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REVISTA TRAÇOS

REVISTA ANUAL DA ASSOCIAÇÃO CLÍNICA FREUDIANA

ANO 1 N⁰ 1 - NOV. 2018

Uberlândia, MG – Brasil

3
ASSOCIAÇÃO CLÍNICA FREUDIANA

MEMBROS

Ana Cecília Crispim Silva


Anaisa Margonari F. Silva
Carolina A. Santana
Fernanda A. Tavares Amaro
Francisco Luiz Ferreira Boleli
Isa Nunes de Oliveira
João Luiz Leitão Paravidini
Léia Sousa A. Araújo
Luiz Márcio Lima
Margarete A. Domingues
Mariana Tomás Marçal
Roberta Augusta B. C. Paravidini
Shnaider Alves Santos

Diretoria gestão 2017-2018:


Presidente Isa Nunes de Oliveira
Vice-presidente Shnaider Alves Santos
1º secretário Margarete A. Domingues
2º secretário Pedro Henrique de Oliveira Costa
1º tesoureiro Anaisa Margonari F. Silva
2º tesoureiro Luiz Márcio Lima

Comissão Editorial da revista Traços:


João Luiz Leitão Paravidini
Roberta Augusta B. C. Paravidini
Shnaider Alves Santos

4
SUMÁRIO

EDITORIAL ..................................................................................................................... 4
AFRADECIMENTOS .........................................................................................................6
.
ARTIGOS

O QUE FAZ LAÇO ENTRE NÓS? ....................................................................................... 7


Isa Nunes de Oliveira

A INSTITUIÇÃO NÔMADE E A SOLIDÃO DOS NÃO-TODO SOZINHOS..............................13


João Luiz Leitão Paravidini

HÁ UM PSICANALISTA NA CONDIÇÃO DE SE CONTAR TRÊS..........................................21


Shnaider Alves Santos

A (DE)FORMAÇÃO DO ANALISTA: UMA QUESTÃO SOBRE O ESTILO.............................27


Roberta Augusta B. C. Paravidini

“O QUE HÁ ENTRE NÓS”? DO SABER AO AMOR ENTRE ANALISTA E ANALISANDO NA CENA


ANALÍTICA ............................................................................................................................... 33
Anaisa Margonari F. Silva

ATENDIMENTO ONLINE: REFLEXÕES SOBRE A CLÍNICA PSICANALÍTICA NA ATUALIDADE


....................................................................................................................................... 39
Margarete A. Domingues

FLIESS: SUPERVISOR DE FREUD .....................................................................................43


Rômulo Ferreira Silva

5
Editorial
“Todos os dias é um vai e vem
A vida se repete na estação
Tem gente que chega pra ficar
Tem gente que vai pra nunca mais
Tem gente que vem e quer voltar
Tem gente que vai e quer ficar
Tem gente que veio e quer só olhar
1
Tem gente a sorrir e a chorar”

A Revista Traços nasce no momento em que a Associação Clínica Freudiana


completou seus 20 anos de fundação. É incrível pensar que, em todos esses anos,
estivemos traçando nossos caminhos dentro da Psicanálise. Por isso, os traços da
fundação, as marcas da formação, dos laços que se fizeram e se firmaram reafirmaram-
se em desejos de continuarmos bancando o Nó(s). Só agora nos damos conta da
radicalidade da nomeação de nossa revista e o que definitivamente esteve e está em jogo
quando nos alicerçamos sob a égide de uma ética como a da Psicanálise.
Em tempos de esvaziamento da palavra, de desmoronamento das metáforas e de
ruptura de laços, certamente essa empreitada tem suas consequências, a saber,
assumirmos os riscos dos nossos laços (nós) e de outros que venham se juntar. Quando
miramos nossa história, muitos foram os que chegaram e que se foram, deixando linhas
traçadas, marcadas, às vezes sulcadas demais para que nunca pudéssemos deles nos
esquecer. Talvez a canção estampada na epígrafe possa dizer desse vai e vem da
estação ACF: é a vida...
Trabalhamos com a escuta de um sujeito, sempre marcado pelo Outro na aposta
de que esse sujeito possa produzir seus significantes únicos, tecidos pelas marcas
impressas pela alteridade no que advirá como seu corpo próprio. Assim, alcançará novo
talhamento que viabilize uma outra forma de fazer com isso..., com esses traços de que
não podemos nos livrar, senão os assumir e os encaminhar, aos moldes do que fazemos
em nosso ofício analítico e, de modo assemelhado, em nossa instituição.
O pensar sobre nós mesmos lançou-nos ao trabalho mais uma vez. A proposta de
comemoração dos 20 anos da Associação Clínica Freudiana incluiu estudar, discutir,
retomar, construir e tornar público o percurso de formação ao longo desses anos, além
de avançar naquilo que Freud e Lacan nos legaram. O nosso tema geral de trabalho no
ano de 2017 foi “O que h(@) entre nós?”, o qual deu ensejo à criação da revista Traços,
portadora de algumas marcas de nossas reflexões.

1
Milton Nascimento. Álbum: Encontros e Despedidas. Barclay Records, 1985

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Foram múltiplas as leituras. O que se comprova pelos artigos e prismas diversos
na abordagem – sempre singular – com que cada autor(a) se deixou abarcar. Tanto
apontou para a questão do que torna possível a permanência e a insistência de um grupo
com a proposta da formação em Psicanálise por 20 anos, como para os nós
fundamentados por Lacan em seu ensino – o real, o simbólico e o imaginário. Tal
enodamento nos dá suportes vários para pensarmos a clínica, a constituição subjetiva, a
formação e a instituição. Mas, sobretudo, o tema apontou para o fato de que o discurso
fundado por Freud trouxe à luz a questão de que a subjetividade se funda por meio de
laços, e a invenção freudiana, um tipo específico de laço, trata e também explicita os
outros laços (nós) civilizatórios. Então, eis diante nós, Traços.

Comissão Editorial

Uberlândia, 2018.

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AGRADECIMENTOS

Agradecemos a todos que estiveram conosco ao longo desses 20 anos, os que vieram,
os que ficaram, os que foram, a todos os convidados e parceiros do campo analítico
com quem partilhamos os encontros e desencontros de que é feita a nossa matéria.

8
O que faz laços entre nós?2

Resumo

Busquei refletir sobre a especificidade da estrutura do laço da Clínica Freudiana, uma


associação de psicanalistas fundada há vinte anos, cujo objetivo é estudar e transmitir a
Psicanálise a partir da obra de Sigmund Freud e Jacques Lacan, bem como de suas
incursões com outros teóricos de distintas áreas do saber. Tomei algumas ideias
fecundas de Freud, Lacan e outros autores que discorrem sobre o sujeito e sua relação
com os outros. Procurei desenvolver questões no que diz respeito ao sintoma que nos
enlaça. Assim, pude tecer algumas análises quanto à forma como instituímos nosso
trabalho e se ela tem de fato contribuído para uma transmissão da Psicanálise que
suporte a nossa formação clínica e teórica.

Palavras-chave: Clínica Freudiana; estrutura dos laços; ideal do eu; narcisismo das
pequenas diferenças.

1851: Schopenhauer (apud FREUD, 1920), escreve esta parábola:

Em um gelado dia de inverno, os porcos espinhos de um manada juntaram-se


uns aos outros para se aquecerem e não morrerem de frio. Porém, logo
sentiram os espinhos dos outros e tiverem de tomar distância e separar-se.
Obrigados de novo a juntar-se por causa do frio, voltaram a ferir-se e a
distanciar-se. Essas alternativas de aproximação e distanciamento duraram
até que encontraram uma distância moderada em que ambos os males
resultaram mitigados.3

2017: há vinte anos, nomeamos de Clínica Freudiana um grupo de trabalho e


estudo em torno da causa psicanalítica. Pretendo refletir sobre sua existência e
insistência até o momento. Homenageando Freud, fundador da Psicanálise, parto de
dois de seus textos, muito comentados em diversas áreas de saber: Psicología de las
masas y analisis del yo, (FREUD, 1920) e El malestar en la cultura (FREUD, 1930).

2
Isa Nunes de Oliveira. Psicanalista,membro da Associação da Clínica Freudiana.
isapsicanalise@gmail.com

3
A parábola de Schopenhauer foi publicada no livro Parenga und Paralipomena, de 1851, citada por
Freud (1920, p. 2583, tradução nossa).

9
Do primeiro texto, destaco as ideias fecundas desenvolvidas por Freud ao
abordar a relação do indivíduo com o coletivo, em busca de construir uma teoria dos
laços. Do segundo, procuro extrair da noção de “narcisismo das pequenas diferenças” o
impasse sempre presente nos laços sociais no que diz respeito aos termos antitéticos –
narcisismo e diferença.
Tentei colocar a Clínica Freudiana no divã. Porém, esbarrei na limitação de eu
estar muito implicada nesta história para poder bancar uma analista para analisá-la. Sou
apenas um de seus sintomas!
Resta-me interrogar, divagar e passear por alguns textos.
O que faz laço em nós e entre nós, para além de nossa paixão por Freud e
Lacan? O que faz nosso laço perdurar, apesar de vivermos em tempos de fortes
tendências a desenlaces, em que as rupturas parecem nos provar a fragilidade dos laços?
Qual o sintoma que nos enlaça?
No texto sobre a psicologia dos grupos e a análise do ego, Freud (1920) tenta
encontrar respostas para a problemática dos laços, tomando o exemplo de grupos muito
bem estruturados como o exército e a igreja. Suas contribuições ajudam-nos a pensar
sobre o que está em jogo nas diferentes configurações de laços, seja amorosos,
parentais, políticos, religiosos seja, inclusive, psicanalíticos. O que assegura a coesão
dos grupos e o que os leva a se romperem?
Freud (1920) interroga também sobre a questão da obediência, da famosa
servidão voluntária presente nos laços. O que faz com que um grupo possa permitir-se ir
às últimas consequências, docilmente submetido às ordens impostas?
Sobre coesão dos laços, Freud (1920) fala de uma estrutura libidinosa, que
repousa sobre um objeto no lugar ideal. Um chefe seria a encarnação de um objeto
colocado no lugar do Ideal do Eu. Um bando de irmãos renunciando às próprias
prerrogativas para partilhar do amor do pai, do chefe, do patrão nosso de cada dia!
Mas Freud (1920) também fala da possibilidade de um grupo sem chefe, no qual
o que liga seus membros não é algo encarnado. Pode ser um traço ideal, um gosto
compartilhado, pode ser um sintoma. A Clínica Freudiana figura como um grupo sem
filiação ‘legitimada’ por uma instituição renomada por um chefe. Temos insistido em
seguirmos juntos, relutantes ao excesso de normas e idealizações cristalizadas, em favor
da ética psicanalítica.
Com a ajuda de Lacan e outros pós-freudianos, temos aprendido que, em
qualquer grupo – com chefe encarnado ou não –, há o “Um” que unifica e opera ali,

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diferente do laço analítico, que coloca em jogo justamente o “Um” da diferença, o
“Um” sozinho. Um laço psicanalítico interroga as identificações, interroga inclusive
sobre aquilo que as funda.
Quando Freud (1920) evoca a parábola de Schopenhauer em seu texto sobre a
psicologia dos grupos, é justamente para analisar o conflito em jogo na relação do
sujeito com os outros. Segundo ele, nenhum ser humano suporta uma aproximação
íntima com os demais, pois sempre escapam sentimentos hostis. Todos nós vivemos
entre dois impossíveis: o frio e o espinho. O frio, como a impossibilidade de
sobrevivermos sozinhos, e o espinho, como a impossibilidade de vivermos juntos. A
parábola sugere um “distanciamento moderado” como uma solução insatisfatória,
porém possível. Não se esquenta muito, mas, em compensação, não se fere com o
espinho do outro.
Alteridade – nome do espinho. A aceitação da alteridade de imediato é o
impossível em jogo nas relações. Há uma exigência de trabalho psíquico para que
possamos saber o que fazer com a diferença. O início de uma vida é marcado pelo
dilema da diferença entre os sexos e sua consequente não-relação sexual. O
reconhecimento da diferença, no decorrer da história de cada um, “não cessará de não se
inscrever” e a ameaça narcísica sempre retornará.
Com a noção do narcisismo das pequenas diferenças, Freud (1920) sugere a
possiblidade de um narcisismo que não se oponha à diferença, ao contrário, se atrele a
ela. Diz Freud (1920, p. 2583):

Quando um grupo se forma, a totalidade dessa intolerância se desvanece


temporária ou permanentemente, dentro do grupo. Enquanto uma formação
de grupo persiste, os indivíduos do grupo comportam-se como se fossem
uniformes, toleram as peculiaridades de seus outros membros, se consideram
iguais a eles e não sentem aversão uns pelos outros. Uma tal limitação do
narcisismo, só pode ser produzida por um determinado fator, um laço
libidinal com outras pessoas.

Isso significa que o amor narcísico se rende ao amor pelo outro, pelos objetos. O
amor insiste em fazer suplência.
O narcisismo das pequenas diferenças, que distinguiria uns dos outros e, em
consequência, instauraria a hostilidade e a intolerância, ficaria suspenso no interior do
grupo, como se fôssemos uniformizados – uni-formi-zados. No entanto, sabemos que os
espinhos resistem. Inclusive porque, se a alteridade fica suspensa dentro de um grupo,
ela retorna intensamente na oposição com outros grupos.

11
Dunker (2015), no primeiro capítulo do livro Mal-estar, sofrimento e sintoma,
intitulado “A lógica do condomínio”, propõe uma espécie de estudo de caso de como se
estabeleceu no Brasil o que ele chamou de “topologia da segregação" como ponto de
partida para entender como está estruturada nossa forma de vida. Os condomínios,
lançados na década de 1970, eram anunciados como promessa de felicidade, segurança,
ordem e liberdade. Vendia-se a ideia de que as pessoas poderiam ter uma moradia,
livres de seus problemas.
Esse é um grande ideal de consumo. Porém, também uma fascinante proposta de
segregação social: construir muros que isolam uma sociedade, dentro dos quais uma
civilização pode prosperar e deixar para fora tudo que possa causar incômodo e
sofrimento. As diferenças se tornariam invisíveis, a felicidade se realizaria sem
obstáculos e as leis seriam criadas para possibilitar a convivência humana gestada por
um síndico.
Entretanto, basta viver entre muros para que comece a aparecer a decepção,
espinhos daninhos que brotam nos belos jardins. A felicidade prometida sofre com as
desordens e as patologias que surgem. O narcisismo das pequenas diferenças habita o
condomínio: inveja do vizinho, competição velada, sentimentos de esvaziamento de si,
excesso de consumo, violência velada ou não. Para Dunker (2015), a lógica do
condomínio é o retorno sintomático de algo que não pode ser reconhecido.
Se o espinho resiste e retorna, Freud (1930) insiste em buscar respostas sobre o
que há de mal-estar na cultura, analisando o preço que se paga a partir das renúncias
fundamentais, necessárias à construção dos laços sociais. Ao se renunciar às pulsões
sexuais, paga-se o preço dos sintomas. Ao se renunciar às pulsões destrutivas, paga-se
com o sentimento de culpa. Por outro lado, ganha-se a possibilidade de estar com os
outros, compartilhando a busca de felicidade e completude, ambas impossíveis de serem
alcançadas.
Colette Soler (2016), em seu livro O Que faz laço?, trata tanto das forças
disruptivas dos laços,, no que diz respeito ao discurso atual de nossa cultura,, quanto das
forças disruptivas entre os psicanalistas. Ela faz um importante alerta aos grupos
psicanalíticos dizendo que “ou o Um que identifica não comanda todos os vínculos, e
então a psicanálise é possível ou ele comanda todos os vínculos e então, nesse caso, a
psicanálise nada mais é do que uma reeducação para adaptar o sujeito à tropa” (SOLER,
2016, p.27).

