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REVISTA TRAÇOS
Uberlândia, MG – Brasil
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ASSOCIAÇÃO CLÍNICA FREUDIANA
MEMBROS
4
SUMÁRIO
EDITORIAL ..................................................................................................................... 4
AFRADECIMENTOS .........................................................................................................6
.
ARTIGOS
5
Editorial
“Todos os dias é um vai e vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai e quer ficar
Tem gente que veio e quer só olhar
1
Tem gente a sorrir e a chorar”
1
Milton Nascimento. Álbum: Encontros e Despedidas. Barclay Records, 1985
6
Foram múltiplas as leituras. O que se comprova pelos artigos e prismas diversos
na abordagem – sempre singular – com que cada autor(a) se deixou abarcar. Tanto
apontou para a questão do que torna possível a permanência e a insistência de um grupo
com a proposta da formação em Psicanálise por 20 anos, como para os nós
fundamentados por Lacan em seu ensino – o real, o simbólico e o imaginário. Tal
enodamento nos dá suportes vários para pensarmos a clínica, a constituição subjetiva, a
formação e a instituição. Mas, sobretudo, o tema apontou para o fato de que o discurso
fundado por Freud trouxe à luz a questão de que a subjetividade se funda por meio de
laços, e a invenção freudiana, um tipo específico de laço, trata e também explicita os
outros laços (nós) civilizatórios. Então, eis diante nós, Traços.
Comissão Editorial
Uberlândia, 2018.
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AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todos que estiveram conosco ao longo desses 20 anos, os que vieram,
os que ficaram, os que foram, a todos os convidados e parceiros do campo analítico
com quem partilhamos os encontros e desencontros de que é feita a nossa matéria.
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O que faz laços entre nós?2
Resumo
Palavras-chave: Clínica Freudiana; estrutura dos laços; ideal do eu; narcisismo das
pequenas diferenças.
2
Isa Nunes de Oliveira. Psicanalista,membro da Associação da Clínica Freudiana.
isapsicanalise@gmail.com
3
A parábola de Schopenhauer foi publicada no livro Parenga und Paralipomena, de 1851, citada por
Freud (1920, p. 2583, tradução nossa).
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Do primeiro texto, destaco as ideias fecundas desenvolvidas por Freud ao
abordar a relação do indivíduo com o coletivo, em busca de construir uma teoria dos
laços. Do segundo, procuro extrair da noção de “narcisismo das pequenas diferenças” o
impasse sempre presente nos laços sociais no que diz respeito aos termos antitéticos –
narcisismo e diferença.
Tentei colocar a Clínica Freudiana no divã. Porém, esbarrei na limitação de eu
estar muito implicada nesta história para poder bancar uma analista para analisá-la. Sou
apenas um de seus sintomas!
Resta-me interrogar, divagar e passear por alguns textos.
O que faz laço em nós e entre nós, para além de nossa paixão por Freud e
Lacan? O que faz nosso laço perdurar, apesar de vivermos em tempos de fortes
tendências a desenlaces, em que as rupturas parecem nos provar a fragilidade dos laços?
Qual o sintoma que nos enlaça?
No texto sobre a psicologia dos grupos e a análise do ego, Freud (1920) tenta
encontrar respostas para a problemática dos laços, tomando o exemplo de grupos muito
bem estruturados como o exército e a igreja. Suas contribuições ajudam-nos a pensar
sobre o que está em jogo nas diferentes configurações de laços, seja amorosos,
parentais, políticos, religiosos seja, inclusive, psicanalíticos. O que assegura a coesão
dos grupos e o que os leva a se romperem?
Freud (1920) interroga também sobre a questão da obediência, da famosa
servidão voluntária presente nos laços. O que faz com que um grupo possa permitir-se ir
às últimas consequências, docilmente submetido às ordens impostas?
Sobre coesão dos laços, Freud (1920) fala de uma estrutura libidinosa, que
repousa sobre um objeto no lugar ideal. Um chefe seria a encarnação de um objeto
colocado no lugar do Ideal do Eu. Um bando de irmãos renunciando às próprias
prerrogativas para partilhar do amor do pai, do chefe, do patrão nosso de cada dia!
Mas Freud (1920) também fala da possibilidade de um grupo sem chefe, no qual
o que liga seus membros não é algo encarnado. Pode ser um traço ideal, um gosto
compartilhado, pode ser um sintoma. A Clínica Freudiana figura como um grupo sem
filiação ‘legitimada’ por uma instituição renomada por um chefe. Temos insistido em
seguirmos juntos, relutantes ao excesso de normas e idealizações cristalizadas, em favor
da ética psicanalítica.
Com a ajuda de Lacan e outros pós-freudianos, temos aprendido que, em
qualquer grupo – com chefe encarnado ou não –, há o “Um” que unifica e opera ali,
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diferente do laço analítico, que coloca em jogo justamente o “Um” da diferença, o
“Um” sozinho. Um laço psicanalítico interroga as identificações, interroga inclusive
sobre aquilo que as funda.
Quando Freud (1920) evoca a parábola de Schopenhauer em seu texto sobre a
psicologia dos grupos, é justamente para analisar o conflito em jogo na relação do
sujeito com os outros. Segundo ele, nenhum ser humano suporta uma aproximação
íntima com os demais, pois sempre escapam sentimentos hostis. Todos nós vivemos
entre dois impossíveis: o frio e o espinho. O frio, como a impossibilidade de
sobrevivermos sozinhos, e o espinho, como a impossibilidade de vivermos juntos. A
parábola sugere um “distanciamento moderado” como uma solução insatisfatória,
porém possível. Não se esquenta muito, mas, em compensação, não se fere com o
espinho do outro.
Alteridade – nome do espinho. A aceitação da alteridade de imediato é o
impossível em jogo nas relações. Há uma exigência de trabalho psíquico para que
possamos saber o que fazer com a diferença. O início de uma vida é marcado pelo
dilema da diferença entre os sexos e sua consequente não-relação sexual. O
reconhecimento da diferença, no decorrer da história de cada um, “não cessará de não se
inscrever” e a ameaça narcísica sempre retornará.
Com a noção do narcisismo das pequenas diferenças, Freud (1920) sugere a
possiblidade de um narcisismo que não se oponha à diferença, ao contrário, se atrele a
ela. Diz Freud (1920, p. 2583):
Isso significa que o amor narcísico se rende ao amor pelo outro, pelos objetos. O
amor insiste em fazer suplência.
O narcisismo das pequenas diferenças, que distinguiria uns dos outros e, em
consequência, instauraria a hostilidade e a intolerância, ficaria suspenso no interior do
grupo, como se fôssemos uniformizados – uni-formi-zados. No entanto, sabemos que os
espinhos resistem. Inclusive porque, se a alteridade fica suspensa dentro de um grupo,
ela retorna intensamente na oposição com outros grupos.
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Dunker (2015), no primeiro capítulo do livro Mal-estar, sofrimento e sintoma,
intitulado “A lógica do condomínio”, propõe uma espécie de estudo de caso de como se
estabeleceu no Brasil o que ele chamou de “topologia da segregação" como ponto de
partida para entender como está estruturada nossa forma de vida. Os condomínios,
lançados na década de 1970, eram anunciados como promessa de felicidade, segurança,
ordem e liberdade. Vendia-se a ideia de que as pessoas poderiam ter uma moradia,
livres de seus problemas.
Esse é um grande ideal de consumo. Porém, também uma fascinante proposta de
segregação social: construir muros que isolam uma sociedade, dentro dos quais uma
civilização pode prosperar e deixar para fora tudo que possa causar incômodo e
sofrimento. As diferenças se tornariam invisíveis, a felicidade se realizaria sem
obstáculos e as leis seriam criadas para possibilitar a convivência humana gestada por
um síndico.
