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SÃO PAULO
2005
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São Paulo
2005
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Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Zeljko Loparic, com quem pude contar sempre, pela orientação deste trabalho. A ele
expresso minha admiração e respeito.
Aos doutores membros da Banca Examinadora, que me honraram com a leitura desta tese.
Aos amigos Ariadne Alvarenga de Moraes, Conceição Serralha de Araújo, Maria Inês Aubert,
Maria José Ribeiro, Cláudia Fulgencio, Roseana Moraes Garcia, Flávio Del Matto Faria, Vilma
Aparecida de Souza Gomes, Walter Gustavo Moure, Hélio Salles Gentil, toda a minha gratidão.
RESUMO
O objetivo desta pesquisa foi realizar um estudo sobre a teoria winnicottiana da sexualidade. A
partir de uma prospecção na obra de Winnicott, buscou-se apresentar a teoria do amadurecimento
humano, enfatizando a importância dos cuidados ambientais na constituição da sexualidade
humana, notadamente nos primórdios da vida do ser humano. Apontou-se a constituição da
sexualidade como decorrência do processo de amadurecimento pessoal. O trabalho aborda a
constituição da sexualidade no interior do processo de amadurecimento pessoal, apontando os
aspectos presentes nos estágios de dependência absoluta e dependência relativa, até a fase de
independência relativa.
O ponto de partida deste estudo foi o da teoria da sexualidade de Freud. A partir dos elementos da
teoria freudiana da sexualidade, foram destacados os elementos que compõem a teoria
winnicottiana da sexualidade, delimitando as diferenças teóricas entre os dois autores.
Esta pesquisa mostrou que Winnicott construiu uma teoria da sexualidade totalmente diferente da
teoria proposta por Freud, o que indica uma nova perspectiva para o estudo da sexualidade
humana: a impossibilidade de se compreender a sexualidade a partir de elementos especulativos.
Além disso, este estudo indica que o processo de amadurecimento humano não é conduzido pela
sexualidade: Winnicott abandona uma perspectiva libidinal em favor de uma abordagem
desenvolvimental, a qual inclui elementos sexuais e não-sexuais.
ABSTRACT
The purpose of this research was to perform a study about Winnicott´s sexuality theory.
From a deeper view of Winnicott´s work, a human maturity theory is presented, stressing
the importance of environmental cares to the development of human sexuality, specially in
the first years of the human being. The development of sexuality is stressed as a result of
the personal maturity process. This paper addresses the development of sexuality from the
inside of the personal maturity process, stressing the aspects presents in the stages of
absolute dependency and relative dependency, until the relative independence stage.
The starting point of this research was Freud´s sexuality theory. With Freud´s sexuality
theory elements, it is hereby stressed the elements that compose Winnicott´s sexuality
theory, setting boundaries on the theorical differences between the two authors.
This paper reveals Winnicott´s criticism to Freud´s sexuality theory, stressing the
disagreement of this author with regards to Freud´s thought. It also discloses the criticism
of some other authors with regards to Freud´s sexuality theory components.
This research discloses that Winnicott organized a sexuality theory completely different
from the theory proposed by Freud, which reveals a new perspective for the study of human
sexuality: the impossibility of understanding sexuality from theorical elements. Besides,
this research shows that human maturity process is not conducted by sexuality: Winnicott
abandons the libido perspective in favor of a development approach, which includes both
sexual and non-sexual elements.
Finally, considering Winnicott´s thought regarding the sexuality theory, some aspects were
stressed to be considered in the human sexuality framework, specially in the form how they
appear at the clinical practice.
9
SUMÁRIO
Introdução 01
1. Tema deste estudo 01
2. A escolha do tema 03
3. Objetivos 07
4. O método de pesquisa 08
5. Apresentação dos capítulos 09
6. Conclusão 11
Capítulo I: A teoria freudiana da sexualidade 12
Introdução 12
1. O conceito freudiano de sexualidade 12
2. A sexualidade e a teoria do apoio 21
3. A teoria do desenvolvimento da sexualidade pensada em termos do tipo
de objeto
22
4. A teoria do desenvolvimento pensada em termos do tipo de relação com o
objeto
26
5. Princípios e conceitos gerais utilizados por Freud para a elaboração da
teoria da sexualidade
43
a) Elementos empíricos 47
b) Elementos especulativos 51
6. A noção de masculino e feminino em Freud e a constituição da
sexualidade
65
Capítulo II: Críticas de Winnicott à teoria freudiana da sexualidade 81
Introdução 81
1. Crítica ao pensamento freudiano 85
2. Crítica à idéia de zona erógena 88
3. Crítica às relações objetais 91
4. Crítica ao complexo de Édipo 100
5. Crítica ao conceito de princípio do prazer 103
6. Crítica à metapsicologia 113
Capítulo III: Críticas de outros autores à teoria freudiana da
sexualidade, a partir da obra de Winnicott 133
Introdução 133
10
1 Utilizo a expressão “Psicanálise Tradicional” por sugestão de Zeljko Loparic, considerando que esta
foi a expressão utilizada por Winnicott em O Brincar e a realidade, p. 93 (edição inglesa) ou p. 130 (edição
brasileira) e Explorações psicanalíticas p. 252 (edição inglesa) ou p. 196 (edição brasileira), p.226 (edição
inglesa) ou p. 176 (edição brasileira), com o intuito de diferenciar suas idéias das de outros autores pós-
freudianos. O termo designa a adesão ao Complexo de Édipo como a problemática central do ser humano.
Doravante, utilizarei esta expressão ao me referir à psicanálise freudiana.
2 Zeljko Loparic apontou esse aspecto em vários de seus artigos: cf. p. ex. Loparic 1995 e Loparic
1997a. Elsa Oliveira Dias também aponta esse caráter inovador em 2003. Leopoldo Fulgencio aborda a
possibilidade de uma psicanálise sem as especulações metapsicológicas em 2003.
2
Segundo Winnicott, o ser humano não tem na sexualidade o seu ponto de partida para
o desenvolvimento. Enquanto a psicanálise tradicional tem um de seus pilares na vida
pulsional do ser humano, a teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal apóia-se na teoria
do desenvolvimento do ego.
3 Psicanalistas como Melanie Klein, Bion e Lacan também são autores que têm no complexo de Édipo
um dos alicerces de sua teoria. No entanto, este estudo não enfocará as idéias desses autores.
3
2. A escolha do tema
Através de sua obra, Winnicott mostra que seu interesse primordial não é o
desenvolvimento sexual que ocorreria por meio de uma sucessão de fases ligadas às zonas
erógenas, da maneira propugnada pela psicanálise tradicional. A proposição winnicottiana é a
de que, por meio de sucessivos estágios de integração, o indivíduo que amadurece atingirá um
status de unidade, se tudo correr bem durante seu processo de amadurecimento. Sua teoria do
amadurecimento pessoal nos apresenta as condições para a instauração da saúde. Uma das
conquistas desse processo desenvolvimental será exatamente a integração da sexualidade.
Segundo Winnicott, a partir da constituição de pessoas saudáveis poderemos formar famílias
também saudáveis, que, finalmente, possibilitarão o surgimento de uma sociedade livre e
democrática.
Nesses últimos dez anos, Loparic tem se dedicado intensamente ao estudo da obra de
Winnicott e tem nos mostrado como Winnicott se distanciou da posição freudiana sobre a
constituição do ser humano. Loparic mostrou em vários estudos que Winnicott inaugura uma
nova psicanálise ao rejeitar o complexo de Édipo como elemento central da condução do
4
Freud tem como ponto de partida a idéia de um dualismo pulsional associado com sua
teoria do aparelho psíquico. Movido pelas pulsões o bebê busca o prazer. Para Freud, desde o
início da vida, o bebê já estabelece relações objetais que têm um caráter sexualizado e são
essas relações que serão as responsáveis pela constituição do psiquismo do bebê. Embora
Freud tenha negado a caracterização de que suas idéias tenham um caráter de pan-sexualismo,
não podemos deixar de considerar que a sexualidade ocupa um lugar importante em seu
sistema teórico. Se fizermos um cotejamento com outras concepções sobre o ser humano,
constataremos que há uma predominância de elementos sexuais na teoria freudiana em
relação às outras teorias.
4 Embora o conceito tenha sido elaborado apenas em 1910, ele foi central nas descobertas de Freud.
5
necessariamente dizer que a sexualidade seja “tudo”, mas que em “tudo” haja, talvez,
sexualidade [...] tudo pode engendrar sexualidade, o que implica que tudo pode também
conduzir a ela em nossa experiência clínica” (1985, p. 33).
Rudolf Allers também aponta essa característica da psicanálise freudiana. Num estudo
sobre a psicanálise, Allers sustenta que a teoria da sexualidade é um dos elementos vitais das
idéias freudianas, ao mesmo tempo em que faz objeções a essa concepção. Allers lembra que
os elementos da sexualidade infantil se tornam provas empíricas apenas e tão somente se “a
prioridade da sexualidade estiver já assente como princípio primordial”. (1970, p. 158). Para
Allers, “a interpretação de Freud é uma dedução da teoria” (1970, p. 158), ou seja, é circular.
Allers, numa frase de cunho winnicottiano, pergunta: “em toda a discussão sobre a teoria de
Freud a respeito da sexualidade há um ponto capital: é a questão do lugar e do papel que lhe é
atribuído dentro da totalidade da natureza humana” (Allers 1970, p. 169). Ele conclui de
forma categórica:
Esta crítica de Allers à psicanálise tradicional e à sua visão de homem nos conduz ao
modelo ontológico winnicottiano. Diferentemente da psicanálise tradicional, que centra seus
estudos no psiquismo como o elemento responsável pela constituição do ser humano,
Winnicott enfatiza a relação mãe-bebê como o caminho pelo qual o indivíduo pode se tornar
um ser humano inteiro. Temos então uma nova situação: o abandono do conceito de pulsão e
do principio do prazer e a introdução de dois conceitos inovadores, o de necessidade (need) e
o de instinto (instinct). Esses novos aspectos obrigam à discussão sobre a presença dos
6
Fulgencio aponta que na obra de Freud há uma prevalência do aspecto dinâmico sobre
os demais componentes da metapsicologia freudiana. Em seu estudo, ele mostra a presença
dos elementos empíricos e dos elementos especulativos no pensamento freudiano e a função
que estes elementos nela ocupam. Segundo Fulgencio, a psicanálise deve ser considerada a
partir de seus elementos empíricos, nos quais os fatos observáveis constituem os fundamentos
empíricos dessa ciência, assim como os elementos especulativos, posto que, para Freud,
apenas os dados descritivos não eram suficientes para oferecer uma explicação satisfatória
sobre o psiquismo humano. De acordo com Fulgencio, um exemplo de um componente
metapsicológico pode ser encontrado no conceito de libido (Fulgencio 2001, 2002 e 2003).
Também precisamos destacar a obra de Elsa Oliveira Dias, que tem realizado um
estudo minucioso da obra winnicottiana. Elsa Oliveira Dias apontou as fases do processo de
amadurecimento humano tal como foi descrito por Winnicott, mostrando as dificuldades e
conquistas próprias de cada estágio experimentado pelo indivíduo que amadurece (1995,
1998, 2003). Salienta ainda que o quadro das psicoses é o elemento na teoria winnicottiana. A
autora destaca a abordagem inédita realizada por Winnicott a respeito das questões humanas,
tanto nos aspectos filosóficos-conceituais, quanto nos clínicos, notadamente na rejeição das
questões metapsicológicas.
3. Objetivos
4. O método de leitura
Em 1998, quando realizei minha dissertação de mestrado, fiz uma leitura extensa da
obra de Winnicott, com o objetivo de compreender algumas questões referentes à
homossexualidade. Uma compreensão do modo de ser das pessoas homossexuais me remeteu
ao processo de desenvolvimento experimentado pelo indivíduo que amadurece. Isso me
permitiu contextualizar algumas questões referentes à sexualidade. Os estudos de então me
levaram à conclusão de que:
Para este estudo em desenvolvimento, uma nova leitura dos textos de Winnicott se fez
necessária. Um levantamento de frases e artigos foi destacado, para que fosse possível
acompanhar a seqüência do raciocínio de Winnicott, de modo a alcançar a coerência de suas
idéias. Longe de significar o pinçamento de citações isoladas, este recurso possibilita analisá-
las à luz da teoria do amadurecimento pessoal elaborada por Winnicott. Esta não é uma tarefa
fácil, já que a obra winnicottiana não apresenta uma linearidade, pois suas palestras e textos
foram construídos pensando em um público heterogêneo. O levantamento cronológico das
idéias winnicottianas possibilita uma reconstrução do seu pensamento.
Outro passo dado na elaboração deste estudo foi uma leitura da obra de Freud,
destacando principalmente os textos nos quais ele abordou as questões da sexualidade, tanto
em seus aspectos gerais como no tocante ao desenvolvimento da sexualidade feminina.
Esclareço que é objetivo deste estudo apenas e tão somente a busca de diferentes
referenciais que possibilitem compreender as contribuições de Winnicott para a história da
psicanálise no tocante ao tema da teoria da sexualidade, constituição da sexualidade e do lugar
ocupado pela sexualidade no arcabouço winnicottiano. Não tenho o objetivo primordial de
confrontar teorias.
Será feita uma descrição dos elementos empíricos assim como a apresentação dos
elementos metapsicológicos, tais como pulsão, libido, princípio do prazer e aparelho psíquico,
dentre outros aspectos.
10
É importante salientar que não tenho por objetivo realizar um vasto estudo
bibliográfico de Freud. O objetivo foi o de procurar os pontos de partida das idéias freudianas
que possivelmente estimularam Winnicott a desenvolver seu próprio pensamento, destacando-
o do pensamento freudiano. Será enfatizado o grande ponto de divergência de Winnicott em
relação a Freud: a metapsicologia.
Embora Winnicott confirme sua herança psicanalítica, inúmeras vezes ele afirmou seu
abandono de alguns pressupostos psicanalíticos. A psicanálise tradicional parte do
pressuposto básico de que o complexo de Édipo é o elemento central, núcleo possibilitador do
psiquismo humano e ponto de partida de quadros nosológicos e métodos de tratamento. O
complexo de Édipo é visto como o elemento fundante da cultura e da moral. Winnicott
rejeitou o Édipo como componente central da natureza humana. Apontou a impossibilidade de
se estender o complexo edípico para todas as fases da vida do ser humano, pois acreditava que
este conceito não abarcava as questões precoces da vida do bebê.
tal como as propostas por Freud. Para Winnicott, o bebê tem que experienciar vários
estágios e realizar muitas tarefas, de modo a se constituir como ser humano homem ou ser
humano mulher. Serão também abordadas as concepções de Winnicott sobre a constituição da
sexualidade masculina e feminina.
Também pretendo apontar como estes aspectos estão vinculados com a prática clínica
psicanalítica.
Conclusão
Introdução
Outra contribuição de Freud pode ser encontrada na caracterização dos tipos libidinais
(1931 pp. 3074-6). Este estudo teve início com o texto Caráter e erotismo anal (1909 pp
1354-7) e em Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916 pp 2412-
30). Estes textos foram alvo de comentários e acréscimos de Karl Abraham. No texto de 1931,
Tipos libidinais, Freud descreveu os tipos libidinais, erótico, obsessivo e narcísico.
Neste capítulo que ora inicio, tenho por objetivo apresentar a forma como Freud
concebe a Teoria da Sexualidade. Inicialmente, apresentarei a concepção de Freud sobre a
sexualidade, salientando seu significado ampliado, próprio da psicanálise. Em seguida,
apresentarei os aspectos da sexualidade pensados em termos de tipo de objeto e tipo de apoio.
Também farei uma exposição dos conceitos empíricos e especulativos sobre os quais a Teoria
da Sexualidade se assenta. Para finalizar, farei uma exposição sobre a forma como Freud
concebe a noção de masculino e feminino e os elementos presentes em sua constituição.
Freud usou uma descrição empírica dos fatos observados na clínica para estruturar seu
arcabouço teórico, em especial nas descrições relacionadas à sexualidade infantil. Porém, a
descrição empírica não foi o único recurso utilizado por ele: para elucidar suas idéias sobre a
forma como concebe a sexualidade nas crianças, Freud afirmou que é necessário lançar mão
13
quem vê um bebê saciado no peito materno, com suas bochechas coradas e com um
sorriso feliz adormecer, não pode deixar de considerar que este quadro persistirá como
o protótipo da expressão de satisfação sexual na vida posterior. A necessidade de
repetir a satisfação sexual desvincula-se agora da necessidade de nutrir-se – uma
separação que se torna inevitável quando surgem os dentes e o alimento não é mais
ingerido apenas pela sucção, mas também é mastigado.(1905, p. 164, itálicos meus)
O bebê procurará repetir o ato porque a natureza possibilitou que esta experiência
prazerosa não seja deixada sob responsabilidade apenas do acaso. Por já ter sido submetida a
ela e pelo fato de que ela lhe proporcionou prazer, o bebê vai buscá-la novamente.
Diz Freud:
14
Para Freud, a prova contundente de que há uma manifestação sexual nesse ato está no
fato de que mesmo sem sentir fome o bebê solicita mais alimento. O ato de uma sucção
sensual, ou de ‘chupar’ o seio materno, provoca o sono no bebê e isso, por si só, produz
satisfação. Esta experiência é forte a ponto de alguns bebês não conseguirem adormecer sem
antes executar o ato de sugar algo (1917 [1916-1917], p. 2318). Para Freud, o que leva o bebê
a sugar é a necessidade que ele tem de sentir prazer.
verificamos que os bebês realizam atos que servem apenas para experimentar esse
prazer e acreditamos que eles tenham começado a experimentar esse prazer na ocasião
da ingestão de alimentos, mas que depois tenham aprendido a separá-lo desta situação.
Localizamos essa sensação de prazer na zona buco-labial e a esta região demos o
nome de zona erógena, e descrevemos como sexual o prazer derivado da sucção.
(1917 [1916-1917], p. 2318).
Através da sucção o bebê realiza de uma única vez as duas necessidades vitais para
ele, quais sejam, alimentar-se e sexualizar-se. Ao sugar o seio materno o bebê executa o ponto
de partida de toda a vida sexual. O ato de sugar faz do seio materno o primeiro objeto da
pulsão sexual. Neste ato, tem-se o modelo da satisfação sexual posterior, posto que na fantasia
o bebê retornará a esse ato quando assim o necessitar. Quando se observa o bebê a chupar o
polegar, com uma expressão sonhadora, conclui-se que, em termos psicanalíticos, ele está
experimentando um prazer sexual. O dedo, um objeto real, será usado posteriormente como
objeto a ser fantasiado. Desta forma, o objeto real, o polegar sugado, é um objeto fantasiado
que ele acaricia.
como buscá-la e que isso não se fará juntamente com a alimentação. Ao buscar a
satisfação, o prazer, o bebê consegue restaurar a felicidade perdida (Freud 1905, p. 203).
Na teoria freudiana, o modelo de uma função biológica, tal como esse que explica a
vinculação entre a ingestão de alimentos e obtenção de prazer também será utilizado para
explicar o que ocorre em outras fases da vida infantil, ou seja, será o modelo para explicar o
que ocorre com o bebê na excreção das fezes, na descoberta do órgão sexual masculino, na
fase fálica e, finalmente, na fase genital que corresponde à organização sexual definitiva.
Essa concepção diferenciada tem origem com as idéias que envolvem a descoberta da
existência da sexualidade infantil, e foram desenvolvidas por Freud em 1905, com a
publicação de seu estudo Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905, p. 156).
faz parte da opinião popular sobre a pulsão sexual a afirmação de que ela não está
presente na infância e somente desperta no período da puberdade. Isto não é um erro
qualquer: tem graves conseqüências, pois é a esta idéia que devemos a principal
responsabilidade sobre nosso desconhecimento sobre as bases da vida sexual. Um
estudo profundo das manifestações sexuais da infância nos revelaria os traços
essenciais da pulsão sexual, o seu desenvolvimento e a maneira pela qual ela se
compõe por diversas fontes. (1905, p. 157)
16
Para descrever essa nova conceituação, Freud se baseia na idéia de zona erógena, ou
seja, uma parte do corpo que é investida libidinalmente em fases diferentes –oral, anal, fálica,
latência e genital -, e que geram um modelo específico de relação de objeto a cada fase
experimentada. Freud observa que, conduzido pelo princípio do prazer, o bebê mantém com
os objetos com os quais entra em contato, um tipo de relação na qual o objeto serve para
atingir o prazer. A partir desse protótipo, que é apresentado juntamente com a forma pela qual
o bebê é alimentado, Freud apresenta o que considera como o modelo normal de constituição
do psiquismo, no qual as noções de sujeito-objeto e eu-mundo são constituídas.
Ao estender suas idéias sobre o conceito de sexualidade, Freud afirma que estabelecer
uma nova conceituação não é fácil. Estas explicações não podem se fundamentar em idéias
tais como a distinção entre os dois sexos e nem tomar o ato sexual como ponto central. Freud
amplia o conceito de sexualidade, antes restrito apenas a acepções coloquiais tais como “a
oposição entre os sexos, a busca do prazer, a função reprodutora e ao caráter de algo
impróprio que deve ser mantido em segredo” (1917 [1916-1917], p. 2311).
Para a Psicanálise, com a ampliação desse conceito, a sexualidade humana não pode
ser redutível ao contato dos órgãos genitais entre dois sujeitos, nem às sensações genitais.
17
A nova definição proposta por Freud abarca um conjunto conceitual específico, o qual
será explicitado no item 6 deste estudo. Por ora, é necessário mostrar o vínculo da sexualidade
com o princípio do prazer.
Foi pela observação de pacientes que apresentavam um quadro de perversão que Freud
pôde constatar que há pessoas que têm seu objeto sexual modificado, além de também
conferirem uma outra finalidade aos seus propósitos sexuais. Portanto, foi por meio da
observação da patologia na área da sexualidade que Freud pôde chegar à sexualidade normal.
Ao investigar a vida destes pacientes, Freud chegou à infância deles, o que lhe permitiu
constatar que a sexualidade existente no adulto já estaria presente na criança de tenra idade.
Estas forças, ou pulsões são compostas por quatro elementos: fonte, de onde emerge a
necessidade, que pode ser de uma parte do corpo ou dele todo; uma finalidade, que é a de
reduzir a necessidade até o ponto em que nenhuma ação seja necessária por fornecer ao
organismo a satisfação desejada no momento certo; uma pressão, que é a quantidade de força
usada para gratificar a pulsão; e, finalmente, um objeto, que é o elemento pelo qual a pulsão
busca a satisfação do objetivo original. O elemento energético presente na pulsão e que,
segundo Freud, é sua representante, é a libido, que é a energia específica para a pulsão sexual.
A libido é o substrato que se desloca de uma zona erógena para outra no organismo humano.5
5 Este tema será abordado de forma mais detalhada no item 5 deste capítulo.
18
Uma vez que seja deflagrada, esta força gera um estado de tensão. Como
conseqüência da ação dessa tensão, o bebê, a fim de interromper esse estado tensional, busca
a eliminação da tensão. A tendência para eliminar tensões internas Freud nomeou de
“principio do prazer”, seja quando esta eliminação signifique diretamente a aquisição do
prazer ou quando esta aquisição signifique a eliminação de desconforto ou da dor. O elemento
que proporcionará a satisfação do objetivo original do bebê – a satisfação – é o princípio do
prazer. O princípio do prazer estabelece que toda criança, mesmo as mais novas, tem uma
tendência a buscar sensações prazerosas por meio de uma gratificação que tem que ser
imediata, ao mesmo tempo em que procura evitar o desprazer e dor. Presentes na vida do bebê
desde o início da vida deste, as sensações prazerosas são responsáveis pelo funcionamento do
psiquismo humano. E se elas movem o psiquismo e são de natureza sexual, elas estão
vinculadas ao princípio do prazer. O princípio do prazer, que é inato, é um dos processos
primários mais antigos do nosso psiquismo.
Embora estejam vinculadas entre si, libido e sexualidade não são termos que guardam
o mesmo significado. Ao abordar os fatos relacionados à sexualidade, Freud tem como
sustentação dados que podem ser comprovados empiricamente, pois se baseia nas diferentes
excitações corporais, cuja ênfase pode ser reconhecida no desenvolvimento da sexualidade
nas fases oral, anal, fálica e genital. Aqui, Freud lida com o aspecto descritivo da teoria da
sexualidade subdividida em fases e que constitui uma explicação para os comportamentos
claramente observáveis. Já o conceito de libido somente pode ser compreendido num contexto
Para explicar a natureza dos fenômenos psíquicos, Freud postula que estes se
constituem por pulsões ou forças psíquicas. Freud opta por um ponto de vista dinâmico para
compreender o psiquismo. Em função desta pressuposição, estas forças não são passíveis de
uma descrição empírica, ou seja, elas não serão de fato encontradas no psiquismo humano.
Essas forças, as pulsões, constituem uma convenção que cumpre plenamente com seu papel
de auxiliar na explicação sobre o funcionamento dos fenômenos psíquicos. O próprio Freud
sabia que estava lidando com um princípio meramente ficcional e que este ponto de vista
tinha uma natureza convencional, e não empírica.
Para dar uma dimensão quantitativa a essa idéia abstrata, de caráter convencional,
Freud postulou a existência de um elemento responsável por essa dimensão econômica: a
libido. Se o conceito de pulsão constitui uma mitologia, se ele tem um caráter especulativo,
este mesmo caráter é atribuído à libido.
O conceito de libido já havia sido utilizado por Moll no contexto das doutrinas das
pulsões; Freud o tomou de empréstimo para caracterizar o aspecto econômico da sexualidade,
20
7 Para Winnicott, o cientista deve ser capaz de suportar as lacunas do conhecimento. Segundo ele: “eu
diria, a respeito dos cientistas, que, quando surge um vazio no conhecimento, o cientista não se desvia para uma
explicação sobrenatural. Isso poderia sugerir pânico, medo do desconhecido, uma atitude não científica. Para o
cientista, todo vazio no entendimento oferece um desafio excitante. Assume-se a ignorância e se delineia um
programa de pesquisa. A existência do vazio é o estímulo para o trabalho. O cientista pode se permitir uma
espera e se permitir ser ignorante.” (1986k [1961] p. 14)
21
conceito que ele esclarece que as relações de objeto, que, de início, é auto-erótica,
até chegar ao caminho da escolha de objeto propriamente dito – objeto dado externamente -8,
se apóia em algumas funções corporais para poder se manifestar (1905, p. 179).
Na fase em que os órgãos genitais ganham prevalência, o elemento que assume o lugar
de importância, tanto para o menino quanto para a menina, é o pênis. A situação marcante está
no fato de se possuir ou não o membro sexual masculino, e a constatação da falta deste gera o
temor da castração, juntamente com o desprezo para com os que não possuem o pênis, assim
como também a inveja provocada em quem não o tem.
Freud apontou quatro tipos de objeto aos quais a libido se direcionará, que definem
modos específicos de investimento. Inicialmente a busca do prazer se concentra no corpo do
próprio bebê; gradativamente, este prazer chega até um objeto que não seja o próprio bebê.
Posteriormente, com o desenvolvimento, o objeto passa a ser não mais parcial e sim um
objeto que é o bebê ele mesmo. Esta é a fase do narcisismo ou do objeto narcísico. No
decorrer deste desenvolvimento, o objeto é homossexual, até que, no final do processo, ele é
heterossexual. Neste contexto, compreende-se que, até se alcançar uma organização sexual
definitiva, não há caminhos pré-determinados que conduzam (o sujeito) a um objeto
específico.
Para Freud, todo sujeito tem como meta primordial a busca do prazer. Em suas
experiências desta natureza, no início da vida o sujeito já experimentou o prazer ao sugar o
seio da mãe. Gradativamente, o ato de sugar e o prazer em si são dissociados, mas o bebê não
quer perder esta experiência de gratificação. Para retomar esta experiência prazerosa, o bebê
passa a sugar um pano ou alguma parte de seu corpo. A expressão ‘narcisismo’ foi
celebrizada por Freud, que a tomou de Paul Näcke, autor que, segundo Freud, “dá este nome a
uma perversão na qual o indivíduo demonstra para com seu próprio corpo a ternura que
normalmente reservamos para um objeto exterior” (1915-1917 [1916-1917], p. 2381).
de uma fonte, exerce uma pressão, tem uma meta específica em direção a um
objeto. Para Freud, o auto-erotismo é a manifestação de uma sexualidade de tipo infantil, uma
vez que a criança não recorre a qualquer objeto externo para obter o prazer. Segundo ele, “a
característica mais nítida dessa atividade sexual é que a pulsão não é dirigida para outras
pessoas. Ele [o bebê] encontra satisfação em seu próprio corpo [...]” (1905, p. 164). Isso
significa que a libido instala-se no próprio corpo do bebê. O ato de sugar é o protótipo do
auto-erotismo.
Freud se refere pela primeira vez ao narcisismo ao tratar dos homossexuais, os quais,
na época, ele denominava invertidos. Numa nota de rodapé, acrescentada em 1910 ao seu
24
investigações recentes têm atraído nossa atenção sobre um estádio intermediário entre
o auto-erotismo e o amor objetal. Tal estádio foi denominado de narcisismo e consiste
em que o indivíduo, em sua evolução, chega a um estádio em que ele reúne seus
instintos sexuais que até agora se caracterizavam por atividades auto-eróticas, tomam
seu próprio corpo como objeto amoroso até que possam eleger uma pessoa como eles
próprios, como objeto. (1911, pp. 1516-17)
Foi somente em 1914 que o termo narcisismo foi mais bem desenvolvido, ocupando
um lugar privilegiado na teoria do desenvolvimento sexual. Ao comentar as pesquisas
psicanalíticas, Freud aponta a necessidade de se considerar as questões relativas ao narcisismo
normal nos casos de psicoses. Freud observa que, nos delírios de grandeza, o sujeito retira os
investimentos libidinais do mundo externo e os reverte para si próprio, ou seja, “a libido
afastada do mundo externo é direcionada para o ego, surgindo aí um estado ao qual
denominamos de narcisismo” (Freud, 1914b, p. 2018). Isto somente é possível porque há um
estado anterior denominado de narcisismo primário, situação em que a criança, numa fase
precoce de seu desenvolvimento, quando ainda não procura os objetos externos, escolhe sua
própria pessoa como objeto de amor. A diferença do narcisismo em relação ao auto-erotismo
se assenta no conceito de ego, ou seja, a criança ama a si própria como ego. Posteriormente,
ela buscará alguém que se assemelhe a ela.
25
Na segunda tópica (1920), Freud altera sua concepção por constatar, na clínica, que a
retirada do investimento libidinal poderá ser feita apenas em outro momento da vida da
criança. O conceito de auto-erotismo parece desaparecer, dando lugar a um narcisismo
primário. Freud concebe um estado, o de um narcisismo primário, em que a criança não
mantém nenhum tipo de relação com o meio, um estado no qual ego e id coincidem
inteiramente, ou seja, há uma total indiferenciação entre as duas instâncias do aparelho
psíquico. Nesta fase, a criança apresenta uma total incapacidade de se direcionar para os
objetos externos. Freud postula um estado em que a criança toma a si própria como objeto de
amor, num momento que antecede sua capacidade de buscar os objetos externos. Já o
narcisismo secundário se caracteriza por uma retirada total da libido dos objetos externos,
situações características das psicoses. Porém, o próprio Freud abandona o uso da expressão
narcisismo secundário.
Ao descrever a trajetória empreendida pela libido nas zonas erógenas do bebê, Freud
mostra a maneira pela qual concebe a organização da sexualidade.9 Essa descrição revela que
cada fase de desenvolvimento do sujeito reveste-se de características diferenciadas entre si e é
resultado de uma observação criteriosa do desenvolvimento das funções sexuais. Freud
esclarece que o desenvolvimento da sexualidade não se faz de forma abrupta e completa e que
é decorrente de um processo que se inicia já no nascimento do bebê. Diz Freud:
9 Em seu estudo História de uma neurose infantil (1918 [1914) Freud faz um estudo clínico do caso de
Hans, no qual ele apresenta as fases da organização sexual da libido.
27
Freud retrata o desenvolvimento por meio do que ele chamou de fases psicossexuais,
ou seja, na medida em que um bebê se transforma numa criança, esta se transforma em um
adolescente e finalmente num adulto, mudanças significativas ocorrem durante este trajeto. As
transformações nos modos de se obter gratificação e o que ocorre nas regiões físicas que
propiciam esta gratificação constituem os elementos centrais na descrição deste
28
desenvolvimento. Essas idéias foram resumidas por Freud em seu texto Ansiedade e
vida instintual, no qual ele afirma:
Para uma melhor compreensão do que foi afirmado acima por Freud, é necessário
fazer uma descrição do que ocorre em cada fase, tendo como referência a idéia de que cada
uma delas revela um protótipo da relação objetal na medida em que uma zona erógena tem
prerrogativa sobre outra. Por meio de etapas, o bebê sai de uma condição de narcisismo e se
dirige para uma busca de amor objetal, quando finalmente homens e mulheres alcançam
maturidade sexual. Todos estes aspectos da organização sexual foram confirmados por Freud
nos seus últimos textos Esboço de Psicanálise (1940 [1938]).
Quando Freud inicia a descrição do desenvolvimento sexualidade, ele o faz pelo mais
básico, isto é, pelos fatos que ocorrem com o bebê desde os momentos iniciais de sua vida.
Desde o nascimento e durante os primeiros meses de vida do bebê, em especial nos primeiros
dezoito meses, as gratificações infantis são da ordem da oralidade. Pelo vínculo às questões
29
Freud distingue dois subestádios na fase oral: no “primeiro subestádio, o que está em
questão é somente a incorporação oral, não há absolutamente ambivalência em relação ao
objeto – o seio materno. O segundo estádio, caracterizado pelo surgimento da atividade de
morder, pode ser descrito como ‘oral-sádico’ [...]” (1933 [1932], p. 3156).
Nos primeiros períodos da fase oral, o bebê é passivo e receptivo, isto é, tem uma
postura de receptividade em relação ao que recebe do mundo externo, em especial em relação
à alimentação. Posteriormente, por volta dos seis meses, com o surgimento dos dentes, pode
haver uma fusão dos prazeres sexuais com os agressivos. Desta forma, o bebê poderá
apresentar uma certa agressividade, o que promoverá o surgimento de impulsos sádicos. Isso
se expressa no ato do bebê de morder o seio da mãe, o que fará com que ela se retraia e
expresse seu descontentamento.
A conexão entre as neuroses e as fases mais primitivas das organizações da libido foi
10
abordada por Karl Abraham por meio de um vasto material empírico.
Abraham, em 1924, introduz algumas subdivisões à fase oral. Abraham traça uma
linha delimitadora entre o que ele denominou de fase precoce de sucção, pré-ambivalente, e a
fase oral-sádica que surge no momento em que o bebê adquire a capacidade de morder,
quando há o surgimento dos dentes. Na fase oral-sádica, a incorporação assume o sentido de
destruição do objeto quando o bebê pode exercitar as atividades de morder e devorar o objeto.
10 Este matéria se encontra nos textos O primeiro estágio genital da libido e Breve estudo do
desenvolvimento da libido, visto à luz das perturbações mentais, in Teoria psicanalítica da libido.
30
Antes de mais nada, há o processo de irrupção dos dentes, que, como é bem sabido,
faz com que uma parte considerável do prazer seja substituída pelo prazer de morder.
Basta-nos lembrar como, durante esta fase de desenvolvimento, a criança leva à boca
todo objeto que pode e tenta, com toda sua força, despedaçá-lo, mordendo-o. (1970, p.
163)
De dois a três anos de idade, momento em que o bebê passa a ter, vagamente, controle
sobre os esfíncteres, momento do treinamento higiênico, há um deslocamento da libido da
região oral para a anal. Nas palavras de Freud:
Neste momento de sua vida a criança começa a adquirir o controle das funções
esfincterianas – controla evacuação e micção -, a excitação sexual se transfere para a área do
ânus. Com o controle dos esfíncteres, as fezes fazem a intermediação da criança com o
mundo. Há o início do treinamento higiênico e a criança obtém prazer com o controle que tem
do esfíncter anal e com a possibilidade de reter e expulsar as fezes. O resultado é alívio de
tensão e prazer, na medida em que as membranas mucosas da região anal são estimuladas.
A especificidade desta fase foi descrita por Freud quando ele afirma que, “Abraham
mostrou, em 1924, que se pode distinguir dois estádios na fase sádico-anal. O primeiro desses
estádios é dominado pelas tendências destrutivas de destruir e de perder, e o segundo estádio,
por tendências afetuosas para com os objetos – tendências de manter e de possuir” (Freud,
1933 [1932], p. 3156).
Os prazeres advindos da estimulação dessa zona erógena geram três tipos de conflito.
O primeiro é o conflito pulsional entre a eliminação e a retenção; o segundo é entre o prazer
pulsional em descarga e as tentativas de controle do ego; finalmente, no terceiro, há o conflito
entre o desejo pelo prazer da evacuação e as exigências do mundo externo para o adiamento.
Nesta última situação, há o primeiro conflito entre o sujeito e a sociedade, em que o ambiente
exige que a criança escolha entre violar o princípio do prazer ou ser punida. É nesta fase que o
processo de socialização se apresenta de forma contundente. Neste conflito, a criança pode
vingar-se evacuando intencionalmente, associar os movimentos intestinais com uma perda
importante que leva à depressão, ou, ainda, associar os movimentos intestinais com o ato de
presentear que a levaria ao prazer de ser uma pessoa caridosa.
Em 1908, em seu texto O caráter e o erotismo anal, ao fazer sua primeira descrição do
caráter anal, Freud explicita três características dessas pessoas, ou seja:
[...] são organizadas, parcimoniosas e obstinadas. Cada uma destas palavras sintetiza,
na realidade, um pequeno grupo de traços característicos e interligados entre si. A
qualidade de ‘organizado’ compreende tanto o esmero individual como o escrúpulo no
cumprimento dos deveres corriqueiros e a fidelidade; o contrário de organizado seria
‘descuidado’ ou desorganizado. A parcimônia pode surgir de forma exagerada como
33
Abraham, tanto quanto Freud, também associa o caráter anal a uma dificuldade em
lidar com o dinheiro, à posse material, enfim. Há outro aspecto importante a ser considerado:
a atividade masculina. De acordo com Abraham:
falando de um modo geral, pode-se dizer que quanto mais a atividade masculina e a
produtividade se acham obstaculizadas nos neuróticos, mais pronunciado se torna o
seu interesse na posse e isto de uma maneira que se afasta amplamente do normal. Em
casos acentuados de formação de caráter anal, quase todas as relações da vida são
colocadas na categoria de ter (aferrar-se) e dar, isto é, de propriedade. (1970, [1921],
p. 185)
Ao apontar a relação entre libido e caráter, Abraham afirma que rabugice, distância e
postura de reserva são características próprias dos sujeitos fixados na fase anal. Estas pessoas
tendem a uma postura de hesitação e procrastinação. Também são típicos alguns
comportamentos, tais como o conservadorismo, “atitude que certamente impede o abandono
rápido daquilo que mostrou ser bom” (Abraham, 1970, [1921], pp. 166-71).
Freud investigou o que ocorre com as crianças quando elas vivenciam a excitação
sexual, ou seja, o prazer a partir da estimulação de suas áreas genitais. A excitação, na mente
da criança, vincula-se à presença física de seus pais. Há um incremento do desejo de um
contato mais íntimo com eles e a criança deseja para si própria a intimidade que os pais
compartilham entre si. Há um desejo intenso de ir para a cama dos pais, e surge um ciúme
pela atenção que os pais proporcionam um ao outro, e que faz com que a criança fique um
pouco apartada deles. Tanto o menino quanto a menina experimentam uma situação de querer
compartilhar mais da intimidade com os progenitores, mas temer ambos os pais.
