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DOIS.

ZERO
OITO.QU4TRO
|Douglas Eralldo
1.

O fedelho não tinha mais do que três, três anos e meio. Sabe-se lá como tinha crescido ali,

rechonchudo, rosado. Mais parecia coisa de gente da cidade, dos Da Cidadania. Nunca

alguém da comunidade. Das Zonas Livres. Foi a Catinga que viu a coisinha ronronado como

gato-mirrado. Era um chorinho, um grunhido. No começo ela até pensou mesmo ser um gato,

servia já, há muito que não comia gato. Na verdade há muito que não comia carne. A última

vez foi quando ela, Caboclo, Pé de Peido e Furunga andaram pela riba do morro, lá onde os

barracos encontram as pedras. Era um ninho de ratos raquíticos, ainda assim, aquilo,

lembrava-se, tinha sido um grande banquete.

“Mas nada com o que vai tê ness’noite”.

Era Pé de Peido que afiava as facas enferrujadas. O encontro de ferro velho com ferro

velho produzia onomatopeias esgarçadas e irritantes. Furunga tentava limpar a bacia com a

areia enquanto Caboclo tentava atiçar fogo numa lenha, coisa rara encontrada depois da

pedreira. Catinga entretia o fedelho para que não escapasse. Tinha já ajeitado uma peça para

que Pé de Peido fizesse o serviço sem que ela visse. Catinga era muito emotiva, gente fraca, e

toda vez tinha pena do bicho matado para o almoço.

P’raquela vez, dia de se fartar, tinham ainda chamado Zé Ferrão, a Xica Teta e a

Demônha, essa sempre festêra e dona dum radinho bem velho e daquele troço que guardava

dez mil músicas das antigas. “Hoje tem samba no morro” gritou Zé Peido ao ver a chegada da

mulata fornida à laje.

“Deixa a vida me levar, vida leva eu...” xiou a caixa preta.


A música pareceu atinar o fedelho p’ro que ocorria naquele terreiro. Na primeira ficou

todo atiçado, na segunda irritou-se, e no meio da terceira música deu um desses berros que se

vê pouco e começou a correr do barulho. Daquela gente.

“Ô, Catinga, dêxa a janta fugir não, sua besta” deu o alarme o Cabloco já pegando

porrete e dando início à perseguição. Era toda a gente correndo atrás do fedelho.

Tinha até graça ver tudo aquilo. Gente desengonçada fazendo o que não se fazia.

Demônha no começo da corrida tropeçou numa garrafa de fermentada e estatelou-se no chão.

Do Caboclo se ouvia o tink tink dos ossos. Mais ágil era a própria Catinga, mas sua altura e

sua fraqueza de corpo não davam muita vantagem.

Se a música assustou o fedelho de começo, a continuação da fuga, certamente se deu

pela cena toda montada. Aquela gente gritando e indo atrás dele. Podia ainda ser fedelho, mas

burro era não. Tinha coisa ali, natural que se pusesse a correr. Tinha a vantagem de ser

baixote e sabe-se lá como, fornidinho de saúde. Na primeira catada de mão, Zé Peido passou

longe dos cabelos, tropeçando numa pedra deixada ali. Quando Furanga chegou perto de

catar-lhe com os dedos, estes escorregaram na pele melada do moleque. Corria que nem

bichinho desmorrido, peladinho como quando cuspido buceta afora.

O quebra aqui quebra ali, a algazarra e tudo mais ainda tiveram o efeito de multiplicar

quem caça. Quem via o alvoroço logo se punha nele e de uma esquina para a outra o jantar na

laje da Catinga tinha ‘gora dado início a uma das competição das boas. Risco era que

comessem sem mesmo assar, porque atrás do fedelho certo que já tinha uns oitenta.

Os olhos do danadinho eram agora uma dessas bulita estralada. Agigantavam-se no

meio das fuças como se fossem saltar do rosto. É como se o fedelho tivesse noção do quanto

estava fodido enquanto sem qualquer esperança, apenas ação, corria descendo morro abaixo.