12
Será possível manter uma instituição de transmissão da Psicanálise com o
mínimo possível de ideal do ego em cena, temperando o “Um” que unifica com o “Um”
da singularidade, prescindindo de um chefe que dita as regras como verdade absoluta?
Penso que em todos esses anos relutamos em cair nessa armadilha de estrutura
de laço comandada pelo modelo de “discurso do mestre”, modelo de instituição
criticado por Lacan, cuja crítica respalda a fundação da Clínica Freudiana.
Lacan diz que “o analista só se autoriza por si mesmo”, ou seja, ele não se
autoriza por nenhuma identificação com outro. Mas, ao mesmo tempo, um psicanalista
busca se reconhecer junto a seus pares, a seus pacientes e pela teoria que sustenta sua
prática. É preciso que ele esteja sob a nomeação de um grupo, que tenha um endereço.
Por outro lado, os psicanalistas costumam se queixar do grupo ao qual
pertencem: ora porque está frio demais, ora porque os espinhos estão insuportáveis. Por
que a necessidade de insistirmos em permanecer enlaçados aos outros?
Colette dá-nos uma pista para refletirmos sobre esse ponto ao dizer que

há aquilo o que eu chamei de laço secreto entre o grupo e a análise e é que o


grupo dos analistas é necessitado pelo discurso analítico. Ele é como uma
muralha que alivia os rigores de um ato que nada tem de social, e como um
conforto para aqueles que se fazem objetos- dejeto em sua prática (SOLER,
2016, p.85).

Como sujeitos inseridos na cultura, não estamos imunes aos efeitos das
identificações mundanas. E cada um, como analista, soube ou sabe pagar o preço do seu
sintoma e do gozo que ele produz por meio de sua própria experiência de análise. Ainda
assim, não desistimos de nos juntar às pessoas, mesmo sabendo que todo laço amoroso
vem temperado com o ódio indissolúvel. Por outro lado, ao inserirmo-nos em um grupo
de psicanálise, não deveríamos furtar-nos de relançar sempre a pergunta sobre a nossa
posição em relação aos outros, sejam quais forem nossas diferenças.
Concluo com mais duas questões a serem relançadas:
Nós, da Clínica Freudiana, estamos dispostos a pagar o preço de abrir mão das
seduções narcísicas para enfrentar a alteridade e manter nossos laços transferenciais de
trabalho, em nome de uma associação que coincida com o lugar do analista identificado
com o objeto causador de desejo?
Quanto aos nossos dispositivos de trabalho, eles de fato têm contribuído para
nossa interlocução em prol de nossa formação e, em consequência, de nossa
transmissão?

13
REFERÊNCIAS

DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento é sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre


muros. São Paulo: Boitempo, 2015.

FREUD, S. (1920). Psicología de las masas y analisis del yo. In ______. Obras
completas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981, v. 3.

FREUD, S. (1930). El malestar en la Cultura. In ______. Obras Completas. Madrid:


Biblioteca Nueva, 1981, v. 3.

SOLER, C. O que faz laço? São Paulo: Escuta, 2016.

14
A instituição nômade e a solidão dos não-todo sozinhos

João Luiz Leitão Paravidini4

Resumo

Para que precisamos de uma instituição psicanalítica? Uma instituição é a instância diretamente
implicada na formação de psicanalistas por meio de seus dispositivos regulatórios e de seus
atores envolvidos. Consideramos importante nos debruçar sobre a formação e as possíveis
consequências que a normatização institucional pode produzir, identificando seus aspectos
iatrogênicos, tais como a burocratização e homogeneização, assim como seus aspectos
inventivos. Destacamos o quanto uma instituição há de ser porosa para assimilar tanto o que
continuamente se faz presente enquanto excesso pulsional (pathos) quanto o que faz mancar
(inconsciente) e baliza-se pela solidão dos não-todo sozinhos. Neste trabalho, circunscrevemos a
relação fundamental entre a instituição e o inconsciente, entre a estrutura social (campo das
políticas) e estrutura do privado (campo das pulsões e dos destinos), como uma hiância que
dinamiza a articulação entre o contingente, o necessário e o impossível. Todo processo
institucional induz a um risco calculado: a instituição imaginada. Por meio dele, a instituição é
tomada em posição de salvaguarda diante da falha fundamental. Propomo-nos pensar a
instituição como produto do próprio processo de formação analítica, e não apenas como sua
garantia. Chamamos este processo de “o mínimo de institucionalização necessária” ou “a
instituição nômade” - uma invenção singular em contínuo contraponto à inevitável ilusão
institucional.

Palavras-Chave: psicanálise; formação analítica; instituição; laços sociais; solidão.

4
Psicanalista. Membro da Associação Clínica freudiana. Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal de Uberlândia

Endereço: Av. Uirapuru, 934. Bairro Cidade Jardim. Uberlândia – MG

jlparavidini@gmail.com

15
“Fundo - tão sozinho como quanto sempre estive
em minha relação com a causa psicanalítica – a
EFP (…) ” (LACAN, Outros escritos, 1971/2003,
pg.235)

História e Formação

A Psicanálise se fez sustentar enquanto uma prática profissional por meio de vários
dispositivos institucionais e discursivos. Cabe ao nosso propósito inicial destacar os intensos
embates protagonizados ilustrativamente por Sandor Ferenczi (1927) e Max Eitington (1932)
relativos aos aspectos centrais do processo de institucionalização da formação psicanalítica a
partir da policlínica de Berlin.

Podemos considerar que Ferenczi centraliza suas críticas e fundamentações em torno da


radical importância da formação do analista vinculada ao fim de sua análise. Freud destacou,
dez anos depois, a posição de Ferenczi, manifesta em seu trabalho “O problema do fim de
análise” (1927) e em seu artigo “Análise finita e infinita” (1937). Para Freud, o escrito
ferencziano tem o valor

de um alerta para que não veja como meta o encurtamento, mas sim o
aprofundamento da análise. Ferenczi ainda acrescenta a observação valiosa
de quão fundamental é para o sucesso que o analista tenha aprendido a partir
de seus próprios ‘enganos e erros’ e que tenha adquirido domínio sobre os
‘pontos fracos da própria personalidade’ (1937/2017, p. 354).

Dessa forma, torna-se impossível considerar o sucesso de um trabalho analítico sem


levar em consideração a individualidade do analista, a qual impõe como “condição preliminar
que o analista tenha terminado por completo a sua própria análise” (FERENCZI, 1927/2011,
p.24).

Parece-nos pertinente evidenciar o que, para Ferenczi, implica o fim de uma análise. Ele
nos diz que:

Nenhuma análise está terminada enquanto a maior parte das atividades de


prazer preliminar e de prazer final de sexualidade, em suas manifestações
normais quanto anormais, não tiver sido vivida no nível emocional, na
fantasia consciente; todo paciente masculino deve poder chegar a um
sentimento de igualdade de direitos em face do médico, indicando assim que
superou a angústia de castração; todo doente de sexo feminino, para que

16
possa considerar que venceu a sua neurose, deve ter vencido o seu complexo
de virilidade e ter abandonado sem o menor ressentimento às potencialidades
de pensamento do papel feminino (FERENCZI, 1927/2011, p. 24-25).

Freud (1937/2017), de forma sumária, em sua avaliação sobre a afirmação acima


referente à posição de seu amigo, diz: “acho que quanto a isso Ferenczi estava pedindo muito”.
De nossa parte, achamos que talvez sim, mas não estamos bem certos disso, por isso é
necessário que avancemos um pouco mais antes de concluir.

Outra posição bastante distinta foi a que efetivamente veio a vigorar na Policlínica de
Berlin, vinculada ao Instituto de Berlin, fundada em 1920 por Karl Abraham e Max Eitington. O
último é reconhecidamente o grande responsável, durante os trinta anos seguintes, pela
regulamentação da formação de analista da IPA, à frente da International Training Comission
(MILLOT, 2010, p.30), além de todo o processo de equalização e homegeneização do que se
tornaria a standatização da formação dos analistas da IPA.

Eitington, em seus pronunciamentos, deixava nítida sua satisfação com a forma


unânime que esse sistema de formação havia alcançado. Em 1929, ele regozijava-se ter
constatado a linda sistematicidade com a qual se dispensava uma formação analítica. Em 1932,
ele manifestou seu entusiasmo com a sistematização do tripé da formação – a análise didática de
um ano, o estudo teórico e a supervisão –, a partir do qual era adotado o mesmo procedimento
seja em institutos como o de Berlin, Viena ou Londres, seja onde a psicanálise fosse oferecida.
(MILLOT, 2010, p.35).

Se, por um lado, vemos a clara forma como Ferenczi nos alerta para a importância da
radicalidade da análise do analista, não tendo ele considerado que a analise didática pudesse se
diferir do fundamento da análise proposta aos pacientes, também vamos encontrar um
movimento de fortalecimento das estruturas institucionais que respondem por controle,
hierarquização e homogeneização. Esses impasses presentes na origem da estrutura de fundação
da instituição psicanalítica nos parecem nunca haver se dissipado de nosso horizonte coletivo.

Instituição Psicanalítica

Por que precisamos de uma instituição? O que nos faz considerar que uma instituição
psicanalítica exista? Apesar de uma instituição possuir seu estatuto, sua legislação, sua
formatação dinâmica, o que faz com que ela cumpra sua função primordial?

17
O projeto lacaniano de “retorno a Freud” inclui, também, uma revigoração da formação
do analista. No texto “Ato de fundação”, Lacan nos diz:

Esse título em minha intenção representa o organismo em que deve realizar-


se um trabalho – que no campo aberto por Freud, restaure a sega cortante de
sua verdade; que reconduza a práxis original que ele instituiu sob o nome de
psicanálise ao dever que lhe compromete em nosso mundo; que, por uma
critica assídua, denuncie os desvios e concessões que amortecem o seu
progresso, degradando seu emprego. Este objetivo de trabalho é indissociável
de uma formação a ser dispensada nesse movimento de reconquista
(LACAN, 1971/2003, p. 235).

Consideramos que o ”ato de fundação” da Escola Francesa de Psicanálise por Lacan já


nos indica que, para ele, a formação está condicionada a uma estrutura institucional mesmo que,
para isso, tenhamos que levar em consideração os anos precedentes e posteriores de críticas
acirradas à institucionalização da formação pela IPA.

Apesar de considerar essa discussão interessante do ponto de vista institucional, o que


para nós interessa aqui pensar se passa em um campo mais específico: o da relação entre
instituição e inconsciente, entre a estrutura social (campo das políticas) e a estrutura do privado
(campo das pulsões e seus destinos).

Impasses no campo institucional

Na segunda lição do seu curso “Coisas de fineza em Psicanálise”5, Miller (2011)


considera que a instituição psicanalítica tem o importante papel de testemunhar o inconsciente
pós-analítico de seus membros. Para ele,

“O analista em funcionamento não tem inconsciente, pelo menos é o que sua


formação deve lhe ter permitido obter. Mas ele tem esse inconsciente e – é o
que proponho – ele tem de elaborá-lo, tem de elucidá-lo e tem de testemunhá-
lo, de testemunhar, se posso dizer, o inconsciente pós-analítico, após sua
investidura como analista. Aí está uma dimensão que ainda não foi destacada.

Parece-me, no entanto, que, se uma escola de psicanálise tem um sentido, ela


deveria permitir que o analista testemunhasse o inconsciente pós-analítico,
isto é, o inconsciente na medida em que ele não faz de conta (ne fait pas

5
Este curso ministrado por J-A Miller, em 2008-09, foi publicado em português com o título
“Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan: entre desejo e gozo”.

18
semblant). Da mesma forma, isso permitiria verificar que o desejo do analista
não é uma vontade de semblante, que o desejo do analista está, para aquele
que dele pode se prevalecer, fundado em seu ser que não é e que, segundo a
expressão de Lacan, “é um querer na falta”. (MILLER, 2011, p.37).

Dessa forma, a instituição articularia um lugar de elaboração do “inconsciente” de cada


analista, sendo esta capaz de abarcar suas produções singulares.

Mas também podemos levantar a possibilidade de o analista continuar a aprender com


seu próprio inconsciente. Nesse caso, estamos mais às voltas com os contínuos tropeços,
mancadas, por assim dizer, que nos advertem quanto ao desassossego da função analítica,
mesmo estando o analista em posição “inconsciente pós-analítico”. Assim, o que uma
instituição sustenta como fundamental é a continuidade da posição do analista enquanto eterno
analisante. O que nunca vai cessar de não se inscrever.

Percorrendo uma direção mais próxima dessa última posição no tocante à relação do
analista/analisante, a instituição e sua formação (radical e contínua), Radmila Zygouris nos
auxilia a melhor formulá-la:

O fato de a transferência permanecer sendo a bússola de um tratamento é


entre outras coisas o que distingue a psicanálise das demais psicoterapias,
fazendo sua especificidade. É sempre possível glosar sobre os conceitos, mas
nem por isso a análise deixa de ser, antes de mais nada, uma experiência
vivida a dois, com dois corpos em presença. Ela implica o analista no mais
desconhecido de sua própria história e faz com que se depare com aquilo que,
muitas vezes, permaneceu não analisado de seu lado. Isso porque cada
paciente estabelece uma transferência singular, assim como cada uma delas
restaura o mais singular e desconhecido da história de um sujeito. Muitas
análises fracassaram justamente pelo desconhecimento da implicação do
analista na transferência. Isso posto, qual seria, então, a formação que
permitiria ao analista reconhecer a maneira pela qual seu analisado o afeta?
Uma vez que seu desconhecimento torna o analista estúpido. Penso que os
professores devem pelo menos insistir quanto à necessidade de o analista
permanecer em contato com suas próprias zonas de conflito, suas próprias
angústias, sem jamais considerar sua “análise pessoal” finda. O psicanalista é
justamente o sintoma ambulante de uma análise interminável” (Radmila
Zygouris, 2013, p. 60).

