposos, quando as conseqüências da infração atingirem o próprio agente
de forma tão grave que a sanção se tome desnecessária (CP, arts. 121, § 5S, e 129, § 8B);
injúria na forma do art. 141, § 1Q, I e II; receptação culposa (art. 180, § 5Q) etc.
Discute-se se o perdão seria aplicável aos crimes de trânsito; é que o artigo que
o previa expressamente foi vetado ao argumento de que o Código Penal já o fazia. Se
assim é, mesmo não havendo previsão legal expressa no Código de Trânsito, é de se
admitir, à falta de vedação nesse sentido, que também os crimes de trânsito possam
admiti-lo, mesmo porque remete (art. 291) às disposições do CP. Enfim, não é o caso
de incidência do princípio da especialidade (lex specialis derrogat legi generali) sim
plesmente porque a lei especial (Código de Trânsito) não dispôs de modo diverso.
Muito se discutiu no passado sobre a natureza da sentença concessiva do per
dão - se condenatória ou absolutória. Hoje prevalece o entendimento de que se
trata de sentença absolutória.190 O Código (art. 120) dispõe a propósito que “a sen
tença que conceder perdão judicial não será considerada para efeito de reincidên
cia”. Como conseqüência, o acusado não é considerado condenado, a sentença não
implicará reincidência, seu nome não será incluído entre os culpados, não respon
Também constitui causa extintiva a retroatividade da lei que não mais consi
dera o fato como criminoso (abolitio criminis). Sobre o assunto, ver Capítulo IV,
Primeira Parte, sobre a Lei Penal no Tempo.
Finalmente extinguem a punibilidade a decadência e, nos de crimes de ação
penal privada, a renúncia ao direito de queixa e o perdão, conforme vimos.
2.7. Prescrição
(art. 5®, XLII e XLIV), exceção injustificável, uma vez que crimes tão ou mais gra
ves são passíveis de prescrição (latrocínio, homicídio, estupro etc.). Discute-se se a
lei ordinária poderia ou não ampliar esse rol de crimes imprescritíveis, parecendo-
nos que sim, por entendermos que se trata de típica matéria infraconstitucional,
além de existir, na legislação infraconstitucional, infrações bem mais graves.
Apesar de consagrada histórica e constitucionalmente, autores importantes a
ela se opuseram, como Beccaria, para quem, tratando-se de “crimes atrozes cuja
memória subsiste por muito tempo entre os homens, se os mesmos forem provados,
não deve haver nenhuma prescrição em favor do criminoso que se subtrai ao cas
tigo pela fuga. Não é, todavia, o caso dos delitos ignorados e pouco consideráveis: é
mister fixar um tempo após o qual o acusado, bastante punido pelo exílio voluntá
rio, possa reaparecer sem recear novos castigos”.192
Sobre o fundamento do instituto, há muita divergência.193 Mas é erro disso
ciá-lo dos fins cometidos do direito penal, uma vez que sua justificação tem cará
ter nitidamente político-criminal. É que, como disse Carrara, a prescrição constitui
um modo político de extinção da ação.194 Com efeito, ao estabelecer determinado
prazo para o exercício da ação penal ou para a execução da pena, o Estado julga,
segundo critério de política criminal, que, excedido aquele período de tempo, a
pena tomar-se-á desnecessária, por não mais servir à prevenção geral e especial de
comportamentos criminosos. Daí dizer Manzini que “se o poder de punir se justi
fica exclusivamente pelo critério da necessidade, todo o exercício do poder repres
sivo será injustificado quando não pareça necessário”.195
2.7.3. Prazos
196 Fernando Capez. Direito Penal. Parte Geral. S. Paulo: Saraiva, 2006, p. 580. No mesmo sentido, Cezar
Bitencourt. Tratado d e direito penal. S. Paulo: Saraiva, 2007, 11. ed., p. 731.
Paulo Queiroz
to anos e a definição de idoso como pessoa de sessenta anos não têm qualquer
repercussão jurídico-penal no particular.197
Quanto às contravenções, a prescrição, à falta de previsão legal expressa, seguè
os mesmos critérios e prazos do Código Penal (CP, art. 12).