Salta entre um abraço aqui. Escorrega por ali, pula aquela tábua, olha essa mão aí

perto, tudo isso se ele tivesse noção d’alguma coisa, certamente pensaria. Mas fedelho que
era, quem sabe instinto, corria, pulava, corria... Sentia doerem-lhe os ouvidos por causa da

cacofonia em seu encalço.

Quando de repente tudo então cessou, o fedelho soube que alguma coisa no mundo

dera errado. Foi mágica, segundos antes barulho, gritos, o fedor de dezenas de bafos no

cangote, ‘gora silêncio, tempo congelado... supensão.

É como se o fedelho sentisse a atmosfera rodar em seu redor. Vertigem de quem está

no centro mas também longe dele. A imagem esgarçada diz-lhe que desceu um bocado de

morro. Tá tudo plano agora. Tem até uma coisa preta em que está pisando. A coisa preta é

quente e queima seus pézinhos pelados. A gente que vinha atrás dele agora ‘tá tudo parada,

estátuas paupérrimas, esfarrapadas, moribundas. O Fedelho não é muito esperto, mas sabe que

tem medo no olho da cada gente lá parada. É mais que medo, terror... mas... percebe, olham

sim, não para ele, mas para além, para além dele.

Percebe então. Está no meio de uma coisa muito, muito ruim mesmo. É um comboio

que vem lá. Viaturas negras, bichos de aço que cospem fogo por qualquer olhar feio. Aquela

gente quer fugir, sabem que ajuntamento daqueles não é bem quisto pelos Da Cruz.

Dispersam qualquer juntina de dois, ali tem um bocado mais que isso. Vivem um dilema,

fugir já não dá mais... e ainda tem o jantar. Ninguém quer sair porque o último que ficar quem

sabe assa o fedelho...

Mas tem o comboio. Os Da Cruz... Não, não, há um engano, não são os civis, são seus

irmãos, Os Polícia. De longe é difícil distinguir, são quase tudo mesma coisa. Mas é que os

Polícia vão ali só por uma razão...

“É descarrego!” Grita o Pé de Peido.

Pouco, mas há alívio. Quem sabe Os Polícia não encrenquem com aquela juntina. É só

descarrego, lá no meio vem um dois três camburão. Mais gente p’ra Zona Livre. Gente de

cadeia, todo mundo sabe, que não se mistura muito.


O Fedelho continua ali, no meio. Entre as gentes e os Polícia. Tem a sensação, o

Fedelho, de que por pelo menos um minuto todos eles param para pensar nos rumos.

Enquanto isso ele ali, no meio, as gentes com as facas enferrujadas, e famintas, os Polícias em

suas viaturas pretas... Silêncio....

A suspensão da atmosfera é rompida com voosh voosh voosh que vem de algum lugar

do céu, percebe o fedelho. A coisa preta contra o azul do céu, visto ali debaixo parece aquelas

mutucas que tiram sangue tod’hora.

“Evacuem a zona de entrega... evacuem a...” a coisa do céu grita. Parece lata que grita,

pensa o Fedelho.

A coisa fala só duas vezes e meia, antes da terceira chove fogo dela. O pipocar faz

saltar pedacinhos da terra preta. Parece traçar uma linha pouco antes daquelas gentes

aglomeradas.

Eles são obrigados a desistir do jantar. Em menos de dez segundos desaparecem pelo

labirinto decaído. Parecem aquelas baratinhas que uma hora estão ali, um segundo depois

desapareceram pelo ralo.

Agora são apenas Os Polícia e o Fedelho. As viaturas avançam, filhos da puta, a

grandona, aquela dos pneus gigantes nem viu nada. Passou por cima, fazendo creck creck de

Fedelho. A porta do camburão se abriu e algo foi empurrado.

“Aproveita a liberdade, seu bosta”. Diz alguém dentro daquela coisa.

