Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
5)
INTRODUÇÃO:
Uma das questões difíceis na comunicação é o resgate de um termo esquecido
ou condenado de forma equivocada a um status de pouca importância, especialmen-
te se essa importância não for apenas no campo teórico, mas, se relacionar direta e
imediatamente com a minha fé, decisões, comportamento e aspirações.
No Sermão do Monte Jesus Cristo gera este impacto com frequência. Nesta bem-
aventurança (Mt 5.5), como em todas as outras, não é diferente visto que há uma
conexão entre elas de forma que a anterior prepara para a próxima e esta pressupõe
1
a anterior. Os Seus ensinamentos caminham na contramão do que geralmente o
homem pensa, daí o conflito natural entre os princípios da Palavra e a nossa forma
ordinária de pensar.
1
Veja-se: David M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Editora Fiel, 1984, p. 58.
2
Vd. Hermisten M.P. Costa, A Literatura Apocalíptico-Judaica, São Paulo: Casa Editora Presbiteria-
na, 1992, p. 27ss.
3
J. Jeremias, Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Paulinas, 1977, p. 124-125
4
O livro de Macabeus reflete esta ideia: “Levantou-se uma tão grande tribulação em Israel, que
não se tinha visto outra assim desde o tempo do desaparecimento dos profetas de Israel”
(1Mac 9.27. Vejam-se, também: 1Mac 4.46; 14.41). Veja-se: D.S. Russell, Desvelamento Divino: uma
introdução à apocalíptica judaica, São Paulo: Paulus, 1997, p. 89ss.
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 2/14
5
Tempo sem Espírito é tempo sob o julgamento de Deus. Deus se cala”.
2. AS EXPECTATIVAS MESSIÂNICAS:
Os judeus após o cativeiro babilônico – iniciado em 587/586 a.C., tendo o povo
começado a retornar apenas em 537 a.C. chefiado por Zorobabel (Cf. Ed 2.1ss) –,
tiveram vários dominadores estrangeiros (Persas, Gregos, Sírios, Romanos). A ra-
zão do interesse estrangeiro pela Palestina era simples: ela era uma região estraté-
gica; por seu território passavam estradas que levavam a todas as partes do mundo.
Os romanos, por exemplo, dominando a Palestina, tinham a “chave para o Meio Ori-
ente”; por isso, sucessivos governadores romanos permaneceram na Síria e Palesti-
5
J. Jeremias, Teologia do Novo Testamento, p. 129.
6
lOq taB (Bath qôl). Literalmente, “Filha da voz” ou “Filha de uma voz”. O conceito é derivado de Dn
4.31. O Novo Testamento menciona algumas vezes uma voz que veio do céu (Vd. Mt 3.17; 17.5; Jo
12.28; At 9.4/ 22.7/26.14; 10.13,15). Unterman, assim define: “Voz celestial que continuou a
transmitir a mensagem de Deus ao homem depois que a PROFECIA bíblica chegou ao fim. O
sumo sacerdote podia ouvir a bat kol enquanto oficiava no Santo dos Santos, e, após a des-
truição do Templo, os que visitavam suas ruínas podiam ouvir a voz celestial expressando a
tristeza de Deus” (Bat kol: In: Alan Unterman, Dicionário Judaico de Lendas e Tradições, Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 43). Outra definição, como a de Van Pelt, com pequenas varia-
ções, é geralmente usada: “Um termo rabínico significando a divina voz, audível ao homem e
desacompanhada de uma visível manifestação da divindade” (J.R. Van Pelt, Bath Kol: In:
Geoffrey W. Bromiley, (General Editor), The International Standard Bible Encyclopedia, 2ª ed. Grand
Rapids, Michigan: William B. Eerdmans Publishing Company, 1980, Vol. I, p. 438-439). Ao que pare-
ce este “eco” tendeu a ser explorado como um meio de se decidir em questões de difícil interpretação
da Lei; daí a insistência do Rabino Josué (c. 100 AD) em enfatizar a supremacia da Lei escrita, sendo
esta questão debatida entre as escolas de Shammai e Hillel. (Vd. Otto Betz, Fwnh/: In: TDNT., IX, p.