Este tema pode ser encontrado em vários textos da obra freudiana. Os primeiros
indícios deste conceito surgem numa carta de Freud a Fliess, em 1897, quando, ao falar das
descobertas acerca de si, afirma:
A apresentação teórica desta situação vivida por todos os seres humanos foi feita em
1910, quando Freud apresentou a escolha amorosa de alguns tipos de pacientes e da
vinculação desta escolha com o que vivenciou com os próprios pais: “tal investigação nos
conduz ao período em que o menino chega a um certo conhecimento da natureza das relações
sexuais dos adultos, período que localizamos nos anos imediatamente anteriores à puberdade”
(1910, p. 1628).
Numa analogia com a tragédia grega, Freud formulou a idéia de que todo menino
revive um drama similar ao do mito grego na fase dos três aos cinco anos aproximadamente:
ele deseja possuir a mãe e matar seu pai, tal como Édipo, personagem mítico que ouviu e
cumpriu a profecia de que ele se apaixonaria por sua mãe e mataria seu pai. Assim, nos
meninos, o amor já experimentado pela mãe é complicado pelo desenvolvimento da excitação
peniana e pela percepção de que há um relacionamento genital-amoroso entre o pai e a mãe.
Há uma intensificação de ereções e as excitações nesta área o levam a se interessar mais pelos
órgãos sexuais, tanto os masculinos quanto os femininos. Esse interesse o leva à descoberta de
que a menina não possui um pênis, e a se perguntar o porquê disso. A percepção de que a
menina não tem pênis provoca o temor de perder o pênis e sofrer a castração. Estes fatores o
levam ao complexo de Édipo e a experimentar a ansiedade de castração. O menino vê o pai
como um rival pelo afeto da mãe, e o medo de retaliação por parte do pai é acentuado nesta
fase. Aqui, a figura do pai exerce um papel preponderante na determinação da identidade
sexual da pessoa no futuro.
Segundo Freud,
11 Entre eles podemos citar O Homem dos Lobos; Além do Princípio do Prazer; O Ego e o Id.
37
A idéia central é a de que quem não tem um órgão sexual masculino é castrado.
Assim, quando as crianças constatam que há uma diferença anatômica entre os órgãos sexuais
masculinos e femininos, um temor se instala: o temor da castração.
Freud esclarece que há, no que se refere aos meninos e às meninas, formas diferentes
de experimentar o complexo de castração. Os meninos experimentam este temor porque já
vivenciaram o complexo de Édipo. O amor experimentado pela mãe e a disputa por ela com o
pai gera no menino o receio de que o pai possa castrá-lo, numa atitude de retaliação pelos
desejos infantis. (Freud, 1933 [1932], pp. 3149-150) Desta forma, o pai promove no filho a
interdição da figura materna. Uma conseqüência importante para o menino é que o complexo
de castração possibilita a sua saída do complexo de Édipo. (1924, p. 2750)
finalmente se afasta de sua mãe e além de se dirigir para o pai, em termos futuros,
se encaminha para a heterossexualidade.
Para Freud, não há neste momento uma nova organização sexual, embora a
sexualidade esteja presente. O que ocorre é que há um processo de desaceleração das
demandas sexuais infantis em que o modo de relação com o mundo se fará em bases menos
sexualizadas, o que não faz esse período menos importante para a criança, antes pelo
contrário, pois este momento é tão importante que Freud chega a afirmar que nele “parece
estar contida uma das condições da aptidão do homem para o desenvolvimento de uma cultura
superior, mas também de sua tendência para a neurose” (1905, p. 214). Em termos de
identificação com os progenitores, a criança tenderá a se identificar com o progenitor do
mesmo sexo, o que é essencial para uma maior diferenciação entre os papéis de gênero.
Será nesta fase, enfim, que o sujeito estabelecerá de forma mais definitiva o padrão de
desejo com seu objeto. As grandes transformações pelas quais ele passou durante seu
desenvolvimento psicossexual encontrarão sua forma definitiva. A fase final do
desenvolvimento biológico e psicológico ocorre com o início da puberdade e o retorno da
pulsão para os órgãos sexuais. Essas transformações ficarão evidentes com a entrada na
puberdade e adolescência.
O novo objetivo sexual dos homens consiste na descarga dos produtos sexuais. O
objetivo anterior, a realização do prazer, não lhe é mais estranho, ao contrário, o mais alto
grau de prazer está ligado a este ato final do processo sexual. A pulsão sexual agora está
subordinada à função reprodutora, ela se torna altruísta. Para que esta transformação tenha
êxito, é preciso contar com as disposições originárias e todas as peculiaridades das pulsões.
(1905, p. 189)
Um dos aspectos essenciais da puberdade está na retomada mais intensa dos impulsos
sexuais e no crescimento dos órgãos genitais externos. É nesta fase que o sujeito se torna
maduro para a procriação e para a obtenção do prazer que ocorrerá por meio da relação
sexual. Há o crescimento manifesto dos órgãos genitais externos, assim como o
desenvolvimento dos órgãos sexuais internos já está maduro o suficiente para que os produtos
sexuais possam ser descarregados ou, conforme o caso, provocar a formação de um novo ser
vivo (Freud, 1905, p. 190). Esta fase se prolongará até o final da vida do sujeito.
41
Essas idéias se sustentam na tese de Freud de que o pênis12 é o órgão sexual que deve
ser tomado como referência na constituição da identidade feminina. Mesmo quando Freud
aponta o clitóris como o órgão sexual feminino por excelência, esta apresentação se dá em
termos de equivalência e não pelo órgão em si mesmo (1905, p. 201).
12 Em Freud, os termos falo e pênis têm conotações diferentes. O termo pênis designa o membro real,
enquanto que falo se refere ao órgão em seu sentido mais simbólico. É possível observar que o termo falo é
pouco empregado por Freud.
42
Neste estágio final se encontram os traços dos estágios anteriores e cada qual
contribuiu para a formação de caráter do sujeito. Segundo Abraham,
fase, os antigos objetos e os modos de gratificação que são próprios de cada fase
anterior são abandonados, embora não haja um abandono total da libido naquela zona
específica. A libido não pode ficar retida numa zona erógena específica, ela tem que circular
de uma zona a outra, ou seja, ela catexiza essas zonas em cada fase de vida do sujeito.
Meu objetivo neste item não é o de fazer uma análise crítica da obra de Freud, uma
exegese, tarefa árdua e já realizada por especialistas abalizados, cuja extensão ultrapassaria o
campo de estudo deste estudo. Esclareço ainda que não tenho por objetivo promover um
confronto entre conceitos e idéias, posto que isto poderia exigir a comparação de idéias
incomensuráveis.13
Como método de trabalho, fiz uma leitura dos principais textos de Freud nos quais os
pilares da psicanálise tradicional podem ser encontrados, tais como A interpretação dos
sonhos (1900), Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental (1911), História de uma neurose infantil (1918 [1914]),
História do movimento psicanalítico (1914), As pulsões e seus destinos (1915), Lições
13 Segundo Thomas Kuhn, quando há uma mudança paradigmática, os significados de todos os termos
teóricos utilizados podem se alterar e resultar numa espécie de intraduzibilidade entre eles. Diz Kuhn: “dado que
os novos paradigmas nascem dos antigos, incorporam comumente grande parte do vocabulário e dos aparatos,
tanto conceituais como de manipulação, que o paradigma tradicional já empregara. Mas raramente utilizam esses
elementos emprestados de uma maneira tradicional. Dentro do novo paradigma, termos, conceitos e experiências
antigos estabelecem novas relações entre si. O resultado inevitável é o que devemos chamar, embora o termo não
seja bem preciso, de um mal estar entre as duas escolas competidoras.” ( 1970, pp. 188-9)
14 Busquei ajuda na obra de comentadores e escritores sobre Freud, tais como David Rapaport,
Elisabeth Roudinesco, Jean Laplanche, Jean-Bertrand Pontalis, Marthe Robert e Paul-Laurent Assoun. Entre os
autores brasileiros baseei-me em Leopoldo Fulgencio e Zeljko Loparic.
44
poderá esclarecer em que sentido a psicanálise não é uma pura ficção, um conto de
fadas científico tal como julgara Krafft-Ebing, nem uma falsa ciência empírica, que
teria lançado hipóteses especulativas que um dia seriam provadas como tendo
referentes objetivos no mundo fenomênico ou, ainda, uma doutrina científica mal
fundada, contraditória ou inadequada nos seus fundamentos epistemológicos e
metodológicos.(2001, p. 346)
feitas por Rapaport, Assoun, Fulgencio e Loparic, entre outros. Estarei também
atenta no sentido de identificar nos conceitos fundamentais da psicanálise o que neles é
puramente descritivo daquilo que lhes foi introduzido ao se juntar o ponto de vista dinâmico.
A assunção desse posicionamento é importante para entender como esses dois elementos – os
empíricos e os especulativos, a psicologia e a metapsicologia – se imbricam na teoria
freudiana da sexualidade e também para traçar a linha diferencial em relação ao pensamento
winnicottiano.
a) Empíricos
Foi com base numa observação criteriosa dos fenômenos expostos nos fatos clínicos
que Freud construiu sua teoria da sexualidade. Ele próprio afirmou que sua obra é resultado
de uma grande capacidade de organizar e classificar as experiências observadas em sua
clínica. Um exemplo da importância que Freud dava à experiência e observação dos fatos
pode ser encontrado numa situação, relatada por Freud, e vivida com Breuer, na qual ambos
têm uma divergência acerca do mecanismo psíquico mais apurado da histeria. Breuer
mostrava preferência por uma teoria fisiológica, enquanto Freud defendia uma explicação que
mais tarde ele denominou de “repressão”. A convicção de Freud fundamentava-se em
situações concretas, pois segundo ele, “[...] a experiência me mostrava sempre uma única e
mesma coisa [...]” (1914a, p. 1897). Em toda a obra de Freud deparamo-nos com observações
que revelam a importância que ele atribuía à observação empírica, tal como no exemplo
mostrado acima (1919, p. 2480).
Para Freud, a elaboração teórica vem a posteriori e de forma a fornecer o nexo entre
os fatos. O que deve prevalecer é uma grande e apurada perspicácia para organizar os dados
dispersos de forma a identificar os quadros nosográficos em estudo.
A minuciosa descrição de Freud sobre a vida sexual dos seres humanos constitui prova
inegável da importância dada às observações e descrições concretas de uma das situações
sobre as quais a Psicanálise se sustentou. Através da descrição do desenvolvimento
psicossexual, Freud aponta o comportamento infantil com base na relação que o sujeito
estabelece com o mundo e com os objetos com os quais se depara desde seu nascimento.
47
O que caracteriza de fato as relações de objeto? Para entendermos como elas se dão,
precisamos considerar que o sujeito, ao buscar um objeto para obter satisfação, o fará movido
por uma pulsão. O sujeito já tem em mente o alvo para o qual dirigirá sua pulsão, ao mesmo
tempo em que já sabe qual é a fonte de onde essa pulsão parte. Por um lado, há um tipo de
atividade, um modo pelo qual se concretiza o ato pulsional e, por outro lado, haverá um
determinado tipo de objeto que receberá essa ação. Para a compreensão de como uma ação se
efetiva há a necessidade de introduzirmos um componente não empírico, um componente que
se expresse através de uma força, isto é: juntamente com o elemento empírico necessitamos
de um especulativo, ou seja, a idéia de libido.
No início de sua vida, o sujeito humano dirige sua libido para si próprio e só
posteriormente a libido será direcionada para as pessoas com as quais vier a conviver. Os
primeiros objetos com os quais o bebê convive são os objetos parciais. Como exemplo,
podemos citar o seio materno. Somente mais tarde o bebê vai se relacionar com a mãe inteira.
16 Embora a expressão relações de objeto não tenha sido cunhada por Freud, ela se tornou fundamental
na teoria psicanalítica por fornecer uma forma de compreensão das relações que os sujeitos estabelecem com o
mundo externo. Essa expressão foi introduzida na psicanálise pelos sucessores de Freud, em especial Melanie
Klein e Jacques Lacan.
48
Freud apresentou o estabelecimento das relações objetais por meio das fases
psicossexuais, que vão da oralidade à genitalidade.
As relações mantidas com os pais – ou com quem os substituir em sua ausência – terão
uma importância essencial na formação do psiquismo da criança. Ou seja, as primeiras
pessoas com as quais o bebê se relaciona no início de sua vida são as responsáveis pela
articulação de seu aparelho psíquico, determinando toda a formação de sua personalidade.
Aqui nos referimos à hipótese estrutural do aparelho psíquico. A idéia presente é a de que o
bebê, e, depois, a criança, ao buscar a gratificação, movido pela pulsão, estabelecerá contato
com os sujeitos presentes em sua vida e isso definirá toda a sua constituição. A relevância
dada às relações de objeto está no fato de que todo o desenvolvimento posterior desse bebê
será pautado pela forma como pais e filhos estabeleceram os vínculos entre si, a forma como o
envolvimento afetivo permeou essas relações. É por meio das relações estabelecidas com os
pais que os sujeitos buscam gratificações e efetivam, enfim, todo o contato com o mundo,
constituindo-se como seres humanos por meio da pulsão e da libido.
Conforme vimos no início deste estudo, há uma estreita relação entre sexualidade e
princípio do prazer, uma vez que este último é responsável pelo funcionamento do psiquismo.
A assertiva de Freud de que o comportamento do bebê é guiado pelo princípio do prazer
constitui um aspecto empírico da teoria da sexualidade.
princípio que rege as operações do aparelho psíquico desde mesmo sua origem, de
cuja adequação e eficiência não se pode duvidar [...]” (Freud, 91930 [1929], p. 3025)
Freud descreverá em, sua obra, de que forma o sujeito concretiza a busca pela
eliminação das tensões e pela gratificação, e como ela pode ser observada no comportamento
infantil. Na medida em que realiza suas atividades clínicas, Freud gradativamente chega à
elaboração de uma teoria geral sobre o funcionamento mental. Essa elaboração é importante
para que ele possa compreender os processos mentais normais. A compreensão deste
fenômeno, ele expõe em seu estudo Formulações sobre os dois princípios do funcionamento
mental. Freud parte da idéia de que o psiquismo humano tem duas tendências básicas a
conduzir seu funcionamento: o princípio do prazer e o princípio da realidade. Estes dois
princípios entrarão em conflito nas situações psicopatológicas.
b) Especulativos
b.1) Metapsicologia
Para Freud, além de fazer uma descrição dos fatos clínicos, o cientista precisa lançar
mão de um conjunto de idéias, mesmo que não comprováveis empiricamente, mas que
possibilitem o fechamento das lacunas que impeçam uma compreensão dos mesmos fatos
clínicos. Isso permite constatar que, se a psicologia não era suficiente para explicar suas idéias
sobre a sexualidade, Freud recorreu à metapsicologia, termo criado por ele em 1896, que
terminou por constituir um dos componentes importantes de seu arcabouço teórico. Freud
acrescentou aos dados empíricos sobre a sexualidade a idéia de forças e energias que têm uma
natureza psíquica. Com isso, a metapsicologia se tornou a “super-estrutura especulativa” de
Freud (1924, p. 2776).
Por que Freud escolheu este tipo de explicação? Por que prevaleceu o ponto de vista
dinâmico, apesar da metapsicologia ainda ter os pontos de vista tópico e econômico como
51
outros pilares que a constituem? Fulgencio relata que Freud sabia que, em termos
teóricos, havia mais de um tipo de metapsicologia, uma metapsicologia mecânica na qual se
sustentavam autores como Charcot e Janet, e ele precisava definir qual seria o tipo mais
adequado para fazer parte de seu arcabouço teórico. Segundo Fulgencio, Freud não
compartilhava da hipótese fisiológica atribuída à doença, calcada num ponto de vista
mecanicista, e, por isso, optou por um ponto de vista dinâmico. Isso ocorreu porque
Freud foi formado noutra linha de pesquisa, da qual participavam Fechner, Helmholtz
e Brücke, e cuja perspectiva de explicação é diferente da mecânica. Para esses
pensadores, o ponto de vista mais adequado para servir como guia na busca de
explicações sobre os fenômenos e suas causas é o dinâmico: este supõe a interação de
forças em conflito como um quadro no qual as explicações são procuradas. Nessa
perspectiva, os fatos observados devem ser estruturados e relacionados não em função
de supostas falhas mecânicas, mas sim de supostas forças em conflito. (2003, p. 140)
Temos aqui o ponto de partida da escolha de Freud por um ponto de vista dinâmico,
ou seja: ao invés de uma descrição, ele supõe uma interação de forças psíquicas. Na medida
em que realizava seu trabalho clínico, Freud constatava que os dados descritivos eram
insuficientes para oferecer uma explicação eficiente sobre os fenômenos e processos
psíquicos. Para suprir essa lacuna empírica, ele criou construções auxiliares, um conjunto de
teorias especulativas que oferecem as explicações necessárias. Por meio desse recurso, Freud
encontrou o componente do qual necessitava. Ao tratar de seu trabalho com os histéricos, ele
define sua posição:
recordarei, finalmente, com poucas palavras, a idéia auxiliar que tenho utilizado para
esta descrição das neuroses de defesa. Tal idéia é a de que nas funções psíquicas deve
distinguir-se algo (um montante de afeto, soma de excitação), que tem todas as
propriedades de uma quantidade – ainda que não tenhamos um modo de mensurá-la;
algo suscetível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga e que se estende
pelas marcas mnêmicas das representações como faria uma carga elétrica pela
superfície dos corpos. (1894, p. 177)
Com a introdução desse componente, Freud encontra o recurso para completar suas
explicações sobre os mecanismos da histeria. Isso permitiu a criação do arcabouço
52
Dada essa função da metapsicologia e considerando que ela está presente também na
teoria da sexualidade, chegou o momento de verificar como esses os aspectos empíricos e os
especulativos imbricam-se. Freud utiliza os elementos especulativos para afirmar que o
desenvolvimento sexual se dá através das relações de objeto. Vejamos agora um conceito que
está na base da teoria da sexualidade freudiana.
1. Pulsão (Trieb)17
Dentre as muitas questões que envolvem o trabalho de Freud, uma que se destaca é a
necessidade de assentar a Psicanálise em bases científicas, erigidas de acordo com modelos
vigentes nas outras ciências da natureza. Como conseqüência, Freud se viu obrigado a
desenvolver um modelo teórico que fosse aceito pelos cânones da época, tais como os da
física, modelo citado por ele como exemplar de uma ciência. Para resolver essa questão, ele
elaborou os modelos propostos na Primeira e Segunda Tópica, em que presumia a existência
17 Problemas na tradução do termo Trieb geraram alguns equívocos quanto ao seu uso, uma vez que ele
pode abarcar vários significados. Freud usou o termo Trieb para especificar o elemento responsável pelo
funcionamento do psiquismo humano, reservando o termo Instinkt para o contexto do comportamento dos
animais. Para uma melhor compreensão do termo, consultar Loparic 1999.
53
há que se assinalar o caráter metodológico do uso da pulsão, pois Freud afirma que,
além de descrever e classificar os fenômenos, ele também quer concebê-los como os
indicadores de que constituem um jogo de forças na nossa psique (1916 [1917], p. 2123).
Porém, há que se perguntar: o que é a pulsão? Qual sua origem? Ela é uma energia que
está em estado de excitação no corpo do sujeito e leva o sujeito a buscar o prazer e, ao mesmo
tempo, a se esquivar da dor. Freud usou o termo pela primeira vez em 1905, depois fez vários
acréscimos à sua definição no decorrer dos anos, e desde suas primeiras considerações ele
salientou que ela também tem um caráter sexual. O aspecto diferencial de seu conceito em
relação às idéias vigentes era o de que a pulsão sexual vai além das atividades sexuais
puramente biológicas, e que a pulsão é o impulso por meio do qual a libido (da qual
trataremos no próximo item) constitui a energia. Neste texto, Freud assinala que a pulsão é
uma expressão do instinto sexual.
Freud destaca, em 1915, em seu texto As pulsões e seus destinos, que as pulsões se
originam do interior do organismo, e, portanto, não podem ser removidas. Elas exercem uma
pressão constante sobre a mente do sujeito. Para Freud,
Freud postulou inicialmente que o sujeito humano possui instintos do ego, que estão
relacionados às tendências de auto-preservação; postulou também que também existem os
impulsos sexuais, que se relacionam às tendências de preservação da espécie. Posteriormente,
ele afirmou que o sujeito possui a pulsão de vida, o qual inclui tanto a pulsão do ego como a
pulsão sexual originais, assim como também possui a pulsão de morte, que tende a fazer com
que o organismo retorne ao estado inorgânico. A energia da pulsão de vida recebeu a
denominação de libido. No entanto, Freud não outorgou uma denominação à energia da
pulsão de morte. Segundo Freud, as pulsões libidinais estão em conflito com as de
preservação individual (1915a, p. 2043).
a) têm uma fonte (Quelle) de onde provém a sua quantidade de excitação, localizada
num órgão ou parte do corpo;
b) têm também uma meta, uma finalidade (Ziel) que lhes permite a eliminação da
excitação, ou seja, a busca da satisfação que será obtida por meio da eliminação do
estado de estimulação na fonte da pulsão;
c) têm um objeto (Objekt), ou seja, a pulsão busca um objeto, ela dirige- se a um objeto
pelo qual a excitação se descarrega, de forma a alcançar sua finalidade, mesmo que
esse objeto seja uma parte do próprio corpo do sujeito;
56
À época em que Freud desenvolveu suas teorias, ele concebeu a pulsão como tendo
um caráter diferente das idéias vigentes no campo das ciências biológicas. A pulsão,
diferentemente dos instintos, tem seu objeto na representação mental ou na fantasia. Em suas
diferentes reformulações sobre o tema, Freud aponta, em 1915, que as pulsões visam uma
diminuição da quantidade de excitação. Em 1924, um novo elemento se agrega à idéia
anterior: a noção de que o incremento da excitação também produz prazer, além de evitar o
desprazer.
Em 1933, em uma de suas últimas afirmações sobre o tema, ele diz que “a teoria das
pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia” (1933 [1932], p. 3154). 18
Freud confirma que a teoria das pulsões mantém o caráter de convenção e que isto é
suficiente para fundamentar seu trabalho. Freud confirma que a teoria das pulsões mantém o
caráter de convenção e que isto é suficiente para fundamentar seu trabalho. (1915a, p. 2039)
2. Libido
O caráter especulativo de libido foi apontado pelo próprio Freud: “[...] uma
pressuposição da teoria da libido somente é possível, temporariamente, por via especulativa”
(1905 [1920], p. 199).
A utilização do termo libido é mais um dos empréstimos que Freud fez de outras áreas
de conhecimento vigentes sobre o ser humano, empréstimo que o ajudou na construção de seu
arcabouço teórico. Este conceito, cuja origem remete à área da Sexologia, possibilitou a Freud
fazer uma correlação de libido com a pulsão de vida.
Segundo Freud,
Uma característica primordial da libido é que ela é a energia da pulsão que se dirige
para o objeto, ou seja, ela é um componente da sexualidade. “Com esta palavra [libido]
designamos aquela força em que se manifesta o instinto sexual, tal como no homem se
manifesta o instinto da absorção dos alimentos” (Freud, 1917 [1916-1917], p. 317). Ela não
tem origem biológica, tem uma dimensão psíquica, ou seja, ela é uma energia sexual psíquica.
Freud afirma que a libido está presente desde o início na vida do bebê, determinando seu
comportamento e exigindo gratificação. Além disso, é por meio da libido que o aparelho
psíquico ganha movimento.
58
Freud mantém a idéia de uma energia específica que anima os impulsos amorosos que
se dirigem aos objetos. Em 1930, ele afirma:
a fome pode ser considerada como representante das pulsões que querem conservar o
indivíduo, o amor tende para os objetos, sua função principal, favorecida de todas as
maneiras pela Natureza, é a conservação da espécie. É assim que, primeiramente, se
confrontam, umas com as outras, as pulsões do eu e as do objeto. Para designar a
energia destas últimas, e exclusivamente para elas, eu introduzi o nome de libido, é
assim que se estabelece a oposição entre as pulsões do eu e as pulsões libidinais.
(1930, p. 3049)
É ao nomear o que seria a libido, que Freud pode justificar sua hipótese de que haveria
um caráter eminentemente sexual em alguns aspectos de sua teoria. Isso é percebido quando
ele afirma que
Freud caracterizou a libido como uma energia que pode se deslocar, transformar seus
objetivos e também mudar o objeto no qual se investe.
59
É por meio do termo libido que Freud pôde operacionalizar a forma como as
transformações psicossexuais ocorrem no sujeito. Isso somente foi possível com outro
conceito, o de zonas erógenas.
3. Zonas erógenas
As zonas erógenas constituem fontes originárias das pulsões. Freud parte do princípio
de que há regiões do corpo do bebê que constituem a sede das excitações sexuais, regiões que
são usadas pelo ego do bebê para uma busca de objetos para contato, definindo modos de
relacionamento com os outros; ou seja, um órgão ou uma parte do corpo ou o corpo em sua
60
Para Freud, qualquer parte do o corpo humano pode ser uma zona erógena, mas há
algumas regiões cuja função primordialmente parece ser a de revestir-se de característica
erógena, ou seja, “o caráter da erogeneidade vincula-se a algumas partes do corpo de forma
particularmente marcante” (Freud, 1905, p. 166). Com a chegada na puberdade, haverá uma
supremacia dos órgãos genitais como zonas erógenas por excelência. Segundo Freud,
na infância começa a fazer-se notar a zona erógena dos órgãos genitais, seja porque,
como qualquer outra zona erógena, ela produz satisfação em resposta a estimulação
sensorial apropriada, ou, de uma maneira ainda não bem compreensível, quando a
satisfação é originária de outras fontes, produz-se simultaneamente uma excitação
sexual que tem relação especial com a zona genital. (1905, p. 213)
Em 1915, numa nota de rodapé, Freud acrescenta: “após refletir mais e depois de levar
em conta outras observações, fui levado a atribuir o caráter de erogeneidade a todas as partes
do corpo e a todos os órgãos internos” (1905, p. 167). Esta observação confirma sua posição
de que o deslocamento libidinal transformará todo o corpo do sujeito em zona erógena.
4. Aparelho psíquico
Ao longo de vários anos de estudo, Freud concebeu suas idéias sobre o funcionamento
do psiquismo do sujeito. A idéia central é a de que o psiquismo tem um funcionamento
análogo ao de uma máquina constituída por partes interconectadas. Esse ponto de partida
originou a idéia de um aparelho, isto é, um aparelho psíquico responsável por funções
afetivas, cognitivas e representacionais. Em suas observações sobre a vida psíquica, ele
sustentou que:
61
No texto A interpretação dos sonhos, Freud formula seu primeiro modelo figurativo
metapsicológico para visualizar o funcionamento do aparelho psíquico. Segundo Freud,
62
Esse modelo de Freud fornece uma topografia da mente humana, partindo da idéia
principal do quanto somos ou não somos conscientes dos fenômenos. As partes desse
aparelho mental receberam os nomes de consciente, pré-consciente e inconsciente. Ao
consciente relacionam-se os fenômenos dos quais estamos conscientes num determinado
momento; o pré-consciente diz respeito aos fenômenos dos quais nos tornaremos conscientes
no futuro se nos ativermos a eles; e o inconsciente se refere aos fenômenos dos quais não
somos nem temos a possibilidade de nos tornarmos conscientes, a não ser em circunstâncias
especiais (Freud, 1900, pp. 673-680).
Disse Freud:
a fome pode ser vista como representando as pulsões que visam a preservar o
indivíduo, ao passo que o amor se esforça na busca de objetos e sua principal função,
favorecida de todos os modos pela Natureza, é a preservação da espécie. Assim, de
início, as pulsões do ego e as pulsões objetais se confrontavam mutuamente. Foi para
indicar a energia destes últimos que introduzi o termo “libido”. (1929 [1930], p. 3049)
Com este par de pulsões, Freud pôde dar continuidade ao trabalho com seus pacientes,
até que novas lacunas em seu campo profissional, a observação de tendências masoquistas em
seus pacientes, o levaram ao estabelecimento de um novo modelo topográfico.
Na medida em que aprofundou seus estudos sobre o inconsciente, Freud constatou que
deveria considerar outros aspectos que impossibilitavam que os conteúdos penetrassem na
consciência. Os problemas clínicos observados por Freud o motivaram, em 1923, a levantar
uma segunda hipótese estrutural para explicar melhor o funcionamento do psiquismo, uma
explicação com base nas diferenças funcionais dos diferentes conteúdos que compõem este
último. Esses componentes receberam o nome de id, ego e superego. O id compreende as
representações psíquicas dos impulsos advindos do estrato biológico do sujeito. Segundo
Freud, “o poder do id expressa o verdadeiro propósito do organismo individual: satisfazer
suas necessidades inatas” (Freud, 1938[1940], p. 3381). O id busca a descarga da excitação
por meio do princípio do prazer. Ao ego corresponde o contato e relações que o sujeito
mantém com o ambiente, o contato com a realidade. Ele tem como função primordial
promover a satisfação do id de um modo que também atenda às necessidades do superego. Ao
superego correspondem os preceitos morais e princípios que norteiam o comportamento
moral do sujeito, de acordo com as normas sociais (Freud, 1923b, pp. 2705-2728). Enquanto
que o id contém conteúdos de natureza inconsciente, o ego e o superego contêm conteúdos
tanto conscientes quanto inconscientes.
64
Este tema assumiu uma grande importância na obra de Freud, apesar de seu caráter
meramente especulativo.
Um dos temas fundamentais para este estudo refere-se à forma como Freud concebe o
desenvolvimento e a constituição da sexualidade. Os primeiros passos para entender esse
tópico foram dados no item em que descrevemos o desenvolvimento da libido.
65
Num de seus últimos textos, ele afirma que o final de processo de desenvolvimento da
sexualidade deve resultar em homens e mulheres com características bem diferenciadas, ou
seja,
para diferenciar entre masculino e feminino, na vida psíquica, recorremos, sem dúvida
alguma, a uma equivalência empírica que é convencional e precária: chamamos de
masculino a tudo que é forte e ativo, a feminino a tudo que é fraco e passivo. O fato de
que a bissexualidade seja psicológica dificulta também nossas investigações, e
dificulta também sua descrição. (1938 [1940], p. 3406)
se um bebê fosse capaz de comunicar suas sensações, declararia desde cedo que o ato
de mamar no seio materno constitui a ação mais importante de sua vida. Nisto o bebê
não se engana, pois por meio da amamentação ele satisfaz duas grandes necessidades
vitais. [...] Sugar o seio materno constitui o ponto de partida de toda a vida sexual, o
modelo ideal de toda satisfação sexual posterior, o ideal a que toda fantasia recorre em
momentos de privação. De certo modo, o seio materno é o primeiro objeto do instinto
sexual e possui uma enorme importância que agirá sobre toda posterior escolha de
objetos e exerce em todas as suas transformações e substituições uma considerável
influência, até mesmo nas mais remotos domínios de nossa vida psíquica. (1917
[1916-17], p. 2318)
Freud aponta que a bissexualidade é um aspecto presente tanto nos homens quanto nas
mulheres. Tanto homens possuem características femininas, quanto as mulheres possuem
características masculinas.
Outro fator importante na sexualidade infantil está no fato de que tanto meninas
quanto meninos possam ter uma intensa atividade masturbatória. A masturbação pode se dar
na primeira infância, ser interrompida e retomada posteriormente na puberdade (1905, p.
168).
67
Na puberdade se consumará uma vida sexual normal. Esta deve se caracterizar por
propiciar uma coincidência das duas correntes dirigidas ao objeto e à meta sexual, ou seja,
devem coincidir a corrente afetiva e a corrente sensual, sendo que a primeira reúne em si o
que resta da sexualidade infantil (Freud, 1905, p. 189).
menino o medo de sofrer uma retaliação, ou seja, medo de ser castrado pelo pai por
estar competindo pela mãe, que é esposa do pai. Esse conflito é resolvido quando o menino
mantém a mãe como seu objeto de amor e se identifica com o pai. Esse processo de
identificação permite que a criança desenvolva um senso moral e, conseqüentemente, o
superego. A resolução do complexo de Édipo se dará especialmente por um desapontamento
em relação à mãe (1923b, p. 2712).
Todas essas idéias são ratificadas em outro artigo do mesmo ano. Freud confirma que
é o temor à castração pelo pai, possibilidade confirmada quando o menino percebe que as
meninas são castradas, o principal elemento que leva à dissolução do complexo de Édipo.
Freud afirma que
o novo objetivo sexual dos homens consiste na descarga dos produtos sexuais. O
anterior, a obtenção do prazer, não lhe é de forma alguma estranho; ao contrário, o
mais alto grau de prazer está vinculado a este ato final do processo sexual. A pulsão
sexual está agora subordinada à função reprodutora; tornou; por assim dizer,
altruísta.(1905, pp. 189-190)
infantil, embora não seja o único elemento, é o mais marcante na escolha do objeto,
e que posteriormente será revivido na puberdade.
Outro elemento presente na escolha de objeto está na lembrança do afeto que ao jovem
foi mostrado em sua infância pelas pessoas do sexo feminino, em especial sua mãe.
Ao mesmo tempo, é fundamental que o jovem tenha sido convencido a não se envolver em
situações de competição. Dessa maneira, evita-se que o jovem eleja pessoas de sexo igual ao
seu como seu objeto amoroso. Freud também acredita que os rapazes não devem ser educados
por pessoas do sexo masculino (1918 [1914], p. 1941). Seus atendimentos mostraram que a
perda de um dos genitores e uma superproteção por parte do genitor remanescente podem
propiciar uma situação a qual ele denomina de inversão (ou homossexualidade) (1905, p.
209).
Em 1923, em seu texto A organização genital infantil, Freud diz que ainda não se
conhece com detalhes o que ocorre na mulher quando se consideram os aspectos equivalentes
ao processo masculino relacionados à primazia do pênis. (1923b, p. 2699) Neste mesmo ano,
ele define a feminilidade a partir da combinação dos aspectos objeto e passividade, aspectos
que serão consumados na puberdade. Diz Freud que “o feminino integra o objeto e a
passividade. A vagina é reconhecida como o abrigo para o pênis, e herda o útero materno”
(1923b, p. 2700).
Ao sentir inveja do pênis, a menina escolhe o pai como seu objeto de amor e imagina
que poderá recuperar o órgão perdido se tiver um filho com ele. A resolução do conflito
edípico na menina virá na medida em que mantiver o pai como objeto de amor, ao mesmo
tempo em que o ganha por identificar-se com a mãe. A resolução do complexo edípico nas
meninas se dá de uma forma peculiar. De certa forma, é como se elas tivessem menos temor
nessa situação, pois como elas pensam que perderam o pênis e já são castradas, não há mais o
que perder. E como elas não mais temem a perda do órgão sexual, tendem a desenvolver um
superego mais fraco (1925, p. 2902).
72
Até 1910, Freud afirmava que a rivalidade com a mãe era um fator que
impedia a menina de ter nas mulheres a escolha de objeto amoroso. Em 1915, ele sustenta
algo parecido: uma relação hostil com pessoas do próprio sexo pode ajudar a mulher a
encaminhar-se para uma ‘direção normal’ da sexualidade (1905, p. 209).
Em 1926, Freud ainda afirma que pouco sabe sobre a vida sexual das meninas.
Salienta que isso não é motivo de vergonha para o pesquisador, pois, “afinal de contas, a vida
sexual das mulheres adultas constitui um continente negro [dark continent] para a Psicologia”
(Freud, 1926, p. 2928).
Freud aponta que a vida sexual das meninas divide-se em duas fases, sendo que a
primeira tem um caráter masculino e somente a segunda fase assume caracteres femininos.
Essa característica de passagem de uma fase para outra é de natureza essencialmente
feminina. Na segunda fase da sexualidade, quando a vagina tem primazia sobre o clitóris, este
órgão continuará a funcionar por ter um caráter viril. Isto se torna um elemento complicador,
o que levou Freud a afirmar que:
Ainda neste estudo Freud se rende: “há muito tempo, afinal de contas, já
abandonamos qualquer expectativa quanto a um paralelismo claro entre o desenvolvimento
sexual masculino e feminino” (1931, p. 3087).
No final da primeira fase de ligação com a mãe, a menina tende a se afastar dela
porque ela não lhe deu o pênis, o único órgão sexual completo, entre outros motivos. Talvez o
motivo mais real para justificar essa hostilidade esteja no fato de que a ligação com a mãe é
tão intensa porque é a primeira afeição que a menina experimenta (Freud, 1931, p. 3083).
As idéias defendidas por Freud em seus artigos de 1905, 1917, 1925, 193120, dentre
outros, são confirmadas em 1933 [1932], no texto Novas Lições Introdutórias à Psicanálise,
na conferência Feminilidade. Este estudo se refere a uma palestra que Freud proferiu a um
público constituído por psicanalistas, sendo que uma parte desse público era composta por
mulheres. Nesse texto, ele tece muitas considerações relativas ao tema da feminilidade, um
assunto importante, pois “através da história as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma
da natureza da feminilidade” (1933, p.3164). Inicialmente, ele adverte que a anatomia não
pode dar conta do que seria a feminilidade, uma vez que há, tanto nos homens quanto nas
mulheres, elementos de ambos os sexos, mesmo que de forma atrofiada. Esta concepção já
havia sido assumida em 1905.
No que se refere ao masoquismo, Freud pensa que este aspecto também não
caracterizaria a feminilidade, pois muitos homens também apresentam este componente em
seu psiquismo (1933 [1932], p. 3166).
20 Três ensaios sobre a teoria da sexualidade; A organização genital infantil; Algumas conseqüências
psíquicas sobre as diferenças anatômicas; A vida sexual dos seres humanos; A sexualidade feminina. Nestes
textos são encontradas suas idéias sobre a vida sexual infantil e a forma como ela se desenvolve.
76
Freud mantém até o final de sua vida a crença na inveja do pênis como o
elemento definidor do psiquismo das mulheres. Para ele, as meninas são mais inteligentes que
os meninos da mesma idade. Para ele, os meninos buscam estabelecer uma catexia maior com
os objetos. As meninas também seriam mais dóceis que os meninos (1925, 1931 e 1933a).
Antes de efetuar a troca de objeto, a menina sente ódio pela mãe. A menina se queixa
da falta de amor, pois a mãe não a amamentou devidamente. Outras queixas podem surgir
quando a mãe se dedica aos novos filhos que nascem posteriormente e também nas situações
em que ela impede a menina de buscar o prazer na masturbação (1933 [1932], pp. 3170-1).
[1932], p.3172). É desta forma que ela entra no complexo edipiano. As mulheres
seriam dadas à inveja e aos ciúmes, ou seja, teriam um caráter moral mais frágil em função de
não temerem a castração (1933 [1032], p.3174). A todos estes aspectos Freud denominou de
‘pré-história da mulher’ (1933 [1032], p.3175). Freud cita algumas analistas que se
aprofundaram neste tema. Uma delas, Dra Ruth Mack Brunswick, foi a primeira a descrever
um caso clínico em que uma fixação na fase pré-edipiana impediu que a paciente atingisse a
situação edípica. Já a Dra Jeanne Lampl-de Groot constatou que os atos eróticos de mulheres
homossexuais reproduzem as relações entre a mãe e o bebê (1933 [1932], p.3175).
Neste ponto de sua conferência, Freud diz que não é sua intenção apresentar o
comportamento da feminilidade na puberdade e maturidade, pois seu conhecimento é
insuficiente. Porém, ele apresenta outros esclarecimentos tendo a pré-história como ponto de
partida. Para ele, a feminilidade estaria exposta a perturbações advindas dos fenômenos
residuais do período masculino inicial. Poderiam ocorrer fixações nas fases pré-edipianas e,
no decorrer da vida de algumas mulheres, a repetida alternância entre períodos possibilitaria o
predomínio ora da masculinidade ora da feminilidade. Essa bissexualidade seria a responsável
pelo enigma da mulher (1933[1932], p.3175).