Entretanto, basta viver entre muros para que comece a aparecer a decepção,
espinhos daninhos que brotam nos belos jardins. A felicidade prometida sofre com as
desordens e as patologias que surgem. O narcisismo das pequenas diferenças habita o
condomínio: inveja do vizinho, competição velada, sentimentos de esvaziamento de si,
excesso de consumo, violência velada ou não. Para Dunker (2015), a lógica do
condomínio é o retorno sintomático de algo que não pode ser reconhecido.
Se o espinho resiste e retorna, Freud (1930) insiste em buscar respostas sobre o
que há de mal-estar na cultura, analisando o preço que se paga a partir das renúncias
fundamentais, necessárias à construção dos laços sociais. Ao se renunciar às pulsões
sexuais, paga-se o preço dos sintomas. Ao se renunciar às pulsões destrutivas, paga-se
com o sentimento de culpa. Por outro lado, ganha-se a possibilidade de estar com os
outros, compartilhando a busca de felicidade e completude, ambas impossíveis de serem
alcançadas.
Colette Soler (2016), em seu livro O Que faz laço?, trata tanto das forças
disruptivas dos laços,, no que diz respeito ao discurso atual de nossa cultura,, quanto das
forças disruptivas entre os psicanalistas. Ela faz um importante alerta aos grupos
psicanalíticos dizendo que “ou o Um que identifica não comanda todos os vínculos, e
então a psicanálise é possível ou ele comanda todos os vínculos e então, nesse caso, a
psicanálise nada mais é do que uma reeducação para adaptar o sujeito à tropa” (SOLER,
2016, p.27).
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Será possível manter uma instituição de transmissão da Psicanálise com o
mínimo possível de ideal do ego em cena, temperando o “Um” que unifica com o “Um”
da singularidade, prescindindo de um chefe que dita as regras como verdade absoluta?
Penso que em todos esses anos relutamos em cair nessa armadilha de estrutura
de laço comandada pelo modelo de “discurso do mestre”, modelo de instituição
criticado por Lacan, cuja crítica respalda a fundação da Clínica Freudiana.
Lacan diz que “o analista só se autoriza por si mesmo”, ou seja, ele não se
autoriza por nenhuma identificação com outro. Mas, ao mesmo tempo, um psicanalista
busca se reconhecer junto a seus pares, a seus pacientes e pela teoria que sustenta sua
prática. É preciso que ele esteja sob a nomeação de um grupo, que tenha um endereço.
Por outro lado, os psicanalistas costumam se queixar do grupo ao qual
pertencem: ora porque está frio demais, ora porque os espinhos estão insuportáveis. Por
que a necessidade de insistirmos em permanecer enlaçados aos outros?
Colette dá-nos uma pista para refletirmos sobre esse ponto ao dizer que
Como sujeitos inseridos na cultura, não estamos imunes aos efeitos das
identificações mundanas. E cada um, como analista, soube ou sabe pagar o preço do seu
sintoma e do gozo que ele produz por meio de sua própria experiência de análise. Ainda
assim, não desistimos de nos juntar às pessoas, mesmo sabendo que todo laço amoroso
vem temperado com o ódio indissolúvel. Por outro lado, ao inserirmo-nos em um grupo
de psicanálise, não deveríamos furtar-nos de relançar sempre a pergunta sobre a nossa
posição em relação aos outros, sejam quais forem nossas diferenças.
Concluo com mais duas questões a serem relançadas:
Nós, da Clínica Freudiana, estamos dispostos a pagar o preço de abrir mão das
seduções narcísicas para enfrentar a alteridade e manter nossos laços transferenciais de
trabalho, em nome de uma associação que coincida com o lugar do analista identificado
com o objeto causador de desejo?
Quanto aos nossos dispositivos de trabalho, eles de fato têm contribuído para
nossa interlocução em prol de nossa formação e, em consequência, de nossa
transmissão?
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REFERÊNCIAS
FREUD, S. (1920). Psicología de las masas y analisis del yo. In ______. Obras
completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981, v. 3.
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A instituição nômade e a solidão dos não-todo sozinhos
Resumo
Para que precisamos de uma instituição psicanalítica? Uma instituição é a instância diretamente
implicada na formação de psicanalistas por meio de seus dispositivos regulatórios e de seus
atores envolvidos. Consideramos importante nos debruçar sobre a formação e as possíveis
consequências que a normatização institucional pode produzir, identificando seus aspectos
iatrogênicos, tais como a burocratização e homogeneização, assim como seus aspectos
inventivos. Destacamos o quanto uma instituição há de ser porosa para assimilar tanto o que
continuamente se faz presente enquanto excesso pulsional (pathos) quanto o que faz mancar
(inconsciente) e baliza-se pela solidão dos não-todo sozinhos. Neste trabalho, circunscrevemos a
relação fundamental entre a instituição e o inconsciente, entre a estrutura social (campo das
políticas) e estrutura do privado (campo das pulsões e dos destinos), como uma hiância que
dinamiza a articulação entre o contingente, o necessário e o impossível. Todo processo
institucional induz a um risco calculado: a instituição imaginada. Por meio dele, a instituição é
tomada em posição de salvaguarda diante da falha fundamental. Propomo-nos pensar a
instituição como produto do próprio processo de formação analítica, e não apenas como sua
garantia. Chamamos este processo de “o mínimo de institucionalização necessária” ou “a
instituição nômade” - uma invenção singular em contínuo contraponto à inevitável ilusão
institucional.
4
Psicanalista. Membro da Associação Clínica freudiana. Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal de Uberlândia
jlparavidini@gmail.com
15
“Fundo - tão sozinho como quanto sempre estive
em minha relação com a causa psicanalítica – a
EFP (…) ” (LACAN, Outros escritos, 1971/2003,
pg.235)
História e Formação
A Psicanálise se fez sustentar enquanto uma prática profissional por meio de vários
dispositivos institucionais e discursivos. Cabe ao nosso propósito inicial destacar os intensos
embates protagonizados ilustrativamente por Sandor Ferenczi (1927) e Max Eitington (1932)
relativos aos aspectos centrais do processo de institucionalização da formação psicanalítica a
partir da policlínica de Berlin.
de um alerta para que não veja como meta o encurtamento, mas sim o
aprofundamento da análise. Ferenczi ainda acrescenta a observação valiosa
de quão fundamental é para o sucesso que o analista tenha aprendido a partir
de seus próprios ‘enganos e erros’ e que tenha adquirido domínio sobre os
‘pontos fracos da própria personalidade’ (1937/2017, p. 354).
Parece-nos pertinente evidenciar o que, para Ferenczi, implica o fim de uma análise. Ele
nos diz que:
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possa considerar que venceu a sua neurose, deve ter vencido o seu complexo
de virilidade e ter abandonado sem o menor ressentimento às potencialidades
de pensamento do papel feminino (FERENCZI, 1927/2011, p. 24-25).
Outra posição bastante distinta foi a que efetivamente veio a vigorar na Policlínica de
Berlin, vinculada ao Instituto de Berlin, fundada em 1920 por Karl Abraham e Max Eitington. O
último é reconhecidamente o grande responsável, durante os trinta anos seguintes, pela
regulamentação da formação de analista da IPA, à frente da International Training Comission
(MILLOT, 2010, p.30), além de todo o processo de equalização e homegeneização do que se
tornaria a standatização da formação dos analistas da IPA.
