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ZERO
OITO.QU4TRO
|Douglas Eralldo
1.
O fedelho não tinha mais do que três, três anos e meio. Sabe-se lá como tinha crescido ali,
rechonchudo, rosado. Mais parecia coisa de gente da cidade, dos Da Cidadania. Nunca
alguém da comunidade. Das Zonas Livres. Foi a Catinga que viu a coisinha ronronado como
gato-mirrado. Era um chorinho, um grunhido. No começo ela até pensou mesmo ser um gato,
servia já, há muito que não comia gato. Na verdade há muito que não comia carne. A última
vez foi quando ela, Caboclo, Pé de Peido e Furunga andaram pela riba do morro, lá onde os
barracos encontram as pedras. Era um ninho de ratos raquíticos, ainda assim, aquilo,
Era Pé de Peido que afiava as facas enferrujadas. O encontro de ferro velho com ferro
velho produzia onomatopeias esgarçadas e irritantes. Furunga tentava limpar a bacia com a
areia enquanto Caboclo tentava atiçar fogo numa lenha, coisa rara encontrada depois da
pedreira. Catinga entretia o fedelho para que não escapasse. Tinha já ajeitado uma peça para
que Pé de Peido fizesse o serviço sem que ela visse. Catinga era muito emotiva, gente fraca, e
P’raquela vez, dia de se fartar, tinham ainda chamado Zé Ferrão, a Xica Teta e a
Demônha, essa sempre festêra e dona dum radinho bem velho e daquele troço que guardava
dez mil músicas das antigas. “Hoje tem samba no morro” gritou Zé Peido ao ver a chegada da
todo atiçado, na segunda irritou-se, e no meio da terceira música deu um desses berros que se
“Ô, Catinga, dêxa a janta fugir não, sua besta” deu o alarme o Cabloco já pegando
porrete e dando início à perseguição. Era toda a gente correndo atrás do fedelho.
Tinha até graça ver tudo aquilo. Gente desengonçada fazendo o que não se fazia.
Do Caboclo se ouvia o tink tink dos ossos. Mais ágil era a própria Catinga, mas sua altura e
pela cena toda montada. Aquela gente gritando e indo atrás dele. Podia ainda ser fedelho, mas
burro era não. Tinha coisa ali, natural que se pusesse a correr. Tinha a vantagem de ser
baixote e sabe-se lá como, fornidinho de saúde. Na primeira catada de mão, Zé Peido passou
longe dos cabelos, tropeçando numa pedra deixada ali. Quando Furanga chegou perto de
catar-lhe com os dedos, estes escorregaram na pele melada do moleque. Corria que nem
O quebra aqui quebra ali, a algazarra e tudo mais ainda tiveram o efeito de multiplicar
quem caça. Quem via o alvoroço logo se punha nele e de uma esquina para a outra o jantar na
laje da Catinga tinha ‘gora dado início a uma das competição das boas. Risco era que
comessem sem mesmo assar, porque atrás do fedelho certo que já tinha uns oitenta.
meio das fuças como se fossem saltar do rosto. É como se o fedelho tivesse noção do quanto
estava fodido enquanto sem qualquer esperança, apenas ação, corria descendo morro abaixo.
Salta entre um abraço aqui. Escorrega por ali, pula aquela tábua, olha essa mão aí
perto, tudo isso se ele tivesse noção d’alguma coisa, certamente pensaria. Mas fedelho que
era, quem sabe instinto, corria, pulava, corria... Sentia doerem-lhe os ouvidos por causa da
Quando de repente tudo então cessou, o fedelho soube que alguma coisa no mundo
dera errado. Foi mágica, segundos antes barulho, gritos, o fedor de dezenas de bafos no
É como se o fedelho sentisse a atmosfera rodar em seu redor. Vertigem de quem está
no centro mas também longe dele. A imagem esgarçada diz-lhe que desceu um bocado de
morro. Tá tudo plano agora. Tem até uma coisa preta em que está pisando. A coisa preta é
quente e queima seus pézinhos pelados. A gente que vinha atrás dele agora ‘tá tudo parada,
estátuas paupérrimas, esfarrapadas, moribundas. O Fedelho não é muito esperto, mas sabe que
tem medo no olho da cada gente lá parada. É mais que medo, terror... mas... percebe, olham
sim, não para ele, mas para além, para além dele.
