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R IHGB

a. 177
n. 470
jan./mar.
2016
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
DIRETORIA – (2015-2016)
Presidente: Arno Wehling
1º Vice-Presidente: Victorino Chermont de Miranda
2º Vice-Presidente: Affonso Arinos de Melo Franco
3º Vice-Presidente: José Arthur Rios
1º Secretário: Cybelle Moreira de Ipanema
2º Secretário: Maria de Lourdes Viana Lyra
Tesoureiro: Fernando Tasso Fragoso Pires
Orador: Alberto da Costa e Silva
CONSELHO FISCAL
Membros Efetivos: Antonio Gomes da Costa, Marilda Correia Ciri-
belli.
Membros Suplentes: Marcos Guimarães Sanches, Pedro Carlos da Silva Telles,
Roberto Cavalcanti de Albuquerque
CONSELHO CONSULTIVO
Membros nomeados: Antonio Gomes da Costa, Carlos Wehrs, Célio Borja,
Evaristo de Moraes Filho, Helio Leoncio Martins, João
Hermes Pereira de Araújo, José Pedro Pinto Esposel, Luiz
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DIRETORIAS ADJUNTAS
Arquivo: Jaime Antunes da Silva
Biblioteca: Claudio Aguiar
Cursos: Antonio Celso Alves Pereira
Iconografia: D. João de Orleans e Bragança e Pedro K. Vasquez (subdiretor)
Informática e Dissem. da Informação: Esther Caldas Bertoletti
Museu: Carlos Eduardo de Almeida Barata (pro tempore)
Patrimônio: Guilherme de Andrea Frota
Projetos Especiais: Mary del Priore
Relações Externas: Maria da Conceição Beltrão
Relações Institucionais: João Mauricio de A. Pinho
Coordenador da CEPHAS: Maria de Lourdes Viana Lyra e Lucia Maria Paschoal
Guimarães (subcoord.)
Editor do Noticiário: Victorino Chermont de Miranda
COMISSÕES PERMANENTES
ADMISSÃO DE SÓCIOS: CIÊNCIAS SOCIAIS: ESTATUTO:
Alberto da Costa e Silva Antônio Celso Alves Pereira Affonso Arinos de Mello Franco
Alberto Venancio Filho Cândido Mendes de Almeida Alberto Venancio Filho
Carlos Wehrs Helio Jaguaribe de Matos Célio Borja
Fernando Tasso Fragoso Pires José Murilo de Carvalho João Maurício A. Pinho
José Arthur Rios Maria da Conceição de M. Cou- Victorino Chermont de Miranda
tinho Beltrão
GEOGRAFIA: HISTÓRIA: PATRIMÔNIO:
Armando de Senna Bittencourt Eduardo Silva Afonso Celso Villela de Carvalho
Miridan Britto Falci Guilherme de Andrea Frota Antonio Izaías da Costa Abreu
Vera Lúcia Cabana de Andrade Lucia Maria Paschoal Guimarães Claudio Moreira Bento
Marcos Guimarães Sanches Fernando Tasso Fragoso Pires
Maria de Lourdes Vianna Lyra Roberto Cavalcanti de Albu-
querque
REVISTA
DO
INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO
Hoc facit, ut longos durent bene gesta per annos.
Et possint sera posteritate frui.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177, n. 470, pp. 11-280, jan./mar. 2016.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 177, n. 470, 2016.

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Ulrich’s International Periodicals Directory – Handbook of Latin American Studies (HLAS) –
Sumários Correntes Brasileiros

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© Copright by IHGB
Tiragem: 700 exemplares
Impresso no Brasil – Printed in Brazil
Revisora: Denise Scofano Moura
Secretária da Revista: Tupiara Machareth

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. - Tomo 1, n. 1 (1839) - . Rio de Janeiro: o


Instituto, 1839-
v. : il. ; 23 cm

Trimestral
ISSN 0101-4366
Ind.: T. 1 (1839) – n. 399 (1998) em ano 159, n. 400. – Ind.: n. 401 (1998) – 449 (2010) em n. 450
(2011)
N. 408: Anais do Simpósio Momentos Fundadores da Formação Nacional. – N. 427: Inventá-
rio analítico da documentação colonial portuguesa na África, Ásia e Oceania integrante do acervo
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro / coord. Regina Maria Martins Pereira Wanderley
– N. 432: Colóquio Luso-Brasileiro de História. O Rio de Janeiro Colonial. 22 a 26 de maio de 2006.
– N. 436: Curso - 1808 - Transformação do Brasil: de Colônia a Reino e Império.

1. Brasil – História. 2. História. 3. Geografia. I. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Ficha catalográfica preparada pela bibliotecária Celia da Costa


CONSELHO EDITORIAL
Antonio Manuel Dias Farinha – UL – Lisboa – Portugal
Carlos Wehrs – IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Eduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
João Hermes Pereira de Araújo – Ministério das Relações Exteriores e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
José Murilo de Carvalho – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Vasco Mariz – Ministério das Relações Exteriores, CNC e IHGB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil

COMISSÃO DA REVISTA: EDITORES


Eduardo Silva – FCRB – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Esther Bertoletti – MinC – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Lucia Maria Paschoal Guimarães – UERJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Maria de Lourdes Viana Lyra – UFRJ – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Mary Del Priore – UNIVERSO – Niterói – RJ – Brasil

CONSELHO CONSULTIVO
Amado Cervo – UnB – Brasília – DF – Brasil
Aniello Angelo Avella – Universidade de Roma Tor Vergata – Roma – Itália
Antonio Manuel Botelho Hespanha – UNL – Lisboa – Portugal
Edivaldo Machado Boaventura – UFBA e UNIFACS – Salvador – BA
Fernando Camargo – UFPEL – Pelotas – RS – Brasil
Geraldo Mártires Coelho – UFPA – Belém – PA
José Octavio Arruda Mello – UFPB – João Pessoa – PB
José Marques – UP – Porto – Portugal
Junia Ferreira Furtado – UFMG – Belo Horizonte – MG – Brasil
Leslie Bethell – Universidade Oxford – Oxford – Inglaterra
Márcia Elisa de Campos Graf – UFPR – Curitiba – PR
Marcus Joaquim Maciel de Carvalho – UFPE – Recife – PE
Maria Beatriz Nizza da Silva – USP – São Paulo – SP
Maria Luiza Marcilio – USP – São Paulo – SP
Nestor Goulart Reis Filho – USP – São Paulo – SP – Brasil
Renato Pinto Venâncio – UFOP – Ouro Preto – MG – Brasil
Stuart Schwartz – Universidade de Yale – Connecticut / EUA
Victor Tau Anzoategui – UBA e CONICET – Buenos Aires – Argentina
7

Este número especial da Revista do Instituto Históri-


co e Geográfico Brasileiro é dedicado ao exame da proble-
mática do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. A
publicação reúne sob a forma de artigos as contribuições
do “Congresso Internacional Brasil como Reino Unido:
200 anos depois”, realizado entre 13 e 16 de outubro de
2016 no Instituto Histórico e na Fundação Casa de Rui
Barbosa, e em parceria com a Universidade do Estado do
Rio de Janeiro.
SUMÁRIO
SUMMARY
Apresentação 11
Lucia Maria Paschoal Guimarães & Lucia Maria Bastos P. Neves
Congresso Internacional Brasil como Reino Unido: 200 anos depois

Reino Unido, uma solução emancipadora? 15


– Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político
United Kingdom, an Emancipating Solution? Institutional
and Judicial Reasons and Issues in a Political Act
Arno Wehling
A elevação do Brasil a Reino Unido 47
e a historiografia luso-brasileira
The Elevation of Brazil to United Kingdom
and Luso-Brazilian Historiography
Lucia Maria Paschoal Guimarães
Oliveira Lima e o Reino Unido 59
Oliveira Lima and the United Kingdom
Teresa Malatian
A diplomacia portuguesa no Congresso de Viena – 1815 77
Portuguese diplomacy in the Congress of Vienna in 1815
Antônio Celso Alves Pereira
Reino Unido a Portugal: Breve mas significativo 97
momento na história das relações internacionais do Brasil
United Kingdom with Portugal: a brief but significant
moment in the history of brazilian international relations
Luiz Felipe de Seixas Corrêa
Le Congrès de Vienne et les petites nations: 111
quel rôle pour l’Angleterre?
The Congress of Vienna and small nations:
what role for England?
Annie Jourdan
Em torno de 1815: Dimensões da política 131
e da religião no império português
About 1815: The dimensions of politics and religion
in the Portuguese Empire
Guilherme Pereira das Neves
O Brasil como Reino Unido a Portugal: 149
Um modelo de emancipação colonial
Brazil as a United Kingdom with Portugal: A model of colonial
emancipation
Maria de Lourdes Viana Lyra
Reino Unido: Uma Coroa entre a Europa e a América 173
United Kingdom: One crown between Europe and America
Lucia Maria Bastos P. Neves
Uma forma sutil de poder: A cultura inglesa 193
no Rio de Janeiro joanino
A subtle form of power: English culture in joanine Rio de Janeiro
Maria Beatriz Nizza da Silva
No Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves: 211
Pradier e a economia política das imagens de arte e poder
In the United Kingdom of Portugal, Brazil and the Algarves: Pra-
dier and the political economy of the images of art and power
Rogéria de Ipanema
Reino Unido: Atos legais, manifestações impressas 227
e a oração de graças do padre Mororó
United Kingdom: Legal acts, printed expressions and the prayer of
thanks by father Mororó
Cybelle de Ipanema
Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, 247
Brasil e Algarves
Legal frameworks of the United Kingdom of Portugal, Brazil and
the Algarves
Rui de Figueiredo Marcos
• Normas editoriais 275
Guide for the authors 277
Apresentação

A passagem do bicentenário da elevação do Brasil a Reino Unido,


em 16 de dezembro de 1815, mereceu um olhar especial do Instituto His-
tórico e Geográfico Brasileiro, por meio de um Congresso Internacional,
que reuniu especialistas – historiadores e juristas do Brasil, Portugal e
França. Longe de ser uma simples comemoração de um evento do passa-
do, ele se propôs a estabelecer relações entre a Historiografia e a memória
de um acontecimento que foi fundamental para a permanência da Corte
Portuguesa no Brasil e, como desdobramento, a opção da Coroa pela par-
te americana do Império luso-brasileiro. Aspecto importante para reper-
cussões posteriores nos dois lados do Atlântico: em Portugal, a revolução
de 1820 e, no Brasil, o processo de independência em 1822.

Objetivou-se, assim, repensar esse fato histórico, inserido em uma


conjuntura mais ampla – a própria conjuntura europeia, que foi a mola
que possibilitou tal realização –, a elevação do Brasil a Reino Unido de
Portugal e Algarves. Nesse caso, o destaque foi dado não só ao processo
que ocorria no Brasil, mas também àquilo que sucedia paralelamente na
Europa, ou seja, a derrota de Napoleão Bonaparte, o Congresso de Viena
e a Restauração.

As contribuições desses estudiosos, ampliadas e aprofundadas sob a


forma de artigos, acham-se publicadas neste número da Revista do IHGB.
Em seu conjunto, elas demonstram que o Congresso não representou uma
simples comemoração, como uma pressão da sociedade mais ampla, que
se vê envolvida em datas que representam fatos importantes, mas sem
grande significado para a memória social geral. Em verdade, os autores
fizeram um balanço dessa memória social no repertório da historiografia.
Investigar práticas e rituais cívicos pode significar um amplo debate sobre
as relações da história com seu passado, mas também descobrir as arti-
culações simbólicas do poder, da sociedade e da cultura na formação do
Estado Brasileiro e suas repercussões até os dias atuais.
A publicação é aberta pela instigante reflexão de Arno Wehling, que
propõe uma análise das razões e circunstâncias que explicam esse ato
político – o Reino Unido. Em seguida, duas importantes contribuições
relacionadas à Historiografia: Lucia Maria Paschoal Guimarães elabora
um balanço crítico sobre o que foi escrito no mundo luso-brasileiro sobre
a elevação do Brasil a Reino Unido, estabelecendo os nexos entre as dis-
tintas vertentes explicativas, e Teresa Malatian mergulha no assunto na
obra clássica de Oliveira Lima.

No âmbito da história do político renovada, não podia faltar o olhar


daqueles que trabalham com a História das Relações Internacionais: An-
tonio Celso Alves Pereira ocupou-se dos meandros da diplomacia por-
tuguesa no Congresso de Viena; Luiz Felipe de Seixas Correa inseriu
o acontecimento do Reino Unido na perspectiva das Relações Interna-
cionais e Annie Jourdan ofereceu um interessante quadro do papel das
pequenas potências no Congresso de Viena, em contraste com o poderio
e ação da Grã-Bretanha. Seguindo essa mesma abordagem do político, a
análise das instituições, bem como da visão da situação política, não po-
diam ser relegadas. Assim, Guilherme Pereira das Neves propõe original
trabalho sobre as dimensões do político e da religião no império portu-
guês, centrando-se, sobretudo, na análise do conceito de Império. Maria
de Lourdes Viana Lyra volta-se para seu clássico estudo sobre o Impé-
rio luso-brasileiro e traz nova contribuição acerca da elevação do Brasil
como Reino Unido e suas relações como o modelo de uma emancipação
política. Por fim, Lucia Bastos P. Neves apresenta uma análise sobre as
percepções e linguagens distintas que os homens dos dois lados do Atlân-
tico apresentavam naquele momento sobre a constituição do Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves.

Ao longo dessas contribuições, não podiam estar ausentes os estudos


sobre cultura, em seu sentido amplo, e as relações de poder. Maria Beatriz
Nizza da Silva joga luz sobre o papel da cultura inglesa no Rio de Janeiro,
ao longo de 1808-1815, buscando sua ligação com uma forma sutil de po-
der. As injunções entre arte e poder foram abordadas por Rogéria de Ipa-
nema, por meio de um estudo, que privilegia o gravador francês Charles
Simon Pradier e a economia política das imagens acerca da instauração
do Reino Unido. Cybelle de Ipanema voltou-se para a imprensa, seguin-
do temática que lhe é bastante cara, contemplando as manifestações im-
pressas sobre a promulgação do decreto de 16 de dezembro de 1815, em
especial a Oração de Graças do Padre Mororó.

A publicação conclui-se com uma análise dos quadros jurídicos do


Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, elaborada por Rui Marcos,
que procurou mostrar a mudança da face da ordem jurídica brasileira com
a elevação do Brasil a Reino.

A organização do conteúdo deste número, portanto, procura consoli-


dar as discussões iniciadas ao longo do Congresso, por meio de reflexões
e polêmicas sobre a elevação do Brasil à categoria de Reino e o quadro
político, econômico e cultural em que se inseriu tal evento. Comemorar o
bicentenário é de, algum modo, revivê-lo não apenas a partir do olhar de
tais estudiosos, mas daqueles que o vivenciaram em 1815. Afinal, deve-se
ter em conta que no âmbito de uma renovação da história do político, em
que o acontecimento introduz inesperadamente o imprevisível, o historia-
dor, ao inseri-lo em uma sucessão lógica e dentro de um processo mais
amplo, integra seu estudo ao jogo dialético das conjunturas e estruturas,
possibilitando novas contribuições sobre o assunto.

Resta-nos agradecer à FAPERJ e à CAPES, cujos apoios financeiros


tornaram possível a publicação deste número da Revista, dedicado à pro-
blemática do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

Boa leitura!

Lucia Maria Paschoal Guimarães & Lucia Maria Bastos P. Neves


Comitê científico e organizador do
Congresso Internacional Brasil como Reino Unido: 200 anos depois.
Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

15

REINO UNIDO, UMA SOLUÇÃO EMANCIPADORA?


MOTIVOS E QUESTÕES INSTITUCIONAIS E JURÍDICAS DE
UM ATO POLÍTICO
UNITED KINGDOM, AN EMANCIPATING SOLUTION?
INSTITUTIONAL AND JUDICIAL REASONS AND ISSUES IN A
POLITICAL ACT
Arno Wehling1

Resumo: Abstract:
A elevação do Brasil a Reino Unido em 1815 The elevation of Brazil to United Kingdom in
evidenciou situações como a soberania do ex- 1815 evinced situations such as the sovereignty
-domínio, a integridade do país a partir do Rio of the former realm, the integrity of the country
de Janeiro, o reconhecimento jurídico de situa- originating in Rio de Janeiro, judicial recogni-
ções ocorridas a partir de 1808 e a necessida- tion of situations occurring from 1808 on and
de da igualdade de representação política entre the need for political representation to be equal
Portugal e o Brasil. O sucesso ou insucesso da between Portugal and Brazil. The success or
fórmula política dependeu da capacidade e dis- lack of success of the political formula depend-
posição das partes para conciliar os diferentes ed on the ability and willingness of the parties to
interesses das partes. reconcile their differing interests.
Palavras-chave: Antigo Regime; Poder; Esta- Keywords: Old Regime; Power; State; Justice;
do; Justiça; Soberania; Constitucionalismo. Sovereignty; Constitutionalism.

A elevação do Brasil a Reino Unido, em 16 de dezembro de 1815,


é o ponto de interseção de diferentes coordenadas. Do ponto de vista in-
ternacional, foram novas correlações de forças no plano euro-americano,
como o peso do Brasil no conjunto dos domínios portugueses, o crescente
significado político e econômico da América no cenário mundial (após a
independência dos Estados Unidos e os movimentos de emancipação na
América espanhola) e o revigorado interesse britânico pelo Atlântico Sul.
Este foi claramente evidenciado nas tentativas de conquistar Buenos Ai-
res, conseguir um porto franco em Santa Catarina e ampliar a penetração
comercial nos portos brasileiros mesmo antes de 1808.

No plano interno, ocorreu nova dinâmica, com a abertura dos portos,


as novas instituições criadas no Brasil – ainda que não fossem inovadoras

1 –1Doutor em História. Professor emérito da Universidade Federal do Estado do Rio de


Janeiro (UNIRIO). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito de Universidade
Veiga de Almeida. Sócio Titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Arno Wehling

no plano lusitano, já que reproduziam em geral as metropolitanas – a le-


gislação específica para o país, num grau até então inusitado, e a abertura
ao estrangeiro representada pela presença de viajantes, de imigrantes, da
missão artística francesa e de cientistas e artistas de língua alemã. Tudo
isso exprimia o fato de o Brasil adquirir rapidamente um novo papel.

A sua categorização política e jurídica como Reino constitui uma


resposta institucional a essas transformações.

Diferentes historiadores têm tratado o assunto enfocando basicamen-


te sua motivação, os atores envolvidos, as estratégias políticas e apenas
circunstancialmente seu significado institucional e jurídico.

No primeiro aspecto, Melo Morais, no século XIX, concluiu que


a elevação se deu por gestões do ministro conde da Barca junto a Tal-
leyrand, como efeito colateral do objetivo principal que era dar a Portu-
gal, no Congresso de Viena, status de primeira potência2.

O domínio do Brasil, por sua extensão territorial e riqueza e por ser a


então sede da monarquia, justificaria a expectativa. O representante fran-
cês, com o objetivo de melhorar a posição da França, afinal país vencido,
no Congresso, teria manobrado para conseguir o apoio dos pequenos paí-
ses, inclusive Portugal, daí surgindo sua sugestão aos diplomatas portu-
gueses. Assim, a despeito do toque inicial do conde da Barca, a proposta
propriamente dita teria sido de Talleyrand.

Oliveira Lima, em 1908, retificou essa versão, atribuindo aos embai-


xadores portugueses D. Pedro de Sousa e Holstein, futuro conde e duque
de Palmela, Lobo da Silveira e Antonio Saldanha, a iniciativa de ambas
as propostas, o que teria sido endossado por Talleyrand. Vale ressaltar que
Oliveira Lima viu na elevação também uma sutil resposta de D. João à
pressão das potências europeias para que retornasse a Portugal.
2 – MORAIS, Alexandre José de Melo. História do Brasil-Reino e do Brasil-Império.
São Paulo: Edusp-Itatiaia, vol. I, 1982, p. 529ss. Também é desse autor a veiculação da
informação, corrente na tradição oral do século XIX, que o contato de Antonio de Araújo
Azevedo, conde da Barca, com Talleyrand, teria sido acompanhado de um milhão de cru-
zados para o diplomata francês.

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Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

De qualquer modo, Oliveira Lima pondera que, mesmo se os ple-


nipotenciários portugueses não tivessem “astuciosamente posto esta su-
gestão na boca de Talleyrand”3, a solução ocorreria ao Conde da Barca,
pela visão que tinha da relevância do Brasil para o futuro do império
português. Confirma o historiador, assim, parte da versão tradicional, aí
incluída a tradição oral, segundo a qual o ministro português, direta ou
indiretamente, fora o propugnador da ideia e, no Brasil, seu principal de-
fensor4.

Em 1940, o historiador Brás do Amaral, na Revista do Instituto His-


tórico e Geográfico Brasileiro, discordou dessa interpretação. Para ele,
também baseado, como Oliveira Lima, nos ofícios de 25 de janeiro e 19
de abril de 1815 enviados pelos embaixadores portugueses ao Rio de Ja-
neiro, a lembrança da elevação teria sido “ideia exclusiva de Talleyrand”,
sem que tivesse havido insinuação prévia oriunda do Brasil, pois nesse
caso aqueles representantes teriam conhecimento do fato5. A partir dessa
sugestão, os plenipotenciários teriam conseguido a introdução do título
de “Reino do Brasil” no tratado da coalizão contra Napoleão, mesmo sem
a anuência do príncipe regente. Dessa forma, para o historiador baiano foi
o retorno de Napoleão nos “Cem Dias” que obrigou as “primeiras potên-
cias” do Congresso a fazerem concessões a Portugal, pela necessidade do
engajamento de tropas e de recursos para a nova guerra6. Teria sido um
Talleyrand representante de um governo enfraquecido pela nova amea-
ça napoleônica que se dispôs a incluir Portugal na mesa de negociações
como elemento de apoio. A menção ao “Reino do Brasil” ocorrera nes-
sas circunstâncias, sem que se possa atribuir-lhe maior importância para
realçar a posição de Portugal, que afinal já possuía a colônia, não tendo
havido acréscimo de população ou riqueza aos domínios de D. João7.

3 – LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p.


343.
4 – Ibidem.
5 – AMARAL, Braz do. O Brasil no Congresso de Viena em 1815. Revista do Institu-
to Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, v.175, p. 517,
1940.
6 – Idem, p. 528ss.
7 – Idem, p. 531.

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Arno Wehling

A historiografia, desde a segunda metade do século XX, deteve-se


relativamente pouco na questão do Reino Unido, preocupada com os
parâmetros mais evidentes: da chegada da Corte aos tratados de 1810
(1808-1810) e a crise da independência (1820-1822). Mesmo na análi-
se do período joanino, o tema mereceu em geral registros incidentais,
ofuscado por outros assuntos mais candentes, como a abolição do tráfico
negreiro, a política de ocupação da Cisplatina, as realizações culturais,
a metropolização do Rio de Janeiro ou a Revolução Pernambucana de
18178.

Lembremos, contudo, algumas abordagens que fogem a essa regra.


Valentim Alexandre viu nos anos 1814-1815 decrescerem em relevância
as tensões entre o Rio de Janeiro e Londres, deslocadas pelas contradições
entre interesses brasileiros e portugueses e nas primeiras manifestações
de ruptura do “sistema imperial”. Destaca em especial as duas linhas em
conflito, a do conde da Barca, com perspectiva centrada no Brasil, prio-
rizando as negociações relativas ao tráfico e à política no Prata e a linha
de Palmela, mais portuguesa, optando pela tentativa de anular os tratados
de 1810, de modo a atender às necessidades do comércio português, em
troca de concessões na questão do tráfico negreiro9. A elevação do Brasil
a Reino Unido, para o autor, seria a vitória da política “americana” em
detrimento da política “ibérica”de Palmela.

8 – GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. A historiografia e a transferência da Corte


para o Brasil, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 436, p. 15ss,
2007. WEHLING, Arno. Administração joanina, in VAINFAS, Ronaldo e NEVES, Lucia
M. Bastos Pereira das. (orgs.) Dicionário do Brasil joanino, Rio de Janeiro: Objetiva,
2008, p. 32ss,. BETHEL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil, São Pau-
lo: Expressão e Cultura-Edusp, 1976; A independência do Brasil, in BETHEL, Leslie,
(org.), História da América Latina da independência até 1870, São Paulo: Edusp, 2004,
p. 187-230. PIMENTA, João Paulo G. Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no
Prata (1780-1830), São Paulo: Hucitec, 2002. MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio:
civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808-1821), São Paulo: Cia.
das Letras, 2000. SLEMIAN, Andrea. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro
(1808-1824), São Paulo: Hucitec, 2006. SCHULTZ, Kirsten. Tropical Versailles. Empire,
monarchy and the portuguese Royal court in Rio de Janeiro, 1808-1821, Nova York-
-Londres: Routledge, 2001.
9 – ALEXANDRE Valentim. Os sentidos do Império, Porto: Afrontamento, 1993, p.
799.

18 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016.


Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

Maria de Lourdes Viana Lira considera a elevação do Brasil no pro-


cesso de desenho do “novo” ou “poderoso” Império, que remontava aos
planos de Rodrigo de Sousa Coutinho10.

Zília Osório de Castro enfocou a natureza do Reino Unido, interpre-


tando-o como a união dos reinos na figura do rei, detentor da soberania,
que não se deslocaria para os respectivos estados11.

Ana Rosa Clocet da Silva, por sua vez, interroga-se se o Reino Uni-
do instituiu a unidade entre Portugal e o Brasil ou se invertera o pacto
tradicional, subordinando a antiga metrópole12.

Maria Beatriz Nizza da Silva constata a aceitação da nova fórmula


política na Europa e concentra sua análise na percepção do Reino Unido
em 1821-1822, observando que a categoria política não fora levada a sé-
rio nem nas Cortes nem entre os liberais brasileiros13.

Em nossos trabalhos, temos chamado a atenção para três pontos cru-


ciais no processo de criação e institucionalização do Reino Unido: a ins-
piração ibérica e mesmo extraibérica, pois a proposta de uma federação
imperial das antigas metrópoles europeias com suas colônias americanas
– não apenas as ibéricas, mas também as da Inglaterra e França – estava
no ar desde a segunda metade do século anterior; a evidência de que o
Brasil no Reino Unido recebia os atributos da soberania sem ruptura com
Portugal, já que o modelo bodiniano de monarquia com soberania real
estava com os dias contados na própria percepção dos contemporâneos; e

10 – LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso Império, Rio de Janeiro: Sete
Letras, 1994.
11 – CASTRO, Zilia Osório de, Portugal-Brasil: imagens cruzadas de novos estados, in
ARRUDA, José Jobson de A. e FONSECA, Luís Adão da. (orgs.) Brasil-Portugal: Histó-
ria, agenda para o milênio, Bauru: Edusc, 2001, p. 59ss.
12 – SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a nação. Intelectuais ilustrados e estadistas
luso-brasileiros na crise do antigo regime português (1750-1822), São Paulo: Hucitec, p.
250, 2006.
13 – SILVA, Maria Beatriz Nizza da. D. João, príncipe e rei no Brasil, Lisboa: Horizonte,
2008, p. 73-75.

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Arno Wehling

a continuidade das medidas políticas e administrativas que consolidaram


crescentemente a esfera pública no Brasil14.

O significado político-jurídico do Reino Unido foi tratado por histo-


riadores do Direito, como Martins Jr.15, César Trípoli16 e Bezerra Câma-
ra17, sendo que ao segundo se devem observações mais técnicas sobre a
constituição de um estado soberano no Brasil.

No que respeita aos antecedentes imediatos da elevação, deve ser


lembrado que a versão de Melo Morais, baseada numa confusa utilização
de documentos e confiante na tradição oral, foi aperfeiçoada e corrigida
pelas pesquisas de Oliveira Lima, apoiado no Arquivo do Itamaraty, e a
contribuição de Brás do Amaral, trabalhando a correspondência de D.
Pedro de Sousa e Holstein, foi lembrar o papel dos Cem Dias na definição
do processo. Em suas Memórias, Talleyrand realmente não menciona
qualquer gestão ou sugestão sobre a situação política do Brasil. Entre-
tanto, sobre o fato que a teria propiciado – o esforço da representação
portuguesa no sentido de melhorar a posição de Portugal no processo
decisório do Congresso de Viena – o negociador francês foi explícito. Em
ofícios de outubro de 1814, um dirigido ao ministro do exterior e outro ao
rei Luís XVIII, Talleyrand relatou o protesto de Palmela dirigido ao re-
presentante inglês Castlereagh sobre a exclusão de Portugal e seu próprio
apoio ao pleito português18.

14 – WEHLING, Arno. A monarquia dual luso-brasileira. Crise colonial, inspiração his-


pânica e criação do Reino Unido. Anais do Seminário Internacional D. João VI, um rei
aclamado na América, Rio de Janeiro: MHN, 2000, p. 338-348; Estado, governo e admi-
nistração no Brasil joanino, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 436,
p. 75-92, 2007; WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Soberania sem independên-
cia: aspectos do discurso político e jurídico na proclamação do Reino Unido, Tempo, n.
31, 2011, p. 89-116.
15 – MARTINS JUNIOR, Antonio Isidoro. História do direito nacional, Recife: Ceci,
1941, p. 219ss.
16 – TRIPOLI, Cesar, História do direito brasileiro, São Paulo: RT, vol. II, 1947, p. 49ss.
17 – CÂMARA, José Gomes Bezerra, Subsídios para a história do direito pátrio, Rio de
Janeiro: Brasiliana, vol. II, 1965, p. 86ss.
18 – TALLEYRAND, Charles-Maurice de. Mémoires et correspondances du Prince de
Talleyrand, ed. integral de WARESQUIEL, Emmanuel de. Paris: R. Lafont, 2007. p. 499
e 500.

20 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016.


Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

Essa informação contradiz o ofício dos embaixadores portugueses


a Portugal, de 25 de janeiro no ano seguinte, segundo o qual não ha-
via oposição de Castlereagh nem de Talleyrand à pretensão portuguesa?
Apenas aparentemente, porque a posição do embaixador inglês pode ter
sido modificada entre outubro e janeiro, a instâncias do próprio Palmela,
com o apoio de Talleyrand, como este informa. Assim, a interpretação
de Braz do Amaral, baseada apenas no ofício de 25 de janeiro, de que a
política de prestígio era desnecessária porque Portugal fora convidado a
participar em igualdade de condições, é perspectiva parcial, baseando-se
na conjuntura dos Cem Dias, a partir de março de 1815. Antes disso, foi
uma necessidade e mostrou-se vitoriosa já em janeiro, conforme o ofício
de Palmela. O ponto de apoio dessa política, por sua vez, foi a elevação
do Brasil a Reino Unido.

A reconstituição dos fatos, com esses elementos, permite organizar


como segue a sequência de acontecimentos. Em 25 de janeiro de 1815, os
plenipotenciários portugueses comunicaram ao Rio de Janeiro um encon-
tro com Talleyrand. No ofício, narram sua iniciativa de propor ao ministro
francês melhor posição para Portugal no Congresso, lastreada na impor-
tância do Brasil e a reação positiva do embaixador francês, concordando
com a pretensão e expressamente mencionando a elevação a Reino Unido
como fórmula política capaz de dissuadir os brasileiros de seguir o cami-
nho separatista da América espanhola. Nesse mesmo documento, os di-
plomatas dizem temer a responsabilidade pessoal pelos desdobramentos
da proposta e pedem o respaldo da Coroa.

O assunto da melhor posição para Portugal não foi surpresa para


Talleyrand, porque já tinha sido objeto de pressões anteriores de Palme-
la, que ele havia endossado, conforme diz em suas Memórias. Quanto à
origem da proposta sobre a elevação do Brasil a Reino Unido, fica suben-
tendida a iniciativa de Palmela e expresso o juízo de Talleyrand. Quanto
à primeira, é corroborada em carta posterior do conde da Barca ao cônsul
francês no Rio de Janeiro, Maler19.

19 – LIMA, Manuel de Oliveira. Op. cit, p. 336.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016. 21


Arno Wehling

Aliás, a posição de Talleyrand sobre a questão colonial não era ne-


nhum segredo e deveria ser do conhecimento dos embaixadores portu-
gueses. Ele a externara pela primeira vez em 1793, numa sessão pública,
por meio do Essai sur les avantages à retirer des colonies nouvelles dans
les circonstances presentes, no qual afirmava, reiterando sua crença em
que o Canadá permaneceria francês:
Os interesses corretamente entendidos dos dois países são o verdadei-
ro vínculo que os une e este vínculo será muito mais forte se compar-
tem origens comuns... A uma grande distância qualquer outra forma
de contato torna-se com o tempo ilusória20.

A consulta ficou sem decisão do Rio de Janeiro, o que condiz com


a lentidão das decisões no seio do governo e com a eventual oposição de
setores ligados a D. Carlota Joaquina ou mesmo ao marquês de Aguiar.

Em março, Napoleão retornou de Elba e a 8 de abril, no tratado que


formalizou a última coalizão contra o imperador dos Franceses, os ple-
nipotenciários portugueses, a despeito dos temores que mencionaram an-
teriormente, assinaram por D. João como Son Altesse le Prince Régent
du Royaume de Portugal et de celui du Brèsil, embora sem delegação
expressa para tal. O procedimento foi comunicado ao Rio de Janeiro em
19 de abril21.

Em mais dois textos internacionais, a Convenção de Viena para a


devolução da Guiana Francesa de 12 de maio e o Ato Final do Congresso
de Viena, de 9 de junho, repetiu-se a fórmula22.

20 – Apud PAGDEN, Anthonhy. Señores de todo el mundo, ideologias del Império em


Espana, Inglaterra y Francia (em los siglos XVI, XVII y XVIII), Barcelona: Península,
1997, p. 243.
21 – Dirigindo-se ao marquês de Aguiar, D. Pedro de Sousa e Holstein explicou-lhe a
assinatura de D. João mencionando o título brasileiro como forma de fazê-lo reconhecer
pelas demais potências signatárias, “indiretamente por não nos termos atrevido sem auto-
rização especial de Sua Alteza Real fazê-lo explicitamente. (...) Evitamos por esse modo
o declarar sem ordem expressa o novo título de S.A.R. que, querendo, poderá tomá-lo. E
o mesmo Augusto Senhor estará reconhecido pelas quatro principais potências”. AMA-
RAL, Braz do. Op. cit, p. 529.
22 – RIO BRANCO, Barão do, Questões de limites. Guiana Francesa, in Obras comple-
tas, Rio de Janeiro: MRE, vol. III, 1945, p. 4-5.

22 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016.


Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

Mais tarde, na Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815 que elevou o


Brasil a Reino, se mencionou como um dos motivos para o ato a consta-
tação de que o país assim fora considerado no tratado de abril e no texto
de encerramento do Congresso de Viena.

Os motivos da sugestão para que se constituísse o Reino Unido


apontam, assim, para uma coincidência de interesses entre Portugal e a
França. Do lado português, o de conseguir o status de potência de pri-
meira classe no Congresso, com direito a voz e voto, o que significava
não apenas prestígio, mas capacidade para influenciar na reestruturação
do mapa europeu que se redesenhava. Esse ponto se destaca ainda mais
se lembrarmos a vontade de Napoleão de dividir o país em três partes,
abolindo-o como ente político.

A pretensão portuguesa foi realmente atendida e o país figurou como


signatário principal ao lado da Áustria, França, Grã Bretanha, Prússia,
Rússia e Suécia. Estava claro que a credencial para esse reconhecimen-
to fora o domínio português no Brasil e seu novo status, uma vez que a
consideração apenas de Portugal associaria o país às pequenas potências.

Para Talleyrand, esse acordo tácito permitiu à França melhorar sua


posição no Congresso, passando a contar com o apoio de Portugal nas
negociações. Foi um dos instrumentos que permitiram ao país derrotado
entrar enfraquecido, quase réu, e sair fortalecido, além de territorialmente
incólume, do Congresso.

Ademais, essa demonstração de boa vontade poderia facilitar as re-


lações bilaterais com Portugal para a devolução da Guiana Francesa, ocu-
pada desde 1809.

Quanto aos Cem Dias, a hipótese levantada por Brás do Amaral é


extremamente plausível, pois o risco representado pelo retorno de Na-
poleão pode ter contribuído para quebrar eventuais resistências ao pleito
luso-francês, pela necessidade de costurar alianças que implicavam mais
dispêndios em dinheiro e homens para a guerra. Napoleão pode ter re-
presentado a aceleração de uma decisão que se afigurava como provável.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016. 23


Arno Wehling

Os motivos para a adoção da fórmula do Reino Unido, por sua vez,


se respaldam em vários aspectos. Na ótica do governo português, era uma
afirmação de prestígio do estado e do monarca, que passaria a reinar não
sobre um pequeno país periférico além-Pirineus, mas sobre um império,
um “poderoso Império”23. Na perspectiva pessoal de D. João, também
era um motivo a mais para permanecer no Brasil, o que, a despeito das
intensas pressões para o retorno em 1814 e 1815, parecia ser desejo seu24.