Se em 1905 Freud afirma que uma única libido seria responsável pela constituição
tanto da masculinidade quanto da feminilidade, em 1933 sua idéia se altera. Ele diz que “[...]
não nos surpreenderíamos se cada sexualidade tivesse a sua libido, o que acarretaria uma
situação em que um tipo de libido seria a responsável pela finalidade de uma vida sexual
feminina” (1933 [1932], pp. 3175-76). Logo em seguida, ele faz uma observação que descarta
a assertiva anterior ao sustentar que a libido não tem sexo. A fundamentação freudiana na
biologia é retomada quando ele afirma que a maior dificuldade no estabelecimento da
sexualidade feminina pode ser compreendida através do fato de que a Natureza teria sido mais
generosa com os homens ao lhes confiar a realização do objetivo biológico, por meio de uma
agressividade maior (1933 [1932], pp. 3175-77).
Freud também aponta uma frigidez sexual nas mulheres, fenômeno que, embora ainda
não bem compreendido, poderia ser explicado por causas anatômicas, psicogênicas, e também
por fatores constitucionais.
a mãe somente obtém satisfação sem limite com seu filho menino; este é, sem
exceção, o mais perfeito, essa relação é a mais livre de ambivalência de todos os
relacionamentos humanos. A mãe pode transferir para o filho a ambição que ela teve
que reprimir e esperar: a satisfação do complexo masculino que falta a ela. (Freud,
1933 [1932], p. 3177)
Para Freud, o nascimento de uma filha e o desagrado que isto provoca na mãe revela a
inveja do pênis. (1933 [1932], p. 3176)
Quanto às escolhas objetais, estas derivam do ideal narcisista do homem que a menina
um dia quis ter – seu pai. Se a menina vinculou-se ao pai e se hostilizou com a mãe, sua
escolha objetal se dará de acordo com o modelo paterno e seu casamento poderá ser feliz.
Quando a mulher se torna mãe, ela poderá reviver sua relação com sua própria mãe, contra a
qual ela estava lutando até agora, de modo que poderá repetir o casamento infeliz dos pais
(1933 [1932], p. 3176).
Para Freud, a identificação de uma mulher com a mãe se constitui em dois momentos:
o primeiro é o pré-edipiano, que se sustenta no vínculo afetuoso com a mãe, e o segundo vem
do complexo de Édipo, quando a menina quer eliminar a mãe para poder ficar com o pai. Os
resíduos deste momento podem surgir no futuro, sem uma resolução definitiva. Porém, o
aspecto mais importante pode ser encontrado na ligação pré-edipiana, pois ela é responsável
pela formação das características que futuramente se vincularão ao papel na função sexual e
preparação para as tarefas sociais. É pela identificação que a menina adquire os atrativos para
o homem que converte a vinculação edípica pela sua mãe em paixão (1933 [1932], p. 3177).
Neste mesmo estudo Freud diz que outra característica feminina é de ser dotada de
pouco senso de justiça. Isso advém do fato de que em sua vida mental há o predomínio da
inveja, pois “a exigência de justiça é uma fixação da inveja e procura a condição através da
79
qual a pessoa pode colocar essa inveja de lado. Pensamos também que têm menos
interesses sociais que os homens e sua capacidade de sublimação dos instintos é menor que a
dos homens” (1933 [1932], p. 3177). Para ele, as mulheres são mais rígidas que os homens.
Freud conclui esse artigo reconhecendo que essas observações não são agradáveis, e que
também são incompletas. Diz ainda “não se esqueçam que descrevi as mulheres enquanto ser
que é determinado por sua função sexual. Essa influência advém de muito longe, não
desprezamos o fato de que a mulher também faz parte do gênero humano” (1933 [1932], p.
3178).
Freud encerra a conferência afirmando que já havia dito tudo o que sabia até então e
que maiores dados deveriam ser perguntados “aos poetas, ou esperar até que a ciência possa
dar informações mais profundas e mais coerentes” (1933 [1932], p. 3178).
Em suma, Freud iniciou sua teoria da sexualidade por meio dos quadros de perversão.
No decorrer de uma intensa atividade clínico-empírica, construiu uma teoria dinâmico-
energética, baseada na idéia de supostas forças e energias, ou seja, conceitos especulativos,
que conduzem o ser humano. Freud concebe o homem como um sujeito que comporta um
aparelho psíquico, um aparelho cuja causalidade é, em última instância, mecânica. Este
sujeito é movido pelo princípio do prazer e da realidade, e tem que resolver as agruras do
complexo de Édipo, administrando os instintos sexuais nas relações a três.
80
Introdução
Uma análise dos textos de Winnicott revela a estrutura de seu pensamento. Os textos
de Winnicott da década de 1930 ainda carregam sua herança de médico pediatra, mas já
revelam seu viés de psicanalista. Winnicott aborda a importância da psicanálise para o médico
pediatra (1930b, 1996e [1931], 1996h [1931], 1931p, 1938b). Nestes textos, Winnicott ainda
usa os jargões da psicanálise tradicional, tais como ‘prazeres orais’, ‘prazeres genitais’
(1934c). Os termos kleinianos ‘realidade interna (inner word) e externa’, ’objetos bons e
objetos maus’ (1958k [1935]) estão presentes de modo regular. Não há aqui uma crítica aos
elementos da psicanálise tradicional. Winnicott enfatiza os aspectos relacionados com sua
atividade pediátrica e termos como pulsão e zonas erógenas ainda são encontrados. Os textos
de Winnicott do início dos anos 1940 ainda expressam um compromisso com a psicanálise
21 Roberto Barberena Graña, por exemplo, na apresentação à edição brasileira do livro Pensando sobre
crianças, refere-se a Winnicott como um pensador freudiano.
81
Como as tramas do existir humano são tecidas? Quando surge o ser humano, em que
momento ele pode ser considerado parte constituinte da humanidade? Em que momento
começa a vida humana? Como médico, Winnicott não deixou de valorizar o potencial
genético do ser humano, mas sua posição era a de que os genes não são suficientes (1987d,
[1967], p. 94). O processo de amadurecimento será sustentado pela mãe que se adapta ao bebê
e promove o seu crescimento. Como diz Winnicott, é difícil precisar quando tem início o
processo de desenvolvimento humano, de modo que a única data definida com rigor é a do
nascimento. Mas, até o nascimento, muita coisa já aconteceu com o bebê e, curiosamente, o
próprio nascimento não basta, pois após o nascimento biológico surge a necessidade da
eclosão do nascimento psicológico, o qual advém da integração das experiências dessa fase e
das posteriores.
motilidade com a força que impulsiona o sujeito, uma força que, na metapsicologia,
é chamada de pulsão de vida. Essa comparação não cabe, uma vez que a pulsão de vida age
por si mesma e tem o objetivo de buscar o prazer, enquanto que a motilidade própria do bebê
humano advém simplesmente do estar vivo e da necessidade de continuar a existir. Se isso
ocorrer, a descoberta do prazer virá mais tarde.
Estas comunicações foram claras: uma teoria baseada na progressão da libido nas
zonas erógenas não se mostrava eficaz, uma vez que não são os aspectos instintuais que
devem ser enfocados, dado que no início da vida os instintos não estão integrados, nem o
complexo edípico está presente. A integração instintual e o complexo edípico serão possíveis
numa etapa posterior do desenvolvimento da criança.
Muita coisa deverá ocorrer com o bebê desde esta etapa de incompadecimento até que
ele se torne concernido e responsável pelos atos de sua impulsividade instintual.
Outro aspecto deve ser considerado – para Winnicott, o início da vida remete à
psicose. Não faz sentido pensar no quadro de neurose como a doença emblemática do ser
humano, posto que esse quadro surge em fase tardia na vida da criança. Assim, no início da
vida, a psicose é que deve ser considerada:
o termo psicose é usado para o indivíduo que, quando bebê, não foi capaz de atingir
um grau de saúde pessoal que faça sentido em termos de complexo de Édipo, ou dito
86
para fazer progresso no sentido de uma teoria operável da psicose, os analistas devem
abandonar toda a idéia da esquizofrenia e da paranóia tal como vistas em termos de
regressão ao complexo edipiano. A etiologia destes transtornos leva-nos
inevitavelmente a estágios que precedem o relacionamento de três corpos. (1989xa
[1969], p. 246)
Ao longo dos anos de sua atividade profissional, Winnicott apontou que somente uma
teoria que mostrasse o processo de desenvolvimento humano poderia oferecer a chave para a
compreensão do modo pelo qual o homem amadurece.
Com esta declaração, não restam dúvidas quanto à assunção, por Winnicott, de um
modelo teórico mais adequado ao estudo da natureza humana, ou seja, mais adequado para a
compreensão do que ocorre com o ser humano em cada fase de sua vida. Um modelo que
mostra como se dá o desenvolvimento saudável desde os primórdios da vida do indivíduo, a
passagem pelos diferentes estágios da infância, a chegada na adolescência, a vivência da
maturidade até a chegada da morte, última etapa, ou último selo da saúde (Winnicott, 1988, p.
12).
2. Críticas à metapsicologia
circulam os dois elementos citados. Será que estes eixos metapsicológicos são
encontrados em Winnicott? A resposta é: não.
é um alivio que a psicanálise tenha atravessado a fase, que durou meio século, na qual,
quando os analistas se referiam aos bebês, só podiam falar em termos de pulsões
22 Em alguns textos, Winnicott se refere à metapsicologia como um aspecto teórico. Um exemplo pode
ser encontrado na seguinte frase, referente à sua própria estrutura de pensamento: “É a mãe que cria o bebê ou o
bebê que cria a mãe? Na metapsicologia da psicanálise, sustento que o bebê cria o seio, a mãe e o mundo.”
(Winnicott 1989xf [1962], p. 457)
23 Loparic se dedicou a esse assunto em vários artigos, em especial 2001a, Além do inconsciente, sobre
a desconstrução heideggeriana da psicanálise. Embora seja importante, este tema não será abordado neste
estudo.
89
O que há lá para ser visto é um novo modelo ontológico, um modelo que não se
baseia numa ciência objetivante24.
[...] estamos tentando expressar as mesmas coisas, só que eu tenho um modo irritante
de dizer as coisas em minha própria linguagem, em vez de aprender a usar os termos
da metapsicologia psicanalítica.
Estou tentando descobrir porque é que tenho uma suspeita tão profunda para com
esses termos. Será que é porque eles podem fornecer uma aparência de compreensão
onde tal compreensão não existe? Ou será que é por causa de algo dentro de mim?
Pode ser, é claro, que sejam as duas coisas. (1987b, p.58)
24 Zeljko Loparic tem realizado estudos no sentido de conceber uma ciência em moldes mais
pertinentes às peculiaridades do existir humano, não emoldurada por um caráter naturo-cientificistas. Essas
idéias podem ser encontradas nos textos 1995a, 1995b,1996, 1997a,1997b, 1999a, 1999b, 1999c, nos quais ele
faz uma leitura do pensamento de Winnicott a partir da filosofia de Martin Heidegger.
25 Segundo o editor do livro Gesto espontâneo, Kris e Hartmann são dois pioneiros estudiosos da
psicologia do ego.
90
Para Winnicott, o ser humano não é uma máquina movida por forças, ele é uma pessoa
que está viva: “na saúde o lactante (teoricamente) começa seu desenvolvimento
(psicologicamente) sem vida e a saúde é adquirida pelo fato de que ele simplesmente está
92
vivo” (1965b, p. 192). Esse “estar vivo é a comunicação inicial do lactante com a
figura materna, e desse estado o lactante não tem consciência” (1965b, p. 192).
Os textos de Winnicott revelam que ali não há lugar para o conceito de aparelho
psíquico. O uso de um termo como esse não se aplica ao ser humano, uma vez que a maneira
de Winnicott conceber a natureza humana se distancia de metáforas mais adequadas ao
mundo das máquinas e de uma condição que distingue radicalmente o homem das coisas da
natureza.
Com Winnicott, saímos do domínio das máquinas e dos aparelhos e passamos para o
campo da humanidade. Humanidade frágil, sujeita à facticidade, às intempéries da vida, mas
nem por isso menos grandiosa que todo o aparato tecnológico da modernidade quer nos fazer
crer que é maior que essa condição humana. Em Winnicott, a mãe é apresenta como uma
“pessoa viva. O seu bebê deve estar apto a sentir o calor de sua pele e alento, a provar e a ver.
[...] Deve existir completo acesso ao corpo vivo da mãe” (1947b, p. 89). Estas definições não
são passíveis de compreensão no campo das engrenagens mecânicas.
Para Winnicott, o ser humano não é dividido em instâncias, tal como é concebido na
psicanálise tradicional. Para Winnicott, individuo que tende à integração não se divide em
partes, ele torna-se uma totalidade, uma pessoa total (whole person).
Conforme já foi destacado neste estudo, o próprio Winnicott afirmou seu desacordo
para com a metapsicologia anunciando o abandono do termo pulsão, dentre outros aspectos
desta estrutura especulativa. Um exemplo claro da renúncia à teoria pulsional se verifica, por
exemplo, quando ele escreveu o livro Natureza humana. O título com o qual ele batiza a parte
IV, Da Teoria do instinto à teoria do ego, já indica a rejeição da idéia propalada pela
psicanálise tradicional de que o sujeito humano é movido pela pulsão26.
Em 55, em seu livro Natureza humana, ao abordar os estados iniciais do ser humano, e
ao discutir a visão de Freud sobre esse assunto – pulsões de vida e de morte – Winnicott
sustenta que não pode concordar com o ponto de vista freudiano:
Freud falou sobre o estado inorgânico do qual se origina cada indivíduo e ao qual todo
indivíduo retorna, e com base nisto formulou seus conceitos de pulsão de Vida e de
Morte. Ao propor este fato óbvio sugerindo que ali estava uma verdade, Freud nos deu
uma amostra de seu gênio. No entanto, nem o uso que Freud fez desse fato nem o
desenvolvimento da teoria das pulsões de Vida e de Morte a partir do mesmo foram
capazes de me convencer [...] (1988, pp. 132-3)
Essa recusa a esses conceitos ainda pode ser vista em 56. Ao escrever para Barbara
Lantos, Winnicott sustenta que dá pouco valor à idéia de pulsão de morte e que o ataque do
bebê ao seio da mãe “[...] não depende de nada que se relacione com uma aceitação da pulsão
de morte, e pessoalmente vejo pouco valor nesse aspecto da teoria freudiana” (1987b, p. 109).
26 Winnicott rejeitou cabalmente as noções de pulsão de vida e de morte. Vide Winnicott 1988 pp. 132-
3, 1987b pp. 40, 42,109, 154, 159, 1965j [1963], 1989a p. 242)
95
Tenho certeza de que você sabe exatamente o que tem em mente quando diz: “partes
perigosas .... derivadas da pulsão de morte ... devem ser expulsas”, etc. etc. Eu mesmo não sei
o que você quer dizer, e pelo menos metade da Sociedade deve sentir que você está dizendo
“pulsão de morte”, em vez de usar as palavras “agressividade” e “ódio”. Talvez você pense
que isto não tem importância, e não tem mesmo, no contexto de seu ensaio, mas seria
realmente muito útil para a Sociedade se conseguíssemos descobrir uma linguagem comum.
Qualquer hora dessas, quando você não tiver nada para fazer, que tal reescrever aquela frase
sem usar as palavras “pulsão de morte”, só por minha causa? (1987b, p. 159).
Dois anos antes de sua morte, Winnicott reitera sua posição de não aceitação da idéia
da pulsão de morte e afirma que de bom grado aliviaria Freud de carregar esta idéia em seus
ombros de Atlas (1989xa [1969], pp.241-2).
nesta exposição não há muita diferença entre os diversos tipos de demanda instintiva,
e tampouco há muita diferença entre seres humanos e animais. Não é necessário, aqui,
entrar em discussão quanto à classificação dos instintos, nem decidir se há um único
96
Para Winnicott, o verdadeiro existir do ser humano tem início com a constituição do
ego do bebê, e isto será possível por meio dos cuidados maternos. O ego infantil constitui-se
através das experiências de onipotência, ou seja, a mãe sustenta a ilusão de que o bebê
encontra o que necessita, mas permite que ele não tenha conhecimento do estado de
dependência em que se encontra. A mãe empresta seu ego ao bebê para que ele possa
construir o dele. Aqui encontramos a grande diferença com relação ao pensamento freudiano,
isto é, o ego conduzirá o indivíduo até o id, e não o oposto. Quando o ego do bebê se
constitui, ele pode experimentar os instintos como parte dele, ou seja, “para que a vida
instintiva possa existir, tem que haver uma conexão com o funcionamento do ego. Este não
pode ser ignorado porque a criança ainda não é uma entidade que possa ter experiências”
(1965n [1962], p.56). Ao contrário de Freud, que preconiza que o id vem em primeiro lugar,
Winnicott afirma claramente que “não há id antes do ego” (1965n [1962], p. 56). Assim,
inicialmente é necessário que o ego do bebê se constitua para que o id possa adquirir um
significado e ocupar seu lugar na constituição do si-mesmo27 do indivíduo. Em Winnicott, o
ego é condição prévia para que o id possa se constituir, ego é totalidade, não é parte, ou
instância psíquica. Ego é uma tendência à integração, e constituição total da personalidade do
indivíduo (1965n [1962], p.56).
27 Adoto a expressão si-mesmo em substituição a self verdadeiro por sugestão de Zeljko Loparic, com
o objetivo de não entificar o termo, e de não confundir o termo self tal como ele é utilizado como instância da
metapsicologia. Nas frases em que o sentido do termo se vincula à relação do individuo consigo próprio, uso a
expressão “si próprio”.
98
Segundo Winnicott, o bebê busca a integração não por ser impulsionado por
forças ou por ter desejo, mas porque tem necessidades (needs). Esse termo ‘necessidade’, é
um dos indicadores de que a psicanálise winnicottiana não mais se localiza no âmbito da
pulsionalidade. O próprio Winnicott endossa essa idéia em um de seus últimos artigos, em
1969, quando escreve em uma nota de rodapé: “a palavra “necessidade” tem importância aqui
tal como “pulsão” tem na área da satisfação do instinto” (1970b [1969], p. 256). Isso indica
que ele promoveu uma recusa ao termo pulsão e o substituiu.
Em Winnicott, “no início, antes que cada indivíduo crie o mundo novamente, existe
um simples estado de ser [...]” (1988, p. 135). Este estado pertence ao bebê e não pode ser
apreendido pelo observador. O estado de ser não é instintual, não é sexualizado. É a partir do
estado de ser que a identidade será constituída, o que inclui a identidade sexual a ser definida
posteriormente. Uma vez que adquire o estado de ser através do processo de integração, o
bebê busca assegurar sua continuidade de ser. Isso significa que todo seu desenvolvimento
deve se dar a partir de sua própria procura e não por meio de uma intrusão ambiental (1988,
pp. 126-130). Continuar a ser significa conquistar o crescimento pessoal e a saúde. Esta
situação não se funda em suposições metapsicológicas. Este estado de continuidade de ser é
assegurado pelos cuidados maternos e é pré-determinado por forças.
100
Segundo Winnicott, o homem não quer reduzir tensões, o homem quer se realizar
como ser humano. Para ele, não é a satisfação instintual que está na base da existência. ‘Saber
sobre o que versa a vida’ torna-se a questão mais importante na vida do ser humano. A isto se
incluem as possibilidades de tomar contato com as experiências culturais, um aspecto
importante na vida do indivíduo. Esse é um aspecto novo que a psicanálise winnicottiana
aborda. Para Winnicott,
Isto quer dizer que ainda temos de enfrentar a questão de saber sobre o que é a vida.
Nossos pacientes psicóticos nos forçam a dar atenção a esse problema básico.
Percebemos agora que não é a satisfação instintual que faz um bebê começar a ser,
sentir que a vida é real, achar que a vida é digna de ser vivida. De fato, as gratificações
instintuais começam como funções parciais e se tornam seduções, a menos que se
baseiem numa capacidade bem estabelecida na pessoa individualmente, para a
experiência total, e para a experiência na área dos fenômenos transicionais. É o si-
mesmo (self) que precisa preceder o uso do instinto pelo si-mesmo (self; o cavaleiro
deve dirigir o cavalo e não se deixar levar por ele). Eu poderia usar a frase de Buffon:
“Le style est l’homme même”’. Quando se fala de um homem, fala-se dele juntamente
com a soma de suas experiências culturais. O todo forma a unidade. (1967b, pp. 98-9)
maternos possibilitam que o bebê, apoiado por uma tensão instintual28, faça um
movimento em busca de algo. Atenta ao bebê, a mãe lhe oferece o seio, atendendo ao gesto
dele de procura. A tarefa dela é manter o bebê na ilusão de que o mundo foi criado por ele. A
recepção ao gesto do bebê ocorrerá num sincronismo tão perfeito que ele não saberá do apoio
recebido, mesmo porque ele ainda não é uma pessoa com um aparato psicológico que lhe
possibilite ter uma percepção do que ocorre à sua volta. A relação entre ambos se
fundamentará numa comunicação em que a confiabilidade se torna o elemento essencial. Para
Winnicott,
Somente criando seu próprio mundo, “através da apercepção criativa, mais do que
qualquer outra coisa que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida” (1971g, p. 65).
Ao falar sobre a comunicação entre o bebê sua mãe e sobre o ponto de partida de seu
trabalho, Winnicott disse que compreendia os motivos pelos quais a psicanálise tradicional
havia demorado para chegar à área da experiência viva do bebê com sua mãe, posto que ela (a
psicanálise tradicional] tivera necessidade de enfatizar a relação entre as pessoas totais e os
conflitos do mundo interno. Porém, segundo Winnicott, os progressos da psicanálise
avançaram e,
28 Nesse início de vida os instintos ainda não estão integrados e por isso o bebê ainda não os sente
como próprios. Isso ocorrerá apenas na fase do concernimento, que será abordada no capítulo IV.
102
Todas as atitudes da mãe não podem ser mensuradas, objetificadas, essa “comunicação
é uma questão de reciprocidade na experiência física” (1968d [1967], p.100) Essas
experiências ocorridas entre mãe e bebê são totalmente diferentes das considerações da
psicanálise tradicional acerca das pulsões, ou seja, “é possível ingressar nas águas profundas
da mutualidade que não estão diretamente relacionadas com as pulsões ou com a tensão
instintual” (1970b [1969], p. 257).
Para Winnicott, não é a pulsão que move o indivíduo, é sua criatividade originária.
Aqui encontramos uma das novidades do pensamento winnicottiano. O conceito de
criatividade originária não tem precedente na psicanálise tradicional, a qual concebe a
formação do psiquismo com base na idéia de mecanismos mentais de projeção (termo
desenvolvido por Freud e que já admite a idéia de interno/externo) e introjeção (criado por
Ferenczi, adotado por Melanie Klein). Winnicott pergunta: “[..] o ser humano é capaz apenas
de projetar aquilo que foi previamente introjetado, ou, em outra linguagem, de excretar o que
foi ingerido?” (1988, p. 110). A criatividade originária está presente desde os primórdios da
103
vida do bebê. Ela é o início, o primeiro passo para que a criação do si-mesmo seja
possível, assim como a posterior inserção do indivíduo no mundo.
O nascimento não assegura que o bebê se integre ao mundo. Para Winnicott, ao nascer
o bebê ainda não é um ser humano inteiro e ainda não chegou à realidade externa. Para que
ele chegue até ela é necessário criá-la. É preciso que ele crie o mundo para nele se instalar.
Mas antes disso ele precisa se tornar uma pessoa inteira para poder chegar ao mundo externo.
Do ponto de vista do observador externo, o mundo já estava lá antes do bebê nascer, mas ele
não sabe disso, pois está começando a ter suas primeiras experiências. É como se nada
existisse. Segundo Winnicott,
o mundo é criado de novo por cada ser humano e começa sua tarefa no mínimo tão
cedo quanto o momento de seu nascimento e a primeira mamada teórica. O que o bebê
cria depende em grande parte do que foi apresentado no momento da criatividade, pela
mãe que se adapta ativamente às necessidades do bebê. (1988, p. 110)
A vida é maior que a instintualidade, é o que nos mostra Winnicott, mas deve incluí-la.
O aspecto diferencial na psicanálise winnicottiana é o de que a instintualidade somente estará
presente e será apreendida como um elemento mobilizador na vida do indivíduo no estágio
em que ele tiver maturidade para experienciá-la como tal. No início da existência do bebê, ele
ainda não sabe o que é prazer, desprazer, bom, mau. Essas qualidades serão adquiridas em
estágio posterior.
Assim, podemos concluir que a noção de força que mobiliza o sujeito não pode ser a
coluna mestra a sustentar a psicanálise winnicottiana. A retirada desse pilar e a inserção, em
seu lugar, da necessidade que o bebê tem de se sentir real e integrado no ambiente, nos
revelam que não é a trajetória e fixação da libido que proporciona o desdobramento da
natureza humana. A transformação de um bebê em ser humano está pautada numa luta para
alcançar a vida e assegurar a cada momento o seu sentido.
Em 1933, quando afirma que a teoria das pulsões constitui sua mitologia,
conseqüentemente a teoria da libido também, Freud já destitui de qualquer referência empírica
esta teoria. Freud sabe que está se movimentando no campo das pressuposições, mas isso não
o incomoda. O que interessa a Freud não é a falta de evidência empírica no dualismo
pulsional, ele está interessado em encontrar explicações para as situações de investimento
libidinal.
Ao lançar mão do conceito de uma força que impulsiona o ser humano, Freud encontra
uma ferramenta eficaz: ela lhe permite conceber que o ser humano é dotado de um sistema
energético, submetido às mesmas leis que regem o funcionamento de quaisquer outros
sistemas movidos a energia, mesmo que este sistema não opere em termos humanos. Assim,
na teoria psicanalítica, a energia se desenvolve, é bloqueada ou se transforma de alguma
forma, movendo o sujeito.
Todas estas características especulativas da libido indicam que, tal como a pulsão, ela
não pode ocupar um papel na teoria winnicottiana. Afinal, se Winnicott rejeitou a teoria das
pulsões, conseqüentemente também rejeitou o conceito de libido.
Para Winnicott, a natureza humana “não é uma questão de corpo e mente – e sim uma
questão de psique e soma inter-relacionados, que em seu ponto culminante apresentam a
mente como ornamento” (Winnicott,1988, p. 26). Corpo, mente, soma, sensações, excitações,
um corpo vivo cujas funções estejam organicamente ativas, serão elaborados
imaginativamente pelo indivíduo que amadurece de modo que ele possa se apropriar deles.
No que se refere ao corpo, também encontramos uma das grandes críticas que
Winnicott fez à psicanálise tradicional. Para Freud, o corpo é representável e as questões da
sexualidade ocorrerão também pela via da representação mental. Em Winnicott, a questão
corpórea, a transformação de partes de um corpo em um corpo vivo é um processo complexo.
Não se pode conceber um ser humano saudável a não ser pela via de uma existência
psicossomática, pela integração de um processo que se inicia muito cedo na vida do bebê.
Desde que inicia sua vida, o bebê, quando bem sustentado por sua mãe, gradativamente reúne
todas as suas partes corpóreas de um modo que ele sinta que habita o corpo que herdou. Parte
deste processo consiste na integração dos órgãos sexuais, de modo que a sexualidade também
seja integrada. O ser humano se constitui firmemente alojado em seu próprio corpo. Somente
dessa forma sua humanidade é constituída.
Há dois tipos de críticas que se pode fazer ao conceito de princípio de prazer: uma
dirigida ao seu aspecto especulativo e outra em relação ao seu aspecto empírico. Porém, antes
de apresentar essas críticas, vejamos o que Winnicott pensa sobre esse conceito freudiano.
Essa idéia se encontra numa resenha do livro A study of three pairs of identical twins, de
Dorothy Burlingham, de 1953. Winnicott comenta:
como crítica, diria que algumas das conclusões da Sra Burlingham são prejudicadas
pelo emprego de termos que têm um público limitado. Exemplificando (pág. 16):
“Com base no princípio do prazer, todos os bebês reagem ao que quer que lhes dê
sensações de prazer (...)” O termo “Princípio do Prazer” é pertinente a uma construção
107
Essa afirmação de Winnicott é fundamental para entender que ele abandonou esse
conceito freudiano, conceito que ele vê como uma ‘construção teórica mental’, construção
que ele não utiliza em sua teoria porque opta por um ponto de vista descritivo-empírico.
Esse princípio dinâmico não se sustenta em Winnicott, já que o ser humano não é
regido pelo conflito de forças entre o princípio do prazer e o de realidade. Em primeiro lugar,
o que deve ser considerado é que, para Winnicott, o que rege o funcionamento humano não é
um princípio mental, é o processo de amadurecimento humano que o bebê herda ao nascer.
Esta teoria se tornou a sua referência para compreender o modo como o ser humano se
constitui. Segundo ele:
Tendo a teoria do amadurecimento pessoal como referência, Winnicott mostra que nos
primórdios de sua vida o ser humano não é movido por forças que visem o prazer: “o bebê
tem um ímpeto para a vida” (1949b, p.27). Para Winnicott, “na saúde o lactante
(teoricamente) começa seu desenvolvimento (psicologicamente) sem vida e adquire esta
simplesmente por estar, de fato, vivo” (1965b, p. 192).
O fato de estar vivo leva o bebê a precisar se relacionar com os outros (embora ainda
não tenha maturidade para saber da existência deles) de modo a poder continuar a existir. Para
Winnicott, a premissa é: nos primórdios de sua vida, o bebê humano relaciona-se com as
outras pessoas não para ter suas tensões instintuais satisfeitas, mas porque precisa delas para
continuar existindo. O bebê precisa continuar a ser.
Para não ter sua continuidade de ser ameaçada, o bebê necessita de uma mãe que
cuide dele, de uma pessoa totalmente devotada às suas necessidades. Com um cuidado
materno adequado ao bebê, este manterá sua continuidade de ser e a força de seu ego. Isto é,
com o “cuidado que ele recebe de sua mãe”, cada bebê é capaz de ter uma existência
pessoal, e assim começa a construir o que pode ser chamado de continuidade do ser.
Na base dessa continuidade do ser o potencial herdado se desenvolve gradualmente no
indivíduo lactente. Se o cuidado materno não é suficientemente bom, então o bebê
realmente não vem a existir, uma vez que não há a continuidade do ser; ao invés, a
personalidade começa a se construir baseada em reações a irritações do meio.
(Winnicott, 1960c, p. 54)
A presença da mãe promove confiabilidade, não prazer, por mais que ela também
atenda as necessidades corporais do bebê, tais como as de alimentação, banho, etc. “Quando a
confiabilidade domina a cena, pode-se dizer que o lactente se comunica simplesmente por
continuar a existir” (1960c, p. 183). O bebê precisa acreditar que o ambiente continuará a lhe
oferecer os cuidados necessários para que ele possa ter a garantia de que sua continuidade de
109
ser está assegurada, de modo que ele possa se tornar real e possa habitar num
mundo real. O bebê “passa a acreditar na confiabilidade dos processos internos que levam à
integração em uma unidade” (1986d [1966], p. 97). Integrar-se numa unidade significa que a
continuidade de ser foi mantida e isto é importante porque para Winnicott,
Ante essas observações, resta perguntar: há alguma relação entre continuidade de ser e
sexualidade? A resposta é positiva, pois se o bebê não puder ter sua continuidade de ser
assegurada, seu desenvolvimento será prejudicado e, dessa forma, ele não poderá integrar a
instintualidade. Nesse caso, ao não integrar a instintualidade, as tarefas referentes à aquisição
da sexualidade não se concretizarão. Todas as conquistas das fases de dependência absoluta e
da dependência relativa deverão estar asseguradas de modo que o indivíduo possa conquistar
sua identidade sexual. Com a continuidade de ser assegurada, os órgãos sexuais podem ser
elaborados imaginativamente pela psique, de modo que a criança integre os órgãos sexuais
biológicos que herdou. Isto significa que, segundo Winnicott, ao se observar o
desenvolvimento instintual, “você poderá observar todo o corpo da criança e imaginar os
diferentes meios como a excitação acaba por localizar-se. Não podemos, certamente, ignorar
as regiões sexuais” (1957l, p. 99).
Estas descobertas têm que ocorrer na exata medida da maturidade da criança, pois nos
primeiros anos da vida ainda não há maturidade para entender determinados aspectos. É a
110
imaturidade da criança um dos motivos que levam Winnicott a escrever uma carta
a Marjorie Stone, uma fabricante de brinquedos, em 14/02/49, em protesto contra o fato de
que ela está fazendo bonecas com órgãos sexuais. Ele sustenta que “embora reconheça que
existem certas crianças, que em certas épocas poderiam obter algo de bonecas com órgãos
sexuais, tenho muito mais certeza de que para a vasta maioria das crianças seria extremamente
perturbador serem presenteadas com bonecas que tivessem tais características” (1987b, p. 14,
itálicos meus).
final da década de 1940, Winnicott afirma que o mundo tem que ser apresentado
em pequenas doses:
A apresentação do mundo coincide com a necessidade que o bebê tem de criá-lo para
nele se instalar. As atitudes da mãe serão as de apresentar o mundo na justa medida da
necessidade dele de modo que ele possa criá-lo (1988, pp. 100-05). A criação do mundo e a
chegada à realidade objetivamente compartilhada não serão decorrência do princípio do
prazer e sim da necessidade do bebê em criar um mundo para nele se realizar como pessoa
(1988, p. 101). Somente a partir da crescente maturidade do bebê, sustentada pelas atitudes
maternas, ele poderá iniciar suas primeiras incursões às relações objetais, o que, segundo
Winnicott, não é fácil:
o início das relações objetais é complexo. Ele não pode ocorrer se o ambiente não
propiciar a apresentação de um objeto, feito de um modo que seja o bebê quem crie o
objeto. O padrão é o seguinte: o bebê desenvolve uma vaga expectativa que tem
origem em uma necessidade não claramente formulada. A mãe, em se adaptando,
apresenta um objeto ou uma manipulação que satisfaz as necessidades do bebê, de
modo que ele começa a necessitar exatamente do que a mãe lhe apresenta. Desta
forma, o bebê começa a se sentir confiante em ser capaz de criar objetos e criar o
mundo real. (1965n [1962], p. 62)
Ao criar o que necessita, ao criar o mundo, este pode se tornar real para o bebê e será
no mundo real que ele encontrará as pessoas com as quais poderá se relacionar. A realidade se
tornará real porque foi uma criação e não uma imposição ou impostura (1965j [1963], p. 181).
A esta realidade o bebê chegará movido por sua própria necessidade e não para evitar o
desprazer ou sentir prazer. Para ele, necessidade e desejo não são equivalentes e o avanço da
psicanálise mostra isso: “a psicanálise iria aprender que muita coisa acontece nos bebês que se
112
Esta premência
provocativa
destrutiva
agressiva
invejosa (Klein)
Esta idéia já está presente, de forma incipiente, nos textos de Winnicott desde os anos
194030. Para Winnicott, a comunicação entre o bebê e sua mãe é uma relação de identificação
30 Estas idéias estão nos textos: 1989vr [1943],1945b [1944],1945d,1947b,1949f [1947], 1948b, 1996k
[1948], 1996o [1948]
113
primária, própria dos primeiros meses de vida. Esta identificação é condição para a
chegada à realidade objetivamente percebida, trajetória sustentada pelo contato da mãe que
atende a necessidade do bebê de se tornar uma pessoa real, em um mundo real. Como a mãe
está em estado de identificação com seu bebê, ela lhe fornecerá os cuidados de forma
totalmente adaptada às necessidades dele.
Nos anos 1950, Winnicott reitera que o contato entre mãe e bebê tem um caráter
único:
não devemos deixar de notar que o relacionamento que existe entre o bebê e sua mãe
aqui é de vital importância e, no entanto, não deriva da experiência instintual, nem da
relação objetal que surge a partir da experiência instintual. É anterior à experiência
instintual, ocorrendo, simultaneamente, paralelamente a ela e misturando-se a ela.
(Winnicott, 1958a, p. 98)
Essa forma de contato totalmente baseada nas necessidades infantis leva Winnicott a
fazer objeções ao pensamento freudiano: “é possível agora ingressar nas águas profundas da
mutualidade que não se relacionam diretamente com as pulsões ou com a tensão instintual”
(1970b [1969], p. 257). Esta é a situação na qual Winnicott mostra que as questões instintuais
não estão envolvidas, uma vez que o bebê ainda é imaturo e que “a coisa principal é uma
comunicação entre o bebê e a mãe em termos de anatomia e da fisiologia de corpos vivos”
(1970b [1969], p. 258). Anatomia e fisiologia de corpos vivos envolvem contato, envolvem
um estar junto que não cabe em categorias especulativas ou atravessadas por referências de
uma sexualidade que ainda não se desenvolveu.
Segundo Winnicott:
O estado fusional mantido com a mãe vai desaparecendo na medida em que o bebê a
substitui pelos objetos transicionais. Surge um espaço que separa mãe e filho, o espaço
potencial, espaço que possibilitará relacionamentos que serão de um caráter diferente dos
experimentados no mundo subjetivo. O bebê cria outros espaços, outros campos onde pode
passar a atuar efetivamente. Esse espaço no qual o bebê pode colocar os objetos transicionais
propicia o surgimento da capacidade de simbolização. Os objetos transicionais possibilitarão
o surgimento do brincar e constituem os antecedentes da capacidade adulta de se inserir no
campo da experiência cultural, das artes e religião. Sobre esse assunto Winnicott escreve o
seguinte:
O espaço potencial é o lugar para guardar toda a experiência cultural que o indivíduo
encontrará à sua disposição quando chegar à realidade objetivamente compartilhada, isto é,
“as artes, os mitos da história, a lenta marcha do pensamento filosófico e os mistérios da
matemática, da administração de grupos e da religião [...] aparece também na forma de toda a
116
cultura acumulada nos últimos cinco ou dez mil anos [...] essa área inteiramente
humana é subproduto da saúde” (Winnicott, 1971f [1967], p.36).
Conforme já foi salientado, a trajetória que o bebê tem que empreender até poder se
relacionar com os objetos não é simples. Para Winnicott, “relações com os objetos são um
fenômeno complexo, e o desenvolvimento de uma capacidade para se relacionar com os
objetos de forma alguma é um ponto simples no processo de amadurecimento” (1965va
[1962] p. 177).
Porque o bebê ainda não pode se relacionar com outras pessoas? Em que condições,
em que mundo está o bebê? Para Winnicott, no início de sua vida, o bebê habita um mundo
subjetivo. Nesse mundo subjetivo, mundo que é assegurado pela mãe-ambiente, o que
prevalece é o estado de ser, estado proporcionado pela mãe suficientemente boa. Neste mundo
subjetivo, mãe e bebê estão em tal estado de confluência que não há uma separação entre eles.
Enquanto objeto subjetivo, a mãe se adapta ao bebê e
118
O bebê não tem condições de manter um relacionamento com os objetos que estão no
mundo porque no inicio de sua vida ele está no mundo subjetivo, mundo no qual não se tem
condições de manter relações com. Em primeiro lugar, é preciso tornar-se um EU. Nas
palavras de Winnicott:
Para se relacionar com os objetos, é necessário que eles estejam no mundo externo,
fora do mundo subjetivo. Isso nos leva à necessidade de considerar que para o bebê há
diferentes tipos de realidade. Se no início de sua vida o bebê está vivendo no mundo subjetivo
possibilitado por sua mãe, a entrada no mundo objeto não é automática. O bebê precisará criar
o real para nele se instalar. Aqui temos mais uma objeção à psicanálise tradicional, para a qual
a realidade já é dada ao sujeito. O único caminho para essa construção é através da realidade
do mundo subjetivo.
