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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Rodrigo Charafeddine Bulamah

RUÍNAS CIRCULARES:
vida e história no norte do Haiti

Campinas
2018
Rodrigo Charafeddine Bulamah

RUÍNAS CIRCULARES:
vida e história no norte do Haiti

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências


Humanas da Universidade Estadual de Campinas como
parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título
de Doutor em Antropologia Social, no âmbito do
Acordo de Cotutela firmado entre a Unicamp e a École
des Hautes Études en Sciences Sociales (França).

Orientadores: Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz (Unicamp) e Prof. Dr. Enric Porqueres i Gené
(EHESS)

Este trabalho corresponde à versão final da tese


defendida pelo aluno Rodrigo Charafeddine
Bulamah, e orientada pelo Prof. Dr. Omar Ribeiro
Thomaz e pelo Prof. Dr. Enric Porqueres i Gené.

Campinas
2018
Agências de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2013/24916-4; CNPq,
142308/2013-7
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4734-7672

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Paulo Roberto de Oliveira - CRB 8/6272

Bulamah, Rodrigo Charafeddine, 1986-


B87r Ruínas circulares : vida e história no norte do Haiti / Rodrigo Charafeddine
Bulamah. – Campinas, SP : [s.n.], 2018.

Orientadores: Omar Ribeiro Thomaz e Enric Porqueres i Gené.


Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.
Em cotutela com: École des Hautes Études en Sciences Sociales.

1. Antropologia e história. 2. Camponeses - Caribe - História. 3. Revoluções


- Haiti. I. Thomaz, Omar Ribeiro, 1965-. II. Porqueres i Gené, Enric. III.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. IV. École des Hautes Études en Sciences Sociales. V. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Les ruines circulaires : vie et histoire au nord d’Haïti
Palavras-chave em inglês
Anthropology and history
Peasants - Caribbean - History
Revolutions - Haiti
Área de concentração: Antropologia Social
Titulação: Doutor em Antropologia Social
Banca examinadora:
Omar Ribeiro Thomaz [Orientador]
Enric Porqueres i Gené [Orientador]
Nashieli Cecilia Rangel Loera
Federico Guillermo Neiburg
Louis Marcelin
João Felipe Ferreira Gonçalves
Data da defesa: 21-06-2018
Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 21 de junho de 2018,
considerou o candidato Rodrigo Charafeddine Bulamah aprovado.

Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz


Prof. Dr. Enric Porqueres i Gené
Profa. Dra. Nashieli Cecilia Rangel Loera
Prof. Dr. Federico Guillermo Neiburg
Prof. Dr. Louis Marcelin
Prof. Dr. João Felipe Ferreira Gonçalves

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de


Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Esta tese é dedicada a Marzou (in memoriam), Innocente, Laila e Ludmila
Agradecimentos

Ao longo destes anos de pesquisa, acumulei dívidas que já se tornaram históricas. Contudo,
como nós, antropólogos e antropólogas, sabemos bem, essa é a matéria mesma da vida social – ou,
como aprendi vivendo em Milot, para retribuir basta que as coisas estejam em movimento. Por
isso, agradeço, primeiramente, às pessoas que me receberam em suas casas, que dividiram comigo
suas histórias e que me apresentaram esse lugar fascinante e cheio de vida que é o Haiti,
especialmente a Innocente, Maurice, Jorab, Marzou, Arzou, Rose, Didine, Guy, Chris, Oetly, Bal,
Henri Claude, madame Lima, Lolit, Dada, Sephonise e Merci-Lourdes. Mèsi, moun a m!
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Processo n.
142308/2013-7) pelo apoio durante o primeiro ano do doutorado, à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior pelo período de pesquisa na França e à FAPESP
(Processo n. 2013/24916-4) por ter garantido a continuidade da pesquisa durante essa jornada
como doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp e da École
des Hautes Études en Sciences Sociales. Aos funcionários e funcionárias dessas duas instituições,
que me ajudaram a vencer burocracias dos dois lados do Atlântico, deixo registrada minha imensa
gratidão pelo apoio cotidiano, particularmente a Márcia Goulart, a Sônia Cardoso, a Maria José
Rizola, a Claudine Raymond, a Vanessa Szenwald-Liwicki, a Alexandre D’Ávila, a Fábio Guzzo,
a Ricardo Cioldin, ao seu Luis, a Suely, ao Bene pelos ótimos papos e ao Santos pela
camaradagem. Aos professores e professoras que tive a sorte de encontrar ao longo da minha
formação, especialmente Nádia Farage, Suely Kofes, Vanessa Lea, Emília Pietrafesa de Godoi,
Mauro Almeida, Bibia Gregori, Heloísa Pontes, José Maurício Arruti, Ronaldo de Almeida, John
Monteiro (in memoriam), Laurent Dubois, Andrea Ballestero, Benoît de l’Estoile e Carlo Severi.
A Omar Ribeiro Thomaz, pela generosidade e por esses longos anos de orientação e parceria. A
Enric Porqueres i Gené que me recebeu com grande animação durante meu período na França,
pelas inúmeras conversas e ensinamentos duradouros.
Aos professores José Maurício Arruti e João Felipe Gonçalves pela leitura atenta e pelas
sugestões na banca de qualificação. À professora Nashieli Loera e aos professores João Felipe
Gonçalves, Federico Neiburg e Louis Marcelin por terem participado da banca de defesa de
doutorado.
Entre os trânsitos acadêmicos que fizeram parte do meu doutorado encontrei e reencontrei
amigos e amigas especiais e sem os quais esta tese não teria sido possível. Sou grato especialmente
a Maryse Jean-Jacques, Jacques Bartholi, Gabriela Read, Winter Schneider, Diego Bertazzoli, Igor
Scaramuzzi, Hugo Ciavatta, Josué Tomasini, Iracema Dulley, Luisa Pessoa, Ilana Goldstein, Stella
Parteniani, Carolina Perini, Aline Hasegawa, Lucas Jardim, Benjamin Parton, Rodrigo Lobo,
Heloísa Pisani, Fábio Accardo, Thiago Aoki, Lía Giraldo, Etienne Saint-Sernin, Ana Fiod, Filipe
Calvão, Alexandros Stravos-Iliopoulos, Bryan Brown, Miguel Goldstein, Joseph Sony Jean,
Peterson Georges, Barbara Weiss, Ana de Francesco, Maíra Vale, Inácio Andrade, Fábio Luiz
Pimentel, Lucas Mestrinelli, Marc Joseph, Manoune Ruffy, Katie Simon, Marcelo Mello, Andrew
Tarter, Alex e Elía Martinéz, Caio Barini, Solaiman Shokur, Scott Freeman, Keith McNeal, Kiran
Jayaram, April Mayes, Elizabeth Manley, Martin Tsang, Henry Chip Carey, Sandeep Ray, Cyma
Farah, Hicham Safieddine, Bhavani Arabandi, Nate George, Susann Kassem, Suraya Khan, Miller
Wright, Horace, Will, Maurizio Esposito, Arthur Saraiva, Fátima, Horácio e Marina Galvanese,
Victor Giménez, Magnus Sugurðsson, Sólveig Sigurðardóttir, Baird Campbell, Patrícia Alvarez,
Louise e Martin, Yifan Wang, Mel Ford, Katie Ulrich, Jessica Lauren, Alejandro Molina, Diego
Garcia, Maria Dominguez, Marie-Laure Nauleau, Eva-Maria Röβler, Berhman, Marie-Claire e
Clément Garçon, Matilde e Fábio Macedo.
Não posso deixar de enfatizar o quanto sou grato a Jean-Philippe Belleau pela confiança,
parceria e amizade e a Robin Derby pelo estímulo e pelos encontros os mais inspiradores. A
Andrea Ballestero, que me recebeu na Rice University, por compartilhar de uma paixão
indescritível pela antropologia e pela acolhida generosa durante o período que passei ali, a Alida
Metcalf pelas tantas conversas sobre o Brasil, a James Sidbury pelos ensinamentos sobre o Caribe
e aos funcionários da Fondren Library por me auxiliarem a navegar aquele imenso acervo. Meu
tempo na Duke University, ainda durante o mestrado, foi decisivo para minha formação, por isso,
agradeço a Laurent Dubois e a Deborah Jenson pelo apoio e pelas valiosas lições que ainda carrego.
Ali, também conheci Laura Wagner, Vincent Joos e Joshua Nadel que se tornaram amigos
especiais e parceiros intelectuais incontornáveis. No Haiti, Joanna da Hora, Renold Laurent,
Winter Schneider, Júlia Goyatá, Flávia Dalmaso, Felipe Evangelista, Susie Zeiger, Marvin
Chochotte, Paul Clammer, J. Cameron Monroe e Xuan Lai Dao foram companheiros de
descobertas e cúmplices de momentos que carrego com carinho na memória. Em bom crioulo do
Cabo: mèsi, zanmanm yo!
Aos bibliotecários e funcionários dos arquivos da Bibliothèque des Frères d’Instruction
Chrètienne (BFIC) e da Bibliothèque Nationale d’Haïti (BNH), em Porto-Príncipe, da
Bibliothèque du Collège du Sacre Coeur, em Cabo Haitiano, do Tribunal de Paix, em Milot, da
UNESCO e do Muséum national d’Histoire naturelle, em Paris, expresso minha calorosa gratidão
e deixo registrado o testemunho da minha admiração pelo notável trabalho que fazem organizando
e catalogando documentos os mais diversos e em situações as mais adversas. Também a Laura
Wagner, mais uma vez, pela amizade e pelo impecável trabalho organizando, catalogando e
tornando públicos os arquivos da Radio Haïti. A Ivan Siqueira, meu camarada, pela ajuda com o
acesso a periódicos virtuais e livros de difícil circulação. Aos fundadores e mantenedores das
plataformas Library Genesis (http://gen.lib.rus.ec/) e Sci-Hub (http://www.sci-hub.tw/) pela
quebra de monopólios editoriais, democratizando assim o acesso a produções acadêmicas mundo
afora.
À Laila, minha mãe, pelo apoio e amor e por me ensinar o valor da palavra. Aos meus
irmãos, Lucas e Gustavo, companheiros queridos de vida e de tantas aventuras, agradeço a
lealdade. Ao meu pai, Jorge, pelo carinho e por ter me ensinado a como observar bichos e plantas.
Aos meus parentes que fizeram parte dessa jornada, aos que continuam próximos e aos que
seguiram pra longe e deixaram saudades, agradeço-lhes as conversas, as andanças, as lembranças
e tudo o mais.
Lucas Jardim, Ludmila Maia, Iracema Dulley, Luisa Pessoa, Hugo Ciavatta, Marvin
Chochotte, Etienne Saint-Sernin, Mélanie Montinard, Bethânia Pereira, Igor Scaramuzzi e Josué
Tomasini leram capítulos da tese e me ajudaram a reformular argumentos, corrigir falhas e pensar
comparativamente outros contextos e outras questões. É deles o meu maior reconhecimento. Erros
e insistências continuam, é claro, inteiramente meus.
Por fim, agradeço à Ludmila esperando que esta dedicatória represente apenas uma fração
da minha gratidão por nossa história cheia de beleza e encanto e da qual o Haiti é paisagem
principal, desde o começo.
Resumo

Esta tese explora as articulações entre e vida e história no norte do Haiti. A partir de uma etnografia
centrada no vilarejo de Milot, onde diferentes vestígios de tempos passados se cruzam por meio
de experiências cotidianas e rituais, busco tratar de temas relacionados ao parentesco, à magia e à
política e suas articulações com o tempo, o espaço e as formas contemporâneas de subjetivação.
Assim, combinando etnografia e trabalho historiográfico, argumento que a história é produzida
ativamente através do trabalho de diferentes agências, como espíritos e ancestrais, e através de
engajamentos diversos com materialidades, conhecimentos e afetos conformando diversas
paisagens históricas neste contexto caribenho.

Palavras chave: Antropologia e história, Campesinato – Caribe – História, Revoluções – Haiti


Abstract

This dissertation explores the relations between life and history in northern Haiti. Drawing from
an ethnography in the village of Milot, where many traces of past times are connected through
daily and ritual experiences, I deal with themes such as kinship, magic, and politics as well as their
articulation with time, space and contemporary forms of subjectivation. Combining ethnography
with historiographic work, I argue that history is produced through the work of agencies such as
spirits and ancestors as well as with a series of engagements with materialities, knowledges, and
affects that conform different historical landscapes in this Caribbean context.

Keywords: Anthropology and history, Peasants – Caribbean – History, Revolutions – Haiti


Résumé

Cette thèse est dédiée au thème des articulations entre vie et histoire au nord d’Haïti. A partir d’une
ethnographie dans le village de Milot, où des différentes traces de temps passés se croisent dans
des expériences rituelles et quotidiennes, j’aborde les thèmes de la parenté, de la magie et de la
politique ainsi que ses articulations avec le temps, l’espace et les formes contemporaines de
subjectivation. Ainsi, j’articule l’ethnographie au travail historiographique et j’argumente que
l’histoire est produite activement par le travail des esprits et des ancêtres ainsi que par des
engagements avec matérialités, connaissances et affects qui donnent forme à des paysages
historiques dans ce contexte caribéen.

Mots-clés: Anthropologie et histoire, Paysans – Caraïbes – Histoire, Revolutions - Haïti


Lista de Imagens

Imagem 1: Sem título, Jean-Baptiste Jean, 198-. Pintura representando diferentes episódios da vida e do
reinado de Henry Christophe. Foto do autor, Milot (Citadelle), 2015. ....................................................... 19
Imagem 2: Maurice Etienne e o autor. Nova Iorque, novembro de 2012. .................................................. 22
Imagem 3: Milot. Ilustração elaborada a partir de imagem do Open Street Map. ...................................... 33
Imagem 4: Mapa da região de Milot. Elaborado a partir do QuantumGIS. ................................................ 33
Imagem 5: Jorab e sua filha. Foto do autor, Milot, maio de 2018. ............................................................. 39
Imagem 6: Milot vista a partir do Palácio Sans Souci. À frente, a Igreja real e o estacionamento do Parque
Histórico Nacional. Foto do autor, Milot, maio de 2018. ........................................................................... 43
Imagem 7: Palácio Sans Souci desde a casa de Lucius Valsan. Foto do autor, Milot, março de 2015....... 52
Imagem 8: Lucius Valsan na entrada de sua casa. Foto do autor, Milot, maio de 2018. ............................ 54
Imagem 9: Retrato mais célebre de Christophe, por Richard Evans, s.d., óleo sobre tela. ......................... 56
Imagem 10: Crianças atravessando Sans Souci após o término da escola. Foto do autor, Milot, outubro
2015. ........................................................................................................................................................... 63
Imagem 11: Montagem com as placas institucionais em diferentes locais do Parque Nacional Histórico. O
brasão do Instituto de Salvaguarda do Patrimônio Nacional (ISPAN), abaixo à direita, é o próprio brasão
do rei Christophe. Foto do autor, Milot, maio de 2018. .............................................................................. 66
Imagem 12: Sans Souci, Numa Desroches, ca. 1820. Bibliothèque des Frères d’Instruction Chrètienne
(BFIC), Porto-Príncipe. ............................................................................................................................... 78
Imagem 13: Rei Christophe inspeciona a construção da Citadelle, Jacques-Richard Chéry, ca. 1963, óleo
sobre compensado. Coleção de Astrid e Halvor Jaeger. Fonte: Cosentino (1995, p. 243). ........................ 83
Imagem 14: Citadelle alguns metros depois do “segundo estacionamento”. Foto do autor, Milot, maio de
2018. ........................................................................................................................................................... 96
Imagem 15: Saint Jacques, litofotografia sobre papel, Coleção de Michel Leiris, ca. 1948, Museu do Quai
Branly.......................................................................................................................................................... 98
Imagem 16: Multidão no alto da Citadelle I. Ao centro, a pilha de argamassa que serve de tumulo ao Rei
Christophe. Foto do autor, Milot, abril de 2012........................................................................................ 101
Imagem 17: Multidão no alto da Citadelle II. Foto do autor, abril de 2012. ............................................ 102
Imagem 18: Sem título, Charles Saül, ca. 1970. Óleo sobre tela. Coleção de Laura Wagner, gentilmente
cedida ao autor. ......................................................................................................................................... 104
Imagem 19: Madame André segurando uma fruta-pão. Foto do autor, Milot (Samson), 2012. ............... 106
Imagem 20: Ilustração da chegada dos espanhóis, detalhe da presença de porcos no canto inferior
esquerdo. Fonte: História general de las cosas de la Nueva España (ou Códice Florentino) de Bernardino
de Sahagún, 1577, vol. 3, carta 406r, reproduzido do exemplar virtual da Biblioteca Medicea Laurenziana,
Florença. ................................................................................................................................................... 123
Imagem 21: Porcos (Sus scrofa domestica) no Novo Mundo. Fonte: Donkin (1985, p. 40). ................... 125
Imagem 22: “Mapa da ilha de São Domingos confeccionada para a obra de M. L. E. Moreau de St Méry”,
por L. Sonis e Vallance, 1796. Cabo Francês destacado em amarelo e Cotuy, em vermelho. Fonte:
gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale de France. .................................................................................... 130
Imagem 23: “Mapa itinerário das duas rotas principais entre Cabo Francês à vila espanhola de Santo
Domingo”, confeccionado por Daniel Lescalier, 1764. Fonte: gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale de
France........................................................................................................................................................ 133
Imagem 24: “Engenho de açúcar”, ilustração adicionada à edição francesa de Oexmelín (1930, p. 57).
Destaque para a banana, abaixo no canto esquerdo, alimento importante para a sociedade colonial, aqui
representada próxima à senzala (cases de nègres). ................................................................................... 134
Imagem 25: “Planta de uma plantation de índigo”. Ilustração do livro de M. de Beauvais-Raseau (1770, p.
vi). Fonte: gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale de France. .................................................................. 137
Imagem 26: Marcha em protesto contra a decisão do CDC. Foto de Richard Elkins (AP), fonte: Jared
McCallister, “A court ruling to deny citizenship to Dominican Republic-born Haitians…”, New York
Daily News, 13 de outubro de 2013. ......................................................................................................... 164
Imagem 27: “Celebração de 200 anos do Bois-Caïman, 1791-1991”, Jean-Baptiste Jean, 1993. Coleção do
autor. ......................................................................................................................................................... 169
Imagem 28: “Porco importado do estado de Iowa (EUA) bebendo água da torneira". Fonte: Diederich
(1985, p. 17). ............................................................................................................................................. 173
Imagem 29: (Esq.) Sem título. Fonte: Mark (1981, p. 4). (Dir.) “Em setembro de 1980, todos os porcos
domésticos da República Dominicana foram massacrados”. Fonte: Mark, Chain e Ellis (1981, p. 15). .. 181
Imagem 30: Anouse Jasmin em frente à sua casa. Foto do autor, Milot (Samson), maio de 2016. .......... 185
Imagem 32: Revolução até o fim. Foto do autor, Cabo Haitiano, 2015.................................................... 211
Imagem 31: O 1804 de Moïse. Foto do autor, Milot, 2015. ..................................................................... 211
Imagem 33: Santinho de Jean Charles Moïse. .......................................................................................... 212
Imagem 34: Acima, lê-se, “Nós apenas começamos o trabalho”. O verbo kare, lit. “endireitar” ou
“aprumar”, é utilizado comumente em brigas de galos quando se “aprumam” os galos para o início do
combate ou ainda em brigas em geral, quando duas pessoas se “endireitam” e “aprumam seus corpos”
(kare kò). Abaixo, “‘Hoje, eu lhes apresento um pequeno camponês que escolheu trabalhar por sua
comunidade e pelo seu país’, Michel Joseph Martelly”. Fonte:
https://mangodhaiti.blogspot.com/2015/09/nou-fenk-kare-travay-phtkhaiti.html .................................... 219
Imagem 35: Propagando eleitoral, ca. 1987. Arquivo do Tribunal de Paix de Quartier Morin. Agradeço a
Marvin Chochotte pelo envio deste e de outros documentos do período.................................................. 221
Imagem 36: Ilustração de alguém que vendeu a crédito (à esquerda) e um outro que vendeu à vista (à
direita). Mesmo referindo-se ao ano de 2012, esse calendário continuava pendurado na parede de uma
vendinha no centro de Milot. Ilustrador não indicado. Foto do autor, Milot, novembro de 2015. ........... 226
Imagem 37: Antigo arquivo notarial de Milot. Foto do autor, maio de 2018. .......................................... 234
Imagem 38: Capa da edição dos dias 7 a 10 de fevereiro, Le Nouvelliste, coleção de periódicos da
Biblioteca Nacional do Haiti. Foto do autor. ............................................................................................ 240
Imagem 39: “Voodoo temple”, Bryant Slides Collection, University of Central Florida, fotógrafo e
localidade desconhecidos, ca. 1970. Disponível em: www.dloc.com (acesso em 05/04/2018). Destaque às
bandeiras do Haiti com o retrato de de Duvalier....................................................................................... 270
Imagem 40: Estátua do Marron Inconnu, de Albert Mangonès. Foto de Cris Bierrenbach, Porto-Príncipe,
janeiro de 2010.......................................................................................................................................... 279
Imagem 41: Sem título, Hector Hyppolite. Coleção do Museu de Arte Haitiano, Porto Príncipe. Foto de
Cris Bierrenbach, janeiro de 2010............................................................................................................. 286
Sumário

Agradecimentos .............................................................................................................................. 6
Resumo ........................................................................................................................................... 9
Abstract ......................................................................................................................................... 10
Résumé.......................................................................................................................................... 11
Lista de Imagens ........................................................................................................................... 12
Sumário ......................................................................................................................................... 14
Convenções ortográficas e guia de pronúncia .............................................................................. 16
Um historiador chofer de táxi (ou à guisa de introdução) ............................................................ 19
O Caribe e os povos sem história .............................................................................................. 25
O lugar da história ..................................................................................................................... 33
O trabalho de campo, o arquivo, o texto e as imagens .............................................................. 43
Os sistemas desta tese ............................................................................................................... 50
Capítulo 1: Rituais da história....................................................................................................... 52
Um conto de duas ruínas ........................................................................................................... 59
Arqueologia como pirataria....................................................................................................... 66
Sentar, conversar, flanar ............................................................................................................ 70
Do cotidiano ao movimento ...................................................................................................... 76
O sistema dos ancestrais ............................................................................................................ 84
As ruínas circulares ................................................................................................................... 99
Capítulo 2: Pode um porco falar? ............................................................................................... 104
De porcos e humanos .............................................................................................................. 109
Sobre origens, caças e criações ............................................................................................... 122
O sistema contra-plantation ..................................................................................................... 139
Capítulo 3: A morte do país ........................................................................................................ 144
Porcos domésticos, portadores inaparentes e vírus mortais .................................................... 145
Teorias (alter)nativas do contágio ........................................................................................... 156
Sonhavam os especialistas com porcos assassinos? ................................................................ 173
Sujeitando porcos, sujeitando pessoas: evento e desordem .................................................... 180
Capítulo 4: Diabo, política e desenvolvimento ........................................................................... 185
Política e comunidade, apoio popular e voto .......................................................................... 190
O ataque dos homens de chifre e a morte de um lougawou .................................................... 193
BOX: A presença estrangeira ou “os ladrões de cabrito” ....................................................... 200
De ancestrais e revoluções ou o 1804 de Jean Charles Moïse ................................................ 206
Os encantamentos da comida e as promessas do desenvolvimento ........................................ 218
Futuros passados ..................................................................................................................... 228
Capítulo 5: Ecos da Revolução ................................................................................................... 232
Revolta e resignação................................................................................................................ 236
Em nome da pátria................................................................................................................... 253
Um ser imaterial ...................................................................................................................... 258
Reivindicando o desconhecido ................................................................................................ 273
Desenraizando a história ......................................................................................................... 280
Recriando o presente ............................................................................................................... 291
Epílogo ........................................................................................................................................ 296
Anexo .......................................................................................................................................... 298
a) Reprodução integral e tradução da petição organizada por camponeses da região de Hinche,
Departamento Central, Haiti. .................................................................................................. 298
b) Resumo substancial da tese em francês .............................................................................. 301
Les ruines circulaires : vie et histoire au nord d’Haïti ................................................................ 301
Introduction ................................................................................................................................. 301
Les Caraïbes et les peuples sans histoire ................................................................................. 304
Le lieu de l’histoire ................................................................................................................. 312
Les systèmes de la thèse .......................................................................................................... 315
Chapitre 1 : Rituels de l’histoire ................................................................................................. 317
Chapitre 2 : Un cochon, peut-il parler ? ...................................................................................... 327
Chapitre 3 : La mort du pays....................................................................................................... 331
Chapitre 4 : Le diable, la politique et le développement ............................................................ 333
Chapitre 5 : Les échos de la Révolution ..................................................................................... 340
Bibliografia ................................................................................................................................. 344
16

Convenções ortográficas e guia de pronúncia

A língua que mais utilizei durante meu trabalho de campo foi o kreyòl ou crioulo haitiano.
Esta língua tem sua gênese atrelada à colonização francesa do Caribe e surgiu no espaço da
plantation açucareira outrora centrada no trabalho de africanos e africanas escravizados (ver, entre
outros, Mintz, 2010). Entre a maioria dos linguistas, aceita-se a explicação de que a base gramatical
do crioulo haitiano é caudatária de línguas do Oeste africano enquanto a base lexical vem
principalmente do francês. Pode-se consultar o trabalho de Michel DeGraff (2003, entre outros)
sobre a construção de uma excepcionalidade em torno das línguas crioulas e a análise de
Schieffelin e Doucet (1994) sobre as políticas linguísticas em disputa ao longo da história do país.
Nas transcrições de falas e textos em crioulo haitiano segui, na maior parte do tempo, a convenção
ortográfica mais recente, elaborada pelo Instituto Pedagógico Nacional (IPN) e tornada oficial em
1979, tomando por base sobretudo o dicionário de Vilsaint e Heurtelou (2005). Nas citações de
trechos de outros autores, optei por manter a grafia original, fazendo alguma ressalva quando
necessário. De modo geral, as consoantes possuem correspondência fonética similar aos grafemas
de língua portuguesa, o que não deve causar grandes problemas a uma leitora e a um leitor
lusófonos. O caso das vogais e semivogais merece um pouco mais de atenção, por isso, elaborei o
quadro abaixo e adicionei a notação do Alfabeto Fonético Internacional seguida da pronúncia
aproximativa.

Símbolo AFI Pronúncia

Vogais labiais
e /e/ “e” fechado, como em mês
è /ɛ/ “e” aberto, como em pé
ò /ɔ/ “o” aberto, como em só
ou /u/ “u”, como em julho (similar ao francês “ou”, como em jour)
a, i, o /a/, /i/,/o/ pronunciam-se como em português

Semivogais
y /j/ como em boia
17

w /w/ como em quase

Vogais nasais
an /ã/, en /ɛ/̃ , on /õ/ e oun /ũ/ são vogais nasais quando não são sucedidas por outras vogais.
Exemplo: jany, termo utilizado para definir espíritos da família, seria grafado em português como
“jãi”.

Uma última palavra sobre as traduções e os estilos de grafia. Salvo quando indicado, os trechos
traduzidos são de minha autoria. Adianto que os termos em itálico representam ênfases minhas a
alguma citação, nomes de locais em língua estrangeira ou expressões e categorias nativas,
sobretudo quando aparecem pela primeira vez. Entre aspas aparecem trechos mais longos de falas
de interlocutores, traduções de expressões em crioulo haitiano e citações de outros autores. Quanto
às citações bibliográficas mais curtas em inglês, em francês ou em espanhol, optei por traduzí-las
quando as utilizo no corpo do texto e, quando mais extensas, deixei-as no original, separando a
sentença em um parágrafo. Nas traduções de nomes pessoais, localidades e logradouros optei pela
grafia internacionalmente mais usual para o Haiti, de base francesa. Assim, no lugar de Milo,
Antwann, e Sansousi empreguei Milot, Antoine e Sans Souci. Em alguns casos, decidi utilizar a
tradução portuguesa de alguns termos a fim de dar mais fluidez ao texto. Desse modo, Citadelle
(ou Sitadèl, em crioulo haitiano) tornou-se Cidadela e vodou, grafei como vodu.
18

Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não
conta o seu passado, ela o contém, como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das
janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada
segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.
Italo Calvino, “As cidades invisíveis”

Assim, finalidade e acaso, natureza e espírito, passado e presente afrouxam neste ponto a tensão entre
suas oposições, ou antes, guardando, preservando essa tensão, elas conduzem, não obstante, a uma
unidade da imagem externa, da atuação interna. É como se fosse necessário que primeiro um pedaço da
existência ruísse, para esta se tornar tão sem resistência às correntes e forças que vêm de todas as
direções da realidade. Talvez seja esta a sedução da queda, da decadência: ir além de seu mero lado
negativo, de seu mero estado rebaixado. A cultura rica e multifacetada, a capacidade ilimitada de
impressionar e a compreensão aberta a todos os lados, que são próprios das épocas decadentes,
significam justamente o encontro de todas as aspirações contrárias.
Georg Simmel (2005, p. 142)

The history told by these traditions defies our notions of identity and contradiction.
A person or thing can be two or more things simultaneously. A word can be double, two-sided, and
duplicitous. In this broadening and multiplying of a word’s meaning, repeated in rituals of devotion and
vengeance, we begin to see that what becomes more and more vague also becomes more distinct: it may
mean this, but that too.
Joan Dayan (1995, p. 33)
19

Um historiador chofer de táxi (ou à guisa de introdução)

Todas essas coisas, os cômodos da casa e


também as palmeiras do campo, têm suas próprias histórias...
Tayeb Salih (2004 [1966])

Imagem 1: Sem título, Jean-Baptiste Jean, 198-. Pintura representando diferentes episódios da vida e do reinado de
Henry Christophe. Foto do autor, Milot (Citadelle), 2015.

“O senhor é um historiador?”, indagou a dona de um restaurante haitiano em Nova Iorque,


localizado em algum ponto entre o rio Hudson e o Central Park, não muito longe do Harlem. A
pergunta não se dirigia a mim, mas a Maurice Etienne. Havíamos parado naquele restaurante após
uma longa noite dirigindo por Manhattan. Eu tinha à frente um prato de boulèt, uma espécie de
almôndega feita de fruta-pão e carne, e Maurice comia um cabrito guisado após uma tentativa
frustrada de encontrar frango com molho de castanhas de caju no cardápio, um prato típico do
norte do Haiti e o seu favorito. O lugar era pequeno e carregado de objetos de decoração em
20

madeira que reproduziam figuras de camponeses e pescadores. Nas paredes estavam uma bandeira
haitiana e alguns quadros com cenas do cotidiano no campo e outras reproduzindo batalhas ou
lugares históricos do país. O retrato de uma senhora mirando o horizonte com um cachimbo na
boca e portando um lenço vermelho na cabeça era uma imagem que eu já havia visto em outros
lugares. Tudo ali guardava um ar de familiaridade e me fazia lembrar das tantas casas que eu havia
visitado ou morado no Haiti. O nome do restaurante – “Crik? Crak!” – remetia ao jogo de pergunta
e resposta que dá início às narrações de contos em rodas de conversa comuns em todo o país.
Era novembro de 2012 e eu estava em Nova Iorque pela primeira vez em razão de uma
reunião da Associação de Estudos Haitianos. Havia muito lixo pelas ruas e algumas regiões
estavam sem iluminação. Eram vestígios da passagem do furacão Sandy e das inundações que o
seguiram. A cidade estava se recuperando, mas por todos os lados viam-se destroços amontoados
em esquinas e locais ainda alagados. Eu havia falado com Maurice alguns dias antes e ele estava
bem. “Nap degaje nou, Rodrigo”, ele me disse por telefone. Todos, como ele, “estavam se
virando”. Assim que cheguei à cidade, não demorei para avisá-lo. Combinamos de nos encontrar
em um fast-food próximo da minha hospedagem, no cruzamento da Rua 125 com a Broadway.
Monsieur Maurice, como eu costumava chamá-lo, chegou em seu táxi amarelo, trajando um
chapéu de palha e um terno xadrez bem cortado. A barba volumosa e elegante mesclava fios pretos
e cinzas, o que contribuía para o seu costumeiro ar de intelectual caribenho. Subi em seu táxi e,
durante toda aquela noite, Maurice me falava sobre Nova Iorque, não escondendo o apreço pelos
detalhes. Entre um cliente e outro, parávamos em pontos turísticos e passávamos por bairros cheios
de movimento enquanto Maurice me explicava sobre a compra da ilha de Manhattan, sobre a queda
do World Trade Center e sobre seus clientes. Por algumas horas, o antropólogo que eu era deu
lugar ao “aprendiz de chofer de táxi”, como Maurice passou a me apresentar aos passageiros.
Conheci Maurice no segundo dia em que me mudei para o norte do Haiti, em finais de
2011. Como parte de minha formação de mestrado em antropologia social, meu trabalho de campo
seria feito em Milot, um vilarejo que fora a capital de um reino criado alguns anos após a
Revolução Haitiana. Exatamente por haver sido o centro de um reinado, ali encontram-se
importantes vestígios e ruínas dessa experiência monárquica, como o Palácio Sans Souci,
localizado no fim da rua principal de Milot, e a Citadelle La Ferrière, uma fortaleza no alto da
colina que circunda o vilarejo. Milot hospeda, por isso, o Parque Histórico Nacional, uma área de
27 km2, que atrai turistas, autoridades e especialistas do país e de fora. Desembarquei em Cabo
21

Haitiano, a capital do departamento do Norte, no dia 31 de dezembro daquele ano e cheguei até
Maurice pela indicação de um manual de viagem no qual ele figurava como o melhor guia turístico
de Milot e o dono de um centro cultural que fazia as vezes de restaurante e de hospedagem. Como
vim a saber logo que o conheci, Maurice viajava a Nova Iorque com certa regularidade, passando
ali um total de 3 a 6 meses por ano. Seu objetivo era juntar dinheiro para seguir com a construção
de seu centro cultural, chamado Lakou Lakay. Ele era alguém muito respeitado no vilarejo
particularmente pelo seu notável conhecimento sobre a história ou sobre o que diziam ser “coisas
de tempos distantes” (bagay tan lontan). Com o tempo, eu passei a encarar Maurice como o misto
de autoridade tradicional e um membro da elite haitiana, o patriarca de uma casa que era também
uma instituição comunitária. O Lakou Lakay era onde Maurice organizava festas em datas
comemorativas, onde ele fazia discursos aos moradores do vilarejo e por ali passavam políticos
além de inúmeros estrangeiros que visitavam as ruínas históricas da região. Foi nesse centro
cultural que morei durante boa parte do tempo em que vivi em Milot.
O Lakou Lakay era também, e sobretudo, a casa de Maurice. Ali viviam sua mulher,
madame Innocente, suas duas filhas (que depois se mudaram para os Estados Unidos), além de
sobrinhos e crianças da vizinhança. Nesse ambiente familiar, comecei a adquirir um maior domínio
do crioulo, com a especial ajuda de jovens e crianças que não tinham reservas em rir do meu
sotaque e me corrigir no uso de termos e estruturas gramaticais. Ali fiz também amigos, me tornei
uma “pessoa da casa” (moun kay) e é para onde retorno sempre que regresso a Milot. Reencontrei
Maurice em Nova Iorque seis meses depois de haver terminado meu primeiro período em campo.
Naquela noite, depois de algum tempo aprendendo a como conduzir um táxi e ouvindo Maurice
contar histórias sobre Nova Iorque com o mesmo fascínio com que falava sobre as histórias de
Milot, paramos no restaurante haitiano. A conversa seguia e Maurice me falava sobre as grandes
glórias do passado, mas também sobre os grandes infortúnios do presente. Ele me contava da
Revolução Haitiana, do reinado de Henry Christophe, da ditadura de François Duvalier e da
decisão de ir morar nos Estados Unidos. Maurice via a história haitiana com grande orgulho e tinha
para si um certo sentimento de missão. Contudo, ele falava também que algo havia se perdido, de
uma situação de miséria e ruína e da presença crescente de organizações não-governamentais no
país. Foi então que a dona do restaurante se aproximou e, dirigindo-se a Maurice, perguntou: “O
senhor é um historiador?”. Ao que ele respondeu sem titubear: “Sim! Um historiador chofer de
táxi!”.
22

Imagem 2: Maurice Etienne e o autor. Nova Iorque, novembro de 2012.

***

O cerne da discussão que proponho aqui é a história ou, mais especificamente, o modo
como conhecimentos, práticas e representações tornam o passado algo significativo. Tal como o
parentesco (Lévi-Strauss, 2008 [1967]), a arte (Gell, 1998), a política (Palmeira e Barreira, 2006a)
e a economia (Neiburg, 2010), a história pode ser objeto de investigação antropológica exatamente
pela possibilidade de ser descrita e analisada a partir de um olhar dedicado às articulações diversas
entre pessoas, artefatos, conhecimentos, agências, escalas, lugares e representações. De fato, a
história vem sendo sujeita a debates no campo da antropologia que questionam o seu caráter
objetivo e apontam exatamente para as dimensões construtivas envoltas em disputas, arranjos e
negociações (Herzfeld, 1991; Trouillot, 1995; Abu El-Haj, 2002; Palmié, 2013). Nesse sentido,
este trabalho se propõe a fazer uma antropologia da história, atenta às formulações locais, tanto
cosmológicas quanto práticas, que envolvem diferentes agências, materialidades, tempos e
espaços.
23

Se já se vão mais de trinta anos que Marshall Sahlins (1990) analisou o desembarque de
Capitão Cook no Havaí, ainda o lemos como um exercício estruturalista aplicado à história – algo
que Lévi-Strauss (2008 [1985]) já havia mostrado como possível ao refletir sobre as relações entre
mito e política e que Manuela Carneiro da Cunha (2014 [1973]) havia articulado como lógica do
mito e da ação ao tratar do messianismo entre os Canela. Contudo, o que permite a Sahlins chegar
a formulações sobre a prática como elaboração histórica de esquemas culturais em uma “estrutura
da conjuntura” é exatamente um interesse legítimo tanto de europeus quanto de havaianos em
registrar o contato e seus efeitos (Thomas, 1999; Gow, 2001). O resultado é uma rica quantidade
de materiais com os quais Sahlins construiu suas análises mais brilhantes, de Ilhas de história
(Sahlins, 1990) ao extenso e detalhado Anahulu: the anthropology of history in the Kingdom of
Hawaii, escrito em coautoria com o arqueólogo Patrick Kirch (Sahlins e Kirch, 1992). Entendemos
melhor, a partir disso, que, em seu ambicioso projeto, “[o] grande desafio para uma antropologia
histórica é não apenas saber como os eventos são ordenados pela cultura, mas como, nesse
processo, a cultura é reordenada” (Sahlins, 2008, p. 28).
No entanto, o que fazer quando nos falta essa riqueza documental ou quando, se pensarmos
particularmente no Caribe, o que temos à nossa disposição é, antes, uma estrutura da conjuntura
que deita raízes profundas, chegando à própria gênese dos grupos humanos que acabaram por
fazer, daquelas ilhas e regiões, seus territórios e espaços de vida? Como afirmam Stephan Palmié
e Francisco Scarano (2011), na introdução a uma coletânea sobre o Caribe:

Because of the long history of colonial domination, the Caribbean is rightly considered the
oldest theater of overseas European expansion. The extended duration of the region’s
colonial experiences and the depth of the colonial imprint on its society and culture dwarf
those forged in African or Asian colonies during the age of high imperialism (ca. 1850-
1914). Whereas in those latter regions, with very few exceptions, colonial arrangements
lasted less than a century, in the Caribbean most societies were built from scratch at least
350 years ago (and some more than 500 years ago), all within strictures (sic) dictated by a
mercantile, colonial capitalism (p. 7).

Essa extensa dominação se deu, com expressivas diferenças locais e notáveis mudanças ao
longo do tempo, a partir do extermínio quase completo de populações indígenas e da subsequente
montagem de um sistema de plantation centrado na escravidão de populações negras africanas e
24

orientado à produção de açúcar para a exportação. Tal configuração deixou marcas nas paisagens,
nas histórias e na própria gênese dos grupos sociais no Caribe. “A plantation açucareira”, resume
C. L. R. James (James, 1989 [1963]) no apêndice de sua célebre história da Revolução Haitiana,
“foi, a um só tempo, a influência mais civilizadora e a mais desmoralizante na história das Índias
Ocidentais” (p. 392)1. O longo período da dominação colonial europeia conferiu à região um
caráter extremamente contraditório, ambíguo e decididamente não primitivo. Sidney Mintz foi
quem levou ao extremo essa análise, afirmando em diversas ocasiões que a empresa colonial
conferiu ao Caribe uma dimensão profundamente moderna, na qual a plantation foi responsável
pela criação de um regime fabril no campo, tanto pelo aspecto propriamente industrial da produção,
quanto pela organização da força de trabalho, argumento que ecoa não só os textos de C. L. R.
James, mas também os de autores como Eric Williams (2012 [1945]) e Edgar T. Thompson (2013
[1932])2. “[A] tragédia e a glória do encontro [do] mundo não-ocidental com o Ocidente”, afirma
Mintz (2003), “aconteceu [no caso do Caribe] muito antes que ocorresse em outra parte, e sob
condições que impediram que sua horrorosa novidade fosse reconhecida pelo que era: uma
modernidade que antecedeu o moderno” (p. 82, grifos meus)3. Essa modernidade precoce foi
exatamente o que tornou a região um local de pouco interesse para a antropologia. Menos uma
área cultural com um conjunto de tradições homogêneas do que uma região social marcada pelo
peso de uma história compartilhada: “Com uma população predominantemente não-branca”,
destaca Michel-Rolph Trouillot (1992), seguindo as pistas lançadas por Mintz, o Caribe “não era

1
Como continua James (1989 [1963]): “When three centuries ago the slaves came to the West Indies, they entered
directly into the large scale agriculture of the sugar plantation, which was a modern system. (…) The Negroes,
therefore, from the very start lived a life that was in its essence a modern life” (p. 392, grifos meus).
2
Se as análises de Mintz e as dos autores que o inspiraram centram-se sobretudo na “revolução do açúcar” como
motivo e tema da história caribenha (Mintz, 1985a), pesquisas historiográficas recentes têm questionado essa
centralidade, sobretudo a partir de materiais do Caribe hispânico. Tendo se tornado uma zona de provisão associado
às colônias açucareiras por uma divisão regional do trabalho, o Caribe espanhol “era, como também não era, parte da
economia de plantation”, como mostra o historiador Juan Giusti-Cordero (2009, pp. 69-70), passando só tardiamente
a se dedicar à produção de açúcar, no século XIX – e isso a partir de arranjos bastante distintos daqueles encontrados
em colônias britânicas, francesas e holandesas nos séculos XVII e XVIII.
3
Reconhecida por David Scott (2004) como “sua mais distinta contribuição para o entendimento do Caribe” (p. 191),
a preocupação de Mintz em delinear e conceitualizar essa modernidade fundamental da região apontava tanto para
uma inadequação do Caribe à agenda antropológica quanto para uma dimensão ideológica, relembrada por Scott ao
citar um trecho do prefácio feito por Mintz à obra de Jean Besson, publicada em 2002: “For most North American
anthropologists, that sense of things was probably accentuated because racism and social separation in North America
had made their black fellow citizens alien without making them exotic” (citado em Scott, 2004, p. 192). Sobre a obra
de Mintz, ver ainda Baca (2016), Cunha (2011), Palmié (2005) e, particularmente, a coletânea organizada por Baca,
Khan e Palmié (2009).
25

‘ocidental’ o suficiente para se adequar às preocupações de sociólogos. Porém, não era ‘nativo’ o
suficiente para caber no nicho do selvagem (savage slot) onde antropólogos e antropólogas
encontraram seus temas prediletos” (p. 20).

O Caribe e os povos sem história


Essa ambiguidade é o que confere à região um caráter indisciplinado, no duplo sentido do
termo, tanto pela inadequação a uma agenda clássica de pesquisa antropológica, quanto pela
possibilidade de crítica à imaginação antropológica a partir da região (Trouillot, 1992, p. 22).
Exatamente pela sua complexidade, sociedades caribenhas exigiam novas perspectivas e
estratégias de pesquisa que não ficassem restritas ao estudo de culturas primitivas ou a uma escala
reduzida que correspondesse à unidade local e localizável, como a tribo, o vilarejo etc. De fato, o
Caribe sempre foi avesso a conceitos que tentavam dar conta de sua totalidade reduzindo-a a um
elemento englobante ou meta-teórico, tal como a hierarquia na Índia, e o complexo honra-vergonha
no Mediterrâneo. Denominados gatekeeping concepts por Trouillot, tais “conceitos de mediação e
controle” serviriam exatamente para eliciar ou subsumir um estudo detido das complexidades
históricas e sociais desses diferentes contextos (pp. 21-22). Na definição do autor, esses conceitos
“são traços assim chamados ‘nativos’ mitificados pela teoria como formas de enquadrar o objeto
de estudo. Eles agem como simplificadores teóricos para restaurar o presente etnográfico e
proteger a atemporalidade da cultura” (p. 22, grifos meus). Isso é evidente, por exemplo, quando
o Caribe é utilizado como fonte de inspiração conceitual por disciplinas e autores que se apropriam
de termos como hibridismo, crioulização e marronage (ou quilombismo), fetichizando-os e
transpondo-os para um uso meramente ilustrativo e instrumental, sem contudo se aprofundar em
suas histórias e nos contextos que os tornaram possíveis (Mintz, 1998; 1985, entre outros, e ver
Scott, 2004, pp. 192-193, para uma discussão mais detida).
Na pena de romancistas e pensadores(as) sociais caribenhos(as), por outro lado, tais
contradições foram encaradas a partir de uma perspectiva da falta – tanto de um passado estável e
coerente, como de uma consciência histórica desse passado – e assumida como possibilidade
interpretativa da história e do presente. Entre a dominação, a heterogeneidade e a falta de vestígios
históricos, ao Caribe não restaria nada além de “uma ausência de ruínas” – uma imagem literária
criada por Derek Walcott (1962) que acabou se tornando um lugar-comum, retomado por Orlando
Patterson (1967) em seu romance homônimo e por muitos outros escritores e ensaístas caribenhos
26

(Price, 1985; Khan, 2010; mas ver também Stoler, 2013 e Scott, 2017 [1991]). De V. S. Naipaul
(1963) e a ênfase no caráter disjuntivo da travessia atlântica a Junot Díaz (2007) e a personagem
Beli de seu premiado romance A fantástica vida breve de Oscar Wao, para quem, ao deixar para
trás um passado de sofrimentos e perdas, “nunca mais pensou naquela vida. Deu vazão à amnésia
que é tão comum a todas as Ilhas, metade negação, metade alucinação. Abraçou a força das Anti-
ilhas (Untilles)”4 (pp. 258-259; para estes e outros exemplos, ver Khan, 2010, pp. 179-180).
Por isso, para seguirmos a proposta de Trouillot (1992), “[s]ociedades caribenhas são
inescapavelmente históricas, no sentido de que parte do seu passado não é só conhecido, mas
conhecido por ser diferente de seu presente, e, assim, relevante tanto para os observadores quanto
para os nativos e suas respectivas formas de entender este presente” (p. 21). Tanto a natureza da
história caribenha quanto o significado do passado para os povos do Caribe constituem, por isso,
um problema epistemológico irredutível (Trouillot, 2002, p. 854).
Questões similares às que me dedico aqui foram enfrentadas por Richard Price (1983) em
um outro contexto caribenho. Entre os Saamaka do Suriname, o autor notou uma “consciência
profunda de que viviam na história” (p. 5)5. Tal fato dizia respeito não necessariamente a suas
habilidades narrativas, mas às práticas e às ações que conjuravam o passado e o tornavam presente:
canções, tambores, genealogias, epítetos, rituais e toponímias (pp. 7-8). Todas essas formas
serviam a preservar um conhecimento sobre o fesiten (“tempo primordial” ou First-Time, na
tradução do autor): o tempo das guerras de libertação contra o domínio colonial holandês. Os
Saamaka vivem a história, pois, nos conta Price, vivem o constante medo de um retorno à
escravidão e por isso resistem à toda forma de esquecimento. O fesiten é, assim, tratado como um
“evento” e, como tal, constitui a unidade de análise do autor (p. 25):

Taking fragments (often a mere phrase) from many different men, comparing them,
discussing them with others, challenging them against rival accounts, and eventually

4
A tradução em português, lançada em 2015, apesar de bastante competente, deixou escapar a sutileza do termo
forjado por Díaz, optando por manter o original em inglês, “Untilles”. “Un-”, homófono de “an-”, denota oposição,
contrariedade ou reversão, carregando um sentido particularmente interessante aqui e cujo prefixo “anti-” parece dar
conta.
5
A exemplo do próprio autor (Price, 2013a) em seus textos mais recentes, emprego aqui a grafia contemporânea do
etnônimo (Saamaka), mantendo a variação anterior (Saramaka) nas citações. O mesmo vale para fesiten,
anteriormente grafado por Price como fési-tén.
27

holding them up against contemporary written evidence, I try to develop a picture of what
the most knowledgeable Samarakas know, and why they know and preserve it (p. 25).

A partir dessa constatação, ao autor lhe pareceu possível cotejar os fragmentos e as


elaborações que constituem a consciência histórica saamaka com registros coloniais holandeses –
que eram, de fato, numerosos exatamente em razão das guerras, acordos de paz e negociações que
tiveram lugar entre os Saamaka e o poder colonial – em um experimento original de escrita
antropológica orientado pela busca de uma objetividade histórica. Com efeito, e Price (2013b) o
deixa bastante claro na introdução à recente edição francesa do livro, os Saamaka representariam
uma exceção dentro de um espaço caribenho marcado pela dominação externa (mercados, Estados
e colonialismos) e pelo esquecimento – quando não pela mimeses ou pelo simulacro:

Si Les Premiers Temps est un livre consacré à la conscience historique, il est aussi consacré
à des gens qui, de tous habitants du Nouveau Monde, sont les seuls à pouvoir, sans la
moindre exagération, se prévaloir d’une tradition de résistance sans relâche à l’esclavage,
et à pouvoir se revendiquer comme des vrais ‘Nègres marrons’. A une époque où chacun,
dans les Caraïbes, depuis le plus humble paysan martiniquais jusqu’aux intellectuels
antillais les plus éminents, voudrait se faire passer pour Nègre marron, à une époque où les
hommes politiques, depuis Papa Doc jusqu’à son équivalent de Guyana, ont tous érigé des
monuments à la gloire de cette figure mythologique (…), Les Premiers Temps donne
l’occasion à de vrais Nègres marrons, en chair et en os et non pas imaginaires, de s’exprimer
sur leur propre vie, leur passé héroïque et l’épopée des confrontations avec les colons, aussi
bien que sur leurs histoires d’amour et de familles, et sur leurs grandes célébrations rituelles
(p. 7, grifos meus)

Como alguns críticos apontaram, as limitações da proposta de Price estão exatamente na


busca de um passado autêntico por meio de um esforço verificacionista (Scott, 2017 [1991]) e no
caráter excepcional que ele confere à resistência saamaka (Khan, 2010), algo que o próprio autor
reafirma mais ou menos explicitamente em trabalhos recentes (Price, 2008). De fato, representando
um caso exemplar de sociedade negra no Novo Mundo, os Saamaka apresentariam uma
excepcionalidade fundamental, como se as precoces fugas às florestas e às montanhas e a ruptura
com a dominação colonial e particularmente com a plantation lhes conferissem a possibilidade
28

quase que exclusiva de manterem tradições orais, consciência histórica e um sentido coletivo de
si. De fato, a possibilidade de contar a história saamaka segundo as instâncias de legitimação
historiográficas modernas teve um importante papel na própria luta política desses grupos sociais
(cf. Pires, 2015). Não obstante, o que me interessa aqui é menos construir uma excepcionalidade
para o caso dos camponeses norte-haitianos do que explorar as possibilidades abertas a partir de
trabalhos como os de Price, assumidas aqui em sua radicalidade.
É fato que refletir sobre os significados culturais do passado e sobre a cultura em termos
históricos não representa novidade alguma para a antropologia desde, pelo menos, os trabalhos de
Lévi-Strauss (2010 [1962]). Sistemas de aliança, mais do que a filiação, podem servir como uma
forma histórica de reprodução de identidades (Porqueres i Gené, 1995); um momento de possessão
pode garantir a atualização de toda uma linhagem (Bastide, no prelo); a vingança e o canibalismo,
enquanto formas de criação de nexos temporais entre passado e futuro, podem ser a matéria mesma
do social (Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985); e conflitos contemporâneos podem ser
a herança direta de contendas espirituais que não foram resolvidas em seu devido tempo (Thomaz,
2016a). Nesse ponto, debates sobre etnografia e escrita que tiveram lugar entre as décadas de 1970
e 1980 foram particularmente importantes para formulações críticas e reflexivas sobre a noção de
“presente etnográfico”, sobre a negação da coetaneidade dos nativos e sobre o “roubo da história”
(Fabian, 1983; Kuper, 2005; Goody, 2007). Tudo isso nos ajuda a entender que o passado é um
constructo social e, por isso, necessariamente relacional. Michel-Rolph Trouillot assim argumenta
(1995),

...não existe passado independente do presente. De fato, o passado só é passado porque


existe um presente, assim como só posso apontar para algo lá porque estou aqui. Mas nada
está inerentemente lá ou aqui. Nesse sentido, o passado não tem conteúdo. O passado – ou,
para ser mais preciso, a preteridade (pastness) – é uma posição (p. 15, grifos do autor)6.

Analisar a história a partir da etnografia deve, então, se preocupar menos em encontrar um


passado autêntico – em relatos, registros, vestígios, performances ou em qualquer outro suporte –
do que em entender essa dimensão relacional de conhecimentos e práticas que dão base ao

6
As traduções de Trouillot (1995) utilizadas aqui são de Sebastião Nascimento. Como a edição em português ainda
está no prelo, utilizei as referências correspondentes às páginas da versão original em inglês a fim de localizar melhor
o leitor.
29

desenrolar de experiências pessoais e coletivas em relação a distintos tempos e espaços. A isso


podemos dar o nome de historicidade. Neil Whitehead (2003), na introdução de uma coletânea
dedicada ao tema no contexto amazônico, define historicidade como “o esquema cultural e as
atitudes subjetivas que tornam o passado significativo” e que produzem uma consciência histórica
a partir da qual histórias específicas ganham sentido (p. xi). Assim “múltiplas histórias podem ser
forjadas a partir de múltiplas historicidades” (idem). Contudo, argumenta o autor de modo
convincente, com as novas aproximações entre antropologia e história, “nosso registro de histórias
expandiu-se muito mais do que nossa compreensão das historicidades que as criam” (idem). A esta
definição, eu adicionaria que historicidades não miram somente à produção do passado, mas
tomam parte na elaboração do que Eric Hirsch e Charles Stewart (2005) chamaram de “um nexo
temporal entre passado, presente e futuro” (p. 262). Tal como propostas teóricas recentes que
questionam a validade de termos englobantes, como sociedade e cultura, o termo historicidade – a
exemplo de outros como materialidade, socialidade e territorialidade – nos serve exatamente “para
capturar a condição reflexiva e mútua própria às relações entre sujeito e objeto” (idem). Nesse
sentido, a partir dessa noção, podemos entender melhor como passado e futuro ganham
significados para além de um historicismo que se baseia em um marcação linear e cumulativa e
que isola representações temporais enquanto entidades distintas (Trouillot, 1995, p.7).
Mesmo que nem todos os coletivos que constituem o Caribe tenham essa “consciência
profunda” de que vivem na história ou não compartilhem de um passado heroico como os
Saamaka, a maneira como a história lhes é assunto de elaborações cotidianas e de engajamentos
rituais tem chamado a atenção de diversos pesquisadores e pesquisadoras nos últimos anos. Em
rituais de santería cubana, tempos e espaços se embaralham a partir da fala e da performance de
muertos (Wirtz, 2016); trabalhadores guadalupenses “fazem a história andar” em peregrinações,
passeatas e protestos (Bonilla, 2015); o Estado cubano constrói legitimidade a partir do controle
sobre eventos e personagens históricos (Gonçalves, 2017); e descentes de chineses e indianos
recriam seus rituais em interação com divindades indo-asiáticas, europeias e afro-americanas
(Mello, 2014; McNeal, 2015; Tsang, 2017).
A historicidade e os significados do passado no Caribe constituem, de fato, matéria de
inúmeras disputas materiais e simbólicas. Em uma localidade como Milot, forças e agências
distintas – como autoridades locais, espíritos, jovens, camponeses, elites letradas e o Estado –
podem produzir sentidos sobre o passado e agir no tempo e no espaço de maneiras muitas vezes
30

distintas, ocasionando não só conflitos, mas também novas e variadas possibilidades dialógicas e
associativas. Como todo trabalho de campo, o que descrevo resulta das relações que estabeleci
com pessoas de quem me tornei próximo. Nesse ponto, a saída que encontrei para dar conta desse
problema foi, sempre que possível, descrever meus interlocutores com informações que julgo
relevantes, atento ao fato de que Milot não é, de modo algum, um local homogêneo e fechado em
si.
Voltemos à figura de Maurice Etienne a fim de ilustrar melhor essa questão. Maurice era
reconhecido por muitos habitantes de Milot como um historiador popular (e também por outros
públicos, afinal, ele figurava como tal em diversos manuais internacionais de viagem)7. Todavia,
a história era um tópico da vida diária que não pertencia somente a pessoas que, como Maurice,
possuíam meios, recursos econômicos e transitavam internacionalmente. Em mesas de bares, nas
ruas, em povoados rurais, nas roças e nos espaços domésticos, falava-se frequentemente de temas
históricos os mais variados, como a expulsão dos franceses durante a Revolução Haitiana, o
reinado de Christophe, o complô contra o primeiro dirigente da nação independente etc. A isso
somava-se ainda uma profusão de datas comemorativas oficiais, programas de rádio, materiais
didáticos, nomes de estabelecimentos comerciais, entre outros fatores que revelavam a
centralidade da história e de ancestrais nesse universo afro-americano. Além disso, Milot possui
um conjunto de ruínas cuja materialidade acentua essa presença do passado no cotidiano.
Entretanto, há uma dimensão não só política, mas também cosmológica da história que parece ir
além dessa particularidade local e que traz à tona símbolos e representações comuns, além de
agências ancestrais e espirituais8.
Meu objetivo aqui é encarar essas formulações nativas e o valor cosmológico da história
neste contexto. Com efeito, durante meu campo, era notável que o tema da história não envolvia o
reconhecimento de que vestígios e versões sobre o passado estavam necessariamente circunscritos
a um tempo distante, mas sim de que eram parte de um sistema (sistèm). Sistema, aqui, é algo que
distingue o funcionamento ou o modo como coisas se organizam. Como elaborou certa vez um

7
Entre os guias e manuais turísticos sobre o Haiti que consultei e que falam de Maurice, há o Lonely Planet, edição
compartilhada com a República Dominica, o britânico Bradt e o francês Petit Futé.
8
Tal dimensão foi identificada por autores e autoras trabalhando no Haiti seja de maneira direta, como o historiador
David Nicholls (1985) que fala de um “interesse quase mórbido que os haitianos nutrem pelo seu passado” (p. 35), ou
de maneira indireta ao incluírem ou iniciarem seus textos, livros e apresentações com algumas notas sobre a Revolução
Haitiana mesmo se dedicando aos temas os mais diversos.
31

jovem morador de Milot, “sistema, nesse sentido, é algo que é diferente”9. Nesse ponto, a magia
forma um sistema (sistèm maji), a comida um outro (sistèm manje), os ancestrais um terceiro
(sistèm zansèt), assim por diante. Todos esses sistemas são englobados pelo sistema haitiano
(sistèm ayisyen) que, por si só, se diferencia do sistema estrangeiro (sistèm blan). Abre-se, com
isso, a possibilidade de pensarmos a história a partir dessa categoria nativa, o que nos coloca
algumas questões interessantes.
A primeira é a de que a história é a base de uma lógica que orienta a experiência e se refaz
através dela, sendo composta por formulações, agenciamentos, apropriações e circulações
diversas. Nesse ponto, sistema se aproxima da noção de tradição definida por David Scott (2017
[1991]) como “um campo diversificado de discurso cuja unidade, tal como existe, reside não em
traços antropologicamente validados, e sim em sua construção em torno de um distinto grupo de
tropos ou figuras que, juntas, efetuam tarefas retóricas bastante específicas” (p. 301)10. A segunda
questão é consequência da primeira, pois, história aqui pode adquirir valores e significados
distintos do que usualmente se entende por história nas formulações que dão base às práticas da
disciplina historiográfica ocidental e ao seu historicismo. Um sistema revela possibilidades de
cruzamentos entre tempos e espaços, como num cronótopo bakhtiniano (Bakhtin, 1981), e que dão
abertura à agência de seres não-humanos na constituição da experiência histórica (Palmié, 2014).
Tais pressupostos colocam qualquer trabalho histórico ou etnográfico em relação direta com uma
lógica local de compreensão do tempo, do espaço e das forças e agências sociais. Com isso, textos
de historiadores profissionais podem ser lidos a partir de narrativas de historiadores populares, de
elaborações e de argumentos de interlocutores comuns ou subalternos, adquirindo um outro
estatuto epistemológico, algo que abre a possibilidade desta tese ser lida enquanto uma
transformação dos engajamentos e narrativas locais, numa relação horizontal com sistemas,
agências e conhecimentos.
Duas grandes inspirações para esta empreitada são, de um lado, os trabalhos de Michel-
Rolph Trouillot (Trouillot, 1995), e, de outro, os de Joan Dayan (Dayan, 1995). Trouillot discute,
em seu livro Silencing the past: power and the production of history, que o uso vernáculo da

9
Sistèm se yon bagay ki diferan.
10
Entre as tarefas da tradição, Scott (2017) destaca três principais: i) “assegurar conexões entre um passado, um
presente e um futuro” estabelecendo posições em um campo cultural e político (p. 301-2); ii) “assegurar (...) uma
comunidade distintiva de adeptos”, tornando a tradição não só inteligível, mas legítima (p. 302) e iii) “conectar
narrativas do passado às narrativas de identidade”, instruindo e cultivando virtudes que a tradição valoriza (idem).
32

palavra história em diversas línguas modernas carrega uma ambiguidade fundamental: história
alude tanto a um fato ou processo que ocorreu no passado quanto ao que se diz ter ocorrido. “O
primeiro significado”, destaca o autor, “enfatiza o processo sócio-histórico; o segundo, o nosso
conhecimento desse processo ou uma estória sobre esse processo” (p. 2, grifos meus). Criticando
tanto posturas positivistas quanto construtivistas, Trouillot argumenta que a sobreposição entre
processo, o que ele chama de historicidade 1, e narrativa, historicidade 2, deve ser assumida tanto
em sua distinção quanto em sua ambiguidade: todos os sujeitos podem ser, ao mesmo tempo, atores
e narradores. Ademais, toda a narrativa histórica ocorre dentro de um conjunto de convenções, de
grande variabilidade no espaço e no tempo, mas que conferem um certo limite à criatividade e
garantem credibilidade à história, o que Appadurai (1981) chamou de “debatibilidade do passado”
e que Scott (2017 [1991]) reconhece como uma das tarefas da tradição ao tornar algo não só
inteligível, mas legítimo (p. 302). Ademais, como nota Trouillot (1995), há uma “materialidade do
processo histórico” que “define o cenário para futuras narrativas históricas” (p. 29). “O que
aconteceu”, continua o autor,

deixa indícios, alguns dos quais são bastante concretos – edifícios, cadáveres, censos,
monumentos, diários, fronteiras políticas – que limitam o alcance e o significado de
qualquer narrativa histórica. Esta é uma das muitas razões por que nem toda ficção se pode
passar por história (idem).

Não me parece sem razão que, ao abordar estes temas, Trouillot tenha pautado parte
importante de sua análise em um debate sobre a fundação do Palácio Sans Souci, em Milot. No
entanto, se por um lado, Trouillot lança as bases para uma antropologia que analisa como forças e
relações de poder distintas incidem na produção da história, por outro, é Joan Dayan (1995), em
Haiti, History, and the Gods, quem discute as possibilidades de uma escrita da história que inclua
registros pouco convencionais como histórias de família, canções do vodu e a própria agência dos
espíritos – registros estes que compõem uma tradição. Como pondera a autora:

The history told by these traditions defies our notions of identity and contradiction. A
person or thing can be two or more things simultaneously. A word can be double, two-
sided, and duplicitous. In this broadening and multiplying of a word’s meaning, repeated
33

in rituals of devotion and vengeance, we begin to see that what becomes more and more
vague also becomes more distinct: it may mean this, but that too (p. 33, grifos no original).

Nesse sentido, se a materialidade é algo irredutível, é preciso olhar também para outras
presenças, talvez menos tangíveis e muitas vezes contraditórias, mas que exercem também
ativamente o trabalho de produzir conhecimentos e significados relacionados ao tempo, ora
aproximando ora distanciando passado, presente e futuro.

O lugar da história

Imagem 3: Milot. Ilustração elaborada a partir de imagem do Open Street


Map.
Imagem 4: Mapa da região de Milot. Elaborado a partir
do QuantumGIS.

“Sabe, Rodrigo, se eu tivesse asas, voaria pra longe de Milot” 11, me disse Jorab enquanto
conversávamos na varanda do Lakou Lakay. Jorab era um jovem estudante que vivia e trabalhava
no centro cultural. Não levou muito tempo para que nos tornássemos amigos próximos e,
posteriormente, quando Jorab teve sua primeira filha, compadres (konpè). Jorab me acompanhava
em caminhadas pelos vales, colinas, planícies e povoados rurais que formam a comuna de Milot.

11
Ou konnen, Rodrigo, si m te gen zèl, m tap vole lwen Milo.
34

Este movimento constante talvez tenha sido a principal característica da minha etnografia que foi,
aos poucos, adquirindo uma forma predominantemente peripatética. Nesses trajetos, não era raro
cruzarmos com alguma ruína do “tempo dos franceses” ou alguma árvore que servia de morada
para um espírito. Esses deslocamentos também abriam a possibilidade de encontros fortuitos que,
não raro, se transformavam em conversas ou em convites para uma visita. Durante as caminhadas,
era comum encontrar pessoas que iam de um povoado a outro visitar seus familiares, que desciam
para um roçado, que iam trabalhar no terreno de um vizinho, que se deslocavam para o mercado
ou que estavam simplesmente flanando (flane). Muitas vinham acompanhadas de animais, objetos,
carregavam na cabeça e nos braços sacolas com produtos de suas roças. Estar em movimento e
fazer as coisas circularem são, com efeito, elementos cruciais do cotidiano e revelam o valor
notável da liberdade e da autonomia12. Ao mesmo tempo, mover-se e circular são também uma
exigência das relações de parentesco e de troca que constituem a vida cotidiana local – da qual eu
passei inevitavelmente a fazer parte.
Ver coisas, animais, comida, pessoas e os mais diferentes elementos circulando entre casas
é um indício da proximidade e do parentesco entre pessoas. De fato, em Milot, “todos são
parentes”, conforme uma elaboração que ouvi com frequência em campo 13. Na divisão
administrativa oficial, Milot é uma comuna (komin) composta por três sessões rurais (seksyon
riral) dividas em um núcleo urbano ou burgo (bouk) e outros pequenos povoados conhecidos
popularmente como abitasyon. Dados estatísticos de 2016 elaborados pelo Instituto Haitiano de
Estatística e de Informação (IHSI) calculam um total de 31.992 pessoas vivendo na comuna, sendo
que 8.619 moram no vilarejo de Milot (27%) e o restante (23.273 ou 73%) nas abitasyon14. A
origem do termo abitasyon, que traduzo ao longo da tese como povoado rural, é associada às
concessões territoriais do tempo colonial que recebiam o nome de habitation, termo francês
análogo à plantation. Estas unidades produtivas empregavam majoritariamente o trabalho de
africanos escravizados e as terras eram destinadas às diferentes culturas, particularmente ao açúcar,

12
Tal dimensão da vida e do cotidiano entre grupos sociais afro-americanos foi tema de reflexão privilegiado de Huon
Wardle (2000), que trabalhou em Kingston, na Jamaica e, mais recentemente, de uma obra coletiva assinada por
Wardle e Silva (2016).
13
Isi a, tout moun se fanmi.
14
“Haiti Estimations Population Total - IHSI”, Haïti/ Open Data, publicado em 10 de junho de 2016, disponível em:
http://opendata.investhaiti.ht/HTPSA2016V2/haiti-population-statistics-by-age-ihsi (acesso: 10/01/2018).
35

que movimentavam a economia de São Domingos, como era denominado o Haiti antes da
Revolução15.
No famoso relato de viagem publicado por Moreau de Saint-Méry (1958 [1797]), em
princípios do século XVIII, o jurista martiniquenho fala de uma importante paróquia conhecida
como Petite-Anse que compunha o quartier nortenho do Cabo Francês16. Petit-Anse abrigava a
fértil Planície do Norte e contava com 32 engenhos de açúcar, cujos mais importantes pertenciam
ao célebre Marquês de Gallifet. Mais ao sul, a planície começava a dar lugar a um terreno
montanhoso, e, por isso, impróprio ao açúcar, onde Moreau de Saint-Méry contou um total de 12
fazendas de café e 25 propriedades dedicadas a alimentos variados denominadas place à vivres (ou
terrenos de provisão) (p. 285). Algumas dessas fazendas formavam a habitation Millot,
propriedade dos irmãos Emard e François Millot (p. 235)17. Com o início da Revolução Haitiana,
um general originário da ilha de Granada, de nome Henry Christophe, trazido ainda jovem a São
Domingos, passou a gerir aquela plantation (Trouillot, 1995, p. 35). Eventualmente, após sua
ascensão como governante do país independente, Christophe declarou-se rei e fez de Milot, como
passou a ser conhecida toda aquela região, o centro de seu reinado, construindo ali o suntuoso
Palácio Sans Souci e uma série de edifícios militares, como a Citadelle, e outras inúmeras
construções destinadas à sua recém-criada nobreza. Milot guarda vestígios importantes dessa
experiência monárquica, alguns deles declarados patrimônio mundial pela UNESCO, e atraindo
uma série de investimentos e visitantes os mais variados.

15
Com o tempo, habitation adquiriu outros significados. Após a Revolução Haitiana, o termo passou a designar as
fazendas de propriedade do Estado e de militares que, já não mais contando com o trabalho escravo, tiveram de se
readequar às exigências da liberdade generalizada. O mesmo ocorreu com o termo habitan que, antes, definia o
morador ou proprietário da plantation escravocrata, se tornou abitan, em crioulo haitiano, empregado para falar de
camponeses livres. Para um interessante debate sobre as ressignificações destes termos ao longo da história e sua
relação com valores de liberdade e cidadania, ver Fischer (2016).
16
Na divisão colonial, quartiers representavam zoneamentos maiores divididos em paróquias (paroises) separadas,
por sua vez, em concessões coloniais (ou habitations) destinadas ao cultivo de produtos tropicais. Muitas dessas
fazendas eram de propriedade de colonos absenteístas que gerenciavam seus domínios desde a metrópole (ver, entre
outros, Dubois, 2004).
17
Os irmãos Millot, um deles primo por aliança de Moreau de Saint-Méry (1958 [1797], p. 1526), foram os que deram
a notícia ao Marquês Gallifet, à época vivendo na França, de um conjunto de insurgências que ganhavam corpo na
região Norte, a partir de agosto de 1791, e que reduziram suas fazendas e propriedades às cinzas (Dubois, 2004, p.
92). Tais eventos são reconhecidos como os primeiros esforços coordenados de africanos e crioulos escravizados que,
posteriormente, se espalharam pelo país até culminarem na expulsão dos franceses e na declaração de independência
em 1804.
36

Milot é, hoje em dia, composta por um conjunto de abitasyon, na variante do crioulo


haitiano, que refere-se não mais a unidades produtivas, mas a territórios definidos pela
Constituição de 1987 como “zonas de habitats dispersos, identificados como tais pela tradição”18.
Similares aos bairros rurais descritos por Antonio Candido (1964), esses povoados são compostos
por vizinhanças (vwazinaj) formadas, por sua vez, por roçados (jaden) e casas (kay ou lakay) ou
por conjuntos de casas ao redor de um terreiro (lakou) – vem daí a inspiração do nome do centro
cultural de Maurice, Lakou Lakay. Lakou define tanto o espaço central e aberto do terreiro quanto
o conjunto de casas que o circundam. Essas unidades são dinâmicas e podem, ao longo do tempo,
modificar-se e assumir funções variadas. Casas são desfeitas para serem refeitas em outros
terrenos, roçados viram terreiros, terreiros viram caminhos e assim por diante, em um interessante
movimento que acompanha os deslocamentos, o parentesco e o ciclo de vida das pessoas que
compõem uma família (fanmi).
Uma família era concebida por meus interlocutores como um grupo de pessoas ligadas por
diferentes laços de parentesco. De um lado, a filiação é bilateral e localmente definida por uma
composição de elementos transmitidos por descendência e denominados heranças (eritaj), das
quais faziam parte o sangue (san), a terra e os espíritos (jany). De outro, a aliança é centrada em
uma série de práticas, entre as quais a conjugalidade (maryaj ou plasaj), o compadrio, além de
atividades cotidianas marcadas por reciprocidades diversas como as trocas de alimentos, os
mutirões (konbit), os xarás (tokay), entre outras – dinâmicas que muitos interlocutores definiam
como formas de “alargar a família” (elaji fanmi)19. As casas e os terreiros (ou conjuntos de casas)
são, nesse sentido, estabilizações temporais dessas relações de descendência e aliança e compõem
uma forma de identificação primeira da pessoa e que a acompanha por onde ela vai, seja em seus
trânsitos cotidianos ao ser identificada como alguém do “terreiro da madame fulana” ou como
“filho de sicrano”, seja quando partem para o estrangeiro e são motivados a enviar remessas e

18
Agradeço à Flávia Dalmaso por ter chamado a atenção a essa distinção. Ver a discussão da autora em Dalmaso (no
prelo).
19
No meu mestrado, discuti mais detidamente a filiação e a aliança em um povoado rural de Milot. Se, por um lado,
o parentesco haitiano me pareceu bastante plástico e aberto a um trabalho de constituição permanente por meio de
formas de produção ativa do parentesco, a dimensão classificatória da filiação, manifesta sobretudo através da
transmissão de heranças, dava ao parentesco um caráter organizador e estável. Para deixar isso claro, me remeto a
este trabalho ao longo da tese para ilustrar alguns argumentos que apresento aqui de forma mais concisa.
37

manter um contato constante20. Em Milot, similar a outros contextos haitianos, sempre se é uma
pessoa que pertence a uma casa ou a um conjunto de casas (moun lakay ou moun lakou) ou ainda,
em uma formulação igualmente comum, mas mais poética, “uma pessoa que pertence a outras”
(moun a yon lòt moun), como discutiu Flávia Dalmaso (2014) ao se debruçar sobre o parentesco
em um povoado na região Sul do país.
Casas, terreiros, famílias e vizinhanças são, por isso, configurações materiais, relacionais
e afetivas que produzem pessoas, laços de parentesco e identidades. Provérbios e elaborações
nativas deixam isso evidente, como o célebre ditado “a família é um lençol” (fanmi se yon dra).
Tão regrado é esse universo que a chegada ao terreiro ou à casa de alguém exige, no mais das
vezes, um chamado de reverência: “honra!” (onè), grita um visitante, “respeito!” (respè), replica
uma pessoa da casa. Entretanto, há algo mais. A despeito desse caráter produtivo e agregador do
parentesco, a proximidade também guarda uma dimensão negativa que aponta para o valor
ambíguo da intimidade, da confiança e, no limite, do próprio parentesco. Nesse ponto, a magia ou
o feitiço, termos indistintos em crioulo haitiano (maji), podem agir tanto nas mãos de pessoas de
fora do vilarejo – conhecidas como moun vini – quanto por amigos, vizinhos e parentes que, afeitos
à maldade (mechanste), podem reclamar a vida de alguém próximo, seja um parente por
descendência ou por aliança, vendendo a pessoa em trocas ilícitas. Se, como veremos, a magia
pode ser utilizada para a cura e para trazer sorte, ela pode também orientar-se ao assalto, destruindo
vidas, desagregando laços de proximidade e desfazendo o trabalho do parentesco, operando como
uma forma de “parentesco negativo” (ver Munn, 2007 e Geschiere, 2012). Mais uma vez, são os
provérbios que sintetizam essa dimensão e revelam, como discutirei ao longo do texto, esse caráter
ambíguo da proximidade, a exemplo de: “Amigos próximos são uma faca de dois gumes, amigos
distantes são dinheiro guardado” (Zanmi pre se kouto de bò, zanmi lwen se lajan sere) e “Inimigo
é repouso” (Ledmi se repo), que ouvi em diferentes situações durante meu trabalho de campo.

20
Muitas das casas que frequentei em Milot possuíam ao menos uma pessoa vivendo fora do país. Isso conferia àquele
universo um caráter notavelmente cosmopolita. Relatos sobre experiências fora do país eram comuns e locais como
Nova Iorque, República Dominicana, Miami, Brasil e Chile eram assunto de conversas cotidianas. Sobre esse tema,
pode-se consultar Richman (2005) e Joseph (2015). Ademais, durante meu campo, uma decisão judicial na República
Dominicana retirou a cidadania de inúmeros haitianos e de seus descendentes que viviam no país há gerações. Tal
feito ocasionou uma crise diplomática e motivou deslocamentos e retornos para o Haiti, gerando a montagem de
campos de refugiados em diversas partes da fronteira. Sobre este tema, publiquei um curto artigo. Ver Rodrigo
Bulamah, “Deportações na República Dominicana”, Le Monde Diplomatique, ano 9, n. 98, 2015, disponível em:
https://diplomatique.org.br/deportacoes-na-republica-dominicana/.
38

Participando ativamente desse universo social estão ainda os espíritos, denominados


correntemente jany, mas assumindo variações como ginen, lwa, zanj, mystè etc. Esses seres são
associados, no mais das vezes, a santos católicos e são figuras centrais de um cristianismo popular
e de uma cultura bíblica predominantes. De fato, a maioria dos meus interlocutores se declarava
pertencente a alguma congregação pentecostal, à igreja adventista ou ainda a alguma seita
pentecostal local. Tal pertencimento era concebido como um caminhar, como na expressão “eu
caminho na igreja tal” (mwen mache nan legliz yontèl). Estas religiões se constituem, em muitos
casos, em oposição direta às práticas tradicionais e à ação dos espíritos. Com efeito, durante os
cultos pentecostais que acompanhei, falava-se com frequência em feitiçaria e nos próprios
espíritos, renomeados, muitas vezes, como diabos (djab) ou satãs (satan)21. Isso gerava tensões no
seio das casas e das famílias, pois os espíritos herdados exigiam uma interação cotidiana, através
de pequenas oferendas e libações, mas também de prestações mais elaboradas como rituais e
sacrifícios. Tudo isso implicava em negociações constantes, por vezes dramáticas, sobre as quais
tratarei de modo mais detido ao longo dos capítulos.
Em geral, para os milosianos que vivem nos povoados rurais, o centro do vilarejo (ou
burgo) nada mais é do que uma extensão da própria vizinhança, afinal, todos ali são também
parentes (fanmi), distantes ou próximos. O burgo é percebido muito menos como um centro urbano
distinto das paisagens e dos povoados rurais do que como um espaço de concentração de pessoas,
movimentos, serviços, mercados e objetos. Não há nada que socialmente diferencie os moradores
do burgo dos que vivem nos povoados rurais. Uma mudança ao centro de Milot é almejada pela
facilidade de acesso a serviços, particularmente ao hospital e, no caso das crianças e jovens, às
escolas. No vilarejo, assim como nos povoados rurais, vivem os camponeses (peyizan), os
habitantes (abitan), os lavradores (kiltivatè), as mercadoras (machan), o povo (pèp), as pessoas
das margens/ do afora/ do campo (moun andeyò) ou, como ouvi com maior frequência, os
desafortunados (malere). O contraste está, de fato, na relação com a cidade (lavil), como Cabo
Haitiano, lugar onde moram os citadinos (moun lavil), as “pessoas capazes” (moun kapab), que
“possuem meios” (gen mwayen) e que não precisam “buscar a vida” (cheche lavi) como os
moradores rurais, pois já disfrutam de uma “boa vida” (bèl vi). Os desafortunados são também

21
Entre os meus interlocutores que se diziam católicos, as relações com os espíritos não representavam um problema,
postura relativamente recente se pensarmos no histórico de perseguições às práticas religiosas populares encabeçadas
pela Igreja Católica (ver Ramsey, 2011).
39

descendentes de africanos (afriken ou moun Lafrik), tiveram seus ancestrais (zansèt) escravizados
pelos franceses e submetidos ao trabalho forçado após a emancipação. Esse conjunto de
formulações, categorias sociais e formas de subjetivação são estruturantes da vida cotidiana na
região, sendo correntemente empregados como uma maneira de dar conta dos lugares sociais e da
história do país.

Imagem 5: Jorab e sua filha. Foto do autor, Milot, maio de 2018.

Retornemos ao Jorab. Ele era filho de um casal de moradores rurais que vivia em Lasalle,
um povoado próximo ao centro da comuna. Seu pai trabalhava no roçado e sua mãe era mercadora,
frequentando quase diariamente os mercados de Milot e do Cabo. Como para outros jovens da
comuna, a vida no campo não era uma vida fácil. Por isso, como ele formulou, se ele tivesse asas,
“voaria pra longe de Milot”. No começo de 2018, quando estive em Milot por algumas semanas
antes de terminar a pesquisa que deu origem a esta tese, eu e Jorab passávamos por Lasalle e nos
deparamos com uma casa em construção na qual somente a base em pedra e cimento estava pronta.
40

Era a casa que seus pais construíam para si. Já havia mais de 3 anos que eles tinham começado o
trabalho. Mirando-a, Jorab exclamou: “você entende o que eu quero dizer? Meu pai e minha mãe
passaram a vida toda a trabalhar a terra e a fazer comércio e não chegam nem mesmo a terminar
uma pequena casa para si”22. Milot, em particular, e o Haiti, em geral, eram, para ele, lugares onde
“não havia mais trabalho” (pa gen travay), impressão que me relataram em diversos momentos e
contextos.
Efetivamente, a vida nos povoados rurais era concebida pela maioria dos meus
interlocutores e interlocutoras como uma vida cheia de dificuldades, de misérias e de desafios. Isso
se faz ver claramente pelo emprego corrente do vocábulo desafortunado como termo coletivizante
para definir seu lugar dentro de uma comunidade política que concebem como o país. Um malere
(desafortunado) ou uma malerèz (desafortunado) – um caso curioso no qual uma flexão de gênero
foi lexicalizada em crioulo haitiano – é sempre alguém que é infeliz se comparado a um outro e,
muitas vezes, o é infeliz em razão da ganância, da inveja e da maldade desse outro. Como resume
um trovador popular no romance modernista do escritor haitiano Jacques Roumain (2007 [1944]),
“Os desafortunados (malheureux) trabalham ao sol enquanto os ricos deleitam-se na sombra” (p.
31). Nesse ponto, o passado ou o “tempo distante” (tan lontan) adquirem um valor importante na
vida cotidiana assumindo um caráter recursivo.
Logo nos meus primeiros dias em Milot, perguntei a Maurice sobre as formas de trabalho
coletivo que outros etnólogos relataram em seus trabalhos e sobre quando os conjuntos de casas
ou lakou formavam verdadeiros povoados (R. Métraux, 1951; Bastien, 1951), ao que ele respondeu
serem “coisas de um tempo distante” (bagay tan lontan). Entre camponeses dos povoados rurais e
outras pessoas com que convivi, as respostas não variavam muito. Nesse “tempo distante”, as
pessoas eram mais próximas, havia mais união, mais trabalho coletivo, mais festas, mais
reciprocidade, mais tambores, mais rituais aos espíritos, em suma, mais movimento. O presente é,
por isso, muitas vezes referido como um tempo parado. A essa dimensão idílica de um tempo
anterior, outros autores chamaram de “idealização do passado” (Sigaud, 1977)
Nesse ponto, as ruínas do período pós-revolucionário exercem um papel importante nas
concepções cosmológicas sobre o tempo e a história. Elas são indícios de um passado de glórias e
de feitos revolucionários, mas também heranças que pessoas receberam de ancestrais e que

22
Ou wè sa m vle di ou la ? Papam ak manmanm yo te travay latè ak fè konmès toujou men menm ti kay sa yo pa te
ka fini.
41

revelam um futuro que ficou, em certa medida, no passado. Isso nos aproxima do que Ann Stoler
(2013) chama, a partir dos escritos de Walter Benjamin e de Derek Walcott, de um “processo de
arruinamento”. Menos do que entidades autônomas e fixas do passado, ruínas constituem
materialidades que revelam a continuidade de legados coloniais e imperiais no presente e, por isso,
participam ativamente da formulação de possibilidades de vida mesmo que entre escombros e
rejeitos. Contudo, olhá-las de maneira isolada, como se representassem um indício fixo de um
tempo distante me parece equivocado. Durante meu trabalho de campo, me chamou a atenção,
logo de início, que Sans Souci e a Citadelle se conectavam a outros vestígios materiais, de outros
tempos, compondo algo que Gastón Gordillo (2014) denominou, no contexto argentino, de
“constelação de escombros”, inspirado pela própria maneira como locais e espaços não se
encerram em si, mas representam “formas disruptivas contínuas” (p. 9).
Ao longo da tese lanço mão da ideia de “paisagens históricas” para dar conta exatamente
desses processos contínuos de arruinamento e das constelações de materiais, símbolos, agências e
afetos que constituem as formas de vida nessa região caribenha. A ideia de paisagem que proponho
aqui parte das formulações de Neil Whitehead (2003) que, ao tentar escapar a raciocínios que
enfatizavam uma divisão entre humanos, de um lado, e animais e meio ambiente, de outro, aponta
para a necessidade de se ir além da constatação de que os animais possuem agência em processos
históricos, defendendo a importância de olharmos para contextos específicos de ação (: 339):

The interpretation of landscape or habitat is no less important than issues of agency in the
effort to center animals, since landscapes are a form of history and memory that is material
in the way that human texts are. The changing course of a river, the falling of an ancient
tree, a stormy excess of snow, rain, wind, sunlight, or shade all dynamically alter the field
of animal-human interaction.

Se relermos tal argumento levando em conta a agência de espíritos, as paisagens, enquanto


produções conjuntas de diferentes agências, nos ajudam a pensar em como materiais, vestígios e
textos se relacionam entre si, cruzando tempos e espaços, a partir de contextos específicos de ação.
Nesse ponto, fragmentos e escombros de antigas plantations açúcareiras só fazem sentido quando
pensados em conjunto com outras presenças, como palácios construídos por ancestrais
revolucionários, restos e vestígios de projetos humanitários inacabados ou falidos e também
42

ausências, como os antigos porcos crioulos que, assassinados em sua totalidade, contam uma
história de algo que não está mais lá a partir de afetos e memórias.
Assim, as ruínas vão além de formações históricas que permanecem estáveis no tempo e
no espaço. Aqui, o fascinante texto de Georg Simmel (2005) sobre ruínas lança luz sobre o caráter
plural das ruínas e dos processos de arruinamento, como se o trabalho do tempo operasse um
trabalho inverso da cultura e a decadência, o desencanto e a queda, como o autor coloca,
“significa[ssem] justamente o encontro de todas as aspirações contrárias” (p. 142). Por isso, essa
vida carregada de infortúnio é também, paradoxalmente, repleta de encantamentos. São paisagens
e locais de peregrinação que reatam vínculos com espíritos e antepassados e inspiram imaginações
e projetos de futuro; relações de parentesco e de vizinhança que produzem comunidades e pessoas;
compromissos com espíritos e entidades que colocam coisas, agências e pessoas em movimento.
Enfim, vidas em ruínas que, como o Palácio Sans Souci, são o produto não só de histórias de
sujeição, mas também de buscas por liberdade.
Temas similares foram abordados por autores como Lygia Sigaud (1979), Mark Harris
(2014), Moisés Lino e Silva e Huon Wardle (2016), João de Pina-Cabral e Vanda Aparecida
(2013), Antonádia Borges (2011) e André Dumans Guedes (2013) ao tratarem de contextos nos
quais a liberdade, ou melhor a tensão entre liberdade e cativeiro, assumia-se como um tema
cotidiano. Inspirado por esses autores e essas autoras e tendo em mente possibilidades
comparativas entre grupos camponeses e populações afro-americanas, parti do meu trabalho
etnográfico explorando também as possibilidades abertas por uma aproximação entre antropologia
e história, observação participante e trabalho de arquivo, sincronia e diacronia. Falemos, enfim,
um pouco mais sobre os métodos e sobre as condições que tornaram esta empreitada possível.
43

Imagem 6: Milot vista a partir do Palácio Sans Souci. À frente, a Igreja real e o estacionamento do Parque Histórico
Nacional. Foto do autor, Milot, maio de 2018.

O trabalho de campo, o arquivo, o texto e as imagens


O trabalho de campo que deu origem a esta tese soma um total de 15 meses vivendo em
Milot. Foram dois períodos principais, mais longos, e algumas visitas de curto prazo. Em 2012,
como estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp,
fiquei quatro meses em campo, uma parte vivendo no vilarejo de Milot e outra no povoado rural
de Samson23. Dali resultou meu trabalho etnográfico dedicado ao parentesco e aos elementos que
estruturam as famílias e vizinhanças (Bulamah, 2013a). Em abril de 2015, já como doutorando do
mesmo programa, retornei a Milot e lá fiquei até março de 2016. Outras viagens curtas de duas
semanas a um mês foram realizadas em 2014, em 2017 e em 2018. Todo meu trabalho de campo
foi marcado por deslocamentos que, espero, se farão claros ao longo do texto. Morar no Lakou
Lakay, por um lado, me garantiu viver próximo a uma figura de autoridade, que tinha
conhecimentos notáveis sobre a história e que me abriu portas para outros discursos sobre o

23
Minha primeira viagem ao Haiti foi, de fato, em janeiro de 2010. Foram alguns dias em Porto-Príncipe junto com
meu orientador e outros colegas de pesquisa. Nosso tempo ali foi logo interrompido de maneira drástica pelo terremoto
de 12 de janeiro. Sobre esta experiência, guardamos ainda um blog que segue acessível:
https://lacitadelle.wordpress.com/ (acesso: 10/01/2018).
44

passado, de autoridades políticas a especialistas estrangeiros. Por outro lado, ter residido em
Samson anteriormente abriu-me a possibilidade de estar próximo a camponeses e mercadoras que
vivem em intenso contato com a terra, com animais, e também com espíritos e ancestrais. Jorab e
outros jovens e moradores rurais foram cruciais também para que eu entendesse a centralidade de
diferenças geracionais e de classe.
Como, durante o mestrado, eu me interessava mais especificamente por temas relacionados
ao parentesco, fui aos poucos adentrando os espaços majoritariamente femininos, como as
cozinhas e os mercados. Isso me possibilitou entender diferenças de gênero e o peso das mulheres
na circulação e no comércio de produtos oriundos dos roçados, espaços predominantemente
masculinos, mas também o seu papel no planejamento de atividades agrícolas, em razão de
dominarem um conhecimento sobre trocas e flutuações de preços. Mas não foi só por meu interesse
de pesquisa que me aproximei das mulheres. Levei algum tempo para entender que minha condição
de jovem e estrangeiro (blan) implicava também em uma distância com relação ao mundo
masculino. Talvez menos por ser alguém de fora do que por me consideraram inapto a trabalhos
no campo. Em 2012, eu não era casado e isso era o indício da minha falta de maturidade, o que me
impedia o acesso a certos assuntos e espaços. Aos poucos, isso foi mudando e, por iniciativa
própria, tomei parte em trabalhos coletivos, aprendi a colher batata-doce, a cultivar mandioca e a
fazer um roçado, o que me abriu importantes portas para a compreensão das relações de gênero.
Além disso, em 2012, eu tinha apenas 25 anos e por vezes era chamado a participar de desafios
por outros jovens, como subir em árvores (capacidade que adquiri em razão da minha infância no
interior do Brasil, e que causava inegável admiração entre as pessoas de Samson), virar piruetas
(algo que, confesso, nunca fui bem sucedido), mas também contar piadas, recitar provérbios e
narrar contos. Essas situações me ensinaram muito sobre a vida em Milot, sobre os valores
comunitários e sobre as diferentes formas de conhecimento.
Em 2015, assim que iniciei meu trabalho de campo, tomei a decisão de viver a maior parte
do tempo no Lakou Lakay e visitei Samson com certa regularidade, dormindo ali ocasionalmente.
Como meu tema de doutorado envolvia as relações das pessoas com a história, incluindo as ruínas,
meu campo se concentrava em visitas frequentes a essas construções, buscando compreender as
formas cotidianas e rituais com que as pessoas se envolviam com esses lugares e produziam
representações sobre a história. Por uma abertura própria ao trabalho de campo, os temas se
ampliaram e passaram a incluir as representações em torno da nação. A partir daí, ao trabalho de
45

campo se somou a análise de documentos que eu já havia coletado em viagens à França e outros
que consegui no Haiti, em bibliotecas, arquivos e tribunais de Milot, do Cabo Haitiano e de Porto-
Príncipe. Além disso, quando consegui, no mestrado e no doutorado, uma bolsa de estágio de
pesquisa nos Estados Unidos, aproveitei para explorar bibliotecas, acervos digitais e bases de
dados. Nesses arquivos, encontrei uma série de documentos que busquei incorporar à tese à medida
em que eles respondiam a indagações que orientavam minha pesquisa. Também por um esforço
recente de algumas instituições em digitalizar seus acervos, consegui um conjunto de fontes em
páginas como a da Biblioteca Nacional da França (BNF) e a da Biblioteca Digital do Caribe
(DLOC).
Se realizar um trabalho em um mesmo local ao longo do tempo garante alegrias como a de
ver seus amigos e amigas crescendo, tomando decisões importantes, se casando e tendo filhos e se
aventurando por novos caminhos, esse longo contato abre-se também a perdas e a grandes tristezas.
Em meu retorno a Milot, em abril de 2015, Marie-Rose Simeon, a mãe da casa onde eu vivi em
Samson, ou madame André, como eu a chamava, havia falecido. A morte é sempre um processo
complicado, mas uma vez passados todos os rituais de cuidado e separação para que a alma
encontre o seu caminho à Guiné (Ginen) e para que o corpo possa descansar, aprendi com meus
amigos e amigas que a vida segue seu rumo. Senhor André, seu esposo, e seus filhos e filhas,
continuam em Samson, alguns tiveram seus rebentos, construíram suas casas e levaram à frente os
ensinamentos e heranças que Marie-Rose deixou. Já em campo, Michelet Delima, um outro
morador de Samson, também faleceu de modo repentino. Ele era um senhor cego, cheio de
conhecimentos e com quem eu costumava passar longas tardes conversando sobre animais e seres
mágicos. Foi Michelet quem me ajudou a entender essas complexas relações que constituem um
universo social no qual os humanos são, por vezes, apenas atores secundários. Esta tese se dedica
também à memória dessas duas pessoas com quem aprendi muito do que relato aqui.
A maioria das entrevistas e conversas reproduzidas ao longo do texto foram feitas durante
o trabalho de campo. Algumas poucas resultaram de conversas por telefone ou por aplicativos de
comunicação quando eu já não estava mais em campo. Quando for o caso, as diferencio nas
referências. Percebi logo nos meus primeiros dias que a presença de um gravador não incomodava
meus interlocutores e interlocutoras. Claro, antes de sacá-lo eu sempre perguntava à pessoa com
quem eu conversava ou que seria entrevistada se eu poderia gravá-la. A maioria das pessoas que
já me eram próximas concordavam com um sinal da cabeça; no caso de alguém que eu não havia
46

encontrado previamente, a resposta era quase sempre um “não há problema” (pa gen pwoblèm).
No mais, eu nem sempre andava com meu gravador, mas tinha comigo invariavelmente um
pequeno caderno de bolso em que anotava cenas, diálogos, provérbios e termos. Tornou-se comum
que amigos e pessoas conhecidas exclamassem, assim que eu tirasse o caderninho do bolso da
calça: “e lá vai o Digo tomar notas!” (men gade Digo, lap pran note!)24.
À noite, sob a luz de um lampião, ou logo cedo no outro dia, a depender do que acontecesse
durante o trabalha de campo, eu separava um tempo para transcrever e desenvolver minhas notas
em um caderno maior. Ter por perto amigos e amigas e dividir a casa com outras pessoas em
Samson ou no Lakou Lakay, como Marie-Rose, senhor André, Maurice e sua esposa, madame
Innocente, além dos mais jovens, sempre me ajudou a entender alguma questão que surgia ao longo
da escrita25. Essas mesmas pessoas me ajudavam gentilmente com minhas dúvidas sobre o crioulo
haitiano, particularmente nos meus primeiros meses vivendo no Haiti quando eu criei o hábito de
estudar crioulo na parte da manhã26. Eu já sabia francês, o que me ajudou a deduzir algumas
palavras do crioulo. Entretanto, nem sempre eu me saía bem. Para tirar algumas dúvidas, eu
perguntava a alguém do Lakou Lakay, particularmente a Christelle, a filha mais velha de Maurice
e Innocente, quando ela ainda vivia em Milot. No mais das vezes, ao perguntar se “era assim que
eu dizia tal palavra em crioulo?”, Christelle me respondia com um: “sim, mas isso não é crioulo”27.
De fato, durante todo o meu campo, poucas vezes eu me senti entediado. Havia sempre pessoas
que batiam à minha porta para conversar ou que me convidavam para flanar pelo vilarejo, gente

24
Em Samson e em Milot, em geral, é comum as pessoas terem apelidos de infância (non gate) que carregam até a
vida adulta. Outros nomes se somam à pessoa ao longo da vida, de apelidos jocosos e empréstimos de nomes de
padrinhos ou irmãos(ãs) a mudanças devido a novas relações conjugais. Essa pluaralidade de nomes tem, acredito,
uma relação direta com a própria forma de agir de seres malignos, que podem atacar uma pessoa a partir do momento
em que sabem seu nome (ver Bulamah, 2013b). Assim que cheguei a Samson, me perguntaram meu apelido, que eu
disse ser “Digo”, como meus irmãos costumavam me chamar quando eu era mais novo. O termo pegou e eu mesmo
comecei a me apresentar com ele, tal como as pessoas usualmente o faziam para si mesmas.
25
Após assumirem uma relação conjugal estável, como o casamento ou o plasaj (forma corrente de concubinato), as
mulheres passam a ser tratadas pelo termo “madame” (madanm) seguido do sobrenome do esposo ou por alguma
variação do apelido do esposo. No caso de madame André, como seu marido era conhecido como Arzou, muitos a
chamavam de Marzou, uma corruptela de madame Arzou.
26
Eu já havia estudado um pouco da língua antes da viagem, mas foi em campo que consegui adquirir um maior
domínio. O material que eu utilizei nesses primeiros meses de aprendizado foi o já mencionado dicionário de Vilsaint
e Heurtelou (2005) e o livro didático organizado pelo linguista Albert Valdman (1988), que, apesar de ter uma grafia
já desatualizada, traz explicações e exercícios bastante completos.
27
– M ka di sa an kreyòl? – Wi, men se pa kreyòl.
47

disposta a me ajudar a entender algum episódio ou expressão, ou simplesmente pessoas que se


sentavam ao meu lado enquanto eu escrevia no meu caderno de campo.
Falar esse misto de francês e crioulo, no início do meu campo, costumava causar um certo
estranhamento em algumas pessoas, particularmente as que viviam nos povoados rurais. Isso me
fez perceber o quão o francês era uma língua própria a contextos oficiais, citadinos ou de elite. De
fato, o francês ocupa um lugar ambíguo, atrelado de maneira indelével ao colonialismo francês,
sendo reconhecidamente associado ao prestígio e a posições de classe. Entretanto, ou exatamente
por isso, a língua francesa pode também ser um indício de dissimulação e segredo, como na
expressão popular “falar francês” (pale franse), empregada com frequência quando se suspeita que
alguém está lançando mão de palavras bonitas, de discursos vazios ou de argumentos irrelevantes
com o intuituo de enganar ou distrair alguém. O francês pode ainda tratar de uma posição
hierárquica passível de ser questionada, como no provérbio “Falar francês não significa ter
inteligência” (Pale franse pa vle di lespri). Com o tempo, adquiri certa desenvoltura e consegui
utilizar o crioulo na maioria das situações durante o campo. Em alguns casos, o francês ainda me
servia, como quando falava com alguma figura de autoridade, com algum político ou com alguém
de uma família de elite do Cabo ou de Porto-Príncipe que, na maior parte do tempo, eram pessoas
que faziam questão de falar comigo em francês.
Na variação nortenha do crioulo haitiano existem algumas marcas próprias que o
distanciam do crioulo de Porto-Príncipe, considerado por alguns interlocutores como um crioulo
galicizado ou kreyòl fransize. Por isso, nos trechos em que cito falas de moradores locais, busco
transcrever essa variação do Norte e tento deixar transparecer a oralidade que é própria ao crioulo
– sempre algo difícil quando se trata de traduções – colocando entre parênteses, quando necessário,
uma tradução literal. É importante notar ainda o lugar dos provérbios como formas de
conhecimento e parte importante de gêneros de enunciação. Em Milot, é comum crianças
possuírem cadernos e livretos de provérbios ou ainda fazerem competições em que os recitam;
pessoas mais velhas são conhecidas pelo seu domínio de provérbios e pelo seu uso em situações
as mais diversas; e discussões e conflitos públicos podem muitas vezes terminar no momento em
que se enuncia um provérbio. Fórmulas proverbiais são, de fato, ensinamentos morais que
carregam também uma pluralidade de sentidos, sendo comumente utilizadas como advertências ou
em comentários ácidos sobre alguém ou sobre uma situação – algo que Melville Herskovits (2007
48

[1937], p. 266) já havia notado em sua etnografia28. Provérbios podem se assumir como enunciados
carregados de equivocabilidade, como os voye pwen, lit. “enviar (ou atirar) um ponto”, gêneros
performáticos que buscam transmitir uma mensagem, no mais das vezes agressiva, mas de modo
codificado e indireto (ver Richman, 2005, pp. 16-7 et passim)29. Sempre que eu ouvi um provérbio
durante o meu campo, eu o anotava e buscava seu significado com diferentes pessoas. Por isso,
emprego-os, ao longo do texto, quando descrevo alguma cena em que apareceram, quando notei
certa recorrência em seu uso para definir ou descrever algo ou ainda quando eles conseguem
condensar algum sentido relativamente compartilhado.
Se houve facilidade em registrar conversas, o mesmo não ocorreu com genealogias e certos
temas que alguns julgavam como delicados, como a magia. Nesse ponto, contar com a ajuda de
Jorab em algumas situações garantia a possibilidade de conseguir alguma versão dos relatos e
temas por meio de sua mediação. Isso fez com que Jorab e também outras pessoas próximas
passassem a conceber nossas caminhadas e conversas como um empreendimento coletivo.
“Estamos fazendo pesquisa juntos”30, me disse um amigo de Samson certa vez. Nesse ponto, não
era só eu quem escolhia os temas da investigação, mas os discutia com interlocutores que me
indicavam também alternativas ou temas. Essa abertura à pesquisa em conjunto os motivava
também a me questionarem, em uma curiosa inversão, sobre como eram as coisas na minha família,
no meu povoado e no meu país. Essa curiosidade se associava tanto a um interesse comparativo,
pois buscavam saber o quanto o sistema haitiano era distinto do brasileiro, quanto a uma vontade
de saber sobre possibilidades de trabalho no Brasil, que, durante quase todo meu campo, passava

28
Provérbios, charadas e contos populares haitianos representavam, para Herskovits (2007 [1937]), a sobrevivência
de traços culturais africanos ou, como glosa o autor, “africanismos”. Em suas palavras: “The trait of African culture
that has survived most tenaciously in all the New World, even where European influence has been strongest, is that
of folk-literature – of tales, proverbs, and riddles” (pp. 266-7). Sobre o trabalho de Herskovits no Caribe, pode-se
consultar a entrevista de Kevin Yelvington a Rodrigo Ramassote (2017).
29
Um exemplo da equivocabilidade própria a esses enunciados é o provérbio “Atrás de uma montanha, há outra
montanha” (Dèyè mòn, gen mòn). O que, a princípio, pode ser compreendido como uma inocente descrição da
topografia haitiana, marcada por picos e montanhas elevadas, é, na verdade, uma fórmula que atesta o caráter perpétuo
de conflitos e a própria circularidade da vingança. Quando enunciado, “Atrás de uma montanha, há outra montanha”
pode ser entendido como a promessa de que se nesta montanha alguém fez mal a um outro, na próxima, ele será
surpreendido por um terceiro que se encarregará de fazer justiça. Exemplos desse uso equivocado são os manuais de
viagem que empregam o provérbio para descrever o Haiti e a recente biografia do antropólogo e médico Paul Farmer,
intitulada Mountains beyond mountains.
30
Nap fè rechèch ansanm.
49

por um processo de crescimento e distribuição de renda, e por isso, atraía a atenção de muitos
haitianos e haitianas.
Falta ainda dizer algo sobre as imagens que emprego nesta tese. Utilizo aqui retratos, mapas
e pinturas não somente como ilustrações de algo que digo no texto, mas como parte da própria
narrativa. Por isso, optei por deixá-las no corpo dos capítulos ao invés de criar um caderno de
imagens em anexo. É sabido que há uma consolidada tradição iconográfica no Haiti composta por
escolas de pinturas, instituições artísticas, trabalhos em ferro forjado e um mercado consumidor
interno que não se restringe a famílias de elite31. Não foram poucas as casas que visitei em Milot e
em Samson que tinham na parede de um dos cômodos uma pintura do Palácio Sans Souci ou algum
objeto de decoração feito em madeira ou ferro. Por isso, ao utilizar pinturas ao longo do texto, o
faço também como recurso analítico oferecendo ao leitor uma outra representação sobre algum
assunto específico ou sobre suas possíveis relações. No mais, retratos são sempre um tema
complicado no Haiti. Ninguém gosta de ser fotografado sem alguma preparação anterior – o que
não foge à regra em quase todas as partes do globo. Escolher uma roupa, fazer uma trança e colocar
os sapatos eram exigências que pessoas me faziam antes que eu fizesse uma foto. Em espaços
públicos, quando eu sacava a câmera para tirar a foto de um local, de um objeto ou de uma ruína,
diversas vezes me interpelavam dizendo que eu ficaria rico com as fotos que eu fazia no Haiti, o
que sempre me levou a pensar nessa desconfiança com relação à presença de estrangeiros no país.
Por tudo isso, os retratos que inclui aqui foram fotografias que meus interlocutores e interlocutoras
escolheram para que figurassem nesta tese. Quanto às imagens de locais e pinturas, a maioria das
fotos são de minha autoria, salvo quando indicado na legenda.
Uma última palavra sobre convenções gráficas e bibliográficas antes de resumir o que virá
pela frente. Utilizo itálico para categorias nativas, sobretudo na primeira vez em que aparecem no
texto, e também para grifos em textos de citações de outros autores. Emprego aspas para citações
ou para expressões nativas mais longas. As falas de interlocutores aparecem sempre reproduzidas
também no original em notas de rodapé, em itálico, quando forem longas, ou no próprio texto,
quando tiverem um tamanho reduzido. Tomei essa decisão tanto para o leitor que queira se
aventurar a ler as formulações em crioulo, quanto para alguém com maior domínio do crioulo que

31
Sobre arte haitiana, ver a clássica tese de Michel-Philippe Lerebours (1980), a coletânea organizada por David
Cosentino (1995) e os trabalhos mais recentes de Joanna da Hora (2011, a quem sou grato pelas sugestões de leitura)
e a tese de Julia Goyatá em fase de finalização.
50

possa, por ventura, construir outras análises a partir dessas falas – afinal, esta tese é, como o são
todas as teses, um documento histórico. Por fim, quanto aos nomes pessoais, alterei-os quando
julguei que fosse necessário. Mantive inalterado aqueles que aprovaram tal uso após uma consulta
sobre terem seus nomes aqui figurados. Para muitas pessoas isso era um sinal de respeito ao que
me contaram e ao que vivemos.