288-290; J.R. Van Pelt, Bath Kol: In: ISBE., I, p. 439a; A.K. Helmbold, Bath Kol: In: Merril C. Tenney,
gen. ed. The Zondervan Pictorial Encyclopaedia of the Bible, 5ª ed. Grand Rapids, Michigan: Zonder-
van Publishing House, 1982, Vol. I, p. 492. No Talmude as referências à “Bath Kol” são inúmeras.
7
J. Jeremias, Teologia do Novo Testamento, p. 128. Esta voz vinda do céu, geralmente consistia na
declaração do juízo de Deus dirigido a indivíduos, grupos, governos, cidades ou todas as nações.
8
Cf. J. Jeremias, Teologia do Novo Testamento, p. 130 e P. Van Imschoot, Espírito: In: A. Van Den
Born, redator, Dicionário Enciclopédico da Bíblia, 2ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1977, p. 485.
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 3/14
na, já que ali estava a fronteira oriental do Império Romano, divisando com o seu
grande rival, o Império dos Partas.
Todos esses grupos tentavam estabelecer o Reino de Deus pela espada, enten-
dendo assim, estar prestando um grande serviço ao Senhor.
9
Quanto à identificação da figura do Messias com um anjo, Vd. H.I. Hester, Introduccion ao Estudio
del Nuevo Testamento, 2ª ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1980, p. 76.
10
F. F. Bruce, New Testament History, New York: Doubleday & Company, Inc., 1971, p. 133.
11
Vd. Hermisten M.P. Costa, A Literatura Apocalíptica Judaica, p. 36ss.
12
Zelote: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã,
1966, Vol. III, p. 1676.
13
A única alusão bíblica a esses grupos está em At 21.38. O nome grego e sik/arioj. O nome é de-
rivado da palavra latina sicae (adaga, pequeno punhal), daí sicaii, “homens com adaga”. A forma por-
tuguesa vem do latim sicarius.
14
Otto Borchert, O Jesus Histórico, São Paulo: Vida Nova, 1985, p. 275.
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 4/14
Jesus Cristo foi reconhecido por muitos como o Messias. A questão é: em qual
estereótipo Ele se encaixaria? Podemos observar que, de modo preventivo Ele não
se chamou de “Messias”; raramente se designou como Cristo de Deus, por certo, pa-
ra evitar o mal-entendido que seu emprego teria provocado. Como vimos, o povo ju-
deu aguardava de modo especial um Messias militar; se Jesus proclamasse ser o
Cristo (= Messias), seria o mesmo que convidar o povo a interpretações das mais di-
versas e, o pior; todas erradas. Se Jesus, procedendo com cautela, não impediu que
houvesse sentimentos “messiânicos” por parte do povo em momentos de euforia de
15
“barriga cheia” (cf. Jo 6.11-15); se Ele agisse de forma diferente, dizendo-se o
Messias, “todo o judeu que ouvisse a palavra, ficaria a pensar em termos
duma eventual revolta contra Roma e da gloriosa consumação quando o
16
império judeu substituiria o romano”.
O apóstolo João declara: “Veio para o que era seu, e os seus não O receberam”
(Jo 1.11); e o próprio Jesus Cristo disse ao povo, desafiando-o a uma reformulação
de seus conceitos à luz das Escrituras: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter
nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim. Contudo não quereis
vir a mim para terdes vida” (Jo 5.39-40). No entanto, a imagem criada em suas men-
tes era mais forte do que todo o esplendor da realidade: “Rodearam-no, pois, os ju-
deus, e o interpelaram: Até quando nos deixarás a mente em suspenso? Se tu és o
Cristo, dize-o francamente. Respondeu-lhes Jesus: Já vo-lo disse, e não credes. As
obras que eu faço em nome de meu Pai, testificam a meu respeito. Mas vós não
15 11
“ Então, Jesus tomou os pães e, tendo dado graças, distribuiu-os entre eles; e também igualmente
12
os peixes, quanto queriam. E, quando já estavam fartos, disse Jesus aos seus discípulos: Recolhei
13
os pedaços que sobraram, para que nada se perca. Assim, pois, o fizeram e encheram doze cestos
14
de pedaços dos cinco pães de cevada, que sobraram aos que haviam comido. Vendo, pois, os ho-
mens o sinal que Jesus fizera, disseram: Este é, verdadeiramente, o profeta que devia vir ao mundo.
