ANA MERCES BAHIA BOCK * MARIA DE LOURDES TRASSI TEIXEIRA
* ODAIR FURTADO
HOTT
PSICOLOGIA
FACIL
Editora
Saraiva
www.saraivauni.com, brCAPITULO 6
O SUJEITO E A COLETIVIDADE
OBJETIVOS DO CAPITULO
6.1 Introdugao
Este capitulo apresenta uma discussio, sempre atual, sobre a relagao dos individuos coma
sociedade. Compreendida a partir de uma visio dicotémica, que separou o individuo da
sociedade, essa concepeao teve reflexos nas varias areas do conhecimento — sociologia,
medicina, economia, psicologia e outras — e na vida cotidiana, em que muitos equivocos foram
produzidos. Os acontecimentos sociais foram pensados descolados de cada um dos individuos
e estes (os sujeitos) como constituidos de forma independente das sociedades as quais
pertencem, O objetivo deste capitulo é demonstrar como essa dicotomia é falsa, como
“nenhum dos dois existe sem o outro” e as miltiplas possibilidades de articulagao entre
ambos 0s polos; pretende abordar as transformagdes desses conceitos, que se metamorfoseiam
para dar conta de um modo de compreender o humano como singularidade no coletivo ¢ como
produtor da histéria, da cultura, dos acontecimentos. Ou seja, poder pensar em uma sociedade
composta de individuos/singularidades e a pessoa como um eu constituido de um nés, a partir
das relagdes que se estabelecem para a convivéncia e a produgdo coletiva da vida.
6.2 Individuo e sociedade — uma dicotomia a ser
superada
Na vida social de hoje, somos incessantemente confrontados pela questo de se e como & possivel
criar uma ordem social que permita uma melhor harmonizago entre as necessidades e inclinagdes
ppessoais dos individuos, de um lado, e, de outro, as exigéncias feitas a cada individuo pelo trabalho
cooperativo de muitos, pela manutengo e eficiéncia do todo social. |
Norbert Elias escreveu isso em 1939,” e aponta que os dois aspectos — satisfagdo pessoal e
eficiéncia social — sao interdependentes. $6 é possivel uma vida coletiva livre de tensdes e
conflitos se os sujeitos que fizerem parte dela tiverem satisfagdo suficiente, e sé é possivel
essa satisfagdo de cada um dos membros da coletividade se esta for livre de perturbagdes ¢
conflitos.
E ainda Norbert Elias que nos ajuda a continuar:
A relagao de phiralidade de pessoas com a pessoa singular a que chamamos “individuo”, bem como
da pessoa singular com a pluralidade (que chamamos de “sociedade”), no é nada clara em nossos
dias [o autor se refere ao ano de 1987] [...] dispomos dos conhecides conceitos de individuo esociedade, o primeiro dos quais se refere ao ser humano singular como se fora uma entidade existindo
em completo isolamento, enquanto o segundo (sociedade) [...] & entendido, quer como mera
acumulagdo, coletinea, somatério desestruturado de muitas pessoas individuais, quer como objeto que
existe para aim dos individuos e no & passivel de maior explicagdo [...] neste ditimo caso [...] 0 ser
‘humano, rotulado de individuo, e a pluralidade de pessoas, concebida como sociedade, parecem ser
duas entidades ontologicamente diferentes.?
6.3 A dicotomia
A visio dicotémica que separou os sujeitos (sécios) e a sociedade foi produzida no
pensamento moderno que acompanhou a instalagao e o desenvolvimento do capitalismo no
mundo ocidental. Sao varios os aspectos que podem ser trazidos para a analise para que se
possa compreender melhor a relagiio individuo-sociedade que se estabeleceu como
pensamento hegeménico.
O capitalismo, diferente do modo de produgao feudal, libertou os humanos das formas de
escravidao ¢ de servidao, compreendendo os homens como seres livres ¢ auténomos. O
capitalismo precisava dessas ideias, pois a burguesia precisava conquistar 0 poder politico (o
econdmico ela ja havia conquistado quando surgiu como classe), ¢ para isso precisava romper
com as ideias e valores que estavam instalados na sociedade ¢ que legitimavam o modo de
produgdo e as relagdes dominantes. Era preciso deixar de acreditar na hierarquia social
cristalizada para acreditar na possibilidade de ascensdo e mudangas sociais; era preciso criar
o individuo para ser o consumidor das mercadorias produzidas, incluindo a liberdade de
escolha em um mundo que passava a produzir uma diversidade de produtos que deveriam
encontrar diferentes pessoas interessadas; era preciso comprar a mio de obra trabalhadora
sem que se necessitasse sustenta-la permanentemente. Assim, aqueles conjuntos de sujeitos
que formavam a classe dos servos ou dos nobres foram “esfacelados” para surgir o individuo.
E, também, o capitalismo precisava da “permissao” social para explorar a natureza de forma a
enriquecer suas possibilidades de produgao infindavel de mercadorias. Era necessario
separar o humano da natureza.
A nova ordem social exigia novas ideias e concepgées para legitimd-la. A ciéncia moderna
surge atendendo a essas necessidades. Afirma 0 sujeito como sujeito do conhecimento e
individuo livre e racional e afirma, a0 mesmo tempo,
[..-] 0 objeto de conhecimento como sendo a natureza independente do homem e submetida 4s suas
roprias leis. Afirma-se, entio, sujeito e objeto como independentes e exteriores um ao outro. O
sujeito ¢ capaz.de conhecer e transformar a natureza por suas préprias caracterésticas e possibilidades
(uso da razio soberana ¢ dos érgiios dos sentidos). E o objeto & passivel de conhecimento, porque tem
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qualidades que podem ser apreendidas e obedece a determinagdes naturals.
Assim, os sujeitos se separaram do mundo dos objetos. Sujeitos siio os que conhecem e
objetos aqueles que so conhecidos. O conhecimento cientifico (inclusive o da Psicologia, que
precisou enfrentar o fato de ter seu objeto como o préprio sujeito) vai seguir sendo construido
sem avangar em uma compreensio da relaco entre o sujeito e o mundo dos objetos, Ha uma
naturalizagiio desses polos: sujeito que se constitui independentemente de sua ago
transformadora que cria o mundo dos objetos ¢ objeto que se constitui sem que se faga
referéncia a forga humana que esta depositada nele. A dicotomia, como referido na introducao,
vai se refletir na construgaio de campos da ciéncia que cuidam e estudam, em separado, esses