Os sistemas desta tese


A tese está dividida em cinco capítulos interligados pela temática das representações e das
práticas em torno da história. Os capítulos podem ser lidos separadamente, mas fazem referência
a pessoas e discussões de maneira cumulativa. No capítulo 1, descrevo e analiso uma peregrinação
anual realizada na cidade de Milot e que atrai pessoas de todo o país e também da diáspora haitiana.
Percebida como um ritual em homenagem aos ancestrais (entre heróis da Revolução Haitiana e
antepassados escravizados) discuto o lugar dessa peregrinação na produção de conhecimentos, de
arquivos coletivos e de uma intimidade histórica, muitas vezes em conflito com elaborações
oficiais quanto ao lugar das ruínas, ao protagonismo de ancestrais e, consequentemente, quanto à
própria soberania do Estado e seu poder sobre a nação.
Nos segundo e terceiro capítulos, conectados entre si, abordo o tema das relações entre
humanos e animais, partindo do evento de um massacre de porcos crioulos em finais dos anos
1970. Tal episódio é constantemente retomado por pessoas de Milot como, ao mesmo tempo, um
momento de grandes mudanças (pois os camponeses perderam um dos pilares de sua economia) e
um evento dentro de uma série de ações às quais haitianos e haitianas tiveram de suportar enquanto
desafortunados. Para compreender melhor o peso desse massacre dentro do espaço nacional, me
debruço sobre diferentes documentos, relatos e materiais ampliando o escopo da análise para além
da localidade de Milot. No segundo capítulo, olho também para documentos coloniais em busca
do lugar dos porcos na constituição das plantations e sua relação com os terrenos de provisão
geridos de forma relativamente autônoma por pessoas escravizadas. Centrando-me nos porcos,
bastante inspirado pelos trabalhos de Mintz (1985a; 1989 [1974]) e pela análise de Timothy
Mitchell (2002), conto também a história da própria constituição do Caribe para então argumentar
que a relação com esses animais foi central não só para a montagem do colonialismo, mas para a
posterior formação de um campesinato negro no pós-emancipação. O terceiro capítulo se volta
para uma outra peça desse quebra-cabeça que são as razões do massacre por parte de políticos e
51

autoridades sanitárias internacionais, pensando particularmente na articulação entre animalidade e


doença na constituição do capitalismo como um sistema cultural. Esboço, nestes dois capítulos,
uma análise da percepção que camponeses, mercadoras e moradores rurais compartilham sobre
seu lugar social como um lugar de sofrimento, infortúnio e, em certo sentido, desencantamento.
Os capítulos 4 e 5 se debruçam mais especificamente sobre o tema do conhecimento
histórico e da historicidade. No quarto, trato do momento eleitoral que acompanhei entre 2015 e
2016, quando dois dos principais candidatos à presidência, um deles originário de Milot e o outro,
de uma comuna vizinha, disputavam apoio popular e mobilizavam estratégias, agências e símbolos
bastante distintos. Discuto aqui o que se entende localmente por política e por desenvolvimento.
Por fim, no quinto e último capítulo, o debate se concentra em torno do par escravidão e revolução.
A partir de um relato sobre uma ocupação de terras em princípios de 1987, discuto as diferentes
elaborações em torno da categoria revolução e exploro o lugar de François Duvalier, que governou
o país entre 1957 e 1971, na reativação de uma tradição popular de revolta. Abordarei também o
tema do medo do retorno ao cativeiro, expressa sobretudo pela mediação dos zumbis, explorando,
comparativamente, o material etnográfico de outros autores e autoras. A ideia neste capítulo é
dialogar com essa literatura levando em conta que, se no Haiti encontramos uma recorrência
similar desse medo do cativeiro, deve-se considerar também o seu reverso, a revolução, e o que
ela representa em elaborações sobre a vida e a história. Se as ruínas e o infortúnio são temas
correntes, a revolução e as possibilidades de futuro que surgem a partir dela também o são.
52

Capítulo 1: Rituais da história

Enquanto alguns de nós discutem o que é ou o que foi


a história, outros tomam-na em suas próprias mãos.
Michel-Rolph Trouillot (1995, p. 153)

Imagem 7: Palácio Sans Souci desde a casa de Lucius Valsan. Foto do autor, Milot, março de 2015.

“Foi com Duvalier que vieram a descobrir que a história é algo que tem consequências”32,
me contou senhor Lucius Valsan, enquanto olhávamos o Palácio Sans Souci desde o pátio de sua
casa, no alto da colina que circunda o vilarejo de Milot. “Mas você morou ali?”, perguntei. “Sim”,
continuou ele, “era ali que todos tinham feito suas casas”33.

Havia árvores, fruta-pão, frutas, todo tipo de Se la tout moun te fè kay. Te gen pyebwa, lam
coisas. No meu caso, meu pai vivia ali, em Sans veritad, bagay, fwi. Mwen menm, pèsonèl, papa m
Souci. Eu nasci no Palácio, no Palácio Sans Souci. se te la nan San Sousi. Nan Palè nou fèt, nan Palè
Sabe, eu era menino [pra me lembrar exatamente], Sans Souci a. Ou konnen mwen te timoun, men se
mas foi ali onde eu nasci, foi ali onde eu cresci. (...) la m fèt, la nou grandi. (…) Nan Duvalier yo te vinn

32
Se ak Divalye ke yo vin dekouvri ke istwa se yon bagay ki gen konsekans.
33
Wi, se la tout moun te fè kay.
53

Foi com Duvalier que vieram derrubar as casas. kraze kay. Kay yo te deja kraze, yo tap konn
Quando terminaram de derrubá-las, começaram a debwaze. (…) Epi yo ap debleye a. Li te gen
cortar as árvores. (...) Depois vieram retirar todos bannann, bagay... yo fè koupe yo, bwa, bagay...
os destroços. Havia bananas, essas coisas... Nos Alèkile, Leta livre moun, debleye kote ki gen bagay.
fizeram cortar tudo, árvores, tudo. O Estado Fé pou Palè a rete vid. Yo fè koupe yo pou kite mazi
expulsou as pessoas, removeram tudo o que tinha. a sèlman.
Fizeram isso pro Palácio ficar vazio. Fizeram isso
pra deixar somente a ruína.

O palácio hoje é cercado e não abriga mais casas nem tampouco roças. Foi com François
Duvalier, que governou o país de 1957 a 1971, que aquele lugar, junto a outras ruínas dos tempos
do rei Henry Christophe, tornou-se parte de um projeto voltado ao turismo. Senhor Valsan se
lembra dos inúmeros cruzeiros que atracavam no cais de Cabo Haitiano carregados de turistas
estrangeiros: Florine, Bohême, Angelina. De lá, os visitantes seguiam para Milot, onde passavam
pelas ruínas de Sans Souci e subiam até uma fortaleza no alto da montanha, conhecida como
Citadelle La Ferrière. Em 1961, no decreto presidencial que estabelece a interdição desses locais
aos moradores, o palácio e a fortaleza são nomeados parte “do aparato turístico do país”34. Foi
naquele momento que, como afirma Valsan, a história passou a ter uma “consequência”. Retiraram
as casas para deixar somente as ruínas ou, como ele resumiu ao fim da nossa conversa: “Acabamos
por entender que o que é de Christophe não é nosso”35.

34
Le Moniteur. Porto-Príncipe, 7 de agosto de 1961, p. 306. Coleção de periódicos do Arquivo Nacional do Haiti,
Porto-Príncipe.
35
Nou fin konprann ke afè de Kristòf la ak nou menm nan, li pa menm.
54

Imagem 8: Lucius Valsan na entrada de sua casa. Foto do autor, Milot, maio de 2018.

***
Muitos mistérios envolvem a morte de Henry Christophe. General que se notabilizou
durante as guerras de independência do Haiti no final do século XVIII, Christophe assumiu
posteriormente a função de dirigente da nação, entre 1806 e 1811, como governador e, entre 1811
e 1820, como rei Henry I. De sua coroação até a sua morte, em 1820, o país consolidara uma
divisão entre um reino setentrional, sob seu comando, e uma república meridional, governada por
outro importante general, Alexandre Pétion. Christophe ficou conhecido como “rei construtor” e,
dentre muitos de seus feitos, um dos mais impressionantes foi a construção do Palácio Sans Souci,
da Igreja Real e de uma imponente fortaleza associada a um outro complexo de construções,
localizados no topo de uma cadeia de montanhas, denominados respectivamente Citadelle Henry
ou La Ferrière (doravante referida como Cidadela) e o Sítio de Ramiers (Site des Ramiers).
Estas estruturas arquitetônicas, somadas a outras menores, foram construídas no vilarejo
de Milot, antiga região cafeeira que compunha a paisagem econômica da Planície do Norte.
55

Transformado em morada real, no palácio era interditada a presença de qualquer pessoa que não
estivesse associada à guarda, à nobreza ou aos serviços domésticos do monarca. No fim de seu
reinado, Christophe havia alcançado um alto grau de impopularidade, governando o Reino do
Norte de modo impiedoso e empregando trabalho forçado para alcançar seus objetivos políticos e
econômicos. No dia 8 de outubro de 1820, enquanto um grupo de insurgentes marchava em direção
a Sans Souci, Henry Christophe deu fim à própria vida com um tiro de pistola no peito. Momentos
depois, o palácio foi tomado de assalto pelos rebeldes e seus pertences foram roubados ou
simplesmente destruídos. Testemunhas da época falam do rufo de um tambor chamando a
população à revolta e das tropas que “não mais serviriam a um rei, mas seriam inteiramente
livres”36. Retomavam a tradição de revolta e violência que fez da colônia mais rentável do Atlântico
um país livre. Às portas do palácio, gritavam “Vive la Liberté! Rompamos as correntes da
Escravidão”37.
O corpo de Christophe foi então sepultado no alto da Cidadela em uma pilha de argamassa
fresca que seria utilizada para finalizar a construção do forte. Esta pilha, solidificada, permanece
no mesmo local servindo à curiosidade de visitantes. Hoje, o Palácio Sans Souci, a Cidadela e
Ramiers fazem parte do Parque Nacional Histórico (PNH), uma área de 27 km², e integram o
Programa de Patrimônio Mundial da UNESCO, recebendo investimentos de diferentes agências
nacionais e internacionais que visam sua conservação e que veem no turismo uma alternativa para
o desenvolvimento regional e nacional. Por esta razão, Milot é povoada por especialistas e
consultores, alguns haitianos e outros tantos de origem estrangeira. Que o palácio, a Cidadela e as
outras estruturas façam parte de um tempo passado, distante e naturalmente diferente do presente
não é uma evidência derivada somente da materialidade desses locais. Com efeito, argumento aqui

36
Carta de George Clarke para Thomas Clarkson, 4 de novembro de 1829, Cabo Haitiano, reproduzida em Clarkson
e Griggs (1952, p. 210).
37
Carta de William Wilson a Thomas Clarkson, 5 de dezembro de 1820, Cabo Haitiano, reproduzida em Griggs e
Prator (1952, p. 218). Sobre o reinado de Christophe, ver Madiou (1989 [1947], tomo 6, pp. 126-28); Vandercook
(1928); Turnier (1989, pp. 63-76); H. Trouillot (1974); Fischer (2004); Hector (2009); Dubois (2012, cap. 2);
Garraway (2012) e Gonzalez (2012). Nas décadas de 1940 e 1960, um grande trânsito de intelectuais pelo Caribe,
particularmente pelo Haiti, promoveu a retomada do personagem de Christophe, passando a figurar em ensaios e
romances históricos como o fascinante El reino de este mundo, do escritor Alejo Carpentier, publicado pela primeira
vez em Cuba, em 1948, e também em diversas peças de teatro como a célebre La tragédie du Roi Christophe de Aimée
Césaire, publicada em 1963, e, anteriores a ela, mas menos conhecidas, Henri Christophe: a chronicle in seven scenes
do santa-lucense Derek Walcott, de 1948, e La tragedia del rey Christophe do colombiano Enrique Buenaventura,
publicada em 1961. Para uma análise desse momento intelectual e artístico, ver Cordones-Cook (2010).
56

que tais lugares revelam um cruzamento de espaços e tempos distintos e, por isso, se aproximam
da noção de cronótopo proposta por Mikhail Bakhtin (1981). Dentro do parque e em torno de seus
limites, em interação com esses locais e suas diferentes temporalidades, moradores e moradoras
rurais vivem seus dias, trabalhando a terra, cuidando de seus animais, vendendo seus produtos nos
mercados da região e se relacionando com parentes, vizinhos, estrangeiros, ancestrais e espíritos.

Imagem 9: Retrato mais célebre de Christophe, por Richard Evans, s.d., óleo sobre tela, Museu do Panteão Nacional
Haitiano, Porto-Príncipe. Fonte: Cheesman (2007, p. iv)38.

38
Acredita-se ser esse o único retrato de Christophe, pintado pelo copista e retratista iglês Richard Evans (1784-1871).
Evans chegou ao Haiti junto de uma comitiva de educadores, abolicionistas e cientistas ingleses, como William
Wilberforce e Richard Clarkson, que contribuíram para a fundação de um sistema escolar no norte do país, além de
criarem uma escola de pintura e desenho em Sans Souci sob a chefia do retratista. Ver Griggs e Prator (1952, p. 64 e
p. 98.
57

Henry Christophe é, frequentemente, referido como um ancestral (zansèt) e, ao lado de


figuras como Capois “La Mort”, Toussaint Louverture, Jean-Jacques Dessalines e Alexandre
Pétion, assume protagonismos importantes em projetos políticos e em formulações imaginativas
sobre a nação compondo o que o historiador Carlo Célius (2004) chamou de um “nacionalismo
heroico”. Ao mesmo tempo, ancestrais são também tema comum em discussões cotidianas e
participam de momentos ritualizados de transmissão e de produção do conhecimento. É sobre a
categoria ancestral que me debruço neste capítulo. Como Igor Kopytoff (2012[1971]) chamou a
atenção em um texto clássico, o termo ancestral pode ocasionar deslizes etnocêntricos exatamente
por seu emprego corrente nas línguas ocidentais, mascarando particularidades etnográficas e
culturais. Por isso, tomo a noção de ancestral como uma categoria nativa que, como veremos, diz
respeito tanto a antepassados ligados ao grupo de parentesco, como a personagens da história
nacional.
Ancestrais se assumem como seres plenos de poder e ambiguidade que, por terem se
sacrificado nas guerras de libertação e por terem deixado heranças, entre as quais a própria nação,
as pessoas devem prestações diversas e formulam algo que, diferente do nacionalismo heroico de
elaborações oficiais, se manifesta como um nacionalismo por dívida. Se a literatura haitianista
dedicou-se intensamente a explorar o lugar e a agência dos espíritos (lwa, jany, zanj, mistè, ginen
e outras variações), pouco foi dito sobre os ancestrais. Por vezes referidos também como heróis
no discurso oficial, os ancestrais são figuras ambíguas e guardam ainda, como veremos, uma
dimensão que faz colidir parentesco, política e nação nas práticas e conceituações nativas. Do
excesso de estátuas, efemérides e aniversários, além de grafites em muros de cidades, pinturas e
objetos de decoração, emissões de rádio, discussões públicas, marchinhas de carnaval, canções
populares e partidos políticos levando seus nomes, ancestrais são parte fundamental de um
cotidiano no qual a história é objeto de disputas constantes39.
Com isso em mente, minha atenção se direciona ainda, neste capítulo, ao modo como
práticas rituais revelam o lugar cosmológico dos ancestrais e expressam historicidades, ou seja,
práticas e conhecimentos sobre o tempo e o espaço. Ao analisar as controvérsias em torno da
nominação do Palácio Sans Souci, Michel-Rolph Trouillot (1995) argumenta que Christophe tinha
a clara intenção de deixar um legado tanto da Revolução Haitiana, quanto de seu governo. Para

39
Em 2008, uma das músicas de carnaval mais populares foi a do grupo RAM, chamada Defile ou Papa Dessalines,
ver www.youtube.com/watch?v=w6PFMTSFseo, último acesso em 25/02/2017.
58

isso, ele agiu, na própria fundação do palácio, tanto como um ator histórico quanto como seu
próprio narrador, criando aquele lugar ao mesmo tempo como uma “fonte histórica” e compondo-
o como um “arquivo” (p. 26). De modo notável, Trouillot consegue juntar fragmentos da história
de Jean-Baptiste Sans Souci, coronel africano que lutou ao lado de generais como Toussaint,
Dessalines e Christophe nas batalhas que levaram à fundação do Haiti. A postura do coronel,
contudo, distanciava-se em muito dos projetos e das políticas dos jacobinos negros, defendendo
uma ruptura radical com a ordem colonial. Tal fato lhe custou a vida. Foi o próprio Christophe
quem o matou e nomeou o palácio em sua homenagem, atualizando, como argumenta Trouillot, a
história de fundação do reino do Daomé, ao absorver seu inimigo em um ritual transformativo (pp.
64-66). Uma homenagem que, ao invés de celebrar o coronel Sans Souci, enterrou sua história
debaixo daquela construção por meio da criação de silêncios tão espessos quanto as paredes do
suntuoso edifício. Ao produzir uma unidade histórica, Christophe silenciou disputas em torno dos
significados da emancipação e da liberdade, dando fim a uma “guerra dentro da guerra” (p. 37-40)
e moldando, a partir da fundação de uma nova soberania, os contornos da nação.
Tomo os sentidos sociais da história como objeto principal de investigação, pensando-os
enquanto conhecimento e prática, aproximando-me da proposta de uma antropologia da história40.
Para tanto, é preciso levar em conta a história tanto como processo sócio-histórico, o que Trouillot
(1995) chamou de “historicidade 1”, quanto como conhecimento, denominado “historicidade 2”
pelo autor (p. 29). Nesse sentido, meu objetivo é pensar as agências e as relações de poder que
incidem sobre as dinâmicas de produção da história e sua relação com materialidades, lugares,
práticas e arquivos. Este capítulo realiza, por isso, um retorno a essas questões e, particularmente,
a esse lugar específico que Trouillot tornou célebre nas discussões sobre antropologia e história.
Contudo, não tratarei aqui de rever as teses do autor, algo que já foi feito por pesquisadores como
Buck-Morss (2011), Palmié (2013b) e Tomich (2009). Gostaria, sim, de dar um passo adiante e

40
Recentemente, Stephan Palmié e Charles Stewart (2016) elaboraram de modo sucinto e interessante uma proposta
de antropologia da história, colocando-a em diálogo com trabalhos anteriores que talvez não formulassem sua
empreitada do mesmo modo, mas que centraram sua problemática nas dimensões etnográficas e culturais da história,
tais como os de Marshall Sahlins (1990), de Eric Wolf (2002), de Sidney Mintz (1989) e de Michael Lambek (2002),
para citar alguns nomes, além dos estudos sobre história indígena e do indigenismo (Albert e Ramos, 2000; Carneiro
da Cunha, 1998; Whitehead, 2003); os estudos sobre emergência étnica e etnicidade (Arruti, 2006; Cavignac, 2010;
entre outros) e os trabalhos sobre colonialismo e pós-colonialismo (Chakrabarty, 2012 [2000]; Cooper, 2005; Holt,
1992). Para uma aproximação ao debate sobre antropologia e história no Caribe, cf., entre outros, Price (1983), Scott
(2017), Dayan (1995), Palmié (2005), Kahn (2010), Cunha (2010) e Gonçalves (2015; 2017).
59

pensar etnograficamente o que acontece quando pessoas comuns, em práticas cotidianas e rituais
tomam para si essas fontes e arquivos, criam seus próprios significados e recompõem histórias ao
serem defrontadas com legados materiais do passado e com os próprios ancestrais e suas
potencialidades.

Um conto de duas ruínas


Despertei num quarto de hotel na cidade de Cabo Haitiano e fiquei por um tempo
observando a gravura do antigo porto colonial da cidade. Era 1º de janeiro de 2012 e eu estava ali
seguindo uma indicação rabiscada em um pedaço de papel que guardava em meu bolso: Hostellerie
du Roi Christophe. Eu havia chegado de uma longa viagem que se iniciou em Santo Domingo,
capital da República Dominicana. Deixamos a cidade no dia 31 de dezembro, eu e Otávio Calegari,
um amigo e colega que faria sua pesquisa de campo em Ouanaminthe, a umas três horas de
distância de onde eu passaria os próximos quatro meses daquele ano. Ao descermos do ônibus, no
final da tarde do dia 31, subimos em duas motos e, não muito longe da estação, chegamos a nossa
hospedagem. Um pátio central, com um poço já seco e rodeado por imensas árvores, entre
carvalhos e mangueiras, formava a entrada. Parecia um enclave em meio a toda a intensa
movimentação da capital do departamento do Norte. Uma estátua do rei nos recebia já em frente
ao saguão. A hospedagem inteira era carregada de citações ao passado, de signos do “tempo da
colônia” a referências à corte de Christophe. Cartões postais com o brasão real formado por dois
leões e uma fênix, sob o lema “Eu renasço das minhas cinzas”, estavam dispostos ao lado da
recepção. Penduradas nas paredes do saguão, do restaurante e dos corredores, havia pinturas
representando momentos históricos, além de mapas, gravuras de palácios e objetos do tempo da
escravidão, como algemas, garrafas e correntes. Nos quartos, não era diferente. O cansaço da
viagem fez com que eu logo adormecesse, embalado pela animação dos que celebravam a virada
do ano nas ruas da antiga capital da colônia de São Domingos.
Na manhã do dia 1º, nos serviram sopa de jerimum. Era o aniversário da Independência e,
como nos explicou um dos funcionários do hotel, aquele era o prato típico da celebração em
homenagem aos heróis da Revolução. Após o café da manhã, partimos em direção a Milot. De
moto, o traçado colonial ordenado do Cabo ficava aos poucos para trás enquanto adentrávamos a
Planície do Norte. A densidade urbana dava lugar ao verde das árvores, dos campos e das
plantações. O cheiro de fumaça dos carros antigos sumia e uma brisa fresca substituía o calor do
60

asfalto. A geografia também se anunciava outra. Na estrada, íamos em direção às montanhas do


Maciço do Norte, um conjunto topográfico elevado que retém parte dos ventos alísios que sopram
do Oceano Atlântico e torna possível a grande quantidade de chuvas ao longo do ano,
particularmente, entre março e maio e entre setembro e novembro. Esta geografia e o regime de
chuvas intenso favoreceram a consolidação do sistema de plantation durante o período colonial,
no qual a produção de açúcar orientava uma sociedade extremamente estratificada que sobrevivia
às custas do trabalho e da vida de africanos escravizados.41 Durante boa parte do século XVIII, a
colônia de São Domingos foi responsável por mais da metade dos produtos tropicais consumidos
na Europa. Essa mesma geografia elevada dava abrigo aos escravos fugidos, que encontravam nas
florestas e montanhas, refúgio para produzirem seus alimentos, criarem seus animais e levarem
uma vida fora da coerção da plantation, processo que ficou historicamente conhecido como
marronage, em francês, e mawonaj, em crioulo haitiano42.
Atualmente, a cana-de-açúcar não é mais a plantação que domina a região, apesar de ainda
ser importante para as economias locais. A estrada que liga Milot ao Cabo tem 20 km e, em 2012,
era pavimentada até pouco mais da metade. Era minha primeira viagem a Milot e chamava a

41
Para mais informações sobre a geografia e a demografia da colônia francesa de São Domingos, cf. Dubois, 2004,
pp. 24-28. Sobre a constituição do Caribe colonial, cf. Giusti-Cordero, 2009. Particularmente sobre a demografia do
tráfico negreiro, consultar a base de dados interativa The Trans-Atlantic Slave Trade Database, em: slavevoyages.org
(último acesso em 23/02/2017).
42
A origem exata do vocábulo é objeto de controvérsia. Alguns etimólogos afirmam que marronage deriva do árabe
‫( ُم َح َّرم‬muharram, proibido), palavra que deu origem ao espanhol “marrano” utilizado atualmente como sinônimo de
“cerdo” (porco), mas que era comumente empregado para designar os mouros e judeus, particularmente os
criptojudeus da península ibérica moderna, a quem era proibido o consumo de porco. Outros estudiosos defendem que
“cimarrón” vem do latim cyma, derivado do grego κῦμα (kyma, inchaço, onda), e do qual se originam os cognatos
“cima”, “cume” etc. De todo modo, o termo ganhou popularidade originalmente na ilha de São Domingos (ou
Espanhola) para se referir aos rebanhos domésticos que fugiam para os montes, tornando-se ferais. Já em princípios
do século XVI, nas colônias do Caribe e das Américas, o termo também veio a designar escravos que fugiam do
cativeiro (ver Price 1983, prefácio, sem n. de pág.). “Il est parti marron” (“ele aquilombou-se”, em uma tradução com
licença poética) era a expressão corrente nos anúncios de busca por escravos fugidos nas publicações das colônias
francesas, como o Les Affiches Américaines de São Domingos. Para exemplos, consultar a base de dados elaborada
pelo Grupo de História do Atlântico Francês, em http://www.marronnage.info/fr/index.html (último acesso:
20/07/2017). Ademais, esta extensão semântica é particularmente observada nas línguas inglesa (maroon), francesa
(marron), espanhola (cimarrón) e também nos crioulos caribenhos. Em português, “marrano” restringiu-se aos
animais desgarrados dos rebanhos e aos judeus, sendo “mocambo” e, posteriormente, “quilombola”, ambos termos
originários da África Central, as designações mais usuais para se referir àqueles e àquelas que se evadiam do cativeiro,
abandonando as fazendas rumo aos morros, às florestas e aos assentamentos autônomos. Sobre esses termos e seus
diversos usos na África e no Brasil colonial, ver Flávio Gomes (2015, pp. 10-11). Pode-se consultar também as análises
de Keith Thomas (1996) sobre a relação entre uma ética da dominação humana sobre animais e a legitimação da
escravidão negra, pp. 53-54.
61

atenção a quantidade de árvores de cacau, fruta-pão, variadas espécies de bananas, toranjas e


carvalhos em parcelas densas e diversificadas, algumas combinando plantações de inhame, cará,
feijão e batata-doce. Entre as plantações, havia pequenos conjuntos de casas chamados lakou, com
duas ou mais unidades domésticas organizadas em torno de um terreiro ou pátio e feitas de barro
e madeira, algumas cuidadosamente pintadas e decoradas com jardins e flores e divididas por
cercas-vivas. Comum aos terreiros é a presença de ao menos um coqueiro, algo que, numa
paisagem de mata densa, é indicativo da existência presente ou passada destes núcleos
habitacionais.
Milot anunciava-se a partir do aumento da concentração de casas e movimentações de
pessoas e animais. Ali, no burgo (bouk), como é referido o vilarejo, o material das casas e outras
construções, como escolas e prédios públicos, também é mais diverso, alguns prédios sendo de
alvenaria. Nas casas mais antigas, o piso é feito de pedras e azulejos que foram retirados do Palácio
Sans Souci, revelando uma continuidade histórica das formas de apropriação desses locais por
pessoas comuns. O vilarejo localiza-se ao pé do Maciço do Norte, no encontro de duas colinas.
Não há estrada a partir dali. “Milot tem uma única entrada e uma só saída”, costumavam me dizer.
E isto era usado de modo estratégico em protestos e manifestações e, por vezes, no confronto com
as forças policiais como a Polícia Nacional, os grupos de operações especiais ou a MINUSTAH
(Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti). O vilarejo mais próximo em direção ao
interior é Dondon e a maneira mais fácil de se chegar até lá é atravessando as montanhas a pé ou
no dorso de animais por entre sendeiros, matas e roçados.
Naquele dia 1º, o vilarejo estava em festa. Pessoas dançavam, brincavam e bebiam. Havia
música, pequenos jogos e competições. Era nossa intenção visitar ao menos o Palácio Sans Souci
e, para tanto, precisaríamos de um guia. No manual de viagem que possuíamos, o autor sugeria o
nome de Maurice Etienne, dono de uma hospedagem e de um centro cultural na região43. Fomos à
sua procura. Sem obter sucesso, partimos então em direção ao pátio localizado em frente à Igreja
Real, conhecido como primeiro estacionamento, onde repousa uma estátua de Christophe. Fomos
informados de que ali não teríamos problemas em encontrar outro guia. De fato, não tivemos.
Guias ali são muitos, alguns com formação pelo Ministério do Turismo; outros, por vezes mais

43
Alguns anos depois, descobri que o autor do guia de viagem, Paul Clammer, é ele próprio um historiador amador,
particularmente deslumbrado pela figura de Christophe, tendo vasculhado arquivos na Inglaterra, no Haiti e na
Jamaica. A ele agradeço a troca de documentos e livros sobre o “tempo Christophe”.
62

interessantes, trazem consigo histórias populares carregadas de fatos curiosos e de eventos fora do
comum.
Pagamos a entrada para o Parque Histórico Nacional e começamos a explorar os diferentes
níveis, salas e espaços do imponente palácio, imaginando, sob a voz de nosso guia, o cotidiano da
nobreza do Reino do Norte, as festas da família real e o momento de revolta e pilhagem que
transformou aquele lugar em morada de pessoas comuns. Sob o olhar de uma estátua de mármore
com o busto de Afrodite, um grupo de jovens jogava bola no pátio. Ao lado, florescia a “Árvore
da Justiça”, um caimito em cuja sombra, conforme explicou-nos o guia, Christophe pronunciava
seus julgamentos44. Nos meses em que morei em Milot, aquele lugar tornou-se para mim parte do
cotidiano, assim como o era para muitos dos moradores do vilarejo. Na volta do passeio, por sorte,
encontramos Maurice Etienne em seu centro cultural, que nos recebeu com um prato de sopa de
jerimum, o segundo do dia. Maurice é o principal guia de Milot e conhece como ninguém as
histórias de Christophe e da região. Ele compartilha de um certo sentido de missão, comum entre
membros da elite haitiana (Thomaz, 2013), e é alguém que, em razão de seus conhecimentos,
inspira bastante respeito entre os locais. Sua hospedagem é também um centro cultural com
pretensões de tornar-se um centro educativo com uma biblioteca, um horto e um cinema, além de
uma piscina pública e um espaço de dança. O próprio nome do local, Lakou Lakay, faz referência
ao que ele dizia ser a “tradição haitiana”, uma tradição ligada, sobretudo – e Maurice o afirmava
constantemente – ao universo “camponês”.

44
O caimito (Chrysophyllum cainito) é uma planta nativa das Antilhas, da mesma família do sapotizeiro (Sapotaceae).
Sua presença é também registrada em partes da Amazônia onde é conhecido como abiu roxo, entre outros nomes. Seu
fruto é conhecido no Haiti como kaymit ou pòm zetwal (“maçã-estrela”), pois sua polpa roxa contrasta fortemente com
um interior branco e em forma de estrela. O escritor Derek Walcott elegeu a fruta como símbolo do Caribe em seu
livro “The Star Apple Kingdom”, de 1979.
63

Imagem 10: Crianças atravessando Sans Souci após o término da escola. Foto do autor, Milot, outubro 2015.

Haitianos e haitianas vindos de outras partes do país e da diáspora visitam regularmente o


Parque Histórico, além de turistas estrangeiros, figuras públicas e do governo, arqueólogos,
historiadores, antropólogos, agrônomos, arquitetos e engenheiros. O vilarejo recebe uma atenção
particular do Estado e é alvo de programas de incentivo ao turismo através de projetos da
Organização dos Estados Americanos (OEA) e de outras agências internacionais, o que não deixa
de gerar conflitos e disputas de diversas ordens. Milot é um lugar-chave na construção do que
Michael Herzfeld (1991) identificou como “concepção monumental da história”, entendida como
um dos fatores constitutivos do Estado-nação moderno e de seu aparelho burocrático. Sans Souci,
Ramiers e a Cidadela são, por isso, lugares onde se desenrola uma história envolta de qualidades
épicas – tal como um mito de origem nacional (Neiburg, 1997) – produzida pelas elites intelectuais
e pela burocracia de Estado, na qual os heróis, seus feitos e legados são tomados como fonte de
autoridade política e moral, orientados para justificar a dominação e as reivindicações de poder de
um grupo específico sobre o resto da nação (Trouillot, 1995, p. 105).
64

Tais fenômenos ganham proporções globais nesse contexto devido às redes de


investimento e de governabilidade transnacionais que ali se encontram45. Nesse ponto, para além
de uma “concepção monumental”, a história aqui é parte do que Trouillot (2003) definiu como
“efeitos de Estado”, nos quais processos e práticas de órgãos e instituições governamentais e
transnacionais criam um “efeito de identificação” ao fornecerem uma dimensão de coletividade a
sujeitos atomizados e promovem um “efeito de espacialidade”, produzindo um território e uma
fronteira dentro dos quais as ruínas adquirem sentidos hegemônicos (p. 81). Como Richard
Handler (1988) argumentou para o caso do Quebec, iniciativas como essas são marcadas por uma
“lógica reificante” que opera transformando lugares e objetos em propriedade ou patrimônio
nacional em um processo no qual a nação se assume como um “indivíduo coletivo proprietário”.
Ademais, o vilarejo está a 30 km de Labadie, um povoado costeiro onde uma praia privada recebe
anualmente cerca de 400 mil visitantes vindos em rotas de cruzeiros46. Não poucas vezes ouvi falar
do projeto de uma estrada que ligaria Labadie a Milot, sem a necessidade de se passar pelo Cabo,
algo que muitos milosianos esperam, mas, como é comum, com certa resignação. Algumas vezes
no ano, organizam-se festas e celebrações no palácio, às quais a população local não tem acesso,
mas das quais se beneficiam indiretamente em razão das movimentações em torno do parque. Por
todas essas razões, a palavra pwoje (projeto) é correntemente empregada por moradores do vilarejo
e dos povoados rurais.
Desde a primeira metade do século XX, argumenta o historiador Michel-Philippe
Lerebours (1995), iniciativas pontuais de governantes haitianos incidiam sobre tais construções,
tornando-as parte de um “domínio nacional”, sob a presidência de Louis Borno, em 1927, e,
posteriormente, como “monumentos históricos”, com Sténio Vincent, em 1940, que inicia um
primeiro projeto de restauração da Cidadela, de Sans Souci e da Igreja Real. Mas é em 1961, sob
o governo de François Duvalier, que pessoas que viviam dentro dos monumentos, como o senhor
Lucius Valsan, foram expulsas e que tais locais passaram a adquirir o sentido de “aparatos

45
Tais redes são constituídas pelo próprio Estado haitiano, por países estrangeiros e organismos internacionais que
financiam e promovem projetos humanitários ou desenvolvimentistas, como também por grupos de haitianos da
diáspora que mantêm vínculos com o Haiti em razão de laços de identidade, parentesco e magia que se estabelecem
por meio do envio de remessas para prestações a espíritos do grupo de parentesco e para consultas a feiticeiros locais.
Sobre a diáspora, ver os trabalhos de Brown (1991); Drotbohm (2010); Glick-Schiller e Fouron (2004); Joseph (2015)
e Richman (2005).
46
Ministério do Turismo do Haiti. Bulletin Trimestriel de Statistique Touristique, 1(2), pp. 25-6, 2008.
65

turísticos”47. Algum tempo depois, em 1968, o entorno de Sans Souci e da Cidadela tornaram-se
parte de um “parque nacional” por um decreto que visava explorar o potencial turístico desses
locais. A mesma lei se aplicava a um só tempo a locais onde existiam monumentos históricos,
como o Forte Mercredi, em Porto-Príncipe, e o Forte Jacques e Alexandre, em Pétionville, e a
“sítios naturais” onde houvessem cascatas, quedas d’água, águas termais, grutas e bosques 48.
Retomando Lucius Valsan, foi com Duvalier que perceberam que a “história tinha consequências”.
Hoje, as ruínas fazem parte de uma série de iniciativas transnacionais que buscam conferir
o valor de patrimônio às construções e locais circunscritos pela lei. Tais iniciativas são
investimentos muitas vezes conflituosos exatamente por serem levados a cabo por instituições e
agentes operando em diferentes escalas, usando linguagens concorrentes e com interesses às vezes
incompatíveis: Estado, UNESCO, ONGs, especialistas vivendo no Haiti, políticos, empresários
ligados ao turismo, moradores locais etc. Como mostrou Herzfeld (1991) para o caso do vilarejo
grego de Retimno, em Creta, esses diferentes agentes mobilizam noções diversas de “patrimônio”
e travam uma “batalha pelo futuro do passado” (p. 5). O tempo monumental, próprio à burocracia
moderna, opõe-se, com isso, ao tempo social da vida cotidiana. Nesse ponto, é importante notar
que os usos locais e as formas de engajamentos com Sans Souci e a Cidadela, como veremos, vão
muito além do que prescrevem especialistas e agentes de Estado, numa “contra-arqueologia do
conhecimento social”, como o elabora Herzfeld (1991), na qual o que está em jogo é a produção
de “significados retroativos” da história (Trouilllot, 1995, p. 26).
A isso, eu adicionaria ainda o fato de que a atenção de especialistas e a quantidade de
projetos relacionados ao Parque Histórico em Milot operam em uma temporalidade fragmentada,
funcionando a partir de recursos escassos e muitas vezes bruscamente interrompidos, o que implica
em um conjunto de arranjos afetivos que vão da esperança à ansiedade. Com efeito, nas margens
da área circunscrita pelo Parque Nacional Histórico, há fragmentos de ruínas que foram
incorporadas às casas e espaços domésticos ao longo de todo um trecho lateral que vai da parte
traseira da Igreja Real até os muros do palácio. Ali, os moradores relatam que o Estado por vezes
os ameaça de expulsão, algo que muitos encaram com um misto de preocupação e desconfiança
com relação à efetiva capacidade do Estado. Ao mesmo tempo, e isso é particularmente

47
Le Moniteur. Porto-Príncipe, 7 de agosto de 1961, p. 306. Coleção de periódicos do Arquivo Nacional do Haiti,
Porto-Príncipe.
48
Le Moniteur. Porto-Príncipe, 18 de março de 1968, pp. 112-113. Coleção de periódicos do Arquivo Nacional do
Haiti, Porto-Príncipe.
66

interessante aqui, esses múltiplos esforços e toda a atenção em relação às ruínas atestam, para
muitos milosianos, que os monumentos e, em especial, os ancestrais (zansèt), como Christophe,
são objeto de fascínio e respeito (respè), o que gera uma atenção renovada ao “passado”, aos seus
significados e às agências espirituais e materiais que o compõem.

Imagem 11: Montagem com as placas institucionais em diferentes locais do Parque Nacional Histórico. O brasão do
Instituto de Salvaguarda do Patrimônio Nacional (ISPAN), abaixo à direita, é o próprio brasão do rei Christophe. Foto do
autor, Milot, maio de 2018.

Arqueologia como pirataria


“Eles já encontraram o ouro de Christophe?”49, me perguntou uma vizinha de Milot.
Enquanto eu caminhava pelo vilarejo, ela fez um sinal com a cabeça e pediu para que eu me
aproximasse. A princípio achei que quisesse saber para onde eu estava indo, como costumava fazer
quando nos encontrávamos. Foi então que ela, murmurando, perguntou sobre o ouro de Christophe.
Confessei que não havia entendido: “que ouro era aquele e quem estava à sua procura?”50. Com

49
Eske yo te jwenn lòr Kristòf?
50
Ki lò ki sa epi ki moun kap chèche li?
67

seu habitual sorriso de canto, ela falou, dessa vez em um tom ainda mais baixo, “mesye Cameron”.
Era julho de 2015 e um grupo de pesquisadores associados à Universidade de San Diego, na
Califórnia, havia chegado ao vilarejo com o objetivo de escavar o Palácio Sans Souci.
Coordenando o grupo estava J. Cameron Monroe, um arqueólogo com experiência de pesquisa no
Benim, onde trabalhou em sítios pré-coloniais do reino do Daomé. No tempo em que estiveram
em Milot, Cameron e seu grupo ficaram hospedados no Lakou Lakay e acabei acompanhando parte
de suas atividades.
O grupo se dividia em dois: de um lado, Cameron e um aluno ficavam responsáveis pelas
escavações; de outro, duas especialistas em mapeamento digital percorriam as áreas abertas do
Palácio com um sensor que detectava elementos e estruturas subterrâneas e produzia imagens do
solo sem a necessidade de perfuração. As escavações, diferente do que eu imaginava, ocorriam em
apenas um cômodo, na parte anterior do Palácio onde alguns afirmavam ter sido a hospedagem de
parte da guarda real. O grupo contratou alguns moradores locais que os ajudavam na retirada do
solo enquanto outros peneiravam a terra removida em busca de traços e de vestígios. O trabalho
consistia em separar uma primeira camada da terra em que estavam objetos de tempos recentes até
chegar a um estrato onde havia indícios suficientes de que a partir dali o que encontrassem
pertencia ao tempo de Christophe. No caso daquele cômodo, esse indício era um piso quadriculado
que repetia padrões comuns de princípios do século XIX. Os objetos que encontravam à medida
que seguiam com a escavação eram separados em lotes e classificados, muitos deles submetidos a
análises comparativas, fornecendo datas aproximadas e abrindo possibilidades interpretativas
sobre o valor de alimentos, práticas, sistemas de trocas, intercâmbios regionais e globais etc. Como
encontraram uma quantidade grande de restos de comida e objetos domésticos, Cameron e sua
equipe acabaram por inferir que aquele cômodo e, por extensão, os outros que formam a parte
anterior do Palácio, eram na verdade instalações de empregados da família real.
Ao mesmo tempo em que as escavações seguiam, uma quantidade notável de rumores
começou a circular afirmando que as buscas tinham um outro objetivo: encontrar o ouro que
Christophe enterrara antes de sua morte. Essa desconfiança confirma as histórias ouvidas pelo
antropólogo estadunidense Georges Simpson e pelo escritor haitiano Jean-Baptiste Cinéas (1941),
em finais da década de 1930, quando os dois viajaram juntos pelo Norte do Haiti. Muitas dos
“contos populares” (folk tales) por eles colhidos retratam Christophe como um rei cruel, imponente
e ganancioso. Particularmente sobre o ouro de Christophe, os autores afirmam (p. 178):
68

Many Haitians, as well as foreigners, believe that Christophe had an enormous treasure.
Vastey [barão e importante conselheiro do rei] said that the King could have paved the
Citadelle with doubloons if he had desired, so great was his hidden wealth. He is supposed
to have hidden this gold in a place in the fortress which was known only to himself and to
his friend Colonel Belliard. Those who were employed in burying the same treasure are
supposed to have been ruthlessly sacrificed. After Christophe’s death Colonel Belliard
refused, in spite of wonderful promises and terrible threats, to reveal the dead King’s secret.
Some say that Boyer’s army spent several weeks carrying the gold from the Citadel after
Boyer became President.

Na nota que completa o trecho, os autores afirmam que “[d]urante a Ocupação Americana,
os marines saquearam a Cidadela com a esperança de encontrarem tesouros, mas nada
encontraram” (178n3). Tais histórias parecem repetir um tropo comum do Caribe como um lugar
de tesouros escondidos, desde os tempos pré-coloniais, que estimularam corridas, contrabandos e
disputas entre piratas, colonos e impérios e onde um Eldorado estaria à espera de quem pudesse
encontrá-lo51. Talvez mais importante ainda é a noção de que a presença estrangeira busca tomar
de assalto a riqueza do país e que a ação de “pessoas vindas de fora” (moun vini) carrega, no mais
das vezes, um motivo torpe associado a um estado moral de “maldade” (mechanste) ou, em
derivações recorrentes, de “ganância” ou “inveja” (jalouzi). Isso ocasiona uma desconfiança
própria a um regime de suspeita e segredo particularmente atrelado, como espero demonstrar, ao
parentesco e aos regimes de circulação e troca que lhe são constitutivos. “Pessoas vindas de fora”
(moun vini) não são necessariamente os “estrangeiros” ou, nos termos locais, blan (lit., “brancos”),
mas sim pessoas que, por não terem uma história conhecida de todos e por não possuírem laços de
parentesco com os locais podem causar mal e infortúnio.
Talvez o principal aqui tenha sido o fato de que não houve, a princípio, uma comunicação
clara entre os arqueólogos e a população local. Parece ser isso que Simmel (2009) enxerga como
a dimensão sociológica do segredo: um fluxo de informações que possibilita ou não o
estabelecimento da confiança e do crédito. Na falta de informações para uma apreensão recíproca,
rumores começaram a surgir inspirados também pela própria chegada recente de companhias para

51
Para uma discussão sobre rumores e narrativas de assalto no Caribe, com enfoque particular no Haiti, ver Derby
(mimeo).
69

explorar minérios no país52, mas particularmente pelo fato de que o grupo estrangeiro portava
instrumentos gigantescos e empregava técnicas completamente desconhecidas. Como notou um
outro amigo:

Quando é o ISPAN (Instituto de Salvaguarda do Si se ISPAN kap travay, yo pa mete sa tèlman se lò


Patrimônio) que trabalha [no palácio], as pessoas yo ap chache. M pa konn poukisa, paske ISPAN ap
não falam que eles estão em busca do ouro. Mas fè travay, yo kon travay, m pa janm tande sa. Men
quando são brancos que vêm com grandes depi se blan yo vini ak gwo laparèy, se lò yo ap
aparelhos, é ouro que estão buscando. (...) Pois ali chache. (...) Paske la genyen vre. Pale a genyen.
tem mesmo ouro. Há ouro no palácio. (...) Mas para (...) Men pou ou cheche fòk ou genyen aparèy. Plis
você buscá-lo, é preciso instrumentos específicos. ke moun yo wè ke yo te gen gwo aparèy yo mete sa
E como as pessoas viram que eles tinham esses nan tèt. (...) Se yon kote wa te rete. Pa gen kote wa
instrumentos, lhes veio isso à cabeça. O palácio era te rete ki pa gen lò. E pale a, yo toujou dim ke pale
um lugar onde o rei [Christophe] vivia e não há a gen lò.
lugar onde o rei viveu que não tenha ouro. Sempre
me disseram que ali havia ouro.

Os trabalhos continuaram nos anos seguintes, particularmente no período das férias do


meio do ano, quando acadêmicos estadunidenses costumam organizar suas viagens à campo.
Quando perguntei a esse amigo se as pessoas de Milot ainda desconfiavam que os arqueólogos
buscavam ouro, ele, que passou a trabalhar nas escavações nos períodos em que o grupo vinha a
Milot, disse que sim, “ainda dizem que os brancos estão em busca do ouro. Isso ainda é assunto.
Eu mesmo, eu pensava isso antes de trabalhar com eles. Mas depois que eu vi que eles começaram
a se interessar por pequenos ossos e pedaços de garrafas, passei a entender que não era ouro”53.
“Contudo”, completou ele, “isso não quer dizer que se eles encontrarem [ouro], que vão deixá-lo
ali”54. Tais desconfianças e rumores revelam uma atenção particular ao Palácio e à Cidadela e que

52
Ver por exemplo, “Haiti: Mining for economic growth”, The World Bank, 25 de julho de 2013, disponível em:
http://www.worldbank.org/en/news/feature/2013/07/25/haiti-mining-for-economic-growth (última consulta em
16/03/18).
53
Yo toujou di blan ap chèche lò. Sa toujou ap pale. Mwen menm m te panse sa avan m te travay ak yo. Men depi m
te wè ke yo komanse pran ti zo, mòso boutèy, m vin wè ke se pa lò.
54
Men sa pa vle di ke si yo jwenn yo ap kite y.
70

tais lugares, por sua vez, povoam um imaginário pautado por suspeitas com relação ao que é
exterior e por noções de riqueza e de assalto.

Sentar, conversar, flanar


De fato, muito se discute sobre esses monumentos e sobre a história dos ancestrais em
rodas de conversa que acontecem em escolas, em centros comunitários (como o Lakou Lakay) ou
em mercados, bases (baz)55, praças, bares e ruas ou mesmo nos terreiros das casas. Tais dinâmicas
coletivas formam um gênero narrativo bastante popular no Caribe e servem à produção e
transmissão de conhecimento e informação, muitas vezes lançando mão de alegorias, rumores e
analogias (Derby, 2014). Similares a um jogo, as rodas de conversa em sua forma mais elaborada,
localmente conhecidas como chita pale (“sentar-conversar”) ou tire kont (“lançar um conto”), são
iniciadas por um narrador (mèt kont) por meio da indagação “Krik?”, que é replicada pelos
ouvintes com um animado “Krak!”. A partir daí, passa-se então à narração, que conta, por sua vez,
com a intensa e vivaz participação dos presentes através de expressões de espanto, de risadas e de
repetições de trechos da história em ecos coletivos56.
Ao lado das chita pale estão outras formas de interação com a história, com os monumentos
e com os ancestrais, como a caminhada anual à Cidadela, que ocorre durante a semana de Páscoa
e é popularmente conhecida como a “Festa da Cidadela” (Fèt Sitadèl). Não raro, em conversas
informais ou em algum momento de uma entrevista, com moradores rurais e com pessoas da

55
Bases (baz) são coletivos políticos locais e regionais que promovem eventos diversos (como festividades de fim de
ano e outras celebrações), assumindo um papel importante na constituição de formas associativas, na organização de
manifestações e na resolução ou promoção de contendas com outras esferas e grupos políticos, como a municipalidade,
representantes locais, outras bases etc. Para uma discussão sobre a história dessas formas associativas e alguns
exemplos recentes, com enfoque particular em Porto-Príncipe, pode-se consultar James (2010); Braum (2014);
Kivland (2014) e Neiburg (2017)
56
Tais contos foram objeto de coleção de intelectuais haitianos ao menos desde o princípio do século XX. Georges
Sylvain (1929 [1901]) publicou, em 1901, o que é possivelmente o primeiro volume editado de histórias populares, as
quais ele identifica como variações das célebres fábulas de La Fontaine. Empreitada similar foi levada a cabo por sua
filha, Suzanne Comhaire-Sylvain (1938), antropóloga que fora aluna de Bronislaw Malinowski, e, mais recentemente,
por Liliane Nérette Louis (1999). Sobre Comhaire-Sylvain e seu trabalho como folclorista e antropóloga, ver o artigo
de Gyssels (2005). Recuperando esta tradição, mas em um contexto de diáspora, estão o livro de contos da romancista
Edwidge Danticat (2015) e a obra Ti dife boule sou istwa Ayiti, escrito por Michel-Rolph Trouillot (2012), e
considerado o primeiro livro de história escrito em crioulo haitiano. A obra é marcada pelo uso de provérbios, de
canções do vodu e por marcas de tradições orais populares combinados a interpretações marxistas sobre a história
haitiana. O peso desse livro ultrapassou fronteiras, pois se contrapunha exatamente aos acadêmicos que afirmavam,
na época, a incapacidade das línguas crioulas em formular abstrações e conteúdos científicos complexos.
71

cidade, perguntavam-me se eu já havia feito o caminho até o forte: “Eske ou te monte Sitadèl
deja?”. Ter visitado Sans Souci e a Cidadela é motivo de orgulho (fyète), pois estes locais são
parte de uma paisagem simbólica que interpela e interage com pessoas comuns reafirmando a
existência e o valor da nação, dos antepassados e dos seus feitos, inclusive a própria Revolução
Haitiana. Por isso, realizar a peregrinação é encarado como algo formativo, um ritual de passagem
entre uma condição de desconhecimento do passado para outra de conhecimento e participação em
uma comunidade política ligada aos ancestrais, processo que pressupõe a conclusão de um longo
e íngreme trajeto de cerca de duas horas, alcançando 900m de altitude até o topo da montanha.
Flanar (flane), e outras variações como caminhar (mache), virar/circular (vire) ou, mais
especificamente para o caso aqui em questão, subir (monte) são parte de uma cultura do andar que
assume uma dimensão experiencial comparável à poética da flânerie nas cidades modernas (Buck-
Morss, 1986). Mais do que isso, essa cultura do andar se realiza como um atributo de uma “estética
da tranquilidade” (aesthetics of the cool), definida no clássico ensaio de Robert Farris Thompson
(1973) como “uma motivação profunda e complexa, conscientemente artística, de um entrelaçar
de elementos entre seriedade e prazer, responsabilidade e brincadeira” (p. 41). Algo comum a
muitas culturas africanas e afro-americanas, esse valor a um só tempo estético e moral, opera na
produção de uma compostura individual que, mesmo sob pressão, dá lugar a um “balanço
transcendental” e se realiza em diversas dimensões da vida social, das artes às técnicas corporais
(idem). No contexto aqui tratado, isso é particularmente observado nas variadas práticas de flanar,
que atestam, com efeito, um valor central da mobilidade e da liberdade, tanto estético quanto
moral, pois as pessoas que flanam são livres, compostas, maduras e autônomas.
Termos e expressões recorrentemente associados ao flanar, como “prann plèzi”
(aproveitar, desfrutar), endjoy (do inglês, “enjoy”) e “brase lavil” (tomar a cidade para si, lit. “nos
braços”), são comumente empregadas por adolescentes, homens ou mulheres, e são
demonstrativos do caráter afetivo e sensorial dessa mobilidade que, similar ao “gallerying” ou
“playing yourself” (ostentar-se, jactar-se, exibir-se, interpretar-se), em Trinidad, envolve modos
de se portar, de falar e de dispor de bens e coisas entendidos não só como signos, mas como parte
constitutiva da pessoa e de sua autonomia (Miller, 2013; Samantha Allahar, comunicação pessoal,
Havana, out. 2017; Keith McNeal, comunicação pessoal, Houston, nov. 2017). Por essa razão, tais
práticas são, como nota o antropólogo Daniel Miller (2013), menos representativas de uma busca
por acumulação ou de sua evidência do que a expressão da autonomia e do valor da transitoriedade
72

(pp. 25-26). Além disso, particularmente no caso dos homens, um gwo flannè (grande flâneur) é
alguém conhecido por suas habilidades de flerte e de conquista e que exacerba os traços de sua
autonomia e de sua masculinidade por meio do estilo das roupas, de sua fala e do seu modo de
andar57.
Certamente, dispor dessa liberdade envolve ter recursos, tempo e dinheiro – fatores
condicionantes para a realização da subida até a Cidadela. No fim de semana anterior à Festa da
Cidadela, em 2012, eu e Gui, o filho do meio do casal André, com quem eu morava em Samson,
fomos ao Cabo comprar sapatos novos para a subida. A princípio, eu achava que íamos em busca
de algum modelo que fosse confortável e aguentasse bem todo o desgaste das duas horas de subida.
Mas para Gui, eu precisava de um par de sapatos bonitos, afinal era preciso estar sobretudo bem
trajado. A indumentária é, efetivamente, assunto sério entre moradores rurais. No domingo e em
outros dias religiosos ou festivos usam-se roupas feitas por costureiros – a maioria, homens – e
quando não há roupas limpas e passadas, dificilmente a pessoa sai à rua, jovem ou adulto. Isso se
dá não por algum sentimento de vergonha com relação a não ter roupas (o que seria indicativo do

57
A comparação com Trinidad é, mais uma vez, algo a se destacar: “Como fica evidente na descrição das passarelas
locais, o que mais preocupava os trinitários não era a moda, o ato de seguir coletivamente uma tendência, mas o estilo,
a construção individual de uma estética baseada não apenas no que você está vestindo, mas em como você o veste.
Havia um termo, saga boys, para homens que combinavam originalidade no vestir e maneiras de andar e de falar que
nunca estavam longe da clara exibição” (Miller, 2013, p. 25, grifos no original). Em localidades rurais de Milot, por
exemplo, a situação afetiva e conjugal de vizinhos e amigos era sempre um tema nas conversas entre homens. Quando
um jovem estava solteiro ou era tímido demais, falavam que ele não conseguia “falar com mulheres” (li bebe, li pa ka
pale ak fanm). Isso tinha implicações diversas, desde o questionamento de sua maturidade (atrelada de modo intenso
à masculinidade) e a exposição à vergonha pública pelo fato de não ter uma companheira até discussões mais sérias
que traziam à tona uma noção corrente de complementariedade de gêneros e de divisão sexual do trabalho, como
quando apontavam para o fato de que, caso se mantivesse solteiro, o jovem continuaria a depender de sua mãe para
vender os produtos de sua colheita nos mercados (sobre esse tema, ver Mintz, 1971 e Bulamah, 2013a, p. 66 e pp. 73-
74). Com relação às mulheres, o tema de serem solteiras não causava grande alarde, mas cabe ressaltar a grande
liberdade que possuíam para flertar e até mesmo visitar algum namorado ou amante em povoados vizinhos ou na
cidade, sobretudo em razão de sua liberdade de movimento exatamente por controlarem as trocas e o comércio entre
o campo e a cidade. Não poucas vezes, por exemplo, em minhas incursões com mulheres aos mercados do Cabo, eu
via algumas delas deixarem sua mercadoria aos cuidados de uma amiga ou vizinha para que fossem a algum encontro
afetivo. Ademais, a ideia de que um homem pudesse “fazer comércio” (fè komès) era, para meus interlocutores, algo
próximo a um tabu, associado a uma sexualidade desviante, como certa vez resumiu um jovem lavrador, “um garoto
que faz comércio é gay” (gason ki fè komès se gason ki masisi). A presença de homens nos mercados se restringe à
venda de eletrônicos e de quinquilharias em geral, mas sobretudo de animais de grande e médio porte (bovinos,
caprinos e porcinos) e, apesar de dividirem o mesmo espaço, não são chamados de mercadores, como no caso das
mulheres, mas, sim, “açougueiros” (bouche). Já a presença de transgêneros em mercados é algo ainda pouco explorado
pela literatura e foi tema do interessante documentário Des hommes et des dieux, de Anne Lescot e Laurence Magloire
(2002).
73

valor da acumulação), mas por uma reserva em não demonstrar descuido com o corpo, o que
implicaria em julgamentos por falta de zelo e até mesmo insultos tácitos ou explícitos de
vagabundo (vagabon). Comparativamente, as roupas do dia a dia são, em sua maioria, compradas
em feiras de segunda mão ou de mercadoras ambulantes e têm origem majoritariamente nas
doações estrangeiras, conhecidas popularmente como pepe58.
Durante todo meu campo, minhas roupas foram sujeitas à apreciação constante de vizinhos
e amigos. O que eu julgava serem roupas confortáveis para um trabalho de campo revelavam, na
verdade, meu desleixo e falta de atenção às ocasiões. Para o dia da Cidadela, era preciso me
esforçar um pouco mais. De fato, é importante ter recursos para se celebrar de modo correto. Isso
ficou claro quando algumas pessoas, jovens e adultas, afirmavam não poder ir à peregrinação
naquele ano, pois ou deviam dinheiro e seria vergonhoso se fossem vistas ou lhes faltava recursos
para comprar roupas novas, um par de tênis ou mesmo alguma bebida ou comida no caminho a
fim de, como afirmavam, desfrutarem plenamente da subida.
Porém, o flanar e o caminhar não se resumem a ações individuais: elas são também práticas
de extremo valor coletivo nas quais jovens, muitas vezes divididos em grupos por gênero e por
idade, combinam previamente de se encontrar em algum local específico e saem a circular pela
cidade ou pelo povoado, andando em duplas e de mãos dadas. Com certa frequência, durante todo
meu tempo vivendo em Milot, amigos e conhecidos passavam em casa no fim do dia e me
convidavam a “flanar” pelas ruas do vilarejo. Interagindo com outros passantes, parávamos de vez
em quando em algum bar ou em frente ao Palácio Sans Souci para conversar e tomar algo. O
principal aqui é estar em movimento, o que define o valor central da mobilidade nesse contexto.
Como veremos, mover-se e colocar as coisas em movimento – por meio de trocas com pessoas,
entre casas e com espíritos – guarda um elemento ordenador do próprio cosmos.
De modo semelhante, na subida à Cidadela, grupos de jovens organizam-se entre vizinhos
e amigos ou em grupos escolares para realizar tal feito. Se a subida se distancia do “flanar” por ter
um rumo específico, ela está aberta a inúmeras interações com as paisagens, os lugares e as
milhares de pessoas que caminham em conjunto. Por tais razões, muitos jovens encaram a subida
como, ao mesmo tempo, uma forma de associação geracional, um indicativo de amadurecimento
e uma performance potencializada de sua liberdade e de sua autonomia em relação à família e aos
seus. Isso se expressa claramente na possibilidade de flanar livremente, de portar objetos, entre

58
Sobre este assunto, cf. o documentário Secondhand (Pepe), de Hanna Rose Shell e Vanessa Bertozzi.
74

tênis, óculos escuros e roupas de sua escolha, de ostentar beleza (bèl e frè) e de conhecer (konnen)
a história fazendo seus próprios caminhos. O uso de celulares e aparelhos fotográficos é algo que
não passa despercebido nesses momentos. Muitos jovens fotografam a caminhada e as ruínas e
fazem autorretratos ou selfies posando em frente aos monumentos. Com isso, produzem seus
próprios registros de lugares e de experiências que são, por sua vez, facilmente difundidos em
telefones móveis, em redes sociais e em aplicativos de comunicação. Nessa produção e difusão de
imagens e de narrativas, a subida assume-se ao mesmo tempo como possibilidade de contato com
a história e, tal como uma prática arquivística, abre-se à criação de arquivos pessoais e coletivos
que dão suporte a novos significados sobre o passado (ver Trouillot, 1995, p. 52).
Sendo assim, a Cidadela e o Palácio Sans Souci são definidos como objetos de orgulho
(fyète), e a subida é percebida enquanto uma forma de “conhecer aquilo que Christophe fez por
nós e o que ele nos deixou”59, como certa vez argumentou Jorab numa conversa sobre heranças.
De fato, a subida à Cidadela é um processo de conhecimento, no qual a experiência da caminhada
possibilita a apreensão de questões sobre o passado, sobre os ancestrais e sobre a própria nação. A
noção de conhecer é algo recorrente dentro desse universo social e delineia lógicas e formas de
transmissão e de apreensão de conteúdos, num amplo e dinâmico regime de saberes. Conhecimento
(konesans) engloba tanto questões ligadas ao passado e aos ancestrais quanto práticas agrícolas,
noções de comércio, além de técnicas e saberes mágicos, também conhecidos como sekre
(segredos). Por essa razão, conhecimentos são extremamente valorizados. Por irem à escola, as
crianças conhecem mais certos assuntos do que adultos; enquanto homens conhecem o uso de
certos instrumentos por trabalharem diariamente no roçado; mulheres conhecem como “fazer preço
ou negociar” (fè pri) ou quando plantar certos tipos de sementes ou mudas em razão de sua
dedicação ao comércio (Joos, 2017; Evangelista, no prelo); feiticeiros (ougan e manbo), por sua
vez, conhecem técnicas e segredos que atraem sorte ou que ocasionam infortúnio (Fiod, no prelo).
Konnen pa fasil é o que se entoa em uma canção popular, enfatizando que conhecer ou saber nunca
é algo simples ou inocente, pois implica necessariamente uma relação de segredo e poder60.

59
Konnen sa Kristòf fè pou nou ak sa li te kite pou nou.
60
Registrei uma versão dessa canção em Choiseuil, no caminho entre o Palácio e a Cidadela, no dia 23 de março de
2016, e a transcrevo aqui: “Diga como faremos para saber// Diga como faremos para saber, senhor// Diga como
faremos para saber, sim// Pedir para saber não é fácil, ô// Como faremos para saber// Perguntamos ao diabo// No
cemitério perguntamos// A criança pode morrer, ah// Será que Deus sabe?// Será que Deus sabe, ô?// Peça para saber//
Saber não é fácil// Saber não é fácil// Como faremos para saber// O Barão sabe// Pergunte no cemitério” (Di kouman
nap fè konnen// Di kouman nap fè konnen, mesye// Di kouman nap fè konnen, ye// Rele konnen pa fasil, o// Kouman
75

Distante de uma repetição invariante de conteúdos e mais próximo a um estímulo à inovação e à


mudança, conhecimento é sempre algo que se busca, podendo circular, ser disputado, reapropriado
ou ressignificado61.
A caminhada permite, então, relembrando a formulação de Jorab referida acima, “conhecer
aquilo que Christophe fez por nós e aquilo que ele nos deixou”. Mais do que isso, a Cidadela e
Sans Souci são consideradas parte de uma “herança que os ancestrais, ao morrerem, deixaram para
nós”62, como completou Jorab, ou mesmo “dádivas do rei Christophe”63, como formulou um velho
senhor, morador de Milot. Essas noções de herança e dádiva dão acesso a sentidos locais da
história e da nação e revelam o peso dos ancestrais nas vidas individuais e nos projetos coletivos
de moradores de Milot. Isto fica evidente em um momento específico do ano, quando a subida
ganha proporções muito maiores, e um cotidiano de interações com os ancestrais e seus legados é
substituído por um adensamento ritual dos movimentos e das presenças em torno das ruínas de
Sans Souci e da Cidadela.

nap fè konnen// Dyab la mande// Nan simityè mande// Timoun yo ka mouri, a// Eske Bondye konnen// Eske Bondye
konnen, yo// Rele Konnen// Konnen pa fasil, o// Kouman nap fè konnen// Bawon mande// Nan simityè mande). Em
uma das várias interpretações possíveis, a canção fala da morte iminente de uma criança e dos que buscam saber quem
a enfeitiçou. Os cantores se perguntam de maneira retórica se Deus o saberia, reafirmando implicitamente a certeza
de que ele está distante desses dramas mundanos – algo recorrente na percepção popular sobre Deus (Bondye). Cabe
então aos diabos (vocábulo que designa também os espíritos) e ao Barão, primeiro morto enterrado em um cemitério
e figura responsável pelo local e pelos mortos que ali estão, responder à questão, mesmo que não seja “fácil saber
quem o matou” – menos pela dificuldade em se revelar tal fato do que pelo peso de saber que o agente daquele ato de
maldade pode ser alguém próximo.
61
Como esclarece Alfred Métraux (1995 [1958], p. 54, grafia do autor), “[é] pelo grau de ‘conhecimento’ que hougan
e mambo diferem entre si”, algo que está associado a essa busca por conhecimento, o que implica em uma série de
buscas e recombinações de técnicas e saberes adquiridos por meio de livros, trocas com outros feiticeiros ou ainda
que pode estar associado a viagens mágicas à Ginen (lê-se “Guiné”) ou a ensinamentos transmitidos por sonhos (nan
dòmi) (Beaubrun, 2009). Sobre a noção de conhecimento no Haiti, ver ainda Apter (2002). Konesans também é
sinônimo de consciência, lucidez e inteligência e está também presente, com alguma variação, em outros contextos
caribenhos. Em Cuba, por exemplo, conocimiento é claramente relacionado à consciência e em rituais em que há
“possessão”, o espírito desloca o conhecimento daquele que está sendo possuído e assume, com isso, o seu corpo. Daí
a origem da expressão utilizada para definir acessos de raiva, “me dio Shangó con conocimiento”, que lança mão do
caráter irascível do orisha afro-cubano e que poderia ser traduzida como “Xangô me possuiu em plena consciência”
(Jacqueline Laguardia Martínez, comunicação pessoal, Havana, outubro de 2017).
62
Sitadèl ak Sansousi se yon eritaj zansèt yo mouri kite pou nou.
63
Don wa Kristòf.
76

Do cotidiano ao movimento
Meus passos juntavam-se à cadência daquela infinidade de pessoas que subia morro acima
seguindo uma trilha de pedra e cimento. Ao redor, roçados, casas, grutas e animais compunham a
paisagem. Sans Souci havia ficado para trás, e a Cidadela ainda não aparecia no horizonte. Um
rapaz colocou-se ao meu lado e improvisou um diálogo ao telefone. Falava alto, com o propósito
de que eu ouvisse: “Olha só, Christophe já se levantou? Avise-o que há um blan chegando, diga a
ele para se preparar”64. Rimos. Gui, que fazia o caminho comigo, atravessou aquela conversa
fictícia e disse: “Ele não é branco. Ele é um irmão de Christophe, assim como nós”65. Alguns
passos acima, uma moça apressada atravessou um grupo de garotos e foi interpelada com um “ei,
você é tão linda quanto a mulher de Christophe”66. Foi assim por boa parte do trajeto. Referências
ao rei e a outros ancestrais eram comuns nos quase 3 km entre Sans Souci e a Cidadela naquele 5
de abril, uma Quinta-feira Santa. A excitação, contudo, já vinha de antes, muitos esperando
ansiosos e se preparando para a peregrinação67.
Começou em finais de março. Uma agitação tomava conta de Milot. Falava-se em milhares
de pessoas que chegariam ao vilarejo na semana da Páscoa. Nessa época do ano é quando ocorre
a “Festa da Cidadela” (Fèt Sitadèl), evento que reúne gente de todo o país e de fora dele, sobretudo
na Quinta e na Sexta-feira Santas (Jedi e Vandredi Sen). Era notável como as pessoas do vilarejo
e dos povoados rurais da região se organizavam com antecedência, esperando ansiosos por esse
evento, divididas entre as que fariam a peregrinação até o forte, as que aproveitariam a quantidade
de visitantes para vender algo ou oferecer algum serviço, como o de guia, e as que tentariam as
duas coisas. Pequenas tendas começavam a aparecer em frente as casas ou em locais estratégicos,
como cruzamentos, estacionamentos de carros e motos ou grandes vias. Bandas e fanfarras
aumentavam o número de ensaios e era possível ouví-las por todo o vilarejo em diferentes horários

64
Gade, eske Kristòf leve? Di li ki gen yon blan ki monte la, di li pou prepare.
65
Li pa blan, se yon frè a Kristòf li ye, tankou nou menm.
66
Gade, ou bèl tankou fanm a Kristòf.
67
Participei da subida ainda outras duas vezes, em 2014 e em 2015. Por opção, centro minha descrição na de 2012,
utilizando o material coletado nas outras datas como suporte para a análise. Durante todo meu tempo em campo, fiz a
caminhada até o forte dezenas de vezes e não só em contextos ritualizados, mas também em dias da semana ou quando
Maurice Etienne recebia algum grupo de turistas. Muitas dessas subidas foram em companhia de amigos e amigas, de
Milot e de outras partes, entre os quais, além de Maurice, Jorab Louis, Winter Schneider, Otávio Callegari, Joanna da
Hora, Renold Laurent, Paul Clammer, Joseph Sony Jean, Flávia Dalmaso, Marc Joseph, Júlia Goyatá, J. Cameron
Monroe, Felipe Evangelista, Xuan Lai Dao e Diego Bertazzoli. É deles minha maior consideração por terem me
acompanhado nesse trajeto e por terem discutido comigo alguns dos temas abordados aqui.
77

do dia. Taptaps, as pequenas camionetes que servem de transporte interurbano, além de ônibus e
de caminhões chegavam desde a semana anterior à festa, alguns com alunos de escolas de cidades
vizinhas ou distantes, outros com parentes ou grupos de vizinhos. Nos letreiros coloridos que
enfeitavam esses veículos, anunciava-se a cidade de origem ou a rota que faziam: L’Artibonite,
St-Raphaël, Plaissance, Port-de-Paix etc. Somavam-se ainda inúmeras pessoas que vinham de fora
do país. Conforme a Quinta-feira Santa se aproximava, o movimento só aumentava, anunciando
uma celebração ainda maior.
Assim como outras pessoas do vilarejo, eu me preparava para a subida à Cidadela. À época,
eu vivia em Samson, um povoado rural não muito longe do burgo. Ali, as pessoas, sobretudo
jovens, dividiam-se em grupos e se organizavam para a subida. Combinávamos o que levaríamos
para comer, onde pararíamos para comprar gelo e a hora que sairíamos. Muitas mães de Samson
demonstravam grande orgulho em verem seus filhos e filhas se preparando para a subida pela
primeira vez. Johnny, um guia turístico de Milot, ao cruzar comigo alguns dias antes da celebração,
aconselhou-me a não subir na quinta-feira. Disse que poderia ser perigoso, pois as pessoas bebiam
e se exaltavam. “Sabe como é, isso tem a ver com os ancestrais”68. Havia um não dito no conselho
de Johnny. Diferente das demais visitas que ocorreriam nos outros dias do ano, na Quinta-feira
Santa, conhecida como “Dia da Cidadela” (Jou Sitadèl), a subida ganhava dimensões rituais, e os
ancestrais adquiriam uma premência ainda maior. Apesar de já falar crioulo, viver ali há um tempo
e ter logrado, com certo custo, ser considerado por alguns um moun Milo, alguém do vilarejo, eu
não deixava de ser um blan (“estrangeiro”). De fato, a subida naquele dia foi muito diferente das
outras tantas vezes em que fiz o caminho, a pé ou de moto, entre o Palácio e o Forte.
Junto a Bal, meu vizinho, e a Gui, Lolit e Mercilourdes, jovens da casa onde eu vivia,
saímos cedo de Samson naquela quinta-feira. Gui já havia amarrado os animais no pasto próximo
à casa, trabalho que fazia todos os dias pela manhã, enquanto eu e Mercilourdes separávamos a
comida em potes. Era madrugada, e o sol ainda não havia despontado. No escuro, percorremos um
caminho que nos era familiar, entre matas e roçados, seguindo rotas que serpenteavam morros até
chegarmos ao centro de Milot. Queríamos começar a subida antes que o sol tornasse a peregrinação
mais difícil. Levávamos também bebidas e, como era dia de festa, todos haviam se preparado com
particular esmero na escolha das vestimentas e dos acessórios, entre os quais óculos de sol, bonés,
mochilas e, no caso de Bal, um brinco de pressão que imitava o piercing que eu levava na orelha.

68
Ou konnen, sa se yon bagay pou zansèt.
78

A postura de todos ali era de uma notável tranquilidade, demonstrada no controle dos gestos e nos
movimentos precisos ao longo do caminho. Chegando em Milot, o vilarejo estava tomado, e nos
juntamos àquela multidão. Pessoas desciam de ônibus e de caminhões, entre famílias, grupos
escolares, grupos ligados a igrejas, excursões de cidades distantes, como Jacmel, além de artistas
e bandas itinerantes, conhecidas como rara ou bann a pye. O amplo pátio localizado em frente à
Igreja Real, antes de se cruzarem os portões do palácio, estava tomado. Entre os visitantes,
mercadoras apregoavam em busca de compradores. Vendiam de tudo: comidas, bebidas, pequenas
lembranças, chapéus e pinturas. A multidão era formada, sobretudo, por jovens.

Imagem 12: Sans Souci, Numa Desroches, ca. 1820. Bibliothèque des Frères d’Instruction Chrètienne (BFIC), Porto-
Príncipe69.

Cruzando os portões, foi possível observar ao fundo a longa escadaria seguida pela fachada
de arcos e janelas que formam o palácio. Nos dias comuns, nas salas e em espaços abertos, pessoas

69
Numa Desroches foi aluno da Escola Real de Milot e um dos pintores mais célebres do reinado. Sua infância é
marcada por uma história trágica. Conta um viajante da época que Christophe, em um acesso de raiva, havia
assassinado Stanilas Desroches por engano. Arrependido, decidiu tomar conta de seus três filhos, dos quais Numa era
o mais velho. Ver La Selve (1881, p. 42-44).
79

se encontram, fazem ensaios de dança, estudam recostadas em alguma das colunas ou jogam
futebol no pátio. A subida, nesses dias normais, quando o parque recebe visitantes em número
reduzido, é feita de modo mais contido e coordenado. No dia da festa, o que predominava era o
movimento, a música, as conversas animadas e as discussões exaltadas. Um antigo morador de
Milot, senhor Altenor Etienne, que havia feito a vida como carpinteiro e agora estava com seus 70
anos, assim justificava a celebração: “Isso é feito para honrar a glória de Christophe” 70. De fato,
nas duas horas de caminhada morro acima, muito se conversa sobre o passado e muitos buscam
conhecer um pouco mais sobre os ancestrais e as heranças. Nesta caminhada, o conhecimento
constrói-se tanto na prática, por meio da experiência e do contato com ruínas e outros legados,
quanto através de formas narrativas que, como as corriqueiras chita pale, colocam em evidência
algo sobre o passado. Um dos temas centrais é a Revolução, exaltando-se o feito épico de figuras
como Christophe, Dessalines, Toussaint e Pétion, que libertaram o país da dominação francesa.
Amiúde, cruzávamos com grupos nos quais alguém mais velho discorria sobre o “tempo de
Christophe” (tan Kristòf), destacando como o “rei civilizador” havia criado escolas, fortes e
hospitais e havia protegido o país de um retorno dos franceses.
Há, com efeito, um fascínio associado a esses lugares e objetos históricos que confere a
eles uma espécie de “encantamento” similar ao que Alfred Gell (1992) notou ao tratar da relação
entre arte e magia. Isso deriva, afirma o antropólogo, das incertezas próprias às técnicas e ao
trabalho envolvidos na produção de objetos de arte: “pintura, escultura, música, poesia, ficção e
por aí em diante” (p. 43), e poderíamos incluir aqui palácios, fortalezas e monumentos. Como
argumenta Gell, “O poder de um objeto de arte resulta dos processos técnicos que ele corporifica
objetivamente: a tecnologia do encantamento está fundamentada no encantamento da tecnologia”
(p. 44, grifos do autor). Esse encantamento é materializado nas construções, que por sua beleza e
imponência despertam fascínio tanto em moradores locais quanto em visitantes estrangeiros, entre
turistas de passagem e especialistas e agentes de patrimonialização. As razões deste encantamento
se aproximam ao mesmo tempo em que parecem se distanciar.
Conforme afirmei algumas páginas acima, o Parque Nacional Histórico é parte da lista de
Patrimônio Mundial da UNESCO. O processo que conferiu tal estatuto à área que abarca Sans
Souci, a Cidadela e outras construções adjacentes se desenrolou ao longo dos anos finais da década
de 1970 e o começo de 1980, tendo como figura principal o arquiteto haitiano Albert Mangonès,

70
Se pou onore glwa a Kristòf la.
80

à época na chefia do recém-criado Instituto de Salvaguarda do Patrimônio Nacional (ISPAN). No


documento que recomenda a inclusão de Sans Souci, da Cidadela e do sítio de Ramiers nessa
classificação, elaborado em 1981, um relator anônimo ligado ao Conselho Internacional de
Monumentos e Sítios (ICOMOS) destaca exatamente o valor indiciário dessas construções que
“representam, para os haitianos, os primeiros monumentos de sua independência”. Falando das
técnicas arquitetônicas empregadas na construção da Cidadela, um edifício “[a] um só tempo obra
militar e manifesto político”, o especialista destaca que a fortaleza “é um dos melhores
testemunhos da arte dos engenheiros militares do começo do século XIX”. Ao tratar de Sans Souci,
o relator continua, exaltando uma suposta inspiração europeia no estilo do Palácio:

Sans Souci, largement ruiné mais en cours de restauration, tire sa bizarre beauté d’un
accord exceptionnel avec le site montagneux, mais aussi du recours à des modèles
architecturaux divers et réputés inconciliables. Les escaliers baroques et les terrasses
classiques, les jardins étagés où passent les souvenirs de Potsdam et de Vienne, les canaux
et les bassins librement inspirés de Versailles donnent à la création du roi mégalomane une
indéfinissable valeur onirique71.

Tal como um expectador diante de uma obra prima, fascinado por não entender como um
objeto como esse pode ser produzido (Gell, 1992, p. 62), o relator anuncia as incongruências e
incertezas técnicas de “modelos arquiteturais diversos e inconciliáveis”, que conferem uma
“bizarra beleza” ao Palácio. Esse fascínio próprio aos objetos de arte assume-se aqui como uma
“tecnologia de encantamento” conferindo àquele sítio “um indefinível valor onírico”.
Se usualmente milosianos e milosianas tratam a Cidadela como a “oitava maravilha do
mundo” (wityèm mèvèy nan mond) e se sentem motivados a falar sobre tais lugares, esse
encantamento também era notável durante a subida no modo como as ruínas e objetos históricos
interpelavam os visitantes. Um canhão na beira da estrada era motivo de uma parada na qual um
guia anunciava aos passantes: “Esse canhão foi deixado aqui pelos escravos de Christophe”72. De

71
Conseil International des monuments et des sites (ICOMOS), Liste du patrimoine mondial, n. 180, maio de 1982,
pp. 1-2, grifos meus. Disponível em: http://whc.unesco.org/fr/list/180/documents/ (acesso 24/04/2018). Para uma
discussão sobre a relação entre Sans Souci, de Henry Christophe, e Sanssouci, de Frederico, o Grande, em Potsdam,
ver Trouillot (1995, cap. 2).
72
Kanon sa se esklav a Kristòf ki te kite l la.
81

fato, as ruínas e outros vestígios materiais do passado, como os objetos encontrados de modo
fortuito na paisagem, são evidências das glórias do Rei Christophe e, metonimicamente, da própria
Revolução Haitiana. Mas essa mesma materialidade que atesta a dimensão irredutível da história
enquanto processo, ou seja, seu valor indiciário, estimula outros questionamentos entre os
moradores de Milot e seus visitantes. Não só durante a subida, mas também conversas cotidianas
sobre o “tempo de Christophe”, uma questão que reaparecia insistentemente – inspirada pela
presença material do Palácio Sans Souci, da Cidadela e de outras ruínas e objetos – era a de como
Christophe havia conseguido construir tais estruturas e manter seu reinado. Como seria possível
erguer essas construções gigantescas, senão forçando pessoas a trabalharem em projetos do
Estado? Nesse ponto, tal como na observação do guia durante a subida, entram em cena outros
ancestrais.
Sobre isso, senhor Alternor tinha outra interessante ponderação. Ao conversarmos sobre a
construção da Fortaleza, ele assim argumentava: “Os escravos somos nós mesmos que trabalharam
sem cessar para construir o forte. Mas não havia estrada que subisse até a montanha. Era a pé, em
sendas rasgadas assim. (...) Era somente com cavalos ou no dorso de burros que chegávamos até
lá”73. A elaboração deste interlocutor mostra que ancestrais também são outros. Diferentes dos
grandes homens (como o rei Christophe), eles foram submetidos ao trabalho forçado ou, mais
especificamente, a um retorno ao cativeiro. Portanto, ao lado do feito heroico da Revolução,
motivo de um orgulho do qual as ruínas são testemunhos, soma-se um passado não-heroico ou
uma dimensão trágica da história que é percebida por muitos como a permanência da escravidão e
as continuidades da plantation nos governos pós-coloniais – algo que se torna presente e recursivo
através do nós da formulação de Altenor Etienne.
De fato, os projetos contemporâneos de patrimonialização das ruínas levados a cabo pelo
Estado e por agências internacionais produzem a história retroativamente, enfatizando generais e
heróis e silenciando o papel de africanos e ancestrais comuns. Ao falarem da Revolução, a
constroem como um objeto de elaboração de elites militares e ignoram as continuidades das
políticas de privação da liberdade que sucederam a emancipação, dando vazão a um “nacionalismo
heroico” que, como bem definiu Célius (2004), se apresenta como um paradoxo ao centrar seu
referencial no valor da liberdade ao mesmo tempo em que legitima uma postura violenta do

73
Esklav se nou menm lan ki te travay pitit a piti pou ede pou fè fò a. Men pa te gen wout vwatwou ki monte. Se a pye,
nan wout dekoupay konsa. (...) Se chwal sanpleman. Bourik chaje pou monte.
82

Estado74. Nesse ponto, talvez a “guerra dentro da guerra”, aquela que colocou em disputa os
conteúdos da liberdade durante as revoltas coloniais e que opunham Christophe ao general Jean
Baptiste Sans Souci, encontrou continuidade para além de sua morte nas fundações do Palácio
(Trouillot, 1995, cap. 2). Lavradoras e lavradores libertos, entre crioulos e africanos, muitas vezes
resistiam às políticas de restrição de mobilidade impostas pelo Estado, estabelecendo comunidades
de escravos fugidos (marrons) e recuperando uma tradição popular de revolta e violência ao
resistirem às investidas de militares e governantes (Plummer, 1991; Gonzalez, 2015; Chochotte,
2017).

74
O tema dos primeiros governos independentes e da continuidade da plantation tem ganhado crescente atenção da
historiografia haitianista, sobretudo após importantes empreitadas que buscaram retirar a Revolução Haitiana do
esquecimento (ou da “impensabilidade”), encarando-a em sua dimensão atlântica (Trouillot, 1995, cap. 3; cf. também
Tomich, 2009). Tradições orais e as formas locais de se conceber e produzir o passado são fundamentais nessas novas
propostas, assim como um crescente interesse pela dimensão pública do ofício de historiador. Para estudos
representativos destes esforços, ver Scott (2017), Dayan (1995), Fischer (2004), Dubois (2012) e Garraway (2012).
Ver também o texto de Lauren Robin Derby (mimeo) sobre os rumores de assalto à Cidadela como um dos motivos
que teriam levado ao massacre de 1937 na fronteira entre o Haiti e a República Dominicana. Sobre o peso de estratégias
políticas e militares de africanos escravizados, que constituíam maioria em São Domingos às vésperas Revolução, ver
o clássico trabalho de John Thornton (1993).
83

Imagem 13: Rei Christophe inspeciona a construção da Citadelle, Jacques-Richard Chéry, ca. 1963, óleo sobre
compensado. Coleção de Astrid e Halvor Jaeger. Fonte: Cosentino (1995, p. 243).

Enquanto herdeiro político e militar de Dessalines, Christophe assumiu uma política de


militarização e de defesa do interior da ilha. Sem uma marinha nacional expressiva, portos e
cidades portuárias do Haiti independente estavam desprotegidos frente a um possível retorno dos
franceses ou uma invasão de outra potência colonial. Em uma carta a Dessalines, datada de 20 de
março de 1805, Christophe afirma que “a guerra que nós fizemos contra os franceses é uma guerra
eterna, à morte” (citado em H. Trouillot, 1984, p. 51). Ao mesmo tempo, com a divisão do país
entre Norte e Sul e com insurgências acontecendo em diferentes partes da nação, Christophe
também buscava armar-se contra supostas investidas de Alexandre Pétion e de grupos populares
revoltosos. Como demonstra o historiador Hénock Trouillot (1984), o projeto da Cidadela é
anterior à própria morte de Dessalines e tornou-se a principal obsessão de Christophe, envolvendo
uma imensidão de gastos e esforços, entre os quais as riquezas confiscadas de franceses
assassinados ou fugidos e o emprego da mão de obra de lavradoras e lavradores em um sistema
rotativo subordinado a um comando militar (p. 52). Nas precisas palavras do historiador, aquela
era efetivamente uma “época de guerra”, mas uma guerra “contra as manobras dos colonialistas”
e também uma “[g]uerra contra haitianos que, eles também, manobravam contra um novo Estado”
(p. 68). Para H. Trouillot, que buscava reabilitar a figura de Christophe dentro da historiografia
84

haitiana, tal postura se justificava no projeto civilizatório de Christophe, no qual “as massas eram
mais um instrumento do que um elemento de progresso” (p. 63). Para alguns milosianos, como
senhor Altenor Etienne, contudo, os esforços civilizatórios de Christophe implicaram na sujeição
de ancestrais à escravidão. No fim, ao tornar Milot a capital de seu reinado, Christophe levava
para o interior do território não somente a administração política do país, como também os
mecanismos e as estruturas de defesa, consolidando as táticas de resistência empregadas por
escravos fugidos no tempo da colônia. O mawonaj foi elevado, assim, à política de Estado ou,
como Maurice costumava dizer em sua visita guiada à Cidadela, “o forte é o resultado de um
mawonaj organizado”75. Tudo isso às custas do esforço de tantos ancestrais.

O sistema dos ancestrais


Em 1971, em um artigo que colocava em questão o emprego do termo “ancestral” por
antropólogos e antropólogas em contextos africanos, Igor Kopytoff (2012[1971]) destacou os
deslizes etnocêntricos que essa categoria pode ocasionar exatamente por seu emprego corrente nas
línguas ocidentais, mascarando particularidades etnográficas e culturais. Por enfatizarem uma
distinção entre “anciãos” (vivos) e “ancestrais” (mortos), pesquisadores estariam criando um
problema que mesmo linguisticamente não existia, “uma dicotomia onde há um contínuo” (p. 246).
Por não haver uma separação, o que outros a exemplo de Meyer Fortes consideravam como uma
projeção simbólica do sistema social na figura de antepassados mortos é, na verdade, parte integral
de um sistema de relações com os anciãos. Como argumenta Kopytoff (2012[1971]), “[o]
relacionamento com as pessoas mais velhas que estão mortas (ou seja, com os ‘ancestrais’) é visto
como estando no mesmo plano simbólico que o relacionamento com as pessoas mais velhas que
estão vivas – e não secundário a ele ou derivado dele” (p. 245). A contribuição do autor a esse
debate, me parece, vai além de uma proposta radical que se restringiria ao campo da antropologia
africanista. Ao propor um contínuo entre anciãos e ancestrais, o autor aponta para a inexistência
de uma separação ontológica entre velhos e mortos ou entre vivos e ancestrais. O papel jurídico e
político desses seres não seria, por isso, um espelhamento do sistema social no plano simbólico,
mas parte inerente desse sistema.

75
Le fort est issu d’un marronnage organisé.
85

No contexto aqui discutido, o termo ancestral, como tenho enfatizado, é empregado tanto
para falar de parentes mortos como para se referir a figuras heroicas. Esses dois corpos de
ancestrais revelam complementariedades e tensões no próprio conceito local de ancestralidade,
muitas vezes referido como um sistema, o sistèm zansèt (“sistema dos ancestrais”). Para alguns
interlocutores, esses dois conjuntos são compreendidos como “corpos” (kò) distintos: os heróis ou
“pais da nação” (pè), de um lado, e os parentes (fanmi), de outro. Para outros, ambos são fanmi e
formam até mesmo parte de linhagens ascendentes, algo de particular recorrência entre famílias
de elite76. Cabe aqui mais uma menção à fala de senhor Altenor Etienne que, ao mesmo tempo em
que destaca um parentesco por afinidade com Capois “La Mort”, um dos heróis da última batalha
da independência, afirma o feito coletivo da Revolução:

Capois “La Mort” era parente da minha mulher. Kapwa Lamò se fanmi a madanm a m li te ye. Ras
Sua raça era a dos François, que viviam em la Franswa pou Dereyal, nan dezyèm seksyon,
Deroyal, na 12ª sessão [na divisão administrativa Dereyal. Yo tout te nan batay, granpapam te nan
de Cabo Haitiano]. Eles todos estiveram nas batay, papa gran a m ki te nan batay, granpapa
batalhas, meu trisavô, o pai do meu avô esteve nas papam, tout ki te nan batay
batalhas, avô do meu pai, todos eles estiveram nas
batalhas.

Nesse sentido, o caráter heroico é algo partilhado por ancestrais comuns, pois todos lutaram
nas batalhas de independência, logo compartilham também das conquistas por liberdade. Mas se
todos partilhavam desse espírito guerreiro, coube aos generais, aos dignitários e à nobreza militar
se apropriar dos louros das vitórias e tomar a frente na definição dos conteúdos das noções de
liberdade e cidadania que iriam se impor nos novos rumos da nação. Construíram, assim, a história
por meio do silenciamento desses outros ancestrais, tal como Christophe ao sacrificar Jean Baptiste
Sans Souci, em favor de uma narrativa histórica personalista e unívoca.

76
Sobre grupos de elite no Haiti e suas visões sobre o passado, ver Thomaz (2005, especialmente p. 129). Alguns
interlocutores de famílias da elite de Cabo Haitiano reivindicavam para si até mesmo a ascendência de generais
franceses, como Charles Leclerc, irmão de Pauline Bonaparte e cunhado de Napoleão. Essa instigante conexão merece
ser levada em conta, inclusive para se entender dinâmicas de poder envolvendo classe, família e raça no país. Contudo,
isso nos levaria a uma outra linha de análise que opto por deixar de lado ao menos por enquanto. Sobre a polissemia
do termo “raça” no Haiti, ver o importante trabalho de Woodson (1990, pp. 219-265).
86

No momento posterior à Revolução, a maioria das antigas plantations coloniais tornou-se


propriedade do Estado e de militares, ao mesmo tempo em que esforços foram desenvolvidos com
o objetivo de atrelar os camponeses recém-libertos, a maior parte da população, às fazendas estatais
e militares. A fim de garantir o sustento do próprio Estado e de continuar o comércio com as
potências atlânticas, optou-se, particularmente no Norte, por manter a produção em larga escala e
uma das estratégias principais foi a imobilização da mão-de-obra, crucial para o próprio regime de
plantation (Trouillot, 1990, pp. 50-51; Gonzalez, 2012, cap. 2). Isso resultou em um aumento dos
conflitos entre, de um lado, o Estado e o exército e, de outro, camponeses, mercadoras e militares
de baixo escalão que organizavam formas diversas de oposição e resistência, como assaltos
pontuais, fugas às florestas e morros, associativismos, casamentos e a produção de rumores em
detrimento de figuras de governo (ver René, 2014, cap. 2; Gonzalez, 2012, cap. 3). Desse modo,
aquilo que durante o período colonial garantia a ordem por meio da disciplina, do controle
excessivo e da submissão ao trabalho em grandes propriedades encontrou uma continuidade nos
governos pós-coloniais77.
Isso é compreendido localmente como uma dimensão da história nacional na qual as ruínas
de Sans Souci e da Cidadela, ao mesmo tempo em que falam de um passado épico, são o
testemunho material de uma realidade trágica. Entre pobres e moradores rurais, é corrente a
percepção de uma situação de sofrimento e infortúnio como um modo de subjetivação próprio à
sua classe social. Não sem razão, o adjetivo desafortunado (malère) é comumente empregado
como substantivo coletivizante por camponeses e mercadoras ao falarem de si. Essa fraternidade
de sofrimento foi claramente enunciada já na primeira constituição do país livre, na qual Jean-
Jacques Dessalines mobilizou a experiência e o trauma da escravidão como elementos centrais
para a configuração da cidadania e da pertença à nação (ver Sheller, 2012 e René, 2014).
Assim, um outro sistema parece englobar aquele que define as interações com os
ancestrais, a saber: o “sistema haitiano” (sstèm ayisyen) ou “sistema do país” (sistèm peyi a). Não
poucas vezes, em conversas sobre assuntos diversos, de comida a política, reafirmava-se um modo
(fason), um funcionamento (fonksyonman) ou um jeito (jan) específico com o qual as coisas
operam. É o “sistema haitiano” que se distingue de um “sistema estrangeiro” (sistèm blan), e estes
sistemas se encontram na maior parte do tempo incomunicáveis e incompreensíveis entre si. Nessa
ideia de “sistema” estão conhecimentos, lógicas e práticas que operam na produção constante de

77
Ver o já citado trabalho de H. Trouillot (1984) e também, mais recentemente, Hector (2009).
87

semelhanças e diferenças em escalas variadas – ou, para usar uma interessante elaboração de Jorab,
“sistema, nesse sentido, é algo que é diferente”78. O “sistema da magia” (sistèm maji), por exemplo,
é composto por lógicas e técnicas que norteiam a interação com espíritos e com a natureza na busca
por “conhecimentos” de cura ou de redução de infortúnios, mas também com o claro objetivo de
fazer mal a alguém. Daí que formulações como a de “não estar dentro desse sistema” (m pa nan
sistèm sa a) serem comuns em conversas sobre magia. O “sistema ancestral”, por sua vez, funciona
produzindo parentesco e também, como vimos, fundando parte da própria pertença à comunidade
nacional que, distante do “nacionalismo heroico” próprio aos discursos e declarações do Estado
(Célius, 2004), tem uma base moral forjada na experiência e na luta de ancestrais escravizados.
Em uma conversa sobre este assunto, Bal, um jovem lavrador de Samson, e sua mãe, madame
Lima, assim esclarecem:

[Sistema] é algo que está aqui desde o tempo dos [Sistèm] se yon bagay ki la depi otan des esklav.
escravos. Minha avó, meu avô, o avô de minha Grann mwen, granpapa m, gran a manmanm, ou
mãe, minha mãe e mesmo você quando chegou, leve, manmanm leve trape y. (…) Konm yon bagay
todos o encontraram aqui. (...) Como algo natural. natirèl. Sa vle di sa se menm jan ak vodou a. Sa vle
Quer dizer, isso é como o vodu. Ou seja, algo que di yon bagay ou abitye ansanm. (…) Sistèm peyi a.
você está acostumado. (...) É o sistema do país. Depi granmoun ansyen ansyen leve, se konsa yo fè
Desde os velhos, quando os antigos chegaram, foi sistèm sa. (…)Se yon bagay ki nan memwa m, m
assim que fizeram esse sistema. (...) É algo que está kapte nan memwa m. Sa se istwa nou. Sa vle di se
na nossa memória, que eu retive na memória. É a yon bagay ou konnen.(…) E sistèm se yon strateji
nossa história. Quer dizer, é algo que você ke ou itilize. Sa ou te vin jwenn. Manman ou te vin
conhece. (...) E sistema é uma estratégia que você jwenn, granpapa ou te vin jwenn, ou rele sa sistèm.
utiliza. É aquilo que você, que sua mãe e que seu Ou ka di habitid tou. Sa se sistèm peyi a.
avô encontraram. A isso se dá o nome de sistema.
Você também pode se referir a isso como hábitos.
Esse é o sistema do país.

78
"Sistèm, nan sans sa, se yon bagay ki diferan". O sistèm ayisyen parece atravessar essas escalas, englobando os
outros “sistemas locais”, tais como o “sistema da magia” (sistèm maji), o “sistema dos ancestrais” (sistèm zansèt), o
“sistema da cozinha” (sistèm fè manje) e os sistemas que tratam especificamente da relação com animais e plantas,
como o “sistema dos porcos”, por exemplo. Pessoas também possuem cada uma um sistema, entendido como um
temperamento (tanperaman), jeito (fason), ou “modo de funcionamento” (fason yo fonksyone). Sobre outros contextos
em que a ideia nativa de “sistema” é também crucial, ver Godoi (1998); Carneiro (2015) e Schubert (2017).
88

Bal e madame Lima trazem à vista uma dimensão temporal própria aos “sistemas”. A um
só tempo, são os arranjos que estavam lá antes de nós, como algo natural e parte da história, cuja
relação se estabelece por meio do conhecimento e de uma razão prática (estratégia e utilidade),
mas que implicam também em uma dimensão da experiência ou do costume, algo que ao mesmo
tempo posiciona a pessoa e lhe fornece um conjunto de referências historicamente formuladas, o
que se aproxima à noção de tradição esboçada por Scott (2017 [1991]) enquanto um complexo
campo discursivo. Essa conceituação talvez fizesse inveja até mesmo ao mais dedicado dos
estudiosos da “crioulização”, pois resume de modo notável a capacidade criativa de antepassados,
os “antigos [que] chegaram” e “fizeram esse sistema”.

***

A caminhada do Palácio Sans Souci até o Forte da Cidadela é, nesse sentido, não só o
testemunho da glória de Christophe, mas também a experiência sensorial de percorrer e conhecer
o caminho, muitas vezes penoso, feito por antepassados, estabelecendo uma intimidade histórica
com tais figuras e testemunhando aquilo que nos foi deixado como herança (eritaj)79. Eritaj é,
aliás, um dos pilares da consanguinidade, e constitui um conjunto de relações e elementos que
circulam e se refazem ao longo de linhas cognáticas de descendência e que definem uma
coletividade como fanmi (família) ou, como se costuma dizer, “pessoas que pertencem umas às
outras” (moun mwen, lit. “gente minha”, com variação do pronome conforme o caso). Retomando
o que disse anteriormente, em seu sentido mais restrito, fanmi representa um conjunto de pessoas
que vive em uma mesma casa (kay) ou em um conjunto de casas ao redor de um mesmo terreiro
(lakou), algumas sendo parentes consanguíneos, partilhando do mesmo sangue e tendo direitos a
uma mesma terra, e outras se constituindo enquanto tais por diferentes formas de aliança, como a

79
Essa intimidade histórica, constituída na interação com heranças, ancestrais e ruínas – mas também com
formulações oficiais, estátuas e símbolos nacionais – atravessa diferentes escalas, relacionando família e nação,
intimidade e esfera pública. Para aproximações instigantes sobre este tema em contextos diversos como Grécia, o
terceiro império português, México, Argentina e Cuba, cf. Herzfeld (2005); Thomaz (2002); Lomnitz (2001); Neiburg
(1997); Cunha (2010) e Gonçalves (2015).
89

comensalidade, o compadrio e a adoção (cf. Bulamah, 2013a; Dalmaso, 2014)80. Famílias também
interagem cotidianamente com “espíritos herdados” (jany eritaj ou ginen) e dádivas que, por sua
vez, descendem de ancestrais e, por isso, devem ser respeitados, cultuados ou, no vocabulário
local, servidos81. Vale a pena nos debruçarmos aqui um pouco mais sobre a noção de serviço.
Com efeito, o ato de servir (sèvi) ou “fazer um serviço” (fè yon sèvis) tem sido associado
a um conjunto de interações com os espíritos na forma de cerimônias, trocas cotidianas, trocas
mágicas, econômicas e sexuais e em relações dinâmicas que atravessam fronteiras nacionais e
filiações religiosas (Lowenthal, 1978; Brown, 1991; Richman, 2005). Servir implica um amplo
espectro de possibilidades relacionais, transcendentais e mundanas, nas quais espíritos e seres que
vivem na África (Ginen ou Lafrik) demonstram um protagonismo importante em formulações
políticas, temporais e geoespaciais. Em um outro trabalho (Bulamah 2015), argumentei sobre a
centralidade da exigência por parte dos espíritos de que as coisas estivessem sempre em
movimento, circulando, sendo trocadas e, com isso, dando seguimento a uma série de dívidas e
compromissos herdados de antepassados ao mesmo tempo em que novos arranjos eram criados.
Foi no célebre ensaio de Marcel Mauss (2003 [1925]) dedicado às trocas primitivas que encontrei
uma formulação que se aproxima das interações com espíritos no Haiti. Ao falar de espíritos e
deuses, Mauss observa:

Um dos primeiros grupos de seres com os quais os homens tiveram de estabelecer contrato,
e que por definição estavam aí para contratar com eles, eram os espíritos dos mortos e os
deuses. Com efeito, são eles os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo.
Com eles é que era mais fácil e necessário intercambiar e mais perigoso não intercambiar.
Mas, inversamente, com eles era mais fácil e mais seguro intercambiar (p. 206, grifos
meus).