15
Sabendo, pois, Jesus que estavam para vir com o intuito de arrebatá-lo para o proclamarem rei, re-
tirou-se novamente, sozinho, para o monte” (Jo 6.11-15).
16
L. Morris, O Senhor do Céu, Queluz: Núcleo, 1979, p. 44. Todavia, Jesus, em algumas ocasiões –
atestando a consciência que tinha de ser o Messias –, se identificou como o Cristo (Mc 9.41; Lc
24.44-49); não se esquivou de tal identificação (Lc 7.19-22; Mc 8.29; Mc 14.61-62; Mt 16.16-17) – ao
contrário de João Batista que quando inquirido, disse não ser o Cristo, Jo 1.19-27 –, embora orde-
nasse aos seus discípulos que não contassem isto a ninguém (Mc 8.29-30; Lc 9.20-22), usando para
Si mesmo, a expressão “Filho do Homem”, como no contexto de Lucas, equivalente a “Cristo” (Lc
9.20-22/Lc 24.44-49). Algo que nos chama atenção é o fato de que após a confissão de Pedro e a
proibição de Cristo, de que se divulgasse ser Ele o Messias “começou Jesus Cristo a mostrar a seus
discípulos que lhe era necessário seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas dos anciãos, dos prin-
cipais sacerdotes e dos escribas, ser morto, e ressuscitado no terceiro dia” (Mt 16.21. Cf. também Mc
8.31 e Lc 9.22). No texto fica evidenciado que, para Jesus, o Messiado não era o caminho da glória,
fama ou poder, mas, sim, da dor, do sofrimento, da humilhação, do abandono e da ressurreição, con-
ferindo assim à palavra, um significado superior jamais imaginado por um judeu. “Seu ministério, co-
roado por Sua paixão, foi caracterizado pela aderência constante à vereda que lhe fora
destinada pelo Pai; e, em consequência disso, Jesus deu ao vocábulo ‘Messias’ um novo
significado, que transcende todas as conotações que esta palavra anteriormente tivera” (F.
F. Bruce, Messias: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, Vol. II, p. 1038). Vejam-se
também: George E. Ladd, Teologia do Novo Testamento, Rio de Janeiro: JUERP., 1985, p. 132-134 e
L. Morris, O Senhor do Céu, p. 42-46).
A condenação de Jesus se deve ao fato de ser acusado de querer passar por Cristo (Cf. Mt 26.63,
64, 68; Mc 14.61-64; Lc 22.66-71); a sua crucificação demonstra de forma cabal que Ele não quis
contrariar a realidade desta acusação, assumindo, quer por palavras, quer por silêncio eloquente, a
realidade de sê-lo!
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 5/14
credes, porque não sois das minhas ovelhas. As minhas ovelhas ouvem a minha
voz; eu as conheço e elas me seguem” (Jo 10.24-27).
Jesus Cristo foi odiado e rejeitado pelo povo, não pelo que dissera, mas, pelas
expectativas que os próprios judeus desenvolveram e as colocaram sobre Ele. Na
verdade Jesus Cristo não frustrou ninguém; Ele jamais fez promessas vãs ou apre-
sentou esperanças fictícias. Os judeus se frustraram com seus próprios sonhos; os
quais, não os permitiam enxergar o Antigo Testamento e os ensinos do próprio Cris-
to. Os seus devaneios, na realidade, não faziam parte da agenda do Messias con-
forme o eterno propósito de Deus.
17
Todos os Homens e um Desejo: A Contracultura Cristã (Mt 5.3), Belo Horizonte: 25 de março de
2010.
18
Cf. U. Becker, Bênção: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do
Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. 1, p. 297.
19
Temos também prau/+j, praei=a e prau+/ que significam “manso”, “humilde” (* Mt 5.5; 11.29; 21.5;
1Pe 3.4).
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 6/14
“No grego clássico esta é uma palavra encantadora. À respeito dos ob-
jetos significa ‘suave’. É usada, por exemplo, a respeito de uma brisa ou
uma voz suave. A respeito das pessoas significa ‘brando’ ou ‘gracioso’. Há
um fragmento de Menandro que diz: ‘Quão doce é um pai que é meigo e
jovem de coração’. Seria verdade dizer que no grego clássico é uma pa-
lavra carinhosa. Na realidade, Xenofonte usou o plural neutro do adjetivo
no sentido de ‘carinhos’. É caracteristicamente uma palavra de bondade
20
e graciosidade”.