Percebe então. Está no meio de uma coisa muito, muito ruim mesmo. É um comboio
que vem lá. Viaturas negras, bichos de aço que cospem fogo por qualquer olhar feio. Aquela
gente quer fugir, sabem que ajuntamento daqueles não é bem quisto pelos Da Cruz.
Dispersam qualquer juntina de dois, ali tem um bocado mais que isso. Vivem um dilema,
fugir já não dá mais... e ainda tem o jantar. Ninguém quer sair porque o último que ficar quem
Mas tem o comboio. Os Da Cruz... Não, não, há um engano, não são os civis, são seus
irmãos, Os Polícia. De longe é difícil distinguir, são quase tudo mesma coisa. Mas é que os
Pouco, mas há alívio. Quem sabe Os Polícia não encrenquem com aquela juntina. É só
descarrego, lá no meio vem um dois três camburão. Mais gente p’ra Zona Livre. Gente de
Fedelho, de que por pelo menos um minuto todos eles param para pensar nos rumos.
Enquanto isso ele ali, no meio, as gentes com as facas enferrujadas, e famintas, os Polícias em
A suspensão da atmosfera é rompida com voosh voosh voosh que vem de algum lugar
do céu, percebe o fedelho. A coisa preta contra o azul do céu, visto ali debaixo parece aquelas
“Evacuem a zona de entrega... evacuem a...” a coisa do céu grita. Parece lata que grita,
pensa o Fedelho.
A coisa fala só duas vezes e meia, antes da terceira chove fogo dela. O pipocar faz
saltar pedacinhos da terra preta. Parece traçar uma linha pouco antes daquelas gentes
aglomeradas.
Eles são obrigados a desistir do jantar. Em menos de dez segundos desaparecem pelo
labirinto decaído. Parecem aquelas baratinhas que uma hora estão ali, um segundo depois
grandona, aquela dos pneus gigantes nem viu nada. Passou por cima, fazendo creck creck de
2.
O Bicho sentia tonturas desde que fora ali atirado. Era remessa das grandes, uns vinte e pouco
mais libertos. Questão de economia dos Polícia que não gostavam de esbanjar recursos
levando pouca-merda p’ras Zonas Livres. O Bicho era o único que ainda resistia vivo depois
de uma semana. Mentira das grandes, coisa pra jornal, teatro de função estabilizadora dizer
p’ra gente de bem que o Estado era justo e que as leis continuavam a ser respeitadas,
cumpridas. Coisa que ninguém discutia. E por ventura algum insano ou com sinais de heresia
aparecesse, argumento não faltava ao povo de bem. “Se o governo fosse ruim ou malvado,
acha mesmo que cumpririam os alváras de soltura?” era sempre a resposta certa para as
perguntas erradas, ainda que praticamente ninguém as fizesse. Quem poderia alegar em
contrário se as penas impostas pelo Estado eram cumpridas em todas suas exigências. Quem
tivesse que ser fuzilado, que o fosse, quem tivesse que voltar à liberdade, que voltasse.
meliantes, infratores e marginais, terem suas segundas chances. Quem aprendeu algo, quem
mudou de verdade, vai poder provar agora, começando de novo em nossas Zonas Livres...”