Além disso, existiu igualmente no governo a expectativa de even-


tuais manifestações de descontentamento e de opção pela independência,
que já tinham ocorrido anteriormente e voltariam a ocorrer menos de dois
anos depois, em Pernambuco. Esse ponto e uma eventual revolta de es-
cravos, como a do Haiti, figuram nas memórias oferecidas ao príncipe,
a seu pedido, por Silvestre Pinheiro Ferreira25. A elevação a Reino Uni-
do era uma estratégia para enfrentar essas dificuldades. Já foi lembrada
também a insatisfação com o aumento da carga tributária provocada pela
chegada da Corte, sobretudo no Nordeste26, como um dos motivos para a
atitude do governo.

A Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815 foi assinada – e não


apenas rubricada, como de praxe – pelo príncipe regente e pelo ministro
e ex-vice-rei do Brasil Fernando José de Portugal e Castro, marquês de
Aguiar. É de observar que este era um antigo e experiente funcionário co-
lonial, conhecedor das normas administrativas e sobretudo de sua prática,
como atesta a qualidade dos Comentários que fez ao regimento do gover-
nador seiscentista Roque da Costa Barreto, nos quais revia e atualizava
23 – LYRA, Maria de Lourdes Viana, A utopia do poderoso império, Rio de Janeiro: Sete
Letras, 1994, passim.
24 – As oscilações sobre o retorno da Corte a Lisboa estão retratadas em MARROCOS,
Luis Joaquim dos Santos, Cartas do Rio de Janeiro, 1811-1821, Lisboa, Biblioteca Nacio-
nal, 2008, passim. Em março de 1814, Marrocos lamentava que, a despeito de informação
anterior, “ninguém por ora se lembra de nos transferirmos para Lisboa”. Op cit, p. 245.
25 – FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Memórias políticas. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia Uniersal de H. Lammert & Cia, t.
xlvii, v. 1, n. 67, p. 1ss, 1884.
26 – Mencionada, por exemplo, por ARMITAGE, John. História do Brasil, Rio de Janei-
ro: Ediouro, 1965, p. 37. Argumento encontrado em LIMA, Manuel de Oliveira. Op. cit,
p. 346.

24 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016.


Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

todos os pontos do documento que orientava a administração central da


colônia. Sua posição, no entanto, era a de um homem do Antigo Regime,
defensor da sociedade estamental e dos privilégios da nobreza e preocu-
pado em salvaguardar no que fosse possível os interesses portugueses,
inclusive a condição de dependência do Brasil. Pelo menos, dessa forma
era percebido por ingleses, conforme registrou o Observer de Londres27.

O cosmopolita Antonio de Araújo Azevedo, conde da Barca, por sua


vez, preocupava-se com a adaptação aos novos tempos, tanto quanto seu
protegido Silvestre Pinheiro Ferreira. No gabinete, “opinava pelo Brasil”,
ao contrário de Aguiar28. Aliás, como tal foi visto pelo editor do “Portu-
guês” de Londres, Rocha Loureiro, que não o poupou em seu necrológio:
o ministro era o autor de um “sistema pródigo de destruir Portugal para
aumentar o Brasil”29. Poucos anos antes, dirigindo-se ao rei, dissera sem
rebuços: “nem confie no ministro [Barca] que tem”30.

Apesar de sua evidente inseção internacional, o tema da elevação


do Brasil a Reino Unido não pode ser considerado apenas desse ponto de
vista. É preciso analisá-lo também em relação à organização dos domí-
nios portugueses.

Em outro trabalho já nos referimos às condições internas incidentes


sobre essa organização31. A crise da colonização como um todo, mais do
que a do estrito “sistema colonial” econômico, era agravada por fatores
tradicionais, como a rigidez estamental e fatores novos, como o peso do
estado pombalino e pós-pombalino. Essa realidade tornou aguda a cons-
ciência de parte das elites metropolitanas e coloniais para a necessidade
de reformas sociais e políticas.

27 – Apud LIMA, Manuel de Oliveira. Op. cit, p. 343.


28 – Idem, p. 347.
29 – Idem, p. 343.
30 – LOUREIRO, José Bernardo da Rocha. Memoriais a Dom João VI, Paris: FCG, 1973,
p. 105.
31 – WEHLING, Arno, A monarquia dual luso-brasileira (crise colonial, inspiração hispâ-
nica e criação do Reino Unido), in Anais do Seminário Internacional D. João VI, um rei
aclamado na América, Museu Histórico Nacional, p. 338ss, 2000.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016. 25


Arno Wehling

Por outro lado, as soluções pensadas por sucessivos governos es-


panhóis desde as últimas décadas do século XVIII para o problema do
governo das colônias americanas, como os planos dos ministros Flori-
dablanca, Aranda e Campomanes, deixam entrever o paralelismo das si-
tuações coloniais dos dois países ibéricos e a influência espanhola em
Portugal. O plano do conde de Aranda, ministro de Carlos III, previa a
divisão da América espanhola em três reinos, que seriam governados por
infantes de Espanha. A proposta de uma espécie de federação monárqui-
ca seria retomada já às vésperas da independência pelo ministro Godoy,
também não se efetivando.

O ponto alto de todos esses planos era a reestruturação do espaço


institucional e jurídico da monarquia espanhola, mas pelo menos nos de
Floridablanca e Campomanes havia também uma preocupação com a re-
presentação política.

Em todos, partia-se do diagnóstico do conde de Aranda em sua Ex-


posición Del conde de Aranda al Rey Carlos III sobre la conveniência
de crear reinos independientes em América, apresentada cerca de 1783:
(...) estaríamos no caso de variar muitas das idéias que desde o des-
cobrimento da América foram coerentes até agora; porque o teatro do
Novo Mundo já não é o mesmo e portanto exige corrigir e consolidar
nosso sistema32.

No ocidente da Península Ibérica também existiu essa preocupação


com o futuro dos domínios ultramarinos, particularmente o Brasil. A mais
expressiva manifestação nesse sentido foram os planos de D. Rodrigo de
Sousa Coutinho, de reestruturação do Estado português, neles se incluin-
do, entre outros, uma reforma tributária, uma judicial e o Sistema político
que mais convém que a nossa Coroa abrace para a conservação dos seus
vastos domínios da América, que fazem propriamente a base da grandeza
do Nosso Augusto Trono, presumivelmente de 1798.

32 – Apud OLTRA, Joaquin. y SAMPER, Maria Angeles Perez. El conde de Aranda y los
Estados Unidos, Barcelona, Península, 1987, p. 84.

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Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

As principais proposições desse texto embasaram a política subse-


quente, independentemente do fato de seu autor estar ou não no governo.
A ideia de equilíbrio entre as partes componentes do império, em vez de
uma relação pura e simples de dominação metropolitana e da unidade cal-
cada na consciência da lusitanidade comum, aí se encontram e estariam
presentes no governo fluminense de D. João.
Os domínios de Sua Majestade na Europa não formarão senão a ca-
pital e o centro de suas vastas possessões. Portugal, reduzido a si só,
seria dentro de um breve período uma província de Espanha, enquanto
servindo de ponto de reunião e de assento à monarquia (...) é sem
contradição uma das potências que têm dentro de si todos os meios
de figurar conspícua e brilhantemente entre as primeiras potências da
Europa. (...) este inviolável e sacrossanto princípio da unidade, pri-
meira base da monarquia que se deve conservar com o maior ciúme
a fim de que o português nascido nas quatro partes do mundo se jul-
gue somente português e não se lembre senão da glória e grandeza da
monarquia...33

Lembremo-nos, oportunamente, que a concepção de um sistema


aproximadamente federativo a ligar metrópoles e domínios e não a pura e
simples relação colonial foi uma ideia iluminista, que se encontra formu-
lada em autores como Adam Smih, Turgot e Hume e pretendia-se aplica-
da também às possessões britânicas e francesas34.

Ademais, havia a recente experiência inglesa, com a tentativa de


Reino Unido entre a Inglaterra (já unida à Escócia e ao País de Gales) e
a Irlanda. A união foi proclamada em 1800 após a sangrenta repressão da
rebelião irlandesa de 1798. Mas nem a habilidade do primeiro ministro
William Pitt foi capaz de consolidar o modelo em bases de relativo equilí-
brio de interesses, já que sua solução institucional – parlamento único em
Londres e relativa emancipação para Dublin – não convenceu a liderança

33 – COUTINHO, Rodrigo de Sousa. Sistema que mais convém..., in MENDONÇA, Mar-


cos Carneiro de. O intendente Câmara. São Paulo: CEN, 1958, p. 278-279. Sobre a ques-
tão, DINIZ-SILVA, Andrée Mansuy. D. Rodrigo de Souza Coutinho, Comte de Linhares,
1755-1812, Paris: FCB, vol. II, p. 61ss, 2006. WEHLING, Arno. Administração portu-
guesa no Brasil de Pombal a D. João, Brasília: Funceb, 1986, p. 150ss.
34 – PAGDEN, Anthony. op. cit., p. 242ss.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016. 27


Arno Wehling

política inglesa. O rei Jorge III o demitiu no ano seguinte e a união consis-
tiu numa absorção, com prolongados efeitos negativos até o século XX35.

O caso luso-brasileiro também demandava ajustes delicados e com-


plexos.

Em 1803, D. Rodrigo chegou a propor a transferência da Corte para


o Brasil, assunto que ressurgiria em 1807, já sob a pressão napoleônica,
pela voz do conde da Barca, este propondo a ida para o Brasil do príncipe
herdeiro, sem mencionar ainda a possibilidade de uma mudança institu-
cional na colônia, que seria no entanto absolutamente consequente36.

Assim, a ideia de uma “federação imperial”, com suas múltiplas


consequências, estava no ar desde pelo menos fins da última década do
século XVIII.

O historiador Kenneth Maxwell, a propósito dessas manifestações,


viu na “geração de 1790” o interesse fundamental de constituir um “im-
pério luso-brasileiro” por meio de um pacto de elites dos dois lados do
oceano37.

Mais tarde, já com a Corte no Brasil e morto D. Rodrigo de Sousa


Coutinho em 1812, coube a Silvestre Pinheiro Ferreira, a pedido do prín-
cipe regente, em 1814, emitir um parecer sobre as circunstâncias em que
Brasil e Portugal se encontravam, considerando o novo quadro com a
queda de Napoleão.

Esse parecer, que teve como principal motivação o retorno ou não


do príncipe regente a Portugal, levou em conta, lucidamente, que não se
tratava apenas do local em que estivesse o monarca, nem mesmo a Corte.
O que estava em jogo era algo muito mais profundo, isto é, o estatuto
35 – PLUMB, J. H. England in the Eighteenth century (1714-1815), Londres: Pelican,
1964, p. 185.
36 – SILVA. Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nação – intelectuais ilustrados e esta-
distas luso-brasileiros na crise do Antigo Regime português, São Paulo: Hucitec, 2006, p.
250ss.
37 – MAXWELL, Kenneth. Chocolate, piratas e outros malandros, São Paulo: Paz e
Terra, 1999, p. 157ss.

28 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016.


Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

político do conjunto do império português e notadamente seus dois polos


principais, a metrópole e o Brasil.

No documento, Silvestre Pinheiro Ferreira propôs que a rainha D.


Maria I fosse proclamada imperatriz do Brasil, mantendo-se rainha de
Portugal, e que D. João, que desde 1792 já exercia o governo como prín-
cipe regente, continuasse nessa condição no Império do Brasil e domínios
africanos e asiáticos, passando ao príncipe herdeiro D. Pedro a regências
de Portugal e ilhas do Atlântico. Propôs, também, como desdobramento
institucional desse processo político, a redivisão de Portugal, Brasil e do-
mínios em províncias, comarcas, distritos e freguezias e a instituição “em
ambos os estados” de toda a estrutura do estado, simplificando a admi-
nistração e permitindo o acesso dos súditos comuns, “abolindo a odiosa
distinção de colônias e metrópole”38.

Percebe-se, portanto, que a criação do Reino Unido, em seu con-


texto interno aos domínios portugueses, já tinha uma larga jornada de
cogitações, inserindo-se no que chamamos anteriormente os “limites do
reformismo ilustrado pós-pombalino”. Nesse âmbito, recolhia-se da in-
fluência externa – estava-se no fim do Iluminismo e em tempos da Revo-
lução Francesa – o que fosse necessário ao aggiornamento de Portugal e
domínios, sem entretanto chegar aos alicerces do Antigo Regime, o que
já envolveria a passagem ao liberalismo constitucional39. Passagem, aliás,
que o próprio Silvestre Pinheiro Ferreira realizou, tornando-se a partir
da década de 1820 um dos representantes do liberalismo e do governo
representativo em Portugal.

Dessas duas grandes séries de acontecimentos, a internacional e a


interna, surgiu afinal a solução político-institucional do Reino Unido, de
Portugal, Brasil e Algarves.

38 – FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Memórias políticas. Revista do Instituto Histórico


e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia Uniersal de H. Lammert & Cia, t.
xlvii, v. 1, n. 67, p. 1ss, 1884.
39 – WEHLING, Arno. Silvestre Pinheiro Ferreira e as dificuldades de um Império luso-
-brasileiro in Silvestre Pinheiro Ferreira, As dificuldades de um Império luso-brasileiro,
Brasília: Senado Federal, 2012, p. 18.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016. 29


Arno Wehling

A Carta de Lei que o instituiu, como usual, formalmente possuía


duas partes, uma de considerandos que a justificavam e outra dispositiva.
Na primeira, eram expostas as razões pelas quais se efetuava o ato:

– o desejo do príncipe regente em fazer prosperar os estados que a


Divina Providência confiou a seu “soberano regime”.

– a importância dos domínios da América, com sua riqueza variada.

– a vantagem advinda para seus vassalos da “perfeita união e identi-


dade” de Portugal e Algarve com o Brasil.

– o fato de os domínios americanos já serem assim considerados pela


comunidade internacional, como ocorrera no Congresso de Viena, tanto
no tratado de aliança ofensiva e defensiva de 8 de abril quanto no seu Ato
Final de 9 de junho.

Na parte dispositiva, determinava que:

– desde a publicação da Carta de Lei o país ficava elevado à “digni-


dade, preeminência e denominação” de Reino do Brasil.

– os reinos de Portugal, Algarve e Brasil formariam “um só e único


Reino”, com o título de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve.

– os títulos inerentes à Coroa portuguesa, e que até agora o príncipe


regente fizera uso, se substituiriam em todos os documentos por “Príncipe
Regente do Reino Unido de Portugal e do Brasil e Algarve, de aquém e de
além mar em África, de Guiné e da conquista, navegação e comércio da
Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia”.

Nas razões alegadas, cabem algumas observações. A semântica utili-


zada ainda era a do Antigo Regime, pois na primeira razão utilizava-se o
conceito tradicional de “estado” como sinônimo de domínio ou possessão
estável. Era o sentido que se dava nas expressões “Estado do Brasil”,
“Estado do Maranhão” ou “Estado da Índia”. A plena existência política
se dava com a transformação ou a incorporação do “estado” ao “reino”,

30 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016.


Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

já que os atributos inerentes ao Estado da acepção de Bodin, a começar


pela soberania, somente se verificavam no Antigo Regime sob as formas
de Império, Reino ou cidade livre.

No mesmo sentido, a figura do rei continuava vinculada ao imagi-


nário político do Antigo Regime, a do príncipe paternal que vela pelo
bem-estar e prosperidade de seus súditos.

A importância política e econômica do Brasil era explicitada na con-


cisa expressão “riqueza variada”. Ela apontava para os bens materiais
propriamente ditos e a extensão territorial, num eco não tão longínquo do
tom patriótico da História da América Portuguesa de Sebastião da Rocha
Pita e que agora se consubstanciava numa versão ideológica precisa, a do
“poderoso império”.

A “perfeita união e identidade”, por sua vez, não se aplicava aos vas-
salos, mas os beneficiava. Há aí uma sutileza jurídica, pois do ponto de
vista civil os súditos já possuíam em tese, e também concretamente, em
algumas situações específicas, “união e igualdade”, pois poderiam arguir
para efeitos legais o estatuto de “pátria comum”, como ocorria nas “leitu-
ras de bacharéis”, concurso público de acesso à magistratura portuguesa.
A novidade jurídica que surgia era a da igualdade e identidade no âmbito
do Direito Público entre o antigo “Estado do Brasil” e o “Reino de Portu-
gal e Algarve”, com suas consequências diretas para o Brasil como ente
político e indiretas para os súditos reais que nele habitavam.

Entretanto, a percepção de uma superioridade em direitos de súditos


portugueses e coloniais era uma forte evidência, que variava de região
para região. Seu ponto mais crucial se deu em Pernambuco ao longo de
todo o século XVIII, opondo os “reinóis” aos “mazombos” da terra. An-
tes de uma diferença jurídica, sabemos que se tratava de uma construção
ideológica, com preconceitos de ambos os lados permeando interesses
conflitantes. O mais conhecido foi o de agricultores “brasileiros” e co-
merciantes portugueses que exportavam os produtos da terra, manipulan-
do o mercado.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):15-46, jan./mar. 2016. 31


Arno Wehling

A elevação a Reino Unido trazia como consequência direta, portan-


to, o explícito reconhecimento dessa igualdade de direitos e como tal foi
saudada em livro de 1818 por José da Silva Lisboa, futuro visconde de
Cairu, ao falar da extinção de “anomalias que antes por extremo desigua-
lavam a sorte dos filhos a respeito dos pais nascidos na metrópole”40.

O cronista Luiz Gonçalves dos Santos, padre Perereca, usou a mes-


ma expressão de Cairu para referir-se ao assunto:
Assim, esta memorável carta de lei de um golpe desfez a anomalia
política e irregular sistema do antigo regime colonial. Já os portugue-
ses da América não são inferiores em graduação e direitos aos portu-
gueses da Europa; já os filhos da Nova Lusitânia tomam assento igual
com os filhos da antiga; e, posto que distantes uns dos outros pela sua
situação geográfica, são contudo um mesmo povo e uma mesma na-
ção, identificada não só pelos indissolúveis laços do sangue, pelo inato
valor, lealdade ao soberano e identidade de religião, mas também de
hoje em diante pelos mesmos privilégios, honras e graduação41.

Em 1816, Paulo José Miguel de Brito, correspondente da Academia


das Ciências de Lisboa, que atuara na administração de Santa Catarina e
depois fora designado para governador de Moçambique, estava no Rio
de Janeiro. Em sua memória sobre aquela capitania, inseriu observação
na qual dizia que a elevação a Reino Unido unia Brasil e Portugal “poli-
ticamente”, além de “unir civilmente e identificar em uma só família os
portugueses de ambos os hemisférios”42. Repetia ipsis litteris a expressão
de D. Rodrigo.

Entre outras manifestações, em outubro do mesmo ano o padre Gon-


çalo Inácio Loiola de Albuquerque Melo – padre Mororó – expressava em
Fortaleza, por ocasião de uma festa solene dedicada a Nossa Senhora da
Assunção, padroeira do batalhão que defendia a capital e na presença das

40 – LISBOA, José da Silva. Memória dos benefícios políticos do governo de El-Rei


Nosso Senhor D. João VI, Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1818, p. 111.
41 – SANTOS, Luís Gonçalves dos. (padre Perereca), Memórias para servir à História do
Reino do Brasil, São Paulo: Edusp-Itatiaia, vol. II, 1981, p. 29.
42 – BRITO, Paulo José Miguel de. Memória política sobre a capitania de Santa Catari-
na, Florianópolis: Sociedade Literária, 1932, p. IX.

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Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

autoridades, inclusive o governador, o júbilo pela elevação. Dirigindo-se


ao povo cearense, dizia numa retórica áulica comum aos discursos que
deveriam chegar às autoridades centrais43:

Nada mais vos falta, ó fiéis vassalos, do que fazer-vos cada vez mais
dignos das recompensas do Nosso Augusto Monarca. Se vossos ante-
cessores longo tempo não tiveram acesso, vós agora fostes promovi-
dos em grandes postos. O Novo Reino Unido vos franqueia a estrada
da honra. Os regelados dias de inverno já passaram, apareceram as
flores na nossa terra44.

Verifica-se a clara continuidade do discurso político, como que a ha-


ver uma linhagem entre o de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, em 1798, e
o dos que se debruçaram sobre o tema até a independência.

Por outro lado, a quarta razão alegada demonstra a astúcia diplomáti-


ca de Portugal, aliás à época já tradicional e conhecida sobretudo pela Es-
panha, a de criar situações que depois justificassem vantagens materiais.
A ação desencadeada pelos plenipotenciários gerou o reconhecimento tá-
cito da nova situação política pelas potências europeias, que por sua vez
foi utilizada na consolidação da solução pretendida.

A própria atuação aparentemente autônoma dos diplomatas sempre


deixava espaço para sua desautorização, no caso de a iniciativa ser mal
recebida pelos demais países. Esse expediente era corriqueiro na diplo-
macia do Antigo Regime, tendo sido utilizado pelo marquês de Pombal e
pelo vice-rei marquês do Lavradio nas guerras com os espanhóis e pelos
ingleses no ataque do almirante Popham a Buenos Aires.

A parte dispositiva é ainda mais rica de consequências para o enfo-


que institucional e jurídico.

43 – O texto foi publicado em 1818 pela tipografia real do Rio de Janeiro.


44 – MELO, Gonçalo Inácio Loiola de Albuquerque. Oração de graças recitada no dia 12
de outubro de 1816 na igreja matriz da vila de Fortaleza, capital da capitania do Ceará,
pela feliz união dos três reinos de Portugal, Brasil e Algarves, Rio de Janeiro: Tipografia
Real, 1818, p. 29.

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Arno Wehling

Em primeiro lugar, afirma a unidade e a integridade do próprio Bra-


sil, o que não estava necessariamente pressuposto ou garantido. Não se
pode considerar, ucronicamente, o Brasil como o ente político que se
constituiu depois.

Embora não mais existisse desde 1774 o estado separado do norte


– Estado do Grão Pará e Maranhão, antes Estado do Maranhão – conti-
nuavam existindo os fatores objetivos que o haviam justificado, como a
distância em relação ao sul da colônia e as dificuldades de navegação. No
próprio período joanino, as relações continuavam mais fáceis entre São
Luís e Belém com Lisboa do que com Salvador ou o Rio de Janeiro, a
ponto de os recursos judiciais se remeterem para a Casa da Suplicação de
Lisboa e não para a do Rio de Janeiro.

Em segundo lugar, tornou evidente a passagem do Brasil de um do-


mínio (sob a forma de estado) para Estado soberano. Essa afirmação im-
plicava reconhecer a soberania do país com todos os seus desdobramen-
tos políticos, institucionais e jurídicos.

Tratava-se agora de um novo ente, com identidade jurídica própria


por ser pessoa de Direito Público interno e externo. Órgãos públicos e
instituições, ainda que replicando o modelo português, representavam um
Estado soberano local, não sendo mais meras extensões derivadas de seus
congêneres metropolitanos e a ele subordinados.

O exemplo mais evidente dessa situação talvez seja a bicefalia dos


tribunais supremos, com a Casa da Suplicação do Brasil sendo mantida
mesmo depois de restabelecida a de Lisboa, após a expulsão dos france-
ses.

Outro desdobramento relevante da constituição do Reino Unido se-


ria a substituição das capitanias por províncias e de seus governadores
capitães-generais, com função primordialmente militar, por governado-
res civis, como propusera Hipólito da Costa45. A imagem dos capitães-
-generais pombalinos e posteriores foi quase sempre negativa, pois eram
45 – COSTA, Hipólito da. Correio Brasiliense, vol. 16, p. 109.

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Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

associados com o mando arbitrário. Não obstante a existência de algumas


figuras vistas como excelentes e justos administradores46, a imagem do-
minante é a que aparece nos viajantes estrangeiros da época, como Au-
guste de Saint Hilaire, e em autores luso-brasileiros. Para ele,

Livres de qualquer vigilância, saudosos dos prazeres de uma grande


capital, cheios de desprezo pela região que governavam, devorados de
tédio, não tendo mais iguais com quem tratar, rodeados de aduladores
e de escravos, esses capitães-generais entregavam-se muito freqüen-
temente a todos os caprichos do despotismo47.

Nem a formalidade da troca de denominação das unidades políticas,


nem a mudança do perfil institucional dos governantes ocorreram à épo-
ca, mas somente em 1821.

Silvestre Pinheiro Ferreira, já como ministro de Estado em 1821, la-


mentava a permanência dos governadores capitães-generais com o perfil
colonial48.

No plano externo, a igualdade jurídica no interior do Reino Unido


correspondia a representação diplomática e capacidade para concluir tra-
tados. Essa percepção na época se evidenciou não apenas nas manifesta-
ções dos diplomatas portugueses em Viena; muito antes, o encarregado de
negócios português em São Petersburgo, escrevendo ao conde da Barca
em 3 de março de 1808, muito provavelmente sem contato com Palmela
mas na lógica do manifesto do príncipe regente de ruptura com a França,
dizia que se o país fosse conquistado por Napoleão, ele continuaria repre-
sentando o “Príncipe Regente do Brasil” e não, como poderia ocorrer, o
príncipe regente destronado ou no exílio49. E, menciona Oliveira Lima,
o Annual Directory diplomático de Londres, em 1813, dava D. Domin-

46 – LIMA, Manuel de Oliveira. Op. cit., p. 342.


47 – SAINT HILAIRE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas
Gerais, São Paulo: Edusp-Itatiaia, l975, p. 154.
48 – FERREIRA, Silvestre Pinheiro, Cartas sobre a Revolução do Brasil, Revista do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. li, n. 75, p. 239ss, 1888.
49 – LIMA, Manuel de Oliveira. Op cit, p. 342.

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Arno Wehling

gos de Sousa Coutinho como representante diplomático do Brasil, não de


Portugal50.

A elevação do Brasil a Reino Unido significou, assim, a plena sobe-


rania para este e, em consequência, a igualdade absoluta de direitos entre
os reinos. Por menor que fosse a implementação institucional e legislativa
da nova realidade jurídica, ainda assim essa igualdade era irretorquível e
sua revogação implicaria o retorno ao estatuto de “estado”ou “domínio”
tradicional, como perceberam os constituintes portugueses e brasileiros
nas Cortes de Lisboa.

Por último, deve ser considerada a fórmula político-jurídica encon-


trada. O segundo dispositivo do ato constitutivo do Reino Unido fala em
“um só e único Reino”. Tratou-se assim de uma união real de dois (ou
três, se considerada a, àquela altura, ficção jurídica do Algarve) reinos e
não de uma união pessoal sob o mesmo rei51.

Aqui também há duas faces de Juno. A retórica era a da união em


“um único Reino” e não de dois reinos separados pelo Atlântico, por di-
ferentes sociedades e por diverso potencial de crescimento. Repetia-se o
discurso de Rodrigo de Sousa Coutinho dos “portugueses de ambos os
hemisférios”, que ecoava no Brasil daquele momento, como visto, não
apenas a partir do palácio real.

A realidade concreta, todavia, era a de dois reinos muito distantes


entre si, com interesses e políticas diversas, cuja união dependia ou de
ações de força como as empregadas havia pouco pela Inglaterra na Ir-
landa – quer de Portugal sobre o Brasil ou deste sobre Portugal – ou de
ajustes políticos e econômicos extremamente complexos. Sabemos que
tais ajustes se revelaram inúteis logo depois, na conjuntura da revolução
liberal de 1820. Teriam sido exequíveis no momento da criação do Reino
Unido, como pediram os jornalistas Hipólito da Costa e Rocha Loureiro?

50 – Idem, p. 338.
51 – Aspecto já apontado por TRIPOLI, Cesar. Op. cit, vol. II, p. 61.

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Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

Não sabemos por que não foram tentados, ou sequer esboçados. Os


dois reinos passaram a constituir na prática política e econômica uma
monarquia crescentemente dual do ponto de vista institucional, porque
crescentemente distintos em sua realidade fática, dualidade que tinha seu
desdobramento jurídico na duplicidade de organismos de Estado nos dois
lados do oceano.

A própria inação do governo joanino na implementação da fórmu-


la permitiu que se aprofundassem as diferenças, ao mesmo tempo que
crescia um novo espectro no horizonte político, o sentimento nacional
em Portugal e no Brasil. Naquele, pela afirmação da nacionalidade esti-
mulada pelas guerras napoleônicas, o que poderia sobrepor-se à lealda-
de dinástica. Neste, pelo desenho de um sentimento de brasilidade ainda
frágil, mas que já se constituía na segunda década do século XIX, onde
antes de 1808 havia apenas, no dizer de Capistrano de Abreu, identidades
regionais52.

Assim, por mais que o discurso político da Corte no Rio de Janeiro


afirmasse a coesão da união, a prática institucional – para além da riva-
lidade política – apontava para a efetividade da monarquia dual, tendo
como traços de união língua, moeda e representação externa e diferen-
ciando-se pelas instituições e pela legislação, a despeito do fundo comum
de ambas.

O desenho político-institucional e jurídico do Brasil acentuou-se no


plano simbólico com leis ou decisões complementares que evidenciavam
sua identidade no âmbito do Reino Unido, como a decretação do novo
escudo de armas para este, em 13 de maio de 1816 – não por acaso dia do
aniversário do já agora D. João VI – e a atribuição do título de Príncipe
do Reino Unido de Portugal, Brasil e Argarves ao primogênito, em 1817,
substituindo o de Príncipe do Brasil instituído no século XVII.

A recepção do Reino Unido no Brasil e no exterior nos dois anos


seguintes foi em geral positiva. No Rio de Janeiro, a notícia na Gazeta do
52 – ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial, Rio de Janeiro: Bri-
guiet, 1954, p. 305.

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Rio de Janeiro53 foi sóbria54, limitando-se ao registro do contentamento


popular e da iluminação de “um grande número de edifícios”55. Em 28 de
dezembro, o presidente da câmara manifestou-se a D. João nos termos
encomiásticos do discurso político do Antigo Regime, agradecendo ao
príncipe regente pela “ilustrada política e espontânea deliberação” do “li-
beralíssimo diploma”, que possibilitava a “prosperidade geral das partes
constituintes da monarquia portuguesa”, escrevendo-se assim uma “bri-
lhante página na história”. Na verdade, o discurso foi um contraponto ao
próprio ato do Reino Unido, utilizando as principais partes daquele docu-
mento56. A câmara determinou ainda que doravante houvesse três dias de
festas com missa festiva e luminárias nos dias 16, 17 e 18 de dezembro
para comemorar o evento.

Em janeiro de 1816, uma comissão dos comerciantes do Rio de Ja-


neiro foi ao príncipe regente agradecer a elevação57, seguindo-se manifes-
tações de júbilo das câmaras de Salvador, Recife, São Paulo, Vila Rica,
Mariana, Sabará e outras58.

As reações diferentes de brasileiros e portugueses foram bem ex-


pressas pelos cronistas padre Perereca e Marrocos. Para o primeiro,

Os títulos de Colônia, e de Domínios, que o Brasil conservou por três


séculos desde o seu descobrimento até a feliz época da vinda de Sua
Alteza Real para o mesmo Brasil, atenuava e abatia o caráter do povo
brasileiro, e não havia espírito público, nem aquela elevação de alma
que torna uma nação briosa e heróica; por cujo motivo as partes deste
imenso corpo político estavam como paralizadas; mas a real presença
do Príncipe Regente Nosso Senhor, como uma chama elétrica, tudo
animou e vivificou, seguindo-se logo uma nova ordem de coisas.

(...)
53 – Gazeta do Rio de Janeiro, n. 101, de 1815.
54 – Na justa apreciação de SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Gazeta do Rio de Janeiro
(1808-1822), Cultura e Sociedade, Rio de Janeiro: Eduerj, 2007, p. 253.
55 – Gazeta, ibidem.
56 – SANTOS, Luís Gonçalves dos. (padre Perereca), op cit, vol. II, p. 29-30.
57 – Idem, vol. II, p. 35.
58 – Idem, vol. II, p. 36ss.

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Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

Que louvor, que glória a do Senhor D. João VI! Porém o primeiro no


Novo Mundo. Primeiro em o habitar, primeiro em o felicitar, primeiro
em o engrandecer, primeiro em fundar uma nova Monarquia, um novo
Reino, um novo Império.

Já Luís Joaquim dos Santos Marrocos, que se sentia um exilado por-


tuguês no Rio de Janeiro, aproveitou o ensejo para atacar os promotores
das homenagens:

O Senado, que em tudo se quer distinguir, em tudo dá a conhecer


que é Senado do Brasil; e por isso fez a função mais porca, que eu
não esperava ver. Em despique à mesquinhez do Senado, o Corpo do
Comércio, todo bazófia, reserva para logo depois da Páscoa a sua Fun-
ção, alusiva ao mesmo objeto, e em que prometem o maior aparato e
grandeza, à imitação das Festas Reais de Lisboa...59

No exterior, já em fevereiro de 1816 manifestaram-se os ministros


Castlereagh, da Inglaterra, e o duque de Richelieu, da França, seguindo-
-se Metternich pela Áustria, Nesselrode pela Rússia e Hardenberg pela
Prússia. Essa ratificação internacional foi muito valorizada pelo cronista
pe. Perereca, em geral eco das posições oficiais, a ponto de Oliveira Lima
considerar tal registro exagero áulico do autor. No entanto, pode bem re-
presentar a preocupação do governo joanino de obter um rápido respaldo
internacional à nova situação política.

A reação cética ficou por conta dos publicistas. Os jornalistas Hipó-


lito da Costa e Rocha Loureiro manifestaram dúvidas, o primeiro pedindo
a implementação do ato em medidas concretas, o segundo, menos mode-
rado, falando abertamente da necessidade de constitucionalizar ambos os
países como meio para viabilizar a nova fórmula – caminho aliás que se
revelaria inócuo no processo revolucionário de 1820-1822. O diplomata
e escritor abade De Pradt, em livro de 1816 sobre o Congresso de Viena,
levantou o problema inusitado de um país americano possuir “colônias”
na Europa.

59 – MARROCOS, Luis Joaquim dos Santos. Op. cit., p. 323.

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O ato político da elevação do Reino Unido foi assim um divisor de


águas ideológico entre naturais de ambos os países e também entre reinóis
a favor e contra a permanência do Antigo Regime e da relação colonial.

Esses dois grandes desafios do momento – a transição para a nova


ordem liberal-constitucional e a organização política do Reino Unido –
implicavam soluções complexas, algumas das quais já apontadas no pa-
recer de Silvestre Pinheiro Ferreira e que nem sempre eram bem recebi-
das pelos que reagiam à possibilidade de reformas. O mesmo Marrocos
referia-se a Silvestre Pinheiro Ferreira, cuja posição reformista àquela
altura era notória, embora longe de qualquer jacobinismo, de forma muito
depreciativa, tachando-o de excessivamente teórico, por apresentar “pro-
posições à francesa”60. Mas para os mais moderados estava patente que
a viabilidade política, institucional e jurídica do Reino Unido repousava
sobre uma premissa claramente identificada no discurso oficial e também
explicitada pelo padre Luis Gonçalves dos Santos:

Praza dos céus que esta união dos três Reinos seja indissolúvel por
muitos séculos e que os portugueses da Europa e da América, regi-
dos sempre por um só e único soberano da Real Casa de Bragança,
constituam uma única e mesma nação, ligada entre si pelos vínculos
do sangue, concorde nos interesses, firme na fé, leal ao Rei e em tudo
portuguesa61.

Que conclusões podemos tirar do episódio de elevação a Reino Uni-
do?

Preliminarmente, o papel da grande política internacional na evolu-


ção dos acontecimentos. É fora de dúvida que não foi a situação interna
de Portugal ou do Brasil que condicionou a condução de sua política ex-
terna, mas, inversamente, foram as circunstâncias internacionais da reor-
ganização pós-napoleônica que promoveram, naquela conjuntura, o novo
status político do Brasil. Situação que, já vindo de momentos anteriores,
60 – Idem, p. 326-327.
61 – SANTOS, Luís Gonçalves dos. (padre Perereca), op cit, vol. II, p. 45-46.

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Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

consolidou-se no século XIX: a grande política internacional, como bem


percebeu e utilizou Bismarck, por exemplo, criava condições para as so-
luções da política interna.

Se sairmos do campo da Realpolitik para o das ideias políticas, re-


pete-se o cenário, com a disseminação sistemática da concepção ilumi-
nista – de Turgot, Hume e Adam Smith aos ilustrados ibéricos – de que
se tornariam inevitáveis ou as federações imperiais, ou os processos de
independência das antigas colônias.

No contexto luso-brasileiro, entretanto, que significado teve o Reino


Unido?

Silvestre Pinheiro Ferreira, em 1821, nas Cartas, lamentou que ele


não tivesse sido efetivamente implantado, o que poderia ter esvaziado a
crise que se vivia à época, com a eclosão do movimento constituciona-
lista.

Para a dimensão do problema enfrentado, provavelmente Silvestre


Pinheiro Ferreira tinha razão, até porque a elevação de categoria política
do Brasil não resolveu – nem pretendia, pelo menos no momento de sua
promulgação – a questão da representação política, crucial na crise cons-
titucionalista. Contudo, para diversos outros aspectos não se revelou uma
providência simplesmente inócua.