Em 1947, Winnicott faz uma de suas primeiras menções à mãe subjetiva, quando
afirma que a base da saúde mental é assentada na primeira infância, no relacionamento entre o
bebê e a mãe e de “uma maneira mais primitiva, entre o bebê e a sua mãe subjetiva” (1947c,
p. 536). Em 1949, ao abordar o tema do roubo feito pelas crianças, Winnicott diz que elas
estão à procura de sua mãe porque “o que a mãe dava de si própria ao bebê tinha de ser
concebido como tal, tinha de ser subjetivo para ele, antes da objetividade começar a ter algum
sentido” (1957r [1949], p. 163).
As características deste mundo subjetivo são apresentadas no início dos anos 1960,
quando Winnicott diz que as crianças vivem numa estranha realidade, isto é, uma “[...]
realidade em que nada ainda distinguiu-se com não-eu, de modo que ainda não existe um EU
(1965vf [1960], p.17). Numa carta a Balint, em 1960, ao esclarecer suas idéias sobre o estado
inicial do bebê, Winnicott disse que“o bebê não estabeleceu ainda a capacidade de fazer
relações, e, na verdade, não está lá para se relacionar, exceto de modo não integrado” (1987b,
p.128). Em 1961, ele fornece mais detalhes sobre este modo não integrado, ao apresentar as
condições da criança na vivência do mundo subjetivo:
no início, o real e o imaginário são uma única coisa, pois a criança não apreende o
mundo de modo objetivo, mas vive num estado subjetivo, em que é a criadora de todas
as coisas. Gradualmente, a criança saudável torna-se capaz de perceber o mundo do
não-eu. Para alcançar este estado precisa ser cuidada de modo satisfatório durante a
época da dependência absoluta. (1986k [1961], p. 16)
Em 1962 e em 1963, ele esclarece que o bebê, nesta fase, se relaciona com os “objetos
subjetivos” (1965n [1962], 1965j [1963]). Ainda em 1963, ele fornece mais dados sobre como
se dá este relacionamento:
Diz Winnicott que “parece impossível falar a respeito do indivíduo sem falar sobre sua
mãe, porque penso que a mãe ou a pessoa que está no lugar dela é um objeto subjetivo – em
outras palavras não foi objetivamente percebida – e, portanto, o modo como a mãe se
121
comporta faz realmente parte do bebê” (Winnicott, 1989a, p. 580). Estas idéias são
confirmadas um ano antes de sua morte, quando ele afirma que “o bebê a princípio vive em
um mundo subjetivo. Ele existe precariamente e na dependência da figura materna humana
[...]” e que “[no mundo subjetivo, próprio dos primórdios da vida do bebê], “o mundo da
realidade externa não incide” (1970b [1969], pp. 285-86).
uso do objeto, própria do mundo objetivo. O processo pelo qual isto ocorre será a
aquisição do uso do objeto, no qual o objeto passa a existir por si mesmo e adquire o caráter
de externo. O bebê precisa destruir o objeto subjetivo e este precisa sobreviver. De que forma
isto ocorre? Segundo Winnicott, o bebê, nesta fase, passa a ter atitudes tais como chutar a
mãe, morder seu seio. Desta forma, ele coloca a mãe, que ainda é objeto subjetivo, para fora
de sua área onipotente. A mãe precisa sobreviver, ou seja, não retaliar, e com esta atitude ela
se coloca como objeto da realidade objetivamente compartilhada e o bebê poderá constatar
seu caráter externo. Para Winnicott, neste processo, “o bebê diz ao objeto: ‘destruí você’ e o
objeto acha-se lá para receber a comunicação. A partir daí, o sujeito diz: ‘alô, objeto!’ ‘destruí
você’, ‘amo você’. ‘Você tem valor pra mim por sobreviver à minha destruição de você’”
(1969i [1968], p. 222). Com a sobrevivência do objeto, o bebê pode agora localizá-lo na
realidade externa, ou seja, ele sabe que há um mundo externo no qual ele pode transitar e no
qual os objetos podem ser usados.
Se um bebê ainda não é uma pessoa inteira, ele não tem condições de ter contato com
a realidade externa. Winnicott, em seu trabalho com pacientes psicóticos, compreendeu que
não se pode postular que o contato com a realidade externa possa ser dado como certo, uma
vez que ‘nunca é dado e estabelecido de vez’ e que à externalidade o bebê chegará através da
experiência da mãe e do bebê que, no início, são um só. A mãe apresentará o mundo ao bebê,
“é ela quem produz uma situação que, com sorte, pode resultar no primeiro laço feito pelo
bebê com um objeto externo, um objeto que é externo ao self do ponto de vista do bebê”
(1945d, p. 152).
Ao sustentar a ilusão do bebê de que ele criou o mundo, a mãe permite que
gradativamente ele chegue à realidade externa (1947b, p. 90). Estas mesmas idéias estão
123
presentes em textos de 1948, nos quais Winnicott afirma que o contato com o
mundo externo somente é possível após a integração (1960 [1948],1996k [1948]).
estou chamando a atenção de vocês para o fato de que, quando a mãe e o bebê chegam
a um acordo na situação de alimentação, estão lançadas as bases de um
relacionamento humano. É a partir daí que se estabelece o padrão da capacidade da
criança de relacionar-se com os objetos e com o mundo. (1968f [1967], pp. 63-4)
Não é possível, então, postular que desde o início de sua vida o bebê tem condições de
estabelecer relações. Sob o ponto de vista da teoria do amadurecimento humano, ao nascer o
bebê tem apenas um aparato biológico e o processo de amadurecimento humano que lhe
permitirão o desenvolvimento posterior (1960c, p. 43). A partir das experiências
proporcionadas pelo cuidado materno, o bebê poderá desenvolver a capacidade de memorizar,
dar significado a uma experiência, e, ao assimilá-la como gratificante, procurar re-
experienciá-la. Há um outro elemento prioritário: o bebê precisará adquirir a capacidade de
criar um objeto, e isso somente será possível por meio da primeira mamada teórica. O
processo pelo qual isso se efetiva é explicado por Winnicott:
a primeira mamada teórica é representada na vida real pela soma das experiências
iniciais de muitas mamadas. Após a primeira mamada teórica, o bebê começa a ter
material com o qual criar. É após dizer que aos poucos o bebê se torna capaz de
alucinar o mamilo no momento em que a mãe está pronta para oferecê-lo. As
memórias são construídas a partir de inúmeras impressões sensoriais, associadas à
atividade da amamentação e ao encontro do objeto. No decorrer do tempo surge um
124
estado no qual o bebê sente confiança em que o objeto do desejo pode ser
encontrado, e isto significa que o bebê gradualmente passa a tolerar a ausência do
objeto. Desta forma, inicia-se no bebê a concepção da realidade externa, um lugar de
onde os objetos aparecem e no qual eles desaparecem. (1988, p. 106)
Em 1955, quando elabora suas idéias sobre a natureza humana, aceitando que o
desenvolvimento infantil passa por uma progressão dos instintos, Winnicott apresenta o
elemento que estabelece a diferença de seu pensamento em relação ao de Freud: a elaboração
imaginativa. “No bebê e na criança há uma ELABORAÇÃO IMAGINATIVA de todas as
funções corporais [..]” (1988, p. 40). Na medida em que a criança se desenvolve, por meio
das experiências instintuais corporais, ela elabora imaginativamente o funcionamento de cada
um de seus órgãos corporais, de modo a se apropriar deles. Esta é uma experiência que se dá
de modo concreto, por meio da excitação em cada parte de seu corpo. O elemento que
proporciona esta conquista à criança não é a libido. Portanto, a criança, tem seu corpo tomado
por instintos, mas não basta aceitar que os instintos atuem sobre o corpo, mas que “[...] toda
função corporal tem sua elaboração imaginativa [...]” (1965vf [1960], p. 25). Corpo é
elaborado imaginativamente porque é mobilizado pelos instintos e não pela pulsão.
Este mesmo argumento se aplica quanto à assertiva de Freud de que todo o corpo é
erógeno. Em Winnicott, o processo de amadurecimento bem conduzido leva o indivíduo a se
tornar uma pessoa inteira, e isso inclui a integração das zonas genitais. Integrar as zonas
genitais não significa que todo o corpo se tornará erógeno. Significa que as funções
relacionadas com a sexualidade podem responder de forma adequada às situações em que o
envolvimento sexual-amoroso estiver presente na vida do indivíduo. Em Winnicott, o uso do
corpo não se destina prioritariamente às demandas sexuais.
A experiência de que o corpo pode ser erógeno somente encontrará respaldo na teoria
do amadurecimento humano se houver de fato um processo de amadurecimento que
possibilite ao indivíduo sua integração psico-somática, ou seja, um processo de
personalização que lhe permita integrar-se corporeamente. No início de sua vida, o bebê é
constituído por partes que deverão ser integrados de forma a constituir-se numa unidade. O
bebê está como que ‘espalhado’, corpo (body), mente e psique ainda não se integraram. A
mãe, por meio do handling, facilita a integração dessas partes, ou seja, “grande parte do
cuidado físico dedicado à criança, segurá-la, manipulá-la fisicamente, banhá-la, alimentá-la, e
assim por diante, destina-se a facilitar a obtenção, pela criança, de um psique-soma que viva e
trabalhe em harmonia consigo mesmo” (1971f [1967], p. 29). Gradativamente, corpo e psique
se integrarão de tal forma que o resultado será a percepção de que “dentro daquele corpo
existe um indivíduo” (1988, p. 280). No tocante à percepção de que uma parte do corpo pode
ser prazerosa, somente através da conquista da integração psico-somática, pode-se afirmar que
“na saúde, o uso do corpo e de todas as suas funções é uma das coisas prazerosas da vida [...]”
(Winnicott, 1971f [1967], p. 29). Uma parte do corpo destinada a se tornar erótica somente
alcançará essa condição se ela for elaborada imaginativamente como tal (1988, p. 40).
Na primeira metade do século de Freud, toda a avaliação da saúde precisava ser feita
em termos do estágio em que se encontrava o id, de acordo com as predominâncias
sucessivas das zonas erógenas. [....] Se prosseguirmos, começaremos a utilizar uma
linguagem diferente. Esta seção se iniciou em termos de impulsos do id e termina se
referindo à psicologia do ego. [...] Púberes não se enganam com a idéia de que os
impulsos instintivos sejam tudo, e de fato eles estão essencialmente preocupados com
o ser, com o estar em algum lugar, com se sentirem reais e em adquirir algum grau de
constância objetal. Eles precisam ser capazes de ‘cavalgar os instintos, em vez de
serem esmigalhados por eles. (1971f [1967], p. 25)
Com esta assertiva, Winnicott assinala que o conceito de zona erógena e o lugar que
este ocupa no arcabouço freudiano não terão equivalência em sua própria teoria.
Os primeiros indícios, apontados por Winnicott, de que o complexo de Édipo não pode
ocorrer no início da vida da criança está em seu texto de 1947, A criança e o sexo, no qual ele
diz que: “muitas meninas, porém, não vão tão longe em seu desenvolvimento emocional [...]”
(1947a, p. 150). Para alcançar o complexo de Édipo a criança tem que passar pelas fases da
dependência absoluta e relativa com sucesso, de modo a viver as situações da relação entre
três pessoas.
Nos anos 1950, isto é acentuado em seus textos sobre o desenvolvimento emocional
infantil. Em 1955, em Natureza Humana, ele sustenta:
acredito que alguma coisa se perde quando o termo “Complexo de Édipo” é aplicado
às etapas anteriores, em que só estão envolvidas duas pessoas, e a terceira pessoa ou o
objeto parcial está internalizado, é um fenômeno da realidade interna. Não posso ver
nenhum valor na utilização do termo “Complexo de Édipo” quando um ou mais de um
dos três que formam o triângulo é um objeto parcial. No Complexo de Édipo, ao
menos do meu ponto de vista, cada um dos componentes do triângulo é uma pessoa
total, não apenas para o observador, mas especialmente para a própria criança. (1988,
p. 49)
Nos anos 1960, sua posição de que a psicanálise tradicional não poderia ser o
parâmetro para explicar a condição inicial do bebê é clara: a psicanálise é uma teoria
deficiente para explicar a vida da criança (1965va [1962], p. 172). Se os bebês adoecem
emocionalmente no início da vida e se o complexo de Édipo não aconteceu ainda, “algo
estava errado em algum lugar” (1965va [1962], p. 172). O próprio Winnicott lembra que nos
anos 1930 já havia percebido que algumas patologias não poderiam ser explicadas via
129
complexo de Édipo e que “meu ponto de vista era, assim, um tanto original, e
bastante perturbador para aqueles analistas que enxergavam apenas angústias de castração e
conflitos de Édipo”. (1961 [1936], p. 34n)
A aceitação do complexo edípico e sua alocação na fase adequada da criança pode ser
constatada na seguinte observação de Winnicott:
o importante para mim era que enquanto nada do impacto do complexo de Édipo se
perdia, o trabalho se fazia agora na base de ansiedades relacionadas com impulsos pré-
genitais. Podia-se ver que no caso neurótico mais ou menos puro o material pré-genital
era regressivo e a dinâmica pertencia ao período dos quatro anos, mas por outro lado,
em muitos casos, havia doença e uma organização de defesas pertencentes a períodos
anteriores da vida da criança e muitos lactentes na verdade nunca chegaram a uma
coisa tão saudável como o complexo de Édipo na meninice. (1965va [1962], p. 175)
não é que Freud esteja errado a respeito do pai e do laço libidinal que se torna
reprimido, mas tem-se que notar que uma certa proporção de pessoas no mundo não
chegam ao complexo edipiano. Elas nunca avançam tão longe em seu
desenvolvimento emocional e, portanto, para elas, a repressão da figura libidinizada
tem apenas pouco relevância. (1989xa [1969], p. 241)
Nos últimos anos a obra de Winnicott tem sido alvo de estudos aprofundados, os quais
têm oferecido uma compreensão mais acurada do pensamento winnicottiano e de sua inserção
no campo da psicanálise. A partir, então, deste referencial winnicottiano, surgem críticas à
psicanálise tradicional, ou seja, com esta nova referência teórica, alguns comentadores têm
tecido críticas à psicanálise tradicional. Estas críticas se fundamentam na constatação de que
Winnicott, de fato, construiu uma psicanálise com referências que não as da psicanálise
tradicional. Para efeito deste estudo que faço, selecionei algumas dessas críticas,
especialmente as que se referem à teoria da sexualidade, de modo a traçar a linha delimitadora
e identificatória entre os elementos que compõem esses aspectos tanto na psicanálise
tradicional quanto na winnicottiana. Neste capítulo, apresentarei e comentarei algumas dessas
críticas.
1) Críticas à Metapsicologia
O uso destes conceitos permite a Freud colocar a psicologia no rol das ciências
naturais. O que importa para Freud é encontrar um instrumento equivalente aos conceitos
usados pelas ciências naturalistas. A especulação metapsicológica assume tanta importância
na psicanálise, que, já no final de sua vida, o próprio Freud afirma: “sem especular nem
teorizar – por pouco eu ia dizer “fantasiar” – metapsicologicamente, não daremos um passo
adiante” (1937, p. 3345). Com o uso das especulações metapsicológicas, Freud pôde
preencher as lacunas com as quais se deparava em sua clínica.
Fulgencio é da mesma opinião que Loparic. Para esse estudioso da obra freudiana, o
uso que Freud faz de fantasias, convenções, ficções, analogias, mitos, metáforas, etc, tem
como objetivo trazer esclarecimentos do que ocorre nas atividades clínicas. Com esse
a metapsicologia não é a psicologia. [...] A psicologia não basta, é preciso algo meta,
fornecido pelas especulações que, aplicadas aos dados empíricos, mostram-se úteis
para atingir esse entendimento geral. A metapsicologia é, portanto, o conjunto de
especulações heurísticas aplicadas por Freud aos dados da sua psicologia clínica.
(2001, p. 383)
Fulgencio afirma que, longe de ser fruto de casualidade ou de estilo de escrita, o uso
de especulações tem em Freud um objetivo bem definido: o de constituir um instrumento que
possibilite compreender fenômenos psíquicos. Com esse instrumento, Freud pode organizar
um grande número de dados. Os conceitos metapsicológicos são operatórios. Mas isso tem
uma conseqüência: ironicamente, ao invés de esclarecer mais o que ocorre na clínica, com
esse procedimento Freud se afasta das experiências próprias à clínica. Com esse afastamento,
as questões humanas ficam distorcidas e soterradas. As experiências possíveis ao bebê e ao
ser humano não são totalmente abarcadas pelas especulações metapsicológicas de Freud, as
quais não incluem as experiências que o bebê obtém no contato com sua mãe.
Para Fulgencio, uma nova perspectiva de estudo se abre na medida em que Winnicott
aponta um outro horizonte ao sustentar uma psicanálise sem metapsicologia: “de uma maneira
mais ou menos explícita, ele fez críticas aos conceitos fundamentais da teoria
metapsicológica, seja no que se refere aos fundamentos que constituem a metapsicologia – o
dinâmico e as pulsões, o econômico e a libido, o tópico e as instâncias de um aparelho
psíquico – seja julgando-a como um todo” (2003, p. 166).
a) O conceito de pulsão
Loparic nos conta que o conceito de pulsão foi introduzido na metafísica ocidental no
século XVII por Leibniz. Autores como Kant, Schopenhauer e Nietzsche utilizaram este
conceito em suas obras, no sentido de força (do latim vis e do alemão Kraft). A importância
deste fato consiste em que estes autores são apontados por Freud como os precursores de seu
pensamento, de onde se deduz o significado e a origem do termo. Para Freud, o uso do
136
Segundo Loparic, embora não se refira claramente a Leibniz, Freud utilizou muito das
idéias deste filósofo em sua teoria.
Para Loparic, esses modelos naturalista-cientificistas não são os mais adequados para
explicar o modo de ser do ser humano, dado que, numa perspectiva não metafísica, o ser
humano é um acontecimento. Este é o aspecto que aproxima o pensamento winnicottiano de
uma perspectiva não objetivante. Assim, para Loparic, com as idéias de Winnicott “[...] a
psicanálise buscou cada vez mais se distanciar das metáforas mecânicas e dinâmicas
introduzidas por Freud na sua metafísica das pulsões e, mais genericamente, do naturalismo
freudiano” (1999a, p. 133). Esse afastamento se deu porque a vida humana, em seus
primórdios, não pode ser explicada em termos de pulsões. O bebê, ao chegar ao mundo, não
sabe o que é desejo ou pulsão. Ele precisa apenas de um ambiente que assegure que a sua vida
será mantida e que ele continuará existindo. Ele tem necessidades e urgências.
Existem nos bebês e nos seres humanos em geral necessidades (needs) e as urgências
(urges) básicas que não podem, em princípio, ser vistas como decorrências das
exigências instintuais biológicas ou libidinal-pulsionais. As precisões do eu imaturo
ficam “perdidas” se descritas em termos de satisfação de pulsões instintuais
(instinctual drives). O “motivo” inicial do ser humano é a “necessidade pessoal”. É só
137
Elsa Oliveira Dias concorda com Loparic quanto à questão de que, na estrutura
freudiana, as pulsões se vinculam à idéia de força, e têm uma função específica, que é a de
vincular os aspectos corpóreos com os do psiquismo:
a difícil e complexa articulação entre corpo e o psiquismo foi resolvida por Freud por
meio do conceito de pulsões, entendidas como representantes psíquicos de forças
físicas, sendo o dualismo das forças pulsionais o que põe em marcha o psiquismo. Pela
própria definição de pulsão, pode-se afirmar que a psicanálise freudiana permanece
atada ao modelo físico do psiquismo, cujo conceito central é o de força. (2003, p. 77)
Isto nos mostra que, na teoria winnicottiana, temos uma mudança no cenário da
psicanálise também no que se refere a uma concepção sobre o existir humano. Se, em
Winnicott, o que prevalece é a tendência à integração e não mais a pulsão, temos então uma
nova compreensão da existência humana, um novo enfoque que é apresentado em moldes
menos determinantes e mecanicistas. Uma visão menos mecanicista e que contempla aspectos
do acaso34, elemento importante no pensamento winnicottiano, confirma que esta forma de
ver o ser humano constitui uma nova referência, uma referência que contempla uma visão de
homem distanciada de uma metafísica das forças. Desta maneira, a questão pulsional é
deslocada do lugar de centralidade que ocupava anteriormente. Se o tema das pulsões não é
mais essencial na teoria de Winnicott, somos convidados a verificar qual é o lugar que agora a
noção de pulsão passa a ocupar. Reconsiderar a aplicação e o uso desse conceito não é uma
tarefa fácil, pois
Elsa Oliveira Dias discorda da idéia freudiana de que as pulsões conduzem o início e o
desenvolvimento humano. Ela concorda com Winnicott, para quem o processo condutor do
desenvolvimento humano é a tendência à integração proporcionada pelo amadurecimento
pessoal sustentado por um ambiente satisfatório. Isto significa que não é o dualismo pulsional
que conduz o amadurecimento humano. Segundo Elsa Oliveira Dias, “[...] antes do começo,
há uma fase de não-integração em que o bebê não tem eu, nem não-eu; não tem objetos, metas
ou intencionalidade. O contrário, portanto daquilo que define as pulsões [...]” (1995, pp. 53-
4).
Em Winnicott, “no início, antes que cada indivíduo crie o mundo novamente, existe
um simples estado de ser [...]” (1988, p. 135). Este estado pertence ao bebê e não pode ser
apreendido pelo observador. O estado de ser não é instintual, não é sexualizado. É a partir do
estado de ser que a identidade – a qual inclui a identidade sexual a ser definida
posteriormente – será constituída. Essa situação não se funda em suposições metapsicológicas
especulativas, e sim na constatação de qual é a real condição do bebê ao nascer: alguém
139
totalmente à mercê do ambiente que o acolhe quando ele vem ao mundo e nada
sabe do mundo. A idéia de um estado de ser é uma das novidades da psicanálise winnicottiana
e é um conceito de difícil compreensão. Interpretando o pensamento de Winnicott, Elsa
Oliveira Dias diz que “ser é a mais simples de todas as experiências e talvez por isso a mais
difícil de ser concebida na reflexão. Além de ser a mais simples, ela é também a mais
importante de todas as experiências, a base para todas as que lhe são subseqüentes, incluindo
as experiências posteriores de identificação” (2003, p. 219). Note-se que Elsa Oliveira Dias
fala em ‘experiência’ de uma situação que ocorre na relação entre o bebê e sua mãe. O bebê,
ao se encontrar com o seio, torna-se esse seio, ou seja, ele realiza uma experiência de
identificação primária com o objeto-seio. Esse encontro possibilita que o bebê encontre seu si-
mesmo. Winnicott denomina essa experiência de ‘elemento feminino puro’35. Ao mamar, o
bebê é o seio e à mãe cabe apenas permitir isso, sem nenhuma ação, sem nenhuma atitude de
interferência. Aqui ainda não há instintualidade, e, segundo Winnicott, “o princípio básico é o
de que a adaptação ativa às necessidades mais simples (o instinto ainda não tomou posse de
seu lugar central) permite ao indivíduo SER sem precisar tomar conhecimento do ambiente”
(1988. p.130). Esse estado de ser é o que possibilitará a constituição da identidade; além
disso, nessa situação “[...] de o bebê tornar-se (o seio ou mãe), no sentido de que o objeto é o
sujeito. Não consigo ver pulsão instintual nisso” (1989vp, p. 177).
Uma vez que adquire o estado de ser, através do processo de integração, o bebê busca
assegurar sua continuidade de ser. Isso significa que todo seu desenvolvimento deve se dar a
partir de sua própria procura e não por meio de uma intrusão ambiental. (1988, pp. 126-0)
Continuar a ser significa conquistar o crescimento pessoal e a saúde. Desta forma, “o ponto de
partida do crescimento do ser humano não é, portanto, uma constelação de pulsões num
36
aparelho psíquico ainda imaturo” (Loparic, 1999a, p. 44).
Para Loparic, todos estes aspectos revelam que as questões pulsionais não estão no
cerne da natureza humana, a qual é concebida de maneira diferente em Winnicott, em se
comparando com a visão freudiana. Loparic diz que, para Winnicott, a tendência à integração
não é resultado nem de forças, nem da combinação de diferentes tipos de mecanismos
movidos por forças. O ser humano tem urgências, urgência de constituir o seu si-mesmo, em
A vida humana não resulta de uma constelação inicial de pulsões localizadas numa
máquina humana e submetidas ao princípio de causalidade universal (chamado de
princípio de prazer ou de nirvana), mas da urgência primordial de se constituir
(“criar”, diz Winnicott) a si-mesmo e ao mundo como uma unidade e de ir ao encontro
de outros e de coisas acessíveis nesse tipo de abertura. (Loparic,1999a, p. 137)
Segundo Loparic, o ser humano e seu destino pessoal, a partir de Winnicott, fogem das
amarras propugnadas por Freud. Longe de ser um jogo de forças que exigem um processo de
domesticação, a construção do ser humano vincula-se a uma facilitação do ambiente de modo
que uma tendência ao crescimento se concretize.
Para Loparic, o abandono de uma teoria das pulsões seria extremamente benéfico no
campo clínico, pois longe de significar o fim da psicanálise, significa uma evolução
psicanalítica.
A fim de se manter como uma disciplina criativa que era na época de Freud e poder
progredir, a psicanálise terá que se distanciar da herança da metafísica moderna que,
desde Leibniz, transforma todos os entes em autômatos, seja espirituais, vontades
determinadas por representações, seja físicos, determinados pelos inputs químicos,
máquinas ou aparelhos susceptíveis de serem manipulados ou pelos cálculos ou pelos
psicofármacos.
Ao lançar mão do conceito de uma força que impulsiona o ser humano, Freud encontra
uma ferramenta eficaz: ela lhe permite conceber que o ser humano é dotado de um sistema
energético, submetido às mesmas leis que regem o funcionamento de quaisquer outros
sistemas movidos a energia, mesmo que este sistema não opere em termos humanos. Assim,
na teoria psicanalítica, a energia se desenvolve, é bloqueada ou se transforma de alguma
forma, ou seja, ela é responsável pelo movimento do sujeito. Para Freud, a libido é a
representante psíquica das pulsões, portanto ela tem um caráter não experienciável, da ordem
do representacional. Esse caráter especulativo da libido a distancia do referencial
winnicottiano, pois para Winnicott, o que prevalece é a experiência real que se dá num corpo
vivo.
Segundo Fulgencio,
quando Freud se refere aos fenômenos observáveis relativos à vida sexual (seja no seu
sentido estrito, seja no expandido, mais adequado à psicanálise), ele está apoiado em
dados passíveis de comprovação empírica. Mas, ao dizer libido, Freud associa esse
mesmo conjunto de fatos empíricos a uma suposta energia psíquica: a energia das
pulsões sexuais. (2002, p. 102)
O próprio Freud reconheceu que a pulsão se refere a uma idéia abstrata, necessária,
segundo ele, a uma compreensão do funcionamento psíquico, mesmo que corresponda a um
conceito metapsicológico e que tenha um caráter de obscuridade. Quando introduz o conceito
de pulsão, Freud necessita de um elemento que possa quantificá-la, mesmo que este elemento
não seja passível de mensuração. Freud resolve essa questão elegendo o conceito de libido
porque ela designa o aspecto dinâmico da sexualidade. Assim, na visão freudiana, como
forças psíquicas, as pulsões movimentam o organismo e o levam a descarregar o montante de
excitação que o pressiona. Dessa maneira, as pulsões e a libido têm um caráter de fluidez, de
mobilidade.
142
Fulgencio acredita que Freud sabe que está atuando no campo da especulação
científica, e que, ao propor o uso de construções auxiliares, Freud visa a resolução de certos
problemas empíricos. A especulação científica “tem um valor heurístico, ela é útil para
explicar aquilo que a observação (descrição) dos fatos não pode oferecer” (2002, p. 107).
Fulgencio acrescenta: “ [...] a teoria do desenvolvimento da libido corresponde à parte
especulativa da teoria do desenvolvimento da sexualidade que [...] explica uma série de
comportamentos observáveis [...]” (2002, p. 109).
Elsa Oliveira Dias, comentando a obra de Winnicott, aponta que o modelo libidinal
para descrever o desenvolvimento humano descrito por Freud não se encontra na psicanálise
winnicottiana, e sustenta que
[...] o impulso para viver, manter-se vivo e amadurecer não é descrito em termos de
forças: não é a libido que passa por diferentes fases ou fixações objetais; é a natureza
humana que se temporaliza, em virtude de sua tendência inata ao crescimento,
gerando, gradualmente, um si-mesmo integrado, internamente e com o ambiente.
(2003, p. 97)
termo instinto para descrever as forças biológicas poderosas que vêm e voltam na
vida do bebê ou da criança, e que exigem ação” (Winnicott, 1988, p. 39), Winnicott revela
também como concebe a natureza humana: o ser humano é um ser vivo, concreto, tomado por
forças físicas de fato, e não por forças previamente supostas. Winnicott, com o termo instinto,
mostra-nos o modo pelo qual para ele a instintualidade está presente nos relacionamentos,
juntamente com a elaboração imaginativa dos órgãos corporais. Ou seja, a elaboração
imaginativa dos instintos possibilita que os aspectos meramente biológicos sejam
humanizados. Aqui, não mais estamos no campo representacional, das operações mentais,
estamos no campo da integração psico-somática. Dessa forma, Winnicott escapa dos
conceitos metapsicológicos que remetem o ser humano a um funcionamento meramente
automatizado, um funcionamento impulsionado por forças estrangeiras ao homem. Em
Winnicott, o instinto está presente no indivíduo, ela age no organismo dele. Este campo
instintual refere-se tanto às excitações locais quanto às gerais e mobilizam o individuo para a
ação. Enquanto que na psicanálise tradicional a libido é uma convenção, na teoria
winnicottiana os instintos não são idéias abstratas, não constituem um limite entre o psíquico
e o somático, não são representantes. A ação exigida pelos instintos deverá ser compatível
com o grau de amadurecimento do indivíduo. Segundo Elsa Oliveira Dias,
por isso, ao referir-se à instintualidade na fase mais primitiva, Winnicott não fala
propriamente em instintos, mas em tensões ou excitações instintuais. Ele reserva o
termo “instinto”, ou “vida instintual”, para quando a instintualidade for integrada e
significada pelo indivíduo como algo que lhe concerne, vivida como uma experiência
pessoal, com todas as suas conseqüências; esta conquista só se dará mais tarde, no
estágio do concernimento. (2003, p. 176) 37
Em Freud não encontramos a idéia apontada acima por Elsa Oliveira Dias. Para ele, a
pulsão permanece com as mesmas características e agem sobre o indivíduo da mesma forma,
em qualquer fase de sua vida. Outra diferença no que se refere ao conceito de pulsão está no
fato de que os instintos vão e voltam, “não constituem a vida do bebê” (Dias 2003, p. 175). Os
instintos exigem ação e clímax. A grande diferença está no fato de que ambos, Freud e
Winnicott, falam de coisas totalmente diferentes: em Winnicott estamos no campo dos
instintos e não no campo das pulsões.
37 Este aspecto está intimamente relacionado com a sexualidade e será desenvolvido no capítulo IV.
144
Em suma, para Winnicott, não são as pulsões e seus representantes que conduzem o
ser humano, mas as experiências pessoais que o levarão à constituição de seu si-mesmo
firmemente assentado num corpo pulsante, vivo. Sem a metapsicologia, “abrem-se
145
perspectivas de uma psicanálise não mais centrada nos destinos das pulsões, mas
nos destinos pessoais dos seres humanos” (1999a, p. 154).
Winnicott sabe que seus presumíveis leitores são, na sua grande maioria, os
psicanalistas, e eles estão habituados a uma linguagem destinada à descrição de
distúrbios pulsionais. Sobretudo no que se refere à metapsicologia, são afeitos a uma
linguagem concernente não a uma “pessoa”, mas a um “aparelho psíquico”, composto
de forças, intensidades de forças e mecanismos mentais.” (1998, p. 100)
De acordo com Loparic, no capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, Freud apresenta
o aparelho psíquico concebido como uma teoria do como se, na qual a mente é vista como se
fosse uma máquina. “Não se pergunta o que é o sujeito, mas o que deveria ser para que possa
realizar esta ou aquela performance” (1997b, p. 104).
trabalhada heideggerianamente, ela [a questão sobre o homem] nos leva a afirmar que
o homem não é nem a mente, nem o corpo, nem uma união qualquer de mente e corpo,
nem mesmo um processo natural. O homem não é coisa alguma, ele apenas acontece.
Em vez de pesquisar a estrutura da mente, cabe indagar sobre a estrutura da
acontecência do existir humano, para descobrir que essa não é outra do que a estrutura
desse acontecer. Em Heidegger, o homem não é uma máquina a produzir
performances, ele é o próprio tempo, o “tempo-ser” (Zeit-Sein). (1997b, p. 111)
Uma formulação clínica e teórica que possa ser uma alternativa à psicanálise
tradicional é a que encontramos em Winnicott, especialmente na forma como ele concebe o
ser humano. De fato, não se encontra em Winnicott termos da metapsicologia tais como
‘máquina’, ‘aparelho’, etc, quando ele se refere ao ser humano. O termos encontrados são
‘indivíduo’, ‘ser humano’, ‘pessoa’, mesmo a palavra ‘sujeito’ raramente é utilizada e em
geral, quando isso ocorre, ela é contextualizada no esquema da psicanálise tradicional. Para
Winnicott, o ser humano não é dividido em instâncias, tal como é concebido na psicanálise
tradicional. Termos como id, ego e superego, que correspondem a figurações espaciais de um
aparelho que existe ficticiamente, adquirem outro significado na psicanálise winnicottiana. A
pessoa humana não se equivale a esses termos, ela não pode ser vista como um caldeirão de
energia que transita em seu organismo.
outro ser humano. A animalidade do ser humano será humanizada por meio de um
ambiente humano. Corpo e mente se integram e a psique tem a tarefa de elaborar um corpo
vivo e transformá-lo em um ser humano saudável, plenamente integrado em si próprio, capaz
de encontrar seu lugar no mundo e de construir sua existência de forma pessoal.
[...] a concepção do aparelho psíquico não pode ser tomada como genuína, visto que o
homem não é nem uma máquina, nem um psiquismo, mas um ser-no-mundo,
caracterizado por uma temporalidade originária extática, não redutível ao espaço
148
[...] Freud coisifica a subjetividade humana, o que significa que ele aceita, por um
lado, o pressuposto da psicologia do seu tempo, herdado da teoria metafísica da
subjetividade, de que o ser humano realiza atos de representação afetivamente
carregados e, por outro, a suposição, herdada da teoria metafísica da natureza, de que
o homem é uma entidade situada no espaço e no tempo objetivos, externos, em suma,
uma máquina movida a forças que obedecem ao principio de causalidade. (2001a, p.
101)
Essa máquina é movida por uma pulsão, ou seja, uma carga energética que se encontra
na origem da atividade motora do organismo humano. Isso significa que “a ontologia
freudiana inclui um certo número de suposições ou, mais precisamente, de especulações,
sobre forças e energias psíquicas e sobre a constituição inata do aparelho mental” (2001c, p.
27). O sujeito humano é comparado a um sistema de energia e seu funcionamento guarda uma
certa semelhança com o de um sistema hidráulico, em que a energia transita, flui, desvia-se ou
é represada, ou seja, ele possui um quantum limitado de energia disponível que deverá ser
liberada de forma equilibrada. De certo modo, o comportamento humano é redutível a formas
comuns de energia e tem a busca do prazer como meta primordial. Isso significa que ele tem
como objetivo uma redução de tensão ou a descarga de energia.
Para Winnicott, a natureza humana é quase tudo o que o ser humano possui; além
disso, este ser humano é uma amostra temporal da natureza humana (Winnicott,1988, p.11).
Essa natureza somente se consumará se houver um ambiente que facilite seu desdobramento,
ou seja, sua efetivação não é automática. Mesmo ao nascer, ele ainda não é uma pessoa total;
somente se tudo transcorrer bem durante seu crescimento, ele se tornará um ser humano
completo. Portanto, aqui não há nem determinismo nem causalidade, aqui temos relações
humanas sujeitas aos cuidados e ao acaso. Em especial, cuidados que venham de uma pessoa
viva. Para Winnicott, “[...] a mãe é necessária como pessoa viva. O seu bebê deve estar apto a
O ser humano freudiano, visto como aparelho biofisiológico da primeira tópica e o ser
humano representado, na segunda tópica, como aparelho psicológico, em Winnicott cede
lugar ao ser humano ‘humanizado’, é visto como ‘pessoa’, como um ‘ser frágil’. Uma vez
assentado em si mesmo, numa existência psico-somática, este ser humano pode se tornar a
pessoa descrita por Loparic:
Com Winnicott, saímos do domínio das máquinas e dos aparelhos e passamos para o
campo da humanidade. Humanidade frágil, sujeita à facticidade, mas nem por isso menos
grandiosa. Nem todo o aparato da modernidade é maior que essa condição humana.
Para Winnicott, o ser humano não pode ser visto como um fantoche à mercê de forças
que o levem a buscar o prazer, considerando o princípio de realidade. O bebê deverá ter
150
muitas experiências até descobrir o que significa prazer. A busca mais importante
para o ser humano é a de poder realizar-se, dar um sentido à sua existência. Segundo a
interpretação de Loparic,
Em 2004, em outro artigo, sobre este mesmo assunto, Loparic diz que, no início da
vida, a necessidade maior do bebê não é procurar o prazer.
Loparic explicita, com essa observação, que a necessidade maior do ser humano está
em assegurar a sua existência no início de sua vida. A necessidade maior é a de poder confiar
e não de busca de prazer.
Elsa Oliveira Dias aponta que “as necessidades do bebê não são ditadas pelo princípio
do prazer, mas pela necessidade de ser, que inclui buscar e criar um objeto” (Dias, 2003, p.
180) A capacidade de buscar e criar um objeto é o que permitirá a concretude das relações
com seres humanos.
151
Conforme foi demonstrado no item 3 do capítulo I, no início de sua vida o bebê não
tem condições de estabelecer contato com um objeto porque está em um mundo subjetivo. Se
tudo correr bem, ele chegará à realidade externa e com ela se relacionará como tal. Portanto,
como observa Elsa Oliveira Dias,
[...] a relação primária com a mãe-ambiente não é, de início, objetal. O bebê ainda não
é um eu unitário, que já tenha um mundo interno, no interior do qual estaria ocorrendo
o conflito entre objetos bons e maus; ele tampouco sabe da existência de um mundo
externo ou de objetos externos. Bem no início, a “relação” com a mãe não é nem
mesmo dual, tendo de ser descrita como uma unidade bebê-mãe, de dois-em-um. É no
interior dessa relação sui generis, cuja realidade é subjetiva, que se dá o início do
contato com a realidade externa. Não sendo nem mesmo dual, a relação é muito menos
triangular. (2003, p. 303)
39 Em Melanie Klein se encontra o auge da idéia de relação de objeto. Quando aborda as fases
primitivas do desenvolvimento da criança, Klein tem como ponto de partida a idéia de que as relações de objeto,
que são constitucionais, estão presentes desde o início da vida da criança. Desde suas fases mais primitivas o
bebê já tem condição de fazer uma distinção entre os objetos, classificando-os como bons e maus. As relações se
dão em termos de projeção do que é mau e introjeção do que é bom. Mecanismos mentais são os responsáveis
pela instauração dessa capacidade de atribuição de juízo. Se o bebê já é capaz de projetar e introjetar, isso
significa que ele já sabe da existência de uma espacialidade que pode ser apreendida como um dentro e um fora,
ou seja, desde o início de sua vida, o bebê já está integrado espacialmente no mundo. Significa que ele é uma
pessoa inteira, uma pessoa capaz de atribuir sentido ao que encontra no mundo.