Até mesmo o Bicho ouvira aquela ladaia. Mas todos os vinte e poucos, bem como os
que vieram antes deles, os que vieram antes deles, os que vieram antes deles... tinham sempre
o mesmo destino, coisa que ninguém se preocupava fora das Zonas Livres. Duravam pouco,
diversão p’ra turma das Comunidades começava tão logo o comboio das autoridades dava
volta e meia deixando ali carne nova à mercê do Movimento. Raros eram incorporados,
geralmente o Chefe mandava matar tudo, fragmentar, distribuir um pouco entre os seus e as
Além disso, tinha a lista... O Bicho tinha quase certeza que estaria nela. O que
significava que a ele nem mesmo a reciclagem seria destino. Dos da Lista, picoteavam,
Só tinha chance se escapasse das primeiras horas. Mas os tiros tinham começado nem
três minutos depois da desova. Os Vinte e Poucos, apavorados, amedontrados, corriam como
baratas detetizadas. Baratas de calças laranjas e torsos desnudos. Alvos fáceis, e mesmo que
Ou seja.
Qualquer um poderia tentar matá-los. Era sempre bom uma ou outra recompensa do
Chefe.
E também estavam tão ou mais fracos que os famintos das Zonas Livres. Estado
eficiente controla suas penas, sabe quando liberdade chega, o que significa que sabe
O Bicho, mesmo. Fora enviado nos últimos três meses com um grupo para a rara zona
de floresta densa. Dezesseis horas diárias de trabalho, e três porções de ração por dia. “E
lambam os beiços seus marginais. Mês que vem vai ser metade dessa ração, o Governo até
que enfim percebeu que não dá pra ficar gastando desse jeito com vagabundo” gritava o
O Bicho nem sabe como voltou de lá. Também nunca conseguiu descobrir quantas
árvores tinha derrubado e descascado naquele período. “Pelo menos agora esses filhos da puta
pagam pelo que fizeram.” O bicho ouvia dos de uniforme. “Agora sim somos uma nação rica
e próspera” os guardas costumavam deixar escapar quando pensavam que dormia. O Bicho
sentia vontade de vomitar com papo de guarda. Tinha ouvido muito disso, desde que nascera,
é verdade.
A lei dizia que aos sete anos os meliantes tinham que ser informados de suas penas no
caso de crimes por probabilidade hereditária. Era por questão de equilíbrio judiciário, pois
embora a maioridade penal continuasse aos sete anos, diante da chiadeira do Congresso para
que se reduzisse p’ra três, os crimes por probabilidade hereditária eram uma execção
constitucional. Foi o que lhe explicou o juiz numa audiência confirmatória quando o Bicho
fez sete anos. Contou também dos crimes que o pai do Bicho tinha cometido e também do pai
posto em liberdade, possivelmente cometê-los-á”. O Bicho que na época era convocado pelo
vocativo Prisioneiro 2057-1.0075/40 (número grafado em seu código de barras), não entendia
nada do que falava o homem gordo de feições entojadas que olhava-o de cima para baixo.
Por alto a síntese era mais ou menos a seguinte: os progenitores do Bicho eram
criminosos, bandidos de alto grau, coisa a ver com subversivo, moral, traições, assaltos,
“coisa pesada” rematava o juiz. “A estatísca é das ciências, uma das mais belas, meu jovem.
Nosso país conviveu por anos com o medo provocado pela insegurança, pela frouxidão do
Estado com meliantes e marginais, e nem fodendo que voltaremos a estes tempos negros em
que um cidadão de bem não pudesse andar em seu carro sem o risco de ser assaltado, que uma
família de bem não pudesse ir à praia sem....” a cara do gordão pareceu desolar-se “melhor,
nem lembrar”.
Foi nessa audiência em uma sala do tribunal que aos sete anos o Bicho enfim ouvira
sua sentença, punição que já cumpria desde a maternidade (a mãe fora fuzilada por formação
de quadrilha ao deitar-se com o pai do Bicho). “(...) dito isto, Prisioneiro Dois Zero Cinco
Sete Traço Um Ponto Zero-Zero Sete Cinco Barra Quarenta, ao tendo o senhor completado a
Estado em razão de probabilidade hereditária, vos sentencio a pena de reclusão de vinte e seis
anos e oito meses de cárcere pleno e sem qualquer possibilidade de anistia ou reversão de
pena, sendo o senhor, ademais notificado que deverá restituir os custos do Estado por suas
práticas criminosas por meio de vosso trabalho conforme ordens e direção da Penitenciária...”