B) Mansidão x Fraqueza:
Dentro de outra perspectiva podemos observar que muitas vezes enfrentamos al-
guns problemas não pelo que dissemos, mas pelo modo que dissemos. Fomos ás-
peros e agressivos. Amabilidade, gentileza e doçura não se contrapõem necessari-
amente à firmeza. Devemos ser firmes nas coisas que envolvem a Palavra de Deus
e a Sua causa, no entanto, não devemos ser grosseiros. Muitas vezes somos leva-
27
David M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Editora Fiel, 1984, p. 61.
28
O)rgh/ ocorre no mínimo 35 vezes no Novo Testamento e, qumo/j é usado no mínimo 18 vezes. Na
Bíblia, ambos os termos aparecem algumas vezes relacionados: No Antigo Testamento: Dt 9.19; Sl
2.5; 78.49; Is 5.25; 7.4; 9.19; 34.2; Dn 3.13; Ez 22.31; Os 13.11; Mq 5.15; No Novo Testamento: Rm
2.8; Ef 4.31; Cl 3.8; Ap 19.15. Segundo Trench, o mesmo acontece no grego secular (Vd. Richard C.
Trench, Synonyms of The New Testament, 7ª ed. rev. and enlarg. London: Macmillan and Co., 1871,
§ XXXVII, p. 123).
Apesar de ambas as palavras serem quase sinônimas, parece-me que a distinção entre elas está
na duração da irritabilidade; enquanto qumo/j descreve uma ira repentina que logo se apaga, como
um “fogo de palha”, conforme diziam os gregos, o(rgh/ retrata uma ira que persiste ardendo lentamen-
te, recusando-se a ser pacificada, tendo assim, grande propensão a se transformar em “amargura”.
Contudo, essa distinção gramatical não deve ser aplicada a Deus visto que Ele Se comunica conosco
usando de termos humanos para descrever os seus “sentimentos” (Vd. William Barclay, El Nuevo
Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1973, (Mateo I), Vol. I, p 149-150; Vol. 11, p. 163;
G. Hendriksen, El Evangelio Segun San Juan, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cris-
tiana, 1981, p. 162-163; F. Foulkes, Efésios: introdução e comentário, São Paulo: Mundo Cristão/Vida
Nova, (1979),p. 113 e, especialmente: H. Schönweiss; H.C. Hahn, Ira: In: Colin Brown, ed. ger. O
Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983,
Vol. II, p. 441-449; Richard C. Trench, Synonyms of The New Testament, § XXXVII, p. 123-127;
Hermann M. Kleinknecht, et. al., O)rgh/: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the
New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. V, p. 382-447.
29
“Mal”, “malícia”, “maldade”, “impiedade”, “depravação”, “vício”, “malignidade”. A palavra em alguns
textos significa uma depravação mental de onde decorrem todos os outros vícios; ela tem de modo
especial um sentido ético. * Mt 6.34; At 8.22; Rm 1.29; 1Co 5.8; 14.20; Ef 4.31; Cl 3.8; Tt 3.3; Tg 1.21;
1Pe 2.1,16. Na literatura clássica a palavra tinha o sentido de “vício” e “injustiça” (Vejam-se: Platão, A
República, 444e; Platão, Fedro, 248b; Aristóteles, Arte Retórica, II.12; Aristóteles, Ética à Nicôma-
co, VII.1.15; Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates, II.1.21). Calvino comentando o uso
da palavra em Ef 4.31, diz: “Por esse termo ele quer dizer que a depravação da mente, a qual
é oposta ao espírito humano e à probidade, e a qual é usualmente chamada malignidade”
(J. Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.31), p. 149).
30
Tem também o sentido de “receber”, “aceitar”, “aprovar”. Estevão sendo apedrejado ora: “.... Se-
nhor Jesus, recebe (de/xomai) o meu espírito!” (At 7.59).
31
Esta palavra só ocorre neste texto em todo o Novo Testamento.