2.
O Bicho sentia tonturas desde que fora ali atirado. Era remessa das grandes, uns vinte e pouco

mais libertos. Questão de economia dos Polícia que não gostavam de esbanjar recursos

levando pouca-merda p’ras Zonas Livres. O Bicho era o único que ainda resistia vivo depois

de uma semana. Mentira das grandes, coisa pra jornal, teatro de função estabilizadora dizer

p’ra gente de bem que o Estado era justo e que as leis continuavam a ser respeitadas,

cumpridas. Coisa que ninguém discutia. E por ventura algum insano ou com sinais de heresia

aparecesse, argumento não faltava ao povo de bem. “Se o governo fosse ruim ou malvado,

acha mesmo que cumpririam os alváras de soltura?” era sempre a resposta certa para as

perguntas erradas, ainda que praticamente ninguém as fizesse. Quem poderia alegar em

contrário se as penas impostas pelo Estado eram cumpridas em todas suas exigências. Quem

tivesse que ser fuzilado, que o fosse, quem tivesse que voltar à liberdade, que voltasse.

“Hoje a benevolência do Estado é demonstrada ao darmos e permitimos a estes

meliantes, infratores e marginais, terem suas segundas chances. Quem aprendeu algo, quem

mudou de verdade, vai poder provar agora, começando de novo em nossas Zonas Livres...”

Discurso introdutório feito há anos pelo presidente em toda cerimônia de soltura.

Até mesmo o Bicho ouvira aquela ladaia. Mas todos os vinte e poucos, bem como os

que vieram antes deles, os que vieram antes deles, os que vieram antes deles... tinham sempre

o mesmo destino, coisa que ninguém se preocupava fora das Zonas Livres. Duravam pouco,

diversão p’ra turma das Comunidades começava tão logo o comboio das autoridades dava

volta e meia deixando ali carne nova à mercê do Movimento. Raros eram incorporados,

geralmente o Chefe mandava matar tudo, fragmentar, distribuir um pouco entre os seus e as

partes nobres iam direto para...

Além disso, tinha a lista... O Bicho tinha quase certeza que estaria nela. O que

significava que a ele nem mesmo a reciclagem seria destino. Dos da Lista, picoteavam,

queimavam e enterravam fundo, tinha ouvido falar.


Não pagaria pra ver. De jeito nenhum. O Bicho tinha que sobreviver, coisa difícil de se

fazer, é bem verdade.

Só tinha chance se escapasse das primeiras horas. Mas os tiros tinham começado nem

três minutos depois da desova. Os Vinte e Poucos, apavorados, amedontrados, corriam como

baratas detetizadas. Baratas de calças laranjas e torsos desnudos. Alvos fáceis, e mesmo que

livrassem-se das roupas-de-cadeia, os gigantescos códigos de barras impressos às costas

denunciavam de onde vinham.

Ou seja.

Ninguém lhes daria abrigo.

Qualquer um poderia tentar matá-los. Era sempre bom uma ou outra recompensa do

Chefe.

E também estavam tão ou mais fracos que os famintos das Zonas Livres. Estado

eficiente controla suas penas, sabe quando liberdade chega, o que significa que sabe

exatamente quando dobrar, triplicar os trabalhos forçados na prisão...

O Bicho, mesmo. Fora enviado nos últimos três meses com um grupo para a rara zona

de floresta densa. Dezesseis horas diárias de trabalho, e três porções de ração por dia. “E

lambam os beiços seus marginais. Mês que vem vai ser metade dessa ração, o Governo até

que enfim percebeu que não dá pra ficar gastando desse jeito com vagabundo” gritava o

carcereiro da cantina a cada refeição.

O Bicho nem sabe como voltou de lá. Também nunca conseguiu descobrir quantas

árvores tinha derrubado e descascado naquele período. “Pelo menos agora esses filhos da puta

pagam pelo que fizeram.” O bicho ouvia dos de uniforme. “Agora sim somos uma nação rica

e próspera” os guardas costumavam deixar escapar quando pensavam que dormia. O Bicho

sentia vontade de vomitar com papo de guarda. Tinha ouvido muito disso, desde que nascera,

é verdade.
A lei dizia que aos sete anos os meliantes tinham que ser informados de suas penas no

caso de crimes por probabilidade hereditária. Era por questão de equilíbrio judiciário, pois

embora a maioridade penal continuasse aos sete anos, diante da chiadeira do Congresso para

que se reduzisse p’ra três, os crimes por probabilidade hereditária eram uma execção

constitucional. Foi o que lhe explicou o juiz numa audiência confirmatória quando o Bicho

fez sete anos. Contou também dos crimes que o pai do Bicho tinha cometido e também do pai

do pai dele. “Estatisticamente, meu jovem, você indubitavelmente cometeria crimes, e se

posto em liberdade, possivelmente cometê-los-á”. O Bicho que na época era convocado pelo

vocativo Prisioneiro 2057-1.0075/40 (número grafado em seu código de barras), não entendia

nada do que falava o homem gordo de feições entojadas que olhava-o de cima para baixo.