O que Radmila Zygouris diz-nos parece, à primeira vista, ser muito distinto daquilo que,
para Ferenczi, haveria de se esgotar ao fim de uma análise, a saber, a radicalidade da análise
finita: “nenhuma análise sintomática pode ser dada por concluída se não for, simultaneamente
ou em seguida, uma análise de carácter”. Ele próprio assevera, ao final desse seu texto, não
haver presenciado muitos trabalhos analíticos levados a esse limite, sem, no entanto, perder sua

19
crença de que “quando se tiver suficientemente aprendido sobre seus modos de atuar e seus
erros, e se tiver aprendido pouco a pouco a contar com os pontos fracos de sua própria
personalidade, irá crescendo o número de casos analisados até o fim (1927/2011, p. 27). É
interessante como, a essa altura, podemos perceber como Radmila Zygouris e Ferenczi
dialogam quanto à posição crucial ocupada pelo analista e seus limites no processo clínico.
Nessa mesma direção, podemos conceber o quanto uma instituição há de ser porosa
para assimilar continuamente aquilo que há sempre do campo do excesso pulsional de seu
coletivo de analistas/analisantes e, ao mesmo tempo, daquilo que faz sempre mancar. Esse
espaço que possa dinamizar, ou melhor, que se ponha em funcionamento na articulação entre o
necessário e o contingente. Daí advêm as noções de risco calculado e de instituição
imaginarizada. Delas não podemos fugir nem da noção de risco de falência nem da instituição
que vem como salvaguarda imaginária da restituição de falha.

Uma proposta em questão

Como pensar uma instituição que se constitua no próprio processo de formação? Nesse
caso, ela seria produto da formação e não somente seu suposto garantidor. A isso chamamos
agora de “o mínimo de institucionalização necessária ou a instituição nômade”. Tratar-se-ia,
pois, de invenção institucional singular em contínuo contraponto à miragem institucional, ou
seja, fazendo furo na instituição imaginarizada.

O processo de formação traz em seu cerne a necessidade do laço com o outro/Outro.


Nesse sentido, mesmo que o processo de formação do analista não se dê de forma exclusiva no
âmbito de uma única instituição formal, nada lhe permite escapar às contingências de seus laços
sociais e dos discursos que lhes são constitutivos (analista, analisante, estudante,
supervisionando). Nesse caso, podemos dizer que o analista só se faz a partir do seu próprio
percurso, mas apenas na condição de se sustentar e se fazer atravessar os laços sociais.
Parece-nos importante atentar para essa questão paradoxal: estar por si, mas não todo
sozinho. Para Radmila Zygouris,

Na maioria das vezes, o analista entra nas instituições para não ficar sozinho,
e ali encontra uns amigos com os quais pode jogar uma pelada. Isso também
se chama formação. A instituição só é aceitável se a considerarmos como
uma rua um tanto estreita. Isso porque em seu consultório, em sua prática, o
analista está tão sozinho quanto o goleiro na hora do pênalti. Quando tomado
pela dúvida, abre sua memória de trabalho e procura em seu aprendizado o
que poderia ajudá-lo a sair do embaraço, geralmente nada encontrando, e é
nessas horas que sai a procura dos outros analistas, para pensarem juntos e
não permanecer sozinho. Depois, procura naquilo que sua experiência de vida

20
lhe ensinou algo que lhe permita recolocar em marcha sua máquina pensante
e desejante.(ZYGOURIS 2013, p. 64).

Essa relação que vai se dar entre analista e instituição é bastante singular. Trata-se de
uma filiação não filiada, que se desloca da ideia de história ou de herança, tais quais as
disposições familiares estabilizadoras. A instituição, nesse ponto, é antes de tudo nômade, não
toda familiar, não toda estrangeira.
Essa forma de laço institucional tem a estrutura de uma “pelada” ou de um “racha”,
tomando em consideração as formulações da Radmila Zygouris, pois o termo “pelada” (sem
camisa, sem identificação adesiva a um time) permite-nos asseverar uma posição de
“permanente permutabilidade” (causa de horror e fragmentação dentro das instituições rígidas) a
cada vez que se montam e remontam os “times”. Trata-se aqui de uma “seriedade da
informalidade”.
Quando utilizamos outro significante, o “racha” (divisão contingencial/proposital dos
grupos), vamos em direção a uma formação grupal que se divide contingencialmente para que
haja uma partida ou um jogo, dentro dos regramentos mínimos necessários. Aqui, aparece-nos
mais uma vez a noção do “mínimo de institucionalização necessária ou a instituição nômade”.
Não tem juiz. Tudo se discute pelo consenso, por regras conhecidas e decididas. Trata-se de um
espaço mínimo fundamental de estabelecimento de trocas ante a solitária “paixão pela bola” e
pelas verdades não ditas.

Solidão

Um analista só se faz pela solidão que o conduz em análise, solidão estrutural e o que
isso porta do real. Na formação, tomamos a solidão para pensar, mas não todo sozinho. Então,
qual o mínimo necessário de alteridade para se fazer por si, além de si?

O que sustenta uma instituição psicanalítica é o fato de que ela produz psicanalistas.
Mas seria possível pensar um percurso de se fazer analista fora dos espaços institucionalizados?

Cremos ter demonstrado que sim. Porém, o percurso de se fazer um analista não se faz a
não ser pela relação muito peculiar que se estabelecerá com a psicanálise. Com o que da
psicanálise? Com o amor à verdade, ao inconsciente. Assim, Freud se colocava em um processo
de se debruçar sobre as suas formações do inconsciente. Continuamente se tomava como
analisante. Ao se colocar na posição de analisante, ele o faz chamando ao outro. Supervisão,

21
ensino, transmissão, teoria... são as condições para o mínimo necessário de laços
institucionalizáveis, por serem marcados por certas condições regulatórias.

Não se precisa de uma instituição formalizada, mas de um mínimo de formalização


necessária ante a uma condição que é da ordem contingência. Contingência dos encontros que
se fazem possíveis e ante ao real que permanentemente produz esse efeito de impossível.

Referências

FERENZCI, S. (1927). O problema do fim de análise. In: Psicanálise IV – Sandor Ferenczi.


2a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 17-28. (Obras Completas /Sandor Ferenczi , v. IV.)

FREUD. S. (1937). A análise finita e a infinita. In: FREUD, S. Fundamentos da clínica


psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. (Obras incompletas de Sigmund Freud,
v. 6)

LACAN, J. (1971). Ato de fundação. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2003, p. 235-247.

MILLER, J-A. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Rio
de Janeiro: Zahar, 2011.

MILLOT, C. Sobre a história da formação dos analistas. In: COUTINHO JORGE, M.A. (Org.)
Lacan e formação do psicanalista. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2006, p.29-42.

ZYGOURIS, R. A escola da rua. In: DUVIDOCICH, E. (Org.) Diálogos sobre a formação e


transmissão em psicanálise. São Paulo: Zagodoni, 2013, p. 50-65.

22
HÁ UM PSICANALISTA NA CONDIÇÃO DE SE CONTAR TRÊS

Shnaider Alves Santos6

Resumo

Pretende-se, a partir de duas afirmações de Lacan, em dois momentos diferentes de seu


ensino, discorrer acerca da importância da noção de alteridade, bem como suas
implicações para a formação do analista, consequentemente, para a definição do que é a
Psicanálise e um analista que a exerce, o qual é por ela exercido e afetado. A primeira
afirmação é de 1956 e versa, justamente, sobre o tratamento analítico, que decide sobre
a qualidade do analista. Abordando o inconsciente como o Insabido/insabível desde
Freud, a prática analítica será, então, tomada como esse discurso que opera com isso,
com esse furo, fazendo furo nos discursos totalizantes. Assim, a Psicanálise operaria
sempre nesse Campo Outro. A segunda afirmação, de 1974, parece vir reafirmar a
radicalidade da formação enquanto uma operação de atravessamento das insígnias do
Desejo do Outro para uma tomada de posição frente ao próprio desejo. O analista
autoriza-se nessa travessia e banca sua operação entre os outros, ponto importante para
se considerar em relação à função fundamental dos grupos, das instituições e das escolas
de Psicanálise.
Palavras-chave: Psicanálise; Formação; Alteridade.

Este trabalho visa discorrer sobre a formação do analista, especificamente no


que ela, embora da ordem de uma travessia solitária no sentido da subjetividade, é
tocada, todo o tempo, por uma alteridade radical. Pretendo partir de duas afirmações de
Lacan em dois momentos diferentes.
A primeira afirmação é dita, inicialmente, em 1956: “Pois se pudemos definir
ironicamente a Psicanálise como o tratamento que se espera de um psicanalista, é
justamente a primeira, no entanto, que decide sobre a qualidade do segundo.” (LACAN,
1956, p.462). A declaração parece apontar para algo da ordem de uma relação
necessária entre aquele que exerce a Psicanálise, obviamente, e isso no que tange à

6
Mestre em Psicologia Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia. Psicanalista. Membro da
Associação Clinica Freudiana.
shnaiderasantos@gmail.com.br

23
própria posição de subversão da descoberta freudiana. O que decide sobre a qualidade
de um analista é exercer a Psicanálise tendo sido exercido, afetado por ela enquanto
uma experiência com a alteridade.
O que é a Psicanálise? Temos um problema desde Freud para especificar o que
vem a ser a Psicanálise. Freud definiu-a, pelos seus efeitos, como um método de
tratamento de afecções nervosas, mas também pelos seus conceitos, cunhados a partir
do exercício do método. Como seu exercício não se constrói senão pela instauração da
transferência, isso implica uma prática entre, aparentemente, duas subjetividades,
atravessada pela alteridade de saída: podemos dizer, da fantasia, do Outro. Portanto, um
método, uma técnica, uma teoria. Assim, a relação necessária entre quem a pratica e
essa prática passa, também, por uma transferência com os textos do fundador, pela
relação contingente com algum pós-freudiano e, finalmente, por uma escolha singular
em relação a esse saber compilado durante mais de 100 anos. Então, a Psicanálise é um
saber, e quem a pratica não deixará de se afetar por isso. Entretanto, é também da ordem
de uma experiência, de uma prática que trata com um saber – acrescentemos à definição
já clássica – que não se sabe. Aquilo que é possível saber, digamos que vai se sabendo à
medida do exercício e, fundamentalmente, aquilo que o saber não pode abarcar e que
seria da ordem do real impossível e inapreensível simbólica e imaginariamente, mas que
se presentifica contundentemente na vida e na clínica. Insabido que se constrói e se
impõe.
Avancemos! Tratar com o insabido, para fazer surgir algo do impossível mesmo
de se saber. Então, o que define a qualidade de um psicanalista é esse saber
insabido/insabível. Eis a própria questão com a qual operamos na Psicanálise e que
opera em um analisante. Aqui a lembrança de que o termo alemão que designa o
inconsciente significa literalmente insabível. O consciente é um saber que se sabe, e o
inconsciente é um saber que não se sabe. Lacan o chama em muitos momentos de saber
Outro. Atentemos para o Outro.
Daí, podermos dizer, com Lacan, que a Psicanálise é um discurso, posto num
tempo e que opera sobre outros discursos. Por isto, ele nos diz que a subversão
freudiana operou sobre determinado discurso de seu tempo, porque essa subversão
escancara aquilo que o discurso de nosso tempo visa recalcar: justamente o insabido, o
insabível e o mal estar decorrentes daí, os padrões que se estabelecem, as miragens de
identificações que visariam garantir o amparo do desamparo, etc... Todo esse discurso
sobre o humano, sobre a subjetividade, todos os arranjos simbólicos e imaginários

24
construídos durante nossa estadia no mundo foram subvertidos com Freud e o são em
uma análise. Digamos que construímos bússolas necessárias e com elas negações sobre
nossa condição. Desprender da bússola, tendo sido guiado por ela e... fazer algo com
ISSO, isso é Psicanálise.
Se a Psicanálise é esse discurso de desconstrução de um saber, então o que é um
discurso? É um laço social. E os laços sociais só se fazem pela via dos discursos.
Discurso e laço entrelaçados seriam um modo de tratamento do gozo pela linguagem,
permitem, assim, o estabelecimento das relações entre as pessoas. Isso implica a
renúncia da tendência pulsional de tratar o outro como um objeto a ser consumido
(QUINET, 2006). Um discurso é uma quantidade de trabalho, um modo de trabalho que
viabiliza uma relação entre seres falantes. Em geral, todos os discursos escamoteiam o
insabido, o insabível. O discurso psicanalítico não. Ele visa operar com isso.
Freud esforça-se para dizer o que é Psicanálise. Faz isso pela via dos conceitos.
recalque, sexualidade infantil, complexo de Édipo, resistência. No entanto, mesmo
descrevendo conceitos fundamentais para afirmar o campo psicanalítico, isso não
impediu nem que os conceitos se tornassem preceitos nem que uma variedade de
práticas fosse nomeada como Psicanálise. Lacan, por sua vez, tenta extrair do discurso
freudiano aquilo que tem valor de causação e não as regra e regulamentos técnicos. As
construções freudianas têm valor de conceitos que nos fazem trabalhar, nos põe a
trabalho, e não de preceitos que devem ser seguidos. Caso isso não seja levado em
conta, teremos religião, e não Psicanálise. E basta ter uma amarração neurótica para se
ter um religioso.
Então, a Psicanálise é um discurso, único discurso que possibilita a emergência
do insabido e insabível, único discurso que opera com nossa condição de mal-estar, sem
a denegar. Aí temos um problema, porque, ao mesmo tempo em que fazemos uma
afirmação contundente de ruptura, subversão e definição da Psicanálise, apontamos para
a questão de que, se a psicanálise é o tratamento que se espera de um psicanalista, então
operar de uma posição em que o insabido e insabível sejam acolhidos como uma
verdade, mesmo que semi dita, é a condição de um analista. E como “saber” se alguém
está em posição de analista? Sim, porque o analista não é, ele está em posição de. Certas
recomendações de Freud e instituições criadas por ele e por nós têm, também, a função
do controle desse saber. O que, como já sabemos, funciona pouco ou não funciona.
É por isso que o esforço de Lacan foi o de explicitar o dispositivo analítico e
fazê-lo operar tanto na análise, quanto na supervisão, quanto na instituição e também