152
Esta relação do bebê com a mãe é pautada na confiança que o bebê tem
com sua mãe e da capacidade que ela tem de comunicar-se com ele, em compreender sua
necessidade de criar o mundo. Esta relação também não é erótica, porque o bebê não é regido
pelo princípio do prazer, mas pela necessidade de sentir-se real.
Nesse mundo subjetivo, mundo que é assegurado pela mãe-ambiente, o que prevalece
é a relação subjetiva, não a relação entre pessoas totais. Nem é mesmo possível a relação com
um objeto parcial, apenas a relação com um objeto subjetivo. Nesta relação subjetiva, a mãe
não pode ser ‘objeto’ para o bebê, embora ela esteja presente. Esta idéia é esclarecida por Elsa
Oliveira Dias:
O tipo de contato que o bebê estabelece com a mãe não se caracteriza como uma
relação objetal, devido à imaturidade do bebê, pois ele ainda não chegou na realidade externa.
Para se relacionar com os objetos, é necessário que eles estejam no mundo externo,
fora do mundo subjetivo. Isso nos leva à necessidade de considerar que para o bebê há
diferentes tipos de realidade. Se, no início de sua vida, o bebê está vivendo no mundo
subjetivo possibilitado por sua mãe, a entrada no mundo objetivo não é automática. O bebê
precisará criar o real para nele se instalar. Aqui temos mais uma objeção à psicanálise
tradicional, para a qual a realidade já é dada ao sujeito. Para a psicanálise freudiana, homem e
mundo já estão no mundo objetivo, “o sentido da realidade do real é um só, o de presença
constante representável” (Loparic 1995, p. 51). A representação, por meio do pensamento e
percepção, garante a inserção no princípio da realidade. Para a psicanálise winnicottiana, o
bebê tem que construir, juntamente com sua mãe-ambiente, a trilha que o levará à realidade,
ou seja, a ponte para o real tem que ser construída. Uma mãe que atenda as necessidades do
bebê estabelece uma rotina ao longo do tempo que permite ao bebê acumular experiências e
memórias que constituirão o acesso à realidade. Os vários sentidos da realidade serão
construídos no decorrer do processo de amadurecimento (Loparic 1995, p. 55). Mais
importante que a satisfação do instinto é a possibilidade de ser introduzido na mundo com a
153
proteção da mãe que filtra a realidade de forma a que o bebê possa suportá-la. O
único caminho para essa construção é através da realidade do mundo subjetivo.
Uma das dificuldades em aceitar as relações de objeto tal como Freud as apregoa é
apontada por Loparic, para quem as relações de objeto “são ou dinâmico-energéticas (as
biológicas e as sexuais) ou mentais. As biológicas são primárias. Isso significa que o
funcionamento do aparelho corpóreo determina todos os outros de relacionamento com o
objeto, a natureza e a escolha dos objetos, as metas e a evolução do relacionamento” (1997 a,
p. 377). Em Winnicott, as relações humanas ocorrem entre pessoas vivas, entre pessoas que
estão sujeitas ao acaso, à fragilidade da vida, às dificuldades próprias do existir. Essas
relações não se dão em termos de um quantum de energia, nem em termos de um jogo de
forças que precisam ser domesticadas. Elas se fundamentam na necessidade do indivíduo de
constituir o seu si-mesmo de forma a poder se realizar como ser humano, construir sua
existência.
Loparic aponta que embora Winnicott use expressões como ‘relação de objeto’, ele
terminou por substituí-las por pessoa ou relação pessoal. Para Loparic, o termo objeto é
Em suma, Winnicott nos remete ao óbvio que no correr do tempo nos esquecemos:
pessoas não são nem coisas e nem objetos.
Portanto, até certo ponto, podemos admitir que a sexualidade seja um fenômeno
presente na vida da criança. Winnicott também concordaria com a idéia de que a sexualidade
pode ser observada empiricamente na medida em que a criança cresce. Porém, essa
sexualidade existirá de fato e será considerada normal, e aqui encontramos a divergência com
Freud, se a criança tiver um desenvolvimento maturacional adequado desde os primórdios de
sua vida, “presumindo-se um desenvolvimento inicial saudável” (1988, p. 37). O próprio
Winnicott reconhece a importância do trabalho realizado por Freud, mas ressalta que há
necessidade de se circunscrever as idéias do precursor da psicanálise:
quase todos os aspectos do relacionamento entre pessoas totais foram abordados pelo
próprio Freud, e de fato é muito difícil atualmente dar a isto qualquer contribuição, a
não ser que se consiga fazer uma exposição original daquilo que já é aceito. Freud fez
por nós toda a parte desagradável do trabalho [...]
Nesse mesmo texto, Winnicott mostra sua discordância com relação ao pensamento
freudiano: “a presente exposição da psicologia infantil toma por base um desenvolvimento
anterior saudável, até o ponto em que se pode dizer: esta criança é agora um ser humano
completo, relacionando-se com seres humanos completos” (1988, p. 37). Com esse
comentário, Winnicott mostra que para chegar a este estágio a criança passou por vários
estágios que agora lhe possibilitam viver as situações próprias das relações interpessoais.
Para alcançar o estágio em que as questões sexuais adquiram sentido propriamente sexual, a
criança deverá ter passado pelo processo de integração.
Uma vez que estas tarefas tenham se realizado, pode-se falar que haja uma sexualidade
infantil à maneira freudiana, ou seja, a da fase edípica.
A sexualidade infantil é bem real, ela pode estar madura ou imatura à época em que as
transformações da latência aparecem trazendo alívio. Se a sexualidade de uma criança
é imatura, perturbada ou inibida ao final deste primeiro período de relacionamentos
157
Portanto, a sexualidade infantil somente será um fato normal quando a criança chegar
à fase da situação edipiana. Antes disso, ela não tem maturidade para saber da presença do
outro em sua vida.
Nos últimos anos, Loparic tem realizado vários estudos demonstrando a diferença
entre a psicanálise tradicional e a winnicottiana. Em seu artigo “Uma psicanálise não
edipiana”, ao discorrer sobre a importância do complexo de Édipo na psicanálise tradicional,
Loparic afirma que “com o Édipo, Freud descobriu, ao mesmo tempo, a sexualidade infantil,
o inconsciente reprimido, o conflito que causa as neuroses e o método de seu tratamento”
(Loparic 1997a, p. 376).
(...) é o fenômeno principal da vida sexual, por isso elemento essencial da explicação
da vida sexual. Toda a teoria da função sexual é concebida como preparação ou como
decorrência da situação edipiana. Em segundo lugar, a estrutura do sujeito é concebida
em termos de antecedentes ou de derivações do complexo. Em terceiro lugar, o
complexo de Édipo é o complexo nuclear das neuroses e, de modo geral, das doenças
psíquicas. Em quarto lugar, o complexo de Édipo está na origem da ordem cultural,
isto é, da religião, da moral, da sociabilidade, da historicidade, da arte, da ordem
humana em geral.
Por esse motivo, a teoria da situação edípica e dos seus efeitos pode ser chamada de
paradigma, no seguinte sentido: o problema do Édipo e o problema central e a
solução exemplar desse problema, a parte principal da psicanálise tradicional, um
paradigma teórico, tanto para a análise individual como para o desenvolvimento e
para institucionalização da teoria psicanalítica. (1997 a, p. 377)
Para Loparic, isso significa que encontramos aqui o elemento que será objeto de
estudo dos psicanalistas. Isto gera a necessidade incondicional da aceitação deste conceito, de
modo a propiciar a constituição de um conhecimento que fosse compartilhado por todo um
grupo.
159
Para Loparic, uma das grandes diferenças entre Freud e Winnicott está no modelo
metafísico ou modelo ontológico. No paradigma winnicottiano, há uma nova concepção de ser
humano, e, se na psicanálise freudiana o enfoque está na estrutura psíquica do sujeito, na
psicanálise winnicottiana tem-se uma inovação com a proposta de se estudar a natureza
humana.
Além destes aspectos, há ainda outra crítica a ser feita ao significado que o complexo
de Édipo assume na psicanálise freudiana: a idéia do complexo de castração está intimamente
ligada ao complexo de Édipo. Freud aponta que, ao perceber a diferença entre os sexos o
menino tem receio de perder o pênis. A criança também sente que constantemente é alvo das
idéias de castração por parte dos adultos. A importância atribuída ao complexo de Édipo
também orienta Freud a explicar o fenômeno nas meninas, mas isso não é tão simples
considerando que, segundo o que ele próprio afirma, elas já seriam castradas. Essa dificuldade
se resolve com a idéia de que nas meninas a explicação para o fenômeno se dá pelo fato de
que elas sentem inveja do pênis. As meninas notam o pênis do irmão ou companheiro de
brinquedo e verificam que o membro sexual masculino é visível e de grandes proporções, o
que, por contraste, evidencia o quanto o órgão sexual feminino é insignificante.
161
A importância atribuída a esse tema está presente num dos textos de Freud
41
, no qual ele sustenta que nas meninas ocorre o contrário do que se passa com os meninos. O
complexo de castração as prepara para o complexo de Édipo, ao invés de destruí-lo. Elas são
obrigadas a abandonar a ligação com sua mãe por meio de sua inveja do pênis e a entrada na
situação edipiana significa um refúgio. Com o desaparecimento do temor da castração,
desaparece também o motivo principal que leva as meninas a superar o complexo de Édipo.
As meninas permanecem no complexo de Édipo por um tempo indeterminado, e o
ultrapassam tardiamente, embora de forma incompleta (Freud, 1932[1933], p. 3174).
Se Winnicott usa uma linguagem própria, singular, isso incidirá diretamente em suas
considerações teóricas e revelará uma nova forma de enfocar o ser humano. Winnicott retrata
o processo de amadurecimento em suas diferentes etapas e para caracterizar cada uma delas é
necessário que se use uma linguagem específica e não padronizada. Assim, se se descreve o
mundo subjetivo, é impossível usar a linguagem que descreve o mundo dos objetos e pessoas
objetivamente percebidos. A linguagem objetificante não é adequada para descrever a
condição do bebê em seu início de vida. A linguagem da teoria dos instintos também não
expressa toda a sutileza da vida do bebê e dos pacientes regredidos.
o bebê humano não é um sujeito, pois nem ao menos existe como algo independente.
Ele precisa chegar a existir, antes e independentemente de poder executar qualquer
operação mental elaborada (representar, pensar, desejar etc.), antes, portanto, de criar
capacidades que são tradicionalmente, na filosofia e, por influência desta, na
psicanálise, tomadas como definitórias da subjetividade humana. Mesmo adultos
escapam cotidianamente da condição de sujeito, pois, no mais das vezes, cuidam dos
problemas das suas vidas apoiados em suas identidades pessoais, adquiridas durante o
processo de amadurecimento em virtude de relações inter-humanas efetivas que só em
parte são mentais e, nesse sentido, subjetivas. Tal como o conceito de objeto, o de
sujeito usado na psicanálise é ambíguo e fonte de confusões teóricas graves. (2004, pp.
7-8)
Winnicott opta por termos que reflitam mais a condição da natureza humana, a
condição de seres que, a cada momento de suas vidas, apresentam um estado, uma situação
específica, na qual o uso de um termo aplicável a uma outra fase específica traz problemas de
compreensão e se revela incoerente e fora de contexto.
não parece haver dúvida de que os germes dos impulsos sexuais já estão presentes no
recém-nascido e de que eles continuam a desenvolver-se durante algum tempo, sendo
então dominados por um progressivo processo de supressão; este, por sua vez, é
interrompido por avanços periódicos no desenvolvimento sexual ou pode ser
sustentado por características individuais (1905, p. 160)
164
A idéia de que o recém-nascido traz em si, ao nascer, o germe dos instintos sexuais
que o levam a repetir a busca do prazer, nos indica o grande valor que Freud outorgava às
questões biológicas, além de afirmar que o bebê é conduzido pelo princípio do prazer. Ou
seja, o bebê já nasce sexualizado e com potencial inquestionável de realização sexual. São
esses germes que fazem o vínculo entre alimentação e sexualidade, além de fazerem com que
o bebê volte a buscar o alimento, movido pela necessidade de reexperienciar o prazer sexual.
Freud afirma que o desenvolvimento sexual é determinado hereditariamente.
A primeira é que, segundo Winnicott, no início de sua vida, tudo o que bebê herda é o
potencial para o amadurecimento, ou seja, a tendência à integração e sua estrutura biológica.
Esse potencial inclui a possibilidade de desenvolver a sexualidade, mas a instauração desta
não é automática, ela depende de um meio ambiente facilitador. Ao nascer, para se tornar
uma pessoa inteira, o bebê precisa realizar as tarefas da integração: integrar-se no tempo e no
espaço, alojar-se em seu próprio corpo, o que inclui a integração da sexualidade e, finalmente,
relacionar-se com a realidade objetivamente compartilhada. Não é o germe da sexualidade
que faz o bebê se desenvolver, e sim o seu potencial para o amadurecimento: “o indivíduo
herda um processo de amadurecimento que o leva a se desenvolver na medida em que haja
um meio ambiente facilitador e somente na medida em que este exista” (1989, p. 89). A tarefa
do indivíduo é transformar-se numa unidade a partir do potencial herdado e desenvolvido com
o auxílio de uma mãe suficientemente boa. Essa idéia foi sustentada por Winnicott por mais
de três décadas.
Outra objeção está no fato de que na psicanálise winnicottiana não se encontra a idéia
de que um automatismo deflagre determinados processos desenvolvimentais. Todo o
desenvolvimento do indivíduo, nos seus mais variados aspectos, depende do processo de
integração. Nas questões sexuais também há uma pré-condição:
Também não há vínculo entre alimentação e sexualidade, pois o bebê no início de sua
vida ainda não integrou sua vida instintual e, portanto, as questões alimentares são externas a
ele. Mesmo após a integração, não haverá vínculo entre esses dois aspectos. A integração
instintual virá apenas após a fase do concernimento. (1958a, p.262)
Quando lemos os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, algo nos chama a
atenção: Freud não considera os estágios iniciais do processo de desenvolvimento. De um
modo geral, Freud descreve o desenvolvimento infantil a partir dos dois anos e o que ocorre
anteriormente com o bebê não é considerado, a não ser o fato de que ele é movido pela
pulsão. Freud não faz considerações sobre a vida intra-uterina e sobre a vida do bebê até os
dois anos. De um modo geral, os aspectos que envolvem a vida intra-uterina são fundamentais
porque envolvem questões sobre quando de fato o bebê começa a existir e quais são as
condições apresentadas por ele durante esta fase. Freud faz somente algumas poucas
observações, essencialmente sobre os aspectos biológicos.
Sobre o início da vida humana, Winnicott afirmou: “a história de um ser humano não
começa aos cinco anos, nem aos dois, nem aos seis meses, mas ao nascer – e antes de nascer,
se assim o preferir; e cada bebê é desde o começo uma pessoa, necessitando ser conhecida por
alguém.” (1947b, p. 86)
Inúmeras vezes Winnicott reiterou que a existência não tinha início apenas com a
concepção ou o nascimento. Num de seus últimos artigos, ele afirmou que “o início das
crianças se dá quando elas são concebidas mentalmente” (1987c [1966], pp 51-2). Após
serem concebidas mentalmente, ao terem sua existência iniciada, na vida intra-uterina, elas já
podem se apropriar do que lhes ocorre nesta fase. Esta idéia se sustenta na posição de
166
Winnicott de que o bebê possui uma capacidade inata para ter experiência. É esta
idéia que dá suporte para a seguinte afirmação:
[...] em que idade o ser humano começa a ter experiências? Devemos presumir que
antes do parto o bebê já seja capaz de reter memórias corporais, pois existe uma certa
quantidade de evidências de que a partir de uma data anterior ao nascimento, nada
daquilo que um ser humano vivencia é perdido. Sabemos que, no útero, os bebês
realizam certos movimentos que, a princípio, parecem-me mais com os movimentos
natatórios de um peixe. As mães dão imenso valor à atividade de seus bebês, e
esperam por ela a partir do sexto mês, é possível presumir que as sensações começam
por volta da mesma época; de um modo ou de outro, é possível – e até provável – a
existência aí de uma organização central que seja normalmente capaz de perceber
essas experiências. (1988, pp. 126-7)
Para Winnicott, o bebê já é um ser humano desde sua vida intra-uterina, dado que ele
já pode fazer as experiências próprias dessa fase: ficar entregue à motilidade, viver uma fase
42 Para Winnicott, o estado de ser consiste numa condição adquirida após o “primeiro despertar”. Diz
ele: “no início, antes que cada indivíduo crie o mundo novamente, existe um simples estado de ser, e uma
consciência incipiente da continuidade do ser e da continuidade do existir no tempo” (1988, p. 135). Este estado
de ser pertence ao bebê e não a quem observa o bebê. Este item será desenvolvido de forma mais detalhada no
capítulo IV.
167
Elsa Oliveira Dias endossa a idéia de que o bebê já é um ser humano em sua vida
intra-uterina: “[...] segundo a concepção winnicottiana, o bebê já é um ser humano desde a
vida intra-uterina, e isto se define pela sua capacidade inata de fazer experiências” (2003, p.
124).
d) Sexualidade e patologia
Outra situação que é relevante quando se toma contato com os Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade está no fato de que Freud inicia sua discussão pela patologia na área da
sexualidade. Freud faz um estudo das aberrações sexuais, o que inclui a inversão e as
perversões. Conforme foi mostrado no capítulo I, em Novas Conferências Introdutórias à
Psicanálise ele afirma que para se chegar à normalidade deve-se partir do anormal (1917
[1916-17], p. 2313).
Esta posição é radicalmente contrária às idéias de Winnicott, pois toda vez que ele
inicia uma discussão sobre um conceito, seu ponto de partida é o da saúde. A partir do que
considera uma condição saudável, ele aponta em quais situações a saúde não se estabelece.
Winnicott parte do princípio de que o estudo da natureza humana deve se assentar no
desenvolvimento sadio, apesar dos médicos estarem acostumados a escrever sobre a doença:
mas, a noção médica de que a saúde é uma relativa ausência de doenças não é
suficientemente boa. A palavra saúde possui seu próprio significado positivo, fazendo
com que a ausência de doenças não seja mais do que o ponto de partida para uma vida
saudável. (1988, p. 1)
[..] estamos preocupados com a riqueza do indivíduo não em termos de dinheiro mas
de realidade psíquica interna. Na verdade, freqüentemente perdoamos um homem ou
uma mulher por doença mental ou outro tipo de imaturidade porque esta pessoa tem
uma personalidade tão rica que a sociedade tem muito a ganhar da contribuição
excepcional que ela pode fazer. Permito-me afirmar que a contribuição de
Shakespeare foi tal que não importaria se descobríssemos que era imaturo, ou
homossexual ou anti-social em algum aspecto. (1965vc [1962], p.65)
Embora não negue as questões patológicas, antes pelo contrário, o que Winnicott
pretende ao apresentar sua teoria do amadurecimento pessoal, é oferecer um modo de se
prevenir a instalação da doença – para alcançar a saúde precisamos compreender mais o SER.
Para ele, vida e saúde não estão apartadas entre si:
[...] gostaria de enfocar a vida que uma pessoa saudável é capaz de viver. O que é a
vida? Não preciso saber a resposta, mas podemos chegar a um acordo: ela está mais
próxima do SER do que do sexo. Disse Lorelei: “Beijar é muito bom, mas uma
pulseira de diamantes dura para sempre”. Ser e se sentir real vinculam-se
essencialmente à saúde, e só se garantirmos o ser é que poderemos partir para coisas
mais objetivas. Sustento que isso não é apenas um julgamento de valor, mas que há
um vínculo entre a saúde emocional individual e o sentimento de se sentir real. Não há
dúvida de que a grande maioria das pessoas tem a certeza de que se sentem reais, mas
a que preço? Em que medida estarão elas negando um fato, isto é, que poderia haver o
perigo de elas se sentirem irreais, possuídas, ou de não serem elas mesmas, de
sucumbirem para sempre, de perderem a orientação, de serem desligadas do próprio
corpo, de se sentirem aniquiladas, de não serem nada e não estar em lugar nenhum? A
saúde não está associada à negação de coisa alguma. (1971f [1967] p. 35) 43
Introdução
Esta integração progressiva permitirá, se tudo correr bem, que a identidade sexual seja
constituída. Portanto, a constituição da identidade sexual é secundária, no sentido de ser
decorrente de um processo maior. Porém, ela também é fundamental, por ser mais um
elemento de saúde a ser conquistada pelo indivíduo. As questões da sexualidade têm que ser
compreendidas na chave de dois aspectos: o desenvolvimento do ego e o desenvolvimento do
id. Para Winnicott, a identidade sexual, com sua correspondente diferença sexual, pode ser
compreendia na teoria da sexualidade que se insere numa teoria da instintualidade. Esta teoria
da instintualidade é parte do processo maturacional do ser humano. Estes dois aspectos
caminham em paralelo e não se pode falar na instauração de uma sexualidade saudável se
estes dois elementos não forem vistos como integrados entre si.
A conquista da saúde significa que o indivíduo que amadurece precisa tornar-se uma
unidade e esta unidade precisa estar firmemente assentada em um corpo, seja ele com
características sexuais masculinas ou características sexuais femininas. A saúde significa que
houve uma apropriação do corpo, que houve o estabelecimento de uma parceria psico-
somática entre corpo, mente e psique. Para Winnicott, em termos filogenéticos, a base
somática, o soma, é o primeiro elemento da pessoa a se constituir (1988, p. 19). Este soma se
transforma, embora não haja prevalência de um órgão sobre outro. Os inúmeros órgãos que
compõem a pessoa humana constituem uma totalidade harmoniosa em que cada órgão cumpre
com sua função. Na saúde, a pessoa humana se desenvolve harmoniosamente, sem privilégio
de um ou outro órgão. O resultado é uma pessoa que não tem um corpo, ela é um corpo – e é
sobre a base somática que a identidade pessoal é constituída (1971d [1970], p. 270).
171
Este enfoque integrador do ser humano mostra que as questões sexuais têm
a mesma importância de outros órgãos e sistemas corporais: após o bebê alojar-se em seu
corpo, os órgãos sexuais, como os demais órgãos corporais, são elaborados imaginativamente.
A excitação sexual só será experimentada com o devido significado genital quando a
personalidade infantil estiver plenamente integrada, o que será possível quando a pessoa
chegar na fase fálica.
Para Winnicott, a descoberta da sexualidade tem que ser considerada como algo
decorrente do processo de amadurecimento humano, ela não está definida no início da vida,
não pode ser imposta e nem ensinada (1949j, p. 217). O contato da criança com as questões da
sexualidade deve se dar a partir de suas próprias explorações sexuais. Conseqüentemente, ela
terá uma infância mais rica, pois as fantasias sexuais e as brincadeiras que as acompanham
transformam as crianças em pessoas ativas e alegres.
Para Winnicott, na vida adulta, se tudo correu bem durante o processo maturacional do
indivíduo, ele pode viver plena e saudavelmente sua vida sexual:
o sexo não é apenas uma questão de satisfação física. Gostaria de dar ênfase sobretudo
ao fato de as satisfações sexuais serem uma conquista do crescimento emocional da
pessoa; quando tais satisfações advêm de relacionamentos saudáveis tanto para a
pessoa quanto para a sociedade, elas representam um dos pontos culminantes da saúde
mental. (1961b [1957], p. 41)
172
A partir deste novo enfoque da teoria da sexualidade, não se pode aceitar que a
sexualidade já esteja definida no início da vida do bebê, ao mesmo tempo em que se faz
173
impulsiona em direção a outro ser humano, de modo que possa com ele se
relacionar no modo excitado, nas situações identificadas como sexuais. No tocante à
integração psico-somática, pode-se supor que se não houver harmonia e integração entre soma
e psique, o indivíduo não se apossou da única base de onde ele pode se desenvolver
saudavelmente: seu corpo. Finalmente, a conquista do status unitário do EU SOU proporciona
ao bebê a consciência de que ele habita em seu corpo, que há um limite entre ele e o mundo,
que ele tem um interior rico em fantasias e um exterior. A conquista da unidade permite que o
masculino e o feminino possam ser identificados, pois quem não sabe de si, não pode
descobrir que possui uma identidade sexual.
A cada estágio, o indivíduo apresenta uma organização de ego específica, o que lhe
possibilita desempenhar as tarefas próprias de cada um desses estágios. Ele se comportará, a
cada momento de sua vida, de acordo com uma maturidade proporcional ao estado
apresentado por seu ego. Cada etapa implica na resolução de inúmeras tarefas. A cada etapa
desse processo verificamos o humano se desdobrando e se revelando, numa sucessão de
estados cuja data de início é difícil precisar, mas que ocorrerá durante toda a sua vida
(1947b,1949c, 1987b, 1987c [1966]).
Por meio de estágios que se constituem com a experiência cumulativa que o bebê
vivencia gradativamente, há a concretização do potencial de amadurecimento. Estes estágios
175
não ocorrem de forma linear e nem são estanques entre si. Há entre eles um
entrelaçamento que termina por constituir um processo integrado, pois cada estágio deve ser
integrado a outro, numa sucessão necessária para que o bebê possa executar certas tarefas. Há
um processo de integração progressiva ocorrendo com este bebê que é atravessado pelo
encontro humano. Qualquer separação entre esses estágios só tem sentido em termos
didáticos, o que possibilita uma melhor compreensão de sua totalidade, ou seja, “deve-se
lembrar que uma divisão de uma fase para outra é artificial, e simples questão de
conveniência, adotada com o propósito de esclarecer definições”(1960c, p. 44).
Winnicott alerta para o fato de não se fazer uma dissecação das etapas
desenvolvimentais, posto que a criança está o tempo todo em todos os estágios, apesar de
haver um estágio dominante (Winnicott, 1988, p. 34). Na verdade, para Winnicott, o
indivíduo que amadurece está o tempo todo em todos os estágios. Os estágios apresentam
características completamente diferentes entre si, indicando as necessidades específicas do
indivíduo no momento em que vivencia o estágio em questão. Não há a segurança de uma
conquista definitiva em qualquer estágio, pois “qualquer estágio no desenvolvimento é
alcançado e perdido, alcançado e perdido de novo, e mais uma vez: a superação dos estágios
no desenvolvimento só se transforma em fato muito gradualmente, e mesmo assim apenas sob
determinadas condições” (1988, p. 37). Esse processo é vulnerável e depende totalmente das
condições ambientais, o que inclui também os aspectos da imprevisibilidade.
A descrição de cada estágio implica no uso de uma terminologia que especifique o que
o indivíduo está experienciando a cada momento. Em função disso, os termos já consagrados
pela psicanálise tradicional não são adequados para a descrição das idéias expostas por
Winnicott (1988, p. 34).
a mãe suficientemente boa (não necessariamente a própria mãe do bebê) é aquela que
efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que diminui
gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em assimilar o fracasso da
adaptação e em tolerar os resultados da frustração. Naturalmente, a própria mãe do
bebê tem mais probabilidade de ser suficientemente boa do que qualquer outra pessoa,
já que essa adaptação ativa exige uma preocupação fácil e sem ressentimentos com
determinado bebê; na verdade, o êxito no cuidado infantil depende da devoção, e não
de ‘jeito’ ou esclarecimento intelectual. (..) à medida em que o tempo passa, a mãe
adapta-se cada vez menos completamente, de modo gradativo, segundo a crescente
capacidade do bebê em lidar com o fracasso dela”. (1953c [1951], p. 10)
No início de seu existir, o feto é sustentado por um holding uterino proporcionado pela
mãe. Isto é possível porque ela entra no estado de preocupação materna primária, o qual lhe
possibilita entrar em sintonia com seu filho, de modo que todas as suas atitudes expressam seu
estado de devoção para com ele. Nessas condições, ela consegue adaptar-se às necessidades
de seu filho, ao mesmo tempo em que conserva a sua capacidade adulta de cuidar dele. Ela se
177
mantém nesse estado o tempo necessário para que ele possa se tornar
independente. Esse holding faz parte de um estado de regressão necessário para que ela possa
se colocar em total identificação com seu bebê. Sua própria história como bebê pode ajudá-la
a se identificar com seu bebê. Ela também já foi um bebê um dia e tem memórias corporais
deste período. Segundo Winnicott,
é claro que a mãe já foi um bebê. Esta é uma experiência que está em alguma parte de
si mesma, uma experiência em que ela saiu da dependência e conquistou a autonomia.
Além do mais, ela brincou de ser um bebê, assim como brincou de pai e mãe; ela
regrediu a um comportamento de bebê nas ocasiões em que ficou doente; e talvez
tenha observado sua mãe cuidando de seus irmãos mais novos. Ela pode ter aprendido
a cuidar de bebês, talvez tenha lido livros sobre o assunto, e formou suas próprias
idéias sobre a forma certa ou errada de manejar os bebês. Ela, naturalmente, é afetada
pelos hábitos locais, podendo rejeitá-los ou aceitá-los, ou buscar o seu próprio
caminho, como uma pessoa independente ou uma pioneira. (1987d [1967], p. 94)
Nessa identificação com o bebê, encontramos a primeira condição necessária para que
o bebê possa iniciar a construção de seu potencial sexual, embora, paradoxalmente, esse
momento não se relacione especificamente com a questão sexual. Esse momento está
vinculado a uma conquista da identidade, identidade que futuramente permitirá o
estabelecimento de uma identidade sexual. Ao cuidar do bebê da forma que ele necessita, a
mãe possibilita ao seu filho criar as bases para o surgimento do si-mesmo.
[...] o importante é que a mãe, através de sua identificação com seu bebê, saiba como
ele se sente, de forma que é capaz de prover quase exatamente o que ele necessita em
termos de provisão ambiental em geral. Sem tal identificação creio que ela não seria
capaz de prover o que o bebê necessita no começo, que é uma adaptação viva às
necessidades do bebê. O aspecto principal é o holding físico e esta é a base de todos os
complexos aspectos adicionais do holding, e da provisão ambiental em geral. (1960c,
p. 54)
178
Ao adaptar-se ao bebê, a mãe permite que ele comece a construir-se como pessoa e o
cuidado que o bebê recebe de sua mãe é a condição necessária para que haja um crescimento
em direção à autonomia.
Amparada pelo pai do bebê, a mãe se torna o ambiente facilitador para que o bebê
experimente uma condição de onipotência que permitirá a criação do mundo, pois este está à
espera do bebê para ser criado. Por meio de uma ilusão sustentada pela mãe, o bebê poderá
criar o mundo que os adultos sabem que já existe, mas do qual o bebê nada sabe. Afinal, ele
acabou de nascer. A mãe sustentará o paradoxo do bebê criar o mundo sem saber que ele já
estava lá à sua espera para ser criado.
Isto é possível porque o bebê está vivo, porque ele possui uma motilidade presente
desde a vida intra-uterina. Amparado por uma herança genética e pelo processo maturacional,
o bebê tende para o processo de integração.
Esta vitalidade está vinculada à criatividade originária que possibilita ao bebê emitir o
gesto criativo e assim, criar o mundo, na medida de sua necessidade. Na verdade, o bebê
precisa criar o mundo para nele se instalar. Cabe ao ambiente, ou seja, à mãe, assegurar que o
bebê possa realizar seu gesto, sem que haja nenhum tipo de interferência. A postura da mãe
permitirá que a continuidade do ser do bebê esteja assegurada e que ele possa continuar se
desenvolvendo em seu próprio ritmo, sem invasões ambientais (1988, p. 127). Esta
continuidade de ser permite ao indivíduo que se constitua em todas as fases de sua vida.
Pela rotina materna, o bebê também pode integrar-se no tempo, pode datar-se, e,
gradativamente, acumular experiências que lhe permitirão saber que existe um passado, um
pressente e um futuro. Pelo acúmulo de todo tipo de experiências, o bebê se integra
corporeamente. O início se dá pelas experiências corporais, por meio de uma elaboração
imaginativa, a qual permite a constituição de uma integração psico-somática (Winnicott,
1988, p. 40). Esta integração será conseqüência de uma trajetória que se inicia com o soma,
que é o primeiro a surgir, na evolução da espécie e do indivíduo. A ele se vincula o corpo e a
179
Até atingir o amadurecimento necessário para integrar os instintos, o bebê está num
mundo subjetivo, num mundo em que há uma relação de dois-em-um, no qual mãe e bebê
estão numa tal sintonia em que o bebê não sabe ainda de sua mãe. Entregue ao mundo
sustentado por ela, o bebê mantém sua onipotência criadora.
180
Ao descobrir isso, o bebê procurará consertar o que tem feito, procurará reparar o dano
causado à mãe, embora saiba que repetirá este gesto todas as vezes em que for acossado por
seus instintos. Neste momento ele se responsabiliza por seus atos, ou seja, ele adquire a
capacidade de ser concernido por suas atitudes.
Nesse momento aquele que já foi um bebê e que agora pode caminhar, pode enfrentar
as relações interpessoais, pode viver as riquezas e dificuldades do triângulo edípico, pode
aprender as mazelas dos envolvimentos entre pessoas que são inteiras, completas e
autônomas.
O processo de amadurecimento não termina aqui; aqui apenas se inaugura uma outra
fase, como tantas outras pelas quais o indivíduo terá que passar enquanto viver. Chegar à
adolescência, viver as turbulências da luta para se sentir real e alojar-se no mundo,
experienciar as tarefas da fase adulta, e, finalmente, terminar o processo de amadurecimento
com a integração da morte ainda são tarefas a serem cumpridas.
Como tudo começa? O que precisa acontecer para que o bebê possa se tornar uma
pessoa real, uma pessoa que saiba de seu próprio existir, que se responsabilize por si e por seu
estar no mundo? Em função destas indagações, o pensamento winnicottiano sempre nos
obriga a perguntar: qual o estado do indivíduo agora e o que ocorreu antes para que ele
chegasse a esta condição? Em que condições estava o bebê antes dessa fase que estamos
considerando? Para entender esses aspectos, é preciso ter como referência o modo como
Winnicott considera o processo de transformação do ser humano.
Para Winnicott, o bebê, no início de sua vida, se alterna em dois estados, os estados
excitados e os estados tranqüilos. Estes estados estão vinculados à espontaneidade que gera
um movimento a partir da própria necessidade do bebê e à reatividade (reação à intrusão). Os
estados tranqüilos estão vinculados às tarefas de integração no tempo e espaço; já os estados
excitados relacionam-se ao início da busca de contato com a realidade. A alternância entre os
estados excitados e tranqüilos proporcionará a integração gradativa ao bebê. Este processo de
integração, resultado de inúmeras tarefas interdependentes, inclui o estado de ser, encontrado
no elemento feminino puro. Ao nascer, o bebê não sabe de si, não sabe do mundo e se alguém
se encarregar de seus cuidados, ele não poderá não se constituir como pessoa humana. Uma
existência se perderá. É nesta condição sui generis, nunca antes considerada pela psicanálise
tradicional, que se sustenta todo o desenvolvimento de qualquer bebê que nasce. Neste início
de vida, o bebê tem apenas a necessidade de ser, a necessidade de se constituir como pessoa,
embora, ele não saiba de si. Esta necessidade de ser se origina de um estado anterior, o estado
de não ser. O ser humano emerge do não-ser, de um estado de uma solidão essencial e ao
final de sua existência ele retornará para o estado de não-ser (1988, p. 132).
Ao apontar que no início da vida o bebê possui este estado de ser e que também há a
possibilidade de que esse estado possa ser interrompido, Winnicott esclarece que o bebê,
imerso no mundo subjetivo propiciado por uma mãe entregue à preocupação materna
primária, precisa ser deixado nessa condição, de modo a se desenvolver em seu próprio ritmo
e não por reação à invasão ambiental, pois, “ao reagir, o bebê não está ‘sendo’” (1958f
[1949], p. 185). A preocupação materna primária oferece a condição necessária para o
desenvolvimento do bebê. Esta condição é que leva Winnicott a dizer que: “os lactentes
humanos não podem começar a ser, exceto sob certas condições” (1960c, p. 43). As condições
para o desenvolvimento são sustentadas pela mãe, pela adaptação dela às necessidades do
bebê. Segundo Loparic:
O existir do lactante humano não é algo dado, desde o nascimento, mas algo que
precisa ser integrado, com o espaço-tempo. Para tanto, faz-se necessária uma
ambiência favorável, sem a qual o lactante nunca poderá sair do não-ser (not-being).
O ser do lactante torna-se ‘fato’ que toma o lugar (replaces) do não-ser, assim como a
comunicação se origina do silêncio. Paralelo decisivo: em Winnicott, o ser humano
184
não emerge do inorgânico, mas do vazio; ele não é um fato biológico, mas
um existir comunicacional. Esse modo de acontecer do lactante não elimina, apenas
afasta o não-ser. Atrás das múltiplas defesas e astúcias de que se constitui o existir do
adulto, tanto dos sãos como dos doentes, jaz, à distância, a memória do seu não-
existir, memória não explícita, nem mesmo explicitável, mas nem por isso menos
‘constitutiva’.(1995a, p. 58)
Esse estado de ser constitui o ponto de partida de um processo e condição para que a
existência do bebê possa se concretizar. Uma vez que o estado de ser é conquistado, a mãe
deve cuidar para que haja uma continuidade de ser.
Nenhum bebê, nenhuma criança, pode vir a tornar-se uma pessoa real, a não ser sob
os cuidados de um ambiente que dá sustentação e facilita o processo de
amadurecimento. [...] Desde o absoluto início, a necessidade fundamental do ser
humano consiste em ser e em continuar a ser. (Dias, 2003, p. 96)
Se o bebê não puder experienciar o ser, todo o fazer ocorrerá de forma artificial,
interferindo na constituição de sua personalidade, afetando inclusive a constituição de sua
44 Segundo Winnicott, “[...] o estágio do narcisismo primário, [é] o estado no qual o que percebemos
como sendo o ambiente do bebê e o que percebemos como sendo o bebê, constituem, de fato, uma unidade. Aqui
pode ser utilizada a desajeitada expressão “conjunto ambiente-indivíduo”. O ambiente, tal como o percebemos,
não precisa ser mencionado, porque o indivíduo não tem meios de percebê-lo, e na verdade o indivíduo ainda
não se encontra ali, ainda não está separado do aspecto ambiental da unidade total”. (1988, p. 158) Este conceito
é totalmente diferente do conceito de narcisismo primário em Freud.
185
Portanto, uma das condições para a instauração de uma identidade sexual tem que ser
buscada na criação de uma condição de ser que permitirá que um fazer adquira sentido para o
indivíduo. A presença harmoniosa destes dois aspectos na personalidade e identidade de cada
pessoa está descrita na afirmação de Winnicott de que “após ser - fazer e ser-lhe feito. Mas
primeiro, ser” (1989vp [1959/63], p. 182). Apenas a partir da conquista do ser, o bebê pode
dar sentido a instintualidade.
2. A instintualidade45
Estas experiências instintuais serão elaboradas na relação com a mãe, de modo que são
transformadas em experiências, experiências das quais o bebê se apropria. Tudo isto é muito
importante para o desenvolvimento do bebê. Segundo Winnicott, instintualidade e
agressividade estão vinculadas entre si e estes dois aspectos terão que ser integrados pelo bebê
ao seu si-mesmo.
Ao elaborar sua teoria instintual, Winnicott esclarece que seu ponto de partida são as
idéias freudianas:
quase todos os aspectos do relacionamento entre pessoas totais foram abordados pelo
próprio Freud, e de fato é muito difícil atualmente dar a isto qualquer contribuição, a
não ser que se consiga fazer uma exposição original do que já é aceito. Freud fez por
nós toda a parte desagradável do trabalho apontando para a realidade e a força do
inconsciente, chegando à dor, à angústia e ao conflito que invariavelmente se
encontram na raiz dos sintomas, anunciando publicamente, de modo arrogante se
necessário, a importância dos instintos e o caráter significativo da sexualidade infantil.