Por alto a síntese era mais ou menos a seguinte: os progenitores do Bicho eram

criminosos, bandidos de alto grau, coisa a ver com subversivo, moral, traições, assaltos,

“coisa pesada” rematava o juiz. “A estatísca é das ciências, uma das mais belas, meu jovem.

Nosso país conviveu por anos com o medo provocado pela insegurança, pela frouxidão do

Estado com meliantes e marginais, e nem fodendo que voltaremos a estes tempos negros em

que um cidadão de bem não pudesse andar em seu carro sem o risco de ser assaltado, que uma

família de bem não pudesse ir à praia sem....” a cara do gordão pareceu desolar-se “melhor,

nem lembrar”.

Foi nessa audiência em uma sala do tribunal que aos sete anos o Bicho enfim ouvira

sua sentença, punição que já cumpria desde a maternidade (a mãe fora fuzilada por formação

de quadrilha ao deitar-se com o pai do Bicho). “(...) dito isto, Prisioneiro Dois Zero Cinco

Sete Traço Um Ponto Zero-Zero Sete Cinco Barra Quarenta, ao tendo o senhor completado a

referida maioridade penal conforme a Constituição Nacional e Patriota da República Cristã

Soberana do Brasil, e de acordo com os pareceres do Ministério Público Cidadão, das

Congregações Envangélicas Cristãs quem amparam o Estado nas questões de natureza


espiritual, e da Ordem Jurídica Federal, favoráveis a manutenção da sentença provisória e

amparados em laudos oficiais de probabilidade estatística de praticar crimes contra as Leis do

Estado em razão de probabilidade hereditária, vos sentencio a pena de reclusão de vinte e seis

anos e oito meses de cárcere pleno e sem qualquer possibilidade de anistia ou reversão de

pena, sendo o senhor, ademais notificado que deverá restituir os custos do Estado por suas

práticas criminosas por meio de vosso trabalho conforme ordens e direção da Penitenciária...”

Desde então, toda noite quanto fosse possível ressonar o Bicho em sonhos lembrava-se

das palavras do juiz. Da cara de nojo do homem ao proferi-las, das feições satisfeitas de

guardas e promotores.

Naquele dia maldito, soubesse o Bicho dos significados daquelas palavras, teria se

matado, porém, antes disso, conheceu O Fantasma.


3.

Tinham uns anos passados da sentença do juiz quando o Bicho, que n’aquela época ‘inda não

era Bicho, conheceu tal Fantasma. Tinham levado o moleque p’ra uma dessas minas de

nióbio, trabalho grande debaixo da terra. Como ração era pouca, só p’ra não deixar morrer,

num daqueles túneis o rapazote arriou as pernas. Bumf. Fez o seco barulho quando os ossos

com pele caíram no chão.

“Dêxa de molengagem muleque.” Gritou logo um dos carcereiros. Pra função só tinha

gente tinhosa, barriga cheia, e vontade muita de usar o porrete. Os mais temidos iam direto

p’raS kalashinikov. “Se vagabundo não dá bom exemplo, não se correge” Dizia um outro lá

com jeito de velho no serviço.

“Já está de pé.” Gritou o homem.

Estava nada. A figura estranha é que tinha erguido peso quase morto do guri e posto

de pé. “Acorda rapaz... acorda” o homem dizia baixinho porque guarda de prisão era burro,

mas nem tanto, e logo perceberiam o engodo. Tinha três dedos e meio na garrafinha de água

pra durar o dia lá embaixo, e ainda que estivesse na metade da jornada, o homem atirou o

conteúdo na cara do garoto.

Foi assim que se deu o conhecimento dos dois.