No que tange às medidas sócio-educativas, a Lei ns 8.069/90 (Estatuto da
Criança e do Adolescente) nada previu a respeito da prescrição. Mas a Súmula 338
do ST) dispõe que lhe são aplicáveis as normas do Código, inclusive quanto aos pra
zos mínimos e máximos.
No que tange à prescrição das medidas de segurança, o Código não prevê norma
específica, razão pela qual os prazos são em princípio os mesmos previstos para á
prescrição da pena, adotados os mesmos critérios. Enfim, a prescrição seria regulada
com base na pena máxima cominada. Entretanto, há quem entenda que a prescrição
da medida de segurança, por ser em tese uma sanção penal mais branda, deve ser
regulada não com base na pena máxima cominada, mas na pena mínima.198 O mesmo
ocorrerá quanto à prescrição da pretensão executória, exceto se o juiz eventualmen
te proceder à prévia individualização da pena e a substituir pela medida de seguran
ça, caso em que o prazo prescricional seria regulado com base na pena substituída.
Quanto a saber se a sentença que a impõe interrompe ou não o prazo de pres
crição, tudo depende da natureza jurídica conferida à decisão. De fato, se se enten
der, conforme a doutrina e jurisprudência majoritárias, que a aludida sentença é
absolutória imprópria, é evidente que não há interrupção. Ao contrário, caso se
tenha a decisão como condenatória ou misto, conforme entendemos, o prazo inter
romperá com a sua publicação.
Por fim, no caso de conversão da pena de prisão em medida de segurança, em
razão de superveniência de doença mental, a prescrição será regulada com base na
pena aplicada na sentença condenatória, porque, a não ser assim, se violaria o prin
cípio da intangibilidade da coisa julgada.
197 No sentido do texto, STF, HC n» 89969, decisão de 13/03/2007, Min. Marco Aurélio.
198 Nesse sentido, Sídio Rosa de Mesquita Júnior. Prescrição Penal. 3. ed. S. Paulo: Atlas, 2003, p. 135/136.
Também assim, Capez, que invoca precedente do STJ. Direito Penal. Parte Geral. S Paulo: Saraiva, 2006,
p. 574.
D ireito Penal - P arte G eral
2.7.5. Reincidência
O Código admite que a prescrição da pretensão punitiva seja regulada não com
base na pena máxima cominada, mas com base na pena aplicada, ou seja, pode ser
adotado, excepcionalmente, o mesmo critério válido para a prescrição da pretensão
executória. Tal possibilidade somente é possível quando já houver uma sentença
penal condenatória que tenha transitado em julgado para a acusação, ainda que dela
a defesa tenha recorrido. Aliás, mesmo havendo recurso da acusação visando a
aumentar a pena, também será possível decretá-la se o eventual provimento do
recurso da acusação não tiver qualquer repercussão sobre o prazo prescricional.
Exemplo: se o Ministério Público, inconformado com uma sentença condenatória a
um ano de reclusão, apelar da sentença para obter um aumento de até o dobro da
pena (dois anos de prisão), o provimento desse recurso não modificará em nada o
prazo prescricional, que continuará sendo de quatro anos (CP, art. 109, V).
D ireito Penal - Parte G eral
199 No sentido do texto, dentre outros, Celso Delmanto, Código Penal com entado , cit. Idem, Paula Machado,
Prescrição penai - Prescrição Âincionalista, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; Lozano Jr., Prescrição
Penal , Saraiva, 2002; Eugênio Pacelli, Curso de processo pen al Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
D ireito Penal - P arte G eral
430
termo inicial principal o dia em que transita em julgado a sentença penal condena
tória (CP, art. 112).
Para tanto, não se exige o trânsito em julgado da sentença para ambas as par
tes (autor e réu), bastando que tenha havido o trânsito em julgado para a acusação,
uma vez que a partir de então não mais há possibilidade de reforma da sentença
para aumentar a pena ou o prazo prescricional. Conseqüentemente, o dia do trân
sito em julgado para a defesa é irrelevante para efeito de prescrição.
b) Revogação d e livram ento condicional. No caso de o condenado se achar no
gozo de livramento condicional, poderá eventualmente ocorrer a revogação, vol
tando o liberado à prisão. Isso ocorrendo, a prescrição começará a correr do dia da
sentença que revogou o benefício.
c) Dia d e interrupção da execução. A execução da pena poderá sei interrom
pida por duas razões: fuga do condenado ou internação em hospital psiquiátrico
(CP, art. 41).