Qualquer teoria que negue ou ignore estas questões é inútil. (1988, p. 36)
Para elaborar sua própria teoria instintual da sexualidade, Winnicott não mais se
sustenta na teoria do desenvolvimento do id, ou das funções sexuais, mas na teoria do
amadurecimento pessoal. O elemento a ser investigado está nas relações que o bebê
estabeleceu com as pessoas de seu ambiente, juntamente com uma elaboração imaginativa dos
instintos e das funções corporais dominantes.
instintualidade, o bebê vive uma grande excitação que o deixa agitado e que o
incita a buscar satisfação para o alívio dessa excitação.
O bebê só pode se recolher ao estado tranqüilo porque sua mãe permanece atenta às
suas necessidades, no papel de guardiã, prestes a atender às suas demandas assim que ele
necessitar de sua presença. Quando a mãe atende ao que o bebê solicita, ele tem sua
experiência de onipotência assegurada, o que o faz ser remetido a si próprio, aprendendo a ter
confiança em si. Sustentado pela mãe, o bebê pode voltar ao estado de não integração, sem
contato com o ambiente, descansado das demandas instintuais. Aqui, encontramos a matriz da
situação de ficar sozinho na presença de outra pessoa: as origens da capacidade de ficar só
estão na experiência do bebê de ficar sozinho na presença da mãe. Este paradoxo é possível
porque a relação que o bebê mantém com a mãe é especial, pois esta se coloca no papel de
assegurar a instauração de um ambiente benigno, acolhedor (1958g [1957], p. 29-36). O bebê
que vivencia o estado tranqüilo desenvolve-se de uma forma tal que ele possa ser, possa
tornar-se uma individualidade, vivendo a alternância entre as demandas instintuais e o estado
tranqüilo como uma experiência pessoal.
A base para a instintualidade tem que ser buscada nos estados excitados. A
vivência dos estados excitados tem uma origem na vida intra-uterina do bebê. No útero, a
motilidade46 do bebê permite-lhe mover seus membros corporais, experimentar o ambiente no
qual seu corpo está contido, o líquido no qual seu corpo se movimenta. Desse modo, ele
experimenta a vivência de um erotismo muscular. Nesses movimentos, o feto se depara com o
obstáculo constituído pelas paredes do útero, e estas lhe fornecem a resistência necessária
para que ele possa entrar em contato com um ambiente diferente daquele em que está imerso,
e naturalmente constatar a diferença entre ambos.
47 Aqui ‘agressivo’ é sinônimo de espontâneo. Este tema será tratado no item 4 deste capítulo.
189
O bebê, nesta fase, está em condição de incompadecimento, ou seja, ao atacar sua mãe,
não tem consciência de suas atitudes, não está concernido quanto às conseqüências de seu
amor instintual e do que ele gera na mãe-ambiente que o provê. O bebê incorporou o setting
criado pela mãe com tudo o que lhe é peculiar: seu cheiro, suas falas e silêncios, enfim o
modo como ela o trata. A mãe é amada por tudo que a constitui, pois ela já foi criada
anteriormente pelo bebê. A rotina do bebê permite-lhe que entre em contato com sua vida
instintual. Após ser alimentado, após devorar o seio que o nutre, o bebê precisa entrar em
repouso, de forma a aguardar a digestão. O bebê entra em estado de contemplação e, através
da elaboração imaginativa das funções corporais, vai se familiarizando com o que ocorre em
seu corpo.
Entregue aos ataques que empreende contra a mãe, o bebê descobre, paulatinamente,
que ela tem duas funções. Winnicott diz que,
Pelo contato estabelecido com sua mãe, o bebê descobre que, na verdade, ele não tem
duas mães, que a mãe do estado tranqüilo é a que ele ataca nas fases de tensão instintual, sua
mãe é mãe-ambiente e mãe-objeto. O papel que a mãe exerce é o de sustentar a situação no
tempo, e com esse ato ela possibilita ao bebê experimentar as relações excitadas, vivendo
também suas conseqüências. O bebê pode deixar-se levar por suas tensões instintuais em
todas as suas formas e descobrir os dois usos que pode fazer dela (1955c, p. 263).
Simultaneamente, o bebê percebe a identidade dos dois objetos, ou seja, a mãe tranqüila e a
mãe excitada; assim como também descobre a existência das idéias, das fantasias, do papel da
elaboração imaginativa das funções e da distinção entre fato e fantasia. O bebê descobre que a
fantasia se relaciona ao fato e que ambos não podem ser confundidos.
A mãe-ambiente precisa sobreviver, pois dessa forma o bebê obterá material mnêmico
necessário para a construção gradativa de seu mundo interno. Ao sobreviver, ela permite que
o bebê perceba que ela sobrevive aos seus constantes ataques instintuais. É necessário que o
bebê execute estes ataques muitas vezes, de modo que adquira o discernimento entre realidade
interna e realidade objetivamente compartilhada.
O bebê se angustia por imaginar o estrago que fez no corpo da mãe e o buraco que foi
deixado no lugar das riquezas que foram devoradas. Após se alimentar, a primeira luta se
trava no interior de seu si-mesmo: o bebê sente que há uma luta entre algo bom que mantém o
si-mesmo e algo que é mau, persecutório. Ao bebê resta esperar e aguardar o resultado do que
ocorre no processo de digestão. Finalmente haverá um equilíbrio entre os elementos
mantenedores e persecutórios. Neste processo imaginativo e equivalente ao que ocorre
191
A atitude da mãe é a de manter a situação, o que permite que o bebê elabore seu
trabalho a cada alimentação. Haverá uma elaboração corporal simultânea à que ocorre na
psique. Ao bebê resta esperar o resultado e ao final de seu dia de trabalho interno e externo
terá coisas a oferecer a sua mãe, que é capaz de discernir entre o que é bom e o que é mau. O
bebê pode oferecer desde um gesto, um sorriso ou um produto de excreção, e o que doa à mãe
inicia o ciclo do dar e do receber. Este gesto reparador, que é aceito pela mãe, apaziguará os
instintos excitados do bebê, permitindo que seus instintos possam ser elaborados.
O gesto de reparação permite ao bebê remendar o buraco que fez em sua mãe, pois ele
já sabe que ela sobrevive aos seus ataques. O resultado deste gesto reparador é um círculo
benigno que ensina o bebê a lidar com os buracos provocados em sua mãe. Quando o bebê
une as duas mães, a do amor tranqüilo e a do amor excitado, surge nele um sentimento de
culpa, e ao integrá-las em uma só, descobre o que seus ataques incompadecidos podem
provocar na pessoa amada. O bebê passa a ficar compadecido, responsável pelo seu objeto do
amor excitado e quanto às conseqüências no si mesmo da experiência excitada. A
conseqüência é importante para seu amadurecimento porque, ao perceber que se torna capaz
de desenvolver um si-mesmo estruturado, cheio de grandes riquezas, descobre também que o
objeto amado passou a ser visto como uma coisa valiosa. Descobre o que é o valor, uma
descoberta que desempenhará em sua vida um papel de extrema importância. Igualmente
importante é que, ao unir as duas mães, o bebê amadurece.
Nesta relação com a mãe, o bebê vai construindo as recordações das situações que
sentiu como boas e isto lhe permite estruturar o seu si-mesmo. Ele adquire a capacidade de
juntar as três vertentes do tempo: passado, presente e futuro.
interno e também que pode reparar o buraco provocado no corpo da mãe, o que lhe
traz um alívio imenso. Também descobre que pode atacar seu objeto amoroso, pois ele
sobreviverá e poderá ser reparado. Sente que pode aguardar os próximos ataques instintuais
com menos receio. Ele torna-se mais audacioso e se permite envolver em novas experiências
instintuais. Já está seguro de que sua mãe manterá os cuidados ambientais, o que aumentará
sua capacidade de reparação. Há uma liberação da vida instintiva. Estabelece-se um ciclo
benigno entre mãe e filho.
A fase do concernimento ensina o bebê a suportar fazer o que ele tem que fazer. A
culpa que ele sente é natural e lhe possibilita enxergar o efeito do que provoca no outro, mas
traz também a possibilidade de reparação, e essa tarefa o acompanhará durante toda a sua
vida. Ao perceber que era incompadecido, ele entra na fase de um pré-remorso e,
posteriormente, passará a sentir remorso. Ao perceber o que pode provocar no outro, ele
confirma o modo como usa os objetos de seu mundo, qual a melhor maneira de usá-los,
descobre que tem em si uma imensa e saudável fonte de relacionamentos. O surgimento do
sentido pessoal de moralidade surge nessa fase, uma moralidade que pautará os
relacionamentos deste indivíduo que está amadurecendo.
A confiança no ciclo benigno estabelecido entre mãe e filho traz o sentimento de culpa
e este sentimento, ao se relacionar com os instintos do id, se modifica, trazendo o
concernimento. O bebê se torna capaz de ficar compadecido e de se responsabilizar por seus
próprios instintos. A culpa, que se inicia com a junção das duas mães e se instala naturalmente
na relação, não vem de fora, ela advém da própria relação, que surgiu naturalmente entre
ambos. Um código de conduta se encontra presente desde que o bebê aprendeu a usar os
objetos da realidade externa.
Ao alcançar essa fase, o bebê descobre que pode ter um relacionamento saudável com
as outras pessoas e que pode, igualmente, desenvolver uma situação de intimidade. Afinal, ele
193
A grande conquista desse estágio é que o bebê, ao integrar seus ataques instintuais,
descobre que pode administrar os instintos que são sentidos como bons e maus. O bebê retém
os conteúdos maus por algum tempo, usando-os posteriormente nos momentos em que
precisar de raiva ou de ira. Os conteúdos bons são retidos de forma a também contribuir para
seu crescimento, para fazer reparações na situação em que o bebê sentiu que fez um mal. Ao
perceber-se concernido pelos atos que pratica, o bebê descobre quais as coisas que lhe dizem
respeito, descobre o que é de sua total responsabilidade e que ele precisa se haver com as
conseqüências de sua instintualidade. Ele descobre que ser um ser humano implica em se
apropriar de seus instintos, inclusive das demandas sexuais, e que isso lhe diz respeito. Tudo
isso é possível porque o bebê já é um ser humano inteiro. Como ser humano inteiro, pode
localizar as demandas instintuais e onde elas se localizam. Todos esses aspectos presentes na
conquista da instintualidade capacitam a criança a entrar na situação edípica (1955c, p.277).
Durante esse processo, ao ser tomado pelos instintos e pelo modo como eles se
manifestam em cada região corporal, o bebê pode elaborar o modo de funcionamento das
partes de seu corpo, que de início, ainda não é visto como dele. A experiência proporcionada
pela alternância entre os estados excitados e tranqüilos permitirá, entre outros aspectos, que o
bebê se familiarize com todo o seu corpo, inclusive com os órgãos sexuais.
Conforme já afirmamos, uma das maneiras pelas quais o indivíduo entra em contato
consigo próprio se vincula aos momentos em que é tomado pelas tensões instintuais, próprias
das fases de excitação. Nessas situações, há uma alteração na fisiologia do corpo que tem
associada em si algum tipo de idéia excitante. Estes estados permitem ao indivíduo uma
194
Diz Winnicott:
nos estágios iniciais de uma excitação – isto é, de uma mudança na fisiologia do corpo
que tem associada a si algum tipo de idéia excitante – é comparativamente fácil para o
indivíduo administrar a vida até que a excitação e seus efeitos tenham se dissipado.
Entender-se-á prontamente, contudo, que quanto mais longe a excitação avançar, mais
difícil será para o indivíduo acomodar a fase de clímax fracassado. (1969g, p.562)
3. Elaboração imaginativa
a fantasia é típica da criança e pode ser definida como uma elaboração imaginativa das
funções físicas. [...]:
O manejo materno adequado permitirá ao bebê entrar em contato com o seu corpo,
transformando-o em sua própria morada. A rotina, as experiências entre mãe e filho
permitirão a este último criar intimidade com um corpo que no início é externo a ele.
O início deste processo é pré-representacional, pois ele se inicia muito cedo na vida do
bebê. Aos poucos, o bebê toma conhecimento de si próprio na medida em que se familiariza
com as experiências corpóreas, sejam elas motoras, sensoriais ou instintuais.
Ao iniciar sua vida, ainda no útero, o bebê não sabe de si. Ao nascer, se tudo correr
bem, o bebê possui um corpo vivo composto por partes anatômicas que precisam ser
agrupadas num corpo pessoalizado. O processo de elaboração continua e a cada momento o
bebê vai se integrando numa unidade.
O ponto de partida é o de que o bebê nada sabe de si, ele está chegando ao mundo e,
para se constituir, precisa se apropriar de todas as experiências pelas quais está passando. Ele
possui um corpo que se move, que sente cheiros, que sente calor ou frio, que sofre a ação da
gravidade, mas do qual ele ainda não tem conhecimento. Nesta fase, o corpo do bebê é um
corpo solto, distribuído em partes que ainda não foram reunidas numa unidade. Cada órgão,
cada aparelho fisiológico, embora se mantenha em funcionamento, ainda não é reconhecido
pelo bebê como dele. É tarefa do ego fazer a integração dessas partes corporais, ou seja, do
corpo do bebê e da sua vitalidade física (Winnicott, 1988, p. 40). A psique possibilita ao bebê
fazer a elaboração imaginativa das funções corpóreas, dando um sentido pessoal ao que é
experienciado. Gradativamente, haverá uma integração dessas partes corporais, da vitalidade
física do bebê. Por meio do processo de integração, ou seja, das experiências instintuais e de
um manejo suficientemente bom, o resultado será um bebê integrado em si mesmo,
pessoalizado. Haverá uma transformação: de início, “o bebê é uma barriga unida a um dorso,
tem membros soltos e, particularmente, uma cabeça solta: [posteriormente] todas estas partes
são reunidas pela mãe que segura a criança e, em suas mãos, elas se tornam uma” (1969g, p.
568).
Nessa fase, o bebê está em condição de incompadecimento, e é tomado por todo tipo
de experiência, tais como a de ser amamentado, ser acalentado, ser tocado, ser movimentado
em todas as direções, etc, ou seja, todo tipo de contato que recebe de sua mãe terá que ser
elaborado imaginativamente em sua psique que começa a se constituir. A repetição das
198
A elaboração imaginativa das funções corporais contribui para que o bebê se aloje em
seu próprio corpo, e que, gradualmente, alcance a consciência de que tem em si uma
membrana limitadora que lhe permite saber que é um ser apartado do ambiente externo (1988,
p. 40). O bebê pode integrar o corpo e a psique. Ao ser tocado, o bebê tem os limites corporais
definidos. Este manejo (holding) realizado pela mãe promove o entrelaçamento e o
fortalecimento da coexistência entre a psique e o corpo. Isso revela que a constituição do
corpo é atravessada pela presença humana da mãe, num processo bom em que um corpo
biológico é humanizado.
Uma espécie de clímax pode ser obtida em qualquer lugar, mas em geral ele ocorre em
regiões específicas.
Todas estas tensões instintuais propiciarão ao bebê uma familiarização com todas as
partes de seu corpo.
À medida que se integra em seu corpo, que é o de um macho ou de uma fêmea, haverá
o encontro da criança consigo própria, em todos os aspectos de sua identidade corpórea. Ela
se reconhece sexualmente como ser humano do sexo masculino ou do sexo feminino. Para
conquistar essa identidade, o trajeto se inicia com uma elaboração imaginativa dos órgãos
relacionados com as funções digestivas, para finalmente chegar aos órgãos sexuais, num
processo que possibilita ao bebê sentir-se inteiro. O bebê de sexo masculino elaborará
imaginativamente um órgão sexual que é anatomicamente visível e proeminente, pronto para
ser exibido, mesmo que involuntariamente. Some-se a isto a característica de o pênis sofrer
ereções, tornando-se ainda mais visível (1986g [1964], p. 186). Por contraste, o bebê de sexo
feminino precisa elaborar um órgão sexual que se caracteriza por ser oculto. Este órgão, que
permanece resguardado, possui também a característica de ser oco. A menina deve elaborar
imaginativamente um órgão que poderá acolher, proteger e possibilitar o surgimento de um
novo ser humano. Ao aceitar os mistérios de seu órgão secreto, a menina poderá engravidar,
levar a gravidez a termo, ter filhos, tornar-se atraente aos meninos, desenvolver-se
corporeamente, envolta em atraentes mistérios para o mundo masculino (Winnicott, 1988, p.
43).
Quando Winnicott afirma que seu objeto de estudo é a natureza humana, isso implica
no desenvolvimento do tema da agressividade, uma vez que ela é intrínseca à natureza do ser
humano. Isso não significa que a apropriação da agressividade pelo indivíduo seja automática,
pois ela está diretamente ligada à forma como o ambiente a recebe. Atitudes como as de
aceitação ou rechaço influenciarão na assimilação da agressividade pelo indivíduo. As
condições de integração da agressividade estão diretamente ligadas à necessidade de que o
ambiente ofereça as condições para que ela seja integrada pelo indivíduo à sua personalidade
total e que possa ser experimentada por ele. Uma vez integrada, ela se torna um dos elementos
que possibilitam ao indivíduo buscar o contato com outros seres humanos, se encontrar com o
202
mundo e com o que faz parte deste. A conquista dessa capacidade permite ao
indivíduo chegar à realidade externa por meio de uma destrutividade intrínseca à natureza
humana, assim como permite ao indivíduo amar e odiar pessoas que estejam nessa realidade.
[...] e uma teoria da agressividade que também se revela falsa, porque deixa de lado
duas fontes vitalmente importantes da agressão: aquela inerente aos impulsos do amor
primitivo (no estágio anterior ao concern, independente das reações à frustração), e
aquela pertencente à interrupção da continuidade do ser pela intrusão que obriga a
reagir. (1988, p. 133)
Esse rompimento com o pensamento freudiano já foi anunciado no final dos anos
1940, quando ele sustenta que há “uma voracidade teórica ou um amor-apetite primário que
pode ser cruel, doloroso e perigoso, mas só o é por acaso. O objetivo do bebê é a satisfação, a
paz de corpo e de espírito” (1957d [1939], p. 88). Este ‘amor-apetite’ ao qual Winnicott se
refere pode ser observado nas manifestações dos bebês ao mamar, quando eles se mostram
vorazes. Essa manifestação do bebê revela a fusão de amor e agressão. Quando ataca
vorazmente o que encontra no mundo, o bebê manifesta seu amor por ele. Estes aspectos estão
vinculados à sexualidade, pois esta implica que, impulsionado pela instintualidade, o bebê
busque objetos, embora neste início de sua vida o bebê não tenha consciência do que isso
signifique.
Winnicott esclareceu aos seus leitores que muitas vezes as pessoas usam o termo
‘agressivo’ quando deveriam usar ‘espontâneo’ (1958b [1950], p. 217). Outro esclarecimento
feito por ele foi o de que a agressividade possui diferentes significados e formas de
manifestação e que uma compreensão mais acurada do tema deve ser remetido ao estudo de
suas raízes.
Winnicott aponta que o estudo da agressividade deve ser considerado em seus estágios
inicial, intermediário e na personalidade total. A perda da agressividade no estádio inicial
empobrecerá a capacidade do indivíduo de buscar os objetos e “se a agressão é perdida nesse
estádio do desenvolvimento emocional, haverá também algum grau de perda da capacidade de
amor, isto é, de relacionar-se com os objetos” (1958b [1950], p. 206).
Isso indica que o bebê ainda não tem maturidade para ser agressivo, e que isso será
possível apenas no estágio do concernimento. Conforme foi apresentado no item ‘2.2. estado
excitado’, o bebê é tomado por impulsos gerados pelo seu estado de estar vivo. É nessa
vitalidade que se encontra a raiz da agressividade.
Nesse estágio inicial, o bebê está entregue à vitalidade que o impulsiona aos
movimentos. O bebê é acossado por dois tipos de impulsos, um que deriva da tensão
Nesta fase, duas coisas acontecem com o bebê: ele está entregue às tensões instintuais
e ele tem a necessidade de emitir um gesto em direção ao mundo. Então, a necessidade do
bebê de buscar algo em algum lugar pega carona na tensão instintual. Esse gesto do bebê tem
um caráter de urgencialidade. Se esse gesto for compreendido e aceito por sua mãe, sua
continuidade de ser não será interrompida. (1988, p. 100) A motilidade está presente nos
movimentos realizados pelo bebê quando ele está no útero materno. O bebê movimenta
braços e pernas e isso provoca o encontro com as paredes uterinas, que oferecem oposição.
Desse modo, ele descobre o ambiente e essa descoberta se estenderá após o nascimento, com
a manifestação desses movimentos (1958b [1950], p. 216). O bebê não tem um motivo para se
movimentar e “o que existe em toda criança é uma tendência para movimentar-se e obter
alguma espécie de prazer muscular no movimento, lucrando com a experiência de mover-se e
dar de encontro com alguma coisa” (1964d, p. 233).
4.2. A motilidade
[...] ser capaz de gastar o máximo possível de motilidade nas experiências do id. [...]
No padrão da experiência do id de qualquer bebê, existe x por cento de motilidade
205
O bebê, quando saudável, gasta parte de sua motilidade nas experiências instintivas. O
excesso de motilidade será gasto na medida em que o bebê encontrar a oposição advinda do
mundo externo, ou seja, ao encontrar resistência do mundo externo. Nos movimentos
corporais em que encontra o que é externo a ele, o bebê pode ter uma experiência real. Essa
oposição é condição essencial para dar realidade ao movimento do bebê. É papel do ambiente
facilitar o gesto do bebê, pois o potencial agressivo pessoal depende da quantidade de
oposição que ele encontra. Se a oposição encontrada for adequada, haverá a fusão da
motilidade com a tensão instintual. Como conseqüência, isto facilitará a elaboração
imaginativa das funções corpóreas, o fortalecimento psico-somático e a integração do si-
mesmo do bebê. Mas, se a oposição encontrada for excessiva, o impulso do bebê é inibido,
prejudicando a fusão da motilidade com a experiência instintual.
Winnicott apresenta três modos pelos quais a motilidade é experienciada pelo bebê.
No modo saudável, o ambiente é descoberto e redescoberto pelo bebê a cada incursão
empreendida por ele, isto é, “o indivíduo se desenvolve a partir do centro e o contato com o
meio ambiente é uma experiência do indivíduo” (1958b [1950], p. 211). Isso é possível
porque o bebê está sendo bem cuidado por uma mãe suficientemente boa que se adapta às
necessidades do bebê. Nesse padrão, o indivíduo passa a existir de modo saudável, o que lhe
permitirá dar sentido às demandas instintuais. Temos aqui o início da distinção entre o eu e
não- eu.
O terceiro modo é o mais grave, pois ao bebê nem resta a possibilidade do descanso,
tamanha é a invasão ambiental. Não existe sequer a possibilidade de um isolamento. O bebê
somente poderá se desenvolver a partir da casca e não do cerne. O resultado é a criação de um
falso si-mesmo patológico (1958b [1950], p. 212).
Nestes dois últimos padrões, a doença já está instalada, pois a motilidade decorrerá de
uma invasão. (1958b [1950], p. 212). O bebê existe porque é invadido não porque quer existir
por si próprio.
quando não há saúde neste estágio inicial, é o meio ambiente que invade e a força vital
é absorvida pelas reações à invasão, ocorrendo um resultado oposto ao firme
estabelecimento inicial do eu. No caso extremo [no terceiro], quase não se
experimentam impulsos, a não ser como reações e o eu não é estabelecido. Em vez de
seu estabelecimento, encontramos um desenvolvimento baseado na experiência da
reação à invasão e surge um indivíduo que chamamos falso porque não há
impulsividade pessoal. Neste caso, não há fusão dos componentes agressivo e erótico,
já que o eu não está estabelecido quando as experiências eróticas ocorrem. O bebê
vive porque foi atraído pela experiência erótica, porém, além da vida erótica, que
nunca parece real, há uma vida puramente reativa e agressiva e que dependente da
experiência de oposição. (Winnicott, 1958b [1950], pp 216-7)
Ao observar as condições do bebê em seu início de vida, Winnicott apontou que ele, o
bebê, ainda não sabe de si, ainda não tem um eu constituído, portanto, não pode ser
responsabilizado pelas suas ações, ou seja, pelos ataques desferidos contra sua mãe. O bebê
está entregue às tensões instintuais, próprias dos estados excitados, experienciando o que
Winnicott denominou de ‘voracidade teórica’ – amor apetite primário (1957d [1939], p. 88).
Para Winnicott, no início da vida do bebê a agressividade é uma parte do apetite do bebê e
estará presente no ato de comer.
Como é extremamente imaturo, o bebê ainda não sabe que a mãe que ele ataca nos
momentos em que é tomado pelos ataques instintuais é a mãe que cuida dele nos momentos
em que ele experimenta o estado tranqüilo. O bebê ataca a mãe movido por um impulso
amoroso primitivo: ele não tem a intenção de magoá-la ou destruí-la. Como ainda é imaturo,
ele não sabe bem de onde vêm essas tensões e precisa se haver com elas. Afinal, “as
exigências instintivas podem ser ferozes e assustadoras e, a princípio, podem parecer à criança
como ameaças à existência” (1949k, pp. 80-1). Quando se tornar mais amadurecido, ele
perceberá suas ações e procurará um modo de repará-las.
O bebê, por seu lado, tem necessidade de desferir estes ataques, afinal ele está vivo,
tem impulsos instintuais e precisa realizar uma ação de modo a encontrar gratificação. Do
lado da mãe, a forma como ela recebe estes ataques será fundamental para a integração dessa
208
cada bebê é capaz de ter uma existência pessoal, e assim começa a construir o que
pode ser chamado de continuidade do ser. Na base dessa continuidade do ser o
potencial herdado se desenvolve gradualmente no bebê. Se o cuidado materno não é
suficientemente bom então o bebê realmente não vem a existir, uma vez que não há a
continuidade do ser; ao contrário, a personalidade começa a se construir baseada em
reações a irritações do meio. (1960c, p.54)
49 Este caso foi apresentado por Winnicott no capítulo 28 do livro Explorações psicanalíticas.
50 Apesar de haver vínculos entre tendência anti-social e comportamento sexual compulsivo, esse tema
não será desenvolvido, visto que não constitui o foco deste estudo.
209
A característica dessa fase está na desilusão que o bebê sofre, que é conseqüência da
desadaptação da mãe às necessidades infantis. Ao perceber que a mãe não está mais à sua
total disposição, a mãe pode ser atacada e deve suportar esta situação. Essa desadaptação ao
bebê é necessária porque, em condições de saúde, a mãe se volta para outros interesses que
não o seu filho. Isto vai gerar algumas falhas da parte dela, embora estas já possam ser
suportadas pelo bebê.
Se tudo correr bem, o bebê sentirá este novo momento como uma ampliação de seu
campo experiencial, aumentando seu contato com o mundo. O próprio bebê inicia o auto-
desmame, acompanhado pela mãe. É possível que haja alguma dificuldade, pois o bebê
percebe que está perdendo algo bom. A mãe deve ser corajosa para suportar possíveis reações
de desagrado e as idéias que acompanham essa situação, pois, de fato, a mãe não é mais uma
pessoa que atenda a todas as necessidades infantis. Nessa passagem pelo desmame, o bebê
perde as ilusões e prossegue em seu processo de amadurecimento. Afinal, desde há muito
tempo ele vem sofrendo traumas saudáveis através das falhas de sua mãe. O bebê já descobriu
que o meio ambiente do qual faz parte não é parte de si, pois ele está saindo do estágio
subjetivo. Sua mãe lhe revelou que sua onipotência era uma experiência temporária e, ao
ajudá-lo no processo de desmame, ela mais uma vez produziu nele um trauma necessário
(1989d [1965] p. 146). Mas o bebê pode ter dificuldades no auto-desmame, pode não
apresentar a agressividade necessária, e é a mãe que precisa provocar o desmame, o que gera
muita raiva no bebê. Ele atacará esta mãe e ela precisa tolerar os ataques do bebê, vendo-os
como manifestação natural de quem está perdendo algo bom.
Outra característica fundamental nessa fase de dependência relativa está numa maior
sofisticação do funcionamento mental. As falhas nos cuidados maternais farão com que a
mente seja ativada e ajude o bebê a lidar com falta de adaptação da mãe. Desse modo, como o
bebê já está mais amadurecido, ele já pode contar com seu intelecto para poder lidar melhor
com as falhas ambientais, assim como na ampliação de seu campo de interesses (1988, p.
139).
Esse é um dos conceitos mais difíceis da obra de Winnicott. Ele próprio sabia disso e
desenvolveu esse conceito numa fase tardia de sua atividade profissional, em 1968. Winnicott
afirma que foi possível chegar a esse conceito após muitas décadas de trabalho e que tal
conceito somente pode ser compreendido se for considerado no interior de seu próprio
pensamento, ou seja, a teoria do amadurecimento humano (1969i [1968], p. 219). O ponto de
partida é o de que de início o bebê vive em um mundo subjetivo no qual a realidade objetiva
não incide, o que revela que o bebê não sabe desta realidade e nem do que ela se compõe.
Para que o bebê possa usar os objetos, é necessário que a mãe tenha apresentado ao
filho o mundo, de forma gradativa, promovendo o estado em que o bebê é esse seio ao qual
ele é apresentado. Se no início o bebê é o seio, isso se transforma na medida em que pequenas
falhas maternas passam a acontecer. Essas falhas maternas promovem uma desadaptação
gradativa. O resultado é que o bebê transita entre uma realidade subjetiva e quase objetiva,
mas como ele não pode permanecer nesta situação indefinida, o processo maturacional vai na
direção de fazer com que o bebê descubra a existência de uma realidade independente de seu
mundo subjetivo. Ele tem maturidade suficiente para se deparar com este mundo objetivo,
pois já passou por muitas experiências que lhe possibilitam que nesse momento ele esteja
pronto a aprender a usar o que encontra na realidade objetiva.
51 Elsa Oliveira Dias afirma que “até chegar a este ponto, estamos ainda no campo do que se chama
“relação de objeto”, embora, nesta fase, a expressão seja imprecisa, dado que, com os objetos subjetivos, não há
propriamente relação por ainda não haver dois entes’ (Dias, 2003, p. 244).
212
quando falo do uso de um objeto, entretanto, tomo a relação de objeto como evidente e
acrescento novas características que envolvam a natureza e o comportamento do
objeto. Por exemplo: o objeto, se é que tem de ser usado, deve ser necessariamente
real, no sentido de fazer parte da realidade compartilhada e não um feixe de projeções.
(1969i [1968], p.88)
O bebê realizará essa tarefa na medida em que destruir a mãe-objeto, o que permitirá
entrar em contato com a realidade objetivamente compartilhada. Não se pode esquecer que o
bebê está às voltas com os ataques instintuais que ele desfere contra a mãe-objeto, ainda sem
saber que ela é a mãe-ambiente. A mãe é destruída pelo bebê inúmeras vezes, pois ele se
relaciona com ela como se ela fosse um objeto subjetivo. O termo destruição é utilizado por
Winnicott para designar o ato do bebê de expulsar o objeto de seu mundo subjetivo, o que
resulta na destruição desse objeto que é subjetivo. Mas essa é uma destruição sem raiva (no
anger) O bebê destrói o objeto não porque sente raiva, mas porque precisa destruí-lo para
chegar à realidade. Diz Winnicott:
o destino desta unidade de impulso não pode ser enunciado sem referência ao meio
ambiente. O impulso é potencialmente “destrutivo”, mas ele ser destrutivo ou não
dependente de como é o objeto; o objeto sobrevive, isto é, mantém o seu caráter ou
reage?
o sujeito diz ao objeto: ‘eu te destruí’, e o objeto está ali, para receber a comunicação.
De agora em diante, o sujeito diz: ‘eu te destruí. Eu te amo. Você tem valor para mim
porque você sobreviveu quando eu te destruí’. Enquanto eu estou te amando, estou o
tempo todo te destruindo na fantasia’ (inconsciente).” (Winnicott, 1969i [1968], p. 90)
215
Assim, quando o objeto sobrevive, ou seja, quando a mãe sobrevive, o bebê vai
encontrar a realidade que será percebida objetivamente. Desse encontro há uma frustração
porque a experiência de onipotência não pode mais se sustentar. É exatamente essa frustração
que ajuda o bebê a descobrir a externalidade. A realidade objetivamente compartilhada surge
em contraposição ao mundo subjetivo do bebê. Quando isso ocorre, temos um
desenvolvimento emocional saudável. Essas experiências se tornam reais e se fundem com as
experiências eróticas musculares gerando no bebê a necessidade de encontrar um objeto
externo e não apenas um objeto que o satisfaça. Nesse aspecto encontramos a grande
diferença entre o pensamento de Winnicott e o pensamento freudiano no tocante à chegada a
realidade objetiva, ou, no jargão psicanalítico, ao princípio de realidade. Winnicott esclarece
que:
objetivamente percebido, o qual pode ser usado de forma concreta. Quando a mãe
sobrevive, ela permite que seu filho troque a experiência da subjetividade pela possibilidade
concreta de transitar e usufruir os objetos reais que estão na realidade externa. Desta forma, o
mundo que ele criou onipotentemente passa a ser real, numa fusão e coincidência de suas
fronteiras.
A grande conquista realizada pelo bebê lhe possibilita traçar as fronteiras entre ele e o
mundo externo. O bebê alcançou uma individualidade e sabe que há um limite entre ele
próprio e o mundo, que há um EU e um NÃO-EU, que ele pode se responsabilizar pelo que
faz à pessoa, que agora é vista como uma pessoa inteira (1988, p. 68).
o pré-requisito para este amor é o mesmo que para o exercício da genitalidade que se
quer madura, e que não é apenas um exercício solitário; também nesta é preciso que o
objeto seja percebido como externo e separado do indivíduo. Ou seja, também o amor
é constituído no interior do processo de amadurecimento. (2003, p. 251)
Outro aspecto a ser destacado é o fato de que a vida sexual se refere ao pleno
envolvimento entre pessoas inteiras que têm que estar na realidade concreta, objetiva. Na fase
de uso do objeto a conquista promove uma mudança no sentido de realidade de objeto, há
uma mudança de uma realidade subjetiva para uma realidade objetiva. É na realidade objetiva
que estão pessoas e objetos que podem ser usados. Pessoas inteiras podem usar o que
encontram na realidade compartilhada e esse uso se dá também na modalidade sexual. Sem
217
Uma das novidades do pensamento winnicottiano está no fato de que ele aponta a
relação da destruição do objeto com a capacidade para o amor e a vida sexual. Isso se
encontra na idéia de que: “no curso do crescimento do indivíduo, torna-se possível à
destruição ter representação adequada na fantasia (inconsciente), que é uma elaboração do
funcionamento corporal e experiências instintuais de todos os tipos” (1989a [1965], p.231).
Com esta afirmação, Winnicott nos mostra que uma sexualidade madura
está vinculada à destruição do objeto e o quanto a fantasia sexual total abarca idéias
destrutivas. Pode-se afirmar, então, que a sexualidade madura tem que passar pelas conquistas
da fase do uso do objeto.
Podemos pensar que a origem do uso de objeto no modo excitado encontra-se nos
primórdios, posto que ela é tomada por tensões instintuais já no início de sua existência.
Segundo Winnicott, este é o modo mais evidente pelo qual o indivíduo toma contato com seu
corpo. De tempos em tempos a pessoa é tomada pelos instintos. Uma vez excitado há um
ritmo que levará ao clímax, seja na ingestão do alimento, na liberação do material excretório,
ou na excitação sexual que leva ao orgasmo genital ( 1969g, pp 561-2).
Ao ser tomada pela excitação, a criança experiencia um dos modos de habitar seu
corpo. Ao experimentarem tais excitações na presença de outras pessoas, as crianças têm a
possibilidade de se apropriarem dessas experiências como algo integrador, que pode
contribuir para o conhecimento e enriquecimento dela própria, criança.
Como é que um bebê se entende com seu próprio corpo? Em parte, experimentando
excitação. Mas os meninos que experimentam ereções e as meninas que têm
contrações vaginais quando se relacionam com certas pessoas, com o amor, ou com o
funcionamento do corpo, estão numa posição diferente daquela de meninos e meninas
que não vivenciam tais experiências integrativas. Muito vai depender da atitude dos
pais em relação a todos esses fenômenos naturais. Alguns fracassam em espelhar
219
aquilo que existe; outros estimulam aquilo que existe apenas de forma
embrionária. (1986g [1964], pp 185-6)
Assim, quando o bebê se apossa da experiência de modo excitado, ele pode retomar as
lembranças das vivências corporais um dia já experimentadas e que o ajudarão agora a buscar
outro ser humano e com ele poder se relacionar sexualmente.
Para tanto, é essencial que o indivíduo saiba de si, saiba discernir o tipo de excitação
que o acomete e que no caso de excitação sexual, o levará a buscar outra pessoa de modo a
obter o prazer na relação.
A mudança ocorre porque o bebê se dá conta do que ocorre consigo próprio, ou seja,
ele descobre que há um eu separado de todo um não-eu que está na realidade externa. Isso lhe
possibilita descobrir que o eu dos estados tranqüilos é o mesmo eu dos estados excitados e
que a mãe com a qual ele se relaciona no estado tranqüilo é a mesma mãe que ele ataca
quando é acossado pelos instintos.
A criança sente culpa quando constata que ataca a pessoa que lhe oferece um mundo
de riquezas. Ela descobre que é destrutiva com quem é bom para ela e o resultado é uma
enorme dificuldade para aceitar isto. Paradoxalmente, é uma agressão movida pelo amor. Diz
Winnicott:
Para resolver essa situação, a criança emite pequenos gestos de reparação, gestos que
constituirão um ato de atacar e remendar os estragos feitos. Esses gestos incluem pequenos
presentes à mãe, tais como suas fezes, um olhar carinhoso, um sorriso num momento
específico. À mãe cabe aceitar estes gestos reparadores, mostrando à criança que a
agressividade e destrutividade liberadas são acolhidas. Esta atitude da mãe permite à criança
tornar-se consciente de sua destrutividade, de uma destrutividade advinda de um amor
primitivo.
A assunção desta agressividade pelo bebê lhe permitirá entrar em contato com todos
os aspectos presentes em si próprio simplesmente pelo fato de que ele está vivo e, por isso,
pode experimentar todo tipo de atitude. Isso significa que seu corpo está sempre prestes a
passar por diferentes tipos de sentimentos e idéias, inclusive as destrutivas.
Outra função importante da figura paterna está no fato de que ele “[...] como indivíduo
do sexo masculino, torna-se um fator significativo” (1969c [1968], p. 141). O pai precisa
entrar na vida do bebê de inúmeros modos. Se no início ele é uma parte da função materna,
quando ele entra como o terceiro, como pessoa total, ele contribui de muitas maneiras para o
crescimento infantil (1989xa [1969]). Até então o bebê estava acostumado com um colo
materno, e um colo paterno é percebido pela criança de acordo com as características que lhe
são próprias. É diferente, para o bebê, a experiência de ficar no colo de quem tem um corpo
cujas formas físicas são femininas. Quando o pai pega um filho no colo, este tem
possibilidade de elaborar imaginativamente o seu próprio corpo em contato com alguém que
tem formas maiores, mais músculos, enfim, tudo o que constitui o corpo paterno.
221
A criança tem que administrar a luta entre os aspectos construtivos e destrutivos de sua
personalidade, uma luta que está ocorrendo em seu mundo interno. Neste estágio, a criança
entra numa relação triangular, ou seja, ela pode viver o estágio das relações interpessoais.