80
Fanmi também pode definir pessoas que vivem em um mesmo povoado ou até mesmo em todo um vilarejo, como
Milot, onde a proximidade relacional implicava que todos ali poderiam ser parentes por consanguinidade, aliança ou
por trocas e interações que produziam parentesco.
81
No norte do Haiti, “espíritos” ou “deidades” ligados ao vodu são diferenciados entre jany e lwa, sendo os primeiros
usualmente associados ao grupo de parentesco e aos “ancestrais”, também chamados de ginen ou zanj, enquanto lwa
se refere, no mais das vezes, a espíritos adquiridos por meio de transações perigosas e ocultas. Possuem, por isso, um
comportamento violento e instável. No Sul e no Oeste do país, esta distinção também se observa, mas concerne a
oposição entre lwa fanmi ou rasin (“espíritos da família” ou “herdados”, lit. “raiz”) e pwen ou lwa achte (“pontos” ou
“espíritos comprados”). Cf., entre outros, Brown, 1991 e Richman, 2005.
90

Essa “necessidade de intercâmbio” e os perigos do não cumprimento dessas obrigações são


particularmente notáveis em Milot. Como os espíritos são parte constitutiva das heranças, as
famílias devem dar conta desses compromissos a cada nova geração por meio de serviços. Servir
assume, com efeito, diversas formas: de cerimônias ou grandes serviços (seremoni; gwo sèvis) em
que ocorrem sacrifícios, oferendas e expiações (manje jany), cantos e músicas de reverência e
invocação, e manifestações coletivas nas quais estes seres “montam seus cavalos” (monte chwal)
e “dançam em suas cabeças” (danse nan tèt a yo), a interações cotidianas, como consultas, libações
e passos de “iniciações individuais” (demach). Como resumiu um interlocutor, é com essas
prestações rituais e também nas trocas cotidianas que os “espíritos ficam contentes” (sa fè jany yo
kontan). Espíritos podem, entre outras coisas, curar pessoas, garantir sorte (chans) em empreitadas
diversas e orientar desafios e escolhas. É evidente que tais compromissos, demandas e prestações
exigem gastos muitas vezes excessivos e, quando não correspondidos, ocasionam uma série de
infortúnios, pois ao mesmo tempo em que podem ser prestativos e generosos, tais seres podem
assumir sua face caprichosa, temperamental e por vezes cruel.
Em Samson, muitas famílias se declaravam pertencentes a igrejas neopentecostais, algo
curiosamente formulado como um ato de caminhar (mache) em tal igreja. Haviam se convertido,
entre diversos motivos, porque queriam escapar das dívidas cósmicas com relação aos espíritos
em busca de algo como um “círculo mágico de proteção” – razão análoga à que Alfred Métraux,
(1995 [1958], pp. 311-317) encontrou já na década de 1940 entre os moradores rurais do sudoeste
do país. Contudo, diferentemente do que Métraux (1995 [1958]) e Melville Herskovits
(2007[1937]) observaram nas décadas de 1930, quando os conhecimentos, as práticas mágicas e
as interações com os espíritos eram de domínio coletivo, há atualmente uma especialização das
funções espirituais e mágicas que, não mais dispersas entre diferentes membros de uma família,
são ensinadas a um número específico de pessoas a cada geração. Isso ocorre a partir de uma
escolha feita pelo principal espírito da família que indica quem deverá começar uma iniciação
tornando-se um ougan ou uma mambo e se encarregando, assim, dos compromissos com esses
seres meta-humanos. Dentro de um cenário de conversão e de avanço do neopentecostalismo e,
por vezes, de demonização dos espíritos, este parece ser um novo arranjo que garante a
continuidade dos compromissos herdados através do parentesco.
No trajeto até o forte, casas, roças e animais compõem a paisagem assim como árvores
imensas, grutas e grandes rochedos. Estes últimos podem servir de abrigo a espíritos, considerados
91

senhores (mèt) daqueles locais e de suas proximidades. Ali, pessoas depositam comida, fazem
libações, deixam flores, acendem velas, tocam tambores, cantam, dançam e fazem sacrifícios em
interações cotidianas e em serviços rituais. Cabe ressaltar, e esse é meu argumento principal com
relação às interações entre humanos e espíritos, que os serviços resultam do imperativo de que as
coisas devem estar sempre circulando, sendo trocadas, mantendo e criando compromissos e
prestações ou, no vocabulário local, condições ou contratos (kondisyon ou kontra). Essas trocas e
os movimentos que lhe são próprios deixam os espíritos contentes e despertam seu poder e sua
generosidade. O cosmos é, por isso, ordenado a partir dessa centralidade do movimento. Nesse
ponto, servir representa também uma dimensão própria a engajamentos práticos, como na forma
reflexiva “servir-se de algo”. De fato – e acredito que aqui esteja algo crucial, mas muitas vezes
ignorado pela literatura – há uma polissemia do verbo servir, cujo emprego não se restringe
unicamente aos momentos rituais de interação com espíritos e outros seres82.
Numa conversa sobre ancestrais, em que discutíamos os monumentos e outros legados,
Jorab fez a seguinte reflexão: “De todo modo, [esses ancestrais] são meus parentes, pois eles não
me conheciam, mas deixaram algo para que eu servisse, ou seja, é uma herança”83. Tal como na
elaboração do senhor Altenor Etienne, Jorab falava sobre os ancestrais distantes que trabalharam
na construção de Sans Souci e que deixaram algo para as gerações seguintes – uma dádiva pela
qual os vivos reconhecem seus ancestrais. O ato de servir, como concebido pelo nosso
interlocutor, engloba tanto a dimensão ritual recorrentemente utilizada para descrever as interações
com espíritos, quanto formas cotidianas de engajamentos e convivência com estes e outros seres.
Servir está, assim, próximo ao polo da dívida, sendo, por isso, parte inseparável da noção de
herança – seja na forma de terras, espíritos, sangue, propriedades, conhecimentos ou quaisquer
outras dádivas – pois há o predomínio de um caráter prático e produtivo que age na base desse
sistema relacional.
Retomando a elaboração de Jorab, para quem a Cidadela e Sans Souci eram heranças
(eritaj) de ancestrais comum, é possível afirmar que, diferente de um projeto nacionalista oficial
que enxerga a nação como um projeto de um grupo heroico específico, o Haiti é popularmente

82
Pode-se consultar Lowenthal (1978) para uma análise clássica dos diferentes estágios de uma “cerimônia” e
Bulamah (2015) para uma discussão sobre o peso e as ambiguidades das relações e demandas dos espíritos herdados
por uma família.
83
Kanmenm, [zansèt yo] se yon fanmi pou mwen, paske yo pa te konèt mwen, men yo kite yon bagay pou nou sèvi, sa
vle di se yon eritaj.
92

percebido como um “país dos ancestrais” (peyi zansèt), frase que ouvi recorrentemente durante
meu tempo em Milot. Sobre isso, senhor Altenor Etienne argumentou ainda que o Haiti, como um
todo, “é uma dádiva dos ancestrais”84, um país que nasceu do feito heroico de uma revolução levada
a cabo por pessoas que não pertenciam àquele local:

Nós mesmos, chamam-nos haitianos, mas nós não Nou menm, yo rele nou ayisyen, menm nou pa
somos haitianos. Somos africanos. Somos ayisyen. Se afriken nou ye. Se afriken nou ye, wi?
africanos, sabe? Foi após a batalha que Dessalines Se apre nan batay Desalinn te fin fè avek kowònèl
travou com o coronel Rochambeau [referência a Rochambeau ake li, li vini ale ake li. Peyi a vinn
Vertières, a última batalha de independência] que bay. Nou afriken. (...) [T]out ras a nou se nan
ele mandou Rochambeau embora. O país então Afrike yo ye. Afriken nou ye. Yo vinn peple, peple,
nasceu. Somos africanos. (...) [T]oda nossa raça peple e yo mete ayisyen.
está na África. Somos africanos. Vieram e
povoaram, povoaram, povoaram e nomearam-se
haitianos.

São Domingos se torna Haiti por meio da guerra contra os franceses e os africanos são,
com isso, renomeados haitianos. Argumento similar foi esboçado por senhor André quando
conversávamos sobre ancestrais. Como ele afirmou, “este país não nos pertence. Nosso país é a
África. Os brancos foram embora e nós o tomamos. Isso é coisa de muito antigamente, sabe? Eles
lutaram nas batalhas, tomaram o país e fizeram a independência. (...) E decidimos ficar aqui. E os
brancos decidiram morar em outro lugar”85. Nesse ponto, o Haiti é o resultado de um esforço de
ancestrais que se apropriaram do território colonial e o transformaram em uma herança.
Isso foi possível a partir da evocação dos espíritos na cerimônia que deu início às guerras
de independência, conhecida como Bwa Kayman (ou Bois Caïman, na grafia usual) e que teve
lugar na região de Cabo Haitiano, em finais do século XVIII. É uma das filhas de senhor Altenor
Etienne, madame Obas, e sua neta, Santya, minhas vizinhas em Milot, quem elaboraram isso de
modo mais notável. Segundo elas, “os ancestrais foram os que trouxeram para cá os grandes

84
Ayiti se yon don zansèt.
85
Peyi sa pa pou nou li ye. Peyi a nou se Lafrike ki ken a nou. Blan yo ale epi nou pran isi a pou nou. Bagay lontan,
wi? Sa vle di yo goumen pou gen batay la. Yo pran isi a, yo gen andepandans. Nou vin dakò nou rete. Epi blan yo
dakò pou yo rete lòt bò.
93

mistérios [‘espíritos’] de locais distantes [lit. ‘do outro lado da água’] e vieram com eles tal como
se estivessem na África”86. Aqui é possível entender de que modo “ancestrais” e “espíritos” se
diferenciam. Como continuam madame Obas e Santya:

Ancestrais não são espíritos. Os ancestrais Zansèt yo pa jany. Se zansèt sila yo ki te rale tankou
trouxeram [os espíritos] da África, de lugares onde an Afrik, kote ki gen gwo mistik sa yo, yo chèche yo
existiam esses grandes seres místicos (...) e fizeram (…) pou Bwa Kayman. Yo te vine ede nou nan
o Bwa Kayman. Eles [os espíritos] vieram nos batay, yo te mete fòs sou yo. Kounye a yo tou rete.
ajudar nas batalhas, nos deram força e agora eles Yo tou rete nan tèt a nou.
ficaram aqui. Ficaram de uma vez por todas,
morando em nossas cabeças

Assim, ao trazerem os espíritos da África e ao estabelecerem com eles um compromisso


ritual, os ancestrais conseguiram vencer as batalhas de independência e fundar o país. Agora,
espíritos coabitam espaços humanos, sobem em suas cabeças e participam ativamente de trocas
rituais e cotidianas.
De feitos heroicos envoltos de orgulho a sofrimentos trágicos e épicos, os sacrifícios que
levaram à Revolução Haitiana, como o Bwa Kayman e as inúmeras batalhas que culminaram na
libertação, constituem uma dádiva imaterial herdada por haitianos e haitianas. O sacrifício aqui
ocupa um lugar central, pois, como identificou o antropólogo Louis Herns Marcelin (2012) ao
tratar das teorias locais da política em um contexto haitiano, “[s]imbólica ou fisicamente, o poder
não se manifesta sem o sacrifício do sangue”87 (p. 260). Em razão disso, deve-se respeito e serviços
aos ancestrais e aos espíritos. Nesse sentido, o nacionalismo, enquanto um pertencimento a uma
comunidade e a um território herdados de ancestrais, assume-se como uma dívida cósmica. Assim,
a ideia de um país que é a “dádiva dos ancestrais” questiona profundamente o poder de um governo
ou de uma elite sobre o território da nação e aponta para os limites da posse individual da terra,

86
Se zansèt sa yo menm ki te rale gwo mistè sa yo, lòt bò dlo, pou yo te vin ak yo tankou an Afrik.
87
As traduções dos trechos de Marcelin (2012) são de autoria compartilhada entre eu, Ana Fiod e Felipe Evangelista.
A tradução do artigo está no prelo e empreguei aqui as referências correspondentes às páginas da versão original do
artigo em inglês.
94

revelando que essas outras agências estão profundamente atreladas ao território e compõem formas
específicas e transcendentais de parentesco e soberania (ver Crosson, 2017)88.
Na literatura antropológica que se debruçou sobre peregrinações, nota-se uma pluralidade
de elementos que compõem essas formas rituais, muitos deles de ordem histórica e outros
constituindo partes integrantes de sistemas de troca entre vizinhos e parentes ou entre humanos,
espíritos e outros seres. Como destaca Yarimar Bonilla (2015), nas marches historiques de
Guadalupe, pessoas percorrem caminhos onde eventos históricos tiveram lugar, criando com isso
formas de engajamento com a paisagem e com a própria história, produzindo um conhecimento
sobre o passado no qual antigas plantations e campos de cana-de-açúcar, tradicionalmente vistos
como signos de uma violência pregressa, são reformulados em espaços de resistência, força e
sustento. Outro tipo de peregrinações são também as folias nas quais, segundo Luzimar Pereira
(2011), no município de Urucuia, no norte de Minas Gerais, grupos de cantadores e tocadores, ou
foliões, percorrem casas, distribuindo e recolhendo bens de natureza diversa e operando mediações
entre santos e pessoas. Particularmente no Haiti, peregrinações religiosas são fenômenos comuns
e fundamentais nas festividades populares por todo o país. Tais percursos, como revelam David
Cosentino (1995), Terry Rey (2005) e, mais recentemente, José Renato Baptista (2012), envolvem
espaços diversos, desde igrejas patronais a cascatas e templos vodu, questionando a fronteira entre
diferentes compromissos religiosos e espirituais e trazendo à tona a agência de espíritos em
momentos rituais.
No caso da peregrinação à Cidadela, o envolvimento com as rotas percorridas por
ancestrais e o contato com as diferentes heranças produzem aproximações entre passado e
presente, entre antepassados e vivos, e entre pessoa, família e nação. Para muitos, a razão da
Quinta-feira Santa ser o dia da “Festa da Cidadela” explica-se pelo fato de ter sido o dia de folga

88
Como afirmei anteriormente, espaços e locais de culto, entre os quais cavernas, grutas e árvores, possuem um senhor
(mèt), o que torna tais lugares impossíveis de serem alienados, pois sanções mágicas podem recair sobre aqueles que
atentarem contra essas regras. Uma história que ouvi com certa recorrência em Milot era a de que Christophe tinha a
intenção de construir o forte no alto da primeira montanha que faz o contorno do vilarejo, logo atrás do Palácio.
Conhecida como Bonnet-à-l’êvéque, Christophe teria subido até ali e ordenado que preparassem o terreno cortando
todas as árvores da montanha. Contudo, no dia seguinte, as árvores estavam todas de pé outra vez. Afirmando que
aquele lugar já tinha um senhor, o espírito que ali residia disse a Christophe que ele poderia buscar outro local,
sugerindo a montanha La Ferrière. Ainda sobre o tema da morada de espíritos em locais específicos e sua relação com
o parentesco, a história e diferentes forças, ver o caso analisado por Marcelo Mello numa região costeira da Guiana
Inglesa. Para um exemplo de sanções que recaíram sobre uma família após cortarem uma árvore que era morada de
um espírito, ver Bulamah (2015).
95

fixo garantido por Henry Christophe aos que trabalhavam no forte, já que a eles não era dado o
direito de retorno às suas casas enquanto a construção não tivesse chegado ao fim. “Após a morte
de Christophe”, observa senhor Enòs, que trabalhava nas escavações de Sans Souci, “as pessoas
continuaram a vir na Quinta-feira Santa. Isso ficou na história”89. O dia da Cidadela servia, assim,
a que parentes dos trabalhadores fizessem o caminho até o forte e celebrassem juntos esse
reencontro. Percorrer esse caminho é, por conseguinte, repetir o feito de tantos outros antes de si,
relembrando não só a glória de Christophe, mas o esforço e o sofrimento de tantos ancestrais
comuns.

***

Chegávamos, então, ao que denominam de segundo estacionamento. Dali em diante, as


motos e os carros já não podem seguir e o resto do caminho só pode ser feito a pé ou no dorso de
animais. Como no pátio diante da Igreja, todo aquele espaço estava tomado por mercadoras
vendendo comidas, bebidas, lembranças e acessórios. Já víamos grupos de pessoas que
começavam a descer, possivelmente porque subiram mais cedo ou mesmo na noite anterior. Nessa
circulação intensa, pessoas sobem e descem cantando, embalados por rum, vinho, cerveja ou
aguardente (kleren). A maioria são jovens entre 10 e 30 anos, mas há também pessoas mais velhas.
Há ainda muitos casais fazendo o percurso juntos. De fato, nos dias anteriores, a questão que
preocupava os jovens de Samson era se teriam tempo de encontrar uma companhia para a subida.
O caminho a partir do segundo estacionamento fica mais íngreme e rochoso. Ao longe, a Cidadela
começa a se fazer ver no alto de um morro. Seguimos o caminho após uma rápida pausa para
alguma bebida e, por fim, chegamos à fortaleza. Os elevados muros e as baterias militares dão a
impressão do imenso trabalho empregado ali e das complexas técnicas que o fazem ainda estar de
pé. Contudo, uma rachadura na parte frontal deixa ver uma fragilidade naquele imponente edifício.
Mais mercadoras se distribuíam pelo entorno em barracas improvisadas. Algumas estavam ali
desde o começo da semana e ali mesmo dormiam, aproveitando o intenso fluxo de visitantes. Na
parte traseira, onde policiais controlavam a entrada, havia canhões e balas espalhados. Alguns se
aventuravam e seguiam até o Palácio de Ramiers, localizado em um morro na parte anterior da

89
Apre lamò Kristòf, moun yo te kontinye vini nan Jedi Sen. Sa vin rete nan istwa.
96

Cidadela, separados por algo em torno de 30 min de caminhada. Outros esperavam sua vez para
visitar o interior da fortaleza.

Imagem 14: Citadelle alguns metros depois do “segundo estacionamento”. Foto do autor, Milot, maio de 2018.

Chegada a nossa vez, cansados, tínhamos ainda energia para percorrer os cômodos, alguns
úmidos e escuros, onde despontava um líquen cor de laranja. Bandas de rara animavam os
presentes. No pátio superior, tínhamos uma vasta dimensão de toda a Planície do Norte onde, ao
fundo, era possível ver a cidade do Cabo e a imensa baía que a circunda. Sentamos em um dos
canhões e começamos a comer as frutas e o inhame cozidos que havíamos trazido. O lugar é
labiríntico e suas divisões são extremamente funcionais. Entre cozinhas, casernas, salões de festa
e uma casa de pólvora, havia ainda um complexo sistema de coleta de água que, como afirmou um
guia, serviria para armazenar água suficiente para dois meses caso houvesse um cerco à fortaleza.
Mas isso não era tudo. Entre os visitantes, alguns se dirigiam a um dos cômodos onde há um
imenso rochedo em continuidade quase natural com a montanha que dá sustentação à Cidadela.
Ali, acendiam velas, faziam libações, deixavam comida, cigarros e faziam pedidos e orações.
Como me contou Gui, aquele é um altar (badji) dedicado a Santiago Maior. De fato, a peregrinação
97

é também uma celebração em homenagem a esse espírito, conhecido localmente como Senjak
Majè ou Ogou Feray, e associado aos metais, à guerra e à política. No sudeste, ele é referido como
Papa Ogou (“Pai Ogou”) e, no norte, como Parenn Ogou (“Padrinho Ogou”). Esses dois epítetos
evidenciam-no como um parente masculino e hierarquicamente superior, figura de grande respeito
e poder, colocando em destaque também o papel que exerceu na fundação do país. Com efeito,
Ogou é considerado o patrono da Revolução Haitiana. No alto da Cidadela, ele era também
venerado e a peregrinação servia como forma de prestar-lhe a devida homenagem90.

90
Sobre Senjak e Ogou, consultar Cosentino (1995), Brown (1997) e Rey (2005). Como discute Dayan (1995, p. 29-
38), após sua violenta morte, Jean-Jacques Dessalines tornou-se ele próprio um lwa de grande respeito e poder,
conhecido como Ogou Desalin, um lwa kreyòl (“espírito crioulo”) carregado de contradições, cujo poder se associa à
terra, ao sacrifício e ao Haiti. Cosentino faz outra observação, localizando Senjak como um ancestral mítico dos
generais da Revolução: “Senjak é Ogou, irmão mais velho de uma linhagem militar ampla o suficiente para incluir os
heróis fundadores da história haitiana: Dessalines, Louverture, Christophe” (p. 246, grifo do autor).
98

Imagem 15: Saint Jacques, litofotografia sobre papel, Coleção de Michel Leiris, ca. 1948, Museu do Quai Branly.

Com isso, é possível antever que, nessa caminhada, uma diversidade de narrativas e
performances constitui uma poética da história que se abre a recombinações entre espaços e tempos
distintos. A isso, Mikhail Bakhtin (1981) chamou cronótopo, uma “categoria formalmente
constitutiva da literatura”, mas que se expressa também “em outras áreas da cultura” (p. 84). A
presença de ancestrais e espíritos no percurso e no interior do forte, além da própria materialidade
das construções, trazem consigo a expressão de um tempo que se adensa e “ganha corpo” (numa
referência direta a experiências do passado) e de um espaço que se torna “carregado e sensível aos
movimentos do tempo, do enredo e da história” (especificamente no âmbito performático e
sensorial da caminhada) (idem). Com isso, um espaço-tempo ancestral e cósmico se atualiza e
enche o presente de sentido e possibilidade.
99

O forte é, por essa razão, um lugar de peregrinação dentro de uma ampla paisagem ritual
constituída por cavernas, árvores, igrejas, ruínas e templos, nos quais festas e serviços são
organizados em homenagem a diferentes espíritos e deidades e onde coisas são colocadas em
circulação, pessoas fazem pedidos, oferecem comida aos espíritos e reativam compromissos e
laços de reciprocidades. Entre estes lugares de importância ritual estão o Forte Picolet, antiga
fortificação francesa que protege a entrada da baía do Cabo, a Porta de Santiago (Lapòt Senjak),
templo localizado nos arredores da Cidadela, e a própria Igreja Real de Milot91. Estas festividades
distribuem-se em um calendário anual que, particularmente no Norte e no Nordeste do país, se
concentra entre os meses de maio e agosto, quando ocorrem as principais festas patronais da região,
conhecidas como fèt chanpèt (“festas campestres”), nas quais pessoas circulam de um local a outro
em “peregrinações místicas” (pelerinaj mystik), respondendo a compromissos e promessas e
estabelecendo novos contratos ou condições (kontra ou kondisyon)92. Nesse sentido, a caminhada
à fortaleza se estabelece como um “grande serviço”, um ritual amplo e formativo no qual aqueles
e aquelas que participam da caminhada se encontram com ancestrais, heranças e espíritos, reatam
seus vínculos e não só entram em contato com o passado mas, por meio dessa experiência de
conhecimento e movimento, constituem-se enquanto pessoas, sujeitos e agentes da história e da
nação.

As ruínas circulares
“Nós sofremos, nos tornamos brutos e, como gado ao chicote, nós obedecemos. Por quê?
Pois, senhor, nós não temos orgulho algum! E nós não temos orgulho algum, pois nada temos a
relembrar”. Com essas palavras, Henry Christophe inicia a descrição de seus feitos enquanto rei
ao almirante inglês Sir Home Riggs Popham no romance histórico do escritor estadunidense John
Vandercook (1928)93. O diálogo segue com Christophe tomando a palavra e dizendo,

91
Para uma discussão sobre o Forte Picolet e sua relação com a história do Haiti e os usos do passado, ver Le Glaunec
(2014). Sobre a Porta de Santiago, localizada na cidade vizinha de Pleine du Nord, ver Cosentino (1995).
92
As quatro principais “festas campestres” são a de Trou du Nord (24 de junho, padroeiro: São João Batista), Pleine
du Nord (23 e 24 de julho, São Tiago Maior) Limonade (25 e 26 de julho, Santa Ana), Bord de Mer Limonade (5 e 6
de setembro, Santa Filomena). Nessas datas, as duas grandes bandas do Norte, Tropicana e Septentrional, fazem
concertos pelas cidades, juntando pessoas de todas as classes e grupos sociais.
93
Sobre Popham e a aproximação de Christophe com os britânicos, ver a coleção de correspondências do rei com o
abolicionista Thomas Clarkson organizada por Griggs e Prator (1952, p. 53 et passim).
100

Ouça! É um tambor, Sir Home. Em algum lugar meu povo está dançando. Isso é quase tudo
o que temos. O tambor, a risada e o amor um pelo outro e o nosso quinhão de coragem.
Mas não temos nada que os homens brancos possam compreender. Vocês desprezam
nossos sonhos e matam as cobras e quebram os pequenos bastões que vocês pensam serem
deuses. Talvez, se tivéssemos algo que pudéssemos lhes mostrar, se tivéssemos algo que
pudéssemos mostrar a nós mesmos, vocês nos respeitariam e nós talvez respeitássemos a
nós mesmos. Se tivéssemos os nomes de nossos grandes homens! Se pudéssemos estender
a mão e tocar (...) coisas que fizemos, monumentos e torres e palácios, talvez achássemos
nossa força, senhores. Enquanto eu viver, tentarei construir esse orgulho de que
necessitamos, e construir em termos que tanto os homens brancos quanto os negros possam
entender! Eu penso no futuro, senhor, não no agora. Eu ensinarei o orgulho mesmo que
meus ensinamentos quebrem as costas de todas as pessoas do meu reino! (pp. 145-146).

Ouvi este diálogo pela primeira vez numa tarde de janeiro, em 2016, quando conversava
com Maurice Etienne sobre Christophe. Ele conhecia o trecho de cor e, como de costume,
reproduziu as entonações e a postura de um Christophe por ele imaginado. É provável que esse
diálogo tenha sido inventado pelo próprio autor do romance. Como ele mesmo admite na
introdução, apesar de incluir uma bibliografia especializada ao fim do livro, aquele não é um
“trabalho de referência” (Vandercook 1928, p. vii)94. Para Maurice, contudo, aquele era um
Christophe possível. Um déspota que, com grandes ambições e um punho de ferro, levou a frente
um projeto civilizador e fundou as bases do que Maurice reconhece como um “ideal
christopheano”, centrado na educação pública, na valorização da história e no esforço em deixar
um legado. Cidadela e Sans Souci são faróis desse ideal95.
Naquela manhã do dia 5 de abril de 2012, chegávamos ao fim da peregrinação. Já no
imenso pátio da Cidadela, onde as montanhas do entorno parecem pequenas perto do monumento

94
A obra é reconhecida pelo historiador haitiano Marc Péan (1977) como a que traz “como em nenhum outro lugar”
as melhores reproduções das visões de Christophe (p. 11). O trecho parcialmente transcrito aqui foi reproduzido por
Péan e foi dali que Maurice o aprendeu, assim como outras pessoas que encontrei durante meu trabalho de campo e
que também sabiam a passagem de cor.
95
Numa carta ao abolicionista inglês Thomas Clarkson, datada de 5 de fevereiro de 1816 e escrita no Palácio Sans
Souci, o rei destaca o que entendia como o “primeiro compromisso dos soberanos”: a educação e a instrução públicas.
Para tanto, Christophe afirmava uma preocupação com o futuro e com o que deixava registrado sobre si e sobre o seu
governo: “eu tenho diante dos olhos o registro da história e a aprovação da posteridade que tanto desejo” (Griggs &
Prator 1952, p. 91-92).
101

que quase toca o céu, o que atraía a atenção de todos era a pilha de argamassa que seria utilizada
para finalizar a construção do forte. Ali, naquele imenso bloco cinzento, Christophe teria sido
sepultado. Após a revolta de seus súditos e da escolha de uma morte soberana, o corpo do monarca
foi possivelmente trazido de Sans Souci à Cidadela, na noite do dia 8 de outubro de 1820. Quase
duzentos anos depois, ao fim da longa caminhada, Gui, Lolit, Mercilourdes e Bal, junto a tantas
outras pessoas, ainda admiram e tocam o túmulo do rei, velado por um rochedo que contém os
dizeres do arquiteto Albert Mangonès, responsável pela criação do Parque Histórico Nacional, em
1978: “Hoje, a poeira impalpável dos restos trágicos do monarca desaparecido toca de modo
imperceptível esses muros”. Mas é ali, também, continua o arquiteto, “que as filhas e os filhos da
terra do Haiti vêm se recolher em busca de uma mensagem de unidade histórica do povo e da
escolha de um destino de novas liberdades sempre a conquistar”.

Imagem 16: Multidão no alto da Citadelle I. Ao centro, a pilha de argamassa que serve de tumulo ao Rei Christophe. Foto
do autor, Milot, abril de 2012.
102

Imagem 17: Multidão no alto da Citadelle II. Foto do autor, abril de 2012.

O desejo de Christophe, o “rei construtor”, talvez tenha, de fato, se concretizado. As


histórias de seu reino e a de seu legado constituem registros irredutíveis do passado. Como disse
senhor Altenor, a Cidadela “é uma pedra que, ao ter sido colocada, jamais poderá ser apagada”.
Mas o que resta são ruínas, nas quais as rachaduras nos muros deixam ver imperfeições no
esplendor e no encanto dos tempos passados. O que é motivo de orgulho para muitos que visitam
o forte e o palácio serve também como exemplo das ambiguidades do poder e das possíveis
consequências dos excessos da tirania. Se as pessoas já não vivem mais naqueles lugares, como
relatara Lucius Valsan, pois “o que é de Christophe já não é nosso”, as caminhadas e peregrinações
reconectam pessoas a um “sistema dos ancestrais”, reativando trocas e renovando dádivas e
contratos. Nisso, ao lado de reis e heróis, estão os ancestrais comuns que, contemporâneos aos
vivos, são parentes, tendo deixado heranças partilhadas às quais servimos. A eles está atrelada uma
história da escravidão e um medo do retorno ao cativeiro, elementos que se corporificam em
paisagens e ruínas e que norteiam a vida de pessoas comuns como princípios morais e valores
políticos e existenciais.
Olhar para os ancestrais, seus legados e seus múltiplos protagonismos do ponto de vista
dos moradores rurais e de pessoas comuns permite desviar um pouco a atenção de uma concepção
épica e monumental da história, que tenta construir uma narrativa linear de conexões estáveis entre
103

passado e presente numa justificativa ao poder de um governo sobre o território e às relações de


dominação entre elite e povo, ou entre Estado e nação. Mais do que isso, os ancestrais aparecem
aqui não como agente de feitos e fatos do passado, mas como uma presença ativa e em um contínuo
trabalho de produção da história e de paisagens históricas. Que a história seja modulada no presente
é um truísmo, mas, para retomarmos Trouillot (1995), “[ela] não pertence apenas aos seus
narradores, profissionais ou amadores” (p. 153). Por meio de experiências e práticas de
conhecimento – desde prosaicas rodas de conversa até momentos ritualizados, como os serviços,
as caminhadas e as peregrinações – cria-se uma intimidade histórica que, mais importante do que
o domínio de fatos, possibilita que pessoas comuns, desafortunadas (malère), tomem a história em
suas próprias mãos, desvelem silêncios, registrem seus feitos e os lugares por onde passam e
produzam seus próprios arquivos. Junto a conhecimentos, são reforçados laços de parentesco e
compromissos entre ancestrais, espíritos e vivos. Assim, dimensões de subjetividade, de pertença
e de cidadania adquirem força e se refazem na prática. Através disso, eventos que seriam parte do
passado, como a Revolução, ganham uma dimensão presente e ressurgem no horizonte, inspirando
novos conceitos, esperanças e projetos para o futuro.
104

Capítulo 2: Pode um porco falar?

Mas, dirão vocês, se, para os galos, as coisas são


simples, para os homens, elas são bem mais
complicadas.
Nem tanto.
Aimé Césaire (2000 [1963], p. 14)96.

Imagem 18: Sem título, Charles Saül, ca. 1970. Óleo sobre tela. Coleção de Laura Wagner, gentilmente cedida ao autor.

Em julho de 1978, sanitaristas, veterinários e outros agentes de órgãos internacionais do


México, do Canadá e dos Estados Unidos chegaram à ilha de Espanhola, no Caribe, com o objetivo
de exterminar a população local de porcos, denominados crioulos, controlando, assim, a possível
difusão de uma doença suína de origem africana pelo continente americano. Começaram pela

96
Mais, me direz-vous, si du côté des coqs les choses sont simples, elles sont beaucoup compliquées du côté des
hommes. Pas tellement.
105

República Dominicana, eliminando a totalidade de porcos do país e avançando em direção ao Haiti


num espaço de 15 km fronteira adentro. Contudo, logo alegaram que a medida preventiva havia
sido insuficiente. Em 16 de novembro de 1981, o programa tomou conta de todo o Haiti. O
extermínio de animais contaminados com a finalidade de conter a dispersão de doenças já havia
sido praticado pontualmente em países como Portugal, Espanha, Cuba e Brasil. Porém, aquela
seria a primeira vez que tal prática ganharia a dimensão de estratégia prioritária no combate a
enfermidades animais, sendo aplicada a toda a extensão do território nacional ou, no caso em
questão, a uma ilha inteira. Nessa mesma época, fazendo o caminho inverso, milhares de haitianos
aventuravam-se ao mar em busca de novas possibilidades de vida em outras ilhas do Caribe ou na
América do Norte. Os dois assuntos dividiam as páginas dos principais jornais da região.
Exatos dois anos depois, em novembro de 1983, durante a 10ª Reunião do Comitê de
Coordenação do Projeto de Erradicação da Peste Suína Africana e de Desenvolvimento da Criação
de Porcos (PEPPADEP, na sigla em francês), especialistas de agências como a FAO (Organização
das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), a OEA (Organização dos Estado
Americanos), o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e a USAID (Agência dos
Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), de universidades como a do Estado da
Geórgia, nos Estados Unidos, e funcionários de governo haitianos e estrangeiros celebravam o
sucesso da política de extermínio dos porcos crioulos e discutiam as últimas medidas a serem
tomadas para a efetiva declaração do Haiti como país livre da Peste Suína Africana (PSA). Entre
estas medidas estavam a busca por animais que foram escondidos pelos camponeses, a caça a
porcos ferais que porventura pudessem servir como hospedeiros para o vírus, a introdução de
animais sentinelas para mapear áreas onde a doença ainda poderia estar presente e a refundação
das práticas e dos ambientes de criação para o seguinte repovoamento do país com uma espécie
estrangeira. “O programa no Haiti”, afirmava um entusiasmado Dr. Quentin M. West, do Instituto
Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA-OEA), “servirá como um exemplo para a
resolução de problemas em outros países do hemisfério e os ajudará a progredir”97.
O impacto do massacre nas economias locais foi imenso, algo que, de fato, não foi ignorado
pelos participantes daquela reunião que se estendeu da manhã do dia 14 de novembro de 1983 à
tarde do dia 16. Mas mesmo frente a tais “sacrifícios dolorosos do povo haitiano”, o Haiti seria
recompensado ao ajudar nesse projeto de biossegurança por meio da criação de uma barreira

97
“10th Coordinating Commitee Meeting held at PEPPADEP-Delmas, 14-16 Nov. 1983”, Relatório de reunião, p. 1.
106

sanitária “contra pragas naturais capazes de colocar em perigo economias de todo o hemisfério”98.
O agrônomo e secretário de Estado para o desenvolvimento rural do Haiti, Luckner St-Dic, ao
anunciar o fim da primeira fase do programa – o extermínio dos porcos crioulos – “destacou,
contudo, a importância do pan-americanismo que fez [o país] sacrificar sua economia a fim de
prevenir a difusão de uma praga pelo continente”. Notável também, segundo o agrônomo, era a
“fé do povo haitiano em seu governo ao aceitar tal projeto; ambos, o povo e o governo, mantiveram
suas promessas e são, os dois, guerreiros eméritos”99.

***

Imagem 19: Madame André segurando uma fruta-pão. Foto do autor, Milot (Samson), 2012.

A primeira vez que ouvi falar sobre o massacre dos porcos crioulos foi durante meu
primeiro trabalho de campo no norte do Haiti, em 2012. À época eu vivia no povoado de Samson,
na região de Milot, e enquanto conversávamos sobre animais de criação, madame André, com 42

98
Idem, p. 40.
99
Ibid., p. 1.
107

anos, trouxe à tona a história do massacre. Foi no começo dos anos 1980, me contou ela, quando
um grupo de pessoas chegou ao povoado bradando repetidamente o nome do programa de
erradicação: “Peppadep! Peppadep!”. Ofereciam 40 dólares haitianos pelos porcos maiores e 20
pelos pequenos100. Os criadores, então, entregavam seus porcos aos oficiais que os matavam com
um golpe de bastão ou com a administração de uma injeção e, é importante destacar, retornavam
os animais abatidos aos donos. Ao cabo de alguns meses, espécimes hiperselecionados começaram
a chegar ao país. Pouco adaptados às regiões tropicais e de difícil cuidado, os “porcos brancos”
(kochon blan), como ficaram conhecidos, não tinham os mesmos usos e costumes que os porcos
crioulos. Era todo “um outro sistema”, completou madame André. “Os porcos que temos hoje são
como os brancos, têm essas orelhas longas, são magros, cavam fundo por todos os lados [e] sua
carne não é tão saborosa”101. A partir desse relato, comecei a ir atrás dos vestígios deixados por
esses porcos e dos efeitos de suas ausências, seguindo indicações sobre pessoas de outros povoados
rurais da região que haviam escondido porcos crioulos durante o massacre ou que sabiam sobre
sua história.
O episódio povoa também o imaginário acadêmico sobre o Haiti. De fato, o massacre
constitui um dos maiores dramas de consciência de liberais norte-americanos, sendo muitas vezes
referido como um exemplo das políticas imperialistas dos EUA no Caribe. Porém, talvez por serem
apenas porcos, pouco se sabe sobre esses animais, sua história, suas práticas e seus
comportamentos. Comum aos trabalhos acadêmicos que tratam do massacre está a ênfase no fato
de que os porcos crioulos operavam como “bancos” dentro da economia camponesa, servindo
como reserva de capital para momentos de dificuldade, de cerimônia ou de celebração 102. Poucos
autores vão além dessa evidência. De fato, porcos, como outros seres, convivem cotidianamente

100
Dólares haitianos (HD) são uma unidade monetária fictícia utilizada em transações econômicas cotidianas. Há uma
cotação fixa estabelecida com a outra moeda local, o gourde (HTG), em 5:1. Ambas são frequentemente cotadas com
base no dólar estadunidense e durante meu trabalho de campo, a cotação girou em torno de 1 USD: 50 HTG: 10 HD,
chegando, em 2016, numa proporção de 1: 60: 12. Enquanto o gourde é impresso em papel moeda, o dólar haitiano se
comporta como uma “moeda imaginária” (ver Neiburg, 2016).
101
Se yon lòt sistèm. Kochon sa nou gen jody a se tankou blan, gen zorèy long, yo chèch, yo fouye toupatou. Vyann
yo pa tèlman gou.
102
Na literatura especializada, os que se dedicaram ao tema foram Elizabeth Abbott (1988, pp. 241 e pp. 274-275),
Paul Farmer (1992, pp. 37-41), Jennie Smith (2001, pp. 28-30) e Karen Richman (2005, pp. 49-51). Estes autores e
autoras destacam a persistência desse evento em histórias locais como algo que ocasionou grande sofrimento social,
mas apresentam análises similares que enfatizam uma dimensão estrutural, sem, contudo, levar em conta as
motivações culturais e políticas que pautaram o massacre.
108

com pessoas e tomam parte em projetos humanos, corporificam valores, temporalidades,


significados, compõem ambientes e histórias comuns e carregam consigo sinais e possibilidades
de autonomia ou de sujeição. Na cadeia de eventos que culminou no massacre dos porcos crioulos,
animais, veterinários, refugiados, vírus, saberes culinários, técnicas laboratoriais e práticas de
criação interagiram em diferentes escalas e produziram diferentes efeitos. O encontro desses
agentes e práticas não é incomum ao longo da história, mas sua interação nesse momento e local
específicos nos coloca problemas interessantes. Como esses agentes e noções distintas de
animalidade, de vida e de doença circularam e afetaram uns aos outros? Que tipo de explicação é
possível esboçar para trazer à tona essas conexões, suas motivações e consequências? Ou ainda,
que história é possível contar se olharmos para os porcos?103
A atenção aos porcos pode trazer pistas importantes para pensarmos, de um lado, a gênese
das formas de vida camponesa no Caribe e seu caráter notadamente moderno e, de outro, a própria
constituição do capitalismo enquanto sistema cultural (Mintz 1989; Sahlins 2007; Trouillot, 2003).
A meio caminho entre uma etnografia da história e uma história social dos porcos, este capítulo
pretende discutir o deslocamento continental dessas populações animais e seu papel na
constituição de um espaço de autonomia e de produção que foi crucial para a formação do
campesinato haitiano no pós-Revolução. Para fazer sentido dessa dimensão global da chegada dos
porcos e de seu extermínio, lanço mão de materiais produzidos em diferentes localidades e
momentos, tais como relatos de viagem, pinturas, documentários, etnografias e entrevistas. Meu
argumento é, de saída, também metodológico: se Milot é um local onde vestígios materiais do
passado são matéria de longas conversas e elaborações nativas sobre ruínas, presenças e ancestrais,
a ausência dos porcos é também produtiva, participando ativamente da paisagem histórica local e
se relacionando a discursos e saberes sobre a nação, a modos contemporâneos de expropriação e à
vida dos moradores rurais e sua percepção sobre seu lugar no mundo.

103
De aproximações entre movimentos libertários e animais no século XIX, como no pioneiro trabalho de Nádia
Farage, (2011; entre outros), a animais de criação em contextos camponeses (Andriolli, 2011; Pereira, 2013) e
indígenas (Garcia, 2011; Velden, 2012) passando por diferentes engajamentos entre humanos e plantas (Scaramuzzi,
2016), para citar apenas alguns, há uma crescente literatura dedicada às relações entre humanos, animais, plantas e
fungos questionando a fundo premissas disciplinares antropocêntricas. Além destes trabalhos, o livro de Mitchell
(2012) me ajudou a pensar a própria forma como contar essa história e foi dali que tomei de empréstimo o nome deste
capítulo. Ver ainda os volumes editados das revistas Vibrant (2016), Horizontes Antropológicos (2017) e da Revista
de Antropologia da UFSCar (2015).
109

De porcos e humanos
Em 27 de fevereiro de 1981, alguns meses antes que a política de extermínio dos porcos
alcançasse todo o território nacional, o principal jornal do Haiti, Le Nouvelliste, trouxe uma extensa
notícia sobre os porcos crioulos (denominados kochon kreyòl ou kochon planch), seus usos e as
técnicas locais de criação. Era assunto principal entender os impactos do avanço da doença porcina
de origem africana, que havia sido identificada primeiramente no Vale do Rio Artibonite, na região
central do Haiti, trazida desde o país vizinho, a República Dominicana. O artigo destaca ainda a
falta de medidas pontuais para a contenção da doença que avançava a despeito da tentativa, em
1978, de extermínio dos rebanhos na fronteira. Ao final do texto, há uma rica descrição dos hábitos
alimentares dos porcos e de sua importância econômica para os camponeses: “Um camponês que
compra um porco vê nele, de saída, um elemento de capitalização, daí a expressão frequentemente
utilizada, ‘Guardar dinheiro em um porco’ (Sere lajan nan you cochon)”104.
Essa qualidade de acumulação é recorrente nos relatos sobre os porcos crioulos em Milot.
Vistos como uma sorte de poupança, um retorno rápido poderia ser planejado a partir de uma
alimentação dedicada à engorda ao longo de algumas semanas, conhecida como angrase,
comumente feita por meio de uma dieta concentrada em abacates, como ilustra bem a pintura de
Charles Saül que abre este capítulo. Quando havia a necessidade de se empregar uma grande soma
de dinheiro, prevista ou não, como em despesas escolares, funerárias, matrimoniais ou em caso de
doenças, engordava-se o animal e em algumas semanas era possível vendê-lo, obtendo, assim, um
retorno monetário rápido. Conforme o relato de um antigo morador de Samson, Michelet Delima:
“um porco crioulo, primeiramente, era uma poupança bancária para os desafortunados”. “Era
sobre os porcos”, continua Michelet, “que se assentava a economia da casa”105. Além disso,
dificilmente uma família matava um porco de sua criação para o consumo próprio. O costume era
vendê-lo nos mercados de animais da região ou diretamente para os vizinhos do povoado.
Observações de pesquisadores em outras regiões do país corroboram essa visão. Alfred Métraux
(1951), por exemplo, já na década de 1950, notou o extremo cuidado e a atenção que os
camponeses davam aos animais de criação e o caráter de investimento e poupança que possuíam,

104
Groupe de Recherche pour le Développement (GRD), “Peste porcine africaine, cochons et paysans en Haïti", Le
Nouvelliste, Porto-Príncipe, 27 de fevereiro de 1981. Coleção de periódicos da Bibliothèque Haïtienne des Frères
d’Instruction Chrétienne (BHFIC), Porto Príncipe.
105
Yon kochon kreyòl, premyèman, se yon kane bank a malère li te ye. Se sou kochon lekonomi lakay la te chita.
110

expresso também no emprego recorrente do termo lentere (juro ou interesse) quando criadores se
referiam aos animais e seus filhotes (pp. 94-95). Como destaca o antropólogo:

Os camponeses tendem a vender parte de suas colheitas tanto para diversificar sua dieta
quanto para obter um dinheiro rápido. Há, contudo, um momento em que se percebe que,
apesar das precauções tomadas, eles alcançaram o limite de seus estoques. Neste ponto,
eles vendem seu lêtéré muitas vezes para comprar os mesmos produtos que tinham vendido
alguns meses ou algumas semanas atrás (idem, grifos e grafia do original).

Usualmente, a criação de porcos crioulos exigia muito pouco trabalho humano. Quem nos
traz esse relato é, outra vez, senhor Michelet: para cuidar dos porcos crioulos, “você poderia buscar
um pedaço de madeira e prender em suas cabeças, podia ser um pedaço de madeira ou uma espiga
de milho. Daí, você os largava e eles andavam soltos, andavam e comiam. Vivendo soltos, no
campo, comiam o que encontravam (...), até mesmo dejetos”106. Somava-se a isso os arranjos
estabelecidos entre pessoas para criarem porcos de modo coletivo, respeitando compromissos
familiares e operando em uma economia da dádiva na qual os porcos circulavam entre parentes,
particularmente de padrinhos para afilhados, algo que ainda ocorre e recebe a denominação de
gade (cuidar, vigiar ou tomar conta). Esses arranjos consistem particularmente no cuidado a um
animal específico ou a um conjunto pequeno, normalmente de porcos ou de cabras. A contrapartida
é de que, no momento da reprodução, os filhotes são divididos entre o criador (gadyèn) e o dono
(mèt). Com efeito, uma das primeiras atividades agrícolas confiadas às crianças é criar animais de
pequeno porte, levando-os a pequenos cursos ou fontes d’água e a terrenos de pastagem pela
manhã, onde são amarrados em arbustos ou árvores e deixados ali ao longo do dia. Uma outra
observação feita por Métraux (1951), falando desde o vale do Marbial, no Sudeste do país, é
reveladora dessa dinâmica entre jovens e adultos ou vizinhos entre si:

A razão para essa cessão provisória é geralmente econômica; o locador ou não tem áreas
de pastagem disponíveis ou não tem pessoas o suficiente para cuidarem de seus animais.
Outras vezes, ademais, esta cessão é designada a preencher uma obrigação familiar ou
social; em vez da cabra ou da porca serem “presenteadas” ao afilhado(a), um parente pobre

106
Ou te ka cheche yon bwa pou mete nan tèt a yo ki rele kakan obyen makonn. Kounye a ou lage yo, yo mache
toupatou, ap mache manje. (...) Yo te viv a la kanpay, yo te manje sa yo trouve (…), menm twalèt yo te kon manje.
111

ou outro dependente, a eles(as) lhes são “confiado” o animal, sob o acordo de que os
rebentos serão divididos; este é um presente provavelmente muito mais barato que qualquer
outro e também uma dádiva bastante bem-vinda (p. 185, grifos meus).

Ali, no vale do Marbial, algumas casas chegavam a possuir até 25 porcos, sendo o animal
mais numeroso entre os grupos domésticos que possuíam criações, perdendo apenas para as aves
(pp. 184-188). Note-se ainda, para o caso de Milot, conforme nos conta Michelet, que esses
animais eram cuidados de modo bastante livre e a variedade de hábitos alimentares faziam desses
seres importantes reguladores de biomassa, dando conta dos dejetos de modo a manter uma relação
cíclica de transformação de elementos da natureza e restos oriundos das atividades humanas. Seus
hábitos incluíam também a escavação superficial da terra, revolvendo-a e auxiliando, por
conseguinte, na própria renovação do solo sem colocar em risco as plantações de tubérculos ou
víveres, tão centrais na dieta local. No entanto, essa dinâmica de liberdade na criação implicava
também em um constante medo de que os animais fossem roubados, algo que era evitado trazendo-
os para o pátio das casas ou para os terrenos vizinhos ao fim do dia107.
Tal conjunto de conhecimentos, interações e práticas correspondia a uma ecologia
particular que se definia por formas de relação entre espécies e se relacionava também com as
dinâmicas de vizinhança e parentesco e com formas de acesso e uso da terra. Se os porcos podiam
circular livremente, eles o faziam pois não representavam grandes riscos às plantações de vizinhos
ou outros parentes, tema sempre delicado nos povoados rurais. Em Milot, similar ao que ocorre
em outras partes do país, como discute Sidney Mintz (1962), parcelas e roçados (jaden) são
demarcados com cercas-vivas, normalmente utilizando-se espécies arbustivas e de folhas
espinhosas, como o pengen (Bromelia pinguin ou “caraguatá”, no Brasil) e a rakèt (Euphorbia
lactea, da família das coroas-de-cristo). Esses terrenos são usualmente de tamanho bastante
reduzido e as plantações são feitas em culturas rotativas, normalmente consorciadas, juntando duas

107
Com efeito, o roubo de animais constitui uma espécie de barômetro da política nacional entre os moradores das
sessões rurais de Milot. O “tempo”, termo definidor de um período de governo de cada governante, é julgado como
bom ou ruim de acordo com a frequência com que os animais eram roubados e pela rapidez e eficácia com que o
Estado respondia a tais episódios. Nisso, o “tempo de Duvalier” é muitas vezes caracterizado como um tempo de
relativa segurança e que declina a partir de “Aristide”, quando o roubo de animais passou a ser cada mais comum.
Como nota um morador de Milot, “No tempo Duvalier, as pessoas não podiam fazer o que lhes conviesse. Agora, as
pessoas podem tudo. Você tem um boi, eles vêm e o roubam, dois, três [bois], roubam tudo de uma vez. E você não
pode fazer nada” (Nan tan Divalye moun pa ka fè tout bagay. Kounye a moun ka fè tout bagay. Ou gen yon bèf yo
pran y menm, de, twa, yo pran nan yon sèl kou. Ou pa ka fè anyen).
112

ou mais espécies no que localmente se define como mare pye (lit., amarrar o pé), respeitando o
tipo de solo, a irrigação e a altura do terreno. O desenho dos terrenos em torno de Samson lembrava
um mosaico com diferentes combinações que se distribuíam pela parte mais baixa até o alto dos
morros.
Normalmente, as parcelas em “pés de morro” (anba mòn) são mais férteis e, por isso,
utilizadas para o plantio de banana, milho, feijões, abóbora e inhame. Terras de altitude elevada
(anwo mòn, lit. “no alto do morro”), quando mais secas, são destinadas ao plantio de mandioca ou
como pasto para animais de grande porte. Nas zonas de planície (plenn), cultivam-se alguns tipos
de feijão, mas sobretudo batata-doce e cana-de-açúcar, servindo também de pastagem. Idealmente,
uma família busca diversificar ao máximo suas terras, garantindo assim uma amplitude maior de
espécies de cultivo, obtendo safras diversas o ano todo e dando conta de variações de preços e
possíveis perdas ocasionais de algumas culturas por doença, excesso ou falta de chuva. Ademais,
muitos terrenos possuem árvores esparsas, algumas delas frutíferas, enquanto outros formam
pequenos bosques de onde podem colher frutas variadas ou, em períodos de baixa produção,
utilizar da madeira de algumas espécies, como o carvalho, para produção de pranchas ou de carvão
para a venda108.
Além da delimitação do espaço, as cercas vivas, por terem espinhos, servem para repelir a
entrada ou saída de animais, algo que é, por vezes, insuficiente. Nesses casos, quando animais
adentram o terreno de um vizinho e danificam as plantações, há uma série de medidas a serem
tomadas a fim de se estabelecer a compensação, que varia conforme o estrago e o tamanho do
animal. Foi esse infortúnio que acometeu Bibi, um morador de Samson, em princípios de 2016.

108
Muitos pesquisadores observaram nessa situação de fragmentação geracional da terra uma iminente crise fundiária
no Haiti (ver Bastien, 1951; Métraux, 1995 [1958]; Anglade, 1982). Esse tema é alvo de controvérsias importantes e
revela a persistência de uma narrativa que marginaliza o campesinato haitiano. Em Milot, ao que pude observar, o
corte de árvores é feito sempre em casos extremos, daí a expressão usual para definir árvores deixadas no terreno para
esse fim: denyè jou, literalmente “últimos dias”. De fato, um dos temas correntes entre agrônomos e especialistas
estrangeiros e haitianos com quem conversei é o desmatamento que, julgam, é prática descontrolada entre os
camponeses. Contudo, durante meu trabalho de campo, me chamava a atenção que muitos camponeses se
preocupavam com o replantio de árvores em seus terrenos e que o desmatamento para a produção de pranchas ou
carvão era atividade feita com cautela e planejamento. Como mostra o interessante estudo de Alex Bellande (2015),
o discurso sobre o desmatamento no Haiti é envolto de mistificações (como a cifra mágica dos 4% de mata nativa) e
acaba por ignorar tanto a história da exploração de madeira no Haiti quanto o fato de que a produção de carvão por
camponeses tem como destino as cozinhas das casas urbanas, já que no campo, dá-se preferência ao uso de lenha.
Curioso notar ainda que houve uma mudança no discurso das elites e do Estado com relação aos camponeses, passando
de miseráveis e desafortunados ao longo do século XIX e parte do XX para agentes ativos da crise ambiental, algo
que mereceria uma pesquisa à parte.
113

Um de seus cabritos havia adentrado no milharal de outro morador do povoado, destruindo parte
da plantação. Aquela era a segunda vez que um de seus animais escapava em menos de um mês.
Na primeira, os vizinhos haviam deixado passar, mas, no segundo incidente, como o estrago
causado havia sido grande, os donos do terreno saíram atrás do cabrito e, conforme prescrito,
mataram-no e separam um quarto traseiro para o dono junto com a cabeça e as entranhas.
Ao feito seguiu-se uma discussão pública iniciada assim que Bibi retornou à sua casa de
uma jornada em um roçado no alto do morro. Os donos do milharal insultavam Bibi em voz alta
por ele ter sido irresponsável com seus animais, o que os forçara a matar o bicho para compensar
os estragos. A discussão tinha o objetivo de “fazer Bibi passar vergonha” (fè li wont) ao “entregá-
lo ao povo” (bay li pèp), prática entendida como uma exposição pública que atenta contra o
respeito (respè) da pessoa e de sua casa, comum em discussões sobre dívidas entre mercadoras,
adultérios e outras disputas ou desentendimentos. O respeito é parte fundamental da reputação,
que, por sua vez, é estruturante das moralidades que conectam entre pessoas, casas e demais
coletivos109. Bibi e sua esposa respondiam do pátio de sua casa, também aos gritos, afirmando a
falta de solidariedade dos vizinhos e o exagero da ação, afinal, como reiterava Bibi, “aqui, somos
todos desafortunados”110. Caso fosse um animal de grande porte, como bois ou cavalos, o dono ou
arrendatário do terreno teria o direito de aprisioná-lo e levá-lo ao “chefe da seção rural” (chef
seksyon), autoridade local responsável pela gestão da ordem e dos conflitos, para ser, então,
recompensado pelo criador. Essas disputas e as discussões que daí surgem são pontuais e não
costumam ocasionar grandes rupturas entre casas e famílias. Tal foi o que ocorreu com o caso de
Bibi e seus ofensores111.

109
Sobre esse tema, o antropólogo Peter Wilson (1969) chegou a propor o par “reputação” e “respeitabilidade” como
par central dos sistemas morais das sociedades caribenhas. “Reputação” seria própria a um sistema fechado que
enfatiza a igualdade, a virilidade e as normas de convivência de classes baixas; já “respeitabilidade” estaria atrelada a
um domínio externo que coloca ênfase na hierarquia e é particularmente observado no universo das elites e no que
toca os marcadores de feminilidade. Apesar do valor heurístico que possui, essa polarização exige um esforço
etnográfico importante para que façam sentido frente a uma diversidade de arranjos sociais, valores e categorias que
constituem as sociedades caribenhas.
110
Nou tout malere isit la.
111
Fè wont, “fazer alguém passar vergonha”, é uma expressão corrente, empregada em situações variadas. Ela pode
tanto falar da frustração de alguma expectativa – quando alguém, por exemplo, esperava um presente ou uma ligação
e, ao não ter sua expectativa atendida, pode soltar um “Ou fè m wont” (Você me fez passar vergonha) – até algo mais
sério como atentar publicamente contra a reputação de uma pessoa. Vale ressaltar, nos casos em que as discussões não
se resolvem de prontidão, suspeita-se que a pessoa ofendida poderá ir à casa de um feiticeiro (kay bòkò) com o intuito
de fazer mal àquele com quem se desentendeu ou a alguém de sua família. A fim de evitar que surjam acusações de
114

Voltando aos porcos crioulos, é notável que esses animais não eram somente elementos de
reserva de capital em uma economia doméstica camponesa. Deles também dependia toda uma
ecologia local que os diferenciava dos porcos brancos (kochon blan). Além disso, girava em torno
deles uma culinária específica, algo que configurava, como disse madame André, um outro
sistema. Houve quem tentasse escondê-los com a difusão das notícias sobre os agentes de Estado
que se deslocavam pelo país a fim de exterminar os porcos. Esse foi o caso de Ti Tonton, morador
do povoado de Limbe, na região de Milot, que me contou o seguinte:

Naquela época, os porcos tinham muita carne. Lè sa yo, kochon te kon gen anpil vyann. Yo vin di
Disseram que nos dariam porcos melhores e, por yo ba nou yon lòt kochon ki pi bon e kochon a nou,
isso, mataram os nossos. Os nossos se reproduziam yo te twe yo. E lòt yo te kon peple anpil, men lè yo
muito, mas quando nos deram os dos brancos e te vin bay ken a blan yo di se pou ede nou, li vin pi
disseram que era pra nos ajudar, as coisas ficaram mal. Pa gen vyann nan peyi a.
piores. Não há mais carne no país.

A percepção de que os porcos de antigamente tinham mais carne e mais gordura é bastante comum.
Retomando a conversa com Michelet, ele assim pondera:

Com o porco crioulo se fazia griyo [carne frita]. Kochon kreyòl, li fè griyo. Lè vyann nan sèk, epi
Quando a carne secava, você podia tirar o óleo e kounye a ou kapap tire lwil la pou ka fè nanpòt
preencher uns quantos galões. Quando ele esfriava, galon. Lè li vin frèt, li fè yon mantèg, li kae. Kounye
tornava-se uma manteiga, talhava. Nisso, quando a, lè ou bezwèn manje bannann a ou, epi, bon, ou
você quisesse comer uma banana [frita], bom, você kapab mete moso chofe. Epi, kounye a, ou ap manje
tirava uma parte e a esquentava. Daí você podia bannann ou alèz. Li te itil.
comer sua banana tranquilo. [A banha] era algo
muito útil.

A manteiga de que fala nosso interlocutor era um elemento crucial na transformação de


alimentos, fazendo-os passar do cru ao cozido. À época, óleos vegetais ou industrializados, como
a “manteiga Pilar” (mantèg pila), eram pouco disponíveis ou mesmo inacessíveis para grande parte

feitiçaria, preza-se pela resolução imediata dos conflitos, o que explica, ao menos parcialmente, a facilidade com que
discussões e rusgas entre vizinhos tornam-se facilmente públicas ganhando as ruas de povoados e do vilarejo.
115

dos moradores rurais, conforme me disseram alguns camponeses. Com efeito, como já notara
Claude Lévi-Strauss (2009 [1965]), o ato de cozinhar é uma atividade simbólica que evidencia a
articulação entre natureza e cultura. Nesse ponto, num contexto em que há uma grande atenção
aos temperos e em que é corrente a prática de cozinhar duplamente os alimentos, fervendo-os e
depois fritando-os, a ausência de óleo implica uma série de consequências envolvendo prescrições
sociais, tabus e a própria diferenciação entre animais e humanos.
Como é comum em outras sociedades rurais, em Milot, são as mulheres as responsáveis
pela transformação dos alimentos na cozinha, usualmente localizada dentro do espaço do terreiro
(lakou), mas em um local separado das casas (kay). A cozinha é uma divisão predominantemente
feminina. Não há tabus ou restrições quanto à presença de homens, que podem, casualmente,
cozinhar algo, sobretudo nos períodos de descanso entre um trabalho e outro ou em casas onde as
mulheres estão ausentes em razão das jornadas aos mercados. De todo modo, o preparo mais
elaborado dos alimentos, atividade que pode ser exercida por jovens mulheres, e a sua separação,
função predominante das mulheres mais velhas, são sempre atividades femininas. Segundo a
observação precisa de Karen Richman (2005), “[e]nquanto a mulher que prepara a comida pertence
normalmente a um estatuto menor ou é uma quase-servente, a separadora é uma mulher mais
velha de autoridade inquestionável” (p. 161, grifos no original). As cozinhas são espaços onde
circulam crianças e onde mulheres jovens aprendem técnicas de cozinha e separação com as mais
velhas, além de conversarem sobre assuntos diversos. Ali é o local onde se prepara a comida que
será separada (separe) para os membros de uma casa ou lakou e aquelas porções que irão circular
entre as casas como parte das relações de proximidade e vizinhança entre as casas. Nesse ponto,
fica evidente o papel central das mulheres na produção de laços de parentesco por meio da
alimentação e da troca de alimento, sendo a cozinha um espaço central no estabelecimento e
manutenção de relações de amizade, vizinhança e parentesco112.
Na cozinha, estão dispostos utensílios como panelas, facas e colheres e um pilão, onde se
faz a mistura de temperos. Invariavelmente, estão presentes também as “três pedras do fogo” (twa
wòch dife) que formam um triângulo ao rés-do-chão, servindo de base para o apoio dos recipientes

112
Sobre “comida” (manje), cabe ainda outra observação de Karen Richman (2005), para quem, “[a] alimentação é o
símbolo que condensa todo o processo produtivo – criando pessoas e relações pessoais…” (p. 160). Vários
pesquisadores atentaram para a alimentação e a comida como centrais na produção de relações de parentesco em
diversas partes do Haiti. Ver, por exemplo, Bastien (1951), Bulamah (2013a), Bersani (2015) e Dalmaso (2014).
Tratarei mais a frente desse tema.
116

de cozimento, guardando-os a uma distância do fogo, feito no próprio chão com lenha, gravetos
ou, menos comum nos povoados rurais, carvão. Essas três rochas são carregadas de simbologia e
configuram o centro da própria cozinha, sendo por vezes utilizadas em rituais que envolvam busca
por cura ou cessão de algum sofrimento de origem mágica ou espiritual. É na cozinha também que
as carnes são cuidadosamente limpas com laranjas azedas e temperadas com sal, pimentas, vinagre
e ervas como alho-poró, tomilho e salsinha. Esse processo pode ser mesmo considerado um
primeiro cozimento e, de fato, o é, como evidencia linguisticamente o emprego do termo cozer ou
ferver (bouyi) para esta fase de preparação. Pelo tempo de contato com os temperos e os
condimentos, a carne é impregnada com um ácido (asid) que a prepara para a próxima cocção,
desta vez, utilizando-se água para a fervura. Após esta fase, passa-se então ao cozimento no óleo
ou gordura e adicionam-se outros temperos como caldo em cubos, molho de tomate, cebola e
algum outro vegetal113.
Ao fim destes três estágios, completa-se a passagem dos animais da esfera de criação para
a esfera do consumo. Se a morte é o início dessa separação, o cozimento é o ato final, pois opera
também a instauração de um novo regime nominal aos animais: bovinos (bèf) tornam-se taso e
porcos (kochon) viram griyo. Como mostra Marshall Sahlins (2003), tais declinações são
perceptíveis também nos pares anglo-saxões pig : pork, sheep : mutton e cattle : beef. Em Milot,
o mesmo ocorre com cavalos (chwal) que, após o cozimento, são denominados curiosamente de
“camelo” (chamo). Sua carne – apreciada por alguns, mas abominada por outros, que entendem os
cavalos como animais demasiadamente próximos e úteis para serem comidos –, é considerada uma
iguaria e pode ser encontrada em restaurantes que abrem apenas em certos dias da semana. Além
disso, o cozimento é, de fato, o ato final, pois é ele que comprova, em última instância, a origem
da carne. Quando crua, a carne animal é indistinta da carne humana. A diferenciação é atestada

113
Cabe destacar que Lévi-Strauss (2009 [1965], p. 17) explora o frigir como fornecendo maior complexidade ao
triângulo culinário, pois, ao lado do ar (defumação) e da água (fervura), representa um elemento a mais na passagem
do cru ao cozido. Ademais, como relata Sidney Mintz (1989), durante seu trabalho de campo no sul do Haiti, era
comum que pessoas empregassem termos franceses para descrever a anatomia de animais de criação e os cortes após
o abate. Contudo, as categorias empregadas para alimentos cozidos tinham uma possível origem africana, algo
identificado pelo antropólogo como um índice tanto da relação histórica entre a plantation e a domesticidade escrava
quanto do processo de crioulização que marcou a colônia de São Domingos: “é possível que os escravos tenham
aprendido a terminologia francesa para a anatomia animal e para os cortes de carne consoante à sua aculturação à vida
na plantation, mas quando tinham a chance de preparar sua comida em seus próprios alojamentos, os nomes africanos
podem ter persistido” (p. 27; sobre crioulização, ver também p. 269).
117

através do cozimento, pois, como disse certa vez uma moradora de Samson, “a carne de cristão
não cozinha direito e nem pega tempero, subindo alto na panela”114.
Isso se relaciona a um outro tópico importante e recorrente da vida social: a feitiçaria ou
magia de assalto (maji). Entre as tantas formas de se enfeitiçar uma pessoa, está a possibilidade
de transformá-la em um animal. Isso ocorre por uma motivação moral caracterizada como maldade
(mechanste), que pode se desdobrar em variações como má-fé (movèz fwa), inveja (jalouzi) e olho
gordo (move je). O que se teme com as magias de assalto, como as ekspedisyon (no caso de feitiços
enviados), as batry (como as deixadas pelo caminho), os koud poud (ataques repentinos com pós
mágicos) ou afins, não é a morte ou a doença em si, mas uma morte incompleta na qual o
enfeitiçado torna-se um zumbi (zonbi). Após seu enterro, aquele que o matou buscará seu corpo no
cemitério e o trará à vida, não mais enquanto um humano dotado de consciência, mas enquanto
um corpo que obedece sem contestação ou resistência – algo que, para muitos milosianos, tem
relação direta com o “tempo da escravidão” (tan esklavaj) e opera também na própria compreensão
das formas contemporâneas de trabalho forçado115.
Falarei mais à frente sobre esses mortos-vivos e sua relação com a plantation e um medo
do retorno ao cativeiro. Por ora, cabe destacar que um dos possíveis destinos de um “zumbi” é ser
enviado para trabalhar em canaviais ou em indústrias na cidade: “Fazem-no sofrer duas vezes,
matam-no e depois o colocam para trabalhar em campos ou galpões”116, resumiu um jovem amigo
de Milot ao comentar a morte de um vizinho seu. Pode-se ainda dar ao zumbi uma forma animal e

114
Vyann kretyèn pa ka kwit e li pa pran gou, li monte wo nan chodyè.
115
Emprego aqui a expressão “magia de assalto” num esforço em diferenciar outras formas de magia que não são,
necessariamente, orientadas pela maldade e nem manipulam forças ocultas com o objetivo de ocasionar aflição física
e emocional a uma pessoa ou à sua família. De fato, o vocábulo utilizado para falar de magia, no Haiti, é, em geral,
maji, sendo que algumas pessoas diferenciam a variação negativa ao falarem de maji nwa (“magia negra”); o que se
replica ainda em uma diferença no próprio termo que designa os feiticeiros: bòkò para feiticeiros que fazem o mal e
ougan (m.) e mambo (f.) para feiticeiros(as) cujos trabalhos são orientados à cura e ao alívio de infortúnios, comumente
traduzido na literatura como sacerdote ou sacerdotisa. Contudo, tal diferenciação tem se perdido, como observou um
interlocutor durante meu campo e pelo que pude observar durante minha estadia em Milot. Tal ausência de
diferenciação revela, me parece, ambiguidades próprias à manipulação de forças mágicas e espirituais sobre as quais
é possível estabelecer diferenciações mesmo que instáveis e provisórias. A expressão “magia de assalto” foi
empregada por diferentes autores para tratar do problema da relação entre violência e magia na Melanésia (ver Stewart
e Strathern, 1999), mas me inspiro aqui particularmente em Neil Whitehead e Robin Wright (2004) que a empregaram
para tratar, no contexto amazônico, da diferença (também complementar) entre xamãs que curam e xamãs malignos.
Para o caso caribenho, Robin Derby (2015) tem lançado mão da expressão de modo produtivo ao tratar exatamente
das ambiguidades em torno da magia em suas diversas articulações.
116
Yo fè y pase pay de fwa. Yo touye y epi yo fè y travay nan yon chan ou magazen.
118

colocá-lo para trabalhar no transporte de turistas até o alto da Cidadela; ou ainda matá-lo pela
segunda vez para ter sua carne vendida de modo itinerante em povoados ou em mercados locais,
induzindo os compradores a um canibalismo indireto. Assim, qualquer carne que se compre,
sobretudo de animais de grande e médio porte, sempre gera a suspeita de que aquela pode ser a
carne de um cristão (vyann kretyèn). Evita-se, exatamente por isso, adquirir carne de
desconhecidos e dá-se a preferência aos animais de criações de vizinhos ou de algum açougueiro
conhecido. Como tais medidas são sempre insuficientes, o cozimento é a prova real de que aquela
carne não é impura e envolta de tabus. Nesse sentido, as declinações nominais e a preferência pelo
cozido ao assado podem ser entendidas também como estratégias culturais para afastar a
possibilidade de canibalismo117.
Nas cozinhas rurais de Milot, o assar (boukane) é algo raro, sendo reservado aos peixes e
frutos do mar – que não deixam de ser cuidadosamente temperados – e também para alguns
tubérculos, como batata-doce e inhame. De todo modo, no caso dos tubérculos, essa é uma prática
pontual, feita no meio da manhã quando se está em casa ou no meio do roçado, quando grupos de
vizinhos estão trabalhando coletivamente em alguma parcela (prática conhecida como konbit), e
se faz necessário servir algo aos participantes118. Ademais, é possível argumentar que se evita assar
carnes em geral exatamente por se tratar de um processo de cozimento incompleto. Retomando
Lévi-Strauss (2009 [1965]), o autor identifica a prática de assar, diferentemente do ferver, como
mais próxima ao polo da natureza por duas razões: primeiro, por ser um processo sem a mediação
de artefatos culturais, como panelas ou frigideiras, e, segundo, porque o assado “nunca é
igualmente cozido, seja inteiramente de todos os lados, seja de dentro e de fora” (p. 15).

117
Como argumentara Sahlins (2003) de modo bastante convincente, a proibição do canibalismo é parte constitutiva
de sistemas alimentares em geral, implicando lógicas classificatórias que diferenciam espécies e cortes de carne
segundo um gradiente dividido entre humanidade e comestibilidade. Claro, mesmo com a prova do cozimento, há
sempre a possibilidade de se estar comendo carne humana. Relataram-me que, certa vez, um açougueiro passou
vendendo carnes em um povoado a preços bastante razoáveis. Muitos compraram e ao cozerem-na viram que a carne
parecia continuar crua. Mesmo assim, alguns insistiram em comê-la. Quando me contaram essa história, o tom era
fortemente jocoso. Alguns dias depois, vieram a descobrir que aquela era carne de cristão e que o cristão tinha
inclusive um nome: Petilus. Talvez o tom jocoso atestasse uma dúvida insuperável (afinal, como é possível saber, de
fato, se era aquela a carne de um cristão?) ou talvez as risadas fossem ali formas sociais para se dar conta da quebra
de um tabu, como um chiste freudiano. Por fim, cabe ressaltar que este episódio ocorreu em 2004, um ano conturbado
que logo em seu início foi marcado por um golpe de Estado que destituiu pela segunda vez o presidente eleito Jean-
Bertrand Aristide. Nesse ponto, as relações entre política nacional, violência e ruptura de tabus aparecem aqui de
modo particularmente notável.
118
Sobre o konbit, ver R. Métraux (1952), Smith (2011) e Bulamah (2013a, cap. 2).
119

Se pensarmos ainda no triângulo culinário estruturalista, cujos ângulos são o cru, o cozido
e o podre, há, no contexto aqui tratado, uma evitação extrema do cru, revelando uma afinidade
menos repulsiva com o podre, evidente em todas as fases do cozimento, do tempero ao frigir 119.
Opera-se, com isso, uma reiteração da passagem do alimento cru ao cozido, finalizando-o para o
consumo. Via de regra, se seguirmos as pistas do antropólogo francês, tais práticas são
representativas de uma endocozinha, pouco expansiva, voltada para a intimidade e a conservação
dos laços sociais em um pequeno grupo (p. 15-16). Digno de nota aqui é o fato de que o vocabulário
classificatório utilizado em Milot para definir as relações de amizade e inimizade é o vocabulário
da alimentação, ou melhor, o da comensalidade: amigos são “pessoas com quem comemos juntos”
(moun nou manje ansanm) e inimigos são “pessoas com quem não comemos juntos” (moun nou
pa manje ansanm)120. Disso advém que alimentos, sempre circulando em abundância entre as casas,
carregam a dubiedade potencial de serem, ao mesmo tempo, dádivas e venenos – ou, em termos
maussianos, “dádivas funestas” (Mauss, 2003, pp. 291-2). Isso decorre da possibilidade das trocas
assumirem-se como negativas, não mais produzindo laços sociais, mas destruindo-os, por meio de
traições, envenenamentos e magias de assalto que se assumem como uma forma de “parentesco
negativo” (Munn, 2007; Geschiere, 2012; Bulamah, 2013a, p. 137). A linguagem da alimentação
é também predominante nesses casos em que o feiticeiro, um espírito vingativo ou um ser maligno
manifestam sua fome insaciável e comem (manje) seu alvo121.
Assim, é possível argumentar que, com o massacre dos porcos, dificultou-se não só o
acesso à carne – notável pela expressão marcante de Ti Tonton referida acima, para quem “não há
mais carne no país” – como também a um importante procedimento de cozedura, pois a banha de

119
Em línguas europeias, essa afinidade é notada também em expressões culinárias ou pratos como “pot pourri”, “olla
podrida”, entre outros (Lévi-Strauss, 2009 [1965], p. 15).
120
“Comer junto” aqui é menos compreendido como o ato de sentar-se a uma mesa, prática incomum entre moradores
rurais, do que como o de compartilhar alimentos que foram cozidos em casas de parentes, vizinhos e amigos.
121
Em outras localidades haitianas, isso que Mauss (2003, pp. 291-292) denomina “dádiva funesta” quando discute o
direito germânico e o duplo sentido da palavra gift em alemão, foi também registrado por outros antropólogos. Veja-
se, por exemplo, o relato de Madame Kado, moradora de Mirebalais, transcrito por Paul Farmer (1988, p. 71, grifos
meus): “I had nine children, and I lost two. With the one who died when she was 11 days old, it seems as if it was a
bad person (move moun) who did the damage [lit. ‘tempted it’ (the fetus)] while I was still carrying the baby. This
person gave me something, but I had no idea: I thought she was my close friend! She cooked for me, I cooked for
her… she was always over at the house. And then she gives me a bit of joumon [a Haitian squash] during the very
week that I gave birth… On the seventh day [post-partum], things started going wrong… I thought the baby was
uninterested in nursing. She was not yet sick, but she was about to be. When I got up very early the next morning, her
jaw was locked shut (machwa-l te sere)… When she reached the eleventh day, at four o’clock in the morning – the
same time that she fell ill – she died. And when she died, out came the bit of joumon, exactly as I had eaten it”.
120

porco (mantèg) era o principal óleo utilizado na culinária local. Isso foi compensado com a
introdução de óleos vegetais nos mercados, algo que ocorreu gradualmente, mas não sem produzir
um impacto tanto na dieta quanto na economia locais. Ademais, hoje, como descreve Maurice,
interlocutor já conhecido ao leitor, a comida não tem o gosto e nem o cheiro de antigamente. Como
ele mesmo expõe:

Não há uma explicação lógica para o fato de que Nou pa gen yon ekzplikazyon lojik pou yo te twe
mataram os porcos crioulos. A economia kochon kreyòl. Ekonomye peyzan te baze sou
camponesa era baseada nos porcos crioulos e no kochon kreyòl e kafe, ou konpran? E jisk kounye a,
café, sabe? E, até hoje, cada vez que gritam chak anstan, yo di ‘Griyo!’, m anvi manje griyo,
“Griyo!” [carne de porco frita], me dá água na paske m konnen komman griyo a te bon. Men, sa m
boca, pois sei como o griyo era bom. Mas, o que eu vin realize, chak anstan m manje griyo, se yon
acabei por entender é que a cada vez que eu como desepsyon kounye a. Desepsyon total! Paske se pa
griyo, é uma decepção. Uma decepção total! Não menm gou, se pa menm odè. Alepòk, on dirait que
tem o mesmo gosto e nem o mesmo cheiro. Na kochon kreyòl li te fèt pou sa. Paske sa te ka dire
época, dava pra dizer que o porco crioulo era feito desemenn e desemenn. E menm demwa apre yo fin
pra isso. Pois ele durava semanas e semanas. Até fè griyo a. Men, kochon ke yo rele kochon grimèl
mesmo meses depois de terem feito o griyo. Mas kounye a, ou pa ka fè sa. Li te gen yon lwil yo te
os porcos, que eles chamam agora de porcos kon ekstre de kochon kreyòl ke yo pa ekstre de
mestiços, não servem pra mesma coisa. Havia um kochon sa yo. (…) Si ou vle achte lwil kochon, pa
óleo que extraíam dos porcos crioulos que não se genyen. E menm lè moun nan swa dizan fè griyo.
consegue mais extrair desses. (...) Se você quiser Otrefwa, chak moun ki fè griyo, gen lwil kochon ke
comprar banha de porco, não encontra mais. peyizan itilize pandan detan apre ke li fin fè griyo.
Mesmo quando estamos na época de se fazer Alò, nap pale milye peyizan, paske peyizan baze
griyo122. Outrora, todos faziam griyo e tinham óleo sou tout sa li ka konsève pou lontan. Se sa menm ki
de porco, que os camponeses utilizavam por muito asire souvi de tout peyizan. Paekzanp, yo pa gen
tempo. Então, estamos falando sobre o meio refrijeratè, men yo gen lwil kochon. Lwil kochon

122
A referência aqui é o período da festa patronal (fèt chanpèt) de Milot, que se inicia anualmente no dia 7 de dezembro
e se estende até o dia 9 do mesmo mês, sendo o dia 8 o dia de Nossa Senhora da Conceição (Immaculée Conception),
padroeira da cidade. É nesse período que os criadores vendem seus porcos. Na percepção de alguns moradores de
Milot, como Jorab, aquela festa perdera a importância que tinha antigamente se comparada à peregrinação à Cidadela.
De fato, a festa em homenagem à Imaculada Conceição é bastante tímida. Contudo, ela guarda sua importância na
geografia de festas anuais da região, mesmo que distante um pouco do período mais intenso de peregrinações religiosas
(maio a agosto). Suspeito que a morte dos porcos tenha afetado esse regime de festividades, mas afirmar isso
categoricamente seria extrapolar o material etnográfico que possuo.
121

camponês, que se baseava no que se podia dire lontan. Yo pa te bezwen achte lòt lwil, d’où
conservar por longos períodos. É isso que garante l’économie. (...) Paekzanp, lwil ki soti Miami, nou
a sobrevivência de todos os camponeses. Por itilize anpil denojou. Men m kwe ke se mwens sen,
exemplo, eles não têm geladeira, mas tinham banha mwens pi, paske soutou pwodwi chimik. Paske lwil
de porco, que durava muito. Eles não tinham kochon se pi. Ou konpran? Moun te kon manje sa
necessidade de comprar outro óleo, daí a economia. e yo pa malad. Biensou kestyon de relijion, gen
(...) Por exemplo, o óleo que vem de Miami, a gente moun ki pa kon itilize kochon ditou, men se yon lòt
utiliza muito hoje em dia. Mas acho que é menos bagay.
saudável, menos puro, em razão, sobretudo, dos
produtos químicos. A banha de porco é pura, sabe?
As pessoas comiam isso e não ficavam doentes.
Claro, havia a questão da religião, gente que não
utilizava porco por nada, mas isso é outra coisa.

Se para muitos pesquisadores, o impacto dos porcos se restringiu a uma diminuição drástica
do acesso de moradores rurais a uma forma segura de capital, sua existência ia muita além dessa
dimensão utilitária. Parte de uma economia da casa, mas também de uma economia simbólica, os
porcos crioulos eram, como destaca uma petição feita por camponeses da região de Hinche, no
Departamento Central, em princípios de 1986, “nossa principal fonte de vida” (prensipal sous lavi
nou)123. “Vida” aqui possui uma ambivalência semântica em crioulo haitiano que trata, a um só
tempo, dos “meios de vida”, da prosperidade e do retorno de investimentos, e da fertilidade e da
reprodução, ou seja, da própria existência em sentido amplo (Richman 1984, p. 53)124. Com efeito,
os porcos participavam de uma ecologia específica e produziam, em interação com os humanos e
outras espécies, um ambiente comum e compartilhado, participando de trocas, práticas culinárias,
festividades e dinâmicas familiares.
O impacto do massacre dos porcos foi amplo, afetando a um só tempo a economia, a dieta,
a culinária e a vida dos moradores rurais da região, produzindo novas dependências e formas

123
A petição encontra-se reproduzida no Anexo I da tese. Segundo o agrônomo e jornalista Fritz Deshommes (2006),
com aquele documento, assinado por 25.000 camponeses, “foi a primeira vez desde o 7 de fevereiro [de 1986, data
que marca o fim do regime Duvalier] que a nota camponesa se fez escutar de maneira direta e potente na sinfonia das
reivindicações sociais” (p. 67).
124
Disso advém a noção corrente de “cheche lavi” que pode ser traduzida tanto como “buscar a vida” quanto “buscar
os meios de vida”.
122

contemporâneas de sujeição. Maurice diz não conseguir entender a lógica por trás do massacre.
Para ele, trata-se de uma entre as tantas injustiças que o país sofreu ao longo de sua história:
“Injustiça, é verdade, mesmo que eu não consiga encontrar uma explicação lógica para o
extermínio dos porcos crioulos”125. Contudo, parece-me ser possível, por meio de uma combinação
de métodos e fontes, esboçar uma análise sobre essa lógica que continua a intrigar pessoas como
Maurice, madame André e também pesquisadores em geral. Para tanto, comecemos explorando a
chegada desses animais no Novo Mundo e o impacto particular que tiveram na construção de uma
autonomia no seio da família escrava, que, mesmo formulada nas fronteiras da plantation, foi
central na reconstituição do campesinato após o conjunto de eventos que conhecemos hoje como
Revolução Haitiana.

Sobre origens, caças e criações


O fascínio contemporâneo pela velocidade, pela densidade e pelo impacto dos fluxos
globais e nossa atenção excessiva ao presente talvez nos façam esquecer que a propagação mundial
de animais, plantas, fungos e vírus ocorreu muito antes do que se convencionou chamar de
“globalização”. Como nota Sidney Mintz (2001, p. 33),

A difusão do milho, da batata, do tomate e da pimenta-do-reino, da mandioca e do


pimentão, do amendoim e da castanha, tanto no Novo quanto no Velho Mundo, não
precisaram de transporte aéreo, de cientistas de aventais brancos, do McDonald’s, nem da
engenharia genética – nem tampouco de propaganda, e muito menos de antropólogos – e
começou a acontecer há quinhentos anos.

Esse grande intercâmbio a que se refere o antropólogo, denominado “troca colombiana”


(Columbian Exchange) por Alfred Crosby (1972), foi o que trouxe as primeiras espécies de porcos
à ilha de Espanhola durante a expansão europeia e a posterior conquista, constituindo as fases
iniciais do que Trouillot (2003) chamou de “momento atlântico”, definido como o primeiro
momento da globalidade, no qual se desenvolveu uma “contínua centralidade do Atlântico como
a porta giratória de grandes fluxos globais ao longo de quatro séculos” (p. 29).

125
Anjistis, se byen vre, menm si m pa gen eksplikasyon lojik pou estèminasyon de kochon kreyòl.
123

Imagem 20: Ilustração da chegada dos espanhóis, detalhe da presença de porcos no canto inferior esquerdo. Fonte:
História general de las cosas de la Nueva España (ou Códice Florentino) de Bernardino de Sahagún, 1577, vol. 3, carta
406r, reproduzido do exemplar virtual da Biblioteca Medicea Laurenziana, Florença.

No período das navegações europeias às Índias, embarcações carregavam parte da


alimentação dos tripulantes que, entre um porto e outro, passavam longos períodos em alto-mar.
Com o surgimento dos primeiros núcleos de povoamento europeu no Caribe e nas Américas,
animais vindos do velho continente eram utilizados como formas de proteção, no caso dos cães,
ou formaram as primeiras criações, como os porcos, servindo assim à europeização do ambiente
transformando-o em algo cada vez mais familiar aos colonizadores (Alves, 2011; Crosby, 1986;
124

Johnson, 2012). Os animais nativos, por sua vez, causavam fascínio e foram objeto de descrições
detalhadas contribuindo à construção de uma visão edênica do Novo Mundo. Ao lado de tais
esforços contemplativos, a caça e a criação eram paradigmas cruciais nessas interações. Segundo
a historiadora Marcy Norton (2014), como numa extensão das práticas comuns na Europa, a fauna
nativa do Caribe e das Américas, durante os princípios da expansão espanhola, foi encarada
segundo esses dois prismas: o da caça, atividade nobre e elitizada, e o da criação, atividade
relegada aos plebeus. A adoção, prática ameríndia correntemente descrita por viajantes e agentes
coloniais, era, portanto, um enigma. Como a autora afirma, ressoando uma literatura já conhecida
no Brasil, “a adoção ameríndia correspondia às formas de vida social e de conflito intergrupal tal
como a caça e a criação europeias o eram com relação ao governo e à guerra” (p. 22).
Para as longas viagens marítimas rumo ao Novo Mundo, os porcos eram animais ideais,
pois constituíam importantes fontes de carne e gordura e eram onívoros, não exigindo uma
alimentação especial. Ademais, mesmo submetidos a intensas formas de confinamento,
desconforto e sofrimento, conseguiam sobreviver a grandes travessias (Donkin, 1985). Como
observa o abade Guillaume-Thomas Raynal (1770), no final do século XVIII,

L’Amérique, au tems de la découverte, n’avoit ni porcs, ni moutons, ni bœufs, ni chevaux,


ni même aucun animal domestique. Colomb porta quelque-uns de ces animaux utiles à
Saint-Domingue, d’où ils se répandirent partout, et plutôt qu’ailleurs au Mexique. Ils s’y
font prodigieusement multipliés. On compte par milliers les bêtes à cornes, dont les peaux
sont devenues l’objet d’une exportation considérable. Les chevaux ont dégénéré, mais on
compense la qualité par le nombre. Le lard de cochons y tient lieu de beurre (p. 53, grafia
do original)126.

126
Pode-se consultar também a descrição feita por Louis-Élie Moreau de Saint-Méry (1958 [1796], tomo 1, pp. 67-
78) sobre os rebanhos (hattes) e os diferentes animais, particularmente, as complexas classificações feitas pelos
espanhóis segundo seu comportamento. O trabalho mais completo sobre a difusão dos porcos no Caribe e nas
Américas, que traz ainda uma atenção especial aos pecaris e a outros animais nativos, é o de Donkin (1985, pp. 41-
47).
125

Imagem 21: Porcos (Sus scrofa domestica) no Novo Mundo. Fonte: Donkin (1985, p. 40).

De fato, conforme comenta o padre Bartolomé de Las Casas, Cristóvão Colombo, em sua
segunda viagem às Índias, em 1493, ao parar no porto de La Gomera, nas Ilhas Canárias, aportou,
junto a outros animais, oito porcas. Todas elas serviriam a formar as primeiras criações na ilha de
Espanhola. “Destas ocho puercas”, afirma um hiperbólico Las Casas (1957 [1559]), “se han
multiplicado todos los puercos que hasta hoy ha habido y hay hoy en todas las Indias, que han sido
y son infinitos” (vol. 1, p. 246, grifos meus). Em São Domingos, denominação francesa para a ilha
126

de Espanhola, essa abundância de que fala Las Casas ou a “multiplicação prodigiosa”, conforme
Raynal, ocorreu, em grande parte, entre os séculos XVI e XVII quando a ilha inteira era colônia
espanhola e rebanhos de animais como porcos, cabras, bois e cavalos, além de cachorros,
abandonados ou fugidos, tornaram-se ferais. Marrons, cimarróns ou montarazes, como os
classificavam os cronistas da época, esses animais se multiplicaram, sobretudo, em razão de
interações propícias com o novo meio-ambiente. A geografia montanhosa do interior da ilha,
imprópria à economia de plantation, somada à falta de predadores naturais e à vegetação densa,
tiveram um peso notável nessa expansão127.
Como em outras colônias espanholas do Caribe, a ocupação da ilha de Espanhola passou
de uma concentração das atividades em torno das minas de ouro, empregando trabalho de nativos
Arawaks, de europeus sob contrato e de africanos escravizados, para um ciclo localizado de
produção de açúcar, que durou até princípios do século XVII (Mintz, 2003a). A efetiva passagem
a uma economia de plantation só viria a acontecer tardiamente nos domínios espanhóis,
diferentemente do que se desenhava nos outros territórios coloniais do Caribe e das Américas.
Como nota no historiador Juan Giusti-Cordero (2009):

A relatively coherent Caribbean ensemble took shape with the English, French, Dutch, and
Danish islands’ plantation territories developing densely populated colonies, largely
peopled by African slaves, while interacting with the wilder, larger expenses of the Spanish
islands; and indeed sometimes taking over, or attempting to take over, those wilder areas
as well (p. 66).

Mais importante do que o açúcar era exatamente a exploração de produtos de origem


animal, seja de rebanhos ou daqueles oriundos da caça, além da pesca de pérolas, da produção de
gengibre, de tabaco e da extração de madeiras e de sal para a produção do arenque salgado do Mar
Báltico. Apesar das ocupações esparsas, o Caribe era, com efeito, alvo de uma constante atenção
da Coroa espanhola devido ao imenso fluxo de riquezas oriundo das produções locais e das
demandas por commodities europeias e por africanos escravizados (Giusti-Cordero, 2009).

127
Opto aqui pela tradução de marron ou cimarrón como “feral” ao invés de “selvagem” em razão do primeiro termo
enfatizar exatamente a passagem de uma condição de domesticidade à outra de selvageria. Ainda sobre a marronage
em São Domingos, ver o trabalho de Jean Fouchard (1988).
127

Variações, disputas e brechas nos processos de ocupação e subsequente intensificação da


produção, somadas a doenças diversas e a uma pluralidade de animais nativos e europeus
garantiram o desenvolvimento daquilo que Anna Tsing (2015a) chamou de “geografias ferais”:
espaços de interações multiespécies que produziram vida nos interstícios e bordas da ordem
agroindustrial da plantation128. Em todo o Caribe, entre os séculos XVII e XVIII, riquezas diversas
e a própria caça a esses animais ferais atraíram a presença de piratas, contrabandistas, comerciantes
e aventureiros. Havia grande ambiguidade na prática de roubo e contrabando, sempre ocupando
uma posição dúbia entre a legalidade e a ilegalidade, e o rescate (como eram denominadas essas
atividades) tornou-se algo rentável a ponto de orientar trocas, circulações, conflitos e guerras na
região (Andrews, 1978). Conhecidos como bucaneiros, em razão da prática de defumação das
carnes de caça (boucan, em francês) ou flibusteiros (possivelmente derivado de “barcos leves”,
vrijbuiter, em holandês), piratas e comerciantes ocupavam por longos períodos ilhas e regiões
específicas do arquipélago, como a Ilha da Tartaruga (Île de la Tortue), na costa noroeste de São
Domingos129. O romance histórico de Jules Lecomte (1837) ilustra bem esse momento, trazendo
descrições de costumes de caça, casamentos homoafetivos e trocas entre piratas, corsários e grupos
de comerciantes ligados ou não aos grandes impérios. Comparando-os com os colonos (habitans),
o autor assim destaca:

Les Habitants furent ceux dont l’aptitude parut plus propre aux constructions et aux
plantations; les gens de mœurs et d’humeur paisibles. Les Boucanniers se déclarèrent

128
Curiosamente, é esse o prognóstico de Lévi-Strauss (2004) para o futuro das grandes cidades, devido, sobretudo, à
queda do consumo de carne e ao abandono dos rebanhos, processo no qual a diversidade encontraria campo fértil,
quase como numa repetição do momento de crioulização que marcou a constituição do Caribe: “Não se pode afirmar
que a expansão de uma civilização que se pretende mundial uniformizará o planeta. (...) Definitivamente abandonados
por seus habitantes, [as megalópoles] retornarão às suas condições arcaicas: aqui e ali surgirão as mais estranhas
formas de vida. Em vez de caminhar em direção à uniformidade, a evolução da humanidade acentuará os contrastes,
criando o novo e restabelecendo o reino da diversidade” (p. 84).
129
Sobre a Ilha da Tartaruga, ver o trabalho de Peña Batlle (1988 [1951]). Manuel Arturo Peña Batlle era um ilustre
nacionalista, advogado, historiador e diplomata dominicano, tendo sido um dos ideólogos da modernização da
fronteira da República Dominicana. Abdicou do cargo quando Rafael Leónidas Trujillo chegou ao poder, em 1930,
mas retomou sua função em 1942 para consolidar o processo que ficou conhecido localmente como “dominicanización
de la frontera”. Foi posteriormente diplomata em Porto-Príncipe, em um acordo entre o presidente Dumarsais Estimé
e Trujillo, no qual o intelectual Jean Price-Mars foi nomeado para a mesma função em Santo Domingo (Vega, 2010,
p. 487). Parte de seu acervo pessoal está na biblioteca do Museu Fernando Peña Defilló, na capital dominicana,
dedicado ao importante pintor dominicano, filho de Peña Batlle. Ali estão expostos ainda dois exemplares das pedras
esculpidas utilizadas na demarcação da fronteira.
128

chasseurs; la poursuite des bœufs et des sangliers dans les bois de Saint-Domingue, la
préparation des cuirs et des viandes salées qui constituaient leurs occupations
journalières, offrirent plus tard à la société les premiers éléments de ses échanges et de
son commerce. (…) Enfin les Flibustiers ou Corsaires, formèrent la troisième classe des
Aventuriers, en multipliant leurs courses contre les bâtiments Espagnols (p. 18-20, grifos
meus).

A caça aos bois e porcos ferais e o comércio de seu couro e de sua carne constituíram assim
as atividades centrais de piratas e aventureiros. Se esses e outros animais foram cruciais à expansão
inicial dos europeus nas ilhas do Caribe e no continente americano, sendo um exemplo daquilo
que a historiadora Alida Metcalf (2005) chamou de “intermediários” (go-betweens), a posterior
fuga, adaptação e reprodução de espécies europeias propiciou a ocupação e a formação de núcleos
de povoamento e de postos de comércio em diversas partes da região. Além disso, a presença
desses animais motivou também o próprio assentamento de bucaneiros e corsários, que passaram
a criar animais para a venda de carnes e para o uso em transportes e máquinas à tração, tornando-
se eles mesmos grupos sedentários130. Foi exatamente a constituição de povoados na parte ocidental
da ilha de São Domingos, sobretudo por grupos de franceses, que motivou a cessão da porção oeste
à Coroa francesa em 1697, pelo tratado de Ryswick. Todavia, entre as duas colônias, manteve-se
intensa a circulação de comerciantes, animais e riquezas, além de conflitos pontuais.
Particularmente ao longo da costa norte de São Domingos, nota um viajante no final do
século XIX, “[o]s bosques são o asilo de porcos ferais [cochons marons]”. É o célebre jurista,
natural da Martinica, Louis-Élie Moreau de Saint-Méry quem faz esta observação, acrescentando
uma descrição sobre a geografia do norte da ilha e a sua ocupação (Moreau de St-Méry 1958
[1796], tomo 1, p. 175)131. À exceção de vilarejos como Monte-Cristi, Puerto-Plata e Samaná, “a
porção Norte da parte espanhola é quase inabitada” (p. 207). “Contudo”, continua o cronista,
“todos os terrenos próximos ao mar são concedidos [pela coroa], não em pequenos lotes, (...) mas
em grandes porções. Em alguma medida é para a pesca que tais concessões são solicitadas, mas
mais ainda para a caça ao porco feral” (idem, grifos meus). As interações entre caçadores, cães,
porcos e plantas chamam a atenção de Moreau de St-Méry, que as descreve em detalhes:

130
Sobre isso, ver a edição ilustrada dos diários de viagem de Alexandre Oexmelin (1930), particularmente o cap. 5.
131
Sobre Moreau de St-Méry, ver Dubois (2004).
129

O tempo dessa caçada é aquele no qual uma espécie de palmeira começa a dar grãos em
cachos e pelos quais o animal nutre um gosto particular. Um espanhol, se está sozinho, vai
armado de uma lança, uma manchete e de uma faca, às partes do bosque onde estão as
palmeiras, acompanhado de alguns cães, que, ao verem o porco feral se juntam à sua volta
e começam a latir até que o caçador o mate com sua lança. A besta é aberta e esvaziada,
dispensa-se a cabeça e os pés e o caçador se ocupa somente do corpo que ele corta em
partes a fim de facilitar o transporte (pp. 207-208, grifo no original).

Quando os caçadores partiam coletivamente, continua o jurista:

eles escolhem um lugar onde acreditam que a caça será abundante; e ali constroem uma
pequena barraca ou ajoupa, coberta de trapos ou de folhas de palmeira e dispõem várias
lanças com espetos para salgar e secar as metades dos porcos ferais ou para empilhá-las
quando estão prontas. É muito comum que o transporte se faça pelo mar, ao menos quando
se trata de uma caça considerável (p. 208, grifo no original).

Essa dinâmica, individual ou coletiva, de caça, secagem e salgamento da carne, seu


transporte e comércio, dominava a economia do norte da ilha de São Domingos. Diferente da
pujante sociedade colonial que o cronista observara no lado ocidental, Moreau de St-Méry traz à
vista a situação de penúria na porção espanhola da ilha. Ao observar o povoado de Cotuy, próximo
às minas de ouro da província do Cibao, o autor afirma que a região, no começo do século XVIII,
“não se encontrava em um estado de menor abandono e miséria, tal como a Parte Espanhola em
geral” (p. 213). Os colonos pobres dessa região, “descendentes de proprietários europeus
primitivos”, a maioria franceses, por possuírem um título ou ação de concessão eram conhecidos
como “acionários” (actionnaires) e raramente eram contados nos recenseamentos coloniais.
A formação topográfica dessa porção da ilha tornava-a pouco adaptada à agricultura de
larga escala, diferentemente da parte noroeste, como a Planície do Norte (Plaine du Nord), onde
ficava o Cabo Francês, capital da colônia francesa. Restava aos moradores da região centro-
nordeste a atenção ao rebanho, que deveria ser limitado em quantidade, e à caça ou montería (de
montes), permitida em dias específicos.
130

Imagem 22: “Mapa da ilha de São Domingos confeccionada para a obra de M. L. E. Moreau de St Méry”, por L. Sonis e
Vallance, 1796. Cabo Francês destacado em amarelo e Cotuy, em vermelho. Fonte: gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale
de France.

“É à educação de animais, sobretudo de porcinos, que os habitantes de Cotuy se dedicam


quase exclusivamente, e esses animais necessitam de cuidados intensos” (p. 214), destaca Moreau
de St-Méry. Havia uma tensão constante entre doma e selvageria, pois mesmo com uma atenção
dedicada à alimentação e ao cuidado, os porcos “atraídos aos bosques na esperança de encontrarem
raízes, frutos e insetos (...) nem sempre retornam [à casa] pela noite, se alongando ao ponto de
tornarem-se selvagens e, por vezes, em elevado número” (p. 215). Triste destino daquele que os
cria, “constantemente traído em sua espera, limita-se a caçar aqueles que acreditava ter
domesticado” (idem).
Tais dinâmicas de criação e caça formavam parte fundamental de uma economia baseada
no aprovisionamento, que se associava, direta ou indiretamente, às zonas de plantation do Caribe,
tanto por mar, em circuitos de troca entre as ilhas, quanto por terra, como no caso da ilha bipartida
de São Domingos ou Espanhola. Tal disparidade foi, de fato, encarada por muitos historiadores
como o indício de um atraso particularmente marcante nas colônias espanholas no Caribe. Não
131

tendo seguido em direção ao “complexo da plantation”, de que fala Philip Curtin (1990) nem
passando pela “revolução da plantation”, nos termos de Ira Berlin (1998), essas colônias,
particularmente entre os séculos XVII e XVIII, parecem ter ficado à margem da história (ou da
historiografia), como argumenta de modo convincente Juan Giusti-Cordero (2009)132. Entretanto,
a atenção aos animais e às suas interações com humanos pode trazer um importante
questionamento a essas conclusões excessivamente esquemáticas e por vezes pouco atentas às
conexões transcoloniais e aos fluxos que ligavam diferentes espaços sem necessariamente passar
pela metrópole. A importância econômica do Caribe espanhol, mesmo não tendo se orientado
inicialmente à plantation, estimulava tentativas de ataque e invasão por parte de outras potências
coloniais europeias. E tais iniciativas ocorreram não sem uma resposta por parte dos espanhóis.
Ao descrever os colonos franceses do norte de São Domingos, Moreau de Saint-Méry
(1796, tomo 1) fala de uma “reprovação dos costumes grosseiros e do caráter pouco social” dos
habitantes de Cotuy, no nordeste da ilha. “Talvez”, continua o jurista, “o hábito de uma vida cujos
cuidados têm quase sempre animais como objeto, a faz adquirir certa rudeza que choca aqueles
que não a compartilham” (p. 216). Mas pode ainda ser tal traço o resultado de uma história de
disputas por territórios: “Talvez haja ainda uma precaução nesse julgamento, próprio aos franceses
que ainda se lembram, um século depois, do massacre de seus compatriotas em Samaná” (idem).
Moreau de St-Méry se refere aqui às ravages ou devastaciones: massacres de criações ou
populações inteiras com o objetivo de realocar ou expulsar os ocupantes da região em finais do
século XVII (ver Moya Pons, 2007, pp. 40-43). O resultado, contudo, sempre se mostrou bastante
insuficiente.
Essas mesmas ocupações foram se fixando a partir da produção de tabaco, que durou até
finais do século XVII, quando, após a cessão definitiva da parte ocidental à França, em 1697, a
produção de açúcar, antes esparsa, assumiu uma dimensão cada vez maior. A ilha de São
Domingos foi se compondo, assim, a partir de um conjunto de interações sociais, materiais e
ecológicas nas quais as criações serviam para suplementar o transporte e o trabalho mecânico na

132
É consenso que a plantation encontra seu lugar no Caribe espanhol em um momento tardio se comparado às
colônias britânicas, francesas e holandesas. No caso de Cuba, isso se dá somente no final do século XVIII; em Porto
Rico, a partir de 1820 e, na República Dominicana, já não tendo relação direta com a escravidão atlântica, em
princípios do século XX (Giusti-Cordero, 2009, p. 59-60).
132

plantation e, junto à caça, forneciam carne e couro às colônias e, não raro, às metrópoles133. Já em
princípios do século XVIII, como declarou o governador de Cabo Francês, Monsieur de Charitte,
“[Os espanhóis] sabem que, em relação a nossas plantações de açúcar, não podemos prescindir de
seu gado, já que nossos rebanhos não estão suficientemente povoados para sacarmos deles o que
temos necessidade...”134.

133
Uma série de engajamentos microscópicos orientou, por sua vez, a própria montagem da plantation. Os fungos e a
fermentação definiram, em parte, o tempo e a velocidade da produção do cana-de-açúcar, a estrutura dos moinhos e
das caldeiras e a própria produção de álcool, crucial para o comércio atlântico mesmo antes da preponderância do
açúcar. Sobre esse processo crucial na agroindústria da plantation, Mintz (2003b) observa: “A cana-de-açúcar deve
ser colhida rapidamente, quando seu conteúdo de sacarose está ao nível máximo; ela deve ser moída assim que é
cortada de maneira a não perder este açúcar; seu caldo deve ser esquentado rapidamente, preparado para a cristalização
e batido – colocado nas formas exatamente no momento certo (...) Estes traços técnicos, muitos dos quais estavam
ligados a um cuidadoso controle do tempo, introduziram mais do que apenas uma aura de modernidade industrial
em operações que antecederam, em muitos casos por séculos inteiros, a Revolução Industrial” (p. 63, grifos meus).
Consultar ainda Tsing (2015b) para uma interessante análise sobre fungos como espécies companheiras.
134
Citado em Moya Pons (1977, p. 233). Como nota o autor em outra obra (2007), “In 1702 the Spanish exports of
livestock, horses, and hides to the French colony increased to 50,000 escudos annually. This trade defined the
relationship between the two colonies for the next ninety years and helped foster the sugar revolution in Saint-
Domingue in the eighteenth century” (p. 94).
133

Imagem 23: “Mapa itinerário das duas rotas principais entre Cabo Francês à vila espanhola de Santo Domingo”,
confeccionado por Daniel Lescalier, 1764. Fonte: gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale de France.

Animais operavam particularmente na tração das moendas de cana-de-açúcar, no


transporte, no preparo das terras para o cultivo e compunham a dieta de colonos franceses, de
libertos e, mais raramente, dos próprios escravos. Nesse sentido, se os rebanhos eram fornecidos
por criadores da parte oriental da ilha, o trabalho vinha de muito mais longe. Para suprir a crescente
demanda por açúcar e por outros produtos tropicais na Europa, como café e índigo, a sociedade
colonial em formação tornava-se cada vez mais dependente do trabalho de africanos sujeitos à
violência do tráfico e da escravidão.
134

Imagem 24: “Engenho de açúcar”, ilustração adicionada à edição francesa de Oexmelín (1930, p. 57). Destaque para a
banana, abaixo no canto esquerdo, alimento importante para a sociedade colonial, aqui representada próxima à senzala
(cases de nègres).

Porcos e outras espécies se adaptaram ao novo ambiente e influenciaram viajantes, piratas,


colonos e africanos escravizados, motivando ocupações e disputas e interagindo de maneiras
diversas com sociedade colonial e as divisões de classe e raça que lhe eram constituintes. Mas as
interações iam muito além do espaço da plantation. No final do século XVIII, o relato de um certo
Crublier de Saint-Cyran (1790), opondo-se às teses abolicionistas da recém-criada Sociedade dos
Amigos dos Negros de Paris (Société des Amis des Noirs de Paris), fala das casas e parcelas geridas
135

por famílias escravas em São Domingos, cuja condição era “geralmente menos dura do que a dos
operários na França” (p. 4). Ademais, completa o viajante, “não há nenhum [escravo] que não
possua uma casa e terras para si e para os seus, que não tenha frangos, porcos e outras propriedades,
sempre cuidadosamente respeitados pelo senhor...” (p. 5)135.
Relatos de autoridades coloniais ou viajantes como este devem ser encarados com cautela.
Além de terem sido produzidos em condições de extrema violência e repressão sobre populações
negras escravizadas, tinham objetivos políticos específicos dentro do debate abolicionista que se
constituía em diversas partes do Atlântico. Porém, é nas frestas dessas mesmas fontes históricas
que podemos encontrar importantes observações, que, apesar de insuficientes, se lidas à contrapelo
fornecem fragmentos das formas de sociabilidade, concepções e práticas cotidianas de grupos
escravizados e subalternos136. A descrição rápida que de Saint-Cyran faz das casas e terras de
escravos em São Domingos confirma uma política geral nas colônias francesas e também
britânicas de garantir porções de terra que serviriam à produção de alimentos para a subsistência
e, por ventura, à própria troca em mercados regionais (cf. Tomich, 1993). Essa garantia de um
espaço para o cultivo e para a criação de animais servia também ao sistema colonial como uma
forma de evitar que escravos “se aquilombassem” (partir marron, lit. “se tornassem ferais”), no
vernáculo da época. “Nada é mais adequado para reter [os escravos] e impedí-los de escapar do
que fornecer-lhes algo de onde possam tirar algum benefício, como aves, porcos, uma plantação
de tabaco, algodão, ervas ou coisas do tipo”, afirma o reverendo dominicano Jean-Baptiste Labat
(1724, tomo 2, p. 50), a partir da colônia francesa da Martinica, em princípios do século XVIII,
acrescentando: “o confisco [dessas terras de cultivo e criação] é suficiente para impedir que todos
os negros de uma plantation [habitation] não pratiquem talvez nunca mais parecida fuga” (idem)137.
Dentro do ordenamento socioeconômico da plantation, essas terras, entendidas como
“terrenos de provisão” (habitation ou place à vivres, em francês; conacos, em espanhol; e

135
Sobre a Société des Amis des Noirs e o processo de abolição na França e em suas colônias, ver Trouillot (1995, pp.
81-101), Dubois (2004, p. 61-90) e o importante trabalho crítico de Sala-Molins (2008 [1992]).
136
O debate historiográfico sobre escravidão atlântica, emancipação, domesticidade e noções concorrentes de
liberdade é vastíssimo. Cito apenas alguns, entre os quais, Carneiro da Cunha (2014); Scott, Holt e Cooper (2000);
Slenes (2011 [1990]), Chalhoub (2011 [1990]); e, com particular referência a São Domingos, Scott e Hébrard (2014).
137
Moreau de St-Méry (1958 [1796], tomo 1) descreve tais terrenos para a parte espanhola de São Domingos:
“appellée Conacos, nom qui équivaut à celui d’habitation à vivres ou place à vivres dans les îles françaises; c’est le
partage ordinaire de quelques colons peu fortunés, et plus communément des hommes de couleur ou affranchis" (p.
67, grifos meus).
136

provision grounds, em inglês), possibilitaram o desenvolvimento de técnicas de trabalho, práticas


agrícolas e formas de troca entre grupos escravizados e livres, orientando aquilo que Sidney Mintz
(1985b) definiu como uma experiência de “proto-campesinato”, central para a ulterior formação
dos “campesinatos reconstituídos” em todo o Caribe (Mintz, 1989 [1974]). Nas palavras do
antropólogo,

estate slaves commonly grew their own subsistence on plantation uplands, using lands
judged unsuitable for the major plantation crops. It was on such lands that the slaves
acquired or perfected their horticultural skill, developed their own standardized agricultural
practices, learned the characteristics of Caribbean soils, mastered the cultivation of new
crops, and otherwise prepared themselves for their reconstitution as peasantries (p. 236,
grifos meus).