Se, por um lado, vemos a clara forma como Ferenczi nos alerta para a importância da
radicalidade da análise do analista, não tendo ele considerado que a analise didática pudesse se
diferir do fundamento da análise proposta aos pacientes, também vamos encontrar um
movimento de fortalecimento das estruturas institucionais que respondem por controle,
hierarquização e homogeneização. Esses impasses presentes na origem da estrutura de fundação
da instituição psicanalítica nos parecem nunca haver se dissipado de nosso horizonte coletivo.
Instituição Psicanalítica
Por que precisamos de uma instituição? O que nos faz considerar que uma instituição
psicanalítica exista? Apesar de uma instituição possuir seu estatuto, sua legislação, sua
formatação dinâmica, o que faz com que ela cumpra sua função primordial?
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O projeto lacaniano de “retorno a Freud” inclui, também, uma revigoração da formação
do analista. No texto “Ato de fundação”, Lacan nos diz:
5
Este curso ministrado por J-A Miller, em 2008-09, foi publicado em português com o título
“Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan: entre desejo e gozo”.
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semblant). Da mesma forma, isso permitiria verificar que o desejo do analista
não é uma vontade de semblante, que o desejo do analista está, para aquele
que dele pode se prevalecer, fundado em seu ser que não é e que, segundo a
expressão de Lacan, “é um querer na falta”. (MILLER, 2011, p.37).
Percorrendo uma direção mais próxima dessa última posição no tocante à relação do
analista/analisante, a instituição e sua formação (radical e contínua), Radmila Zygouris nos
auxilia a melhor formulá-la:
O que Radmila Zygouris diz-nos parece, à primeira vista, ser muito distinto daquilo que,
para Ferenczi, haveria de se esgotar ao fim de uma análise, a saber, a radicalidade da análise
finita: “nenhuma análise sintomática pode ser dada por concluída se não for, simultaneamente
ou em seguida, uma análise de carácter”. Ele próprio assevera, ao final desse seu texto, não
haver presenciado muitos trabalhos analíticos levados a esse limite, sem, no entanto, perder sua
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crença de que “quando se tiver suficientemente aprendido sobre seus modos de atuar e seus
erros, e se tiver aprendido pouco a pouco a contar com os pontos fracos de sua própria
personalidade, irá crescendo o número de casos analisados até o fim (1927/2011, p. 27). É
interessante como, a essa altura, podemos perceber como Radmila Zygouris e Ferenczi
dialogam quanto à posição crucial ocupada pelo analista e seus limites no processo clínico.
Nessa mesma direção, podemos conceber o quanto uma instituição há de ser porosa
para assimilar continuamente aquilo que há sempre do campo do excesso pulsional de seu
coletivo de analistas/analisantes e, ao mesmo tempo, daquilo que faz sempre mancar. Esse
espaço que possa dinamizar, ou melhor, que se ponha em funcionamento na articulação entre o
necessário e o contingente. Daí advêm as noções de risco calculado e de instituição
imaginarizada. Delas não podemos fugir nem da noção de risco de falência nem da instituição
que vem como salvaguarda imaginária da restituição de falha.
Como pensar uma instituição que se constitua no próprio processo de formação? Nesse
caso, ela seria produto da formação e não somente seu suposto garantidor. A isso chamamos
agora de “o mínimo de institucionalização necessária ou a instituição nômade”. Tratar-se-ia,
pois, de invenção institucional singular em contínuo contraponto à miragem institucional, ou
seja, fazendo furo na instituição imaginarizada.
Na maioria das vezes, o analista entra nas instituições para não ficar sozinho,
e ali encontra uns amigos com os quais pode jogar uma pelada. Isso também
se chama formação. A instituição só é aceitável se a considerarmos como
uma rua um tanto estreita. Isso porque em seu consultório, em sua prática, o
analista está tão sozinho quanto o goleiro na hora do pênalti. Quando tomado
pela dúvida, abre sua memória de trabalho e procura em seu aprendizado o
que poderia ajudá-lo a sair do embaraço, geralmente nada encontrando, e é
nessas horas que sai a procura dos outros analistas, para pensarem juntos e
não permanecer sozinho. Depois, procura naquilo que sua experiência de vida
20
lhe ensinou algo que lhe permita recolocar em marcha sua máquina pensante
e desejante.(ZYGOURIS 2013, p. 64).
Essa relação que vai se dar entre analista e instituição é bastante singular. Trata-se de
uma filiação não filiada, que se desloca da ideia de história ou de herança, tais quais as
disposições familiares estabilizadoras. A instituição, nesse ponto, é antes de tudo nômade, não
toda familiar, não toda estrangeira.
Essa forma de laço institucional tem a estrutura de uma “pelada” ou de um “racha”,
tomando em consideração as formulações da Radmila Zygouris, pois o termo “pelada” (sem
camisa, sem identificação adesiva a um time) permite-nos asseverar uma posição de
“permanente permutabilidade” (causa de horror e fragmentação dentro das instituições rígidas) a
cada vez que se montam e remontam os “times”. Trata-se aqui de uma “seriedade da
informalidade”.
Quando utilizamos outro significante, o “racha” (divisão contingencial/proposital dos
grupos), vamos em direção a uma formação grupal que se divide contingencialmente para que
haja uma partida ou um jogo, dentro dos regramentos mínimos necessários. Aqui, aparece-nos
mais uma vez a noção do “mínimo de institucionalização necessária ou a instituição nômade”.
Não tem juiz. Tudo se discute pelo consenso, por regras conhecidas e decididas. Trata-se de um
espaço mínimo fundamental de estabelecimento de trocas ante a solitária “paixão pela bola” e
pelas verdades não ditas.
Solidão
Um analista só se faz pela solidão que o conduz em análise, solidão estrutural e o que
isso porta do real. Na formação, tomamos a solidão para pensar, mas não todo sozinho. Então,
qual o mínimo necessário de alteridade para se fazer por si, além de si?
O que sustenta uma instituição psicanalítica é o fato de que ela produz psicanalistas.
Mas seria possível pensar um percurso de se fazer analista fora dos espaços institucionalizados?
Cremos ter demonstrado que sim. Porém, o percurso de se fazer um analista não se faz a
não ser pela relação muito peculiar que se estabelecerá com a psicanálise. Com o que da
psicanálise? Com o amor à verdade, ao inconsciente. Assim, Freud se colocava em um processo
de se debruçar sobre as suas formações do inconsciente. Continuamente se tomava como
analisante. Ao se colocar na posição de analisante, ele o faz chamando ao outro. Supervisão,
21
ensino, transmissão, teoria... são as condições para o mínimo necessário de laços
institucionalizáveis, por serem marcados por certas condições regulatórias.
Referências
LACAN, J. (1971). Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2003, p. 235-247.
MILLER, J-A. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Rio
de Janeiro: Zahar, 2011.
MILLOT, C. Sobre a história da formação dos analistas. In: COUTINHO JORGE, M.A. (Org.)
Lacan e formação do psicanalista. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2006, p.29-42.
22
HÁ UM PSICANALISTA NA CONDIÇÃO DE SE CONTAR TRÊS
Resumo
6
Mestre em Psicologia Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia. Psicanalista. Membro da
Associação Clinica Freudiana.
shnaiderasantos@gmail.com.br
23
própria posição de subversão da descoberta freudiana. O que decide sobre a qualidade
de um analista é exercer a Psicanálise tendo sido exercido, afetado por ela enquanto
uma experiência com a alteridade.