Até 1815 tinham sido tomadas medidas que deixavam para trás o
acanhado mundo colonial. Independentemente das razões que as motiva-
ram, esse foi o caso das instituições transferidas para o Brasil, como os
órgãos superiores da administração; das instituições já existentes e que
foram expandidas, como os juizados de fora e as comarcas; da legisla-
ção, em particular aquela do âmbito do Direito Público62. A tais medidas
acrescentou-se o conjunto de ações que chegou a configurar uma política

62 – WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Thémis dans la monarchie des Tro-
piques (l’organisation de la justice à l’époque de D. João VI), in COUTO, Jorge (org.),
Rio de Janeiro, capitale de l’Empire portugais (1808-1821), Paris: Chandeigne, 2010, p.
219ss.

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econômica coerente, em especial durante o governo de Rodrigo de Sou-


sa Coutinho (1808-1812): a liberação do comércio exterior, a criação do
Banco do Brasil – primeiro estabelecimento bancário oficial de Portugal
– o estímulo à imigração estrangeira e a política de fomento de produtos.
Tirando esse último aspecto, que já vinha do consulado pombalino, os
demais foram realmente turning-points da orientação seguida até então,
com o caráter de evidente ruptura com a situação anterior.

O novo status político do Brasil formalizou esse conjunto de trans-


formações, como que confirmando no âmbito do Direito Público a nova
condição que, por motivos materiais e também ideológicos, o país estava
apto a assumir. A oportunidade da decisão e sua natureza, por sua vez,
foram dadas pelas circunstâncias internacionais.

Essa formalização não alterou, certamente, condições estruturais que


vinham da colônia e se prolongaram além do Reino Unido, como a eco-
nomia exportadora, o fraco mercado interno, o predomínio da escravatura
na estrutura ocupacional ou a preeminência do Estado. Aliás, esse último
aspecto ficou claro na fala do presidente do Senado da Câmara do Rio de
Janeiro, ao agradecer ao príncipe regente o ato do Reino Unido. Para além
do aspecto protocolar, ficou evidente que se esperava do Estado um papel
não apenas supervisor ou facilitador, à Adam Smith, mas fomentador e
provedor de recursos, benefícios e isenções, deixando entrever a marca
de mais uma continuidade estrutural do patrimonialismo.

Certamente faltaram desdobramentos explícitos da nova condição


institucional e jurídica do país, como a definição de políticas comuns ao
Reino Unido e específicas de cada uma de suas unidades, e nesse ponto
a crítica de Silvestre Pinheiro Ferreira tinha sua razão de ser. Mas à falta
do dinamismo planificador de Rodrigo de Sousa Coutinho evidenciou-se
apenas uma política reativa e não proativa, como na repressão à Revolu-
ção de 1817, ou hesitante, como no caso do demorado e discutido retorno
do rei a Lisboa.

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Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

De qualquer modo, a conjuntura do Reino Unido, entre sua insti-


tuição em 1815 e o retorno do rei, em 1821, demonstrou que o Brasil
estava maduro para sair da condição colonial. Não estava claro, todavia, o
caminho. Poderia ser o da conciliação, com a permanência do Reino Uni-
do – José da Silva Lisboa intitulou sugestivamente seu jornal, publicado
apenas em março e abrl de 1821 na agitada conjuntura que determinou o
retorno do rei a Portugal, exatamente Conciliador do Reino Unido. Po-
deria ser também o da revolução, pela ruptura com a metrópole. A partir
dessas duas grandes incógnitas se colocavam a integridade ou não do
país, com a fragmentação em algumas novas unidades políticas; e, mes-
mo se de antemão admitido o sistema constitucional, a forma de governo,
republicana ou monárquica.

Todas essas indagações estavam no ar desde o momento da criação


do Reino Unido.

A esse fato, por si só determinante de uma opção polítca, deve ser


agregado o interesse de Portugal em situar-se como “potência de primeira
ordem”, o que somente se verificaria com a afirmação do “poderoso im-
pério” transcontinental.

Certamente a decretação do Reino Unido não foi um dom gratuito do


Príncipe Regente a seus vassalos brasileiros, mas o resultado da conjuga-
ção do temor à revolução com a percepção da oportunidade de constituir
uma nova entidade política, esse “poderoso império”.

De qualquer modo, o Reino Unido evidenciou algumas situações


efetivamente adquiridas:

1. A soberania do Brasil, ainda que no contexto do Reino Unido. Exis-


tindo uma plena igualdade de direitos entre os reinos, o Brasil já
gozava, em boa lógica jurídica tanto do Antigo Regime quanto do
sistema constitucional, de atributos soberanos no âmbito dessa fór-
mula político-jurídica (Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves).
Retirar de uma parte desse conjunto tais atributos implicava um capi-
tis diminutio que envolveria a revogação de um direito fundamental

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outorgado em 1815. Direito fundamental que existia no Antigo Regi-


me, pois a integridade dos reinos implicava a igualdade de tratamento
aos súditos de seus diversos territórios e no sistema constitucional. A
Constituição de Cádiz, por exemplo, tinha em um de seus primeiros
dispositivos a definição de sua constituição territorial e a similitude
dos direitos e obrigações dos cidadãos.

2. A integridade do Brasil a partir da hegemonia do Rio de Janeiro. O


Reino Unido e a presença na capital do Brasil do príncipe herdeiro
da Coroa, justamente o príncipe do Reino Unido, foram instrumento
importante no processo de integração do país, a despeito da existên-
cia de forças centrífugas significativas tanto no Brasil, em especial
Pernambuco, Maranhão e Pará, como em Portugal.

3. A irreversibilidade do processo. A volta atrás significaria necessaria-


mente a expressa revogação da Carta de Lei de 16 de dezembro de
1815 e o retorno à condição colonial. Mesmo no clima da Restau-
ração europeia parecia muito pouco provável uma decisão política
dessa natureza, à vista não só da própria situação brasileira – como
ocorreu em 1817 – mas também do momento revolucionário hispano-
-americano.

4. O reconhecimento jurídico de situações já consolidadas de fato e


de direito, como a existência dos órgãos públicos introduzidos após
1808, inclusive de cúpula, como a Casa da Suplicação, a Relação do
Maranhão, o tribunal superior militar e a Mesa de Consciência e Or-
dens, além de uma legislação específica do Brasil denominada pelo
próprio governo, com imprecisão conceitual mesmo para os critérios
da época, de “código Brasiliense”.

5. A não existência do Reino Unido ou algum outro estatuto político-ju-


rídico dessa natureza configuraria uma grave anomalia institucional
e jurídica em relação a todos esses órgãos e normas. Isso demandaria
claramente sua extinção, ou no Brasil (como as Cortes tentaram em
setembro de 1821) ou em Portugal.

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Reino Unido, uma solução emancipadora?
Motivos e questões institucionais e jurídicas de um ato político

6. A necessidade da igualdade de representação política para os mem-


bros do Reino Unido, tanto em sua versão Antigo Regime, com a
convocação de Cortes a partir dos três estados, quanto em sua versão
liberal-constitucional, com a representação igualitária. A representa-
ção de um domínio ou possessão desprovido desse status seria mera
concessão ou liberalidade política de quem a convocasse. No caso do
Reino Unido, era uma condição de legitimidade e foi com base nesse
reconhecimento que se convocaria em 1821 a representação das pro-
víncias brasileiras.

O ato político-jurídico de constituição do Reino Unido tinha, por-


tanto, plena viabilidade institucional. Sua consolidação, ou sua extinção,
dependeu exclusivamente da capacidade e do interesse de suas partes –
Brasil e Portugal – conseguirem compor-se, quer no sistema político do
Antigo Regime quer no sistema político liberal-constitucional.

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A elevação do Brasil a Reino Unido e a historiografia luso-brasileira

47

A ELEVAÇÃO DO BRASIL A REINO UNIDO


E A HISTORIOGRAFIA LUSO-BRASILEIRA
THE ELEVATION OF BRAZIL TO UNITED KINGDOM
AND LUSO-BRAZILIAN HISTORIOGRAPHY
Lucia Maria Paschoal Guimarães1

Resumo: Abstract:
O artigo examina a historiografia disponível This article examines available historiography
acerca da promulgação do Reino Unido de Por- about the promulgation of the United Kingdom
tugal, Brasil e Algarves. Discute e compara as of Portugal, Brazil and the Algarves. It discuss-
principais vertentes interpretativas que orientam es and compares the main interpretive aspects
a abordagem do tema no Brasil e em Portugal. that guide the way the topic is approached in
Brazil and Portugal.
Palavras-chave: Reino Unido de Portugal, Keywords: United Kingdom of Portugal, Brazil
Brasil e Algarves; historiografia luso-brasileira; and the Algarves; Luso-Brazilian historiogra-
vertentes interpretativas; período joanino. phy; interpretive aspects; Joanine period.

A passagem do bicentenário da elevação do Brasil à categoria de


Reino Unido de Portugal e Algarves constitui uma excelente oportunida-
de para dar um balanço historiográfico a respeito dessa efeméride, cujas
dimensões ainda carecem de maior aprofundamento por parte dos espe-
cialistas nas duas margens do Atlântico.

Segundo Maria de Lourdes Viana Lyra, o emprego pela historiogra-


fia das expressões “emancipação” e “independência” como sinônimos su-
primiu expressivas diferenças que se apresentavam no discurso político
da época, contribuindo para a “pouca importância” com que se costuma
tratar da promulgação do Reino Unido: “(...) O sentido histórico da nova
condição política do Brasil, então oficialmente emancipado, ou seja, livre
do estatuto colonial foi simplesmente minimizado (...) quando não omi-
tido (...)2”

1 – Doutora em História. Professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


Pesquisadora do CNPq e dos Programas Pró-ciência e Cientista do Nosso Estado/FA-
PERJ. Sócia titular do IHGB.
2 – LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia poderoso império, Brasil e Portugal: bas-
tidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994, p. 159.

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Lucia Maria Paschoal Guimarães

De todo o modo, há consenso na historiografia luso-brasileira de que


a promulgação da Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815 tão somente
legalizou o que de fato já vinha ocorrendo desde 1808, quando a Corte
portuguesa transferiu-se para os seus domínios americanos e o príncipe
regente D. João promoveu a abertura dos portos às nações amigas. Mas
se, por um lado, os estudiosos de ambos os países compartilham dessa
premissa, por outro, as interpretações acerca das consequências da insti-
tuição do Reino Unido são diametralmente opostas para as historiografias
de Brasil e Portugal.

Em 1818, no panegírico “Memória dos benefícios políticos do go-


verno de El-Rei Nosso Senhor d. João VI”, escrito por José da Silva Lis-
boa, futuro visconde de Cairu, lê-se a seguinte apreciação sobre aquele
acontecimento:
(...) A Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815, que elevou o Prin-
cipado do Brasil a predicamento de Reino, e o declarou Unido ao de
Portugal e Algarves, é benefício político que sobreexcede a minha
esfera de fraseologia. A notoriedade da participação que a Corte fez
dessa Magnânima resolução aos Gabinetes da Europa, e das Respostas
diplomáticas das Potências em louvor de tão esplêndido ato soberano
é não menos o anúncio da grande razão de Estado, que se fundou o
Magnífico Diploma3.

Silva Lisboa ainda vai mais além. Adverte que: “(...) o sistema co-
lonial cessou, com a Lei da União do Brasil ao original patrimônio da
monarquia”, e conclui a sua reflexão dialogando com João de Barros, o
cronista da expansão marítima portuguesa:
(...) Agora finalmente se verifica a imagem que o nosso historiador das
descobertas fez do primitivo Reino Lusitano comparando-o ao grão
de mostarda (da parábola do Evangelho) que depois cresceu a maior
altura de majestosa árvore4.

3 – Ver, LISBOA, José da Silva. Memória dos benefícios políticos do governo de El-Rei
Nosso Senhor d. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 114-115. Disponível
em http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/00859000#page/1/mode/1up Acesso em se-
tembro de 2015.
4 – Idem, p. 115.

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A elevação do Brasil a Reino Unido e a historiografia luso-brasileira

Contrastando com as palavras de regozijo de Silva Lisboa, em Lon-


dres, provavelmente em 1821, a publicação “Cartas dirigidas a El-Rei d.
João VI, desde de 1817”, do diplomata português Heliodoro Jacinto de
Araújo, externa indignação e contrariedade, a propósito do Reino Uni-
do. Afinal, expulsos os invasores franceses e vencido Napoleão, não se
justificava mais a permanência do rei no Rio de Janeiro, na opinião dos
súditos que haviam ficado no Velho Mundo:
(...) Não é possível que uma nação que descobriu, povoou, conquistou
um país que considerava até agora como colônia sua, se acomode (...)
a figurar como dependente ou subordinado dessa mesma colônia (...).
E sendo a Europa a residência de todos os soberanos não é possível
que permitam por tanto tempo a existência de um Estado considerável
colocado na Europa e dependente de um soberano (...) na América5.

As duas fontes aqui reproduzidas constituem, respectivamente, no


Brasil e em Portugal, as principais matrizes analíticas que orientam até o
momento os estudos a respeito do Reino Unido. Não obstante a discre-
pância das opiniões acima apontadas, nas duas historiografias a promul-
gação em si é percebida como acontecimento secundário, uma espécie de
desdobramento quase natural da ruptura do pacto colonial.

Na maioria das vezes, seja em obras de história geral, seja no correr


das biografias de D. João VI, a problemática do Reino Unido aparece de
maneira superficial, às vezes sintetizada em uma única frase, em meio aos
capítulos que analisam o estabelecimento da Corte no Brasil. É bem ver-
dade que no âmbito da história das relações internacionais as referências
se mostram bem mais consistentes, como se verá mais adiante.

Nesse sentido, o tratamento dispensado por Francisco Adolfo de Var-


nhagen ao episódio de 16 de dezembro de 1815 é bastante emblemático.
Na sua História geral do Brasil (1ª edição, Madri, 1854), na seção intitu-
lada “Política exterior, negociações, tratados, e conquistas etc.”, Varnha-

5 – CARNEIRO, Heliodoro Jacinto d’Araújo Carneiro, apud D’ARAÚJO, Ana Cristina


Bartolomeu. O “Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves” 1815-1822. Revista de His-
tória das Ideias, v. 14, 1992, p. 251.

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Lucia Maria Paschoal Guimarães

gen destaca a dimensão diplomática daquele ato, na esteira das observa-


ções de Silva Lisboa:

(...) Como importante ato diplomático da corte de São Cristóvão de-


vemos também ter, registrando-o neste lugar o da elevação do Brasil
à dignidade de, preeminência e denominação de Reino Unido. E con-
sideramos esse ato como diplomático porque a corte o notificou por
seus agentes das nações aliadas, como aos governos para obter delas
contra-notas de reconhecimento, aliás, bem escusado. Para nós o Bra-
sil já sem essa declaração era reino emancipado desde 1808 e assim o
reputava a própria Europa (...)6.

Abordagem semelhante seria compartilhada por Pereira da Silva na


História da fundação do Império Brasileiro (1865)7 e depois por Ale-
xandre José de Melo Morais, no livro História da transladação da corte
portuguesa para o Brasil em 1807 (1872). O primeiro, além de tratar da
política externa, oferece um breve relato das repercussões da equiparação
política da antiga colônia, detendo-se nos festejos públicos que tiveram
lugar no Rio de Janeiro e nas capitanias, em regozijo pelo favor régio. Já
o segundo levanta a discussão sobre a primazia da ideia de se elevar o
Brasil a Reino Unido, atribuindo-a ao príncipe de Talleyrand, que a teria
sugerido ao conde de Palmela, um dos plenipotenciários portugueses ao
Congresso de Viena8.

Apesar de mencionada por autores oitocentistas, como os já citados


Varnhagen, Pereira da Silva e Melo Morais, a proclamação da Carta de
Lei de 16 de dezembro não foi incluída nas Efemérides Brasileiras do ba-
rão do Rio Branco, publicadas originalmente no Jornal do Brasil, desde o
seu primeiro número, em 9 de abril de 1891. Aliás, é importante notar que
a ausência se mantém nas edições das Efemérides de 1917 e de 1938, esta

6 – Neste trabalho é utilizada a 5ª edição integral da obra citada.Ver, VARNHAGEN,


Francisco Adolfo de. História geral do Brasil (...). Tomo V. 5ª. edição integral, revista e
anotada por Rodolfo Garcia. São Paulo: Edições Malhoramentos, 1956. p. 119-120.
7 – SILVA, J. M. Pereira da. História da fundação do Império brasileiro.Tomo Quarto.
Rio de Janeiro: B. L. Garmier Editor, 1865.
8 – MORAIS. Alexandre José de Melo. História da transladação da corte portuguesa
para o Brasil em 1807. Rio de Janeiro: Livr. da Casa Imperial de E. Dupont Ed., 1872

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A elevação do Brasil a Reino Unido e a historiografia luso-brasileira

última revista por Basílio de Magalhães9, bem como na edição definitiva


de 1945, revista e ampliada por Rodolfo Garcia, republicada recentemen-
te na coleção “Obras do Barão do Rio Branco”, organizada e lançada pela
Fundação Alexandre de Gusmão, em 2012, para celebrar o centenário de
falecimento do Barão10.

A linhagem interpretativa inaugurada por Varnhagen ganharia um


reforço, com o lançamento do livro de Manuel de Oliveira Lima, D. João
VI no Brasil, em 1908. Não vou me alongar na análise da obra de Oliveira
Lima, que será objeto da intervenção da professora Teresa Malatian nesta
Mesa Redonda. Entretanto, é oportuno salientar que o futuro visconde
de Porto Seguro dedica um alentado capítulo à problemática do Reino
Unido, abordando-a do ponto de vista da diplomacia portuguesa. Assinala
ainda as reações adversas que a promulgação suscitou: “As festas que a
elevação da colônia determinou no Rio foram motivo de vaidosa exalta-
ção para os brasileiros e rancoroso despeito para os portugueses11”.

Em Portugal, a historiografia oitocentista guarda profundo silêncio


sobre a decisão de D. João VI de elevar seus domínios na América me-
ridional à categoria de reino. Os sentimentos externados pelos contem-
porâneos, a exemplo do já citado Heliodoro Jacinto de Araújo Carneiro,
exerceriam forte influência nas narrativas sobre o fenômeno histórico da
“inversão brasileira”. Essa historiografia de cariz liberal, que mais tarde
seria apropriada pelos adversários da monarquia, não apenas censurava o
governo de D. João, como também buscava explicar o curso descendente
que àquela altura Portugal atravessava. As experiências pretéritas eram
analisadas à luz do presente e das expectativas futuras. Basta lembrar que
nas obras José d’Arriaga e de Oliveira Martins não há uma só palavra so-
bre a Carta de Lei de 16 de dezembro, apesar das censuras rigorosas que
ambos desferem contra o reinado americano de D. João VI.
9 – RIO BRANCO, Barão do. Efemérides Brasileiras. 2ª edição revista e anotada pelo
professor Basilio de Magalhães. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938.
10 – ____. Efemérides Brasileiras. Organização e notas de Rodolfo Garcia. Brasilia: Fun-
dação Alexandre de Gusmão, 2012. Coleção Obra do Barão do Rio Branco volume VI
11 – LIMA, Manoel de Oliveira. D. João VI no Brasil. 3a edição. Rio de Janeiro: Top-
books, 1996, p. 346.

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A lacuna historiográfica teria continuidade no século XX. Na primei-


ra metade do século passado, o tema seria tangenciado apenas por dois
autores portugueses, o diplomata Eduardo Brazão e o historiador Angelo
Pereira12, durante o Estado Novo salazarista, quando se ensaiou um mo-
vimento de reabilitação da dinastia de Bragança, voltado, em particular,
para as figuras de D. Maria I e de D. João VI.

Na banda de cá do Atlântico, as interpretações seguiriam a trilha


aberta por Varnhagen, consolidada por Oliveira Lima e depois ampliada
por Braz do Amaral, como se pode constatar nas conhecidas análises de
Luiz Norton, de Pedro Calmon, de Tobias Monteiro e mais tarde de Ama-
do Luiz Cervo.

Esse panorama historiográfico perduraria por longos anos na histo-


riografia luso-brasileira. Ademais, convém lembrar que na segunda meta-
de do século passado o campo da história política e territórios correlatos
atravessou uma fase de descrédito, fruto da influência francesa da escola
de Annales. A corrente inovadora encabeçada por Lucien Frebvre e Marc
Bloch desprezava o exame dos acontecimentos políticos em detrimento
da análise interdisciplinar e dos fenômenos de longa duração. Não por
acaso, no Dicionário da História de Portugal (1985), organizado por Joel
Serrão, a problemática do Reino Unido não mereceu um tópico específi-
co, nem aparece mencionado na entrada relativa ao Congresso de Viena.
O acontecimento é referido en passant, conforme se lê no verbete sobre
D. João VI, “(...) Enquanto em Portugal continuava a guerra e definhavam
as atividades econômicas, o Brasil em cuja capital se encontrava fixada
a sede da monarquia e que seria elevado a reino em 1815 caminhava a
passos largos para a independência13” (o grifo é meu).

Matriz analítica semelhante seria utilizada por Oliveira Marques, na


sua Breve história de Portugal:

12 – BRAZÃO, Eduardo. Relance da história diplomática de Portugal. Porto: Livraria


Civilização Editora, [sd]. PEREIRA, Angelo. D. João VI: príncipe e rei. Vol. III. A Inde-
pendência do Brasil. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1956.
13 – SERRÃO, Joel (dir.) Dicionário da História de Portugal. Porto: Livraria Figueiri-
nhas, 1985, v. III, p. 402-404.

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A elevação do Brasil a Reino Unido e a historiografia luso-brasileira

(...) Seguindo o modelo inglês, criou-se o Reino Unido (...), com


igualdade de direitos e deveres. As capitanias foram abolidas e subs-
tituídas por províncias à maneira europeia. Leis sucessivas tenderam
a pôr fim a todos os atributos coloniais e a estabelecer no Brasil uma
réplica de Portugal independente (o grifo é meu)14.

Por sua vez, Maria Beatriz Nizza da Silva, no volume intitulado O


Império Luso-Brasileiro 1750-1822, obra que sem dúvida se inspira nos
presssupostos de interdisciplinaridade de Annales, uma vez que busca
apreender o Império em sua totalidade (cultura, sociedade, economia e
política), faz uma concisa referência à criação do Reino Unido, com a
indicação de que a “(...) medida legalizava para efeitos práticos o fim da
condição colonial que terminara de fato em 1808”. Nizza da Silva, porém,
adverte que o Brasil continuaria:

(...) mal unificado internamente. Pouco se fez para igualar os encargos


fiscais ou para remodelar e modernizar a administração provincial.
Embora os habitantes da metrópole tivessem reais motivos de queixas,
as medidas tomadas no Rio de Janeiro pelo governo para os apaziguar
foram vistas pelos brasileiros como disfarçadas tentativas se subjuga-
ção15.

O historiador Valentim Alexandre avança em relação a esse quadro


e apresenta uma análise mais abrangente. Ele assinala que com a promul-
gação do Reino Unido a Coroa se havia tornado “bi-fronte”, uma vez que
buscou compatibilizar os interesses nas duas margens do Atlântico luso-
-brasileiras16.

O certo é que sob a influência do movimento de Annales, a historio-


grafia luso-brasileira deixou de lado temas que tradicionalmente perten-

14 – MARQUES, A. H. de Oliveira. O Império Brasileiro. In: ___. Breve História de


Portugal. 4ª. edição. Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 401.
15 – SILVA, Maria Beatriz Nizza da, “A caminho da independência”. In: SERRÃO, Joel
e MARQUES, A. H. de Oliveira (dir) – Nova história da expansão portuguesa.vol. VIII.
O Império Luso-Brasileiro. Lisboa: Editorial Estampa, 1986, p. 384
16 – ALEXANDRE, Valentim, apud NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Reino Uni-
do. In: VAINFAS, Ronaldo & NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Dicionário do
Brasil Joanino. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 386-387.

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Lucia Maria Paschoal Guimarães

ciam ao domínio do político, como é o caso da problemática do Reino


Unido, para ocupar-se do estudo das questões econômicas, examinadas
na maioria das vezes por esquemas de viés marxista.

Nesse sentido, o reinado americano de D. João VI passaria a ser exa-


minado à luz do que se convencionou denominar de crise do antigo siste-
ma colonial, como o fazem no Brasil o professor Fernando Novais (1995)
e, em Portugal, Maria Manuela Lucas, que assina o capítulo “Organização
do Império”, na obra coletiva O liberalismo (1807-1890), coordenada por
Luís Reis Torgal e João Lourenço Roque, que integra a coleção História
de Portugal, dirigida por José Matoso. Para Manuela Lucas,

(...) A crise do “segundo império português” começa a se tornar vi-


sível logo nos anos 1807-1808, quando ocorrem respectivamente a
primeira invasão francesa e a quebra acentuada das remessas de ouro
do Brasil (...) situa-se já nesta altura o princípio do fim dos Brasis –
ao mesmo tempo que despontam os primeiros sinais anunciadores do
nascimento da futura nação brasileira17.

Oposta a essa vertente interpretativa, há que se mencionar a contri-


buição clássica de Maria Odila Silva Dias, A interiorização da metrópo-
le (1808-1850), publicada no sesquicentenário da independência (1972).
Contudo, Maria Odila não faz qualquer alusão ao Reino Unido, ainda que
defenda o pressuposto de que a vinda da Corte com o enraizamento do
estado português no Centro-Sul daria início à transformação da colônia
em metrópole interiorizada.

Mas, como já dissemos em outro trabalho, Clio é volúvel18. Seja por


causa da insuficiencia dos grandes modelos analíticos, conforme sugere
George Iggers, ou, quem sabe, por um simples capricho da musa, a his-

17 – LUCAS, Maria Manuela. Organização do Império. In: MATOSO, José (dir.) História
de Portugal, vol.5 – O Liberalismo (coordenação de Luis Reis Torgal e João Lourenço
Roque). Lisboa: Editorial Estampa, [s.d.] p. 285-291.
18 – GUIMARÃES, Lucia Maria P. A transferência da Corte Portuguesa para o Brasil:
interpretações e linhagens historiográficas. In: MARTINS, Ismênia & MOTTA, Márcia
(orgs,). 1808 – A Corte no Brasil. Niterói: Editora da UFF, 2010, p. 68.

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A elevação do Brasil a Reino Unido e a historiografia luso-brasileira

tória política reapareceria renovada no cenário historiográfico do fim do


século XX.

Esse impulso revigorante também foi sentido na historiografia luso-


-brasileira. Novas contribuições sobre a problemática do Reino Unido se
sucederiam por ocasião das comemorações dos 200 anos da chegada da
Corte portuguesa ao Brasil, fruto de inúmeras pesquisas que revisitaram
temas e levantaram questões do âmbito da história política. Basta dizer
que o assunto mereceu um verbete no Dicionário do Brasil Joanino, pre-
parado por Lucia Bastos Pereira das Neves19. A par disso, secundariamen-
te o tema foi tratado em alguns trabalhos, a exemplo da biografia de D.
João VI, escrita pelos historiadores portugueses Jorge Pedreira e Fernan-
do Dores Costa, autores que se apoiam na obra clássica de Oliveira Lima
para examinar a Carta de Lei de 16 de dezembro de 181620.

A problemática do Reino Unido tem sido revisitada nos últimos


anos, sob diferentes prismas, por estudiosos que se utilizam dos avanços
experimentados pela história dos conceitos, bem como por aqueles que
procuram combinar questões de história política com enfoques culturais.

No âmbito da historiografia brasileira, há que citar o artigo de Arno


e Maria José Wehling, “Soberania sem independência: Aspectos do dis-
curso político e jurídico na proclamação do Reino Unido”, publicado no
nº 31 da revista Tempo, no dossiê “Linguagens políticas e história dos
conceitos: propostas e aplicações”, organizado por Guilherme Pereira das
Neves21. A partir da ótica do Direito, eles examinam o contexto de transi-
ção do Antigo Regime para a era constitucional e levantam uma questão

19 – NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Reino Unido. In: VAINFAS, Ronaldo &
NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Dicionário do Brasil Joanino. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2008, p. 386-387.
20 – Ver, PEDREIRA, Jorge & COSTA, Fernando Dores. “Novo reino para novo rei
(1815-1821). In: ____, D. João VI: um príncipe entre dois continentes. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2008, p. 303-340. Ver, sobretudo, a transcrição da obra de Oliveira
Lima na págima 305.
21 – WEHLING, Arno & WEHLING Maria José C. “Soberania sem independência: As-
pectos do discurso político e jurídico na proclamação do Reino Unido”. Tempo. Niterói,
no 31, p. 89-116, dezembro de 2011.

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Lucia Maria Paschoal Guimarães

de fundo bastante original, ou seja, de que a Carta de Lei assinada em 16


de dezembro de 1816, embora admitisse a existência de um conjunto de
predicados que se desenhavam desde a transferência do aparato de Estato
português para seus domínios americanos, a elevação da colônia a Reino
Unido constituiu uma solução que implicava o reconhecimento de uma
soberania sem independência22.

Na historiografia portuguesa, convém assinalar a contribuição de


Ana Cristina Bartolomeu d’Araújo, intitulada “O ‘Reino Unido’ de Por-
tugal, Brasil e Algarves (1815-1822)”, que integra a coletânea “Desco-
brimentos, Expansão e Identidade Nacional”, publicada em 1992, no vo-
lume 14 da Revista de História das Ideias, da Universidade de Coimbra.
Trata-se de uma síntese bem documentada do período que se estende de
1815 a 1822. A autora discute os aspectos da economia, da política exter-
na e interna de Portugal, assim como os desdobramentos da promulgação
do Reino Unido, nos dois lados do Atlântido, com ênfase na revolução
do Porto. Não obstante, ao fim e ao cabo, a autora acaba por se render a
certas matrizes interpretativas que, com pequenas variações, se propagam
desde o século XIX. Ela sustenta que:

(...) o projeto de perpetuação do Reino Unido, atlântico e liberal, con-


traditório nos seus termos e firmado em princípios que sancionavam
antes a independência e a afirmação da Nação brasileira, evoluiu ra-
pidamente para o colapso arrastando consigo a desagregação material
da coroa portuguesa23 (o grifo é meu).

Como se vê, em parte, as reflexões desenvolvidas pela historiadora


portuguesa divergem da argumentação sustentada por Arno e Maria José
Wehling.

Ainda na esfera da história política renovada, gostaria de lembrar


um trabalho bastante original, de caráter interdisciplinar, por assim dizer,
uma vez que vem de uma investigadora da área de Letras, a professora

22 – Idem, p. 98.
23 – D’ARAÚJO, Ana Cristina Bartolomeu. O “Reino Unido de Brasil, Portugal e Algar-
ves” 1815-1822. Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 14, 1992, p. 258.

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A elevação do Brasil a Reino Unido e a historiografia luso-brasileira

Vanda Anastácio, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Ela


usa como fonte o drama alegórico “A Glória do Reino Unido ou Cativei-
ro da Discórdia”, composto por Francisco Joaquim Bingre, em 1818, na
ocasião em que D. João VI foi aclamado rei do Reino Unido de Portugal,
Brasil e Algarves, na cidade do Rio de Janeiro. A peça, diga-se de passa-
gem, até hoje não se sabe se chegou a ser representada. Porém, serve de
mote para a discussão tanto da poética que lhe está subjacente, como das
ideias que Bingre pretendia veicular. Vanda procura entender não apenas
a maneira como o ideário político se relaciona com o contexto da época,
mas, principalmente, estabelecer aproximações entre a linguagem alegó-
rica e a linguagem política24.

Seja como for, o breve balanço historiográfico aqui exposto não es-
gota a problemática do Reino Unido. Nem o pretende. Buscou-se apenas
apontar linhagens, percursos e alguns pontos de inflexão. Até porque nes-
se congresso internacional novas abordagens certamente irão despontar,
ampliando o debate e jogando mais luz sobre o tema e questões correla-
tas. Resta, então, aguardar as novidades.

24 – ANASTACIO, Vanda. "A Glória do Reino Unido ou Cativeiro da Discórdia". Refle-


xões em torno de um texto dramático de Francisco Joaquim Bingre. Revista Convergência
Lusíada, no 19 (número especial, dedicado à temática das Relações Luso-Brasileiras). Rio
de Janeiro, Real Gabinete Português de Leitura, 2002, p. 398-412.

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Oliveira Lima e o Reino Unido

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OLIVEIRA LIMA E O REINO UNIDO


OLIVEIRA LIMA AND THE UNITED KINGDOM
Teresa Malatian1

Resumo: Abstract:
Este artigo apresenta percursos historiográficos This article presents historiography courses of
de Manoel de Oliveira Lima e sua interpretação Manoel de Oliveira Lima and his interpretation
da passagem do Brasil a Reino Unido, expressa of the transition of Brazil to United Kingdom,
principalmente na obra D. João VI no Brasil, a the latter as expressed primarily in his text Dom
qual foi vencedora do concurso promovido pelo João VI no Brasil (John VI in Brazil), which
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para won the competition sponsored by the Brazilian
comemorar a vinda da Corte. Historical and Geographical Institute (IHGB in
Portuguese) to commemorate the coming of the
Court to Brazil.
Palavras-chave: D. João VI; historiografia bra- Keywords: John VI; Brazilian historiography;
sileira; historiografia portuguesa; história diplo- Portuguese historiography; diplomatic history.
mática.

TRAÇOS BIOGRÁFICOS
De longa data, Oliveira Lima vem sendo biografado, em desafio ao
esquecimento provocado pelas mutações do discurso histórico. Nasceu
no Recife, em 1867, filho de comerciante português ligado pelo casamento
aos senhores de engenho de Pernambuco, e com sua família, em 1873,
transferiu-se para Lisboa, onde frequentou o Curso Superior de Letras, que
definiu sua concepção de História.

O positivismo divulgado por Teófilo Braga marcou sua formação, em


meio à influência de Oliveira Martins, Garrett, Ramalho Ortigão e Eça de
Queirós. A chamada Geração de 70 de Portugal tendeu a atuar imbuída pela
missão de crítica política e social contra a estagnação e a tradição católica,
exercendo importante papel no contexto de crise da monarquia portugue-
sa. Oliveira Lima partilhou tais inquietações e foi também sensibilizado
pelas questões da nacionalidade e identidade nacional.

1 – Doutora em História. Professora titular de Historiografia, vinculada ao Programa


de Pós-Graduação em História da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP,
campus de Franca. Membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):59-76, jan./mar. 2016. 59


Teresa Malatian

A formação europeia e o distanciamento geográfico do Brasil não


impediram que mantivesse vínculos intelectuais e afetivos com este país,
principal temática em sua vasta obra, elaborada sob a influência de sua
inserção desde 1890 no serviço diplomático brasileiro, no posto de secre-
tário da Legação de Lisboa. Após sucessivas nomeações e deslocamentos,
alcançou o posto de ministro plenipotenciário em Bruxelas, retirando-se
em 1913.

Sua intensa e variada produção voltou-se para história, crítica literá-


ria, política e relatos de viagens, e seu projeto historiográfico direcionou-
-se para a construção de uma ampla história diplomática do Brasil, para a
qual escreveu O descobrimento do Brasil, suas primeiras explorações e
negociações diplomáticas a que deu origem (1900); História diplomática
do Brasil: o reconhecimento do Império (1901); D. João VI no Brasil
(1908); O movimento da Independência (1922); Dom Pedro e Dom Mi-
guel (1925); O Império Brasileiro (1927); Dom Miguel no trono (1933,
póstuma).

PERCURSOS HISTORIOGRÁFICOS
O discurso proferido por Oliveira Lima na ABL, durante a solenidade
de sua posse em 1903, contém a primeira sistematização de seu conceito
de História e do ofício de historiador. Ao fazer o elogio de Varnhagen, que
considerava o “mais notável” historiador brasileiro, expôs sua concepção
de História como ciência e arte2. Ressaltou a base documental da escrita
da História, que motiva a faina incansável do historiador em busca de
documentos inéditos para conhecimento/comprovação dos fatos, pois o
discurso autorizado pelas fontes documentais permite o estabelecimento
progressivo da verdade. Nada melhor do que a “serena e despreocupada
observação das hipóteses” para alcançar resultado fidedigno.

Distanciou-se portanto da história filosófica dos séculos XVIII e


XIX para se revelar antes de tudo afinado com os procedimentos da histo-
2 – LIMA, Manuel de Oliveira. Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto
Seguro, patrono da cadeira do sr. Oliveira Lima, lido por este Acadêmico. Rio de Janeiro:
Typ. do Jornal do Commercio, 1903 (opúsculo).

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Oliveira Lima e o Reino Unido

riografia conhecida como metódica. Nada o desviava da admiração pelo


“bom senso germânico”, resultado da formação pautada também pela
leitura dos historiadores alemães, destacadamente Ranke e Mommsen.
Insistiu na necessidade do rigor do método entendido como heurística e
hermenêutica, a ser depurado na narrativa.

A dupla formação em Literatura e História, alertava-o para o lugar


fundamental do estilo no discurso histórico, exigindo do historiador cor-
reção, clareza, propriedade vocabular e disposição dos argumentos para
assegurar categorias próprias da obra ficcional, isto é, coerência, veros-
similhança, cadência, sugestão, sonoridade. Para que esse padrão fosse
alcançado, a intuição seria a qualidade cognitiva necessária ao historia-
dor para o estabelecimento de relações causais e influências. Em suas
próprias palavras, o principal desse método consistiria em ter “o faro, a
intuição que precede a corroboração, e que é mais do que a plenitude, é a
pedra de toque do talento do historiógrafo”3.