(1988, p. 54) Ela pode se relacionar com outro ser humano como uma pessoa inteira; outra
característica desse estágio é a possibilidade de poder lidar com os conflitos internos
provenientes dos vínculos objetais. Como um ser humano inteiro, a criança tem um mundo
interno rico, ela experimenta muitos relacionamentos interpessoais e, na brincadeira e através
da imaginação, pode experimentar sentimentos intensos.
A criança tem que lidar com a agressividade necessária para solucionar o conflito de
lealdade ao qual é submetida (1986d [1966] p. 137). Ela vive um conflito de lealdade em
relação à mãe, um conflito inevitável e inerente ao desenvolvimento infantil, mas que é
desgastante. Como está descobrindo o pai, ela busca um relacionamento com ele, e termina
por estabelecer com seu genitor uma atitude que corresponde ao relacionamento vivido
anteriormente com a mãe. A criança desenvolve uma atitude amorosa com o pai, uma atitude
que termina por envolver temor e ódio em relação à mãe. Cabe à mãe compreender os
conflitos de seu filho e permitir que ele os experiencie, sem esperar que ele lhe seja fiel.
Para Winnicott,
Poder ver o mundo em consonância com o ponto de vista paterno não significa que a
criança esteja sendo desleal para com sua mãe, significa apenas que ela pode acrescentar uma
outra visão ao seu próprio mundo, o que é uma expansão. Mas, até conseguir resolver este
conflito, a criança é muito ameaçada em seu mundo.
O menino apaixona-se por sua mãe e utiliza seu pai como uma forma de controlar seus
instintos. Mas, como estes são muito poderosos, o menino precisa criar outros recursos para
lidar com essa situação de ansiedade. Através de uma identificação com o pai, o menino
obtém uma potência por procuração, e posteriormente, na puberdade, a própria potência será
recuperada.
Como se coloca na situação de rival do pai, o menino se defronta com a idéia da morte
deste, além de se defrontar com a idéia de sua própria morte. Também tem que enfrentar o
temor da castração. Como seu envolvimento com a mãe é intenso, coloca-se como totalmente
responsável por ela, disposto a satisfazê-la em todas as suas necessidades.
Na fase genital, o menino pode ter a fantasia da penetração no corpo feminino, mas
esse ato não pode ocorrer efetivamente. Há um desencontro entre fantasia e realidade, pois ele
precisará esperar até a adolescência para realizar essa penetração. Essa impossibilidade
provoca a impotência no menino, o sentimento de que ele não consegue ser como ele deve
ser. O pai deve tolerar a rivalidade que surge entre ambos.
As meninas passam por ansiedades semelhantes às dos meninos. A menina, por ter a
possibilidade de uma identificação com a figura feminina como ela mesma, entra em conflito
com a mãe, pois a imagem desta está associada a carinhos e satisfações. Todos esses
223
Neste momento de vida da criança, é importante que a relação triangular repouse numa
estrutura familiar saudável, pois a solução para a ansiedade infantil será através da distinção
entre a realidade e a fantasia. Como os pais permanecem juntos, a criança pode suportar os
sonhos que envolvam as idéias de separação e morte de um deles. É essencial que os pais
possam distinguir entre fato e fantasia, o que ajudará a criança a atravessar este momento
difícil.
O tempo todo, durante todos os estágios anteriores, é a família, em especial a mãe, que
sustenta a situação propiciando um ambiente suficientemente bom para que a criança
amadureça. É necessário que a família se mantenha estruturada e dando o suporte para que a
criança consiga organizar suas demandas. No triângulo familiar harmonioso, a experiência
humana se constrói, num jogo de construção que envolve a destruição inerente à natureza
humana.
se você fizer tudo o que possível para promover o crescimento pessoal de seus filhos,
você vi ter de ser capaz de lidar com resultados incríveis. Se seus filhos acabarem se
224
A entrada na puberdade faz com que o corpo da criança passe por inúmeras alterações
biológicas que incidem em seu comportamento, em especial com as demandas instintuais com
as quais ela tem que lidar. A integração psico-somática realizada na primeira infância terá que
ser rearticulada. Ocorre um novo processo de personalização. O adolescente, em algumas
ocasiões, se desconectará de seu corpo, numa situação de perda dos limites corporais.
Tal como o bebê, o adolescente se apresenta como um ser isolado. Ele mantém seu
isolamento pessoal com o intuito de preservar sua identidade, como uma forma de não violar
seu si mesmo. Com a atitude de isolamento ele também preserva sua fragilidade. Ele se isola
para não ser encontrado antes de estar em condições de ser encontrado e de experienciar
situações próprias das relações interpessoais profundas. Uma forma de se defender é viver em
grupos que procuram afinidades e que mantém a identidade dos elementos que o compõem.
Tudo isto é extremamente desgastante para ele.
Na área sexual, o adolescente vivencia conflitos intensos, pois seus instintos sexuais
estão nesse momento investidos num corpo já pronto para incorporá-los, embora sem muitas
condições para isso. As atividades sexuais são permeadas pela característica de isolamento e
pela necessidade de se associarem para manter interesses mútuos. As dúvidas sobre a vida
sexual são muitas. A identidade sexual ainda não se definiu completamente, embora meninos
e meninas tenham que se relacionar com as mudanças provenientes da própria puberdade. Na
retomada de seu crescimento maturacional, na reorganização de seu si-mesmo, este terá que
acomodar a identidade sexual que se completará nesse estágio. Gradativamente, o adolescente
chegará à maturidade sexual, incluindo a fantasia sexual inconsciente. A constituição da
identidade sexual se concretizará apenas no final da adolescência, quando o jovem terminar
de reorganizar seu desenvolvimento emocional. Em meio aos inúmeros conflitos que tem que
resolver, a questão da escolha objetal consiste em mais uma das situações com as quais ele
tem que lidar, pois muitos anos são necessários para que a escolha objetal amorosa seja
resolvida com tranqüilidade (1962a [1961], p. 157).
preestabelecido. Ele ainda não sabe no que se transformará, o que traz para ele
uma sensação de irrealidade. As atitudes e soluções radicais constituem uma forma de lidar
com essa irrealidade.
Uma nova descoberta assusta o adolescente: ele descobre que é capaz de matar. Se na
primeira infância existia a fantasia da morte, agora ele se vê às voltas com a fantasia de
assassinato. O adolescente descobre que o que era possível apenas na fantasia, agora é
passível de realização. Seu processo de amadurecimento implica em descobrir que crescer
significa tomar o lugar dos pais. Na fantasia inconsciente, a agressividade está sempre
presente e é própria do crescimento (1962a [1961], p. 157).
Todo este período conturbado só pode ser solucionado com a passagem do tempo.
Resta ao adolescente apenas esperar. Este processo não pode ser nem acelerado nem
postergado. Somente com o passar do tempo o adolescente chega ao estágio adulto.
Gradativamente ele se torna capaz de se identificar com as figuras parentais e com a
sociedade como um todo, sem necessidade de uma adoção de falsos valores ou de uma
submissão a um código valorativo que não corresponda à sua forma de pensar.
Para que isso ocorra, a tarefa dos pais e da sociedade é compreender as contradições
próprias deste estágio. Com uma postura segura permitem que o adolescente encontre seus
instintos, os quais, ao serem integrados, serão assimilados, autocontrolados e finalmente
contribuirão construtivamente para a socialização. A agressividade exercerá um papel
fundamental neste estágio de vida.
Chegar à vida adulta de modo saudável implica em usar de todo o potencial agressivo
do indivíduo, potencial para a construção e manutenção da saúde. Como qualquer outro
estágio do processo maturacional, não é suficiente chegar à vida adulta. O indivíduo deve
226
tomar todos os cuidados necessários para que possa manter sua vida, sabendo que
agora ele já não está mais submetido ao ambiente, embora ainda dependa dele e das outras
pessoas que nele estão.
digamos que um homem ou uma mulher saudáveis sejam capazes de alcançar uma
certa identificação com a sociedade sem perder muito de seus impulsos individuais ou
pessoais. É claro que deve existir alguma perda no sentido de controlar o impulso, mas
uma identificação extremada com a sociedade acompanhada de perda do si-mesmo, e
da importância do si-mesmo, não é normal de modo algum. (1971f [1967], p. 27)
5. A integração psico-somática
Para Winnicott, a base para a psico-somática deve ser buscada na anatomia do que é
vivo, em um corpo que gradualmente é integrado se tudo transcorrer bem no desenvolvimento
do indivíduo.
Pode parecer irrelevante dizer que há uma integração psico-somática no ser humano e
que seria desnecessário apontá-la como um dos fundamentos da teoria winnicottiana da
sexualidade, posto que todo ser humano tem um corpo. Porém, ter um corpo não significa que
o indivíduo tenha posse dele, que ele se sinta firmemente alojado nele. Winnicott adverte que
no campo psico-somático pode-se deparar com casos em que a relação entre psique e soma foi
enfraquecida ou não se constituiu (1988, p. 27).
5.1. A psique
aqui temos um corpo, não se devendo distinguir entre a psique e o soma, exceto de
acordo com a direção a partir da qual se está observando. Pode-se observar o corpo em
desenvolvimento ou a psique em desenvolvimento. Suponho que a palavra psique aqui
signifique a elaboração imaginativa das partes, sentimentos e funções somáticas, isto
é, do estar vivo físico. (1954a [1949], p. 244)
Um bebê em desenvolvimento está submetido tanto aos cuidados corporais que recebe
quanto à sua herança fisiológica, em especial de seu funcionamento cerebral e esses aspectos
estão presentes na constituição da psique. Segundo Winnicott, “esta elaboração imaginativa
depende da existência e do funcionamento saudável do cérebro, especialmente de algumas de
suas partes” (1954a [1949] , p. 244).
A importância da psique está no fato de que ela se tornará o elemento responsável pelo
relacionamento do indivíduo consigo mesmo. Ela conferirá ao indivíduo a possibilidade de
instauração de sua história pessoal, por constituir gradativamente a temporalidade humana.
transformar numa criatura com algo que parece ser capaz de fazer
escolhas. (Winnicott, 1988, pp 28-29)
Para Loparic, a psique “não é uma substância ou uma instância, e sim um modo de
operar da natureza humana” (2000, p. 362).
5.2. O soma
Quando afirma que a base para a psico-somática é a anatomia do que é vivo, Winnicott
revela que o ponto de partida de seu pensamento é que o indivíduo tem um corpo cheio de
vitalidade e que se transforma a cada fase de sua existência. O soma é o corpo vivo. Essa
anatomia viva é a base da vida, ou seja, “ a base para a psico-somática é a anatomia do que é
vivo, que chamamos de fisiologia. Os tecidos estão vivos e fazem parte do animal como um
todo, e são afetados pelos estados variáveis da psique daquele animal” (1988, p. 26).
Toda a existência humana é firmemente assentada nesse corpo. Isso se deve ao fato
inegável de que “[...] em termos de evolução, o soma foi o primeiro a chegar” (1988, p. 19).
Ao nascer, o ser humano herda um aparato fisiológico que tem uma autonomia e
temporalidade próprias que se revelam no desenvolvimento corpóreo. O corpo de um bebê é
diferente do de uma criança de três anos, que é diferente de um adolescente de quinze, e assim
sucessivamente. Gradativamente, o bebê se apropria de seu corpo quando o elabora
imaginativamente.
Este corpo vivo está entregue às tensões instintuais, tensões que posteriormente se
transformarão em instintos, quando integrados. Entregue às experiências corporais, o bebê
tem sua vida enriquecida e seu corpo se torna “[...]algo em que dá gosto viver” (1949l, p. 44).
Este corpo vivo também é frágil e seu resguardo e cuidado é necessário durante toda a
vida do indivíduo. Este corpo é que torna possível ao sujeito emitir o gesto em direção ao
mundo e nele se alojar. Seus aspectos de animalidade: andar, comer, evacuar, respirar, etc.,
são tributários de um estar vivo que confere sentido a um corpo cheio de possibilidades.
231
Quando fala em ser humano inteiro (whole person), Winnicott está se referindo à sua
idéia de que o ser humano é constituído pelo soma e pela psique, que o ser humano é psique-
soma.
Quando elabora seu esquema corporal, o indivíduo entra em contato com a totalidade
de seu corpo. Estar vivo implica em se apropriar do corpo, mas isto não é suficiente. Há um
processo gradativo em que o bebê faz uma elaboração imaginativa das funções corpóreas em
seu funcionamento quase fisiológico. Posteriormente, o bebê fará uma elaboração mais
complexa e o termo fantasia é o mais adequado para denominá-lo. Essa nova etapa na vida do
bebê revela o funcionamento total da vida psíquica. São dois momentos diferentes na vida do
bebê.
Pode-se dizer com segurança que a fantasia mais próxima do funcionamento corporal
depende da função daquela parte do cérebro que, em termos evolutivos, é a menos
atual, enquanto que a consciência-de-si depende do funcionamento do que é mais atual
na evolução do animal humano. A psique, portanto, está fundamentalmente unida ao
corpo através do entrelaçamento que se estabelece entre ela e o corpo graças a novos
relacionamentos produzidos pela fantasia e pela mente do indivíduo, consciente ou
inconscientemente. (Winnicott, 1988, p. 52)
232
Este tema foi desenvolvido em outro texto no qual Winnicott sustenta que
Psique e soma são interligados pelo processo de integração e o resultado é uma pessoa
que não pode ser dividida, fragmentada. O processo de integração mostra a necessidade de
interligar dois aspectos da natureza humana.
Não existe uma identidade inerente entre corpo e psique. Da forma como nós, os
observadores, o vemos, o corpo é essencial para a psique, que depende do
funcionamento cerebral, e que surge como uma organização da elaboração imaginativa
do funcionamento corporal. Do ponto de vista do indivíduo em desenvolvimento, no
entanto, o si-mesmo e o corpo não são inerentemente superpostos, embora para haver
saúde seja necessário que esta superposição se torne um fato, para que o individuo
venha a poder se identificar com aquilo que, estritamente falando, não é o si-mesmo.
Gradualmente, a psique chega a um acordo com o corpo, de tal modo que na saúde
exista finalmente um estado no qual as fronteiras do corpo são também as fronteiras da
psique. (Winnicott, 1988, p. 123)
233
Isso significa que tem sentido falar em mente quando se pensa que ela é um modo de
operar. Seu surgimento se dá quando inicia o processo de desadaptação da mãe às
necessidades do bebê, e como essa adaptação total não é mais necessária, a mente surge com
o objetivo de ajudar o bebê neste novo momento de vida. Para lidar com as falhas provocadas
pela mãe, o intelecto do bebê o ajuda quando desenvolve funções como pensar, catalogar,
fazer previsões, correlacionar, etc.
Em Natureza humana, Winnicott diz que “no início há o soma, e então a psique, que
na saúde vai gradualmente se ancorando ao soma. Cedo ou tarde aparece um terceiro
fenômeno, chamado intelecto ou mente” (1988, p. 139).
A mente, tal como a psique, também depende da qualidade do cérebro, ela depende
dos atributos do tecido cerebral. A mente não pode ficar doente, ela tem a característica de
52 Em 1964, Winnicott disse; “O termo “morada” é aqui utilizado para descrever a residência da psique
no soma pessoal, ou vice-versa.” (1966d [1964], p. 113)
234
permitir que o indivíduo seja mais inteligente ou menos inteligente. Por meio da
função mental,
Em temos de identidade sexual, é possível afirmar que um ser humano com uma
provisão biológica masculina se sente como um homem e que uma pessoa com uma provisão
biológica feminina se sente como uma mulher. Não há um transbordamento das fronteiras
corporais e, firmemente alojado em si próprio, o indivíduo pode dizer que ele é dono do
castelo e que tomou posse do que é seu. 53
6. EU SOU
53 Em vários textos Winnicott usa o jogo “Eu sou o Rei do Castelo”, jogo que para ele indica o
crescimento emocional individual. (1969a, p. 144).
235
De início, o bebê está não-integrado e a partir dos vários níveis desta não-
integração, paulatinamente, ele se integra no tempo e no espaço, ele faz a integração
psicossomática e constitui as realidades interna e externa. Ele já é uma pessoa que pode
representar, pode simbolizar, e sua memória lhe confere uma constância histórica pessoal,
pois ele já tem passado, presente e se tudo continuar transcorrendo bem, ele terá um futuro.
Tudo isto indica que a integração está transcorrendo de modo favorável. Porém,
exatamente porque muitas conquistas já foram feitas, e nada está assegurado, o bebê sabe que
pode perdê-las e se sente sempre na expectativa de sofrer um ataque. Segundo Winnicott, o
indivíduo que atinge este estágio já tem em si a certeza da morte (1984h [1968], p. 61). É uma
ousadia dizer “EU SOU”, é uma afronta ao mundo externo. Num momento anterior, para se
constituir, ele rejeitou tudo o que não fosse subjetivo para poder se constituir. Agora é o
momento de mostrar que ele se tornou integrado. Em função desta situação delicada a criança
procurará se preservar, e alguns traços paranóides podem surgir.
Para que esta integração se confirme, o bebê ainda precisa de um ambiente que
propicie cuidados, mas ele já tem maturidade suficiente para assumir responsabilidade pessoal
sobre seus instintos, já tem memórias pessoais e integrou-se no tempo e espaço. Em suma, ele
já conquistou uma condição pessoal de unidade.
236
Introdução
A teoria da sexualidade elaborada por Freud tem sido alvo de estudos por vários
autores, dada a importância que ela tem na constituição da psicanálise. Desenvolvida por
Freud durante várias décadas, essa teoria é resultado de um amplo estudo empírico e
especulativo. Inicialmente calcada no estudo das perversões, ela evoluiu para uma
apresentação da sexualidade infantil e adulta. Ao enfocar a trajetória da libido nas zonas
erógenas, ela se tornou o ponto de partida da organização do arcabouço teórico freudiano.
Tanto quanto Freud, Winnicott também concebe a psicanálise como uma ciência
empírica (1945h, 1986k [1961]). A divergência com o pensamento freudiano se inicia com o
abandono dos elementos especulativos, posto que Winnicott rejeita a metapsicologia como
um dos elementos fundamentais para a clínica e sua concepção de ser humano. Há, porém, um
aspecto a ser destacado: o fato de que Winnicott se mantenha um empirista não significa que
ele tenha mantido a descrição empírica dos elementos da sexualidade, tal como foi proposto
por Freud. Ele propõe uma nova descrição, além de introduzir novos elementos na
composição da teoria da sexualidade. O resultado é uma teoria da sexualidade bastante
diferente da proposta por Freud.
237
54 O próprio Winnicott diz que este estudo também poderia ser feito com uma paciente do sexo
feminino.
238
Para Winnicott, o estudo da saúde física tem que envolver tanto a hereditariedade
(nature) quanto a criação, o cultivo (nurture). Durante o processo de crescimento do bebê
humano “[...] gradualmente a criança se transforma no homem ou na mulher, nem cedo
demais, nem tarde demais” (1988, p. 12). Portanto, a tendência ao amadurecimento, que é um
‘elemento universal’, necessariamente deve levar o indivíduo a desenvolver sua personalidade
de acordo com os órgãos sexuais que herda ao nascer, sejam eles identificados como os
pertencentes ao macho ou à fêmea.
Por ter um caráter de impulso biológico, os instintos não podem receber o mesmo
significado que a pulsão recebe em Freud, ou seja, as pulsões têm uma dimensão especulativa,
por se caracterizarem como forças psíquicas e entidades fronteiriças entre o psíquico e o
físico.
De acordo com o que apresentado no capítulo IV, no início de sua vida o bebê está
entregue às tensões instintuais, experimentando tensões e excitações e nesse momento não se
pode falar que ele esteja entregue aos instintos porque ele ainda não os integrou como parte de
si. Nesse momento, o bebê está entregue às tensões instintuais biológicas e ainda
experienciadas como externas a ele (1988, p. 40). O bebê não realizou o processo de
personalização e sua anatomia corporal ainda não é vista como parte dele. Na medida que
amadurece, quando o bebê integra a instintualidade e a sente como algo que lhe é próprio, na
fase do concernimento, já se pode falar em vida instintual (1955c, p. 262, 1963b [1962], p.
73). Esta integração ocorrerá na fase do concernimento, quando, finalmente, ele se torna
responsável pelos ataques deferidos contra sua mãe. Somente a partir deste momento que as
tensões instintuais se transformam em instintos.
[...] poderosos impulsos biológicos que vêm e voltam na vida do bebê ou criança, e
que exigem ação. A excitação do instinto leva a criança, assim como qualquer animal,
a preparar-se para a satisfação quando o mesmo alcança seu estágio de máxima
exigência. Se a satisfação ocorre no momento culminante da exigência, então há a
recompensa do prazer e também o alívio temporário do instinto. A satisfação
55 Segundo Loparic: “há quem sustente que o termo “instinct” de Winnicott é emprestado da tradução
inglesa do termo “Trieb” de Freud, comumente traduzido em português por “pulsão”. Essa interpretação é um
sério engano, como se pode concluir facilmente da comparação das teses de winnicott sobre os instintos com a
doutrina das pulsões de Freud.” (2004, p. 10)
240
Não se pode esquecer que o bebê está chegando ao mundo. Ele nada sabe de si e todos
os aspectos que lhe dizem respeito, inclusive tomar contado com os órgãos sexuais, devem
acontecer de forma gradativa. Cada parte do corpo será integrada ao si-mesmo do bebê, de
modo que, ao final de seu processo de integração, ele saiba, de fato, quais as características
desse corpo. A apropriação dos instintos é uma tarefa importante na totalidade desse processo.
o fato é que qualquer parte do corpo pode ser excitada numa ou outra ocasião. A pele,
por exemplo. Você já viu crianças coçando o rosto, ou a pele de outras partes do
corpo, ficando a própria pele irritada e provocando uma espécie de erupção cutânea. E
há certas partes da pele mais sensíveis do que outras, especialmente em certas épocas.
Você poderá observar todo o corpo da criança e imaginar os diversos meios como a
excitação acaba por se localizar. Não podemos, certamente, ignorar as regiões sexuais.
Tudo isso é muito importante para a criança e constitui o momento decisivo para o
despertar da vida da infância. (1957l [1950], p. 99)
[...] não há muita diferença entre os diversos tipos de demanda instintiva, e tampouco
há muita diferença entre seres humanos e animais. Não é necessário, aqui, entrar em
discussão quanto à classificação dos instintos, nem decidir se há um único instinto ou
se eles são dois, ou se existem às dúzias. (1988, pp 39-0)
O elemento que estabelece a diferença entre os animais e o ser humano está no fato de
que este faz uma elaboração imaginativa do modo como os instintos agem em seu corpo, cujo
resultado é a integração destes instintos. Conforme foi descrito no capítulo IV, a tarefa de
elaborar imaginativamente as excitações é realizada pela psique.
Quando Freud elaborou sua descrição da trajetória da libido nas zonas erógenas, ele o
fez tendo como referência a teoria do id, o qual, segundo ele, vem em primeiro lugar.
Winnicott parte de outro referencial: somente após a constituição do ego o id pode se
constituir. Pouco a pouco, com a ajuda da mãe, o bebê constitui seu ego, que, no início, é
fraco (1965n [1962], p. 56).
Quando faz a redescrição das fases, Winnicott parte do princípio de que há um bebê se
constituindo e que as excitações que experimenta gradualmente serão incorporadas e
integradas ao seu si-mesmo. Este processo a fortalecerá. Isto é,
na área que estou examinando os instintos ainda não estão claramente definidos como
internos ao bebê. Os instintos podem ser tão externos como o troar de um trovão ou
uma pancada. O ego do lactente está criando força e, como conseqüência, está a
243
Nesta fase, o menino tem uma performance (o exibir-se) compatível com o seu
desempenho, embora ele tenha que esperar até a puberdade para realizar o sonho da relação
sexual. O menino tem na ereção um elemento importante, pois a perda dela seria motivo de
grande sofrimento. Na menina, diferentemente do menino, não há uma visualização da
sensibilização experimentada em seus órgãos genitais. O que a menina experimenta provoca
algum tipo de registro corpóreo, uma vez que todo o corpo e suas excitações são elaboradas
imaginativamente.
foi feita uma tentativa de subdividir os estágios ainda mais (Abraham). Seria muito
pouco inteligente jogar fora todo esse trabalho teórico sobre a vida instintiva infantil.
No entanto, é necessário considerar agora o trabalho mais recente que se refere a esta
parte da teoria, apesar de, por enquanto, eu optar deliberadamente pela exclusão de
outros modos de exposição. (1988, pp 41-2)
Passemos, agora, a uma descrição mais acurada das fases, tal como descritas por
Winnicott.
Para Winnicott, nos primórdios da vida do bebê, a única região de excitação pré-
genital dominante é a oral: “[...] no bebê, é dominante o aparelho responsável pela ingestão,
de modo que o erotismo oral colorido por idéias de natureza oral é amplamente aceito como
característico da primeira fase do desenvolvimento instintivo” (1988, p. 40).
Para Winnicott, nesta primeira fase o bebê ainda não tem que se preocupar com as
diferenças sexuais. Nessa fase inicial, a única zona de excitação predominante é a oral. O
bebê se encontra entregue aos ataques instintuais, experienciando todos os tipos de excitação
e, como é imaturo, não tem como discerni-las. O bebê experimenta excitações genitais
localizadas, mas ele está impossibilitado de diferenciá-las porque ainda não pode ter uma
fantasia de natureza genital. Como característica primordial desta fase, o bebê é tomado pelas
exigências instintuais relacionadas com a fome e com a posterior excreção do leite, o que
envolve a região anal.
A psicanálise tradicional considera que o bebê, nesta fase, tem uma fantasia erótica
que posteriormente se torna sádica. Winnicott não concorda com isso. Sua objeção é a de que
não se pode ter certeza de que a fantasia da atividade oral é erótica. Não se pode ter certeza de
que as elaborações imaginativas desta fase são eróticas, assim como não podem ser vistas
como fantasia porque o bebê ainda não se personalizou, ele ainda não integrou seu corpo à sua
personalidade total. Para Winnicott, o bebê sofre uma transformação, passando de ruthless
(incompadecido) para concern (compadecido), ou seja, o bebê amadurece paulatinamente.
Para Winnicott, a ambivalência relaciona-se mais com as mudanças egóicas que o bebê sofre
do que com o desenvolvimento dos instintos (1988, p. 42).
245
Winnicott discutiu a questão do sadismo oral em um estudo sobre a inveja, quando faz
uma franca oposição à teoria de Melanie Klein:
eu, pessoalmente acho-me completamente em desacordo com a Sra. Klein, quando ela
leva o assunto de volta à própria primeira infância, tal quando diz: “considero que a
inveja é uma expressão oral-sádica e anal-sádica de impulsos destrutivos, a operarem
desde o início da vida, e que ela possui uma base constitucional” (1959b, p. 443)
Winnicott não concorda com Klein porque, segundo sua visão, nesta fase o bebê, ainda
no mundo subjetivo, ainda não sabe de si, não sabe do outro e, portanto, não possui
sentimentos que surgirão numa fase posterior de seu crescimento pessoal. O bebê não pode
sentir inveja senão quando puder conhecer o outro como alguém detentor de certas
qualidades.
Ele conclui:
satisfações de zona erógena e o bebê chega ao comer o objeto, e ser comido, ser
amado” (1959b, p. 453).
Winnicott está em desacordo com Freud, pois não crê que se possa conceder ao
estágio anal a mesma importância dada às fases oral e genital. Winnicott pensa que o estágio
anal deve ser remetido ao pré-genital. Segundo ele:
a experiência anal, assim como a uretral, é dominada pela excreção de alguma “coisa”.
Essa “coisa” tem uma pré-história. Ela já esteve dentro, e era originalmente um
subproduto da experiência oral. Por isso, as experiências anal e uretral implicam em
muito mais que apenas um estágio no crescimento do Id, e tanto é assim que não é
possível classificá-las e datá-las com precisão. Apesar disso, é verdade que no interior
do que se chama de etapa pré-genital no crescimento do id, o aspecto denominado oral
precede os vários aspectos denominados anais (e uretrais). (1988, p. 42)
Para esclarecer melhor a forma como Winnicott concebe este estágio, é necessário
acompanhar como suas idéias foram desenvolvidas ao longo do tempo. Em 1947, Winnicott
postulou que o erotismo anal seria uma raiz primordial do sexo, e que estaria no mesmo
patamar que o erotismo oral, uretral, muscular e cutâneo. Mais adiante, como vimos, ele refez
seu pensamento.
Para Winnicott, a fase anal é variável, o que impede que ela seja localizada e datada
com o mesmo rigor que as fases oral e pré-genital. Ela se relaciona mais a um estágio de
crescimento do id. A fase anal se apresenta de formas diferentes, podendo ser associada tanto
à excitação advinda dos ataques instintuais, quanto à exigência de quem se encarrega de seus
cuidados no que se refere ao controle imposto em relação às fezes expelidas pelo bebê. Como
ela, a fase anal, está vinculada ao pré-genital, deve ser associada a algo que já esteve dentro
do bebê e que originalmente é um subproduto da experiência oral.
247
Este produto, que já esteve dentro do bebê, pode ser usado por ele, na fase
do concernimento, como um presente56 que ele oferece à mãe quando descobre que ela é alvo
de seus ataques incompadecidos. Isto lhe concede um caráter diferenciado do pensamento
freudiano, no qual se postula que há um deslocamento do erotismo oral para a experiência
anal. O que vem do interior do bebê é muito mais rico que o produto de uma área que sofreu
manipulação muscular.
56 Este tema foi abordado no item 4.8, Agressividade na fase do concernimento, no capítulo IV.
248
Já a menina percebe que seu órgão sexual é oculto, o que Winnicott denominou de
“fenômeno negativo”. O órgão sexual feminino possui a qualidade de ser oculto. Esse órgão,
que permanece resguardado, possui também a característica de ser oco. Gradativamente, a
menina deve elaborar imaginativamente um órgão que poderá acolher e proteger um ser
humano. Ao aceitar a singularidade e os mistérios de seu órgão secreto, mais tarde ela poderá
engravidar, ter filhos, tornar-se atraente aos meninos, desenvolvendo-se corporeamente e
envolta em muitos encantos para o mundo masculino (1988, p. 43). Esta percepção é
extremamente importante para ela e constitui “a diferença” (1988, p. 41).
na primeira fase, a ereção é o elemento mais importante. A idéia é de que aí está algo
muito importante, cuja perda seria terrível para o menino. A ereção e a sensibilização
[do clitóris] surgem ou em relação direta com uma pessoa ativamente amada, ou por
meio de idéias de rivalidade, que tem a pessoa amada como pano de fundo. Na
segunda fase fálica, há um objeto mais acentuado de penetrar e engravidar, e aqui uma
pessoa real é o mais provável objeto de amor. (1988, pp 43-4)
A criança, ao mesmo tempo em que percebe que há uma identidade de gênero, ou seja,
que meninos são diferentes de meninas, e vice-versa, percebe também que há uma
bissexualidade, existe uma menina dentro de um menino e um menino dentro de uma menina.
A percepção desta diferença de gênero ajudará na constituição dessa identidade. Aqui,
Winnicott está se referindo ao “lado feminino” que há em cada homem e do “lado masculino”
que existe em cada mulher. Este aspecto terá que ser considerado na elaboração imaginativa
dos órgãos sexuais (1988, p. 43). Este ‘lado feminino’, e o ‘lado masculino’, não estão
necessariamente ligados ao que define o que é um ‘homem’ ou o que define uma ‘mulher’. A
sociedade pode tolerar um homem mais feminino assim como pode tolerar uma mulher mais
masculina, isto é,
249
Nessa situação a menina percebe que é diferente do menino, que ele tem um órgão
sexual vistoso e provoca nela o sentimento de inveja. A experiência de invejar o pênis é muito
forte para a menina (1988, p. 45, 1958j, p. 9). Afinal, ela descobre que os meninos possuem
um órgão que é visivelmente mais proeminente que o dela, que lhes permite situações
diferentes das quais ela está acostumada, tais como urinar de um outro modo. Porém, o
sentimento de inveja do pênis não tem que ser necessariamente traumático e as meninas não
precisam se ver como seres mutilados ou castrados. A menina resolverá isto um pouco mais
tarde, ao alcançar a genitalidade.57 O aspecto que definirá isto será a atitude dos pais e a forma
como concebem a mulher. Enquanto que em Winnicott a inveja do pênis é verdadeira apenas
numa fase da vida da menina, Freud defendeu que ela existe até o final da vida da mulher
(Freud, 1925, 1931, 1933a).
Todas estas demandas, que se iniciam como instintuais e que depois de tornam inter-
relacionais, indicam que o bebê já se tornou uma criança que já pode lidar com a fase edípica,
a qual Winnicott descreveu como a fase em que se iniciam as dificuldades inerentes aos
relacionamentos interpessoais, ou entre pessoas inteiras (whole person). Essas dificuldades
originam-se dos conflitos entre amor e ódio que estão vinculados às figuras parentais. A
criança já está suficientemente amadurecida para experienciar o conflito edípico, o que
significa que ela já se tornou uma pessoa inteira (afinal, ela já passou pelo concernimento e
integrou seus instintos). Como pessoa inteira, ela já tem a maturidade necessária para
administrar os instintos no interior das relações triangulares.
Acredito que alguma coisa se perde quando o termo “Complexo de Édipo” é aplicado
às etapas anteriores, em que só estão envolvidas duas pessoas, e a terceira pessoa ou o
objeto parcial está internalizado, é um fenômeno da realidade interna. Não posso ver
nenhum valor na utilização do termo “Complexo de Édipo” quando um ou mais de um
dos três que formam o triângulo não é uma pessoa total, não apenas para o observador,
mas especialmente para a própria criança. (1988, p. 49)
Cabe aos pais manterem o lar intacto, de modo que a criança perceba que,
mesmo estando em conflito com eles, ela não será abandonada nem que seus sentimentos
provocam a destruição do lar.
Além de não concordar que o Édipo possa ser aplicado a situações em que um dos
envolvidos não seja uma pessoa inteira, outro ponto de discordância se refere à função do
complexo de Édipo na vida da criança. Nesta fase, a criança, em condições de saúde, está
atraída pelo genitor de sexo oposto ao dela, ao mesmo tempo em que entra em desarmonia
com relação ao genitor do mesmo sexo que ela. Isto é determinado pela profusão de
sentimentos antagônicos, em que amor e ódio tomam conta da criança, gerando impulsos,
fantasias e sonhos de destruição. A criança está às voltas com a identificação com os pais,
vivendo o conflito entre as posições homossexuais e heterossexuais. Como é pequena, imatura
e inexperiente, a criança está experimentando os primeiros sentimentos próprios dos
relacionamentos, inerentes ao existir: convívio, administrar conflitos, manifestar sentimentos,
localizar-se no mundo, etc. Um dos conflitos se refere à fantasia do menino de se realizar
genitalmente com a mulher mais importante para ele no momento: sua mãe. Porém, há um
impedimento para esta consumação, expresso na figura de um pai opositor, um pai que
provoca no filho o medo de ser castrado.
A atitude paterna revela duas coisas, a primeira, um fato inegável, é que há uma
imaturidade somática real na criança. Neste momento de sua existência, a criança pode apenas
sonhar e fantasiar com a genitalidade, numa postura de preparação para a vida sexual que virá
com a puberdade. O que a criança precisa neste momento é das brincadeiras que aliviarão as
angústias desta idade, pois, “[...] toda a gama de sexualidade se encontra no âmbito de uma
criança sadia, exceto a existência da limitação física pertinente à imaturidade física. Em forma
simbólica e nos sonhos e brincadeiras, os detalhes das relações sexuais fazem parte da
252
Tudo isto é possível porque, em condições de saúde, o bom contato entre pais e filho
permite que o conflito seja resolvido entre eles. A resolução virá por meio de um acordo do
filho com seu progenitor.
O menino perde um pouco de sua capacidade potencial instintiva, negando deste modo
uma parte do que ele vinha reivindicando. Até certo ponto, ele desloca o seu objeto de
amor, substituindo a mãe por uma irmã, tia, babá, alguém menos envolvido com o pai.
E mais, até certo ponto o menino estabelece um pacto homossexual com o pai, de
modo que sua própria potência não é mais apenas dele, e sim uma nova expressão da
potência do pai, através da identificação internalizada e aceita. Tudo isto permanece
localizado nos sonhos mais profundos, e não está à disposição do menino para ser
expresso conscientemente; mas na saúde, isto não é absolutamente inviável. Por
identificação com o pai ou com a figura paterna, o menino obtém uma potência por
procuração e uma potência adiada, mas própria, que poderá ser recuperada mais tarde,
na puberdade. (1988, p. 55)
e) Fase genital
Após passar pelas intensas transformações das fases anteriores, nesta fase a criança é
capaz de ter experiências sexuais genitais, excetuando-se a procriação, pois esta terá que ser
postergada até a puberdade. Os ataques instintuais experimentados se refletirão sobre as
relações interpessoais com as quais a criança está envolvida, gerando novas possibilidades de
experimentar sentimentos. A fase genital reúne em si o material pré-genital que a criança já
viveu anteriormente (1988, p. 44).
Os meninos já estão completos, mas têm que lidar com sua performance deficiente, ou
seja, para realizar seu sonho genital, devem esperar até a puberdade. O fato de poder tolerar
essa frustração indica que o ego já está muito amadurecido (1988, p. 44). Enquanto que na
fase fálica os meninos estão completos, neste momento eles necessitarão das meninas para se
completar (1988, p. 45n).
Nessa fase, meninos e meninas estão às voltas com as diferenças sexuais e com o
modo como seus órgãos são avaliados. Os meninos percebem que a ereção é parte do
relacionamento que ele pode manter com o sexo diferente do seu e que o resultado do
relacionamento é que ele pode promover mudanças irreversíveis no corpo da pessoa amada,
alvo de suas ereções.
As meninas descobrem que não precisam sentir inveja do órgão sexual masculino, pois
já é possível atrair pessoas do sexo diferente do seu, a começar pelo seu pai, e ela pode
também “ter bebês (por si mesma ou por procuração) e, na puberdade, ter seios e
menstruação, e todos os mistérios são dela” (1986g [1964] p. 186).
e.1. Feminilidade
própria vida pessoal: “[...] fui levado a descobrir tudo o que pude a respeito do
significado da palavra “devoção”, no sentido de me manter o mais plenamente possível
informado e reconhecido em relação à minha própria mãe” (1957o, p. 126).
Ao longo dos anos, Winnicott ressaltou o quanto a mãe, simplesmente por se devotar
ao filho, cria cidadãos comuns que assegurem que a humanidade se perpetue, de forma
significativa. Para isto, basta que ela simplesmente se dedique ao filho que vem ao mundo.
Para que a humanidade se perpetue, é necessário que homens e mulheres sejam constituídos,
homens e mulheres com formas próprias, com tarefas próprias e que possam futuramente
gerar novos homens e mulheres, cuja masculinidade e feminilidade sejam definidas de forma
claramente reconhecível. Onde se inicia esta corrente? De que elos ela se constitui? De um
entrelaçamento de fatores.
executado por ela e que isto, paradoxalmente, se refere exatamente ao fato de que
esta colaboração é muito significativa:
caso seja aceita essa contribuição, segue-se que todo homem ou mulher sadios, todo
homem ou toda mulher que tem o sentimento de ser uma pessoa no mundo, e para a
qual o mundo significa alguma coisa, toda pessoa feliz tem um débito infinito para
com uma mulher. Simultaneamente, quando essa pessoa foi criança (mulher ou
homem), ela não sabia nada sobre a dependência: havia uma dependência absoluta.
(1957o, p. 125)
Este medo à MULHER está vinculado ao temor que o indivíduo tem de ser dominado.
Winnicott localiza a raiz do receio das pessoas de serem dominadas exatamente no fato de que
elas foram totalmente dependentes em um certo estágio de sua vida. Estar dependente é o
avesso de estar dominado.