No primeiro caso, a prescrição correrá a partir da data da evasão do condenado.
E mais importante: será regulada não com base na pena imposta na sentença, mas
com fundamento na pena que restava por cumprir (art. 113), de sorte que se conde
nado a seis anos de prisão vem a empreender fuga após o cumprimento de quatro
anos, a prescrição será calculada com base no tempo restante de pena: dois anos. Há
inclusive quem entenda que a detração deve ser considerada para esse efeito.201
No segundo caso, de internação em hospital psiquiátrico, em virtude da super
veniência de doença mental ou perturbação da saúde mental no curso da execução,
o tempo de internamento será computado na pena.
uma acusação, mas exclusivamente quanto a quem a tiver contra si admitida, como
é lógico.
A interrupção ocorrerá com a publicação da decisão em cartório.
b) Decisão de pronúncia. Nos crimes de competência do Tribunal do Júri (cri
mes dolosos contra a vida), interrompe o prazo prescricional a decisão que pronun
cia o réu, submetendo-o a julgamento perante aquele Tribunal, em virtude de
prova da materialidade do crime e de indícios suficientes da autoria (CPP, art. 408).
Contrariamente, o despacho de impronúncia do réu, de absolvição sumária ou de
desclassificação são irrelevantes para esse fim. Na hipótese de o Tribunal do Júri
desclassificar o crime, incide a Súmula 191 do STJ: “a pronúncia é causa interrup-
tiva da prescrição, ainda que o Tribunal do Júri venha a desclassificar o crime”.
Por igual a decisão do Tribunal que confirma a decisão de pronúncia também
a interromperá.
Sentença ou acórdão condenatórios recorríveis. Interrompe a prescrição a
sentença que condena o réu, a contar da publicação. A contrario sensu, não produz
o mesmo efeito a sentença que o absolver, ainda que aplicando medida de seguran
ça, caso se trate de inimputável ou semi-imputável. Na hipótese de condenação por
um crime e absolvição por outro, a interrupção limitar-se-á ao delito objeto da con
denação; idem se, havendo concurso de agentes, ocorrer condenação de uns e
absolvição de outros, devendo a interrupção alcançar somente os condenados.
Também não a interrompe a sentença concessiva de perdão judicial, visto ter cará
ter absolutório; havendo mais de um réu, a sentença somente interromperá a pres
crição quanto aos condenados, não atingindo os co-réus absolvidos. A interrupção
ocorrerá com a publicação da sentença em cartório (CPP, art. 389).
Nas mesmas circunstâncias interromperá a prescrição o acórdão do tribunal
que condenar o réu absolvido em primeiro grau ou confirmar a sentença condena
tória a quo. De acordo com o art. 117, IV, do Código Penal, interrompe a prescri
ção a sentença condenatória recorrível. Apesar de o Código se omitir quanto ao
acórdão condenatório, a doutrina majoritária entendia que também este interrom
pe a prescrição em duas hipóteses: a) condenação pelo tribunal em ação penal ori
ginária; b) condenação em grau de recurso, reformando sentença absolutória. E
que, não obstante o nome (acórdão), a decisão do tribunal equilaveria a um autên
tica sentença condenatória.
No entanto, distinguia-se este acórdão condenatório daquele que confirmava
a sentença condenatória de primeiro grau; dizia-se então que este acórdão confir-
matório da condenação não interrompia a prescrição. A interpretação fundava-se
em dois argumentos básicos: a) quando o Código quis referir a decisão confirmató-
ria como causa interruptiva, fê-lo expressamente, a exemplo da decisão confirma-
tória da pronúncia (inciso III); b) não se pode considerar como “sentença condena
tória recorrível” acórdão confirmatório de sentença condenatória recorrível, por
serem atos judiciais distintos: o primeiro é pressuposto do segundo inclusive. Do
contrário, haveria analogia in m alam partem , em prejuízo do acusado.