Em suma, entendia que o historiador deveria ser um artista, usar das


“galas do estilo”, abandonar o discurso árido, pesado e indigesto, ainda
que correto. Para isso, seria válido lançar mão da ironia, do sarcasmo, da
zombaria e da galhofa, tudo em nome do relato artístico que escapasse à
sensaboria de “qualquer privatdozent de Bonn ou de Heidelberg” ( refe-
rência irônica aos filósofos da História, professores universitários, Kant
em Konigsberg e Hegel, em Heidelberg). Fluência, elegância, brilho da
narração seriam necessários, evitando-se porém sucumbir ao peso do ex-
cesso de atavios, que pesados, excessivos ou de mau gosto comprometem
a agilidade da linguagem e emperram a expressão. O historiador poderia
ainda com proveito se espelhar nos românticos, como Heine, Renan, Mi-
chelet e Chateaubriand, e assim adquirir estilo cativante.

No que se refere aos temas abordados, Oliveira Lima desviou-se


das histórias gerais do Brasil, cultivadas por Southey, Varnhagen e João
Ribeiro, para dedicar-se a estudos de menor amplitude temporal, com

3 – Idem.

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Teresa Malatian

recortes regionalistas, nacionais ou monográficos de cunho biográfico.


Tornou-se historiador do Império Brasileiro.

Valorizou a ação do indivíduo na história ao orientar-se pelo pressu-


posto de que os grupos sociais se fazem representar pelos heróis a serem
trabalhados como personagens-sujeito, sínteses de determinadas forças
atuantes num dado momento histórico, para moldar os símbolos necessá-
rios à compreensão e memorização do passado. A abordagem dos heróis
inspirou-se em Oliveira Martins e seu método de retrato, o qual associou
a ação do acaso à abordagem psicológica para apresentar a trama da história
como um teatro de grandes individualidades. Esboçou em seus livros re-
tratos dos personagens que, em traços ora benevolentes, ora impiedosos,
transitam da exaltação ao achincalhe, expresso por meio do relevo de
aspectos cômicos ou ridículos dos personagens.

Não tendo sido um teórico, e por mais estranho que possa parecer,
suas Memórias (1938) apresentam as mais interessantes informações
acerca de sua concepção de História. Em outro texto, datado de 1904, so-
bre Robert Southey4 – que considerava o maior historiador sobre o Brasil,
apesar de estrangeiro, precursor de Varnhagen mas não suplantado por
este –, apontou os talentos necessários ao ofício de historiador: “graça,
humour, fantasia, originalidade de pensamentos”. Em 1909, outros tex-
tos seriam portadores dessa concepção, um deles sobre Teófilo Braga5,
no qual ajustou contas com a formação positivista ministrada pelo mes-
tre, na ocasião rejeitada como incômoda, por implicar regras e fórmulas
acusadas de enclausurarem o historiador ao preconizarem a “explicação
racional de tudo, uma sistematização completa do mundo”.

Ao percorrer a vol d’oiseau, a produção da historiografia brasileira


apontava suas deficiências: excesso de história militar, de guerras, de po-
lítica e de “sucessos”. Para sair desse domínio limitante, apontou temas a
serem descobertos: história econômica e social, das instituições, relações
4 – LIMA, Manuel de Oliveira. Robert Southey. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, n.68,
p.231-52.
5 – LIMA, Manuel de Oliveira. Teófilo Braga. In: Obra seleta. (Org. Barbosa Lima So-
brinho) Rio de Janeiro: MEC-INL, 1971, p. 232-234.

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Oliveira Lima e o Reino Unido

de dependência entre os três poderes, das “classes da população entre si”,


ou seja, do povo, incluindo índios e africanos escravizados.

Antes mesmo que ocorresse a chamada “revolução dos Annales”,


utilizou comparativamente fontes de diversa natureza. Se privilegiou a
correspondência diplomática, obtida nas chancelarias, foi além das fon-
tes oficiais, ao basear-se também em correspondência privada e outros
testemunhos de época (livros de viajantes, memórias), para obter uma
visão ampliada do objeto. A vida privada constitui uma das dimensões
que abordou ao se ocupar dos bastidores da vida dos personagens-chave
(amores, enredos familiares, idiossincrasias, traços psicológicos). Dessa
concepção resultou sua história diplomática, construída sem isolamento
dos demais aspectos da vida em sociedade, de modo que a trama da ação
insere-se na malha das demais relações do contexto.

Foi também, nesse sentido, discípulo de Oliveira Martins ao tratar


de cada tema como um conjunto integral de aspectos de uma dada época
ou problema, sem isolar elemento algum, embora privilegiasse a análise
do político e neste, a diplomacia. Também aqui se percebe a influência do
historiador português do romantismo, Alexandre Herculano (1810-1877),
que desaconselhava o isolamento analítico e preconizava atenção para as
várias dimensões que constituem a existência de um povo.

O REINO UNIDO E A FUNDAÇÃO DA NACIONALIDADE


O caminho percorrido pelo historiador-diplomata para definir a nação
brasileira expressou paradigmas da historiografia de sua época pois, ao abor-
dar o tema, foi permeável à difusão das teorias difundidas no fim do século
XIX e início do XX. O contato com o darwinismo social e o evolucionismo
de Spencer lhe forneceram elementos-chave para a concepção sobre os po-
vos submetidos pelos colonizadores europeus, que teriam alcançado o está-
gio mais avançado da civilização e, ao se lançarem na expansão colonial dos
séculos XV e XVI, teriam levado as luzes ao Novo Continente mediante
dois agentes principais, o Estado e a Igreja.

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Teresa Malatian

Em Hegel, buscou fundamentos para apontar o Estado como a chave


de conciliação entre o universal e o particular, enquanto instituição ético-
-civilizadora capaz de promover a superação da existência bruta. Nesse sen-
tido, a colonização foi entendida como promotora de “desencantamento”
da América por resgatar povos inferiores. A presença do Estado constitui
nessa interpretação a maior evidência de civilização, por significar o traço
distintivo de um povo superior, fronteira excludente entre o europeu e os
povos em estado de barbárie, dispersão, desordem, ausência de autoridade
e paganismo. O Estado seria a força formadora e tutelar da nação, elemento
racionalizador do processo histórico.

No conjunto da obra de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil


(1808-1821) destaca-se por abordar detalhadamente a passagem do Brasil
à situação de Reino Unido e a fundação da nacionalidade. Resultou de ex-
tensas pesquisas arquivísticas, que remontam a 1897, época em que o
historiador escrevia a José Veríssimo sobre a preparação do texto que
faria parte de ampla história diplomática. O projeto foi aprovado pelo
crítico literário, que considerava o monarca “certamente uma figura mal
conhecida, mal estudada e mal compreendida. Eu o tenho, ao contrário
do que se pensa, por um sujeito atiladíssimo e, mais ainda, inteligente”6.

Em 1900, quando Oliveira Lima residia em Londres, o plano da obra


tomou impulso, resultando em artigo publicado na Revista Brasileira. O
estudo iniciado em O Reconhecimento do Império pouco a pouco avan-
çava com a documentação encontrada e a discussão entre pares. José Ve-
ríssimo continuava enviando sugestões, influenciando Oliveira Lima na
decisão sobre o formato final, concretizado em um volume independente
da história diplomática:

Permita-me dizer-lhe que não acho boa a sua ideia de não dar o D.
João VI como um livro separado, mas fazer dele um volume da sua
história da diplomacia brasileira. Esta será forçosamente especial, téc-
nica e reservada a poucos, enquanto aquele, a julgar pelo que dele co-

6 – Carta de José Veríssimo a Oliveira Lima, Rio de Janeiro, 7 janeiro 1897.

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Oliveira Lima e o Reino Unido

nheço, há de ser um livro vivo, interessante para todos. Deve mesmo


dá-lo em primeiro lugar7.

Com Capistrano de Abreu, na época a ele ligado por cordialidade,


discutiu também o projeto e dele recebeu sugestões:

Volta a teus velhos amores de D. João VI. Eu gosto dele, ridículo ou


não, se para Portugal foi fatal, para o Brasil foi o verdadeiro fundador
do Império e sobretudo da União. Quando chegar à época em que ele
veio para o Brasil, leia, de lápis em punho, todos os viajantes, apre-
sente um quadro largo do estado do Brasil, e ver-se-á quanto é falso e
acanhado tudo quanto agora se tem feito8.

Recomendação acatada com entusiasmo por Oliveira Lima, pois as


referências aos viajantes dos séculos XVIII e XIX constituem o pano de
fundo da obra no que diz respeito à sociedade brasileira da época da vinda
da Corte ao Brasil, com destaque para as chamadas missões científicas
austríaca e bávara que acompanharam D. Leopoldina.

A interlocução estabelecida em torno da elaboração da obra alcançou


até Machado de Assis, de quem recebeu apoio em 1906, quando em car-
ta o presidente da Academia Brasileira de Letras referendava o caminho
escolhido:

É assunto que podemos dizer inédito: esperava historiador que o com-


preendesse e trabalhasse bem. Vamos ter a fisionomia real daquele
príncipe que, vindo aqui fundar ‘um novo Império’, como ele mesmo
disse, tão particularmente contribuiu para a nossa independência. Ve-
nha o seu livro9.

O concurso de monografias sobre o governo de D. João VI no Brasil,


aberto em 1903 pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para come-
morar o centenário da abertura dos portos – iniciativa do visconde de Ouro
Preto – teve como objetivo o estudo do rei considerado fundador da nacio-
7 – Carta de José Veríssimo a Oliveira Lima, Rio de Janeiro, 11 dez 1900.
8 – Carta de Capistrano de Abreu a Oliveira Lima, 19 abr. 1900. In: RODRIGUES, J. H.
(Org.) Correspondência de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: INL, 1954, v.3, p.12.
9 – Carta de Machado de Assis a Oliveira Lima. Rio de Janeiro, 5 fev. 1906.

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Teresa Malatian

nalidade brasileira10. Estabeleceu os parâmetros dessa revisão historiográfi-


ca centrada na exaltação da unidade nacional do Brasil independente e na
interpretação da transferência da Corte como antigo projeto que resultou na
fundação do Império. Percebe-se uma vinculação do concurso, tanto pelo
seu proponente como pelo teor da proposta, à historiografia monarquista que
cultuava personagens relacionadas ao regime substituído pela República11.

Oliveira Lima já havia sido admitido no Instituto como sócio corres-


pondente desde 1895, em reconhecimento ao seu primeiro livro, Pernambu-
co, seu desenvolvimento histórico, editado nesse mesmo ano. Havia também
publicado em separata da Revista do IHGB a Relação dos manuscritos por-
tugueses e estrangeiros de interesse para o Brasil existentes no Museu Bri-
tânico de Londres (1903). Com essas credenciais, candidatou-se ao prêmio
e pôs-se a acelerar a escrita do livro.

O diálogo principal da revisão historiográfica por ele empreendida


foi estabelecido com a historiografia portuguesa que consagrara a versão
da fuga vergonhosa do príncipe regente, do abandono da nação portu-
guesa às tropas napoleônicas, e, em contrapartida, do favorecimento da
colônia que resultara em sua independência. Oliveira Martins e Pinheiro
Chagas sintetizaram a interpretação depreciativa, gestada entre os par-
tidos políticos nas disputas que cercaram o retorno da Corte a Lisboa.
Prevalecia a versão dos radicais descontentes com a atuação do rei, que
Oliveira Martins retomara na História de Portugal, na qual expressara
em quadro dramático de exaltado romantismo a desilusão causada pelas
mudanças decorrentes da atitude de D. João VI.

A essa visão pessimista da saída da Corte como fuga vergonhosa


Oliveira Lima contrapôs a interpretação de que não se tratara de covardia
e sim de opção diplomática bem pesada em seu alcance, tanto em relação
10 – Atas das sessões de 23 out. 1903 e 6 nov. 1903. Revista do Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t.66, parte I,1904, p.269 e 275-7.
11 – Cartas de Max Fleiuss a Oliveira Lima, Rio de Janeiro, 1 dezembro 1904; 1 e 23 maio
1906. Sobre as discussões que acompanharam a elaboração do regulamento do concurso,
vejam-se as Atas das sessões de 17 jun. 1904 e 15 jul. 1904. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeio, t.67, 1906, p.424-8 e 440-1. A primeira edição
datada de 1908 foi feita pela Typ. do Jornal do Commercio, do Rio de Janeio.

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Oliveira Lima e o Reino Unido

a Portugal quanto às colônias, realizando assim um novo julgamento do


rei, tendo como horizonte a constituição da nacionalidade. O diálogo ti-
nha como interlocutores os mestres portugueses aos quais dedicou a obra:
Jaime Moniz, Consiglieri Pedroso, G. de Vasconcelos Coelho, Pinheiro
Chagas, Teófilo Braga e A. de Souza Lobo.

Oliveira Lima construiu de D. João VI uma imagem capaz de satis-


fazer a historiografia nacionalista brasileira e ao mesmo tempo forneceu
uma contribuição ao campo político monarquista persistente no Brasil
republicano. Para isso, apoiou-se na obra de Varnhagen, que a partir de
interpretação favorável à colonização portuguesa no Brasil, apresentara a
Independência como continuidade do Brasil português. A tese permitira a
Porto Seguro não depreciar D. João VI, ao contrário, apresentá-lo como
líder do processo da emancipação política, construída em diversas etapas
desde a vinda da Corte ao Brasil e na qual incluiu a passagem da colônia
a Reino Unido.

Em seu elogio da colonização portuguesa e defesa da comunidade


luso-brasileira, Varnhagen direcionara-se para a construção encomiástica
da figura de D. João VI, a exaltação da casa de Bragança e da monarquia,
a qual tornara o Brasil sede do império português e garantira-lhe assim a
integridade, como ocorrera com a Revolução de 1817 em Pernambuco.
Sua atuação teria resultado na independência como obra da família real,
e não contra ela, na persistência do Brasil português, apesar das chamas
incendiárias republicanas oriundas da França.

Oliveira Lima retomou essa tese e construiu um alentado painel abor-


dando temas cruciais: unidade nacional, centralização administrativa, re-
lações coloniais e sobretudo as relações diplomáticas, numa interpretação
positiva da monarquia bragantina. Procedeu à revisão do período ao rea-
bilitar a figura do rei, porém afastou-se do panegírico incondicional para
buscar um equilíbrio entre o tom laudatório e a crítica. A obra atendeu aos
cânones historiográficos vigentes no IHGB e garantiu sua aceitação entre pa-
res, sendo unanimemente apontada pela crítica sua sólida base documental.

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Teresa Malatian

O resultado é um D. João em versão brasileira: em lugar da figura


burlesca consagrada pela historiografia portuguesa, emerge das páginas
de Oliveira Lima um rei humanizado e popular, dotado de argúcia cam-
ponesa, ardiloso, perspicaz e responsável pela emancipação política do
Brasil. Trata-se do maior retrato por ele elaborado, um retrato físico, psi-
cológico e político do monarca. Personagem-símbolo da unidade nacio-
nal, D. João deu continuidade ao mundo luso-brasileiro, no contexto da
Europa napoleônica.

São traços todos esses mais autênticos e fidedignos na sua simpática


nobreza do que as anedotas picarescas que valeram a Dom João VI um
renome – talvez não usurpado se contido nos limites do desenho e não
puxado até a caricatura – de desmazelo bonacheirão e de esperteza
salóia, uma auréola barata de bonhomme Richard Coroado, uma fama
de rei filósofo, que apimentavam suas desventuras conjugais e a que
emprestava verossimilhança o seu físico ingrato (...)12.

Ambientou-o em um grande painel não apenas político, mas também


social, econômico, cultural, tendo como fio condutor a história diplomá-
tica escrita em seu estilo tradicional e em grande parte inédita. Nesse
sentido, a mudança da sede da monarquia surge como esforço de ma-
nutenção do trono em mãos da dinastia bragantina e de preservação da
unidade do Império português. A debilidade extrema do reino de Portugal
perante a Grã-Bretanha, aliada exigente, e a França, inimiga invencível,
foi ressaltada como diretriz das decisões de D. João VI no confronto com
as ameaças ao trono.

A habilidade política do monarca ao transferir a Corte para o Brasil


foi realçada como estratégia que teria permitido minimizar as inevitá-
veis derrotas no contexto das guerras napoleônicas. O plano teria sido um
projeto longa e previamente amadurecido, apressado apenas em sua exe-
cução, tornada premente pela invasão de Portugal por tropas francesas.
Fundava-se pois com a vinda da Corte a nação brasileira cuja unidade foi
mantida graças à presença do poder real, o qual impedira a ação desagre-

12 – LIMA, M. O. D. João VI no Brasil. 3.ed., Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p.577-8.

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Oliveira Lima e o Reino Unido

gadora do localismo e a fragmentação das províncias debilmente ligadas


à metrópole.

Mesmo admitindo aspectos negativos da colonização portuguesa,


onerada por uma máquina administrativa opressora, o livro expôs a con-
vicção do acerto da ação civilizadora exercida pelos europeus e, sobretu-
do, pelo Estado, simbolizado na figura de D. João. Progresso, melhora-
mentos e civilização teriam sido por ele trazidos, não apenas em termos
materiais, mas principalmente na “emancipação intelectual” decorrente
do incremento ao ensino, às artes, à ciência e à imprensa, e que teriam
resultado na formação da consciência da unidade nacional, pois a circula-
ção de livros portadores de ideias liberais permitira o “desenvolvimento
das mentalidades” e a reação anticolonial. Tudo converge na obra para
exaltar a constituição do Brasil independente, cujo passo decisivo teria
sido dado com a transferência da Corte e a instituição do Reino Unido.

Sem ser um rei “cerebral”, D. João possuía inteligência e gosto pelas


“coisas espirituais”, bom humor, indulgência, sagacidade, malícia, bono-
mia, magnanimidade e senso político, qualidades que, segundo o autor,
lhe teriam permitido ser um governante afável e fazer-se amar pelo povo.
Porém, o retrato favorável não procurou escamotear as convicções abso-
lutistas do rei avesso ao liberalismo.

Evidencia-se a riqueza de detalhes com que Oliveira Lima ampliou


o discurso sóbrio de Porto Seguro, ao elaborar a teia em filigrana de mi-
núcias que conferem vivacidade ao relato, contrapondo à ideia de fuga a
de opção política. Contrastam com a parcimônia do texto de Varnhagen o
estilo transbordante e adjetivado de Oliveira Lima, a exuberância no trato
dos pormenores e a utilização do traço psicológico na composição dos
personagens. A esse fator subjetivo atribuiu papel relevante nas atitudes
e decisões do governante, inovando assim a interpretação da história cen-
trada na ação dos grandes personagens.

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Teresa Malatian

Em lugar de deter-se na catastrófica saída da Corte de Lisboa, Olivei-


ra Lima adotou a estratégia de insistir na sua jubilosa chegada ao Rio de
Janeiro, que descreveu em suas galas de festa popular:

Os habitantes da capital brasileira corresponderam bizarramente às


ordens do vice-rei conde dos Arcos e saudaram o príncipe regente, não
simplesmente como o estipulavam os editais, respeitosa e carinhosa-
mente, mas com a mais tocante efusão. Dom João pôde facilmente
divisar a satisfação, a reverência e o amor que animavam os seus sú-
ditos transatlânticos nos semblantes daqueles que em aglomeração
compacta se alinhavam desde a rampa do cais até a Sé, que então era
a igreja do Rosário; os sacerdotes paramentados de pluviais de seda e
couro, incensando-o, ao saltar da galeota, com hissopes de ouro, tanto
quanto os escravos humildes que de precioso só podiam ostentar num
riso feliz as suas dentaduras nacaradas13.

Fundava-se pois com a vinda da Corte a nova nação e mantinha-se


sua unidade pela presença do rei detentor do poder central.

Brasil Reino Unido ocupou um capítulo específico da obra para jus-


tificar a passagem da situação de colônia para a de sede da monarquia.
Apresenta essa mudança como política longamente cabalada na Corte e
afinal aceita por D. João para que se estreitassem os laços com Portugal,
diante da ameaça de ruptura. “Destruir a ideia de colônia” tornara-se em
1815 a palavra de ordem preservacionista do Império português. Tenha
ela vindo da Inglaterra ou pensada internamente entre os portugueses, o
fato é que a medida política e administrativa surge como complemento
natural ou desdobramento natural do movimento de 1807-8.

Outra leitura que se pode fazer do D. João VI no Brasil é a que pro-


cura dar conta da história diplomática nele apresentada. Trata-se de uma
continuação do tema que ocupava Oliveira Lima havia anos e adquiriu na
obra consistência, densidade, base documental inédita e visão ampliada,
numa construção original inovadora e até hoje pouco analisada. A críti-
ca que tem sido feita à obra pouco se refere à história diplomática que
ela primordialmente apresenta, tendo o retrato de D. João VI ofuscado
13 – Id., p.65.

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Oliveira Lima e o Reino Unido

uma contribuição importante num campo negligenciado da historiografia


brasileira. Tomando-se uma vez mais Varnhagen como paradigma, per-
cebe-se o avanço que a obra de Oliveira Lima representou em relação à
história diplomática desse período em que a política externa foi decisiva
para a política colonial e para o Brasil. Seus pontos de referência podem
ser localizados no contexto das relações internacionais entre o Brasil, a
Inglaterra e os Estados Unidos que marcaram as primeiras décadas da
República.

Se esta análise teve como limite a não insistência nas condições da


dominação inglesa na América Latina criadas no contexto das guerras
napoleônicas e da emancipação das colônias, por outro lado esteve atenta
a outros aspectos das relações internacionais do período, notadamente o
monroismo. Ao conceder espaço às preocupações dominantes no cenário
da política exterior brasileira, Oliveira Lima procurou evidenciar as ori-
gens e os fundamentos da Doutrina Monroe, contrapondo, nas primeiras
décadas do século XIX, Inglaterra e Estados Unidos. Não se pode desvin-
cular essa temática das polêmicas acerca do pan-americanismo presentes
no período em que ela foi elaborada. Para responder a elas, Oliveira Lima
remontou à influência inglesa na América Portuguesa e Espanhola, sua
interferência no processo de independência das colônias em função de
seus interesses mercantis e o jogo diplomático com as metrópoles para
garantir privilégios comerciais, ora reprimindo, ora apoiando os movi-
mentos de emancipação. Sua interpretação da Doutrina Monroe, nem
sempre explícita, orienta a análise da política britânica de “tutela euro-
peia do Novo Mundo” e do posicionamento norte-americano contrário a
tais pretensões, que considerava incorreto em seus propósitos defensivos.

Finalmente, a obra refere-se às relações diplomáticas tensas que o


Brasil mantinha com repúblicas vizinhas durante a Primeira República,
sobretudo com a Argentina, além da preocupação primordial com a deli-
mitação de fronteiras. Avançando muito além de Varnhagen, que pouco
se ocupou do concerto diplomático, Oliveira Lima esmiuçou a política
joanina na Guiana Francesa e no Prata, para afirmar ter sido ela direcio-
nada para a fundação de um império motivado pela necessidade de reagir

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Teresa Malatian

à política expansionista francesa em Portugal e de atender aos interesses


dinásticos de D. Carlota Joaquina em relação ao trono espanhol. Salvo o
trono bragantino, D. João teria usufruído da oportunidade de jogar outros
lances na diplomacia europeia com a anexação da Cisplatina e a ocupação
de Caiena, atuando assim em política ofensiva – apesar das distâncias
consideráveis que o separavam do território do conflito principal. A esse
projeto expansionista, Oliveira Lima aplicou o conceito de imperialismo,
que cautelosamente anunciou ser um conceito adaptado, uma “denomi-
nação modernizada” da política joanina. Ao abordar o tema, não deixava
de ter no horizonte a polêmica política de fronteiras conduzida por Rio
Branco durante a primeira República, ao mesmo tempo que exaltava a
pujança do domínio monárquico português na América:
O reinado brasileiro de Dom João VI foi o único período de impe-
rialismo consciente que registra a nossa história, pois que o Império
conquistado além dos limites convencionais de Tordesilhas pelos ban-
deirantes paulistas e outros animosos aventureiros, foi incorporado
instintivamente, sem consideração pelos tratados vigentes ou sequer
ciência de quaisquer obrigações internacionais, como resultado in-
consciente de suas arriscadas e gananciosas explorações14.

Ressaltou a sagacidade do príncipe que ocupara Caiena (1814-1817)


para ter ao alcance do trono enfraquecido um trunfo diplomático com que
pudesse obter alguma vantagem no pós-guerra, previdentemente esperado,
mas que não logrou utilizar, tendo afinal devolvido o território francês sem
contrapartida. Porém, ressaltou Oliveira Lima, D. João fixara com a ocupa-
ção do território ao norte do Brasil os limites estratégicos para a livre nave-
gação do rio Amazonas, resolvendo com o limite demarcado no rio Oiapo-
que a “fronteira de fundamento histórico e de aspiração nacional”, que na
prática seria durante muito tempo objeto de contestação.

Quanto à expansão no Prata, na região que acabou por ser incorpora-


da como Província Cisplatina, foi apresentada também como um elemen-
to das lutas descolonizadoras da América Espanhola a que se somaram os
intentos expansionistas de D. Carlota Joaquina, numa análise extrema-

14 – Id., p.285.

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Oliveira Lima e o Reino Unido

mente detalhada, com pormenores diplomáticos intrincados, complexos e


reveladores, sobretudo, de uma tentativa de conectar a História do Brasil
à História da América Hispânica não apenas do ponto de vista de uma
história político-militar, mas também das relações internacionais e aten-
dendo às polêmicas contemporâneas à elaboração da obra.

Elogios ao D. João VI vieram de José Veríssimo, Artur Orlando15


e conde de Afonso Celso, entre os que se manifestaram no contexto da
primeira edição. A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
publicou uma resenha da obra que pode ser considerada autorizada e,
posto que não assinada, representativa da instituição em torno da legi-
timação do trabalho. Sobre o valor revisionista da obra pretendido pelo
autor, ironizava com a afirmação de tratar-se de análise que “transformou
um soberano apático, fraquíssimo, digno colega dos incapazes que a re-
volução francesa encontrou ocupando os trono da Europa, em um agente
do progresso, em um êmulo dos grandes tipos humanos”. Reconhecia sua
base documental segura e negava-lhe o caráter de história diplomática,
apesar do uso de documentação específica; apontava anacronismos, como
o uso do conceito de imperialismo na análise da política externa de D.
João VI, a semelhança à crônica e a tendência de colecionar documentos
em lugar de utilizá-los segundo “processos indutivos”, bem como suas
dimensões “incomuns”, ou seja, sua prolixidade16.

Outros historiadores também se inseriram no debate, como Capistra-


no de Abreu, favorável a Rio Branco, a quem atribuía grande importância
na renovação dos estudos de História do Brasil. Já distanciado de Oliveira
Lima, criticou-o veementemente em diversas cartas trocadas com histo-
riadores e literatos, como a que enviou a José Veríssimo:

15 – VERÍSSIMO, J. D. João VI e o Brasil. Jornal do Commercio, 30 jun. 1909; Carta a


Oliveira Lima, Rio de Janeiro, 17 ago. 1909; ORLANDO, A. D. João VI. Jornal do Com-
mercio, 7 nov. 1909; CARVALHO, A. D. João VI no Brasil, pelo sr. M. de Oliveira Lima.
Jornal do Recife, Recife, 26 set., 3 e 10 out. 1910; BEVILAQUA, C. Oliveira Lima:
diplomata e historiador. O Estado de São Paulo, 27 jul. 1911; Cartas de Artur Orlando a
Oliveira Lima, Rio de Janeiro, 28 set. 1909 e 20 abr. 1910.
16 – BIBLIOGRAFIA – Oliveira Lima, D. João VI no Brasil. RIHGB, Rio de Janeio, t.72,
parte 2, p.279-94.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):59-76, jan./mar. 2016. 73


Teresa Malatian

Sobre o D. João VI, minha impressão condensa-se em uma palavra: é


um livro inferior; achou meios de escrever cem páginas sem a abertura
dos portos, o mais importante de todos os atos do reinado, ser men-
cionada. E como conta a revolução de 17! Nabuco, Aranha e Alfredo
de Carvalho têm razão: é um usurpador e estragador de assuntos. Mas
não faz mal: o livro será elogiado, vendido; lido, duvido; o autor avul-
tará e veremos o que já o indiscreto Xavier de Carvalho anunciou em
uma correspondência de Paris: será o sucessor de Rio Branco17.

Não lhe agradava nem a pessoa do autor do livro – a quem ridicu-


larizava as “banhas” – nem sua maneira de escrever história. No caso
desse livro, em especial, considerava-o detestável e incapaz de prender
a atenção do leitor, como afirmou em cartas trocadas com Afonso d’E.
Taunay, João Lúcio de Azevedo e Arrojado Lisboa. A insistência com que
retornava com rancor ao tema obsedante certamente indica que a obra não
lhe era indiferente.

A explicação para tal ressentimento poderia estar na crítica publica-


da por Oliveira Lima em 1907 sobre os Capítulos de História Colonial18.
A avaliação de Oliveira Lima colocava a obra entre as “publicações co-
memorativas do centenário da abertura dos portos brasileiros ao comércio
universal”, e se nela reconhecia os méritos de Capistrano como historia-
dor, também usava de muita ironia na análise do estilo e da erudição do
autor, a quem reputava dotado de “curiosidade enciclopédica”. Desqua-
lificava sutilmente sua produção, que considerava inferior à capacidade
do historiador:

(...) sendo, como disse, o maior sabedor das nossas tradições histó-
ricas, nunca quis o Sr. Capistrano escrever uma história do Brasil.
A empresa pareceu-lhe prematura e o resultado aleatório. Contentou-
-se, no pleno vigor da sua inteligência, com reeditar e anotar copio-

17 – Carta de Capistrano de Abreu a José Veríssimo, Paraíso, 20 jun. 1909.


18 – Capítulos de História Colonial foi publicado inicialmente no livro O Brasil, suas
riquezas naturais, suas indústrias, editado pelo Centro Industrial do Brasil em 1907, v.1,
p.1-216. Foi publicado também em separata.

74 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):59-76, jan./mar. 2016.


Oliveira Lima e o Reino Unido

samente, confirmando-lhe ou retificando-lhe os dizeres, a história de


Varnhagen.19

Nesse artigo, peça exemplar da capacidade de polemista de Oliveira


Lima, os elogios se mesclam à demolição mordaz da obra criticada, afinal
sintetizada na tirada de efeito: “aos que sabem menos do que ele, o traba-
lho se afigura, porém, magistral”. A crítica de Capistrano ao D. João VI
no Brasil nada mais seria do que uma resposta a tais considerações.

Da mesma coterie de Capistrano, Gilberto Amado, partidário da oli-


garquia rosista pernambucana, professor da Faculdade de Direito do Recife,
preterido em benefício de Oliveira Lima em votação para a ABL – “por ser
dado a tiros” –, desforrou-se também, e bastante tempo depois, na crítica
implacável publicada na obra Minha formação no Recife, que dedicou a Oli-
veira Lima, “autor da obra mais mal escrita que já apareceu em livraria em
qualquer época, em qualquer país ou latitude”20.

Quanto à crítica em Portugal, João Lúcio de Azevedo, historiador


que vinha correspondendo-se com Oliveira Lima, recebeu favoravelmen-
te o novo livro, que considerou
(...) valioso trabalho histórico, de erudição e sagacidade crítica, não
somente notável pela novidade e abundância dos fatos, como pela
interpretação deles e dos caracteres representados. D. João 6.o [sic],
Carlota Joaquina, o conde de Linhares são personagens a quem se não
erro, V.Exa. confere na história lugar novo e, quero crer, definitivo.
Dos episódios, o da fuga para o Brasil aparece-nos transformado, e
à luz da sua crítica vem a ser uma ponderada e feliz solução, em vez
de um vergonhoso conselho do pânico, como até agora ele tinha sido
considerado21.

O valor da obra foi reconhecido também por Fidelino de Figueiredo


em Epicurismos e pelo revisionismo histórico português, que se ocupou
de D. João VI sem conseguir apagar a ideia de fuga. João Ameal e Rodri-
19 – LIMA, M. O. O Sr. Capistrano de Abreu. Artigo publicado em julho de 1907, apud
LIMA SOBRINHO, B. Op. cit., p.671-5.
20 – AMADO, G. Minha formação no Recife. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955, p.252.
21 – Carta de João Lúcio de Azevedo a Oliveira Lima, Lisboa, 4 set. 1909.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):59-76, jan./mar. 2016. 75


Teresa Malatian

gues Cavalheiro em Erratas à História de Portugal e Damião Peres em


História de Portugal apontaram igualmente o valor da obra de Oliveira
Lima. A crítica portuguesa reconheceu nela a utilização de novas bases
documentais, constituídas por fontes brasileiras e portuguesas22.

A publicação do D. João VI no Brasil ocorreu em 1908, no momento


em que Oliveira Lima já estava lotado na Legação de Bruxelas como mi-
nistro plenipotenciário, porém, sua trajetória superou em muito a vida do
autor. Embora a segunda edição datasse tardiamente de 1945, no contexto
nacionalista do Estado Novo, trata-se da obra mais conhecida, citada e
elogiada de Oliveira Lima, como apontou o parecer especializado de Otá-
vio Tarquínio de Sousa, autor de História dos fundadores do Império do
Brasil, em prefácio à segunda edição do livro sobre D. João VI. Mais que
tudo, as reedições de 1996 (no bojo das comemorações do centenário de
seu nascimento) e 2006 confirmam seu adjetivo de clássico.

Referências bibliográficas
AMADO, G. Minha formação no Recife. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955.
BEVILAQUA, C. Oliveira Lima: diplomata e historiador. O Estado de São
Paulo, 27 jul. 1911.
BIBLIOGRAFIA – Oliveira Lima, D. João VI no Brasil. RIHGB, Rio de Janeio,
t.72, parte 2, p.279-94.
LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil. 3.ed., Rio de Janeiro: Topbooks,
1997.
____. Francisco Adolfo de Varnhagen Visconde de Porto Seguro, patrono da
cadeira do sr. Oliveira Lima, lido por este Acadêmico. Rio de Janeiro: Typ. do
Jornal do Commercio, 1903.
____. Obra seleta. (Org. Barbosa Lima Sobrinho). Rio de Janeiro: MEC-INL, 1971.
RODRIGUES, J. H. (Org.) Correspondência de Capistrano de Abreu. Rio de
Janeiro: INL, 1954, v.3,
Atas das sessões de 23 out. 1903 e 6 nov. 1903. RIHGB, Rio de Janeio, t.66, parte
I, p.269 e 275-7, 1904.
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. 8. Ed., São
Paulo: Melhoramentos, 1975.
22 – LIMA SOBRINHO, B. Op. cit., p.55.

76 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):59-76, jan./mar. 2016.


A diplomacia Portuguesa no Congresso de Viena – 1815

77

A DIPLOMACIA PORTUGUESA
NO CONGRESSO DE VIENA – 1815
PORTUGUESE DIPLOMACY
AT THE CONGRESS OF VIENNA IN 1815
Antônio Celso Alves Pereira1

Resumo: Abstract:
Este artigo pretende discutir a difícil missão dos The goal of this article is to discuss the diffi-
delegados de Portugal ao Congresso de Viena cult mission of the Portuguese delegates to
de 1815. O reino de Portugal foi invadido e the Congress of Vienna in 1815. The kingdom
devastado pelas forças do imperador Napoleão of Portugal had been invaded and devastated
Bonaparte na chamada Guerra Peninsular. Pelo by the forces of emperor Napoleon Bonaparte
esforço de seu povo e em aliança com a Ingla- in the Peninsular War. With the effort of her
terra, conseguiu expulsar o exército francês in- people and in alliance with England, Portugal
vasor e, prosseguindo na luta, contribuiu para a had managed to expel the invading French army
vitória final contra Bonaparte. Apesar disso, no and, in continuing the fight, contributed to the
Congresso de Viena, reunido para resolver as final victory against Bonaparte. Nonetheless, at
questões políticas, sociais e econômicas deriva- the Congress of Vienna, which was meeting to
das dos anos de guerra contra Napoleão, Por- resolve the political, social and economic issues
tugal não recebeu, por parte da tetrarquia que resulting from the years of war against Napo-
dominou a reunião – Áustria, Inglaterra, Rússia leon, Portugal failed to receive from the tetrar-
e Prússia –, o reconhecimento desses esforços, chy of Austria, England, Russia and Prussia,
não conseguindo obter as reparações de guerra a which dominated the meeting, recognition for
que tinha direito. her efforts, and thus did not receive the repara-
tions for the war which were her right.
Palavras-chave: Guerra Peninsular; Congresso Keywords: Peninsular War; Congress of Vienna
de Viena 1815; Legitimidade. 1815; Legitimacy.