Desde então, toda noite quanto fosse possível ressonar o Bicho em sonhos lembrava-se
das palavras do juiz. Da cara de nojo do homem ao proferi-las, das feições satisfeitas de
guardas e promotores.
Naquele dia maldito, soubesse o Bicho dos significados daquelas palavras, teria se
Tinham uns anos passados da sentença do juiz quando o Bicho, que n’aquela época ‘inda não
era Bicho, conheceu tal Fantasma. Tinham levado o moleque p’ra uma dessas minas de
nióbio, trabalho grande debaixo da terra. Como ração era pouca, só p’ra não deixar morrer,
num daqueles túneis o rapazote arriou as pernas. Bumf. Fez o seco barulho quando os ossos
“Dêxa de molengagem muleque.” Gritou logo um dos carcereiros. Pra função só tinha
gente tinhosa, barriga cheia, e vontade muita de usar o porrete. Os mais temidos iam direto
p’raS kalashinikov. “Se vagabundo não dá bom exemplo, não se correge” Dizia um outro lá
Estava nada. A figura estranha é que tinha erguido peso quase morto do guri e posto
de pé. “Acorda rapaz... acorda” o homem dizia baixinho porque guarda de prisão era burro,
mas nem tanto, e logo perceberiam o engodo. Tinha três dedos e meio na garrafinha de água
pra durar o dia lá embaixo, e ainda que estivesse na metade da jornada, o homem atirou o
O homem não tinha nome, é claro, ninguém que devesse para a justiça o tinha. Mas
tampouco o homem tinha número ou qualquer outra coisa que o identificasse que não o
código genético e o rastreador que todo preso tinha implantado na aorta. Por isso era
fantasma, jogado ali por uma série de matemática que impedia o regime de matá-lo, afinal,
Nem mesmo o homem talvez soubesse quanto tempo cumpria pena. Na verdade nem
pena ele cumpria, se do que lembra já não é mais mentira da cabeça, as forças do Governo o
acharam no meio dum grande mato. Ele fugia sim, mas também resistia, pelo menos disso se
lembra. Tinha já nascido com as coisas bem ruins por aquela terra, durante o processo.
Quando havia ainda algum embate ou antagonismo. Tinha crescido por guetos, subúrbios
perdidos e matos, enquanto seus pais lutavam contra o novo regime. Naquela época ainda,
pelo que se lembrava, nem todo mundo tinha também se convertido, ou pelo menos fingido
tanto. Mas a totalização do país numa coisa só, não demoraria, sabia, ainda que lutasse. Então
lutou enquanto deu, até homenzinho tinha virado. Tempo pra ter visto muita coisa ruim
também.
O que não sabia dizer é que se fugia ou se preparava algum contraataque no meio do
mato. Nunca tinha visto tanto drone, polícia, milico e dróide juntos. Tinha certeza que sua
captura seria o maior evento noticioso do jornal das tardinhas. Ia ser tanta aleluia e glórias que
se o tal Cristo existisse mesmo, não ficaria surdo à catarse que provocaria sua prisão.
Não houve notícias. Nem mesmo lhe julgaram. Nenhuma audiência, nada de
fotografias. Simplesmente foi jogado numa sala escura. Depois vieram as cirurgias, as
modificações e o périplo de prisão em prisão. Tinha muitos anos que não existia. Isolado e
com medo de tudo e todos que lhe punham próximos. Pouco falava, e tão bem como chegava
Mas se tem coisa que gente de cadeia é, é esperta. Mesmo mortos de fome, fadigados,
enlouquecidos e abandonados, gente é coisa teimosa, que guenta trancos dos bem piores, e
teimam em existir. Não demorou tanto tempo que se possa pensar para começar os susssurros
Disso nada sabia o Bicho quando voltou assim engolfando aquele punhadinho de água
“Shhhhhiiu. Não fala nada, garoto. Tenta ficar de pé.” O homem disse com certos ares
paternais. Não era muito comum da parte dele, já tinha visto um bocado de crianças pelos
campos de trabalho por quais passara. Mas ali, naquele túnel, tentar salvar o moleque lhe
queimou o peito como se fosse uma ordem e uma verificação de que os demônios não tinham-
“Que putaria é essa aí... trabalho... trabalho...” e os tazeres chiaram produzindo ondas
iluminadas de um azul maldoso pelas galerias labirintitícas. Outra coisa que carcereiro gosta é
trabalho.