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 8/14
Pedro escrevendo à Igrejas perseguidas, diz que a nossa resposta aos que nos
caluniam e perseguem deve ser dada com firmeza e mansidão, apresentando a ra-
zão de nossa esperança em Cristo: “Mas, ainda que venhais a sofrer por causa da
justiça, bem-aventurados sois. Não vos amedronteis, portanto, com as suas amea-
ças, nem fiqueis alarmados; antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso cora-
ção, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão
da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão (prau+/thj) e temor,
com boa consciência, de modo que, naquilo em que falam contra vós outros, fiquem
envergonhados os que difamam o vosso bom procedimento em Cristo, porque, se
for da vontade de Deus, é melhor que sofrais por praticardes o que é bom do que
praticando o mal” (1Pe 3.14-17).
À rebelde igreja de Corinto, Paulo pergunta de forma severa: “Que preferis? Irei a
32
William Hendriksen, Mateus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, Vol. I, (Mt 5.5), p. 379.
33
D.M. Lloyd-Jones, A Unidade Cristã, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p.
38.
34
João Calvino, Romanos, 2ª ed. São Paulo: Edições Parakletos, 2001, (Rm 15.14), p. 506.
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 9/14
vós outros com vara ou com amor e espírito de mansidão (prau+/thj)?” (1Co 4.21).
De forma análoga, a orientação àqueles que pensam diferente deve ser feita com
brandura e oração a fim de que Deus possa por meio da Palavra dar-lhes discerni-
mento – conhecendo a verdade –, livrando-os do cativeiro intelectual e espiritual de
satanás que tem os seus próprios planos destrutivos e alienantes de Deus: "Discipli-
35
nando (paideu/w = “ensinando”, “instruindo”) com mansidão (prau+/thj) os que se
opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento para
conhecerem plenamente a verdade, mas também o retorno à sensatez, livrando-se
36 37
eles dos laços (pagi/j) do diabo, tendo sido feitos cativos (zwgre/w) por ele, para
38 39
cumprirem a sua vontade (qe/lhma)” (2Tm 2.25-26).
Esta instrução (disciplina) não deve ser caracterizada pela polêmica – que por si
40
só não é edificante –, mas pelo desejo de conduzi-los à verdade.
35
O substantivo paidei/a e o verbo paideu/w (de onde vem a nossa “pedagogia”), significam "educa-
ção das crianças", e têm o sentido de treinamento, instrução, disciplina, ensino, exercício, castigo.
(Para maiores detalhes, consultar: Hermisten M. P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Editora Cultura
Cristã, 2001, p. 270ss.).
36
Pagi/j significa “armadilha”, “rede”, “laço” [* Lc 21.34 (ARA) na ACR e BJ, no verso 35; Rm 11.9;
1Tm 3.7; 6.9; 2Tm 2.26].
37
Zwgre/w, “capturar”, “feito prisioneiro”, “prender com vida” (* Lc 5.10; 2Tm 2.26).
38
Qe/lhma [derivado do verbo Qe/lw], que significa “vontade”, “desejo”, “intenção”. Apesar do verbo
ser amplamente empregado na literatura clássica, o substantivo Qe/lhma aparece raramente. No No-
vo Testamento ele ocorre 61 vezes [o verbo 207 vezes]. A palavra enfatiza mais o elemento volitivo
do que o deliberativo, ou seja, a sua ênfase recai sobre o propósito almejado.
39
“Satanás visa impedir a nossa visão clara da realidade, confundindo os nossos sentidos e,
assim, paralisando a nossa vontade, tornando-nos presas fáceis para a execução de seus
propósitos. Não é à toa que no Apocalipse Satanás é denominado de ‘o sedutor de todo o
mundo’ (Ap 12.9)” (Hermisten M. P. Costa, O Pai Nosso, p. 89).