O homem não tinha nome, é claro, ninguém que devesse para a justiça o tinha. Mas

tampouco o homem tinha número ou qualquer outra coisa que o identificasse que não o

código genético e o rastreador que todo preso tinha implantado na aorta. Por isso era
fantasma, jogado ali por uma série de matemática que impedia o regime de matá-lo, afinal,

gente esperta e das crenças bem sabe como surgem os mártires.

Nem mesmo o homem talvez soubesse quanto tempo cumpria pena. Na verdade nem

pena ele cumpria, se do que lembra já não é mais mentira da cabeça, as forças do Governo o

acharam no meio dum grande mato. Ele fugia sim, mas também resistia, pelo menos disso se

lembra. Tinha já nascido com as coisas bem ruins por aquela terra, durante o processo.

Quando havia ainda algum embate ou antagonismo. Tinha crescido por guetos, subúrbios

perdidos e matos, enquanto seus pais lutavam contra o novo regime. Naquela época ainda,

pelo que se lembrava, nem todo mundo tinha também se convertido, ou pelo menos fingido

tanto. Mas a totalização do país numa coisa só, não demoraria, sabia, ainda que lutasse. Então

lutou enquanto deu, até homenzinho tinha virado. Tempo pra ter visto muita coisa ruim

também.

O que não sabia dizer é que se fugia ou se preparava algum contraataque no meio do

mato. Nunca tinha visto tanto drone, polícia, milico e dróide juntos. Tinha certeza que sua

captura seria o maior evento noticioso do jornal das tardinhas. Ia ser tanta aleluia e glórias que

se o tal Cristo existisse mesmo, não ficaria surdo à catarse que provocaria sua prisão.

Mas nada aconteceu.

Não houve notícias. Nem mesmo lhe julgaram. Nenhuma audiência, nada de

fotografias. Simplesmente foi jogado numa sala escura. Depois vieram as cirurgias, as

modificações e o périplo de prisão em prisão. Tinha muitos anos que não existia. Isolado e

com medo de tudo e todos que lhe punham próximos. Pouco falava, e tão bem como chegava

num lugar, era levado para outro.

Mas se tem coisa que gente de cadeia é, é esperta. Mesmo mortos de fome, fadigados,

enlouquecidos e abandonados, gente é coisa teimosa, que guenta trancos dos bem piores, e
teimam em existir. Não demorou tanto tempo que se possa pensar para começar os susssurros

por corredores e campos de trabalho sobre o tal Fantasma.

Disso nada sabia o Bicho quando voltou assim engolfando aquele punhadinho de água

e tossindo feito leproso.

“Shhhhhiiu. Não fala nada, garoto. Tenta ficar de pé.” O homem disse com certos ares

paternais. Não era muito comum da parte dele, já tinha visto um bocado de crianças pelos

campos de trabalho por quais passara. Mas ali, naquele túnel, tentar salvar o moleque lhe

queimou o peito como se fosse uma ordem e uma verificação de que os demônios não tinham-

lhe tirado todas as almas.

“Que putaria é essa aí... trabalho... trabalho...” e os tazeres chiaram produzindo ondas

iluminadas de um azul maldoso pelas galerias labirintitícas. Outra coisa que carcereiro gosta é

do treco que dá choque.

“Sabe por que carcereiros são pessoas, e não robôs, garoto?”

O Bicho só grunhiu um cadinho.

“Robôs não são sádicos...” o Fantasma balbuciou e estimulou o rapaz a voltar ao

trabalho.

E foi assim que naqueles três dias o Bicho que ‘inda não era Bicho e o Fantasma

fizeram amizade. Aos sussurros e a contragosto do homem, que sabia que interações mais

longas na cadeia significavam um bocado de sessões doloridas de castigo. Quando não “o mal

era cortado pela raiz”.

“Não consegue ficar com essa boca fechada moleque” recriminava o Fantasma toda

vez que o Bicho puxava assunto. Até mesmo passou a evitá-lo, mas sem muito sucesso. Além

disso, as coisas mudaram quando o Bicho contou-lhe das lembranças, quase já sonho da

audiência com o juiz, das palavras proferidas...