I
Ao longo da trajetória histórica da nação portuguesa, principalmente
a partir do fim da União Ibérica, em 1640, e da consequente entroniza-
ção da Casa de Bragança para reger os destinos do país, considerando a
fragilidade estrutural, notadamente a fraqueza demográfica e a debilidade
militar, contrastando com a vastidão e as potencialidades do seu império
colonial, a diplomacia lusa, compelida, desde então, a jogar na grande po-
lítica europeia sempre buscando minimizar perdas, portanto, enfrentando
grandes dificuldades, apesar de tudo, construiu uma história de compe-
tência na defesa dos interesses maiores de Portugal. Como se sabe, Por-
1 – Doutor em Direito Público. Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasilei-
ro.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):77-96, jan./mar. 2016. 77


Antônio Celso Alves Pereira

tugal mantém, até hoje, com a Inglaterra a aliança mais antiga da política
mundial, firmada pela Casa de Avis durante a crise de 1383-1385, pelo
Tratado de Windsor, e consolidada nos séculos seguintes por inúmeros
outros instrumentos diplomáticos. Além disso, no contexto das guerras
dinásticas e por conquistas territoriais no continente europeu, como tam-
bém nos territórios coloniais, o reino português foi obrigado a conviver
com a perfídia e a cobiça das alianças episódicas com outras potências
europeias. Foi essa situação que levou a rainha D. Luísa de Gusmão a
afirmar que todos os grandes Estados da Europa, aliados ou não, sem-
pre “tentavam, pela melhor maneira, tirar uma pena à asa de Portugal”2.
Assim, ao longo de sua trajetória histórica como Estado independente,
sem condições político-militares para manter a própria segurança, sempre
ameaçado de absorção pela Espanha, Portugal se viu obrigado a susten-
tar com a Inglaterra a aliança secular, fato que o impedia de, eventual e
convenientemente, declarar-se neutro no contexto da competição entre os
grandes poderes da Europa. É verdade o fato de que, em momentos de ex-
trema gravidade política, nos quais esteve em jogo a própria sobrevivên-
cia de Portugal como nação independente, por exemplo, durante a guerra
com a Espanha na Restauração e, posteriormente, durante o período em
que Napoleão dominou a política no continente europeu, a aliança inglesa
salvou o país, contudo, a um custo tão elevado, que o depauperou, de vez,
e o transformou, como afirma Oliveira Lima, em “inequívoco protetorado
da Inglaterra”3. E protetorado – diz ele – “é um eufemismo diplomático”,
“que sempre se traduziu, na linguagem real da história, por exploração;”4.
A série de tratados comerciais leoninos e de aliança ofensiva e defensiva
que construiu a secular dependência portuguesa da Inglaterra, vale lem-
brar, projetaram-se a partir do século XVII. O tratado celebrado com a
Inglaterra, em 1661, confirmava os acordos comerciais de 1642 e 1654,
altamente favoráveis aos ingleses; em 1703, com o Tratado de Methwen,

2 – VIEIRA, padre António. Obras Escolhidas. Prefácio e Notas de António SÉRGIO e


Hernani CIDADE. Obras Várias, (1) Política, V. VIII. Lisboa: Livraria Sá da Costa Edito-
ra, 1951, pág. xxxx.
3 – OLIVEIRA LIMA. Dom João VI no Brasil 1808-1821. Segundo Volume. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 1945, p. 500.
4 – Ibidem, História de Portugal. Lisboa: Guimarães Editores, 15ª ed. 1968, p. 428.

78 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):77-96, jan./mar. 2016.


A diplomacia Portuguesa no Congresso de Viena – 1815

segundo Oliveira Lima, “desvairou para logo a economia nacional”5. Em


1810, aproveitando-se das circunstâncias adversas impostas pelas inva-
sões francesas, mantendo o território metropolitano de Portugal sob seu
domínio político e militar, o Reino Unido arrancou de Portugal o Tratado
de 1810, negociado pelo conde de Linhares com Lord Strangford, acordo
comercial que, considerando a situação de total penúria industrial e agrí-
cola em que se encontrava Portugal, “estabelecia um regime de reciproci-
dade fictícia, concedia privilégios e isenções de nação mais favorecida às
mercadorias inglesas, fato que tornava impossível qualquer recuperação
ou criação industrial no Império português”6. Pode-se inferir, em razão
disso, que o domínio que a Inglaterra exercia sobre os negócios portu-
gueses, nos planos interno e externo, principalmente nos duros anos da
guerra peninsular, e nas negociações de paz do pós-guerra, levava, muitas
vezes, as outras potências a tratar diretamente com a Inglaterra quando
precisavam negociar matéria relevante referente a Portugal.
II
Em 9 de março de 1814, as grandes potências – Reino Unido, Áus-
tria, Prússia e Rússia –, que lutavam contra a França desde as guerras
revolucionárias empreendidas pelo Diretório e, posteriormente, contra
Napoleão, a partir do golpe de 18 de Brumário, 9 de novembro de 1799
no calendário gregoriano, celebravam o Tratado de Chaumont7 acordo
preliminar ao Primeiro Tratado de Paz de Paris, que seria firmado, em 30
de maio de 1814, estabelecendo as condições em que se daria a paz com a
França e com seu imperador que, derrotado na Batalha de Leipzig – 16/19
de outubro de 1813 –, fora obrigado, no início de 1814, a abandonar a luta
e a abdicar, em 6 de abril, em favor de seu filho, uma vez que as forças

5 – Ibidem, p. 430/431.
6 – FERREIRA, Joaquim. História de Portugal. Porto: Editorial Domingos Barreira,
1951, p. 670
7 – O Tratado de Chaumont constitui-se no primeiro instrumento internacional a gravar
a expressão “Concerto Europeu”. As Partes nesse importante acordo, celebrado para es-
tabelecer aliança contra o imperador Napoleão Bonaparte – Áustria, Inglaterra, Prússia e
Rússia, comprometiam-se a envidar todos os esforços e empregar todos os recursos dans
un parfait concert. Ver, NUSSBAUM, Arthur. Historia del Derecho Internacional. Ma-
drid: Editorial Revista de Derecho Privado. s/d, p. 198.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):77-96, jan./mar. 2016. 79


Antônio Celso Alves Pereira

aliadas, à frente o czar Alexandre I, e o rei da Prússia, Frederico Guilher-


me III, haviam entrado em Paris no dia 31 de março de 1814, completan-
do a ocupação do território francês. O Primeiro Tratado de Paz de Paris
foi firmado pelas quatro grandes potências, além de Suécia, Portugal,
Espanha e França, e as condições nele dispostas já estavam determina-
das pelo Tratado de Chaumont, acordo que os aliados haviam celebrado
três meses antes. Portugal, que estava integrado ao exército inglês com
50 mil homens na última coligação reunida para enfrentar Napoleão, por
estar sem representação diplomática na França e, ainda, como nenhum di-
plomata português servindo nas cortes europeias possuía plenos poderes
para participar de forma específica nas negociações de paz que se proces-
savam em Paris, o Reino Unido, que segundo Oliveira Lima não admitia a
hipótese de Portugal prescindir de sua proteção8, avocou a si a missão de
cuidar dos negócios lusos nas tratativas definitivas de paz. É importante
destacar o fato de que o Tratado de Paris foi negociado e concluído, pelos
vencedores, sem ânimo de vingança, apesar das enormes perdas de vidas
humanas, das revoluções sociais, da humilhação de casas monárquicas
orgulhosas e de grande tradição política, como os Habsburgos e os Bour-
bons, e da radical mudança no mapa da Europa realizada por Bonapar-
te, além da implacável destruição material causada pelas consequentes
guerras (1803/1815) no continente europeu. Cansados dos longos anos
de conflito, de formar coalizões que eram destroçadas pelas vitórias do
gênio militar de Napoleão e, outras vezes, dissolvidas por acordos em se-
parado, havia, em 1814/1815, um clima, como diz Kissinger, favorecendo
“o equilíbrio e não a desforra, a legitimidade e não castigo”9. Portugal,
como se sabe, sofreu três devastadoras invasões francesas. A primeira,
em 1807, comandada por Junot e resultante do Tratado de Fontainebleau,
instrumento que riscou Portugal do mapa da Europa e o dividiu em três
Estados, deu-se em consequência do não rompimento, de fato, das rela-
ções de Portugal com a Inglaterra, das medidas protelatórias, do recurso
ao suborno e ao jogo diplomático duplo e à política pendular da regência

8 – História de Portugal, p. 520.


9 – KISSINGER, Henry. O mundo restaurado. Tradução de Heitor Aquino Ferreira. Rio
de Janeiro: José Olympio Editora, 1973, p. 128.

80 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):77-96, jan./mar. 2016.


A diplomacia Portuguesa no Congresso de Viena – 1815

do príncipe D. João, em relação às exigências contidas na notificação


impositiva, expedida por Talleyrand, então ministro dos Negócios Estran-
geiros de Napoleão, no sentido do imediato cumprimento do Decreto de
Berlim, de 21 de novembro de 1806, por meio do qual o imperador fran-
cês pretendia, pela iniciativa que passou à história como Bloqueio Con-
tinental, isolar a Inglaterra, exigindo o fechamento de todos os portos do
continente europeu aos navios mercantes ingleses, medida que, supunha
Napoleão, arruinaria a estrutura industrial britânica, pujante em decorrên-
cia da Revolução Industrial, e, consequentemente, destruiria a capacidade
comercial do país. Tal determinação, se bem cumprida, forçaria o Reino
Unido a negociar a paz com a França. Sobre isso, vale destacar que nos
dias finais do ano de 1806 apenas dois Estados do continente europeu não
haviam aderido ao Bloqueio Continental: Portugal e Rússia. Napoleão,
após vencer os russos na batalha de Friedland, fato que decretou o fim da
Quarta Coalizão formada contra ele, assinou, em separado, com o czar,
o Tratado de Tilsit, instrumento que levou a Rússia a aderir ao Bloqueio
Continental. Diante disso, Napoleão voltou a se ocupar de Portugal, que
era, naquela altura, o único país do continente que lhe resistia por meio de
toda forma de tergiversações, artimanhas e evasivas. Ele desejava trazer
Portugal, de forma inquestionável, à sua órbita e, com isso, impedir que
o Reino Unido continuasse a dispor dos portos lusos para negociar com a
Metrópole e as colônias portuguesas, principalmente com o Brasil, e com
outras colônias europeias da América Meridional, bem como criar con-
dições para a expansão do comércio internacional francês nos territórios
lusos no ultramar. A considerar, também, a importância estratégica dos
portos portugueses no território metropolitano e o fato de que, além disso,
Bonaparte precisava de soldados portugueses para agregar às suas forças,
o que veio a acontecer, quando Junot, ocupando Portugal, formou, em
abril de 1808, a “Legião Portuguesa”, unidade militar formada por 9 mil
homens, que foi enviada à França sob o comando de Pedro José de Almei-
da Portugal, 3º Marquês de Alorna, e apresentava, como 2º comandante, o
general Gomes Freire de Andrade. Bonaparte queria também a esquadra
portuguesa, para integrá-la à armada franco-espanhola, uma vez que a sua
marinha de guerra havia sido praticamente destruída pelo almirante Nel-

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Antônio Celso Alves Pereira

son, em 1798, na Batalha da Baía de Abukir, acontecimento que o obrigou


a desistir do plano de invadir a Inglaterra. Junot acabou batido pela resis-
tência do povo português e, principalmente, pelas tropas anglo-lusas co-
mandadas pelo general Arthur Wellesley, futuro visconde e depois duque
de Wellington, que entrou em Portugal com 30 mil homens. A segunda
invasão francesa deu-se em fins de fevereiro de 1809. Comandada pelo
general Soult, com 23 mil homens, teve o mesmo destino da primeira.
Tropas anglo-lusas – 13 mil ingleses, 3 mil alemães e 9 mil portugueses –,
comandadas pelos generais ingleses Beresford e Wellesley, cercaram
Soult na região do Porto, situação que lhe obrigou, após espalhar o terror
nas localidades pelas quais passara, a empreender competente movimen-
to de retirada e retornar à Espanha. A terceira e última invasão francesa,
comandada por Massena, contava também com o exército de Soult; en-
trou em Portugal em 24 de julho de 1810. Excedeu-se em devastação e
violência às duas invasões anteriores. Contudo, não conseguindo passar
pelo conjunto de fortificações de Torres Vedras, construídas por iniciativa
do general Wellesley, Massena viu-se obrigado, em 13 de abril de 1811,
a iniciar sua retirada de Portugal. Encerrava-se um dos quadros mais do-
lorosos da história de Portugal. As invasões francesas exauriram o país.
Para se ter uma ideia da tragédia humana, conforme Oliveira Lima, de
1807 a 1814 “a população portuguesa baixara de meio milhão, um quarto
do que fora. Beresford fizera soldados todos os que não eram frades, nem
desembargadores, nem cônegos e capelães cantores, ou castrados. Não
havia cultura, nem indústria, nem gado, nem pesca”10.

A violência contra a população portuguesa, durante os terríveis anos


da guerra peninsular, não ficou por conta apenas das tropas francesas e de
seus aliados espanhóis. Os ingleses, como registrou Rocha Pombo,
“talaram e saquearam o país. O que se passara no velho reino, desde a
saída da Corte, era para matar de uma vez o espírito da raça, ou para
revigorar o sentimento da nacionalidade tão batida de infortúnios. As-
sim que, em grande parte por esforço seu, se viu o povo português

10 – OLIVEIRA LIMA, História de Portugal, p. 527.

82 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):77-96, jan./mar. 2016.


A diplomacia Portuguesa no Congresso de Viena – 1815

desafogado das tropas do Imperador, passou a ficar sob a tutela dos


ingleses”11.

A resistência popular às tropas estrangeiras na guerra peninsular re-


sultara da tradição patriótica do povo português e de sua histórica rejeição
ao domínio estrangeiro. Vale acrescentar o fato de que, até a invasão da
Península Ibérica pelas tropas do Primeiro Império Francês, os conflitos
gerados pelo expansionismo napoleônico eram, pode-se dizer, entre so-
beranos. As resistências de portugueses e espanhóis, e, posteriormente,
dos russos em 1812, transformaram as guerras napoleônicas em conflitos
nacionais. As tropas portuguesas, bem treinadas por Beresford, incorpo-
radas ao Exército Britânico (50 mil homens), continuaram a luta após
a derrota dos invasores. Perseguindo o exército francês, que lutava na
Espanha, em 1812, Wellesley e Beresford alcançaram grandes vitórias.
Venceram, em 1813, o exército comandado pelo rei José Bonaparte, e
entraram em território francês em outubro de 1813, atingindo Bordeaux e
Toulouse, em 12 de abril de 1814. Vale lembrar que foram as forças que
compunham o exército anglo-luso-espanhol as primeiras a invadir a Fran-
ça. As tropas da Rússia, da Áustria, da Prússia e da Suécia entraram em
território francês em 1814. Terminada a guerra, Portugal, que tudo sofrera
e empreendera o maior esforço em termos materiais e humanos para con-
tribuir para a vitória final, não foi tratado pelas grandes potências aliadas
com a justiça que merecia. O reino lusitano não participou das negocia-
ções que redundaram no Tratado de Paz de Paris pelos motivos que, em
seguida, serão detalhados, e, posteriormente, não recebera, no Congresso
de Viena, apesar dos esforços de seus diplomatas, o reconhecimento de
seus inquestionáveis direitos. De acordo com o artigo 10 do menciona-
do tratado, o príncipe regente de Portugal deveria restituir à França a
Guiana Francesa, “tal qual existia no dia 1º de janeiro de 1792, época
em que a França ocupava territórios ao sul do Oiapoque”. A restituição
se daria sem qualquer compensação. Como se sabe, o príncipe regente
D. João, entre as primeiras iniciativas que tomara ao desembarcar no Rio
de Janeiro, inclui-se a declaração de guerra à França e a ordem para inva-
11 – ROCHA POMBO, História do Brasil, v. iv. São Paulo: Melhoramentos, 1961, p. 9.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):77-96, jan./mar. 2016. 83


Antônio Celso Alves Pereira

dir a Guiana Francesa. Em 12 de janeiro de 1809, o governador de Caiena


rendeu-se às tropas portuguesas. Até 1817, a Guiana foi governada pelo
desembargador Maciel da Costa, cuja atuação administrativa correta lhe
valera o título de marquês de Queluz. A Inglaterra, representando Portu-
gal nas discussões de paz de 1814, nada fez para garantir os direitos de
Portugal em relação à Guiana. Além disso, nem uma palavra sobre a de-
volução de Olivença, anexada pela Espanha, pelos Tratados de Badajoz,
de 6 de junho, e de Madrid, de 29 de setembro de 180112, acordos que
encerraram a chamada “Guerra das Laranjas”, conflito que faz parte do
rol de antecedentes da Guerra Peninsular. Discutindo o assunto, Oliveira
Lima, ao ressaltar a injustiça do tratamento dispensado a Portugal pelas
potências que negociaram a paz, destaca o fato de que a Suécia, apesar de
seu esforço de guerra nunca ter passado de um efetivo de 15 mil homens,
se perdia a Finlândia para a Rússia, porém, como compensação, recebia a
Noruega, que foi separada da Dinamarca. Portugal tinha, naquela altura,
50 mil homens incorporados ao exército inglês que ocupava a França13.
Vale lembrar, também, o fato de que a França, derrotada, apesar de obri-
gada a voltar às suas fronteiras de 1792, conservou os enclaves de Saboia,
Mulhouse, Alsacia e Avingon e os tesouros saqueados pelas tropas napo-
leônicas nos vários países que foram por elas ocupados14. Para um melhor
entendimento dessa matéria, deve-se atentar para o fato de que, em 1814,
Portugal era representado, em Londres, por Domingos Antonio de Souza
Coutinho, conde de Funchal, irmão de Dom Rodrigo de Souza Coutinho,
conde de Linhares. Funchal gozava de largo prestígio na Corte inglesa.
Embora naquela altura, 1814, já não fosse, de direito, o representante
português, em Londres, uma vez que desde janeiro de 1813 tinha sido

12 – O artigo 3º dos Adicionais ao Tratado de Paz de Paris de 30 de maio de 1814 tornava


nulos os Tratados de Badajoz e de Madrid, celebrados em 1801.
13 – OLIVEIRA LIMA, História de Portugal, p. 489-490.
14 – O czar Alexandre I, instalado em Paris, em 1814, não acatou os pedidos de restituição
dos Estados que haviam sido pilhados em seus tesouros artísticos pelas tropas invasoras
francesas. MARTINEZ, citando RENOUVIN, registra que a benevolência para com os
franceses, por parte do imperador russo, se explica pelo fato de que ele teria comprado
várias obras de arte, de origens suspeitas, para enriquecer o acervo do magnífico Museu
de Ermitage. Cf. MARTINEZ, Pedro Soares. História diplomática de Portugal. Lisboa:
Editorial Verbo, 1969p. 295, nota 171.

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A diplomacia Portuguesa no Congresso de Viena – 1815

substituído pelo então conde de Palmela, acedera em firmar o Tratado


de Paris, alegando possuir plenos poderes eventuais, que lhe tinham sido
enviados, em 1809. Entretanto, no ato, incluiu a seguinte reserva:

Fazendo os efeitos desta estipulação reviver a contestação existente


a respeito dos limites, fica convencionado que esta contestação será
terminada por um arranjo amigável entre as duas Cortes debaixo da
mediação de Sua Majestade Britânica.

E declarava ainda às potências aliadas que

Pela inserção do artigo 10, não entendia desistir, em nome de sua Cor-
te, do limite do Oiapoque, isto é, do rio cuja embocadura se achava
situada entre o 4º e o 5º graus de latitude setentrional.

Ao receber a comunicação de Funchal detalhando sua ação, do Rio


de Janeiro o governo do príncipe regente D. João enviou-lhe documento,
firmado pelo Marquês de Aguiar, ministro do Reino e da Fazenda, desau-
torizando totalmente sua iniciativa de firmar o Tratado, uma vez que o
governo da regência não concordava com os termos do artigo 10, que dis-
punha sobre a devolução da Guiana à França sem qualquer compensação.
Manifestava-lhe “o desgosto que se acha o nosso Augusto Soberano”. D.
João não ratificou o tratado e continuou a ocupar a Guiana. Comentando
esse fato, Castilhos Goycochea, com propósito, destaca o seguinte:

Ignorando, por certo, as condições reais em que a França saíra da


guerra, pensou o Príncipe Regente que lhe seria possível manter a
conquista contra a vontade dessa potência. Daí, naturalmente, a desa-
provação ao que fizera o Conde de Funchal subscrevendo o que fora
resolvido em Paris15.

O artigo 32 do Primeiro Tratado de Paz de Paris dispunha que seria


convocado um congresso em Viena, do qual participariam “todas as po-
tências que estiveram, em qualquer lado, na guerra que se encerrava”. Es-
tabelecia, ainda, que as “relações das quais deve derivar-se um sistema de

15 – GOYCOCHÊA, Castilhos. Diplomacia de Dom João VI em Caiena. Rio de Janeiro:


Edições G.T.L. p. 185.

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Antônio Celso Alves Pereira

real e permanente equilíbrio de poderes seriam reguladas no Congresso”


segundo três princípios determinados pelas potências aliadas:

1) princípio de equilíbrio entre as quatro grandes potências, diretório


de poder ao qual, no correr do evento, a França foi posteriormente agrega-
da graças a competência de Talleyrand, fato que determinou a formação
da pentarquia, ou Comitê dos Cinco, com a finalidade de garantir a paz16;

2) princípio da legitimidade, isto é, da legitimidade monárquica alu-


siva às dinastias históricas, direito que, segundo seus principais formu-
ladores, Metternich, por convicção ideológica, o czar Alexandre I, por
iluminação mística, e Talleyrand17, por questões práticas, preocupado
em restaurar os Bourbons de França, fora gravemente violada pela for-
ça e pela subversão popular revolucionária. Deve-se, no caso, salientar
que entre os fundamentos ideológicos da Restauração estavam as ideias
oriundas do pensamento tradicionalista francês, ultrarrealista, expressa
em obras de pensadores como Joseph de Maistre, bem como no roman-
tismo nacionalista alemão, que, a partir de 1806, é de claro viés anti-
-napoleônico18; afinal, como diz Kissinger, em tom realista, “uma ordem
de estrutura aceita por todas as grandes potências é legítima”19;

3) princípio de intervenção, pelo qual, em nome do equilíbrio e da


paz, implicava o direito das grandes potencias fiadoras da paz geral de
restabelecer a ordem tanto no plano internacional como no interior dos
Estados. Desses princípios nasceu a Santa Aliança. É interessante des-

16 – “La entera teoría política de Metternich, protagonista principal del Congreso, se pue-
de resumir en una sola palabra: equilibrio; en palabras de Nicolson: ‘en los asuntos inter-
nacionales, el equilibrio de poderes era casi un principio cósmico. Sin equilibrio. Interno
e externo no podía existir el reposo, y el reposo era esencial para la normal felicidad del
hombre”. GARABITO, Adela M. Alija. El Congreso de Viena y El “Concierto Europeo”
1814-1830. In: PEREIRA, Juan Carlos (coordinador). Historia de las relaciones interna-
cionales. Barcelona: Editorial Ariel, S. A., 2001, p. 70.
17 – Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1838), polêmico diplomata francês,
por sua competência e notável capacidade de sobrevivência política, foi ministro das Re-
lações Exteriores do Diretório, de Napoleão, de Luis XVIII e embaixador de Luis Filipe
na Inglaterra, de 1830 a 1834.
18 – GARABITO, p. 70.
19 – Op. cit., p. 143-166.

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A diplomacia Portuguesa no Congresso de Viena – 1815

tacar que a distinção entre “grandes e pequenas potências” foi uma no-
vidade que surgiu no Congresso de Viena, pois, até então, vigorava nas
reuniões internacionais o conceito de igualdade teórica entre todos os so-
beranos e Estados independentes, teoria que fundamentara a criação do
sistema vestfaliano de Estados e a teoria clássica da soberania.

O Congresso de Viena teve início no dia 1º de outubro de 1814.


Como não podia, naquela altura, ser diferente, o grupo dos “Quatro Gran-
des” ditaria os rumos dos acontecimentos. A Áustria estava representada
no evento por Klemens Wenzel von Metternich; a Prússia, por seu chan-
celer, Karl August von Hardenberg e por Wilhelm von Humboldt20; o Rei-
no Unido, de inicio, por Robert Stewart, Lord Castlereagh e, posterior-
mente, pelo duque de Wellington, que foi obrigado a deixar o Congresso
para chefiar a coalizão de forças que venceu Napoleão em Warterloo. Nas
últimas semanas do Congresso, o Reino Unido foi representado pelo con-
de de Clancarty. A delegação russa, a mais numerosa, era chefiada pelo
próprio imperador Alexandre I. O czar tinha como principal conselheiro
seu ministro das Relações Exteriores, Karl Nesselrode. Além das oito po-
tências que firmaram o Tratado de Paz de Paris, participaram do evento
38 Estados alemães, o sultão da Turquia, duas delegações do Reino de
Nápoles – a dos Borbons e a do ex-rei Murat21 –, o representante do Papa
e a delegação da Holanda. O Congresso transformou Viena numa grande
festa, incluindo bailes, recepções, desfiles militares, concertos musicais –
Beethoven regeu a sua Sétima Sinfonia para os participantes do evento.
Os temas discutidos no Congresso foram tratados em separado, por meio
de comissões e comitês especiais: comissões para assuntos da Toscana,
da Suíça, da Sardenha e Gênova, da Alemanha e os Comitês para o Du-
cado Buillon, para os rios internacionais, para a precedência diplomática,
para o comércio de escravos, de redação e o de estatística – este, dirigido
pelos prussianos, foi o único que, de fato, funcionou. As questões que

20 – Irmão mais velho do notável geógrafo, naturalista e humanista Alexander von Hum-
boldt.
21 – Joaquim Napoleão Murat, cunhado de Bonaparte, marechal do Primeiro Império
Francês, rei de Nápoles de 1808 a 1815. Foi fuzilado em 13 de outubro de 1815, após ter
sido feito prisioneiro pelas tropas do rei napolitano Fernando I.

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Antônio Celso Alves Pereira

realmente importavam, e que estavam em aberto para negociar a paz,


desde as primeiras reuniões entre os “Quatro Grandes”, centravam-se nas
reivindicações da Rússia em relação à Polônia e da Prússia sobre a Saxô-
nia. Esses temas seriam discutidos somente pela Comissão dos Cinco –
Rússia, Prússia, Reino Unido Áustria e França. É importante registrar que
os “Quatro Grandes”, ou a tetrarquia – Rússia, Reino Unido, Prússia e
Áustria –, em todos os momentos, deixavam claro que aos outros Estados
participantes do Congresso restava apenas a ratificação do que eles vies-
sem a decidir. O Congresso não primou pela organização e foi palco de
grandes disputas entre os “Quatro Grandes”. Nas negociações era visível
a divisão da Comissão dos Cinco em dois grupos: um reunindo a Ingla-
terra e a Áustria e outro alinhando a Prússia com a Rússia. Essa situação
favorecia o oportunismo, o senso prático e a esperteza de Talleyrand que,
jogando nas dissensões entre austríacos, russos e prussianos, aliava-se ao
competente delegado britânico, Lord Castlereagh, ao mesmo tempo que
conquistava o apoio das pequenas potências, e assim, apesar de delegado
do país derrotado, foi uma das principais vozes e influências no Congres-
so. As questões da Polônia e da Saxônia, como já mencionado, centrali-
zavam a discórdia. Houve apenas uma sessão plenária da Assembleia, que
se reuniu para firmar a Ata Final do Congresso, redigida pela Comissão
dos Cinco, em 9 de junho de 1815, instrumento compreendendo 121 arti-
gos e 17 apêndices, matérias decididas, de fato, pela pentarquia. Deve-se
ressaltar que os “Cem Dias” posteriores ao retorno de Napoleão da Ilha
de Elba correram concomitantes com o andamento do Congresso. Ele
desembarcou em Cannes em 1º de março de 1815, e a Batalha de Water-
loo se deu nove dias após o encerramento do Congresso – 18 de junho
de 1815. Antes, quando entrou em Paris, em 20 de março de 1815, Na-
poleão encontrou sobre a mesa de trabalho do rei Luís XVIII, esquecido
à hora da fuga às pressas, uma cópia do Tratado secreto celebrado em 3
de março de 1815 entre a França, a Áustria e Inglaterra, no qual as três
potências acertavam medidas contra os interesses da Rússia e da Prús-
sia. Napoleão, buscando dividir seus inimigos, imediatamente despachou
um correio para Viena com a missão de entregar o documento ao czar
Alexandre I, que logo chamou Metternich à sua presença e, em silêncio,

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A diplomacia Portuguesa no Congresso de Viena – 1815

mas visivelmente contrariado, entregou-lhe o referido Tratado. Segundo


o jurista e historiador russo Vladmir Potenkim, autor de uma excelente
história da diplomacia, “Metternich perdeu de tal modo a presença de
ânimo que, pela primeira vez e última em sua vida, não sabia o que dizer,
que mentira inventar”22. Mas, com a retomada do poder por Napoleão, era
hora de acertar as diferenças para vencê-lo definitivamente. Esta situação,
no primeiro momento, dava a entender que favoreceria as pequenas po-
tências aliadas em suas reivindicações, na medida em que a coalizão que
se formava precisava de suas tropas. Todavia, isso não aconteceu.
III
Do Brasil, o príncipe regente, D. João, designou os diplomatas Pedro
de Sousa Holstein, então conde Palmela23, Antônio Saldanha da Gama e
Joaquim Lobo da Silveira, ministro na Suécia, delegados de Portugal no
Congresso de Viena24. Quando firmou essas nomeações, a Regência não
conhecia ainda o teor do artigo 10 do Tratado de Paz de Paris, de 30 de
maio de 1814. Contou ainda a delegação lusa com os serviços do secre-
tário Manuel Rodrigues Gameiro Pessoa, futuro visconde de Itabaiana,
diplomata que prestaria excelentes serviços ao Império do Brasil, como

22 – POTEMKIN, V. P. Y OTROS. Historia de la Diplomacia. Tomo I. Traducción de


José Lain. México, D.F.: Editorial Grijalbo, 1966, p. 374.
23 – Pedro de Sousa Hostein (1781-1850), notável político, diplomata e militar português.
Descendente das famílias reais de Portugal e da Dinamarca, recebeu os títulos de conde de
Palmela, em 1812, marquês de Palmela, em 1823, duque do Faial, em 1833, e, neste mes-
mo ano, duque de Palmela. Foi quatro vezes ministro dos Negócios Estrangeiros, 1832,
1835, 1842, 1846 e presidente do Conselho de Ministros de Portugal nos anos 1834/1835
e em 1842. Foi também embaixador de Portugal em Copenhague, Berlin, Roma, Madrid
e Londres.
24 – A Espanha enviou como seu principal delegado Pedro Gómez Labrador, marquês
de Labrador, diplomata apontado por todos os historiadores do Congresso como pessoa
de difícil trato, irritante, extremamente arrogante, que logo entrou em choque com todos
os principais plenipotenciários por exigir, em todas as situações, tratamento de grande
potência à Espanha, situação que, naquela altura, era uma quimera. Em reuniões com a
pentarquia, demandava, com excessos de altivez, que as potências participantes do Con-
gresso envidassem medidas para restaurar os Borbons nos territórios italianos por eles
possuídos antes da avalanche napoleônica, o restabelecimento da soberania espanhola
sobre as colônias sublevadas da América e, além disso, a devolução, por parte dos Estados
Unidos, da Luisiana à Espanha. De todas as suas reivindicações, somente uma foi aceita:
a criação do minúsculo ducado de Lucca para lá reinar a infanta Maria Luisa de Borbon.

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ministro em Londres, em 1826. Pelas instruções que o marquês de Aguiar,


Fernando José de Portugal e Castro, ministro dos Negócios Estrangeiros
e da Guerra, entregara a Saldanha da Gama, em 16 de junho de 1814,
o único dos delegados que não se encontrava na Europa e lá chegou 15
dias antes da instalação do Congresso, os diplomatas portugueses deviam
defender, em Viena, as seguintes demandas:

– os direitos de Portugal em relação à Guiana Francesa;

– o direito de Portugal de ser ouvido na questão da abolição do trá-


fico de escravos africanos, matéria que estava pautada com o apoio de
quase todos os Estados presentes ao Congresso;

– a anulação do Tratado de 1810 com a Inglaterra;

– a restituição de Olivença e dos distritos anexos;

– pagamento de indenização de guerra pela França;

– indenizações a serem pedidas à Inglaterra pelas presas de navios


portugueses, em razão do comércio de escravos.

Pelo que se pode observar, o projeto de elevar o Brasil a Reino Unido


a Portugal não constava das instruções do marquês de Aguiar. Em linhas
gerais, as instruções oficiais eram praticamente iguais à lista de reivindi-
cações que o conde de Funchal apresentara a Lord Castlereagh, em Lon-
dres, antes da nomeação da delegação portuguesa, convicto de que seria
ele o representante da Regência de Portugal no Congresso. Na lista de
Funchal figurava também a negociação, em Viena, da possível entrega de
um principado alemão ou italiano ao infante D. Miguel25. No correr do
Congresso, os diplomatas portugueses encontraram grandes dificuldades
para negociar conforme as instruções recebidas.
É francamente admissível que a situação portuguesa – escreve Pedro
Soares Martinez –, política, econômica e militar, lhes não permitisse
conseguir melhores resultados junto de potências, que não viam par-

25 – OLIVEIRA LIMA, História de Portugal, p. 493/494.

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A diplomacia Portuguesa no Congresso de Viena – 1815

ticular interesse em favorecer um Estado desprovido de capacidade


bastante de negociação26.

Nessa perspectiva, o conde de Palmela, principalmente, procurava


em contatos pessoais, fora das negociações oficiais, defender as preten-
sões portuguesas, conquistar apoios e ganhar a boa vontade e a simpatia
de Talleyrand. Este, por sua vez, movimentando-se com a costumeira ha-
bilidade e cautela entre os “Quatro Grandes”, andava também em busca
de qualquer forma de suporte aos interesses franceses. Palmela conse-
guira uma vitória no início dos trabalhos, ao convencer os delegados das
grandes potências, especialmente Castlereagh, de que a Assembleia do
Congresso fosse constituída pelos signatários do Tratado de Paris, isto é,
Áustria, Prússia, Rússia, Reino Unido, Suécia, Portugal, Espanha e Fran-
ça. A vitória foi em vão. Os assuntos negociados jamais foram submeti-
dos à apreciação dessa Assembleia. O plenário se reuniu apenas para a
aprovação da Ata Final, previamente acertada. A delegação portuguesa
viu-se obrigada a negociar, em separado, cada uma dos itens das instru-
ções recebidas. Diante disso, vejamos o que se conseguiu, consideran-
do as instruções do marquês de Aguiar: em relação à Guiana, Palmela,
insistindo com Lord Castlereagh na injustiça de tal situação, esperando
o apoio devido a um histórico aliado da Inglaterra, apontou-lhe que Por-
tugal fizera enormes sacrifícios de sangue e de dinheiro na guerra para a
conquista da Guiana Francesa, e que havia despendido 32 mil libras para
remunerar oficiais da Marinha de Guerra da Inglaterra, que haviam par-
ticipado da conquista do mencionado território. Além disso, os mesmos
oficiais se apoderaram das embarcações francesas que se encontravam no
porto de Caiena, negando-se a dividir o butim com as tropas portugue-
sas27. Os argumentos não foram suficientes para convencer o delegado
inglês. Assim, em 11 de maio de 1815, sem alternativa, Portugal, por seus
delegados ao Congresso de Viena, celebrou com a França a Convenção
relativa à entrega da Guiana Francesa. Joaquim Lobo da Silveira negou-
-se a assinar a Convenção, apresentando voto em separado. O Ato Final

26 – MARTINEZ, p. 230.
27 – GOYCOCHEA, p. 233.

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Antônio Celso Alves Pereira

do Congresso de Viena, artigos 106 e 107, dispondo sobre a restituição


da Guiana à França, confere, pelo menos, uma parcial vitória a Portugal
nessa matéria, ao fixar a restituição até o rio Oiapoque, cuja embocadura
está situada entre o 4º e o 5º graus de latitude setentrional, limite que
Portugal sempre considerou como o que fora fixado pelo Tratado de Utre-
cht e, além disso, a obrigação, pelas partes, de “proceder amigavelmente,
logo que fosse possível a fixação dos limites entre as Guianas Portugue-
sa e Francesa, conforme o sentido preciso do artigo 8º pelo Tratado de
Utrecht”28. Quanto à devolução de Olivença pela Espanha, nada se con-
seguiu. Inglaterra e França não tinham qualquer intenção de hostilizar a
Espanha, na questão de Olivença, porque esperavam obter vantagens (da
mesma Espanha), sobretudo na América. O assunto foi objeto do artigo
105 do Ato Final, cujas disposições expressam reconhecimento dos direi-
tos de Portugal, sem, contudo, determinar a devolução de Olivença e seus
distritos. “Tratou-se pura e simplesmente de uma declaração diplomática
de boa vontade29.” Com respeito à indenização de guerra pedida à França
por Portugal, dos 700 milhões de francos pagos aos vencedores, coube
a Portugal apenas 2 milhões. Acertou-se também que Portugal recebe-
ria 300 mil libras esterlinas como indenização pelos navios portugueses
apresados no tráfico de escravos. Com relação a essa matéria, no Tratado
celebrado em 22 de janeiro de 1815 com a Grã-Bretanha, a delegação ao
Congresso e o governo da Regência, lutando para manter o absurdo da
escravidão, consideraram como vitória seu empenho em limitar geogra-
ficamente a proibição do tráfego de escravos à costa da África ao norte
do Equador. Embora conseguindo um vitória parcial, discutir a questão
da escravidão e tentar aboli-la foi um dos pontos mais importantes na
crônica do Congresso, na medida em que tal iniciativa, patrocinada pela
maioria dos Estados presentes e constantes da Declaração das Potências
sobre necessária extinção do tráfico, de 8 de fevereiro de 1815 (Anexo
XV ao Ato Final do Congresso) considerava-se, ao propugnar pelo fim do
tráfico o indispensável respeito à dignidade do ser humano ao condenar,
28 – Atos Diplomáticos do Brasil – Coordenados e Anotados por OLIVEIRA, José Ma-
noel Cardoso de. Volume I. Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Commercio, 1912, p.
73-74.
29 – MARTINEZ, p. 230.