40
Segundo Calvino, na polêmica pela polêmica, há algo de ardiloso por parte do maligno. De modo
especial, Calvino chama a atenção dos pastores: “Essa é a trama de Satanás, ou seja: que, me-
diante perversa loquacidade de tais homens, ele enreda os bons e fiéis pastores com o fim
de distraí-los de sua preocupação pela doutrina. Daí a necessidade de nos precavermos e
não permitirmos qualquer envolvimento em argumentos polêmicos; porque, do contrário,
jamais nos veremos livres para direcionar nosso labor em prol do rebanho do Senhor, nem os
homens amantes de polêmicas nos deixarão de perturbar” (João Calvino, As Pastorais, São
Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 3.10), p. 357). Por outro lado: “Um bom pastor deve estar sempre a-
lerta para que seu silêncio não propicie a invasão de doutrinas ímpias e danosas, e ainda
propicie aos perversos uma irrefreada oportunidade de difundi-las” (João Calvino, As Pasto-
rais, (Tt 1.11), p. 316).
41
“....os crentes são açoitados, não para com isso satisfazerem à ira de Deus, nem para pa-
garem o que é devido ao juízo que Ele lhes impõe, mas a fim de aproveitarem a oportuni-
dade para arrependimento e para retorno ao bom caminho” (João Calvino, As Institutas da
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 10/14
Ao contrário, devem esforçar-se para que fique evidente que a sua inten-
ção não é outra senão a promoção de seu bem-estar. (...) Portanto, se
desejamos fazer algo de positivo, ao corrigirmos as falhas das pessoas, é
saudável esclarecer-lhes que as nossas críticas são oriundas de um cora-
42
ção amigo”. “O alvo de um bom mestre deve ser sempre converter os
43
homens do mundo para que voltem seus olhos para o céu”.
Tiago nos diz que a evidência da verdadeira sabedoria é a mansidão com que
ela é demonstrada: “Quem entre vós é sábio e inteligente? Mostre em mansidão
(prau=+thj) de sabedoria, mediante condigno proceder, as suas obras” (Tg 3.13).
A mansidão deve permear as nossas atitudes. Ela deve reger o nosso comporta-
mento e caracterizar as nossas relações, conforme Paulo instrui a Tito no sentido de
ensinar qual deve ser o comportamento dos membros da Igreja em relação a todas
as pessoas: “Lembra-lhes que se sujeitem aos que governam, às autoridades; sejam
obedientes, estejam prontos para toda boa obra, não difamem a ninguém; nem se-
jam altercadores, mas cordatos, dando provas de toda cortesia (prau+/thj), para com
todos os homens” (Tt 3.1-2).
O verbo “andar” está no aoristo ativo, indicando uma atitude que deve ser cons-
tante, contínua, envolvendo a idéia de movimento e progresso.
Em outro texto Paulo reforça este conceito, mostrando que assim como a humil-
dade, a mansidão não é algo acabado e completo; devemos persegui-la diariamen-
44
te: “Tu, porém, ó homem de Deus, foge destas coisas; antes, segue (diw/kw) a jus-
tiça, a piedade, a fé, o amor, a constância, a mansidão (prau+pa/qeia)” (1Tm 6.11).
Como vimos, Calvino comenta: “Será inútil ensinar a mansidão, a menos que
45
tenhamos iniciado com a humildade”.
Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006,
(II.5). Vol. II. p. 177).
42
João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.14), p. 142.
43
J. Calvino, As Pastorais, (Tt 1.2), p. 301.
44
Diw/kw é utilizada sistematicamente para aqueles que perseguiam a Jesus, os discípulos e a Igreja
(Mt 5.10-12; Lc 21.12; Jo 5.16; 15.20). Lucas emprega este mesmo verbo para descrever a persegui-
ção que Paulo efetuou contra a Igreja (At 22.4; 26.11; 1Co 15.9; Gl 1.13,23; Fp 3.6), sendo também a
palavra utilizada por Jesus Cristo quando pergunta a Saulo do porquê de sua perseguição (At 9.4-
5/At 22.7-8/At 26.14-15). Paulo diz que prosseguia para o alvo (Fp 3.12,14). O escritor de Hebreus diz
que devemos perseguir a paz e a santificação (Hb 12.14). Pedro ensina o mesmo a respeito da paz
(1Pe 3.11).
45
João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.1), p. 108.