25
nos seminários ou estudos teóricos. A formação é uma só: é preciso que sejamos
causados, chamados a responder e a nos responsabilizar por nossos atos e falas.
A análise, a formação é uma experiência cuja operação essencial é de ordem
ética. Aquilo que, de transformação, se produz com o trabalho do inconsciente em
análise, deixa em aberto novas produções. Por isso, a formação é a constância de um
trabalho que nos põe a trabalho constantemente. Há a responsabilidade pelo que se faz,
pelo que se diz e pelo que não se pode dizer. E o analista é aquele que pode se abster de
interpretar. Nesse sentido, vai na via contrária dos outros discursos e práticas, cuja
tendência – humana aliás – é abundar no sentido. A Psicanálise, portanto, opera com o
real, o fora do sentido.
Então, como “saber” se alguém está em posição de analista? Não sabemos, a não
ser por seus efeitos e retornos nos espaços de formação. A prática é profundamente
solitária. A Psicanálise requer empenho por parte do analista para sustentar a verdade da
condição humana – da falta de objeto para a satisfação da pulsão – e operar com a
condição de tragicidade do humano. “Portanto, o que se impõe na experiência analítica
não é, primordialmente o ideal de cura, mas a finalidade de constituição de um estilo
para o sujeito, que seria regulada nos registros ético e estético” (Birman, 1997, p.12). O
analista se oferece para essa operação para o sujeito, não sem ter, ele mesmo, vivido
essa experiência em sua própria carne como analisante. É uma experiência árdua
submeter-se à loucura da associação livre e ser surpreendido pelo insabido e incabível,
material de que é feito. Na verdade, estar disposto a se ver habitado pelo três, terceiro
que nos habita. Os efeitos vão além dos terapêuticos: produz uma relação com o
estranho que me habita, como três, como terceiro. Como Outro.
A segunda afirmação de Lacan N está na aula de 5 de abril de 1974. Ele citará a
proposição de que o psicanalista só se autoriza por si mesmo e por alguns
outros. (LACAN, 1967).
Assim, um psicanalista só poderá ser UM, havendo, claro, muitos UMs. Porque
a experiência da formação é UMA. Porém, não sem contar com o outro. O analista
autoriza-se não por seu eu: “agora vou me dar o título de analista”, posto que título não
há. Existe um lugar, uma posição. A autorização advém dessa experiência com sua
própria tragicidade, incompletude e desamparo, experiência vivida com dor, em que o
sujeito se autoriza a partir de seu inconsciente que é Outro...saber. Não de seu
narcisismo, que não reconhece outro. Mas de sua divisão posta a céu aberto. Daí ser
uma experiência sempre aberta e posta à prova para si e para alguns outros.

26
A formação, a supervisão, a instituição, o estudo funcionarão, assim como a
análise, justamente para pôr à prova o narcisismo que exclui o outro e o desejo ético de
sustentar esse lugar da Psicanálise – lugar sempre êxtimo, estranho, de ruptura. Assim,
pode haver um fomento do narcisismo em que o eu se autoriza analista: “Eu sou!”. Aí
não há um analista, pois um analista posto em posição de, na verdade, se sustentou na
própria análise e formação lá onde não é. Seu caminho é o do “penso onde não sou,
logo, sou onde não me penso.” (LACAN, 1966, p.521). Essa é a viagem. Conforme nos
aponta Coutinho Jorge:

Aprendemos na clinica que o sofrimento humano está ligado a esse modo de


ser inominado, posto que inominável, que nos habita: como esse ser (Outro)
existe sem poder sabê-lo, a dúvida sobre nossa existência é o que nos tortura,
pois, ainda que não duvidemos da existência do Outro, duvidamos de nossa
existência como sujeitos, uma vez que o único pensamento que não pode ter
nosso pensamento inconsciente é “logo, sou.” (JORGE, 2006).

Porque esse ser insabível pensa sem poder pensar com a certeza cartesiana, pois
só pode surgir por um ato de reconhecimento na presença do Outro. Por isso, a posição
de analista faz-se pelos meandros do inconsciente e pela responsabilização pelo modo
de gozo e de sintoma que se pôde produzir. E isso ocorre nunca sem uma fala
endereçada a um outro que sabe silenciar.
As instituições, por exemplo, escolas, precisam funcionar assim e de um jeito ou
de outro funcionam, averiguam, provam, expõem os narcisismos. Por isso, a experiência
com seu inconsciente pode autorizar um psicanalista, mas ele deverá ser responsável por
seu desejo posto à prova, não mais para o grande Outro, travessia pela qual foi levado
na análise, mas para os outros. Não há psicanalista sem o outro.
Ele não é. Está em posição de. E as relações, quer sejam analíticas,
institucionais, quer de estudo, atestam isso. O ato de um analista em sua prática lhe
causa horror. Há que se operar com a angústia. O ego pode dizer “sou analista”, porém,
a clínica e as relações que publicam nossa práxis irão nos testemunhar a solidão, a
tragicidade e o desamparo do dia a dia da clínica.
Então, haverá Psicanálise e psicanalista na condição de seu exercício por alguém
que esteja na posição, sempre aberta, de. E a transmissão será possível à medida que
puder transmitir o resto que resta do trabalho e a falta e o desamparo como condição
irrevogável do ser.

27
Referências

BIRMAN, Joel. Estilo e modernidade em Psicanálise. São Paulo: Ed. 34, 1997.

JORGE, M. A. C. Lacan e a formação do psicanalista. Rio de Janeiro: Contra Capa


Livraria, 2006.

LACAN, J. A (1957) instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In:


LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

______. (1956) Situação da Psicanálise e a formação do psicanalista em 1956. In:


LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

______. (1974) Aula de 5 de abril. In: LACAN, J. O Seminário 21: Les-non dupes-
errent. Inédito.

QUINET, A. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

28
A (DE)FORMAÇÃO DO ANALISTA: UMA QUESTÃO SOBRE O ESTILO

Roberta Augusta B. C. Paravidini

Estilo: deficiência que faz com que cada


autor só consiga escrever como pode.
(Mario Quintana)

Resumo
Os impasses sobre a formação do psicanalista têm se colocado para mim a partir da
questão sobre o que faz um sujeito em seu percurso de formação em psicanálise que
possa ser aproximado à depuração de estilo, algo próprio, particular, o “algo de si” que
Lacan nos aponta na abertura de seus escritos. Sabemos que o estilo não diz respeito aos
traços de personalidade pertencentes ao campo imaginário, tampouco às identificações
simbólicas que podem atravessar o sujeito em seu percurso de formação. Nesse
trabalho, pretendo discorrer sobre o que se depura no percurso de uma formação,
sustentada no tripé da supervisão, da clínica psicanalítica e principalmente da análise
pessoal enquanto travessia da fantasia e queda do objeto. O resíduo do fim de uma
análise esvaziado da imaginarização é o que pode fazer operar o desejo de analista e a
depuração de um estilo, rasgo do qual torna-se possível a (de)formação de um sujeito
em um analista.

Palavras chave: Formação do analista; Estilo; clínica psicanalítica.

Ao me colocar em trabalho sobre “O que h@ entre nós?” e os desdobramentos


do tema proposto em torno da formação como psicanalistas, uma questão presentificou-
se e pude endereçá-la a um cartel. Minha questão inicial de cartel referia-se à noção de
estilo: “O que faz um psicanalista? Quando Lacan nos orienta a colocar ‘algo de si’ a
partir de seu ensino, do que se trata?”
Essas questões emergiram do meu próprio percurso de formação, na medida em
que pude colher os efeitos dos dispositivos pelos quais transito e deparo-me com
algumas mudanças na minha relação com a posição de analista. O que foi já não é mais.
E o que é talvez não seja fácil precisar, mas há efeitos de formação, mesmo que sutis e

29
mesmo que ainda me encontre per curso. Efeitos que me lançam na direção de um
querer saber sobre isso. Encontro-me em formação.
Sobre esse aspecto, Fingermann (2016) afirma que o que se passa numa
formação analítica diz respeito mais a uma (de)formação em relação ao sujeito do que
de fato a uma formação, como de um dentista, enfermeiro ou psicólogo, conforme já
nos advertia Lacan.
Inspirada pela formulação da autora, pretendo articular os operadores dessa
(de)formação do psicanalista com a noção de estilo que, cabe esclarecer, não diz
respeito aos traços de personalidade pertencentes ao campo imaginário, tampouco às
identificações simbólicas que podem atravessar o sujeito em seu percurso de formação.

O estilo é o rastro, o sulco, do “próprio mais próprio”, do singular, “de si


mesmo”, é aquilo que não se autoriza de um outro e, por isso mesmo, rasga,
atravessa, fura o sentido comum. “O que se torna a pulsão depois da travessia
do fantasma?”, perguntava Lacan: um estilo, podemos responder. (...) O
estilo se autoriza dentro de uma análise, se faz valer a medida mesma em que
o Outro, como garantidor da verdade, é desvalido. (Fingermann, 2016, p. 58-
59)

Seria o estilo o que resta na formação do analista? Para responder à essa questão,
traçarei alguns pontos que Lacan articula em seu ensino.
Na abertura da coletânea de textos dos Escritos, Lacan lança mão da retórica de
Buffon, afirmando que “o estilo é o próprio homem” (Buffon, 1753, apud Lacan, 1966,
p. 9). Ao longo de seu artigo, Lacan subverte a afirmativa de Buffon de modo a servir-
se dela para a questão do estilo em psicanálise. A subversão que ele propõe é a partir da
noção do homem: “o estilo é homem a quem nos endereçamos”. Sabemos que, para a
psicanálise, o homem a quem nos endereçamos diz respeito ao Outro, que reenvia a
mensagem, de forma invertida. Nessa dobra que Lacan produz, a afirmativa é
dessubjetivada, o que o leva a afirmar, ao final desse artigo que:

é o objeto que responde à pergunta sobre o estilo que formulamos logo de


saída. A esse lugar que, para Buffon, era marcado pelo homem, chamamos de
queda desse objeto, reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo, como causa do
desejo em que o sujeito se eclipsa e como suporte do sujeito entre verdade e
saber (Lacan, 1966, p. 11).

Encontramos, então, que o estilo se refere ao objeto, e não ao sujeito. Refere-se


ao objeto enquanto queda, esvaziamento de sua consistência imaginária garantidora de

30
um lugar na vida para o sujeito, o que se opera em uma análise, mais especificamente no
fim de análise, nomeadamente a travessia da fantasia (Iannini, 2012).
No seminário XVI, de um Outro a outro, Lacan afirma:

a análise articula o objeto a pelo que ele é, ou seja, causa do desejo, isto é, da
divisão do sujeito, daquilo que introduz no sujeito o que o cogito mascara – a
saber, que, ao lado desse ser do qual ele crê assegurar-se, o a, essencialmente
e desde a origem, é falta (p. 333. Sem 16).

Desse modo, Lacan afirma que, na passagem de psicanalisando a psicanalista, há


uma porta cuja dobradiça é o resto que constitui a divisão entre eles, da qual o resto,
objeto a, é causa.
No seu seminário sobre o ato psicanalítico, ele vai situar que, nessa operação,
encontra-se a destituição subjetiva que possibilita ao analista ocupar esse lugar de
semblante de objeto a, mas como um des-ser.
*
Desse des-ser instituído no ponto do sujeito suposto saber, ele (...) nada sabe
a seu respeito. Isso, justamente, porque ele tornou-se a verdade desse saber e,
se posso dizer assim, uma verdade que é atingida “não sem o saber”, como
dizia há pouco..., bem, é incurável: somos essa verdade. (Lacan, 1967, p. 90)

Nesse mesmo seminário, Lacan lança mão do tetraedro que havia desenvolvido
no seminário sobre “A lógica da fantasia” e desenvolve toda uma articulação lógica do
percurso de uma análise, desde a entrada do sujeito do cogito cartesiano ao que se
espera dos efeitos de uma análise, um certo saber sobre o objeto a, aquilo que é
mascarado pelo cogito. Ou seja, é no percurso de uma análise que o sujeito se depara
com o intransponível da sua condição de falta originária.
Há, portanto, uma relação entre saber e verdade a qual uma análise atravessa. A
verdade do sujeito, como o que só pode ser semi-dita, dada a condição da divisão
subjetiva, é falta. E é sobre essa falta que o saber passa a ter que operar. Como sujeito
suposto saber, o analista opera do lugar mesmo desse objeto a, não com um saber a
mais, mas com um saber fazer sobre o impossível.

Queda do objeto quer dizer, pois, perda de gozo. (...) tal perda de gozo pode
ser aproximada do que Miller chamou de peças avulsas, algo que não se
emenda na significação. Esse resíduo da análise é também chamado de
sinthome. Esse precipitado de gozo desarmônico em relação à cura requer
que o sujeito faça sua bricolagem, decerto precária, mas em cuja invenção
revela-se o estilo absolutamente singular através do qual cada um pode se
haver com sua peça desconexa. (Teixeira, Iannini,2012)

31
Assim, na passagem de psicanalisante a psicanalista, há o efeito de destituição
subjetiva, que aproxima o sujeito de sua verdade, de um saber fazer com seu sinthoma.
Ao mesmo tempo em que trabalhava no seminário XV, Lacan escrevia a Proposição de
09 de outubro de 1967, no qual, ante essa constatação de que, no ato psicanalítico como
ato inaugural de uma psicanálise, o que se encontra é pura perda na dessubjetivação, ele
interroga se isso não seria desestimulante aos psicanalistas amadores, “a destituição
subjetiva gravada no bilhete do ingresso” (Lacan, 1967, p. 257).
Então, perguntemo-nos: o que nos faz prosseguir com o bilhete na mão? Se não
há promessas ou garantias na formação do psicanalista, o que fazemos aqui? Penso que
a resposta que a Psicanálise oferece desde Freud está no desejo. O desejo de querer
saber sobre Isso, transmitido como peste, desde Freud.
O trabalho que aqui proponho, embora trate de um aspecto bastante particular,
que diz respeito ao estilo, a isso que é o próprio mais próprio de cada um, a experiência
solitária de autorizar-se por si mesmo, só pode se sustentar na articulação com “os
outros”.
Os dispositivos pelos quais tenho transitado, análise, supervisão, cartéis,
núcleos, seminários e as instituições com as quais estabeleço transferência,
especificamente a que me encontro mais implicada, a Clínica Freudiana, parecem
compor uma rede de sustentação mínima, um enodamento, na formação em psicanálise,
esse anteparo simbólico-imaginário fundamental ante o real implicado na formação.
Sonia Leite afirma que

para construir um lugar em que o desejo de Freud seja continuamente


retomado como traço identificatório fundamental e em que o analisando
possa não só fazer o luto de seu analista, como compartilhar suas
experiências como analistas transformados em pares. Ao psicanalista amador
cabe não só a perda de todo e qualquer sentimento de onipotência e mestria,
como também a construção de um ambiente institucional, isto é, de uma
Escola, que seja capaz de acolher um tanto de desamparo, loucura e paixão, a
partir do qual todo ato de criação assume seu pleno sentido (Leite, 2006, p.
163).