O que é a Psicanálise? Temos um problema desde Freud para especificar o que
vem a ser a Psicanálise. Freud definiu-a, pelos seus efeitos, como um método de
tratamento de afecções nervosas, mas também pelos seus conceitos, cunhados a partir
do exercício do método. Como seu exercício não se constrói senão pela instauração da
transferência, isso implica uma prática entre, aparentemente, duas subjetividades,
atravessada pela alteridade de saída: podemos dizer, da fantasia, do Outro. Portanto, um
método, uma técnica, uma teoria. Assim, a relação necessária entre quem a pratica e
essa prática passa, também, por uma transferência com os textos do fundador, pela
relação contingente com algum pós-freudiano e, finalmente, por uma escolha singular
em relação a esse saber compilado durante mais de 100 anos. Então, a Psicanálise é um
saber, e quem a pratica não deixará de se afetar por isso. Entretanto, é também da ordem
de uma experiência, de uma prática que trata com um saber – acrescentemos à definição
já clássica – que não se sabe. Aquilo que é possível saber, digamos que vai se sabendo à
medida do exercício e, fundamentalmente, aquilo que o saber não pode abarcar e que
seria da ordem do real impossível e inapreensível simbólica e imaginariamente, mas que
se presentifica contundentemente na vida e na clínica. Insabido que se constrói e se
impõe.
Avancemos! Tratar com o insabido, para fazer surgir algo do impossível mesmo
de se saber. Então, o que define a qualidade de um psicanalista é esse saber
insabido/insabível. Eis a própria questão com a qual operamos na Psicanálise e que
opera em um analisante. Aqui a lembrança de que o termo alemão que designa o
inconsciente significa literalmente insabível. O consciente é um saber que se sabe, e o
inconsciente é um saber que não se sabe. Lacan o chama em muitos momentos de saber
Outro. Atentemos para o Outro.
Daí, podermos dizer, com Lacan, que a Psicanálise é um discurso, posto num
tempo e que opera sobre outros discursos. Por isto, ele nos diz que a subversão
freudiana operou sobre determinado discurso de seu tempo, porque essa subversão
escancara aquilo que o discurso de nosso tempo visa recalcar: justamente o insabido, o
insabível e o mal estar decorrentes daí, os padrões que se estabelecem, as miragens de
identificações que visariam garantir o amparo do desamparo, etc... Todo esse discurso
sobre o humano, sobre a subjetividade, todos os arranjos simbólicos e imaginários
24
construídos durante nossa estadia no mundo foram subvertidos com Freud e o são em
uma análise. Digamos que construímos bússolas necessárias e com elas negações sobre
nossa condição. Desprender da bússola, tendo sido guiado por ela e... fazer algo com
ISSO, isso é Psicanálise.
Se a Psicanálise é esse discurso de desconstrução de um saber, então o que é um
discurso? É um laço social. E os laços sociais só se fazem pela via dos discursos.
Discurso e laço entrelaçados seriam um modo de tratamento do gozo pela linguagem,
permitem, assim, o estabelecimento das relações entre as pessoas. Isso implica a
renúncia da tendência pulsional de tratar o outro como um objeto a ser consumido
(QUINET, 2006). Um discurso é uma quantidade de trabalho, um modo de trabalho que
viabiliza uma relação entre seres falantes. Em geral, todos os discursos escamoteiam o
insabido, o insabível. O discurso psicanalítico não. Ele visa operar com isso.
Freud esforça-se para dizer o que é Psicanálise. Faz isso pela via dos conceitos.
recalque, sexualidade infantil, complexo de Édipo, resistência. No entanto, mesmo
descrevendo conceitos fundamentais para afirmar o campo psicanalítico, isso não
impediu nem que os conceitos se tornassem preceitos nem que uma variedade de
práticas fosse nomeada como Psicanálise. Lacan, por sua vez, tenta extrair do discurso
freudiano aquilo que tem valor de causação e não as regra e regulamentos técnicos. As
construções freudianas têm valor de conceitos que nos fazem trabalhar, nos põe a
trabalho, e não de preceitos que devem ser seguidos. Caso isso não seja levado em
conta, teremos religião, e não Psicanálise. E basta ter uma amarração neurótica para se
ter um religioso.
Então, a Psicanálise é um discurso, único discurso que possibilita a emergência
do insabido e insabível, único discurso que opera com nossa condição de mal-estar, sem
a denegar. Aí temos um problema, porque, ao mesmo tempo em que fazemos uma
afirmação contundente de ruptura, subversão e definição da Psicanálise, apontamos para
a questão de que, se a psicanálise é o tratamento que se espera de um psicanalista, então
operar de uma posição em que o insabido e insabível sejam acolhidos como uma
verdade, mesmo que semi dita, é a condição de um analista. E como “saber” se alguém
está em posição de analista? Sim, porque o analista não é, ele está em posição de. Certas
recomendações de Freud e instituições criadas por ele e por nós têm, também, a função
do controle desse saber. O que, como já sabemos, funciona pouco ou não funciona.
É por isso que o esforço de Lacan foi o de explicitar o dispositivo analítico e
fazê-lo operar tanto na análise, quanto na supervisão, quanto na instituição e também
25
nos seminários ou estudos teóricos. A formação é uma só: é preciso que sejamos
causados, chamados a responder e a nos responsabilizar por nossos atos e falas.
A análise, a formação é uma experiência cuja operação essencial é de ordem
ética. Aquilo que, de transformação, se produz com o trabalho do inconsciente em
análise, deixa em aberto novas produções. Por isso, a formação é a constância de um
trabalho que nos põe a trabalho constantemente. Há a responsabilidade pelo que se faz,
pelo que se diz e pelo que não se pode dizer. E o analista é aquele que pode se abster de
interpretar. Nesse sentido, vai na via contrária dos outros discursos e práticas, cuja
tendência – humana aliás – é abundar no sentido. A Psicanálise, portanto, opera com o
real, o fora do sentido.
Então, como “saber” se alguém está em posição de analista? Não sabemos, a não
ser por seus efeitos e retornos nos espaços de formação. A prática é profundamente
solitária. A Psicanálise requer empenho por parte do analista para sustentar a verdade da
condição humana – da falta de objeto para a satisfação da pulsão – e operar com a
condição de tragicidade do humano. “Portanto, o que se impõe na experiência analítica
não é, primordialmente o ideal de cura, mas a finalidade de constituição de um estilo
para o sujeito, que seria regulada nos registros ético e estético” (Birman, 1997, p.12). O
analista se oferece para essa operação para o sujeito, não sem ter, ele mesmo, vivido
essa experiência em sua própria carne como analisante. É uma experiência árdua
submeter-se à loucura da associação livre e ser surpreendido pelo insabido e incabível,
material de que é feito. Na verdade, estar disposto a se ver habitado pelo três, terceiro
que nos habita. Os efeitos vão além dos terapêuticos: produz uma relação com o
estranho que me habita, como três, como terceiro. Como Outro.
A segunda afirmação de Lacan N está na aula de 5 de abril de 1974. Ele citará a
proposição de que o psicanalista só se autoriza por si mesmo e por alguns
outros. (LACAN, 1967).
Assim, um psicanalista só poderá ser UM, havendo, claro, muitos UMs. Porque
a experiência da formação é UMA. Porém, não sem contar com o outro. O analista
autoriza-se não por seu eu: “agora vou me dar o título de analista”, posto que título não
há. Existe um lugar, uma posição. A autorização advém dessa experiência com sua
própria tragicidade, incompletude e desamparo, experiência vivida com dor, em que o
sujeito se autoriza a partir de seu inconsciente que é Outro...saber. Não de seu
narcisismo, que não reconhece outro. Mas de sua divisão posta a céu aberto. Daí ser
uma experiência sempre aberta e posta à prova para si e para alguns outros.