“Então um dia você...” pensou o Fantasma.


E por uns três dias contou em volume de conspiração uma série de estórias para o

moleque. Cada um dos cinco minutos do horário da ração eram-lhes preciosos. Fragmentavam

ao longo do dia trabalho compartilhado de modo que não chamasse atenção dos carcereiros. O

Fantasma sussurrava, o Bicho ouvia...

Foram três dias de estórias e então O Fantasma desapareceu outra vez.


4.

O Bicho tinha cadão de coisa p’ra fazer depois da liberdade. Primeira era ganhar nome,

alcunha, apelido, ou como lá se possa chamar a coisa que começaram a chamá-lo. Até então

não tinha nada dessa coisa, era só mais um que engrossaria a sopa do pessoal do topo. Mas o

Bicho era bicho teimoso, mais do que isso, parecia ter vindo da desova com cabeça feita, ideia

de desdesistir, de guentar o tranco como se soubesse de coisa que ninguém mais sabia.

Por isso começou a dar trabalho a quem quisesse desvivê-lo. Tinha morrrido já uns

quantos de sua turma, uns por tiro, outros por faca. Teve um coitado que deu azar, em fuga,

caiu em toca dos morrendinho justo quando estavam com fome e sem a pedra-paz. Botaram-

se no dito com a raiva das maiores, puxa daqui puxa dali separou-se braço do corpo, perna, ‘té

mesmo os bagulho de macho teve quem mastigasse cru.

Um horror.

Nessas feitas o Bicho ouvia os gritos aqui e ali. As rajas de metralhadora, o corre corre

corre pelas vielas imundas. Mas Bicho que era, vinha camaleando-se pelos zincos, rateando-se

por buracos exíguos, tomando da própria urina e economizando o que restava-lhe de energia.

Em sua cabeça de gente que quer desvoltar os males, bem sabia que para prática pôr

tinha antes de viver, de morrer não podia de jeito algum. Depois encaminhava o resto, mas

por cálculos seus, uma duas semanas e a gente o teria esquecido, e só então quem sabe

intrometer-se entre eles.


Mas na vida sabe c’mo é, nem tudo sai como o imaginado. Ia levar mais tempo, pois

parecia que o Chefe do Movimento tinha ‘garrado birra com ele, e rondas passavam os dias

em sua caça. Sempre em grupos de sete oito, armados pelos dentes, traje oficial, bermuda,

camiseta cavada e colarzão no pescoço. “Viu ovo-ruim, Dona?” perguntavam pelos cantos.

Ovo-ruim, era assim que chamavam os desovados pela polícia. Gente mal-vinda que tinha de

ser controlada para que não intentassem de bagunçar as coisas na comunidade, afinal, tinha

tudo entrado nos eixos...

Só o fato do fidamãe não se apresentar voluntariamente já demonstrava o quão ruim

era aquele ovo-ruim.

De ovo-ruim para Bicho, foi pouca coisa então. Escondido das gentes, mesmo dos que

não aparentavam riscos, movia-se pelas noites, amelheando um pote de ração aqui acolá.

Encontrando canos com gotas dágua que lhe reluziam como ouro, e principalmente

esquivando-se como um fantasma. Ou um bicho intrometido.

De primeiro teve de tirar roupa de cadeia. Ser alvo já não é fácil, pintado daquele jeito

‘inda pior. Ficou quase dia todo andando nu, que até menos estranho era. Depois surrupiou

calças velhas e camiseta rasgada de um morrendinho jogado na sarjeta. Desvivia o coitado,

colher e isqueiro do lado. Dose grande pelo jeito.

O Fantasma até tinha lhe dito a quantas andavam as coisas do lado de fora, quantas

que para ele não fazia muito sentido, tinha nada de margem para comparar. Mas coisa é ouvir

estória, outra é vivê-la. Nos dias de fuga tinha já podido construir sua compreensão das

quantas.