No que diz respeito ao estilo, penso que ele se aproxima do conceito de invenção
e de sinthome proposta por Lacan, esse impossível de ser nomeado.
Nessa direção, prosseguindo com as questões, fiz uma associação livre... uma
poesia que me fez pensar no percurso de uma análise. Cabe uma advertência: na poesia,
aparece o significante Deus. Convém desimaginalizá-lo, esvaziá-lo... eu fiz uma leitura

32
mais aproximada da filosofia zen, lembrando também que Lacan faz certa equivalência
entre a psicanalise e a pratica zen na introdução do Seminário 1.

Se eu quiser falar com Deus


Gilberto Gil
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

33
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FINGERMANN, D. A (de)formação do analista: as condições do ato psicanalítico.


São Paulo: escuta, 2016.

GIL, G. 1980. Se eu quiser falar com Deus. Luar. São Paulo: Warner, 1981.

IANINNI, G. Estilo e verdade. Estilo e verdade em Jacques Lacan. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2012.

LACAN, J. (1966). Abertura desta coletânea. IN: Escritos. Trad. Vera Ribeiro. RJ:
Jorge Zahar Ed.,1998.

LACAN, J. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola.


IN: Outros Escritos. Trad. Vera Ribeiro. RJ: Jorge Zahar Ed., 2003.

LACAN, J. O seminário: o ato psicanalítico. Livro 15. (s.d., versão anônima). 1967-
1968.

LEITE, S. O psicanalista amador e os três desejos: sobre o desejo do analista. In:


JORGE, M. A. C. Lacan e a formação do psicanalista. Rio de Janeiro: Contra Capa
Livraria, 2006.

34
“O que há entre nós”? Do saber ao amor entre analista e analisando na cena analítica

Anaisa Margonari Freitas Silva7

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre o que há entre analista e analisando,
assim como o que constitui esse vínculo diferente de qualquer outro laço social. Tendo o
fenômeno da transferência como norte para essa discussão, pretende-se abordá-lo desde a
inauguração do conceito freudiano até a apropriação lacaniana do termo, enfatizando a
manifestação clínica na análise da neurose. Fazendo uma breve retomada ao surgimento do
método psicanalítico e abandono da hipnose por Freud até a releitura lacaniana do conceito de
transferência, vinculada ao desejo do analista, procura-se pensar o que se dá do lado do
analisando e do lado do analista, na composição da cena analítica, assim situar o saber e o amor
que enlaça, de modo diferente, analista e analisando, no processo psicanalítico que visa à
produção, à criação, semelhante ao que se experimenta no amor, a partir do que falta.

Palavras-chave: Transferência; Analista; Saber; Amor; Desejo do analista.

Movida pelo tema de trabalho da Associação Clínica Freudiana deste ano, em


comemoração a seus 20 anos de existência– “O que h@ entre nós, a clínica psicanalítica e a
formação do analista”- –, pretendo discorrer sobre o que há entre analista e analisando, bem
como o que perpassa esse vínculo atípico que se diferencia de qualquer outro laço social e, ao
mesmo tempo, o torna possível, o sustenta ou o inviabiliza.

Entendendo a transferência como alicerce para essa discussão. Pretendo abordá-la desde
a inauguração do conceito freudiano até a apropriação lacaniana do termo, enfatizando sua
manifestação clínica na análise da neurose.

7
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia, Membro associado da Associação
Clínica Freudiana de Uberlândia.

Avenida Rondon Pacheco, 4600, andar 18, sala 181.

margonarianaisa@gmail.com

35
Nessa perspectiva, intenciono pensar o que se dá do lado do analisando que procura o
dispositivo analítico, sustentado pela crença de encontrar um saber no psicanalista, que, por sua
vez, somente pode o sustentar a partir de seu desejo de analista.

Objetiva-se pensar esta relação, analista e analisando, que não é recíproca, dual,
especular, intersubjetiva, mas se configura a partir de uma ética, a da psicanálise, do desejo
inconsciente, viabilizada pela transferência.

O fascínio de Freud pelo fenômeno da transferência já pode ser percebido,


embrionariamente, nas observações sobre a teoria e a prática da hipnose, em que ressalta que o
indício mais significativo da hipnose é a atitude do paciente hipnótico frente ao hipnotizador.
Este deve conquistar a confiança daquele para que a hipnose seja bem-sucedida. (JORGE,
2017).

O fenômeno da transferência é justamente o marco da invenção do método de


tratamento psicanalítico, inaugurado por Freud a partir da observação e do trabalho com as
histéricas, entre elas Berta Pappenheim, mais conhecida sob o nome fictício de Anna O.
Acolhida primeiramente por Breuer, ela batizou o que viria a ser a regra fundamental da
psicanálise, a associação livre, por meio da “cura pela conversa”, a qual nomeou de maneira
jocosa de “limpeza da chaminé”. (FREUD, 1893).

Após dois anos de trabalho com Anna O., ocorre um imprevisto, ela se apaixona pelo
seu médico, Joseph Breuer, o qual, pressionado pela esposa enciumada para finalizá-lo,
comunica a decisão à paciente. Ela, que estava melhor clinicamente, ao saber da decisão do
médico, apresentou uma crise histérica, na qual simulava o parto do filho dele.

Apavorado por esse "acidente de percurso" e. provavelmente, como afirma Lacan,


estando também apaixonado, Breuer abandona os atendimentos à paciente e motiva Freud a dar
continuidade no tratamento com ela (LACAN, 1960-61). Freud, intrigado com o valor da
sexualidade para a origem das neuroses, observando os afetos suscitados na relação de Anna O.
e Breuer, percebe o complexo e espontâneo fenômeno da transferência, levando-o a renunciar à
hipnose e criar o método psicanalítico. Assim, pode-se dizer que “o ponto limite no trabalho
catártico de Breuer constituiu o ponto inaugural do trabalho de Freud” (MAURANO, 2006, p.
17).

Diferente da sugestão, utilizada na hipnose, o método psicanalítico possibilita que o


sujeito vença as resistências internas acarretadas pela aproximação do recalcado, permitindo-lhe
conquistar algo que não perderá jamais. Isso é evidenciado quando Freud afirma que o que se
experimenta nas formas de transferência é mais poderoso comparado a outros dispositivos
terapêuticos, fazendo com que o sujeito não se esqueça disso (JORGE, 2017). Diferentemente

36
do método catártico, o que o paciente experimenta em uma análise não é apenas a repetição do
encontro traumático, faltoso com o Outro, mas a possibilidade de recriar, inventar meios para o
sujeito ir além dessa repetição.

O termo em alemão Überträgung, que significa transferência, designará um laço afetivo


que se instaura quase automaticamente e independente da realidade na relação com o analista
(MAURANO, 2006). Freud denominou-o como um investimento afetivo do paciente dirigido ao
psicanalista, por meio do qual são atuadas experiências regressivas infantis, podendo ser tanto
uma força impulsora do tratamento (transferência positiva) quanto algo que resiste a ele
(transferência negativa) (FREUD, 1912). Já na concepção lacaniana, a transferência vincula-se
ao desejo do analista que, sustentado pela ética da psicanálise, maneja a transferência.

Não é só no contexto analítico, contudo, que existe transferência. Embora se


presentifique nele, ela está presente em todas as relações humanas. Isso é o que difere a posição
do médico daquela do analista, o qual trabalha a partir do manejo que faz da transferência, não a
deixando passar despercebida. O analista é, assim, elegido, pois analisa a transferência, acolhe-a
juntamente às resistências que a compõem, e revela ao paciente os elementos fundamentais do
conflito que originou o recalcamento e que o faz retornar como sintoma (MAURANO, 2006).

Analisar a transferência é, portanto, condição para o estabelecimento do tratamento


psicanalítico. Segundo Lacan, o final de análise diz respeito justamente à análise da
transferência. (LACAN, 1960-61).

O analisando atribui ao analista certas posições correlativas àquelas das figuras


primordiais para sua formação subjetiva. Ele encontra algum traço de identificação entre estas e
o analista, o que representa aquilo que o sujeito espera do Outro, termo lacaniano que designa as
figuras de alteridade responsáveis pela constituição subjetiva de um determinado sujeito, tecida
a partir da linguagem. Assim, o analista torna-se o intérprete das atualizações inconscientes do
sujeito dirigidas a ele, manejando-as transferencialmente.

Dessa forma, são direcionadas, também, ao analista inúmeras demandas que se


resumem em demandas de amor, de ser amado. Demanda-se que o analista oriente, responda,
diga o que fazer, entre tantas outras, mas o que cabe ao analista não é responder à demanda,
pois, como nos mostra Lacan, ela não quer ser respondida, pois é impossível satisfazê-la
plenamente (LACAN, 1960-61). Sem responder a essa demanda histérica, o analista deve
questioná-la, na tentativa de apontar a divisão do sujeito que, ao demandar, pretende tamponá-
la. Assim, o psicanalista poderá rememorar, junto ao sujeito, as intolerâncias recalcadas em
função da demanda de amor que lhe foi colocada pelo Outro.

37
Mas, para além da repetição, a transferência também é amor por onde o inusitado pode
aparecer, algo pode se criar, se inovar. Ela tem a ver com o amor, com a demanda de ser amado,
e, na análise, isso será acolhido, encaminhado e desmontado ao final do
tratamento (MAURANO, 2006).

Nessa perspectiva, quando se questiona o que há do lado do analisando ao procurar um


analista, pode-se dizer que há amor e saber. O que também ocorre do lado do analista, porém de
uma posição e uma função diferentes.

O sujeito, ao procurar um psicanalista, supõe um saber que lhe intriga justamente por
que lhe escapa. Ele supõe que esse Outro analista saiba e garanta a verdade última sobre seu
próprio ser. A essa suposição de saber localizado no Outro, encarnada pelo analista, Lacan
denominou Sujeito Suposto Saber. Logo, o saber localizado ao lado do analisando diz respeito a
esse endereçamento ao analista como sujeito suposto saber. Por isso, é fundamental para o
trabalho analítico que o analista localize, a partir da transferência, a posição em que o
analisando o coloca, assim maneje a transferência a partir de uma função específica, a de objeto
causa de desejo (a) e não a partir da própria divisão subjetiva ($).

O saber do lado do analista, por sua vez, não está no mesmo lugar que o do analisando.
Tendo experimentado na própria análise o encontro faltoso com o Outro, destituindo o Outro do
lugar suposto saber, ele conduz o analisando a fazer o mesmo.

O saber que interessa ao analista é o saber fazer, segundo Lacan "savoir-faire",


implicado na ação da vida, que é um saber irrepresentável, mas não impossível de ser
experimentado, não ensinável, mas transmissível pela experiência da partilha da falta, o que leva
Lacan a dizer que a transferência tem a ver com uma experiência (LACAN, 1960-61). A partir
disso, podemos retomar a célebre afirmação lacaniana que "amar é dar o que não se tem", ou
seja, podemos pensar o amor analítico como aquele em que se dá o que não se tem, mas, para
além disso, e exatamente por isso, é amor, pois dá meios de operar com a falta. (LACAN, 1960-
61).

Desse modo, o analista, ao invés de responder às demandas de amor dirigidas pelo


analisando a partir da sua própria divisão subjetiva, responde-as compartilhando a falta,
oferecendo o encontro faltoso com o Outro, que só pode ser vivido transferencialmente como
efeito de sua própria análise.

A fim de retratar esse amor de ambos os lados, em O seminário, livro 8, A


transferência, Lacan recorre à obra de Platão, O Banquete. Aproximando-o a um relato de
sessões psicanalíticas, Lacan discorre sobre o amor que interessa ao analisando, mas
principalmente ao analista, no que diz respeito à sua função, articulada ao desejo de analista.

38
Pretendendo demarcar a maneira do amor operar no processo analítico a partir do desejo
do analista, Lacan recorre ao discurso de Sócrates, um dos personagens do Banquete, e
demonstra que a ética que orienta o trabalho psicanalítico é inspirada por uma estética, por uma
sensibilidade particular.

A partir de um lugar curioso, vinculado ao feminino - o qual Lacan localiza e compara


ao registro do Real, como não todo, irrepresentável – Sócrates começa a discursar sobre o amor,
dize que o que sabe sobre o amor é o que ouviu de uma mulher (Diotima, de Mantinea). Assim,
ele apresenta o amor diferentemente dos outros convidados da cerimônia, não como um deus ou
algo pleno em si mesmo, mas vinculado ao desejo do que é bom e nos faz felizes, logo critica a
visão reducionista de "dois fazer um". Interrogando-se sobre o que é bom no amor, Diotima
responde que é o que se refere à produção da beleza, seja pelo corpo seja pela alma,
aproximando os conceitos de beleza e de produção. O belo, diferente do feio, provoca expansão,
então o amor busca a beleza porque junto ao belo o ser fecundante, “se dilata, engendra e
produz” (MAURANO 2006, p. 42). No amor, o homem pode acolher sua falta, fazendo-se
criador, transformando o horror de sua falta de sentido, de mortalidade, em algo com que possa
fazer alguma coisa (savoir-faire).

Dessa maneira, a função do analista aproxima-se da função do amor, do belo, pois, a


partir do desejo do analista, desalienado do desejo do Outro, ele convoca o analisando a fazer
algo com o impossível, ao invés de ficar insistindo na impotência, na insatisfação, pela postura
histérica.

O analista, colocado na posição de objeto a, causa de desejo, atualiza a existência de um


furo, de uma falta, de uma impossibilidade proveniente do encontro faltoso com o Outro,
incitando uma mudança de posição subjetiva do analisando, de sujeito amado para amante. A
isso Lacan chama de "Milagre do amor", em que é possível criar com a falta, ou seja, passar da
posição de amado para a de amante, de sujeito causa do desejo do Outro para sujeito desejante,
não mais hipnotizado pela demanda de amor que lhe foi colocada pelo Outro primordial. A
posição de amante, enquanto desejante, produz com a falta, entrega-se a ela para, a partir daí,
criar, inventar (MAURANO, 2006). Por esse motivo, Lacan associa a transferência ao feminino,
referente à posição e não ao gênero, experimentada ao final de análise tanto por homens quanto
mulheres. Freudianamente falando, é a possibilidade de, ao término de uma análise, consentir
com a castração, com o que falta, ou seja, com a falta de um significante mestre que dê conta da
divisão subjetiva ($), para a qual não há remédio, não há análise que cure.

Mas há análise que possibilite saber fazer algo com o sintoma, com o sofrimento, a
partir da criação, de uma invenção, construída singularmente entre os nós que ligam o analista

39
ao analisando, como afirma Lacan em cada “leito de amor” que configura a cena analítica.
(LACAN, 1960-61).