Variações quanto ao tamanho da plantation, sua geografia e sua cultura principal (que
determinavam a quantidade e a sazonalidade do trabalho) poderiam ainda conferir um maior ou
menor grau de autonomia produtiva aos escravos, como argumenta de modo convincente Michel-
Rolph Trouillot (1993) para o caso das plantations de café em São Domingos138. Por isso, é
exatamente nos arredores das planícies onde florescia o açúcar, nessa geografia montanhosa e
marginal que compunha a paisagem vizinha à plantation, que tais técnicas e habilidades foram
elaboradas durante o regime escravocrata, tanto entre os escravos a quem era garantida a
possibilidade de plantarem nesses terrenos íngremes, avessos à cana-de-açúcar, como nos
quilombos que se formavam no interior das colônias139. O argumento de Mintz centra-se,
sobretudo, nas práticas agrícolas, do trato da terra ao plantio e, a partir dali, ao processamento,
armazenamento, conservação e seleção de sementes, deixando de lado o conhecimento prático
desenvolvido na relação com animais de caça ou criação. A fonte histórica que o antropólogo
utiliza em sua análise é o célebre relato de viagem de John Stewart (1823), cujas observações

138
O que o autor chama de “revolução do café” esteve diretamente associado ao aumento da demanda pelo produto
na Europa Ocidental na segunda metade do século XVIII, fato que foi acompanhado pela chegada de novos colonos
franceses, a partir de 1763, com o restabelecimento das rotas comerciais entre a França e São Domingos, reduzidas
em razão da Guerra dos Sete Anos, e pelo crescente número de libertos que estabeleceram suas pequenas plantações
de café em terrenos elevados (Trouillot, 1990, pp. 36-37). Em 1789, São Domingos chegou a produzir 60 por cento
de todo o café consumido no Ocidente (idem).
139
Sobre comunidades quilombolas, ver o volume editado por Price (1979). Especificamente sobre o Brasil, ver Arruti
(2006) e Gomes (2015).
137

centram-se na Jamaica colonial. O trecho de particular interesse para Sidney Mintz é o seguinte
(Stewart 1823, p. 267 citado em Mintz, 1989 [1974]):

Adjoining to the [slave’s] house is usually a small spot of ground, laid out into a sort of
garden, and shaded by various fruit-trees. Here the family deposite their dead, to whose
memory they invariably, if they can afford it, erect a rude tomb. Each slave has besides this
spot, a piece of ground (about half an acre) allotted to him as a provision-ground (p. 187,
grifos meus).

Imagem 25: “Planta de uma plantation de índigo”. Ilustração do livro de M. de Beauvais-Raseau (1770, p. vi). Fonte:
gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale de France. Legenda (tal como consta na p. 113, grifos meus): a, Porteira ou entrada
da Plantation; b, Senzala; d, Curral de Bois e que serve também às Vacas; e, Hospital; f, Chiqueiro; g, Curral de
138

Carneiros: onde há, no meio, uma pequena Casa para o Guardião; h, Curral de Bezerros: ao lado da pequena Casa do
Guardião; j, Casa Grande ou alojamento do Senhor; l, Quatro Depósitos para servir a diferentes usos; m, Espaço de
secagem do Índigo; n, Indigoteria de equipamento duplo, com um Moinho ao meio que serve dos dois lados; p, Divisão do
Terreno plantado com Índigo; q, Pranchas ou Carreaux plantados de Índigo; r, Terrenos de Provisão dos Negros, ou
Terreno em que os Negros cultivavam para sua alimentação; s, roça de legumes; t, Terrenos de Provisão da Casa grande,
ou Terreno de cultivo para as necessidades do Senhor e do Hospital; u, Bananeira ou Terreno plantado com Bananeiras,
fig. 3; x, Bosque ou Terreno sem cultivo; y, Mandioca, planta cuja raiz amassada ou ralada e seca, se come em farinha ou
biscoito, denominado Cassava; z, Cerca-vivas ou entorno da Plantation; na parte interna se fazem fossos pelos quais
correm as águas do rio e outros; Z, Fosso da Plantation. A planta é acompanhada por ilustrações de três alimentos
principais das colônias: mandioca, painço e banana.

Nesses terrenos de provisão, escravos cultivavam tubérculos, banana, frutas e pimentas e


o excedente era destinado às trocas locais e à venda nos mercados, o que lhes garantia o acesso ao
pecúlio, particularmente no caso das mulheres escravas140. Mas nesses espaços ou próximo a eles,
conviviam também animais, como porcos e aves. O mesmo John Stewart (1823) afirma o seguinte,
continuando seu relato sobre os terrenos de provisão na Jamaica:

This is the principal means of [slave’s] support; and so productive is the soil, where it is
good and the seasons regular, that this plot will not only furnish him with sufficient food
for his own consumption, but an over-plus to carry to market. By means of this ground, as
of the hogs and poultry which he may raise (most of which he sells), an industrious negro
may not only support himself comfortably but save something141 (p. 267, grifos meus).

Outras espécies, observa Stewart, eram proibidas aos escravos, como cavalos, vacas,
ovelhas e, na maioria das fazendas, também cabras. O que se explica, possivelmente, tanto pelo
valor elevado que possuíam, estando restritos à propriedade dos senhores, quanto por exigirem
mais espaço e mais cuidado. Aos porcos recaía, contudo, a proibição de andarem livres pelos
terrenos, por exigência dos senhores. Porcos, assim como aves, eram parte integrante desses
terrenos de provisão. Assim, é notável que, por todo Caribe, como afirma Sidney Mintz (1989),
histórias sociais comuns produziram inúmeras similaridades entre os campesinatos nascentes, e,

140
Especificamente para São Domingos francês, Moreau de St-Méry (1875 (1796), p. 84) fala em uma média de 15
mil negros (o gênero não é marcado) que iam ao Mercado de Clugny, no centro do Cabo Francês, aos domingos, para
comprar ou vender produtos diversos, alguns dos quais vinham de seus próprios roçados.
141
Ver ainda, particularmente, o capítulo 5 do relato do viajante (Stewart, 1823), sessão dedicada aos animais
selvagens. Como afirma o autor: “Hunting the wild boar was a favourite diversion both of the hardy active white
creole of the interior and of the Maroons” (p. 74, grifos meus).
139

numa diversidade de tradições e influências culturais, “originadas, em larga medida, de uma


história comum de escravidão e trabalho forçado, de dominação do sistema de plantation e de uma
pequena variedade de alternativas econômicas disponíveis àqueles que resistiam a esse sistema
através do estabelecimento de formas de vida externas a ele” (p. 225). Argumento aqui,
acrescentando algo específico às teses de Mintz, que os animais foram cruciais para essas novas
formas de vida. Em um contexto em que a propriedade era algo extremamente racializado e a
mobilidade social era restrita, pessoas que viviam sob o peso do cativeiro tinham a experiência,
mesmo que reduzida, de formas de autonomia, rememorando noções de liberdade e dignidade que
não se perderam na travessia atlântica e forjando, ao lado de outras espécies, novas expectativas,
ambientes e possibilidades de vida142.

O sistema contra-plantation
Essa vida nas margens da plantation – que Tadeusz Lepkowski (1970, p. 58-60) chamou
de “brecha camponesa”, entendida como uma experiência social distinta da sujeição à ordem
escravocrata – foi possível a partir das práticas, subjetividades e técnicas desenvolvidas na relação
com a terra, com os terrenos de provisão, com as plantas e com os animais de caça e criação143.
“Furthermore”, nota Trouillot (1990, p. 39),

as the richer planters became increasingly involved in sugar, and as the coffee revolution
absorbed both those whites with more limited resources and those free blacks who had

142
A pesca era outra atividade que operava na articulação de uma existência fora da coerção da plantation. Segundo
Richard Price (1966), “fishing served a function analogous to trades and to subsistence plots as a ‘way out’ of the
fearfully oppressive plantation system. (…) As soon as economic pressures forced planters to teach slaves skills, or to
allow them to develop skills on their own, the slaves had room to maneuver economically, and their preparation for
freedom was well under way” (p. 1378). Nesse sentido, como a historiografia atlântica contemporânea tem mostrado,
a formulação de ideias e ideais modernos de liberdade e direitos se deve não só a pensadores europeus, mas também
a sujeitos coloniais, sejam eles lideranças políticas ou atores subalternos. Sobre isso, Frederick Cooper (2005) observa,
“The ascension of a liberal idea of a rights-bearing individual over the equally liberal idea of rights as earned by the
civilized behavior of a collectivity reflected the labors not only of a Toussaint L’Ouverture or a Frederick Douglass,
but of unnamed ex-slaves, dependent laborers, and colonized peasants who revealed the limits of colonial power and
defined alternative modes of living and working in the crevices of authority” (p. 21). A historiadora Rebecca Scott
tem discutido as intrincadas relações entre propriedade de animais, mobilidade e liberdade na Cuba de finais do século
XIX. Ver, por exemplo, Scott e Zeuske (2002).
143
Sobre esse tema, ver também Ciro Flamarion Cardoso (1987) e Flávio Gomes (2013).
140

hitherto engaged in foodstuff production, ever larger segments of the growing population
came to depend on the agricultural and craft products of slave families.

Com o início das revoltas que viriam a culminar na Revolução Haitiana, “em diversos
momentos após a rebelião inicial de 1791, escravos rebeldes não pediam o fim da escravidão, mas
apenas dias adicionais para cultivar seus roçados” (idem).
Após o advento da independência nacional, tais experiências foram cruciais na modelagem
de uma estrutura que possibilitou que ex-escravos de plantation, muitos deles nascidos no
continente africano, e seus descendentes, denominados agora coletivamente como lavradores
(cultivateurs), reconstruíssem seu mundo social de maneira relativamente livre e autônoma.
Governantes do país livre tinham, a partir de então, de enfrentar o “problema da liberdade”, na
definição precisa de Thomas Holt (1992) para o caso jamaicano, com tentativas estatais de
restrição da mobilidade da população livre, punindo o que chamavam de vagabondage (vadiagem)
e submetendo pessoas ao trabalho compulsório em plantações de propriedade do Estado, de
dignitários e de generais de alta patente através de mecanismos como a corveia (corvée). Esse
esforço em restringir o acesso à terra à maioria da população recém-liberta e de imobilizar sua
mão-de-obra por meio da aplicação leis e códigos de trabalho foi gradualmente se mostrando falho
e inoperante. Homens e mulheres comuns incorriam em insurgências diversas, retomando uma
tradição popular de revolta que questionava a ordem estatal vigente e colocava em xeque as
tentativas da elite de restaurar a economia de plantation (Plummer, 1991; Gonzalez, 2012; René,
2014).
Tendo em vista o prestígio que os militares adquiriram durante as guerras de libertação e a
necessidade de se protegerem de um possível retorno da França ou de outras potências coloniais
do período, o Exército tornou-se a principal instituição do país independente, consumindo boa
parte do orçamento do Estado e inflando-se inclusive por políticas deliberadas de conscrição da
população masculina144. Com isso, o Exército acabou se convertendo em uma organização formada
majoritariamente por lavradores transformados em soldados de baixa patente que, por lealdades

144
De fato, tão central era o papel do exército no país independente, que a própria noção de cidadania estava
diretamente atrelada a uma concepção específica de masculinidade e militarismo. Como afirma o artigo 9 da
constituição imperial de 1805, a primeira constituição do país livre, “Ninguém é digno de ser haitiano se ele não é
bom pai, bom filho, bom esposo e sobretudo bom soldado” (Constitution impériale d’Haïti reproduzida em Pradine,
1851, p. 49, grifos meus). Sobre esse tema cf. Sheller (2012) e René (2014).
141

locais e laços de parentesco, faziam por vezes coro a formas variadas de resistência popular contra
o Estado e as elites. A exemplo do que argumenta o historiador Marvin Chochotte (2017), “[p]or
ironia do destino, as guerras revolucionárias do século XIX ajudaram africanos outrora
escravizados e seus descendentes a construírem uma sociedade camponesa que se contrapôs ao
modelo projetado pelas elites haitianas” (p. 18).
Aí repousa a gênese de um novo sistema que o sociólogo Jean Casimir (2001) denominou
“contra-plantation”, definido pelo controle da terra e da produção agrícola, organizada em
pequenas propriedades e orientada à subsistência e ao comércio em pequena escala. “A
propriedade da terra e o direito de portar armas”, nota a historiadora Brenda G. Plummer (1991),
“eram cruciais para a definição tanto da liberdade quanto da honra pessoal, como atesta a
tradicional troca de saudações: ‘Honra’, ‘Respeito’” (p. 386). O apego e a proteção de seus espaços
de cultivo e criação, assegurados pela força das armas própria a uma tradição de revolta, dava
sentido a uma sociedade regida por generais na qual princípios militares eram centrais na busca
por mobilidade, status, proteção e liberdade. Assim, soldados de baixo escalão, lavradoras e
lavradores, transformaram a paisagem haitiana estabelecendo pequenas propriedades orientadas à
autossuficiência, às trocas locais e às formas de vida que tinham como valor principal sua
autonomia e a manutenção de uma liberdade duramente conquistada, insurgindo-se sempre que
seu status político e social era colocado em risco. Neste processo, a propriedade da terra estava
inescapavelmente associada à noção de liberdade, conforme argumenta a historiadora Carolyn
Fick (1990):

A personal claim to the land upon which one labored and from which to derive and express
one’s individuality was, for the black laborers, a necessary and an essential element in their
vision of freedom. For without this concrete economic and social reality, freedom for the
ex-slaves was little more than a legal abstraction (p. 249).

No centro desse novo sistema estava o terreiro ou lakou, um conjunto de unidades


domésticas às quais se somam os terrenos de cultivo e criação e, em alguns casos, o cemitério da
família e os locais de morada de espíritos. Tornando-se o centro da vida camponesa, o lakou definia
uma série de relações de parentesco compostas por obrigações familiares, modos de transmissão
de heranças, além de rituais e compromissos com ancestrais e espíritos. A sujeição e a imobilidade
142

de antes davam lugar a possibilidades de autonomia e a uma vida digna visceralmente atrelada à
terra, às técnicas de cultivo e às espécies de criação. Verdadeiras cidadelas, os lakou tornaram-se,
a exemplo da fortaleza de Henry Christophe, emblemas de uma liberdade duramente conquistada,
que muitos estavam dispostos a defender a todo custo.
Assim, o lakou se estabelece historicamente a partir de um conjunto de dimensões sociais
e econômicas servindo ao mesmo tempo de centro do parentesco e de uma ética da vida cotidiana,
constituindo uma linguagem que marca o pertencimento e os princípios de descendência e de
aliança. Refundando-se em meio ao tênue jogo de resistência e inter-relação frente ao Estado, ao
Exército e às classes dirigentes, os lakou se construíam simbólica e concretamente a partir da
interação entre sujeitos, territórios, coletividades e agências, compondo “configurações de casa”,
para lançarmos mão da bela imagem criada por Louis Marcelin (1999) ao analisar as dinâmicas de
parentesco e domesticidade no Recôncavo Baiano.
Certamente, o Haiti sempre foi, e ainda é, um país majoritariamente rural. Mesmo que os
lakou já não sejam mais os “pequenos povoados” de que se lembram os moradores rurais na
etnografia de Rémy Bastien (1951, p. 30), ou ainda que outras dinâmicas sócio-espaciais tenham
passado a coexistir nas regiões rurais haitianas (Anglade, 1982), fato é que esta instituição se
manteve estável numa geografia pós-plantation sendo inclusive crucial na própria constituição dos
espaços urbanos no país (Joos, 2015, p. 73-74)145. Nos lakou, a terra é carregada de significados
que vão da autonomia coletiva e da liberdade individual ao parentesco e às relações entre humanos,
espíritos e animais. Como discute o antropólogo Ira Lowenthal (1994) em sua etnografia na região
de Fonds-des-Nègres, ao sul do país, “a terra permanece como um repositório do passado e fornece
um vasto anfiteatro não só para performances rituais diretamente relacionadas ao passado, mas
também para o desenrolar de uma existência ordinária, cotidiana, geração após geração” (p. 275).
A colonização foi, em si, um empreendimento visceralmente atrelado a um conjunto amplo
de espécies, entre animais, plantas e fungos. Se a caça a animais selvagens ou ferais e as criações
tiveram um papel importante na formação de novos territórios por piratas e colonos, a sociedade
colonial dependia do controle da vida de espécies animais para a alimentação e o transporte, além
de fungos para a produção de álcool e de açúcar. Por outro lado, africanos e seus descendentes

145
Ver também, Trouillot 1990, capítulo 1. Apesar de não falar explicitamente sobre a formação do lakou, Trouillot
traz uma análise em continuidade com as teses de Sidney Mintz, explorando como o “proto-campesinato” se desdobrou
naquilo que o autor chama de “nação”, sempre em oposição ao Estado militarizado e predatório. No centro desse
conflito estava, sobretudo, o significado da liberdade no período pós-emancipação (ver pp. 44-45 et passim).
143

escravizados ou fugidos interagiam com animais dentro e fora da plantation, seja nos terrenos de
provisão ou nos quilombos, produzindo formas de associação que definiram seus territórios, suas
vidas e suas aspirações. Os porcos, com suas intencionalidades e projetos, tiveram um papel crucial
tanto na gênese das formas de vida camponesas como na manutenção de certa autonomia,
entendida não só como dimensão sociológica do campesinato enquanto classe, mas também como
um valor moral fundamental na vida e na visão de mundo desse “campesinato reconstituído”. Por
isso, imaginar no Haiti uma paisagem histórica e social sem os porcos é imaginar também o fim
de um mundo ou, como resumiu certa vez Michelet, “a morte do próprio país”.
144

Capítulo 3: A morte do país

[O] aniquilamento das espécies, de fato, estaria em


marcha, porém passaria pela organização e a
exploração de uma sobrevida artificial, infernal,
virtualmente interminável...
Jacques Derrida (2002, p. 52).

“O Caribe é agora um mar estadunidense”. Este é o diagnóstico do historiador C. L. R.


James quando, em 1963, era publicada a segunda edição de seu livro Os Jacobinos Negros:
Toussaint L’Ouverture e a revolução em São Domingos (James, 1989 [1963], p. 409), acrescida
de um apêndice intitulado “De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro”. O processo de que fala
James ocorreu de modo irregular ao longo do século XX, por meio de políticas e estratégias
variadas. De ocupações militares ao controle financeiro e o estímulo à criação de áreas econômicas
especializadas em produtos ou bens específicos, aos poucos os Estados Unidos foram consolidando
seu espaço imperial. É sob este pano de fundo que o massacre dos porcos se desenrolou. Sua
origem está intimamente associada à constituição deste espaço de influência no qual os EUA, no
pós-guerra, solidificavam suas políticas neocoloniais no Caribe, menos através de um governo
direto do que pelo estímulo a movimentos nacionalistas e descolonizadores que se alinhassem à
sua política externa (Kelly e Kaplan, 2001). Se no capítulo anterior olhei para a jornada dos porcos
até o Caribe e o modo como eles logo se constituíram enquanto agências centrais para a
colonização e para a criação de espaços de autonomia produtiva aos grupos escravizados, resta
agora buscar o que motivou o massacre dos porcos na segunda metade do século XX.
Nesse ponto, a peça que falta no quebra-cabeça nos distancia da vida no campo e das
interações com os animais de criação e nos aproxima de laboratórios e das políticas sanitárias
globais. Que as famílias escravas buscassem novas possibilidades de vida criando lugares de
autonomia dentro da plantation se torna algo mais ou menos óbvio quando nos questionamos sobre
as razões do massacre. Sobre esse problema, Trouillot (2003) faz a seguinte provocação:

Ultimately, however, the fact that modernity has long obtained outside of the North
Atlantic is only a secondary lesson from the Caribbean; it is a conclusion that still makes
145

those outside of the North Atlantic the ones who need to be explained. Yet is the alter-
native really what is to be explained? (…) Is the puzzle the resilience of the creolization
process under slavery, or the expectation that enslaved Africans and their descendants
would be either a tabula rasa or mere carriers of tradition (…)? In short, is not the puzzle
within the West itself? (p. 45, grifos meus).

Poderíamos seguir: seria o quebra-cabeças o fato de populações camponesas produzirem


seus universos sociais junto a animais ou a complexa montagem de um extermínio? Enquanto ação
promovida no esteio de uma política sanitária e biológica estadunidense, tal episódio revela
princípios culturais que dão base a concepções de raça, animalidade, doença, ecologia e história e
que pautam a constituição de políticas e práticas estatais racistas em espaços neocoloniais
contemporâneos. Explorarei aqui o massacre em questão e suas consequências numa economia
política do mundo atlântico da qual populações camponesas são parte inextricável. Se, de um lado,
o massacre teve motivações biomédicas e sanitárias, suas consequências, por outro, foram muito
além do fim de uma fonte de alimento e de liquidez, implicando um aumento das dívidas cósmicas
com espíritos e um risco à própria independência do país – dimensões que revelam, como veremos,
uma aproximação entre vodu e história. Cabe notar, por fim, que no momento em que diferentes
documentos e fontes começam a surgir sobre o regime do clã Duvalier, muitos deles atentos a seus
impactos entre populações citadinas (ver Buteau e Trouillot, 2013), olhar para o massacre pode
nos ajudar a entender melhor o modo como a ditadura se desdobrava no campo e no cotidiano de
moradores rurais.

Porcos domésticos, portadores inaparentes e vírus mortais


As décadas de 1960 e 1970 foram tempos agitados nos mares caribenhos. A Revolução
Cubana de 1959 teve repercussões importantes em todo o globo, incidindo de modo
particularmente intenso no Caribe, na América Latina e nos Estados Unidos. Projetos
independentistas se consolidavam em ilhas e territórios como Jamaica (1962), Trinidad e Tobago
(1962), Barbados (1966), Guiana (1966), Granada (1974), Santa Lucia, Dominica e São Vicente e
Granadinas (1977-1979) e, já na década de 1980, Antígua e Barbuda (1981), Belize (1981) e São
Cristóvão e Nevis (1983). Adensou-se, com isso, uma reestruturação das antigas alianças e
influências e, aos poucos, os Estados Unidos ganharam controle sobre o Caribe, afastando as
146

potências europeias ao mesmo tempo em que bloqueava e combatia a difusão de propostas


revolucionárias, anti-imperialistas e socialistas na região146. Localmente, elites econômicas e
governos nacionais aproveitaram-se disso para colocar em prática suas propostas, negociando com
os EUA a manutenção de certos privilégios comerciais e políticos em troca de apoio a medidas e
regimes autoritários, entre os quais o de François “Papa Doc” Duvalier, no Haiti. Entre os efeitos
da Revolução Cubana esteve também a mudança da dinâmica do turismo na região, com Cuba
perdendo o protagonismo e outras ilhas experimentando um intenso e crescente fluxo de pessoas,
mercadorias e capitais. Como destaca a historiadora Brenda G. Plummer (1990),

In spite the havoc that Duvalier had wreaked and would continue to wreak, his supposed
importance as anti-Communist ally during a period when the United States, and specifically
the Kennedy administration, was under pressure for failures in Cuba and the Congo, and
faced Soviet intransigeance (sic) over Berlin, led to a deal in which the United States would
help build a modern airport in Port-au-Prince in exchange for Haiti’s vote to expel Cuba
from the Organization of American States147 (pp. 17-18).

Foi nessa época que Milot passou a fazer parte de uma rota turística caribenha e cruzeiros
atracavam no porto de Cabo Haitiano com os turistas seguindo então para o vilarejo, a fim de
visitar o Palácio Sans Souci e a Cidadela. Milosianos mais velhos lembram-se desse momento e
do calendário de chegada dos navios. Camponeses de Samson, por exemplo, mantinham criações
de cavalos que alugavam para o transporte dos turistas até a fortaleza. Ao lado desse estímulo ao
turismo, outras medidas ganhavam corpo, como negociações sobre a exportação de lixo tóxico dos
EUA para o Haiti e a montagem de uma fábrica de extração de plasma sanguíneo em Porto-
Príncipe148. Contudo, essa nova onda de investimentos e as riquezas produzidas com o turismo
contrastavam com a situação socioeconômica geral do país.

146
Sobre esse tema, ver, entre outros, Palmié e Scarano (2011) e Scott (2014).
147
Nesse mesmo artigo, a autora analisa ainda de modo notável a mudança na dinâmica do turismo no Haiti por meio
da análise dos diferentes governos norte-americanos a partir do fim da Ocupação Americana (1915-1934). A escalada
ditatorial de Duvalier, em 1961, foi um importante câmbio nesse cenário, com a imagem do Haiti no exterior passando
ao que Michael Dash (1988) denominou “discurso conradiano” (Conradian discourse), centrado na proliferação de
imagens e relatos sobre terror e morte.
148
Sobre o lixo tóxico, ouvir o editorial do importante agrônomo e jornalista Jean Dominique, na Rádio Haiti, emissão
do dia 20 de outubro de 1980, disponível em: http://radiohaitilives.com/fr/enregistrements/editorial-bon-appetit-
messieurs-20-octobre-1980/ (acesso em 15/01/2017). Sobre a fábrica de plasma, ver Richard Severo, “Impoverished
147

O Haiti estava à época sob o manto de um regime autoritário, com François Duvalier à
frente do Estado e, posteriormente, com seu filho, Jean-Claude “Baby Doc” Duvalier, que assumiu
o poder em 1971, com apenas 19 anos de idade. Seu governo foi marcado pela continuidade do
regime de terror e violência na esteira do governo do pai e, particularmente, pela consolidação de
uma relação predatória com o campesinato, ao mesmo tempo em que o país se abria a políticas
neoliberais149. Perseguições políticas e opressões socioeconômicas fizeram avançar a busca de
refúgio e as chamadas boat people ganhavam a costa de outras ilhas caribenhas e dos EUA,
passando a figurar também em manchetes de jornais norte-americanos e haitianos. Internamente,
o governo fazia pressão sobre jornalistas e ativistas políticos, além de combater seus opositores,
taxando-os de “inimigos da Revolução”, comunistas ou kamoken, em referência ao remédio de
gosto amargo usado nos tratamentos contra a malária. Ao criar e explorar conflitos políticos
nacionais e globais, Duvalier produzia efeitos importantes na manutenção da proximidade com os
EUA e na própria permanência de sua linhagem no poder150.
Nos anos 1970, entretanto, um outro inimigo, este muito mais silencioso, ganhava terreno
no Caribe e preocupava particularmente autoridades, políticos e especialistas dos EUA: um
patógeno que afetava de modo incomum as criações de porcos domésticos. “Ele parece ter existido
em porcos selvagens nativos da África por um longo tempo”, descreveu, em 1971, o
microbiologista William R. Hess, “pois com os suínos estabeleceu uma relação ideal de parasita-
hospedeiro na qual uma infecção prolongada ocorre sem sinais de enfermidade” (Hess, 1971, p.
2, grifos meus). Essa doença endêmica à África Oriental começou a ser reportada, de fato, a partir
do transporte de porcos domésticos europeus às colônias africanas, em princípios do século XX.

Haitians Sell Plasma for Use in the US”, The New York Times, 28 de janeiro de 1972, disponível em:
https://www.nytimes.com/1972/01/28/archives/impoverished-haitians-sell-plasma-for-use-in-the-us.html (acesso
15/01/2017).
149
A taxação da produção camponesa, particularmente do café, representava já desde muitas décadas a principal fonte
de rendimentos do governo, encontrando uma elevação considerável durante o regime de François Duvalier (de 27%,
em 1953, para 37%, em 1969). O objetivo, como mostra Trouillot (1990, p. 154), era o de beneficiar monopólios de
exportação e criar uma base de apoio local através do favorecimento de especuladores. Nos arquivos do Tribunal de
Paz (Tribunal de Paix) de Milot, encontrei inúmeras ações que revelavam a crescente fiscalização da produção e da
preparação do café por lavradores e mercadoras durante o governo ditatorial. Colher grãos verdes demais ou secá-los
ao chão eram delitos puníveis com multas ou até mesmo a privação da liberdade.
150
O antropólogo Louis Herns Marcelin (2012, p. 260-261) descreve o peso que termos como kominis (“comunista”)
e kamoken tinham entre as comunidades rurais e o modo como tais classificações eram associadas a forças malignas
que corrompiam seus filhos e filhas, muitos deles estudando nas cidades e constituindo uma forte oposição ao regime
ditatorial.
148

Sua presença foi primeiro descrita pelo veterinário colonial inglês R. Eustace Montgomery (1921),
que à época trabalhava no protetorado da África Oriental Britânica (posterior protetorado e colônia
do Quênia). A similaridade com a Peste Suína Clássica (PSC) conferiu-lhe o nome de Peste Suína
da África Oriental (PSAO).
O vírus tinha particular atração por tecidos internos e a doença era percebida, a princípio,
como uma forma de pneumonia que afetava também o canal digestório. Os porcos enfermos
apresentavam edemas pulmonares, focos hemorrágicos em diferentes órgãos, inflamação de
membranas e mucosas, lesões no coração e inchaço do baço. Nos porcos de pele clara, observava-
se uma cianose pontual nas orelhas e coxas, com a coloração azul violácea espalhando-se
gradativamente por todo o corpo do animal. Ademais, infectando indiscriminadamente porcos de
diferentes idades e tanto machos quanto fêmeas, o animal doente costumava apresentar sintomas
de extremo cansaço, abatido, o rabo pendendo involuntariamente e o ventre retraído, além da perda
da fome, uma sede incomum e uma febre acentuada que poderia exceder os 40° C (Montgomery
1921, p. 161). A partir da constatação desses primeiros sintomas, em não mais de 48 horas, o
animal sucumbia. A doença começou a se fazer notar em criações próximas a áreas onde viviam
javalis-africanos (Phacochoerus sp.).
Na África Oriental Britânica, espécimes domésticos europeus eram destinados
exclusivamente ao consumo dos colonos e, não havendo mercado, a circulação dos porcos se
restringia a um circuito simples: iam das fazendas à fábrica local de toicinho, a única na região.
Como nota Montgomery (1921), “[c]ada surto [da doença] parece ter surgido de forma
independente. Todos os porcos domésticos vivendo agora no Protetorado foram originalmente
importados do exterior. Não há nenhuma espécie indígena ao país ou em posse de nativos na África
Oriental Britânica” (p. 160). Isso se explica pelo fato de que, até 1920, a região era ainda parte do
Sultanato de Zanzibar e porcos, como outras espécies do além-mar, serviam à adaptação de colonos
e agentes coloniais, numa sorte de “europeização das paisagens”, na expressão precisa de Alfred
Crosby (1986)151. Esses animais viviam em liberdade nos terrenos, cuidados por pastores nativos,
e arrebanhados à noite para lotes cercados, com a finalidade de serem alimentados e para evitar
ataques de animais selvagens.

151
As estirpes e cruzamentos de porcos presentes no protetorado britânico eram quatro: Berkshire, Longblack,
Tamworth e Seychelles, não havendo diferenças quanto à suscetibilidade à doença (Montgomery, 1921, p. 162).
149

Apesar da presença considerável de javalis-africanos em todo o protetorado, naquele


período, a associação entre eles e a difusão da doença era algo circunstancial, menos embasado na
evidência da presença do vírus (como pesquisas em sorologia poderiam atestar) ou em estudos
sobre os possíveis portadores do que em observações epidemiológicas. De todo modo, a julgar
pelos quinze surtos da doença relatados na região, até finais de 1915, e outros dois na África
Oriental Alemã, aquela era uma infecção fatal, apresentando uma taxa de mortandade da ordem
dos 98,9% (Montgomery 1921, p. 160).
Entre 1910 e 1916, Montgomery levou a cabo experimentos de inoculação do vírus em
diversos animais domésticos, entre suínos, bovinos, caprinos, cães e coelhos, observando de modo
controlado os estágios de incubação e suas reações. Seguindo os postulados de Henle-Koch,
formulados em finais do século XIX, os experimentos eram feitos através da injeção de fragmentos
do sangue de um animal contaminado em outro, de mesma espécie ou de espécie diferente, a fim
de se observar as possíveis reações e a permanência do vírus no sistema sanguíneo de cada grupo152.
Somente nos porcos domésticos notavam-se reações infecciosas e, invariavelmente, a morte dos
animais (pp. 162-165). Inoculações também foram empreendidas em javalis-africanos e porcos-
do-mato-africanos (Potamochoerus sp.), capturados por fazendeiros locais ou de colônias
vizinhas, como Uganda. Buscava-se domesticá-los a fim de criar um ambiente propício para a
observação das reações, muitas vezes sem sucesso, pois a maioria dos animais morria antes que
qualquer reação fosse notada, resultado do confinamento e do novo ambiente a que eram
submetidos. Contudo, os poucos que sobreviviam ou eram capturados jovens o suficiente para se
aclimatarem à criação não apresentavam sinais da doença. Assim, conclui Montgomery (1921),
porcos-do-mato e javalis-africanos “não reagem à inoculação como os porcos domésticos; eles não
manifestam nenhum sintoma e são presumidamente imunes. Parece, contudo, que a imunidade não
é tão completa quanto em bois e carneiros e que o vírus pode sobreviver no sangue do porco
selvagem por um certo tempo” (p. 188).
Não demorou muito para que o vírus alcançasse outras rotas e ganhasse as criações da
Europa. Em 1957, a doença chegou a Portugal e, só a partir dali, começou a chamar a ampla
atenção de instituições nacionais e supranacionais (Manso Ribeiro et al., 1958). O mecanismo de

152
Tentativas de propagação do vírus em outros animais tornaram-se comuns a partir de então, por três razões: i)
encontrar um animal de laboratório menos dispendioso, ii) determinar se outras espécies eram capazes de hospedar o
vírus e iii) observar possíveis modificações em outros hospedeiros (Hess 1971, p. 17). Sobre o tema do contágio, ver
ainda Lévi-Strauss (2006, especialmente, pp. 16-7) e Farage (2011).
150

transmissão aos porcos domésticos, porém, permanecia um mistério (Hess, 1971, p. 3). Pesquisas
e experimentos, então, se difundiram para além dos territórios africanos e simpósios nacionais e
internacionais, congressos técnicos, reuniões e publicações tornaram-se cada vez mais numerosos,
concentrando-se, de um lado, na investigação sobre a patogenia do vírus, sua origem e evolução
e, de outro, no estudo de sua estrutura, de sua composição e de suas formas de replicação153.
Em 1960, após pesquisas feitas no Quênia, descobriu-se um modo de detectar o vírus por
meio de um teste in vitro, concretizando a possibilidade de diagnóstico da peste suína africana e a
diferenciação de sua variante clássica (Malmquist e Hay, 1960). Data de 1961 a primeira reunião
da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) inteiramente dedicada
à questão, algo que se tornou recorrente na forma de congressos anuais sobre o tema, reunindo
diferentes especialistas e agentes de governo e resultando em publicações e resoluções a serem
seguidas por países afetados. Se, como mostra Bruno Latour (1988), com as descobertas de Pasteur
sobre germes e seres infecciosos na França do final do século XIX, uma “[d]oença não era mais
um infortúnio privado, mas uma ofensa à ordem pública” (1988, p. 123, grifos removidos), para o
caso da peste suína africana, a doença ganhava dimensões mais amplas e tornava-se uma ofensa à
ordem global.
Em pouco tempo, a enfermidade passou a ser definida simplesmente como “peste suína
africana” (PSA) ou, em uma homenagem àquele que primeiro a descreveu, “doença de
Montgomery”. Pelo que se tem documentado, a partir de 1960, o vírus se espalhou pela Europa,
indo de Portugal à Espanha, chegando aos Pirineus e à Bretanha e, posteriormente, em 1967, aos
arredores de Roma154. Os surtos eram na maioria dos casos respondidos com programas drásticos
de erradicação, mas notava-se uma diminuição da patogenia do vírus e as reações das populações
de porcos já não eram tão marcantes como nas primeiras observações (Sanchéz Botija e Polo Jover,
1964). Mesmo assim, a mera presença do vírus causava alarde em autoridades, temendo a
resiliência ou readaptabilidade do patógeno ou de seus vetores. Como nota o microbiologista
William R. Hess, em 1971, apesar dos massacres que ocorreram até aquela data, “no momento da
redação [daquele texto], a PSA está ainda presente em Portugal e na Espanha e foi mais uma vez
relatada na Itália” (Hess 1971, p. 2).

153
Analisando uma compilação bibliográfica que abarca os anos de 1921 a 1965 (Balassa, 1966), é possível notar um
crescente número de publicações especializadas a partir de 1957, quando a doença chega à Europa.
154
“Destruction of Pigs Urged to Halt Fever in Rome Area”, The New York Times, 12 de abril de 1967.
151

William Hess tornou-se o grande especialista na peste suína africana nos EUA e seu
pequeno estudo monográfico é um dos mais detalhados trabalhos sobre o assunto. O texto traz um
debate bibliográfico sobre a doença, compilando pesquisas feitas até finais da década de 1960.
Desde as investigações iniciais, o modo de transmissão da doença havia sido o principal enigma
com o qual se confrontavam os cientistas e permanecia sendo, como nota o microbiologista, “o
ponto mais fraco em nosso conhecimento da epidemiologia veterinária da PSA” (p. 27). O vírus
apresentava grande estabilidade no sangue, nas excreções e nas vísceras dos porcos contaminados
e era, por isso, altamente contagioso entre os espécimes domésticos em razão da prática de se
administrar carne de porcos a animais da mesma espécie. Ademais, já desde meados da década de
1960, pesquisadores apontavam para a possibilidade de que “portadores inaparentes”, sobretudo
carrapatos, pudessem ser os responsáveis pela difusão da infecção em zonas de contato entre
espécies selvagens e domésticas e em fazendas de criação extensiva. No entanto, exatamente por
essas incertezas, surgiram diferentes teorias sobre o contágio, além de hipóteses sobre possíveis
relações com outras doenças animais ou humanas.
Nessa guerra ao vírus da peste suína africana, a ideia de erradicação dos espécimes doentes
passou a ser algo prescrito (Hess, 1971):

Since satisfactory immunizing agent for ASF is not available, rapid detection and
elimination of infected and exposed animals is the procedure employed to halt the spread
of the disease. The effectiveness of this ‘stamping out’ method depends to a large extent
upon the speed with which it is initiated. Rapid diagnosis is therefore essential (p. 25).

Durante grande parte de sua vida, William Robert Hess trabalhou como cientista no Centro
de Pesquisas em Doença Animal na Ilha de Plum (Plum Island Animal Disease Center), um
complexo altamente protegido localizado em uma pequena ilha da costa leste dos EUA não muito
distante da cidade de Nova Iorque. Criado em 1954, esse laboratório tinha o objetivo claro de
desenvolver pesquisas sobre doenças animais e suas epidemiologias, produzir vacinas e propor
formas de contenção de infecções. Dentre os primeiros dossiês de pesquisa estavam, entre outras,
a peste bovina, a febre aftosa e a própria peste suína africana.
Inicialmente atrelado ao Exército dos EUA, cabia ao laboratório de Plum Island abrir várias
frentes de batalha contra bactérias, vírus e germes que se deslocavam pelo globo e que poderiam,
152

por ventura, atravessar as fronteiras estadunidenses e afetar rebanhos e criações nacionais. Plum
Island logo se tornou um braço importante do Departamento de Agricultura do Estado (USDA) e
com o tempo, começaram a surgir desconfianças sobre a possível relação entre o laboratório e a
introdução acidental (ou intencional) de doenças, animais ou humanas, no território nacional. Além
disso, a confidencialidade do laboratório, o acirramento da corrida nuclear e espacial naquele
momento de Guerra Fria e um crescente medo de uma efetiva guerra com o bloco soviético foram
fatores que contribuíram para a difusão de rumores sobre programas dedicados à produção de
armas biológicas155.
É difícil avaliar a exata veracidade das suspeitas e dos rumores em torno da peste suína
africana e o papel de Plum Island na difusão de enfermidades animais. Mas alguns fatos merecem
nossa atenção por revelarem importantes conexões nessa rede que aproxima porcos, cientistas,
vírus, refugiados e políticos. Como dito acima, a criação do laboratório esteve diretamente
associada à peste suína africana e, com o tempo, Plum Island ganhou o estatuto de principal centro
de pesquisa para detecção e estudo da doença em todo o continente, recebendo um imenso fluxo
de amostras de sangue e de tecido animais de vários países. Pelo que consta nos relatórios e
resenhas sobre o assunto, até finais da década de 1960 a doença não havia afetado criações do
Caribe e nem das Américas (Hess, 1971; Callis, 1980). O primeiro surto na região foi reportado
em 1971, em Cuba, próximo à cidade de Havana, mas, como aponta o relatório feito pelo Instituto
Nacional de Medicina Veterinária de Cuba (1971), “a entrada do vírus causador da doença no país
ainda não foi totalmente esclarecida” (p. 417). Contudo, alguns anos depois, frente a representantes
ministeriais de diferentes países e agentes internacionais, A. Fernandez e D. Williams (1980),
ambos ligados ao Instituto de Medicina Veterinária cubano e possivelmente os autores do primeiro
relatório sobre a doença no país, fizeram a seguinte declaração:

The origin of the infection was the subject of careful studies, which at that stage did not
reach definitive conclusions. Special emphasis was placed on three possible routes of entry;
finally, one of them, criminal action, was confirmed through an article published in
Newsday in 1977 (p. 61-62).

155
Sobre a situação atual de Plum Island, ver Corey Kilgannon, “Home to High-Security Lab and Source of Rumors,
Plum Island Faces Uncertain Future”, The New York Times, 14 de setembro de 2016,
https://www.nytimes.com/2016/09/15/nyregion/plum-island-home-to-top-secret-lab-faces-uncertain-future.html
(acesso 10/01/2017). Ver ainda o livro interessante, mas algo sensacionalista, de Michael C. Caroll (2004).
153

Os dois veterinários referiam-se à notícia publicada pelo periódico Newsday, nos EUA, em
janeiro de 1977, reproduzida em diversos jornais do país logo em seguida. A reportagem do The
Washington Post, por exemplo, fala de um informante anônimo ligado ao serviço de inteligência
dos EUA que afirma ter recebido, em princípios de 1971, um pacote sem especificações na base
estadunidense de Forte Gulick, localizada na Zona do Canal do Panamá, sob controle
estadunidense156. Sabia-se, pelo que consta no periódico, que, ali, “[a] CIA opera um centro de
treinamento paramilitar para mercenários e funcionários de carreira”157. Sem ter informações sobre
o conteúdo do pacote, segundo o informante, as instruções eram para que o entregasse a um grupo
anti-Fidel Castro que trataria então de levá-lo à base da Baía de Guantánamo, em Cuba158. Como
nota a reportagem, o episódio ocorreu dois anos após o presidente Richard Nixon ter assinado um
compromisso de não utilização de armas químicas ou biológicas, revelando que havia, de fato,
uma preocupação quanto ao desenvolvimento de agentes nocivos destinados a afetar diretamente
não só seres humanos, mas também criações e plantações de países adversários. Todavia, o
exército e a CIA continuaram levando a cabo pesquisas com agentes bioquímicos e, apesar dos
esforços do Congresso estadunidense em ter acesso às informações e relatórios de atividades, a
maioria dos documentos foi voluntariamente destruída159.
Em maio de 1971, na província de Havana, a doença avançava e, em razão da mortandade
elevada, surpreendia criadores, veterinários e o próprio governo por ser algo nunca antes visto.
Com a confirmação do patógeno da peste suína africana alguns meses depois, em junho de 1971,
por um laboratório soviético, um programa coordenado de erradicação foi colocado em prática e

156
Drew Fetherston e John Cummings, “CIA Linked to 1971 Swine Virus in Cuba”, The Washington Post, 9 de janeiro
de 1977. Ver também “CIA Link to Cuban Pig Virus Reported”, San Francisco Chronicle, 10 de janeiro de 1977.
157
Fetherston e Cummings, “CIA Linked to 1971…”.
158
Um outro informante, possivelmente cubano, declarando ter estado presente no barco de pesca que fez a travessia
até Cuba, parando na ilha de Navassa, entre Haiti e Jamaica, justificou revelar tais informações por um
descontentamento quanto às recentes aproximações dos EUA com o governo de Fidel Castro – algo que teria causado
reações violentas de grupos dissidentes exilados, como assassinatos de políticos e atentados diversos nos EUA e na
Venezuela, transformando tais grupos em alvo de investigações e represálias da CIA e do governo estadunidense. As
suspeitas de guerra biológica entre os dois países não se restringiram à febre suína, tendo sido muitas vezes assunto
de denúncias em fóruns internacionais e tema de notícias de jornal nas décadas de 1970 e 1980. Ver, por exemplo,
Drew Fetherston e John Cummings, “Canadian Says U.S. Paid him $5,000 to Infect Cuban Poultry”, The Washington
Post, 21 de março de 1977; e “Cuba takes fever claim to UN Geneva forum”, The Globe and Mail, 19 de agosto de
1981.
159
Fetherston e Cummings, “CIA Linked to 1971…”.
154

aproximadamente 500 mil porcos foram assassinados em diferentes pontos do país onde se havia
reportado sinais da doença. As fazendas de criação foram então desinfetadas e preparadas para o
recebimento de novos espécimes após um período de avaliação. Como descrevem Fernández e
Williams (1980), o processo de erradicação só foi bem-sucedido por ter sido extremamente
descentralizado, tendo, de um lado, o apoio de países como União Soviética, Canadá e França,
associados ao governo cubano e, de outro, a efetiva ação dos Comitês de Defesa da Revolução,
responsáveis locais pela execução dos porcos. Contudo, apesar dos relatos oficiais otimistas, na
região Havana, muitas casas mantinham porcos em seus pátios e, por isso, como destacam os
jornalistas do The Washington Post, o impacto da execução dos animais foi imenso, resultando em
um longo período de falta de carne para a população160.
No final da década de 1970, a doença se espalhava pelo Caribe e chegava também a países
da América do Sul. Em 1978, surtos foram reportados na República Dominicana e no Brasil,
separados por uma diferença de alguns meses. Comum entre esses dois casos era o fato do contágio
ter sido associado à proximidade com aeroportos e ao consequente acesso de porcos a dejetos
contaminados vindos de países estrangeiros161. Além disso, as práticas de criação nos dois países
eram bastante descentralizadas e desenvolvidas, sobretudo, em pequenas propriedades na zona
rural ou em periferias urbanas, favelas e bairros pobres. No caso dominicano, como nota o
veterinário Sanchéz Díaz, (1980, p. 55), 20% dos criadores de porcos do país empregavam práticas
extensivas, com pouco controle sobre os animais e sobre suas formas de encontrar alimentos; 10%

160
Idem. No célebre Biografía de um cimarrón em que Miguel Barnet (1977) conta a história do antigo escravo
Esteban Montejo, o seguinte trecho revela a centralidade dos porcos e da banha durante o período colonial: “Casi
todos los esclavos tenían sus conucos. Estos conucos eran pequeños trozos de tierra para sembrar. (…) También
criaban sus cochinaticos. (…) En la esclavitud lo principal era el cochino. Las viandas las usaban para alimentarlos.
Los cochinos de antes daban más manteca que los de ahora” (p. 9). Para uma discussão sobre a obra de Barnet e
Montejo, ver Zeuske (1997) e Palmié (2011). Agradeço a João Felipe Gonçalves pela indicação dessas leituras.
Ademais, a peça de teatro “Manteca” do dramaturgo cubano Alberto Pedro Torriente (2005), que estreou em Havana
em 1993, é um retrato notável do “período especial” e traz uma reflexão poética sobre o lugar dos porcos.
161
Ver Mendes Serrão (1980, p. 43), Orlando Sánchez Diaz (1980, p. 56) e Moura et al. (2010). A tese de
doutoramento de Francisco Viana (2004) mostra por meio de uma análise de diferentes materiais, de artigos
especializados a depoimentos, que o aparecimento da doença no Brasil foi acompanhado por uma série de mal-
entendidos e ações descoordenadas, gerando desconfianças e rumores e afetando particularmente os pobres e os
criadores de fundo de quintal. Diferentes versões sobre a entrada da doença no país são apresentadas e discutidas pelo
autor. Uma das versões aponta para o fato de que o criador de porcos da Fazenda Floresta, no município de Paracambi-
RJ, local do primeiro surto reportado, era funcionário do DOPS e trabalhava no aeroporto do Galeão, além de ser
motorista de um general, na época secretário de segurança do Rio de Janeiro, e coletava sobras de alimentos das
companhias aéreas para alimentar suas criações. Ver, particularmente, pp. 65-74.
155

utilizavam um sistema orientado em torno do sítio, casa ou grupo doméstico, com o animal sendo
alimentado com restos oriundos da cozinha e circulando ao redor das habitações; e 50%
empregavam uma variação das outras duas, em um sistema semiextensivo162. Entendia-se que essas
práticas de criação eram retrógradas e insalubres, favorecendo a justificativa de que o extermínio
dos porcos serviria também para a modernização das fazendas e das formas de interação com os
animais. Exatamente por essa liberdade na criação e pelo fato de que o vírus se mantinha ativo no
sangue e nos tecidos dos porcos mesmo após a morte, ganhou corpo a hipótese da contaminação
por ingestão de produtos e fragmentos de origem animal oriundos dos depósitos de lixo de
aeroportos. Mas muitas ainda eram as incertezas.
Enquanto o vírus da peste suína avançava por criações em todo o globo, multiplicavam-se
também as pesquisas e a circulação internacional de especialistas, resultando em uma inflação de
hipóteses sobre a doença e o comportamento do vírus. Das coletas de materiais em campo, passava-
se às pesquisas em laboratórios para, então, em seguida, publicar os resultados em periódicos da
área e participar de seminários e reuniões internacionais, muitas delas registradas em atas e
colocadas à disposição de ministérios e institutos nacionais e internacionais163. Multiplicavam-se
também as notícias de jornal com relatos de veterinários e biólogos, tornando públicos e
difundindo os resultados e as hipóteses das pesquisas. Muitas dessas notícias vinham ainda
acompanhadas por descrições de surtos e pela difusão de imagens de porcos doentes ou mortos164.
Similar ao que ocorria no final do século XIX na França, como nota Latour (1988), não era a partir
da ignorância que os cientistas formulavam suas opiniões, mas de um excesso difuso de
conhecimento. A incerteza implicava, de fato, que tudo era plausível. Assim, tal como no momento
de constituição da saúde pública na Europa, “[s]e qualquer coisa pode causar uma enfermidade,
nada pode ser ignorado; é necessário estar apto a agir de uma só vez contra tudo e em todos os

162
É provável que os sistemas descritos pelo autor fossem comuns também às criações em algumas regiões do Haiti,
como pude inferir a partir dos relatos de camponeses da região de Milot. Pode-se consultar ainda a descrição das
práticas de criação em Groupe de Recherche pour le Développement (GRD), “Peste porcine africaine, cochons et
paysans en Haïti", Le Nouvelliste, Porto-Príncipe, 27 de fevereiro de 1981.
163
Entre as reuniões da FAO mencionadas acima, são exemplares as publicações aqui referidas, como Hess (1971) e
Callis (1980), passando também por diversos artigos publicados em revistas especializadas como o “Boletim do
Escritório Internacional de Epizootias” (Bulletin de l’Office Internacional des épizooties).
164
Ver os relatos e as imagens que circularam na imprensa brasileira entre fins de 1970 e começo de 1980 recolhidos
por Viana (2004). Algumas dessas publicações tinham ainda o claro objetivo de convencer a população sobre o perigo
da doença e a importância do extermínio dos porcos, como a publicação da USDA em conjunto com a USAID e a
FAO lançada na República Dominicana (Mark, Chain e Ellis, 1981).
156

lugares” (p. 20). Entre as décadas de 1970 e 1980, esse parece ter sido o princípio que resultou nas
diversas frentes de ação contra a peste suína africana nas Américas e no Caribe.

Teorias (alter)nativas do contágio165


No livro Les Rapaces, escrito entre 1971 e 1973 e publicado postumamente, a escritora
haitiana Marie Vieux Chauvet (1986) expõe um diálogo fictício entre dois haitianos. O
personagem Alcindor, vivendo os dramas de um homem em busca de trabalho para alimentar seus
quatro filhos, encontra então um passante que lhe fala sobre uma companhia de extração de plasma
em Porto-Príncipe, algo que lhe traz à memória uma figura nefasta e vampiresca:

- Você está em busca de trabalho, irmão?


- Sim, irmão, estou buscando trabalho. Tenho quatro filhos, sabe?
- Venda teu sangue, irmão.
- Como assim, irmão?
- De onde você vem para ignorar que estão comprando aqui o sangue dos pobres? Por mais
sujos, por mais podres de doença que sejamos, pagam-nos quinze piastras por um litro de
nosso sangue. Três dólares, irmão.
- Você está falando sério?
- Sim, falo sério. Vá por ali. Dê teu braço e você ganhará quinze piastras em menos de uma
hora. (...)
“Será que são lobisomens [loups-garous]? Se pergunta Alcindor, desconfiado, pois
somente eles têm a reputação de gostar do sangue alheio” (...).
- Porque compram nosso sangue? (…).
- Para revendê-lo, dizem, aos brancos americanos.
- E o que fazem esses brancos com nosso sangue? (p. 55).

Essa fábrica de extração de plasma, conhecida como Hemo Caribbean, funcionou no Haiti
desde princípios de 1971, a partir de um acordo entre um investidor estadunidense e François
Duvalier, mediado por Luckner Cambronne, ministro do interior e da defesa nacional e dono de
uma empresa de aviação, além de um dos líderes dos Voluntários da Segurança Nacional (VSN),
o grupo de milicianos duvalieristas conhecidos infamemente como tonton makout (Ferguson,

165
Sigo de perto aqui o argumento e parte do material utilizado por Dubois (1996).
157

1987, p. 47 e pp. 61-62). Como observa um jornalista do The New York Times, em janeiro de 1972,
“Os haitianos, muitos vestindo farrapos e sem sapatos, se juntam no Hemo Caribbean seis dias por
semana das 6h30 às 22h. Eles passam em torno de uma hora e meia a duas horas sendo monitorados
e, de fato, dando seu sangue. (…) O plasma é congelado e enviado aos Estados Unidos pela Air
Haiti, a empresa aérea de Sr. Cambronne”166. Em 1973, Jean-Claude Duvalier tentou fechar essa
fábrica, algo que foi respondido com uma intensa ofensiva contra o governo haitiano e ameaças
de que cessariam com as doações e ajudas de norte-americanos ao país. Uma década depois, no
final dos anos 1980, ocorreu uma inversão e haitianos foram proibidos de doar sangue em território
estadunidense. Como pergunta o historiador Laurent Dubois, “por que os Estados Unidos rejeitava
o que antes havia desejado com tanto afinco?” (1996, p. 32). A razão para isso tem uma relação
estreita com a doença dos porcos.
Em nenhum outro lugar como a ilha de Espanhola medidas de biossegurança tomaram
tamanha proporção. Em 1978, a República Dominicana, tornou-se um grande laboratório campal,
onde veterinários, microbiólogos e outros especialistas nacionais e estrangeiros observavam
porcos, colhiam amostras e produziam conhecimento sobre a doença (ver Mark, Chain e Ellis,
1981). Após a identificação do vírus da peste suína africana no país, seguiu-se ao extermínio total
da população de porcos acompanhado do fornecimento compensações aos criadores, sobretudo na
forma de dinheiro. Isso só foi possível em razão do apoio considerável de autoridades
estadunidenses, canadenses e mexicanas tanto no fornecimento de especialistas, quanto no
oferecimento de empréstimos para o pagamento das compensações167.
Devido à porosidade da fronteira com o Haiti, decidiu-se também por avançar ao país
vizinho, erradicando criações de porcos 15 km fronteira adentro. À época, não havia notícia de
surtos no Haiti, mas a medida foi tomada como precaução. Contudo, em 1981, casos foram
reportados na província de Artibonite, região centro-noroeste do Haiti. A partir disso, o programa
de erradicação tomou conta de toda a porção ocidental da ilha. Dois anos depois, anunciava-se o
sucesso desse “sacrifício doloroso” na 10ª Reunião do Comitê de Coordenação do Projeto de
Erradicação da Peste Suína Africana e de Desenvolvimento da Criação de Porcos (PEPPADEP)168.

166
Richard Severo, “Impoverished Haitians Sell Plasma for Use in the U.S.”, The New York Times, 28 de janeiro de
1972.
167
O veterinário dominicano Orlando Sánchez Díaz (1980, p. 59) fala em um empréstimo inicial da ordem dos US$6
milhões oferecido pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID).
168
“10th Coordinating Commitee Meeting held at PEPPADEP-Delmas, 14-16 Nov. 1983”, p. 40.
158

Acreditava-se que essa barreira sanitária criada pelo extermínio de porcos no Caribe e em
partes da América do Sul impediria que o vírus alcançasse as criações dos EUA, algo que
ocasionaria perdas estimadas entre US$150 milhões e US$5 bilhões, como apontavam à época169.
As justificativas para tal medida foram enumeradas pelo porta-voz do Departamento de
Agricultura dos EUA que, se referindo ao Haiti, declarou: “Primeiro de tudo, o Haiti é bastante
próximo dos EUA (...) Segundo, há muito tráfico marítimo irregular entre o Haiti e os EUA, e
muitas dessas pessoas tendem a trazer comida e, algumas vezes, essa comida é porco cru”170. Além
disso, como nota Dr. Frank Mulhern, responsável da Organização dos Estados Americanos (OEA)
pelo projeto de erradicação dos porcos e um dos participantes da reunião do PEPPADEP, a doença
poderia chegar também ao Canadá, pois “poderia cruzar a fronteira a partir dos EUA ou poderia
vir em razão do expressivo comércio canadense e do tráfico turístico ao Caribe, particularmente
ao Haiti”171.
O medo do contágio foi suficiente para que um programa de erradicação completa dos
porcos crioulos fosse levado a cabo no Haiti. Soma-se a isso ainda o fato de que esses fluxos
intensos de pessoas, alimentos e mercadorias aconteciam tanto oficialmente – na forma de trocas
comerciais que envolviam alimentos, plasma sanguíneo e turistas – quanto por meio da travessia
de pessoas que fugiam das opressões políticas e econômicas do regime de Jean-Claude Duvalier
no Haiti, buscando a vida em países como EUA e Canadá. Notável é que a partir de princípios da
década de 1980, notícias sobre a doença dos porcos dividiam a mesma edição de jornal tanto no
Haiti quanto nos EUA. Suspeitava-se não só que haitianos poderiam trazer a doença dos porcos,
mas que teriam relação também com outras patogenias.

***

Em 1982, os Centros para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC), órgão ligado ao


Departamento de Saúde dos EUA, emitiram um relatório identificando a incidência notável de

169
Dan Fesperman, “U.S. Spent $15-Million to Track Down and Kill All Pigs in Haiti”, Miami Herald, 11 de julho
de 1983.
170
Idem.
171
Joan Edwards, “Epidemic of African Swine Fever Eradicates Haiti’s Pig Population”, The Globe and Mail, 16 de
abril de 1983.
159

uma nova síndrome entre haitianos e haitianas recém-chegados aos Estados Unidos172. Identificada
inicialmente como um conjunto de infecções oportunistas, como pneumonia, associadas a uma
série de lesões cutâneas conhecidas como sarcoma de Kaposi, eram 34 casos em 5 estados, sendo
19 na cidade de Miami, notificados entre abril de 1980 e junho de 1982, e 10 em Nova Iorque,
todos residentes do Brooklyn, diagnosticados entre julho de 1981 e maio de 1982. Desses 34
pacientes, 30 eram homens. Como afirma o relatório, “Médicos que atendem pacientes haitianos
devem estar atentos para o fato de que infecções oportunistas podem ocorrer nesta população”173.
“Nos anais da medicina”, destacou o médico haitiano Robert Auguste em um artigo do Miami
Times, “esta categorização de uma nacionalidade como um ‘grupo de risco’ é algo único” (citado
em Farmer, 1990, p. 8).
Dos 23 haitianos questionados, traz o relatório, “[n]enhum (...) reportou atividade
homossexual e somente 1 de 26 forneceu um histórico de abuso de drogas injetáveis” (p. 4). O
destaque dado a essa associação não era algo despropositado. Um mês antes, o CDC havia
publicado um relatório evidenciando a relação entre a síndrome silenciosa e sua suposta incidência
em homossexuais e usuários de drogas injetáveis. Homossexuais, hemofílicos e heroinômanos ao
lado de haitianos ficaram, então, conhecidos como o “clube dos quatro H-s”, grupos de risco
responsáveis pela doença que, por afetar particularmente o sistema imunológico e facilitar a
contração de doenças oportunistas, passou a ser conhecida como Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida ou AIDS. A partir dessa constatação, diversas foram as respostas e medidas de
precaução orientadas a cada um desses grupos de risco. Mas mesmo antes da AIDS se tornar um
assunto de saúde pública e dos “4 H-s” assumirem um papel preponderante no imaginário popular,
haitianos e haitianas que chegavam ao sul da Flórida desde a década de 1970 foram cronicamente
sujeitos a medidas de controle orientadas por racismo e xenofobia que adquiriam sistematicidade
ao se tornarem políticas de Estado. “Their detractors”, destacam Steven Nachman e Ginette
Dreyfuss, (1986),

perceived them as a black peasantry, illiterate, ignorant, crude, speakers of a patois,


practitioners of unholy religions, and criminal aliens intent upon disrupting the local

172
Centers for Disease Control and Prevention, “Opportunistic Infections and Kaposi’s Sarcoma among Haitians in
the United States”, MMWR Weekly, 31(26), 09 de julho de 1982, pp. 353-4, 360-1.
173
Idem, p. 5.
160

economy by usurping jobs and depleting limited welfare resources as well as infecting
American citizens with tuberculosis, venereal disease, and various exotic maladies (p. 32).

Para os haitianos e haitianas, após sua classificação como grupo de risco, as medidas de
precaução e controle variavam da proibição de que vendessem ou doassem sangue em território
estadunidense à intensificação da vigilância nas fronteiras e regiões costeiras bem como o
confinamento, a prisão e a administração de testes sanguíneos nos recém-chegados (Korcok,
1980). Importante notar que, se antes, o sangue haitiano era uma mercadoria de valor no mercado
estadunidense, com as suspeitas e hipóteses de patogenias multiplicando-se e acusações ganhando
espaço, haitianos foram proibidos de doar sangue nos EUA174. Similar ao caso da peste dos porcos,
hipóteses diversas sobre as infecções oportunistas ganhavam volume e um excesso de
conhecimento orientava a tomada de decisões por parte de governos e autoridades médico-
sanitárias. A isso se somava também uma história particular de colonialismos que identificavam o
Haiti como um lugar de doenças e outros perigos, algo evidente já desde princípios da colonização
e que ganhou sobrevida com a ocupação do Haiti pelos EUA em princípios do século XX, no qual
a cultura haitiana e particularmente o vodu eram constantemente retratados como algo primitivo e
passível de ser purificado. O antropólogo Laënnec Hurbon (1995), ao falar da produção e difusão
de estereótipos racistas sobre práticas religiosas haitianas nos EUA, explicita a conexão entre tais
episódios e a história racial do país: “Sendo o racismo contra negros uma das características
majoritárias da sociedade estadunidense, o contato com a cultura haitiana foi forjado com base em
preconceitos raciais que tiveram consequências fatais” (p. 181-2)175.

***

174
Paul Farmer (1988, 1990, 1992) foi quem mais escreveu sobre AIDS e as relações entre ciência, doença, magia e
modernidade no Haiti e nos EUA. Tendo feito campo na região de Mirebalais, ao longo da década de 1980, o
antropólogo conseguiu acompanhar o modo como a doença foi ganhando espaço e interpretações distintas nos dois
países e como acusações diversas tomaram conta da opinião pública e de parte da comunidade científica dos EUA.
175
Sobre as ciências biomédicas no São Domingos colonial, ver o trabalho de James McClellan (2010 [1972]). O
artigo de Dubois (1996) traz ainda relatos marcantes de médicos e militares sobre doenças e infecções no Haiti durante
o período da Ocupação Americana (1915-1934). O romance Mumbo Jumbo, de Ishmael Reed (1972), é um relato
imaginativo e, em certa medida, etnográfico, desse momento específico no qual racismo e acusações de doença e
animalidade recaíram sobre negros, particularmente, haitianos.
161

Em um artigo publicado em 1986, parte de uma coletânea dedicada à AIDS, o antropólogo


social e professor Alexander Moore e o biólogo molecular e dentista Ronald Le Baron levantaram
hipóteses em torno da expansão da síndrome. Para os autores, o vírus responsável pela AIDS
“poderia ter se originado a partir de mutações em animais” que então chegariam aos humanos
(Moore e LeBaron, 1986, p. 77). Por meio de um contágio perigoso, “[e]ste agente poderia
encontrar seu caminho até humanos hospedeiros no Haiti e na África equatorial por meio da
ingestão regular de sangue fresco de animais sacrificados em cerimônias de possessão espiritual”
(idem). O mal, argumentam os autores, viria do contato abjeto de humanos com fluídos e
substâncias animais e de práticas religiosas identificadas como primitivas: a contaminação ia de
galinhas, mas também mamíferos, aos ougan (sacerdotes) que, por meio da possessão de espíritos
do gênero feminino, borravam as divisões sexuais e de gênero. A partir daí, fechava-se o ciclo com
a infecção de outras pessoas chegando, consequentemente, aos turistas norte-americanos (pp. 77-
78)176.
Ao declararem a necessidade de mais pesquisas sobre o assunto, Moore e Le Baron
concluem o texto com a seguinte frase: “Nós precisamos, efetivamente, retornar ao campo em
busca do agente ancestral e este campo inclui o terreiro haitiano [Haitan farmyar]” (p. 89). O
terreiro a que se referem os autores era o próprio lakou, onde a terra é tanto um território
historicamente herdado quanto o palco de interações ritualizadas e cotidianas com espíritos,
parentes, vizinhos e animais. De fato, não demorou muito para que associações entre a AIDS e a
doença suína africana se tornassem assunto de debates públicos e de pesquisas científicas.
Em uma reportagem do Miami Herald, publicada em 29 de maio de 1986, um professor de
microbiologia da Escola de Medicina da Universidade de Boston, Dr. John Beldekas, junto à
bióloga Dra. Jane Teas, declararam “acreditar que a AIDS pudesse ser causada por uma estirpe do
vírus da peste suína africana, uma doença suína fatal”, tendo eles trabalhado nessa teoria já por
três anos177. Os pesquisadores haviam trabalhado com amostras de sangue adquiridas em Belle
Glade, uma pequena cidade do sul da Flórida, notável pelos baixos índices sociais, pela população
marcadamente negra e por atrair imigrantes às fazendas de criação de porcos, particularmente

176
Com certo tom moralista e homofóbico, os autores exploram ainda as propagandas turísticas feitas em revistas
destinadas ao público homossexual. Ver, sobretudo, pp. 82-83.
177
Trish Robb e Steve Sternberg, “Team Seeks AIDS Clues at Pig Farm Researchers Look for Links Between Disease,
Hog Fever”, Miami Herald, 29 de maio de 1986.
162

haitianos e haitianas pobres desde princípios da década de 1980 178. Sem, contudo, haver provas,
mas “evidências circunstanciais”, os pesquisadores apontavam para a coincidência no trajeto das
epidemias: “Em um local após o outro – Zaire, Haiti, Camarões, Brasil – a AIDS seguiu uma
epidemia de Peste suína africana (PSA), uma doença altamente contagiosa para a qual não se sabe
a cura”179. Temia-se que aquela doença animal se tornasse uma zoonose, afetando não só uma
espécie específica, mas chegando também aos humanos. Na mesma reportagem, o mesmo Dr.
William Hess do Laboratório de Plum Island já apontava para “diferenças técnicas profundas”,
como o fato de o vírus da Peste Suína ter RNA e o vírus da AIDS, DNA180.
Alguns meses depois, em setembro de 1986, o jornal The New York Times trazia a público
o resultado de um conjunto de pesquisas coordenadas pelo Dr. Paul Feorino, do CDC, que
buscavam “desbancar uma teoria desenvolvida por um pequeno grupo de pesquisadores em Boston
e na Flórida”. Tendo participado da reunião em que foram apresentados os resultados destas
investigações, Dr. Hess é taxativo ao afirmar que “[c]oncordamos que não há conexão entre os
dois vírus. Ninguém estava sendo dogmático com relação a isso. Porém, esta suposta conexão
causou alguns problemas para as pessoas que estavam trabalhando sobre a AIDS”181. Contudo, o
estigma já havia tomado conta de parte da opinião pública e das ações do governo estadunidense.
Apesar da mudança no discurso sobre a doença, passando não mais a se falar em grupos de risco,
mas em comportamentos perigosos (seguindo a indicação da Organização Pan-americana de Saúde
publicada em 1989)182, as consequências deste discurso haviam tomado grandes proporções nos
anos seguintes, afetando particularmente homossexuais, usuários de drogas injetáveis, hemofílicos
e haitianos.
Mas as respostas vieram não só de especialistas. Em 20 de abril de 1990, mais de 50 mil
haitianas e haitianos marcharam da ponte do Brooklyn em Nova Iorque em direção à parte baixa

178
Jon Nordheimer, “Poverty-Scarred Town Now Striken by AIDS”, The New York Times, 02 de maio de 1985,
http://www.nytimes.com/1985/05/02/us/poverty-scarred-town-now-stricken-by-aids.html (acesso em 27/03/2017).
179
Robb e Sternberg, “Team Seeks AIDS Clues…”, Miami Herald. Ver também “Swine and Aids”, Miami Herald,
23 de julho de 1986, no qual um médico da Escola de Saúde Pública de Harvard defende que “the serious livestock
disease might be a cause of acquired imune defiency syndrome” e completa: “the question about a possible role of
African swine fever vírus in AIDS has come up repeatedly. (...) We felt it might be helpful to do additional work to
resolve this matter”.
180
Idem.
181
Keith Schneider, “No Swine Fever Link to AIDS Seen”, The New York Times, 23 de setembro de 1986,
http://www.nytimes.com/1986/09/23/science/no-swine-fever-link-to-aids-seen.html (acessado em 10/03/2016).
182
Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), AIDS: Profile of an Epidemic, Washington, EUA: OPAS, 1986.
163

de Manhattan. Aquilo “foi algo histórico”, contou-me Maurice Etienne, que vivia em Nova Iorque
à época e que também se juntou àquela grande marcha. Para ele, o feito teve tamanha amplitude
que parecia ser a repetição de um grande momento de união representado de modo paradigmático
pela Revolução Haitiana:

Sim, eu estava lá. Foi em 1990. Atravessamos a Wi, m te la. Se te nan 1990. Nou travèse pon a pye.
ponte a pé. E foi ali que os haitianos fizeram um E se lè sa ayisyen fè rara. Moun yo pa janm wè blok
rara [blocos festivos que desfilam no período de bann a pyè. Moun Nouyòk pa kon wè bann a pyè.
carnaval e durante as festas patronais no Haiti]. As Kounye a tout bann a pyè, bout banbou... [ri]...
pessoas nunca tinham visto blocos de bandas tanbou, tonbe nan Nouyòk. Bloke tout city a. Bloke
itinerantes [lit., “bandas a pé”, termo nortenho para city Nouyòk, bloke. (...) Se te yon bagay istorik. (…)
rara]. Os nova-iorquinos nunca tinham visto Donk... et c’est anpil historiens te wè ke aprè
bandas como essas. E, de repente, um monte delas 1804... (...) se te Brooklyn Bridge ki te yon vre
apareceu, soprando bambus... [risos]... tocando inyon de nwa e de milat, de tout kouch kontre yon
tambores, tomando conta de Nova Iorque. anjistis kominn. Donk an 1804 se te kont lesklavaj,
Bloquearam toda a região central. Bloquearam men 1983 se te kontre Sida. Tout kouch te ansanm,
Nova Iorque! (...) Foi algo histórico. (…) Então... milat e nwa (...)
e muitos historiadores entenderam isso, que após
1804 [ano da Independência]... (...) foi na ponte do
Brooklyn que ocorreu uma verdadeira união de
negros e de mulatos, de todas as camadas contra
uma injustiça comum. Em 1804, foi contra a
escravidão, mas, em 1990, foi contra a AIDS.
Todas as camadas sociais estavam juntas, mulatos
e negros (...).

Segundo uma jornalista do The New York Times, “[s]obre a questão da doação de sangue,
os organizadores da passeata disseram que a comunidade haitiana encontrou um foco para muitas
de suas frustrações com relação à vida nos Estados Unidos”183. Para Maurice, aquele momento era
uma grande demonstração contra “uma injustiça comum”. Nos cartazes era possível ver frases
como “Orgulho de nosso sangue” (“Proud of our blood”) e, como relata a historiadora Joan Dayan,

183
Donatella Lorch, “Haitians’ Outrage Brings Solidarity”, The New York Times, 22/04/1990, disponível em
http://www.nytimes.com/1990/04/22/nyregion/haitians-outrage-brings-solidarity.html (último acesso, 10/03/2017).
164

que também participou do protesto, “[e]sta é uma reivindicação por uma terra nativa”, sugerindo
que, como nota Dubois (1996), “em resposta aos ataques, a comunidade de imigrantes haitianos
exilados estava se reconstituindo enquanto tal a partir de suas heranças” (p. 38).

Imagem 26: Marcha em protesto contra a decisão do CDC. No cartaz à esquerda lê-se “Orgulho de nosso sangue” escrito
com as cores da bandeira haitiana. No centro da imagem, tremula a bandeira haitiana com as cores na vertical, desenho
elaborado nos primeiros anos da independência. Foto de Richard Elkins (AP), fonte: Jared McCallister, “A court ruling to
deny citizenship to Dominican Republic-born Haitians…”, New York Daily News, 13 de outubro de 2013,
http://www.nydailynews.com/new-york/haitians-protest-article-1.1483963 (acesso 10/01/2018).

Voltando à peste suína, em Milot, poucas pessoas se lembram de terem seus animais
afetados por alguma doença similar àquela que diziam se espalhar pelo Caribe. É na notícia de
jornal referida no começo deste capítulo que encontrei a informação de que a peste avançava sobre
os porcos, “sendo poucas as regiões onde os camponeses não se queixam de ter perdido uma parte
ou a totalidade de sua criação de porcos”184. Entretanto, em razão da sua origem, das práticas de

184
Groupe de Recherche, “Peste Porcine...”.
165

criação e do longo tempo de adaptação ao lugar, é possível que os porcos crioulos fossem –
diferentes das espécies hiperselecionadas dos contextos modernos – imunes ao vírus, tais como os
porcos selvagens e os javalis-africanos descritos por Montgomery (1921)185. De fato, destaca Paul
Farmer (1992), quando, em 1978, os porcos no Vale do Artibonite foram descobertos com a
infecção, “[c]uriosamente, (...) poucos porcos haitianos morreram. Alguns veterinários
acreditaram que a razão poderia ser o fato de que os kochon planch, como eram denominados os
porcos haitianos, se tornaram particularmente resistentes à doença” (p. 37)186. É possível considerar
ainda a hipótese de que as linhagens virais que chegaram ao país tivessem um potencial patogênico
menor, produzindo um impacto reduzido e favorecendo o desenvolvimento da imunidade e
inclusive a recuperação de animais doentes em um curto ou médio prazo – algo observado, por
exemplo, nos surtos que ocorreram no Brasil, como mostra o veterinário Francisco Viana (2004,
p. 147).
De fato, em Milot, para muitos interlocutores, havia outras razões por trás do extermínio
dos porcos. Para alguns, o massacre foi motivado tanto pela razão imperialista dos Estados Unidos,
que buscava lucros com a exportação de seus próprios espécimes ao Haiti, quanto pela ganância e
pela falta de solidariedade de Jean-Claude Duvalier para com a população. “Mataram os nossos
[porcos], os da gente desafortunada” – contou-me um senhor de Milot, enfatizando também uma
tensão de classe – “para venderem os deles aqui. Mas nós não conseguimos encontrar os porcos
estrangeiros. Trouxeram alguns, mas só os grandes senhores é que tiveram acesso”187. Havia ainda

185
Particularmente sobre isso, Alfred Métraux (1951) faz a seguinte observação ao tratar dos porcos na região de
Jacmel, no sudeste do país, “[t]he pigs to be seen wandering about near the houses are razor-backed and have long
black bristles and long legs, which makes them look rather like wild boars, as many travelers have remarked” (p. 95,
grifos meus).
186
Bernard Diederich (1985) nota ainda que, “Among villagers discussing the pig eradication program, some said it
was unnecessary, that there had been no disease, that it was all a plot. After all, their black pigs had lived for 500 years
under extremely poor conditions and had become immune to most diseases” (p. 16). Um dos poucos pesquisadores
que parece discordar dessas observações é o antropólogo Gerald Murray, que afirma, em um verbete sobre o massacre,
que 600 mil porcos morreram da peste suína em todo o país entre o final da década de 1970 e começo de 1980.
Contudo, o autor não fornece nenhuma referência etnográfica ou documental e discorda de visões que questionam o
potencial nocivo do vírus e a própria necessidade do massacre. Ver Gerald Murray, “The Haitian Pig Slaughter”,
Luminous Island – 1957-1985, s/d, http://islandluminous.fiu.edu/learn.html (último acesso em 10/03/2017).
187
Yo twe kenn a nou malere yo pou yo te vini vann kenn a yo. Men nou malere yo, nou pa jwenn etranje yo. Yo vini
ak yo, men sanble ki gwo nèg yo ki touve yo. Algo similar foi relatado a Farmer (1992), que destaca: “Some peasants
were sure there had been no swine fever, that the entire epidemic was a sham tagged so that the North ‘Americans
could make money selling their pigs’” (p. 37). Uma outra interlocutora sua foi ainda mais enfática ao falar da AIDS:
“Shortly after Duvalier's departure one market woman in her mid-fifties angrily denounced AIDS as part of ‘the
American plan to enslave Haiti (…). The United States has a traffic in Haitian blood. Duvalier used to sell them our
166

pessoas que encararam a medida como uma entre as tantas que desde finais do século XIX
buscavam combater as práticas mágico-religiosas populares no país (Ramsey, 2011). Eliminando
os porcos, animais chave nos rituais de sacrifício e serviços (sèvis) aos espíritos, avançava-se
contra o vodu e, particularmente, contra os próprios espíritos. Combinando essas duas explicações,
é ilustrativa uma conversa do artista haitiano e ougan André Pierre, conhecido por retratar espíritos
e cerimônias em suas pinturas, com Edgar, um ougan por ele iniciado. O diálogo foi registrado no
interessante documentário sobre os porcos crioulos dirigido por Leah Gordon e Anne Parisio. A
conversa segue transcrita (Gordon e Parisio 2015, 16’25’’)188:

André Pierre: Porque foi com os porcos que nós André Pierre: Paske se avèk kochon nan nou te
conseguimos nossa independência. pran andepandans nou.
Edgar: É isso mesmo. Foi isso que os fez encontrar Edgar: Men se sa. Se sa ki fè yo jwenn moyen pou
um meio para conter a independência. Você viu a rete andapandans lan. Ou pa wè eta peyi a tou?
situação do país agora? AP: Ebyen, eta peyi a… Lonm pap swiv lalwa de
AP: Bom, a situação do país... Os homens não Dye.
seguem a lei de Deus. E: Men wi. Tèt chaje pou nou. Paske lè Dantò
E: Verdade. Isso é uma dor de cabeça pra gente. bezwen manje tant dòt lwa Petwo bezwen manje,
Pois quando [Ezili] Dantò precisa comer assim ke se nou yo konnen, ke se nou yo tap mande li.
como os outros espíritos [da vertente] Petwo, como Men depi konbyen de jou map cheche, konbyen de
somos nós seus conhecidos, é pra gente que eles mwa map cheche e m pa ka jwenn li ? M pa jwenn
pedem comida. Mas há quantos dias e meses eu kote pou m ta jwenn li.
procuro e não encontro [os porcos crioulos]? Não AP: Ebyen, nan Dantò, nan Petwo, bon, vreman
encontro um lugar que os tenha. gade yon bagay: yo touye kochon kreyòl la. Eske
AP: Pois é, com Dantò e com Petwo, bom, na pa gen yon peyi ki gade kodenn li jiska kounye la
verdade, veja só: eles mataram os porcos crioulos. pou swiv tout afè kodenn li?
Mas não é que existe um país que manteve seus E: Natirèlman. Ke chak ane, li fete fèt kodenn li.
perus e ainda hoje os celebra? Paske nou menm sak fè sa? Ayisyen two visyiè.
E: Exatamente. A cada ano, eles festejam a Festa Ayisyen pa bezwen peyi li. Pa respekte!
do Peru. Mas no nosso caso, [o governo] haitiano

blood for transfusions and experiments. One of these experiments was to make a new sickness’” (Farmer, 1990, p.
11).
188
A íntegra do diálogo foi utilizada como vídeo promocional pelas diretoras e está disponível em “Pig’s Tale”, vídeo
postado por Leah Gordon no Vimeo, 1º de Janeiro de 2013, https://vimeo.com/56612439 (acesso em 28/03/2017).
167

era muito ganancioso e não se preocupava com o AP: Yo fè fèt kodenn li paske yo konnen kodenn se
país. Faltou respeito! mèt peyi li.
AP: Eles fazem a festa do peru, pois eles sabem que E: Se sa. Mèt peyi l.
o peru é o senhor do país. AP: Ou konnen se kochon ki mèt peyi ou, ou
E: É isso mesmo. Senhor do país. detrouyi l... Pou Lucifè! Ki ye Lucifè? Lajan.
AP: Nós sabemos que o porco era senhor do nosso E: Se sa ki ba nou tout pwoblèm.
país e foram lá e o mataram... Por Lúcifer! Quem é AP: Ki ye Lucifer? Men ki ye Lucifer. Men li, vwasi
Lúcifer? O dinheiro. Lucifer. Pou Lucifer! Qui permettent les hommes
E: É isso que nos dá tantos problemas. de la terre faire toute sorte de qualité.
AP: Quem é Lúcifer? Aqui está Lúcifer [retira uma
nota do bolso]. Aqui está. Por Lúcifer! [Passa a
falar francês] Que permite que os homens da terra
façam todo tipo de coisas.

A conversa termina com os dois se cumprimentando de forma cerimonial, dando-se as


mãos, se abraçando e entrelaçando os braços repetidas vezes – gestos notáveis em situações de
encontro e despedida entre dois ougan – e se despedem com uma série de continências, sinal
corrente de respeito a uma figura de autoridade. A referência inicial de Pierre é a conhecida
cerimônia de Bwa Kayman (Bois Caïman), de que falei rapidamente no primeiro capítulo, ao traçar
a diferença entre espíritos e ancestrais, tal como a formularam Santya e madame Obas. Organizada
nos arredores da cidade de Cabo Haitiano, entre meados e finais de agosto de 1791, esse evento é
tido por tradições historiográficas populares a acadêmicas como um evento que prefigura a
Revolução Haitiana (Fick, 1990; Dubois, 2004, pp. 99-102).
Nessa cerimônia (seremoni), como é popularmente conhecida, foi selada uma grande
aliança envolvendo africanos escravizados, libertos (affranchis) e pessoas livres de cor (gens de
couleur), que sacrificaram um porco em um serviço aos espíritos, trazidos ao Haiti pelos ancestrais
a fim de libertar o país. Na conversa de André Pierre e Edgar, o espírito presente naquela cerimônia
era Ezili Dantò, da vertente Petwo que, diferentemente dos Rada, são reconhecidos como espíritos
agitados, imprevisíveis e violentos, sendo associados a cores quentes como o vermelho e
carregando a marca tanto da escravidão quanto da resistência189. Para Maurice Etienne, que me

189
Dentre uma diversidade grande de formas de rituais e espíritos em todo o país, os que compõem o grupo Petwo
são frequentemente opostos aos Rada. Se os espíritos do Rada são tidos como parte de uma herança familiar (eritaj),
168

contou da cerimônia em diversas ocasiões, aquele foi um momento de “sensibilização” dos


escravos africanos, uma “tomada de consciência” sobre a escravidão e a possibilidade de revolta:
“e para terem a coragem necessária, eles sacrificaram um porco e acreditavam que se bebessem o
sangue, o porco os tornaria invulneráveis”190. Com esse sacrifício, conseguiu-se a força necessária
para levar à frente as revoltas contra a escravidão e a plantation, culminando na independência do
país em 1º de janeiro de 1804.

sendo, no mais das vezes, conviviais e generosos, os Petwo assumem-se como agitados e imorais, associados a cores
quentes como o vermelho e que carregam a marca tanto da escravidão quanto da resistência. Diferente dos Rada, eles
podem ser comprados por trocas nefastas que envolvem dinheiro e a vida de terceiros. Essa divisão, contudo, é
marcadamente presente nas etnografias feitas na região de Porto-Príncipe e no Sul do país, mas que, metonimicamente,
representaria as classificações e formas de interação com espíritos em todo o país, sendo replicada em trabalhos
historiográficos como paradigma. Ver, por exemplo, Dubois (2004, p. 102), Apter (2002) e Derby (2015). As variações
regionais, destacadas desde, pelo menos, o trabalho seminal de Métraux (1958, p. 15), revelam uma dinâmica bastante
mutável no qual os próprios espíritos manifestam notável agência. Em Milot, por exemplo, a divisão entre Rada e
Petwo raramente apareceu, sendo mais comum uma separação entre ginen e lwa, algo que parece reproduzir oposição
estrutural do primeiro par, mas que merecia uma pesquisa a parte. Sobre as variações classificatórias, ver ainda
Richman (2005, 296-7n11).
190
E pou yo te gen kouraj pou yo te fè sa, yo te sakrifiye, yo te touye yon kochon e yo panse ke si yo bwe san kochon
sa a, kochon sa a tap pran yo anvinerab.
169

Imagem 27: “Celebração de 200 anos do Bois-Caïman, 1791-1991”, Jean-Baptiste Jean, 1993. Coleção do autor.

Na imagem acima, o pintor Jean-Baptiste Jean reproduz a celebração de 200 anos de Bwa
Kayman: um porco aparece sacrificado em uma grande cerimônia, embalada por três tambores,
um homem soprando uma concha, além de danças e lenços que, quando amarrados nas cabeças,
podem revelar a presença de espíritos. Bandeiras com as cores do país aparecem nas mãos de
alguns presentes e uma bacia de sangue está disposta ao chão, replicando a narrativa consagrada
sobre a cerimônia. No centro da pintura, aparece uma reprodução da cena original numa curiosa
mise en abîme. O sacrifício animal é o que motiva Pierre e Edgar a considerarem o porco como
senhor (mèt) do país, evidenciando a existência de uma relação totêmica com o nascimento da
nação numa analogia que está longe de ser apenas casual. Interessante notar aqui que o raciocínio
dos dois ougan se faz a partir de um operador totêmico que relaciona comparativamente a
170

Independência Haitiana e as cerimônias e serviços mediados por porcos com o lugar do peru na
sociedade estadunidense e o banquete no qual ele é o prato principal: a Festa do Peru (Fèt
Kondenn) ou o Dia de Ação de Graças. Enquanto duas séries culturais que se diferenciariam a
partir de uma série natural, teríamos o seguinte:

perus : porcos :: Dia de Ação de Graças : Independência Haitiana :: EUA : Haiti191

Os dois animais representam elementos centrais na definição de uma comunidade nacional.


De fato, como discute a antropóloga Janet Siskind (1992), o peru, enquanto um animal nativo da
América do Norte, representa a riqueza de uma natureza selvagem e, metonimicamente, “os povos
indígenas [native Americans], sacrificados e consumidos para que a civilização chegasse ao Novo
Mundo” (p. 168). Por isso, o animal cozido e recheado é, continua a autora, “um modelo de e um
modelo para o ‘outro’ e nesta comunhão nacional sua ingestão conecta americanos propriamente
ditos com seus ancestrais espirituais, os peregrinos” (p. 169). Ensinado em escolas e cultivado por
famílias, o banquete de Ação de Graças é, de fato, o principal ritual que define valores e princípios
de pertencimento, comunidade e família, superando em importância o próprio 4 de julho, data da
independência dos EUA. Retomando o diálogo acima, Edgar afirma que, com o massacre dos
porcos, os sacrifícios feitos nos serviços a Ezili e a outros espíritos Petwo ficaram comprometidos.
Com isso, multiplicaram-se os infortúnios advindos da irritação desses espíritos em razão de sua
fome por porcos crioulos. “Nem todos os deuses aceitaram cabritos pretos como substitutos”, disse
um ougan ao jornalista Bernard Diederich (1985, p. 16) dois anos após o massacre.
Com efeito, a busca de Edgar por um porco crioulo para oferecer a Ezili Dantò, o principal
espírito de sua devoção e senhora (mèt) de seu terreiro (lakou), é um dos fios condutores da
narrativa do documentário, que se desdobra em outros dramas enfrentados não só por pessoas que
servem os espíritos (sèvi lwa), mas por camponeses em geral. Num plano mais amplo, enquanto
os EUA “[mantiveram] seus perus e ainda hoje os celebra[m]”, como disse André Pierre, a morte
dos porcos, por impedir ou dificultar os rituais de que eles participavam foi, como logo argumenta
Edgar, “um meio de conter a independência [do Haiti]”. Talvez, essa mesma raiva dos espíritos
por não encontrarem seu animal predileto tenha relação direta com o progressivo aumento de

191
Essa série poderia ainda se desdobrar em outras, como africanos escravizados : ancestrais peregrinos :: indígenas :
franceses :: escravidão : revolução :: colonialismo : anticolonialismo etc.
171

pessoas que frequentam igrejas e seitas neopentecostais, mas mais importante ainda é que podemos
notar nessas dinâmicas uma relação visceral entre vodu e história, aqui expressa na atualização do
pacto que levou à independência do país. Tenho destacado essa dimensão ritual ou cotidiana de
coabitação e interação com os espíritos como uma relação cronotópica (Bakhtin, 1981), na qual
engajamentos, rituais e serviços aproximam tempos e espaços distintos a partir da materialidade,
da presença e da agência de seres, de lugares e de objetos. No caso dos sacrifícios aos espíritos,
não mais capazes de serem realizados através da mediação dos porcos crioulos, os compromissos
herdados e as dívidas cósmicas ficaram em suspenso, assim como, por conseguinte, a própria
independência do país. Isso revela de que modo rituais atualizam, com efeito, a própria história.

***
A essas explicações soma-se outra que não nega a existência de uma doença, mas identifica
nela uma origem distinta daquela tomada como verdadeira e difundida por cientistas estrangeiros.
A doença que alguns interlocutores me relataram havia se propagado por aviões e helicópteros que
sobrevoavam o país e deixavam cair uma substância em pó sobre as parcelas e povoados rurais,
atingindo particularmente os porcos, deixando-os doentes192. O massacre seria a consequência
inevitável desse envenenamento em massa. De fato, o emprego de pós é algo comum entre as
práticas mágicas populares na região, conhecido como koud poud (lit. “golpe de pó”), e tais
artefatos podem ser facilmente encontrados em mercados especializados, como lojas ou pequenos
comércios em mercados mais amplos, como é o caso do Grand Marché, em Cabo Haitiano.
Confeccionado com materiais distintos, como animais silvestres, raízes, frutos ou alguma
combinação de elementos, o pó (poud) é, sobretudo, um veículo mágico que, dependendo da
intencionalidade, afeta a pessoa ou o animal por meio de um efeito de contágio, causando alteração
de humor, infortúnio, doença, azar ou morte193.
Em meio a esse conjunto distinto de explicações, o massacre tomou proporções gigantescas
e, segundo o jornalista e agrônomo haitiano Fritz Deshommes (2006), que acompanhou de perto
o PEPPADEP, “[n]ão acreditávamos que o Estado haitiano era capaz de tamanha determinação e
de tamanha eficácia”. “Lamentamos mesmo”, continua ele, “que elas não tenham sido aplicadas a

192
Aviões e helicópteros foram, de fato, utilizados por autoridades envolvidas no PEPPADEP, sobretudo para localizar
porcos ferais e espécimes que por ventura houvessem sido escondidos por criadores. Ver o relato, algo deslumbrado,
de Abdul Wahab, funcionário da USAID, em Gordon e Parisio (2015, 01’06’’).
193
Sobre a relação entre doença e magia, ver Farmer (1990).
172

programas mais construtivos” (p 65). A efetiva ação do Estado haitiano, sob o comando de Jean-
Claude Duvalier, ao lado da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento Internacional
(USAID) e de outros grupos internacionais, demonstrou, neste caso, uma coordenação prática e
eficaz que em si nada teve de disfuncional ou falida. “De fato”, conclui Deshommes (2006) em
seu comentário, “se os responsáveis pelo projeto foram verdadeiramente eficazes quanto ao plano
de ‘Erradicação da Peste Suína’, eles foram muito menos dedicados à parte de ‘Repovoamento’”
(p. 65). Ti Tonton, o lavrador de Limbe que nos falou da falta de carne no país após o massacre,
comenta que pessoas “tentaram até esconder os porcos quando vieram matá-los. Mas depois o
Estado colocou pessoas para supervisionar se havia gente que ainda tivesse porcos crioulos. E
mataram todos”194.
Foi voluntária a decisão de não levar à frente uma política de extermínio pontual. Enquanto
alguns veterinários e sanitaristas, como os especialistas William Hess (1971, p. 25) e Jerry J. Callis
(1980, p. 41), recomendavam a erradicação de grupos de porcos doentes ou expostos, o que de fato
ocorreu foi um extermínio preventivo. Um jornalista algo sensacionalista, que cobria o evento,
afirma o seguinte em uma reportagem publicada no Miami Heraldo no período: “Como fazer o
teste para a doença e matar os porco seletivamente é bastante complicado para que se valha a pena,
nas guerras do porco, os exércitos não levam prisioneiros...”195. Contudo, em alguns casos, os
porcos mortos foram devolvidos aos donos e não queimados ou enterrados para evitar o possível
contágio de novas espécies introduzidas, algo que revela, se não um real despropósito daquela
medida, ao menos uma falha crucial no programa de erradicação da doença, afinal uma das vias
de contágio era exatamente a indução de um canibalismo entre os porcos. Alguns meses depois do
massacre teve início a etapa de repovoamento. Novas espécies de porcos chegavam aos povoados
rurais haitianos vindos do Canadá, mas sobretudo dos EUA. Brancos, imensos e de difícil cuidado,
em pouco tempo os espécimes estrangeiros ganharam o apelido de “príncipes de quatro patas”
(Aristide, 2000, p. 14).

194
Te gen moun ki te konn sere lè yo tap touye yo a. Men apre Leta te mete moun ap soupervize pou moun ki gen
kochon kreyòl. Yo touye tout.
195
Dan Fesperman, “U.S. Spent $15-Million to Track Down and Kill All Pigs in Haiti”, Miami Herald, 11 de julho
de 1983.
173

Imagem 28: “Porco importado do estado de Iowa (EUA) bebendo água da torneira". Fonte: Diederich (1985, p. 17).

Sonhavam os especialistas com porcos assassinos?


Nos documentos oficiais sobre o massacre, à necessidade de contenção da peste suína
soma-se outra justificativa, talvez tão importante quanto a sanitária. Se os porcos crioulos são
constantemente descritos como afeitos à vida solta, os espécimes hiperselecionados, grandes e de
pele clara eram pouco autônomos, não suportavam o excesso de sol e requeriam maior cuidado e
atenção. Por isso, foi necessária a difusão de outras formas de criação, menos embasadas em uma
garantia de liberdade aos porcos e em uma proximidade dos animais com seres humanos e suas
casas, e mais voltadas à intensificação do processo de confinamento. Para tanto, a chegada dos
novos animais foi acompanhada de novas técnicas e tecnologias de criação, entendidas como mais
“aperfeiçoadas”, entre as quais a exigência de construção de chiqueiros especiais, cobertos e
cimentados, e de uma alimentação especial baseada em rações importadas, tais como o farelo de
trigo. Com efeito, o massacre visava também a modernização das criações no país.
Na região de Les Cayes, no Sul do país, um relatório feito em 1987, sob encomenda da
USAID (Grafton, Pognon e Robert, 1987), aponta para uma drástica queda no número de grupos
domésticos que possuíam porcos, chegando a 7% em uma amostra de 81 casas, de um total de 603
174

presentes na região. Antes do massacre, aproximadamente 94% das casas mantinham criações 196.
O estudo foi feito cinco anos após o massacre, o que revela uma insuficiência dos esforços de
repovoamento de porcos com variedades estrangeiras. Os pesquisadores apontam também para
uma diminuição no número total de animais por grupo doméstico, sendo que antes somavam em
média 10 por casa, chegando a dois no momento da pesquisa (p. 4). Ademais, os autores trazem
estatísticas que corroboram a ideia de que os porcos serviam como reserva para gastos eventuais
ou emergências, como casamentos, funerais e pagamentos de taxas escolares, com quase 100%
dos entrevistados afirmando que os porcos eram “bancos” e ao redor de 93% destacando sua
importância como fonte de alimento e de renda. Quanto aos métodos de criação, o relatório traz a
seguinte tabela (p. 9):

Sistemas de criação de porcos empregados antes e depois do PEPPADEP


Tipo de sistema Número de casas % de porcos de criação
Antes do Peppadep
Chiqueiro 1 1,3
Parque (sem cobertura) 29 38,2
Presos à corda 75 98,7
Savana (relativamente livres) 44 57,9
Outro 1 1,3
Presente
Chiqueiro 6 100
Parque 0 0
Presos à corda 0 0
Savana 0 0
Outro 0 0
Tabela 1: Sistemas de criação. Fonte: Grafton, Pognon e Robert (1987, p. 9, informações adicionais entre
parênteses).

196
Se compararmos com os dados coletados pela equipe que trabalhou com Métraux (1951), das 147 famílias vivendo
na região do vale do Marbial, na década de 1940, 92 possuíam porcos, ou 62%. Desse total, 63 famílias eram católicas
e 29 eram protestantes (p. 186). O autor afirma, contudo, que, no período da pesquisa, as criações em geral estavam
em número bastante reduzido devido à intensa seca que condenava a região (p. 184), o que possivelmente levou muitas
famílias a venderem seus animais num período anterior à chegada dos pesquisadores.
175

A falta de estatísticas para o mesmo período em Milot impede uma análise comparativa
mais detalhada. No entanto, os dados de Les Cayes revelam o impacto que o massacre teve em
uma localidade específica e nos possibilita entender o que norteava as preocupações de
especialistas no despontar daquele evento. Na tabela, nota-se a incidência dos dois principais
modos de criação dos porcos antes do massacre: “presos à corda” (à la acorde) e o “sistema de
savana” (savanne), com o animal relativamente livre nos terreiros e espaços domésticos. Por vezes,
esses dois modos de criação eram combinados com o “parque” (parc ou chiqueiro sem cobertura),
algo que nos conta Michelet em seu relato exposto no capítulo anterior. A necessidade de um
“sistema de criação aperfeiçoado” (“improved raising/rearing system”) é reiteradamente
enfatizada no relatório, destacando que, “muitas organizações do programa de repovoamento
insistiram na construção de um sistema de criação aperfeiçoado como precondição para que
grupos domésticos ou associações recebessem os animais” (Grafton, Pognon e Robert, 1987, p. 8,
grifos meus). Para um campesinato cujo capital era extremamente restrito e com uma de suas
principais fontes de liquidez literalmente extinta, exigir que construíssem um chiqueiro
aperfeiçoado como precondição para receberem novas espécies era, para retomar a elaboração de
Maurice Etienne, uma “verdadeira injustiça”.
Nesse sentido, do ponto de vista dos agentes do massacre, o que parece estar por trás dessa
medida é, ao lado da contenção da peste suína, um princípio modernizador nos esforços de
repovoamento, observável também em outros contextos onde o extermínio de animais teve lugar,
particularmente, nas décadas de 1970 e 1980, como a República Dominicana (Mark, Chain e Ellis,
1981) e o Brasil (Viana, 2004). A construção de chiqueiros cobertos e cimentados, algo exigido
pelas autoridades, propiciaria, acreditavam os especialistas, um “melhor ambiente de criação” para
os animais e, consequentemente, um aumento no valor dos porcos brancos se comparados aos de
antigamente, o que supostamente compensaria a grande quantidade de porcos de antes com uma
espécie de melhor qualidade (Grafton, Pognon e Robert, 1987). As exigências, contudo, não se
restringiam somente a um chiqueiro moderno e a novas tecnologias de criação. Era necessário
alimentar os novos animais com rações importadas e farelo de trigo, algo que implicava em
despesas que outrora inexistiam. Como nota madame Frank, durante a mesma conversa com Ti
Tonton, em Limbe,
176

Os porcos que você está vendo, há pessoas que os Kochon la ki la, gen moun ki gen, men se pa tout
têm, mas não é toda a gente. Porque, de fato, é moun. Paske kanmenm fòk ou gen yon kòb pou
preciso ter dinheiro para comprar farelo de trigo achte sondeble pou bay. Men lòt kochon a nou yo,
para dar aos animais. Mas com os outros porcos yo pa te gen sa. Depi ou mare yo, yo manje zèb,
que tínhamos, não havia isso. Você os amarrava, bagay kri, yo manje yo. Men sa ki la fòk ou gen yon
eles comiam ervas, coisas cruas, de tudo. Mas os kòb pou achte sondeble pou bay (…), pou fè y
que estão aí, é necessário ter dinheiro para comprar grandi.
farelo de trigo (...) para fazê-los crescer.

Assim, esse novo sistema de criação era extremamente desvantajoso, o que


consequentemente levou a uma queda drástica nas possibilidades de existência das criações de
porcos, tendo efeitos diversos na economia e na vida dos camponeses. Para madame Frank, assim
como para outros interlocutores, o problema era, de fato, o “sistema dos porcos crioulos”.
Rememorando o momento da chegada dos agentes que vieram dar fim às criações, ela assim
continua seu relato:

Pelos grandes, nos deram 40 dólares haitianos, 20, Sa yo ki gwo a, yo ba ou 40 dola, 20 pou moyenn e
pelos médios, e 5, pelos pequenos197. Eles matavam 5 pou piti. Yo touye kochon yo, yo ba ou kòb. Men
os porcos e nos davam dinheiro. Mas nos deixavam yo remèt ou vyann nan pou fè sa ou vle ave l. Yo
a carne para que fizéssemos o que a gente quisesse. menm ki touye kochon yo. Ak yon koudbwa. Yo pa
Eles mesmos é que matavam os porcos com um te vle sistèm kochon sa yo. Se te lòt kochon. Yo te
golpe de bastão. Eles não queriam o sistema desses touye, yo tap voye. Yo te di li te gen yon maladi. Li
porcos. Foi em razão dos outros porcos, mataram manje trop bagay, gagòt. Se te kochon pa yo menm
para nos enviarem os outros. Diziam que tinham ki yo tap voye, paske kochon pa yo a, annou di, se
uma doença, que comiam muita coisa, porcaria. manje natirèl yo manje. Se pa vye gagòt. Se sa ki fè
Eram os porcos deles que enviariam, pois seus yo di yo tap retire sistèm pa nou an. Yo tap mete pa
porcos, disseram-nos, comiam coisas naturais. Não yo a.
comiam porcaria. Foi o que os fez retirar o nosso
sistema. Para colocar o sistema deles.