E foi assim que naqueles três dias o Bicho que ‘inda não era Bicho e o Fantasma
fizeram amizade. Aos sussurros e a contragosto do homem, que sabia que interações mais
longas na cadeia significavam um bocado de sessões doloridas de castigo. Quando não “o mal
“Não consegue ficar com essa boca fechada moleque” recriminava o Fantasma toda
vez que o Bicho puxava assunto. Até mesmo passou a evitá-lo, mas sem muito sucesso. Além
disso, as coisas mudaram quando o Bicho contou-lhe das lembranças, quase já sonho da
moleque. Cada um dos cinco minutos do horário da ração eram-lhes preciosos. Fragmentavam
ao longo do dia trabalho compartilhado de modo que não chamasse atenção dos carcereiros. O
O Bicho tinha cadão de coisa p’ra fazer depois da liberdade. Primeira era ganhar nome,
alcunha, apelido, ou como lá se possa chamar a coisa que começaram a chamá-lo. Até então
não tinha nada dessa coisa, era só mais um que engrossaria a sopa do pessoal do topo. Mas o
Bicho era bicho teimoso, mais do que isso, parecia ter vindo da desova com cabeça feita, ideia
de desdesistir, de guentar o tranco como se soubesse de coisa que ninguém mais sabia.
Por isso começou a dar trabalho a quem quisesse desvivê-lo. Tinha morrrido já uns
quantos de sua turma, uns por tiro, outros por faca. Teve um coitado que deu azar, em fuga,
caiu em toca dos morrendinho justo quando estavam com fome e sem a pedra-paz. Botaram-
se no dito com a raiva das maiores, puxa daqui puxa dali separou-se braço do corpo, perna, ‘té
Um horror.
Nessas feitas o Bicho ouvia os gritos aqui e ali. As rajas de metralhadora, o corre corre
corre pelas vielas imundas. Mas Bicho que era, vinha camaleando-se pelos zincos, rateando-se
por buracos exíguos, tomando da própria urina e economizando o que restava-lhe de energia.
Em sua cabeça de gente que quer desvoltar os males, bem sabia que para prática pôr
tinha antes de viver, de morrer não podia de jeito algum. Depois encaminhava o resto, mas
por cálculos seus, uma duas semanas e a gente o teria esquecido, e só então quem sabe
parecia que o Chefe do Movimento tinha ‘garrado birra com ele, e rondas passavam os dias
em sua caça. Sempre em grupos de sete oito, armados pelos dentes, traje oficial, bermuda,
camiseta cavada e colarzão no pescoço. “Viu ovo-ruim, Dona?” perguntavam pelos cantos.
Ovo-ruim, era assim que chamavam os desovados pela polícia. Gente mal-vinda que tinha de
ser controlada para que não intentassem de bagunçar as coisas na comunidade, afinal, tinha
De ovo-ruim para Bicho, foi pouca coisa então. Escondido das gentes, mesmo dos que
não aparentavam riscos, movia-se pelas noites, amelheando um pote de ração aqui acolá.
Encontrando canos com gotas dágua que lhe reluziam como ouro, e principalmente
De primeiro teve de tirar roupa de cadeia. Ser alvo já não é fácil, pintado daquele jeito
‘inda pior. Ficou quase dia todo andando nu, que até menos estranho era. Depois surrupiou
O Fantasma até tinha lhe dito a quantas andavam as coisas do lado de fora, quantas
que para ele não fazia muito sentido, tinha nada de margem para comparar. Mas coisa é ouvir
estória, outra é vivê-la. Nos dias de fuga tinha já podido construir sua compreensão das
quantas.