D ireito P en al - P arte G eral
Exatamente por isso a prescrição era, por esta e outras razões, bastante fre
qüente, já que novos recursos eram interpostos contra o acórdão confirmatório da
sentença condenatória recorrível, por vezes meramente procrastinatórios, a ense
jar a decretação de prescrição tendo por termo inicial a sentença condenatória de
primeiro grau.
A Lei n9 11.596/07 foi editada justamente com a finalidade de dar efeito inter-
ruptivo também ao acórdão confirmatório da sentença penal recorrível, conforme
consta expressamente da justificação do Projeto n9 401/2003,203 suprindo a omissão
do Código, dispondo que a prescrição é interrompida “pela publicação da sentença
ou acórdão condenatório recorríveis”.
Apesar disso, alguns autores204 vêm defendendo a idéia de que a omissão per
siste: o acórdão confirmatório da sentença condenatória recorrível não interrompe
a prescrição. Dizem que a lei se limitou a dispor sobre tema já pacificado na juris
prudência: o acórdão que, provendo recurso da acusação, condenar o réu, inter
rompe a prescrição; idem, acórdão que condenar em ação penal originária.
O equívoco é manifesto. Primeiro, porque esta lei não faz distinção entre acór
dão condenatório e confirmatório da sentença condenatória, distinção que é própria
da decisão de pronúncia, por outras razões; no particular a distinção é arbitrária,
portanto. Segundo, porque o acórdão que confirma a sentença condenatória a subs
titui. Terceiro, porque este acórdão é tão condenatório quanto qualquer outro.
Quarto, porque a distinção implicaria conferir a este acórdão efeito próprio de
absolvição. Quinto, porque não faria sentido algum que o acórdão que condena pela
primeira vez interrompesse o prazo prescricional e o seguinte não. Finalmente, se
os argumentos no sentido de distinguir acórdão condenatório e confirmatório
faziam sentido antes da reforma, já agora não o fazem mais. A interpretação parte
de um panorama legislativo - e, pois, doutrinário e jurisprudencial - superado.
Note-se ainda que, rigorosamente falando, não existe “acórdão confirmatório
de condenação”, seja porque em tese o tribunal reexamina a prova, os fundamen
tos fáticos e jurídicos da decisão impugnada, seja porque não raro procede à revi
são da pena, altera a capitulação jurídica dos fatos ou absolve total ou parcialmen
te alguns dos réus. Também por isso o assim chamado acórdão confirmatório é em
verdade um acórdão condenatório, formal e materialmente.
203 Diz a justificação (Senador Magno Malta) que “sabemos que, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça,
tem prevalecido o entendimento de que o acórdão confirmatório da condenação de primeira instância não
é causa interruptiva da prescrição, justamente por conta da ausência de expressão previsão legal. A presen
te proposição, nesse sentido, contribuirá paia dirimir os conflitos de interpretação, consolidando a posição,
mais razoável, de que o acórdão confirmatório da sentença recorrível também interrompe a prescrição”.
204 Nesse sentido, Fábio Machado Delmanto e outros. Lei n» 11596: Alterações ao art. 117 do Código Penal.
Boletim do IBCCrim. S. Paulo: Ano 15, n° 182 - Janeiro/2008, p. 7. Idem, Robson Antônio Galvão da Silva
e Daniel Laufer. Prescrição: alteração trazida pela Lei n« 11.596/2007. Boletim do IBCCrim n« 183 -
Fevereiro de 2008.
Pauio Queiroz
434
É evidente que a lei poderia ser mais explícita, consignando, por exemplo, que
interromperá a prescrição “a sentença, o acórdão condenatório ou confirmatório da
condenação”, mas tal referência seria absolutamente desnecessária, por tudo que já
se disse, muito especialmente: acórdão confirmatório de condenação é acórdão con
denatório, e não absolutório ou similar, a pressupor e exigir, assim, tratamento uno.