26
A formação, a supervisão, a instituição, o estudo funcionarão, assim como a
análise, justamente para pôr à prova o narcisismo que exclui o outro e o desejo ético de
sustentar esse lugar da Psicanálise – lugar sempre êxtimo, estranho, de ruptura. Assim,
pode haver um fomento do narcisismo em que o eu se autoriza analista: “Eu sou!”. Aí
não há um analista, pois um analista posto em posição de, na verdade, se sustentou na
própria análise e formação lá onde não é. Seu caminho é o do “penso onde não sou,
logo, sou onde não me penso.” (LACAN, 1966, p.521). Essa é a viagem. Conforme nos
aponta Coutinho Jorge:
Porque esse ser insabível pensa sem poder pensar com a certeza cartesiana, pois
só pode surgir por um ato de reconhecimento na presença do Outro. Por isso, a posição
de analista faz-se pelos meandros do inconsciente e pela responsabilização pelo modo
de gozo e de sintoma que se pôde produzir. E isso ocorre nunca sem uma fala
endereçada a um outro que sabe silenciar.
As instituições, por exemplo, escolas, precisam funcionar assim e de um jeito ou
de outro funcionam, averiguam, provam, expõem os narcisismos. Por isso, a experiência
com seu inconsciente pode autorizar um psicanalista, mas ele deverá ser responsável por
seu desejo posto à prova, não mais para o grande Outro, travessia pela qual foi levado
na análise, mas para os outros. Não há psicanalista sem o outro.
Ele não é. Está em posição de. E as relações, quer sejam analíticas,
institucionais, quer de estudo, atestam isso. O ato de um analista em sua prática lhe
causa horror. Há que se operar com a angústia. O ego pode dizer “sou analista”, porém,
a clínica e as relações que publicam nossa práxis irão nos testemunhar a solidão, a
tragicidade e o desamparo do dia a dia da clínica.
Então, haverá Psicanálise e psicanalista na condição de seu exercício por alguém
que esteja na posição, sempre aberta, de. E a transmissão será possível à medida que
puder transmitir o resto que resta do trabalho e a falta e o desamparo como condição
irrevogável do ser.
27
Referências
BIRMAN, Joel. Estilo e modernidade em Psicanálise. São Paulo: Ed. 34, 1997.
______. (1974) Aula de 5 de abril. In: LACAN, J. O Seminário 21: Les-non dupes-
errent. Inédito.
QUINET, A. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
28
A (DE)FORMAÇÃO DO ANALISTA: UMA QUESTÃO SOBRE O ESTILO
Resumo
Os impasses sobre a formação do psicanalista têm se colocado para mim a partir da
questão sobre o que faz um sujeito em seu percurso de formação em psicanálise que
possa ser aproximado à depuração de estilo, algo próprio, particular, o “algo de si” que
Lacan nos aponta na abertura de seus escritos. Sabemos que o estilo não diz respeito aos
traços de personalidade pertencentes ao campo imaginário, tampouco às identificações
simbólicas que podem atravessar o sujeito em seu percurso de formação. Nesse
trabalho, pretendo discorrer sobre o que se depura no percurso de uma formação,
sustentada no tripé da supervisão, da clínica psicanalítica e principalmente da análise
pessoal enquanto travessia da fantasia e queda do objeto. O resíduo do fim de uma
análise esvaziado da imaginarização é o que pode fazer operar o desejo de analista e a
depuração de um estilo, rasgo do qual torna-se possível a (de)formação de um sujeito
em um analista.
29
mesmo que ainda me encontre per curso. Efeitos que me lançam na direção de um
querer saber sobre isso. Encontro-me em formação.
Sobre esse aspecto, Fingermann (2016) afirma que o que se passa numa
formação analítica diz respeito mais a uma (de)formação em relação ao sujeito do que
de fato a uma formação, como de um dentista, enfermeiro ou psicólogo, conforme já
nos advertia Lacan.
Inspirada pela formulação da autora, pretendo articular os operadores dessa
(de)formação do psicanalista com a noção de estilo que, cabe esclarecer, não diz
respeito aos traços de personalidade pertencentes ao campo imaginário, tampouco às
identificações simbólicas que podem atravessar o sujeito em seu percurso de formação.
Seria o estilo o que resta na formação do analista? Para responder à essa questão,
traçarei alguns pontos que Lacan articula em seu ensino.
Na abertura da coletânea de textos dos Escritos, Lacan lança mão da retórica de
Buffon, afirmando que “o estilo é o próprio homem” (Buffon, 1753, apud Lacan, 1966,
p. 9). Ao longo de seu artigo, Lacan subverte a afirmativa de Buffon de modo a servir-
se dela para a questão do estilo em psicanálise. A subversão que ele propõe é a partir da
noção do homem: “o estilo é homem a quem nos endereçamos”. Sabemos que, para a
psicanálise, o homem a quem nos endereçamos diz respeito ao Outro, que reenvia a
mensagem, de forma invertida. Nessa dobra que Lacan produz, a afirmativa é
dessubjetivada, o que o leva a afirmar, ao final desse artigo que:
30
um lugar na vida para o sujeito, o que se opera em uma análise, mais especificamente no
fim de análise, nomeadamente a travessia da fantasia (Iannini, 2012).
No seminário XVI, de um Outro a outro, Lacan afirma:
a análise articula o objeto a pelo que ele é, ou seja, causa do desejo, isto é, da
divisão do sujeito, daquilo que introduz no sujeito o que o cogito mascara – a
saber, que, ao lado desse ser do qual ele crê assegurar-se, o a, essencialmente
e desde a origem, é falta (p. 333. Sem 16).
Nesse mesmo seminário, Lacan lança mão do tetraedro que havia desenvolvido
no seminário sobre “A lógica da fantasia” e desenvolve toda uma articulação lógica do
percurso de uma análise, desde a entrada do sujeito do cogito cartesiano ao que se
espera dos efeitos de uma análise, um certo saber sobre o objeto a, aquilo que é
mascarado pelo cogito. Ou seja, é no percurso de uma análise que o sujeito se depara
com o intransponível da sua condição de falta originária.
Há, portanto, uma relação entre saber e verdade a qual uma análise atravessa. A
verdade do sujeito, como o que só pode ser semi-dita, dada a condição da divisão
subjetiva, é falta. E é sobre essa falta que o saber passa a ter que operar. Como sujeito
suposto saber, o analista opera do lugar mesmo desse objeto a, não com um saber a
mais, mas com um saber fazer sobre o impossível.
Queda do objeto quer dizer, pois, perda de gozo. (...) tal perda de gozo pode
ser aproximada do que Miller chamou de peças avulsas, algo que não se
emenda na significação. Esse resíduo da análise é também chamado de
sinthome. Esse precipitado de gozo desarmônico em relação à cura requer
que o sujeito faça sua bricolagem, decerto precária, mas em cuja invenção
revela-se o estilo absolutamente singular através do qual cada um pode se
haver com sua peça desconexa. (Teixeira, Iannini,2012)
31
Assim, na passagem de psicanalisante a psicanalista, há o efeito de destituição
subjetiva, que aproxima o sujeito de sua verdade, de um saber fazer com seu sinthoma.
Ao mesmo tempo em que trabalhava no seminário XV, Lacan escrevia a Proposição de
09 de outubro de 1967, no qual, ante essa constatação de que, no ato psicanalítico como
ato inaugural de uma psicanálise, o que se encontra é pura perda na dessubjetivação, ele
interroga se isso não seria desestimulante aos psicanalistas amadores, “a destituição
subjetiva gravada no bilhete do ingresso” (Lacan, 1967, p. 257).
Então, perguntemo-nos: o que nos faz prosseguir com o bilhete na mão? Se não
há promessas ou garantias na formação do psicanalista, o que fazemos aqui? Penso que
a resposta que a Psicanálise oferece desde Freud está no desejo. O desejo de querer
saber sobre Isso, transmitido como peste, desde Freud.