Tinha ali monte de gente, sé é que gente descreve o monte que tinha ali. Se
empinhavam e se afundavam nos barracos fedendo a mofo. Era pois também um mundo
vertical, de sobe e desce por corredores estreitos que mal passa um. Por quem que passa vê
medo ou fome nos olhos murchos. Pelo dia poucos se andam pra fora dos quadrados que
habitam. Invadiu casas e só viu vidros com aquela bolota nutricional. Ração que nem a da
cadeia, mas pior, lhe parecia. Numa ou outra encontrou restolho de ratinhos, mas pelo visto
caça também era pouca. Metade dessa gente, tudo morrendinho, acalmados pela pedra-paz
vendida pelos do Movimento. Esses, aliás, os poucos que tinham sustância por aquelas
paragens. Comandavam tudo por ali, e embora praticamente não houvesse dinheiro ou coisa
Parte dos negócios, o Bicho em sua toca ouvira, vinha da troca de ração por pedra-paz
ou vice versa. Muita coisa, aliás, o Bicho ouvira incógnito. Inclusive dos boatos sobre o ovo-
ruim que tinha sumido. Ah, se coisa que gente não perde ‘té mesmo no inferno é a capacidade
de contar estórias. Já tinham algumas sobre ele. Fugiu da comunidade. É meganha infiltrado –
às vezes ocorria este tipo de coisa como prevenção que surgisse alguma liderança perigosa
Mas até aí, ‘inda não era Bicho. O nome começou a pegar depois do cerco. Bobagem
dele que os do Movimento não lhe achariam ali. Tinham canal com a Zona de Cidadania, o
O Chefe mandou onze dos seus. Tudo cabra armado, sem chance de dar errado. Mas
deu. Bicho já tinha de ter sido bicho na cadeia, não fosse não era ovo-ruim, mas desvivido,
isso sim. Bicho de antena ligada, acuado e atento até mesmo ao bater das asas de um
O Bicho tinha com ele, claro, uma ou outra faca surrupiada, mas nada parecido com as
metralha e as pistolas dos caras. Mas ele tinha ganha de não desviver. O Fantasma tinha
plantado nele muitas sementes, mas para germinarem, só desmorto. Nem a pau que os caras
iam pegá-lo. Matou um por um, o último foi que nem daqueles engalfinhamento de cachorro
quando cachorro ‘inda havia. Rolaram por terra e pedra. O Bicho matou esse com os dentes.
Foi o que disseram quem viu a cena. Mordeu forte no pescoço, dente forte de ovo-ruim, de
quem nunca vez uma cachimbou pedra-paz. Se foi deve ter sido, porque começou aí o negócio
de Bicho.
E por aí foi se indo os falatório sobre o vulto que agora quase todo mundo sabia que
habitava a comunidade. Começaram a desviar dele como desviavam dos caras do Movimento.
O que também coisa boa não era porque morro que se preze dono só tem um. Todavia, Pai
Urso é que seria agora mais cauteloso com aquele berne que começava pururucar a pele.
Antes que o Bicho crescesse ainda mais, o Chefe iria cobrar a quem cabia aquela
desova. O problema não era de todo seu, que os outros entrassem na festa também.
5.