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A diplomacia Portuguesa no Congresso de Viena – 1815

por iniciativa da delegação britânica, e por razões religiosas e humanitá-


rias, a escravidão como prática inaceitável e desumana. Considerou-se,
também, como êxito da diplomacia portuguesa, em Viena, a anulação do
Tratado de 19 de fevereiro de 1810, instrumento leonino, ao qual já me
referi e que foi substituído pela convenção luso-britânica de 22 de janei-
ro de 1815. É interessante detalhar que pelo Tratado de 1810 Portugal
comprometera-se a ceder Bissau e Cacheu à Inglaterra se, por diligências
desta, fosse Olivença devolvida. Entretanto, receavam os diplomatas lu-
sos que, tendo o direito à restituição de Olivença sido reconhecido teori-
camente em Viena, o governo inglês pretendesse exigir aquelas referidas
possessões africanas. Esta seria mais uma razão para se anular o referido
Tratado. Como estamos comemorando 200 anos da instituição do Brasil
como Reino Unido, tema que será exaustivamente debatido nesse Con-
gresso, encerro minha participação, para cumprir o tempo determinado,
mencionando o fato, que é do conhecimento geral, de que existe uma po-
lêmica em torno do assunto, centrada na identificação do responsável pela
ideia de elevar o Brasil à categoria político-jurídica de Reino. Deve-se,
entretanto, realçar que tal propósito, em 1814, já circulava na Corte do
Rio de Janeiro. Silvestre Pinheiro Ferreira, preocupado com a ameaça do
movimento separatista das colônias espanholas da América, recomenda-
va ao príncipe regente proclamar D. Maria I imperatriz do Brasil e rainha
de Portugal, estabelecendo duas regências, ficando D. João como regente
do Império do Brasil, ao qual se agregariam os domínios da Ásia e da
África, e o Reino de Portugal, com as Ilhas da Madeira, Açores e Porto
Santo, sob a regência do príncipe da Beira, D. Pedro, à época com 16
anos, assistido por um Conselho de Estado até completar 20 anos. A ideia
não prosperou, mas, de toda forma, ficou como sugestão30. Em excelente
apresentação à citada obra de Silvestre Pinheiro Ferreira, Arno Wehling
destaca que
A sugestão implicava criar a monarquia dual, composta de um Im-
pério e um Reino, além de domínios que se dividiam entre as suas
unidades políticas centrais. Seu funcionamento far-se-ia a partir de um
30 – Ver FERREIRA, Silvestre Pinheiro. As dificuldades de um império luso-brasileiro.
Brasília: Edições do Senado Federal, Volume 168, 2012, p. 35-43.

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Antônio Celso Alves Pereira

Executivo (na expressão do autor) exercido por D. João que delegaria


suas funções no caso de Portugal ao príncipe da Beira31.

Renato de Mendonça, com apoio em uma carta escrita por Palmela,


em 25 de janeiro de 1815, na qual ele narra que, em conversação preli-
minar com Talleyrand sobre o Brasil, este, dizendo-se preocupado com o
“transtorno que causou ao edifício europeu a revolução na América Ingle-
sa”, que, imprudentemente, segundo ele, contou com o auxilio da França,
(...) aconselhava que se estreitasse por todos os meios possíveis, o
nexo entre Portugal e o Brasil, devendo este país, para lisonjear o
seu povo, para destruir a ideia de colônia, que tanto lhes desagrada,
receber o título de reino e o vosso soberano ser o rei de Portugal e do
Brasil. Podeis, acrescentou ele, se julgardes conveniente manifestar
que eu vos sugeri estas ideias e que tal é o meu voto decidido32.

Diante disso, diz Renato de Mendonça: “O certo é que foi Talleyrand


o autor do projeto, quem teve a ideia e a sugeriu aos plenipotenciários
portugueses, de elevar o Brasil a Reino Unido com Portugal33.” Caio de
Freitas34 e Pandiá Calógeras creditam também a Talleyrand a sugestão.
Pelo que se pode deduzir de tudo isso, Talleyrand pode ter dado a ideia,
porém foi Palmela que a tornou efetiva. Consultado por Palmela sobre o
tema, Castlereagh não fez qualquer objeção. Em ofício de 19 de abril ao
marquês de Aguiar, ministro de Estrangeiros, Palmela o informa sobre o
assunto, esclarecendo que poder-se-ia adotar, na confecção dos tratados
celebrados em Viena, o título seguinte:
Sua Alteza Real o Príncipe Regente do Reino de Portugal e do Brasil,
situação que significaria o reconhecimento do Reino do Brasil pelas
potências presentes ao Congresso, o que foi feito sem ordem expressa
da Regência, por exemplo, na Ata Final35.

31 – Ibidem, p. 19.
32 – MENDONÇA, Renato. História da política exterior do Brasil – 1500-1825. México,
D. F.: Instituto Panamericano de Geografia e História, 1945, p. 83-84.
33 – Ibidem, p. 82 e 86.
34 – FREITAS, Caio. George Canning e o Brasil. Volume I. São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional, 1958, p. 304.
35 – Renato de Mendonça p. 84-85.

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A diplomacia Portuguesa no Congresso de Viena – 1815

No já referido ofício que endereçou ao marquês de Aguiar, datado de


19 de abril de 1815, Palmela escreve o seguinte:

Em consequência do que havemos exposto a V. Ex. nos ofícios re-


servados de 12 e 19 nos aproveitamos desta ocasião para fazermos
reconhecer pelas quatro potências contratantes o título de Reino do
Brasil. Dizemos indiretamente por não nos havermos atrevido sem
autorização especial de Sua Alteza Real, fazê-lo explicitamente. Este
é o motivo de adotarmos os títulos seguintes na confecção deste tra-
tado: “Son Altesse le Prince Régent du Royaume de Portugal et celui
du Brésil”. Evitamos por este modo o declarar sem ordem expressa o
novo título de Sua Alteza Real que, querendo, poderá tomá-lo36.

Diz ainda Renato de Mendonça que a ideia originária de Viena não


caiu muito bem entre os membros do gabinete da Regência. Somente
oito meses após a comunicação de Palmela, 16 de dezembro de 1815, o
príncipe regente D. João, futuro D. João VI, expediu Carta de Lei, diri-
gida a todos os Estados, firmada no Rio de Janeiro, elevando o Brasil à
categoria de Reino, passando o Estado governado pela Casa de Bragança
a denominar-se de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves37.
IV
Ao se concluirem estas notas sobre a atuação da diplomacia portu-
guesa no Congresso de Viena de 1815, não se pode deixar de destacar os
esforços dos três delegados da Regência no sentido de defender os inte-
resses de Portugal. Eles enfrentaram um jogo muito difícil, considerando
a situação geral do Reino, devastado, sob todos os aspectos, no território

36 – Ibidem.
37 – Pelo ato, o príncipe passou a ostentar os seguintes títulos: D. João, pela Graça de
Deus Príncipe-Regente de Portugal, Brasil e Algarves, d'aquém e d'além-mar em África,
senhor da Guiné, e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e
Índia. O Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves teve apenas dois soberanos: D.
Maria I e D. João VI. Com a Independência, em 1822 e, oficial e juridicamente, com a
celebração, em 29 de agosto de 1825, do Tratado de Paz, Amizade e Aliança entre D.
Pedro I, Imperador do Brasil e D. João VI, instrumento que resultou da medição de S. M.
Britânica, Portugal reconheceu o Brasil na categoria de Império independente. O Tratado
foi ratificado pelo governo imperial no mesmo dia 29 de agosto e, por parte de Portugal,
em 15 de novembro de 1825.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):77-96, jan./mar. 2016. 95


Antônio Celso Alves Pereira

metropolitano, nos anos trágicos da Guerra Peninsular e, sobretudo, o tra-


tamento injusto, por parte da tetrarquia, que não reconheceu os imensos
esforços empreendidos e a contribuição do povo português para a vitória
final contra Napoleão. Como foi dito, a Inglaterra, secular e pouco confiá-
vel aliada de Portugal, nada fez para que o país recebesse tratamento justo
na questão das reparações de guerra que foram pagas pela França, não se
moveu na questão da Guiana, devolvida à França, sem ouvir Portugal, em
razão de acordo bilateral anglo-francês. Os dois países, como já foi dito,
preocupados em não hostilizar a Espanha, na medida em que esperavam
obter dela vantagens na América, permitiram que a Espanha conservasse
Olivença e seus distritos.

O Congresso, contudo, apesar do espírito reacionário que nele im-


perou, fundamentado ideologicamente no princípio da legitimidade das
dinastias históricas, foi importante para o desenvolvimento do Direito In-
ternacional, sobretudo, em matéria de Direito Diplomático, além, eviden-
temente, de haver tentado proibir o execrável tráfico de escravos, numa
postura reconhecidamente humanitária e de reconhecimento da dignidade
do ser humano. O Congresso traçou os rumos da Europa de 1815 à uni-
ficação da Alemanha e da Itália, lançando as bases do chamado Concer-
to da Europa, modelo de governança praticado pelas grandes potências
europeias, alicerçado no equilíbrio de poderes, sistema que norteou as
relações internacionais das grandes potências europeias até a Primeira
Guerra Mundial.

96 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):77-96, jan./mar. 2016.


Reino Unido a Portugal:
Breve mas significativo momento na história das relações internacionais do Brasil

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REINO UNIDO A PORTUGAL: BREVE MAS SIGNIFICATIVO


MOMENTO NA HISTÓRIA DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS DO BRASIL
UNITED KINGDOM WITH PORTUGAL:
A BRIEF BUT SIGNIFICANT MOMENT IN THE HISTORY OF
BRAZILIAN INTERNATIONAL RELATIONS
Luiz Felipe de Seixas Corrêa1

Resumo: Abstract:
O Reino Unido Brasil-Portugal foi uma eta- The Brazil-Portugal United Kingdom was a
pa breve, mas muito significativa, da original brief stage, but very significant, in the original
evolução institucional do Brasil. A maioria dos institutional evolution of Brazil. Most histori-
historiadores atribui a Talleyrand a sugestão da ans attribute to Talleyrand the suggestion to
elevação do Brasil à condição de Reino Unido elevate Brazil to the status of United Kingdom
a Portugal. De outra forma, Portugal, por não with Portugal. Otherwise Portugal, without
ter seu soberano em solo europeu, não estaria having her sovereign on European soil, would
habilitado a se fazer representar no Congresso not have been eligible to be represented at the
de Viena. Em última análise, a independência Congress of Vienna. In the final analysis, the
do Brasil proclamou-se, para todos os efeitos independence of Brazil was proclaimed, for
práticos e mesmo jurídicos, com a criação do all practical and even judicial purposes, in the
Reino Unido. Portugal, àquela altura, não tinha creation of the United Kingdom. Portugal, at
poder real e não era percebido como poderoso. that point, had no royal power and was not per-
Teve de se amparar na Inglaterra. E, para ten- ceived as powerful. She had to be protected by
tar equilibrar a preeminência britânica, passou England. Therefore, in order to attempt to bal-
a promover aproximações tentativas ao po- ance out the British preeminence, she sought
der renascente da França restaurada. Além da to foster a tentative rapprochement with the
questão da elevação do Brasil a Reino Unido, reemerging power of a restored France. In ad-
dois grandes episódios marcaram a nascente dition to the issue of the elevation of Brazil to
inserção internacional do Brasil: a ocupação United Kingdom, two great episodes marked
da Guiana e da Banda Oriental do Uruguai. A the growing international emergence of Brazil:
devolução da Guiana à França não foi sequer the occupation of French Guiana and the East-
combinada com Portugal. A decisão foi tomada ern Strip of Uruguay. The return of Guiana to
pelo núcleo duro da Conferência de Paris que France was not even agreed upon with Portu-
antecedeu o Congresso de Viena. A Austria, a gal. The decision was made by the hard nucleus
Prússia, a Rússia e a Inglaterra fizeram a con- of the Conference of Paris that came before the
cessão ao novo monarca francês Luis XVIII em Congress of Vienna. Austria, Prussia, Russia
maio de 1814. A ocupação da Banda Oriental and England made the concession to the new
do Rio da Prata, atual Uruguai, por sua vez, French monarch Louis XVIII in May of 1814.
é parte de uma longa história que acompanha The occupation of the Eastern Strip of the River
a interação de Portugal – e depois do Brasil – Plate, now Uruguay, in turn, is part of a long
com seus vizinhos hispânicos do Rio da Prata. history that involved the interactions of Por-
Guiana e Cisplatina – esta ainda mais – são as tugal – and later Brazil – with their Hispanic
duas questões que mais afetaram a inserção do neighbors from the River Plate. Guiana and
Brasil na América do Sul ocorridas no período Cisplatina – more so the latter – are the two
do Reino Unido. Um período que merece ser issues that most affected the participation of

1 – Diplomata. Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Luiz Felipe de Seixas Corrêa

continuamente estudado e debatido pelo que Brazil in South America during the time of the
representou de original no nosso processo de United Kingdom. It is a period which deserves
independência. to be continually studied and debated for how
it represents the originality of our process of
independence.
Palavras-chave: Congresso de Viena; Inde- Keywords: Congress of Vienna; Independence;
pendência; Guiana Francesa; Uruguai. French Guiana; Uruguay.

A evolução do Brasil em direção à independência é decerto origi-


nal. A começar pela transmigração da Corte de Portugal em 1808, único
exemplo de metrópole que se fundiu com a colônia. Continuando pela
elevação do Brasil a Reino Unido a Portugal e Algarves em dezembro
de 1815. Seguida por um processo de independência levado a cabo pelas
mãos e a vontade de D. Pedro, herdeiro da Coroa portuguesa.

De 1808 a 1822, foram 14 anos de rápida transformação. Uma trans-


formação que obedeceu a uma matriz política que, de certa forma, des-
de então caracteriza nosso modelo institucional. Muito distinta da que
conduziu à independência dos EUA e dos países da América hispânica.
Praticamente não houve violência, nem rupturas. Daí em diante, vieram
a abdicação, a regência, a maioridade, o reinado de D. Pedro II, a aboli-
ção e a República. As transformações ocorreram cada qual em função do
esgotamento da situação precedente. Negociadas entre as elites burocrá-
ticas, políticas e regionais e garantidas por Forças Armadas de orientação
conservadora.

O Reino Unido foi uma etapa breve, mas muito significativa, des-
sa original evolução institucional. A maioria dos historiadores atribui a
Talleyrand, símbolo da sabedoria do político capaz de estar sempre envol-
vido com o regime no poder, a sugestão da elevação do Brasil à condição
de Reino Unido a Portugal, feita ao representante português, o conde de
Palmela. De outra forma, Portugal, por não ter seu soberano em solo eu-
ropeu, por mais legitimista que fosse, por mais vítima que tivesse sido da
expansão francesa, não estaria habilitada a se fazer representar em Viena.

Feitas as contas, em última análise, a independência do Brasil procla-


mou-se, para todos os efeitos práticos e mesmo jurídicos, com a criação

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Reino Unido a Portugal:
Breve mas significativo momento na história das relações internacionais do Brasil

do Reino Unido. As duas unidades que se juntaram como Reinos Unidos


eram, para todos os efeitos, independentes. Não chegaria a dizer que foi
Talleyrand o responsável pela independência do Brasil em 1815, mas, ad
argumentandum, não estaria muito longe da verdade histórica. As Cortes
portuguesas, pressentindo a ruptura que poderia vir – como veio – a ocor-
rer, passaram a pressionar pelo retorno do Soberano, aclamado rei no Rio
de Janeiro em 1818 e em seguida a tomar medidas destinadas a “recolo-
nizar” o Brasil. D. Pedro talvez abrigasse no seu íntimo a determinação
de voltar a unir os dois reinos, logo que a Coroa portuguesa caísse sobre
sua cabeça. Os acontecimentos sucederam-se de forma diferente; quando
D. Pedro I do Brasil tornou-se D. Pedro IV de Portugal, as circunstâncias
haviam mudado de forma irreversível.

Voltemos ao princípio. Não fosse a intervenção britânica, Portugal


teria levado fim semelhante ao que levou a Espanha com a invasão napo-
leônica. Salvou-o a diplomacia britânica, cujo interesse estratégico fun-
damental era o de manter Portugal sob sua tutela para conservar um pé
na Europa continental. Lord Strangford, o enviado britânico junto à Corte
portuguesa, escreveu a Londres: com o traslado da Corte sob a segurança
prestada pelas forças britânicas, “a Inglaterra passou a estar habilitada a
exigir obediência de Portugal como preço da proteção recebida”: “Obe-
dience to be paid as the price for protection”! E assim foi. A começar pela
abertura dos portos e posteriormente – ainda que sob protesto dos interes-
ses brasileiros – pela pressão pelo fim do tráfico.

Portugal ainda tentaria em vão desvencilhar-se da excessiva domina-


ção britânica mediante a reaproximação com a França pós-bonapartista e
uma política de casamentos reais com as dinastias austríaca e espanhola.
Em jogo de poder, entretanto, ganha sempre quem tem mais do que o ou-
tro, ou quem sabe transformar suas debilidades em força. Não era o caso
de Portugal. E, infelizmente, não viria a ser o caso do Brasil.

Napoleão abdicou em 6 de abril de 1814. No dia 23, Áustria, Ingla-


terra, Rússia e Prússia, as grandes potências europeias vencedoras, assi-
naram a Convenção de Paris, cujos termos seriam confirmados em 30 de

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Luiz Felipe de Seixas Corrêa

maio mediante o Tratado de Paris. A França ficou reduzida a seus limites


de 1792. Luís XVIII, irmão de Luís XVI, subiu ao trono. Calcula-se que
a França napoleônica perdeu então algo em torno de 25 milhões de habi-
tantes e cerca de 100 cidades.

O artigo 32 do Tratado de Paris estabeleceu que todas as potências


envolvidas de ambos os lados da guerra enviariam plenipotenciários a
Viena, num prazo de dois meses, para acertar em um Congresso geral os
arranjos destinados a completar os dispositivos do tratado. Um dos arti-
gos secretos precisou que a sorte dos territórios recuperados pelas potên-
cias vencedoras seria definida com base em acordos entre elas mesmas.
Seria, como observa Henry Kissinger, “a primeira ocasião em que se ten-
tou organizar o sistema internacional em tempos de paz mediante confe-
rências”. E, acrescento eu, mediante uma coalizão de grandes potências.

Esperava-se que o Congresso não durasse mais do que seis meses.


Acabou durando nove meses. Um longo tempo em que os participantes
se dedicaram a árduas negociações diplomáticas e protocolares, não dei-
xando, ao mesmo tempo, de espairecer com os prazeres das festas e ma-
nifestações de gala: jantares, apresentações musicais, piqueniques, bailes,
enquanto se debatiam questões concretas e de protocolo. É conhecido o
difícil episódio da determinação da precedência entre os soberanos parti-
cipantes. Em que ordem entrariam no salão de reuniões? Depois de lon-
gas discussões, decidiu-se ampliar a largura da porta de entrada para que
todos entrassem juntos!

A palavra-chave era “legitimismo”. No dizer de Talleyrand, Viena


rendia homenagem “aos princípios sagrados sobre os quais repousa a fe-
licidade dos povos, assim como à segurança dos princípes aos quais a
Providência havia confiado a tarefa de conduzi-los”.

Henry Kissinger chama a atenção para o fato de que a expectativa


das grandes potências era de definir em Viena uma ordem internacional
“legítima”, aceita por todos. Caso contrário, as relações internacionais
permaneceriam, como no período napoleônico, “revolucionárias”.

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Reino Unido a Portugal:
Breve mas significativo momento na história das relações internacionais do Brasil

O problema, ainda segundo Kissinger, é que qualquer arranjo inter-


nacional representa uma etapa num processo mediante o qual as nações
participantes tentam conciliar sua visão de si mesmas com as que os de-
mais participantes fazem dela. Portugal, àquela altura, não tinha poder
real e não era percebido como poderoso. Teve de se amparar na Inglater-
ra. E, para tentar equilibrar a proeminência britânica, passou a promover
aproximações tentativas ao poder renascente da França restaurada.

O “diabólico” Talleyrand, um dos maiores sobreviventes políticos de


toda a História, aproveitou-se da situação. A Inglaterra e a Áustria logo
garantiram a implementação de seus interesses vitais. A Rússia e a Prús-
sia, porém, tiveram dificuldade em fazê-lo. Com habilidade, Talleyrand
soube jogar com o peso da França ora de um, ora de outro lado. Fez com
que as demais potências se dessem conta de que a França re-legitimada
era essencial para a obtenção do equilíbrio almejado em Viena. A França
ganhou assim uma força que, em princípio, não deveria ter na sua quali-
dade de potência derrotada.

Os representantes portugueses em Viena, Pedro de Souza Holstein,


conde de Palmella, Antonio Saldanha da Gama e Joaquim José Lobo da
Silveira, conde de Oriola, logo se deram conta dos constrangimentos a
que estariam submetidos. E aparentemente se resignaram.

Tobias Monteiro, em sua minuciosa História do império, relata que


Portugal – nada tendo negociado anteriormente com a Inglaterra – viu-se
ocupado pelas forças inglesas após a queda de Napoleão. Como se fosse
um “país abandonado” . Os ingleses ocuparam as praças e os fortes do
Reino abandonado pelos franceses. Nem da Conferência de Paris, nem do
Congresso de Viena resultaram compensações para o sangue derramado
pelos portugueses sob o ataque e a ocupação pelas forças de Napoleão.

Longo tempo levou D. João a decidir-se pela volta, não obstante as


pressões recebidas. Chegou a cogitar mandar D. Pedro a Lisboa para as-
sumir a regência de Portugal, deixando-se ficar no Brasil. Tobias Mon-
teiro descreve as pressões e as hesitações de D. João, que só se dispôs a

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Luiz Felipe de Seixas Corrêa

partir depois que D. Pedro se revelou definitivamente irredutível à ideia


de voltar para a Europa naquela circunstância. Aparentemente rompera-
-se o nexo de confiança entre o monarca e seu herdeiro.

Américo Jacobina Lacombe, em uma de quatro conferências profe-


ridas em 1943 publicadas sob o título “Um passeio pela História do Bra-
sil”, traça o quadro de maneira triunfal, ecoando talvez a historiografia
tradicional portuguesa:
Portugal comparece ao Congresso de Viena como nação vencedora.
Como represália pela invasão do Reino , D. João conquistara a Guiana
Francesa, havendo também incorporado ao Brasil o território da atual
República do Uruguai com o nome de Província Cisplatina. O Brasil
atingira então sua maior expansão – ia do Mar das Antilhas ao Rio da
Prata. O Brasil, mediante a Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815
(que consagrou a evolução a Reino Unido) passou a figurar no próprio
nome da Monarquia.

Lacombe conclui de maneira retumbante seu relato sobre o episódio


ressaltando o fato de que o Brasil foi então alçado “à condição de potên-
cia internacional (...)”. As condições achavam-se invertidas:

O Brasil era um reino próspero, em plena ascensão, sede da Monar-


quia, onde se fixavam as grandes repartições, os principais coman-
dos e o centro de grande interesse do estrangeiro (...) Portugal era um
Reino devastado (...) com uma população faminta (...) Daí um atrito
latente entre os dois povos que explodiria, no Brasil, em 1817 numa
revolução em Pernambuco e, em Portugal, numa revolução no Porto,
três anos depois.

Nem oito, nem 80, acredito eu. Entre a narrativa patriótica de La-
combe e os fatos, a realidade é que foi um período de grandes incertezas,
que acabaram dando certo para o Brasil e acelerando o caminho à inde-
pendência formal em 1822. Nada porém autoriza a crer que tudo fora
planejado ou mesmo intuído. Na realidade, tanto o Portugal antigo quanto
o Brasil novo acabariam levados por acontecimentos fora de seu controle.

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Reino Unido a Portugal:
Breve mas significativo momento na história das relações internacionais do Brasil

Além da questão da elevação do Brasil a Reino Unido, dois grandes


episódios marcaram, cada um à sua maneira, a nascente inserção interna-
cional do Brasil: a ocupação da Guiana e da Banda Oriental do Uruguai.

Os historiadores são vagos a respeito da autoria da ideia da ocupação


da Guiana Francesa. A maioria dos relatos se limita à ação. Como ocorri-
do com as outras duas Guianas, o objetivo dos colonizadores europeus era
chegar à margem esquerda do Amazonas e estabelecer ao longo da Bacia
Amazônica, como se faria na China ao longo do Rio Amarelo, possessões
e territórios. A tenacidade luso-brasileira impediu que esse projeto se rea-
lizasse. E as três Guianas ficaram como impressões digitais de um colo-
nialismo repelido e mantido a distância, apesar de inúmeras tentativas,
umas diretamente conquistadoras, outras apenas indiretamente, através
de agentes disfarçados de missionários e mercadores.

A política seguida por Portugal e pelos luso-brasileiros era sobretudo


defensiva: não deixar o estrangeiro chegar perto do Amazonas. Políti-
ca acertadíssima que, como a demonstrar que a diplomacia não precisa
necessariamente ser coerente, era o oposto à que se praticava no Prata.
Ribeirinhos de jusante no Amazonas, os luso-brasileiros fechavam o rio
à navegação estrangeira. Ribeirinhos de montante no Prata, forçavam a
passagem. Ambas deram certo.

A oportunidade, no caso da Guiana Francesa, veio com a transmigra-


ção da família real sob a proteção britânica. Abriu-se a possibilidade de
um acerto de contas, configurando-se também um caminho para efetiva-
mente fixar a fronteira no rio Oiapoque, tão defendida pelos portugueses e
tão repelida pelos franceses. Tudo pareceu seguir um plano bem articula-
do. Antes estabelecera-se um núcleo militar em Macapá. Criara-se um go-
verno igualmente militar. A vigilância era feita por flotilhas guarda-cos-
tas. Povoaram-se as ilhas localizadas ao longo do rio Macapá. Estima-se
que o forte português da região era o mais bem provido de todo o Brasil.

Arthur César Ferreira Reis, no capítulo correspondente da “História


Geral da Civilização Brasileira”, dá conta de todas as precauções toma-

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Luiz Felipe de Seixas Corrêa

das ao longo do tempo pelas autoridades portuguesas, assim como da


permanente busca de informações sobre as defesas francesas para evitar a
penetração na Colônia da “novidade revolucionária”.

Com a chegada da Corte e a declaração de guerra à França, diz Fer-


reira Reis, era forçosa uma ação militar. “A ruína de Caiena seria para os
reais interesses um objeto de grande valor”, dizia a instrução dada pelo
conde de Linhares à guarnição do Pará.

A viabilidade da empreitada dependia porém do auxílio naval bri-


tânico. Acertada, a operação conjunta foi posta em marcha. No dia 1º de
dezembro de 1808, içou-se o pavilhão português na margem francesa do
Oiapoque. Dois brigues portugueses e uma corveta inglesa chegaram de
Belém. O ataque conjunto luso-britânico iniciou-se em seguida. A guar-
nição francesa rendeu-se em 12 de janeiro, estabelecendo-se em seguida
um governo militar e outro civil luso-brasileiro.

O intendente português Maciel da Costa chegou a pregar a troca da


Guiana Inglesa, que passara a incorporar a holandesa, por alguns territó-
rios no Oriente que, segundo ele, Portugal acabaria perdendo mais cedo
ou mais tarde. Formar-se-ia assim um Estado poderoso entre o Brasil e
os EUA que o intendente antevia forte, capaz de servir como força de
equilíbrio no mundo. Vêm daí, quem sabe, certos devaneios históricos
da política exterior do Brasil, tão evidentes em tempos recentes, de atuar
como se o país fosse uma potência mundial...

Maciel da Costa, porém, acabou acusado de corrupção pelos ingle-


ses e seus projetos mirabolantes se perderam no tempo e no espaço. E a
ocupação da Guiana acabaria no depósito em que se acumulam todos os
grandes projetos frustrados por forças mais poderosas.

A devolução da Guiana à França não foi sequer combinada com Por-


tugal. A decisão foi tomada pelo núcleo duro da Conferência de Paris,
que antecedeu o Congresso de Viena. A Áustria, a Prússia, a Rússia e a
Inglaterra fizeram a concessão ao novo monarca francês Luís XVIII em
maio de 1814. Apenas a comunicaram a Portugal.

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Reino Unido a Portugal:
Breve mas significativo momento na história das relações internacionais do Brasil

A Guiana, tão importante para Portugal, terá sido quase uma res inter
alia na negociação. D. João VI resitiu mas acabou rendendo-se à realida-
de no Congresso de Viena. Portugal não conseguiu sequer recuperar a vila
de Olivença, na fronteira com a Espanha, nem que as grandes potências
reconhecessem a ocupação da Cisplatina. Ganhou-se apenas o reconheci-
mento do Oiapoque como fronteira entre a Guiana e o Brasil.

Como sempre, as interpretações dos fatos tendem a se multiplicar.


Ainda mais no que se refere a fatos de diplomacia e guerra, em que os re-
latos são normalmente interpretados pelos vencedores ou pelas potências
dominantes. Os próprios ingleses dizem que “um diplomata é um homem
de bem enviado ao exterior para mentir para o bem de seu país”. Não
posso dizer que discorde desse dito da sabedoria e do cinismo britânico.
O problema é saber quem define o bem do país...

A ocupação da Banda Oriental do Rio da Prata, atual Uruguai, por


sua vez, é parte de uma longa história que acompanha a interação de Por-
tugal – e depois do Brasil – com seus vizinhos hispânicos do Rio da Prata.

Começa com Tordesilhas, tratado inaplicável na prática, mas que não


deixou de ter um sentido profundo: o de delinear, ainda que hipotetica-
mente sobre bases precárias e duvidosas, as futuras possessões espanho-
las e portuguesas a partir da “descoberta” da América por Colombo.

Não existe o “se” na História. Ad argumentandum, porém, pode-se


dizer que se a “Bula Intercoetera” do Papa castelhanista Alexandre VI
– substituída por Tordesilhas – tivesse sido aplicada à risca, talvez as
navegações portuguesas tivessem pouco a pouco acabado. E o que é hoje
o Brasil seria um imenso território dividido em Estados de idioma portu-
guês, francês, espanhol, inglês e holandês.

Tordesilhas serviu efetivamente como parâmetro jurídico para im-


pedir uma guerra entre Portugal e Castela. Daí para a frente, de 1494
até precisamente 1851, a área foi objeto de diversas tentativas, sobretudo
partidas dos luso-brasileiros, de empurrar para o sul e para o oeste os limi-
tes da “linha imaginária”. Não se logrou o objetivo luso-brasileiro, qual

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Luiz Felipe de Seixas Corrêa

seria, o de chegar à margem esquerda do Rio da Prata, por longo tempo


considerada a porta de entrada do mítico Eldorado, jamais encontrado.
Logrou-se, porém, a ampliação da ocupação portuguesa, consagrando-se
nos tratados de Madri e de Santo Ildefonso, com base no uti possidetis a
expansão dos limites do Brasil para o Oeste.

Em 1530, Martim Afonso de Souza deixou no que hoje é a cidade


de Maldonado um marco de propriedade lusitano. Os espanhóis reagiram
com a primeira fundação, em 1536, do que é hoje a cidade de Buenos
Aires. A União Ibérica (1580-1640), o chamado Período Filipino, que se
imaginava então eterno, dissipou as fronteiras, e os luso-brasileiros pude-
ram expandir-se sem embaraços para o Leste e o Sul da América Ibérica.
No Sul, povoou-se o litoral de Paranaguá a Laguna, assegurando-se a
incorporação definitiva da costa de Sta. Catarina, ao mesmo tempo que se
consolidou a ocupação do interior, mediante a destruição das povoações
e reduções jesuíticas espanholas do Guairá, de Tape, no atual Rio Grande
do Sul, e de Itatim, no atual Mato Grosso do Sul.

Em 1680, 40 anos após a dissolução da União Ibérica, os luso-brasi-


leiros passaram novamente à ação: D. Manuel Lobo, governador do Rio
de Janeiro, desembarcaria na costa hoje uruguaia para fundar a Colônia
do Sacramento, bem diante do porto de Buenos Aires, que havia sido
abandonado pelos espanhóis. Logo refundada, Buenos Aires, se transfor-
maria no centro da colonização hispânica na região que até então era o
que é hoje Assunção do Paraguai.

Sacramento foi palco de uma das mais extraordinárias aventuras do


período colonial sul-americano: um prolongado ciclo de conflitos pela
posse da margem oriental do Rio da Prata que, entre o Brasil e seus vi-
zinhos, iria até 1828, com a proclamação da independência do Uruguai
após a chamada Guerra da Cisplatina – um século e meio de alternância
de soberania, conflitos bélicos e negociações diplomáticas.

Mais imediatamente, a ocupação de todo o território hoje uruguaio


por parte do Governo portugues transmigrado para o Brasil resultou de

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Reino Unido a Portugal:
Breve mas significativo momento na história das relações internacionais do Brasil

um persistente desejo da futura rainha, D. Carlota Joaquina, que, no gra-


cioso dizer de José Antonio Soares de Souza, “se transmudara, com os
anos, da menina piolhenta e bexigosa, que chegara a Portugal em 1785,
na megera que desembarcou no Rio de Janeiro em 1808”. Empenhou-se
em ocupar os espaços deixados abertos com a prisão de seu irmão Fernan-
do VII pelas forças napoleônicas que haviam invadido a Espanha.

Seguiram-se intensos vaivéns diplomáticos entre a Corte portugue-


sa, o representante britânico Strangford, os independentistas portenhos e
Artigas, então agraciado com o título de “Chefe dos Orientais e Protetor
dos Povos Livres”.

Após a queda de Napoleão, Portugal não somente teve de engolir a


devolução da Guiana aos franceses, como não logrou apoio britânico para
obter dos espanhóis a restituição de Olivença.

Dessa circunstância, acrescida pela instabilidade decorrente das lu-


tas caudilhescas de um e outro lado do Rio da Prata, terá nascido o desejo
lusitano de se “vingar” da Espanha e das grandes potências europeias
mediante a ocupação da Banda Oriental.

Em maio/junho de 1816, um grupo de “caçadores” partiu do Rio


para o Rio Grande. Em junho, o tenente-general Carlos Francisco Lacour
foi nomeado governador e capitão geral de Montevidéu, com intenções
de fazê-lo, segundo instruções de D. João, “em meu real nome”. Em 20
de janeiro de 1817, Lacour entraria vitorioso em Montevidéu. Em 1820,
Portugal havia-se desvencilhado momentaneamente de Artigas e da di-
plomacia espanhola.

Ao ter de regressar, porém, a Lisboa, D. João pareceu convencido de


que a ocupação portuguesa não poderia durar muito. Pensou em deixar
aos orientais a decisão sobre uma das três hipóteses: unir-se ao reino de
Portugal, incorporar-se a alguma província de origem espanhola ou decla-
rar-se independente. Segundo desejo expresso de D. João, as autoridades
locais reuniram-se em 16 de julho (curiosamente o mesmo dia em que em
1950 o Uruguai derrotaria o Brasil no Maracanã, tornando-se campeão

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Luiz Felipe de Seixas Corrêa

do mundo!). Dois dias depois veio a decisão: a Província se incorporaria


à Monarquia portuguesa sob o nome de “Cisplatina, aliás Oriental”. En-
tre os que defendiam a incorporação, o principal argumento consistia na
necessidade de impedir a propagação das ideias revolucionárias da época
em região tão próxima e sem barreiras naturais com o Brasil.

D. João, aparentemente, não aprovou a incorporação da Província,


deixando de ratificar o acordo assinado em Montevideu pelo barão de
Laguna. Ficou indeciso. A incorporação deu-se mais adiante já sob o Bra-
sil independente de D. Pedro I. Desde logo se reagrupariam as forças
orientais e portenhas, travando-se uma guerra que iria até 1827, até hoje
objeto de controvérsias entre autores argentinos, uruguaios e brasileiros
sobretudo no que se refere aos troféus (ou falsos troféus, como querem
os brasileiros) de Ituzaingó até poucos anos ainda expostos, para horror
das autoridades e dos turistas brasileiros, na Catedral de Buenos Aires.
O fato é que os platinos ganharam a guerra terrestre enquanto o Brasil
ganhou a guerra naval ao bloquear Buenos Aires. Os ingleses acabaram
então decidindo-se pela independência do Uruguai como Estado Tampão.

Guiana e Cisplatina – esta ainda mais – são as duas questões que


mais afetaram a inserção do Brasil na América do Sul ocorridas no perío-
do do Reino Unido.