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 11/14
O início deste caminho de vida está no acolhimento da Palavra de Deus, que de-
ve ser feito com mansidão: “....acolhei, com mansidão (prau=+thj), a palavra em vós
implantada, a qual é poderosa para salvar a vossa alma” (Tg 1.21). Não há lugar pa-
ra arrogância diante da Palavra; ela nos mostra de forma absoluta os nossos peca-
dos e a necessidade que temos de salvação em Jesus Cristo. Davi se constitui num
bom exemplo de acolhimento da Palavra. Quando devido aos seus pecados foi con-
frontado severa e justamente pelo profeta Natã, Davi, de modo humilde e arrependi-
do, disse: “Pequei contra o Senhor” (2Sm 12.13). Não há agressividade, nem des-
culpas. Ele pecou contra Deus e, por isso, confessou o seu pecado. O arrependi-
mento e a consequente confissão, ainda que depois de cerca de um ano, foi antece-
dida por uma reflexão sincera e por uma decisão corajosa.
A mansidão é uma virtude de grande valor diante de Deus, conforme diz Pedro:
“Não seja o adorno da esposa o que é exterior, como frisado de cabelos, adereços
de ouro, aparato de vestuário; seja, porém, o homem interior do coração, unido ao
incorruptível trajo de um espírito manso (prau/+j) e tranquilo, que é de grande valor
diante de Deus” (1Pe 3.3-4).
46
Do mesmo modo: 2Co 10.1: (“mansidão” = prau=+thj) e Mt 21.5: (“humilde” = prau=+j).
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 12/14
o coração nos bens materiais, pois, tais sentimentos nos fazem esquecer a vida ce-
47 48
lestial e de “adornar nossa alma com seus verdadeiros atavios”.
Jesus Cristo diz que os mansos herdarão a terra. No Novo Testamento além da
associação natural do verbo herdar (klhronome/w), o substantivo herança (klhro-
49
nomi/a) e o adjetivo herdeiro (klhrono/moj) com o recebimento de posses da parte
dos pais (Mt 21.37-38; Lc 12.13; Gl 4.30), encontramos, com maior ênfase, a cono-
tação espiritual de:
a) Herança do Reino de Deus e de Cristo (Mt 25.34; 1Co 6.9,10; 15.50; Gl 5.21;
Ef 5.5; Tg 2.5),
b) Vida eterna (Mt 19.29; Mc 10.17; Lc 10.25; 18.18; Tt 3.7; Hb 9.15),
c) Salvação (Ef 1.14,18; Cl 3.24; 1Pe 1.4; Hb 1.14/Hb 6.12/At 20.32),
d) Glória futura (Rm 8.17-18) e
e) Bênção (1Pe 3.9/Hb 12.17/Ap 21.7).
Devemos observar que todas estas heranças advêm de Cristo, visto que Ele é o
herdeiro único e pleno de todas as coisas: “Nestes últimos dias, nos falou pelo Filho,
a quem constituiu herdeiro (klhrono/moj) de todas as coisas, pelo qual também fez
o universo” (Hb 1.2).
Pois bem: Jesus Cristo, que é herdeiro de todas as coisas, terrenas e celestiais,
no seu justo direito garante que os mansos herdarão a terra. Aqui podemos dar um
sentido material perceptivo afirmando que os mansos, na percepção perfeita da
graça de Deus, reconhecem em tudo que tem esta manifestação, portanto, tendo
bens, não colocarão seus corações nisto, sendo, deste modo, verdadeiramente pos-
suidores da terra, sem se deixar possuir por ela.
“Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o
mar já não existe. 2 Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do
47
A alegria cristã não está simplesmente condicionada ao ter e possuir. “Ainda que os fiéis tam-
bém aspirem e busquem o conforto terreno, todavia não o perseguem com imoderado e
desordenado ardor, senão que, pacientemente, podem suportar ser privados dele, desde
que tenham consciência de que são objetos do cuidado divino” (João Calvino, O Livro dos
Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 4.7), p. 108).
48
Juan Calvino, Institución de la Religión Cristiana, Rijswijk, Países Bajos: Fundación Editorial de Li-
teratura Reformada, 1967 (Nueva Edición Revisada), III.10.4. “Os crentes gozam de genuína ri-
queza quando confiam na providência divina que os mantém com suficiência e não se
desvanecem em fazer o bem por falta de fé. (...) Ninguém é mais frustrado ou carente do
que aquele que vive sem fé, cuja preocupação com suas posses dilui toda a sua paz” (João
Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 9.11), p. 193-194).