Há muito que polícia não subia morro, quebrava favela. Lógico que isso tudo para não dar
assunto a quem maldizesse do governo, desfeitando a Zona Livre. Que se virassem ali, aquela
massa desfuncional, sem razão de existência mas que quando morte não viesse, tinham que
ficar n’algum lugar. Que fosse naqueles morros, e que ali ficassem. Disso o Estado, claro
cuidava, criava condições, tinha também o acordo com o Movimento, gente melhor de
situação que mandava no todo resto que dava. Então, nada de polícia, nada de robôs subindo
morro, trocando golpes com gente quase morta. Mas se a polícia não subia, não significa que
por mês, semana talvez, só subia envangelizador, gente caridosa, fala doce, potes de
promessas. Livres do Estado, mas nem tanto, porque a presença dos pastores por ali, mais
significava do que só converter. Servia também para não cortar a linha por mais fina que já
estivesse. Assim, aquela gente quase desviva sabia de tudo do acontecido na Zona de
Cidadania, naquelas ruas paradisíacas para além do muro-choque. Nos barracos três coisas
não podiam faltar, a ração, a pedra-paz e os aparelhos de telefone. Tudo nas mãos, nas pontas
dos dedos. Um ou outro tinha ainda televisão, coisa boa, pública, tudo transmitindo as boas
notícias do Governo, e, claro, também das coisas de Cristo. Ah sim, tinha também outra coisa
que não faltava por ali, pendurado nas paredes de lata dos barracos, grudado nos muros das
quebradas, os cartazes d’Ele. Cabeludão e barbudo, sorriso e olhar enigmático, pouca gente
sabia dizer ao certo se de brabo ou de feliz. Até podia ser brabeza, afinal, o pai dele não
levava muito desaforo pra casa. Às costas do barbudão, o fuzil atravessado, coisa tão antiga
quanto ele, diziam, numa mão a adaga, coisa usada também na proteção das boas famílias. A
frase era sempre a mesma “Cristo Rei te acompanha ao lado. Ele olha sempre por você”. Na
Zona de Cidadania, terra de gente culta, ninguém duvidava disso, nas Zonas Livres, mesmo
que no íntimo do pensamento, vez por outra ‘té duvidava. Pior ‘inda é que às vezes até
parecia que o barbudão via tudo mesmo, pois não muito raro um ou outro grupo dos Da Cruz
Viu? É isso mesmo que você está pensando, se os Polícia, quase tudo buneco de lata,
não sobe o morro, pode crer que os Da Cruz sobem sem moléstia alguma. Na verdade, nas
Zonas Livres duas coisas são ‘inda mais temidas que os Polícia, os “irmão do Movimento” e
os Da Cruz, nome chamado pelos dali, oficialmente conhecidos como Soldados da Fé nas
zonas d’outro lado dos muro-choque. Medo mais dum que outro sempre variava os tempos,
mas certo é que os Da Cruz se preciso, faziam até o mais terrível Chefe de morro baixar
zoreia.
Nas telas grandonas espalhadas aqui e ali pela favela, ligadas vinte e quatros horas,
sempre tinha programa ou outro contando a história de glória e louvor daquelas boas almas da
sociedade, dedicadas a proteger a boas moral das famílias brasileiras. Um exemplo, nada de
dinheiro público, tudo dízimo de bom fiel que sabia a necessidade do gigantismo daquela
obra. Levar a palavra e rechaçar qualquer pensamento herege que diziam no passado ter feito
coisa ruim do país. No aparelhinho pessoal ou nas telonas comunitárias dava para se construir
uma boa ideia do tamanho daqueles bons soldados. Eram uns milhões deles, farda bonita,
preta, protegida das proteção divina que ‘té mesmo quem sabe fosse desnecessário os coletes
e o capacete pretão, a cruz emoldurada naquelas roupas imponentes, por certo deveria
proteger mais que o cinto com pistola e bomba-pulso, os rifles e lasers às costas. Isso tudo em
kit de um em um, mais, claro, os carro fortão, alguns aeromóveis, e milhares, milhares mesmo
dos dronecruces que quando mais prático, faziam o trabalho sem grande risco às boas almas
cristãs. Dronecruces geralmente eram usados para entrar em barraco e libertar a terra de alma
herege ou perigosa. Viam, reconheciam, atiravam. Naquela ação de caça ao Bicho do Morro
dos Milagres, pelo menos cem desses dronecruces estavam em ação. E embora nem Governo
nem Igreja se pronunciem das ações e operações dos Da Cruz, quem vive no pé do morro, no
meio dele e ‘té mesmo no topo vai confirmar sem grandes diferenças que pra mais de mil