O bebê é imaturo nesse momento. Ele não sabe de si, do mundo, não sabe que existem
homens e mulheres. Ele precisa apenas ser cuidado, não precisa saber, constatar coisa alguma.
As constatações virão somente num estágio posterior. Enquanto isso não ocorre, o bebê
recebe os cuidados de uma pessoa que gradativamente vai sendo percebida como a mulher
que de fato ela é.
À medida em que amadurece, a pessoa que se constitui entra em contato com a figura
feminina e seus atributos, um contato que implicará em seu modo de ver a mulher. Muitos
256
Outro aspecto que revela a grandiosidade da mulher está no fato de que cada parto a
coloca em risco de vida, mesmo que realizado por meio de uma cirurgia cesariana. Ela sabe
disso, mas não se exime de ser mãe. Cada estágio da gravidez significa um risco tanto para a
gestante quanto para o bebê. Neste delicado momento de vida, a gestante tem que se cuidar
adequadamente de forma a assegurar a existência de ambos. Ela sabe que sua
responsabilidade é grande, que se algo nefasto lhe ocorrer, o mesmo ocorrerá com seu filho.
O ser humano entra em contato com uma situação através da qual descobre o que é
estar completamente entregue a uma situação, sem possibilidade de ter controle algum sobre
ela. Pode, finalmente, conjecturar quanto ao fato de que houve um período em que ele nada
podia fazer por estar submetido aos desígnios de uma mulher que teve plenos poderes sobre
sua existência.
Todas estas situações ocorrem num momento de dependência total em relação a essa
mulher. Esta constatação é incômoda, porque revela toda a vulnerabilidade do ser humano. O
ser humano é frágil, mas, simultaneamente, potencialmente forte. Mas essa potencialidade
para o crescimento somente se concretizará através de um amor que se expressa sob a forma
dos cuidados físicos de uma mulher. Quando o ser humano descobre isso, ele confirma toda a
sua fragilidade e toda a força de uma mulher que toma para si a tarefa de possibilitar o pleno
desenvolvimento de um ser que, sem ela, perecerá.
Todos estes aspectos indicam que a mulher termina por ocupar uma posição
diferenciada em relação ao homem. Embora a natureza humana determine a existência de dois
sexos, e determine também que homens e mulheres dependam um do outro, todo homem e
toda mulher se originam de uma mulher, e não de um homem, mesmo que este não possa ser
alijado da concepção deste filho. Toda essa situação concede à mulher um poder diferenciado,
o qual pode despertar um sentimento de inveja em relação a ela por parte dos homens. Estes
257
Essas questões indicam que esse elemento que estabelece a diferença entre os sexos
realmente coloca a mulher numa situação única, pois ela pode se identificar com a mulher
porque em toda mulher há sempre três mulheres. Em toda mulher há o bebê menina, a mãe e
a mãe da mãe (1968g [1964], p.193).
Este tema surgiu em Winnicott pela primeira vez em 1955, quando ele afirmou que
parece-me que as três mulheres que tantas vezes aparecem em mitos e sonhos não
possuem equivalentes num trio masculino. Na idéia do relacionamento sexual, cada
homem é especificamente ele mesmo naquele momento, enquanto que no caso da
mulher existe, num certo sentido, não uma mulher, mas um trio: uma bebezinha, uma
noiva de véu e grinalda, e uma mulher de idade. (1988, p. 47n)
A identificação feminina, conforme já foi apontada, deve ser feita com uma figura
feminina. Toda a elaboração imaginativa dos órgãos sexuais femininos deve ser voltada para a
questão da maternidade potencial e, por isso,
[...] no que diz respeito a genitalidade, as idéias alcançam sua máxima expressão
através da identificação com a mãe ou com meninas mais velhas, que seriam capazes
de conceber. O brincar da menina, na medida em que ela é verdadeiramente feminina,
é do tipo que mostra uma tendência à maternidade, e o funcionamento genital
feminino propriamente dito não é tão evidente quanto o masculino [...] (1988, p. 46)
Isso implica que a genitalidade feminina deve ser caracterizada a partir de seu órgão
sexual interno, o útero, que é um órgão oco, oculto e resguardado. Este órgão vazio pode
receber e gestar uma nova vida. As fantasias femininas já têm origem em tempos remotos, nos
bebês, e envolvem as situações experienciadas nas quais “a vagina provavelmente se torna
ativa e excitável no momento da amamentação e das experiências anais, mas o verdadeiro
funcionamento genital permanece oculto ou até mesmo secreto” (1988, p. 46). Quanto às
experiências anais, o bebê do sexo feminino tem dificuldade em separar-se de suas fezes e, no
que se relaciona com o aparelho urinário, há uma tendência a reter a urina. Afinal, a mulher
possui órgãos que são ocultos e que possuem a qualidade de guardar seres humanos.
Isto aparece nas brincadeiras do tipo “sabe guardar um segredo?” que expressam essa
condição feminina. A menina que não sabe guardar um segredo não pode ficar grávida. A
mulher gera um ser humano e permite que ele exista, além de manter a sua existência. Esta
condição indica que outra característica da genitalidade feminina é a de estar intrinsecamente
vinculada a um caráter futural expressado pela maternidade.
A elaboração imaginativa dos órgãos femininos se faz com base no material pré-
genital, as fantasias vinculadas à genitalidade completa, que envolvem o ato de ser penetrada,
de engravidar e amamentar. Na verdade, a menina, exceto na fantasia e nas atividades lúdicas,
precisará esperar a chegada da adolescência ou da juventude para poder engravidar, ter um
bebê e amamentá-lo ao seio, aspectos primordialmente femininos. Enquanto isso não se
concretiza, a menina se identifica com sua mãe ou com moças mais velhas, para quem estas
259
situações estão iminentes. A mulher precisa levar em conta o interior de seu corpo,
que sua verdadeira genitalidade consiste em ter um órgão a ser oferecido e fecundado. O
aspecto futural que envolve a maternidade exige que seu ego tolere a frustração da espera
necessária para que a gravidez se efetive após a puberdade. Há necessidade da menina fazer
uma identificação com a mãe-fêmea, o que lhe dará os traços vinculados a uma genitalidade
feminina, assim como também é necessário que ela se identifique com uma mãe-mulher, o
que lhe permitirá tornar-se mãe. Todo este material remonta à fase anterior ao concernimento,
sendo desvinculado da questão instintual, ao mesmo tempo em que se sustenta nas relações
interpessoais entre mãe e filha.
Por fim, o elemento principal que determina o modo pelo qual a criança crescerá é o
sexo da pessoa por quem ela está apaixonada na idade entre o desmame e o período de
latência (1988, p. 48).
e. 2. Masculinidade
O bebê macho precisa elaborar imaginativamente um órgão que se caracteriza por ser
ativo, por necessariamente ter que criar situações em que o agir se torna primordial. Há uma
performance que precisa ser desempenhada, uma necessidade de buscar o que está oculto e
que precisa ser descoberto. As fantasias se relacionam com a luta, com o desbravamento em
busca de algo, o que implica em enveredar por sendas escondidas, com possibilidade de
machucar-se nas trilhas criadas para essa empreitada. Implica em passar por túneis que
conduzem ao local onde o que é almejado finalmente é encontrado e fecundado. Segundo
Winnicott, “o menino que não sabe lutar ou enfiar um trenzinho no túnel não pode
deliberadamente engravidar uma mulher” (1988, p. 46).
Outro aspecto a ser considerado está no fato de que o órgão sexual masculino é, em
geral, mais valorizado nas culturas ocidentais, que tendem a associá-lo a um padrão de
superioridade, a partir do fato de ser visível e pronto para ser exibido.
Nos anos 1950, Winnicott confirma a tese da psicanálise tradicional de que há uma
bissexualidade no ser humano, há um lado feminino e um lado masculino na natureza
humana. Note-se que ele fala em “lado feminino” e em “lado masculino”. Suas considerações
sobre este tema podem ser encontrados no texto Natureza Humana. Anos mais tarde, ele
voltará a abordar o tema da bissexualidade, sob um novo enfoque. A complexidade deste tema
é de tal ordem que foi desenvolvido por ele já no final de sua vida, após mais de quarenta
anos de atividade profissional. Isto acontece em 1966, em um de seus últimos artigos,
intitulado Sobre os elementos masculinos e femininos cindidos [split-off], quando Winnicott
apresenta uma teoria totalmente nova na psicanálise: haveria uma bissexualidade na natureza
humana, um elemento masculino e um elemento feminino puros, incontaminados, ou seja, não
vinculados a instintualidade, nem relacionados ao gênero biológico do ser humano. Esses
elementos fazem parte do si-mesmo total de todo ser humano, fazem parte da natureza
humana, ou seja, há “[...] uma bissexualidade que é uma qualidade do si-mesmo total ou
unitário” (1989vp [1959/63], p. 173). Quando o elemento feminino puro e o elemento
masculino puro surgem na vida do bebê, e uma vez que eles sejam integrados, eles farão parte
do si-mesmo total da pessoa humana. Esses dois elementos não são opostos entre si. Eles
também não podem ser alvo de repressão, em função da peculiaridade de sua natureza.
Para facilitar o entendimento desse tema, a teoria de Winnicott deve ser compreendida
no contexto do relacionamento objetal, que tem características que não podem ser sustentadas
e expressas por uma linguagem da psicanálise tradicional, que se sustenta numa terminologia
voltada para a instintualidade. Portanto, neste contexto apresentado por Winnicott, a
linguagem utilizada deve ser remetida a modos de relacionamento que não se sustentam em
pulsões e sim no acolhimento a uma vida que se inicia.
Winnicott esclarece que não se deve entender a distinção entre ser e fazer a partir das
idéias de ativo e passivo. Em primeiro lugar surge o ser, que se relaciona com a identidade,
depois vem o fazer e este elemento é que deve ser pensado em termos de ativo e passivo.
Winnicott também chama a atenção para a idéia de que o ser se transmite de uma geração
para outra através do elemento feminino puro que está presente em homens e mulheres.
Loparic afirma que, com esta teoria, “[...] Winnicott estava tentando formular os
aspectos essenciais de uma segunda raiz da sexualidade, mediante o estudo das propriedades
de dois diferentes modos de relacionamento com outras pessoas, a identificação e a
objetificação” (Loparic, 2004, pp. 18-9). Estes dois modos de relacionamento são
263
Em 1968, Winnicott voltou a falar das identificações cruzadas, embora não sexuais,
em seu livro O brincar e a realidade. Ao abordar o caso clínico de uma adolescente, ele fala
de sua esperança de que possa, por meio de fenômenos transferenciais, “ampliar o campo de
ação do paciente com respeito a identificações cruzadas”, através de experiências com o
paciente e não de interpretações (1971l, p. 119).
Ele confirma que sua forma de pensar está assentada na idéia de que, em primeiro
lugar, o bebê tem a necessidade de “[...] chegar ao ser antes do fazer, que o ‘eu sou’ tem que
preceder ‘eu faço’, porque, de outro modos, ‘eu faço’ torna-se desprovido de significado para
o indivíduo” (1971l, p. 130).
O caso de uma mulher de quarenta anos de idade, solteira, também ilustra sua teoria, e,
neste caso específico, aborda uma dissociação entre os elementos masculinos e femininos.
Esta mulher tinha a tendência a ver as mulheres como pessoas de ‘terceira classe’ e “[...] os
homens representavam seu elemento masculino dissociado e expelido (split off), de modo que
não podia permitir que eles ingressassem em sua vida de maneira prática” (1971l, p. 132).
Winnicott esclarece que esta paciente travava uma luta entre seu eu feminino e o elemento
masculino dissociado e expelido.
264
Vejamos como Winnicott desenvolve essa teoria, que se compõe de elementos puros
que são explicitados em termos de dois tipos de relações objetais, as de identificação e as de
objetificação.
Um dos modos de relacionamento que a criança pode estabelecer com sua mãe é por
meio da identificação, que pode ser encontrada numa situação pautada no elemento feminino
puro.
Para compreender como o elemento feminino puro se relaciona a ‘objetos’ e seu papel
na constituição da identidade da pessoa humana, primeiramente é necessário considerar a
forma como a existência humana se inicia. Em termos de uma presença que deve ser
constituída, inicialmente há um estado de não vida, de não existência. O bebê sai de um
estado de solidão essencial – o qual se caracteriza por uma total dependência do ambiente –
pois ele não pode permanecer neste estado indefinidamente. O bebê precisa abrir-se para o
mundo e buscar o seu processo de integração, e esta integração vai lhe possibilitar chegar ao
mundo, à realidade que existe fora do mundo subjetivo no qual ele está imenso. Para chegar
até a realidade objetivamente compartilhada, o bebê tem que criá-la. Para que essa criação se
concretize ele precisa fazer uma passagem entre a sua solidão essencial e o mundo.
265
Atenta ao filho, a mãe percebe que ele emitiu um gesto. Este gesto, ao ser recebido,
permite o encontro entre ambos. Este encontro revela que o bebê se encontrou consigo
mesmo. A resposta da mãe será oferecer o seio no momento exato da necessidade do bebê de
criar algo. O bebê tem a “necessidade pessoal” de criar o objeto (Winnicott, 1988, p. 102). Ao
receber o seio, o bebê tem a possibilidade de criá-lo, pois antes este objeto não existia para
ele. A mãe sustentará junto ao filho a ilusão de que criou o seio, que neste momento se torna o
mundo para ele. Diz Winnicott:
No encontro entre o bebê e o seio instaura-se a condição para que ele possa ser. Como
está em total confluência com sua mãe, como não há separação entre mãe e bebê, isso permite
que o modo de ser da mãe seja vivido como seu próprio modo de ser. Ocorre uma situação
que é descrita por Winnicott da seguinte maneira: “o bebê recebe um seio que faz parte dele e
a mãe dá leite a um bebê que é parte dela mesma” (1953c, p. 12).
Ao viver a condição de ser o seio que recebe da mãe, o bebê vive e recebe o elemento
feminino puro. Esta condição sui generis é esclarecida por Winnicott:
O que ocorre é que, nesse momento de sua vida, o bebê está imerso no ambiente, sem
poder fazer uma separação entre o EU e o NÃO-EU . Ele vive a dependência absoluta em
relação a tudo que recebe do ambiente. O bebê se transforma nos cuidados que recebe. Isso
significa que
Vivendo nessa realidade subjetiva, sendo a identidade com a mãe, o bebê tem lançadas
as bases para a construção de sua identidade:
a expressão objeto subjetivo tem sido usada na descrição do primeiro objeto, o objeto
ainda não repudiado como sendo um fenômeno não-eu. Aqui neste relacionamento é
de elemento feminino puro com o “seio”, temos uma aplicação prática da idéia do
objeto subjetivo, e a experiência disto prepara o caminho para o sujeito objetivo, isto
é, a idéia de um si-mesmo, e o sentimento de um real que surge do senso de se ter uma
identidade.
Nesse momento de sua vida, o bebê ainda não tem um ego nem identidade, nem se
tornou ainda uma unidade. As estruturas intelectuais também não foram constituídas. É um
267
Isso somente é possível pela atitude da mãe de deixar que o bebê seja, de permitir que
ele esteja no centro da situação. A mãe se entrega ao que o bebê necessita e sua própria pessoa
desaparece – tudo o que ela faz é colocar-se à disposição de seu filho, tudo o que ela precisa
fazer é ser suficientemente boa e, paradoxalmente, nada fazer, apenas permitir que o filho seja
o seio-mundo que ela lhe oferece. A mãe que é suficientemente boa é uma boa fornecedora do
elemento feminino puro (1989vp [1959/63], p.179). A mãe que é suficientemente boa não faz.
O que acontece entre mãe e filho baseia-se apenas no que a mãe sente que o bebê
necessita naquele momento e ela sente que ele precisa ser o seio para poder ser. Essa relação
é sustentada apenas nas necessidades do bebê. É o ego materno que fornecerá o estofo para a
construção do ego infantil.
Dizemos que o apoio do ego materno facilita a organização do ego do bebê. Com o
tempo, o bebê torna-se capaz de afirmar sua própria individualidade, e até mesmo de
experimentar um sentimento de identidade pessoal. Tudo parece muito simples
quando vai bem e a base de tudo isso é encontrado nos primórdios do relacionamento,
quando a mãe e o bebê estão em harmonia. Não há nada de místico nisto. A mãe tem
um tipo de identificação extremamente sofisticada com o bebê, na qual ela se sente
muito identificada com ele, embora, naturalmente, permaneça adulta. O bebê, por
outro lado, identifica-se com a mãe nos momentos calmos de contato, que é menos
uma realização do bebê que um resultado do relacionamento que a mãe possibilita. Do
ponto de vista do bebê, nada existe além dele próprio, e, portanto, a mãe é,
inicialmente, parte dele. Em outras palavras, há algo, aqui, que as pessoas chamam de
identificação primária. Isto é o começo de tudo, e confere significado a palavras muito
simples, como ser.(1987e [1966], p. 11)
Quando a mãe permite-se ser um seio que é, o bebê pode fazer uma experiência
originária de ser. Essa situação tem que ser repetida inúmeras vezes, ou seja, o bebê tem que
criar sua primeira identidade com o seio, de forma que ele possa adquirir o sentimento de ser
(sense of being). Gradativamente, a repetição da sensação de unidade que é vivida
268
Nessa atitude da mãe encontramos a base para a saúde do bebê. A cada experiência de
ser o seio, ele adquire a base para o senso de ser real. A sutileza da mãe em conduzir a
situação é de tal harmonia com o seu filho que este não se dá conta da atitude dela e é
exatamente disso que o bebê precisa: que a atitude de sua mãe seja sinônimo de nada fazer, de
apenas deixar ser. Segundo Winnicott,
ou a mãe tem um seio que é, de forma que o bebê possa ser, quando o bebê e a mãe
ainda não estão separados na mente rudimentar do bebê, ou então a mãe é incapaz de
realizar esta contribuição, e neste caso o bebê tem que se desenvolver sem a
capacidade de ser ou com uma capacidade prejudicada de ser. (1989vp [1959/63], p.
179)
A grande conquista que essa situação possibilita é que o bebê ganha sua primeira
identidade, a base para todas as outras identidades que virão. É essa identidade primeira que
possibilitará que uma identidade saudável possa ser assentada. Cada vez que o bebê necessita
do seio e o recebe na medida de sua necessidade, ele se torna esse objeto subjetivo. Sua mãe-
ambiente sustenta essa crença, realizando a necessidade de seu filho, possibilitando que seu
si-mesmo verdadeiro seja constituído.
O surgimento dessa situação precede a qualquer ataque instintual. Ela ocorre num
momento em que os instintos ainda não estão agindo sobre o bebê. Segundo Winnicott, “[...] o
elemento feminino puro se relaciona com o seio (ou com a mãe) no sentido de o bebê tornar-
se o seio ou (ou a mãe), no sentido de que o objeto é o sujeito. Não consigo ver pulsão
instintual nisso” (1989vp [1959/63], p. 177). Essa situação é anterior à situação presente na
idéia ser-com-algo ou alguém, é anterior à relação objetal propriamente dita, em que duas
pessoas inteiras podem se relacionar.
Segundo Winnicott, esse tema não foi objeto de estudo da psicanálise tradicional, que
“[...] foi negligente com a identidade sujeito-objeto para a qual estou aqui chamando a atenção
e que se encontra na capacidade de ser” (1989vp [1959/63], pp 178).
Segundo Winnicott, o outro modo de relacionamento da criança com sua mãe ocorre
por meio da objetificação e se vincula ao fazer.
Somente a partir deste elemento masculino puro é que há sentido em falar do impulso
instintual que existe na relação do bebê com o seio e com a amamentação e, posteriormente,
com todas as experiências vinculadas à área das gratificações sexuais (1989vp [1959/63],
p.177). É o elemento masculino puro que possibilita que a psicanálise tradicional possa
abordar erotismo oral, uso de objetos, situações próprias de um elemento que faz, que possui
diferentes modos de fazer.
58 É preciso lembrar que a sexualidade pode ser percebida como tal quando a criança está mais
amadurecida e já elaborou imaginativamente seus órgãos genitais, tal como foi apresentado no capítulo IV.
270
O elemento masculino puro surge num momento em que o bebê está mais
amadurecido, momento em que o bebê já não se encontra numa relação subjetiva com sua
mãe, em que a idéia de separação faz sentido nessa situação. Diz Winnicott:
Por parte do bebê, surge um fazer que lhe permitirá perceber os ataques instintuais que
vão definindo mais ainda as fronteiras entre ele e o mundo. O fato de que o bebê já possa
perceber os ataques instintuais indica que seu ego já está mais organizado. Esse
amadurecimento indica que o bebê já tem condição de fazer a identificação por meio de
complexos mecanismos mentais, tais como simbolizar (verbal e imaginativamente) e fazer a
identificação projetiva e introjetiva.
é mais ou menos intenso. Cada ser humano é mais ativo ou menos ativo, de acordo
com sua característica pessoal.
Loparic descreve a situação em que se encontra o bebê: “[...] o ser humano fazedor
conta com os seus instintos já integrados, busca agir e, para tanto, objetifica os outros e todas
as coisas, e se separa deles, distanciando-se da sua identidade originária com o ambiente,
com os outros e as coisas” (2004, pp 23-4).
A mãe que cria uma situação em que o bebê se desenvolva somente a partir do fazer,
não é uma mãe suficientemente boa, pois ela cria uma situação em que o bebê tem sua
capacidade de ser prejudicada.
Este tema significou uma descoberta tão importante para Winnicott, que o levou a
dizer que embora seja o paciente que esteja o tempo todo ensinando ao analista, este precisa
de um conhecimento teórico para que possa atender às novas demandas de sua clientela.
Curiosamente, Winnicott formulou a teoria dos elementos masculinos e femininos puros ao
atender um paciente.
Winnicott conta que seu paciente era um homem casado, de meia idade, e um
profissional de sucesso. Esse paciente vinha de uma longa análise, que, apesar de bem
sucedida, ele considerava que ainda não alcançara alguns pontos de sua personalidade. Sua
questão era que, apesar de se ver como um homem com uma identidade masculina bem
definida, sentia-se como uma mulher. Numa das sessões apresentou um material que podia ser
identificado como inveja do pênis. Winnicott lhe disse que, embora soubesse que estava
falando com um homem, ele entendia que o paciente falava de inveja do pênis. Ressaltou que
o louco era ele e não o paciente. Este compreendeu que isto o remetia à sua compreensão de
que sentia como uma menina e que, ao fazer esta observação, Winnicott falou para ambas as
partes dele (1989vp [1959/63], p. 171).
Winnicott conta que a análise apontava para situações em que a mãe desse paciente o
viu como menina, antes de vê-lo como o menino que ele era. Havia ainda indicações que a
mãe teve para com ele o manejo que seria indicado para uma menina. Essa menina presente
no paciente, segundo Winnicott, fez várias tentativas para não deixar que o lado homem se
liberasse. Isso surgiu quando se comentava sobre uma gripe, depois de um final de semana
272
em que o paciente tivera uma relação sexual satisfatória com a mulher. Apesar do
estado gripal, o paciente dizia sentir-se melhor.
Winnicott entendeu essa situação como sendo uma manifestação da menina existente
nesse homem, a qual pedia o reconhecimento de sua existência e lhe mostrava que esse
paciente “sempre foi uma garota” (1989vp [1959/63], p. 172).
O paciente foi levado a essa situação em função do modo como foi tratado por sua
mãe. Ela apresentava o desejo inconsciente de ter uma filha mulher, mas como o bebê que
nasceu era do sexo masculino, para atender às suas próprias necessidades, ela lhe impingiu
um tratamento que normalmente seria concedido às meninas. As evidências clínicas
apontavam situações em que a mãe, ao cuidar do filho, colocou-lhe os cueiros de um modo
inadequado às provisões biológicas do filho, comprimindo-lhe demasiadamente os órgãos
sexuais. O filho, ainda um bebê, não pôde se rebelar contra esta situação, dada a sua
imaturidade. Não se pode esquecer que, no início de sua vida, o bebê está totalmente
dependente do ambiente, sem saber que dele depende e que dele necessita para poder se tornar
real.
O resultado foi que, como o paciente era do sexo masculino, o elemento sexual oposto
ao dele ficou totalmente cindido, ou seja, dissociado de sua personalidade. Este paciente foi
obrigado a se tornar, a se sentir uma menina, apesar de ter adquirido uma identidade
masculina inicial fundada nos instintos, para poder manter a mãe junto de si. Ao invés de
crescer em sintonia com seus órgãos sexuais, ele procurou explorar todas as partículas em si
do ser feminino que havia nele, de modo agradar a mãe. Como um bebê desamparado, o que
de fato ele era, ele teve que optar em se desenvolver de acordo com seus órgãos sexuais e
perder a mãe, ou se desenvolver de acordo com as expectativas dela, em desacordo com seus
genitais, mas manter o amor materno. Sendo imaturo e necessitando dos cuidados maternos, o
paciente FM59 não teve alternativa e optou por sua mãe. Diante do dilema imposto por sua
mãe e para o qual sua imaturidade não comportava resolução, ele se tornou o que a mãe
59 Este caso apresentado por Winnicott tem sido alvo de estudos por Loparic, que denominou este
paciente de FM. De modo a unificar a comunicação, de agora em diante, toda vez que eu me referir a este
paciente vou usar a mesma terminologia de Loparic.
273
queria, pois não tinha como fugir das ações concretas dela, de seu fazer real. O
paciente desenvolveu uma identificação sexual forçada, em que manifestava comportamentos
e sentimentos desarticulados de sua identidade física. Em suma, ele desenvolveu uma
identidade falsa, postiça, mas que lhe possibilitava não perder a mãe, figura essencial neste
momento de vida.
Esse caso pode ser entendido à luz da idéia central do pensamento winnicottiano, ou
seja, a idéia de que, na saúde, os elementos masculinos e femininos puros estão em harmonia.
No entanto, nas situações em que o ambiente não possibilita que o bebê possa experienciar o
ser, ele se desenvolve a partir de um fazer que é colocado no lugar do primeiro, numa situação
decorrente do fato de que o bebê foi confrontado com o seio-mundo que lhe é apresentado.
Segundo Winnicott, “em nossa teoria, é necessário aceitar-se a existência de um elemento
masculino e um elemento feminino, tanto em meninos e homens, como em meninas e
mulheres. Estes elementos podem estar mutuamente cindidos em alto grau” (1989vp
[1959/63], p. 176).
A novidade desse caso estava no fato de que ele teria que ser formulado e
compreendido não à luz da teoria da sexualidade da psicanálise tradicional, nem da própria
teoria da sexualidade formulada por Winnicott, baseada na necessidade de se fazer uma
elaboração imaginativa dos instintos.
Esse caso levou Winnicott a formular que o ser humano tem mais de uma identidade
sexual: uma que é instintual, sustentada nas funções corpóreas, e outra que é relacional,
advinda do relacionamento que ele teve com as pessoas que cuidaram dele nos primórdios de
sua vida.
O caso expressa que a necessidade maior do indivíduo que inicia sua vida é a de
assegurar a presença de alguém para que ele possa continuar vivo, mesmo que isto resulte em
perdas, em não desenvolver determinados aspectos de sua potencialidade. Afinal, como já
disse Winnicott: “estar vivo é tudo (to be alive is all)” (1965j [1963], p. 192).
Winnicott conta que a partir do estudo dos elementos masculino e feminino puro ele
pôde chegar a um novo aporte teórico. Que novo aporte seria esse? Winnicott descobriu que o
estudo dos elementos masculinos e femininos puros lhe revelara algo além da diferença entre
os dois tipos de relacionamento objetal. Ou seja, há um conflito essencial relacionado ao
momento da passagem do relacionamento no sentido de ser para o relacionamento no sentido
de fazer. Ele voltou a se perguntar sobre o movimento do bebê na saída do mundo subjetivo
para uma entrada no mundo objetivo (1972c [1968-69], p. 191).
Com essas considerações Winnicott retoma os efeitos que as atitudes da mãe exercem
sobre o bebê, na fase em que ele não está constituído Por causa da importância do
comportamento da mãe, ele afirma que o conceito de narcisismo não é o mais adequado para
focar esta situação. Já que não se pode mais usar o conceito de narcisismo como ferramenta
276
de compreensão, ele diz que não lhe resta senão fazer uma tentativa de enunciar de
forma extrema o contraste entre o ser e o fazer.
Para fazer isso, Winnicott abandonou toda a idéia de meninos e meninas e de homens
e mulheres, a idéia de dois princípios básicos, aos quais ele denominou de elementos
masculinos e femininos. O objetivo de Winnicott é chegar ao componente que está por trás
das defesas apresentadas por seu paciente. Ele esclarece:
Ele diz que ao chegar a este ponto, ele chega ao dilema básico do relacionamento do
ser humano com o mundo, do encontro do homem com o mundo, momento em que o bebê
cria o seio-mundo.
a) o bebê é o seio (ou objeto, ou mãe, etc); o seio é o bebê. Isto se encontra na
extremidade última da falta inicial de contato do bebê com o não-eu, no lugar em que
o objeto é totalmente subjetivo, em que (se a mãe se adapta suficientemente bem, e
não de outro modo) o bebê experiencia a onipotência.
b) O bebê é confrontado com o objeto (seio, etc) e precisa chegar a um acordo com
ele, com poderes limitados (imaturos) do tipo que se baseia nos mecanismos mentais
das identificações projetiva e introjetiva. Aqui precisamos notar que, mais uma vez, a
experiência de cada criança depende do fator ambiental (atitude, comportamento da
mãe, etc.) (1972c [1968-69], p. 191)
Este dois aspectos indicam a existência de uma questão que Winnicott chama de
dilema básico que constitui um problema humano universal que se refere às duas
277
Esse conflito entre ser e fazer não pode ser compreendido como sexual, por mais que
ele esteja na base de elementos sexuais sofisticados, tais como as encontradas no caso do
paciente FM, identificações sexuais cruzadas, elementos masculinos e femininos puros. Esse
conflito revela que por trás destas defesas há algo mais profundo ainda, algo que se revela na
oposição entre ser o objeto ou então fazer algo sobre o objeto, ou seja, receber algo que é
feito.
Ao nascer, o bebê tem uma natureza humana a ser desdobrada, uma natureza a ser
revelada num movimento em que se combinam a hereditariedade e o ambiente. Se este for
favorável ao bebê, ele se integra, mas se o ambiente não for suficientemente bom, podem
surgir patologias que revelam que ele foi confrontado com um seio-mundo num momento em
que ele não tinha maturidade para recebê-lo.
Curiosamente, Winnicott aponta para um caminho que indica que para o indivíduo
constituir sua sexualidade, ele precisa de um elemento não sexual, um elemento que se remete
à identificação e à objetificação.
Curiosamente, o ser humano inicia sua vida porque a genitalidade de seus pais assim o
permitiu, mas não é pelos elementos sexuais que ele se torna real e se instala no mundo. Para
chegar ao mundo o bebê tem que perder a identificação
Assim, se o Édipo é uma conquista dentre muitas outras no processo maturacional, ele
não pode mais ser nossa baliza para uma compreensão da constituição da natureza humana. Se
a tendência à integração não se consumar, alguns pacientes podem não chegar ao Édipo, o que
pode significar uma fratura em seu processo maturacional. Portanto, como partir de questões
sexuais, se alguns pacientes não puderam desenvolver adequadamente a sexualidade? Como
partir de sexo se alguns pacientes nem corpo têm? Como disse Winnicott: “em pessoas
saudáveis, o uso do corpo e de suas funções é uma das coisas prazerosas da vida [...]” (1971f
[1967], p. 13)
Ao longo das últimas décadas, a sexualidade tornou-se um dos temas essenciais para o
ser humano, que buscou formas de entendê-la, seja para explicar sua presença ou os
problemas nesta área.
280
Dentre as grandes mudanças sociais, uma luta pela igualdade entre os sexos
mudou o lugar da mulher na sociedade. A mulher, até então oprimida e reprimida em muitos
de seus direitos, conquistou o direito ao prazer e à igualdade no trabalho. Nos anos sessenta,
feministas queimaram, em praça pública, o símbolo da feminilidade, o soutien, em nome de
uma libertação do jugo masculino.
Como orientar casos de produção independente, em que mulheres optam por ter filhos
por meio de inseminação artificial, prescindindo da figura paterna? Como lidar com os novos
quadros familiares, em que casais homossexuais masculinos podem alugar barrigas para
terem o filho desejado? E os casais homossexuais femininos, que também não têm
60 Sobre este tema, remeto o leitor à minha dissertação de mestrado, A homossexualidade em Winnicott.
Um estudo da homossexualidade à luz da teoria do amadurecimento humano.
281
Dentre as conquistas, é essencial que o indivíduo que amadurece consiga constituir sua
masculinidade ou feminilidade, de acordo com a provisão fisiológica sexual herdada. Isto
significa um encontro consigo mesmo e que ele sinta que está alojado em si próprio,
convivendo harmoniosamente com seu soma e psiquismo. O indivíduo se vê ou como homem
ou como mulher e pode obter as benesses de sua condição. Constituir-se como masculino ou
como feminino é fundamental, porém, mais importante ainda, é compreender o que deve se
constituir inicialmente e que permitirá que este masculino ou este feminino se tornem uma
possibilidade do ser humano. Possibilidades que somente podem ser compreendidas no
contexto das diferenças entre os seres humanos, pois como disse Winnicott: “[...] para avaliar
de modo pleno o que significa ser uma mulher, a pessoa tem que ser um homem e para avaliar
plenamente o que é ser um homem é necessário ser mulher” (1986g [1964], p. 189). Definir
estas questões é um caminho essencial para o psicanalista. Somente com pontos de partida
bem seguros uma clínica pode ser sustentada.
se se concebe uma pessoa totalmente integrada, então tal pessoa assume plena
responsabilidade por todos os sentimentos e idéias que pertencem ao “estar vivo”. Em
282
Tornar-se uma pessoa inteira não é fácil. Tornar-se mulher não é igualmente fácil.
Aceitar-se como se é, com seios, limitações físicas e menstruação é fundamental para poder
engravidar. Como disse Winnicott: mulheres muito masculinas não engravidam. Mulheres
que não aceitam sua condição de mulher não poderão se relacionar com homens.
As mulheres têm ido para o mercado de trabalho e homens têm assumido o cuidado
dos bebês. Papéis se alteram e dificuldades são freqüentes. Homens são deslocados de funções
que até então ocupavam e se sentem descartados. Como não experimentar essa sensação se até
para o ato de engravidar eles não são mais necessários?
O modo como se vê a figura feminina e como se relaciona com ela surge de forma
contundente na clínica, tanto em homens como em mulheres. Isso pode ser compreendido
quando Winnicott fala da MULHER (1950a, 1986g [1964]). Nas mulheres, o temor à
MULHER surge em mulheres que por se sentirem muito frágeis, não conseguem ver o grande
poder que lhes é próprio porque podem gerar a vida a outro ser humano. Nos homens, isso
pode ser percebido em queixas de homens que se vêem como homossexuais, crendo que se
sentem atraídos por homens, quando na verdade têm é receio desta MULHER que têm em seu
inconsciente.
Vilete aponta que “ao se separar da mãe interna, o homem se identifica com
ela e pode assim, sem conflitos, aceitar e admitir sua parte feminina, promovendo a integração
do seu ego.” (1996, p. 913)
Assim, com Winnicott, duas grandes alterações são promovidas. A primeira se refere à
necessidade de trocar a teoria da sexualidade pela teoria do amadurecimento para que se possa
compreender o ser humano. A segunda indica que, mesmo que ume fenômeno seja da ordem
da sexualidade, uma nova teoria da sexualidade está ao nosso alcance como ferramenta eficaz,
uma teoria da sexualidade que, curiosamente, não é sexual.
para ser criativa, uma pessoa tem que existir, e ter um sentimento de existência, não
sob a forma de uma percepção consciente, mas como uma posição básica a partir da
qual operar.
Criatividade é, então, o fazer que, gerado a partir do ser, indica que aquele que é está
vivo. Pode ser que o impulso esteja em repouso; mas, quando a palavra “fazer” pode
ser usada com propriedade, já existe criatividade. (1986h [1970], p. 39)
CONCLUSÃO
A justificativa de Winnicott para o abandono de uma teoria das funções sexuais está
no fato de que a teoria das funções sexuais, descrita em termos da trajetória da libido pelas
zonas erógenas, não contempla a condição do bebê no início da vida: a de um bebê imaturo,
totalmente entregue aos cuidados de um ambiente que pode ou não facilitar o seu processo de
crescimento pessoal. A psicanálise tradicional parte do princípio de que no início da vida o
sujeito já tem sua personalidade constituída e já tem condições de se relacionar com a
realidade externa, buscando o prazer.
Winnicott não nega que o indivíduo humano busque o prazer, mas aponta as condições
prévias para que esse prazer possa ser buscado e obtido, o que está vinculado ao
desenvolvimento do indivíduo de forma integrada. Para Winnicott, a sexualidade é conquista,
e não ponto de partida do processo desenvolvimental.
Num primeiro momento, o estudo de alguns textos de Freud mostram que a teoria da
sexualidade proposta pela psicanálise tradicional assenta-se em componentes empíricos, com
a descrição da sexualidade por meio das fases psicossexuais. Porém, o elemento condutor
286
Este estudo também revelou que uma teoria da sexualidade fundamentada no processo
de amadurecimento humano não pode se sustentar em conceitos metapsicológicos.
Este estudo também demonstrou que a teoria da sexualidade proposta por Winnicott
tem um componente instintual sexual e um componente não sexual. Winnicott mostra que a
sexualidade se constitui através dos elementos instintuais, juntamente com as identificações
cruzadas, identificações que o bebê estabelece com sua mãe.
Este componente não sexual, expresso pelos elementos masculinos e femininos puros,
levou Winnicott a conceber uma teoria da sexualidade que mostra a necessidade de ter como
ponto de partida a relação inicial do bebê com o mundo, expressa no contato que o bebê
estabelece com a mãe.
O trabalho de Winnicott mostra que Loparic tem razão: “Winnicott, tal como Freud, é
um pensador radical. A sua obra exige leitores igualmente decididos, dispostos a romper,
quando necessário, com usos estabelecidos, disposição particularmente necessária quando se
trata de considerar a reformulação winnicottiana da teoria psicanalítica da sexualidade” (2004,
p. 8)
sem alguém especificamente orientado para as suas necessidades, a criança não pode
encontrar uma relação operacional com a realidade externa. Sem alguém que lhe
proporcione satisfações instintivas razoáveis, a criança não pode descobrir seu corpo
nem desenvolver uma personalidade integrada. Sem uma pessoa a quem possa amar e
odiar, a criança não pode chegar a saber amar e odiar a mesma pessoa, e assim não
pode descobrir seu sentimento de culpa nem o seu desejo de restaurar e recuperar.
Sem um ambiente humano e físico limitado que ela possa conhecer, a criança não
pode descobrir até que ponto suas idéias agressivas não conseguem realmente destruir
e, por conseguinte, não pode discernir a diferença entre fantasia e fato. Sem um pai e
uma mãe que estejam juntos e assumam juntos a responsabilidade por ela, a criança
não pode encontrar e expressar seu impulso para separá-los nem sentir alívio por não
conseguir fazê-lo. O desenvolvimento emocional dos primeiros anos é complexo e não
pode ser omitido. E toda criança necessita absolutamente de um certo grau de
ambiente favorável se quiser transpor os primeiros e essenciais estágios desse
desenvolvimento. (1947e, pp 57-8)
Este estudo mostrou que os problemas da área da sexualidade não podem ser
remetidos apenas a uma fase do processo maturacional, que o indivíduo tem que ser olhado
em sua totalidade. Assim, a clínica da sexualidade não pode ser apenas calcada nos
componentes edípicos, posto que representações e repressões não dão conta dos primeiros
momentos de vida do indivíduo.
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