Tinha ali monte de gente, sé é que gente descreve o monte que tinha ali. Se

empinhavam e se afundavam nos barracos fedendo a mofo. Era pois também um mundo

vertical, de sobe e desce por corredores estreitos que mal passa um. Por quem que passa vê

medo ou fome nos olhos murchos. Pelo dia poucos se andam pra fora dos quadrados que
habitam. Invadiu casas e só viu vidros com aquela bolota nutricional. Ração que nem a da

cadeia, mas pior, lhe parecia. Numa ou outra encontrou restolho de ratinhos, mas pelo visto

caça também era pouca. Metade dessa gente, tudo morrendinho, acalmados pela pedra-paz

vendida pelos do Movimento. Esses, aliás, os poucos que tinham sustância por aquelas

paragens. Comandavam tudo por ali, e embora praticamente não houvesse dinheiro ou coisa

parecida, de algum modo sempre monetizavam seus negócios.

Parte dos negócios, o Bicho em sua toca ouvira, vinha da troca de ração por pedra-paz

ou vice versa. Muita coisa, aliás, o Bicho ouvira incógnito. Inclusive dos boatos sobre o ovo-

ruim que tinha sumido. Ah, se coisa que gente não perde ‘té mesmo no inferno é a capacidade

de contar estórias. Já tinham algumas sobre ele. Fugiu da comunidade. É meganha infiltrado –

às vezes ocorria este tipo de coisa como prevenção que surgisse alguma liderança perigosa

por ali – ou então desapareceu como um santo.

Mas até aí, ‘inda não era Bicho. O nome começou a pegar depois do cerco. Bobagem

dele que os do Movimento não lhe achariam ali. Tinham canal com a Zona de Cidadania, o

que significava melhor jeito de pegar rasto de ovo-ruim.

O Chefe mandou onze dos seus. Tudo cabra armado, sem chance de dar errado. Mas

deu. Bicho já tinha de ter sido bicho na cadeia, não fosse não era ovo-ruim, mas desvivido,

isso sim. Bicho de antena ligada, acuado e atento até mesmo ao bater das asas de um

mosquito. Gente do Chefe achou que número bastava. Bastava não.

O Bicho tinha com ele, claro, uma ou outra faca surrupiada, mas nada parecido com as

metralha e as pistolas dos caras. Mas ele tinha ganha de não desviver. O Fantasma tinha

plantado nele muitas sementes, mas para germinarem, só desmorto. Nem a pau que os caras

iam pegá-lo. Matou um por um, o último foi que nem daqueles engalfinhamento de cachorro

quando cachorro ‘inda havia. Rolaram por terra e pedra. O Bicho matou esse com os dentes.

Foi o que disseram quem viu a cena. Mordeu forte no pescoço, dente forte de ovo-ruim, de
quem nunca vez uma cachimbou pedra-paz. Se foi deve ter sido, porque começou aí o negócio

de Bicho.

“O ovo-ruim é um bicho das malvadeza”.

“Matou como bicho-fera os hôme de Pai Urso”.

“É louco como bicho. Melhor não se meter.”

E por aí foi se indo os falatório sobre o vulto que agora quase todo mundo sabia que

habitava a comunidade. Começaram a desviar dele como desviavam dos caras do Movimento.

O que também coisa boa não era porque morro que se preze dono só tem um. Todavia, Pai

Urso é que seria agora mais cauteloso com aquele berne que começava pururucar a pele.

Antes que o Bicho crescesse ainda mais, o Chefe iria cobrar a quem cabia aquela

desova. O problema não era de todo seu, que os outros entrassem na festa também.
5.

Há muito que polícia não subia morro, quebrava favela. Lógico que isso tudo para não dar

assunto a quem maldizesse do governo, desfeitando a Zona Livre. Que se virassem ali, aquela

massa desfuncional, sem razão de existência mas que quando morte não viesse, tinham que

ficar n’algum lugar. Que fosse naqueles morros, e que ali ficassem. Disso o Estado, claro

cuidava, criava condições, tinha também o acordo com o Movimento, gente melhor de

situação que mandava no todo resto que dava. Então, nada de polícia, nada de robôs subindo

morro, trocando golpes com gente quase morta. Mas se a polícia não subia, não significa que

a sociedade nada fizesse.