Referências

FREUD, Sigmund (1893). Casos Clínicos (Breuer e Freud). In: FREUD, Sigmund. Estudos
sobre a histeria. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p 57-81. (Edição standard das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, II).

FREUD, Sigmund (1912). A Dinâmica da Transferência. In: FREUD, Sigmund. O caso


Schreber, Artigos sobre Técnica e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p 111-119.
(Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, XII).

JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan. vol. 3: a


prática analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Zahar,


2010.

MAURANO, Denise. A transferência: uma viagem rumo ao continente negro. Rio de


Janeiro: Zahar, 2006.

40
Atendimento online: reflexões sobre a clínica psicanalítica na atualidade

Margarete A. Domingues8

Resumo

Este artigo pretende investigar as possibilidades do analista lacaniano em responder a


demandas de atendimento online, características do mundo contemporâneo, articulando-
as com as ressonâncias do Encontro anual da Clínica Freudiana em 2017, cujo tema
proposto foi “O que h@ entre nós”. O encontro foi realizado em dois momentos: um
pré-encontro no qual membros trabalharam previamente suas questões e o encontro,
com convidados, em que as discussões circularam prevalentemente em torno da clínica
borromeana.

A partir das discussões produzidas no Encontro anual da Clínica Freudiana,


muitas questões ficaram em suspenso para posterior investigação, embora tenham se
destacado interlocuções interessantes a partir da clínica borromeana, explorada por
Lacan nos últimos anos de seu ensino. Schejtman (2015) já ressalta que são escassas as
contribuições à abordagem nodal das estruturas clínicas. São poucos os ensaios que
examinam as psicoses, contadíssimas as referências aos enodamentos neuróticos, e
quase inexistentes os que abordam a perversão. Essas questões permaceram ao final do
Encontro.
Minha questão quanto ao atendimento online circula em torno do lugar do
analista frente a essa demanda, de sua presença e se, ao atendê-la, não estaria cedendo
de seu desejo de analista, sob um prisma ético. É uma questão que permanece aberta,
mas vou esclarecê-la a partir de alguns autores que discorrem sobre tais pontos. Como
ressonância do Encontro citado, tenho pensado em como articular tais indagações a
partir da teoria dos nós, em trabalho a ser desenvolvido em outro momento.
Schejtman (2015) assinala que Lacan não deixou de requerer do psicanalista que
desse razão de sua prática. A efetividade de seu ato, o do analista, não lhe era suficiente.
O psicanalista deveria ser ao menos dois: o do ato e aquele dedicado a teorizá-lo, tanto
como a seus efeitos.

8
Psicanalista, Mestre em Psicologia, Membro da Associação Clínica Freudiana de Uberlândia.

41
Lacan (1998) apresenta o analista como quem porta um estilo, pois é a ele que o
sujeito fala livremente, o que implica escrever um espaço no qual exista lugar para que
o analisante coloque algo de seu. Ouvir e escutar o que permanece de indizível nas
entrelinhas, ou entre palavras, é função do analista.
Rennó Lima (2013) assinala que a presença do analista é uma presença na qual
está implicada uma perda pura. A presença do analista se faz a partir do “desejo do
analista”, que é um vazio a ser sustentado como causa, o qual pode se apresentar com
seu silêncio, mas garantindo presença com seu corpo.
O psicanalista Marcus André Vieira (2009) afirma que a presença do Outro
analista se apresenta em uma análise como objeto. Enquanto o sujeito está em todo e em
nenhum lugar, o objeto está sempre no mesmo lugar.
As afirmações acima sobre a posição do analista instigaram-me a rever minha
própria posição sobre atendimento online. Se a presença do analista se faz a partir de
seu desejo de analista, por que não considerar a possibilidade de atender tal demanda,
avaliando o caso a caso?
Alberti (2000) assinala:

Se a clínica pode se definir como encontro de corpos, Jacques Lacan subverte


as coordenadas dessa conjuntura construindo a questão da presença na sessão
analítica. O corpo não basta para fazer presença, mas, sem o corpo, não há
presença do analista. Muito cedo em seu ensino, Lacan evoca o sentimento da
presença que, às vezes, se apodera do sujeito na sessão analítica. No ponto
mais sensível e significativo da transferência, o analisante faz ali a
experiência da atualização da pessoa do analista (p.51).

Segundo Lise (2013),

a presença do analista é um dos aspectos fundamentais para o encontro


psicanalítico. A transferência, condição para a consecução de um tratamento,
passa pela sustentação na presença, no corpo do analista do que esse encontro
provoca. Como ficaria essa dimensão nos tratamentos virtuais”?

...a responsabilidade por sustentar a prática analítica é do analista que,


emprestando consequência ao seu desejo, empenha sua escuta, sua voz, seu
corpo e sua presença e convoca o analisando a não recuar frente ao seu
desejo... A prática lacaniana é sem standarts, mas não sem princípios. O
virtual se confirma como um espaço de inter-relações e o atendimento clínico
online é uma nova realidade. Caberá a cada psicanalista, no caso a caso, na
singularidade de cada atendimento, decidir em que condições pode se dar o
tratamento, se guiando pela ética da psicanálise.

As autoras citadas me fazem pensar que o analista, no atendimento online, está


presente com seu corpo, sobretudo com sua voz, um dos objetos para Lacan. A
42
interrogação importante a se fazer é como o analista vai sustentar a transferência, motor
da análise, quando outros elementos do campo analítico não se incluem, como o cheiro,
a respiração, os movimentos mais sutis etc.
Estamos vivendo o tempo da pressa. Laurent (2017) é claro em dizer que:

o que se quer hoje é “mais”: é necessário ir mais rápido, trabalhar mais,


ganhar mais, correr mais, ter mais sexo, mais amor, é preciso ter não importa
o que, desde que seja mais. Isso é o capitalismo generalizado, todo mundo é
empreendedor de si mesmo. Ser empreendedor de si mesmo e tudo
maximizar é um comportamento adicto perigoso (p.4-5).

A afirmação de Laurent indica que estamos no tempo da pressa. Isso levaria as


pessoas que demandam atendimento online a responderem tacitamente a essa lógica?
Parece-me que o enxame de ofertas para atendimento que se intitulam psicanalíticos que
vemos nos catálogos da internet também obedecem a esta lógica do sujeito na
atualidade, apressada e adicta. Os objetos a são elevados ao zênite social. Nessa lógica
de mercado do consumismo generalizado, não se pode perder tempo. Vocifera o
imperativo: goze! A qualquer preço.
Tais ofertas trazem essa marca de gozo, e as pessoas que desconhecem o rigor
do trabalho analítico, possivelmente, serão seduzidas, pois farão “análise sem precisar
“trabalhar”, no sentido do que o corpo requer num trabalho de análise (sair de casa,
deixar o conforto, se pôr a trabalho, dar o seu quinhão para que haja análise). Por outro
lado, há pessoas que estão incapacitadas, não têm condições físicas e psíquicas para se
deslocarem até um consultório do analista. O atendimento online não seria uma saída?
Parto da premissa de que a Psicanálise se diferencia da lógica consumista. A
experiência da Psicanálise é uma experiência de atravessamento do fetichismo do
mercado. É uma possibilidade de descobrir que esse fetiche industrial não porta mais do
que falsas promessas de felicidade.
São inúmeras as questões que perpassam a práxis analítica, e acredito, como o
próprio Lacan nos ensinou, que precisamos seguir as orientações de nosso tempo. O
atendimento online é uma realidade que está cada dia mais frequente nos consultórios
dos analistas, ainda que muitos omitam tal prática. A questão não é radicalizar e dizer:
isso não faço, isso não pode, isso não é ético. A questão é: como fazer? É possível
atender essa demanda, sustentando a posição de analista, sem ferir a ética psicanalítica
tão cara à nossa orientação?

43
Se a Psicanálise vai na contramão dos pressupostos da lógica consumista, é no
caso a caso que um analista irá atender à demanda de cada sujeito que o procura para se
analisar, no consultório ou utilizando recursos da internet. O que importa é como ele vai
sustentar seu lugar a partir de seu desejo de analista, e como irá conduzir o tratamento
do analisante, colocando-se como objeto causa de desejo para que o último possa
atravessar sua fantasia fundamental, e o que fará com os efeitos disso no processo
analítico.
Para finalizar, vou recorrer a uma citação de Laurent, em que apresenta uma
definição poética da Psicanálise, a qual ajudando a me orientar no caminho escolhido e
a discernir sobre as demandas recebidas dos analisantes:

a psicanálise é uma aventura pessoal, deve ser vista como uma história de
amor. As histórias de amor não duram para sempre, mas duram por um
tempo. Há pessoas que têm histórias de amor rápidas e múltiplas. Nesse
sentido, é também necessário existir um tratamento rápido e múltiplo. Há, em
contrapartida, as aventuras mais longas, nas quais o objetivo é mudar o
estado das coisas no interior de si mesmo. Assim é a psicanálise: a cura como
aventura pessoal, e também um tratamento.. (Laurent, 2017, p.2-3)

Referências

ALBERTI, Cristiane. Presença do analista. Não sem o corpo... IN: A sessão analítica:
dos riscos éticos da clínica. Textos reunidos pela Fundação do Campo Freudiano. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. IN: Escritos. Trad.


Vera Ribeiro. RJ: Jorge Zahar Ed.,1998.

LAURENT, Éric. Os efeitos da psicanálise no tecido da civilização. Entrevista com


Éric Laurent por Fabiola Ramon. Opção Lacaniana online nova série. Ano 8. Número
22. março 2017. ISSN 2177-2673.

LISE, Liége. Psicanálise a distância. Boletim do IPLA. 20/02/2013.

RENNÓ LIMA, Celso. Como Agir com seu ser: Sobre o Desejo do Analista (II).
Disponível em: http://clinicalacaniana.blogspot.com.br. Acesso em 26/03/2017.

Schejtman, Fábian. Sinthome, ensayos de clínica psicoanalítica nodal. Olivos: Grama


Ediciones, 2015.

VIEIRA, Marcus A. Curso Livre do ICP-RJ realizado no primeiro semestre de 2009 na


Seção-Rio da Escola Brasileira de Psicanálise por Marcus André Viera. Transcrição e
pesquisa inicial de referências: Leandro Reis.

44
45
Fliess, supervisor de Freud9

Rômulo Ferreira da Silva

A Psicanálise surgiu num contexto histórico propício ao desenvolvimento da


criação freudiana. O tríptico da formação analítica – análise pessoal, formação teórica e
supervisão – instaurou-se logo no percurso de Freud. Se o modelo da transmissão do
saber à época baseava-se numa exposição que convencia os mais jovens a seguir o
mestre, o surgimento da psicanálise mostra que, além desse, existe um outro saber que
se impõe: o do inconsciente. Surge outra maneira de se dirigir ao saber: pela via do
amor.
Em “Dois verbetes da enciclopédia (A) Psicanálise” (FREUD, 1923. Pp.287-
307), Freud escreve que o trabalho da interpretação (do analista) não podia ser
submetido a regras estritas e permitia grande margem de manobra ao tato e à avaliação
do médico.
No texto “A história do movimento psicanalítico” (FREUD, 1914, pp.16-82),
fala da pressuposição do inconsciente, da resistência, da repressão, da sexualidade, do
complexo de Édipo e da transferência como os fundamentos de sua teoria, afirmando
que aquele que evita as hipóteses da transferência e da resistência “dificilmente poderá
escapar à acusação de apropriação indébita por tentativa de imitação, se insistir em
chamar-se a si próprio de psicanalista” (FREUD, 1914, p.26). Em “Uma nota sobre a
pré-história da técnica da análise” (FREUD, 1920, pp.315-318), de l920, respondendo
ao livro de Haveloch Ellis “A filosofia do conflito”, Freud esclarece que a psicanálise
não está ao lado de uma produção artística, como queria o autor. A associação livre,
freier Einfall, deixaria a expressão mais livre para significar “uma ideia que ocorre
espontaneamente ao espírito.” (FREUD, 1920, p.316).
Freud conta que aos quatorze anos recebeu de presente as obras de Ludwig
Börne, o primeiro autor cujas obras estudou. Cita as últimas frases do ensaio “A arte de
tornar-se um escritor original em três dias”:

9
Texto gentilmente cedido pelo autor, tendo sido publicado originalmente na “Correio – Revista de
Psicanálise”, nº 73, 2013.

46
E aqui temos a aplicação prática que foi prometida. Pegue algumas
folhas de papel e por três dias a fio anote, sem falsidade ou hipocrisia,
tudo o que lhe vier à cabeça. Escreva o que pensa de si mesmo, de sua
mulher, da Guerra Turca, de Goethe, do julgamento de Fonk, do Juízo
Final, de seus superiores, e, quando os três dias houverem passado,
ficará espantadíssimo pelos novos e inauditos pensamentos que teve.
Esta é a arte de tornar-se um escritor original em três dias. (FREUD,
1920, p.317)

É possível considerar que tal regra acompanhou Freud desde os primeiros


tempos, naquilo que se refere a sua prática de supervisão, e possivelmente perseguiu, a
partir desse princípio, os outros dois pilares da formação psicanalítica.
Não se trata de uma técnica a ser pura e simplesmente repetida. É uma
orientação que permanece válida, mantendo viva a psicanálise. Pode-se supor que a
primeira experiência de supervisão à qual Freud se submeteu foi feita por Breuer,
embora de acordo com um modelo anterior ao surgimento da psicanálise. Já dentro dos
princípios freudianos, a supervisão efetuada por Wilhem Fliess em relação à clínica de
Freud é provavelmente a primeira supervisão da história da psicanálise.
É possível dizer que Freud fez sua autoanálise com Fliess, ao mesmo tempo em
que construiu sua invenção, e também que fez a supervisão de sua prática desde o
começo. A correspondência entre eles dá uma pista muito interessante do percurso de
Freud. Este tinha uma relação muito próxima com Fliess, que, no entanto, foi sempre
unilateral. Fliess era dois anos mais moço que Freud e a amizade começou quando
Freud tinha 31 anos, em l883, e era professor de neurologia na Universidade de Viena.
Suas cartas vão de l887 a l904, quando a amizade termina.
Fliess era otorrinolaringologista em Berlim, já com uma carreira respeitável, e
frequentou o curso de Freud por recomendação de Jean Martin Charcot. Suas teorias
sobre a relação do nariz com o resto do corpo, especialmente com a sexualidade,
encantaram Freud.
A transferência que se estabeleceu é marcante. A observação dos termos
empregados e a análise das cartas, especialmente dos comentários a respeito dos
silêncios de Fliess, mostram o apego de Freud em relação a ele. É interessante observar,
quando se fala da “autoanálise” de Freud, que ele se toma como um caso clínico.
Discutia questões dos pacientes com seu “auditório”, palavra que usava para se referir a
Fliess. Chamava os encontros entre os dois de “congressos particulares”.
Embora tivessem algo em comum, permanece inexplicável o que levou Freud a
experimentar amor tão forte por Fliess. Ambos eram judeus, médicos e curiosos a