197
Versões sobre os valores exatos variam, mas todas afirmam que o valor pago era significativamente menor do que
o que se pagava em uma transação usual. Quanto à quantidade de porcos que havia no país na época do massacre, não
há consenso entre acadêmicos, com números variando entre 1 e 2 milhões.
177

O novo sistema exigia, então, uma atenção maior com o espaço e a alimentação dos porcos.
A categoria sistema é, mais uma vez, operada como indício da diferença, de algo que tem um
funcionamento, um jeito ou um modo distinto. Desenvolveram-se assim novas interações entre
humanos e animais e a liberdade de antes deu lugar a formas intensivas de confinamento. Entre
humanos também não foi diferente: em algumas regiões, a introdução dos porcos foi realizada a
partir de comitês de criação privados, o que produziu hierarquias entre moradores rurais de uma
mesma vizinhança, estimulando conflitos, inveja e acusações de feitiçaria198. Como resumiu um
outro interlocutor, “os desafortunados não podem mais ter porcos, só gente rica”199.
Com o tempo, madame Frank afirma, os porcos brancos foram se adaptando e passaram a
comer aquilo que encontravam, do mesmo jeito que os antigos, exigindo uma ração especial
somente nos períodos de engorda. Porém, mesmo com essa adaptação, havia ainda algo a mais que
diferenciava porcos brancos e crioulos, particularmente com relação aos comportamentos e hábitos
alimentares. Senhor André, em sua descrição do massacre, assim revela: “Mataram os nossos
porcos, mas os que nos enviaram é só destruição. Ou seja, eles comem tudo o que é das pessoas.
Quando veem um pé de fruta-pão, puxam-no e comem. Puxam para cá e para lá. É só destruição”200.
O descontrole da nova espécie de que fala senhor André diz respeito a esse outro sistema, pouco
coordenado com a ecologia local, destruindo espaços e plantas importantes para consumo, como a
fruta-pão.
De fato, a percepção de uma diferença de comportante e de interação com o ambiente não
é consensual, sobretudo quando fala-se dos porcos atualmente. Com o tempo, as novas espécies
acabaram se adaptando e passaram a comer o que encontravam. Contudo, há uma diferença
fundamental que configura a expressão maior do descontrole desse sistema: o fato de que os porcos
brancos eram perigosos a outras criações e também às pessoas, particularmente às crianças. Se os

198
Paul Farmer (1990) relata o caso de Manno, um jovem recém-chegado ao vilarejo de Do Kay (nome fictício de
uma localidade na região de Mirebalais), que, em 1982, começou a demonstrar sinais de uma nova doença: sida. Para
muitas pessoas do vilarejo aquela, como tantas outras enfermidades, havia sido enviada (voye) por alguém motivado
por inveja (jalouzi). Como descreve o antropólogo: “[Manno] was entrusted with a number of public – and
remunerative – tasks, including taking care of the village’s new water pump and the community pig project (…). That
an outsider would be granted such favors was deeply resented by some of the villagers, as became clear after Manno
fell ill” (pp. 14-15, grifos meus). Para uma descrição mais detalhada da chegada dos porcos brancos nessa mesma
localidade, ver Farmer (1992, pp. 38-41).
199
Ti malere pa ka genyen li, se gran nèg ki ap genyen l.
200
Yo touye kenan nou yo, men sa yo voye se detryizon yo ye. Ki vle di yo manje afè a moun. Lè yo gen yon pye lam
la, yo rale y, manje y. Yo rabouye y, voye y, jete y. Detryizon.
178

porcos de antes viviam de modo mais livre, os brancos, “se você largá-los soltos”, nota Ti Tonton,
“eles podem comer gente. Sim, eles comem gente. Se você largar um porco e uma criança estiver
no chão, ele a come”201. Relatos sobre ataques de porcos a galinhas, pintinhos e crianças chegaram
também às emissoras de rádio locais e nacionais, como na descrição do agrônomo Jean-Jacques
Honorat em uma emissão de novembro de 1986, na Rádio Inter:

Os porcos importados americanos possuem um Kochon anpwòte ameriken an li gen yon mod de vi
modo de vida que não permite sua adaptação ao ki pa kapab adapte l nan peyi a e elevè kochon yo
país e os próprios criadores de porcos não pa kapab adapte yo ak kochon sa a. (...) Epi fòk li
conseguem se adaptar a esses animais. (...) É gen etab an siman ak gwo anstalasyon fisik ke
preciso que se faça um estábulo em cimento numa peyizan pa genyen pou pwòp fanmi pa li. (...) Nou
grande instalação física, que os camponeses não wè sa ki rive nan plisyè kote nan peyi a pa ekzanp
possuem nem para a própria família. (...) Em várias nan rejion Miragwann, peyizan te bat pou fè etab
partes do país, como na região de Miragoâne, por pou kochon anpwotè avèk bwa palmist. Men sa ki
exemplo, os camponeses se desdobraram para fazer rive, kochon yo manje bwa palmist. Peyizan pa ka
um estábulo com troncos de palmeira para os bay yo ase manje, ak manje kochon sa yo reklame.
porcos importados. Mas o que ocorreu foi que os Donk, kochon yo se de gwo bèt, yo manje bwa
porcos comeram a madeira. Os camponeses não palmist epi yo mete li deyò e yo tombe manje poul
conseguiam dar-lhes a ração especial que os porcos peyizan menm abitan, menm pèp kounye a, kochon
demandavam e porcos são bichos grandes, por isso, tombe manje pitit yo.
eles comeram as madeiras, fugiram e começaram a
comer as galinhas dos camponeses e até mesmo os
moradores rurais, até mesmo o povo, as crianças202.

Tais observações sobre os porcos brancos fornecem uma dimensão cultural importante
relacionada à própria percepção do que é estrangeiro nesses povoados rurais: os porcos
introduzidos se parecem com brancos (blan) e colocam em risco a vida das próprias crianças, tal
como nas narrativas de sequestro e assalto que envolvem seres associados à maldade (mechanste),

201
Si ou lage yo, yo nan manje moun. Wi, yo manje moun. Si ou lage kochon, timoun chita a tè, li manje.
202
“Destruction du cochon créole: les efforts de Caritas pour remplacer le cochon créole, novembre 1986”, aúdio do
acervo da Radio Haïti, s/d, http://radiohaitilives.com/fr/enregistrements/destruction-du-cochon-creole-les-efforts-de-
caritas-pour-remplacer-le-cochon-creole-novembre-1986/ (acessado em 28/03/2017). Jennie Smith (2001, p. 30)
afirma ter ouvido relatos similares na região de Grand’Anse durante seu trabalho de campo.
179

alguns deles sendo moun vini, pessoas vindas de outros povoados e, por isso, de fora do círculo
familiar (Bastien, 1951, p. 55; Thomaz, 2010; Marcelin, 2012; Fiod, 2015; Derby, 2015). De fato,
os malveyan (“figuras malignas”), particularmente os lougawou (lit., lobisomens), condensam um
estado puro de maldade ao ponto de se assumirem como uma espécie de epítome do mal, sendo
correntemente empregados em analogias cotidianas para se falar de algum desafeto ou inimigo203.
“Pessoas que se alimentam de outras”204, como definiu uma interlocutora, os lougawou são figuras
metamorfas, seres meio-humano e meio-animal, que possuem uma fome predatória e
desagregadora, e que circulam por povoados e vilarejos particularmente durante a noite 205. Sua
ação se dirige, sobretudo, contra crianças ou mães que tiveram filhos recentemente, e consiste em
torná-las doentes, alimentando-se de seu sangue e consumindo-as até a morte. Que tais seres se
metamorfoseiem e estejam a meio caminho entre natureza e cultura é um indício de seu poder206.

203
Ver o diálogo que reproduzi acima do livro de Marie Vieux-Chauvet, no qual um dos personagens se questiona se
a empresa de extração de plasma não seria um lougawou.
204
Moun ki manje moun.
205
Outras denominações locais de seres malignos são vijilans, chanpwèl e bizango. Ver também Fiod, 2015, para um
trabalho mais detido sobre esse tema. Rémy Bastien (1951, p. 55) nota que há uma interação de fundo entre lougawou
e a mãe da criança que passa pela aceitação de uma dádiva, descrita por uma interlocutora do antropólogo como um
sonho em que ela aceitou um doce oferecido pela figura maligna, colocando-a em uma relação de dívida com aquele
ser. O romance de Gary Victor, Saison des porcs, centra-se na história de um detetive que investiga uma rede
internacional de tráfico de sangue da qual participa um velho amigo seu que, ao envolver-se com figuras de poder e
magia, começa a se transformar em um porco. Recentemente, houve uma votação no senado haitiano em que se
discutiam leis anti-LGBT (denominados(as) masisi, no caso dos homens, e madivinèz, para as mulheres, ou
simplesmente masi-madi) e após terem sido aprovadas, um dos senadores que apoiou a medida declarou em uma
entrevista a uma rede nacional que a liberdade de pessoas LGBT se comparava aos excessos de liberdade dos
lougawou e que, por isso, deveria ser restringidas. Vídeos começaram a circular retratando os senadores que passaram
a lei como “caçadores de lougawou”. Cf. vídeo publicado por Michel Degraff em sua página pessoal no Facebook:
https://www.facebook.com/michel.degraff/videos/10155644461748872/ (acesso 27/04/2018).
206
Diversas são as técnicas de proteção contra os lougawou. Entre elas estão os banhos de folhas em crianças e a
administração de café e outras bebidas amargas à mãe e ao bebê. Isso serve, como me explicaram em Samson, para
“deixar o sangue amargo” (fè san amè) causando repulsa a esses seres. Também o uso de “apelidos” (non gate) tem
sua eficácia, pois o nome verdadeiro dá acesso à pessoa e lhe deixa suscetível a ataques. Não há alarde quando uma
mulher fica grávida e o nome só é revelado algumas semanas depois do nascimento e para pessoas próximas.
Publicamente, a criança recebe um apelido, normalmente em referência a algum elemento doméstico ou divino. Uma
pessoa pode ainda ter vários apelidos, sendo comum assumir o nome, ou uma variação aproximativa, de um padrinho
ou madrinha, além de acumular outros ao longo da vida. Esbocei uma análise dos nomes e sua relação com a proteção
em um texto anterior que pode ser consultado em Bulamah (2013b). Ademais, durante meu primeiro trabalho de
campo, ao tentar inicialmente fazer genealogias das diferentes famílias de Samson, notava que os nomes iam variando
e alguns se recusavam a me fornecer os “nomes de batismo” (non batistè), o que pode ter alguma relação com as
próprias formas de interação entre camponeses e o Estado e as tensões fundiárias ao longo da história, revelando uma
recusa às formas de codificação burocráticas.
180

A desordem causada pela introdução da nova espécie de porcos teve, assim, um amplo
impacto na ecologia e na vida dos camponeses, pois os porcos importados possuíam novas
exigências e agiam de um modo distinto dos porcos crioulos. Como destacou Honorat na emissão
de rádio, os porcos brancos não se adaptaram ao país, assim como os criadores não se adaptaram
a eles. O sistema era outro e, apesar das promessas e expectativas, as criações nunca retomaram a
abundância dos tempos passados.

Sujeitando porcos, sujeitando pessoas: evento e desordem


“Os massacres se tornaram vitais”. É o que afirma Michel Foucault no último ensaio que
compõe a História da sexualidade I: a vontade de saber (Foucault, 1976, p. 180). O tema dos
massacres perpetrados por Estados modernos é, para o autor, uma das evidências da passagem de
uma lógica de submissão a um poder soberano para uma lógica do biopoder, onde não mais
somente o corpo, mas a vida de populações inteiras passa a ser o objeto das tecnologias e políticas
de vigilância, sujeição e dominação. Interessava ao filósofo francês refletir sobre como formas
liberais de governo incidem na gestão da saúde pública. É no ano da publicação de seu ensaio,
1976, que os primeiros casos de ebola começaram a colocar em alerta autoridades sanitárias
internacionais (Keck, 2015, p. 227) e, apenas dois anos depois, tem início o massacre dos porcos
na ilha de Espanhola.
Ali, a biopolítica se realizou também na gestão da vida animal e sua eliminação visava
exatamente a garantia da existência de outra população. Se o poder soberano, para Foucault, se
caracteriza pelo “fazer morrer e deixar viver”, a biopolítica do Estado moderno é marcada pela
possibilidade de “fazer viver e deixar morrer”. No caso dos massacres, como nota o autor, “o
círculo se fecha”, as duas possibilidades se confundem e confluem em um contínuo marcado pela
anátomo-política que dá lugar à biopolítica. Como agentes de uma patogenia que poderia tornar-
se uma zoonose, afetando não só porcos, mas também humanos, era necessário eliminá-los por
completo. A facilidade com que isso ocorreu pode ser explicada por uma percepção biomédica
hegemônica de que porcos eram apenas unidades econômicas e alimentares: seres sem história ou
historicidade, que poderiam ser substituídos por outros espécimes, mais adaptados aos esquemas
modernos de criação e produção de carne. Meros animais de confinamento, sujeitos à ordem social
humana, ao controle reprodutivo e à utilização intensiva em busca de lucro.
181

Como tentei mostrar no capítulo anterior, é por sua história, sua ecologia e seu papel na
constituição de uma autonomia camponesa, em estreita cooperação com os humanos, bem como
por um ritual que fundou a nação, que os porcos crioulos eram tão valorizados entre camponeses
e criadores em geral. O sacrifício a que foram submetidos, justificados como um “pan-
americanismo” exemplar do governo e dos haitianos em geral, pode ser entendido como uma
medida de biossegurança que serviu à imposição de novas formas de sujeição animal, impactando,
por sua vez, as próprias formas de sujeição de camponeses e moradores rurais ao Estado e a forças
externas, produzindo endividamentos e adensando formas de dependência e de dominação, tanto
animais quanto humanas. Isso foi acompanhado por uma espetacularização do sacrifício, com
imagens de animais mortos, de laboratórios campais e de caçadas circulando em periódicos e
publicações especiais por todo o globo, mobilizando exércitos e brigadas em uma imensa guerra
contra os porcos207:

Imagem 29: (Esq.) Sem título. Fonte: Mark (1981, p. 4). (Dir.) “Em setembro de 1980, todos os porcos domésticos da
República Dominicana foram massacrados”. Fonte: Mark, Chain e Ellis (1981, p. 15).

Mortos os porcos, o resultado foi a passagem a um mundo em que veterinários e sanitaristas


eram os intérpretes de um novo projeto de natureza, no qual os animais deveriam ser eliminados
dos círculos domésticos e novos métodos e técnicas de criação se assumiriam como artifícios de

Ver ainda a descrição dessa caçada a porcos escondidos e ferais no relatório da Reunião do PEPPADEP em “10th
207

Coordinating Committee Meeting held at PEPPADEP-Delmas, 14-16 Nov. 1983”, p. 6 et passim.


182

uma modernização a partir de novas formas de governo e controle, definindo uma nova geografia
social. Surgiram rumores de porcos escondidos no Norte do Haiti e na Ilha da Tartaruga, onde
outrora piratas caçavam porcos ferais. Houve ainda tentativa de reintrodução de espécies crioulas
de outras partes do Caribe, como a Jamaica, sobretudo após pressão de uma importante associação
de camponeses e de orgãos ligados à Igreja Católica208. Algo que foi logo descartado ou não passou
de um esforço pontual devido, sobretudo, ao excesso de burocracia e aos testes exigidos pelo
Ministério da Agricultura do Haiti209. A autonomia e a liberdade de antes foram suspensas e um
novo “sistema” foi então imposto.
Para madame Frank, os porcos garantiam não só a possibilidade de reserva de liquidez,
como também uma autonomia dos jovens com relação aos mais velhos. Como ela afirma,

Se você tivesse um filho, como esses [apontando Ou te ka gen timoun sa, konsa, gen moun ki ka fè
para os seus], poderia dar-lhe de presente alguns kado yon ti kòb. Li achte yon ti kochon. Li ap mete
trocados. E ele poderia comprar um porquinho. E yon timoun, ak ti kochon a, li ka kondwi lekòl a y.
esse porco era quem colocava a criança na escola. Li ka van ti kochon a, si se yon tri li ye, li fè pitit, li
Ele poderia vender o porco e, se fosse uma fêmea, achte ounifònm, li achte soulyè, li achte liv, li achte
quando tivesse filhotes, os venderia para comprar valiz. Manmanm kochon toujou rete ap fè pitit. Li
uniforme, sapatos, livro e mochila. A fêmea do ka bezwèn pou li peyie lekòl la, li ka van 2 ti kochon
porco tem sempre muitos filhotes. A criança oubyen yon ti kochon li peyie lajan lekòl a y. Yo pa
poderia utilizá-los para pagar a escola, vendendo janm tounen y. Aled de ti kochon an timoun nan
um ou dois porquinhos. Isso já não acontece mais. genyen, granmoun, parenn a y, ou ka fè nanpòt
Com a ajuda dos porcos pequenos, as crianças bagay. Sa ede ou ak peyie lekòl a y, achte yon ti tè.
poderiam adquirir coisas, dos avós, dos padrinhos, Ou ka fè kanè pou li ankò. Si li malad ankò, timoun
poderiam fazer de tudo. Os porcos ajudavam na ka ale lopital e ou pa gen kòb, epi la menm ou ka
escola e também na compra de um pedaço de terra. rele yon moun, ou van kochon epi ou al lopital ak
Você poderia ainda fazer um cartão do hospital. Se timoun nan. Men kounye a isit la timoun pa genyen
a criança ficasse doente e precisasse se tratar e você ti kochon. Ti kochon te kon ede moun.
não tivesse dinheiro, você chamava alguém,
venderia o porco e iria com a criança ao hospital.
Mas agora, aqui, as crianças já não têm mais

208
Ver petição no Anexo 1.
209
“Destruction du cochon créole...”, áudio da Rádio Haïti.
183

porcos. Esses porcos eram uma ajuda e tanto às


pessoas.

O valor da autonomia para os camponeses foi assunto também tratado pelo antropólogo
haitiano Rémy Bastien (1951), indo ao encontro do argumento da madame Frank. O autor nota,
numa discussão sobre o lugar do individualismo na sociedade camponesa, que desde cedo se
cultiva uma responsabilidade econômica desenvolvida dentro de uma estrutura social na qual a
hierarquia era reinante. A autoridade paterna era, naquele universo, algo incontestável. Nesse
sentido, destaca Bastien, “a tirania na educação coexiste com um verdadeiro liberalismo no que
concerne o cultivo das terras...” (p. 37).
Se os porcos eram “bancos” ou “poupanças”, o massacre atirou os camponeses em uma
situação frágil na qual, para arcar com as exigências de gastos com cerimônias, morte ou doença
tiveram que reestruturar suas vidas. Sem mais poder contar com a renda dos porcos, mudou-se
todo o sistema. Crianças e jovens perderam a possibilidade de autonomia associada aos porcos e
o resultado imediato foi o aumento da evasão escolar, que alcançou cifras entre 30% e 50%,
segundo observadores da época (Aristide, 2000, pp. 14-15 e Deshomes, 2006, p. 68)210. Com isso,
alterou-se também a relação dos moradores rurais com as plantas, com outros animais, com os
alimentos e com a própria terra. Era o fim de um mundo ou, como destacou senhor Michelet, “a
morte do próprio país”:

Foram os americanos que vieram com [os porcos Se amerikan ki vini avè l. Yo vini avè li, epi yo di
estrangeiros]. Vieram com eles e disseram que kochon sa yo bay maladi. Epi yo fè yon kanpay
nossos porcos transmitiam doença. Fizeram denigreman pou jete peyi a dan labime. Ke se yon
mesmo foi uma campanha depreciativa para jogar bagay nap sibi antan ke ayisyen. Ou konpran? Se
o país no abismo. Essa é uma campanha que temos yon bagay ki pa janm ap repare. Paske jan nou
que suportar enquanto haitianos e haitianas. Sabe? menm bèt la te itil la, nou panse se yon bagay ki tap

210
Elizabeth Abbott (1988) faz a seguinte observação sobre os efeitos da morte dos porcos: “School opening that
October, the first after PEPPADEP’s final eradication of the nation’s pigs, revealed that [school] registration had
plunged as much as 40 to 50 percent. Street vendors of cheap notebooks and pencils went hungry. The Lebanese and
Syrian dry good merchants had unsold stockpiles of checkered cotton for the traditional Haitian school uniforms.
Deschamps Printing Company’s orders for Creole and French textbooks plummered. All over Haiti, children stayed
at home, understanding that something was happening to them and that times were suddenly much harder” (pp. 274-
275).
184

Isso é algo que nunca vai ter reparação. Pois do pral bon. Pa gen anyen ki bon. (...) Kounye a nou
jeito que aqueles animais nos eram úteis, rive nan yon faz, li pa menm ak sa ke nou te gen
acreditávamos que [a substituição dos porcos] seria posede. Li vin touye peyi a tou.
algo bom. Mas não há nada que seja bom. (...)
Agora, os [porcos] que estão aqui não são iguais
aos que possuíamos. Isso foi a morte do próprio
país.

Os porcos crioulos passaram por um sofrimento que foi sentido por todos. Não só enquanto
metáfora de um país que vai à ruína, mas também metonimicamente por serem eles mesmos
partícipes de um sistema que dependia de sua vida e cooperação. Sua ausência se fez e ainda se
faz sentir por muitos. Desafortunados, a morte dos porcos foi mais um entre os tantos episódios a
que pobres e moradores rurais do país tiveram de “suportar enquanto haitianos e haitianas”. A
história dos porcos é ainda contada e, mesmo em sua ausência, a vida camponesa em Milot é
permeada pelos valores a que esses animais estavam associados e dos quais participaram
ativamente na elaboração histórica. Mais do que isso, sua morte representou um passo a mais em
direção à sujeição e ao controle das comunidades rurais por meio da demonstração efetiva do poder
ditatorial e da espetacularização ritual do poder imperial norte-americano, notável pela rápida
circulação de imagens, de notícias e de discursos que celebravam o massacre. Com o passar dos
anos, o novo sistema atingiu um equilíbrio e, em Milot, é possível ver pequenas criações,
normalmente restritas a um ou dois animais. Contudo, as previsões de que a qualidade dos porcos
compensaria a quantidade de antigamente não se cumpriram. Olhar etnográfica e historicamente
para os porcos possibilita entender, assim, como se articulam história, economia política, vida,
pertença e nação.
185

Capítulo 4: Diabo, política e desenvolvimento

Como, sem império, tais sociedades governam a si


mesmas? Qual é a fonte de poder? A urna eleitoral, a
multidão, o regimento?
V. S. Naipaul (1973, p. 254)211

Imagem 30: Anouse Jasmin em frente à sua casa. Foto do autor, Milot (Samson), maio de 2016.

“Ele fala a linguagem do satã”212. Com estas palavras, Anouse Jasmin resumiu a campanha
eleitoral de Jean Charles Moïse, um dos candidatos às eleições presidenciais de 2015. Sentados na
varanda de sua casa em Samson, numa manhã quente e seca de outubro, conversávamos sobre o
primeiro turno que se aproximava enquanto ouvíamos as propagandas políticas dos diferentes
candidatos numa emissora de rádio local. Eu tomava um café bastante doce e comia algumas
castanhas de caju que ela havia torrado para mim. Anouse era uma mercadora de uns 50 anos e,

211
How, without empire, do such societies govern themselves? What is the source of power? The ballot box, the mob,
the regiment?
212
Li pale langaj Satan.
186

como a maioria das pessoas de Samson, era parte de uma igreja pentecostal chamada Igreja
Apostólica de Milot. Ela, assim como outros milosianos, conhecia bem Jean Charles Moïse. Ele
fora prefeito de Milot por dois mandatos e ainda ajudou na eleição de um sucessor, o que fazia
com que muitos ali contassem um total de três vezes em que exercera o cargo. De fato, Moïse se
tornou uma liderança carismática a partir do fim da ditadura do clã Duvalier, em 1986, e foi um
dos responsáveis pelas ocupações de terra que ocorreram nos anos seguintes. Muitos em Samson
e Milot, em geral, o viam como uma figura de prestígio e tinham por ele bastante respeito, pois
seus feitos garantiram um pedaço de terra a camponeses e moradores rurais da região. Para outros,
contudo, como para Anouse, ele falava uma língua ambígua e mobilizava um conjunto de símbolos
e agências de grande autoridade e poder, mas ao mesmo tempo extremamente perigosos.
Em 2010, Jean Charles Moïse foi eleito senador da república pelo departamento do Norte,
assumindo uma postura crítica ao governo de Michel Martelly, eleito à presidência naquele mesmo
ano. Em finais de 2014, com a aproximação de um novo pleito para as eleições presidenciais,
Moïse criou um partido político para se opor formalmente a Martelly e ao seu objetivo de eleger
um sucessor. O nome escolhido pelo senador para sua nova plataforma foi Pitit Dessalines ou
“Filhos de Dessalines”. Ainda sem candidato definido quando começaram as mobilizações
eleitorais, Moïse dizia que seu partido “contava com uma aliança entre a classe média, a classe
política e os universitários do país”213. Seu slogan era claro: “Dessalines vai à casa de Pétion”
(Dessalines pral kay Pétion). A referência aqui era ao conflito ancestral que marca os primeiros
anos da república, a oposição entre Jean-Jacques Dessalines – ex-escravo, negro e general que
esteve à frente do “Exército Nativo” (L’armée indigène) e da emancipação do país – e Alexandre
Pétion, mulato livre que também lutou nas guerras de independência, mas cuja participação na
posterior conspiração que levou à morte de Dessalines é tema de discussões exaltadas entre
camponeses e grupos de elite214. Ao afirmar que “Dessalines vai para casa de Pétion”, Jean Charles

213
Jocelyn Belfort, “La plateforme Pitit Dessalines n’a pas encore de candidat à la présidence", Le Nouvelliste, 07 de
abril de 2015, disponível em: http://lenouvelliste.com/lenouvelliste/article/143315/La-plateforme-Pitit-Dessalines-na-
pas-encore-de-candidat-a-la-presidence (Esta página, assim como as que seguem, salvo quando indicado, foi acessada
pela última vez em setembro de 2017).
214
Alexandre Pétion é lembrado por muitos como um governante republicano que, em oposição ao rei Henry
Christophe (sucessor direto de Dessalines), garantiu o acesso à terra a muitos cidadãos. Sendo um ancestral que inspira
respeito tanto no discurso oficial quanto popularmente, é amiúde referido como papa bon kè (“papai de bom coração”).
Ademais, ao falar dele, emprego aqui o termo mulato colocando-o em destaque para enfatizar uma tradução direta do
francês, mulâtre, cujo uso é consagrado pela historiografia haitianista. A fim de evitar mal-entendidos, é necessário
destacar que a política de cor no Haiti, como nota Trouillot (1990), é histórica e sociologicamente bastante específica
187

Moïse criava novos significados aos conflitos de classe e cor, às políticas de ancestralidade e à
própria história.
Não muito longe de Milot, na comuna de Trou-du-Nord, um outro Moïse ganhava
popularidade na região em razão de uma imensa plantação de bananas sob sua gestão. Com um
empréstimo estatal de US$ 6 milhões conseguido em 2014, Jovenel Moïse iniciou seu projeto à
frente da empresa de agronegócio Agritrans, ocupando uma área de quase mil hectares próxima da
recém-criada Universidade Henry Christophe, à beira da Rodovia Nacional #6, estrada que liga
Cabo Haitiano à Ouanaminthe, na fronteira com a República Dominicana215. Aquela área faria
parte, efetivamente, da primeira zona franca agrícola do país, um projeto com o objetivo de gerar
até 3.000 empregos diretos, exportando 70% de sua produção de bananas orgânicas ou em torno
de 20.000 toneladas216. Jovenel Moïse era alguém próximo a Martelly, tendo participado de feiras
e congressos junto ao presidente, servindo sobretudo como exemplo de uma nova política de
investimento no país, marcada por desregulamentações e incentivos fiscais a indústrias de
montagem e costura, pela criação de zonas francas e pela abertura ao capital estrangeiro217.

a ponto de ser equivocado pensar que a mera tradução exata dos termos dê conta dessa complexidade, como veremos
adiante. Para uma discussão mais ampla sobre as relações entre raça, cultura e nação, ver Woodson (1990); Thomaz
e Nascimento (2008); e Trouillot (2003, caps. 1 e 3). Sobre a morte de Dessalines, ver Dayan (1995, cap. 1), e o
programa da Radio Haiti, “‘Pouki yo touye Desalin?’ Konbit Pitit Kay, 17 oktòb 1979”, áudio publicado por Radio
Haiti Archives, Soundcloud, 17 de outubro de 2017, disponível em: https://soundcloud.com/radiohaitiarchives/pouki-
yo-touye-desalin-konbit-pitit-kay-17-oktob-1979.
215
Tanto a universidade quanto a reforma da rodovia foram dádivas da República Dominicana prometidas pelo então
presidente Danilo Medina ao Haiti logo após o terremoto de 12 de janeiro de 2010. Nesse momento, diversos chefes
de Estado anunciavam publicamente suas doações ao país – em jornais, emissoras de TV e em órgãos supranacionais
– e exibiam globalmente suas performances humanitárias e seus gestos solidários. Acompanhei uma reunião da
UNESCO, em janeiro de 2011, em celebração ao aniversário de um ano do terremoto, realizada com o intuito de
discutir formas de auxílio ao país. Na reunião, após falas de dirigentes da ONU e de representantes de Estado, o
diplomata haitiano trouxe à tona o atraso do governo dominicano em cumprir o que prometera, expondo os
representantes do país vizinho a uma situação constrangedora. A dádiva de Medina tampouco lhe poupou críticas por
parte de setores dominicanos que mobilizaram o imaginário anti-haitiano e condenaram o gesto como um excesso,
vendo uma afronta inclusive na própria escolha do nome da universidade.
216
Ministério do Comércio e da Indústria do Haiti, “Création de la 1ère zone franche agricole haïtienne”, s.d.,
http://www.mci.gouv.ht/index.php?option=com_content&view=article&id=230%25252525253Acreation-de-la-
1ere-zone-frcreation-de-la-1ere-zone-franche-agricole-haitienneanche-agricole-haitienne&lang=fr.
217
Sobre a questão, pode-se consultar a etnografia de Otávio Calegari Jorge (2014), realizada na cidade de
Ouanaminthe sobre a vida de mulheres que trabalhavam na zona franca de Codevi (Companhia de Desenvolvimento
e Indústria, sendo vi uma referência indireta à “vida”), apelidada por moradores locais de “Codemò” (mò sendo o
termo para “morte”) e “Codesklav” (“escravo”).
188

Com a aproximação do fim do mandato de Martelly, era preciso encontrar um sucessor. O


antigo primeiro ministro, Laurent Lamothe, havia sido descartado enquanto um possível nome por
conflitos de interesse, lançando sua própria candidatura dissociada da figura do então presidente218.
A plataforma de Martelly tinha de correr contra o tempo para preparar alguém que levasse à frente
seu projeto político como candidato do Partido Haitiano Tèt Kale (PHTK). Jovenel Moïse surgiu
como uma opção, exatamente por ser uma pessoa que, como anteriormente o era Martelly, não
tinha ligação direta com a política tradicional. A retórica empregada em sua campanha consistiu,
assim, em enfatizar exatamente sua posição enquanto trabalhador e empreendedor bem-sucedido,
alguém que, a exemplo do que conseguiu para si, traria “desenvolvimento” para o país e uma “vida
melhor” para todos.
O vilarejo era tradicionalmente uma região de apoio a Jean Charles Moïse. Ele era
considerado um moun lakay (“alguém de casa”), o que revela o peso do parentesco, e muitos o
reconheciam como o chefe (chef) de Milot e como uma pessoa de muito conhecimento (konesans),
noções polissêmicas que o evidenciavam como um alguém poderoso, respeitado e influente. Sua
origem também conferia a ele um estatuto privilegiado, de proximidade aos moradores rurais,
mercadoras e citadinos pobres, pois ele era “filho de uma desafortunada”219, como formulou certa
vez um interlocutor. Uma das principais bases (baz) da região, o “Pequeno Parlamento” (Ti
Palman), era declaradamente sua apoiadora. Localizada na entrada de Milot, a base expunha
cartazes e imagens do candidato, organizava mobilizações e passeatas e, por vezes, bloqueava a
rodovia em protesto. Ali, me disseram que “não o largavam” e “lutavam ao seu lado”, pois ele era
alguém “que amava o povo” e que “falava e trazia conhecimento” para todos220. Ele era, de fato,
próximo ao povo e aos camponeses, que se percebiam como desfavorecidos e desprezados pelas
elites, vendo nele uma voz de representatividade no cenário nacional.

218
“Laurent Salvador Lamothe candidat à la présidence”, vídeo publicado por Tele Ginen, YouTube, 3:40, 21 de maio
de 2015, https://www.youtube.com/watch?v=XKkwOjo3o_w. A campanha de Lamothe, contudo, durou muito pouco,
pois sua candidatura não foi homologada pela Comissão Eleitoral Provisória (CEP) em razão de irregularidades em
contratos que ele assinara durante seu mandato como primeiro ministro. Sobre isso, ver “Haiti/Élection présidentielle
– Laurent Lamothe hors jeu!”, Le Nouvelliste, 03 de junho de 2015, http://www.lenational.org/haiti-election-
presidentielle-laurent-lamothe-hors-jeu/ e Patrick Saint-Pré, “Laurent Lamothe crie au scandale et dénonce un
complot”, Le Nouvelliste, 19 de agosto de 2016, http://lenouvelliste.com/article/162273/laurent-lamothe-crie-au-
scandale-et-denonce-un-complot.
219
Pita yon ti malerèz.
220
Nou pa lage y. Se yon nèg ki renme pèp la. Se pou sa nou lite akè y. (…) Se konesans lap pale, se konesans lap
devlope.
189

Nos meses que antecederam o primeiro turno das eleições, previsto para outubro de 2015,
os candidatos saíram em campanha por todo o país mobilizando um conjunto diferente de
referências, símbolos e retóricas. De um total de 54 candidatos inscritos, havia ainda outros dois
importantes e com grande base de apoio. De um lado, Jude Célestin, que trabalhara no governo de
René Préval (2006-2011) e se assumia como um político tradicional ligado às elites, e, de outro,
Maryse Narcise, figura de proa do partido Fanmi Lavalas e que buscava recuperar o legado de ex-
presidente Jean Bertrand Aristide. Em Milot, contudo, esses nomes apareciam pouco nas conversas
e discussões cotidianas que acompanhei e a disputa política se mantinha centrada nos dois Moïses.
“No Haiti, todo mundo quer ser chefe”221, foi o comentário de Jorab sobre a grande quantidade de
pessoas que lançaram sua candidatura, algo que ouvi ainda em outras ocasiões.
Milot era considerado um local privilegiado tanto pela sua importância histórica quanto
pela grande circulação de pessoas em torno das ruínas do Parque Histórico Nacional. Cartazes,
panfletos, jingles, programas de rádio, promessas, rumores e uma infinidade de outros objetos
circulavam pelas ruas de cidades, em povoados rurais, em redes virtuais e em aplicativos de
comunicação pessoal. Não só os candidatos e as pessoas contratadas por partidos políticos
participavam da difusão desses objetos e histórias, como também os próprios milosianos que, por
apoio ou simples curiosidade, passavam santinhos e programas eleitorais de mão em mão, além de
vídeos, rumores e jingles por aparelhos de telefone celular. Com efeito, durante os meses eleitorais,
as campanhas tornaram-se um assunto cotidiano, sujeitas a grandes debates em locais de encontro,
nos povoados rurais, nas casas e nos lakou, embalados muitas vezes por emissões de rádio locais
e nacionais. Manifestações de apoio também ganharam espaço e, por vezes, assumiam proporções
grandiosas e eram reprimidas por forças policiais. Além disso, muitos dos candidatos e seus
apoiadores souberam se utilizar de tecnologias de informação e comunicação, criando páginas em
redes sociais, interagindo com eleitores em fóruns e grupos virtuais e subindo vídeos e áudios em
plataformas de distribuição digital. Aos poucos, eu mesmo fui compondo um arquivo das eleições,
juntando papéis e também arquivando no celular e no computador informações, páginas virtuais,
reportagens, mensagens, áudios, imagens e vídeos que pessoas de Milot e de outras cidades faziam
circular222.

221
An Ayiti, tout moun vle chef.
222
Pela própria lógica de distribuição viral destes objetos de campanha, a maioria ainda se encontra disponível em
páginas da web ou em contas pessoais de candidatos e seus apoiadores em redes sociais. Verifiquei todos os endereços
referidos em notas de rodapé pela última vez no dia 28 de setembro de 2017.
190

Neste capítulo, busco analisar etnograficamente as disputas políticas entre esses dois
candidatos centrando-me, de um lado, no conjunto de referências simbólicas, agências e objetos
eleitorais que cada um dos dois Moïses mobilizava em seus discursos e em suas campanhas e, de
outro, em seus efeitos concretos e no que se forjava, para cada um deles, como política,
representação e soberania. Durante o tempo das eleições, testemunhei e tomei parte em discussões
e conversas por vezes acaloradas em mercados, dentro de taptaps, em bares, esquinas, bases e
praças de Milot e do Cabo; e também em povoados rurais, em ounfò (casas de feiticeiros), nos
terreiros familiares (lakou), em cozinhas, em varandas e até mesmo dentro das casas. Muitas
dessas discussões, públicas e privadas, ocasionavam rupturas entre coletivos, vizinhos, amigos ou
mesmo familiares, ao mesmo tempo em que abriam a possibilidade de constituição de novas
alianças motivadas pelo apoio (ou contraposição) a um dos candidatos.
Apesar de Jean Charles Moïse ser uma figura política tradicional no Grande Norte, como
é popularmente conhecida a macrorregião formada pelos departamentos do Norte e do Nordeste,
ele perdera apoio na região, processo que vinha ganhando corpo desde sua eleição como senador.
As reais dimensões dessa rejeição, particularmente em sua cidade natal, são motivo de
interpretações diversas que, no limite, são da ordem da indeterminação. Resta aqui, pautado por
um olhar etnográfico, buscar uma aproximação ao que se entende por política em um sentido
amplo, investigando, de um lado, como o voto, o apoio político e a comunidade são localmente
concebidos e, de outro, como campanhas eleitorais são espaços de criação simbólica e política,
mobilizando agências e significados poderosos cuja eficácia é sujeita a complexas variações
conjunturais.

Política e comunidade, apoio popular e voto


Dois mil e quinze foi um ano ruim. Os meses de maio e junho costumam ser os mais
chuvosos no Norte do país, mas naquele ano as precipitações foram esparsas e pessoas que viviam
da terra não conseguiram realizar o plantio como haviam planejado. “A terra está muito quente
(cho)”, diziam em Samson. Mesmo que uma chuva pesada surpreendesse a todos em uma tarde de
maio, era necessário uma certa frequência para que a terra esfriasse (vin frèt) e fosse possível
plantar sem correr o risco de que as sementes não germinassem. Isso era motivo de preocupação
geral, pois a impossibilidade de plantar implicava a futura falta de alimentos para as casas e de
produtos para serem comercializados nos mercados, o que contribuía para uma sensação geral de
191

escassez, incertezas e infelicidades muitas vezes resumida pelo uso acentuado de noções como
miséria, infortúnio, sofrimento e insegurança (mizè, malè, soufrans, ensekirite e outras variações).
“Até mesmo a chuva está fazendo política”223, disse-me Jorab em uma tarde de junho quando
caminhávamos por Milot. Política aqui é uma noção multidimensional. Pessoas “fazem política”
(fè politik) quando têm de acertar contas umas com as outras, mas não são explícitas quanto ao
assunto em questão, ou podem ainda “manter a mesma política” (kenbe politik la) de gerações
anteriores quando herdam desavenças e vendetas e as levam adiante. Também animais podem
“fazer política” quando surpreendem criadores, rompem cercas e invadem hortas de vizinhos ou
parentes. Além disso, como notou Jorab, até mesmo a chuva “faz política” ao não respeitar as
estações e prejudicar os planos de camponeses e mercadoras. Política é, desse modo, uma categoria
associada à ética, à convivência, a expectativas, afetos e desejos próprios a uma dimensão ordinária
da vida.
Contudo, política também é algo percebido como exterior à comunidade ou kominote,
termo local que define um coletivo delimitado, podendo falar do povoado ou do vilarejo,
dependendo do contexto. Politik é, nesse sentido específico, associada ao Estado e àqueles que
ocupam esta esfera e colocam em prática seus projetos e concepções de governança. Há, de fato,
como antropólogas e antropólogos têm demonstrado em diversos contextos, uma ambivalência
naquilo que constitui o Estado, suas funções e seus efeitos, marcada por um conjunto de fatores de
natureza obscura, evasiva e espectral, envolvidas por segredos, rumores e, em muitos casos,
violência, desordem e imoralidade – que, a depender do caso e da história, se rotiniza e se assume
como dimensão constitutiva do aparato estatal (Comaroff e Comaroff, 2006; Johnson, 2006;
Palmeira e Heredia, 2010; Taussig, 1997; West e Sanders, 2003).
Na célebre formulação sociológica de Trouillot (1990), o Estado haitiano se constitui
historicamente numa oposição à nação, assumindo uma postura predatória com relação ao povo.
Essa visão é, por vezes, compartilhada por pessoas comuns, para quem o Estado se constitui como
uma entidade alheia à comunidade local e às suas demandas. Ao mesmo tempo, o Estado e seu
aparato técnico, burocrático e policial inspiram grande respeito, notável tanto por meio de
expressões correntes como “Depois de Deus, vem o Estado” (Apre Bondye, se Leta), quanto por
práticas habituais como a frequência a eventos oficiais, o respeito a posições de poder e a artefatos
de identificação (como crachás e documentos), a atenção dedicada à vestimenta quando se vai

223
Menm lapli ap fè politik.
192

acompanhar a visita de algum político à cidade e a presença recorrente de expectativas com relação
ao que o Estado pode fazer por um vilarejo ou povoado. Durante o tempo que vivi em Milot, era
comum que pessoas expressassem uma certa nostalgia com relação a um passado no qual o Estado
conseguia manter a ordem e interpelava diretamente os pobres – o que, para muitos interlocutores,
é a principal imagem que possuem do governo Duvalier. Hoje, como argumentou um morador das
imediações do Palácio Sans Souci, “O Estado fala muitas línguas”224, daí seu caráter muitas vezes
imprevisível. Períodos eleitorais trazem à tona essas ambiguidades e expectativas e, mais do que
isso, revelam como o voto é um objeto crucial na relação entre comunidade e Estado ou, nesse
caso, entre o povoado (abitasyon) e os candidatos.
Evidentemente, é preciso levar em conta um fator importante da história política haitiana,
identificada por Trouillot (1986) como algo particularmente contraditório: de um lado, o fato de
que o regime dos Duvalier é o resultado de um acúmulo anterior no qual o Estado foi
gradativamente assumindo uma relação majoritariamente predatória com a “nação” e, de outro,
que o Estado duvalierista recriou profundamente essas fórmulas de poder. A partir disso, é possível
compreender de que modo as estruturas de poder e representatividade, os efeitos e as histórias dos
tempos ditatoriais são constitutivos da paisagem social de todo o país. Em localidades como Milot,
é notável a duração e a continuidade de concepções, técnicas e dimensões subjetivas da política
similares àquelas observadas por Louis Herns Marcelin (2012) durante a década de 1980, quando
conduziu um trabalho de campo em áreas populares de Porto-Príncipe e em Jérémie, na região da
Grand’Anse. Nas palavras do autor, “as teorias explicativas locais enquadravam poder, autoridade
e riqueza, assim como o mundo da política, no idioma das forças mágicas ou maléficas” (p. 254).
Isso ocorre sobretudo por meio de uma linguagem que descreve o poder, a riqueza e a autoridade
em termos do sangue e da magia, e que vê no sacrifício a produção de legitimidade. Como continua
Marcelin, “[a]quele que ‘possui’ poder, segundo essa representação ideológica, deve exercer
alguma forma de violência. [Pois] simbólica ou fisicamente, o poder não se manifesta sem o
sacrifício de sangue” (p. 260). Ademais, muitas das formas sociais que constituem essa topografia
política são resultados históricos do colonialismo e revelam as durações da plantation no mundo
contemporâneo (p. 262)225.

224
Leta pale plizyè lang.
225
Como descreve o autor (Marcelin, 2012), “[e]m 1985, durante um trabalho de campo sobre família e parentesco no
Haiti, pude observar um grupo de líderes locais e regionais chegando das cidades (sobretudo Abricots e Jérémie) para
consultar seus bòkò (feiticeiros), em razão dos tumultos políticos em torno do regime de Jean-Claude Duvalier. O
193

Nesse sentido, a violência da política não tem nada de anômalo ou patológico, como
etnografias recentes têm mostrado para o caso haitiano (James, 2010; Braum, 2014; Kivland, 2014;
Neiburg, 2017). De fato, processos eleitorais são marcados por incertezas e indeterminações a tal
ponto que a liturgia das eleições serve não só para resolver conflitos e superar a violência, mas,
paradoxalmente, “torna-se um espectro que (...) continua a assombrar a sociedade”, nota o filósofo
Achille Mbembe (2006), “trazendo discórdia para o seio da ‘comunidade’ em forma de ameaça de
guerra iminente, de fraude ou de divisão e discordância” (pp. 313-4)226. Isso ficou claro durante as
eleições que acompanhei, quando acusações de fraude, rumores diversos e enfrentamentos
ganhavam corpo e se multiplicavam a partir da anulação do primeiro pleito.

O ataque dos homens de chifre e a morte de um lougawou


No começo de novembro, rumores de natureza diversa, episódios de vingança e histórias
envolvendo figuras malignas começaram a ganhar as ruas e as casas em conversas, em redes sociais
e em aplicativos de celular. Rose-Manette, uma jovem de Porto-Príncipe que trabalhava no centro
cultural onde eu vivia mostrava-se extremamente inquieta. Seu irmão morava na planície de Cul
de Sac, perto da capital, e de lá surgiam histórias de ataques repentinos durante a noite. Falava-se
de um grupo de 150 a 200 pessoas armadas e vestidas com chifres de touro e outros fragmentos de
animais. Rose me contou que os ataques consistiam em invasões a casas, roubos e assassinatos,
bem como episódios ubuescos como o estupro de crianças e a imposição violenta de atos
incestuosos. O padrão desses rumores, notavelmente, consistia na reafirmação de uma desordem
na qual nem as regras mais básicas do social estavam sendo respeitadas. No site de notícias
AlterPresse, um repórter tratou desses “atos de banditismo e de terror” que “ganhavam tamanha

medo de uma insurreição popular contra os anos de opressão levaram agentes políticos do Estado a essa região em
busca de formas para aprimorar e reforçar sua ‘invulnerabilidade’. O caráter cultural público dessas visitas tinha dois
objetivos evidentes: primeiro, o de assegurar a lealdade de aliados locais e representantes do aparelho de Estado nas
regiões rurais; segundo, o de dissuadir as comunidades locais de se revoltarem contra a ordem estabelecida, ao
enfatizarem suas crenças na maldade ou na natureza mágica do poder. O objetivo tácito era a produção do medo, um
medo profundamente paralisante, através da personificação da maldade e da performatividade do sacrifício ritual para
presumir a condição de poder que o ritual e, mais importante, o subsequente discurso sobre o ritual criavam” (p. 260).
226
Mbembe (2006) trata especificamente, neste e em outros textos, da África subsaariana, identificando ali uma
especificidade pós-colonial no modo como regimes de dominação se constituem e se expressam. Para ele, a
“linguagem de poder” africana passa pelo grotesco e pelo obsceno, numa disposição de símbolos e signos ligados à
morte, ao sacrifício e à sexualidade. Tais elementos ubuescos parecem, diferente do que enfatiza o autor, menos uma
especificidade pós-colonial africana do que uma característica da produção do poder em geral. Exemplos nos anos
recentes e em diversas partes do globo são inúmeros. Sobre isso, ver ainda Trouillot (1992).
194

amplitude na região que os moradores falam, atualmente, do ‘fenômeno da Planície’”, com os


locais formando brigadas de vigilância e erguendo barricadas antes do pôr-do-sol227.
No entanto, não tardou que as histórias de ataques chegassem a outras partes da capital,
como Pétion-Ville, um importante subúrbio de Porto-Príncipe onde vive parte da burguesia
nacional, além de diplomatas e funcionários de ONGs. Na noite do dia 11 novembro e na
madrugada que a seguiu, esperavam-se ataques em toda a região. Falei ao telefone com Joanna Da
Hora, uma amiga que trabalhava no Centro Cultural Brasil-Haiti, no centro de Pétion-Ville, e ela
me relatou que as ruas estavam vazias. Pessoas se trancaram nas casas e se protegiam da maneira
que lhes era possível. Relatos de tiros e golpes de facão ganharam a imprensa nos dias seguintes.
“Quem atira durante a noite?”, se pergunta o escritor Gary Victor no jornal Le National,
“Lobisomens (loup-garous)? Chanpwèl [figuras metamorfas igualmente malignas]?”. Tudo aquilo
o fazia lembrar dos tempos finais da ditadura, particularmente dos famigerados tonton makout,
milicianos que serviam ao regime Duvalier: “uma época em que tristes indivíduos próximos de
um certo poder se reagrupavam sob nomes que ainda refletem sua animalidade e seu projeto
macabro”. O texto termina com a seguinte indagação: “Estamos prestes a retornar, em nossa curva
temporal, à barbárie daqueles tempos?”228.
Com efeito, muitos falavam de um novo dechoukaj (desenraizamento), termo que definiu
o fim da ditadura, marcado por conflitos diversos e por uma série de inversões que explorarei mais
detidamente no capítulo seguinte. Em Milot, já em finais de novembro, o falecimento de um
homem vítima de uma doença tornou-se também um assunto bastante comentado. Sua morte era
um dechoukaj, vocábulo igualmente empregado para falar de episódios de vingança contra figuras
e seres malignos. O homem era um lobisomem (lougawou) e, como Jorab me contou, muitos
ansiavam por sua morte. Contudo, por ser um lougawou, todos sabiam que ele só morreria por

227
“Haïti-Insécurité : Des bandits armés sèment la terreur dans la plaine du Cul-de-Sac”, AlterPresse, 10 de novembro
de 2015, http://www.alterpresse.org/spip.php?article19177. A notícia afirma ainda que esse grupo armado era formado
por antigos prisioneiros liberados “de modo irregular” pelo presidente Martelly, em 2014. Agradeço a Joanna Da Hora
pelas conversas sobre esses e outros episódios, assim como pela generosidade em compartilhar as notícias que saíram
na imprensa nos dias que seguiram.
228
Gary Victor, “L’État sauvage”, Le National, 13 de novembro de 2015, http://dev.lenational.org/letat-sauvage/. Ver
também a matéria de Louis-Joseph Olivier, acompanhada de uma charge representando a violência do período, “Nuit
de peur et de terreur à Pétion-Ville”, Le Nouvelliste, 13 de novembro de 2015,
http://lenouvelliste.com/lenouvelliste/article/152454/Nuit-de-peur-et-de-terreur-a-Petion-Ville. Ver também a ótima
reflexão do jornalista Frantz Duval, “Haïti, le sac et les crabes”, Le Nouvelliste, 12 de novembro de 2015,
https://www.lenouvelliste.com/article/152448/haiti-le-sac-et-les-crabes.
195

meio do feitiço de alguém igualmente poderoso. Na noite de seu enterro, anotei o seguinte em meu
caderno de campo:

Hoje ninguém sairá na rua após a chegada da noite. É a chamada lè a mò, “a hora do morto”.
A pessoa que enfeitiçou o lougawou irá buscá-lo no cemitério para então levantá-lo e fazer
dele um zumbi (zonbi). Ninguém pode ser testemunha desse feito, por isso, a ordem é que
se mantenham em casa. Se alguém vir o algoz, ele poderá entender que se trata de uma
pessoa tentando “fazer justiça” (souvèyans), o que trará consequências graves ao
observador. (...) O morto, dizem, era uma “pessoa má” (move moun) e agora seu assassino
irá atrás de seu irmão. Os dois são filhos de uma famosa lougawou do vilarejo, o que me
faz pensar se a condição de lougawou não é algo hereditário.

O que o assassino fará com o zumbi, ninguém sabe exatamente, mas falam de duas
possibilidades: que seu novo senhor (mèt) o coloque para trabalhar em um canavial ou que
o transforme em animal para vendê-lo. (...) Por aqui, ser transformado em zumbi é um
destino muito mais temido do que a própria morte.

No Lakou Lakay, uma conversa acalorada teve lugar envolvendo Rose-Manette, Jorab e
outros presentes. O assunto era a morte do lougawou. Jorab falava do caráter incontestável
da interdição de saírem às ruas naquela noite. Para Rose, alguém de Porto-Príncipe, isso
eram crenças de pessoas da província (andeyò), ao que Jorab respondeu ser “a mais pura
realidade”. Se ela não aceitava ou não entendia, é porque vivia dentro de casa e não
acompanhava o que se discutia nas ruas (Caderno de campo, Milot, 30 de novembro de
2015).

Curiosamente, foi a partir da anulação do primeiro turno das eleições que tais histórias e
rumores começaram a ganhar corpo em conversas cotidianas e mensagens de celular, chegando a
jornais impressos e a portais de notícia. Medos, ansiedades, inseguranças e imprevisibilidades
pareciam assombrar o futuro do país e ganhavam formulações cosmológicas específicas em
localidades diversas. Sem saber quando as eleições ocorreriam, a ruptura do pacto social e a crise
política davam vida a bandos armados e a figuras malignas que aterrorizavam casas, povoados e
toda a nação.
196

***

Nesse ponto, se é inegável que a vida social é envolta em violência e a magia de assalto e
o sacrifício do sangue são expressões centrais da política, momentos eleitorais, enquanto formas
rituais, revelam também um esforço de produção de novos compromissos e de novos consensos e
trazem à vista um desejo por coexistência e por participação. Isso ocorre através da possibilidade
de recriar laços com ancestrais e espíritos, da promessa de abundâncias futuras (de alimento e de
trabalho) e da refundação estética do país dentro e fora de suas fronteiras. O medo e as ansiedades
que despontaram durante o período de campanha atestam o exato valor desses compromissos e
pactos sociais. Olhar para o cotidiano permite entender melhor como tais fenômenos se constituem.
Em povoados rurais de Milot, como Samson, as trocas de comida e o auxílio mútuo nas
roças e casas são parte de um esforço comum em produzir e manter relações de parentesco, tanto
dentro de uma casa e de um lakou quanto em um círculo mais amplo envolvendo espíritos,
vizinhos(as), compadres, comadres e amigos(as). Com efeito, a vida econômica no povoado é
estruturada em torno de três atividades principais: i) o cultivo da terra e a criação de animais,
atividade de preponderância masculina; ii) o cozimento e a separação dos alimentos e iii) a venda
de produtos das roças familiares nos mercados da região, estas duas últimas atividades
predominantemente femininas (ver Mintz, 1961; Joos, 2017; Evangelista, no prelo). Como a
maioria das famílias rurais é proprietária de terras ou arrenda parte delas de um vizinho ou parente,
tais atividades ocorrem com grau relevante de autonomia no qual o trabalho familiar e o auxílio
mútuo entre as casas constituem práticas coletivas importantes e socialmente valorizadas, como o
konbit e suas variações. Sobre isso, a antropóloga Rhoda Métraux notara, já na década de 1950,
que as “relações de trabalho derivadas da agricultura [são] um aspecto das relações interpessoais”
(p. 1), o que não contradiz o valor da propriedade individual das terras, elemento central no
campesinato haitiano (Herskovits, 2007 [1937]; Lowenthal, 1994; Richman, 2005; Woodson,
1990). “A entreajuda é a amizade dos desafortunados (malhereux), não é mesmo [?]”, resume uma
personagem do romance de Jacques Roumain (2007 [1944], p. 7)229.

229
Um dos argumentos centrais de Sidney Mintz (1961) em seu clássico texto sobre relações entre clientes e
mercadoras é de que as formas de produção coletivas como o konbit são, no mais das vezes, encarados de modo
romântico por pesquisadores que ignoram os sistemas distributivos, como as práticas de fidelização e confiança entre
mercadoras e clientes, popularmente conhecidas como pratik. Contudo, menos do que formas sociais em iminente
desaparecimento, o konbit é prática corrente em contextos rurais, revelando, de um lado, novos arranjos que incluem
197

Soma-se a isso ainda o fato de que todas as casas em Samson possuem ao menos um parente
vivendo fora do país, a maioria na República Dominicana. A participação ativa dessas pessoas nas
casas e na comunidade se faz notar tanto pelo envio de presentes e remessas quanto por visitas
esporádicas, particularmente em razão das festas de fim de ano, algo que muitas vezes pode levar
anos para se concretizar. Por isso, ligações de telefone e o envio de cartas e fotos (por correio ou
virtualmente) são elementos centrais nesse esforço de se fazer presente, o que é respondido
localmente com a exposição de fotos em cômodos das casas e menções regulares às pessoas que
estão em outro país ou lot bò dlo, literalmente “do outro lado da água” (ver Richman, 2005 e
Joseph, 2015). Tais dinâmicas revelam a notável plasticidade da casa em contextos haitianos,
conectando espaços rurais e urbanos e expandindo-se para além das fronteiras nacionais – tema
central na sociologia e na antropologia caribeanista (ver, por exemplo, Olwig, 2007). Tal
plasticidade não diminui ou extingue o valor que as casas possuem na vida de pessoas que se
aventuram no exterior, mas, ao contrário, atestam sua centralidade vigente através da manutenção
e recriação de compromissos, pertenças, fluxos, intimidades e afetos230.
Ver coisas circularem entre as casas de um povoado é uma imagem particularmente
marcante neste contexto. Pessoas visitam vizinhos e parentes, comem no pátio umas das outras,
trabalham em mutirões (konbit), trazem presentes quando vão à cidade ou quando voltam de uma
jornada fora do país. A igualdade aqui é um valor central, notável tanto na condenação a posturas
egoístas quanto no modo como a generosidade é valorizada através de trocas de comida, de
trabalho, de objetos, por meio do crédito e, inclusive, através da circulação de crianças que são
educadas em casas de parentes consanguíneos ou de padrinhos231. O importante aqui é que as coisas
estejam sempre em movimento. Isso, por vezes, implicava uma percepção comum entre alguns
interlocutores de Samson de que suas vidas estavam imersas em um excesso de prestações e
reciprocidades, que incluem também espíritos e ancestrais. “Eu sou mesmo uma desafortunada”,

outros elementos de troca, como o dinheiro, e, de outro, a permanência de um discurso entre camponeses e acadêmicos
que reproduz uma “idealização do passado”, como destacou Lygia Sigaud (1977) em um outro contexto. Felipe
Evangelista (no prelo), mais recentemente, enfrentou este tema analisando as tensões e complementariedades entre
valores individualistas e coletivistas entre mercadoras que vivem na fronteira com a República Dominicana.
230
Karen Richman (2005) traz uma interessante discussão sobre o modo como a ida de uma pessoa ao estrangeiro é,
efetivamente, um empreendimento coletivo, envolto em compromissos e dívidas que vão da alimentação na infância
(como o leite materno) à empréstimos em dinheiro.
231
Sobre a questão da generosidade no Haiti, ver a tese de Laura Wagner (2014). Sobre a circulação de crianças em
comunidades rurais, ver o trabalho de Emilia Pietrafesa de Godoi (2009)
198

costumava me dizer madame André ao conversarmos sobre os compromissos que tinha que honrar
com vizinhos, afilhados, parentes e espíritos.
É claro que, como já alertara Mintz (1973), “[é] fato que populações rurais não formam,
em lugar algum, uma massa homogênea ou aglomerada, mas são sempre e em toda parte tipificadas
por diferenciações internas segundo diversas linhas” (p. 93). As próprias trocas produzem
diferenciações, já que implicam na produção de dívidas e de hierarquias. Contudo, a acumulação
assume aqui um caráter fortemente atrelado ao ciclo da vida, como destacara o economista Mats
Lundahl (2011, p. 117), sendo os funerais e os enterros dois dos eventos que mais consomem os
recursos de camponeses e camponesas. A preocupação com uma boa morte é um tema comum em
Samson e envolve tanto uma série de técnicas que garantem que o corpo da pessoa não possa ser
zumbificado quanto a preparação para que a alma (nam) encontre o caminho do paraíso, céu ou
ainda da África-Guiné (paradis, syèl, Lafrik-Ginen)232. Nesse sentido, a realidade política cotidiana
parece não se assentar unicamente no conflito e na hierarquia, mas antes em processos que os
regulam, confirmando o próprio valor da igualdade.
Ademais, em um universo povoado por feitiços e magias de assalto e onde perigos visíveis
e invisíveis, como os lougawou, podem atingir pessoas de modo fortuito, é pertinente a seguinte
formulação de David Graeber (2004):

Of course, all societies are to some degree at war with themselves. There are always clashes
between interests, factions, classes and the like; also, social systems are always based on
the pursuit of different forms of value which pull people in different directions. In
egalitarian societies, which tend to place an enormous emphasis on creating and
maintaining communal consensus, this often appears to spark a kind of equally elaborate
reaction formation, a spectral nightworld inhabited by monsters, witches or other
creatures of horror. And it’s the most peaceful societies which are also the most haunted,
in their imaginative constructions of the cosmos, by constant specters of perennial war. The
invisible worlds surrounding them are literally battlegrounds. It’s as if the endless labor of
achieving consensus masks a constant inner violence — or, it might perhaps be better to
say, is in fact the process by which that inner violence is measured and contained —and it

232
Gastos com o funeral, o enterro e os preparativos do corpo vão desde a compra do caixão e as despesas das
celebrações – entre café, bebida e comida no funeral e coros, fanfarra, cerimonial da igreja, lugar temporário no
cemitério etc – aos numerosos dias que o morto pode passar em um necrotério (mòg), motivados muitas vezes pela
espera de um parente vivendo no exterior.
199

is precisely this, and the resulting tangle of moral contradiction, which is the prime font of
social creativity (pp. 25-26, grifos meus).

Em Samson, a comida (manje) é a dádiva mais valiosa, central para a construção da


comunidade. A troca de alimentos entre vizinhos é a evidência de relações sociais positivas entre
pessoas e entre as casas; e tal circulação aponta para a constituição recíproca da comunidade na
qual aqueles que oferecem comida estão assegurados de que receberão algo em troca no futuro
próximo na forma de auxílio no roçado, de dinheiro ou de comida. Comida (manje) é o elemento
central na constituição da intimidade e das relações de aliança entre as casas e, mais do que isso,
como vimos nos capítulos anteriores, a alimentação é definidora do léxico sociológico utilizado
localmente para classificar proximidade e distância: “aqueles com quem se come junto” (moun
nou manje ansanm) são parentes (fanmi) no sentido amplo, e “aqueles com quem não se come
junto” (moun nou pa manje ansanm) são pessoas a serem evitadas em razão de comportamentos e
práticas moralmente condenáveis, como a inveja (jalouzi), a má-fé (movèz fwa) a maldade
(mechanste) e o uso da magia para fins de assalto e morte. Como a literatura recente tem
enfatizado, mesmo que alguém deixe o povoado rural, ele ou ela continua a ser um moun lakou,
“alguém da casa”, à condição de que ela continue a participar das relações que constituem
parentesco e família, seja através de visitas ou de remessas e o envio de presentes, dinheiro,
mensagens e ligações telefônicas, mas também, em alguns casos, no serviços aos espíritos
herdados pela família (Richman, 2005; Bulamah, 2013a; Dalmaso, 2014; Joseph, 2015). Caso
esses laços não sejam mantidos pelos que partem, a pessoa pode facilmente ser considerada ingrata,
egoísta e mesquinha (chich) e, em casos extremos, socialmente morta.
Em meados de 2015, essa rotina comum foi substituída pela visita de pessoas de fora do
povoado. Eram candidatos ao Senado que faziam campanha para si e também para o candidato à
presidência de seu partido político ou de sua plataforma eleitoral. Com “os candidatos circulando”
(kandida yo deyò, lit. “lá fora”), esse momento é conhecido pela atmosfera liminar que caracteriza
um “tempo da política”, comum também a outros contextos latino-americanos (Heredia e
Palmeira, 1995). Durante o momento em que têm início as campanhas eleitorais, observa-se uma
suspensão da rotina com o predomínio de conversas sobre os candidatos motivadas e
acompanhadas por programas de rádio, carros de som e a circulação de objetos de campanha como
200

santinhos, folhetos, jingles, mensagens de celular, rumores e histórias. “Quando há eleições”,


resumiu certa vez madame André, “não conseguimos dormir”233.
Em seu clássico estudo sobre comícios, Beatriz Heredia e Moacir Palmeira (1994)
sustentam que um dos pontos centrais desses rituais da política é exatamente essa temporalidade
excepcional. Comícios, tal como campanhas eleitorais, são carregados de um caráter festivo (a
“festa do sertão”, como afirmou um de seus informantes, p. 34-35) que anuncia o início do “tempo
da política”, no qual o cotidiano outrora marcado pelo trajeto circular entre a roça e a casa e,
ocasionalmente, por atividades religiosas, recreativas e sindicais, vê-se substituído por um
conjunto de eventos que reordenam o tempo e o espaço e invadindo atividades corriqueiras,
produzindo disputas e alianças faccionais e transformando assim a fisionomia habitual das
localidades. A isso eu acrescentaria que é característico dessa nova temporalidade uma
aproximação entre passado, presente e futuro, expressa na atenção geral aos discursos sobre a
história (local, regional, nacional e internacional) e na capacidade que os candidatos possuem em
mobilizar e, dessa forma, produzir novos significados sobre o passado enquanto um “espaço da
experiência”; ao mesmo tempo em que miram o futuro, propondo novas possibilidades
imaginativas para esse “horizonte de expectativas”, se lançarmos mão das categorias propostas por
Koselleck (2006). Ademais, o caráter liminar desse momento eleitoral se expressa também pela
própria incerteza que ronda a previsão do fim das eleições, com a profusão de rumores e histórias
de medo e violência. Mesmo com as datas dos sufrágios previamente anunciadas, indeterminações
quanto às reais possibilidades de sua realização garantem ao tempo da política um caráter
fantasmagórico e antiestrutural no qual o restabelecimento da ordem (e do cotidiano) pode se tornar
uma realidade distante.

BOX: A presença estrangeira ou “os ladrões de cabrito”


Seria apressado demais dizer que esses fatores resumem a dinâmica de poder e
representatividade no Haiti contemporâneo. De fato, a própria possibilidade de organização de

233
Lè ki gen eleksyon, nou pa gen domi. A noção de “tempo da política” foi cuidadosamente trabalhada por Beatriz
Heredia e Moacir Palmeira em muitos de seus livros e artigos enquanto uma aproximação ao período eleitoral
(assumindo variações como “época da política” ou simplesmente “política”) e inspirou ainda uma série de outros
trabalhos (ver, por exemplo, as coletâneas: Palmeira e Barreira (2006b) e Palmeira e Heredia, (2010). Tal noção
apareceu no discurso dos meus interlocutores em formulações similares sobretudo como “momento da política”
(moman politik) ou, na variação descritiva já mencionada dos “candidatos circulando” (kandida yo deyò).
201

eleições depende fortemente do financiamento, da expertise e da presença de instituições e agentes


estrangeiros. E isso é encarado de modo ambíguo por muitos milosianos. Ao mesmo tempo em
que a presença estrangeira nas eleições confere um ar de legitimidade e respeitabilidade ao pleito
(gerando uma sensação de que o Haiti está no topo da agenda de interesses das potências globais),
a MINUSTAH, as inúmeras ONGs e as diversas delegações estrangeiras são, por vezes, encaradas
com desconfiança e acusadas de se utilizarem da situação de pobreza no Haiti em proveito próprio.
Isso se dá tanto no entendimento de uma situação geopolítica mais ampla quanto na relação
cotidiana. Soldados da MINUSTAH, por exemplo, são conhecidos popularmente como volè kabrit
ou “ladrões de cabrito”, um insulto que só faz sentido quando entendemos o lugar que animais
possuem na economia e na vida camponesas e o peso moral que o roubo possui socialmente. Com
efeito, e Mintz (2012, p. 80) já o notara, roubar animais e produtos agrícolas é um dos mais comuns
e desmoralizantes problemas da vida camponesa no Caribe. Em Milot, ladrão (volè) é, de longe, a
ofensa mais grave que alguém pode receber234.
Além do mais, muitas dessas instituições estrangeiras são percebidas como parte
constitutiva do próprio Estado, próximas a ele ou, até mesmo, desafiando seu monopólio, pois
exercem o que Trouillot (2003) chamou de “efeitos de Estado” (p. 81), ao mimetizarem processos
e práticas de governabilidade num momento em que o Estado não mais encontra fixidez em
instituições nacionais ou em localidades governamentais. Isso ficou claro para mim, quando, certo
dia, em 2012, madame André acordou cedo e não escondeu sua preocupação. Enquanto
conversávamos no fim da tarde, ela me confessou que no dia seguinte teria de ir ao burgo para
“pagar um dinheiro pro Estado”235. O “Estado” a que se referia madame André, como vim a saber
depois, era a Fonkoze (Fondasyon Kole Zepòl), uma agência de microcrédito criada por
descendentes de haitianos vivendo nos Estados Unidos. Tudo isso nos faz entender que a presença
de forças e agentes estrangeiros é complexa, envolta tanto na reprodução de tensões históricas
quanto na produção de novos conflitos – mas, ao mesmo tempo, também aberta a possibilidades
associativas em um universo onde muitos têm de se virar com o que encontram.

234
Variações como malonèt (desonesto), gangstè (gangster), bandi (bandido), sanginè (sanguinário), san manman
(sem mãe), sanzave (desocupado) e vagabon (vagabundo) são também comuns e compartilham significados
aproximados. Alguns insultos são agregados da partícula vye (velho) que, em crioulo, torna qualquer substantivo ou
adjetivo em uma ofensa, como vye bagay (lit. “coisa velha”, algo sem valor, desprezível). O mesmo ocorre, em menor
medida, com ti (pequeno).
235
Peye lajan Leta.
202

***

Vilarejos e contextos rurais são visados como locais importantes por candidatos e partidos,
não só pelo número de votos que podem angariar nessas áreas, mas pelo lugar que ocupam dentro
de dinâmicas de produção de poder e legitimidade. É sobre isso que fala Mbembe (2006) quando
define zonas rurais africanas como “reservas cativas de poder pós-colonial” (captive reservoir of
postcolonial power), sem as quais nenhuma estratégia eleitoral pode sair vitoriosa (p. 316). Nas
palavras de um dos membros do Pequeno Parlamento, a importante base de Milot, encontramos
um raciocínio bastante similar à elaboração de Mbembe, que afirma: “As pessoas da cidade não
sabem votar de verdade (...), pois a cidade não consegue eleger alguém chefe. É nas zonas rurais,
no interior [lit. ‘no país profundo’], são eles que elegem os chefes”236. Se o candidato não tiver o
apoio das comunidades rurais e de suas respectivas bases, conclui ele, “kòve lap fè” ou “ele fará
corveia”237. Similar aos contextos descritos por Mbembe (idem) e Geschiere (2012), políticos e

236
Moun santrevil yo pa vote vre (...), paske sentrevil pa ka mete ou chef. Se andeyò, se yo ki mete moun chef. O
próprio nome da base é revelador dessa dinâmica de poder. Na explicação de um de seus membros: “Você sabe que
Porto-Príncipe tem um Parlamento, nós somos o Pequeno Parlamento. E não importa quem seja candidato, é preciso
que ele venha se sentar aqui. Precisamos fazer algumas perguntas a ele. É aqui que tratamos dos assuntos importantes
[lit. ‘grande dossiês’]. Pois não gostamos de quem não gosta do povo. Quando você está do lado do povo, nós estamos
contigo. Mas se você não estiver do lado do povo, nós dizemos: vá embora! Fácil assim” (Ou konnen Potoprens gen
palman, nou menm se ti palman. E nanpòt kandida, se la pou vin chita. Fò nou poze kèt ti kesyon. Se la nou trete tou
gwo dosye. Paske nou pa renme moun ki pa ak pèp. Depi ou ak pèp, nou avè ou. Men depi ou pa ak pèp, nou di ou:
ale! Konsa).
237
A expressão “fè kòve” (lit., fazer corveia) é utilizada correntemente em situações de mercado para definir prejuízo
(defisi). Vendedoras que se garantem dizem com orgulho que “jamais fizeram corveia” (ver Bulamah, 2013a, p. 95),
pois sabem quando ir ao mercado e o que comprar ou vender para ter lucros (benefis). A expressão é empregada
também em momentos de intensa frustração, como quando alguém deixa o outro esperando ou ainda quando se recebe
um pagamento muito pequeno por uma jornada de trabalho. A história do termo é particularmente interessante, pois
remete aos governos pós-emancipação, quando o sistema de trabalho conhecido como corveia passou a figurar
explicitamente em legislações e códigos rurais para definir o trabalho compulsório utilizado de modo sazonal em terras
e empreitadas do Estado. O sistema, que seguia existindo legalmente, foi reimplementado durante a Ocupação
Estadunidense (1915-1934), numa clara releitura a partir das leis segregacionistas norte-americanas, criminalizando a
liberdade com a finalidade de conter a tradição popular de revolta, desarmar a população e disciplinar a mão-de-obra
negra em campos de trabalho e na construção civil, particularmente rodovias e, vale ressaltar, prisões, guardando
notáveis similaridades com o que ocorria à época no Sul dos EUA (ver Chochotte, 2017). Como nota a historiadora
Suzy Castor (2016), “[a] ocupação veio a fortalecer a velha tradição haitiana do militarismo e do despotismo” (p. 79)
e a corveia, estendendo-se até 1929 (apesar da abolição legal em 1918), “aliment[ou] também o sentimento anti-norte-
americano das massas, empurrando-as à toda forma de resistência” (p. 118). Números oficiais declarados em sessões
do Senado norte-americano, já no fim do período, falavam em 2 mil “bandidos” que resistiram abertamente à
Ocupação; contudo, documentos de grupos de inteligência recentemente abertos a público reportam que por volta de
203

lideranças regionais no Haiti buscam manter uma boa relação com suas comunidades rurais a fim
de adquirir respeitabilidade e apoio enquanto tentam se integrar ao jogo político nacional.
Uma diferença importante, entretanto, diz respeito à história das elites locais. Nesses
contextos africanos, tais elites viram seus primeiros dias no despontar dos movimentos de
descolonização que tiveram lugar a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. O que Geschiere
(idem) descreve com grande riqueza etnográfica ao falar do início de seu trabalho de campo na
região dos Maka, no Camarões oriental, em 1971, são exatamente essas dinâmicas em torno das
novas elites e sua relação com seus povoados de origem. Segundo o autor, a consequência dos
fenômenos recentes de africanização dos serviços públicos a partir da independência, em 1960,
“foi que as relações da nova elite com sua aldeia de origem – com seus ‘irmãos’, como o
expressavam invariavelmente – estavam cercadas por profundas ambiguidades” (p. 99). Isso
ocorria sobretudo pelo peso de uma ideologia igualitária que implicava compromissos de divisão
das riquezas adquiridas por aqueles que haviam se mudado às cidades e se tornado, após a
descolonização, figuras de poder e prestígio.
No Haiti, por sua vez, a cadeia de eventos, negociações e revoltas que culminaram na
independência do país, em 1804, implicou o surgimento progressivo de uma elite local que, tal
como em outros contextos americanos, ao mesmo tempo em que se opunha ao colonialismo,
assumiu uma estrutura social de forte caráter excludente herdada do Estado colonial (Barthélemy,
1989; James, 1989 [1963]; Trouillot, 1990). Isso em um mundo atlântico que, cabe ressaltar, ainda
era e continuaria sendo majoritariamente escravista. A longa história dessas elites urbanas difere
do que autores africanistas descrevem exatamente pela estrutura hierárquica bastante
institucionalizada que encontrou continuidade no pós-Revolução. Isso se faz notar, por exemplo,
na presença de uma teoria nativa das classes sociais expressa em discursos, em saberes e em
práticas cotidianas de camponeses e mercadoras pobres que serve tanto para a compreensão
sociológica de uma burguesia (boujwazi) quanto para uma percepção de seu próprio lugar na
sociedade enquanto povo, condensada na noção de desafortunados.
Nesse sentido, a despeito das diferenças com os contextos africanos, a relação entre elite e
grupos rurais é também marcada pelas “profundas ambiguidades” observadas por Geschiere

100 mil camponeses se renderam ao longo da ocupação. O resultado desses conflitos e rendições foi um desarmamento
massivo dos camponeses e um golpe certeiro nas formas populares de organização, contestação e insurgência –
arranjos históricos cruciais nas negociações dos camponeses com o poder estatal e, em grande medida, no controle
das tendências autoritárias de governo. Sobre esse tema, ver Gaillard (1982), entre outros do mesmo autor.
204

(2012) no Camarões. Tais ambiguidades se realizam nos esforços de figuras políticas tradicionais
em adquirir respeitabilidade e apoio em povoados rurais ao mesmo tempo em que novas lideranças
buscam manter seus laços com suas comunidades de origem. Isso é notável na frequência com que
lideranças participam e financiam as festas patronais, como as fèt champèt (festas campestres), e
dão dinheiro às bases e associações locais; mas também pela participação em rituais populares, em
performances de respeito a figuras de autoridade local e em prestações a espíritos e seres poderosos
que vivem nessas regiões. Através disso, renovam-se laços entre elites políticas e comunidades
locais e refirma-se a centralidade do parentesco e da magia na regulação do poder e na produção
da legitimidade.
Um dos momentos cruciais desse esforço em restabelecer laços e compromissos com as
comunidades rurais, em Milot, é quando o candidato visita o povoado. Essas visitas, de fato, nunca
acontecem sem um agendamento prévio. O próprio candidato ou alguém de sua plataforma entra
em contato com uma pessoa do vilarejo, normalmente uma figura mais velha ou uma liderança
local, que então combina uma data para o encontro. O fato de ir ao povoado é em si um sinal de
respeito do candidato à população local e tem um peso particular na criação de apoio popular. Com
a reunião agendada, a notícia se espalha entre as casas e o povoado se prepara para a visita do
candidato. Como é esperado que a comunidade receba visitas durante o momento de campanha,
algumas mudanças são antecipadas e as áreas comunais são reformadas: um lugar próprio para a
reunião é preparado e limpo, bancos são construídos com troncos de árvores locais e a base, o
centro político da comunidade, é restaurada e recebe uma nova decoração. Em Samson, só vi algo
similar acontecer nos preparativos para as festas de fim de ano, quando as pessoas se juntam para
realizar pequenos reparos nas áreas comuns do vilarejo e se preparam para uma grande celebração.
Durante as visitas, o candidato fala sobre seu programa político e tenta obter o respeito da
comunidade, convencendo as pessoas de que é alguém de princípios (pransip) e que possui valor
(valè), noções morais de grande importância. Pessoas da comunidade, por sua vez, através das
palavras de um membro da base, de uma outra associação local ou de modo individual, falam
amiúde de sua condição de desafortunados e das dificuldades em viver no Haiti. Reitera-se
vivamente os problemas do vilarejo, normalmente fazendo referência à infraestrutura: falta de
pavimentação das estradas, ausência de fiação elétrica, inexistência de um dispensário local e
sobrecarga do poço de água do povoado. Mas não só. Fala-se também da situação econômica
regional e nacional: desvalorização do trabalho dos lavradores, queda dos preços dos produtos
205

agrícolas nos mercados e a insegurança que enfrentam cotidianamente através, por exemplo, do
roubo de animais. A expectativa é de que, se o candidato for eleito, as demandas da população
chegarão à esfera estatal e algumas melhorias ocorrerão por meio de novos projetos (pwojè) e
planos (plan) para a localidade, o primeiro normalmente se referindo à infraestrutura e o segundo
a incentivos à produção agropecuária. A reunião normalmente termina com os moradores oferendo
produtos de sua roça ao candidato, como mangas, batata-doce e bananas e, em alguns casos, seu
apoio e a promessa de sua dádiva de maior valor: seus votos.
Porquanto o Estado é normalmente visto como exterior à comunidade, as reuniões, as
campanhas e o próprio voto demonstram como essas duas esferas se aproximam. De fato, no
momento eleitoral, alianças, campanhas e seus efeitos trazem à tona interpretações sobre a relação
entre Estado e nação e revelam o peso de objetos eleitorais, de concepções da política e das
possibilidade de se estabeleceram alianças entre diferentes grupos sociais. Similar ao que Beatriz
Heredia (1996) descreve quando analisa dois contextos rurais no Brasil, “o voto parece ser a moeda
de intercâmbio que permite a passagem de um circuito de troca a outro, isto é, de um de
reciprocidade – entre os socialmente iguais – ao de clientelismo político no qual o ‘cliente’ se
mantém permanentemente endividado face ao ‘patrão’” (p. 64). Se as trocas de comida e de
trabalho acontecem entre iguais e são parte dos laços sociais que mantêm e produzem relações de
mutualidade, do parentesco à vizinhança, o voto ocorre enquanto uma relação vertical que abre
espaço para a retribuição, mas entre pessoas de status social diferente. Como fica claro durante a
reunião, almeja-se um compromisso entre o candidato e os moradores rurais que se manifesta pela
expressão “caminhar junto” ou “caminhar com este candidato” (mache ansanm, mache ansanm
kandida sa a). O voto assume, com isso, um caráter coletivo dentro do povoado e o caminhar é a
metáfora central desse apoio.
Idealmente, o povoado decide em conjunto em quem irá votar. O assunto é discutido
publicamente sobretudo entre homens, em momentos de trabalho nos roçados, mas também entre
mulheres, nos taptaps a caminho da cidade, nos mercados e dentro das casas, nas conversas entre
esposos ou com os filhos e filhas mais velhos. Essa decisão conjunta infla o valor de seus votos,
garantindo aos moradores rurais maior importância dentro da paisagem política regional e,
consequentemente, maior poder de barganha na hora de estabelecer o compromisso com um
candidato. De fato, desde o momento prévio a uma reunião com um candidato, é possível antever
as divisões entre casas e vizinhos. Como fica claro, caso uma família não apoie um candidato, ela
206

nem se dará ao trabalho de aparecer durante sua visita. Assim, apoiar ou não um candidato revela
tensões dentro da comunidade, trazendo à tona velhas disputas e produzindo outras. Isso foi, de
fato, o que ocorreu quando Jean Charles Moïse decidiu sair em campanha. Muitas pessoas de
Samson, em particular, e de Milot, em geral, eram tradicionalmente suas apoiadoras, algumas delas
tendo tomado parte na ocupação de terras que ocorrera em 1994, quando Moïse era prefeito e
coordenou a ação. Por isso, a ele deviam respeito e lealdade. Contudo, desde seus três mandatos
como prefeito de Milot e um como senador ele foi perdendo apoio de muitas casas e povoados.
Cabe agora encarar sua campanha e a de seu oponente principal, Jovenel Moïse, para pensarmos
esse movimento e a política em sentido amplo.

De ancestrais e revoluções ou o 1804 de Jean Charles Moïse


Se 2015 foi um ano ruim, pois “mesmo a chuva [estava] fazendo política”, o “mesmo” na
observação de Jorab apontava para um momento político específico do país. Martelly, à época, se
recusava a deixar o cargo por uma série de razões, resultando em um atraso nas eleições e,
consequentemente, em um desgaste político de seu partido. Em Milot, falava-se sobre uma
possível deriva autoritária do governo, algo que se baseava na prévia aproximação do presidente
com o ex-ditador Jean-Claude Duvalier, que pôde retornar ao país em 2011 após 25 anos de exílio,
além de uma série de outras referências que seu governo estabelecia com o passado ditatorial 238.
Jean Charles Moïse foi um dos tantos senadores que ao término de seu mandato optou por não se
manter no cargo. A partir daí, sua crítica ao governo Martelly tornou-se mais intensa e acabou
sendo formalizada com a criação de um novo partido, o “Pitit Dessalines” ou “Filhos de
Dessalines”239. Declarando-se uma plataforma de esquerda com intenções de diálogo com outros

238
O retorno de Duvalier ao Haiti foi um tema bastante controverso. Sua aproximação com Martelly era evidente, o
que gerava rumores de uma possível candidatura à presidência. Contudo, diversos processos foram abertos contra o
ex-ditador logo após sua chegada, muitos deles pedindo punições e reparações por torturas, prisões ilegais, exílios
forçados e desvio de dinheiro público. Em fevereiro de 2014, o tribunal de justiça de Porto-Príncipe decidiu que tais
crimes eram imprescritíveis, pois representavam crimes contra a humanidade. Não obstante, Jean-Claude Duvalier
morreu em outubro daquele mesmo ano sem enfrentar nenhum julgamento oficial. Publicamente, Martelly se disse
“entristecido” e seu comentário em sua conta no Twitter foi representativo dessa proximidade: “Apesar de nossas
querelas e de nossas divergências, saludemos a partida de um autêntico filho do Haiti. #JeanClaudeDuvalier”.
“L’ancien dictateur d’Haïti Jean-Claude Duvalier est mort”, Le Monde, 4 de outubro de 2014,
http://www.lemonde.fr/disparitions/article/2014/10/04/l-ancien-dictateur-d-haiti-jean-claude-duvalier-est-
mort_4500679_3382.html.
239
Durante meu primeiro período de trabalho de campo, no primeiro semestre 2012, emissoras de rádio locais
começaram a trazer a notícia de que Martelly teria supostamente dupla nacionalidade, uma haitiana e outra italiana,
207

grupos ao centro e à centro-esquerda do espectro político, seu programa centrava-se, de um lado,


em uma crítica à ocupação da ONU e ao excesso de ONGs no país e, de outro, na necessidade de
um projeto político dirigido aos camponeses e ao povo em geral. Para tanto, o ex-senador defendia
uma aliança entre as classes médias, a classe política e os estudantes240. Como Moïse declarava
publicamente, “Dessalines vai para a casa de Pétion” (Dessalines pral kay Pétion).
Sua campanha era cheia de referências a ancestrais (zansèt) e centrava-se sobretudo na
figura do primeiro governante do país livre, Jean-Jacques Dessalines. Ao afirmar que Dessalines
se dirigia à casa de Pétion, a plataforma de Moïse claramente reproduzia uma formulação histórica
que identifica as disputas políticas como uma divisão fundacional entre a elite crioula (cuja
legitimidade derivaria de um reconhecimento “natural” de sua competência por serem
descendentes dos colonos europeus) e a maioria negra da população (cuja legitimidade, também
“natural”, derivaria não de sua ascendência, mas de seu grande número)241. A “aristocracia de cor”
de que fala Trouillot (1990, p. 126) é popularmente percebida como um dos atributos do Estado
haitiano, mas como já notara o autor, a disputa pública nunca se assume como uma “completa
guerra de cor” (all-out color war; idem, p. 127). “Os ‘mais capazes’, assim como os ‘mais
numerosos’ ou quaisquer outras expressões deste tipo”, continua Trouillot, “funcionava como um
código de etiqueta por trás do qual todos reconheciam a ‘questão de cor’ sem que ela fosse
explicitamente formulada e detalhada” (idem, ibidem). Tal oposição, de fato, não se resume a uma
“questão de cor” e, cabe ressaltar, em nenhum momento, Moïse falou explicitamente de um
conflito entre negros e mulatos, centrando-se sobretudo em uma contraposição entre
desafortunados e burgueses. Burgueses também são chamados de “pessoas capazes, competentes”

algo que era inconstitucional para um presidente. Moïse exigia publicamente uma investigação, o que acabou gerando
uma série de rumores, em Milot, sobre Martelly ter enviado assassinos atrás do senador que, por sua vez, estaria
foragido em algum povoado rural da região.
240
Gérard Maxineau, "Apothéose au Cap-Haïtien pour Moïse Jean Charles", Le Nouvelliste, 23 de outubro de 2015,
http://lenouvelliste.com/lenouvelliste/article/151580/Apotheose-au-Cap-Haitien-pour-Moise-Jean-Charles.
241
Historicamente, essa disputa permeou a política haitiana desde os tempos anteriores à Revolução e se assentava em
um discurso ideológico que naturalizava a legitimidade, ora mobilizando uma questão estatística (o poder deve ser
exercido pelos representantes de uma maioria; na colônia de finais do século XVIII, os crioulos em oposição aos
franceses e, na república, os negros em oposição aos mulatos), ora lançando mão de um direito natural ao poder
segundo a origem, o que sustentava a ideia de mérito e competência de governo dos mulatos enquanto “os mais
capazes” (les plus capables). Ver Hurbon (1979, pp. 108-109) para uma discussão sobre tais representações no campo
político e intelectual. Ao atualizar essa disputa, Moïse se aproximava de uma teoria social que no Haiti ganhou o nome
de noirisme e que sustentou a própria ascensão e permanência de François Duvalier no poder. Como destaca Trouillot
(1990), com sua conhecida precisão, “noirisme sempre foi um discurso extremamente potente no Haiti e é bem
provável que permaneça assim enquanto a percepção de uma ‘aristocracia de cor’ se mantiver atual” (p. 126).
208

(moun kapab) e muitas vezes coincidem com as famílias urbanas tradicionais (moun lavil), que
não são pobres (moun pòv) e que não vivem “nas margens”, “no campo” ou “no país profundo”
(possíveis traduções para o termo peyi andeyò). Isso era evidente, por exemplo, quando meus
interlocutores falavam de sua própria condição de desafortunados, o que revelava a complexidade
desse imaginário social marcado por interseccionalidades diversas, no qual a cor da pele não opera
de modo unívoco, como faz ver, por exemplo, a expressão popular “nèg rich se milat, milat pov se
nèg” (lit., “negro rico é mulato, mulato pobre é negro”).
Na campanha de Jean Charles Moïse, a referência a Dessalines dizia respeito, mais
amplamente, a uma divisão entre burguesia e povo que tinha relação direta, mas não exclusiva,
com as disputas entre negros e mulatos. Claro que interpretações distintas e numerosos equívocos
foram comuns durante todo o período eleitoral. Na base que apoiava Moïse, por exemplo, tal
divisão era afirmada de maneira mais ou menos evidente. Durante uma roda de conversa quando
eu visitava o Pequeno Parlamento, em finais de janeiro de 2016, algumas semanas antes da
organização de um segundo pleito, um dos temas que os membros daquela base enfatizavam foi a
incompreensão dos estrangeiros quanto às razões de Moïse ter escolhido Dessalines como
inspiração para sua campanha e, sobretudo, para seu projeto político: “Há pessoas entre os
estrangeiros no exterior que pensam que por ele ter escolhido Dessalines, Moïse irá expulsá-los.
Contudo, isso não é verdade. Que ele iria se comportar como Dessalines, mas isso não é
verdade”242. A invocação a Dessalines ocorria como uma forma de retomar sua coragem (kouraj)
e sua competência (kapasite). Dessalines lutou junto ao “povo” e “nunca nos esqueceu”: “pois ele
lutou por nós, lutou para nos libertar”. “Por isso”, continua um dos membros da base, “Moïse
sentiu e percebeu que ele mesmo era alguém que também lutava pelo povo haitiano. Essa foi sua
escolha”243.
Dessalines, o primeiro governante do país independente, era alguém que não olhava só para
si, mas que “olhava para a pátria”; como afirmaram naquela ocasião, “ele olhava para todos que
lutaram, sem esquecê-los”. Referindo-se a uma das principais batalhas de independência, no forte
de Crêtes-à-Pierrot, continua um outro membro do Pequeno Parlamento, “ao ser rodeado pelos
franceses, Dessalines disse: todos que quiserem morrer como homens livres, coloquem-se ao

242
Gen moun nan blan aletranje yo ke yo panse ke paske li chwazi Dessalines nan li pral couri deryè do a yo. E poutan
se pa vre. Li tap konpòte tankou Dessalines, men poutan se pa vre.
243
Paske nèg sa se goumen pou nou, li te gounmen pou li ba nou libète. Aprè sa li Moïse santi, li wè ke li se yon nèg
ki ap gounmen pou pèp aiysyen tou. Li chwazi sa.
209

[meu] lado, mas aqueles que quiserem se tornar escravos franceses, podem ir! E todos
responderam: viver livres ou morrer!”244. Retomando implicitamente uma das principais frases
entoadas pelo general Capois “La Mort” à frente do Exército Nativo (L’Armée Indigène), durante
a Batalha de Vertières, a última batalha da Revolução, ele assim conclui, “Dessalines não olhava
para sua mãe nem para o seu pai. Moïse é assim, ele jamais olha para si. É como se Moïse olhasse
para todo o Haiti, ele olha para todas as pessoas. Ele não olha só para um, mas para todos”245. Essa
dimensão coletivizante de alguém que olha não para si ou para os seus, mas para o povo,
representava o “ideal dessaliniano” que Moïse professava. Era uma clara defesa de uma união do
país, mas uma união que, ao invés de ser pautada pelo projeto político da burguesia (boujwazi), os
“filhos de Pétion”, servia aos interesses do povo, os verdadeiros “filhos de Dessalines”, cuja hora
de decidir e governar o país havia chegado. Para isso, deveriam chegar à “casa de Pétion” – o
Palácio Nacional.
Ancestrais, como vimos no primeiro capítulo, são figuras de imenso poder. Além dos
legados materiais, estátuas, efemérides, rituais, grafites urbanos, pinturas, músicas de carnaval e o
próprio hino nacional – cujo nome é La Dessalinienne – ancestrais exercem um constante fascínio
e são entidades que coabitam e interagem com pessoas tanto em momentos cotidianos quanto em
rituais. Porém, longe de serem seres coerentes e estáveis, suas características, histórias e poderes
são sempre assunto de controvérsias e debates que revelam suas contradições. Dessalines,
especificamente, é visto por muitos, entre historiadores estrangeiros ou haitianos, profissionais ou
populares, como um personagem ambíguo e incoerente ou, se tomarmos de empréstimo a definição
de Joan Dayan (1995), “um crioulo [nascido em São Domingos] que poderia assumir o papel de

244
Pa blye Dessalines li pa te wè pou tèt a y. Li te wè pou patriy. Li te wè pou tout moun ki te goumen san ke li tap
blye. Lè Dessalines te nan fòt de Krètapyewo, franse yo te antoure y, Dessalines te di tout moun ki vle mouri òm lib,
ranje bò kote y, men li di moun ki vle esklav franse, men, ale! Men tout moun te reponn, viv lib ou mouri!.
245
Dessalines pa te wè manman y, li pa te wè papa y. Men Moïse se konsa, Moïse pa janm wè y. Moïse se konm si wè
tout Ayiti, se tout moun li wè y. Li pa wè yon grenn moun, li wè tout moun”. O chamado de Capois “La Mort” é o
seguinte: “Granadeiros, ao ataque!/ Não há mãe, não há pai/ Granadeiros, ao ataque!/ Aos que morrerem, problema
deles!” (Grenadyè, alaso! Pa gen manman pa gen papa! Grenadyè, alaso! Sa ki mouri zafè a yo!). O tema aqui não é
só o de “morrer pela pátria”, mas o de um sacrifício que recusa os laços de parentesco anteriores ao evento da
Revolução (“não há mãe, não há pai”), atomiza os mortos (“problema deles”) e valoriza a coragem em nome de uma
nova família, aquela que é fruto da guerra e que se tornaria a nação. A frase se tornou canção popular e é sempre
lembrada como um dos lemas da Revolução. Seu significado motivou discussões variadas com algumas transcrições
optando por uma versão mais afrancesada e outras mais crioulizadas. Em alguns casos, o “pai” (papa) é substituído
por “filho(a)” (pitit). Ver Price-Mars (2009 [1928], p. 31); James (1989 [1938], p. 297); Dubois (2004, p. 296); Le
Glaunec (2014, p. 151) e Perry (2017, pp. 56-7).
210

um africano com a mesma facilidade com que poderia estar ao lado dos franceses” (p. 22, grifos
no original)246. Dessalines foi o ancestral que serviu no exército colonial francês, adquirindo
grande prestígio, mas que, assim que o momento se revelou propício, reuniu e liderou o Exército
Nativo em direção à liberdade. Por tal feito, ele é constantemente referido como “Papa Dessalines”
e o Haiti é compreendido como um “dom dos ancestrais” (don zansèt), retomando a elaboração de
senhor Altenor, o que confere ao nacionalismo popular uma dimensão de dívida cósmica
particularmente atrelada ao esforço magistral e ao sacrifício de tais entidades ao conquistarem a
independência do país247.
Com efeito, na campanha de Moïse, outras referências centrais eram a Revolução Haitiana
e a independência. Na entrada de Milot, um cartaz havia sido pendurado por apoiadores de Moïse
logo em frente ao hospital, onde os taptaps param no caminho para Cabo Haitiano (imagem 30).
Nos dois extremos do cartaz, estava o número da candidatura de Moïse, 28, e, no meio, a frase,
“NOU TE FÈ 1804 NAP FÈ 2015 – NOU TOUT SE PITIT DESSALINES” (Nós fizemos 1804,
vamos fazer 2015 – Somos todos filhos de Dessalines). O mesmo cartaz havia sido exposto em
ruas do Cabo, em Porto-Príncipe e em outras cidades do país. Também no Cabo, apoiadores de
Moïse declaravam seu voto mobilizando um vocabulário similar. Conforme se via em muros da
capital do Norte, grafites traziam a frase “Moïse Jean Charles ou Révolution Jiskobou” (Moïse
Jean Charles ou Revolução até o fim). Era uma clara ameaça de que se não fosse eleito, o candidato
lideraria uma revolução contra o sistema, uma “revolução até o fim” (imagem 31).

246
Ver também o recente número do periódico The William & Mary Quarterly, vol. 69, n. 3, 2012, com um dossiê
dedicado inteiramente a Dessalines.
247
Jean Charles Moïse não foi o primeiro a fazer recurso à força de ancestrais no campo da política. Jean Bertrand
Aristide, antes dele, se associava à figura de Toussaint Louverture em diversos pronunciamentos públicos, como no
momento de sua deposição forçada em que retomou o célebre discurso de Louverture após sua captura por tropas
napoleônicas, aproximando seu exílio ao sequestro do general. Ver Jenson (2005).
211

Imagem 32: O 1804 de Moïse. Foto do autor, Milot, Imagem 31: Revolução até o fim. Foto do autor,
2015. Cabo Haitiano, 2015.

A semântica por trás destas referências estava associada sobretudo ao valor da soberania
haitiana perdida a partir da recente ocupação estrangeira, iniciada em 2004, com a Missão das
Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH)248. Por isso, a necessidade de uma nova
libertação: uma atualização da independência possível a partir da expulsão do poder colonial, agora
neocolonial. “O país de Dessalines não é da MINUSTAH” (Peyi Desalin pa pou Minista), era uma
canção que eu ouvi desde 2012 em diversos momentos durante o trabalho de campo.
Diferentemente de um contexto como Cuba, no qual o Estado guarda para si o monopólio
simbólico da força da “revolução”, como mostra o antropólogo João Felipe Gonçalves (2017),
“revolução” aqui pertence ao povo e opera como um quadro de princípios morais que permite a
compreensão do presente e a imaginação do futuro a partir de uma leitura específica do passado.
Na campanha de Jean Moïse, a força coletiva da “revolução” era mobilizada tanto como um
processo imanente de conflito e ruptura radical com a atual situação de dominação e hegemonia
das elites nacionais e internacionais, ao mesmo tempo em que apontava para uma união

248
Sob o comando do exército brasileiro, a MINUSTAH teve início em 2004, mas antes dela outras ocupações
coordenadas por instituições e países estrangeiros já operavam no país.
212

transcendental, já que “somos todos filhos de Dessalines”. Por isso, a necessidade de se unir sob
os ideais de Moïse, “de Leste a Oeste”, “de Norte a Sul”, “católicos, protestantes, praticantes do
vodu, ricos ou pobres, devemos todos caminhar juntos com Moïse”, como era difundido por um
de seus spots de campanha249. Moïse era a figura que poderia liderar o povo nessa travessia. A
alusão à figura bíblica de Moisés era algo constante e manifesto. Neste mesmo spot, Jean Moïse é
nomeado salvador e libertador do povo (sovyè e liberatè), epítetos historicamente utilizados pela
elite letrada para falar do próprio Jean-Jacques Dessalines (Dayan, 1995, p. 28). Em uma outra
propaganda, afirma-se que “Deus enviou Moïse Jean Charles para nos ajudar na travessia”250. Esta
ideia de travessia e, mais amplamente, de movimento, nos leva a um outro conjunto importante de
significados.

Imagem 33: Santinho de Jean Charles Moïse.

Como mostra o santinho de Moïse, um de seus principais slogans de campanha era “Com
ou sem barricadas, Moïse presidente” (Barikad pa barikad, Moïse prezidan). Esta frase, assim

249
“De Oues a Lès; de Nò a Sid; katolik, pwotestant, vodouyizan, rich ou pòv, annou mache ak Moïse”. “Spot Pitit
Dessalines…..Moise Jean Charles", vídeo publicado por Walner Célestin, YouTube, 01:20, 28 de agosto de 2016,
https://www.youtube.com/watch?v=0u7r-YTYLzA.
250
"Bondye voye Moïse Jean Charles pou travèse nou". “Pitit Dessalines Spot,” áudio publicado por Moïse Jean
Charles, Soundcloud, 1:07, março de 2016, https://soundcloud.com/moisejeancharles/pitit-dessalines-spot.
213

como os epítetos referidos acima e a citação a Moisés eram referências claras a noções e valores
associados à mobilidade e à liberdade. Tais noções são, por sua vez, constitutivas de um conjunto
de relações com os espíritos e outras forças, no qual trocas e compromissos podem ser assumidos
ou herdados coletivamente, como no caso dos espíritos da família, ou individualmente, quando se
estabelecem contratos mágicos (kontra) e compra-se um espírito ou ponto (lwa achte ou pwen).
Em muitas canções do vodu, há alusões constantes a barreiras (baryè) e à necessidade de
atravessá-las (jambe, vanse ou travèse) a fim de “seguir seu próprio caminho” (fè chemen pa ou).
Espíritos e deidades (jany, lwa, mistè e ginen) são companheiros de travessia, inspirando escolhas
morais e participando ativamente da construção desses caminhos (Brown, 1991; Bulamah, 2015).
A feitiçaria ou magia de assalto (maji), por outro lado, por ser orientada a causar o mal
(mechanste), é correntemente associada a formas de contenção e à produção da imobilidade do
corpo de uma pessoa, de sua sorte (chans) ou de sua própria vida ou da de seus parentes (sobretudo
filhos e filhas), expressa em elaborações como “fazer o corpo ficar duro” (fè kò a rèd), barrar
(bare), segurar (kenbe), amarrar (mare), “não deixar a pessoa avançar/progredir” (pa kite moun
vanse) e outras variações. De fato, e aqui retornamos à metáfora da mobilidade como um tema
relacionado à própria vida, avançar (vanse), caminhar (mache), mover-se (bouje, deplase), “não
parar” (pa kanpe) são princípios morais definidores do próprio movimento vital de corpos, pessoas,
famílias, espíritos e da sociedade como um todo. As barricadas no slogan de Moïse são a metáfora
da resistência ao processo que ele liderava, algo que, de fato, não poderia ser contido251.
Para outras pessoas, contudo, as agências e os símbolos que Jean Charles Moïse mobilizava
eram excessivamente perigosos. Uma “linguagem do satã” (langaj Satan), na formulação de
madame Anouse mencionada no começo do capítulo. Esta percepção, assim como outras similares,
reproduz uma demonização das práticas mágicas e dos compromissos com espíritos – usualmente
resumidos como “vodu” pela literatura e por agentes específicos do campo religioso – observável
em diferentes momentos da história do país do qual participaram o Estado e a Igreja Católica
(Ramsey, 2011). Atualmente, tal movimento se associa às redes transnacionais de missionários
neopentecostais oriundas, sobretudo, dos Estados Unidos (McAlister, 2014). Nesse sentido, a
condenação aos espíritos é notável nos cultos contemporâneos dentro dessas igrejas e de outras
seitas em Milot, como a Igreja Apostólica de Milot, que Anouse frequentava. Ali, nos cultos que

251
De modo similar, o partido Lavalas, literalmente “inundação”, e posteriormente Fanmi Lavalas (lit. “Família
Inundação”), lançava mão de referências similares ao se colocar como uma força que não pode ser contida ou barrada.
214

pude frequentar junto às pessoas de Samson, os pastores reiteram a necessidade dos fiéis
controlarem suas emoções, seus movimentos e seus corpos, evitando com isso a criação de um
clima de calor, animação e excitação denominado chofe, que é a condição necessária para a
manifestação desses seres em serviços e cerimônias (Lowenthal, 1994; Bulamah, 2013a, pp. 123-
124). Curiosamente, essas tensões em torno do movimento parecem estimular o surgimento de
localidades híbridas, espaços fora das igrejas e dos templos tradicionais, em que o movimento e a
manifestação de entidades espirituais pode acontecer, como é o caso dos locais de culto conhecidos
como jenn (ver Baptista, 2012). Se os espíritos são condenados e combatidos nas igrejas
neopentecostais, nos jenn é aceita a possibilidade de que o “Espírito Santo” (Sentespri) e outros
seres manifestem-se entre os presentes, que começam a girar e a falar em línguas. Tais aparição,
contudo, são tida não como as de uma entidade que “monta seus cavalos” (monte chwal), mas sim
que “desce em suas cabeças” (desann nan tèt).
Tal inversão parece falar muito sobre o modo como as interações com seres meta-humanos
é dinâmica e se refaz a partir de exigências situacionais e de novas agências que entram em jogo,
como novos conhecimentos religiosos, os missionários, os espíritos etc. Ademais, como
demonstrou Paul Johnson (2011) a partir da genealogia atlântica da categoria de “possessão
espiritual”, esta ideia foi construída como um tema racial, operando um trabalho de definição
negativa do indivíduo racional, autônomo e autocontido próprio à imaginação iluminista e aos
projetos políticos modernos de autogoverno. Aquilo que viria a se tornar a noção ocidental de
“individualismo possessivo” próprio aos europeus opunha-se, desde sua gênese, aos “corpos
possuídos” de africanos e afro-americanos: enquanto aos primeiros caberia o papel de possuírem
a si mesmos como propriedade governável, aos últimos estaria relegada a possibilidade de serem
tomados por forças e agências invisíveis, estando, consequentemente, impossibilitados de se
autogovernarem – tanto na escala do corpo quanto no âmbito da nação – e, por isso, passíveis de
serem escravizados e colonizados. A possessão foi, nesse sentido, central para o estabelecimento
de uma alteridade radical sobre a qual filósofos europeus como Hobbes e Locke, Hegel e Marx
construíam seu pensamento (ver Crosson, 2017). Assim, entidades espirituais tiveram um papel
central na criação e proliferação de outras entidades, estas tidas como “modernas”, como a
economia, o Estado e a propriedade privada. Não por acaso, na argumentação de Karl Marx sobre
o fetichismo da mercadoria, o autor o trata como algo mais misterioso do que as mesas que
215

dançavam por ação de espíritos, causando espanto e assombro na França de meados do


oitocentos252.
Espíritos e outras entidades são, por isso, parte constitutiva de dimensões mundanas da
vida social e coabitam com humanos, participando ativamente nas diferentes formas de produção
de mundos sociais e da própria modernidade ocidental. No caso de Milot, muitas dessas formas de
produção conjunta envolvem também um intenso e muitas vezes penoso trabalho de participação
em compromissos herdados, hierarquias e negociações que revelam que a agência humana é muitas
vezes secundária. Por isso, ao afirmar que lwa e jany são diabos (djab), satãs (satan) ou “anjos
rebeldes” (zanj rebèl) – ou ainda “coisas velhas” (vyè bagay) – opera-se também uma
ressignificação de seu lugar social, retirando-os da esfera da família e do cotidiano, atomizando-
os como figuras autônomas e malignas que existem para oferecer riqueza fácil, desvirtuar pessoas
de seus caminhos, possuí-las e envolvê-las em um contrato no qual suas próprias vidas, a de seus
familiares ou a de um terceiro são moeda de troca. Por extensão, o mesmo processo ocorre com
relação aos especialistas mágicos, ougan e manbo, que são considerados por muitos como pessoas
malignas por se relacionarem diretamente com espíritos e, consequentemente, aproximarem-se a
figuras de extrema “maldade”, como os lougawou. Um indício dessa correlação é que, em Milot,
poucas pessoas estabelecem diferenças claras entre ougan, de um lado, e bòkò, de outro: os
primeiros sendo feiticeiros e sacerdotes que curam e não cometem atos maléficos e, os segundos,
feiticeiros que “trabalham com as duas mãos” e manipulam forças malignas e perigosas 253. O

252
Em uma escala nacional, entre o final do século XIX e o início do XX, a literatura médica e sociológica haitiana,
dialogando diretamente com o que se produzia nos grandes centros científicos e biomédicos estrangeiros, encarava a
possessão como fenômeno psicológico, construindo uma oposição entre sujeitos modernos (burgueses, racionais e
capazes de se governarem) e primitivos (moradores rurais, animistas, ingovernáveis e incapazes de participação
política). Sobre isso ver J. C. Dorsainvil (1931) e também as propostas de Jean Price-Mars (2009 [1929]), que em seu
trabalho clássico contestava tais elaborações, reafirmando um caráter universal das relações entre humanos, espíritos
e suas leis (ver, particularmente, p. 129).
253
Tal sobreposição, nota Ramsey (2011, 304n253), era comum na literatura católica de finais do século XIX que
buscava “civilizar” o campesinato haitiano e orientá-lo à acumulação e à adequação das relações de trabalho e de
produção, ignorando a distinção popular entre ougan e bòkò (ou papaloi) e atribuindo os infortúnios gerais da
população do campo aos excessos de demandas, dívidas e oferendas para com os feiticeiros. Para exemplos dessa
literatura, ver os trechos do jornal La Croix selecionados e analisados por Marc Péan (1977, pp. 124-129). Além disso,
em um programa de rádio parisiense dedicado a “causeries ethnologiques”, na definição de Georges Henri Rivière, o
antropólogo haitiano Jacques Roumain, convidado para a emissão do dia 9 de maio de 1938, assim destaca: “Il faut
surtout se garder de confondre vaudou et magie, le hougan avec le sorcier. Ce dernier rôle serait plutôt réservé au
Bòkò qui correspond à peu près à un rebouteux et à un jeteur de sorts. Le Bòkò, exploiteur de la naïvité populaire,
vend des charmes, des talismans, des philtres d’amour, des oraisons protectrices et on lui attribue une égale virtuosité
dans la connaissance des plantes médicinales et des poisons” (Roumain, 2005, p. 3).
216

dinheiro é, aqui também, utilizado correntemente como barômetro moral pois, como notou
madame André ressoando uma elaboração que ouvi amiúde: “um bòkò nunca consegue realmente
te ajudar, você gasta um monte de dinheiro e nada. É nessa hora que as pessoas se convertem” 254.
Contudo, ao invés de efetivamente afastar pessoas de seus compromissos com espíritos, tais
iniciativas de demonização acabaram por reforçar, como mostram Dayan (1995, p. 104) e Ramsey
(2011), a presença e o poder desses seres.
O contexto aqui é similar aos que figuram no clássico O diabo e o fetichismo da mercadoria
na América do Sul, de Michael Taussig (2010), particularmente ao do vale do Cauca colombiano.
Ali, populações de ascendência africana “reconstituíram-se” enquanto camponeses nas brechas do
colonialismo e da plantation, mas mantiveram-se excluídas das novas formações sociais por serem
negados à posse da terra e à representação política. Quase como “foras da lei”, como destaca
Taussig, lançando mão do relato de um viajante alemão em finais do século XIX (2010, p. 95),
“camponeses livres e forasteiros cuja existência dependia da sagacidade e das armas, em vez de
garantias legais à terra e à cidadania poderiam ser equiparados aos Maroon das Índias Ocidentais”.
Com o advento da agricultura de larga escala no começo do século XX, esses grupos camponeses
tornaram-se “proletários neófitos”, servindo como mão-de-obra barata nas plantações de açúcar.
Esse processo de incorporação econômica ocorria por meio da figura dos muñecos, pequenos
artefatos mágicos elaborados por um feiticeiro, que mediavam o pacto com o diabo e simbolizavam
o trabalho precário, a acumulação e um dinheiro impuro e estéril – elementos e formas sociais
moralmente repudiadas pelos camponeses.
No Haiti, similares aos muñecos, os pwen (pontos ou lwa achte, lit. “espíritos comprados”)
representam essa incorporação dos grupos camponeses ao universo proletário e são carregados de
um poder alienante e predatório. No entanto, se o esquema analítico de Taussig parece apontar
para uma rígida dicotomia entre valor-de-uso e valor-de-troca, camponeses e trabalhadores
alienados, bem e mal, o pwen assume uma relação de revitalização com o universo social
camponês, como argumentou Karen Richman (2005, p. 19-20). Se magia, dinheiro estéril e, no
limite, o mal são fatores que marcam a vida dos trabalhadores neste contexto de flexibilização,
precariedade e desencantamento, o capital extraído da alienação da força de trabalho é o que serve
para dinamizar as relações com a tradição, condensada, como mostra a autora, na noção de “Guiné”
(Ginen), definida como “um sistema moral” ou “um modo de estar no mundo” cujo significado

254
Lè bòkò pa ka ede ou vre, ou depanse anpil kòb e anyen. Se lè sa ou konvèti.
217

engloba “tradição, mutualidade e autoridade moral” (p. 17). Um indício dessa dialética entre magia
e Guiné é o fato de que, em Milot e em outras partes do país, feiticeiros e servidores (sevitè, pessoas
que fazem serviços aos espíritos) em geral acabaram por incorporar esse vocabulário acusatório e,
ao falarem dos espíritos, chamam-nos de diabos, satãs e anjos rebeldes. Não rejeitam, mas
efetivamente abraçam a ambiguidade de seu poder e os assumem menos como forças rigidamente
negativas e mais como agências e poderes dinâmicos e revitalizadores. O mesmo ocorre com a
categoria ougan e bòkò, já não mais tidas como opostas nem pelos próprios feiticeiros e
especialistas mágicos. Assim, ao usar a imagem de satã para definir a linguagem de Jean Charles
Moïse, Anouse afirmava que o candidato estava mexendo com forças muito poderosas e
colocando-se ao lado ou “caminhando com” praticantes do vodu ou vodouyizan (termos pouco
empregados em Milot) e aqueles que “serviam os espíritos” (sèvi jany). Isso nos remete, outra vez,
à figura de Dessalines.
Como nos conta Joan Dayan (1995, pp. 30-31), após ter sido assassinado em 1806, apenas
dois anos após o início de seu governo, Dessalines retornou como um ser místico, transformando-
se em um lwa kreyòl (espírito crioulo), mais especificamente, em Ogou Dessalines, caminhando
ao lado do espírito africano Ogou Fèray, deus da guerra, do metal e da política. Dessalines tornou-
se, com isso, uma figura não só de grande reverência, mas também de imenso poder. Jean Charles
Moïse, ao reivindicar um ancestral como ele e ao mobilizar tanto a noção de revolução como o
valor da mobilidade, lançava mão de um conjunto de referências que falava diretamente a um
grande número de pessoas. Era uma estratégia que criava uma associação com o prestígio e o poder
dos ancestrais e dos espíritos, e colocava a si mesmo como a figura legítima que poderia unificar
o povo haitiano e liderá-lo em direção a uma nova revolução, uma que poderia tomar as terras das
mãos da burguesia (nacional ou estrangeira) e devolvê-la aos desafortunados. Outra vez, é Joan
Dayan (1995) quem resume o que está em jogo aqui: “Servir Dessalines reanima, assim, o que
muitos acreditavam ser o seu legado: a indivisível terra do Haiti consagrada pela revolução e
vislumbrada em sua Constituição de 1805 como algo alheio à contaminação de senhores ou
proprietários estrangeiros” (p. 33, grifos meus). A campanha de Jean Charles Moïse funcionava,
assim, como um serviço a Dessalines, trazendo este ancestral para a disputa presidencial,
mobilizando um conjunto poderoso de agências mágicas e atualizando, com isso, sua crítica aos
senhores e aos proprietários estrangeiros enquanto uma crítica à burguesia e ao seu esforço de
acumulação graças à exploração de pobres e moradores rurais. Jovenel Moïse, por sua vez, esboçou
218

outra estratégia em sua luta política e simbólica. Utilizando a comida (manje) como referência
principal de sua campanha, ele conseguiu adquirir apoio popular suficiente para fazer face à
semântica histórica e ao poder ancestral e mágico de seu oponente.