Em dias normais, de venda de falsas esperanças, de cuidados com a estabilidade, vez

por mês, semana talvez, só subia envangelizador, gente caridosa, fala doce, potes de

promessas. Livres do Estado, mas nem tanto, porque a presença dos pastores por ali, mais

significava do que só converter. Servia também para não cortar a linha por mais fina que já

estivesse. Assim, aquela gente quase desviva sabia de tudo do acontecido na Zona de

Cidadania, naquelas ruas paradisíacas para além do muro-choque. Nos barracos três coisas

não podiam faltar, a ração, a pedra-paz e os aparelhos de telefone. Tudo nas mãos, nas pontas

dos dedos. Um ou outro tinha ainda televisão, coisa boa, pública, tudo transmitindo as boas

notícias do Governo, e, claro, também das coisas de Cristo. Ah sim, tinha também outra coisa

que não faltava por ali, pendurado nas paredes de lata dos barracos, grudado nos muros das
quebradas, os cartazes d’Ele. Cabeludão e barbudo, sorriso e olhar enigmático, pouca gente

sabia dizer ao certo se de brabo ou de feliz. Até podia ser brabeza, afinal, o pai dele não

levava muito desaforo pra casa. Às costas do barbudão, o fuzil atravessado, coisa tão antiga

quanto ele, diziam, numa mão a adaga, coisa usada também na proteção das boas famílias. A

frase era sempre a mesma “Cristo Rei te acompanha ao lado. Ele olha sempre por você”. Na

Zona de Cidadania, terra de gente culta, ninguém duvidava disso, nas Zonas Livres, mesmo

que no íntimo do pensamento, vez por outra ‘té duvidava. Pior ‘inda é que às vezes até

parecia que o barbudão via tudo mesmo, pois não muito raro um ou outro grupo dos Da Cruz

dava cabo de indivíduo suspeito de heresia.

Viu? É isso mesmo que você está pensando, se os Polícia, quase tudo buneco de lata,

não sobe o morro, pode crer que os Da Cruz sobem sem moléstia alguma. Na verdade, nas

Zonas Livres duas coisas são ‘inda mais temidas que os Polícia, os “irmão do Movimento” e

os Da Cruz, nome chamado pelos dali, oficialmente conhecidos como Soldados da Fé nas

zonas d’outro lado dos muro-choque. Medo mais dum que outro sempre variava os tempos,

mas certo é que os Da Cruz se preciso, faziam até o mais terrível Chefe de morro baixar

zoreia.

Nas telas grandonas espalhadas aqui e ali pela favela, ligadas vinte e quatros horas,

sempre tinha programa ou outro contando a história de glória e louvor daquelas boas almas da

sociedade, dedicadas a proteger a boas moral das famílias brasileiras. Um exemplo, nada de

dinheiro público, tudo dízimo de bom fiel que sabia a necessidade do gigantismo daquela

obra. Levar a palavra e rechaçar qualquer pensamento herege que diziam no passado ter feito

coisa ruim do país. No aparelhinho pessoal ou nas telonas comunitárias dava para se construir

uma boa ideia do tamanho daqueles bons soldados. Eram uns milhões deles, farda bonita,

preta, protegida das proteção divina que ‘té mesmo quem sabe fosse desnecessário os coletes

e o capacete pretão, a cruz emoldurada naquelas roupas imponentes, por certo deveria
proteger mais que o cinto com pistola e bomba-pulso, os rifles e lasers às costas. Isso tudo em

kit de um em um, mais, claro, os carro fortão, alguns aeromóveis, e milhares, milhares mesmo

dos dronecruces que quando mais prático, faziam o trabalho sem grande risco às boas almas

cristãs. Dronecruces geralmente eram usados para entrar em barraco e libertar a terra de alma

herege ou perigosa. Viam, reconheciam, atiravam. Naquela ação de caça ao Bicho do Morro

dos Milagres, pelo menos cem desses dronecruces estavam em ação. E embora nem Governo

nem Igreja se pronunciem das ações e operações dos Da Cruz, quem vive no pé do morro, no

meio dele e ‘té mesmo no topo vai confirmar sem grandes diferenças que pra mais de mil

soldados subiram naquele dia.

Pros que fingiam temer o inferno, melhor atuavam quando demônios.

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