O trabalho que aqui proponho, embora trate de um aspecto bastante particular,
que diz respeito ao estilo, a isso que é o próprio mais próprio de cada um, a experiência
solitária de autorizar-se por si mesmo, só pode se sustentar na articulação com “os
outros”.
Os dispositivos pelos quais tenho transitado, análise, supervisão, cartéis,
núcleos, seminários e as instituições com as quais estabeleço transferência,
especificamente a que me encontro mais implicada, a Clínica Freudiana, parecem
compor uma rede de sustentação mínima, um enodamento, na formação em psicanálise,
esse anteparo simbólico-imaginário fundamental ante o real implicado na formação.
Sonia Leite afirma que
No que diz respeito ao estilo, penso que ele se aproxima do conceito de invenção
e de sinthome proposta por Lacan, esse impossível de ser nomeado.
Nessa direção, prosseguindo com as questões, fiz uma associação livre... uma
poesia que me fez pensar no percurso de uma análise. Cabe uma advertência: na poesia,
aparece o significante Deus. Convém desimaginalizá-lo, esvaziá-lo... eu fiz uma leitura
32
mais aproximada da filosofia zen, lembrando também que Lacan faz certa equivalência
entre a psicanalise e a pratica zen na introdução do Seminário 1.
33
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GIL, G. 1980. Se eu quiser falar com Deus. Luar. São Paulo: Warner, 1981.
LACAN, J. (1966). Abertura desta coletânea. IN: Escritos. Trad. Vera Ribeiro. RJ:
Jorge Zahar Ed.,1998.
LACAN, J. O seminário: o ato psicanalítico. Livro 15. (s.d., versão anônima). 1967-
1968.
34
“O que há entre nós”? Do saber ao amor entre analista e analisando na cena analítica
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre o que há entre analista e analisando,
assim como o que constitui esse vínculo diferente de qualquer outro laço social. Tendo o
fenômeno da transferência como norte para essa discussão, pretende-se abordá-lo desde a
inauguração do conceito freudiano até a apropriação lacaniana do termo, enfatizando a
manifestação clínica na análise da neurose. Fazendo uma breve retomada ao surgimento do
método psicanalítico e abandono da hipnose por Freud até a releitura lacaniana do conceito de
transferência, vinculada ao desejo do analista, procura-se pensar o que se dá do lado do
analisando e do lado do analista, na composição da cena analítica, assim situar o saber e o amor
que enlaça, de modo diferente, analista e analisando, no processo psicanalítico que visa à
produção, à criação, semelhante ao que se experimenta no amor, a partir do que falta.
Entendendo a transferência como alicerce para essa discussão. Pretendo abordá-la desde
a inauguração do conceito freudiano até a apropriação lacaniana do termo, enfatizando sua
manifestação clínica na análise da neurose.
7
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia, Membro associado da Associação
Clínica Freudiana de Uberlândia.
margonarianaisa@gmail.com
35
Nessa perspectiva, intenciono pensar o que se dá do lado do analisando que procura o
dispositivo analítico, sustentado pela crença de encontrar um saber no psicanalista, que, por sua
vez, somente pode o sustentar a partir de seu desejo de analista.
Objetiva-se pensar esta relação, analista e analisando, que não é recíproca, dual,
especular, intersubjetiva, mas se configura a partir de uma ética, a da psicanálise, do desejo
inconsciente, viabilizada pela transferência.
Após dois anos de trabalho com Anna O., ocorre um imprevisto, ela se apaixona pelo
seu médico, Joseph Breuer, o qual, pressionado pela esposa enciumada para finalizá-lo,
comunica a decisão à paciente. Ela, que estava melhor clinicamente, ao saber da decisão do
médico, apresentou uma crise histérica, na qual simulava o parto do filho dele.
36
do método catártico, o que o paciente experimenta em uma análise não é apenas a repetição do
encontro traumático, faltoso com o Outro, mas a possibilidade de recriar, inventar meios para o
sujeito ir além dessa repetição.
37
Mas, para além da repetição, a transferência também é amor por onde o inusitado pode
aparecer, algo pode se criar, se inovar. Ela tem a ver com o amor, com a demanda de ser amado,
e, na análise, isso será acolhido, encaminhado e desmontado ao final do
tratamento (MAURANO, 2006).
O sujeito, ao procurar um psicanalista, supõe um saber que lhe intriga justamente por
que lhe escapa. Ele supõe que esse Outro analista saiba e garanta a verdade última sobre seu
próprio ser. A essa suposição de saber localizado no Outro, encarnada pelo analista, Lacan
denominou Sujeito Suposto Saber. Logo, o saber localizado ao lado do analisando diz respeito a
esse endereçamento ao analista como sujeito suposto saber. Por isso, é fundamental para o
trabalho analítico que o analista localize, a partir da transferência, a posição em que o
analisando o coloca, assim maneje a transferência a partir de uma função específica, a de objeto
causa de desejo (a) e não a partir da própria divisão subjetiva ($).
O saber do lado do analista, por sua vez, não está no mesmo lugar que o do analisando.
Tendo experimentado na própria análise o encontro faltoso com o Outro, destituindo o Outro do
lugar suposto saber, ele conduz o analisando a fazer o mesmo.
38
Pretendendo demarcar a maneira do amor operar no processo analítico a partir do desejo
do analista, Lacan recorre ao discurso de Sócrates, um dos personagens do Banquete, e
demonstra que a ética que orienta o trabalho psicanalítico é inspirada por uma estética, por uma
sensibilidade particular.
Mas há análise que possibilite saber fazer algo com o sintoma, com o sofrimento, a
partir da criação, de uma invenção, construída singularmente entre os nós que ligam o analista
39
ao analisando, como afirma Lacan em cada “leito de amor” que configura a cena analítica.
(LACAN, 1960-61).
Referências
FREUD, Sigmund (1893). Casos Clínicos (Breuer e Freud). In: FREUD, Sigmund. Estudos
sobre a histeria. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p 57-81. (Edição standard das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, II).
40
Atendimento online: reflexões sobre a clínica psicanalítica na atualidade
Margarete A. Domingues8
Resumo
8
Psicanalista, Mestre em Psicologia, Membro da Associação Clínica Freudiana de Uberlândia.
41
Lacan (1998) apresenta o analista como quem porta um estilo, pois é a ele que o
sujeito fala livremente, o que implica escrever um espaço no qual exista lugar para que
o analisante coloque algo de seu. Ouvir e escutar o que permanece de indizível nas
entrelinhas, ou entre palavras, é função do analista.
Rennó Lima (2013) assinala que a presença do analista é uma presença na qual
está implicada uma perda pura. A presença do analista se faz a partir do “desejo do
analista”, que é um vazio a ser sustentado como causa, o qual pode se apresentar com
seu silêncio, mas garantindo presença com seu corpo.
O psicanalista Marcus André Vieira (2009) afirma que a presença do Outro
analista se apresenta em uma análise como objeto. Enquanto o sujeito está em todo e em
nenhum lugar, o objeto está sempre no mesmo lugar.
As afirmações acima sobre a posição do analista instigaram-me a rever minha
própria posição sobre atendimento online. Se a presença do analista se faz a partir de
seu desejo de analista, por que não considerar a possibilidade de atender tal demanda,
avaliando o caso a caso?
Alberti (2000) assinala:
43
Se a Psicanálise vai na contramão dos pressupostos da lógica consumista, é no
caso a caso que um analista irá atender à demanda de cada sujeito que o procura para se
analisar, no consultório ou utilizando recursos da internet. O que importa é como ele vai
sustentar seu lugar a partir de seu desejo de analista, e como irá conduzir o tratamento
do analisante, colocando-se como objeto causa de desejo para que o último possa
atravessar sua fantasia fundamental, e o que fará com os efeitos disso no processo
analítico.