Os encantamentos da comida e as promessas do desenvolvimento


Com a escolha de um novo herdeiro político para Martelly, a retórica empregada na
campanha de Jovenel Moïse manteve certa similaridade com aquela utilizada por seu padrinho nas
eleições presidenciais de 2010. Nos dois momentos eleitorais, enfatizava-se sobretudo uma
distância com relação à classe política tradicional do país. Martelly, antes de eleger-se presidente,
fez carreira como cantor de konpa, um ritmo dançante e extremamente popular, ganhando notável
popularidade e apresentando-se em concertos, festas de rua e carnavais. Ao tornar-se candidato,
passou a fazer comícios pelo país, muitos deles acompanhados por suas performances como
músico e dançarino, sempre enfatizando sua posição como um outsider e fazendo pronunciamentos
críticos e cheios de comicidade e escárnio aos políticos estabelecidos. Quando chegou a vez de
Jovenel Moïse, sua campanha centrou-se em retratá-lo como um homem dedicado ao trabalho,
uma espécie de empreendedor autônomo que menos do que um político era um visionário, “louco
por produzir bananas”, como Martelly afirmou certa vez em uma conferência algum tempo antes
de escolhê-lo como o novo candidato de seu partido, o PHTK255. Comparativamente, essa mesma
estratégia política para conseguir apoio popular é observada em outros contextos contemporâneos,
revelando sua força em retratar a política como moralmente condenável e advogar em favor de um
novo modo de gerir o Estado. Na campanha de Jovenel Moïse, ele se colocava explicitamente
como o continuador da política econômica de Michel Martelly, cuja proposta se resumia ao slogan,
enunciado muitas vezes em inglês, “O Haiti está aberto para negócios” (Haiti is open for

255
Gen foli fè bannann. “Président Joseph Michel Martelly présente Jovenel Moise et le projet de plantation de
bananes,” vídeo publicado por itiah509, YouTube, 5:45, 20 de junho de 2015,
https://www.youtube.com/watch?v=phf56v7Qa1c; sobre sua distância com relação aos políticos “tradicionais”, ver,
por exemplo, Daphney Valsaint Malandre, “Jovenel Moïse, de la banane à la politique”, Le Nouvelliste, 16 de outubro
de 2015, http://lenouvelliste.com/lenouvelliste/article/151282/Jovenel-Moise-de-la-banane-a-la-politique.
219

business)256. Enfatizava-se reiteradamente a importância dessa continuidade257. Como atestava um


de seus motes de campanha, “Nós apenas começamos o trabalho” (Nou fenk kare travay):

Imagem 34: Acima, lê-se, “Nós apenas começamos o trabalho”. O verbo kare, lit. “endireitar” ou “aprumar”, é utilizado
comumente em brigas de galos quando se “aprumam” os galos para o início do combate ou ainda em brigas em geral,
quando duas pessoas se “endireitam” e “aprumam seus corpos” (kare kò). Abaixo, “‘Hoje, eu lhes apresento um pequeno
camponês que escolheu trabalhar por sua comunidade e pelo seu país’, Michel Joseph Martelly”. Fonte:
https://mangodhaiti.blogspot.com/2015/09/nou-fenk-kare-travay-phtkhaiti.html

Para se promover, Jovenel Moïse era retratado como um agroempreendedor bem-sucedido


à frente da Agritrans, a empresa responsável pela plantação de banana na comuna de Trou-du-
Nord. Porém, como candidato, esta imagem poderia facilmente resultar em uma associação com a
burguesia haitiana e o agronegócio, o que certamente prejudicaria suas intensões de conseguir, de
fato, um grande apoio popular. Por isso, a manobra promovida por sua campanha consistiu em

256
Ver “Haiti is open for business”, vídeo publicado por Laurent Lamothe, YouTube, 4:43, 22 de janeiro de 2014,
https://www.youtube.com/watch?v=TLeHSnLPybo.
257
Ver, por exemplo, "Jovenel Moïse et SEM Michel Martelly (TV Spot)", vídeo publicado por Jovenel Moïse,
YouTube, 0:41, 1 de outubro de 2015, https://www.youtube.com/watch?v=565jrFP8Q20.
220

promovê-lo não só como um empreendedor, mas também como um líder camponês, “yon pitit
peyizan”, nas palavras de Martelly, que sabia dos problemas do seu país (ver imagem acima). Em
um de seus muitos vídeos de campanha, o candidato é retratado segurando uma enxada,
trabalhando a terra e suando em meio ao verde resplandecente de sua plantação. Após descrever
seu esforço e seu sucesso, enfatizando sobretudo a quantidade de empregados que possuía e o
quanto produziam, Jovenel Moïse afirma que gostaria de ser eleito presidente pois ele “[sabe] o
que é necessário para juntar a terra, o sol, as pessoas e os rios” a fim de garantir a todos uma “vida
melhor”258. Num ano em que a falta de chuva acentuou a sensação geral de miséria (mizè) e de
infortúnio (malè), aquela promessa soava como “uma bela estratégia” (bèl strateji), como afirmou
Jorab durante o momento alto das campanhas. A ênfase de sua candidatura recaía sobre a ideia de
um homem trabalhador distante da política tradicional e que poderia liderar o povo em direção ao
desenvolvimento (devlopman) – um significante reiterado amiúde em suas propagandas e
emissões.
Desenvolvimento passou a figurar no vocabulário político haitiano em meados dos anos
1960, quando o regime de François Duvalier buscava construir novas lealdades locais ao instalar
por todo o país associações conhecidas como “conselhos comunitários” (konsèy kominotè), em
busca de apoio e recursos internacionais dentro de um crescente cenário de expansão capitalista
em torno de esforços humanitários. Como bem explicita o historiador Marvin Chochotte (2017)
em um trabalho recente, tais esforços coletivos, estatais e populares em torno do desenvolvimento
ganharam outros arranjos com o tempo e se reverteram em formas de resistência ao próprio regime.
Indício de como devlopman ingressou também em disputas políticas mais amplas é a seguinte
imagem de propaganda de um candidato à prefeitura de Quartier Morin, povoado no caminho entre
Milot e Cabo Haitiano, na qual afirma-se que o voto em Max Jean Pierre, dito Max Bilikong, é um
voto “pela descentralização”, “por muitas Novidades”, “por desenvolvimento”, “pela verdade” e
“por limpeza [ou ordem, esmero]”:

258
Mwen vle vin prezidan w paske mwen konn kouman pou m mete tè a, solèy la, moun yo ak rivyè yo ansanm pou
mwen fè w jwenn yon lavi miyò. “Jovenel Moïse - Agrikilti pou yon lavi miye”, publicado por Jovenel Moïse,
YouTube, 00:32, 29 de novembro de 2015, https://www.youtube.com/watch?v=5S_YbQ0axTc. Sobre seu “sucesso”
e a oposição aos “políticos tradicionais”, ver “Jovenel Moïse (TV spot),” publicado por Jovenel Moïse, YouTube,
00:57, 1 de outubro de 2015, https://www.youtube.com/watch?v=nlX9jgiBdHg.
221

Imagem 35: Propagando eleitoral, ca. 1987. Arquivo do Tribunal de Paix de Quartier Morin. Agradeço a Marvin Chochotte
pelo envio deste e de outros documentos do período.

Nesse ponto, cabe a ponderação de uma liderança camponesa de Milot. Logo no início do
meu campo, em 2012, quando eu havia acabado de me mudar para Samson, pediram que eu me
apresentasse a algumas associações locais, como a “Associação de Camponeses Unidos de Milot”
(Asosyasyon Tèt Kole Peyizan Milot). Questionaram-me sobre meu projeto (pwoje), ao que
contestei explicando que estava ali para fazer uma pesquisa sobre a história e o parentesco na
região. Com alguns dos presentes esboçando certo descontentamento, perguntaram-me em que
medida aquele projeto iria trazer algo de benéfico à região. Custou-me entender que projeto ali
nada tinha a ver com minha pesquisa acadêmica. Expliquei, então, que eu tinha a intenção de
mostrar como era a vida no Haiti, contrapondo-a à imagem de excepcionalidade que se consolidou
sobre o país. Nisso, perguntei sobre a proposta política daquela associação. Um equívoco similar
se repetiu e uma das lideranças então contestou: “O que fazemos aqui enquanto associação de
222

camponeses não é política, mas, sim devlopman”259. Desenvolvimento, na formulação da liderança


da associação, se opõe à política, entendida como um ofício do Estado e dos políticos e, por isso,
distante da realidade dos povoados. Tal como em outros contextos pós-coloniais, desenvolvimento
adquiriu uma centralidade crescente com as investidas humanitárias e neoliberais no país, sendo
traduzido culturalmente e servindo como importante elemento mediador da política local com os
fluxos transnacionais de investimento e trabalho humanitário.
Em diferentes contextos da Melanésia, , como nota Marshall Sahlins em um ensaio clássico
(1997), a noção ocidental de desenvolvimento é comumente traduzida como divelopman, que soa
como algo próximo a “develop man”, em inglês, ou “desenvolver (o) homem” (pp. 59-60).
Conforme destaca o autor, “desenvolvimento refere-se a um processo – um momento passageiro
de ‘primeiro contato’ que pode bem durar mais de cem anos – no qual os impulsos comerciais
suscitados por um capitalismo invasivo são revertidos para o fortalecimento de noções indígenas
de boa vida” (p. 60, grifos meus). Essa ressignificação do conceito é notável em muitos povoados
rurais que formam a comuna de Milot e que enfatizam o desenvolvimento como oposto à política.
Devlopman, na grafia local, é algo que se almeja com o objetivo de se conseguir uma “vida melhor”
(lavi miyò). Contudo, o imperativo igualitário exige que toda riqueza seja sempre redistribuída,
por isso, o desenvolvimento deve necessariamente apontar para um bem-estar comum. A
acumulação pessoal ou circunscrita, seja a uma pessoa ou a um grupo, abre espaço para pesados
julgamentos morais além de suspeitas e rumores sobre o uso ilegítimo da força de trabalho alheia,
concebido sobretudo como a apropriação do corpo de uma pessoa através de magia, morte e
zumbificação. Por isso, para se alcançar uma “vida melhor” deve-se seguir um conjunto de
princípios e valores tradicionais que preza por respeito, solidariedade, generosidade e ajuda mútua.
A troca de dádivas entre parentes e vizinhos, como comida, dinheiro e outros presentes são práticas
que se reforçam com o desenvolvimento e possibilitam uma “vida melhor”. Além disso, mesmo no
caso de famílias em que a maioria diz ter abandonado os compromissos com os espíritos, trocas
cerimoniais e mágicas e o respeito a certas demandas e obrigações para com esses seres são
notáveis, muitas vezes, através da mediação de um especialista que pode ser alguém da própria
casa ou alguém com um laço de parentesco mais distante. De fato, como argumentei em outras

259
Tankou yon asosiyasyon peyizan, nou pa fè politik, nou fè devlopman.
223

partes desta tese, uma das exigências dos próprios espíritos é de haja movimento e de que as coisas
circulem260.
Jovenel Moïse operou com essas categorias de um modo magistral, produzindo novos
sentidos e deixando claro que seu próprio desenvolvimento era uma metonímia do que toda a nação
poderia alcançar caso ele fosse eleito. O candidato se colocava como um exemplo a ser seguido e
um líder (lidè) ou, como ele mesmo dizia em um de seus vídeos, “eu venci, agora vou criar as
condições para que você mesmo e sua família possam vencer”261. Era sua a promessa de reduzir a
“vida dispendiosa” (lavi chè) através de programas sociais, do aumento da produção nacional, da
criação de novos empregos, da valorização da moeda nacional e da ajuda aos camponeses e
camponesas para que pudessem “desenvolver melhor suas terras e seus negócios”262. Para muitos
dos meus interlocutores, um dos principais problemas do Haiti é o elevado preço dos produtos nos
mercados e a desvalorização de seu trabalho, algo que se condensa nessa noção popular de “vida
dispendiosa”. A isso soma-se ainda a percepção geral de que não há empregos no país. Não poucas
vezes ouvi que “no Haiti não há trabalho” (Ayiti pa gen travay), o que fazia com que muitos
“buscassem a vida” (cheche lavi) no estrangeiro. Num país onde o infortúnio (malè) é percebido
como elemento estruturante das relação entre classes e marca processos de subjetivação, o
desenvolvimento funciona como a possibilidade ou ao menos a promessa de um futuro diferente.
Tal como afirmava o principal slogan de Jovenel Moïse, ele era “o caminho para a vida melhor”
(Jovenel Moïse chemen lavi miyò). O fato de trabalhar a terra e de produzir alimentos não era algo
menor.
Enquanto alguém que “tinha uma loucura por produzir bananas”, como Martelly afirmara
anteriormente, a partir do lançamento de sua candidatura, Moïse passou a ser retratado como um
lavrador – o que criava uma identidade com os camponeses e moradores rurais – alguém cujo
trabalho anunciava um futuro de abundâncias em riqueza e em comida. Entre grupos camponeses

260
Sobre isso, ver um texto anterior (Bulamah, 2015) particularmente a descrição de uma cerimônia feita a um jany
(espírito) por uma família que havia anteriormente cortado e vendido a árvore onde ele morava.
261
Mwen reyisi, kounye a mwen pral kreye kondisyon pou ou menm ak fanmi ou ka reyisi. “Plan Jovenel Moïse pou
redwi lavi chè”, vídeo publicado por Jovenel Moïse, YouTube, 01:11, 08 de dezembro de 2015,
https://www.youtube.com/watch?v=hvx6DA5AmWI; ver também “Temwayaj sipòtè Jovenel Moïse yo (Part 1)”,
vídeo publicado por Jovenel MoÏse, YouTube, 0:32, 20 de January de 2016,
https://www.youtube.com/watch?v=v8yjmQftj2M, no qual Moïse é categórico ao afirmar que: “Se eu venci na minha
vida, você também poderá vencer na sua” (Si mwen reyisi nan vi m, ou menm ou ap ka reyisi nan vi pa ou).
262
Pi byen devlope tè a ak biznis yo. Idem.
224

no Haiti, retomando a observação de Richman (2005), “[a]limentar é o símbolo que condensa todo
processo produtivo – criando pessoas e relações pessoais” (p. 160). A percepção que moradores
rurais possuem sobre a comida revela tanto a historicidade de suas interações e associações com
animais, plantas e seres não-humanos, como vimos nos capítulos anteriores, quanto a vitalidade e
a resiliência de seu modo de vida. Similar ao contexto ribeirinho do Baixo Amazonas analisado
por Mark Harris (2013), gostos, práticas culinárias e modos de trocar alimentos são dimensões
particularmente notáveis da sociabilidade local que “não foram sujeitas ao direto controle
ideológico e material de influências externas poderosas [...], oferecendo um acesso privilegiado a
dimensões históricas da sociedade e da cultura que talvez não fossem tão evidentes em outros
lugares” (p. 40-41).
Manje, tanto na forma substantiva comida quanto na forma verbal comer, é parte da vida
ordinária de uma comunidade, sendo central não só para a constituição das relações de parentesco,
do corpo e da vizinhança, como também para um conjunto de relações cotidianas e ritualizadas
com os espíritos da família (ginen, jany ou lwa eritaj). “Alimentar-se”, ou melhor, “comer junto”
é produzir parentesco e, mais amplamente, o próprio povoado. Isso não implica necessariamente
uma ritualização do sentar-se à mesa, particular a contextos burgueses, que com efeito é prática
incomum entre os moradores rurais. Com frequência, dividi a refeição com meus anfitriões
sentados em uma varanda, embaixo de um alpendre ou em algum lugar do terreiro. O mais
importante, de fato, era que dividíssemos a comida que alguém cozinhou e separou para nós – a
isso meus interlocutores chamavam, como destaquei acima, de manje ansanm ou “comer junto”.
Cabe aqui a ponderação do antropólogo Rémy Bastien (1951) que, em seu trabalho no Vale do
Marbial, na região sul do país, destaca o seguinte: “‘Comer junto’ ou ‘não comer junto’, expressa
o estado das relações entre duas casas vizinhas, aparentadas ou não. A obrigação, como deve ser
pensada, é mais forte em um laku. A cortesia é importantíssima; é uma regra que de uma casa a
outra se mande o que se cozinha” (p. 44, grifo e grafia no original).
Comida, de fato, não é necessariamente tudo aquilo que se consome. Alimentos, doces,
pão com geleia ou pasta de amendoim (manba), pequenos quitutes e alimentos fritos (fritay), além
de produtos industrializados, são popularmente conhecidos como pase bouj, tapeiam a fome pois
apenas “passam pela boca”. “Não sustentam” (pa kenbe) e “não dão força” (pa bay fòs), diferente
dos alimentos que possuem vitamina (vitamin) e não são carregados de produtos (pwodwi), como
agrotóxicos, flavorizantes e similares. Tais propriedades garantem o gosto (gou) ao alimento,
225

qualidade sensorial importante e valorizada. Não sem razão, o vocábulo gosto é utilizado também
para falar de um alimento bom: sa gou anpil, “isto é gostoso” ou, literalmente, “isto tem gosto”.
O que não tem gosto é dificilmente considerado um alimento. Tão importante é essa preocupação
com a dimensão sensorial do alimento que em todas as cozinhas dos povoados rurais que visitei
ou mesmo no vilarejo havia sempre caldos concentrados em cubos. Isso pode, a princípio, parecer
contraditório, pois caldos concentrados são produtos industrializados por excelência, mas que aqui
ganham centralidade exatamente por conferirem mais gosto aos alimentos263.
Contudo, a comida não carrega somente propriedades agregadoras e produtivas, mas
também o seu reverso, envenenando corpos e desagregando coletivos por meio da destruição de
laços sociais e da morte. Além disso, signos de riqueza e poder também estão intensamente
associados à comida e são expressos por uma semântica ligada à alimentação: uma pessoa abastada
e influente é conhecida como um gwo nèg (“pessoa gorda”) ou gran nèg (“pessoa grande”) em
oposição ao ti malere (“pequeno desafortunado”). O simbolismo e os encantamentos da comida
servem como metáforas de um mundo cindido entre classes e suas respectivas possibilidades. A
seguinte ilustração é representativa desta oposição:

263
Isso talvez tenha relação direta com a abominação de carnes sem gosto, o que, como apontei no capítulo 2, é indício
de sua origem humana.
226

Imagem 36: Ilustração de alguém que vendeu a crédito (à esquerda) e um outro que vendeu à vista (à direita). Mesmo
referindo-se ao ano de 2012, esse calendário continuava pendurado na parede de uma vendinha no centro de Milot.
Ilustrador não indicado. Foto do autor, Milot, novembro de 2015.

Jovenel Moïse, ao aparecer em meio à sua plantação e ao enfatizar seu trabalho como
lavrador, utilizava a terra de uma maneira simbolicamente poderosa: produzindo comida que
alimentaria pessoas e, logo, produziria laços de comunidade e traria desenvolvimento ao país. Além
disso, ele estava produzindo bananas, que, ao lado de tubérculos como mandioca e batata-doce e
de frutos de elevado valor calórico como fruta-pão, são conhecidos como “viv alimantè” (termo
derivado do francês vivre, “algo necessário para a vida”) e constituem a principal provisão
alimentar e a base da dieta local. Tão poderosa era esta relação que sua alcunha de candidato fazia
clara referência a seu papel como produtor de bananas: “o Homem Banana” (Nèg Nannann nan).
Todavia, cabe ressaltar, suas bananas não eram produzidas para o consumo local, ao menos não a
maior parte delas. Seus quase mil hectares de plantação faziam parte, como mencionado acima, da
primeira zona franca agrícola do país com o compromisso de exportar 70% de sua produção.
Curiosamente, muitas pessoas de Milot encaravam isto como uma fonte de orgulho coletivo.
Exploremos tal fato de maneira comparativa.
227

Ao discutir os Piaroa da bacia do Orinoco e os Cubeo da Amazônia colombiana, Joanna


Overing (1989) observa que em certos contextos ameríndios a produção é algo concebido como
um trabalho coletivo, um processo cujo valor é tão moral quanto estético, que coincide com a
criação de um “sentido de comunidade”, no qual igualdade e cooperação são colocados acima da
hierarquia e da coerção. A ideia de comunidade depende, assim, de uma “estética da produção”,
que transforma a dimensão econômica da vida em uma dimensão da intimidade. Ora, no caso dos
moradores rurais do Norte do Haiti, nota-se uma atenção estética constante com diferentes
elementos da vida social. Beleza (bèl ou frè) é algo que se busca através do cuidado com o cabelo,
com as roupas e com o corpo, mas também com a casa, com o pátio, com o lakou e com o povoado.
Com efeito, não é exagero afirmar que essa preocupação estética é ao mesmo tempo uma
preocupação e uma reafirmação ética. A condição de malere, na classificação local, tem relação
direta com isso. Quando a filha de Jorab, minha afilhada, ficou doente, por exemplo, ele suspeitava
que alguém estava intencionalmente lhe fazendo mal. “Gente feia não pode mesmo ter uma criança
bonita”264. O tom era de revolta, mas também resignação, pois dava a entender que ela havia sido
enfeitiçada, confirmando sua hipótese de que “pessoas desafortunadas” (moun malere), no Haiti,
não podem nunca ascender socialmente. Como resumiu Jorab falando de si, “o filho de um
desafortunado dificilmente consegue fazer alguma coisa. Veem que eu estou virando gente grande,
mas não querem que isso aconteça”265. Uma das maiores preocupações de Jorab após o nascimento
de sua filha era de sempre deixá-la bem vestida e penteada.
Seguindo com os exemplos, em Samson, na casa de madame André, todas as manhãs, ela
ou alguma de suas filhas varria o terreno e o lakou, jogando água em frente à entrada. Isso era
comum nas diversas casas do povoado. Em uma das minhas primeiras visitas à Samson, após ter
passado a tarde em uma das casas, relatei o seguinte em meu caderno de campo: “Ao fim da
conversa, [um morador de Samson] pediu que eu não falasse só das misérias do lugar, do fato de
que pessoas passam fome, já que isso não é verdade, pois muito se produz nos jaden (roçados) e
todos têm o que comer” (Caderno de campo, Milot, 20 de janeiro de 2012). O que meu interlocutor
pedia que eu descrevesse era, de fato, a abundância da vida no campo. Tal compreensão alcança

264
Nèg lèd pa ka gen bèl timoun. Feio (lèd) aqui é parte dessa compreensão geral de infortúnio e aparece em
formulações cotidianas como na resposta à pergunta “Como vai?”, “Estamos feias, mas estamos aqui” (Nou lèd, men
nou la), que enfatiza um caráter resignado, mas ao mesmo tempo resiliente. Sobre isso, ver o texto homônimo de
Edwidge Danticat (2010a) e a tese de Pâmela Marques (2017).
265
Pitit malere yo difisil pou realize yon bagay. Yo wè map tounen moun, yo pa vle kite sa.
228

uma noção mais ampla de comunidade englobando toda a nação e, extrapolando-a, incluindo a
própria diáspora haitiana. É comum ouvir observações sobre o quão feio ou ruim (lèd, pa bon) é o
Haiti em razão da falta de rodovias e de infraestrutura, ou devido à poeira excessiva e ao lixo que
muitas vezes é descartado em rios ou em espaços abertos. Certa vez, durante um trajeto que fazia
na garupa de moto, Puyol, um jovem motoqueiro de Milot, me perguntou se eu achava a República
Dominicana um lugar bonito (bèl). Eu disse que sim, mas logo completei que o Haiti também era
bonito, ao que ele se apressou em contestar: Ayiti pa bèl (“O Haiti não é bonito”). “Há muita poeira
e lixo em toda a parte”, continuou Puyol. “A República Dominicana tem eletricidade toda hora
além de estradas bonitas”266.
As representações do Haiti na mídia são ainda uma preocupação frequente e um tópico
comum de conversas. Moradores rurais discutem regularmente o modo como o país é representado
no exterior como um lugar de miséria, infortúnio e tragédia, onde as doenças são inúmeras. Para
muitos interlocutores, Jovenel Moïse estava de fato contribuindo para mudar esta imagem.
Produzir algo que seria exportado era percebido como um esforço estético em mudar a imagem do
Haiti no exterior, distanciando-se das misérias tantas vezes reiteradas. Com efeito, se lançarmos
mão da interessante elaboração de Gina Ulysse (2015), moradores rurais sentem-se motivados pela
necessidade de produzir “novas narrativas” sobre o país. “O Haiti está enviando comida a outros
países”, disse-me certa vez Anouse Jasmin, quando perguntei sobre a plantação de Moïse, “e isso
é algo que nos dá orgulho”267. A imagem do Haiti alimentando uma outra nação com suas próprias
bananas era algo promissor e que tocava particularmente corações e mentes. Não só boas para se
comer, mas boas para se pensar, as bananas de Jovenel Moïse recriavam o social como um lugar
de possíveis abundâncias.

Futuros passados
Em finais de janeiro de 2018, recebi uma ligação de Jorab por um aplicativo de
comunicação. Ele me contou que sua filha, que há alguns meses ficara doente outra vez, havia
melhorado após algumas consultas com uma feiticeira do vilarejo. Jorab estava bastante contente
e, como de costume, me contou o quanto sua filha era esperta, fazia bagunça o tempo todo e já
estava se tornando uma demwazèl. Um outro motivo também o deixava animado. Jovenel Moïse

266
Gen twop pousyè ak fatra toupatou. Sendomèng gen kouran toutan epi wout yo bèl.
267
Ayiti ap voye manje lòt bò. Sa se yon fyète pou nou.
229

visitara Milot pela primeira vez havia algumas semanas e muitos do vilarejo foram vê-lo. Este fato
em si não era o que chamava a atenção de Jorab. Milot é ponto de passagem de políticos ao longo
do ano, o que costuma causar certa animação. Ademais, política nunca foi algo que o encantasse
particularmente e ele sempre se mostrou muito cético e pessimista com campanhas e promessas
de candidatos. Por telefone, ele comentava:

Outro dia, Jovenel Moïse veio a Milot e os Lotrejou Jovenel Moïse te Milo epi ou wè ke tout
camponeses todos retiraram um cacho de banana peyizan yo rache bannann e mete sou do yo. Sa vle
[de suas plantações] e colocaram nas costas. Isso di, yo telman kontan strateji an. Paske se avèk pyè
mostrava a felicidade geral com a estratégia [de bannann nan ke yo voye pitit yo lekòl. Eben, tout
Jovenel]. Pois é com esses pés de banana que eles peyizan te oblije rache yon pye bannann mete sou
enviam as crianças à escola. Com isso, os do epi yo ap swiv Jovnel Moïse. […] Gen malere ki
camponeses se sentiram obrigados a colher um pé tap van ti manje, ki tap van bagay, tout moun ap
de banana colocar nas costas e sair atrás de Jovenel kouri al nan Moïse Bannann.
Moïse. [...] Até os desafortunados que estavam
vendendo comida [na rua], os que comercializavam
coisas diversas, todo mundo correu para ver Moïse
Banana.

***

Mais de um ano após o primeiro pleito, em 20 de novembro de 2016, haitianos e haitianas


foram às urnas para decidir quem seria o futuro presidente. Acusações de corrupção e fraude foram
numerosas e, como no primeiro turno, muitos denunciaram observadores internacionais e forças
policiais por serem complacentes com um processo claramente desvirtuado. O “tempo da política”
assumia-se assim como momento de suspensão, uma antiestrutura, carregada de indeterminações
e rumores e cujo fim era difícil prever. Mas se esse longo ano eleitoral foi marcado por uma
liminaridade, a percepção geral do 20 de novembro, em Milot, foi de que esse último pleito havia
sido legítimo e que os questionamentos e as próprias fraudes eram, de fato, parte constitutiva do
momento eleitoral. Isso não significa dizer que o resultado – a vitória de Jovenel Moïse – tenha
sido aceito por todos da comuna. Alguns grupos e bases que tradicionalmente apoiavam Jean
Charles Moïse, como o Pequeno Parlamento, mostraram sua insatisfação bloqueando rodovias,
230

jogando rochas em carros da polícia e atirando fogo nos locais de votação. Forças policiais
apareceram em momentos diversos para conter a insatisfação de parte dos milosianos.
De todo modo, Jovenel Moïse tinha acumulado bastante apoio local. A soma disso tudo
levou muitas pessoas a assumirem-no como o representante eleito pelo povo. Outro fator
importante nessa equação foi que seu maior oponente, apesar de ser um moun lakay (“alguém de
casa”) e de ter lançado mão de importantes agências históricas, mágicas e espirituais em sua
campanha, havia gradativamente perdido influência na região. Para muitas pessoas, Jean Charles
Moïse não correspondeu às expectativas e compromissos estabelecidos anteriormente com os
povoados de Milot quando fora eleito senador com a maioria dos votos locais. “Até mesmo a
rodovia que liga Milot ao Cabo foi Martelly quem fez”268, costumavam dizer. Ele havia perdido
respeito e apoio, passando a ser considerado como alguém que só respondia às expectativas de sua
base e de seus partidários. Como uma moradora de Milot me disse certa vez, “Ele é um homem
honesto, mas a única coisa que faz é dar dinheiro às suas bases”269. Ademais, os ancestrais, mesmo
que poderosos, não garantiram sua ascensão como candidato, pois seus usos foram tomados como
ambíguos e diabólicos, e a revolução que ele prometera era algo alheio às aspirações de muitos
eleitores de Milot.
Quanto a Jovenel Moïse, desde sua promoção a candidato presidencial do Partido Haitiano
Tèt Kale, começaram a circular notícias sobre camponeses sendo removidos de suas terras, em
Trou-du-Nord, por sua empresa. Em uma curta autobiografia, publicada em sua página pessoal,
Jovenel Moïse afirma que a porção de terra utilizada para sua plantação de larga escala estava
“destinada ao abandono” e, através de seu esforço, ela se transformaria “em um projeto de
desenvolvimento sustentável integrado e que serviria de modelo para o desenvolvimento do setor
agrícola no Haiti”270. De fato, como trazido a público por um grupo de jornalistas investigativos,
para ter acesso àquela terra, Jovenel Moïse expropriou, com aval do Estado, em torno de dezessete

268
Menm wout la pou rive Milo, se Mately ki te fè l.
269
Li se yon moun debyen, men sèl bagay li fè se lagè lajan nan baz yo.
270
"Biographie de Jovenel Moïse," página pessoal, s.d., http://jovenelmoise.ht/biographie-de-jovenel-moise/, grifos
meus (acesso em 20/01/2017, atualmente fora do ar). Também disponível em:
http://www.magazinepam.com/biographie-nouveau-president-de-republique-dhaiti-jovenel-moise/ (acesso em
28/01/2017).
231

famílias que viviam ou trabalhavam ali271. Este assunto preocupava muitas pessoas em Milot, mas
não o suficiente para fazê-las, de fato, rejeitá-lo como candidato. Na mesma ligação telefônica,
após pouco mais de um ano do fim da eleição, Jorab afirmou: “mesmo que Moïse tenha feito mal
às pessoas [lit., “as comido”], sua estratégia foi precisa. Uma estratégia que mirou alto”272.
Ademais, por meio da expropriação dessas famílias, o candidato demonstrava publicamente a
dimensão de seu poder, reafirmando o lugar da violência na política. Sua campanha, por sua vez,
centrava-se no desenvolvimento como algo ao alcance de todos e propunha uma análise particular
de elementos culturais que tiveram eficácia e convenceram muitos de que ele estava apto a se
tornar presidente.
Poderíamos ainda argumentar, como fizeram muitos observadores internacionais, que a
participação popular nas eleições ficou comprometida pelo fato de que muitas pessoas não
puderam votar pois não conseguiram sacar seu título de eleitor a tempo para o pleito. Contudo, o
que procurei mostrar neste capítulo foi o caráter coletivo do voto, algo indissociável da
constituição do apoio popular e, por sua vez, do que se entende por política no sentido amplo. Indo
mais além, argumentei aqui que as complexas tramas em torno da política se realizam para além
do voto, passando pela criação de novos significados e de novas possibilidades através de
campanhas e do estabelecimento de compromissos. Se durante o período eleitoral – essa fração do
tempo distinta do cotidiano – disputas de força, violências e sacrifícios revelam-se como elementos
chave no estabelecimento da legitimidade e da autoridade, a mobilização de diferentes agências,
de prerrogativas cosmológicas e de linguagens locais da política apontam para promessas de
redistribuição, de coexistência política e de reconsagração do social. Dessa forma, enquanto Jean
Charles Moïse olhava para o passado e mobilizava símbolos, poderes e agências reivindicando um
pertencimento comum a uma mesma herança, Jovenel Moïse apontava para o futuro, anunciando
um outro Haiti: afluente, novo e desenvolvido.

271
Joshua Steckley e Beverly Bell, “Haiti's Fraudulent Presidential Front-Runner Seizes Land for His Own Banana
Republic”, Alternet, 21 de janeiro de 2016, http://www.alternet.org/world/haitis-fraudulent-presidential-frontrunner-
seizes-land-his-own-banana-republic.
272
Sa vle di ke, men ke Moïse tap manje yo, strateji a tèlman bèl. Strateji li two wo.
232

Capítulo 5: Ecos da Revolução

And them Caribbean winds still blow from Nassau to Mexico


Fanning the flames in the furnace of desire
And them distant ships of liberty on ‘em iron waves so bold and free
Bringing everything that’s near to me nearer to the fire
Bob Dylan, “Caribbean Wind”

Era meados de janeiro de 2016 e as eleições presidenciais haviam sido prorrogadas mais
uma vez. Incertezas tomavam conta de Milot e a sensação geral era de que tudo aquilo não iria
acabar. No dia 18 daquele mês, logo cedo, Jorab passou em casa com a notícia de que a sala da
prefeitura onde estavam guardadas as cédulas eleitorais havia ardido em chamas durante a
madrugada. Após idas e vindas, seguidas de críticas e denúncias de fraude, um novo turno havia
sido agendado para o dia 24 de janeiro. Cédulas foram então enviadas às cidades e aos vilarejos a
fim de que fosse iniciada a organização do novo pleito. As destinadas a Milot chegaram no dia 17
e, durante a madrugada, foram incendiadas. Jorab queria que fôssemos ver o que tinha ocorrido.
“Vamos lá, compadre, a coisa parece que ficou quente”. Seguimos em direção ao hospital pela rua
principal até chegarmos à prefeitura. Ali, vimos um grupo de pessoas a contemplar o que havia
sobrado dos papéis. No contorno das janelas, marcas pretas da fuligem criavam um estranho
desenho, vestígios de um fogo que pareceu consumir boa parte do interior.
Os presentes falavam sobre o evento relembrando também outros episódios mais ou menos
recentes. Um senhor trouxe à tona o roubo dos painéis solares que iluminavam vias públicas e
praças do vilarejo. Lembrei-me então que, em 2012, era habitual ver crianças lendo e estudando
embaixo dos postes na praça que dá acesso ao Palácio Sans Souci e ao redor da prefeitura. Cena
incomum agora, pois já não existe iluminação pública. Puxei conversa e perguntei se não sabiam
quem havia roubado os painéis. “A gente sabe, claro, mas não podemos dizer nada”273. Milot é
muito pequena e uma denúncia dessas geraria desavenças entre amigos e parentes. Afinal, “todos
aqui são família”274, resumiu um senhor que observava a sala queimada da prefeitura. Do mesmo
modo, ninguém arriscaria fazer acusações públicas sobre quem poderia ter ateado fogo às cédulas
na madrugada daquele dia. Alguém falou de Martelly e culpou-o por toda aquela situação de

273
Nou konnen, men nou pa ka di anyen.
274
Tout moun se fanmi.
233

instabilidade: “ele não quer deixar o país avançar”275. Seu mandato chegaria ao fim em poucas
semanas e a eleição ainda não havia ocorrido. Um outro senhor afirmou que aquilo era ação de
uma das bases de Jean Charles Moïse, que definiu vagamente como quimeras (chimè)276. “É isso
que chamam de revolução?”277, completou.
Depois de um tempo, retomei a caminhada com Jorab e, algumas quadras dali, passamos
em frente à construção onde outrora funcionava o arquivo notarial da comuna (kontribisyon). Sem
telhado, portas ou janelas, somente as paredes permaneciam de pé e davam a dimensão da estrutura
do edifício. Uma vegetação rasteira e esparsa dividia parte dos cômodos com algumas garrafas
plásticas e outros detritos. Uma mangueira despontava na lateral do terreno e fazia sombra à
construção. Estas ruínas não são alvo de programas de patrimonialização mas, curiosamente
mantêm-se conservadas, na região central do vilarejo, no caminho de todos que chegam e se vão,
tal como Sans Souci e a Cidadela. Eu já havia ouvido histórias sobre quando, no começo dos anos
1990, após uma série de ocupações de terras que tiveram lugar com o fim da ditadura do clã
Duvalier, camponeses da região atearam fogo ao arquivo destruindo grande parte dos registros de
propriedade ali guardados. Perguntei a Jorab o que ele sabia sobre o evento. “Não sei bem quando
isso aconteceu”, me respondeu, “mas sempre ouvi que fora uma revolta (dechoukay) contra os
grandes senhores que tinham a posse das terras”. Camponeses insurgentes ocuparam um conjunto
de terras da região contra um grupo de arrendatários e “queimaram o arquivo público para que [os
fazendeiros] perdessem os papéis”278. Aqueles dois eventos, apesar de distantes no tempo,
pareciam guardar similaridades. Ambos tinham como alvo órgãos públicos e formas burocráticas
de organização, regulação e controle e, também em comum, mobilizavam lógicas de ação
inspiradas em uma tradição de contestação, revolta e violência – condensadas no termo dechoukay.

275
Li pa vle kite peyi a vanse.
276
O termo “quimera” ganhou popularidade a partir da reeleição de Aristide em 2001, sendo utilizado para definir
uma parte de seus apoiadores sobretudo aqueles que se envolviam em protestos e ações violentas, públicos ou secretos.
Como discute Erica James (2010), sua existência possivelmente antecede o segundo mandato de Aristide e tem origem
nas associações autônomas de Cité Soleil, um dos principais bairros populares de Porto-Princípe (pp. 262-3).
277
Se sa yo rele revolisyon?
278
M pa konnen lè sa te fèt, paske m te pitit. Men m toujou tande ke se dechoukay pou grandon ki te gen tè yo, yo
boule yo pou yo pèdi papyè tè sa yo.
234

Imagem 37: Antigo arquivo notarial de Milot. Foto do autor, maio de 2018.

Em diversos momentos da história do país, como bem resume o historiador Alain Turnier
(1989), “o estandarte da revolta, seja qual for a expressão mais cultivada na época, foi erguido”
(p. 314). Muitos foram os governantes assassinados, Henry Christophe ceifou a própria vida e
outros tantos foram forçados ao exílio ao se darem conta da imensa insatisfação popular e da
iminente revolta. Nas palavras de um outro historiador, “Quando um país assegurou sua libertação
pela luta armada, uma tradição de violência persiste, frequentemente, no período posterior à
indepência” (Nicholls, 1985, p. 170). De fato, como a historiografia recente tem trazido à tona
(Chochotte, 2017; Gonzalez, 2012; René, 2014), rebeliões armadas, ocupações de terra,
assassinatos e saques serviram como formas de regulação, contestação e destituição de um poder
central desde os primeiros anos da nação livre. Muitos desses movimentos tinham moradores e
moradoras rurais como seus protagonistas e eram orientados por ideais de liberdade, emancipação
e autonomia na constituição de seus espaços familiares e na busca por terrenos de cultivo e de
criação, desenvolvendo formas próprias de autodeterminação e de cidadania muitas vezes às
margens de uma estrutura política oficial (Nicholls, 1996 [1979]; Plummer, 1991; Sheller, 2012).
Essas disputas políticas e os conflitos fundiários que delas derivaram nos colocam
problemas interessantes. Sendo, a um só tempo, formas discursivas e formulações teóricas e
políticas, tais episódios de revolta e insurgência constituem reflexões sobre as histórias e os
235

processos de transformação social, vividos diretamente ou herdados do passado (ver Borges, 2011
e também Wardle, 2000; Sigaud, 2005 e Pina-Cabral e Aparecida, 2013). Nesse ponto, sugiro que
se, historicamente, ações de contestação e rebelião retomavam o legado da Revolução Haitiana,
foi mais recentemente, a partir de reinterpretações semânticas e imaginativas pautadas por uma
visão específica sobre a cultura e o nacionalismo haitianos e de um cuidadoso trabalho de produção
da história, que François Duvalier – por meio de discursos públicos, da nomeação de inimigos da
nação e da produção de marcos arquitetônicos e estátuas – operou um trabalho de apropriação da
ideia de revolução279.
A partir disso, Duvalier acabou lançando as bases para a contestação do regime ditatorial,
reavivando uma tradição popular de revolta dentro de um campo de disputas pela história e,
particularmente, pela semântica da revolução. Nesse sentido, a ideia de revolução passou a operar
como significante predominante em ações, formulações e disputas políticas de camponeses e
moradores rurais, funcionando como a “expressão mais cultivada” no momento em que o
estandarte da revolta mais uma vez se ergueu. Argumento neste capítulo, a exemplo do que
Thomaz (2008) afirma sobre o caso da constituição do Estado numa Moçambique em meio à uma
revolução socialista, que é preciso encarar o Estado em sua especificidade histórica, um Estado
“que se quer forte mas que o é na medida em que é fraco e, portanto, interage com condicionantes
locais de expressão de poder e dominação, particularmente com elementos de ordem cosmológica”
(p. 181). Os eventos que tiveram lugar em Milot, tanto os de finais dos anos 1980 quanto os de
princípios de 2016, são expressões de uma tradição de revolta e se mostram enquanto
desdobramentos de uma história local que é, ao mesmo tempo, também nacional e diaspórica. Uma
história que, como veremos, se realiza não só enquanto uma virtualidade, mas como materialidade
tanto em vestígios e objetos quanto nos corpos, compondo o que venho chamando aqui de
paisagem histórica. Tomo por fio condutor principal uma narrativa que descreve as ocupações de
terra em finais dos anos 1980, quando a região, a exemplo de outras partes do país, se via às voltas
com o fim de um regime ditatorial que parecia sobreviver para além de seu principal déspota.

279
Outros dois casos interessantes na região caribenha de ditadores que tomam a história como elemento central de
seus governos são o de Rafael Trujillot, na República Dominicana, e o de Fidel Castro, em Cuba. Para análises
detidas sobre esses dois contextos, ver Derby (2009) e Gonçalves (2017).
236

Revolta e resignação
Aconteceu quando todos ocuparam as terras em Bérard, à beira da Rodovia Nacional #3.
Eram 155 carreaux de terra, aproximadamente 200 hectares, grande parte utilizada para o plantio
de cana-de-açúcar. “Foi quando Fabius Paul tomava conta que o público o enxotou da terra.
Enquanto corriam atrás dele, o dechoukay entrou no terreno. [...] Era cana-de-açúcar que havia ali.
Toda terra era cana-de-açúcar. Atearam fogo! Fogo! Fogo!”. Assim começa o eloquente relato de
Francius Pierre, senhor de 57 anos, acompanhado de Judline Louis e de Jean-Baptiste Jacques, ela
uma jovem e ele um senhor de idade avançada, todos vivendo em um mesmo lakou em Trois
Ravines, no caminho entre Samson e o centro de Milot. Estávamos em abril de 2012 e meu
primeiro período de trabalho de campo chegava ao fim. À época, me faltava entender os motivos
que levaram algumas famílias a deixarem Samson após o fim do regime ditatorial. O evento,
descrito em diversas vozes, foi uma das razões.
A ação ocorreu, como bem lembra senhor Pierre, no dia 15 de abril de 1987, “uma quarta-
feira pela manhã”, um ano após Jean-Claude Duvalier ter deixado o poder, quando à meia-noite
do dia 7 de fevereiro de 1986, pelo rádio, conclamou a todos e todas e disse “povo haitiano, lhes
restituo o poder. Muito obrigado. Epi se tout”. E foi tudo. Um avião veio buscá-lo para um exílio
que duraria até janeiro de 2011. Era o fim do “tempo Duvalier” (tan Divalye). Instaurou-se, então,
um momento de intensas transformações. A partir de agrupamentos e reuniões e de um senso de
compromisso, as terras de Bérard foram ocupadas:

Um estrangeiro chamado padre Beausejour era o Yon blan yo te rele Frè Beausejour, ki te responsab
responsável pelas terras no banco. Havia ainda o tè yo nan labank. Apre sa li te gen Frè Klòd ki te se
padre Claude, da “Organização pelo nan ODN, nan Gran Prè. Moun nan ki te gen
Desenvolvimento do Norte” (ODN), em Grand Pré respon nan tè la Fabius, Fabius Paul, ki te
[comuna localizada a nordeste de Milot]. A pessoa reskonsab tè yo, ki te vin geran. Li te gen yon
responsável pela terra era Fabius, Fabius Paul, que Franklin tou, Austen, ki te reskonsab tè yo. Moun
havia se tornado o gerente. Havia ainda Franklin e sa yo te la konm soujeran. Se pandan ke Fabius
Austen que dividiam a gestão. Eles trabalhavam Paul te reskonsab tè yo, piblik kouri deyè li.
como subgerentes. Foi quando Fabius Paul tomava Pandan yo kouri deyè li, dechoukay antre nan tè
conta da terra, o público correu com ele da terra. yo. Dechoukay vini rantre, sa vini pran nou soy,
Enquanto corriam com ele, o dechoukay entrou na pran nou soy. Men lè ke y ale cheche ansyen lame,
terra. Quando o dechoukay entrou, foi uma yon lietnan rele Gab, ki alò, yo desann avek kolonn,
237

movimentação só. [Os arrendatários] foram então ansyen lame. Se pandan tout moun nan tè yo, epi
em busca de um tenente aposentado chamado Gab, yo ba tè li dife. Se te kannasik ki te gen. Tout tè li
que, por sua vez, veio junto a um grupo de pessoas te ye kannasik. Bat dife! Dife! Dife! Dife! Lè yo vin
do antigo exército. Enquanto todo mundo estava na bat tout tè dife, epi tout moun fou. Ap pran ken a
terra, atearam-lhe fogo. Era cana-de-açúcar que yo.
havia ali. Toda terra era cana-de-açúcar. Atearam
fogo! Fogo! Fogo! Quando atearam fogo em todo
o terreno, todos se exaltaram. E correram para
conseguir uma porção para si.

A cena do fogo tomando conta da cana-de-açúcar marca o momento de ocupação definido


por Pierre como um dechoukay ou, literalmente, um desenraizamento: um grupo de pessoas entra
na fazenda, expulsa seu gerente e inicia um processo de destruição da antiga plantação para então
dividir as terras. Dechoukaj, no crioulo padronizado, ou dechoukay, na variação nortenha, é um
termo utilizado de modo corrente em todo o país para definir ações populares, de linchamentos e
saques a ocupações de terras. A raiz do vocábulo é o substantivo chouk, que designa os restos de
troncos e raízes que permanecem fixo ao chão após o corte de uma árvore ou de uma plantação e
que guardam certo o potencial de renascimento. Dechoukay é, nesse sentido, a retirada total destes
restos ou, para nos mantermos próximos à categoria nativa, a extirpação ou o desenraizamento de
algo impedindo seu ressurgimento em um processo de eliminação completa. Como metáfora,
dechouke designa a ação de destruir, avariar ou se apropriar física ou simbolicamente de alguém
ou de sua casa, de suas terras e de seus bens (Belleau, 2009). “Um dechoukay sempre ocorre contra
alguém”, Jorab afirmou enquanto mirávamos o arquivo notarial. Por isso, desenraizar pode ser
tanto uma ação contra alguém suspeito de perpetrar maldades, como um feiticeiro ou um
lougawou, quanto contra alguém que possui terras, seja um fazendeiro cujas terras são ocupadas
por um grupo de camponeses seja uma família de desafortunados cujos lotes são tomados sob o
pretexto de serem “terras do Estado”. Nas palavras de Jorab:
238

Há dois sentidos de dechoukay. Há o dechoukay Gen de sans nan dechoukay. Gen dechoukay pou
para os lougawou e há o dechoukay para as pessoas lougawou e gen dechoukay pou moun kap vole tè a
que roubam a terra de outras. Dechoukay para as moun. Dechoukay pou moun kap volè tè moun, se
pessoas que roubam a terra de outra, é quando os tankou ansyen granmoun te gen tè yo. Eben yo
mais velhos possuem terras e alguém tenta tomá- bezwèn pran nan men granmou yo, yo di sa se tè
las dizendo que aquelas são terras do Estado. Leta li ye. Men si ou gen papye yo pap kwè paske
Mesmo que [os mais velhos] tenham os papéis, não yo di se tè Leta. Eben, yo vini, yo gen yon ti pouvwa
acreditam, pois dizem que é tudo terra do Estado. nan men yo, yo vini yo pran y. Aprè yo menm yo
Então, eles chegam e como possuem algum poder revann li pou milyon! Ou menm ki malere, ou pèdi
à sua disposição, chegam e tomam as terras. Depois tè sa. Epi dechoukay ke y gen pou lougawou,
disso, revendem por milhões! Você, mesmo sendo tankou gen yon moun nan zòn nan ke ou konnen ki
um desafortunado, fica sem a terra. Além disso, há lougawou, ki abitye touye moun, epi gen yon ekip
o dechoukay para os lougawou. Quando há alguém ki monte pou di ‘a swè a nou pral deyè lougawou
da região que sabem ser um lougawou, que tem o sa’. Epi nan lendeman lè ou leve ou jwenn yo
costume de matar pessoas, forma-se uma equipe demanbre (…) tankou se bèf kap vann sou tab
que então diz, ‘esta noite, vamos atrás do mache a. Sa se de sans nan dechoukay.
lougawou’. No dia seguinte, ao se levantar, você o
encontra desmembrado (...) como se fosse um boi
à venda numa barraca da feira. Esses são os dois
sentidos de dechoukay.

Dechoukaj carrega um significado marcadamente agonístico, revelando o caráter violento


da vida social tanto no enfrentamento de perigos sempre à espreita, como os lougawou, quanto nas
formas históricas que estruturam as relações fundiárias. Não me parece que estamos distantes do
que argumenta Natalie Zemon Davis (1973) ao analisar os motins religiosos na França do século
XVI, para quem a violência, por mais cruel que possa ser, deve ser encarada “não como aleatória
e sem limites, mas como tendo alvos definidos e selecionados a partir de um repertório de punições
e formas de destruição tradicionais” (p. 53). Tal como os ritos de violência descritos pela
historiadora, os assassinatos de seres malignos, assim como a ocupação de terras no Haiti,
mobilizam um repertório cultural do qual fazem parte rituais e saberes religiosos, punições e
sanções populares, purificações e exorcismos. Como Davis se pergunta: “Há alguma maneira de
ordernar o terrível, os detalhes concretos do podre, do vergonhoso e da tortura que são reportados
nos motins católicos e protestantes?” (p. 81). “Eu sugeriria”, responde a autora,
239

…that they can be reduced to a repertory of actions, derived from the Bible, from the
liturgy, from the action of political authority, or from the traditions of popular folk practices
intended to purify the religious community and humiliate the enemy and thus make him
less harmful (pp. 81-82).

Resulta daí a possibilidade de tornarmos a violência algo inteligível ao nos debruçarmos


sobre a história desses repertórios de violência, desvelando essa circularidade que garante que
diferentes atores sociais possam se apropriar e dar novos significados ao dechoukaj.
Em razão de seu peso moral, o vocábulo dechoukaj passou a designar o fim da ditadura do
clã Duvalier. A edição dos dias 7 a 10 de fevereiro de 1986 do principal jornal do Haiti, Le
Nouvelliste, trazia na capa a frase “A vitória do povo”. No centro da página, estava uma ilustração
assinada por Philippe Dodard de uma árvore sendo extirpada. Das raízes surgia a cabeça de um
abatido Jean-Claude Duvalier.
240

Imagem 38: Capa da edição dos dias 7 a 10 de fevereiro, Le Nouvelliste, coleção de periódicos da Biblioteca Nacional do
Haiti. Foto do autor.

Cenas de alegria, personagens e atores sociais importantes da época, além de dizeres


contendo frases de celebração, dividem a página com um avião da frota estadunidense levando ao
exílio um ditador diminuto e espantado. Na altura do tronco da árvore arrancada, lê-se
“Desenraizamos o macaco” (Nou dechouke makak la). Macaco é o termo usual para definir uma
pessoa de quem se sente repulsa ou se tem pouco apreço. A ofensa, a animalização e a exposição
ao ridículo de uma figura outrora tão poderosa guarda similaridades com as formas de humilhação
descritas por Davis, nas quais uma multidão expunha sua vítima em charivaris, colocando-a de
241

costas no dorso de um asno, vestindo-a com uma coroa de espinhos ou fazendo-a desfilar
publicamente portando uma focinheira. Para a autora, “[c]om estas ações, as multidões pareciam
mover-se em um vai e vem entre rituais de violência e o domínio da comédia” (Davis, 1973, p.84),
purificando a comunidade e humilhando a vítima a fim de torná-la menos poderosa –
desenraizando-a. Na análise de Jorab, o dechoukaj contra figuras malignas passa pela ação
violenta de fracionar o corpo da vítima, como no caso em que um lougawou é encontrado
“desmembrado (...) como se fosse um boi à venda numa barrada da feira”. Tal ação remete a um
repertório de violência igualmente encontrado em outros contextos afro-americanos no qual a
fragmentação é ao mesmo tempo índice de poder e a possibilidade mesma de sua anulação, como
traz à tona o vocábulo polissêmico demanbre (lit. desmembrar)280.
Na ocupação das terras de Bérard, em princípios de 1987, o dechoukay tinha o objetivo de
destruir a plantação de cana-de-açúcar, eliminando os traços do trabalho e do uso anterior, e separar
as terras que estavam arrendadas a um grupo de estrangeiros. Em encontros e reuniões ocasionais,
discutindo propostas e mobilizações, uma parte dos moradores de Milot (sobretudo dos povoados
de Trois Ravine, Lasalle e Samson) combinou que no dia 15 de abril assoprariam conchas em sinal
à ação. Naquela manhã, continua Francius Pierre, um grupo de camponeses se reuniu em um
depósito dentro da plantação enquanto aguardava o chamado:

Foi assim que o fizeram. [Imagine que] você é Men konm sa yo te fè. Ou chef gwoupman, ou fè
chefe de um agrupamento, você faz uma reunião e yon ray e ou rasamble moun. Ou di tout pèp, tout
junta todo mundo. Você diz a todo o povo, a todos peyisan, tèl jou n ap fè yon tèl bagay. M te la, m pa
os camponeses, tal dia vamos fazer tal coisa. Eu te piti, m te gwo gason, ou konprann? Depi nèg là
estava lá, eu não era criança, já era rapaz grande, di ou, tèl jou nou fè rasambleman tèl jou, tout
sabe? Quando te dizem, tal dia vamos nos juntar, peyisan kote yo ye alavot. Depi deja twa zè pim di
todos os camponeses, onde quer que estejam, maten, kout koki komanse – puuu, puu, pu – tout
aparecem. E a partir das 3 horas da manhã em peyi a. Yo rasamble, yo fè yon gwoup. De san
ponto, o sopro das conchas começou a ressoar – moun, menm twa san moun. Nan tè a li te gen yon

280
Sobre os diferentes usos do termo demanbre no Haiti, ver a discussão de Dayan (1995, pp. 31-33). Para um outro
contexto, ver o filme “La última cena” de Tomás Gutiérrez Alea, particularmente a cena em que um escravo rebelde
sentado à mesa do senhor toma na mão uma cabeça de porco e fala da criação do mundo por Olofi e do violento
embate entre a Verdade e a Mentira, ambas suas criações. “The last supper” La ultima cena, Tomas Gutierrez Alea,
1976. with English subtitle, YouTube, video postado por opensourceguinea.org, 1:06:45, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=g_CPbHIgnF4 (último acesso, 30/04/2018).
242

puuu, puu, pu – por toda a região. As pessoas se kay depo, se la moun te rasamble. Epi yo te rantre
juntaram e formaram um grupo. Duzentas pessoas, nan tè a. Yon reziyasyon pase.
talvez mesmo trezentas. Havia um depósito na
fazenda, foi ali que todos se juntaram. Logo em
seguida, ocuparam a terra. E uma resignação teve
lugar.

Resignação (reziyasyon) é um outro termo que ouvi em diversas situações durante o tempo
em que vivi em Milot. Muitos dos meus interlocutores e interlocutoras o enunciam com um tom
de desencantamento, sobretudo quando falavam da falta de trabalho e das poucas alternativas de
sustento ou de vida no país. Tal noção deriva de um cristianismo popular predominante, notável
na compreensão geral de que as fatalidades são invariavelmente associadas a uma vontade divina
que é, ao mesmo tempo, como veremos, distante dos dramas terrenos. No relato aqui reproduzido,
contudo, a resignação se reafirma pela sua própria negação, assumindo menos o sentido de
conformar-se e de aceitar uma fatalidade do que o de ser impelido a uma ação, de realizar algo
inevitável e de agir no mundo. O desencantamento, o infortúnio e a falta de alternativas revelam,
com efeito, uma linha tênue que separa aceitação e resistência, resignação e revolta. Um outro
trecho da narrativa ilustra bem essa caracterização:
243

Um grupo de arrendatários tinha um total de 155 Grandon te gen 155 kawo de tè a Bera. Men tout tè
carreaux de terras [aprox. 200 ha] em Bérard. Mas yo te a kannasik, se yon sèl moun ki tap jere yo. Se
toda a terra era pra cana-de-açúcar e havia só um chak dat ba Welch, kann yo. Epi malere menm, pou
gerente que tomava conta. A cada data específica, viv nan yo, ale koupe kann, epi fè djob. Ou pa ka
entregavam a cana à Welch. E, nisso, os próprios plante yon pye banann, yo pa gen dwa. Bon, si ou
desafortunados, para que vivessem ali, iam cortar antre nan tè a yo, yo marre ou. Si ou gen malere
cana, fazendo pequenos serviços. Não se podia koupe yon ti pye kann, depi yo trape ou, moun nan
plantar nem um pé de banana, pois não tinham ki te jeran l ap mare ou anba kòd, se pou mene ou
direito. Bom, se alguém entrasse na terra, o Granrivyè pou bat ou. Si ou gen chans yo pa touye
amarravam. Se um desafortunado cortasse um pé ou menm. Se sa ki fè nèg yo fè revolisyon. (...) Se
de cana e alguém o pegasse, o gerente o amarraria pèp la ki fè yon reziynasyon, yo antre nan tè.
com uma corda. O levariam para Grand Rivière du
Nord [um vilarejo distante] para espancá-lo e, se
tivesse sorte, não o matavam. Foi isso que motivou
as pessoas a fazerem a revolução. (...) Foi isso que
fez o povo resignar-se e ocupar a terra.

Como nos contam Francius Pierre, Judline Louis e Jean-Baptiste Jacques, os anos finais da
ditadura foram anos difíceis. No povoado de Samson e em seus arredores, desafortunados tinham
que trabalhar no corte da cana-de-açúcar em grandes fazendas, uma cultura de safra anual e de
difícil manejo, na qual o caule espinhoso da cana feria as mãos, os braços e as pernas dos
trabalhadores e onde o canavial podia ainda esconder animais selvagens e outros perigos, visíveis
ou invisíveis. Localizados em Bérard, a noroeste de Milot, esses 155 carreaux de terras pertenciam
ao Estado, dos quais 54 (aprox. 31 ha) estavam arrendados ao “Centro Rural para o
Desenvolvimento de Milot” (CRUDEM), um grupo canadense ligado à Igreja Católica. A cada
safra anual de cana-de-açúcar, a produção era destinada à Welch, uma usina estadunidense
instalada na região e que mantinha o monopólio da produção de açúcar no norte do país. Os
camponeses que trabalhavam ali viviam em constante vigilância, eram sujeitos a violências
diversas e não podiam plantar “nem um pé de banana, pois não tinham direito”. Sobrava-lhes
pouco tempo para se dedicarem a seus roçados e para fazerem comércio nos mercados locais.
Retomando a conclusão de Pierre, “[f]oi isso que motivou as pessoas a fazerem a revolução. (...)
Foi isso que fez o povo resignar-se e ocupar a terra”.
244

Em outros relatos que ouvi sobre a ocupação de terras enfatizava-se sempre a condição de
miséria e sofrimento da população, expressa particularmente no fato da cana-de-açúcar dominar a
paisagem agrícola enquanto os camponeses não tinham o que comer. Nas palavras de Antoine
Clairvil, um vizinho de Samson, de uns 40 anos, que não havia tomado parte nas ocupações:

Na época do dechoukay, não havia terras para as Alepòk dechoukay la tou, y pa te gen tè pou moun.
pessoas. Mas um grupo de grandes senhores tinha Li te gen yon sery de grandon ki kon ap gen 35, 45,
35, 45, 50 carreaux de terras só pra si! Enquanto 50 kawo de tè pou pròp tèt a yo! Kounye la pèp yo
isso, o povo nem um terço de carreau eles não wè sa, pèp la menm yon tyè kawo tè yo pa gen. Tout
tinham. Toda terra estava com cana. O povo via tè sa yo te nan kann. Epi pèp wè sa e di “bagay yo
isso e dizia, “as coisas não deviam ser assim”. Todo pa dwe konsa”. Tout moun dwe fèt pou viv. Kounye
mundo deve nascer pra viver. Por isso, cada pessoa la, chak moun antre nan tè, dechouke, koupe ti
entrou na terra, desenraizou e separou um pedaço moso ken a yo. (…) Yo rele tè Leta. Kounye la pèp
para si. (...) Chamam-se terras do Estado. E o povo la di: “plis ke se tè Leta yo ye, eben, se Leta yo ye
então disse: “como são terras do Estado, bom, nós tou”. Yo chwazi twouve tè pou yo travay, pou yo
também somos o Estado”. Escolheram encontrar as voye timoun a yo lekòl. Dechouke se pa tout
terras para trabalharem, para que pudessem enviar sanpleman pou touye moun, se pou pran tè nan men
as crianças à escola. Desenraizar não é grandon ki anpoze yo, ou konprann? Tout rete pou
simplesmente para o caso de matar pessoas yo epi ti mas pèp la ap bat gangou, pa touve manje.
[referindo-se aos lougawou], é para tomar as terras Epi la pèp la vin revolte, yo panse bagay yo pa ka
das mãos dos grandes senhores que se impõem, rete konsa. Tè Leta rete tè Leta.
sabe? Tudo fica para eles e o povo [lit. a pequena
massa do povo] passa fome, sem encontrar o que
comer. Por isso, o povo se revoltou, eles
compreenderam que as coisas não poderiam ficar
assim. Terras do Estado continuam terras do
Estado.

Importante ressaltar a vivacidade com que pessoas que, como Clairvil, não participaram
diretamente daquele episódio recontam o evento, valorizando o feito como um sacrifício heroico
e revelando as bases do que constitui uma economia moral camponesa: os alimentos, a percepção
de uma injustição na relação entre os grandes senhores (que ficam com tudo) e o povo (que “passa
fome” e “não encontra o que comer”) e o lugar central da autonomia camponesa (poder plantar
245

para enviar os filhos à escola etc). Nesta mesma conversa, participou também senhor André, o
dono da casa onde eu morava em Samson, que havia estado no momento do dechoukaj e completou
o relato enfatizando a transformação da cana-de-açúcar em alimentos para os camponeses, como
víveres, entre os quais banana e batata-doce:

Bom, é um desenraizamento. Nós entramos ali. Bon, se dechouke li ye. Nou rantre ladan. Kounye
Agora, nós trabalhamos. Havia cana, agora não há a la nou nap travay. Li te gen kan ladan, kounye a
mais. Depois que retiramos a cana, nós a pa gen kann ankò. Aprè nou rache kann, nou
desenraizamos, plantamos nossa banana, batata- dechouke y, nou plante bannann a nou, patat, tout
doce, tudo isso. Plantamos víveres alimentares. E, bagay. Epi nou mete viv alimantè. E nou kounye a
depois, feijão preto, depois, batata outra vez la, nou vin plante pwa nèg ladan, aprè patat. Pa
[referindo-se à sucessão de culturas nos terrenos]. gen mèt tè sa ankò. Se nou ki mèt a tè sa la. Se nou
Não há mais donos da terra. Somos nós os donos ki papane sou tè sa. Sou nou kap pran plèzi nan tè
dessa terra. Nós que utilizamos a terra do jeito que sa. Pa gen papye. Li menm, li pa te gen papye. Li
queremos. [O antigo arrendatário] não tinha os te antre konm gwo chef ki antre e pran tè a y. Lap
papéis da terra. Ele entrou como um grande chefe peye yon ti kòb, yon ti monen, lap bay gwo chef li
e tomou as terras para si. Pagou um pouco de epi gwo chef di "men tè a pou kont a ou". Epi nou
dinheiro, alguns trocado a outros grandes chefes menm, nap pase pay, gangou ap touye nou.
que então disseram “aqui está sua terra”. Então, nós
mesmos, nós passávamos apuros e a fome nos
matava.

Não tardou para que o exército chegasse ao local com o intuito de conter os revoltosos. Ao
virem os militares, os camponeses se exaltaram e a paisagem verde amarelada da cana-de-açúcar
deu lugar às chamas e à excitação dos participantes. De balas de borracha e gás lacrimogênio
passaram a atirar balas de verdade. Foi então que Odile Saint-Fleur foi atingido. Como continua
Francius Pierre que também acompanhou o evento, apesar de ser ainda jovem:

Todos se juntaram e, então, [o exército] começou a Epi tout pèp sanble nan tè a e y [lame] ap mache
avançar sobre eles fazendo intenção de que iam an wo yo pou yo tire yo epi y ap fè antansyon tire,
atirar, mas a princípio atiravam balas de borracha. men yo ap bay yon gren lango, yo pa ap ba yo bal
Depois, enquanto atiraram, jogavam também gás e pou toye yo non. Ba yo bal epi ba lage gas
lacrimogênio. E as pessoas começaram a cair! Os lakrimogen. Moun ap tombe! Epi gran nèg yo ap
246

fazendeiros ativaram nos pés das pessoas que logo antre nan pye a moun e pye a moun ap anfle! Epi
inchavam! Corriam para todos os lados até que um moun yo ap mache en yo epi li te gen yon ki rele
deles gritou por Odile Saint-Fleur. Enquanto Odile Sanflè. Pandan nan tire, tire. Epi li gen yon
atiravam, uma bala atingiu alguém. Pobre Odile! ki rale yon gren bal. Pòv Odile-la! Odile sa li
Ele caiu sobre si mesmo. Era uma bala muito tombe, li tombe nan li. Bon jan bal mò a. Odile
potente. Odile caiu. Ele era um morador de tombe. Odile-la moun Samson li te ye.
Samson.

Odile Saint-Fleur era um vizinho conhecido de todos e morava na parte baixa de Samson.
Ao cair no meio da plantação, apressaram-se para colocá-lo em um carro e levaram-no dali. Foi
gente do Estado que o levou e o corpo desapareceu: “o Estado o matou, o Estado o enterrou”,
completou Jean-Baptiste Jacques:

Assim que ele caiu, ele morreu. Depois, o levaram, Mesye li te tombe, li te mouri. Kounye a yo vin leve,
foram com ele em um carro para enterrá-lo. As ale ave y nan machin, ale nan vèy. Konye a moun
pessoas gritavam. Os que levaram tiros de borracha yo ap krie. Sa ki gen lango nan pye, nan men, epi
nos pés, nas mãos, ficaram bem. Houve gente que bon, ok. Kounye a, gen moun yo ta rete, apre yo vin
foi presa, mas logo os soltaram. E o povo, então, lage yo. Kounye-a pèp vin rantre nan tè a nèt. Odil
entrou na terra de vez. O Odile, enterraram-no. Mas la, yo vin tere y. Se pa paran ki te tere y. Leta ki te
não foram seus pais que o enterraram. Foi o Estado. tere y. Wi, Leta ki te twe y, Leta ki te tere y. Yo pa
O Estado o matou, o Estado o enterrou. Não te vin ak y nan sit men. Kounye a, ok. Epi, depi lè
trouxeram ele de volta por nada. Dali em diante, sa, tout pèp antre nan tè-a, separe tè a.
todo o povo entrou na terra e começou a separá-la
pra si.

O exército tentou voltar mais duas ou três vezes, mas o povo já havia tomado conta de todo
o lugar. O sacrifício de Odile não foi em vão: “A terra foi abençoada, pois derramou-se muito
sangue ali. Foi isso que os levou a chamar aquela terra de Resignação”281. Na narrativa de Pierre,
Jacques e Louis, os camponeses foram gradativamente ocupando a terra, em meio a esse processo
de destruição criativa, arrancando o resto da cana-de-açúcar queimada e iniciando novos roçados
e novas plantações. Os terrenos foram separados individualmente, sob um princípio de preferência

281
Men se tè sa ki beni, paske anpil san te koule la dan. San ki koule, se sa ki fè yo ba non Reziyen.
247

na ocupação: aglutinavam-se, em uma proximidade espacial, as terras entre parentes, vizinhos e


amigos, favorecendo a contiguidade das parcelas da família. A marcação era feita com cordas e
estacas para depois iniciarem o plantio de cercas-vivas:

E todos conseguiram um pequeno pedaço de terra Epi kounye a tout moun jwen ti mòso e ap travay,
e começaram a trabalhar, alguns vendiam, outros sa ki van, ale achte, e epi moun nan jwen plante
compravam e, então, plantaram pés de banana, pés pye banann, pye maniòk, y al trape pye may, pye
de mandioca, foram atrás de pés de milhos, de pés pwa nèg la. Epi nou kouri dèye grandon. Nou rele
de feijão-preto. Corremos com os grandes sa “kouri dèye grandon.” Menm si ou wè grandon
senhores. Chamamos isso de ‘correr com os ap pase nan avion, men yo pa ka antre nan tè a.
grandes senhores’. Mesmo que você aviste algum
deles passando em um avião, eles jamais poderão
entrar na terra.

No exato lugar onde Odile caiu, construíram uma igreja, a Igreja do Evangelho, que segue
inacabada. Sua morte representou, por isso, uma forma de regeneração, com a terra passando de
uma paisagem de sofrimento e morte, dominada pela cana-de-açúcar, para uma na qual havia
abundância de alimentos (“plantaram pés de banana, pés de mandioca, foram atrás de pés de
milhos, de pés de feijão-preto”) e em que o trabalho e as trocas voltaram a ocorrer (“começaram a
trabalhar, alguns vendiam, outros compravam”).
Amiúde ouvem-se rumores de que o Estado e os herdeiros dos arrendatários virão reclamar
a terra e, imagino, os camponeses às vezes os veem passar de avião ou suspeitam que sejam eles
quando avistam alguma aeronave sobrevoando baixo a região. Essa é uma tensão constante,
completa Pierre, sobretudo por serem aquelas “terras do Estado” (tè Leta), definição jurídica que
apareceu tanto na fala de Jorab, reproduzida acima, quanto na de Pierre e que assume um “estatuto
híbrido”, nas palavras do antropólogo Gerard Barthélemy (1989, p. 51), garantindo ao Estado a
possibilidade de expropriar camponeses que vivem e trabalham ali. “Não digo que não virão tomá-
las, sabe? Pois são terras do Estado”, continua Pierre. “Somos haitianos, não temos terra. É o
Estado que tem terras. Mas agora as terras estão nas mãos do povo”282. Ao dizer que “somos
haitianos” e que, por isso, “não temos terras”, o narrador iniciou a frase em francês, a língua do

282
M pa di li pa ap pran y non, an? Paske se tè Leta. Nous sommes des haïtiens, nou pa gen tè. Se Leta ki gen tè. Men
kounye a yo kite tè a nan men pèp.
248

Estado e dos documentos oficiais. O que o dechoukay revela, evidente na interpretação de Pierre,
é que em uma ocupação não é a propriedade da terra que está em jogo – afinal, “é o Estado que
tem terras” – mas, sim, um arranjo que impedia que os camponeses produzissem seus alimentos e
usufruíssem de parte de seu tempo em benefício próprio. Nesse ponto, nos aproximamos aqui das
formulações de Lygia Sigaud (2005) sobre as ocupações de terra na Zona da Mata de Pernambuco
que, como mostra a antropóloga, sustentavam-se não como produto de uma vontade prévia de
possuir terras, mas antes como uma forma, construída historicamente e caudatária de um conjunto
de relações que aproximam Estado, movimentos e indivíduos, que criava um horizonte de
possibilidades para ter-se acesso à terra.
Como continua Pierre, “não sei o que farão no futuro, se mudarão de ideia ou não. Mas se
[o Estado] tomar [as terras] e cedê-las para os grandes senhores plantarem cana, eles as tomarão
num dia e no outro, se Deus quiser, o povo irá outra vez tomá-las de suas mãos”283. Nesse ponto, a
ocupação de terras produz um novo tempo, no qual a tradição de revolta, condensada tanto no par
revolução e resignação empregados inicalmente por Pierre quanto na noção de dechoukay, é
reavivada e projetada para o futuro, pois se o Estado decidir tomar as terras e arrendá-las outra vez
a grupos estrangeiros ou a grandes fazendeiros, o povo, “se Deus quiser”, irá rebelar-se outra vez.
Nesse ponto, talvez seja interessante pensar que estamos diante de uma formulação teórica
nativa sobre a política e a revolta. Em diversas das falas aqui reproduzidas, a noção de dechoukay
é aplicada a dois contextos aparentemente distintos: de um lado, aos lougawou e sua fome por
gente (claro nas formulações de Jorab e de Clairvil); e, de outro, aos latifundiários e sua fome por
terras (presente em todas as falas dos camponeses). Essa amplitude semântica não é desprovida de
propósito, pois revela, de fato, uma aproximação entre as duas figuras, o latifundiário (grande
chefe/senhor) e o lougawou, que compartilham de uma mesma ordem moral dominada pela
maldade. Com efeito, fazer mal a alguém fisicamente (a si ou a seus parentes) ou à terra (impedindo
que lhe tenham acesso) são formas equivalentes – afinal, terra aqui, em seu sentido amplo, é a
própria vida. A resposta dos camponeses surge não pela negação da violência do dechoukay, mas
por sua apropriação, aproximando resignação e revolta. Assim, o dechoukay levado à cabo por
camponeses se constitui como uma inversão lógica ou algo que se reafirma pela sua oposição, na
qual uma paisagem de morte é exagerada por meio do fogo e de um desenraizamento generalizado

283
M pa konn ki sa yo ap fè yon jou, si yo ap chanje devi. Men si [Leta] pran y e li ba y grandon plante kann, yo pran
y jodi demain, si Dye vle, pèp la pran y nan men yo.
249

que, logo em seguida, abre caminho para a produção da vida por meio do plantio e das trocas. Não
sem razão, a região ocupada recebeu um novo nome atestando o lugar dessa inversão: Bérard
tornou-se Resignação (Rezyie)284.

***
A narrativa de Francius Pierre, Judline Louis e Jean-Baptiste Jacques, assim como a de
outros interlocutores, impressiona pela riqueza de detalhes e pelas inúmeras associações que
constroem. Conheci Judline Louis em uma de suas visitas a Samson. Ela era comadre de madame
André, dona da casa onde eu morava, e costumava passar algumas tardes no povoado, conversando
no terreiro da família e ajudando-os em algum serviço doméstico. Judline vivia em um grande
lakou em Trois Ravines, no entroncamento das rotas que ligam Samson ao centro do vilarejo e às
terras de Resignação, junto com Francius, seu padrasto, e Jean-Baptiste, seu avô materno, além de
sua mãe e outras pessoas da família. Numa tarde de março de 2012, ao notar meu interesse pelas
razões que levaram alguns moradores de Samson a se mudarem dali, ela me convidou a passar
uma tarde em sua casa e conversar com ela e seu padrasto. Alguns dias depois, nos encontramos
no terreiro de sua família. Ela colocava alguns cogumelos selvagens para secar, enquanto seu
padrasto descansava em uma esteira de palha embaixo de uma mangueira e seu avô brincava com
um grupo de crianças. Foi ali que conversamos sobre a ocupação das terras de Bérard.
Em Samson e em outras partes de Milot, muitas famílias tinham participado do dechoukaj
e haviam conseguido um pedaço de terra à beira da Rodovia Nacional #3. Muitas haviam deixado
os povoados rurais para se instalar em Resignação garantindo assim uma maior proximidade à
estrada e, consequentemente, maior mobilidade e acesso aos mercados, ao hospital e à cidade.
Outros moradores rurais mais velhos me contaram histórias similares sobre a ocupação das terras
de Bérard, enfatizando sempre a condição de infortúnio em que viviam e a situação absurda de
haverem terras arrendadas a brancos quando muitos camponeses não tinham terra para plantar.
Nessas narrativas, nota-se uma atenção dada aos nomes de arrendatários, militares, juízes e outras
figuras políticas que se envolveram no episódio. Comum a esses relatos é também uma

284
Essa renomeação, me parece, reproduz um movimento análogo à lógica por trás do ato de nomeação do Palácio
Sans Souci pelo rei Christophe. Lembremos que, conforme abordado no capítulo 1 e seguindo os passos de Trouillot
(1995), o coronel africano Jean-Baptiste Sans Souci era um ferrenho opositor dos caminhos que as revoltas e
negociações anticoloniais tomavam nas mãos dos jacobinos negros. A nomeação do palácio real após sua morte
correspondeu a uma espécie de anti-homenagem, algo que ao invés de celebrar sua memória, silenciou-a.
250

compreensão de que o período de Jean-Claude Duvalier no poder não cessa com sua partida, o que
leva alguns interlocutores a considerarem que o dechoukay ocorreu, de fato, durante o governo
Duvalier.
Ti Tonton, morador de Limbe que no primeiro capítulo nos contou sobre o episódio do
massacre dos porcos, havia sido preso durante a ocupação de 1987. Seu relato é particularmente
interessante:

Havia um homem chamado Fabius, era ele quem Y te gen yon nèg ki rele Fabius, se li ki te jeran nan
geria as terras. Quanto à cana, a cada ano teran an. Pou kann nan, chak ane nou te koupe
colhíamos e eles enviavam-na à Welch. Enviavam kann nan. Yo ap voye Welch. Yo ap voye Welch pou
a cana à Welch para fazerem açúcar, esse tipo de yo ap fè sik, bagay sa yo. Apre yo te vin kraze
coisa. Quando fecharam a Welch, foi durante o Welch, lè nan tan Divalye, Divalye te prezidan lelè,
tempo Duvalier, Jean-Claude era presidente na Janklod te prezidan, yo te fè dechoukay pou tè a.
época, fizeram o dechoukay da terra. Com isso, Kounye a, lè yo fè dechoukaj pou tè a, yo pran tè a.
quando fizeram o dechoukay da terra, tomaram a Men li te gen yon lame yo te bay pou militè. Lè nou
terra pra si. Mas havia um antigo quadro do nan tè, yo te vin arete nou anpil! Yo ale nou Okap.
exército que chamaram pra fazer as vezes de Lasenal, m te fè 13 jou prizon. Nan 13 jou prizon
militar. Quando estávamos na terra, vieram nos an, li te gen yon jij ki rele Tankrèl. Pandan jij
prender aos montes! E levaram-nos à Cabo Tankrèl, se Okap li al jije nou, devan yon komisè
Haitiano. Em L’Arsenal [prisão do Cabo], eu fiquei yo rele komisè Zo. Lè yo pran yon seri moun ki tap
13 dias preso. Nesses 13 dias na prisão, havia um pase menm etidyan. Li te gen yon ki rele Jakson, bò
juiz chamado Tancrède. Quando Tancrède era juiz, Sèka, yon filosof li te ye, li te fini yo pran y nan
foi no Cabo que ele nos julgou, diante de um karetèl la yo pinpran mete nan machinn ak m la.
delegado que chamavam de Zo. (...) Quando nos Sèl li yo te vini lage nan nou 13 la. Alò nou menm,
chamaram e começaram a fazer perguntas, muita yo te kite nou rest la nan prizon. Lè yo rele nou, li
gente disse que estava só passando [por Bérard, no ap poze nou kesyon, li gen yon sery moun ki di pase
momento da ocupação] e que o Estado acabou yo ap pase e Leta fè yo yon anjistis. Li arete yo,
cometendo uma injustiça. Diziam que os levaram pandan yo arete yo, yo di yo pa te pran tè. Men
presos, mas que eles não tinham ocupado as terras. mwen menm ki te konn ale Sendomèng, lelè, lè sa
Mas eu, eu mesmo, nessa época, eu costumava ir à yo pa ba ou pouvwa pou ou ap pase nan dwann se
República Dominicana e não nos deixavam passar nan bwa, solèy kouche, nap bat lapli, pou ou aprè
pela alfândega, era no mato, depois do pôr-do-sol, rantre Sendomèng. Aprè sa dominiken ap kouri
enfrentando chuva, para que conseguíssemos deyè do a nou pou yo ap bat nou. Lè yo ap pran tè
251

entrar no país. E tudo isso pra chegarmos lá e os a, mwen menm m ale nan teren m pran moso.
dominicanos correrem atrás da gente pra nos Pandan m pran moso nan teren an, kounye a yo vin
baterem. Quando ocupamos as terras, eu fui no arete nou. Lè yo ap jije nou, tout moun ki di yo ap
terreno e separei um pedaço pra mim. Enquanto eu pase, m di jij la, “se pa pase map pase non, m pran
separava um pedaço da terra, vieram e nos moso tè pou m travay”. Nan jijman, wi? Kounye a
prenderam. Quando fomos a julgamento, enquanto m di, “kiès moun nan ki peyi ki ap kite ayisyen pou
todo mundo dizia que só estava passando por ali, achte 54 kawo tè”? Aprè sa, pandan m di sa, yo pa
eu disse ao juiz, “só passando eu não estava, o que vle banm lapawòl ankò. Li ba banm lapawòl. Paske
eu fiz foi tomar um pedaço de terra pra trabalhar”. m di yo pa tap ba oken ayisyen dwa pou yo achte
No julgamento, sabe? E então eu disse, “que pessoa 54 kawo tè nan nenpòt peyi a. E isi a yo bay pou
e em qual país iria deixar que haitianos yon blan. Men nou bezwen pou nou travay e nou pa
comprassem 54 carreaux de terras”? E ao dizer ka trape.
isso, não me deram mais a palavra! Não me deram
a palavra. Pois eu disse que nunca, em país
nenhum, dariam o direito de comprar 54 carreaux a
um haitiano! E aqui o davam a um branco. Mas nós
precisávamos [de terra] para trabalhar e não
conseguíamos encontrar.

Algum tempo depois do dechoukay ter entrado na terra, uma porção dos insurgentes
dirigiu-se ao arquivo notarial da comuna (kontribisyon) e, tal como fizeram com a cana-de-açúcar,
ateou-lhe fogo, destruindo grande parte dos registros de propriedade da região. Queimar o arquivo
foi, por isso, um questionamento profundo dessa ordem na qual camponeses desafortunados
tinham muitas vezes de “buscar a vida” na República Dominicana, enquanto outros se viam
obrigados a cortar cana e fazer pequenos serviços, submetidos a violências múltiplas. Apagando-
se os papéis e os registros do passado, as terras se refaziam como “terras do Estado” e as pessoas
poderiam, então, iniciar seus roçados, construir casas e refundar suas vizinhanças. Com efeito, isso
só foi possível através da mobilização de uma linguagem simbólica que, similar à forma
acampamento analisada por Sigaud (2000, p. 85), inspirada em Leach (1996), afirmava-se em atos
ritualizados e buscava adquirir legitimidade285.

285
Segundo a antropóloga (Sigaud, 2000, p. 85), “Os acampamentos da mata pernambucana aqui tratados têm uma
forma que se reproduz, conforme foi observado nos municípios de Rio Formoso e Tamandaré. Essa forma tem aspectos
ritualizados e se constitui numa linguagem pela qual os indivíduos fazem afirmações simbólicas. Assim, o ato de
252

Tal como a narrativa de Ti Tonton, dos muitos relatos que ouvi sobre aquele conturbado
início de 1987, seja por pessoas que viveram diretamente aqueles dias ou por outros que herdaram
as histórias e as terras ocupadas, todos traziam uma definição explícita do que haviam sido os anos
finais da ditadura, justificando a ação de ocupação como consequência inevitável. A história das
ocupações e as estratégias e símbolos empregados tornaram-se conhecimentos práticos (ou
konensans, na linguagem local), assumindo grande legitimidade e contornos consensuais na visão
dos camponeses, ganhando a forma de um arquivo vivo. Se, como destaca Trouillot (1995), “a
história começa com corpos e artefatos: cérebros vivos, fósseis, textos, edifícios” (p. 29), tanto as
terras de Bérard, agora chamadas de Resignação, quanto as ruínas do arquivo notarial são o início
dessa história. Os relatos orais aqui reproduzidos carregam a ambiguidade de todo processo
histórico, combinando a materialidade do que ocorreu (historicidade 1) e a dimensão narrativa do
que se diz ter ocorrido (historicidade 2). Como o mesmo autor nota, “no caso da transmissão oral,
o momento da criação do fato é continuamente prolongado nos próprios corpos das pessoas que
participam dessa transmissão. A fonte é viva” (162n33, grifos no original). É no corpo desses
atores-narradores que a história revela suas contradições.
Poderíamos, então, nos perguntar por que a ocupação não ocorreu antes, já que, como
vimos, a queda do ditador instaurou um momento de efervescência por todo o país. De fato, ao
fugir do país, Jean-Claude Duvalier legou diretamente o poder a uma junta civil e militar
encabeçada pelo tenente-major Henri Namphy, que seria responsável por operar uma transição
democrática e organizar uma assembleia constituinte. Contudo, a despeito das intenções
declaradas, o Conselho Nacional de Governo (CNG), como era denominado o governo provisório,
levava a cabo uma política de violenta repressão a movimentos populares, colocando em xeque a
própria transição (Trouillot, 1990, pp. 221-7). Ademais, as terras da região de Bérard continuavam
arrendadas a estrangeiros e a grandes senhores que mantinham os privilégios nos contratos
fundiários. O “tempo Duvalier” parecia, com isso, avançar para além do fim do regime. Mas
respostas diversas ganhavam corpo por todo o país.

instalar um acampamento em um engenho é a forma apropriada de ‘dizer’ que aqueles que o ocuparam desejam que
seja desapropriado”. No caso aqui tratado, a linguagem simbólica foi instaurada e passou a ser replicada em outras
ocupações nos anos posteriores, funcionando como algo similar às espirais tão bem analisadas por Nashieli Loera
(2006), na qual uma ocupação se vincula à outra, pautadas por compromissos, prestações e obrigações próprias às
relações de parentesco (entre afinidade, descendência, amizade e vizinhança). No contexto aqui analisado parece
ausente, contudo, a ideia de um movimento institucionalizado como o MST, o que não implica dizer, é importante
ressaltar, que não hajam lideranças e formas organizativas relativamente estáveis.
253

Em nome da pátria
Entre 31 de janeiro e 3 de fevereiro de 1987, em Porto-Príncipe, foi organizado um
congresso em celebração ao fim da ditadura reunindo diferentes entidades populares. Muitas delas
tinham um claro viés democrático e lutavam para garantir para si um lugar na elaboração da nova
constituição. Era o Premye Kongre Nasyonal Mouvman Demokratik Yo ou Primeiro Congresso
Nacional de Movimentos Democráticos (PKNMD). Como ressalta o historiador Marvin Chochotte
(2017), “A conferência dedicou-se a encontrar maneiras de criar medidas de proteção
constitucionais para representação democrática e medidas para defender os interesses nacionais
contra interferências estrangeiras”. (p. 211). “Pela primeira vez na história do Haiti”, continua o
autor, “às massas rurais foi dada a oportunidade de participar diretamente da formação de políticas
públicas e da política em geral” (p. 212). Formado por 800 delegados, associados a mais de 320
organizações, entre grupos feministas, de defesa dos direitos humanos e ligados a projetos
educacionais, eles diziam representar aqueles que formavam a maioria da população haitiana, os
camponeses.
Mesmo com a notável presença de instituições de base urbana e com fortes conexões
internacionais, moradores e moradoras rurais participaram diretamente na elaboração do
congresso, exprimindo os seus desejos por representatividade na política nacional, suas exigências
por mudanças no sistema jurídico e suas demandas por projetos governamentais de
desenvolvimento da agricultura familiar. Na ata do congresso, o governo militar de transição é
caracterizado como “um subproduto do regime Duvalier que tem claramente demonstrado sua
vontade de continuar o mesmo regime de ‘Tonton Macoute’”, referindo-se aos famigerados
milicianos que sustentavam o governo ditatorial (citado em Chochotte, 2017, p. 212). Camponeses
e moradores rurais tinham suas vozes ouvidas e registradas, comparando o governo Duvalier à
escravidão, revelando as continuidades do duvalierismo nas ações do governo de transição e
clamando, como destaca um dos presentes, que “[o] processo de dechouke deve continuar” (idem,
pp. 212-213)286.

286
Chochotte (2017) compila uma série de relatos e frases de camponeses registradas por advogados do PKNMD no
momento do congresso, analisando-as em sua complexidade e à luz do processo de transição. Reproduzo aqui o trecho
da tese do historiador que evidencia as representações sobre o regime e o vocabulário político que empregavam à
época assim como suas expectitivas, demandas e propostas: “In one workshop, PKNMD advocates took notes and
printed partial quotes by peasants that served to strengthen the narrative that tied the CNG to the repression of the
254

Na região norte, vozes subalternas começavam a circular e ganhavam a imprensa local e


internacional por meio de denúncias, notas de apoio e cartas enviadas a figuras políticas
expressando suas demandas e incorporando um vocabulário de direitos. O jornal Haiti Progrès,
baseado em Nova Iorque e que circulava tanto entre grupos da diáspora haitiana quanto dentro do
país, era um desses meios. Publicada com seções em francês e em crioulo, a edição referente aos
dias 20 a 26 de maio de 1987 traz uma longa declaração assinada por três moradores de Milot –
Gérard Vincent, Louis Thomas e Joseph Bien-Aimé – chamando a atenção dos leitores para o fato
de que “os camponeses continuam a levar bofetadas de grandes senhores (gran nèg)”. Faziam
referência direta à ocupação de Bérard que ocorrera no mês anterior. Naquele que havia sido
declarado o “ano da solidariedade com os camponeses”, perguntavam “de que tipo de
solidariedade estão falando? De que tipo de camponês estão falando?”. Reconheciam, ademais, o
lugar delicado que ocupavam ao tornarem pública sua voz: “se vocês ouvem nossa voz com
frequência, não é nossa culpa (...) mas as provações que passamos são inúmeras, pois as coisas
ainda não estão claras em Milot” 287.
Os signatários da declaração falavam em nome de uma coletividade maior e exigiam a
prisão e o julgamento de Edgard Gab, o tenente aposentado que comandou a repressão militar nas
terras, e de seu cúmplice, Franck Julien, prefeito da comuna de Milot, “pelo assassinato de dois
camponeses sem levar em conta ainda um que havia perdido os olhos”288. Falando a um público
amplo e distante dos dramas do vilarejo, pediam empatia mobilizando a linguagem do parentesco,
pois poderiam bem ser “nossos pais, nossos maridos, nossos irmãos, nossas irmãs, nossos primos”,

Duvalier regime and the makouts. ‘The Children of Duvalier are the CNG’, one peasant was recorded to mention.
Another peasant quote asserted, ‘Not only is Duvalierism not finish but there is a whole aspect that's continuing to
grow’. ‘The rich people, military, and Macoutes have the land’, went another peasant quote. One quote stated,
‘Peasants expropriated of land to give to Macoutes and Army People. It's a slavery system we've been in. We have
smaller parcels of land’. Personal memories of repression were also quoted. One quote stated, ‘They killed my father
in 1966, they killed a lot of people in my region. What we must do is take out the roots’. One somber quote read: ‘I
was arrested twice by Jean Claude. I come here with hope’. These quotes affirm the atrocities of the Duvalier regime
and gives voice to some of its peasant victims. Furthermore, these quotes form a narrative that sees the CNG as a
continuity of the Duvalier regime and, therefore, delegitimizing the military as a supervisor of democratic transition.
Nevertheless, the simplistic representations of the Duvalier regime obscures its complex legacies tied to the democratic
transition. Or as one peasant quote put it, ‘The process of dechouke [revolt] needs to continue’ (pp. 212-3).
287
Agradeço a Marvin Chochotte por ter gentilmente cedido estas fontes, disponíveis no arquivo do Tribunal de Paix
em Quartier Morin, departamento do Norte, Haiti.
288
O segundo camponês a que se referem na declaração não surgiu nos relatos que ouvi em Milot.
255

chamando a atenção para o fato de que “a justiça (melhor dizendo, a injustiça) junto do exército
de makout fingem não saber do que se trata”.
Ao conjunto virtual de leitores, pediam ainda que levassem em consideração a “pobre
viúva, madame Odile St Fleur, que com 4 pequenos anjinhos e, pobre-diabo (podjab), grávida de
um quinto, ficou sem nenhum auxílio”. Demonstravam estarem se organizando para as eleições
que ocorreriam em breve e clamavam aos “[c]amponeses de Bérard, Lecourrier, Trois Ravines,
Samson, Barrier Batant, [aos] jovens patriotas honestos de Milot e de outras partes” que
defendessem juntos “nossos próprios interesses”, concluindo com a palavra de ordem: “Terra para
os camponeses pobres ou morte!”. O grupo levava o nome de Veye Move Je nan Milo ou Vigília
Contra o Mal-olhado em Milot, sugerindo que a situação de injustiça fundiária vivida pelos
camponeses estava também associada a um regime mágico dominado pela maldade, como é o caso
do mal-olhado (move je), e contra o qual deveriam se proteger. Esse nome revela, mais uma vez,
os dois sentidos do termo dechoukaj, servindo tanto aos ataques contra figuras malignas quanto às
ocupações de terra por (ou contra) grandes latifundiários.
Na mesma edição, vinha estampada uma manifestação de apoio de 435 camponeses do
Vale do Artibonite, região vizinha ao Norte, exigindo reparações aos camponeses que sofreram o
ataque do exército em Bérard e a libertação daqueles que continuavam presos. Ao lado, uma nota
assinada por 44 camponeses de Milot endereçada a François St Fleur, ministro da Justiça do
governo provisório. Expressando uma aflição coletiva, os signatários justificam seu comunicado
afirmando uma fraternidade na qual “se um de nossos irmãos está sofrendo (...) somos nós todos
que sofremos”. A carta inicia retomando uma declaração recente do ministro na emissora Rádio
Soleil, na qual ele afirmara ter feito muito durante esses quatro meses à frente do ministério e que
ele, como relembram na carta, “não estava ali para fazer show business”. Como um “grupo de
cidadãos”, aquelas 44 pessoas o questionam sobre quais teriam sido suas realizações, de fato, nos
meses anteriores. Denunciando o ataque do exército, perguntam ao ministro: “Você diz que os
camponeses pobres estão protegidos, mas gostaríamos de saber que tipo de proteção, pois o
exército não pensa duas vezes antes de apontar-lhes as armas e os porretes quando reclamam seus
direitos?”. E seguem com o exemplo da “agressão feita pelo exército aos camponeses pobres, em
Milot, nas terras de Bérard na quinta-feira, dia 16 de abril de 87”.
256

Os 435 camponeses expressam grande preocupação diante da demora e da inação da justiça


frente às “inúmeras vítimas” que viviam na comuna de Milot. Questionam ainda se Odile Saint
Fleur não seria parente do ministro, pois possuíam o mesmo sobrenome e interrogavam:

Onde está a proteção dos camponeses pobres na sua justiça? (...) será que você não é o
próprio advogado do CRUDEM, e, por isso, talvez tenha mesmo assinado aqueles contratos
infames? Ou seja, será que você conhece ou tem brincos na casa do ourives – o que te faz
desprezar os camponeses como se fossem cachorros?

A carta continua, remetendo ao valor do parentesco e reafirmando o privilégio dos


“burgueses”: “Sangue não trai o mesmo sangue, se fosse algum de seus camaradas burgueses, o
cadáver já teria sido devolvido e a prisão assim como a condenação já teriam ocorrido há tempos.
(...) Obrigado ministro!” (grifos meus). Pediam a prisão de Edgard Gab, do prefeito de Milot e
também do comissário de polícia de Cabo Haitiano, Joseph Jacques Pierre, que declarou “sem
constrangimento algum” ter sido ele a dar a ordem ao exército para “massacrar os camponeses”.
Concluem fazendo referência às palavras do ministro na emissão de rádio: “Se dessa vez não
encontrarmos justiça com sua ajuda, nessa hora compreenderemos que a justiça no Haiti é show
business e que são somente os grandes senhores os que possuem direitos neste país” (grifos meus).
E, nessa hora, recuperando a fala do ministro na emissora de rádio, “tal como você o afirmou, nós
aplicaremos a Constituição do nosso jeito, antes de rasgá-la e atirá-la no fogo”. Saúdam-no “em
nome da pátria que os grandes senhores insistem que também pertence a nós”.
No centro da reportagem, uma imagem de madame Odile Saint Fleur ao lado de seus quatro
filhos. Grávida, com braços repousando sobre os quadris e o rosto, triste e abatido, guarda a
expressão de uma longa espera. Essa imagem, assim como as notas, cartas e declarações, eram
esforços dos moradores rurais em alcançar outros públicos, possibilitando a construção de um
apoio que se realizasse não só dentro das fronteiras nacionais, mas na diáspora. No fim da missiva
endereçada ao ministro, um pós-escrito afirmava categoricamente, “Nós enviamos esta carta à
imprensa no Haiti e também a países estrangeiros”. Ações como esta faziam com que as demandas
camponesas chegassem a outras audiências, circulando junto a relatos de infortúnios e fazendo
com que seus sentimentos, esperanças e desejos fossem ouvidos por diferentes grupos. Uma nova
257

unidade parecia se fazer ver entre todos aqueles que sofreram, efetiva ou virtualmente, a violência
da ditadura.
O impacto dessa circulação ia desde a evidência de que a transição democrática enfrentava
problemas profundos até a produção de uma comunidade política da qual participavam exilados,
vítimas da repressão do Estado, camponeses pobres, tanto no país como na diáspora, dando uma
amplitude maior ao que viviam e ao que imaginavam ser possível como futuro. Ao falarem de si
como pobres reafirmando uma noção de coletividade que se estabelece pelo sofrimento,
colocavam-se em oposição aos burgueses e grandes senhores que, mesmo insistindo que a “pátria
(...) também pertence a nós”, eram os únicos “que possu[íam] direitos neste país”. Ao mesmo
tempo, viam para si a possibilidade de conseguirem terras por meio de rebeliões e ao “aplicarem a
constituição do [seu] jeito”, fazendo recurso a tradições de revolta e a repertórios de violência. Se
camponeses e as classes populares haviam sido sistematicamente ostracizados da política estatal e
das formas de participação e cidadania desde os momentos iniciais de formação do Estado-nação,
surgia diante de si uma nova possibilidade de questionarem essa ordem.
No entanto, menos do que uma configuração atemporal, tal horizonte de expectativas
surgiu numa interação dialógica com o próprio Estado, na figura de um jovem médico e etnólogo
cuja campanha se centrava na reafirmação de um sofrimento comum e na ideia de que a
participação dos camponeses na política nacional era não somente algo possível, mas um
imperativo. François Duvalier, ao subir ao poder, falava diretamente aos desafortunados,
prometendo-lhes um lugar no que ele definia como uma nova revolução. Sobre isso, o historiador
David Nicholls (1996 [1979]) é enfático: “Talvez, o resultado mais significativo da revolução de
Duvalier será o sentido que foi dado às massas camponesas de que elas eram realmente cidadãs e
de que o que elas faziam era importante” (p. 237). As cartas aqui analisadas e os relatos que colhi
em Milot confirmam tal hipótese. Como continua Nicholls, “Se ao povo é dito com a frequência
necessária que ele é importante, é possível que ele comece a acreditar” (idem). Nesse ponto, a
chave para entendermos o significado das ações dos camponeses e da revolução parece estar
exatamente no modo como François Duvalier foi ampliando sua base de apoio a partir de uma
leitura específica sobre a cultura e a sociedade haitianas, tomando o vodu como a expressão de um
espírito nacional e produzindo uma nova historicidade na qual passado e presente colidiam por
meio de um novo momento histórico: a “Revolução Duvalierista”. Estabelecia-se, com isso, um
novo repertório de enunciados e ações e uma arena simbólica e prática dentro da qual as condições
258

de possibilidade da participação política – e, no limite, das revoltas e contestações – teriam que


ocorrer.