Por isso que doravante todo e qualquer acórdão que encerrar uma condena
ção, seja em ação penal originária, seja em grau de recurso, sempre interromperá a
prescrição.205
d) In ício ou continuação d o cum prim ento da pena. Cuidando-se de prescrição
da pretensão executória, a interrupção ocorrerá com o início do cumprimento da
pena ou, no caso de fuga ou suspensão da execução, com a sua continuação.
e) Reincidência. Também a reincidência interrompe a prescrição da pretensão
executiva, exclusivamente, não se aplicando à prescrição da pretensão punitiva em
qualquer de suas formas (ordinária, retroativa, superveniente). Quanto aos réus
reincidentes, portanto, além da própria sentença penal condenatória que implica a
reincidência, o trânsito em julgado dessa nova sentença passará a interromper o
prazo prescricional, já que não basta o simples cometimento de novo crime após o
trânsito em julgado, em razão do princípio da presunção de inocência.
A reincidência, como se pode notar, pode produzir dois distintos efeitos:
importa aumento do prazo prescricional (art. 110) e interrupção do prazo da pres
crição da pretensão executória.
1. Significado
205 Nesse sentido, decidiu o STF: A Lei 11.596/2007, ao alterar a redação do inciso IV do art. 117 do CP (“Art.
117 - O curso da prescrição interrompe-se: ... IV - pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios
recorríveis;”), apenas confirmara pacífico posicionamento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que
o acórdão condenatório reveste-se de eficácia interruptiva da prescrição penal. Com base nesse entendi
mento, a Turma indeferiu habeas corpus em que pleiteada a declaração de extinção da punibilidade do
paciente que, inicialmente condenado por abuso de autoridade (Lei 4.898/65, art. 4®, a), tivera sua senten
ça reformada, pelo tribunal de justiça local, para a prática do crime de extorsão, sendo este acórdão anula
do pelo STJ no tocante à causa especial de aumento de pena. Inicialmente, aduziu-se ser juridicamente rele
vante a existência de dois lapsos temporais, a saber: a) entre a data do recebimento da denúncia e a senten
ça condenatória e b) entre esta última e o acórdão que reformara em definitivo a condenação, já que o acór
dão que modifica substancialmente decisão monocrática representa novo julgamento e assume, assim, cará
ter de marco interruptivo da prescrição. Tendo em conta a pena máxima cominada em abstrato para o deli
to de extorsão simples ou a sanção concretamente aplicada, constatou-se que, no caso, a prescrição não se
materializara. O Min. Marco Aurélio ressaltou em seu voto que a mencionada Lei 11.596/2007 inserira mais
um fator de interrupção, pouco importando a existência de sentença condenatória anterior, sendo bastan
te que o acórdão, ao confirmar essa sentença, também, por isso mesmo, mostre-se condenatório. HC
92340/SC, rei. Min. Ricardo Lewandowski, 18.3.2008 (HC-92340).
D ireito P en al - Parte G eral
2. Efeitos genéricos
julgada no cível, por não terem natureza condenatória: a) a sentença que concede
perdão judicial (Súmula 18 do STJ); b) a sentença que reconhece a prescrição da
pretensão punitiva (ordinária e extraordinária), de modo que só a prescrição da
pretensão executória não impede a execução no cível; c) a sentença que homologa
a composição e a transação penal (Lei 9.099/95).
Quanto à sentença que declara a inimputabilidade do agente por doença men
tal ou desenvolvimento incompleto ou retardado (CP, art. 26), a doutrina majori
tária entende que não faz coisa julgada no cível por se tratar de decisão absolutó
ria, exceção feita à hipótese do parágrafo único do art. 26 (semi-imputabilidade),
ainda que a pena seja substituída por medida de segurança.
Temos, porém, que a sentença que aplica a medida de segurança há de pres
supor todos os requisitos do crime (fato típico, ilícito e culpável), motivo pelo qual
há de também fazer coisa julgada. Logo, a sentença tem natureza mista: é a um
tempo condenatória e absolutória, porque assim trata o Código de Processo.
Se o condenado for absolvido eventualmente em revisão criminal, hipótese em
que a sentença será desconstituída, perderá o caráter de título executivo judicial.