49
Quanto à origem e emprego da palavra, veja-se: J. Eichler, Herança: In: Colin Brown, ed. ger. O
Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983,
Vol. 2, p. 364-371.
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 13/14
céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo. 3 En-
tão, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os
homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo es-
tará com eles. 4 E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá,
já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. 5
E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas.
E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras. 6 Disse-
me ainda: Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. Eu, a
quem tem sede, darei de graça da fonte da água da vida” (Ap 21.1-6).
Percebam o ensino antitético de Jesus Cristo. Aqueles que aos olhos naturais a-
parentemente nada tem, sendo desconsiderados e tidos como derrotados, são, na
realidade, os que conseguem controlar suas paixões, confiando no cuidado miseri-
cordioso de Deus. Tais homens são como Paulo; pobres, enriquecendo a muitos e,
paradoxalmente, “nada tendo, mas possuindo tudo” (1Co 6.10). Estes são aqueles
que podem dizer também com o Apóstolo Paulo, referindo-se a Jesus Cristo: “....
com ele reinaremos” (2Tm 2.12).
Considerações Finais:
50
O filósofo Bertrand Russell (1872-1970), quando alega o fato de Jesus manifestar “uma fúria vin-
ditiva contra os que não davam ouvidos aos seus ensinamentos”, como sendo um argumento
para ele não ser cristão (Cf. Bertrand Russel, Porque não sou Cristão, 2ª ed. São Paulo: Livraria Ex-
posição do Livro, 1972, p. 28), peca pelo fato de não considerar que a ira de Jesus era acompanhada
de um sentimento de “aflição”, “totalmente aflito” (Mc 3.5. sullupe/omai), pela dureza de seus cora-
ções, pois, aqueles que ali estavam (havia fariseus no grupo, Cf. Mc 3.6), tinham interesse em acusá-
lo (Mc 3.2) e, também, não devemos nos esquecer que a ira de Jesus não era causada por motivos
egoísticos, mas, pelo fato da Palavra de Deus por Ele anunciada não ser ouvida pelo povo, que se-
guia a influência farisaica.
Contudo, esses argumentos não valem para Russell pois ele se declara agnóstico quanto a Deus
(Cf. Bertrand Russel, Porque não sou Cristão, p. 55, 159) e, também, porque considera os cristãos
não muito inteligentes (Cf. Bertrand Russel, Educação e Ordem Social, São Paulo: Companhia Edito-
ra Nacional, 1956, p. 80-81).
A ira divina descrita nas Escrituras, entre outras, tem as seguintes motivações: a incredulidade: Mc
3.5; Jo 3.36; “impiedade e perversão” daqueles que “detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1.18); de-
sobediência: Rm 2.8; Ef 2.3; 5.6; Cl 3.6. Notemos que todos esses textos revelam a livre escolha do
homem em renunciar a Palavra de Deus, o próprio Deus.
A Mansidão como expressão da revolução cristã – Rev. Hermisten – 10/09/10 – 14/14
51
A mansidão não é algo natural, resultado de nosso temperamento ou caráter,
52
antes, é uma qualidade espiritual aprendida de Cristo (Mt 11.29/2Co 10.1). No tex-
to de Efésios 4, Paulo nos orienta para que vivamos na Igreja de forma mansa, com
gentileza e tolerância, expressando assim a nossa humildade em nosso trato pesso-
al. A mansidão é a expressão de um coração humilde e confiante em Deus. Quem
assim procede pela graça de Deus será amplamente abençoado aqui e herdará a
vida eterna. Que Deus nos capacite a viver deste modo. Amém.
51
Vejam-se: David M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Editora Fiel, 1984, p.
61; H.H. Esser, Humildade: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do
Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. 2, p. 386; G.B. Funderburk, Mansidão: In:
Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, Vol. 4, p. 80.
52
“.... aprendei (manqa/nw) de mim, porque sou manso (prau/+j) e humilde de coração; e achareis
descanso para a vossa alma” (Mt 11.29). “E eu mesmo, Paulo, vos rogo, pela mansidão (prao/thj) e
benignidade de Cristo, eu que, na verdade, quando presente entre vós, sou humilde; mas, quando
ausente, ousado para convosco” (2Co 10.1).