47
respeito dos mistérios da sexualidade humana, o que se pode considerar “Sq”
(significante qualquer) da transferência. O interesse científico similar explicaria a
insistência com que Freud solicitava opiniões sobre as ideias que surgiam, mas não o
amor incondicional manifesto em suas cartas. Freud via na relação uma vertente
homossexual. A transferência de Freud em relação a Fliess é sem dúvida uma
transferência analítica, como o demonstram certas passagens da correspondência entre
ambos. O amor de transferência é o motor do trabalho que permite a Freud decifrar seu
próprio inconsciente.
Freud se dirige a Fliess como a um mestre e os pedidos de resposta, de atenção e
de encontros demonstram claramente o lugar diferenciado que este ocupava. Os
silêncios de Fliess diante das demandas de Freud e seu menor devotamento ao colega
criaram certa dissimetria na relação, o que pode ter sido o fator de sustentação do amor
transferencial durante todo o tempo da relação.
Seguem-se trechos de cartas, organizadas por datas e páginas referentes ao livro
de Jeffrey Masson, que mostram a relação analítica ou tratam da questão teórica.
Na carta de 1º de agosto de 1890, Freud escreveu: “... do ponto de vista médico, eu sem
dúvida me beneficiaria de sua presença e, talvez, também da atmosfera de Berlim, já
que faz muitos anos que estou sem nenhum mestre; estou mais ou menos
exclusivamente envolvido no tratamento das neuroses” (MASSON, 1986, p. 27).
Freud, além de declarar que seu estado geral poderia melhorar pela proximidade
com Fliess, desculpa-se por não dar a atenção necessária às teorias deste, por estar
absorvido em seu próprio trabalho.
Carta de 21/5/94:

Tenho observado há algum tempo que você suporta o sofrimento


melhor e com mais dignidade do que eu (...). Obviamente, não é
nenhum favor especial do destino eu ter aproximadamente cinco
horas por ano para trocar ideias com você, quando mal consigo passar
sem o outro – e você é o único outro, o alter. (MASSON, 1986, p.
73).

Carta de 22/6/94:

Assim fiquei privado da motivação que você caracterizou tão


habilmente numa de suas cartas anteriores: uma pessoa só consegue
desistir de algo quando está firmemente convencida de que aquilo é a
causa de sua doença (...) Em termos gerais, observo que estou sendo
tratado como um paciente, com evasivas e subterfúgios, em vez de ter
minha mente tranquilizada pela comunicação de tudo o que há para

48
me dizer numa situação dessa natureza, ou seja, tudo o que se sabe.
(MASSON, 1986, pp. 84-85).

Freud utiliza uma afirmação de Fliess para pedir-lhe que diga tudo o que sabe
sobre o seu inconsciente, sem subterfúgios (ver a carta em português).
Carta de 26/4/95:
Você me parece zangado quando se envolve tão persistentemente
num manto de silêncio. Terá razão, se estiver zangado comigo por eu
não ter mandado as provas tipográficas que anunciei... (MASSON,
1986, p. 127).

A interpretação sobre o silêncio do analista é evidente e o esquecimento tomado


como formação do inconsciente mostra como Freud colocava sua relação com Fliess no
material da análise.
Carta de 27/4/95:

Muito obrigado por seus comentários sobre a angústia. A história


bíblica é notável; tenho que procurá-la e indagar a um estudioso do
hebraico sobre o sentido da palavra. Ou será que você é também um
estudioso desde os tempos de juventude? (MASSON, 1986, p. 128).

A suposição de saber continua.


Carta de 8/11/95:

Em seguida comecei a escrever sobre a enxaqueca. Os primeiros


aspectos que examinei levaram-me a um entendimento que voltou e a
recordar o tópico que eu pusera de lado e que teria exigido muitas
revisões. Senti-me sobrecarregado de trabalho, irritado, confuso e
incapaz de dominar aquilo tudo. Assim joguei tudo longe. Agora,
lamento que, com base nessas páginas, você precise tentar formar
uma opinião que justifique meu grito de alegria diante de minha
vitória, o que lhe deve ser realmente difícil (...) A solução clínica da
histeria, porém, ainda se mantém; é atraente e simples. (MASSON,
1986, p. 151).

Nesta carta aparece o elo entre as questões teóricas, a discussão clínica e os


elementos da análise.
Carta de 8/12/95:

Quando volto a ver sua letra, vivo momentos de grande alegria, que
me permitem esquecer grande parte de minha solidão e carência.
(MASSON, 1986, p. 155).

49
É interessante que Freud aqui marque a escrita como sinal da presença de Fliess,
pois dirá mais tarde que a análise não se faz “in absentia ou in effigie” (FREUD, 1912,
p. 143).
Carta de 1/1/96:

Sei que você não precisa tanto de mim quanto eu de você, mas sei
também que tenho um lugar seguro em sua afeição(...) Observo que,
pela via tortuosa da clínica médica, você está alcançando seu ideal
primeiro de compreender os seres humanos enquanto fisiologista, da
mesma forma que alimento secretamente a esperança de chegar, por
essa mesma trilha, a minha meta inicial da filosofia. Pois era isso o
que eu queria originalmente, quando ainda não me era nada clara a
razão de eu estar no mundo. Durante as últimas semanas, tentei
repetidamente dar-lhe alguma coisa em troca de suas comunicações.
ȋ ǡͳͻͳʹǡ’Ǥͳ͸ͲȌǤ

A dissimetria entre os dois homens, bem como a necessidade de “pagamento” é


evidente para Freud.
Carta de 13/2/96:

Meu estado de saúde não merece ser tema de investigação. Na


semana passada, houve um recrudescimento da supuração do lado
esquerdo e enxaquecas bastante frequentes; a abstinência necessária
mal chega a fazer-me bem..ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥͳ͹͵ȌǤ

As queixas de Freud a respeito de seu estado de saúde repetem-se e


progressivamente deixam de ser pensadas como efeitos de uma causa orgânica.
Carta de 3/10/97:

Ainda há poucas coisas acontecendo comigo externamente, mas,


internamente, há algo muito interessante. Nos últimos quatro dias,
minha autoanálise (...) prosseguiu nos sonhos e me forneceu as mais
valiosas elucidações e indícios (...). Minha compreensão de que as
dificuldades do tratamento se devem ao fato de que, no final das
contas, o que se faz é desnudar as más inclinações do paciente, seu
desejo de permanecer doente, torna-se cada vez mais forte e mais
clara. ȋ ǡͳͻͳʹǡ’’Ǥʹ͸ͻǦʹ͹ͲȌǤ

Ao mesmo tempo em que conclui sobre a posição do doente que recusa


abandonar seu sintoma, fato clínico e teórico muito importante, Freud se toma como um
caso clínico, e. somente tomando-se como um outro caso ele pode controlar seu método.
Não é Fliess que faz as intervenções sobre o doente, é o próprio Freud, a partir do
silêncio do outro.

50
Carta de 4/10/97:

O sonho poderia ser resumido como “mau tratamento”. Assim como a


velha recebia o dinheiro de mim pelo mau tratamento que me
dispensava, hoje recebo dinheiro pelo mau tratamento dado aos meus
pacientes. Um papel especial foi desempenhado pela Sra. Q., cujo
comentário você me relatou: que eu não deveria cobrar nada dela, já
que era esposa de um colega (ele, é claro, impôs a condição de que eu
cobrasse).ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥʹ͹ͲȌǤ

Freud coloca novamente a clínica em discussão.


Carta de 14/11/97:

Minha autoanálise continua interrompida. Apercebi-me da razão por


que só posso me analisar com o auxílio de conhecimentos
objetivamente adquiridos (como uma pessoa de fora). A verdadeira
autoanálise é impossível, caso contrário não haveria doença neurótica.
Visto que ainda estou lutando com alguma espécie de enigma em
meus pacientes, isso está fadado a me deter também em minha
autoanálise.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’ǤʹͺʹȌǤ

Freud diz que se analisar como “um estrangeiro” (um estranho) é tarefa
impossível. Assim, é fácil afirmar que o bloqueio na discussão com Fliess sobre seu
próprio caso reside mais na supervisão do que na análise propriamente dita.
Carta de 9/6/98:

Muito obrigado, também, por sua crítica. Sei que você empreendeu
uma tarefa ingrata. Sou suficientemente razoável para reconhecer que
preciso de sua ajuda crítica, pois nessa situação eu mesmo perdi o
sentimento de vergonha que se exige de um autor. Portanto, o sonho
está condenado. (...) Como você sabe, um lindo sonho e nenhuma
indiscrição... não coincidem.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥ͵ͳ͸ȌǤ

Ao que parece, tratar-se-ia de um sonho com Martha Freud, suprimido por


indicação de Fliess que, como “analista”, toma os cuidados necessários para que seu
“paciente” não se exponha.
Carta de 3/1/99:

Em primeiro lugar, um pequenino dado de minha autoanálise forçou


passagem e confirmou que as fantasias são produtos de períodos
posteriores e que são projetadas, a partir do que era então o presente,
para épocas mais remotas da infância; a maneira como isso ocorre
também veio à tona – mais uma vez, através de um elo verbal.
Quanto à pergunta “O que aconteceu na primeira infância?”, a
resposta é: “Nada, mas existia o germe de um impulso sexual”. A

51
coisa seria fácil e agradável de contar, mas (...) vou guardá-la para
nosso congresso da Páscoa (...).
Em segundo lugar, captei o sentido de um novo elemento psíquico
que concebo como tendo significação geral e sendo um estágio
preliminar dos sintomas (antes mesmo da fantasia).ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥ
͵͵ͻȌǤ

Ainda uma vez, apresenta a Fliess o que aparece na autoanálise: elementos da


infância, a fantasia, a constituição do sintoma.
Carta de 21/9/99:

Infelizmente, não posso prescindir de você como representante do


Outro – e, mais uma vez, tenho outras sessenta páginas para você.
ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥ͵͹ͷȌǤ

O representante do Outro aparece aqui relacionado tanto à análise, quanto à


produção teórica.
Carta de 27/10/99:

Como você vê, tão logo não se quer falar sobre as próprias
preocupações ou sobre a própria ciência não nascida, desliza-se para
os mexericos. Chega disso.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥ͵ͺʹȌǤ

Freud percebe claramente seus subterfúgios para não entrar em questões que se
apresentam ainda de forma confusa
Carta de 7/8/01:

À parte qualquer outra coisa que possa restar do conteúdo, você pode
encará-lo como um testemunho do papel que você desempenhou para
mim até agora (...) Precisarei de aproximadamente seis meses para
reunir o material e espero descobrir que agora é possível executar
esse trabalho. Mas, nesse caso, vou precisar de uma discussão longa e
séria com você. A ideia é sim sua. Você se recorda de eu lhe ter dito,
anos atrás, quando você ainda era especialista e cirurgião nasal, que a
solução estava na sexualidade. Muitos anos depois, você me corrigiu,
dizendo que estava na bissexualidade – e vejo que tinha razão. Assim,
talvez eu precise tomar mais ainda coisas de empréstimo a você;
talvez meu senso de honestidade me obrigue a pedir-lhe que seja co-
autor do trabalho comigo; desse modo, a parte anatomobiológica
ampliaria seu alcance – a parte que, se eu fizesse sozinho, seria
minguada. Eu me concentraria no aspecto psíquico da sexualidade e
na explicação do neurótico. Esse é, portanto, o próximo projeto para o
futuro imediato, que espero torne a unir-nos adequadamente também
nos assuntos científicos.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’’ǤͶͶͺǦͶͶͻȌǤ

52
Quando a transferência se mostra em declínio, ainda há tentativas de Freud de
incluir em suas elaborações as teorias de Fliess, mas estas aparentam mais deferência do
que interesse real. Certas passagens de suas cartas mostram o desejo de que Fliess se
interesse pela elaboração freudiana, contribua com ela e a critique.
Carta de 10/7/93:

...espero que você explique o mecanismo fisiológico de minhas


descobertas clínicas...ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’ǤͷͳȌǤ

Carta de 6/6/94:

Isso é altamente peculiar, mas só pode significar que a fonte da


angústia não será física: é um fator físico da vida sexual que produz a
angústia. Mas que fator?ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥ͹ͺȌǤ

Freud tenta descobrir o mecanismo da angústia a partir da clínica. Reúne sete


grupos de casos nos quais a angústia emerge da causa sexual e conclui seu
desenvolvimento teórico com o argumento seguinte:

Foi esse o ponto a que consegui chegar hoje. As lacunas precisam


muito ser preenchidas (...) e sinto que falta algo, mas creio que a base
está certa. (...)As sugestões, ampliações e mesmo refutações serão
recebidas de muito bom grado.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’’ǤͺʹǦͺ͵ȌǤ

A mescla de lugares ocupados por Fliess fornece dois dos pontos fundamentais
da formação psicanalítica. A formação médica, que Freud lamenta não ser a mais
consistente, soma-se aos estudos que faz da psicologia da época, à literatura e à
filosofia, que confessa ser o seu maior interesse.

Seguem-se cartas que se referem à supervisão.

Carta de 29/9/93:

Que o seu diagnóstico estava certo é algo que eu já sabia, já que você
destrói todas as minhas faculdades críticas e realmente creio em você
em tudo.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥͷ͸ȌǤ

Já em 1893, Freud declara sua confiança em Fliess no tocante à clínica.

Carta de 7/2/94:

53
Você tem razão – o vínculo entre a neurose obsessiva e a sexualidade
nem sempre é tão óbvio. Posso assegurar-lhe que, em meu caso 2
(premência urinária), também não foi fácil de localizar (...).ȋ Ǥ
ͳͻͳʹǡ’Ǥ͸͸ȌǤ

A referência ao caso demonstra o direcionamento para a clínica.

Carta de 21/5/94:

Marion Delorme não foi uma preciosidade? Não será incluída na


coleção com Breuer porque, supostamente, o segundo patamar – o do
fator sexual – não deve ser revelado ali. O caso clínico que estou
agora escrevendo – uma cura – está entre meus trabalhos mais
difíceis. Você poderá vê-lo antes de Breuer, se o devolver
prontamente. Dentre os pensamentos lúgubres dos últimos meses,
havia um, que vinha em segundo lugar, logo atrás da mulher e dos
filhos: o de que eu não mais conseguia provar a tese sexual. Afinal,
ninguém quer morrer imediata ou completamente.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥ
͹ͶȌǤ

Segundo as observações de Masson, Freud faz referência a um personagem de


Victor Hugo, lamentando não poder incluir o caso em suas observações por seu teor
sexual. Não parece solicitar que Fliess o oriente no caso, mas quer que o leia antes de
enviá-lo a Breuer, com quem, naquele momento, tem dificuldades de relacionamento.