A outra grande questão – mais ampla – se refere ao tráfico, ao vai-


vém das posições britânicas, ao sentido moral que atribuiu à sua polí-
tica certamente mais derivada da necessidade de novos mercados para
os produtos de sua Revolução Industrial e às tentativas luso-brasileiras
de disfarçar “para inglês ver” as reais condições existentes no Brasil até
1888. Entre parênteses, a resistência ao fim do tráfico terá sido a primei-
ra manifestação de uma característica da política exterior do Brasil, que
viria a se repetir durante o período iniciado em 1964: o de defender os
princípios certos (a soberania e a não intervenção) pelas causas erradas (a
violação dos direitos humanos).

108 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):97-110, jan./mar. 2016.


Reino Unido a Portugal:
Breve mas significativo momento na história das relações internacionais do Brasil

Esta breve narrativa analítica permite algumas conclusões. Referir-


-me-ei a três.

A primeira diz respeito ao temperamento de D. João. O soberano


acreditava que nunca se deviam fechar portas diante de cenários políticos
contraditórios. Era melhor hesitar, deixar que as opções se fizessem por
elas mesmas, no último momento possível, do que tomá-las precipitada e
impulsivamente. Trata-se de uma matriz que ainda se mantém viva na tra-
dição política brasileira. Acabou, por caminhos um tanto sinuosos, dando
certo para Portugal naquele momento histórico.

A segunda refere-se à prolongada desconfiança e, sob certos aspectos,


inimizade entre portugueses e castelhanos na Península Ibérica e entre os
brasileiros e seus vizinhos hispânicos na América do Sul. O episódio da
efêmera Província Cisplatina – resolvido finalmente por pressão britânica
– revela as contraposições existentes entre nossos países. As desconfian-
ças persistem até hoje. E se agravam quando – tal como vem ocorrendo
nos tempos mais recentes – o Brasil se apresenta como lider na região.
Liderança não se reivindica, nem se proclama. É ou não é reconhecida. O
Brasil, como ouvi há meses numa reunião acadêmica internacional, seria
o único país líder que não tem liderados...

E a terceira é a de que o período do Reino Unido – traço de união en-


tre a Colônia e o Brasil formalmente independente – merece ser continua-
mente estudado e debatido, tal como o estamos fazendo neste Congresso
Internacional. Não só pelo que representou de original no nosso processo
de independência, como também pelo que deixa vislumbrar como ori-
gem de algumas características da gestão ambivalente de nossa política
exterior. No Congresso de Viena, o Reino Unido quis agradar a ingleses,
austríacos e franceses e acabou fora do processo decisório por falta de
poder efetivo. As imagens são importantes em qualquer negociação, mas
o que conta é a realidade. Ao menor transtorno, as imagens se dissipam,
deixando o vazio em que acabam as tantas Guianas e as Cisplatinas reais
ou imaginárias na nossa História.

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Le Congrès de Vienne et les petites nations: Quel rôle pour l’Angleterre?

111

LE CONGRÈS DE VIENNE ET LES PETITES NATIONS:


QUEL RÔLE POUR L’ANGLETERRE?
THE CONGRESS OF VIENNA AND SMALL NATIONS: WHAT
ROLE FOR ENGLAND?
Annie Jourdan1

Résumé: Abstract:
Le Congrès de Vienne a été fort bien étudié, The Congress of Vienna has been well studied.
encore récemment. Mais les historiens se con- New research has been published recently. But
centrent avant tout sur les grandes puissances historians still focus on European great pow-
et le traité du 9 juin 1815. Ils négligent les ers and on the Treaty of June 1815. They show
accords ou conventions signés bilatéralement no interest in conventions and bilateral agree-
entre l’Angleterre et les nations de second or- ments signed between England and small na-
dre, notamment les puissances coloniales. Une tions with a colonial empire. I will show here
étude détaillée de ces conventions démontre que that England’s so-called generosity was just a
la générosité d’Albion n’était que de façade. mere façade, since she forced her allies – the
Sous couvert de protéger l’Europe des velléités Netherlands, Portugal and Spain – to make
belliqueuses de la France, elle a imposé à ses real sacrifices. The new United Kingdom of the
alliés – Pays-Bas, Portugal, Espagne – de réels Netherlands had to hand over some strategic
sacrifices. Le nouveau royaume des Pays-Bas a possessions in the Caribbean and in the East
dû ainsi lui céder des possessions stratégiques Indies. Portugal and Spain had to abolish the
aux Antilles et aux Indes orientales. Le Portu- transnational slave trade, which was essential
gal et l’Espagne ont dû accepter l’abolition de to their survival. In exchange, England did not
la traite négrière, ce qui leur était néfaste. Mais help them to recapture their South American
l’Angleterre ne les a pas non plus aidés à re- colonies which fought for independence. Con-
conquérir leurs colonies qui luttaient alors pour versely, she strengthened her relations with
l’indépendance. Elle a laissé la situation péricli- these new independent states. To be sure, her
ter et les colonies se tourner vers elle. Ses gains territorial gains can be considered tiny, when
peuvent paraître infimes, vus individuellement, one looks at them individually, but all together
mais ils lui assurèrent l’omnipuissance sur mer they made England the first power of the seas
et la suprématie commerciale dans le monde. and gave her commercial supremacy in the
world.
Mots-clés: Congrès de Vienne; Hollande; Es- Keywords: Congress of Vienna; Holland; Spain;
pagne; Portugal; Angleterre; suprématie. Portugal; England; supremacy.

Le Congrès de Vienne –18 septembre 1814-9 juin 1815 – est plus


ou moins connu de tous. Mais comme nombre de sujets transnationaux,
il est interprété très différemment selon la nationalité des historiens et
leur sensibilité politique. Il est clair qu’il est difficile de ne pas prendre
parti. En bref, deux avis coexistent: le premier pense que le congrès a
été un échec flagrant en ce qu’il a opprimé les peuples et les a menés à
s’insurger contre l’ordre nouveau, établi justement par ce congrès. Le
1 – Doutra em História. Professora da Universidade de Amsterdam.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):111-130, jan./mar. 2016. 111


Annie Jourdan

second, dont le représentant le plus éminent est Paul Schroeder, auteur de


la Transformation de la politique européenne, 1763-18482, affirme que le
congrès a instauré une paix durable en Europe et un ordre international
basé sur l’équilibre des puissances3. D’autres encore y ont trouvé l’occa-
sion de manifester leur nationalisme en mettant tel ou tel personnage en
valeur. On pense au diplomate britannique Harold Nicolson4, qui, au len-
demain de la Seconde Guerre mondiale, enjolivait le rôle joué par son
compatriote Castlereagh, lequel aurait sorti les négociations de l’impasse
où elles avaient abouti. En France, c’est Talleyrand qui a très souvent
joué le beau rôle: celui de sauveur des intérêts français, voire du congrès
lui-même. En Allemagne, c’est Metternich, etc. Parmi les ouvrages plus
récents qui essaient d’échapper aux sirènes nationalistes, Le Congrès de
Vienne de Thierry Lentz, président de la Fondation Napoléon ou bien ce-
lui de l’historien et diplomate américain Mark Jarrett consacré au congrès
et à son héritage, tous deux parus en 20135. Les deux auteurs sont à la
fois historiens et juristes et sensibles aux avancées du droit public, telles
qu’elles se manifestent dans le congrès. Si ces ouvrages récents essaient
d’être équitables, ils n’accordent pas non plus une grande importance aux
petits pays et à leurs colonies. C’est que le Congrès de Vienne, de par sa
composition et ses activités, incite à se focaliser sur la vieille Europe. Les
quatre grandes puissances qui y donnent le ton sont l’Autriche, la Prusse,
la Russie et l’Angleterre. Tout d’abord exclue, la France parvient à se
faire admettre dans le comité des Cinq, grâce à Talleyrand. Mais ce sont
les quatre puissances qui vont vraiment reconfigurer l’Europe en 1814-

2 – SCHROEDER, Paul. The Transformation of European Politics, 1763-1848, Oxford,


1996.
3 – Voir notamment la discussion http://issforum.org/ISSF/PDF/ISSF-Roundtable-7-11.
pdf et les comptes rendus critiques de Brendan Simms, Tim Blanning, H.M. Scott et Char-
les Ingrao sur l’ouvrage de Paul Schroeder: http://www.Jstor.org
4 – Pour mémoire, citons parmi tant d’autres: NICHOLSON, Harold. Le Congrès de
Vienne. Histoire d’une coalition 1812-1822, traduction française, Paris, 1947. CAPE-
FIGUE, Baptiste. Le congrès de Vienne dans ses rapports avec la circonscription de
l’Europe, 1814-1846, Paris, 1847. SOREL, Albert. L’Europe et la Révolution française, 9
vols., volume VIII, Paris, 1904.
5 – LENTZ, Thierry. Le Congrès de Vienne, Paris, Perrin, 2013. JARRETT, Mark. The
Congress of Vienna and its Legacy. War and Great Power Diplomacy after Napoleon,
Londres & New York, 2013.

112 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):111-130, jan./mar. 2016.


Le Congrès de Vienne et les petites nations: Quel rôle pour l’Angleterre?

1815, notamment l’Allemagne, l’Italie et la Pologne. Le cercle restreint


s’élargit à l’Espagne, au Portugal et à la Suède à l’heure de la signature
des actes du congrès – dans le comité dit des Huit6. Ces trois pays de se-
cond ordre n’ont pas contribué aux décisions qui redessinent le continent.
Ils ont rarement été impliqués7.

Les ouvrages parus jusqu’ici fixaient donc toute leur attention sur
la reconfiguration de l’Europe et sur ses conséquences pour celle-ci dans
les décennies à venir8. Mais récemment, avec l’avènement de l’histoire
globale une évolution s’est faite jour, qui a renouvelé l’approche et les
thèmes. Ceux-ci dépassent désormais les frontières du vieux continent
européen. Y sont pris en compte les colonies, l’esclavage, le commerce
et les relations internationales dans leur sens global. Les recueils ou les
monographies se multiplient: pour exemple, l’impact des années napo-
léoniennes sur le monde ou celui de l’âge des révolutions, ou bien encore
celui des empires coloniaux. Jeremy Adelman notamment travaille sur ce
qu’il appelle les “révolutions impériales”. Tout comme Robert Travers qui
aborde les répercussions en Asie méridionale de ces révolutions ou David
Geggus qui fait de même pour les Caraïbes9. D’autres se concentrent sur
les apports européens dans les Amériques, que ce soit des hommes ou des
armes. Rafe Blaufarb, notamment10. C’est dire qu’on étudie de plus en
plus les ricochets qui rebondissent d’un pays à l’autre. Non seulement, les
6 – LENTZ, Thierry. p.77-78 et p.98-100. CAPEFIGUE Jean-Baptiste. p.25-28.
7 – Ces trois pays sont considérés de second ordre par le Congrès lui-même. L’Espagne
en effet ne s’est jamais remise de la défaite de Trafalgar. Sa faiblesse est manifeste dès le
Premier Empire, et après 1816 quand il s’agit de mettre fin aux révolutions sud-américai-
nes. Fernand-Nunez demande bien de l’aide à l’Angleterre, mais en vain. Corresponden-
ce, Despatches, and other Papers of Viscount Castlereagh, Londres, 1853, vol.11, p.294.
Lettre du 11 septembre 1816.
8 – Dans la table ronde citée plus haut de l’ISSH, Jarrett regrettait notamment de ne pas
avoir abordé le déclin de l’Espagne, des empires néerlandais et portugais et l’hégémonie
croissante de l’Angleterre.
9 – Voir leurs contributions respective dans D. Armitage & S. Subrahmanyam (eds),The
Age of Revolutions in Global Context, 1760-1840, Palgrave Mcmillan, 2010. Pour
d’autres approches, Christophe Belaubre et al. (eds), Napoleon’s Atlantic. The Impact of
Napoleonic Empire in the Atlantic World , Leiden & Boston, 2010.
10 – Voir sa contribution Arms for Revolutions: Military Demobilization after the Napo-
leonic Wars and Latin American Independence in A. Forrest, K. Haggemann & M. Rowe,
War, Demobilization and Memory, Palgrave Mcmillan, 2016, p.100-117.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):111-130, jan./mar. 2016. 113


Annie Jourdan

idées voyagent au-delà des rives et des océans, mais aussi les hommes –
sans oublier les femmes et surtout pas les esclaves, les marchandises, les
institutions, voire les fusils, les canons ou les formes artistiques11. Lynn
Hunt parle à ce propos de ‘circulation’, terme qu’elle préfère à ‘transfert’
ou à ‘influence’12. D’autres préfèrent le terme de diffusion. Peu importe
au fond la dénomination, à condition que soit prise en compte la récep-
tion en terre étrangère et la transformation qui en résulte: l’effet ricochet,
proprement dit, qui peut rebondir jusqu’à la case départ13.

C’est pourtant à cause de l’histoire globale que les petits pays sont
plus que jamais négligés par l’historiographie. A force de survaloriser
les échanges et circulations d’un continent à l’autre, on ne distingue plus
très bien l’apport des nations lilliputiennes. A tort, me semble-t-il, car,
si elles perdent de leur influence à l’époque du congrès de Vienne ou
juste avant, les petites entités territoriales étaient non-négligeables au 18e
siècle. Elles jouaient un rôle primordial dans la géopolitique européenne
ou mondiale. On pense évidemment au Portugal et à la Hollande, deux su-
perpuissances maritimes, tombés progressivement en décadence; ou bien
au Danemark et à la Suède, possédant eux aussi des colonies et suscep-
tibles d’être spoliés ou de spolier des voisins affaiblis. On pourrait encore
penser aux républiques commerçantes et banquières de Genève, de Gênes
ou de Venise – qui vivent leurs derniers jours de gloire sous la Révolution
française. Parallèlement à ces états faussement lilliputiens, en raison de
leurs vastes activités transnationales tout au long des 17e et 18e siècles, le
continent européen comptait également des territoires, convoités ou ‘mal-
traités’ durant l’ère des révolutions et l’empire napoléonien. On pense ici
à la Belgique, à la Pologne, à l’Italie et aux petits états allemands. Or, le
Congrès de Vienne va grandement modifier cette géopolitique. Examiner
dans quel sens et sur quels continents pourrait enrichir l’histoire de ce
congrès, celle de ses responsables et de ses conséquences.

11 – BLAUFARB, Rafe. The Western Question: the Geopolitics of Latin American Inde-
pendence, American Historical Review, vol.112, n.3, p.742-763, 2007.
12 – Voir notamment L. Hunt, “The French Revolution in Global Context”, in Armitage
& Subrahmanyam, p.20-36.
13 – A cela s’ajoutent les effets papillon: petites causes, grandes conséquences.

114 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):111-130, jan./mar. 2016.


Le Congrès de Vienne et les petites nations: Quel rôle pour l’Angleterre?

Voyons de plus près le cas de la Hollande et du Portugal. Tous deux


sont de petits Etats, mais de grands empires. La Hollande s’est du reste
enrichie grâce aux pertes qu’elle a infligées au Portugal, tout au long du
17e siècle. Tous deux sont des alliés traditionnels de l’Angleterre et enne-
mis des Bourbons – que ce soit ceux de France ou ceux d’Espagne. Lors
du congrès de Vienne, le Portugal a pu imposer un plénipotentiaire qui
siège dans la commission des Huit, alors que la Hollande est représentée
par l’Angleterre, comme si, par son alliance – voire sa dépendance -, elle
était devenue quantité négligeable. Il est vrai qu’Angleterre et Hollande
étaient convenues des changements à venir avant même le congrès de
Vienne14. Ce n’était pas le cas du Portugal qui sera aussi peu impliqué
que ne le sera l’Espagne. Leur position stratégique en Europe semble
alors ne présenter plus aucun danger ni aucun avantage pour l’ordre à
venir15. Tous deux sont devenus des puissances de second ordre qui ont
dû faire appel à l’Angleterre pour résister à Napoléon. De fait, à Vienne,
les petits et moyens Etats se virent placés devant le fait accompli. Tout fut
décidé par les quatre grands: une fois encore donc l’Autriche, l’Angle-
terre, la Russie et la Prusse. A première vue, les changements concer-
naient avant tout l’Europe du Nord et de l’Est, plus l’Italie16. A première
vue, seulement, comme on le verra. En ce qui concerne les petites enti-
tés, les décisions furent donc prises unilatéralement: c’est ainsi que la

14 – Sur les relations anglo-hollandaises entre 1813-1816 – et la convention entre les deux
pays du 12 août 1814, voir les archives imprimées par H.T. Colenbrander, Gedenkstukken
der Algemeene Geschiedenis van Nederland, La Haye, 1914, volume 7. Sera abrégé GS,
7. Voir aussi The Annual Register or a View of the History, Politics an Literature for the
year 1815, Londres, 1816.
15 – Le seul traité ou la seule convention signé par l’Espagne avant le Congrès concernait
le pacte de famille auquel l’Angleterre lui demandait de renoncer. Lentz, p.58. Un autre
traité sera signé en 1817 par lequel l’Espagne renonçait à la traite au nord de l’Equateur
contre 400.000 livres sterling. Un accord similaire fut signé avec le Portugal contre
300.000 livres, plus les 700.000 livres de dettes que ce dernier devait à l’Angleterre. An-
toine D’Arjuzon, Castlereagh ou le défi à l’Europe de Napoléon, Paris, Tallandier, 1995,
p.423-424.
16 – Voir Recueil des traités et des conventions entre la France et les puissances alliées
en 1814 et 1815, suivi de l’acte du Congrès de Vienne, Paris, 1815. Et Congrès de Vienne:
acte principal et traités additionnels, édition complète collationnée sur les documents
officiels, Paris, 1847. Voir aussi Gaétan de Raxis de Flassan, Histoire du Congrès de Vien-
ne, par l’auteur de l’Histoire de la diplomatie française, Paris, 1849.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):111-130, jan./mar. 2016. 115


Annie Jourdan

république de Genève, annexée à la France en 1798, fut bon gré mal gré
réunie à la Suisse, et non pas restaurée; la république de Gênes fut attri-
buée au royaume du Piémont-Sardaigne, sans aucune concertation. Les
diplomates de Vienne estimaient que sa nouvelle constitution était trop
démocratique17. Gênes n’eut pas le temps de l’expérimenter, elle disparut
entièrement – tout comme la république de Venise qui fut remise entre
les mains de l’Autriche – ainsi qu’il en était allé après Campo Formio. A
l’exception de la confédération helvétique, l’heure des républiques était
décidément révolue sur le vieux continent, comme l’avait annoncé la poli-
tique napoléonienne18. De ce point de vue, les restaurations la poursuivent
comme elles poursuivent la simplification de la carte européenne. Puis,
il y eut les sanctions: la Saxe qui avait été l’enfant gâté de l’empereur
fut punie, au bénéfice de la Prusse19. Quant au Danemark, lui aussi allié
fidèle de Napoléon, il fut contraint de remettre la Norvège à sa rivale de
toujours: la Suède, laquelle avait perdu la Finlande, occupée par la Russie
qui souhaitait la conserver.

Quoiqu’alliés de toujours de l’Angleterre, Portugal et Hollande


durent donc mettre un frein à leurs ambitions et accepter ce qu’on leur
proposait. Il en alla de même de l’Espagne. Entre cette dernière et le
Portugal, il y avait du reste la pomme de discorde d’Olivença, que l’Es-
pagne refusait et refusera de restituer – malgré l’article 105 du traité de
Vienne qui insiste sur ce point20. En dépit de leur soutien aux alliés contre
la France Napoléonienne, les deux pays de la Péninsule ne furent pas
non plus récompensés. Bien au contraire, le traité de Vienne exige d’eux
qu’ils renoncent à la traite négrière. Ils sont contraints d’accepter l’abo-
lition, quitte à la mettre en place progressivement – d’ici huit ans, en
principe. Cette mesure, demandée par l’Angleterre aux puissances repré-
sentées au congrès, n’avait rien à voir avec les priorités géopolitiques
17 – TALLEYRAND, Charles-Maurice de. Mémoires et correspondances du prince de
Talleyrand, éd. E. de Waresquiel, Robert Laffont, 2007, p.558.
18 – TALLEYRAND, Charles-Maurice de. Mémoires et correspondances, p.450-455.
19 – A ce sujet, Correspondance inédite du prince de Talleyrand et du roi Louis XVIII
pendant le Congrès de Vienne, éd. G. Pallain, Paris, 1881. Et Talleyrand, Mémoires et
correspondances.
20 – Congrès de Vienne: acte principal et traités additionnels, p.40.

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Le Congrès de Vienne et les petites nations: Quel rôle pour l’Angleterre?

traitées à Vienne. La question qui se pose serait même de savoir ce qu’elle


venait faire dans un congrès destiné à rétablir l’équilibre européen et à en
régler les relations et les limites des Etats. Congrès composé, qui plus est,
de trois grandes puissances qui ne connaissaient ni traite ni esclavage.
Ce fut en tout cas la marque de fabrique spécifiquement britannique du
Congrès de Vienne21.

L’EUROPE EN 1815
En 1815, au moment où était créé le royaume uni du Portugal et du
Brésil, l’Europe continentale était en train d’achever ce fameux congrès,
qui sanctionnait la défaite de la France napoléonienne de 1814. Les dis-
cussions s’étaient amorcées au lendemain de la défaite de Leipzig, en
octobre 1813. Dès le mois suivant, la Hollande s’était soulevée contre
les Français et les avait chassés. Le prince d’Orange, réfugié à Londres,
était rentré en Hollande dès le mois de novembre, après avoir déjà discuté
avec les Anglais des agrandissements nationaux à venir. Le traité de Paris
du 30 mai 1814 avait annoncé les premières dispositions. A cette date,
l’Europe ne souhaitait pas humilier la France et lui faire regretter la chute
de Napoléon. Elle conservait ‘l’intégrité de ses limites’, telles qu’elles
étaient au 1er janvier 179222. Une fois la France avertie du sort qui lui
était impartie, venaient les autres points à régler: la Hollande se verrait
agrandie; les Etats d’Allemagne seraient indépendants et réunis par un
lien fédératif; la Suisse demeurerait indépendante; l’Italie serait compo-
sée d’Etats souverains – sauf au nord de la péninsule dont la Lombardie
et la Vénétie reviendraient à l’Autriche; l’île de Malte et ses dépendances
seraient remises entre les mains de l’Angleterre, laquelle revendiquait en-
core Tobago23, Sainte-Lucie, l’île de France et ses dépendances, Rodrigue

21 – BETHELL, Leslie. “The Independence of Brazil and the Abolition of the Brazilian
Slave Trade. Anglo-Brazilian Relations, 1822-1826”, Journal of Latin American Indepen-
dence, vol.1, no.2, p.115-147, 1969.
22 – Recueil des traités et conventions, p.6-26.
23 – Dans un traité antérieur, il avait été stipulé que Tobago serait rendu à la France, mais
Lord Liverpool s’y refuse, parce que la majorité des habitants serait d’origine anglaise.
GS, 7, p.622.

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Annie Jourdan

et les Seychelles24. La France cèderait à l’Espagne la partie de Saint-Do-


mingue qui lui avait été remise à la paix de Bâle, mais elle récupèrerait la
Guadeloupe, prise par la Suède en 1813, et la Guyane que lui avait entre-
temps subtilisée le Portugal. Les autres articles concernent les rembourse-
ments ou indemnités à effectuer ou non25; le sort des étrangers demeurant
en France ou des Français à l’étranger; la libre circulation sur les fleuves,
et, last but not least, l’abolition de la traite des noirs. Rien n’est donc
définitivement établi quant à la reconfiguration de l’Europe. L’Angleterre
a bien prévu que la Hollande acquière la Belgique, mais l’Autriche doit
encore y consentir. Le traité de Paris concerne avant tout la France et
les sacrifices tout à fait raisonnables qu’on lui impose. On remarquera
toutefois que, dès lors, l’Angleterre prend l’initiative de conserver ou de
redistribuer à son gré les colonies des uns et des autres. Entre-temps, la
Prusse et la Russie sont occupées à discuter de leurs gains à venir: l’une
se voit en Saxe et l’autre en Pologne. Au grand dam de l’Angleterre, de la
France et de l’Autriche qui font alliance le 3 février 1815 dans le but de
freiner l’appétit des deux autres puissances. Ce n’avait pourtant pas été
simple, car Castlereagh, l’envoyé britannique, aurait bien voulu avanta-
ger la Prusse et la rendre limitrophe de la France – au Luxembourg et à
Mayence – ce que refuse absolument Louis XVIII26. Les trois puissances
alliées par ailleurs sont d’accord pour ne pas céder toute la Pologne au
tsar Alexandre, dont les prétentions les effraient. Elles sont moins d’ac-
cord en revanche sur la Saxe que l’Angleterre aurait donc voulu attribuer
entièrement à la Prusse. Talleyrand réussit à convaincre l’Autriche de s’y
opposer, de sorte à maintenir le fameux “équilibre réel et durable”, auquel
les puissances disent œuvrer. De fait, l’Angleterre est avant tout obsédée
par la France. Il s’agit de l’affaiblir de sorte à ce qu’elle ne cause plus
d’inquiétudes en Europe et dans ses empires. De là la sollicitude britan-
24 – Voir Recueil des traités et des conventions, p.12. Article 8 du traité de Paris du 30 mai
1814.
25 – En 1814, les alliés n’exigent aucune indemnité de guerre. Il en ira différemment
en 1815 où 700.000 millions d’indemnités seront demandés de même que l’entretien de
150.000 troupes d’occupation.
26 – C’est le grand duc de Hesse qui obtient Mayence dans le ci-devant département de
Mont-Tonnerre. Congrès de Vienne, article 47, p.25. Mémoires et correspondances de
Talleyrand, p.645-652. Lettre du 15 février 1815.

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Le Congrès de Vienne et les petites nations: Quel rôle pour l’Angleterre?

nique envers la Prusse. Si l’on en croit Talleyrand, l’Angleterre ne suivait


aucun principe, sinon “son intérêt qui est la prépondérance maritime et le
commerce du monde”27. C’est perceptible selon lui dans sa tentative d’iso-
ler de la France toutes les puissances maritimes, de renforcer la Prusse par
la Saxe, la Hollande par les ci-devant Pays-Bas autrichiens, le Hanovre
et la Prusse. Le port d’Anvers étant le symbole même de la configura-
tion nouvelle est remis à la Hollande avec pour condition expresse qu’il
demeure un port de commerce – on se doute que les marchands hollan-
dais ne voyaient pas ces acquisitions d’un si bon œil. Anvers allait leur
faire concurrence28. Castlereagh exige enfin que soit supprimé le pacte de
famille entre la France et l’Espagne29. Ultime isolement!

LE CONGRÈS OU LA RECONFIGURATION DE L’EUROPE


Contrairement à l’Angleterre, les trois autres grandes puissances
étaient plus soucieuses de s’agrandir ou de retrouver des territoires cédés
lors de traités antérieurs que de concevoir des alliances dirigées exclu-
sivement contre le ci-devant empire napoléonien. L’entreprise n’est pas
facile. Car chacune risque de constituer une menace pour son ou ses
voisins. Si la Prusse dépasse ses limites, elle empiète sur l’empire des
Habsbourg et sur le nouveau royaume des Pays-Bas; si la Russie ab-
sorbe la Pologne tout entière, elle constitue un danger pour la Prusse et
l’Autriche. Celle-ci, plutôt conciliante, récupère ses Etats de l’Italie du
nord, conserve les Etats de Venise et s’installe en Illyrie et en Galicie.
Mais pour que l’équilibre soit réel et durable, il importe de contreba-
lancer sa puissance par des Etats de second ordre, tels que le royaume
de Piémont-Sardaigne, qui reçoit donc en supplément la république de
Gênes. Est également restauré le royaume des deux Siciles – promis en
1814 à Murat, qui le perd à la suite des Cent-Jours. C’est l’héritier légi-
time, Ferdinand IV, qui l’obtient, ainsi que le souhaitait la France des
27 – TALLEYRAND, Charles-Maurice de. Mémoires et correspondances de Talleyrand,
p.525.
28 – GS, 7, p.309, Lettre de Brockhausen à Frédéric Guillaume III. Voir aussi GS, vol.8,
p.500. En 1816, Binder constate un vif mécontentement au nord comme au sud des Pays-
-Bas. Seul le roi croirait encore à l’union du royaume.
29 – LENTZ, Thierry. p.58.

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Bourbons30. Le pape récupère ses légations et les grands ducs autrichiens


leurs principautés italiennes. Marie-Louise d’Autriche obtient le duché de
Parme – qui à sa mort reviendra aux infants d’Espagne. Grâce aux efforts
de Talleyrand, la Saxe se perpétue et conserve 1.500.000 habitants. La
Prusse s’accroît seulement de 780.000 Saxons31. Renonçant au Luxem-
bourg et à Mayence, elle obtint la rive gauche du Rhin et les territoires
allemands du prince d’Orange: les principautés de Nassau et le pays de
Fulda. Au total, elle compte désormais 10,4 millions d’habitants, sur un
territoire éclaté – et non compact, comme il l’aurait été si elle avait obtenu
la Saxe tout entière32. Mais, et c’est moins connu, le Hanovre lui aussi en
profite pour arrondir ses frontières. Il s’étend alors de la Frise orientale
à Göttingen sans oublier les villes hanséatiques, tandis que l’Angleterre
revendique également Helgoland – soustrait donc au Danemark qui reçoit
en échange le duché de Holstein et celui de Lauenbourg33. Le Hanovre
devient un royaume avec pour souverain George III. Le problème de la
Pologne est résolu après bien des querelles et le pays partagé pour la 4e
fois entre la Russie – qui obtient le duché de Varsovie créé par Napoléon
– l’Autriche (Galicie) et la Prusse (Posnanie). La Prusse reçoit donc éga-
lement une partie de la Saxe qui prend le nom de duché de Saxe. Reste
encore à équilibrer les acquisitions de l’Autriche et celles de Bavière, qui
se disputent la souveraineté de Salzbourg34. Il est prévu enfin que soit
créée une confédération germanique à laquelle participent tous les Etats
de langue allemande. Y seraient inclus le grand-duché du Luxembourg
(Hollande) et celui de Holstein (Danemark). La présidence de la diète
fédérative revient à l’Autriche. La confédération helvétique, qui s’accroit
de trois cantons (Valais, Genève, Neufchâtel) conserve sa neutralité et ses
constitutions. En 1815, Genève acquiert la Savoie, remise par le roi de
Sardaigne, et la route du Simplon. Tous deux étaient devenus français – la

30 – TALLEYRAND, Charles-Maurice de. Mémoires et correspondances, p. 645-652.


31 – LENTZ, Thierry. p.186-192. Talleyrand, Mémoires et correspondances, p.635-643.
32 – Ce qui affaiblit les arguments de ceux qui disent que le Congrès de Vienne a créé les
conditions pour que s’accroisse démesurément la Prusse. Si l’on avait suivi Castlereagh,
la Prusse aurait formé une masse compacte et puissante dès 1815.
33 – Congrès de Vienne: acte principal et traités additionnels, p.17-18.
34 – TALLEYRAND, Charles-Maurice de. Mémoires et correspondances, p.662.

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Le Congrès de Vienne et les petites nations: Quel rôle pour l’Angleterre?

Savoie avait été annexée sous la Révolution et la route du Simplon, créée


par Napoléon. L’Italie tout entière est redécoupée. Le royaume d’Italie
disparaît et le rêve d’unité italienne est anéanti. Les derniers articles sont
consacrés à l’Espagne et au Portugal et aux territoires qu’ils doivent res-
tituer – dont j’ai parlé plus haut.

A voir ces cessions et échanges, il est évident que tous les pays ne
sont pas gagnants et qu’il y a des perdants. Curieusement parmi ces der-
niers se trouve le pape, qui ne retrouve ni Avignon, ni le Comtat Venais-
sin35. Il y a la France ensuite, qui perd donc la Savoie mais surtout toutes
les conquêtes faites à partir du 1er janvier 1792, avant de perdre fin 1815
ce qu’elle avait acquis en 179136. Il y a la Saxe, sanctionnée parce que,
dira un diplomate, “sa montre retardait d’un quart d’heure”. Le Dane-
mark également; mais encore les républiques anciennes37. Et surtout tous
les pays qui sont comptés pour rien, tels que la Pologne, la Belgique, la
Rhénanie et l’Italie. En 1816, l’ex-président des Etats-Unis, Thomas Jef-
ferson comparera ce transfert de populations à celui du bétail sur les pâtu-
rages38. Pis. Ne voilà –t-il pas que l’Espagne propose d’échanger Buenos
Aires contre le Portugal? Sans aucun succès, on s’en doute.

Le congrès de Vienne s’est fait au nom du principe de légitimité et


de l’équilibre durable39. Il a pour but le maintien de la sûreté intérieure
et extérieure des Etats et celui de leur indépendance. Mais très vite, ce

35 – Il perd même une partie de Ferrare. Lentz, p. 240-246.


36 – Curieusement, on ne redemande pas à la France le Comtat Venaissin et Avignon.
Pour le reste, les pertes sont modestes et se trouvent au nord et à l’est du pays: duché
de Bouillon, une fraction des Ardennes et le pays de Saarbruck jusqu’à Landau. Plus
importantes sont les pertes des colonies: Saint-Domingue notamment est perdu à jamais,
et d’autant que l’Angleterre fait tout son possible pour que Louis XVIII n’entreprenne
pas sa reconquête – ce qui anéantirait le précieux commerce que les Britanniques ont
entre-temps entrepris avec Haïti. Voir le rapport de James Stephen du 8 septembre 1818 à
Castlereagh sur les avantages de conserver Haïti tel quel, Correspondence of Castlereagh,
vol.12, p. 2-34.
37 – Mémoires et correspondances de Talleyrand, p. 449-453.
38 – Correspondence of Castlereagh, vol.11, p.331. Lettre de Jefferson à Madame de
Staël.
39 – LENTZ, Thierry. p.45-62. TALLEYRAND, Charles-Maurice de. Mémoires et cor-
respondances, p.525.

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que les alliés appellent les ‘convenances’ sont venus s’y ajouter. Or, les
convenances sont peu souvent fondées sur le principe de légitimité, mais
sur les intérêts particuliers des parties impliquées. La restitution d’Avi-
gnon au pape par exemple aurait été légitime, puisque la papauté l’avait
légitimement acquis aux 13e – 14e siècles. La destruction des républiques
anciennes n’était pas non plus pleinement accordée avec le fameux prin-
cipe de légitimité. Ce principe, que défend Talleyrand pour sauver la
Saxe, est en vérité une tactique plus qu’une réalité. Elle permet aussi à la
France de contester la souveraineté de Murat sur le trône des Bourbons
de Sicile40. Le traité du 9 juin 1815 qui clôt le congrès de Vienne n’est pas
non plus exhaustif. C’est qu’outre les discussions entre les quatre ou cinq
grandes puissances, des conventions particulières ont été signées entre les
Etats. Faute de connaître ces conventions, on risque d’ignorer des déci-
sions non moins importantes pour la reconfiguration mondiale et, partant,
pour la suite des événements.

L’ANGLETERRE À L’ŒUVRE
Des accords se sont donc faits et se feront ultérieurement, en dehors
du congrès, qui concernent notamment les colonies européennes. Or, dans
ce domaine-là, l’Angleterre agit selon son bon vouloir. Les cessions n’ont
pas toutes fait l’objet d’articles mentionnés dans le traité du 9 juin 1815,
ni dans celui du 20 novembre suivant. On sait certes que la Hollande a
dû céder le Cap de Bonne Espérance; l’Espagne Trinidad, et la France
Tobago et Sainte-Lucie. La Guadeloupe a été rendue à la France, mais
la Suède devait recevoir une compensation que l’Angleterre cherchait
dans les colonies néerlandaises41. Et c’est là que le bât blesse. Guillaume
Ier, roi des Pays-Bas réunis, voulait bien céder Curaçao, Saint Eustache,
Saba ou la partie néerlandaise de Saint Martin. Mais Castlereagh préférait
les trois îles de la Guyane hollandaise: Berbice, Démérara et Essequibo,
jugées par les Hollandais comme ce qu’ils avaient de plus précieux en
Amérique. Eux ne voulaient pas les perdre. L’ex-ministre Roëll fulminait
40 – C’est Talleyrand qui défend le principe de légitimité. Voir Mémoires et correspon-
dances, p. 427. Voir aussi LENTZ, Thierry. p.247-268.
41 – Correspondence of Castlereagh, vol. 11, p. 142-146 et p.167-168.