Para finalizar, vou recorrer a uma citação de Laurent, em que apresenta uma
definição poética da Psicanálise, a qual ajudando a me orientar no caminho escolhido e
a discernir sobre as demandas recebidas dos analisantes:
a psicanálise é uma aventura pessoal, deve ser vista como uma história de
amor. As histórias de amor não duram para sempre, mas duram por um
tempo. Há pessoas que têm histórias de amor rápidas e múltiplas. Nesse
sentido, é também necessário existir um tratamento rápido e múltiplo. Há, em
contrapartida, as aventuras mais longas, nas quais o objetivo é mudar o
estado das coisas no interior de si mesmo. Assim é a psicanálise: a cura como
aventura pessoal, e também um tratamento.. (Laurent, 2017, p.2-3)
Referências
ALBERTI, Cristiane. Presença do analista. Não sem o corpo... IN: A sessão analítica:
dos riscos éticos da clínica. Textos reunidos pela Fundação do Campo Freudiano. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
RENNÓ LIMA, Celso. Como Agir com seu ser: Sobre o Desejo do Analista (II).
Disponível em: http://clinicalacaniana.blogspot.com.br. Acesso em 26/03/2017.
44
45
Fliess, supervisor de Freud9
9
Texto gentilmente cedido pelo autor, tendo sido publicado originalmente na “Correio – Revista de
Psicanálise”, nº 73, 2013.
46
E aqui temos a aplicação prática que foi prometida. Pegue algumas
folhas de papel e por três dias a fio anote, sem falsidade ou hipocrisia,
tudo o que lhe vier à cabeça. Escreva o que pensa de si mesmo, de sua
mulher, da Guerra Turca, de Goethe, do julgamento de Fonk, do Juízo
Final, de seus superiores, e, quando os três dias houverem passado,
ficará espantadíssimo pelos novos e inauditos pensamentos que teve.
Esta é a arte de tornar-se um escritor original em três dias. (FREUD,
1920, p.317)
47
respeito dos mistérios da sexualidade humana, o que se pode considerar “Sq”
(significante qualquer) da transferência. O interesse científico similar explicaria a
insistência com que Freud solicitava opiniões sobre as ideias que surgiam, mas não o
amor incondicional manifesto em suas cartas. Freud via na relação uma vertente
homossexual. A transferência de Freud em relação a Fliess é sem dúvida uma
transferência analítica, como o demonstram certas passagens da correspondência entre
ambos. O amor de transferência é o motor do trabalho que permite a Freud decifrar seu
próprio inconsciente.
Freud se dirige a Fliess como a um mestre e os pedidos de resposta, de atenção e
de encontros demonstram claramente o lugar diferenciado que este ocupava. Os
silêncios de Fliess diante das demandas de Freud e seu menor devotamento ao colega
criaram certa dissimetria na relação, o que pode ter sido o fator de sustentação do amor
transferencial durante todo o tempo da relação.
Seguem-se trechos de cartas, organizadas por datas e páginas referentes ao livro
de Jeffrey Masson, que mostram a relação analítica ou tratam da questão teórica.
Na carta de 1º de agosto de 1890, Freud escreveu: “... do ponto de vista médico, eu sem
dúvida me beneficiaria de sua presença e, talvez, também da atmosfera de Berlim, já
que faz muitos anos que estou sem nenhum mestre; estou mais ou menos
exclusivamente envolvido no tratamento das neuroses” (MASSON, 1986, p. 27).
Freud, além de declarar que seu estado geral poderia melhorar pela proximidade
com Fliess, desculpa-se por não dar a atenção necessária às teorias deste, por estar
absorvido em seu próprio trabalho.
Carta de 21/5/94:
Carta de 22/6/94:
48
me dizer numa situação dessa natureza, ou seja, tudo o que se sabe.
(MASSON, 1986, pp. 84-85).
Freud utiliza uma afirmação de Fliess para pedir-lhe que diga tudo o que sabe
sobre o seu inconsciente, sem subterfúgios (ver a carta em português).
Carta de 26/4/95:
Você me parece zangado quando se envolve tão persistentemente
num manto de silêncio. Terá razão, se estiver zangado comigo por eu
não ter mandado as provas tipográficas que anunciei... (MASSON,
1986, p. 127).
Quando volto a ver sua letra, vivo momentos de grande alegria, que
me permitem esquecer grande parte de minha solidão e carência.
(MASSON, 1986, p. 155).
49
É interessante que Freud aqui marque a escrita como sinal da presença de Fliess,
pois dirá mais tarde que a análise não se faz “in absentia ou in effigie” (FREUD, 1912,
p. 143).
Carta de 1/1/96:
Sei que você não precisa tanto de mim quanto eu de você, mas sei
também que tenho um lugar seguro em sua afeição(...) Observo que,
pela via tortuosa da clínica médica, você está alcançando seu ideal
primeiro de compreender os seres humanos enquanto fisiologista, da
mesma forma que alimento secretamente a esperança de chegar, por
essa mesma trilha, a minha meta inicial da filosofia. Pois era isso o
que eu queria originalmente, quando ainda não me era nada clara a
razão de eu estar no mundo. Durante as últimas semanas, tentei
repetidamente dar-lhe alguma coisa em troca de suas comunicações.
ȋ ǡͳͻͳʹǡǤͳͲȌǤ
50
Carta de 4/10/97:
Freud diz que se analisar como “um estrangeiro” (um estranho) é tarefa
impossível. Assim, é fácil afirmar que o bloqueio na discussão com Fliess sobre seu
próprio caso reside mais na supervisão do que na análise propriamente dita.
Carta de 9/6/98:
Muito obrigado, também, por sua crítica. Sei que você empreendeu
uma tarefa ingrata. Sou suficientemente razoável para reconhecer que
preciso de sua ajuda crítica, pois nessa situação eu mesmo perdi o
sentimento de vergonha que se exige de um autor. Portanto, o sonho
está condenado. (...) Como você sabe, um lindo sonho e nenhuma
indiscrição... não coincidem.ȋ ǤͳͻͳʹǡǤ͵ͳȌǤ
51
coisa seria fácil e agradável de contar, mas (...) vou guardá-la para
nosso congresso da Páscoa (...).
Em segundo lugar, captei o sentido de um novo elemento psíquico
que concebo como tendo significação geral e sendo um estágio
preliminar dos sintomas (antes mesmo da fantasia).ȋ ǤͳͻͳʹǡǤ
͵͵ͻȌǤ
Como você vê, tão logo não se quer falar sobre as próprias
preocupações ou sobre a própria ciência não nascida, desliza-se para
os mexericos. Chega disso.ȋ ǤͳͻͳʹǡǤ͵ͺʹȌǤ
Freud percebe claramente seus subterfúgios para não entrar em questões que se
apresentam ainda de forma confusa
Carta de 7/8/01:
À parte qualquer outra coisa que possa restar do conteúdo, você pode
encará-lo como um testemunho do papel que você desempenhou para
mim até agora (...) Precisarei de aproximadamente seis meses para
reunir o material e espero descobrir que agora é possível executar
esse trabalho. Mas, nesse caso, vou precisar de uma discussão longa e
séria com você. A ideia é sim sua. Você se recorda de eu lhe ter dito,
anos atrás, quando você ainda era especialista e cirurgião nasal, que a
solução estava na sexualidade. Muitos anos depois, você me corrigiu,
dizendo que estava na bissexualidade – e vejo que tinha razão. Assim,
talvez eu precise tomar mais ainda coisas de empréstimo a você;
talvez meu senso de honestidade me obrigue a pedir-lhe que seja co-
autor do trabalho comigo; desse modo, a parte anatomobiológica
ampliaria seu alcance – a parte que, se eu fizesse sozinho, seria
minguada. Eu me concentraria no aspecto psíquico da sexualidade e
na explicação do neurótico. Esse é, portanto, o próximo projeto para o
futuro imediato, que espero torne a unir-nos adequadamente também
nos assuntos científicos.ȋ ǤͳͻͳʹǡǤͶͶͺǦͶͶͻȌǤ
52
Quando a transferência se mostra em declínio, ainda há tentativas de Freud de
incluir em suas elaborações as teorias de Fliess, mas estas aparentam mais deferência do
que interesse real. Certas passagens de suas cartas mostram o desejo de que Fliess se
interesse pela elaboração freudiana, contribua com ela e a critique.