Um ser imaterial
Caracterizações acadêmicas sobre o período Duvalier tendem a confirmar um senso
comum sobre a ditadura, destacando o terror e a repressão como as formas principais de governo.
Muitas dessas representações acabam por exotizar e racializar o regime, retratando-o como um
momento excepcional no qual uma massa de iletrados, pobres e politicamente desorganizados foi
sujeita aos desmandos autoritários de um déspota negro. “Jornalistas estrangeiros e acadêmicos
em busca de bufões exóticos”, argumenta Trouillot (1990), “entretinham-se ao pintar François
Duvalier como um louco incoerente, um Ubu negro, um Calígula tropical que despejaria
quantidades imensuráveis de nonsense a qualquer hora” (p. 192). Se é fato que a violência assumiu
ares de paroxismo e que rumores e segredos davam contornos totalitários ao seu governo, uma das
propostas mais radicais de François Duvalier desde sua campanha presidencial foi assumir um
discurso pró-camponês no qual sua principal promessa era a de torná-los efetivamente sujeitos
políticos da nação, interagindo com os significados locais de poder e seus condicionantes. Sua
formação como etnólogo, as campanhas de que participou como médico nas regiões rurais e seu
apreço pela história foram centrais para sua ascensão ao poder. Para entendermos melhor como
isso se deu, é preciso levar em conta que o momento político que cria as possibilidades para a
eleição de François Duvalier, em 1957, é caudatário de um arranjo político e social forjado
exatamente no período da Ocupação Americana (1915-1934).
Interessados tanto no controle financeiro de partes do Caribe, quanto no exercício e na
demonstração do poder imperial, afastando a influência europeia na região, a Ocupação Americana
transpôs ao Haiti práticas de repressão e controle de populações negras já aplicadas por leis
segregacionistas no sul dos EUA (Plummer, 1991; Ramsey, 2011, cap. 3; Hudson, 2018).
Treinando e gradativamente imprimindo uma centralidade ao Exército nacional haitiano, um dos
objetivos da Ocupação, como mostra Chochotte (2017), era suprimir tradições populares de
insurgência armada que se desenvolveram durante a Revolução Haitiana e que serviram ao longo
dos anos como forma de reivindicação e negociação de camponeses e mercadoras pobres frente a
governantes e elites urbanas. Se, como nota Nicholls (1996 [1979]), “do período revolucionário
(1789-1803) até a ocupação dos Estados Unidos (1915-1934), um grande número de haitianos
259

possuía armas de fogo” (p. 167), foi através de campanhas contra grupos camponeses armados,
organizados ou não, que os marines junto do Exército haitiano conseguiram desarmar a população
em geral. Ao mesmo tempo, por meio da construção de prisões e campos de trabalho forçado, as
forças de ocupação reavivaram o aparato legal haitiano formulado durante o período pós-
emancipação – como as leis antivadiagem e a corveia – e utilizaram-no para deter milhares de
camponeses transformando-os em trabalhadores cativos, muitos deles tendo sua força de trabalho
submetida a regimes de cessão e aluguel (Chochotte, 2017, p. 6). “Essas medidas norte-
americanas”, destaca Chochotte comparativamente, “funcionaram para controlar a população e
manter sob vigília uma sociedade rebelde. Previamente livres, camponeses haitianos sob a
Ocupação americana compartilhavam agora a experiência de repressão racial e restrição da
mobilidade com outras pessoas de descendência africana no Atlântico negro” (idem).
Duvalier tinha 8 anos quando os marines estadunidenses desembarcaram no país em 28 de
julho de 1915. Filho de um juiz de paz e professor de ensino fundamental e de uma mãe cuja
biografia é envolta de mistérios e silêncios, ele cresceu marcado pelas histórias e cenários de um
país ocupado289. Estudante de medicina e vivendo na capital, Duvalier era parte de um grupo de
jovens nacionalistas que escreviam poesias e ensaios em colunas de periódicos louvando os
camponeses, exaltando a rebelião popular e criticando a Ocupação e as elites letradas. Em 28 de
junho de 1934, alguns meses antes do fim da Ocupação, Duvalier publicava no jornal L’Action
National a seguinte elegia sob o notável pseudônimo de Abderrahman290 (Duvalier, 1969, p. 18):

Apagam-se as estrelas… S’éteignent les étoiles...


O céu se veste como para uma cerimônia fúnebre Le ciel se pare comme pour une funèbre cérémonie
No anoitecer, o Assotor geme... Dans le soir l’Assotor gémit…
E eu penso em vós, Péralte, Batraville, cujo sangue Et je pense à vous, Péralte, Batraville, dont le sang
verteu-se em defesa do país dos ancestrais. Eu coula pour la défense du pays des Ancêtres. Je
penso, ó! Sim, em vossas tumbas frias abandonadas pense, oh! oui, à vos tombes froides abandonnées
em algum canto da floresta, sob os espinheiros e os en quelque coin de la brousse, sous les ronces et

289
Alguns autores afirmam que a mãe de Duvalier era empregada em uma padaria, havendo passado uma parte de sua
vida em um manicômio. Dos documentos e livros de Duvalier que consultei, apesar da profusão de dedicatórias, ele
não a menciona em nenhuma delas, sendo que a figura predileta de suas homenagens era seu pai. Para uma discussão
sobre os mistérios e segredos em torno da genealogia de François Duvalier, ver Jean-Philippe Belleau (mimeo).
290
Abd-al-Rahman foi um califa muçulmano do sul da Espanha que no século X fundou a escola de medicina de
Córdoba (Dubois, 2012, p. 320).
260

arvoredos. Eu penso, o coração aflito, nessa les halliers. Je pense, le cœur navré, à ce linceul
mortalha do esquecimento onde vos sepulta a d’oubli où vous ensevelit l’ingratitude de ces
ingratidão desses que se aproveitam (sempre) de Profiteurs (et de toujours) de vos héroïques
vossos heroicos sacrifícios. sacrifices.
Possa ser, ó mártires do ideal dos Pais, esta Puisse être, ô martyrs de l’Idéal des Pères, ce
lembrança dolorosa de um filho do país real, um souvenir douloureux d’un fils du pays réel, un
consolo a vossas almas enfurecidas! apaisement à vos mânes courroucés!

Fazendo referência a líderes rebeldes que resistiram abertamente à Ocupação, como


Charlemagne Péralte e Benoît Batraville, considerando-os patriotas “cujo sangue correu em defesa
do país dos Ancestrais”, Duvalier os retratava como mártires do ideal dos pais fundadores da
nação, criando uma sobreposição temporal entre a Revolução Haitiana e resistência à Ocupação291.
O jovem estudante falava também de um instrumento musical que gemia em uma noite sem
estrelas. Assotor (ou asòtò, na grafia contemporânea) é o conjunto de tambores que embalam as
cerimônias de culto Rada, feitas em chamado a espíritos que são parte das herdanças familiares292,
Como mostra a antropóloga Kate Ramsey (2011, cap. 3), durante os anos da Ocupação, um
conjunto de técnicas cerimoniais, saberes e modos de se relacionar com espíritos, representadas
no Código Penal haitiano como sortilèges (feitiços) ou vaudoux (“cultos populares”), adquiriu o
estatuto de religião nacional, assumindo a grafia anglófona voodoo e sendo alçado a símbolo de
um atraso que, em grande medida, justificava a própria intervenção estrangeira. Narrativas
descrevendo cerimônias e testemunhos exotizantes de práticas populares ganhavam popularidade
entre audiências estadunidenses a partir da publicação, em livros e jornais, de relatos romanceados
de marines e viajantes que passavam pela ilha293. Ao exaltar esse tambor que embalava a cerimônia

291
Péralte fez parte das guerrilhas armadas, conhecidas como cacos, que resistiam à Ocupação particularmente na
região de Hinche. Após ser capturado e morto seu corpo foi fotografado por um marine e a imagem distribuída pelo
país por diversos meios, inclusive em aviões. Se o objetivo original era desestimular as revoltas retratando um líder
capturado e abatido, o efeito obtido foi justamente o contrário e Péralte acabou se tornando um mártir da resistência
aos ocupantes. Na foto, seu corpo está de pé, amarrado a uma prancha de madeira envolta em uma bandeira haitiana,
com o torso desnudo e portando somente um lençol na cintura, evocando a imagem de um Cristo crucificado. Sobre
os cacos, pode-se consultar os trabalhos de Roger Gaillard (1982, entre outros). Ver também Chochotte (2017, pp. 60-
61 et passim). Para uma reprodução da imagem ver “An iconic image of haitian liberty”, The New Yorker, 28 de julho
de 2015, disponível em: https://www.newyorker.com/culture/photo-booth/haiti-u-s-occupation-charlemagne-peralte
(acesso: 20/05/2018).
292
Sobre os cultos Rada, ver nota 189.
293
Alguns exemplos são: “The magic island” (1929), de William Seabrook, “The White king of La Gonave” (1931),
do tenente Faustin Wirkus, “Black Bagdad” (1933), de John Craige, além de filmes como “White zombie” (1932), o
261

fúnebre velando as tumbas dos insurgentes – “abandonadas em algum canto da floresta”, como o
próprio corpo de Charlemagne Péralte – o jovem François Duvalier buscava conferir um outro
lugar às práticas rituais e às cerimônias populares.
Quando estudante do prestigioso Liceu Alexandre Pétion, nos anos 1920, Duvalier havia
sido aluno de Dumarsais Estimé, um professor de origem provinciana e representante típico da
nova classe média negra do país, e do antropólogo e ensaísta Jean Price-Mars (Diederich e Burt,
1986 [1979], p. 44), cuja obra Ainsi parla l’oncle (“Assim falou o tio”), publicada em 1928, no
auge da Ocupação, havia se consagrado como uma referência da luta anticolonial, criticando
explicitamente uma elite alienada que vivia sob uma condição de “bovarismo coletivo”,
privilegiando uma ascendência francesa ao mesmo tempo em que negavam as heranças africanas
e as práticas e costumes dos camponeses294. O livro de Price-Mars era também um elogio ao vodu
e ao crioulo como formas legítimas de um “espírito da raça” (génie de la race) e acabou por tornar-
se o símbolo do nascente modernismo haitiano que se organizava em torno de diversas revistas
literárias, entre as quais a Revue Indigène, fundada em 1927 por jovens nacionalistas como Jacques
Roumain, Carl Brouard, Antonio Vieux, Normil Sylvain e Philippe Thoby-Marclein, que
ganharam notoriedade como o “movimento indigenista” (mouvement indigeniste)295. Não obstante,
ao mesmo tempo em que Price-Mars e outros expoentes do indigenismo valorizavam o “país
profundo” (le pays en dehors), contribuindo para a produção de uma comunidade política em torno
de uma história e de um conjunto de sentimentos comuns, poucas propostas concretas surgiram
para incluir os camponeses na política nacional. Com efeito, no ideário “indigenista”, não era
negada uma certa “vocação das elites” – título de outra importante obra de Price-Mars – em não

primeiro filme sobre zumbis da história, produzido, vale lembrar, em plena Ocupação, e “I Walked with a zombie”
(1941).
294
“Bovarismo coletivo”, metáfora tomada de empréstimo do francês Jules de Gaultier (ver Dash, 2013), é definida
por Price-Mars como “la faculté que s'attribue une société de se concevoir autre qu'elle n'est” (2009 [1928], p. 10).
Falando explicitamente da Ocupação, o autor não esconde os perigos de tal atitude afirmando ser aquela postura uma
“[d]émarche singulièrement dangereuse si cette société alourdie d'impedimenta, trébuche dans les ornières des
imitations plates et serviles, parce qu'alors elle ne parait apporter aucun tribut dans le jeu complexe des progrès
humains et servira tôt ou tard du plus sûr prétexte aux nations impatientes d'extension territoriale, ambitieuses
d'hégémonie pour la rayer de la carte du monde” (idem, grifos meus).
295
Sobre o “movimento indigenista”, ver Dash (1981), Clough (2012) e Perry (2017).
262

somente fornecer uma expressão literária adequada a essa cultura popular, mas em legitimamente
governar o país (D’Ans, 1985, p. 10)296.
Duvalier, por sua vez, apesar de ter assumido o legado de figuras políticas e intelectuais da
“geração ocupação”, como também ficaram conhecidos os intelectuais da época, buscava superá-
los, avançando em teses psicobiológicas sobre a formação social do país (Hurbon, 1979). Em 1938,
junto com Louis Diaquoi e Lorimer Denis, o jovem médico fundou a revista Les Griots, cujo título
tomava de empréstimo a palavra francesa que define os trovadores e poetas da África Ocidental.
Declarando-se influenciados por duas iniciativas anteriores, a Revue Indigène e a obra Ainsi parla
l’Oncle, de Price-Mars, as ideias da “escola dos Griots” (l’école des Griots) debruçavam-se sobre
o que intelectuais e políticos, desde o século XIX, denominaram como “questão de cor” no país
(question de couleur), dando a ela contornos fortemente nacionalistas que, diferente do
indigenismo, lia a história e a sociedade haitianas como derivadas essencialmente de tensões
raciais e étnicas. “[O] eixo de nossa ação”, escrevem Lorimer Denis e François Duvalier no
segundo volume da revista Les Griots, “esteve constantemente orientado no sentido de uma
descoberta metódica dos elementos bio-psicológicos que, por antecipação ao processo biológico,
apressam a fusão indispensável ao florescimento do espirito haitiano (génie haïtien) em todas as
ordens da atividade humana”297. Tomava forma um novo movimento que se assumia publicamente
como noirisme.
A partir da retomada de uma tradição ensaística afro-americana de antirracismo, os
noiristas se assumiam como intérpretes de um mundo social regido por uma realidade biológica
de divisões e hierarquias raciais. Nesse ponto, o noirisme se distanciava de autores universalistas
como Anténor Firmin e se pautava em um racismo científico, aproximando-se das teses do conde
Arthur de Gobineau298. Assim, partidários do noirisme, como o próprio Duvalier, invertiam o
modelo evolutivo ao rejeitarem o eurocentrismo e as noções de supremacia branca, ao mesmo

296
Para um debate sobre a construção desse campesinato como imagem literária, ver o artigo de Stieber (2016). Sobre
as elites haitianas e seu sentido de missão, ver Thomaz (2013).
297
Les Griots. Revue Scientifique et Littéraire d’Haïti, vol. 2, n. 2, Porto-Príncipe (Haiti), p. 153. Arquivo da
Bibliothèque des Frères d’Instrution Chrètienne (BFIC), Porto-Príncipe, Haiti.
298
Em janeiro 1936, por exemplo, Duvalier publicava um artigo no jornal Le Nouvelliste intitulado “Em que o estado
da alma do Negro se diferencia do Branco?”. A resposta, ele afirma, está no “próprio conde de Gobineau, em seu vasto
sistema demográfico, [no qual ele] lançou princípios que se mantém, [como as] leis de hereditariedade ancestral [que
fazem com que] traços específicos dos ancestrais da mais distante linhagem se encontrem intactos no psiquismo dos
descendentes” (citado em Hurbon, 1979, pp. 92-93).
263

tempo em que faziam leituras essencialistas sobre a noção de raça, pautadas por trabalhos de
antropólogos estrangeiros, e defendiam a dimensão natural da liderança política de uma elite negra
em razão de um conjunto de traços biológicos e de conexões culturais com a massa de camponeses.
Os trabalhos etnográficos que publicavam na revista Les Griots e em outros periódicos traziam
descrições e reflexões sobre rituais e práticas tradicionais que, conforme observa Laënnec Hurbon
(1979), “visarão promover, na verdade, não a cultura popular, mas uma espécie de voyeurismo em
face dessa cultura” (p. 99, grifos meus). Ademais, como resume o antropólogo Paul Johnson
(2006),

Duvalier’s own articulations from the 1930s to 40s should be seen as part of an
international movement comprised of on one hand noirisme, a black solidarity movement,
and on the other indigenism, the inversion of the presumed negative valences of racial
miscegenation to forge nation-building sentiments. (…) While noirisme indigenized
national identity in close proximity to notions of national and racial essences, spiritualizing
national ‘destinies’ in relation to specific peoples’ ‘core qualities’, national indigenism was
based on the idealization of miscegenation (taking cues from Boas, Weber, and Herskovits,
among others), and sought to unhinge culture from essentialist notions of race. Both were
anti-colonial in tenor and premised on the dissimilarity of the Americas from Europe and
European models, but Duvalier’s approach was rooted in the older, evolutionary model
now inverted to place blackness at its pinnacle (…). Nation, race, and religion were
authentically and essentially fused through Vodou. What remained to be done was to make
the State the legitimate expression of that essence299 (431n8, grifos no original).

Com efeito, a eleição de Dumarsais Estimé, em 1946, foi lida por participantes e
testemunhas como uma vitória do “poder negro” sobre o domínio “mulato”, ganhando o nome de
“Revolução de 1946” (Trouillot, 1990, pp. 108-109). Como médico, Duvalier percorreu regiões
rurais do país entrando em contato com a situação geral e o sofrimento de camponeses socialmente
excluídos e politicamente marginalizados. Algumas pessoas mais velhas de Milot me contaram

299
O autor segue esboçando uma análise importante que conecta o Haiti a outros contextos caribenhos e latino-
americanos. Em suas palavras: “In this latter sense, we might in certain respects compare Price-Mars’ work and
Duvalier’s writings to those of Fernando Ortiz in Cuba and Gilberto Freyre in Brazil. All marked and articulated
national distinctions precisely in their non-Europeanness and their rejection of evolutionary models of race. Yet the
two movements — noirisme and indigenism — also stand in marked tension.” (431n8, grifos no original).
264

sobre um médico que percorria os povoados rurais dando injeções e tratando doenças endêmicas.
Nas palavras de Disseigneur Thélusma, um senhor de idade já avançada que havia sido miliciano
na época de Jean-Claude Duvalier e que atualmente trabalhava no posto de turismo em frente ao
Palácio Sans Souci: “Havia uma doença chamada pyan [bouba, em português] e outra chamada
krab [não encontrei a correspondente] que começava na planta dos pés e depois subia para o corpo
todo. Foi Duvalier que desapareceu com essas doenças e ele não o fazia por dinheiro, ele dava
remédios e injeções, tudo de graça”. As incursões médicas de Duvalier lhe garantiram prestígio e
reconhecimento pelas regiões rurais do país. Ou, como conclui Thélusma, “foi isso que fez o
senhor se tornar presidente”300.
Além desse contato com a realidade camponesa no país, dois episódios dramáticos foram
também formativos da consciência nacionalista de parte daquela geração. Em 1937, notícias sobre
um massacre de haitianos na fronteira com a República Dominicana começaram a circular primeiro
como rumores e depois estampando a capa de jornais do país e da região. Um mundo de trocas e
trânsitos havia sido destruído e em seu lugar surgia um projeto nacional, de fronteiras bem
definidas, encabeçado pelo então ditador Rafael Leonidas Trujillo, no qual o vodu era retratado
como um elemento de poluição negra no corpo social dominicano (Derby, 1994; Turits, 2002).
Somado a isso, em 1941, a Igreja Católica, à época dominada por um clero estrangeiro, com o
apoio do governo de Élie Lescot e de forças policiais, colocou em prática as “campanhas
antissuperstição”, popularmente conhecidas como larenons (lit., renúncia), nas quais perseguições
religiosas, destruição de artefatos e pilhagens contra templos e santuários familiares ou coletivos
tomaram conta do país (Ramsey, 2011). É nesse período que o antropólogo suíço Alfred Métraux
(1995 [1958]) desembarca em Porto-Príncipe e descreve a cena que o marcou para o resto de sua
carreira: uma “enorme pirâmide de tambores e de ‘objetos supersticiosos’ (...) esperando o dia

300
Divalye se yon doktè li te ye. Li te gen yon maladi yo te rele pyan. Ak yon lòt maladi yo te rele krab. Anba plant
pyè li te komanse krab la. Li te kon vini nan tout kò a ou. Se Divalye ki te disparèt ak maladi sa yo. Li pa te okipe pou
lajan, bay yo renmèd e piki, tout gratis. Se sa ki fè mesye a vin prezidan. Inúmeras vezes durante meu campo tentei
conversar mais detidamente com senhor Thélusma. Ele era o único miliciano (ou tonton makout) de Milot ainda vivo
e sempre que nos encontrávamos ao chegar ao assunto dos anos da ditadura, ele me pedia que fosse atrás de um
documento assinado na prefeitura que exigisse que ele falasse. (Algo que não deixei de tentar, mas acabei sendo
solenemente ignorado pelos funcionários da prefeitura). Foi só em minha última viagem a Milot, em maio passado,
que ele pôs-se a falar de modo mais aberto sobre o tempo em que era miliciano. Como Thélusma afirmou naquela
conversa, “eu era chefe da milícia, mas eu era um chefe pela paz não pela guerra”, adicionando que “se eu não fosse
bom, eu não estaria aqui”. O caso de Thélusma revela o quão complexa era a posição de miliciano e as tensões entre
as lealdades locais e aquelas referentes ao regime, como discutirei mais à frente.
265

marcado para um solene auto-de-fé” (p. 13). Métraux sentiu-se motivado a empreender uma
“etnografia de resgate” (Laurière, 2005), discutindo com intelectuais locais, como Jacques
Roumain, a possibilidade de criação de uma instituição de etnologia nos moldes do que o próprio
Métraux havia dirigido em Tucumán alguns anos antes (D’Ans, 2004; Clough, 2012; Bulamah,
2017).
Em 1944, Métraux retornou ao Haiti e encontrou um Bureau d’Ethnologie em plena
atividade, hospedando uma coleção de objetos que conseguiram ser salvos, fazendo pressão contra
as “campanhas antissuperstição” e compondo uma rede na qual circulavam sacerdotes do vodu,
intelectuais e iniciados, como Odette Mennesson-Rigaud, e etnólogos, entre os quais François
Duvalier. Jacques Roumain havia falecido alguns meses antes e, após um período com Jean Price-
Mars exercendo a função de diretor do Bureau, Lorimer Denis, amigo de Duvalier dos tempos da
revista Les Griots, assumiu o cargo. Foi um momento frutífero para o médico e etnólogo que
publicava estudos sobre a cultura e a sociedade no periódico oficial da instituição, muitos deles
escritos a quatro mão com Denis. Nesses escritos, o vodu aparecia como a expressão principal de
um caráter e de uma psique haitianos, reafirmando a centralidade da raça enquanto fato biológico
e distanciando-se, por isso, das propostas universalistas do indigenismo e do próprio Price-Mars301.
Numa resenha crítica ao trabalho de Jacques Roumain sobre o tambor asòtò, publicada em finais
de 1943, Duvalier expressa suas diferenças com relação ao que propunha o intelectual indigenista
tanto em seu método etnográfico, que valorizava a descrição e observação de fatos concretos,
quanto em sua proposta teórica. Dizendo-se pertencente à “escola histórico-cultural de Léo
Frobénius”, Duvalier conclui sua resenha lamentando que “o quadro de algumas notas não nos
permite (...) reunir todos os dados simbólicos (...) em vista de tentar identificar a elevada
significação metafísica de Assoto(r) e de seu culto” (Duvalier, 1968 [1943], p. 206; Dayan, 1995,
pp. 125-126).
Com a eleição de Estimé ao cargo executivo, o então presidente convidou Duvalier a fazer
parte de seu governo, ocupando inicialmente a cadeira de diretor de saúde pública até chegar ao
posto secretário do trabalho e da saúde, em 1949. Possivelmente, acompanhar Estimé de perto fez
com que Duvalier percebesse o quão frágil poderia ser um governo em um país no qual o Exército

301
Price-Mars, expoente do indigènisme, manteve uma postura ambígua com relação ao noirisme. Sendo a figura de
referência da “escola dos Griots”, ele aparecia constantemente em homenagens e nos editoriais da revista. Sua postura
com relação à “questão de cor” foi marcada como distinta apenas indiretamente, numa resposta a René Piquion, mas
nunca em confronto direto com Duvalier e Denis (ver Dash, 2013).
266

tinha prerrogativas e poderes suficientes para controlar e manter os governantes sob cerco,
depondo-os caso julgassem necessário, como foi o próprio caso de Estimé, forçado ao exílio em
1950 após um golpe de estado encabeçado pelo general Paul Magloire.
Os anos seguintes viram uma explosão da ajuda internacional e uma presença cada vez
maior de missionários. Como nota Trouillot (1990), falando desses anos dourados, “[a]s grandes
realizações da década de 1946-1956 são, em realidade, o resultado direto do crescimento da ajuda
internacional. O Haiti tornou-se um país de projetos para inúmeras organizações internacionais,
governamentais e privadas”302 (p. 140). O crescimento econômico levou Paul Magloire a estampar
a capa da revista estadunidense Time, portando um reluzente traje militar e um bicórneo,
acompanhado da manchete “Presidente do Haiti, Paul Magloire. Sua magia negra: estradas,
barragens e escolas”303. O turismo ganhava proporções importantes a tal ponto que, em 1958,
Métraux (1995 [1958]) chamou a atenção para uma “Porto-Príncipe [que] se transforma[va] em
um grande centro turístico”. “Cada americano que desembarca nesta cidade”, continua o relato,
“possui apenas uma palavra à boca: ‘vodu’, e apenas um desejo, o de ver estas cerimônias que eles
imaginam serem cruéis e orgiásticas” (p. 47). Antropólogos e antropólogas estrangeiras, como o
próprio Métraux, além de Maya Deren, Harold Courlander, Katherine Dunham e Melville
Herskovits também dividiam a responsabilidade em tornar o vodu um elemento de consumo de
grandes audiências, com trabalhos etnográficos que engordavam prateleiras ao lado de romances,
relatos de viagem e filmes.
Duvalier, membro de um gabinete de governo recém-deposto, manteve-se alheio à cena
pública, distanciando-se inclusive de sua própria família, debruçando-se sobre leituras, entre as
quais sua preferida era “O Príncipe de Maquiavel”. Em 1956, o próprio Magloire foi forçado ao
exílio após recusar-se a deixar o poder, lançando o país em uma onda de caos e governos
temporários. Eventualmente, as eleições presidenciais foram marcadas para o ano seguinte e
Duvalier havia decidido se tornar candidato (Dubois, 2012, pp. 323-325). Assumindo a postura de
um herdeiro político de Dumarsais Estimé, sua campanha percorreu regiões de província, em busca

302
Como continua o autor: “The parade of acronyms began in 1946: UNESCO, WHO [OMS] and other branches of
the UN, IIAA (Institute of Inter-American Affaires), Point IV (Technical Assistance to Underdeveloped Countries)
and other U.S.-dominated programs, as well as number of health and economic ‘missions’, burgeoned into a presence
whose indispensability would become obvious only later” (p. 140).
303
Time, 22 de fevereiro de 1954, disponível em https://content.time.com/time/covers/0,16641,19540222,00.html
(acesso 11/04/2018).
267

de apoio de camponeses e moradores de pequenos centros urbanos. Não espanta que, exatamente
pelo seu papel como médico, Duvalier tenha conseguido uma imensa margem de votos nas
províncias enquanto em Porto-Príncipe ficou em segundo lugar. O recente trabalho de Marvin
Chochotte (2017) avalia de modo detido o percurso eleitoral de Duvalier, trazendo à tona que não
foi com um discurso noirista, explorando tensões de raça e cor, que o então candidato conseguiu
somar apoio entre camponeses e moradores rurais. Sua postura eleitoral reafirmava, com efeito,
muito mais um conflito de classes sob o guarda-chuva de uma noção de “justiça social” (justice
social), aproximando-se da postura marxista de Jacques Roumain (ver também Clough, 2012).
Ao assumir a presidência, Duvalier iniciou logo de saída a perseguição a opositores, de
políticos a jornalistas, aproveitando-se de uma fragilização do Exército que se via à época dividido
por conflitos faccionais (Chochotte, 2017, pp. 89-90). Confiscando terras de perseguidos políticos,
como a família do ex-presidente Magloire, e distribuindo-as a camponeses, Duvalier reforçava
uma estratégia populista de criação de lealdades entre comunidades rurais, ao mesmo tempo em
que falava diretamente aos camponeses em seus discursos, enfatizando sempre o infortúnio e a
miséria e a necessidade de mudanças304 (idem, pp. 90-91). Não escapava à vista do então presidente
que o Exército tinha uma relação violenta e abusiva frente aos camponeses, o que deitava raízes
no período da Ocupação Americana, quando incursões foram promovidas a fim de disciplinar o
campesinato haitiano, desarmar a população em geral e colocar em cheque as insurgências
populares. Mais uma vez, é Chochotte (2017) quem melhor resume essa trama:

By eliminating popular insurrections, which previously checked state power, the army
subsequently developed into a powerful institution beyond challenge. In the post-
occupation period, the supreme power of the military certainly manifested not only in the
suppression of peasants, but also in how the army meddled in state politics, forcing almost
every head of state out of power up until the election of Duvalier. With a soldiery

304
A questão se Duvalier falava publicamente em crioulo ou em francês é pertinente aqui. Para as pessoas mais velhas
com quem conversei em Milot, não havia consenso. Nas publicações de seus discursos, algumas trazem os
pronunciamentos originais em francês, seguidos de uma tradução para o crioulo. Sobre isso, Hurbon (1979) faz a
seguinte reflexão: “Dans quelle mesure les classes populaires se sont-elles senties concernées par le discours
duvaliériste? Ces discours en français, on le pressent déjà, ne peut viser à transmettre un message quelconque aux
masses ‘créolophones’ et analphabètes (…). Ce discours n’est pas pour autant dépourvu d’efficacité. On peut, sans
exagérer, le comprendre comme une véritable liturgie: la mise en scène d’un intellectuel noir parlant français et
capable de faire la preuve de cette compétence intellectuelle auprès des Mulâtres et de l’étranger, donc capable de
représenter les masses noires” (p. 87, grifos meus).
268

comprising five thousand soldiers and five hundred chef de sections [autoridades locais],
the army had an unrivaled national monopoly over national force that transcended the
influence of other political state institutions including the executive (p. 112).

Para contrapor-se ao poder do Exército, Duvalier o enfraquecia por meio de perseguições


e do estímulo a conflitos internos ao mesmo tempo em que armava gradativamente a população
através da criação de milícias populares. Uma tentativa de golpe de estado, em particular, parece
ter levado Duvalier a elaborar mais claramente sua proposta de estabelecimento de uma força civil
para contrapor-se à preponderância militar. “In 28 July 1958”, destaca Chochotte (2017),

four former military officers and four American mercenaries led a coup d'état and occupied
the military headquarters that stood directly across from the National Palace. In response,
the regime distributed arms to about two hundred urban denizens in the capital to defend
against the rebel attack on the military headquarters. Quoting a French political scientist,
Duvalier wrote, “In nations where the tradition of pronunciamientos [military coups] are
strong, such as Latin America, only the constitution of popular militias can prevent
militaries from dominating the state”. Thus, Duvalier created the makout militia that served
to splinter the army's monopoly over force, curb its interventionist tendencies, and
eliminate the intrigue of its disenchanted army officers (pp. 113-114, grifos no original).

Em 1962, Duvalier conferiu uma existência institucional às milícias por meio de um


decreto, nomeando-os “Voluntários da Segurança Nacional” (VSN), revivendo assim a tradição
popular armada com o claro objetivo de fazer frente ao poder do Exército. Para Trouillot (1990),
os milicianos formavam “um exército consentido de voluntários porque, pela primeira vez, eles se
tornavam cidadãos – reconhecidos membros da nação” (pp. 189-190, grifos meus). Em busca de
reconhecimento político e proteção contra abusos do Exército e das chefias locais, milhares de
camponeses se tornaram milicianos ou, como ficaram popularmente conhecidos, tonton makout305.
O trabalho de Chochotte (2017) revela uma rede na qual reciprocidades e compromissos locais
tiveram que se reordenar frente a uma demanda por maior participação política, livrando-se de

305
O nome tonton makout (lit. “tio do saco de palha”) se refere a uma figura folclórica haitiana que, análoga ao homem
do saco, raptava crianças desobedientes, designação precisa que ganhou popularidade entre camponeses que viam seus
parentes, vizinhos e amigos desaparecerem sem razão.
269

antigas relações de dominação ao mesmo tempo em que se abria espaço para outras, já não mais
centrada no Exército, mas, sim, no regime e na figura de Duvalier.
Conforme aponta Hurbon (1979), “o duvalierismo não pode mais aparecer como um
simples despotismo levado ao extremo. (...) [Ele] se faz crer como a própria narração da linguagem
popular, o porta-voz das aspirações e dos desejos das massas, sua reabilitação cultural” (pp. 83-
84, grifos meus). Durante seu governo, Duvalier mobilizava uma rede de segredos estimulando
rumores e fofocas que operavam na apoteose do ditador a partir da confluência de dimensões
rituais, culturais e institucionais (Johnson, 2006). Através de canções, imagens e preces em torno
de sua figura, de temas de carnaval à obrigação de ter seu retrato figurando em “terreiros” (ounfò),
o país, escreve o historiador Claude Moïse, estava saturado com retratos, slogans, pôsteres e
discursos constantemente lembrando as pessoas que Duvalier era um presidente vitalício, o chefe
supremo e a personificação da nação” (citado em Dubois, 2012, p. 344).
270

Imagem 39: “Voodoo temple”, Bryant Slides Collection, University of Central Florida, fotógrafo e localidade
desconhecidos, ca. 1970. Disponível em: www.dloc.com (acesso em 05/04/2018). Destaque às bandeiras do Haiti com o
retrato de de Duvalier.

Em um discurso sombrio pronunciado em 1963, logo após uma tentativa de sequestro de


seus dois filhos, Duvalier manteve-se “mergulhado em uma calma (...) absoluta”, como descrevem
os jornalistas Bernard Diederich e Al Burt (1986 [1979], p. 206). Misturando francês e crioulo e
falando a um público diverso, entre os quais a imprensa estrangeira e membros de corpos
diplomáticos, o então presidente utilizava expressões vulgares e dizia coisas por vezes incoerentes.
Afirmava “simboliz[ar] a terra dos ancestrais” e dizia ser ele a própria “pátria”. “Os que desejavam
destruir Duvalier desejavam destruir a mãe pátria” (idem). Criando uma conexão direta entre seu
governo e a “tradição instaurada por Dessalines e por Toussaint Louverture”, ele continuava:

Je vous adjure, Haïtiens, d’élever votre âme jusqu’aux hauteurs où planent les esprits
ancestraux et de prouver que vous êtes des hommes… (…) et laissez couler le sang de
271

Dessalines dans vos veines… (…) En qualité de président de la république d’Haïti, je suis
ici aujourd’hui pour maintenir la tradition instaurée par Dessalines et par Toussaint
Louverture… Je suis déjà un être immatériel (idem, p. 207, grifos no original)

Duvalier lançava mão de símbolos, ancestrais e forças invisíveis de modo exemplar,


cultivando um “nacionalismo heroico” (Célius, 2004) que, ao retomar particularmente a figura de
Dessalines, tomava para si a herança de um projeto de nação e colocava a população numa relação
de dívida não só com esse ancestral, mas com o próprio Duvalier.
Uma série de rumores começaram a surgir, muitos cultivados direta ou indiretamente por
ele, por seu gabinete e pelas forças policiais e paramilitares que o apoiavam. De relatos de
cerimônias e sacrifícios realizados dentro do Palácio Nacional ao cuidado com os trajes, portando
óculos escuros e roupas pretas, remetendo-se à figura de Baron Samedi, o espírito dos mortos, tudo
ganhava ares de uma notável espetacularização estética, mágica e política. Com efeito, diversos
autores questionaram a validade do uso desses poderes, afirmando estar ela mais próxima de uma
manipulação interessada do que de um interesse legítimo (Bastien, 1966, p. 59; Dayan, 1995, p.
39). No entanto – e Johnson (2006) o argumenta de modo convincente – a maneira como Duvalier
fomentava a circulação de rumores “torna seu envolvimento real ou suposto com o vodu, e, do
mesmo modo, sua ‘real crença na’ versus o mero ‘uso da’ religião, questões, no limite,
inacessíveis”306 (p. 427). Mais do que isso, eu adicionaria, Duvalier materializava presenças, signos
e poderes dentro de uma nova historicidade na qual tais agências participavam ativamente na
construção do próprio Estado, da política e do nacionalismo. Fosse publicamente em seus
discursos, fosse em seus escritos de etnologia, o vodu era inseparável da história do país.

306
Muitos dos que afirmam o uso mercenário do vodu por parte de Duvalier o fazem já levando em conta sua deriva
ditatorial. Relatos anteriores sobre sua aproximação e seu interesse pelo vodu durante seu período formativo e em sua
campanha política carregam menos um tom de denúncia e chegam mesmo a expressar certa simpatia. Métraux (1995
[1958]), por exemplo, afirma, à época, que a aproximação de Duvalier com o vodu foi utilizada como categoria de
acusação durante a corrida eleitoral de 1957: “Au cours des troubles politiques qui se sont produits pendant l’année
1957, l’accusation de vaudouisme a été portée contre le Dr. François Duvalier, candidat à la présidence et ancien
directeur du Bureau d’Ethnologie. Ce politicien s’étant en effet beaucoup intéressé au vaudou et ayant publié divers
articles sur ce sujet, il n’en fallait pas plus à ses adversaires pour le sacrer grand hougan” (p. 46, grifo no original). A
postura do então candidato à presidência contra as “campanhas antissuperstição” da Igreja Católica foi também
retomada quando, por exemplo, candidatos rivais pediam aos eleitores para vote katolik, “votarem em católicos”,
assinalando a aproximação de Duvalier com a feitiçaria (ver Dubois, 2012, p. 332).
272

Mais de dez anos antes de ser eleito presidente, Duvalier publicou um ensaio, escrito em
conjunto com Lorimer Denis, sobre a evolução histórica do vodu. O texto, de título “L’évolution
stadiale du vodou”, saiu na terceira edição do periódico do Bureau d’Ethnologie, em 1944, e este,
como outros textos, foram republicados em diversas coletâneas ao longo de seu governo que
incluíam trabalhos acadêmicos, poesias nacionalistas, textos de juventude, confissões e memórias;
muitos deles reclassificados retroativamente como “elementos de uma doutrina”, nome do
primeiro volume de suas Obras Essenciais, publicado em 1968. O mesmo ocorria com seus
discursos públicos e pronunciamentos oficiais. Duvalier, de fato, esforçava-se em se consagrar
como intérprete da cultura e utilizava-se de publicações como formas de difusão de suas ideias,
reafirmando seu poder como líder e símbolo da nação. O fato de ter tido uma formação como
etnólogo lhe garantia conhecimento e legitimidade (ver Hurbon, 1979). No texto em que analisa a
evolução do vodu, especificamente, os escritores Duvalier e Denis (1944) relatam o encontro com
um poderoso espírito:

Je tressaillis de stupéfaction quand, ce soir du 24 Décembre au cours d’un service en


l’honneur du Tout-Puissant Pétro, le dynamisme émotionnel parvenu à son paraxysme
(sic), la personnalité du Hougan chavira dans l’hypnose et que surgit des profondeurs de
sa conscience: Dessalines l’Emperator. C’était vraiment, Lui, le visage farouche, la
physionomie fanatique, et tout le corps sculpté en un geste de vengeur. Puis il enfourcha
deux hommes comme pour mieux cambrer dans sa pose de Chevalier sans peur et sans
reproche et que contemple l’Afrique Immortelle (p. 24, grifos meus).

Logo no início do texto, os autores evidenciam que o seu trabalho ali era o de realizar “uma
síntese da religião das massas haitianas” (p. 5). Já anunciando uma conclusão, eles afirmam: “o
Vodu é, ao mesmo tempo, um fato religioso e político-social... Ao ponto que não é ousado afirmar
que quanto mais nós penetramos nos mistérios (mystères), melhor a história do Haiti nos revela
seus segredos” (Duvalier e Denis 1944, p. 5). Apropriar-se de forças religiosas e de agências
espirituais (ou mystères) e ancestrais era se apropriar também da própria história – e isso Duvalier
o fazia de modo magistral.
273

Reivindicando o desconhecido
Em 1959, dois anos após a eleição de Duvalier, pôsteres ganharam as ruas de Porto-
Príncipe com aliterações que expressavam uma proximidade notável entre 3 D-s: “Deus, grande
arquiteto do universo; Dessalines, artesão supremo da liberdade; Duvalier, arquiteto de um novo
Haiti” (Diederich e Burt, 1986 [1979], p. 139). Um dos grandes movimentos de Duvalier foi se
apropriar da figura de Dessalines, tornando-o um nativista e assumindo-se como o principal
herdeiro e continuador de suas propostas emancipatórias e anticoloniais. Aos poucos, seu governo,
que se caracterizara inicialmente como um continuador de Estimé, dava um salto maior ao passado,
buscando legitimidade e poder na figura de Dessalines. Katherine Dunham (1969), antropóloga e
bailarina, que conhecia pessoalmente Duvalier, fala da profusão de rumores que circulavam
retratando Duvalier como a “encarnação da essência de Dessalines” (p. 162). “Tais rumores logo
se esvaeciam”, mas Dessalines permanecia “a moldura que enquadrava [Duvalier]” (idem). A data
da morte do general negro havia sido decretada feriado nacional e a celebração ocorria em forma
de cerimônia em Pont Rouge, lugar de seu assassinato. A tumba de Dessalines foi ainda movida
de local, passando a ocupar a região central de Porto-Príncipe, logo em frente ao Palácio Nacional.
Uma chama perene velava seu túmulo e as ossadas de Dessalines, diziam, foram desenterradas e
utilizadas em cerimônias macabras. Somou-se a isso ainda a proposta de uma nova bandeira,
seguindo o modelo da bandeira imperial de Dessalines, com as duas barras coloridas, vermelha e
azul (que simbolizavam historicamente a união entre negros e mulatos), não mais na horizontal,
mas sim na vertical, e o azul sendo substituído pelo preto e passando a ocupar um lugar de destaque
no novo desenho (Dubois, 2012, p. 344; ver imagem acima).
Trouillot (1995) descreve aquele momento como o de uma “overdose histórica” que
afetava pessoas, “reféns complacentes dos passados que criavam”, algo que se aprendia “na
maioria dos lares haitianos no auge do terror de Duvalier, se somente ousássemos olhar para fora”
(p. xviii). O passado era claramente reinscrito em uma nova historicidade que tomava conta de
espaços urbanos e regiões rurais ou como resumiu Lucius Valsan – o antigo morador de Milot a
quem me referi no início do primeiro capítulo – ao falar da expulsão de pessoas do entorno do
Palácio Sans Souci: “Foi com Duvalier que vieram a descobrir que a história é algo que tem
consequências”307. Já em seus escritos anteriores, como no Problèmes des classes à travers

307
Se ak Divalye ke yo vin dekouvri ke istwa se yon bagay ki gen konsekans.
274

l’histoire d’Haïti, redigido também com Lorimer Denis, salta aos olhos uma seletividade na
narrativa histórica, que dava preponderância a alguns personagens enquanto outros eram
silenciados. Henry Christophe, de um lado, era excluído por não se encaixar na narrativa coerente
e transhistórica da exclusão perpétua da maioria negra, seu palácio e sua fortaleza sendo
transformados em meros “aparatos turísticos” por meio de um decreto que expulsava os
camponeses que ali viviam308. Alexandre Pétion, por outro, não figurava nas reflexões duvalieristas
sobre o passado, exatamente por sua política conciliatória de divisão das plantations e de
distribuição de terras que beneficiou soldados de baixa patente e camponeses; tendo sido, dos
primeiros governantes do país livre, o único a morrer em paz após um longo governo. “Esses
detalhes teriam desvirtuado o argumento”, pondera Dubois (2012, p. 322), referindo-se ao ensaio
de Denis e Duvalier:

In any case, the essay was really less about the past than about the future. As Duvalier
launched himself into politics, he realized that the social resentments felt by many dark-
skinned Haitians could be effectively channeled into an invitingly simple political
argument: remove the light-skinned elite, replace them with black leaders, and Haiti would
be saved (idem).

Contudo, sua aproximação com as elites mulatas guardou ares de extrema ambiguidade.
Se sua ascensão foi vista por setores urbanos como o apogeu do noirisme, numa continuidade com
o projeto de Estimé, Duvalier mantinha uma relação estreita com a elite mulata. Questionando o
poder político desse grupo, Duvalier não abria mão do poderio econômico que possuíam. No
casamento de sua filha, em dezembro de 1966, o ritual familiar assumia a proporção de um evento
nacional no qual o paralelismo com a figura de Jean-Jacques Dessalines (ou Jacques I) se
materializava mais uma vez, menos para reafirmar um noirisme do que para propor uma aliança
entre a burguesia mulata e os negros. Evocando “a cena na qual o Imperador Jacques I ofereceu
sua filha em casamento, a princesa Célimène, ao general Alexandre Pétion”, descreve um jornalista
do Le Nouvelliste, Duvalier casava sua filha Nicole com Luc-Albert Foucard, membro de uma
importante família mulata de Porto-Príncipe. “[N]essa união”, continua o repórter, “o símbolo da

308
Le Moniteur. Porto-Príncipe, 7 de agosto de 1961, p. 306. Coleção de periódicos do Arquivo Nacional do Haiti,
Porto-Príncipe.
275

unidade com a qual sonhava o Imperador Jacques I (...) constitui um dos pontos cardinais da
política [duvalierista]”309.
Essa postura de politizar uma consciência étnico-racial se aproxima do que Stanley J.
Tambiah (1997) descreve como um movimento que, em sua diversidade contextual, “se baseia em
um apelo intelectual e, mais importante, emocional a vínculos religiosos, raciais, linguísticos e
territoriais, além de reivindicações mítico-históricas” (pp. 218-219). Em discursos, escritos e
eventos públicos Duvalier se assumia como esse “ser imaterial”, enfatizando o sofrimento coletivo
ao mesmo tempo em que representava a apoteose de um projeto histórico e nacionalista do qual
ele era a expressão maior.

***

No dia 6 de dezembro de 1968, reunidos próximos à praça do Campo de Marte, no centro


de Porto-Príncipe, o então presidente vitalício discursava a um grupo de pessoas durante a
inauguração de uma estátua projetada pelo célebre arquiteto Albert Mangonès. Diante de
estudantes, funcionários de Estado, quadros do Exército e pessoas em geral, a cerimônia teve início
com a chegada ensaiada de um grupo de delegados de escolas e faculdades da capital, seguidos
por um regimento constituído por dois batalhões: um oriundo das Casernas Jean-Jacques
Dessalines, um importante quartel da região central; e outro formado por um grupo de Voluntários
da Segurança Nacional, os tonton makout, que logo ocuparam a tribuna de honra durante o evento.
Naquela manhã de celebrações, o discurso de Duvalier (1969) falava de um homem de Estado que
ao

...decidir esculpir no bronze e no mármore um evento passado, inscreve no metal e na pedra


um fragmento da história e consagra à imortalidade os homens ilustres que marcaram o
destino do seu país ou da humanidade [pela] ambição de ressuscitar os fatos ou os homens
da história vivida, ao lhes oferecer a perenidade sempre renovada da ‘imagem talhada’ (p.
56).

309
“Le mariage de Mlle Nicole Duvalier et de Mr. Luc-Albert Foucard”, Le Nouvelliste, 19 de dezembro de 1966,
citado em “La semaine Dessaline : Le mauvais chemin pris par Haïti dans l’histoire (7 de 7)”, Léslie Péan, Alterpresse,
19 de outubro de 2015, http://www.alterpresse.org/spip.php?article19034#nh10 (acesso: 20/07/2017).
276

A estátua prestes a ser revelada ao público representava o Marron Inconnu, o “quilombola


desconhecido”, cuja imagem agora imortalizada em bronze serviria ainda a “exaltar o sentimento
nacional” e a homenagear “aqueles que, superando a ordinária condição humana, se levanta[ram]
à altura da epopeia para a qual nasce, vive e se desenvolve uma Nação em toda a sua soberania,
sua independência e seu orgulho”. Marrons ou quilombolas, como vimos, foram escravos que
fugiam das plantations em direção aos morros onde encontravam abrigo e, muitas vezes,
estabeleciam comunidades relativamente autônomas (Béchacq, 2006; Fouchard, 1988). Na
homenagem em questão, Duvalier os transformava em heróis nacionais, projetando nessas figuras
uma espécie de “nacionalismo heroico” avant la lettre.
A estátua representava um negro de torso nu com uma perna dobrada à frente e a outra
esticada atrás. Em um de seus calcanhares, uma corrente rompida dá a impressão de uma evasão
recente. O tronco curvo e a cabeça erguida são coroados por uma concha levada à boca por uma
das mãos, enquanto a outra mantém um facão em punho rente ao chão, formando um triângulo
harmônico. Tais homenagens a heróis “desconhecidos”, entre cenotáfios e túmulos, foram
analisadas por Benedict Anderson como os “símbolos mais impressionantes da cultura moderna
do nacionalismo”, carregadas de “imagens nacionais espectrais” (p. 35, grifos no original).
Duvalier já havia se afirmado como o “último dos quilombolas”, em uma publicação de 1967
destinada aos jovens, na qual compila uma série de trechos de escritos seus além de dois discursos,
um deles em comemoração aos dez anos da “Revolução Duvalierista” (Duvalier, 1967). No caso
da estátua encomendada pelo ditador, ela representava tanto o primeiro decênio, caracterizado por
ele como um momento de combate aos inimigos internos e externos, “apátridas associados à máfia
internacional” (p. 44), quanto o decênio que viria a partir dali, um momento de paz social e
“desenvolvimento” (p. 46).
A exaltação do marron inconnu como protótipo do nacionalismo reafirmava também um
inimigo comum que operava contra o corpo social haitiano. Já na metade de seu discurso do dia 6
de dezembro, quando da inauguração da estátua, Duvalier (1969) clama por “VERGONHA
àqueles que rebaixados, subordinados, olvidados das virtudes de coragem e orgulho do
QUILOMBOLA INDOMADO, vão mendigar no estrangeiro o ouro da traição de seus irmãos”.
“A História”, continua o ditador, “sabe e já os relegou o desprezo da Nação” (p. 63, caixa-alta no
original). Denúncias públicas e condenações como esta operavam na produção de uma alteridade
que caracterizava haitianos e haitianas críticos ao regime como “estrangeiros”, “comunistas” e
277

“inimigos da Revolução”, vivessem eles dentro ou fora do país. Quatro anos antes da inauguração
da estátua ao marron inconnu, no dia 12 de novembro de 1964, dois jovens opositores do regime
– Marcel Muna e Louis Drouin, membros do grupo insurgente Jeune Haiti (“Jovem Haiti”),
baseado nos EUA – haviam sido publicamente executados nas paredes do Grande Cemitério de
Porto-Príncipe, a poucas quadras do Campo de Marte. A morte de adversários já tinha se tornado
algo rotineiro, mas aquela era a primeira vez que uma execução ganhava a dimensão dramática de
um espetáculo mediatizado ao vivo em redes de rádio e TV310. A escritora Edwidge Danticat
(2010), refletindo de modo poético sobre aquele episódio de execução, destacou-o como o seu
despertar para a escrita:

Marcel Muna and Louis Drouin were patriots who died so that other Haitians could live.
They were also immigrants, like me. Yet they had abandoned comfortable lives in the
United States and sacrificed themselves for their homeland. One of the first things the
despot Duvalier tried to take away from them was the mythic element of their stories. In
the propaganda that preceded their execution, he labeled them not Haitian, but foreign
rebels, good-for-nothing blans. (2010, p. 7)

A inauguração da estátua do marron inconnu, naquela manhã de 1968, era um recado claro
àqueles que, como Muna e Drouin, haviam se exilado e pensavam, de algum modo, em organizar
a resistência ao regime a partir de fora do país. Michael Dash (2013) é preciso ao dizer que, na
morte dos dois rebeldes, “a violência de Estado não tinha como alvo somente os corpos dos
capturados, mas também sua própria identidade” (p. 39) ou o “elemento mítico de suas histórias”,
nas palavras de Danticat. Quatro anos depois, Duvalier (1969) tinha um propósito claro ao reunir
jovens estudantes e universitários no Campo de Marte e nomeá-los, do começo ao fim de sua fala,
como “a juventude do meu país” ou a “juventude haitiana” (jeunesse de mon pays, jeunesse
haïtienne, pp. 55, 71 e 75). Evocando mais uma vez os que resistiram à Ocupação americana, o
ditador falava contra os “filho indignos... que continuam a crucificar [a pátria] preparando o

310
Roody Édmé, “Exécution de Louis Drouin et de Marcel Numa: La déchirure”, Alterpresse, 12 de novembro de
2013, disponível em: www.alterpresse.org/spip.php?article15454 (acesso: 07/04/2018). O vídeo da execução pode ser
visto em: “Exécution de Marcel Numa et Louis Drouin Jr- 12 novembre 1964”, publicado por Haïti lutte contre-
impunité, YouTube, 5:16, 11 de novembro de 2014, https://www.youtube.com/watch?v=4hgGacP6SuM (acesso:
09/04/2018).
278

reestabelecimento da servidão” (p. 67, grifos meus). O déspota opunha os rebeldes e opositores ao
seu regime, apropriando-se de uma “tradição de resistência e de luta” que, herdada dos marrons,
encontrava continuidade histórica em Charlemagne Péralte, Benoît Batraville e outros (idem) –
muitos deles utilizados como inspiração pelos próprios grupos que tentavam derrubar o regime.
Ao homenageá-los, Duvalier subscrevía um elemento central da ideologia política haitiana que
Carlo Célius (2004) identificou como um “dispositivo aparentemente paradoxal”, que “remete a
uma liberdade fundacional ao mesmo tempo em que o poder de Estado lança mão de uma violência
extraordinária” (p. 38)311. Duvalier reivindicava para si personagens históricos que lutaram pela
liberdade, reinscrevendo a história ao aproximar os marrons, os que lutaram nas batalhas da
Revolução, os resistentes à Ocupação e a própria geração de nacionalistas de que o jovem Duvalier
fizera parte:

L’Histoire nous enseigne d’ailleurs que certains parmi nous, MARRONS de Saint-
Domingue, purent arracher au blanc la reconnaissance de leur liberté en lui opposant
victorieusement la tactique du marronnage. Notre liberté à nous, nous avons su conquérir
avec vous d’abord, avec les Preux de la Crête-à-Pierrot et de Vertières [batalhas da
Revolução Haitianas] ensuite, avec les résistants de 1915 et les nationalistes de 1930, enfin,
et nous la défendrons avec la détermination de fils jaloux de votre enseignement. (Duvalier,
1969, p. 67)

Na publicação deste discurso de inauguração da estátua do Marron Inconnu, em 2 de


janeiro de 1969, feriado nacional do “Dia dos Antepassados” (Jour des Aieüx), o texto do
pseudônimo de Duvalier, Abderrahman, sobre um tambor asòtò que vela a morte de Péralte e
Batraville é reimpresso como epígrafe, sucedida de duas fotos: a de um “Universitário François
Duvalier” que, dizia a legenda, concebeu “há 34 anos, a construção daquele monumento” e, em
seguida, a do “Honrado Doutor François Duvalier” que “realiza seu sonho” de colocar a estátua
de pé. Uma chama eterna compunha o monumento e simbolizava, nas palavras do ditador, “o fogo

311
Para Célius (2004a), esse paradoxo é o que constitui um “nacionalismo heroico” que combina um “culto à
liberdade” a um “culto aos heróis”, articulando ao mesmo tempo, liberdade e tirania, conquista e legitimação, poder
popular e aceitação da sujeição a um líder. Como afirma o historiador (Célius, 2004b) em um outro texto: “Or, le plus
souvent, on accède au pouvoir sous le mode héroïque: on conquiert, ‘au sens propre’ du terme. Celui qui y parvient
devient un chef trônant au sommet d’une pyramide de sous-chefs. Chef et sous-chefs s’identifient à des héros et
mobilisent constamment l’idéologie nationaliste pour asseoir leur légitimité" (p. 219, grifos meus).
279

da revolta” que fora transmitido de geração em geração pelo quilombola cuja lembrança remetia a
uma “heroica e patriótica lição de civismo e de coragem indomada” (Duvalier, 1969, pp. 75-79).
“O chamado de sua concha (Lambi)”, por sua vez, “continuará a soar de maneira lúgubre
(‘lugubrer’) através das planícies e montanhas do Haiti cada vez que nossa Pátria Eterna for sujeita
a perigos” (p. 75). Ao final de seu discurso, o déspota conclui afirmando que “[a] história dos
povos progride somente a partir do espírito e da audácia de alguns homens que sabem curvá-la”
(p. 79), referindo-se, possivelmente, tanto ao escravo fugido, agora imortalizado, quanto a si
mesmo, herdeiro legítimo do marron inconnu.

Imagem 40: Estátua do Marron Inconnu, de Albert Mangonès. Foto de Cris Bierrenbach, Porto-Príncipe, janeiro de
2010.

A cena retratada por Mangonès em sua estátua não é a da fuga, mas a do chamado à
resistência, no qual a concha de um lambi fornece uma dimensão coletiva à libertação, remetendo
diretamente aos que resistiram ao colonialismo durante as revoltas e as guerras de emancipação.
Por sua vez, o facão – instrumento principal dos outrora escravos de plantation e, agora, lavradores
haitianos – representava não só o trabalho nos campos, mas personalizava “a silhoueta rebelde de
um deus guerreiro africano”, nas palavras do próprio arquiteto durante o discurso público que
antecedeu o do ditador (Duvalier, 1969, p. 43). O “deus guerreiro” era Danbala, o mais respeitado
280

e antigo dos espíritos, simbolizado por uma serpente e um arco-íris. Mais uma vez, história e vodu
se aproximam condensados na figura do escravo fugido.
Como Michael Dash (2013) destaca, aquele monumento “serviu para consolidar as
credenciais de Duvalier como um defensor da liberdade negra (black freedom fighter)” (p. 33).
Com efeito, imagens da estátua do marron inconnu passaram a circular internacionalmente,
chegando a estampar a capa da primeira edição da coletânea Maroon societies: rebel slave
communities in the Americas, editada por Richard Price, em 1973, cinco anos após sua
inauguração, e foi posteriormente impressa no selo comemorativo da declaração dos direitos
universais do homem e do cidadão, em 1989. Dentro das fronteiras do país, Duvalier recriava uma
tradição de revolta, domesticando-a e dando a ela os sentidos que garantiriam seu lugar como líder
da nação, “chefe da revolução” e intérprete da história, reafirmando-se como “o último
quilombola” (Duvalier, 1967, p. 43). A estátua operava, nesse sentido, como um cronótopo
duvalierista, se lançarmos mão mais uma vez do conceito de Bakhtin (1981), combinando esforços
passados – de ancestrais e do próprio Duvalier – com toda imaginação e as expectativas possíveis
para o futuro.

Desenraizando a história
O fim da ditadura dos Duvalier foi descrita pelo intelectual haitiano Laënnec Hurbon
(1987) como uma espécie de “exorcismo nacional” (p. 13). No dia 7 de fevereiro de 1986, afirma
o antropólogo, não foram os membros da famigerada milícia do clã Duvalier o principal alvo de
uma população revoltosa que tomava as ruas da capital, mas, sim, os símbolos do duvalierismo.
Entre estes, a estátua do marron inconnu:

Le peuple (...) tente de détruire la Statue du Marron inconnu, érigée par Duvalier sur la
place du Champ-de-Mars, en face du palais, en l'honneur des esclaves révoltés qui, par la
fuite hors des plantations, minaient le système esclavagiste. La flamme éternelle du Marron
inconnu, disait-on au matin du 7 février, serait alimentée par la cuisson des corps
d'opposants emprisonnés dans les caves du palais. Des sacrifices humains auraient donc eu
lieu, sur la base des liens puissants du dictateur avec la sorcellerie. (…) Déraciner tout ce
qui de près ou de loin évoquait le duvaliérisme, c'est ce que prétendait l'opération
‘déchouquage’ (pp. 17-18).
281

“Nós vemos claramente”, conclui Hurbon (1987), “tratava-se de uma vontade de


reocupação do espaço nacional pelo povo, [ação] pela qual o macoutismo seria produzido como
uma exterioridade em relação à nação” (p. 18, grifos meus). Entretanto, parece-me possível
sustentar que, a partir do material aqui discutido, o macoutismo não se fizera como produto de uma
exterioridade com relação à nação, mas antes como parte fundamental da própria rearticulação de
uma tradição de insurgência, que visava dar poder e criar lealdades entre os camponeses ao mesmo
tempo em que colocava em cheque o excessivo poder do Exército. Mais do que isso, o
questionamento do legado dos Duvalier no momento do desfecho de seu regime passava também
por uma reavaliação do que o próprio governo tornara possível enquanto formas populares de
revolta dentro de um horizonte político.
O governo de Jean-Claude Duvalier, sucessor direto do pai, foi marcado por uma
continuidade da política de terror, ao mesmo tempo em que o novo ditador abria o país a uma
presença cada vez maior de capital estrangeiro e de instituições internacionais que passaram a ser
orientadas para o desenvolvimento. Essa abertura foi encarada logo cedo por muitos como o
prenúncio de um desfecho democrático que resultaria possivelmente no fim do regime. Porém, no
fim da década de 1970, sobretudo após a eleição de Ronald Reagan para a presidência dos EUA,
a pressão sobre o governo ditatorial declinou e as instituições de defesa dos direitos humanos
receberam um golpe certeiro que conferiu uma sobrevida ao regime.

***

Talvez seja impossível compreendermos todas as variáveis que compuseram esse momento
de mudança, mas as palavras de Francius Pierre, Judline Louis e Jean-Baptiste Jacques com as
quais iniciei este capítulo, nos dão acesso a fragmentos dessa realidade, revelando o quão central
foi a retomada de uma tradição de revolta para a garantia de um espaço de vida no qual pudessem
exercer um mínimo de autonomia. Retomemos, enfim, o relato sobre aquela manhã de 15 de abril
de 1987.
Como nos contam os narradores, as terras de Bérard estavam cedidas a um grupo
estrangeiro que submetia a população local a um regime de trabalho no qual os que ali trabalhavam
eram vigiados constantemente e estavam sujeitos a violências diversas. Tinham que enfrentar o
duro ofício no canavial e não lhes sobrava tempo para o roçado. Não podiam plantar “nem um pé
282

de banana, pois não tinham direito” ou, como disse Ti Tonton, tinham de buscar a vida fora do
país, afinal “precisávamos [de terra] para trabalhar, mas não conseguíamos encontrar”. A descrição
do momento anterior à ocupação revela paralelismos notáveis com o que muitos milosianos e
milosianas se referem como o “tempo da colônia” (tan koloni) ou o “tempo dos brancos franceses”
(tan blan franse). Os campos de cana-de-açúcar, a violência, a falta de direitos, a impossibilidade
de trabalharem nas roças familiares são elementos importantes dentro de uma narrativa histórica
que retrata o período da dominação colonial como o de uma ausência de liberdade na qual os
ancestrais (zansèt) eram todos escravos (esklav). Isso nos remete a um importante debate que teve
lugar no Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, em torno da noção de cativeiro.
Trabalhando em diferentes contextos, como o Nordeste brasileiro e a Amazônia Oriental,
antropólogos e antropólogas, como José de Souza Martins, Lygia Sigaud, Afrânio Garcia,
Leonarda Musumeci e José Sérgio Leite Lopes, entre outros, abordaram o emprego corrente do
termo cativeiro entre populações camponesas nas descrições desses atores sobre suas experiências
de moradia e trabalho312. Lygia Sigaud (1979) é enfática ao observar que o significado do cativeiro,
nas mais diversas acepções que assumia, está exatamente na ruptura das obrigações recíprocas que
tradicionalmente sustentam as relações entre patrões e empregados. “[A] ideia fundamental do
cativeiro”, destaca a antropóloga, “é a perda da contrapartida” (p. 235, grifos no original). Para
Otávio Velho (1981), entre os camponeses da frente de expansão na Amazônia Oriental, “a
referência mais estrita [ao cativeiro] prende-se à escravatura, tal como existiu até a sua abolição.
O que os impressiona fundamentalmente no cativeiro, tal como ouvem contar, é o fato de
trabalhar-se sem receber nada em troca, a não ser alguma roupa ou comida”. “Por extensão”,
continua o autor, “qualquer situação considerada de muita exploração e perda de autonomia é
identificada como cativeiro” (p. 130-131, grifos meus).
Esse recurso à escravidão histórica para retratar situações vividas em tempos recentes
demonstra uma aproximação entre passado e presente que ocorria por meio de analogias, mas que,
como nota Velho (1995), ia além. De fato, mais do que uma comparação, havia um medo
compartilhado de uma “volta do cativeiro” que conferia a essa categoria, nas palavras do autor,
um “sentido forte, que vai além do mero recurso instrumental a termos e expressões e atinge o

312
Sobre esse grupo e para uma abordagem dos temas que trataram à luz de um material etnográfico recente, ver a
tese de Ana Luisa Micaelo (2016). Pode-se consultar ainda os trabalhos recentes de Benoît de L’Estoile (2014) e o
belo relato biográfico de Lygia Sigaud (2008).
283

nível das crenças e atitudes profundas” (p. 16, grifo no original). Resulta daí a proposta de Velho
por uma “solução universal-abstrata” ao problema do medo do retorno ao cativeiro (p. 36). Nesse
ponto, Carlos Fausto (1986, citado em Velho 1995) aponta que a categoria “cativeiro” não assume
um conteúdo histórico específico, pois se comporta como uma “imagem reguladora às avessas”
(pp. 8-9) ou uma “virtualidade” (1987, p. 40), possibilitando apreensões e formulações variadas
do termo enquanto um “símbolo”.
Mais recentemente, André Dumans Guedes (2013) ressalta que cativeiro e escravidão são
termos empregados de modo recorrente entre garimpeiros no Norte de Goiás. Enquanto
virtualidades, tais categorias revelam uma cosmologia cujo valor central é o movimento. A postura
de escárnio e chacota com que seus interlocutores encaram a abolição da escravatura, vendo-a
como uma “iniciativa hipócrita dos ricos” (p. 118, grifos no original), é reveladora de um medo e
de uma ameaça real e constante da volta da escravidão. É de grande valor a seguinte observação
de Guedes (2013):

A abolição da escravatura? Todos sabem o quão importante foi aquele ato, pondo fim ou
mitigando os exageros de uma forma de dominação particularmente opressora. Mas meus
interlocutores insistem que neste momento preciso houve também um tanto de farsa e
encenação. O risco da escravidão ou do cativeiro está sempre dado – o que é comprovado
pelos temores a respeito da “volta” destas coisas (p. 438)

Em um contexto distante do brasileiro, mas no qual, igualmente, experiências recentes de


trabalho forçado e de desterritorialização trazem à tona analogias e medos de uma volta ao
cativeiro, Omar Ribeiro Thomaz (2008) nota que, na região de Inhassune, em Moçambique,
pessoas que foram levadas a campos de trabalho e reeducação durante o período socialista temem
que serão outra vez submetidas à escravidão. Como no caso de Dona Esther, nos conta o
antropólogo, que busca alguma forma de reconhecimento: “um documento oficial, dizendo pelo
que passou, pois não quer voltar a ser raptada e deportada mais uma vez no futuro” (p. 196). A
escravidão dos campos se aproximava do período português, o do chibalo, um regime de trabalho
forçado, mas que, como relata um outro interlocutor, é “[p]ior que chibalo”. Pois, como continua,
“[n]ão sabíamos quem era o patrão. Escravo tem dono, no chibalo tem patrão. Éramos escravos
sem dono” (p. 198, grifos meus). Nesse ponto, a história dos campos se conecta a histórias
284

pregressas, de antepassados que participam ativamente do mundo dos vivos, “convivem com eles
no presente, enviando sinais, exigindo presentes, retribuições ou vinganças” (p. 199).
Em Milot, o tema da escravidão aparecia de maneira mais explícita em conversas sobre
vida, magia e morte. Quando eu vivia no povoado de Samson, um jovem rapaz havia falecido após
alguns dias de sofrimento intenso, vítima de uma doença que não encontrava cura mesmo após
inúmeras consultas, exames e tratamentos no hospital do vilarejo. Como ele era jovem, o que mais
preocupava seus parentes e vizinhos eram as razões de sua morte e o destino que teria o seu corpo
(ver Bulamah, 2013a, cap. 3). Sempre, em conversas veladas e discretas, meus vizinhos diziam
que aquela fatalidade fugia dos desígnios divinos, pois ele era jovem demais para ter morrido por
uma enfermidade qualquer. Tinham a certeza de que ele havia sido alvo de um feitiço ou magia de
assalto. A justificativa que forneciam era bíblica, tal como Gui, filho da madame André,
argumentou ao mostrar-me o Salmo 90, versículo 10 de uma tradução crioula da Bíblia:

Nosso último suspiro é aos setenta anos. Se Dènye bout nou se swasanndizan. Si nou gen bon
tivermos boa saúde, veremos os oitenta anos. Mas sante, na wè katreventan. Men avantaj nou jwenn
a vantagem que tiramos de tudo isso é somente nan tou sa se sèlman tray ak mizè. Talè konsa nou
aflição e miséria. Numa hora dessas, tomaremos fin vini n’al fè wout nou (versão da Sociéte Biblique
finalmente o nosso caminho (tradução minha do Haïtienne).
crioulo haitiano)313.

Por essa razão, tratando-se de um jovem, não havia outra explicação para sua morte senão
algo que é próprio ao mundo dos humanos, naturalmente distantes de Deus: o feitiço. O que motiva
um feitiço, como discuti anteriormente, é constantemente caracterizado como maldade, um estado
moral pleno – como no caso de atos motivados por “pura maldade” (mechanste menm) – ou que
pode ainda desdobrar-se em inveja ou ganância, como foi o caso da morte do jovem morador de
Samson. De fato, muitos sabiam que, em consequência de sua morte por feitiço, seu destino não

313
A versão da Nova tradução na linguagem de hoje é a seguinte: “Só vivemos uns setenta anos, e os mais fortes
chegam aos oitenta, mas esses anos só trazem canseira e aflições. A vida passa logo, e nós desaparecemos”, disponível
em Sociedade Bíblica do Brasil: http://www.sbb.org.br/conteudo-interativo/pesquisa-da-biblia/ (acesso 12/04/2018).
Essa “cultura bíblica” é marcadamente presente no contexto haitiano. “Il faut être catholique pour avoir le droit de
servir les lwa" foi uma formulação frequentemente ouvida por Métraux (1953, p. 200) durante seu trabalho de campo
no centro-sul do Haiti.
285

era o descanso de uma vida vivida até a velhice, caracterizado como uma boa morte314. A ele estava
reservado a fortuna de ser transformado em um zumbi (zonbi). Com efeito, zumbis são figuras
recorrentes nesse universo social. De difícil definição em termos que nos são familiares, eles nada
tem a ver com os excessos da indústria cultural estadunidense, apesar do parentesco que possuem
entre si (ver Glover, 2005; McAlister, 2012; Ramsey, 2011)315. Conforme afirmei ao tratar dos
espaços domésticos em Milot, no quarto capítulo, zonbi são pessoas que, após terem sido
enfeitiçadas, caem em um estado de torpor ou quase-morte. Das diversas descrições que ouvi sobre
processos de zumbificação, há um conjunto de técnicas e procedimentos mais ou menos
consensuais entre os milosianos e que podem ser resumidos da seguinte maneira:
1) Após ser alvo de um feitiço (maji), a pessoa cai em um estado letárgico que anula seus
sinais vitais chegando a um estado de quase-morte;
2) A família pode tentar reverter a situação enviando a pessoa a uma funerária, onde
receberá uma série de injeções a fim de lhe garantir uma morte efetiva – o que, no mais
das vezes, implica em grandes gastos econômicos, mas possui, reconhecidamente,
pouca eficácia;
3) Após o enterro, o feiticeiro vem ao cemitério na madrugada e inicia uma batalha com
o corpo enfraquecido, que busca, uma última vez, ter uma morte efetiva. Com o
feiticeiro saindo vitorioso, ele captura uma das duas almas do enfeitiçado – o ti
bonnanj, responsável pela consciência, deixando-o apenas com o gwo bonnanj, sua
força vital – momento retratado na célebre pintura do haitiano Hector Hyppolite (ver
imagem abaixo);
4) A partir daí, há uma série de possibilidades (que, contudo, não se esgotam aqui): o
feiticeiro pode entregar o zumbi à pessoa que encomendou sua morte que, por sua vez,
irá se tornar seu novo senhor (mèt), servindo-se de sua força de trabalho como bem
quiser; o feiticeiro pode ainda transformá-lo em uma força imaterial e armazená-lo em
uma garrafa para, quando julgar necessário, enviá-lo para causar doença e infortúnio a

314
A velhice é tratada com bastante leveza entre camponeses do norte do Haiti. Pessoas em idade avançada
costumam ser tratadas com carinho e sua morte é vista com grande naturalidade e sua longevidade é, por vezes, tema
de chacota.
315
O romance Adriana em todos os meus sonhos, de René Depestre (1996 [1988]), é um clássico sobre o tema
composto por três vozes, uma que narra um célebre episódio de zumbificação na cidade de Jacmel, no sul do país,
outra que parodia o discurso científico e as análises psicossociais comuns entre intelectuais haitianos e estrangeiros e
um terceiro que é o relato da própria Adriana.
286

um terceiro (ação conhecida como voye zonbi, lit. “enviar um zumbi”) ou mesmo dar-
lhe uma forma animal para vender sua carne ou alugá-lo para fins diversos com o
objetivo de obter um lucro rápido.

Imagem 41: Sem título, Hector Hyppolite. Coleção do Museu de Arte Haitiano, Porto Príncipe. Foto de Cris Bierrenbach,
janeiro de 2010.

Contudo, o que isso revela sobre as concepções de tempo e história dos meus
interlocutores, particularmente, sobre o trabalho e o lugar da escravidão? Uma conversa que tive
com Jorab sobre uma situação em que ele trabalhava para o dono de um hotel de Milot, mas recebia
um pagamento diário muito abaixo do habitual, pode nos ajudar a responder esta questão:

- Mas o que é um zumbi, Jorab? - Men ki sa yon zonbi ye, Jorab?


- Um zumbi é um escravo. O que o faz um - Zonbi se yon esklav. Sa ki fè yon esklav, se
escravo é o fato dele ter sido capturado, paske ou pran l, ou touye y, ou mete nan
morto e conduzido a um roçado. Ele vai jaden. Lap travay tout jounen. Ou menm
287

trabalhar o dia todo. Enquanto isso, [a pendan se tan ou ap chita lakay a ou. Gen
pessoa que o capturou] vai se sentar em sua yon bon esklav ki ap travay pou ou. Yo rele
casa. Há um escravo que trabalha para ele. sa zonbi. Esklav lontan se zonbi yo te ye.
Chamam isso de zumbi. Escravos de Lè ke m di se zonbi yo te ye, se pa paske yo
tempos distantes eram zumbis. Quando eu te mouri deja. Men travay ki yo fè yo pa ta
digo que eles eram zumbis, é porque já dwe fè. Yo fòse telman...
morreram. Mas o trabalho que fazem, não - Ki se konm si yo te mouri?
deveriam fazê-lo. Eles eram forçados de tal - Wi, se sa! Se tankou yon chwal ki pa gen
maneira... fyèl, men ki travay tèlman. Pa gen bouke
- Que é como se eles tivessem morrido? pou li. Men si li bouke li pa ka di ke li
- Sim, é isso! É como um cavalo que não tem bouke. (...) Depi ou zonbi se tankou ou pa
316
fígado, mas que trabalha muito . Não há gen fyèl.
descanso pra ele. Se ele se cansar, não pode - E moun ki te konn viv nan tan esklavaj se
dizer que está cansado. (...) Quando se é tankou zonbi yo te ye?
um zumbi, é como se você não tivesse - Se zonbi menm! Se sèl anba tè yo pa te
fígado. pase. E se sa mesye a te fè nou. Se zonbi.
- E as pessoas que viveram no tempo da - Men kouman li fè as?
escravidão, eles eram parecidos com os - Ake bèl pawòl. “Si nou fè sa, otel la fini,
zumbis? nap manje byen. Pap gen okèn pwoblèn.
- Eram zumbis mesmo! A diferença é que Map ede nou”. Mesye pa moun.
eles não foram enterrados [lit, “não
passaram embaixo da terra”]. E é isso que
aquele senhor [referindo-se ao
empregador] fez conosco. Somos zumbis.
- Mas como ele faz isso?
- Com belas palavras. [Ele diz] “se você
fizer isso, o hotel vai ficar pronto, nós
comeremos bem. Não tem problema. Eu te
ajudo”. Esse senhor não é uma pessoa.

“Fígado” (fyèl), na classificação biológica local, é o órgão responsável pela força e pela disposição em animais e
316

humanos.
288

O tráfico atlântico e a escravidão africana aparecem nas referências de Jorab à captura, ao


controle e à submissão ao trabalho forçado. Com isso, o que estaria restrito ao passado (o tráfico,
a submissão e o trabalho forçado) é codificado e atualizado nesse corpo híbrido – meio-humano,
meio-morto – que se vê submetido à mesma situação dos escravos responsáveis pela produção de
açúcar numa São Domingos colonial, trabalhando para alguém que “se senta em casa”. Seu corpo,
através de procedimentos mágicos, é fetichizado e consumido. Nesse ponto, Jorab, ao se ver em
uma situação de trabalho em que a recompensa era pequena e o empregador se mantinha
desocupado, tornava-se ele também um zumbi: cativado através de “palavras belas” e da promessa
de comida e ajuda. A ganância e falta de compaixão do dono do hotel o fazem alguém cheio de
“maldade”, ou como resumiu Jorab, alguém que “não é uma pessoa”.
Desenham-se aqui duas possibilidades para a categoria nativa maldade: uma que tem
origem no que é exterior à comunidade e outra que lhe é interna, parte do que é familiar e íntimo.
Exterior, pois o risco de um retorno à escravidão por meio da zumbificação está associada a uma
“hermenêutica da suspeita” (Velho, 1995, p. 29), que enxerga com desconfiança os grandes
senhores ou burgueses, pois seu excesso de riqueza sempre se justifica pela imposição da miséria
e do infortúnio a outrem, particularmente aos pobres e desafortunados. Isso aponta para uma
“imagem do bem limitado”, que Georges Foster (1965) identificara como própria a sociedades
camponesas, e resumida na fala de um trovador no livro de Jacques Roumain (2007 [1944]): “Os
desafortunados (malheureux) trabalham ao sol enquanto os ricos deleitam-se à sombra” (p. 31).
Nesta interpretação, a maldade é vista como externa, pois ricos, burgueses, grandes senhores e,
no limite, estrangeiros são pessoas que não fazem parte da vizinhança e nem são família. O
cativeiro aqui parece, ao menos parcialmente, se distanciar de uma ruptura de um compromisso
recíproco ou da contrapartida para se aproximar de uma definição relacional: zumbi (ou escravo)
é aquele que trabalha enquanto outros descansam, usufruem da vida e não trabalham. Retomando
a elaboração de Jorab, “[o zonbi] vai trabalhar o dia todo (...) [e]nquanto [a pessoa que o capturou]
vai se sentar em sua casa”.
Resta entender como a maldade é também interna. Isso fica claro no caso da morte do
jovem de Samson. Ali, a maldade estava próxima, no íntimo de um povoado onde todos são fanmi.
Ela foi empregada por alguém que conhecia o cotidiano e as movimentações do povoado, por isso,
sabia por onde passava o jovem e poderia, por ventura, deixar armadilhas mágicas (como as batry)
ou ainda, sendo alguém próximo e participando das obrigações recíprocas que constituem o
289

povoado, se apropriar das formas locais de troca e circulação com o objetivo de envenená-lo317. O
cativeiro ou escravidão são, aqui também, mediadas pela figura do zumbi. A possibilidade de ser
enfeitiçado e, em seguida, ter sua alma aprisionada e seu corpo subjugado é um medo constante e
se relaciona diretamente com o passado colonial. Nos relatos que ouvi em Milot, zumbis, ao serem
aprisionados no cemitério, são logo enviados para trabalharem em campos de cana-de-açúcar, em
indústrias ou em grandes galpões. Retomando o comentário de um jovem amigo de Milot sobre a
morte de um vizinho, “Fazem-no sofrer duas vezes, matam-no e depois o colocam para trabalhar
em campos ou galpões”318. Seu destino é ser enviado a locais nunca próximos ao povoado onde a
pessoa nasceu e cresceu, mas a regiões distantes, evitando com isso que algum parente o reconheça.
É pertinente a elaboração de Joan Dayan (1995) para quem “o zumbi conta a estória da
colonização” (p. 37); ou, fazendo recurso à formulação de Jorab, os escravos eram zumbis e os
zumbis são escravos. Esse papel de atualização da virtualidade da escravidão opera, com efeito,
não apenas por analogia, mas como uma “solução universal-abstrata”, se lançarmos mão outra vez
da proposta de Velho (1995), ordenando diferentes eventos separados no tempo e no espaço.
Nesse ponto, o “tempo da colônia” e, particularmente, a escravidão que lhe é indissociável,
parecem estar sempre à espreita, compondo uma imagem estável no horizonte, seja pelos abusos
de um empregador ou de um grande senhor, seja nos perigos mágicos que alguém próximo
motivado por ganâncias e ganhos rápidos possa perpetrar. A maldade é o que os une. Quer por
uma submissão individual ou coletiva a um regime de trabalho forçado, quer pela morte e
subsequente zumbificação, todos estão sujeitos a uma volta da escravidão. Porém, já alertara
Velho (1995), se a escravidão opera como virtualidade, há que se considerar que ela é sempre
acompanhada de um oposto, um “binômio indissociável” definido como o par cativeiro e

317
Evoquemos outra vez, Madame Kado, moradora de Mirebalais que descreveu essa “dádiva funesta” ao antropólogo
Paul Farmer (Farmer, 1988): “I had nine children, and I lost two. With the one who died when she was 11 days old, it
seems as if it was a bad person (move moun) who did the damage [lit. ‘tempted it’ (the fetus)] while I was still carrying
the baby. This person gave me something, but I had no idea: I thought she was my close friend! She cooked for me, I
cooked for her… she was always over at the house. And then she gives me a bit of joumon [a Haitian squash] during
the very week that I gave birth… On the seventh day [post-partum], things started going wrong… I thought the baby
was uninterested in nursing. She was not yet sick, but she was about to be. When I got up very early the next morning,
her jaw was locked shut (machwa-l te sere)… When she reached the eleventh day, at four o’clock in the morning –
the same time that she fell ill – she died. And when she died, out came the bit of joumon, exactly as I had eaten it” (p.
77, grifos meus).
318
Yo fè y pase pay de fwa. Yo touye y epi yo fè y travay nan yon chan ou magazen.
290

libertação e expresso “através das expressões derivadas cativo e liberto, ou ainda terra cativa e
terra liberta” (p. 14, grifos no original).
Na semântica haitiana, a escravidão (ou o “tempo da colônia”) se opõe, com efeito, não à
libertação, mas ao dechoukay ou à revolução. Como vimos, na formulação de Jorab mencionada
nas páginas iniciais deste capítulo, o dechoukay serve tanto à eliminação de uma figura maligna,
como os lougawou, quanto para se apropriar de algo que pertence a outrem, agindo sempre, nos
dois casos, “contra alguém”. Até mesmo zumbis podem rebelar-se contra um senhor, caso ele não
os alimente, consumindo sua energia por meio de enfermidades, “tornam-se mais e mais poderoso
à medida em que seu senhor se esvaece através de doenças” (McCalister, 2012, p. 468). Em
resumo, a escravidão está sempre sujeita à possibilidade de uma inversão ou, nos termos locais,
de um desenraizamento que, ele também, se mantém estável no horizonte, enquanto uma
virtualidade. Mas me parece que há algo mais aqui.
Toda a narrativa daquele dechoukay de princípios de 1987 é permeada por elementos
semióticos que remetem ao “tempo da colônia” e revelam as continuidades da plantation: a cana-
de-açúcar, responsável pela riqueza de São Domingos, é outra vez a razão do sofrimento do povo;
a plantation se reafirma como o espaço do terror e da morte; são os brancos/estrangeiros que se
apropriam de grandes terras enquanto ao povo, ao público, aos camponeses, enfim, aos
desafortunados, não lhes resta tempo nem terras para fazerem seus roçados e produzirem seus
alimentos. A escravidão, ali, predomina sobre a liberdade. Porém, a conclusão esboçada por Pierre
em seu relato aponta exatamente para essa possibilidade de inversão, como uma ética presente na
vida cotidiana. Os camponeses que viviam numa situação de miséria e infortúnio se viram
motivados “a fazerem a revolução. (...) [a] resignar-se e ocupar a terra”. Dessa situação de
sofrimento, de ruínas e de cativeiro, pode surgir a revolução. E mais do que isso, continua Pierre,
referindo-se às relações com o Estado: “Não sei o que farão no futuro, se mudarão de ideia ou não.
Mas se [o Estado] tomar [as terras] e cedê-las para que grandes senhores plantem cana, eles as
tomarão num dia e no outro, se Deus quiser, o povo irá outra vez tomá-las de suas mãos”.
Naquela tarde de abril de 2012, enquanto conversávamos à beira de uma mangueira no
pátio daquele lakou, foi Judline Louis quem terminou a narrativa fazendo a seguinte ponderação:
“Em toda parte onde há terras do Estado e não é permitido aos camponeses viverem ali, onde
somente quem tem dinheiro pode comer enquanto os camponeses morrem de fome, é isso que
motiva um dechoukay”. “É um Bwa Kayman”, continuou ela, referindo-se à cerimônia que deu
291

início à revolta na colônia de São Domingos. O chamado por meio do sopro das conchas e o fogo
na plantação são signos da retomada de uma tradição de revolta que deita raízes nas insurgências
de ancestrais e de quilombolas (marrons). Ou, como resumiu Judline: “Ainda somos os mesmos
camponeses a expulsar os fazendeiros tal como nós expulsamos os franceses para tomar o país”319.
A virtualidade do binômio cativeiro-liberdade ou escravidão-revolução aqui não é somente um
conjunto simbólico estável no horizonte, mas é algo que as pessoas trazem no corpo, um medo real
de serem transformados em zumbis e de retornarem à escravidão. Retornarem, pois sabem na pele
o que isso representa, mas a isso soma-se a certeza de serem os mesmo camponeses que fizeram a
revolução. Nisso, ancestrais e contemporâneos se mantém unidos por laços de parentesco e em
uma consubstancialidade que orienta suas ações no mundo e definem um futuro possível – um
futuro que dificilmente será menos emancipatório que o passado.

Recriando o presente
Observando a prefeitura queimada, naquela manhã de janeiro de 2016, me vinha à cabeça
essa complexa história de resistência e revolta na qual a ideia de revolução parecia não ficar restrita
ao passado. Contudo, visões distintas sobre o incêndio na prefeitura dividiam os milosianos, assim
como não era consenso o que representaram as ocupações de terra em princípios de 1987. Para
alguns, a prefeitura queimada era uma prévia da revolução que o candidato Jean Charles Moïse
anunciava caso não fosse eleito. Para outros, tratava-se apenas de pessoas ligadas à sua base a
espalhar a desordem insatisfeitos com um processo que julgavam injusto e corrupto; e que, por
isso, haviam queimado a prefeitura para expressar sua discordância. Quanto à ocupação de 1987,
se para camponeses que participaram do dechoukaj aquele evento representava a atualização da
Revolução Haitiana a partir da expulsão dos brancos e da retomada das terras para si, outros, como
Maurice Etienne, discordavam. Para ele, o dechoukaj foi um grande equívoco levado a cabo por
um grupo de camponeses desorganizados que acabaram por destruir o projeto de um grupo ligado
à Igreja Católica. No entanto, Maurice tinha uma ideia de revolução que tampouco estava
circunscrita a um tempo distante. Como virtualidade, ela foi atualizada quando haitianos e
haitianas enfrentavam uma situação igualmente complicada e difícil, cheia de injustiças.

319
Se tout kote ki gen tè Leta, peyizan pa ka viv ladann, se sèl moun ki gen kòb ki kapab manje, epi peyizan ki ap mò
gangwou. Se sa ki fè li gen dechoukay. Se Bwa Kayman. Se toujou menm peyizan pou mete grandon deyò tankou lè
nou mete blan franse deyò pou pran peyi a nou.
292

Curiosamente, isso ocorreu fora das fronteiras nacionais, quando o órgão de controle de doenças
nos Estados Unidos havia declarado que haitianos e haitianas representavam um grupo de risco
para a transmissão do vírus do HIV e, junto com homossexuais, hemofílicos e heroinômanos,
formavam os “4 H-s”. Tratei desta história no capítulo 3 e já conhecemos a reação dos haitianos e
haitianas que viviam em Nova Iorque: marcharam pela ponte do Brooklyn aos milhares exigindo
respeito ao seu sangue e à sua herança. Retomando o relato de Maurice, aquele evento foi yon
bagay istorik, “algo histórico”:

Sim, eu estava lá. Foi em 1990. Atravessamos a Wi, m te la. Se te nan 1990. Nou travèse pon a pye.
ponte a pé. E foi ali que os haitianos fizeram um E se lè sa ayisyen fè rara. Moun yo pa janm wè blok
rara [blocos festivos que desfilam no período de bann a pyè. Moun Nouyòk pa kon wè bann a pyè.
carnaval e durante as festas patronais no Haiti]. As Kounye a tout bann a pyè, bout banbou... [ri]...
pessoas nunca tinham visto blocos de bandas tanbou, tonbe nan Nouyòk. Bloke tout city a. Bloke
itinerantes [lit., “bandas a pé”, termo nortenho para city Nouyòk, bloke. (...) Se te yon bagay istorik.
rara]. Os nova-iorquinos nunca tinham visto Men sa ki te anteresan nan mach sa a se ke tout
bandas como essas. E, de repente, um monte delas kouch sosyal te patysipe. Ou wè moun blan Nouyòk
apareceu, soprando bambus... [risos]... tocando yo? Ayisyen blan yo? Ayisyen wouj yo? Dodinè
tambores, tomando conta de Nova Iorque. moun sa yo rete Queens, men yo tout te la! Tout! E
Bloquearam toda a região central. Bloquearam sa ki te anteresan se ke tout pote koule nasyonal la.
Nova Iorque! (...) Foi algo histórico. Mas o que é Ou konprann? Sa te fè m gran plèzi. Tout kouch
mais interessante nessa marcha foi que todas as nèt. Pa te gen kesyon koulè se te Ayiti. (...) Paske lè
camadas sociais participaram. Sabe os brancos de yo [CDC] di “ayisyen” yo pa pale de ayisyen nwa,
Nova Iorque? Os haitianos brancos? Os haitianos ayisyen wouj. Donk ayisyen wouj pafwa yo rale kò
mulatos (lit., “vermelhos”)? Normalmente, eles yo. Paske istorikman se moun ki gen lajan. Yon seri
moravam no Queens, mas todos estavam lá. Todos! de moun ki gen lajan. Paske istwa Dayiti baze sou
E o que é interessante é que todos portavam as sa depi landepandans. Paske olandeman de
cores nacionais, sabe? Isso me deixou muito feliz. landepandans, les mulâtres, ils ont tout pris pour
Todas as camadas [sociais]. Não havia questão de eux, paske yo di ke le franse se papa nou e lè franse
cor, era o Haiti. (...) Pois quando [o órgão de sont partis, maintenant, se ki rest est à nous. E
controle de doenças, CDC] disse “haitianos”, não Dessalines pa te renme sa. Dessalines di “non”,
falavam de haitianos negros ou de haitianos “et ceux dont les pères se trouvent en Afrique? Ils
mulatos. Às vezes, é verdade, haitianos mulatos n’auront rien?” C’est la question de Dessalines. Il
tiram o corpo fora. Pois, historicamente, são voulait tout partager équitablement. Et
293

pessoas que possuem dinheiro. Um conjunto de maintenant, ils ont complotter pour assassiner
pessoas com dinheiro. A história do Haiti é baseada Dessalines. Donc les mulâtres historiquement
nisso desde a Independência. Afinal, logo após a parlant ils sont toujours riches. Avec des milliers
Independência, [começa a falar alguns trechos em de carreaux de terres... Ils avaient aussi des
francês] os mulatos, tomaram tudo para si, pois esclaves. Donk... et c’est anpil historiens te wè ke
diziam que os franceses eram seus pais e quando os aprè 1804... (...) se te Brooklyn Bridge ki te yon vre
franceses partiram o que restou havia ficado para inyon de nwa e de milat, de tout kouch kontre yon
eles. E Dessalines não gostava disso. Dessalines anjistis kominn. Donk an 1804 se te kont lesklavaj,
disse “não”, “e aqueles cujos pais se encontram em men 1983 se te kontre Sida. Tout kouch te ansanm,
África? Eles não terão nada?” Essa é a questão de milat e nwa (...)
Dessalines. Ele queria dividir tudo de maneira
igualitária. E nisso fizeram um complô para
assassiná-lo. Portanto, os mulatos, historicamente
falando, são sempre ricos. Possuem milhares de
carreaux de terras... Eles também tinham escravos.
Então... e muitos historiadores entenderam isso,
que após 1804 [ano da Independência]... (...) foi na
ponte do Brooklyn que ocorreu uma verdadeira
união de negros e de mulatos, de todas as camadas
contra uma injustiça comum. Em 1804, foi contra
a escravidão, mas, em 1990, foi contra a AIDS.
Todas as camadas sociais estavam juntas, mulatos
e negros (...).

Na visão de Maurice, menos do que uma revolta ou inversão, a Revolução de 1804


representava uma união de diferentes classes contra uma “injustiça comum”. Foi isso que se repetiu
naquela marcha pela ponte do Brooklyn que parou a cidade de Nova Iorque, motivada por um
atentado ao sangue e ao corpo de haitianos e haitianas considerados, sem restrição de classe ou
cor, enfermos e contagiosos. Ademais, a narrativa histórica de uma elite mulata, sempre abastada,
parcialmente responsável pelo assassinato de Dessalines, revela o quanto a “questão de cor”, de
que se apropriaram noiristas como François Duvalier, é muito mais complexa e persistente do que
talvez gostaríamos de admitir. Com efeito, mais do que se contradizerem, as diferentes versões
sobre a revolução parecem reforçar tanto a sua virtualidade, como horizonte simbólico, quanto a
294

sua materialidade, como elemento consubstancial e corpóreo, a tal ponto que não só o dechoukaj
de 1987, mas também a marcha em Nova Iorque representaram uma repetição do feito de 1804.
A leitura apresentada aqui sobre o período Duvalier talvez seja menos sistemática do que
a que faria um historiador. Espero, todavia, que tenha servido a convencer leitores e leitoras de
que François Duvalier foi central para reviver uma tradição popular de contestação e revolta,
abrindo espaço para que a revolução ganhasse outros significados e possibilidades de enunciação.
Acredito estar aí a resposta para a questão das condições de possibilidade para as ocupações de
terra no Haiti. Disso, desdobram-se ainda outras questões. Na conclusão de seu livro sobre a
recorrência histórica de deposições e saques a governantes haitianos, publicado no final da década
de 1980, Alain Turnier (1989) faz três angustiadas perguntas: “O passado pode esclarecer os
debates de nossa presente sociedade? Os dias seguem, mas assemelham-se? A atualidade política
é o recomeço da História?” (p. 317). O livro termina sem respostas.
De fato, o final dos anos 1980 e o princípio dos 1990 foram marcados por uma retomada
da participação política de classes historicamente excluídas da política nacional, como camponeses
e classes urbanas pobres, o que culminou na eleição de Jean-Bertrand Aristide ao posto de
presidente da república. O jovem padre, partidário da teologia da libertação, fora um ávido opositor
do regime ditatorial nos anos 1980, adquirindo carisma e prestígio por todo o país e também na
diáspora. Possivelmente, a terceira pergunta de Turnier sobre a “atualidade política” se referia a
Aristide. Em Milot, lembro-me de ver uma foto da casa de Maurice que retratava a sala de estar
de sua casa no momento em que sua filha estava completando dois anos de idade, no começo dos
anos 1990. Na parede havia uma imagem de Aristide, ou Ti Tide, como era popularmente
conhecido. Maurice via a eleição do padre como um momento de grande mudança e como
superação do que havia sido o governo Duvalier. Contudo, com menos de um ano de governo,
Aristide foi deposto e, como tantos outros governantes que o antecederam, fugiu para o exílio. O
Exército começara a recuperar a força que possuía antes da ascensão de Duvalier, colocando em
xeque aquele novo e promissor momento política nacional. Em seu discurso no exílio, Aristide
falava “que cortaram o tronco da árvore da liberdade, mas que ela renasceria, pois suas raízes são
profundas e numerosas”, rememorando o célebre pronunciamento de Toussaint Louverture no
momento de seu sequestro encomendado por Napoleão Bonaparte (Hallward e Aristide, 2007).
O tema da revolução permanece fundamental e, por isso, é sujeito a disputas constantes
sobre seus significados e sobre a própria história. Enquanto ao mesmo tempo uma virtualidade e
295

uma materialidade, ela se atualiza em diferentes contextos: nos corpos e ações que revertem uma
situação de injustiça, desenraizando-a; ou que reforçam a união necessária entre diferentes
camadas sociais que compõem o Haiti, dentro e fora de suas fronteiras. Nesse ponto, a revolução
se abre a infinitas possibilidades práticas e imaginativas que – recombinando passado e presente,
ancestrais e vivos, espíritos e animais – consegue dar conta de situações tão diversas e extremas
como as que constituem nossa modernidade. Uma modernidade na qual o Caribe, e particularmente
o Haiti, ocupam um lugar central. Talvez possamos esboçar as respostas às indagações de Turnier:
os dias seguem ao mesmo tempo em que se assemelham.
296

Epílogo

Busquei ao longo desta tese tratar das múltiplas forças que incidem na produção da história:
tanto nos processos sociais que criam eventos e deixam vestígios materiais, artefatos e inscrições
em corpos e no imaginário quanto nas narrativas e afetos que os sucedem. Pareceu-me possível
levar isso ao limite somando ao trabalho de campo, pesquisas de arquivos e análises documentais.
Desviando-me de uma busca estrita pela objetividade histórica, preferi mostrar a constituição de
um universo social complexo no qual a história é inescapável. Assim como foi a pesquisa de
campo, enxergo este texto como um movimento que perpassa temas diversos, que ora se contraem
ora se expandem em direções variadas, mas sempre com o enfoque em investigar as percepções
da história e suas circulações, elaborações e conflitos a partir da experiência e das relações que são
estabelecidas pelos agentes ao longo do tempo. Nas caminhadas pela região de Milot e por outras
partes do país – e mesmo para além das fronteiras – encontrei pessoas que me contaram histórias
sobre “o tempo dos franceses”, sobre um rei negro “construtor” e “taumaturgo”, sobre animais que
foram outrora centrais para suas vidas. Histórias que, como disse Joan Dayan (1995), fazem parte
de tradições que “desafiam nossas noções de identidade e contradição” (p. 33). Por vezes, essas
caminhadas se tornavam peregrinações e um conjunto de interações e arranjos afetivos se
adensava, em torno de ruínas e paisagens, compondo um “sistema” e revelando a presença de
ancestrais e de espíritos que contavam, eles próprios, outras histórias.
Nesse ponto, as personagens desta tese se assemelham ao mago do conto As ruínas
circulares, de Jorge Luis Borges (2009), que, entre ruínas e espíritos, sonham sobre outras
personagens e lhes conferem vida e realidade. Mas, tal como esse mesmo mago, essas pessoas
podem, também elas, serem sonhadas por outras, assumindo posições secundários na construção
de mundos sociais sempre em transformação. O protagonismo de ancestrais, animais, espíritos e
outras presenças revela exatamente esse deslocamento do humano e incide de modo decisivo em
processos sociais e históricos. Menos do que formas nativas de interpretar e falar sobre o passado,
esses seres são agentes definindo os contornos de experiências pregressas e motivando projetos
futuros, recriando, com isso, paisagens históricas atuais. Inspirado por essas histórias e
experiências, eu também, enquanto o “aprendiz de um (historiador) chofer de táxi”, procurei dar
conta desses múltiplos protagonismos, construindo conhecimentos a partir da etnografia e do
trabalho de arquivo, tomando parte na produção da história e no esforço de desvelar
297

silenciamentos. Talvez, nesse ponto, o próprio ofício da antropologia, trabalhando sempre no


limite da linguagem, se aproxime do ofício do mago de Borges. Utilizando conceitos e articulando
diferentes significados, assumimos o propósito, quase impossível, de sonhar outras realidades e
histórias que, muitas vezes, parecem impensáveis.
Em Milot, essas diferentes agências revelam um mundo povoado por regramentos com as
quais as pessoas interagem cotidianamente. A isso, somam-se ainda forças globais e diferentes
projetos de poder que geram efeitos diversos, impõem ritmos, tempos, espaços e formas de vida.
Algo que marca a própria gênese do Caribe e sua experiência precoce de modernidade. Como
procurei demonstrar ao longo da tese, a história é percebida por muitos dos meus interlocutores
como um acúmulo de infortúnios, o que tem um peso notável em suas percepções sobre a nação,
sobre seu lugar no mundo e sobre uma ética da vida cotidiana. Nesse ponto, as ruínas de princípios
do século XIX não fazem sentido algum se as olhamos de modo isolado. A elas se juntam outras
ruínas, destroços e vestígios que somam histórias e compõem uma paisagem afetiva e cultural
ampla. Com isso, a constatação de uma condição de arruinamento implica não só a produção de
uma comunidade de sofrimento, mas também da possibilidade mesma de sua superação. É aqui
que a escravidão e o medo do cativeiro, temas cotidianos, parecem encontrar uma outra
virtualidade – uma que se materializa nos corpos e inverte posições e faz as coisas voltarem a estar
em movimento por meio da recriação de feitos revolucionários. Voltando a Georg Simmel (2005),
me parece ser essa sua conclusão quando afirma que “[a] cultura rica e multifacetada, a capacidade
ilimitada de impressionar e a compreensão aberta a todos os lados, que são próprios das épocas
decadentes, significam justamente o encontro de todas as aspirações contrárias” (p. 142).
298

Anexo
a) Reprodução integral e tradução da petição organizada por camponeses da região de
Hinche, Departamento Central, Haiti. Extraído de Deshommes (2006, pp. 72-73).

Papay-Ench 7 mas 1986


Libète, Egalite, Fratènite
Repiblik Dayiti
Ane 1 Revolisyon Mas Pèp la,

PETISYON PREPARE PA
Mouvman Peyizan Papay
Oganizasyon pou tout nèg andeyò yo.

Objektif : Enpòtasyon Kochon Kreyòl soti nan peyi Jamayik

- Lè nou konsidere sa kochon kreyòl te reprezante nan ekonomi nou menm nèg andeyò,
- Lè nou konsidere te enyen mwayen pou sove kochon kreyòl nou yo, yon ras kip a genyen
parèy,
- Lè nou konsidere lanmò kochon nou yo sèvi enterè politik kèk peyi epi enterè ekonomik
Janklod avèk yon ti gwoup piyajè parèy li,
- Lè nou konsidere pòv malere peyizan yo pa genyen okenn mwayen pou okipe kochon sa
yo ki mande swen no upa kapab bay pwòp tèt pa nu,
- Lè nou konstate avèk anpil tristès gwo nèg rache elvaj kochon kit e prensipal sous lavi
nou,
- Lè nou konnen Jamayik yon peyi ki pa twò lwen nou genyen ras kochon ki ta pi kapab
viv nan kondisyon pa nou epi Karitas Dayiti genyen mwayen pouf è vini kochon kreyòl
pou tout peyi a, se kat blanch li bezwen nan men Ministè Agrikilit,

Nou mande tout pòv malere peyizan parèy nou ki sonje sa kochon kreyòl te ye pou yo, voye
siyati y opa entèmedyè pè pawas yo oubyen pastè yo nan radyo solèy dekwa pou nou leve rèl
299

nou byen wo kote ministè agrikilti pou li bay KARITAS NASYONAL DAYITI otorizasyon pou
fè vini kochon kreyòl Jamayik yo pi vit posib. PA BLIYE PI BONÈ SE GRANM MATEN.

Siyati_______________________________

***
Tradução

Papaye-Hinche, 7 de março de 1986,


Liberdade, Igualdade, Fraternidade
República do Haiti
Ano 1º da Revolução Massiva do Povo,

PETIÇÃO PREPARADA POR


Movimento Camponês de Papaye
Organização representante de todos os moradores rurais.

Objetivo: Importação de Porcos Crioulos da Jamaica.

- Quando consideramos o que os porcos crioulos representavam para nós, moradores


rurais, e nossa economia,
- Quando consideramos que havia meios para salvar nossos porcos crioulos, uma raça
única,
- Quando consideramos que a morte de nossos porcos serviu a interesses políticos de
alguns países e ao interesse econômico de Jean-Claude junto a um pequeno grupo de
saqueadores iguais a ele,
- Quando consideramos que os pobres camponeses desafortunados não possuem meio
algum para cuidar desses porcos que demandam o que não conseguimos dar nem para nós
mesmos,
- Quando constatamos com grande tristeza que foram os abastados os responsáveis pela
eliminação das criações de porcos, nossa principal fonte de vida,
300

- Quando somos informados de que a Jamaica, país vizinho, possui uma raça de porcos
capaz de viver em condições locais e que a Caritas do Haiti possui meios para trazer esses
porcos crioulos para todo o país e que só é preciso carta branca do Ministério da
Agricultura,

Pedimos a todos os pobres camponeses desafortunados, tal como nós mesmos, que se lembram
do que eram, para nós, os porcos crioulos, que enviem suas assinaturas por intermédio dos padres
paroquiais ou pastores à Rádio Solèy Dekwa a fim de que possamos levantar a nossa voz bem
alto e nos fazer ouvir pelo Ministério da Agricultura, pedindo que deem uma autorização à
CARITAS NACIONAL DO HAITI para trazerem porcos crioulos da Jamaica o mais rápido
possível. NÃO SE ESQUEÇAM DE QUE QUANTO MAIS CEDO, MELHOR.

Assinatura_______________________________
301

b) Resumo substancial da tese em francês

Les ruines circulaires : vie et histoire au nord d’Haïti


Introduction
Cette thèse est consacrée à la problématique de l’histoire en Haïti, à l’époque
contemporaine. Basée sur une durée d’un an et demi de recherche de terrain dans la commune de
Milot, au nord d’Haïti, ainsi que d’investigations d’archives en France, en Haïti et aux États-Unis,
je propose une anthropologie de l’histoire ou, plus spécifiquement, une anthropologie des
connaissances, des pratiques et des représentations qui font du passé quelque chose de significatif.
Tels que la parenté (Lévi-Strauss, 2008 [1967]), l’art (Gell, 1998), la politique (Palmeira et
Barreira, 2006a) et l’économie (Neiburg, 2010), l’histoire peut être objet d’une investigation
anthropologique du fait de la possibilité d’être décrite et analysée à partir d’un regard orienté vers
les multiples articulations entre personnes, artefacts, connaissances, agences, dimensions, lieux et
représentations.