Carta de 23/8/94:

Hoje há dois anexos, pois na última vez esqueci de mencionar que a


epicrise (discussão crítica) viria a seguir, e essa, afinal, é a única coisa
que proporciona uma espécie de substituição do relato verbal. Além
disso, segue mais um caso, que colhi na cidade na segunda-feira... Por
conseguinte, pode-se esperar que, no caso do Sr. K., a superficial
neurose de angústia tenha-se originado numa etiologia superficial.
Onde é possível buscá-la sem preconceitos?ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’’ǤͻͳǦ
ͻʹȌǤ

Freud apresenta um caso que considera “brando” e o discute com Fliess, atendo-
se à questão orgânica para explicar o quadro, e referindo-se à importância do relato
verbal.

Carta de 29/8/94:

54
Afirma que sua potência foi sempre instável, admite a prática da
masturbação, mas não demasiadamente prolongada; vem agora de um
período de abstinência. Antes disso, estados de angústia à noite. Será
que fez uma confissão completa?ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥͻ͸ȌǤ

Dentre uma série de casos relatados, Freud apresenta este, que não o convence
totalmente. A pergunta final não deixa de ser um pedido de orientação.

Carta de 24/1/95:

A Sra. M. será bem-vinda; se trouxer dinheiro e paciência faremos


uma boa análise. Se, nesse processo, houver alguns lucros
terapêuticos para ela, também ela há de ficar satisfeita. ȋ Ǥ
ͳͻͳʹǡ’ǤͳͲͺȌǤ

Nas conjecturas de Freud sobre aceitar ou não pacientes, destaca-se várias vezes
a situação financeira sobre as quais fala com Fliess. Nas passagens abaixo, é muito fácil
ver Freud como um iniciante da prática analítica, preocupado com os ganhos tanto
quanto com a ética.

Carta de 8/3/95:

Acabo de receber sua carta e posso respondê-la de imediato.


Felizmente, vejo o caminho com clareza, estou tranquilo a respeito da
Srta. Eckstein e posso fazer-lhe um relatório que, provavelmente, irá
aborrecê-lo tanto quanto a mim, mas espero que você supere tão
depressa quanto eu (...) Logo voltarei a escrever-lhe e, acima de tudo,
farei um relatório minucioso sobre Emma E. No mais,
cientificamente, estou muito desolado.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥͳͳ͹ǦͳͳͻȌǤ

Trata-se de um caso encaminhado a Freud com hipótese de histeria, mas que este
diagnostica como sífilis e encaminha para tratamento. Freud é bastante cuidadoso com o
caso; seus relatos, porém, referem-se ao acompanhamento médico. Embora não fosse
um caso importante para suas construções, dele se encarrega aparentemente por
deferência a Fliess.

Carta de 23/3/95:

55
Da próxima vez vou mandar-lhe um maço de anotações de uma
análise que estou conduzindo agora, porque é muito louca. Mas não
sei se será possível desfrutar dela sem meus comentários, e se não
seria preferível deixar isso para uma hora em que estejamos juntos.
ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’ǤͳʹͶȌǤ

Surge aqui novamente a importância da presença física. É como uma plateia que
Fliess funciona para Freud.

Carta de 31/10/95:

Felizmente para mim, todas estas teorias precisam fluir para o


estuário clínico do recalcamento (...). Meu caso de “timidez” deverá
estar concluído ao final de 1896. Ele desenvolveu uma histeria na
juventude e, posteriormente, apresentou delírios de referência. Sua
história quase transparente deverá esclarecer-me alguns pontos
questionáveis. Um outro homem (que não ousa sair às ruas por causa
de suas tendências homicidas) deverá ajudar-me a resolver outro
quebra-cabeças.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’ǤͳͶͻȌǤ

É interessante Freud dizer que suas teorias devem “fluir para o estuário clínico”.
Ele elabora a teoria e então tenta verificá-la na clínica, apresentando seus casos à Fliess
a fim de verificar sua coerência.

Carta de 8/12/95:

Será que já lhe escrevi que as ideias obsessivas são invariavelmente


recriminações, ao passo que, na raiz da histeria há sempre um conflito
(prazer sexual, ao lado, possivelmente, de um desprazer
concomitante)? Essa é uma nova maneira de expressar a solução
clínica. Agora mesmo, tenho alguns belos casos mistos das duas
neuroses e espero obter deles revelações mais íntimas sobre o
mecanismo essencial envolvido. Sempre respeito sua opinião, mesmo
no que concerne a meu trabalho psicológico.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’’ǤͳͷͷǦ
ͳͷ͸ȌǤ

É manifesto o respeito de Freud pela opinião de Fliess, porém fica claro que, em
termos do trabalho psicológico, a competência de Fliess não está à altura.

Carta de 2/4/96:

56
Quando jovem, eu não conhecia nenhum outro anseio senão o de
conhecimentos filosóficos, e agora estou prestes a realizá-lo, à
medida que vou passando da medicina para a psicologia. Tornei-me
terapeuta contra a minha vontade; estou convencido de que dadas
certas condições relativas à pessoa e ao caso, posso definitivamente
curar a histeria e a neurose obsessiva.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’ǤͳͺͳȌǤ

Além de declarar seu real anseio de conhecimento, o filosófico, Freud expõe o


que pôde fazer com seu investimento.

Carta de 16/4/96:

Só tenho a registrar umas poucas ideias nascidas do meu trabalho


cotidiano sobre o reino do intermediário, como um reforço genérico
da impressão de que tudo é como suponho que seja, e, portanto, de
que tudo será esclarecido. Entre elas, há uma explicação
complementar surpreendente das hemorragias de Eckstein – que lhe
dará grande prazer.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’ǤͳͺʹȌǤ

Carta de 26/4/96:

Conseguirei provar-lhe que você estava com a razão, que os episódios


de sangramento dela eram histéricos, que eram provocados por
saudade e que ocorreram, provavelmente, nas ocasiões sexualmente
importantes?ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’ǤͳͺͶȌǤ

Freud insiste no caso Eckstein no sentido de agradar Fliess.

Carta de 30/5/96:

Você não precisa expressar nenhuma opinião sobre as questões que


relatei no começo; já admiti que há nelas mais especulação do que de
hábito; mas a coisa simplesmente se recusava a me deixar em paz.
ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’ǤͳͻͳȌǤ

Freud dispensa Fliess de comentários, porém não abre mão de expor seus
avanços à“plateia”.

Carta de 22/12/96:

57
Em nosso próximo congresso, espero que haja coisas importantes
para conversarmos. Acho que na Páscoa, no máximo, talvez em
Praga. Quem sabe, nessa época, eu já tenha levado um caso a termo
(...) O trabalho para Nothnagel deverá estar pronto dentro de duas
semanas. Também posso dar-lhe algumas notícias sobre G. de B. Seu
diagnóstico estava absolutamente correto. ȋ Ǥ ͳͻͳʹǡ ’’Ǥ ʹʹͲǦ
ʹʹͳȌǤ

Freud relata seus progressos e segue tendo em Fliess um mestre em matéria de


diagnóstico.

Carta de 29/12/97:

Talvez você saiba que, aqui em Viena, é possível referir-se às


mulheres como lindas “joaninhas’’. A babá e primeiro amor dele era
francesa; na verdade, ele aprendeu a falar francês antes de aprender o
alemão. Você deve estar lembrado de nossas discussões sobre o uso
das palavras “enfiar’’, “privada” e semelhantes. ȋ Ǥ ͳͻͳʹǡ ’Ǥ
ʹͻͳȌǤ

Freud apresenta o caso do Sr. E. e articula os achados clínicos com a teoria.


Mais uma vez, expõe tudo a Fliess, com o intuito de controlar tais articulações.

Carta de 27/9/98:

Ora, uma criança que molha habitualmente a cama até os sete anos
(sem ser epilética ou coisa parecida) deve ter experimentado alguma
excitação sexual em época mais precoce da infância. Espontânea ou
por sedução? Aí está, e isso deve conter também a determinação mais
específica no tocante às pernas.ȋ Ǥͳͻͳʹǡ’Ǥ͵͵ͲȌǤ

A carta expõe mais um caso e faz nova indagação a Fliess.

Carta de 26/11/99:

A Srta. G. é um osso duro de roer, mas o trabalho, é claro, não deixa


de ser promissor, uma vez que descobri toda sorte de coisas novas.
Estou mantendo uma espécie de diário a respeito dela, o qual, mais
tarde, poderá proporcionar-lhe um vislumbre da técnica e da natureza
do caso. (FREUD. 1912, p. 389).

58
Chega a ser engraçada a forma como Freud desabafa. Pode-se pensar que escutar
tais desabafos também faz parte da função de controle/supervisão.

Carta de 16/4/00:

E. concluiu finalmente sua carreira como paciente, comparecendo a


um jantar em minha casa. O enigma dele está quase completamente
solucionado; ele está em excelente forma, com a personalidade
inteiramente mudada. No momento, resta um remanescente dos
sintomas. Estou começando a entender que a aparente eternidade do
tratamento é algo que ocorre regularmente e que está ligado à
transferência. Espero que esse remanescente não desmereça o sucesso
prático. Eu poderia ter continuado o tratamento, mas tive a sensação
de que tal prolongamento seria um compromisso entre a doença e a
saúde, que os próprios pacientes desejam, e o médico, portanto, não
deve concordar com ele. A conclusão assintótica do tratamento não
faz, basicamente, nenhuma diferença para mim, mas é uma decepção
a mais para as pessoas de fora. De qualquer modo, ficarei de olho no
homem. Uma vez que ele teve que suportar todos os meus erros
técnicos e teóricos, penso, de fato, que um caso futuro poderia ser
resolvido em metade do tempo. Oxalá o Senhor agora envie esse
próximo caso. L.G. está indo muito bem. Não há mais nenhuma
possibilidade de fracasso. (FREUD. 1912, p. 410).

Freud reavalia a condução do caso de maneira honesta e presta contas a Fliess.


Trata-se, novamente, de uma prática de controle/supervisão.

Carta de 25/4/00:

O “tempo terrível” foi tomado de empréstimo de uma paciente que,


no momento, está despertando meu mais vivo interesse, porque,
finalmente, na sexta temporada, estou na trilha do segredo dela. Os
erros de técnica me impediram de descobri-lo mais cedo (...) A
paciente de quem tratei durante duas semanas e que depois descartei
como um caso de paranoia enforcou-se, nesse meio tempo, num
quarto de hotel (Sra. Margit Kremzir) (...) Não tive êxito em
conseguir nenhum paciente novo. O último a deixar de aparecer foi
um menino de doze anos, neto do pintor Alt. Embora tivéssemos
combinado que ele viria semanas atrás, supõe-se que tenha adoecido
no dia em que deveria começar. (FREUD. 1912, pp. 411-412).

Casos com este são apresentados como reflexão sobre a prática clínica e as
considerações teóricas.

59
Carta de 12/6/00:

Discutiremos a menina em agosto, a menos que ela seja


prematuramente arrancada de mim. (FREUD. 1912, p. 419).

Carta de 18/6/00:

A garotinha de treze anos é muito interessante e nos dará muito que


discutir.. (FREUD. 1912, p. 420).

Carta de 19/9/01:

Em meu íntimo, sei que o que você disse sobre minha atitude perante
seu grande trabalho é injusto. Sei quantas vezes pensei nele com
orgulho e vibração e como fiquei perturbado quando não consegui
acompanhar uma ou outra conclusão sua. Você sabe que me falta todo
e qualquer talento matemático e que não tenho memória para números
e medidas (...) Para quem continuo a escrever? Se, no instante em que
uma interpretação minha o deixa pouco à vontade, você fica pronto a
concordar em que o “leitor de pensamentos” não percebe nada no
outro, meramente projetando seus próprios pensamentos, você
também já não é mais minha plateia e deve encarar todo o meu
método de trabalho como tão imprestável quanto os outros o
consideram. (FREUD. 1912, p. 451).

Há troca clara de acusações e Freud esclarece que os caminhos percorridos


foram diferentes. Por mais que tenha tentado incluir as ideias de Fliess, via
transferência, elas estavam distantes do que ele desenvolvia. Do mesmo modo,
considera que Fliess não o acompanhou tanto quanto parecia fazê-lo. A decepção de
Freud com sua “plateia” é patente.

Carta de 26/7/04:

Até agora, eu não tinha conhecimento do que soube em sua carta –


que você está usando da bissexualidade persistente em seus
tratamentos. Conversamos sobre isso pela primeira vez em

60
Nuremberg, quando eu ainda estava deitado e você me contou a
história clínica da mulher que sonhava com cobras gigantescas. Na
ocasião, você ficou muito impressionado com a ideia de que as
correntes subjacentes da mulher pudessem provir da parte masculina
de sua psique. Por essa razão, fiquei ainda mais intrigado com sua
resistência, em Breslau, à pressuposição da bissexualidade na psique.
(FREUD. 1912, p. 466).

Finalizando a correspondência e, praticamente, a amizade entre esses dois


homens, há ainda um resto de transferência que não pôde ser aproveitada no sentido
psicanalítico do termo.

Freud preocupa-se o tempo todo em não se desviar de suas descobertas,


presentes tanto em sua “autoanálise” quanto no que se desvela em cada caso atendido.

No campo da supervisão, as passagens das cartas são mais sutis e merecem


atenção especial. É preciso extrair das sutilezas que Freud apresenta como interrogação
aquilo que é da ordem da supervisão e que se diferencia dos elementos da construção
teórica e de sua análise pessoal. Trata-se de uma difícil tarefa, visto estar a supervisão
situada em uma zona intermediária entre a análise e a construção/formação teórica.

A supervisão é um princípio da formação. Trata-se de uma prática que não foi


estabelecida burocraticamente desde o início, mas demonstra-se como uma estrutura
lógica colocada sem que tenha havido cálculo.

Referências

FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência (1912). IN: Obras completas, vol. XII,
Imago Editora Ltda., 1969.

FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico (1914). Obras completas.


Vol. XIV, Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1969.

FREUD, Sigmund. Uma nota sobre a pré-história da técnica de análise (1920). IN:
Obras completas. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1969.

FREUD, Sigmund. Dois verbetes de enciclopédia (A) Psicanálise (1923). IN: Obras
completas. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1969.

61
MASSON, Jeffrey Moussaieff. A correspondência completa de Sigmund Freud para
Wilhelm Fliess, Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1986.

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