Conforme vimos, quando aplicada pena de prestação pecuniária (CP, arts. 43,
I, e 45, § le), o valor pago será deduzido do montante da eventual condenação em
ação de reparação civil ou em execução de sentença penal condenatória, se coinci
dentes os beneficiários. A mesma dedução deve ser feita quando o juiz criminal
houver fixado valor mínimo da indenização.
3. Efeitos específicos
Por fim, poder-se-á decretar a inabilitação para dirigir veículo quando utili
zado como meio para a prática de crime doloso. Conseqüentemente no caso de
crime culposo, caberá a só aplicação da pena restritiva de direito similar.
XXIV. Reabilitação
207 Em sentido diverso, Fernando Galvão, que entende cabível para aqueles que responderam a inquérito ou
a processo posteriormente arquivados inclusive. D ireito Penal. Parte Geral. Rio: Impetus, 2004, p. 866.
208 Ney Moura Teles, cit., p. 462.
209 Direito Penal, cit., p. 870-871.
Paulo Queiroz
440
O argumento não procede, porém. Primeiro, porque a reabilitação tem por
finalidade suspender, exclusivamente, alguns efeitos específicos da condenação,
não se aplicando aos casos de absolvição etc., uma vez que o inocente, ou pessoa
que se presume como tal, nada tem do que se reabilitar, nem teria interesse de
agir para tanto; segundo, porque se pudéssemos dar à reabilitação interpretação
tão ampla, o mesmo poderia também ocorrer quanto ao art. 202 da LEP, que no
essencial tem a mesma redação; terceiro, ainda que comum na prática forense, o
uso de processos ou inquéritos arquivados como maus antecedentes ofende o
princípio da presunção de inocência. E pretender reabilitar inocentes é um abso
luto contra-senso.
Nenhum outro efeito pode resultar da sentença concessiva da reabilitação: o
condenado reabilitado continua reincidente para todos os efeitos legais; tem o
dever legal de indenizar eventuais vítimas do crime; subsiste o confisco decretado
na sentença condenatória etc.
Parece-nos, portanto, que a reabilitação, tal como se encontra hoje disciplina
da, é grandemente inútil, a justificar a sua abolição pura e simples ou a sua total
reformulação, porque incapaz de efetivamente reabilitar o condenado. É também
evidente que não se pode falar de recuperação do status quo ante decorrente da rea
bilitação, até porque tal seria impossível, jurídica-socialmente.
A reabilitação só poderá ser requerida depois de decorrido o prazo de dois
anos do dia em que foi cumprida ou extinta a pena por qualquer modo, computan
do-se, para esse efeito, o período de prova da suspensão condicional da pena ou do
livramento condicional, se não ocorrer revogação. Além disso, o requerente deve
rá atender aos seguintes requisitos: a) ter domiciliado no País nesse prazo de dois
anos; b) ter demonstrado bom comportamento público e privado durante esse
período; c) ter reparado o dano, salvo impossibilidade de fazê-lo.
Deferida a reabilitação, poderá ser revogada, de oficio ou a requerimento do
Ministério Público, se o reabilitado for condenado, como reincidente, por decisão
definitiva, à pena que não seja de multa. Portanto, a revogação só ocorrerá se a
nova condenação for a pena de prisão (ainda que eventualmente substituída por
pena restritiva de direito) e dentro do prazo legal de cinco anos, porque, se expira
do esse prazo, cessará a reincidência. Também se a nova condenação não implicar
reincidência, por não ser a hipótese de prática de novo crime após o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória ou for por crime militar ou político pró
prio, a reabilitação subsistirá. Se revogada a reabilitação, o condenado votará à
situação anterior à sentença concessiva.
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aplicação da pena abaixo do mínimo legal mesmo
quando não existam atenuantes em favor do
condenado. Interessante ainda a forma como cuida
da execução provisória da sentença e, em especial,
o que escreve sobre os efeitos da reforma
psiquiátrica sobre a legislação penal em vigor,
bem como sobre os pressupostos jurídico-penais
das medidas de segurança, que devem ter
tratamento semelhante à pena.
Trata-se, enfim, de obra crítica e
atualíssima, que rompe com a costumeira
m esm ice dos manuais e cuja leitura é
absolutamente indispensável.
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