Milot est l’ancienne capitale du Royaume du Nord, une monarchie fondée au lendemain
de la Révolution Haïtienne. Aujourd’hui, on y trouve partout des traces de cette expérience
monarchique dans la commune : un somptueux palais royal, une forteresse au sommet d’une
montagne, ainsi que d’autres ruines forment des lieux au quotidien des habitants de Milot. Ils
représentent à la fois les gloires d’un passé révolutionnaire et les promesses d’un avenir de liberté
encore en attente. Ces lieux font aussi partie des efforts de l’État, de la bureaucratie et des agences
transnationales qui y voient des ressources touristiques et des repères pour un récit nationaliste
marqué par un héroïsme exemplaire qui, comme le note l’historien Carlo Célius (2004), centre sa
référence dans la valeur de la liberté alors qu’il légitime en même temps une posture violente de
l’État. L’histoire est ici le centre de disputes et d’une trame de la vie quotidienne, s’ouvrant aux
diverses possibilités de recherche et d’analyse.

S’il y a déjà plus de trente ans que Marshall Sahlins (1990) a analysé le débarquement du
Capitan Cook sur les îles d’Hawaii, cette étude représente un exercice structuraliste appliqué à
l’histoire – ce que Claude Lévi-Strauss (2008 [1985]) a d’abord montré comme possible lorsqu’il
s’interrogea sur les relations entre mythe et politique et que Manuela Carneiro da Cunha (2014
302

[1973]) avait annoncé, lors de son analyse sur le messianisme Canela, comme la logique du mythe
et de l’action. Cependant, ce qui permet à Sahlins d’aboutir à des formulations sur la pratique
comme l’élaboration historique de cadres culturels dans une « structure de la conjoncture », c’est
exactement un intérêt légitime des Européens et des Hawaïens d’en marquer le contact et ses effets
(Thomas, 1999; Gow, 2001). Le résultat en sera une riche quantité de matériaux sur lesquels
Sahlins aura construit ses analyses les plus brillantes, du classique Des îles dans l’histoire au plus
étendu et détaillé Anahulu : the anthropology of history in the Kingdom of Hawaii écrit avec
l’archéologue Patrick Kirch (Sahlins et Kirch, 1992). Dans son ambitieux projet, comme le dit
Sahlins, « le plus grand défi pour une anthropologie de l’histoire, ce n’est pas seulement de savoir
comment les événements sont ordonnés par la culture, mais comment, dans ce processus, la culture
est elle-même réordonnée » (Sahlins, 2008, p. 28, ma traduction).

Cependant, que faire quand cette richesse de documents est absente des travaux sur les
Caraïbes, ou que ce que l’on dispose, c’est avant tout une structure de la conjoncture profonde qui
atteint la genèse même des groupes humains qui ont fait de ces îles et territoires des espaces de
vie ? En effet, comme l’ont noté Stephan Palmié et Francisco Scarano (2011), dans un volume
récemment édité sur les Caraïbes,

En raison de la longue histoire de domination coloniale, les Caraïbes sont à juste titre
considérées comme le plus ancien théâtre de l’expansion européenne d’outre-mer. La durée
prolongée des expériences coloniales dans la région et la profonde empreinte coloniale dans
sa société et sa culture furent faibles en comparaison à celles qui ont été forgées dans des
colonies africaines ou asiatiques au temps du haut impérialisme (ca. 1850-1814). Tandis
que dans ces régions, à très peu d’exception près, des arrangements coloniaux ont durés
moins d’un siècle, dans les Caraïbes, la plupart des sociétés ont été formées depuis le tout
début, il y a au moins 350 ans (et, pour quelques-unes, il y a plus de 500 ans), tout à
l’intérieur des structures dictées par un capitalisme colonial et mercantiliste320 (p. 7, ma
traduction).

320
“Because of the long history of colonial domination, the Caribbean is rightly considered the oldest theater of
overseas European expansion. The extended duration of the region’s colonial experiences and the depth of the colonial
imprint on its society and culture dwarf those forged in African or Asian colonies during the age of high imperialism
(ca. 1850-1914). Whereas in those latter regions, with very few exceptions, colonial arrangements lasted less than a
century, in the Caribbean most societies were built from scratch at least 350 years ago (and some more than 500 years
ago), all within strictures [sic] dictated by a mercantile, colonial capitalism”.
303

La domination dont parlent les auteurs a commencé avec l’extermination virtuellement


totale des populations indigènes et d’un assemblage postérieur à un système de plantation orienté
vers la production du sucre pour l’exportation et basé sur l’esclavage des populations noires
d’origine africaine. Telle configuration a laissé des traces dans les paysages, les histoires et dans
la genèse des groupes sociaux caribéens. « La plantation de sucre », argumente l’historien C. L. R.
James (1989 [1963]) dans l’appendice de sa célèbre histoire de la Révolution Haïtienne, « a été la
plus civilisatrice ainsi que l’influence la plus démoralisante dans l’histoire des Antilles » (p.
392)321. Cette longue période de domination coloniale a fourni à la région un caractère
extrêmement contradictoire, ambigu et décidément non primitif. Sidney Mintz a été l’intellectuel
qui s’est le plus dédié à cette proposition, en affirmant à plusieurs reprises que l’entreprise
coloniale a donné aux Caraïbes une dimension profondément moderne où la plantation a été
responsable de la création d’un régime essentiellement industriel dans la campagne, autant pour la
dimension proprement productive que pour l’organisation de la force de travail, argument qui fait
écho non seulement aux écrits de C. L. R. James, mais aussi aux auteurs comme Eric Williams
(2012 [1945]) et Edgar T. Thompson (2013 [1932]). « [L]a tragédie et la gloire de la rencontre du
monde non-occidental avec l’Occident », a dit Mintz (2003), « s’est produite [aux Caraïbes] bien
avant qu’elle ait eu lieu à d’autres endroits, et dans des conditions qui empêcheront que son
horrible nouvelle soit reconnue par ce qu’elle a été : une modernité avant le moderne »322 (p. 82,
ma traduction, italiques ajoutées).

Cette modernité précoce a fait de la région un lieu peu intéressant pour l’anthropologie.
Distant d’être une aire culturelle avec un ensemble de traditions clairement définit, la région est
socialement marquée par le poids d’une histoire partagée. « Avec une population plus

321
“The sugar plantation has been the most civilizing as well as the most demoralizing influence in the West Indian
history”. Ainsi continue l’auteur: « Quand trois siècles avant, les esclaves sont arrivés aux Antilles, ils sont entrés
directement dans l’agriculture à grande échelle de la plantation de sucre, qui était un système moderne. (…) Ainsi, les
nègres, dès le tout début, ont vécu une vie qui était essentiellement une vie moderne » ["When three centuries ago the
slaves came to the West Indies, they entered directly into the large scale agriculture of the sugar plantation, which was
a modern system. (…) The Negroes, therefore, from the very start lived a life that was in its essence a modern life”]
(idem).
322
“[A] tragédia e a glória do encontro [do] mundo não-ocidental com o Ocidente aconteceu [no caso do Caribe] muito
antes que ocorresse em outra parte, e sob condições que impediram que sua horrorosa novidade fosse reconhecida
pelo que era: uma modernidade que antecedeu o moderno”.
304

expressivement non-blanche », note Michel-Rolph Trouillot (1992) en suivant les pas de Mintz,
« [la Caraïbe] n’était pas suffisamment ‘occidentale’ pour s’adapter aux préoccupations des
sociologues. Cependant, elle n’était pas non plus suffisamment ‘native’ pour entrer dans la niche
du Sauvage (savage slot) où les anthropologues rencontrent leurs thèmes préférés »323 (p. 20, ma
traduction).

Les Caraïbes et les peuples sans histoire


C’est cette ambigüité qui donne à la région un caractère ‘indiscipliné’, dans le double sens
du terme, autant pour son inadéquation à un agenda classique de recherche en anthropologie, que
pour l’éventail de critiques offert à l’imagination anthropologique dans la région (Trouillot, 1992,
p. 22). Exactement par le fait de sa complexité fondamentale, les sociétés caribéennes exigeaient
de nouvelles perspectives et stratégies de recherche qui n’étaient pas restreintes aux études des
‘cultures primitives’ ou à une dimension correspondant à une unité locale, comme la tribu, le
village, entre autres. En effet, la Caraïbe a toujours été furtive aux concepts qui essayaient de
réduire sa totalité à un élément unissant ou métathéorique, telle que la hiérarchie en Inde et le
complexe honneur-honte de la Méditerranée. Nommés « gatekeeping concepts » (concepts de
médiation et de contrôle) par Trouillot, ces concepts ont servi à réduire ou à mettre de côté l’étude
des complexités historiques et sociales en différents contextes (pp. 21-22). Dans la définition de
l’anthropologue (Trouillot, 1992), ces concepts de médiation et de contrôle « sont appelés des
caractéristiques ‘natives’ mythifiées par la théorie d’une manière à limiter l’objet d’étude. Ils
agissent comme des simplificateurs pour restaurer le présent ethnographique et protéger
l’intemporalité de la culture »324 (p. 22, ma traduction, italiques ajoutées). Cela est évident quand
la Caraïbe est utilisée comme source d’inspiration conceptuelle pour des auteurs qui se sont
appropriés des termes comme ‘hybridisme’, ‘créolisation’ et ‘marronnage’, en les fétichisant et en
les transposant pour un usage simplement illustratif et instrumental, sans cependant s’approfondir

323
“With a predominantly nonwhite population, it was not ‘Western’ enough to fit the concerns of sociologists. Yet it
was not ‘native’ enough to fit fully into the Savage slot where anthropologists found their preferred subjects”.
324
“…are so called ‘native’ traits mythified by theory in ways that bound the object of study. They act as theoretical
simplifiers to restore the ethnographic present and protect the timelessness of culture”.
305

sur les contextes qui les ont générés (Mintz, 1985, 1998, entre autres ; voir aussi Scott, 2004, pp.
192-193).

Sous la plume d’écrivains et d’intellectuels caribéens, en outre, ces contractions ont été
observées par une perspective du manque – d’un passé stable et d’une conscience historique du
temps – assumée comme une possibilité interprétative de l’histoire et du présent dans la région.
Entre la domination, l’hétérogénéité et le manque de vestiges historiques, dans les Caraïbes, il ne
resterait rien d’autre qu’une ‘absence de ruines’ – une image littéraire créée par Derek Walcott qui
s’est développée dans un lieu-commun, repris par Orlando Patterson et beaucoup d’autres écrivains
et essayistes de la Caraïbe (Price, 1985 et Khan, 2010 ; mais voir aussi, Scott, 1991 et Stoler,
2013). De V. S. Naipaul (1969) et sa mise en lumière sur le caractère disruptif de la traversée
atlantique à Junot Díaz et le personnage Beli du roman La brève et merveilleuse vie d’Oscar Wao,
qui, après avoir laissé de côté un passé de souffrances et de pertes, « n’a plus jamais pensé à cette
vie. Elle a donné lieu à l’amnésie si ordinaire à toutes les Îles, moitié négation, moitié hallucination.
Elle a embrasé la force des Anti-îles (Untilles) »325 (2008, pp. 258-259, ma traduction ; pour
d’autres exemples, voir Khan, 2010, pp. 179-180).

Aussi, si on s’attarde sur la proposition de Trouillot (1992), « [l]es sociétés caribéennes


sont inéluctablement historiques, dans le sens qu’une partie de son passé distant n’est pas
seulement connue, mais un passé connu pour être différent de leur présent, et aussi pertinent, non
seulement pour la compréhension de ce présent par les observateurs, mais également pour les natifs
»326 (p. 21, ma traduction). La nature de l’histoire caribéenne et la signification du passé par les
peuples des Caraïbes forment ainsi un problème interprétatif irréductible (Trouillot, 2002, p. 854).

Des questions similaires à celles que je me pose dans cette thèse ont été engagées par
l’anthropologue Richard Price (1983) dans un autre contexte caribéen. Entre les Saamaka du
Surinam, l’auteur a noté une « conscience profonde du fait qu’ils ont vécu dans l’histoire » (p. 5).
Ce fait n’a pas été nécessairement relié aux capacités de narration des Saamaka, mais aux pratiques
et aux actions qui ont conjurées le passé, un passé qui se fait présent à travers des chansons, des

325
“Beli never thought about that life again. Embraced the amnesia that was so common throughout the Islands, five
parts denial, five parts negative hallucination. Embraced the power of the Untilles”.
326
“Caribbean societies are inescapably historical, in the sense that some of their distant past is not only known, but
known to be different from their present, and yet, relevant to both the observers’ and the natives’ understanding of
that present”.
306

tambours, des généalogies, des épithètes, des rituels et des toponymes (pp. 7-8). Toutes ces formes
ont servi à préserver une connaissance sur le fesiten, ‘les premiers temps’, dans la traduction de
l’auteur, le temps des guerres de libération contre le domaine colonial hollandais. Les Saamaka
vivent l’histoire parce que, selon Price, ils vivent la peur constante d’un retour à l’esclavage et
résistent donc à toute forme d’oubli. Le fesiten est alors traité comme un ‘événement’ et, comme
tel, il se montre comme une unité d’analyse pour l’auteur :

En prenant des fragments (parfois une simple phrase) de différents gens, en les comparant,
en les faisant dialoguer avec d’autres, en les provoquant avec des récits contraires et,
éventuellement, en les faisant tenir contre des évidences contemporaines écrites, j’essaye
de développer un tableau de ce que les plus grands savants Saamaka savent, pourquoi ils le
savent et le préservent327 (p. 25, ma traduction).

A partir de cela, l’auteur pense possible de comparer les fragments et les élaborations qui
constituent la conscience historique saamaka avec les registres coloniaux des hollandais – qui
étaient, en effet, nombreux en raison des guerres, accords de paix et négociations entre les Saamaka
et le pouvoir colonial – dans un essai créatif orienté vers la quête d’une objectivité historique. En
effet, et Price (2013) le réaffirme dans l’introduction à la récente traduction française du livre First-
Time, les Saamaka représenteraient une exception dans un espace caribéen marqué par une
domination externe (marchés, États et colonialisme) et par l’oubli, voire la mimesis et le
simulacre :

Si Les Premiers Temps est un livre consacré à la conscience historique, il est aussi consacré
à des gens qui, de tous les habitants du Nouveau Monde, sont les seuls à pouvoir, sans la
moindre exagération, se prévaloir d’une tradition de résistance sans relâche à l’esclavage,
et à pouvoir se revendiquer comme des vrais ‘Nègres marrons’. A une époque où chacun,
dans les Caraïbes, depuis le plus humble paysan martiniquais jusqu’aux intellectuels
antillais les plus éminents, voudrait se faire passer pour Nègre marron, à une époque où les
hommes politiques, depuis Papa Doc jusqu’à son équivalant de Guyane, ont tous érigé des
monuments à la gloire de cette figure mythologique (…), Les Premiers Temps donne

327
“Taking fragments (often a mere phrase) from many different men, comparing them, discussing them with others,
challenging them against rival accounts, and eventually holding them up against contemporary written evidence, I try
to develop a picture of what the most knowledgeable Samarakas know, and why they know and preserve it”.
307

l’occasion à de vrais Nègres marrons, en chair et en os et non pas imaginaires, de s’exprimer


sur leur propre vie, leur passé héroïque et l’épopée des confrontations avec les colons, aussi
bien que sur leurs histoires d’amour et de familles, et sur leurs grandes célébrations rituelles
(p. 7, italiques ajoutées).

Comme l’indiqueront certains auteurs, les limitations de la proposition de Price sont


exactement dans la quête d’un ‘passé authentique’ par un effort vérificationniste (Scott, 1991) et
dans le caractère exceptionnel que l’auteur donne à la résistance saamaka (Khan, 2010). Pour
représenter un cas exemplaire de société noire au Nouveau Monde, les Saamaka présenteraient en
effet une exceptionnalité fondamentale, comme si les fuites précoces dans les forêts et les
montagnes et une ‘rupture’ supposée avec la domination coloniale, particulièrement la plantation,
leurs auraient garantis la possibilité presque exclusive de maintenir des traditions orales, une
conscience historique et un sens collectif du groupe. Bien sûr, la possibilité de raconter l’histoire
saamaka selon les instances de légitimation historiques modernes a eu un rôle important dans la
lutte politique des Saamaka (cf. Pires, 2015). Cependant, ce qui m’intéresse ici, ce n’est pas
d’affirmer une exceptionnalité dans le cas des paysans nord-haïtiens, mais de profiter des
hypothèses offertes par le travail de Price dans toute sa radicalité.

Or, s’interroger sur les significations sociales du passé et sur la culture en tant qu’histoire
n’est rien de nouveau pour l’anthropologie, au moins depuis les travaux de Claude Lévi-Strauss
(2010 [1962]). Des systèmes d’alliance historiquement reproduits, au-delà de la filiation, peuvent
servir comme forme de (re)production d’identités (Porqueres, 1995), un moment de possession
peut garantir l’actualisation de toute une lignée (Bastide, sous presse), la vengeance et le
cannibalisme, en tant qu’incorporation de l’autre, peuvent être la matière même du social (Carneiro
da Cunha et Viveiros de Castro, 1985) et les conflits contemporains peuvent être le résultat direct
de querelles du passé (Thomaz, 2016). Aussi, d’importants débats des années 1970 et 1980 ont été
particulièrement fondamentaux pour les formulations critiques et réflexives sur la notion de
‘présent ethnographique’, sur la négation de la contemporanéité des natifs et sur le « vol de
l’histoire » (Kuper, 2005 [1988] ; Fabian, 2002 [1983] ; Goody, 2007). Tout cela nous aide à
comprendre que le passé est une construction sociale et nécessairement relationnelle. Michel Rolph
Trouillot (1995), dans un important travail sur le sujet, affirme la chose suivante :
308

...le passé n’existe pas de manière indépendante du présent. En effet, le passé n’est passé
que parce qu’il y a un présent, tout comme je peux pointer du doigt quelque chose là-bas
seulement parce que je suis ici. Mais rien n’est intrinsèquement là-bas ou ici. En ce sens,
le passé n’a pas de contenu. Le passé – ou, plus précisément, la condition d’ancienneté
(pastness) – est une position328 (p. 15, ma traduction, italiques de l’auteur).

Analyser l’histoire à partir de l’ethnographie doit donc s’employer moins à trouver un passé
authentique – dans des récits, vestiges, performances et d’autres supports – que de comprendre la
dimension relationnelle des connaissances et des pratiques donnant base aux expériences
personnelles et collectives par rapport à une multiplicité de temps et d’espaces. A cela, on peut
appeler ‘historicité’. Neil Whitehead (2003), dans l’introduction d’un volume édité dédié à
l’histoire en Amazonie, définit l’historicité comme « le schéma culturel et les attitudes subjectives
qui font du passé quelque chose de significatif »329 et qui produisent une conscience historique à
partir de laquelle des histoires spécifiques acquièrent du sens (p. xi).

Ainsi, les « multiples histoires peuvent être forgées à partir de multiples historicités »330
(idem). Néanmoins, argumente l’auteur, grâce aux nouvelles approximations entre l’anthropologie
et l’histoire, « notre registre d’histoires a augmenté beaucoup plus que notre compréhension des
historicités qui les produisent »331 (idem). A cette définition, j’ajouterais qu’historicités ne se
dédient pas seulement au passé, mas prennent parti à l’élaboration de ce que Charles Stewart et
Eric Hirsch (2005) ont nommé « un nexus temporel entre passé, présent et futur »332 (p. 262).
Telles que les propositions théoriques récentes qui questionnent la validité de concepts généraux
comme ‘société’ et ‘culture’, le terme ‘historicité’ – à l’exemple de matérialité, socialité et
territorialité – nous servent exactement à « capturer la condition réflexive et mutuelle propre aux
relations entre sujet et objet »333 (idem). En conséquence, à partir du concept d’historicité, on peut
comprendre mieux comment les notions de passé et de futur acquièrent du sens au-delà d’une

328
“But the past does not exist independently from the present. Indeed, the past is only past because there is a present,
just as I can point to something over there only because I am here. But nothing is inherently over there or here. In that
sense, the past has no content. The past – or more accurately, pastness – is a position”.
329
“…cultural scheme and subjective attitudes that make the past meaningful”.
330
“…multiple histories may occur from multiple historicities”.
331
“…our record of histories has expanded much farther than our understanding of the historicities that create them”.
332
“…historicity focuses on the complex temporal nexus of past-present-future”.
333
“…to capture the reflexive, mutual conditioning that occurs between objects and subjects”.
309

marcation linéaire et cumulative du temps qui discrimine passé, présent et futur comme des entités
divergentes (Koselleck 2005).

Même si tous les groupes sociaux des Caraïbes n’ont pas cette ‘conscience profonde’ d’une
histoire et ne partagent pas un passé héroïque comme les Saamaka, la manière dont l’histoire est
un sujet d’élaborations quotidiennes et d’engagements rituels a attiré l’attention de différents
chercheurs au cours des dernières années. Selon les rituels de santería à Cuba, temps et espace se
mélangent à partir de la parole et de la performance des muertos (Wirtz, 2016) ; des travailleurs
guadeloupéens ‘font marcher l’histoire’ au travers de pèlerinages, démonstrations et marches
(Bonilla, 2015) ; l’État cubain construit sa légitimité à partir du contrôle des événements et de
personnages historiques (Gonçalves, 2017) et les descendants de Chinois et d’Indiens recréent ces
rituels et marient les divinités de leurs ancêtres aux esprits européens et afro-américains (Mello,
2014 ; McNeal, 2015 ; Tsang, 2017). L’historicité et la signification du passé aux Caraïbes
forment, en effet, matière de disputes matérielles et symboliques divergentes. Même si dans une
localité apparemment isolée, comme une communauté d’anciens esclaves marrons, un village rural
distant ou une petite île de pêcheurs, différentes forces et agences – comme des chefs locaux, des
esprits, des jeunes, des élites lettrés et l’État – produisent des significations sur le passé et agissent
dans le temps et l’espace d’une manière parfois conflictuelle, elles créent également de nouvelles
possibilités associatives.

Ce qui m’intéresse ici, c’est d’élaborer une théorie ethnographique de l’histoire,


considérant particulièrement la façon comment le passé et, effectivement, le présent et le futur,
acquièrent du sens par des réflexions et des pratiques natives qui produisent des formes d’intimité
historique. A l’exemple de Michael Lambek (2003), qui a travaillé parmi les Sakalava de
Madagascar, je ne prétends pas faire le choix entre une version locale de l’histoire (ou une
ethnohistoire) et une version ‘objective’ d’un passé proprement dit. Non que je ne crois en cette
distinction, mais par soucis de comprendre qu’elle n’a pas de sens pour les gens avec qui j’ai vécus
à Milot. Aux moments où j’ai eu des échanges sur l’histoire pendant mon travail de terrain, soit
dans les conversations ordinaires, dans les entretiens formels ou dans des rondes de conversations
(chita pale), le thème n’était pas circonscrit à un temps distant. En effet, l’histoire fait partie de ce
que localement on appelle connaissance (konesans). Connaître (konnen) est quelque chose de très
valorisé et fait partie de logiques et de formes d’appréhension et de transmission de contenus
310

spécifiques, de techniques agricoles et pratiques magiques aux histoires proprement dites. Alfred
Métraux (1959) a été sans doute le premier anthropologue à noter le caractère prévalent de cette
notion quand il écrit sur la magie et son apprentissage en Haïti. Selon lui, «[l]es paysans haïtiens
appellent ‘connaissance’ ce que nous définirions par ‘pénétration surnaturelle et puissance qui en
dérive’. C’est par leur degré de ‘connaissance’ que les ougan et les mambo [prête et prêtresse
vodou] diffèrent entre eux » (p. 54).

Cependant, j’argumente que connaissance ne se restreint pas seulement à l’univers


composite des relations entre personnes, esprits et forces magiques ou surnaturelles. Les
connaissances sont en effet des versions de processus et de contenus qui, même sujet aux instances
de légitimation et consensus, sont toujours en transformation. Cela permet de penser l’histoire à
partir de cette catégorie native. Les questions qui s’ouvrent à partir de cette constatation sont
particulièrement intéressantes. La première est que la nature de la discussion se déroule sur un
champ épistémologique. Il n’y a pas d’histoire en Haïti qui ne fasse partie d’une ‘connaissance’.
L’histoire est la base d’une logique qu’oriente l’expérience et se refait à partir d’elle, étant
composée de formulations, d’agencements, d’appropriations et de diverses circulations. La
deuxième est conséquence de la première, car l’histoire peut ici acquérir des valeurs et des sens
distincts de ce qu’habituellement on comprend par histoire dans des formulations qui se basent sur
des pratiques de la discipline historique occidentale et son historicisme. Tel présupposé place les
travaux historiographiques ou ethnographiques dans une relation directe avec la logique locale de
compréhension du temps, de l’espace et des forces et agences sociales. Aussi, les textes
académiques d’historiens peuvent être lus à partir des récits d’historiens populaires, ainsi que les
élaborations et les arguments d’interlocuteurs communs, tout en associant différents statuts
épistémologiques. Cela permet que cette thèse puisse être lue comme une transformation
d’engagements et de récits locaux, dans une relation horizontale avec ces formes et ces pratiques
de connaissance.

Deux grandes inspirations pour cette entreprise sont, d’une part, les travaux de Michel-
Rolph Trouillot (1990 ; 1995) et, d’autre part, ceux de Joan Dayan (1995). Trouillot argumente,
dans son livre Silencing the past : power and prodution of history, que l’usage vernaculaire du mot
histoire dans différentes langues modernes porte une ambiguïté fondamentale : histoire se remet à
un fait ou à un processus qui s’est déroulé dans le passé ainsi qu’à ce qu’on dit sur ce fait ou
311

processus. « Le premier sens », dit l’auteur, « met en relief le processus socio-historique ; le


deuxième, notre connaissance de ce processus ou une histoire sur ce processus »334 (p. 2, italiques
ajoutées). En critiquant les positivistes et les constructivistes, Trouillot dispose que la
superposition entre processus et récit doit être admise dans sa distinction et dans sa propre
ambiguïté : tous les sujets sont en même temps des acteurs et des narrateurs. Sûrement, tout récit
historique se déroulerait dans un ensemble de conventions, de grande variabilité dans l’espace et
le temps, mais qui créerait des limites à la créativité et donnerait crédibilité à l’histoire – ce que
Appadurai (1981) a appelé « débatabilité du passé » (debatability of the past). En outre, comme le
rappelle Trouillot (1995) d’ailleurs, il y a une « matérialité du processus historique » qui « définit
le scénario pour les futurs récits historiques »335 (p. 29). A ces deux dimensions, il les nomme
historicité 1 et historicité 2, respectivement. « Ce qui s’est passé », continue l’anthropologue :

laisse des traces, quelques unes vraiment concrètes – édifices, cadavres, recensements,
monuments, journaux, frontières politiques – qui limitent l’ampleur et la signification de
n’importe quel récit historique. Cela est une des raisons pour lesquelles aucune fiction ne
pourrait se faire passer pour l’histoire336 (idem).

Ce n’est pas par hasard que Trouillot commence ses analyses à partir du palais qu’occupe
une colline à la fin de la rue principale de Milot. Néanmoins, si Trouillot propose une méthode
pour une anthropologie dédiée aux agences, forces et rapports de pouvoir qui mènent à la
production de l’histoire, c’est Joan Dayan (1995), dans son livre Haiti, history, and the gods, qui
discutera de la possibilité d’une écriture de l’histoire qui prend en compte des traces peu
conventionnelles comme les histoires de famille, les chansons du vodou et l’agentivité des esprits
et qui forme une tradition historique locale. Comme le dit l’auteure :

334
“The first meaning places the emphasis on the sociohistorical process, the second on our knowledge of that process
or on the story about that process”.
335
“…the materiality of the historical process (historicity 1) sets the stage for the future historical narratives (historicity
2)”.
336
“What happened leaves traces, some of which are quite concrete – buildings, dead bodies, censuses, monuments,
diaries, political boundaries – that limit the range and significance of any historical narrative. This is one of many
reasons why not any fiction can pass for history”.
312

L’histoire racontée par ces traditions défie nos notions d’identité et de contradiction. La personne
ou la chose peut être deux ou trois choses simultanément. Un mot peut être double, biparti, et
trompeur. Dans cet élargissement et multiplication de sens d’un mot, répété dans des rituels de
dévotion et de vengeance, nous commençons à comprendre que ce qui devient de plus en plus vague
devient tout aussi distinct à la fois : il peut signifier ceci, mais cela aussi337 (p. 33, italiques de
l’auteure).

Pour cela, si la matérialité des ruines est quelque chose d’irréductible, il faut également
observer d’autres présences, peut-être moins tangibles, mais qui ont un poids notable sur la
production des connaissances et des significations sur le passé, sur le présent et sur l’avenir.

Le lieu de l’histoire
« Tu sais, Rodrigo, si j’avais des ailes, je volerais bien loin de Milot »338, m’a dit Jorab
dans une conversation, en 2012, lors de mon premier séjour au nord d’Haïti. Jorab était un jeune
habitant de Milot et, à l’époque, il travaillait dans le centre culturel où j’ai vécu pendant la plupart
du temps de mon travail de terrain. Avec lui, et d’autres jeunes qui vivaient au centre culturel, j’ai
appris à parler le créole haïtien, ce qui a permis qu’au bout de quelques semaines nous sommes
devenus des amis très proches. Il m’accompagnait dans les randonnées que je faisais dans les
plaines ou dans les mornes où je pouvais atteindre les localités rurales de la commune. Durant ces
marches, nous rencontrions des gens qui allaient d’une localité à l’autre pour visiter leurs proches,
pour entretenir un champ, pour travailler sur le terrain d’un voisin, pour aller au marché ou
simplement pour flâner (flane). Avec eux, les gens portaient des objets, de la nourriture, des
animaux, des produits du jardin, entre autres. Être en mouvement et faire les choses circuler est
une valeur centrale dans une économie morale basée sur la liberté et l’autonomie, mais en même
temps, une exigence des rapports de parenté et d’échanges qui constituent la vie sociale à Milot.

337
“The history told by these traditions defies our notions of identity and contradiction. A person or thing can be two
or more things simultaneously. A word can be double, two-sided, and duplicitous. In this broadening and multiplying
of a word’s meaning, repeated in rituals of devotion and vengeance, we begin to see that what becomes more and more
vague also becomes more distinct: it may mean this, but that too”.
338
Ou konnen, Rodrigo, si m te gen zèl, m tap vole lwen Milo.
313

La commune est composée par trois sections rurales divisées entre petites localités rurales
appelées d’une manière plus populaire abitasyon339. Ces unités territoriales forment des voisinages
(vwazinaj) composées par des maisons (kay), ou parfois, des ensembles de maisons autour d’une
cour (lakou) qui, métonymiquement, désigne aussi cet ensemble. Des maisons sont détruites pour
être construites sur d’autres terrains ; les champs deviennent des lakou et des lakou deviennent des
routes et ainsi de suite, dans un mouvement intéressant qu’accompagnent la mobilité, la parenté et
le cycle de vie des personnes composant une famille (fanmi).

Une famille était conçue pour mes interlocuteurs par un groupe de personnes rattachées par
différents liens de parenté. D’une part, la filiation est bilatérale et localement définie par une
composition d’éléments transmis par descendance, appelés héritage (eritaj), dont le sang (san), la
terre et les esprits de culte340. D’autre part, l’alliance est centrée sur une série de pratiques dont la
conjugalité (maryaj ou plasaj), le compadrazgo, et d’autres activités quotidiennes qui établissent
des formes de réciprocité, tels que l’échange de nourriture, l’entraide (konbit), les homonymes
(tokay), entre autres, dynamiques que beaucoup d’interlocuteurs définissaient comme des formes
d’ « élargir la famille » (elaji fanmi). Les maisons et les lakou sont des stabilisations temporaires
de ces relations de filiation et d’alliance, et sont une forme d’identification primordiale de la
personne qui l’accompagne partout où qu’elle soit, soit dans ses trajectoires quotidiennes quand
elle est identifiée à quelqu’un du « lakou d’un tel » ou comme le « fils d’un autre », soit quand elle
part à l’étranger et qu’elle se sent alors obligée d’envoyer des cadeaux ou de l’argent. À Milot,
comme dans d’autres contextes haïtiens, on est toujours une personne qui appartient à une maison
ou à un lakou (moun kay ou moun lakou), ou encore, comme le montre une formulation aussi
commune, mais plus poétique, « une personne qui appartient à d’autres » (moun a yon lòt moun),
comme le discute Flávia Dalmaso (2014) lors de son travail sur la parenté dans une commune au
sud du pays.

339
Son origine est associée aux unités de production du temps colonial. Milot faisait partie de la province de Petite-
Anse et, à cause de son relief montagneux, était une zone remplie d’habitations de café (voir Moreau de Saint-Méry,
1958 [1797], p. 235).
340
À Milot, ces esprits sont appelés la plupart du temps jany, mais d’autres variations sont aussi usuelles comme
ginen, mistè, zanj etc. Le mot lwa, consacré dans les études haïtiennes, est plus présent dans la macro-région Sud-
Ouest du pays. Au nord, lwa se remet à des esprits achetés par des transactions obscures, alors qu’au Sud-Ouest, il
correspond à la division lwa ginen ou rasin (esprits de la Guinée [ou Afrique] ou esprits-racines) et lwa achte
(esprits-achetés). Sur ce sujet, voir Richman, 2005.
314

Jorab était le fils d’un couple de paysans qui vivait à Lasalle, une abitasyon aux alentours
du centre de la commune. Son père travaillait dans les jardins et sa mère avait un commerce dans
le marché de Milot ou ceux du Cap Haïtien, la capitale du département du Nord, ancienne capitale
de la colonie de Saint-Domingue, distante de 20km de Milot. Comme d’autres jeunes de la
commune, la vie à la campagne, ou andeyò comme on dit, n’était pas selon lui une vie facile. S’il
avait des ailes, il volerait bien loin de Milot. Au début de 2018, lors de mon dernier séjour à Milot,
Jorab et moi passions par Lasalle et avions vu la base en pierre d’une kay ; c’était la maison que
son père et sa mère construisaient pour y vivre. Cela faisait plus de 5 ans qu’ils l’avaient
commencée. En la regardant, Jorab fit le remarque suivante : « tu vois ce que je veux dire ? Mon
père et ma mère ont passé toute leur vie à travailler la terre et à faire du commerce, et ils n’arrivent
même pas à finir leur propre petite maison »341. Milot en particulier, et Haïti d’une manière
générale, était pour lui des endroits où l’on « n’avait pas de travail », une formulation que j’ai
entendue à plusieurs reprises et en différents contextes pendant ma recherche de terrain.

En effet, la vie à la campagne était conçue pour la plupart de mes interlocuteurs à Milot,
comme une vie pleine de difficultés, de misères (mizè) et de défis. Cela se faisait ressentir surtout
par l’emploi courant du terme malheureux (malere) comme catégorie collectivisante pour définir
sa place au sein de la communauté politique imaginaire qu’est la nation (Anderson 2016 [1982])342.
Un malere ou une malerèz, qui est curieusement un des rares adjectifs en créole haïtien admettant
une variation de genre, est toujours une définition relationnelle. Les malere sont aussi les pauvres
(pòv), les gens du dehors (moun andeyò), opposés aux bourgeois (boujwa), aux gens capables
(moun kapab), aux citadins (moun lavil). Comme l’écrivain et ethnologue haïtien Jacques Roumain
(2007 [1944]) a formulé dans un passage de son livre classique, Les gouverneurs de la rosée : «
Les malheureux travaillent au soleil et les riches jouissent dans l’ombrage » (p. 31, italiques
ajoutées).

Cette vie désenchantée est paradoxalement remplie d’enchantements. Ce sont des relations
de parenté et de voisinage qui produisent la communauté et les personnes, des ancêtres qui

341
Ou wè sa m di ou la ? Papam ak manmanm yo te toujou travay latè ak fè komès, men menm ti kay sa, yo pa ka
fini.
342
Le terme malheureux a atteint une popularité après son usage par une élite lettrée au début du XXème siècle
comme une forme de production d’un nationalisme qui voyait la campagne comme la source d’une identité haïtienne
essentialiste et atemporelle (voir Stieber, 2016; Chochotte, 2017).
315

inspirent des projets pour l’avenir, des esprits qui exigent que les choses soient toujours en
mouvement, des êtres malveillants qui attaquent les individus et détruisent les liens de parenté.
Des vies en ruines qui, comme le palais royal à la fin de la rue principale de Milot, sont aussi le
produit historique d’une quête pour l’autonomie et la liberté. Cette thèse a donc un caractère peu
conventionnel : alors qu’elle se base sur un travail ethnographique, elle explore les possibilités
offertes par l’approximation entre anthropologie et histoire, observation participante et travail
d’archives, synchronie et diachronie.

Les systèmes de la thèse


Cette thèse est divisée en cinq chapitres dédiés au thème de l’histoire, de l’identité et de la
nation. Dans le premier chapitre, je décris un pèlerinage annuel réalisé à Milot qui attire des gens
de tout le pays, ainsi que de la diaspora haïtienne. Perçu comme une forme de prestation aux
ancêtres, entre les héros de la Révolution Haïtienne et les aïeux soumis au travail forcé, j’analyse
la place de ce rituel dans la production de connaissances, d’archives collectives et d’une intimité
historique. Ces formes populaires de production de l’histoire se présentent parfois en conflit avec
les élaborations officielles sur la place des ruines, sur le rôle des ancêtres et, de ce fait, sur la propre
souveraineté de l’État et sur son pouvoir sur la nation.

Les deuxième et troisième chapitres, reliés entre eux, abordent le thème des relations entre
les humains et les animaux à partir d’un massacre des cochons créoles à la fin des années 1970.
Un tel événement est constamment repris par les habitants de Milot comme un moment de perte –
car les paysans ont perdu un des piliers de son économie – et un événement inscrit dans une série
d’actions auxquelles les Haïtiens et les Haïtiennes ont dû subir en tant que malheureux (malere).
Pour mieux comprendre le poids du massacre dans le territoire national, j’observe de façon critique
une diversité de documents, de récits et de matériaux pour amplifier la dimension de l’analyse au-
delà de la localité de Milot. J’examine également des documents coloniaux pour comprendre la
place des cochons dans la constitution de la colonie d’Hispaniola, m’attardant particulièrement sur
la manière par laquelle les places à vivre ont été composées comme des formes relativement
autonomes par les esclaves. J’argumente que le rapport avec le cochon était central pour la «
reconstitution des paysanneries » après l’émancipation (Mintz, 1989 [1974). Dans ces deux
chapitres, j’esquisse une analyse de la perception que les paysans, les pauvres marchand(e)s, et les
316

habitants ruraux d’une manière générale, partagent sur leur vie et leur monde social comme un lieu
de souffrances, de malheurs et, dans une certaine mesure, de désenchantements. Dans le troisième
chapitre, j’opte pour une distance particulière avec les paysans haïtiens pour analyser les raisons
qui ont menées au massacre du côté des États-Unis et sa biopolitique contemporaine.

Quant aux chapitres 4 et 5, ils sont dédiés au thème de la connaissance historique et de


l’historicité. Dans le 4ème chapitre, je décris un moment électoral que j’ai suivi entre 2015 et 2016
quand deux des principaux candidats à la présidence – l’un d’entre eux était originaire de Milot et
l’autre d’une commune voisine – disputaient le soutien populaire et mobilisaient des stratégies et
des symboles visiblement différents. Je discute ici la polysémie du terme politique (politik) et sa
relation avec la catégorie locale de développement (devlòpman). Enfin, au cinquième et dernier
chapitre, je discute la place de la plantation et de son revers, la révolution. A partir d’un récit sur
une occupation de terres au début de 1987, j’analyse les élaborations autour de ces catégories et la
place du dictateur François Duvalier (1957-1971) dans la réactivation d’une tradition populaire de
révoltes. J’aborde également le thème de « la peur d’un retour de la captivité » en exploitant
comparativement le matériel ethnographique d’autres auteurs qui ont travaillé dans des contextes
postcoloniaux, comme le Nord et le Nord-Est du Brésil. L’idée est de dialoguer avec cette
littérature, et d’autres plus récentes, tout en prenant en compte que, si en Haïti on retrouve une
récurrence similaire de cette « peur de la captivité », on doit aussi en regarder son revers, la
révolution et ce qu’elle représente dans les élaborations sur le passé, le présent et l’avenir.
317

Chapitre 1 : Rituels de l’histoire


Dans ce chapitre, je décris et analyse la pérégrination annuelle entre le Palais Sans Souci
et la Citadelle La Ferrière, localisés à Milot, qui font partie d’un ensemble appelé Parc National
Historique. Ces deux constructions datent du début du XIXème siècle quand les gouverneurs
d’Haïti, au lendemain de son Indépendance, cherchaient à construire un pays dans un monde
atlantique toujours dominé par le colonialisme et l’esclavage des populations noires. Comme des
lieux de pèlerinage tout au long de l’année, le Palais et la Citadelle sont considérés, pour quelques-
uns de mes interlocuteurs, comme des « dons des ancêtres ». Durant la semaine de Pâques, le
village reçoit des gens de tout le pays et de la diaspora haïtienne qui viennent célébrer la « Fête de
la Citadelle », un moment rituel qui permet d’observer les relations culturelles entre ces lieux, les
vivants, les esprits et les ancêtres.

***

Beaucoup de mystères entourent la mort d’Henry Christophe. Général ayant gagné en


notabilité pendant les guerres d’Indépendance d’Haïti à la fin du siècle XVIII, Christophe a assumé
la fonction de dirigeant de l’État, entre 1806 et 1811, comme gouverneur et, entre 1811 et 1820,
comme roi Henry Ier. De son couronnement jusqu’à sa mort, en 1820, le pays fut divisé entre le
Nord, son royaume, et le Sud, une région gouvernée par un autre général important, Alexandre
Pétion. Christophe est connu comme « roi bâtisseur » et, parmi ces diverses réalisations, l’une des
plus impressionnantes était la construction du Palais Sans Souci, de l’Église Royale et d’une
imposante forteresse attachée à une cité au sommet d’une chaine de montagnes, appelés
respectivement Citadelle Henry ou La Ferrière et le Site des Ramiers.

Ces structures architecturales, ajoutées à d’autres plus petites, ont été construites au village
de Milot. Au Palais Sans Souci, transformé en habitation du roi, il y était interdit la présence de
personnes non associées à la garde, à la noblesse ou aux services domestiques du monarque. À la
fin de son royaume, Christophe avait acquis un haut degré d’impopularité en gouvernant le
Royaume du Nord de façon impétueuse et en imposant le travail forcé pour atteindre ses objectifs
politiques et économiques. Le 8 octobre 1820, alors qu’un groupe insurgent marchait vers Sans
Souci, Henry Christophe donna fin à sa vie avec un tir de pistolet en plein cœur. Quelques instants
après, les rebelles prirent son palais en assaut et ses propriétés furent pillées ou simplement
détruites. Des témoignages de l’époque parlent du son d’un tambour appelant la population à la
318

révolte et des troupes qui « ne serviraient plus à un roi, mais qui seraient plutôt entièrement
libres »343. Ils reprenaient la tradition de révoltes et de violences qui fit de la colonie la plus rentable
de l’Atlantique, un pays libre. Aux portes du palais, des gens criaient « Vive la liberté ! Brisons
les chaines de l’Esclavage »344.

Le corps de Christophe fut enterré au sommet de la Citadelle sur une pile de mortier qui
aurait été utilisée pour les travaux finaux de construction de la forteresse. Cette pile, solidifiée, est
toujours là et demeure à la curiosité des visiteurs. Aujourd’hui, le Palais Sans Souci, la Citadelle
et Ramiers font partie du Parc National Historique (PNH), un enclos de 27km² et intègrent le
Programme du Patrimoine Mondial de l’UNESCO, recevant des investissements de différentes
agences nationales et internationales visant à sa conservation, considérant le tourisme comme une
alternative au développement régional et national. De ce fait, Milot se trouve arpentée par des
spécialistes et conseillers, Haïtiens et étrangers. Que le Palais, la Citadelle et les autres
constructions fassent partie d’un temps passé, distant et naturellement différent du présent, n’est
pas une évidence dérivée seulement de la matérialité de ces locaux. En effet, j’argumente ici que,
proche de la notion de chronotope proposée par Mikhaïl Bakhtine (1981), ces locaux mettent en
relief des croisements entre des espaces et des temps distincts. Dans le parc et ses environs, les
habitants des zones rurales vivent leur quotidien en interaction avec ces lieux et ses différentes
temporalités, travaillant la terre, produisant leur bétail, vendant leurs produits aux marchés de la
région, toujours en lien avec des parents, des voisins, des étrangers, des ancêtres et des esprits.

Henry Christophe est référé populairement en Haïti comme un ancêtre (zansèt) et, aux
côtés des figures comme Capois ‘La Mort’, Toussaint Louverture, Jean-Jacques Dessalines et

343
Lettre de George Clarke à Thomas Clarkson, 4 novembre 1829, Cap Haïtien, reproduite dans Griggs & Prator 1952,
p. 210.
344
Lettre de William Wilson à Thomas Clarkson, 5 décembre 1820, Cap Haïtien, reproduite dans Griggs & Prator
1952, p. 218. Sur le royaume de Christophe, voir Madiou 1988 [1847], tome 6, pp. 126-128; Vandercook, 1928;
Turnier, 1989, pp. 63-76; H. Trouillot, 1974; Fischer 2004; Hector 2009; Dubois 2012, cap. 2; Garraway 2012 et
Gonzalez 2012. Dans les années 1940 et 1960, une grande circulation d’intellectuels dans les Caraïbes,
particulièrement en Haïti, a eu comme résultat la reprise de la figure de Christophe, qui passa à faire partie des essais
et romains historiques comme le fascinant Le royaume de ce monde, de l’écrivain Alejo Carpentier, publié pour la
première fois à Cuba en 1948. D’autres pièces de théâtre de l’époque ont eu également Christophe comme
protagoniste, comme la célèbre La tragédie du Roi Christophe d’Aimée Césaire, publiée en 1963, et, avant cela, mais
moins connues, Henri Christophe: a chronicle in seven scenes de Derek Walcott, de 1948, et La tragedia del rey
Christophe du colombien Enrique Buenaventura, publiée en 1961. Pour une analyse de ce moment historique et
artistique, voir Cordones-Cook, 2010.
319

Alexandre Pétion, il assume un rôle important dans les projets politiques et dans les formulations
imaginatives sur la nation composante de ce que l’historien Carlo Célius (2004) a appelé de
« nationalisme héroïque » en temps qu’un projet d’une élite historiquement associée à l’État.
Toutefois, les ancêtres sont aussi présents dans les discussions quotidiennes et les conversations
en groupe. C’est sur la catégorie d’ancêtre que ce chapitre est dédié. Comme l’anthropologue Igor
Kopytoff (2012 [1971]) l’a remarqué, le terme ancêtre peut occasionner des confusions
ethnocentriques exactement par son emploi courant dans les langues occidentales, dissimulant
particularités ethnographiques et culturelles importantes. Pour cela, j’emploie la notion d’ancêtre
comme une catégorie native qui, comme nous le verrons, représente à la fois les aïeux reliés au
groupe de parenté et les personnages héroïques de l’histoire nationale. Les ancêtres sont des êtres
sujet à de nombreux pouvoirs et contradictions qui, pour y avoir laissé des héritages, dont la nation
elle-même, les gens y doivent des prestations et y formulent un nationalisme qui, différent du
« nationalisme héroïque » propre à l’État, se révèle davantage comme un « nationalisme par dette ».
Si nombreux sont les travaux anthropologiques sur Haïti ayant discuté de la place et du rôle des
esprits (lwa, jany, zanj, mistè, ginen et d’autres variations) dans les rituels et les pratiques magiques
et religieuses, très peu a été dit sur les ancêtres. Ces êtres sont des figures ambigües qui gardent
une dimension rapprochant parenté, politique et nation des pratiques et des conceptualisations
natives. De par l’excès de statues, d’éphémérides et d’anniversaires, aux vues des graffitis sur les
murs des villes, les peintures et les objets de décoration dans les maisons, sans oublier les émissions
de radio, les discussions publiques, les chansons de carnavals, les musiques populaires ou les partis
politiques avec leurs noms, les ancêtres sont partie fondamentale d’un quotidien dont l’histoire est
constamment un objet de disputes.

De ce fait, mon attention dans ce chapitre s’accentuera sur les formes par lesquelles les
pratiques rituelles offrent une place cosmologique des ancêtres et des historicités dont ils font
partie, c’est-à-dire les pratiques et les connaissances dans le temps et l’espace. Michel-Rolph
Trouillot (1995), dans son analyse des controverses autour de la nomination du Palais Sans Souci,
argumente que Christophe avait l’intention de laisser un héritage de la Révolution Haïtienne et son
gouvernement. Pour cela, il s’est à la fois porté acteur historique et narrateur d’une histoire, tout
en créant ce lieu comme une « source historique » et une « archive » (p. 26). Avec une compétence
remarquable, Trouillot arrive à assembler des fragments de l’histoire de Jean Baptiste Sans Souci,
colonel africain ayant lutté aux côtés des généraux comme Toussaint, Dessalines et Christophe
320

dans les batailles qui ont abouties à la fondation d'Haïti. Cependant, la posture du colonel
s’éloignait des projets des jacobins noirs – et cela lui en aura couté la vie. Christophe l’assassina
et, en son hommage, nomma le palais Sans Souci. Comme l’argumente Trouillot, Christophe
actualise l’histoire de la fondation du royaume de Dahomey en absorbant l’ennemi dans un rituel
transformatif (pp. 64-66). Un hommage qui, au lieu de célébrer le colonel Sans Souci, enterra son
histoire au-dessous de la construction en créant des silences aussi épais que les murs du somptueux
édifice. Dans ce processus de production de l’histoire, Christophe a réduit au silence les disputes
autour des significations de l’émancipation et de la liberté, une « guerre à l’intérieur de la guerre »
(p. 37-40), créant, à partir de la fondation d’une nouvelle souveraineté basée sur une royauté
divine, les contours de la nation.

L’objet principal d’investigation est la signification de l’histoire en tant que connaissance


et pratique. Pour cela, je me rapproche de la proposition d’une anthropologie de l’histoire (Palmié
& Hirsch, 2016). Assurément, toute anthropologie qui se dédie aux significations de l’histoire doit
être également une anthropologie historique ou, autrement dit, doit prendre en compte l’histoire
comme processus sociohistorique, ce que Trouillot (1995) a appelé « historicité 1 », et l’histoire
comme connaissance, nommée « historicité 2 » par l’auteur (p. 29). Mon objectif est de penser les
agences et les relations de pouvoir participant aux dynamiques de production de l’histoire et sa
relation avec les matérialités, les lieux, les pratiques et les archives. Ce chapitre est en cela un
retour aux questions, et particulièrement à ce lieu spécifique que Trouillot fit célèbre, autour des
discussions entre anthropologie et histoire. Néanmoins, il ne s’agit pas ici de faire une révision des
thèses de l’anthropologue, travail déjà réalisé par des chercheurs comme Dale Tomich (2009),
Susan Buck-Morss (2011) et Stephan Palmié (2013). Je voudrais, de mon côté, penser
ethnographiquement ce qui se passe quand les personnes, dans leurs pratiques quotidiennes et
rituelles, comme un pèlerinage ou une marche par exemple, se rapprochent des sources et des
archives, créant ainsi leurs propres significations historiques par l’interaction avec les traces
matérielles du passé et avec les ancêtres et leurs potentialités.

Milot est un village au pied du Massif du Nord, au croisement de deux collines, distant de
20km du Cap Haïtien, la capitale du département du Nord. Il n’y a pas de route pour les voitures à
partir de là. « Milot a une seule entrée et une seule sortie », comme on me le disait souvent. Cela
était utilisé de façon stratégique pour les manifestations et, parfois, dans les confrontations avec
321

les forces policières, comme la Police Nationale, le groupe d’opérations spéciales (UDMO) et la
MINUSTAH (Mission des Nations Unis pour la Stabilisation d’Haïti). Le village le plus proche
vers l’intérieur du pays Dondon, et la manière la plus facile d’y arriver, est de traverser les collines
à pied ou à dos d’animaux parcourant les sentiers, les bois et les jardins.

Au bout du village se trouve une grande place, connue sous le nom de ‘premier parking’,
où se situent le bureau du Parc, l’Église Royale, le marché touristique et une statue de Christophe.
Le Palais Sans Souci se situe au croisement des portails et se fait remarqué des différentes parties
de Milot du fait de son hauteur imposante. Le palais est formé par différents niveaux divisés entre
salles, chambres, salons et espaces fonctionnels, ainsi qu’un grand jardin au sud du palais et une
grande cour où reposent un buste d’Aphrodite et l’Arbre de la Justice, un caïmitier (Chrysophyllum
cainito) où, comme l’affirment les traditions orales, Christophe prononçait ses jugements.

Les Haïtiens et Haïtiennes, venus d’autres parties du pays et de la diaspora, visitent


régulièrement le Parc Historique, ainsi que des touristes étrangers, des figures publiques et du
gouvernement, des archéologues, des historiens, des anthropologues, des agronomes, des
architectes et des ingénieurs. Le village reçoit donc une grande attention de l’État et fait l’objet
d’une série de programmes de développement touristique menées par l’Organisation des Etats
Américains (OEA) et d’autres agences internationales, ce qui n’empêche pas de générer divers
conflits et d’innombrables disputes. Milot est un lieu-clé dans la construction de ce que Michael
Herzfeld (1991) a identifié comme une « conception monumentale de l’histoire », conçue comme
l’un des facteurs constitutifs de l’État-nation moderne et de son appareil bureaucratique. Sans
Souci, Ramier et Citadelle sont des lieux où se déroule une histoire entourée de qualités épiques,
tel qu’un mythe d’origine national (Neiburg, 1995), produit par des élites intellectuelles et par une
bureaucratie d’État, dont les héros, leurs actes et leurs héritages sont considérés comme source
d’autorité politique et morale, orientés vers la justification d’une revendication de pouvoir et une
domination d’un groupe spécifique sur le reste de la nation (Trouillot 1995, p. 105).

Ces phénomènes acquièrent des proportions globales dans ce contexte dû aux réseaux
d’investissements et de gouvernance transnationales qui s’y tissent345. De ce fait, au-delà d’une

345
Ces réseaux-là sont formés par l’État haïtien lui-même, les pays étrangers, les organismes internationaux qui
financent et mènent des projets humanitaires ou de développement, ainsi que par des groupes d’Haïtiens de la diaspora
qui maintiennent des rapports avec le pays en raison de liens d’identité et de parenté, en étant profondément attachés
322

« conception monumentale », l’histoire fait ici partie de ce que Trouillot (2003) a appelé « effets
d’État », auxquels les processus et les pratiques associés aux institutions gouvernementales et
transnationales créent un « effet d’identification », donnant un sens collectif aux sujets atomisés,
et un « effet de spatialité » en produisant un territoire et une frontière au centre desquels les ruines
et son symbolisme y sont attachés (p. 81). Comme Richard Handler (1988) l’a argumenté pour le
cas du Québec, des initiatives comme celles qui partagent une « logique réifiante » transformant
les lieux et les objets en propriété ou patrimoine national quand, au sein de ce même processus, la
nation se comporte comme un « individu propriétaire collectif ». De plus, Milot est à 30km de
Labadie, un village côtier où une plage privée reçoit annuellement plus de 400 mille touristes venus
des croisières maritimes, selon les données du Ministère du Tourisme (2008, pp. 25-26). A de
nombreuses reprises durant ma recherche de terrain, j’entendais parler d’une route qui lierait
Labadie à Milot sans la nécessité de passer par Cap Haïtien, ce que beaucoup de milotiens espèrent,
mais en vain et avec une certaine résignation, comme il l’est de coutume. Quelques fois par an,
des fêtes et des célébrations sont organisées au palais, auxquelles la population locale n’a pas accès
directement, mais dont elle peut bénéficier indirectement en raison des activités économiques
autour du Parc. Pour ces raisons-là, le mot pwoje est couramment employé par les habitants des
villages et des localités rurales.

Aujourd’hui, les ruines font partie d’une série d'initiatives transnationales qui recherchent
à donner une valeur de patrimoine aux constructions et aux lieux circonscrits. Ces initiatives sont
parfois des investissements conflictuels car ils opèrent à des échelles distinctes, utilisent des
langages de concurrence et ont des intérêts quelquefois incompatibles : l’État Haïtien, l’UNESCO,
les ONGs, les spécialistes qui vivent en Haïti, les politiciens, les entrepreneurs associés au
tourisme, les habitants de la zone, entre autres. Ces différents agents mobilisent des notions
diverses de patrimoine et sont orientés vers la production de « significations rétroactives de
l’histoire » (Trouillot, 1995, p. 26). Il est important de noter que les usages des lieux comme Sans
Souci et la Citadelle vont au-delà de ce que prescrivent les spécialistes et les agents d’État, dans
une sorte de « contre-archéologie de la connaissance sociale », comme l’a si bien définit Herzfeld
(1991) pour le cas de la ville de Réthymnon, en Crète.

à des dynamiques d’ancestralité, de magie et de religion. Sur la diaspora haïtienne, voir les travaux de Brown (1991);
Drotbohm (2010); Glick-Schiller et Fouron (2004); Joseph (2015) et Richman (2005).
323

A cela, j’ajouterais que l’attention des spécialistes et la quantité de projets associés au Parc
Historique de Milot se posent davantage dans une temporalité fragmentée, puisqu’elles s’opèrent
à partir de ressources insuffisantes, et parfois sévèrement interrompues, ce qui donne lieu à une
méfiance locale envers la nature et l’efficacité de ces programmes. En même temps, et cela
m’intéresse particulièrement ici, pour beaucoup de milotiens, ces multiples efforts et toute
l’attention envers les ruines attestent que les monuments, et particulièrement les ancêtres (zansèt),
comme Christophe, sont objet de fascination et de respect (respè), ce qui provoque des questions
importantes sur les significations du passé.

***

Dans ce chapitre, je décris les formes d’engagements entre les ruines et les ‘ancêtres’. Les
pèlerinages à la Citadelle ouvrent la possibilité de « connaître ce que Christophe a fait pour nous
et ce qu’il nous a laissé »346, comme l’a résumé Jorab. En effet, la montée à la Citadelle est un
processus de connaissance (konesans) dans lequel l’expérience de marcher ouvre la possibilité
d’appréhension des questions sur le passé, sur les ancêtres et sur la nation elle-même. La catégorie
native konnen est fréquente dans cet univers social et délimite les logiques et les formes de
transmission et d’appréhension de contenus dans un ample et dynamique régime de savoirs.
Connaissance embrasse des questions associées au passé et aux ancêtres, ainsi que des pratiques
agricoles, des notions de commerce et des techniques et savoirs magiques, connus couramment
comme des sekre (‘secrets’). Alors qu’ils vont à l’école, les enfants connaissent de nombreux
sujets ; les hommes ont la connaissance de l’usage de certains instruments car ils travaillent la
terre ; les femmes ont la connaissance de la « négociation » (fè pri) ou savent quand il faut planter
certains types de semences en raison de leur travail aux marchés (voir Silva, 2017 et Joos, 2017) ;
les sorciers (ougan, masc., ou manbo, fém.), à leur tour, connaissent les techniques et les secrets
qu’attirent la chance ou ce qui cause malheur (Fiod, 2017). Distant d’une répétition invariante de
contenus, connaissance fait partie d’une dynamique d’innovations et de changements, étant
toujours sujet à des disputes, réappropriations et resignifications (voir Métraux, 1958, p. 54 et
Apter, 2002).

346
Konnen sa Kristòf fè pou nou ak sa li te kite pou nou.
324

Une fois par an, le Parc Historique reçoit la « Fête de la Citadelle » (Fèt Sitadèl), un
événement qui réunit des gens de tout le pays et de l’étranger, surtout le Jeudi et le Vendredi
Saint347. La marche commençait dès l’entrée de Sans-Souci. En passant le portail, on apercevait
l’immense escalier suivi d’arches et de fenêtres, formant une construction d’une beauté
remarquable. Au quotidien, dans les salles et les espaces ouverts du palais, des gens du village s’y
rencontrent pour pratiquer la danse, bavarder, étudier ou jouer au football dans la cour. La marche
à la Citadelle, durant ces jours-là, quand le Parc reçoit beaucoup moins de visiteurs, est faite de
manière plus retenue et plus coordonnée. Le jour de la fête, c’est le mouvement qui prédomine :
musique, conversations animées et discussions chaleureuses sont au rendez-vous. « Cela est fait
pour honorer la gloire de Christophe », m’aura signalé un homme. De fait, durant les deux heures
de marche, les gens parlent beaucoup du passé et cherchent à connaître un peu plus sur les ancêtres
et leurs héritages. Durant la montée, la connaissance s’établit par la pratique, par l’expérience et
le contact avec les ruines et d’autres témoignages du passé, ainsi que par des récits mettant en
évidence quelque chose d’ancien. Un des thèmes centraux de ces récits historiques est la
Révolution Haïtienne. On parle beaucoup du fait héroïque des figures comme Henry Christophe,
Jean-Jacques Dessalines, Toussaint Louverture et Alexandre Pétion qui ont libéré le pays de la
domination française. Souvent, on croisait des groupes au sein desquels le plus âgé parlait du tan
Kristòf (temps de Christophe), mettant en relief comment le « roi civilisateur » avait créé les écoles,
les forts, les hôpitaux et comment il avait protégé le pays contre un retour des colonisateurs
barbares.

Cependant, on parlait également à ce moment-là d’autres ancêtres. Un canon au bord de la


route motivait de nouvelles discussions alors que le guide annonçait aux passants : « Ce canon a
été laissé ici par les esclaves (esklav) qui ont travaillé pour Christophe »348. En effet, les ruines et
les traces physiques du passé, comme les objets qu’on trouve par hasard dans le paysage, sont des
évidences de la gloire du roi Christophe et, métonymiquement de la Révolution. Toutefois, la
même matérialité prouvant la dimension irréductible de l’histoire comme processus, c’est-à-dire
sa dimension du fait, stimule d’autres réflexions entre les habitants de Milot et ses visiteurs. Au
sein des conversations quotidiennes sur le temps de Christophe, une question apparaissait de façon

347
J’ai accompagné à trois reprises ces festivités. Pour une question de style, je concentre ma description sur le
pèlerinage de 2012 en ajoutant des observations ponctuelles quand cela est nécessaire.
348
Kanon sa se esklav Kristòf ki te kite l la.
325

récurrente, inspirée surtout par la présence matérielle de Sans-Souci, de la Citadelle et d’autres


ruines et objets, et consistait à se demander comment Christophe avait pu construire ces structures.
Comment était-il possible de bâtir ces constructions gigantesques autrement qu’en contraignant
les gens à travailler dans des projets d’État ? Sur ce point, un autre habitant de Milot, un homme
âgé et ancien ébéniste, fit une intéressante pondération opérant une approximation du passé au
présent : « Nous sommes les esclaves qui ont sans cesse travaillé pour bâtir le fort. Mais il n’y
avait pas de route qui menait à la montagne. C’était à pied, dans des chemins qu’on découpait
comme ça. (…) C’était à cheval ou à dos de bourriques pour arriver en haut »349. Cette élaboration
montre que les ancêtres ne sont pas que les grands héros de la Révolution. Différents des grands
hommes, comme le roi, ils ont été soumis au travail forcé ou, plus spécifiquement, à un retour à
l’esclavage. Ainsi, à côté des faits héroïques de la Révolution, motifs de fierté, s’ajoute une
dimension tragique qui est aperçue par beaucoup de milotiens comme la survie du régime de
plantation et de l’esclavage dans les gouvernements postcoloniaux.

De fait, les projets contemporains de patrimonialisation des ruines menés par l’État, comme
des formes de production d’une « signification rétroactive » de l’histoire (Trouillot, 1995, p. 26),
mettent en relief des généraux et des héros. Ces efforts sont clairement orientés vers la production
de silences sur le rôle d’autres figures ordinaires durant la période révolutionnaire, comme les
esclaves insurgés d’origine africaine, et sur les politiques de privation de liberté qui ont suivies
l’émancipation350. Entre pauvres et habitants des zones rurales, la perception d’une situation
continuelle de souffrances et de malheurs comme un mode de subjectivation particulier à leur
classe sociale est commune. Non sans raison, l’adjectif malheureux (malere) est couramment
employé comme un nom collectivisant par les cultivateurs et les marchandes en parlant de soi-
même351. Le pèlerinage du Palais Sans-Souci à la Citadelle est, de cette manière, non seulement le
témoin de la gloire de Christophe, mais aussi l’expérience sensorielle de parcourir et connaître le

349
Esklav se nou menm lan ki te travay pitit a piti pou ede pou fè fò a. Men pa te gen wout vwatwou ki monte. Se a
pye, nan wout dekoupay konsa. (...) Se chwal senpleman, bourik chaje pou monte.
350
L’histoire de l’après Indépendance et de la continuité du régime de plantation font partie d’un intérêt de recherche
récemment renouvelé dans le champ de l’historiographie sur Haïti, surtout après les efforts de retirer la Révolution
Haïtienne de l’oubli et pour la comprendre dans sa dimension atlantique (voir Trouillot, 1995, chap. 3 ; cf. aussi Célius,
2004; Tomich, 2009 Dubois, 2004 ; Garraway, 2012 ; Gonzalez, 2012). Sur le poids des stratégies politiques et
militaires des africains soumis à l’esclavage à la veille de la Révolution, voir le classique de Thornton (1993).
351
Pour une analyse historique de cette « fraternité de souffrances » dans les discours des premiers dirigeants de la
nation, voir Sheller (2012) et René (2014).
326

chemin, ardu soit-il, construit par les ancêtres ordinaires. De ce fait, une intimité historique est
établie entre ces figures et ce qu’ils nous ont laissés comme héritage (eritaj). A travers le
pèlerinage, rituel ample et formatif dans lequel les gens rencontrent les ancêtres et leurs héritages
et recréent leurs liens, ils se constituent comme sujets et acteurs de l’histoire et de la nation.
327

Chapitre 2 : Un cochon, peut-il parler ?

Mais, me direz-vous, si du côté des coqs les choses sont simples,


elles sont beaucoup compliquées du côtés des hommes.
Pas tellement.
Aimé Césaire, La tragédie du Roi Christophe

En juin 1978, des médecins, vétérinaires et d’autres agents d’institutions internationales du


Mexique, du Canada et des États-Unis sont arrivés sur l’île d’Hispaniola, dans les Caraïbes, avec
l’objectif d’exterminer la population locale de cochons, appelés créoles, et de contrôler une
possible propagation d’une maladie porcine d’origine africaine. Ils ont commencé par la
République Dominicaine, éliminant la totalité des cochons du pays et avançant vers Haïti sur un
espace de 15km au-delà de la frontière. Néanmoins, peu de temps après, les spécialistes ont allégué
que la mesure préventive fut insuffisante. Le 16 novembre 1981, le programme s’étendra sur
l’ensemble du pays. Le massacre d’animaux contaminés dans le but de contenir la dissémination
de maladies avait déjà été pratiqué ponctuellement dans des pays comme le Portugal, l’Espagne,
Cuba et le Brésil. Cependant, dans ce cas-là, ce fut la première fois qu’une telle action achevait la
dimension stratégique prioritaire dans le combat aux infirmités animales en étant appliquée à tout
un territoire national ou, dans ce cas spécifiquement, à une île entière. À cette même époque, en
faisant le chemin inverse, des milliers d’Haïtiens et d’Haïtiennes s’aventuraient en mer à la quête
de nouvelles opportunités de vie vers d’autres îles des Caraïbes ou en Amérique du Nord. Les deux
sujets partageaient les pages des principaux périodiques de la région.

Exactement deux ans après, en novembre 1983, pendant la 10ème Réunion du Comité de
Coordination du Projet d’Eradication de la Peste Porcine Africaine et du Développement de
l’Élevage Porcin (PEPPADEP), spécialistes des agences comme la FAO (Organisation des Nations
Unies pour l’Alimentation et l’Agriculture), l’OEA (Organisation des États Américains), la BID
(Banque Interaméricaine de Développement) et l’USAID (Agence des États-Unis pour le
Développement International), d’universités, comme l’Université de l’Etat de la Georgia, aux
États-Unis, et fonctionnaires de gouvernement, Haïtiens et étrangers, célébrèrent le succès de la
politique d’extermination des cochons créoles et discutèrent des dernières mesures à être mises en
328

place pour l’effective déclaration d’Haïti comme un pays libre de la Peste Porcine Africaine (PPA).
Parmi ces mesures, on trouvait l’investigation d’animaux qui avaient été cachés par les paysans,
la chasse aux cochons marrons qui pouvaient encore détenir le virus, l’introduction d’animaux
sentinelles pour retracer les zones où la maladie pouvait encore être présente et la formulation de
nouvelles pratiques et de nouveaux environnements de production pour le repeuplement du pays
par une espèce étrangère. « Le programme en Haïti », affirmait un enthousiaste Dr. Quentin M.
West, de l’Institut Interaméricain de Coopération pour l’Agriculture (IICA-OEA), « servira
d’exemple pour la résolution de problèmes dans d’autres pays de l’hémisphère et les aidera à
progresser »352.

L’impact du massacre dans les économies locales a été immense, ce qui n’a pas été ignoré
par les participants de cette réunion qui durera du 14 au 16 novembre 1983. En revanche, même
face aux « sacrifices douloureux du peuple haïtien », Haïti serait récompensée pour l’aide dans ce
projet de biosécurité par la création d’une barrière sanitaire « contre des pestes naturelles capables
de mettre en péril les économies de tout l’hémisphère »353. L’agronome et secrétaire d’État pour
le développement rural d’Haïti, Luckner St-Dic, lors de son annonce à la fin de la première partie
du programme – l’extermination des cochons créoles – « souligne, cependant, l’importance du
panaméricanisme qui a dû [le pays] sacrifier son économie afin de prévenir la propagation d’une
peste sur le continent ». Il note aussi que c’était « la foi du peuple haïtien dans son gouvernement
quand il accepta ce projet ; les deux, le peuple et le gouvernement, ont maintenu sa promesse et
sont […] des guerriers méritants »354.

***

La première fois que j’ai entendu parler du massacre fut pendant mon premier travail de
terrain dans le nord d’Haïti, en 2012. A l’époque, je vivais dans la localité rurale de Samson, zone
de la commune de Milot, et, lors d’une conversation sur les animaux de création, madame André,
mère de la maison où j’habitais, m’avait parlé de l’histoire du massacre. C’était au début des années
1980, racontait-elle, quand un groupe de personnes est arrivé à la localité exclamant à plusieurs

352
“10th Coordinating Commitee Meeting held at PEPPADEP-Delmas, 14-16 Nov. 1983”, Rapport de reunion, p. 1
(ma traduction).
353
Idem, p. 40.
354
Ibid., p. 1.
329

reprises le nom du programme d’éradication : « Peppadep ! Peppadep ! ». Ils offraient 50 dollars


haïtiens (HD) pour les cochons plus grands et 5 pour les plus petits355. Les éleveurs cédaient alors
leurs cochons aux officiels qui les tuaient avec un coup de bâton ou avec l’administration d’une
injection pour ensuite, il est important de le souligner, remettre les animaux abattus aux éleveurs.
Après quelques mois, des spécimens hyper sélectionnés ont commencé à arriver en Haïti. Peu
adaptés aux régions tropicales et aux conditions d’élevage difficiles, les « cochons blancs »
(kochon blan), comme on les a nommés, n’avaient pas les mêmes usages et coutumes que les
cochons créoles. « Les cochons d’aujourd’hui », m’a confié madame André, « sont comme les
blan, ils ont des longues oreilles, sont maigres, ils fouillent partout [et] sa viande n’est pas si
savoureuse »356. A partir de ce récit, j’ai commencé à rechercher des traces laissées par ces cochons
et les effets de son absence, suivant les suggestions des personnes qui avaient caché les cochons
créoles pendant le massacre ou qui connaissaient leur histoire.

L’épisode envahit également l’imaginaire académique des travaux sur Haïti. En effet, le
massacre représente un des plus grands drames de la conscience des libéraux américains, exemple
des politiques impérialistes des EEUU aux Caraïbes. Cependant, peut-être parce qu’il s’agit de
cochons, on sait très peu de ces animaux, de son histoire, de ses pratiques et de ses comportements.
Commun aux travaux académiques sur le massacre, il a été mis l’accent sur le fait que les cochons
créoles représentaient des ‘banques’ dans une économie paysanne, en fonctionnant comme une
réserve de capitaux pour les moments difficiles, de cérémonie ou de célébration357. Peu d’auteurs
vont au-delà de cette évidence. Certainement, les cochons, comme d’autres êtres, vivent avec des
personnes et prennent parti aux projets humains, corporifient des valeurs, des temporalités, des
sens, composent des environnements et des histoires communes et portent, avec eux, les signes et

355
Le dollar haïtien est une unité monétaire imaginaire utilisée dans des transactions économiques quotidiennes. Elle
a une cotation fixe établie avec la monnaie locale imprimée, la gourde (HTG), en 5:1. Les deux sont couramment
cotées par rapport au dollar américain et, pour la majorité de ma recherche de terrain, cette cotation s’est maintenue
aux environs de 1 USD : 50 HTG : 10 HD, arrivant en 2018, à la proportion de 1 : 60 : 12. Sur ce sujet, voir Neiburg,
2016.
356
Se yon lòt systèm. Kochon sa nou gen jody a se tankou blan, gen zorèy long, yo chèch, yo fouye toupatou. Vyann
yo pa tèlman gou.
357
Voir, Abbott (1988, pp. 241 e pp. 274-275), Paul Farmer (1992, pp. 37-41), Jennie Smith (2001, pp. 28-30) e Karen
Richman (2005, pp. 49-51). Ces auteurs parlent de la persistance du massacre dans des histoires locales caractérisées
comme source d’une grande souffrance sociale, mais présentent des analyses similaires qui mettent en relief une
dimension structurale auto-explicative, sans s’approfondir sur les motivations culturelles et politiques qui l’ont
produite.
330

les possibilités d’autonomie et de subordination. Dans la chaine d’événements qui ont aboutis au
massacre des cochons créoles, animaux, vétérinaires, réfugiés, virus, pratiques culinaires,
techniques de laboratoire et pratiques de création ont agi à différentes échelles et ont produit
différents effets. La rencontre de ces agents et pratiques n’est pas exceptionnelle à travers
l’histoire, mais son interaction à ce moment et à ce lieu spécifique nous pose d’intéressantes
interrogations. Comment ces agents et notions diverses d’animalité, de vie et de maladie ont-ils
circulé et ont-ils affecté les uns aux autres ? Quel genre d’explication est-il possible de concevoir
pour mettre en lumière ces connections, motivations et conséquences ? Ou encore, quelle histoire
est-il possible de raconter si on pose le regard sur les cochons ?

L’attention aux cochons peut apporter des pistes intéressantes pour penser, d’une part, la
genèse des formes de vie paysanne dans les Caraïbes et son caractère notamment moderne et,
d’autre part, la constitution du capitalisme en tant que système culturel (Sahlins 1996 et 2007a;
Trouillot 2003; Mintz 1989 [1974]). A mi-chemin entre une ethnographie de l’histoire et une
histoire sociale des cochons, ce chapitre discute du mouvement continental de cette population
animale et son rôle dans la constitution d’un espace d’autonomie et de production qui a été crucial
pour la formation de la paysannerie haïtienne dans l’après-Révolution. Pour donner du sens à cette
dimension globale de l’arrivée des cochons et de sa mort, j’analyse les matériaux produits dans
différentes localités et à différents moments, tels que récits de voyage, peintures, documentaires,
ethnographies, entretiens, entre autres. Mon argument est aussi méthodologique : si Milot est une
localité où les vestiges matériels du passé sont matière à de longues conversations et élaborations
natives sur les ruines, les présences et les ancêtres, l’absence des cochons est également un sujet
courant et associé aux discours et aux savoirs sur la nation, sur les modes contemporains
d’expropriation et sur la vie des habitants ruraux et leurs perceptions de sa place dans le monde.
331

Chapitre 3 : La mort du pays


« La Caraïbe est maintenant une mer nord-américaine ». C’est le diagnostic de l’historien
C. L. R. James quand, en 1963, il publie la deuxième édition de son livre Les Jacobins noirs :
Toussaint L’Ouverture et la Révolution de Saint-Domingue (1989 [1963], p. 409), édition à
laquelle s’est ajouté un appendice intitulé « De Toussaint L’Ouverture à Fidel Castro ». Le
processus dont se réfère James s’est développé de façon irrégulière tout au long du XXème siècle,
par des jeux politiques et de stratégies. D’occupations militaires au contrôle financier en passant
par la création de zones économiques spécialisées en produits ou biens spécifiques, les EEUU ont
graduellement consolidé leur espace impérial. C’est sur cette toile de fond que se déroule le
massacre des cochons créoles en Haïti. Son origine est intimement liée à la constitution de cet
espace d’influences où les EEUU ont consolidés leurs politiques néocoloniales dans les Caraïbes,
non pas par la création d’un gouvernement direct, mais par son association aux mouvements
nationalistes, voire même décolonisateurs (Kelly et Kaplan, 2001). Si dans le chapitre antérieur,
j’ai discuté de l’arrivée des cochons dans les Caraïbes et la façon dont ils ont participé activement
au processus de colonisation et à la création d’espaces d’autonomie productive des groupes soumis
à l’esclavage, il reste encore à rechercher ce qui a motivé le massacre des cochons créoles dans la
deuxième moitié du XXème siècle.

Ici, la pièce manquante du puzzle nous mène à prendre distance de la vie des paysans et de
leurs interactions avec les animaux d’élevage, nous rapprochant davantage des laboratoires et des
politiques sanitaires globales. Que les familles d’esclaves recherchant de nouvelles possibilités de
vie en créant des lieux d’autonomies dans les interstices de la plantation devienne quelque chose
de plus ou moins évident, c’est que l’on se questionne davantage sur les raisons cachées du
massacre. Sur ce sujet, Trouillot (2003) dit de manière provocatrice :

Cependant, en fin de compte, le fait que la modernité ait longtemps été acquise en dehors
de l’Atlantique Nord n’est qu’une leçon tout à fait secondaire de la Caraïbe ; c’est une
conclusion qui fait que ceux qui sont à l’extérieur de l’Atlantique Nord doivent encore être
expliqués. Malgré tout, l’autre-natif [alter-native] est-il ce qui doit être expliqué ? (…) Le
puzzle est-il la résilience du processus de créolisation sous l’esclavage, ou l’attente que les
Africains asservis et leurs descendants seraient une tabula rasa ou de simples porteurs de
332

la tradition ? (…) En bref, le puzzle n’est-il pas au sein de l’Occident lui-même ?358 (p. 45,
ma traduction, italiques ajoutées).

On pourrait continuer ainsi : le puzzle serait-il le fait que les groupes soumis à l’esclavage
ont produit leurs univers sociaux aux côtés des animaux ou serait-ce le complexe d’assemblage
d’une extermination ? En tant qu’action associée à une politique sanitaire et biologique américaine,
cet épisode dévoile des principes culturels qui donnent base aux conceptions de race, d’animalité,
de maladie, d’écologie et d’histoire, et qui participent à la création d’espaces néocoloniaux
contemporains. Dans ce chapitre, j’analyse le massacre et ses conséquences dans une économie
politique du monde atlantique au sein de laquelle les populations paysannes sont une partie
inextricable. Il faut également noter, qu’au moment où de nouveaux documents, sources et
interprétations commencent à surgir sur le régime de la famille des Duvalier, beaucoup d’entre
eux, attentifs aux effets sur les populations citadines (voir Buteau & Trouillot, 2013), il est possible
de comprendre le massacre comme la forme d’un autoritarisme qui se déployait dans les
campagnes et au quotidien des paysans.

358
Ultimately, however, the fact that modernity has long obtained outside of the North Atlantic is only a secondary
lesson from the Caribbean; it is a conclusion that still makes those outside of the North Atlantic the ones who need
to be explained. Yet is the alter-native really what is to be explained? (…) Is the puzzle the resilience of the
creolization process under slavery, or the expectation that enslaved Africans and their descendants would be either a
tabula rasa or mere carriers of tradition? (…) In short, is not the puzzle within the West itself? (p. 45).
333

Chapitre 4 : Le diable, la politique et le développement

« Il parle le langage de Satan »359. C’est ainsi, qu’à travers ces mots, Anouse Jasmin a
caractérisé la campagne électorale de Jean Charles Moïse, un des candidats aux élections
présidentielles de 2015. Assis au seuil de sa maison, à l’abitasyon de Samson, lors d’une matinée
chaude et sèche d’octobre, on parlait du premier tour des élections qui s’approchait alors qu’on
écoutait les publicités politiques des différents candidats sur une station de radio locale. Je buvais
un café très sucré et je mangeais des noix de cajou qu’on avait grillé pour moi. Anouse, comme
d’autres milotiens, connaissait très bien Jean Charles Moïse. Il avait été maire de Milot pendant
deux mandats et avait contribué à l’élection de son successeur, ce qui amenait beaucoup de gens à
comptabiliser un total de trois mandats à la fonction de maire. En effet, Moïse est devenu une
figure charismatique en s’opposant à la dictature des Duvalier (1986) et a été l’un des responsables
des occupations de terres qui modifièrent en partie le régime foncier à Milot dans les années qui
suivirent.

La majorité de mes interlocuteurs le considérait comme quelqu’un de prestigieux et avait


envers lui beaucoup de respect du fait que ses actions aient garanti un morceau de terre aux paysans
et aux habitants des zones rurales de la région. Pour d’autres néanmoins, comme pour Anouse, il
parlait une langue ambigüe et mobilisait un ensemble de symboles et de forces de grande autorité
et de pouvoir, tout à la fois extrêmement dangereux.

En 2010, Jean Charles Moïse a été élu sénateur de la république pour le département du
Nord, se positionnant d’une façon très critique envers le gouvernement de Michel Martelly, élu
président du pays la même année. Vers la fin de l’année 2014, avec l’arrivée d’une nouvelle
élection, Moïse a fondé un parti politique pour s’opposer formellement à Martelly avec l’objectif
d’élire un successeur. Le nom choisi par le sénateur pour sa nouvelle plateforme était Pitit
Dessalines ou « Les fils.es de Dessalines ». Alors que les campagnes électorales commençaient,
la plateforme n’avait toujours pas de candidat défini et Moïse affirmait que son parti « comptait
sur une alliance entre la classe moyenne, la classe politique et les universitaires du pays pour

359
Li pale langaj Satan.
334

atteindre ses objectifs »360. Son slogan était clair : « Dessalines va chez Pétion » (Dessalines pral
kay Pétion). La référence y est le conflit ancestral qui marque les premières années de la
république : l’opposition entre Jean-Jacques Dessalines, ancien esclave, noir et général à la tête de
l’Armée Indigène et de l’émancipation du pays, et Alexandre Pétion, mulâtre libre ayant participé
aux guerres d’Indépendance mais dont la participation au complot qui suivra planifiant alors
l’assassinat de Dessalines lui donna une position instable au sein du panthéon historique
national361. Lorsqu’il disait que « Dessalines va chez Pétion », Jean Charles Moïse forgeait de
nouvelles significations aux conflits de classe et de couleur, aux politiques d’ancestralité et à
l’histoire elle-même.

Pas très loin de Milot, dans la commune de Trou-du-Nord, un autre Moïse devenait
populaire dans la région en raison d’une immense plantation de bananes qui était sous sa gestion.
Avec un prêt étatique de US$ 6 millions en 2014, Jovenel Moïse avait initié son projet à la tête de
l’entreprise d’agrobusiness Agritrans, occupant un terrain de presque mille hectares près de la
l’Université Henry Christophe récemment créée, au bord de la Route Nationale #6, voie liant Cap
Haïtien à Ouanaminthe, à la frontière de la République Dominicaine362. Ce terrain faisait partie en

360
Jocelyn Belfort, “La plateforme Pitit Dessalines n’a pas encore de candidat à la présidence," Le Nouvelliste, 07
avril 2015, http://lenouvelliste.com/lenouvelliste/article/143315/La-plateforme-Pitit-Dessalines-na-pas-encore-de-
candidat-a-la-presidence (Cette adresse, ainsi que ceux qui suivent, sauf indication, ont été accédées pour la dernière
fois en septembre 2017).
361
Alexandre Pétion est reconnu comme gouverneur républicain qui, en opposition au roi Henry Christophe,
successeur direct de Dessalines, a mené une réforme agraire dans le centre-sud du pays. Étant un ancêtre qu’inspire
le respect dans le discours officiel, mais aussi populairement, on le considère très vite comme papa bon kè (« père au
bon cœur », papa bon kè). En outre, quand j’emploie le terme mulâtre ici, je le mets en italique pour mettre en relief
l’usage local et consacrée par l’historiographie. Sur le thème de la race et de l’ethnicité en Haïti, voir Trouillot, (1990,
chap. 4) et Woodson (1990). Sur la mort de Dessalines, voir Dayan, 1995, chap. 1 et le programme de la Radio Haïti,
« Pouki yo touye Desalin?’ Konbit Pitit Kay, 17 oktòb 1979 », audio publié sur Radio Haiti Archives, Soundcloud,
17 octobre 2017, disponible sur: https://soundcloud.com/radiohaitiarchives/pouki-yo-touye-desalin-konbit-pitit-kay-
17-oktob-1979.
362
L’université, ainsi que le renouvellement de la route, ont été des dons de la République Dominicaine pour Haïti
promis par le président de l’époque, Danilo Medina, après le tremblement de terre du 12 janvier 2010, moment où de
nombreux chefs d’État annonçaient publiquement des donations pour le pays caribéen dans les journaux, les émissions
de TV et au sein d’institutions transnationales, exposant globalement leurs performances humanitaires et leurs gestes
solidaires. J’ai accompagné une réunion de l’UNESCO, en janvier 2011, en célébration à l’anniversaire du
tremblement de terre, dont l’objectif était de discuter des formes d’aide pour le pays. A cette occasion, après les paroles
des dirigeants de l’ONU et des représentants d’État, le diplomate haïtien a fait remarquer le retard du gouvernement
dominicain à exécuter ce qui avait été promis, exposant donc les représentants du pays voisin à l’embarras. Le don de
Medina n’était pas bien reçu de la part des secteurs sociaux dominicains qui ont alimenté un imaginaire anti-haïtien
et ont condamné le geste comme un excès, considérant comme une offense le choix du nom de l’université.
335

effet de la première zone franche agricole du pays, un projet dont l’objectif était de créer jusqu’à
3 mille emplois direct, exportant 70% de sa production de bananes organiques ou environ 20 mille
tonne363. Jovenel Moïse était quelqu’un proche à Martelly. Il avait participé à de nombreux congrès
avec le président où il avait été présenté comme un exemple de la nouvelle politique
d’investissements dans le pays, caractérisée par des déréglementations et des avantages fiscaux
envers l’industrie d’assemblage et de couture, par la création de zones franches et l’ouverture aux
capitaux étrangers.

Avec le rapprochement de la fin du mandat présidentiel de Martelly, il était nécessaire de


trouver un successeur. L’ancien premier ministre, Laurent Lamothe, avait déjà été mis de côté pour
des conflits d’intérêts et avait lancé sa propre candidature dissociée de la figure du président. La
plateforme de Martelly devait alors trouver quelqu’un qui continuerait le projet politique du Parti
Haïtien Tèt Kale (PHTK). Jovenel Moïse surgissait donc comme une option car il était une
personne qui, tout comme Martelly avant lui, n’avait pas de liaison directe avec la politique
traditionnelle. La rhétorique employée dans sa campagne a consisté effectivement à mettre en
relief sa position en tant que travailleur et entrepreneur prospère, quelqu’un qui, à l’exemple de ce
qu’il a pu achever pour lui-même, pouvait apporter le développement pour le pays et une « vie
meilleure » pour tous.

Le village était traditionnellement une zone qui soutenait Jean Charles Moïse. Il était
considéré comme moun lakay (« quelqu’un de la maison », « quelqu’un d’ici, de chez nous ») et
beaucoup de gens le reconnaissait comme un chef de Milot et comme une personne qui avait
beaucoup de connaissances (konesans), des notions polysémiques qui révélaient son pouvoir, son
respect et son influence. Son origine lui accordait également un statut privilégié, de proximité avec
les habitants des zones rurales, les marchandes et les citadins pauvres car il était « le fils d’une
malheureuse »364, comme l’a dit une fois l’un de mes interlocuteurs. Une des principales bases
(baz)365 de la région, le « Petit Parlement » (Ti Palman), le soutenait ouvertement. Localisée à

363
Ministère du Commerce et de l’Industrie d’Haïti, “Création de la 1 ère zone franche agricole haïtienne”, s.d.,
http://www.mci.gouv.ht/index.php?option=com_content&view=article&id=230%25252525253Acreation-de-la-
1ere-zone-frcreation-de-la-1ere-zone-franche-agricole-haitienneanche-agricole-haitienne&lang=fr
364
Pitit yon ti malerèz.
365
Bases sont des collectifs politiques qui organisent des événements diverses (comme festivités de fin d’année et
d’autre célébrations). Ces collectifs ont un rôle important dans la constitution de formes associatives locales, dans
l’organisation de manifestations et dans la résolution de conflits avec d’autres sphères et groupes politiques comme la
336

l’entrée de Milot, cette base exposait des affiches et des images du candidat, organisait des marches
et parfois bloquait la route en signe de protestation. Ils m’ont dit qu’ils « ne le laisseront pas tomber
» et qu’ils « lutteront avec lui » car il était quelqu’un qui « aimait le peuple » et qui « parlait et
apportait de la connaissance » pour tous366. Il était en effet très proche du peuple et des paysans
qui se voyaient comme défavorisés et méprisés par les élites, voyant en Jean Charles Moïse une
voix de représentativité au sein du scénario national.

Dans les mois qui ont précédés le premier tour des élections, prévu pour le 24 janvier 2016,
les candidats ont lancé la campagne partout dans le pays en mobilisant des références, des
langages, des symboles et des rhétoriques367. Milot était considéré comme un lieu privilégié à
cause de son importance historique, mais aussi par la grande circulation de personnes autour des
ruines du Parc National Historique. Affiches, messages imprimés, jingles, programmes de radio,
promesses, rumeurs et une infinité d’autres objets circulaient dans les rues des villes, des localités
rurales, sur les réseaux virtuels et dans les réseaux personnels des individus (Facebook, Whatsapp,
entre autres). Les candidats et les partisans n’étaient pas les seuls à utiliser les plateformes
politiques pour participer à la diffusion de ces objets et de ces histoires, même les milotiens qui,
par soutien ou simple curiosité, faisaient circuler des images et des programmes électoraux de
mains en mains, ainsi que des vidéos, des rumeurs et des émissions de radio à travers leur téléphone
portable. En effet, durant des mois, les campagnes politiques sont devenues un sujet habituel
soumis aux débats animés dans les lieux de rencontre, dans les localités rurales et dans des maisons.
Beaucoup de candidats et leurs partisans ont su utiliser les technologies mobiles créant des pages
web, se communiquant avec des électeurs sur des forums et groupes virtuels, et envoyaient des
enregistrements audiovisuels sur des plateformes de distribution digitale. Peu à peu, j’ai composé
une archive des élections, rassemblant papiers et informations ou matériaux divers de mon portable

municipalité, les représentants locaux, d’autres bases etc. Pour l’histoire de ces formes associatives et des exemples
récents, concentrés surtout à Port-au-Prince, voir James (2010), Kivland (2014), Braum (2014) et Neiburg (2017).
366
Nou pap lage l. Se yon nèg ki renmen pèp la. Se pou sa nou lite akè l. (…) Se konesans lap pale, se konesans lap
devlope.
367
D’un total de 54 candidats, il y avait également deux autres personnages importants dans le scénario national : Jude
Célestin, qui avait travaillé sous le gouvernement de René Préval et qui se comportait comme un politicien traditionnel
associé aux élites, et Maryse Narcise, figure de proue du parti Fanmi Lavalas et qui cherchait à récupérer l’héritage
de l’ancien président Jean Bertrand Aristide. À Milot cependant, ces noms sont apparus très peu dans les conversations
et les discussions au quotidien, car la dispute restait centrée entre les deux Moïse. Quant à la grande quantité de
candidats, Jorab l’interprètera en disant qu’« en Haïti, tout le monde veut être chef » (An Ayiti, tout moun vle chef),
dires que j’ai entendus aussi dans d’autres situations au cours de mon terrain.
337

et dans mon ordinateur : sites virtuels, reportages, messages et documents audiovisuels que les
gens de Milot, mais également les habitants d’autres villes, faisaient circuler.

Dans ce chapitre, j’analyse ethnographiquement les disputes politiques entre ces deux
candidats et je me concentre d’une part, sur l’ensemble des références symboliques, des forces
sociales et des objets électoraux que chacun des deux Moïses mobilisaient dans leurs discours et
campagnes et, d’autre part, sur les effets concrets de ce qui se forgeait comme politique,
représentation et souveraineté. Pendant le temps des élections, j’ai témoigné et participé aux
discussions et conversations passionnées dans les marchés, dans les transports publiques, dans les
bars, les bases, au sein d’espaces plus familiaux comme les maisons et les lakou, à Milot, au Cap
Haïtien et dans des localités rurales. Nombreuses furent les discussions, publiques ou privées, qui
provoquaient des ruptures entre collectivités, voisins, amis et même entre parents. En même temps,
ces occasions permettaient la constitution de nouvelles alliances motivées par le soutien ou la
contraposition à l’un des candidats.

Bien que Jean Charles Moïse fût une figure politique traditionnelle dans le Grand Nord,
nom donné à la macrorégion formée par les départements du Nord et du Nord-Est, il a
graduellement perdu les soutiens sur ce territoire, processus qui se forgeait depuis son élection
comme sénateur. Les dimensions réelles de cette perte, particulièrement dans sa ville natale, sont
sujettes à diverses interprétations qui appartiendraient à l’ordre de l’indétermination. Il nous reste
ici, inspiré d’un regard ethnographique, à rechercher les approximations à ce qui se comprend par
politique dans un large sens, analysant d’une part, comment le vote et le soutien politique sont
localement conçus et, d’autre part, comment les campagnes électorales deviennent des espaces de
création symbolique et politique qui mobilisent des forces et des significations dont l’efficacité est
soumise à un complexe conjoncturel de variations.

***

Inspirée des discussions sur une anthropologie de la politique (Palmeira & Heredia, 2010),
la contribution de ce chapitre est de discuter ethnographiquement la politique (politik) dans sa
pluralité de sens qui lui sont accordés par les agents sociaux. À travers l’analyse des formes locales
de parenté, je démontre comment la politique est comprise comme extérieure à la communauté,
associée à l’État et à ceux qui occupent cet ensemble institutionnel. Comme d’autres
anthropologues l’auront montré dans d’autres contextes différents, il y a une ambivalence dans ce
338

qui forme l’État, ses fonctions et ses effets, définit par un nombre de facteurs aux visages obscurs,
évasifs et spectraux, entourés de secrets, rumeurs et, dans beaucoup de cas, de violences, de
désordres et d’immoralités qui, selon les cas et les histoires, se normalise et s’assume comme des
dimensions constitutives de l’appareil étatique (Taussig, 1997; West et Sanders, 2003; Johnson,
2006; Thomaz, 2004; Comaroff et Comaroff, 2006; Trouillot, 2011, pp. 79-87).

Dans la célèbre formulation de Trouillot (1990), l’État haïtien s’est formé historiquement
en opposition avec la nation, se gardant une posture prédatrice envers le peuple, surtout les
paysans. Cette vision est en effet partagée par des personnes qui considèrent l’État et les politiciens
comme des entités distantes de la communauté locale et des drames quotidiens. L’État « nous a
oubliés », c’est quelque chose « contre lequel on ne peut pas lutter » et qui « nous a laissés pour
être mangés par des chiens »368. Toutefois, ces formulations ne révèlent pas seulement une distance
avec l’État, mais également une attente. Les périodes d’élections sont en cela des formes de
création de nouveaux compromis et de reconsécration du social. Cela était particulièrement évident
dans les campagnes des deux candidats favoris à Milot.

D’une part, Jean Charles Moïse parlait des ancêtres et de révolution. Il invoquait la force
de Dessalines pour combler les difficultés actuelles du pays et d’unifier les gens vers un nouveau
projet. La révolution était pour lui un processus sans fin qui devait être actualisé avec la force des
ancêtres et des esprits. Sa rhétorique exploitait pour cela un ensemble de références associées au
vodou, ce qui était en même temps très dangereux. C’était le « langage du Satan », comme l’a
remarqué Anouse Jasmin à Samson. D’autre part, Jovenel Moïse, dans ses campagnes politiques,
faisait référence d’une manière constante à la nourriture. A cause de sa plantation de bananes, il
reçut le surnom de « Nèg Bannann ». Évoquant la force productive et incantatoire qu’ont les
aliments en tant que « dons » dans les économies locales et la production de la parenté, il cherchait
à convaincre les paysans de son rôle comme politicien promoteur de l’abondance et du
développement. Ce concept polysémique correspond à un effort de trouver une « vie meilleure »
(lavi miyò), comprit comme une forme de « bonne vie » (Redfield) qui est toujours associée aux
formes locales d’égalité et de redistribution. Pour cela, si Jean Charles Moïse regardait surtout le

368
Leta blye nou; nou pa ka goumen ak Leta; Leta lage nou pou chen manje nou.
339

passé et mobilisait des symboles, pouvoirs et forces propres à un héritage, Jovenel Moïse visait
l’avenir, annonçant une autre Haïti : prospère, nouvelle et développée.
340

Chapitre 5 : Les échos de la Révolution

En janvier 2016, les élections présidentielles furent une nouvelle fois reportées. Des
incertitudes régnaient partout à Milot et la sensation générale était que tout cela n’allait pas finir.
Le 18 janvier, très tôt, Jorab passa chez moi m’apportant la nouvelle que la salle de la mairie où
étaient gardés les bulletins de vote avait été incendiée pendant la nuit. Après des allers retours,
suivis de critiques et de dénonciations de fraude, un nouveau tour avait été fixé pour le 24 janvier
et les bulletins avaient été envoyés aux villes et aux communes voisines. Ceux qui furent envoyés
à Milot sont arrivés le 17 janvier et furent brûlés le soir même. Jorab voulait aller voir ce qu’il
s’était passait. « On y va, konpè (compère), les choses sont devenues chaudes »369. Je me suis
changé et nous sommes allés à la mairie. Une fois arrivés sur place, nous avons vu un groupe de
personnes contempler ce qu’il restait des papiers. Aux contours des fenêtres, les marques d’un noir
de fumée avaient laissé un dessin irrégulier des traces d’un feu qui semblait avoir consommé une
bonne partie de l’intérieur.

Les personnes présentes parlaient de l’événement se rappelant d’autres épisodes plus ou


moins récents. Un homme avait mentionné le vol des panneaux solaires qu’illuminaient les voies
publiques et les places du village. En 2012, je me souviens qu’il était habituel de voir des enfants
lire ou étudier au-dessous des lampadaires, scène devenue rare maintenant car il n’y a plus
d’illumination publique. Je me suis approché du groupe qui discutait et je m’entreprenais à
demander s’ils savaient qui avait volé les panneaux solaires. « On le sait, bien sûr, mais on ne peut
rien dire »370. Milot est très petit et une accusation pourrait occasionner des conflits entre amis,
voisins et familles. Après tout, « tous sont de la même famille ici »371, a résumé un homme qui
observait la salle incendiée de la mairie. Ainsi, personne ne se risquerait à faire des accusations
publiques sur qui aurait pu avoir mis feu aux bulletins ce soir-là. Quelqu’un a mentionné Martelly,
lui reprochant la situation d’instabilité : « il ne veut pas que le pays avance »372. Son mandat arriva
à terme dans les semaines qui suivirent et les élections n’avaient pas encore eu lieu. Un autre

369
Ann ale konpè, bagay la cho.
370
Nou konnen, men nou pa ka di anyen.
371
Tout moun se fanmi.
372
Li pa vle kite peyi a vanse.
341

homme affirma que cela était l’action d’une des bases de Jean Charles Moïse, dont les membres
étaient définis vaguement comme des chimères (chimè)373. « Est-ce que c’est ça qu’on appelle
révolution ? »374, avait-t-il complété.

Quelques temps après, j’ai repris la marche avec Jorab et, quelques carrefours plus loin,
nous sommes passés devant la construction où fonctionnait autrefois l’archive notariale de la
commune (kontribisyon). Sans toit, porte ni fenêtre, les murs étaient debout et révélaient la
dimension de la structure de l’édifice. Une végétation peu dense dominait les pièces entre des
bouteilles en plastique et d’autres déchets. Un manguier fleurissait et couvrait une partie de la
construction. Ces ruines ne sont pas objets de sujet de conservation mais, curieusement, tout
comme Sans Souci et la Citadelle, elles restent là, au centre du village, sur la route de tous ceux
qui y passent, qui y viennent et qui s’en vont. J’avais déjà entendu parler d’histoires de l’époque
où des paysans de la région, après une série d’occupations de terre qui eurent lieu après le départ
de Jean-Claude Duvalier, avaient mis feu aux archives pour détruire les registres de propriété. J’ai
demandé à Jorab ce qu’il savait sur cet événement. « Je ne sais pas quand cela s’est passé »,
m’avait-il répondu, mais il a toujours entendu dire que c’était une « révolte (dechoukay) contre les
grands propriétaires (grandon) qui possédaient les terres ». Les paysans insurgés ont occupés un
ensemble de terres de la région contre un groupe de locataires et ont « brulés l’archive publique
pour en finir avec les papiers »375. Ces deux événements, bien que séparés dans le temps, gardaient
des similarités importantes. L’un et l’autre avaient comme cible des institutions publiques et des
formes bureaucratiques d’organisation, de régulation et de contrôle. Aussi, ils mobilisaient des
logiques d’action inspirées par une tradition de contestation, de révoltes et de violences.

A de nombreux moments de l’histoire du pays, comme l’a si bien remarqué l’historien


Alain Turnier (1989), « l’étendard de la révolte, selon l’expression choyée de l’époque, est levé »
(p. 314). Plusieurs gouverneurs ont été assassinés, Henry Christophe s’est suicidé et beaucoup
d’autres ont été forcés à l’exil pour s’être rendu compte de l’immense insatisfaction populaire et

373
Le mot chimère est devenu populaire lors de la réélection d’Aristide en 2001, étant utilisé pour définir une partie
de ses partisans, surtout ceux qui participaient aux manifestations et aux actes de violence, publiques ou secrètes.
Selon Erica James (2010), son existence précède probablement le deuxième tour d’Aristide et a comme origine les
formes d’associations autonomes de Cité Soleil, l’un des principaux quartiers populaires de Port-au-Prince.
374
Se sa yo rele revolisyon?
375
M pa konnen lè sa te fèt, paske m te pitit. Men m toujou tande ke se dechoukay pou grandon ki te gen tè yo, yo
boule yo pou yo pèdi papyè tè sa yo.
342

l’imminente révolte. Selon un autre historien, « [q]uand un pays a assuré son indépendance par la
voie d’une lutte armée, une tradition de violences persiste fréquemment au cours de la période
indépendante »376 (Nicholls, 1985, p. 170). En effet, comme l’historiographie récente commence
à y s’intéresser (Chochotte, 2017; Gonzalez, 2012; René, 2014), les rebellions armées, les
occupations de terres, les assassinats et les pillages ont été employés comme des formes de
régulation, de contestation et de renvoie d’un pouvoir central depuis l’aube de la nation. Parmi ces
mouvements, plusieurs ont eu comme protagonistes des habitants des zones rurales et furent
orientés par des idéaux de liberté, d’émancipation et d’autonomie dans la constitution d’espaces
familiaux et dans la quête pour des terrains de culture et d’élevage, aboutissant à des formes
d’autodétermination et de citoyenneté, parfois à la marge d’une structure politique officielle
(Nicholls, 1996 [1979]; Plummer, 1991; Sheller, 2012).

Ces disputes politiques et ces conflits fonciers nous permettent de s’interroger sur des
questions intéressantes. Des formes narratives aux formulations théoriques et politiques, ces
épisodes de révoltes et d’insurrections sont des réflexions sur les histoires et sur les processus de
transformation sociale, soit ceux ayant été vécus directement, soit ceux hérités du passé (Wardle,
2000; Sigaud, 2005; Borges, 2011). Or, je soutiens que si historiquement les actions de
contestation et de rébellion reprenaient l’héritage de la Révolution Haïtienne, ce fut plus
récemment, à partir de réinterprétations sémantiques et imaginatives basées sur une vision
spécifique du nationalisme haïtien et d’un travail attentif de production de l’histoire, que François
Duvalier, dans ses discours publics, dans la nomination des ennemis de la nation et dans la
production de repères architecturaux et de statues, put mener un travail d’appropriation de l’idée
même de révolution.

A partir de cela, Duvalier donna les bases de la contestation de son régime dictatorial,
réanimant une tradition populaire de révoltes dans un champ de disputes pour l’histoire et,
particulièrement, pour la sémantique de la révolution. Pour cela, l’idée de révolution s’opéra
comme le signifiant prédominant d’actions, de formulations et de disputes politiques des paysans
et des habitants des zones rurales, se portant comme « l’expression choyée » à un moment où
l’étendard de la révolte s’est une nouvelle fois levé. J’argumente dans ce chapitre, à l’exemple de

376
“When a country has secured its liberation by armed struggle, a tradition of violence frequently persists into the
period of independence”.
343

ce que Thomaz (2008) affirme sur le cas de la constitution de l’État au Mozambique pendant sa
révolution socialiste, qu’il est nécessaire de regarder l’État haïtien dans sa spécificité historique,
un État qui, comme celui du Mozambique, « se veut fort, mais qui l’est seulement dans la mesure
où il est faible et, par conséquent, interagit conjointement avec les facteurs locaux qui
conditionnent l’expression de pouvoir et de domination, particulièrement les éléments d’ordre
cosmologique »377 (p. 181). Les événements qui eurent lieu à Milot, ceux de la fin des années 1980
et du début des années 1990, combinés à ceux du début des années 2016, sont les expressions
d’une tradition de révoltes et se révèlent comme des successions d’une histoire locale qui est à la
fois nationale et diasporique.

377
“...que se quer forte mas que o é na medida em que é fraco e, portanto, interage com condicionantes locais de
expressão de poder e dominação, particularmente com elementos de ordem cosmológica”.
344

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