Carta de 10/7/93:
Carta de 6/6/94:
A mescla de lugares ocupados por Fliess fornece dois dos pontos fundamentais
da formação psicanalítica. A formação médica, que Freud lamenta não ser a mais
consistente, soma-se aos estudos que faz da psicologia da época, à literatura e à
filosofia, que confessa ser o seu maior interesse.
Carta de 29/9/93:
Que o seu diagnóstico estava certo é algo que eu já sabia, já que você
destrói todas as minhas faculdades críticas e realmente creio em você
em tudo.ȋ ǤͳͻͳʹǡǤͷȌǤ
Carta de 7/2/94:
53
Você tem razão – o vínculo entre a neurose obsessiva e a sexualidade
nem sempre é tão óbvio. Posso assegurar-lhe que, em meu caso 2
(premência urinária), também não foi fácil de localizar (...).ȋ Ǥ
ͳͻͳʹǡǤȌǤ
Carta de 21/5/94:
Carta de 23/8/94:
Freud apresenta um caso que considera “brando” e o discute com Fliess, atendo-
se à questão orgânica para explicar o quadro, e referindo-se à importância do relato
verbal.
Carta de 29/8/94:
54
Afirma que sua potência foi sempre instável, admite a prática da
masturbação, mas não demasiadamente prolongada; vem agora de um
período de abstinência. Antes disso, estados de angústia à noite. Será
que fez uma confissão completa?ȋ ǤͳͻͳʹǡǤͻȌǤ
Dentre uma série de casos relatados, Freud apresenta este, que não o convence
totalmente. A pergunta final não deixa de ser um pedido de orientação.
Carta de 24/1/95:
Nas conjecturas de Freud sobre aceitar ou não pacientes, destaca-se várias vezes
a situação financeira sobre as quais fala com Fliess. Nas passagens abaixo, é muito fácil
ver Freud como um iniciante da prática analítica, preocupado com os ganhos tanto
quanto com a ética.
Carta de 8/3/95:
Trata-se de um caso encaminhado a Freud com hipótese de histeria, mas que este
diagnostica como sífilis e encaminha para tratamento. Freud é bastante cuidadoso com o
caso; seus relatos, porém, referem-se ao acompanhamento médico. Embora não fosse
um caso importante para suas construções, dele se encarrega aparentemente por
deferência a Fliess.
Carta de 23/3/95:
55
Da próxima vez vou mandar-lhe um maço de anotações de uma
análise que estou conduzindo agora, porque é muito louca. Mas não
sei se será possível desfrutar dela sem meus comentários, e se não
seria preferível deixar isso para uma hora em que estejamos juntos.
ȋ ǤͳͻͳʹǡǤͳʹͶȌǤ
Surge aqui novamente a importância da presença física. É como uma plateia que
Fliess funciona para Freud.
Carta de 31/10/95:
É interessante Freud dizer que suas teorias devem “fluir para o estuário clínico”.
Ele elabora a teoria e então tenta verificá-la na clínica, apresentando seus casos à Fliess
a fim de verificar sua coerência.
Carta de 8/12/95:
É manifesto o respeito de Freud pela opinião de Fliess, porém fica claro que, em
termos do trabalho psicológico, a competência de Fliess não está à altura.
Carta de 2/4/96:
56
Quando jovem, eu não conhecia nenhum outro anseio senão o de
conhecimentos filosóficos, e agora estou prestes a realizá-lo, à
medida que vou passando da medicina para a psicologia. Tornei-me
terapeuta contra a minha vontade; estou convencido de que dadas
certas condições relativas à pessoa e ao caso, posso definitivamente
curar a histeria e a neurose obsessiva.ȋ ǤͳͻͳʹǡǤͳͺͳȌǤ
Carta de 16/4/96:
Carta de 26/4/96:
Carta de 30/5/96:
Freud dispensa Fliess de comentários, porém não abre mão de expor seus
avanços à“plateia”.
Carta de 22/12/96:
57
Em nosso próximo congresso, espero que haja coisas importantes
para conversarmos. Acho que na Páscoa, no máximo, talvez em
Praga. Quem sabe, nessa época, eu já tenha levado um caso a termo
(...) O trabalho para Nothnagel deverá estar pronto dentro de duas
semanas. Também posso dar-lhe algumas notícias sobre G. de B. Seu
diagnóstico estava absolutamente correto. ȋ Ǥ ͳͻͳʹǡ Ǥ ʹʹͲǦ
ʹʹͳȌǤ
Carta de 29/12/97:
Carta de 27/9/98:
Ora, uma criança que molha habitualmente a cama até os sete anos
(sem ser epilética ou coisa parecida) deve ter experimentado alguma
excitação sexual em época mais precoce da infância. Espontânea ou
por sedução? Aí está, e isso deve conter também a determinação mais
específica no tocante às pernas.ȋ ǤͳͻͳʹǡǤ͵͵ͲȌǤ
Carta de 26/11/99:
58
Chega a ser engraçada a forma como Freud desabafa. Pode-se pensar que escutar
tais desabafos também faz parte da função de controle/supervisão.
Carta de 16/4/00:
Carta de 25/4/00:
Casos com este são apresentados como reflexão sobre a prática clínica e as
considerações teóricas.
59
Carta de 12/6/00:
Carta de 18/6/00:
Carta de 19/9/01:
Em meu íntimo, sei que o que você disse sobre minha atitude perante
seu grande trabalho é injusto. Sei quantas vezes pensei nele com
orgulho e vibração e como fiquei perturbado quando não consegui
acompanhar uma ou outra conclusão sua. Você sabe que me falta todo
e qualquer talento matemático e que não tenho memória para números
e medidas (...) Para quem continuo a escrever? Se, no instante em que
uma interpretação minha o deixa pouco à vontade, você fica pronto a
concordar em que o “leitor de pensamentos” não percebe nada no
outro, meramente projetando seus próprios pensamentos, você
também já não é mais minha plateia e deve encarar todo o meu
método de trabalho como tão imprestável quanto os outros o
consideram. (FREUD. 1912, p. 451).
Carta de 26/7/04:
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Nuremberg, quando eu ainda estava deitado e você me contou a
história clínica da mulher que sonhava com cobras gigantescas. Na
ocasião, você ficou muito impressionado com a ideia de que as
correntes subjacentes da mulher pudessem provir da parte masculina
de sua psique. Por essa razão, fiquei ainda mais intrigado com sua
resistência, em Breslau, à pressuposição da bissexualidade na psique.
(FREUD. 1912, p. 466).
Referências
FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência (1912). IN: Obras completas, vol. XII,
Imago Editora Ltda., 1969.
FREUD, Sigmund. Uma nota sobre a pré-história da técnica de análise (1920). IN:
Obras completas. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1969.
FREUD, Sigmund. Dois verbetes de enciclopédia (A) Psicanálise (1923). IN: Obras
completas. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1969.
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MASSON, Jeffrey Moussaieff. A correspondência completa de Sigmund Freud para
Wilhelm Fliess, Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1986.
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