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Le Congrès de Vienne et les petites nations: Quel rôle pour l’Angleterre?

ainsi que l’on contraigne la Hollande à céder des terres vierges, parce
que celles de Jamaïque et de Barbade étaient épuisées. Il affirmait que,
si Guillaume Ier les avait conservées, les peuples n’iraient pas chercher
leur sucre et leur café en Angleterre, mais dans les ports néerlandais. La
Hollande redeviendrait alors ce qu’elle avait été au 17e siècle: le grenier
de l’Europe42. Mais plus le temps passe, et plus Castlereagh est persuadé
qu’il serait dommage de céder ces îles précieuses à la Suède ou de les
restituer à la Hollande, et qu’il vaut mieux tout simplement les garder. Le
Parlement et les pétitions des marchands britanniques l’ont convaincu de
l’intérêt pour la Grande-Bretagne de conserver ces conquêtes. Conclu-
sion: elles ne furent jamais restituées à la Hollande et ne servirent pas non
plus de compensation à la Suède43. Ce qui n’empêche pas l’Angleterre
d’insister pour que le Portugal remette la Guyane française à son proprié-
taire légitime. Le royaume des Pays-Bas doit également lui céder Ceylan,
puis Cochin et ses dépendances sur la côte de Malabar en échange de l’île
de Banca44; ensuite le district de Bernagore, près de Calcutta et les régions
au nord de Singapour (future Malaisie)45. Les raisons de ces revendica-
tions de territoires diffèrent selon les circonstances. Parfois, Castlereagh
invoque le fait que ces colonies sont anglicisées et que ses compatriotes y
ont investi de vastes capitaux. D’autres fois, il affirme qu’elles ne sont pas
d’une grande valeur commerciale pour les Hollandais et qu’ils y perdront
peu. Ailleurs, il note néanmoins que leur production de coton est indis-
pensable aux activités britanniques et qu’il faut agir ‘dans l’intérêt de
nos manufactures’46. Les marchands eux sont plus loquaces. La Guyane

42 – GS, 7, p.855.
43 – La Suède dut se contenter d’un subside de 1 million de livres. La Hollande aurait dû
être compensée de ses sacrifices par des subsides britanniques à consacrer dans les forti-
fications qui sépareraient la Belgique de la France, mais il ne semble pas que les 2 ou 3
millions promis aient été remis. GS, 7, p. 609.
44 – GS, 7 p.167-168. Voir aussi Correspondence of Castlereagh, vol. 12, p.137: Falck,
ministre hollandais des Colonies, demande à Clancarty, ministre britannique à La Haye,
pourquoi on ne leur a pas remis l’île de Billeton qui serait une dépendance de Banca et
aurait dû être comprise dans l’échange de cette dernière.
45 – GS, 7, p.LV-LVIII et p.16-18; p.622 et p. 855.
46 – Ailleurs, le gouvernement anglais dit que les îles Maurice et Bourbon ne peuvent être
restituées à la France, car entre des mains ennemies, elles lui seraient nuisibles. GS, 7,
p.16-18.

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hollandaise et Surinam, disent-ils, rapportent 20 millions de livres ster-


ling et produisent plus de sucre, de café, de coton et de cacao que toutes
les colonies britanniques dans les Indes occidentales, à l’exception de
la Jamaïque – sans parler des revenus issus des droits de douanes47. Dès
janvier 1814, le premier ministre, Lord Liverpool distingue bien les colo-
nies néerlandaises des Indes orientales, “qui sont des facteurs de force
et d’empire” de celles des Indes occidentales, “qui elles sont strictement
commerciales”48. Et il est conscient qu’il devra concilier les revendica-
tions des marchands britanniques avec l’opinion publique néerlandaise.
C’est qu’il faut, ajoute-t-il, que l’opinion soit avec nous, et avec le prince
d’Orange. De là l’idée que des restitutions s’imposent, mais que d’autres
seront remises à plus tard. On remarquera ici une autre spécificité du gou-
vernement anglais: la prise en considération de l’opinion publique et du
parlement, ce qui motive et renforce à la fois l’action du gouvernement.
Aucune puissance européenne ne lui fait concurrence sur ce point. Partout
ailleurs, la politique est du domaine du secret – l’abbé Pradt, diplomate de
Napoléon, dira que sur le vieux continent “c’est une science occulte”49.
Pour faire patienter la Hollande, l’Angleterre lui permet du reste de réta-
blir des relations commerciales avec ses anciennes colonies aux mêmes
conditions que celles dont jouissent les Britanniques, à condition que les
marchands hollandais prennent des licences50. Licences qui impliquent un
contrôle des destinations et des propriétaires – hollandais exclusivement.
L’idée générale du cabinet londonien est de limiter le pouvoir maritime
de la France par un établissement efficace de la Hollande, de la Pénin-
sule et de l’Italie. Ses propres conquêtes seront utilisées pour promouvoir
l’intérêt général et se protéger de la France51. D’autres textes, néanmoins,

47 – Voir GS, 7, p.LVIII-LXI et p.142-146.


48 – GS, 7, p.31-32.
49 – PRADT, Dominique Dufour de. L’Europe après le congrès d’Aix-la-Chapelle, fai-
sant suite au Congrès de Vienne, Paris, 1819, p. xj. Stratégie qui ne pouvait que stimuler
le crédit. Inversement, l’Espagne ne parvenait pas à trouver de l’argent, car “le crédit est
l’ennemi de l’arbitraire”. Pradt, Des trois derniers mois en Amérique, p.71.
50 – Licences vraisemblablement payantes, évidemment, comme l’étaient celles qui
avaient cours durant l’empire napoléonien. GS, 7, p.30-31. Voir la convention du 12 août
1815 entre l’Angleterre et les Pays-Bas dans Annual Register, 1815, p.403-407.
51 – Mémoire du 26 décembre 1813. GS, 7, p.16-17.

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Le Congrès de Vienne et les petites nations: Quel rôle pour l’Angleterre?

montrent bien que ce qui importe avant tout, c’est la protection de l’em-
pire britannique et son enrichissement. Le système progressivement mis
en œuvre en témoigne: du nord au sud et de l’est à l’ouest, elle a acquis
des points stratégiques qui protègent la Méditerranée, l’océan indien et la
route vers l’Inde. D’Helgoland au Cap en passant par Gibraltar, Malte et
les îles ioniennes, sans oublier les îles Maurice et Rodrigue dans l’océan
indien, elle devient le gendarme – ou le despote – des mers. A l’ouest,
elle conserve la prééminence en raison même de l’affaiblissement de ses
anciennes rivales et de la force de la Royal Navy. Elle acquiert des places,
ports, comptoirs ou colonies dans les Antilles qui lui permettent de pro-
téger son commerce et de l’augmenter en Amérique du sud. Le traité de
1810 avec le Brésil privilégiait déjà la Grande-Bretagne en lui accordant
des réductions de taxes sur ses exportations – sans que pour autant la
réciproque soit vraie. Le sucre et le tabac brésilien n’étaient pas admis en
Angleterre de sorte à ne pas nuire aux intérêts des colonies britanniques
des Indes occidentales52. Le Portugal tenta bien d’y mettre fin en 1815,
mais en vain53. Dans les Indes orientales, la puissance britannique s’af-
fermit au rythme des défaillances de ses anciennes rivales. La France a
quasiment tout perdu dans l’hémisphère asiatique, excepté trois ou quatre
comptoirs; la Hollande a cédé des lieux stratégiques tels que Singapour
et une douzaine d’îles, et ne conserve plus que Java et les Moluques. Le
Portugal n’y possède quasiment plus rien et le Danemark pas grand-chose
– quelques comptoirs seulement. Ce rapide aperçu semble donner raison
à l’abbé Pradt qui, dans ses écrits de 1817-1819, met en garde contre
l’évolution à venir et souligne les erreurs du congrès de Vienne, lequel
aurait créé deux colosses: la Russie et, surtout, l’Angleterre. Laissons lui
la parole:

“Placée entre Héligoland et Jersey, l’Angleterre domine l’Elbe et le


Weser, surveille le Sund, intimide la Suède, effraie le Danemark, pèse

52 – BETHELL, Leslie, The Independence of Brazil and the Abolition of the Brazilian
Slave Trade. Anglo-Brazilian Relations 1822-1826, article cité. WADDELL, David Alan
Gilmour. British Neutrality and Spanish-American Independence: the Problem of Foreign
Enlistment, Journal of Latin American Studies, vol.19, no.1, p.1-18, 1987.
53 – L’Angleterre lui faisait du chantage à ce propos. Voir BETHELL, Leslie, article cité.

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sur les côtes de Hollande et de France, et voit passer … depuis Plymouth


jusqu’aux Dunes les bâtiments des divers peuples de l’Europe. A Gibral-
tar, elle tient les clés de la Méditerranée, à Malte, elle en occupe le centre;
à Corfou, elle a un œil sur l’Adriatique et l’autre sur la Grèce; au Cap de
Bonne Espérance et à l’île de France, elle tient les routes de l’Inde. Au
Malabar, à Ceylan, à la côte de Coromandel, elle enserre pour ainsi dire
l’Asie; à St. Hélène, elle est placée entre les mers d’Afrique et d’Amé-
rique; par la Nouvelle Hollande [Australie], elle deviendra, quand elle le
voudra, maîtresse de la mer du Sud; à la Trinité, elle a un pied sur le conti-
nent espagnol; par Antigoa et la Barbade, elle surveille la Havane et Por-
to-Rico. Enfin par l’occupation du Canada et de Terre Neuve, elle ferme
la longue chaîne des postes qu’elle a formés autour du globe pour le sou-
mettre à son commerce et à sa domination”54. Et l’abbé Pradt d’espérer
que l’Amérique du Sud devienne indépendante, car elle seule pourra sau-
ver le monde de cette domination. Seule l’Amérique, conclut-il, pourra
un jour affranchir les mers55. Car, ce que le congrès de Vienne n’a pas
vraiment abordé, on s’en souvient, c’est le problème de la liberté mari-
time et le droit de la mer – où régnait encore et toujours le droit du plus
fort. Pradt rêvait donc de cette indépendance, mais craignait par ailleurs
que l’Angleterre ait eu le temps d’imposer son commerce et d’accoutu-
mer les Sud-Américains à ses produits, si bien que leur continent risquait
de s’angliciser et de devenir à son tour une colonie anglaise56.

Le Congrès de Vienne a de fait avantagé l’Angleterre plus qu’on ne


l’a dit. Non seulement il n’est pas intervenu à propos de la liberté des
mers, mais il ne s’est pas non plus préoccupé des acquisitions coloniales
britanniques. Qui plus est, il n’a rien fait pour l’Espagne et le Portugal,
54 – Pradt cité par Fauchat, Observations sur les ouvrages de M. de Pradt intitulé “Des
colonies et de la révolution actuelle de l’Amérique” et “Des trois derniers mois de
l’Amérique méridionale”, Paris, 1817. Voir aussi Lettres à M. l’abbé de Pradt par un
indigène de l’Amérique du Sud, Paris, 1818 et Considérations importantes sur l’abolition
générale de la traite des nègres adressées aux négociateurs des puissances, par un Portu-
gais, Paris, 1814.
55 – PRADT, Dominique Dufour de. L’Europe après le congrès d’Aix-la-Chapelle, p.179
et p.224.
56 – PRADT, Dominique Dufour de. L’Europe après le congrès d’Aix-la-Chapelle,
p.148-151. Le Portugal serait devenu “une province du Brésil et une ‘factoterie’ anglaise”.

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Le Congrès de Vienne et les petites nations: Quel rôle pour l’Angleterre?

tous deux fort affaiblis par la période napoléonienne. Dans ses écrits sur
l’Amérique de 1817, Pradt en vient à conclure que le Portugal n’est plus
qu’une colonie du Brésil – puisque le gouvernement y réside. Les rôles y
sont pour ainsi dire ‘intervertis’. Quant à l’Espagne, elle n’a plus aucune
force et perdra sous peu ses colonies57. Personne ne consentit à intervenir
à ses côtés, surtout pas l’Angleterre, qui disait mener une politique de
neutralité58. En Europe même, l’alliance entre la Hollande et l’Angleterre
rend la première tellement dépendante de la seconde que des Russes en
viennent à la baptiser “le préfet de l’Angleterre”59, tandis que la réunion
avec la Belgique détourne l’attention du gouvernement néerlandais de
son empire colonial. Ici réside une autre pomme de discorde: entre les
Hollandais qui auraient privilégié la restauration de toutes leurs colonies
au détriment d’une réunion avec la Belgique, vue comme contre-nature et
le roi Guillaume qui se flattait à l’inverse d’être le souverain d’un grand
Royaume des Pays-Bas60. L’Angleterre savait très bien où elle voulait en
venir quand elle fit attribuer la Belgique à la Hollande. Elle faisait d’une
pierre deux coups: protéger les frontières nord et Anvers contre d’éven-
tuelles interventions françaises et, en échange de ses bons services, obte-
nir des gains coloniaux de la part du roi des Pays-Bas. D’une confiscation
ou cession à l’autre, elle parvint à étendre son empire de telle sorte qu’elle
accrut sa suprématie sur les mers, tout en constituant un royaume sur le
continent qui devint le quatrième plus grand Etat de l’Allemagne, et en
conservant le Royaume Uni – Irlande incluse. Pradt n’avait pas tort de
craindre ce nouveau colosse.

57 – Pradt, Des trois mois derniers mois de l’Amérique méridionale et du Brésil, Paris,
1817, p.40-46. Voir aussi PRADT, Dominique Dufour de. Des colonies et de la révolution
actuelle de l’Amérique, Paris, 1817.
58 – Voir les articles de BETHELL, Leslie et de WADDELL, David Alan Gilmour. de
même que la correspondance de Castlereagh cités plus haut.
59 – GS, 8, p.637.
60 – GS, 8, p.500.

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Annie Jourdan

CONCLUSION: UN CONGRÈS FAVORABLE À L’EXPANSION


BRITANNIQUE!
Pour conclure, le Congrès de Vienne a réuni avant tout des Etats et
a supprimé les petites entités indépendantes61. Il a simplifié le continent,
au détriment des populations qui n’ont pas eu leur mot à dire sur ces réu-
nions: Belges, Italiens, Genevois, Rhénans, Polonais, Saxons, et last but
not least, les peuples des colonies européennes captées par l’Angleterre.
L’affaiblissement de l’Espagne et du Portugal, causé par les guerres napo-
léoniennes a donc eu des retombées jusqu’en Amérique, où les colonies
sont tour à tour entrées en révolution – avec une différence de poids par
rapport aux révolutions qui précédaient: ce furent des ‘insurrections mili-
taires’ 62 – Premier Empire oblige! On remarquera avant tout que l’An-
gleterre n’est pas intervenue pour freiner ces mouvements indépendan-
tistes – contrairement à ce qu’elle avait fait à l’époque de la Révolution
française, ou bien, en Martinique et Guadeloupe, lors des soulèvements
bonapartistes de 181563. En vérité, depuis 1810, et comme l’ont bien vu
les historiens d’Amérique latine, elle aspirait à prendre la place de l’Es-
pagne et du Portugal sur le continent outre-Atlantique, et ce, d’autant
plus que les Etats-Unis étaient en train de devenir une puissance maritime
et commerciale, et, partant, une rivale de poids. En 1818, la république
des Etats-Unis comptait déjà neuf millions d’habitants contre les deux
millions et demi de l’époque de l’Indépendance64. Cela promettait des

61 – Sur les quelque 300 Etats et principautés, électorats, etc.. que comptait l’Allemagne,
il n’en reste plus qu’une soixantaine durant le Premier Empire, et 39 après le congrès de
Vienne. En ce sens, les restaurations poursuivent la politique napoléonienne de rationali-
sation territoriale et administrative.
62 – C’est Pasquier qui le constate. Mais Capefigue évoque lui aussi l’emprise des mi-
litaires sur les révoltes européennes – et américaines. Les années 1820 sont à ses yeux
beaucoup plus violentes et plus fanatiques que les révolutions de 1830. Le carbonarisme
triomphe. Mémoires du Chancelier Pasquier. Histoire de mon temps, Paris, 1893-1895,
vol.4, p.513-515 et CAPEFIGUE Jean-Baptiste. Le congrès de Vienne, p.153.
63 – Annual Register for the year 1815, p.128. En juin 1815, les Anglais envoient des
troupes de Ste-Lucie pour réprimer la ‘révolution’ de Martinique et de Guadeloupe en
faveur de Napoléon. Le commandant Fromentin et le général Royer y auraient participé.
Les révoltés amorcent ensuite une guérilla contre les postes britanniques.
64 – Observations sur les ouvrages de M. de Pradt, p.8 et Pradt, Des trois derniers mois
en Amérique et au Brésil.

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Le Congrès de Vienne et les petites nations: Quel rôle pour l’Angleterre?

rivalités futures. La guerre anglo-américaine de 1812-1815 et la doctrine


dite de Monroe de décembre 1823 en sont des manifestations flagrantes65.

Ainsi, si le droit public a commencé à fonctionner sur le continent


européen; si les guerres interétatiques ont été évitées pendant de longues
années; si l’ordre et la paix ont régné entre les Etats – mais non à l’inté-
rieur des Etats, secoués par des révolutions dès les années 182066; si la
liberté de circulation sur les fleuves a été mise en place; etc. rien n’a
été réglé en ce qui concerne l’ordre international dans le sens large du
terme – et dont participe la liberté des mers. Aucun congrès colonial ne
vit le jour– ainsi que le souhaitait Pradt, devenu conscient dès 1817 que
désormais “tout est lié, tout est entrelacé”67. Le congrès fit preuve d’euro-
centrisme, en se focalisant exclusivement sur le continent, ce qui montre
bien qu’il ne pensait qu’aux intérêts des quatre grandes puissances eu-
ropéennes. En fin de compte, dans toute cette affaire, les gros perdants
parmi les vainqueurs de Napoléon furent la Hollande qui dut abandonner
la Belgique en 1830, et qui l’avait pour ainsi dire échangée contre de pré-
cieuses colonies68 qu’elle ne retrouverait plus; et l’Espagne et le Portugal
qui furent incapables de conserver leurs territoires d’outre-Atlantique et
à qui le Congrès de Vienne n’avait fait aucun cadeau. Leur alliée par
excellence des années napoléoniennes les laissa tout simplement tomber,
quand elle comprit que c’était là son intérêt69. De tout cela la période
65 – En bref, la doctrine Monroe interdisait à l’Europe de poursuivre la colonisation des
Amériques et d’intervenir sur le continent américain. En contrepartie, les Etats-Unis
n’interviendraient pas dans les affaires européennes. Ce qui laissa le champ libre aux
Etats-Unis pour poursuivre la conquête de l’Ouest et du Sud. L’acquisition des Florides
date de 1819.
66 – Voir notamment Correspondence of Castlereagh, vol.12, p.301: lettre de Charles
Bagot à Castlereagh sur les sociétés secrètes espagnoles qui auraient des agents un peu
partout en Europe et dont le but serait d’y créer des républiques. Voir aussi p.443, sur les
révolutions qui se répandent partout en Europe et aux Amériques dans le même but: répu-
blicaniser et démocratiser. Selon Castlereagh, la source de ce torrent serait la Grèce.
67 – PRADT, Dominique Dufour de. Des trois derniers mois en Amérique, p.94.
68 – GS, 8, p.500. Binder constate ainsi que les Hollandais ont perdu 50% de leurs colo-
nies pour avoir la Belgique et que l’union s’avère être un échec.
69 – La Russie aurait voulu entreprendre une reconquête des colonies sud-américaines
au profit de l’Espagne, mais l’initiative fut condamnée par l’Angleterre, et rendue con-
testable par la doctrine Monroe de 1823. Qui plus est, la révolution grecque de 1821 et
celle d’Italie modifient ses priorités. WEBSTER, Charles K., Castlereagh and the Spanish

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Annie Jourdan

napoléonienne et le blocus continental sont en première instance respon-


sables – puisque, en affaiblissant la Péninsule et en excluant le commerce
anglais du continent, ce sont eux qui lui ont ouvert de nouveaux horizons,
bien plus vastes et plus riches que ne l’était le vieux monde. C’est là la
véritable défaite de Napoléon et l’ultime victoire de la Perfide Albion.

Colonies II, 1818-1822. The English Historical Review, vol.30, no.120, p.631-645, 1915.

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Em torno de 1815: Dimensões da política e da religião no império português

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EM TORNO DE 1815: DIMENSÕES DA POLÍTICA


E DA RELIGIÃO NO IMPÉRIO PORTUGUÊS
ABOUT 1815: THE DIMENSIONS OF POLITICS AND RELIGION
IN THE PORTUGUESE EMPIRE
Guilherme Pereira das Neves1

Resumo: Abstract:
Embora poucas dúvidas ainda permaneçam Although few doubts remain about the role that
quanto ao papel que a religião continuava a de- religion continued to play in the Portuguese
sempenhar no mundo português de 1815, se não world of 1815, if there is no dearth of important
faltam estudos importantes sobre a ideia de im- studies on the idea of empire, too little attention
pério, atenção pequena demais foi dispensada à was spared for the word itself, which seemed to
palavra em si, que parecia encontrar-se na boca be found on the tongues of everyone in that con-
de todos naquela conjuntura, mostrando-se ca- text, where it could bear more than one mean-
paz de carregar consigo mais de um significado. ing. An example of this can be seen in the pref-
Exemplo disso pode ser verificado no prefácio ace that bishop Azeredo Coutinho penned for a
que o bispo Azeredo Coutinho escreveu para new edition of his Essay a few years earlier and
uma nova edição de seu Ensaio alguns anos an- in other texts. Since a complete and satisfac-
tes e em outros textos. Mostrando-se inviável, tory treatment of the matter is not feasible here,
porém, uma apresentação completa e satisfató- this article merely seeks to highlight how much
ria do assunto aqui, este artigo pretende destacar memories of the past haunted the term as well
apenas o quanto lembranças do passado assom- as to suggest what was at play when it ended up
bravam a expressão e igualmente sugerir o que being chosen to designate a new political entity,
estava em jogo quando ela acabou escolhida as occurred in 1822.
para designar uma nova unidade política, como
ocorreu em 1822.
Palavras-chave: Império; Sacro Império Ro- Keywords: Empire; Holy Roman Empire of the
mano da Nação Alemã; Império português; Rei- German Nation; Portuguese Empire; United
no Unido. Kingdom.

José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1742-1821), “bispo


em outro tempo de Pernambuco, depois eleito de Bragança e Miranda”,
posteriormente, em 1806, bispo de Elvas, último inquisidor-mor e de-
putado pelo Rio de Janeiro às Cortes de 1821, nasceu em Campos dos
Goitacazes, onde se localizavam os negócios da família, que, em 1775,
abandonou para matricular-se na Universidade de Coimbra reformada,
da qual saiu licenciado em cânones. Com 68 anos, no início de 1811,
Azeredo assinava o “Prefácio” da segunda edição portuguesa, “corrigida
e acrescentada” pelo autor, do escrito seu que maior sucesso alcançou:
1 – Doutor em História. Professor do Departamento de História da UFF. Pesquisador do
CNPq. Sócio honorário do IHGB.

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Guilherme Pereira das Neves

Ensaio econômico sobre o comércio de Portugal e suas colônias. A edi-


ção anterior do Ensaio saíra em 1794, patrocinada, como a nova, pela
Academia Real das Ciências de Lisboa, de que era sócio, e não tardou a
encontrar tradução para o inglês (1801) e o alemão (1808). Nesse mesmo
ano de 1794, tinha sido escolhido bispo de Pernambuco, onde, entre o
finalzinho de 1798 e meados de 1802, como prelado e como integrante da
junta governativa provisória, tomou iniciativas que o incompatibilizaram
com interesses e prerrogativas, tanto locais quanto da administração em
Lisboa, fazendo com que fosse chamado de volta ao reino. Se a primei-
ra edição fora dedicada ao bem “sereníssimo Príncipe do Brasil Nosso
Senhor”, o prefácio de 1811 destinava-a ao nada “sereníssimo Príncipe
da Beira, o Senhor D. Pedro”. A obra somente viu a luz, no entanto, em
1816, estampando, no verso da folha de rosto, a transcrição de artigo da
sessão de 1º de junho de 1815 da Academia de Ciências, assinado por
José Bonifácio de Andrada e Silva, como secretário, com a determinação
para a reimpressão2.

O “Prefácio” de 1811/1816 abre-se com considerações gerais que


parecem adotar uma perspectiva cíclica: “Em todos os séculos o homem
selvagem se avançará passo a passo para o estado de civilização; o ho-
mem civilizado tornará para o seu estado primitivo.” Antes de chegar à
metade do parágrafo, contudo, fica clara a preocupação que se encontra
por trás de seus argumentos: “a Europa principiou a civilizar a América;
a América vai já chegando à virilidade da sua civilização”; e indaga: “a
Europa retrocederá para o seu primitivo estado de barbaridade?”; para
responder: “A história dos nossos dias parece já decidir pela parte afirma-
tiva”. Em seguida, um tanto abruptamente, salta para o tema da injustiça,
que “nunca foi nem pode ser a base de alguma sociedade”. E, da mesma
maneira, a chave do pensamento revela-se ao fim desse segundo pará-

2 – COUTINHO, José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho. Obras econômicas. Org.


de Rubens Borba de Moraes. São Paulo: Ed. Nacional, 1966. Cf. p. 65 e 57. Todas as de-
mais informações sobre o Ensaio provêm dessa publicação admirável, inclusive os dados
biográficos, colhidos na apresentação de Sérgio Buarque de Holanda, ibidem, p. 13-53.
Nas citações, alterei a pontuação sempre que me pareceu favorecer a compreensão, assim
como são meus os grifos.

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Em torno de 1815: Dimensões da política e da religião no império português

grafo, quando observa que um povo cuja sociedade se erigisse sobre a


injustiça veria um dia “que o mesmo mal que ele tivesse feito sofrer” a
todos os outros povos, faria com que estes se unissem e animassem “de
um só espírito para o desterrarem do meio das nações”. Sem dúvida, é de
sua bête noir por excelência, a França revolucionária, em sua encarnação
napoleônica, ainda vigorosa naquele momento, de que está falando3.

Em oposição, “quanto seria diferente o destino de um Império funda-


do na justiça e na virtude!” Um longo trecho exalta, então, essa possibili-
dade, ecoando o que melhor havia nas Luzes quanto aos efeitos do comér-
cio, da sociedade bem regulada, das artes e das ciências, que apartariam
“a ociosidade, a ignorância e a miséria”. O soberano “seria adorado”,
pois “teria conhecido que alguns dos membros da sociedade não poderia
perder sem que também perdesse o corpo inteiro e que era necessário
ocupar-se da felicidade de todos”. E concluía: “quanto um Império mais
se aproximar deste ponto central da justiça e da virtude, tanto ele será
mais firme e mais amado; quanto mais se afastar dele, tanto será mais
cruel, mais tirano e menos seguro”. Em tom que lembra o do abbé Augus-
tin Barruel (1741-1820), passa daí ao ataque direto contra o adversário
que perseguiu a vida toda, começando por um dos trechos mais citados de
sua obra, como evidência de seu conservadorismo: “Há quase um século
que principiou uma seita com a mania de civilizar a África, reformar a
Europa, corrigir a Ásia e regenerar a América.” Entretanto, conhecendo
como são firmes e inabaláveis os governos “sustentados por uma religião
que, falando ao coração dos homens, lhes manda que obedeçam aos que
governam”, a temível seita passou a pregar o ateísmo. O resultado podia
comprovar-se na anarquia da França e da Ilha de São Domingos, mas
também ocorria que datava de cerca de 30 anos – ou seja, por volta de
1780 –, a iniciativa da seita para “espalhar a semente das revoluções, para
separar as colônias das suas metrópoles, principalmente as de Portugal e
Espanha, as mais ricas do Novo Mundo” 4. E Azeredo alcança o trecho em
que importa deter-se.
3 – COUTINHO, Obras ..., p. 59.
4 – COUTINHO, Obras ..., p. 60-1. Ao final, será que pensava na revolta de Tupac
Amaru de 1780-1781? De Barruel, a primeira obra publicada em Portugal parece ser a

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Guilherme Pereira das Neves

Convém a longa citação, parecendo, de início, saída da pena de um


árcade:

Mas, quando já tudo parecia desesperado e sem algum socorro huma-


no, o Céu em um instante apareceu alegre e risonho; o vento do mar
saltou para a terra, o mar sossegou a sua fúria; as naus, soltando as
velas, salvaram do perigo a Vossa Alteza [quer dizer, D. Pedro, então
com treze anos em 1811], aos seus augustos Pais e toda a família real,
para a felicidade dos fiéis portugueses; a alma de Portugal voou a
animar o corpo que pérfidas mãos trabalhavam já por separar da sua
cabeça; e as colônias, com os braços abertos, receberam com júbilo o
seu Soberano. Eis aqui como Deus, quando quer salvar os seus esco-
lhidos, zomba dos mais combinados planos da filosofia dos homens.

E arremata, em tom de profecia:

Estes prodígios, que eu vi com os meus olhos, me fazem crer que Deus
salvou Vossa Alteza para coisas grandes; que Portugal será governado
pela justiça e pela virtude, que a minha pátria vai a gozar das prerro-
gativas de primeiro Império do Novo Mundo5.

Dois aspectos neste trecho chamam a atenção. Do primeiro – o lugar


da religião na sociedade e o papel da crença na atuação da providência
divina na história –, não será possível tratar aqui, a não ser em breves alu-
sões6. É outro o que merece atenção desta feita. Consiste no significado
de império, termo que acumulava àquela altura, com certeza, inúmeras
camadas semânticas. Afinal, qual o sentido com que Azeredo o empre-
gou? Como seus contemporâneos o compreenderam? Haveria mais de
um significado em circulação na época? A qual tradição ou a quais tradi-
ções intelectuais se filiava a palavra? Uma série de indícios sugere que
envolve questão espinhosa, mas, na contramão, também implica alguma

História abreviada da perseguição, assassinato e do desterro do clero francês. Trad. de


M. B. Porto: na Off. de Antonio Alvarez Ribeiro, 1795-1797. 3v.
5 – COUTINHO, Obras ..., p. 61-2.
6 – Ver a comunicação “Coroa e Igreja na América portuguesa (1750-1800)”, apresenta-
da no congresso Os vice-reis no Rio de Janeiro – 250 anos, realizado no IHGB em 2013 e
cujas atas estão no prelo, a saírem como volume organizado pelo Museu Histórico Nacio-
nal.

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Em torno de 1815: Dimensões da política e da religião no império português

importância, se levado em conta o que se passou após 1820 e, mais dire-


tamente, a partir de 1822.

Aqueles familiarizados com a bibliografia do período hão de espan-


tar-se com a proposta. Afinal, não se trata do tema do livro de 1994 de
Maria de Lourdes Viana Lyra7? Sem dúvida, em A utopia do poderoso im-
pério, na sequência de Marcos Carneiro de Mendonça, de Charles Boxer,
de Kenneth Maxwell, de Maria Beatriz Nizza da Silva, de Andrée Man-
suy-Diniz Silva e ainda outros, Viana Lyra contribuiu decisivamente para
estabelecer tanto a importância da ideia de império luso-brasileiro a partir
do fim do século XVIII quanto o papel nele desempenhado por Rodrigo
de Sousa Coutinho8. Talvez mais relevante ainda, chamou a atenção para
a dimensão de utopia presente na concepção, em sintonia com as novida-
des do período, como, pouco depois, a tradução de Crítica e crise de Rei-
nhart Koselleck veio a difundir mais amplamente entre nós9. E, ainda por
cima, ao fim, utilizou de maneira muito original um elemento de cultura
material para reforçar seus argumentos: o colar e brincos em filigrana de
ouro da imperatriz Leopoldina, que se encontra no Museu Imperial, em
Petrópolis. Não obstante, nas duas décadas que se seguiram, novos ques-
tionamentos e orientações introduziram-se na historiografia. Trata-se, em
particular, do crescente interesse pelo político, mais do que pela política,
assim como dos aspectos relacionados ao simbólico e ao imaginário. Os
parágrafos adiante pretendem seguir em ambas as direções.

7 – LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império: Portugal e Brasil:


bastidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.
8 – MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O Intendente Câmara. São Paulo: Ed. Na-
cional, 1958; BOXER, Charles R. O império colonial português [1969]. Trad. de I. S.
Duarte. Lisboa: Edições 70, 1977; MAXWELL, Kenneth. Conflicts and Conspiracies.
Cambridge: University Press, 1973; SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). O império
luso-brasileiro (1750-1822). Lisboa: Estampa, 1986 (Col. Nova História da Expansão
Portuguesa); SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Uma figura central da Corte Portuguesa no
Brasil: D. Rodrigo de Sousa Coutinho. In: MARTINS, Ismênia & MOTTA, Márcia (orgs).
1808 – A Corte no Brasil. Niterói: EDUFF, 2010. p. 133-157, este o mais recente de diver-
sos estudos sobre a temática apresentado pela autora.
9 – KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo
burguês. Trad. de L. V.-B. Castelo-Branco. Rio de Janeiro: EDUERJ / Contraponto, 1999.

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Guilherme Pereira das Neves

Antes, porém, um comentário, que de forma alguma pretende ser


exaustivo. Com muita frequência, porém, tais preocupações não chega-
ram a ocupar lugar relevante em boa parte da produção recente dos his-
toriadores, muito mais diversificada nos últimos anos, por motivos que
não cabe mencionar aqui. Ronaldo Vainfas, no Dicionário do Brasil co-
lonial, por exemplo, valorizou o esforço para “dimensionar o Brasil no
império colonial”, que data de Charles Boxer, quebrando a claustrofóbica
perspectiva nacionalista predominante até então, mas, embora se refira à
sugestão de Luís Filipe Thomaz em 1994 de que os domínios portugue-
ses consistiam mais em “uma talassocracia medieval, como os ‘impérios
comerciais’ de Gênova ou Veneza, do que propriamente de um império”,
não parece sensível aos conteúdos semânticos embutidos na palavra10.
Quase uma década depois, no Dicionário do Brasil joanino, Laura de
Mello e Souza, apesar do primoroso mapeamento que faz, desde o século
XVI, das manifestações e desdobramentos de um “império luso-brasilei-
ro”, chega a perguntar-se, ao fim, se a ideia, em algum momento, foi mais
do que uma quimera11. Em obra de 2006, as intenções da mesma autora
eram outras, de ordem mais da política e da administração, ainda que a
fantástica epígrafe do padre Antônio Vieira em torno do Sol e da sombra
aponte justamente para o que aqui se busca12. Ausência semelhante ocor-
re também com a coletânea O Antigo Regime nos trópicos, organizada
por João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa,
com uma exceção, o texto redigido por Antônio Manuel Hespanha, um
dos principais responsáveis pela inclusão das dimensões do poder e do
imaginário na historiografia luso-brasileira, ao destacar “a constituição
pluralista do império”13.
10 – VAINFAS, Ronaldo. Império colonial. in IDEM. Dicionário do Brasil colonial. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2000. p. 299-301.
11 – SOUZA, Laura de Mello e. Império luso-brasileiro. in VAINFAS, Ronaldo & NE-
VES, L. B. P. (Org.). Dicionário do Brasil joanino (1808-1821). Rio de Janeiro: Objetiva,
2008. p. 212-215.
12 – SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América
portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
13 – HESPANHA, Antônio Manuel. A constituição do Império português. Revisão de
alguns envisamentos correntes. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda &
GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 163-

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Em torno de 1815: Dimensões da política e da religião no império português

Por conseguinte, não obstante essas ilustres linhagens historiográfi-


cas, talvez não se mostre tão descabida a tentativa para reavaliar os sen-
tidos de império, que tão pouco são aqueles de que se ocupou Valentim
Alexandre em 199314. Muito apropriadamente, Viana Lyra e Maxwell res-
saltaram a correlação entre império luso-brasileiro e o reformismo ilustra-
do de D. Rodrigo. Desde então, no entanto, tornou-se muito mais difundi-
da e assimilada a noção de estado de polícia, utilizada com desembaraço
(ainda que frequentemente em língua travada) por Aírton Seelaender15, da
mesma maneira que começa-se talvez a levar em conta o papel dos auto-
res cameralistas alemães16 na crescente percepção das monarquias de não
se limitarem à conservação de uma ordem eterna, fixada por Deus desde
todo o sempre17. Ao invés, voltam-se para a atuação de maneira efetiva,
com o objetivo de assegurar “la pubblica felicità”, como propunha Lodo-
vico Antonio Muratori já em 1749, ou a “felicidade de todos”, como dizia
Azeredo Coutinho em 181118.

Com tais preocupações, já em 1969, Franco Venturi opunha, com


originalidade surpreendente, as monarquias às repúblicas do século
XVIII, enquanto dois modelos de governo da sociedade, cabendo a es-
tas, as repúblicas, a função de oferecer a alternativa de participação mais
ativa de seus habitantes, em contraste com o cada vez mais complexo
e eficaz mecanismo de controle e uniformização das monarquias, cujo

188. Cf. p. 172. Cf. também HESPANHA, Antônio Manuel. Para uma teoria institucional
do Antigo Regime. In: IDEM (org.). Poder e instituições na Europa do antigo regime.
Lisboa: Gulbenkian, 1984. p. 7-89.
14 – ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do império: questão nacional e questão colo-
nial na crise do antigo regime português. Porto: Afrontamento, 1993.
15 – SEELAENDER, Aírton Lisle Cerqueira Leite. Notas sobre a constituição do direito
público na Idade Moderna – a doutrina das leis fundamentais. Sequência, Florianópolis:
v. 53, p. 197-232, 2007.
16 – CARDOSO, José Luís & CUNHA, Alexandre Mendes. Discurso econômico e políti-
ca colonial no Império Luso-Brasileiro (1750-1808). Tempo: Revista do Departamento de
História da UFF, Niterói: v. 17, p. 65-88, 2012.
17 – RAEFF, Marc. The Well-Ordered Police State and the Development of Modernity in
Seventeenth- and Eighteenth-Century Europe: An Attempt at a Comparative Approach.
The American Historical Review, Chicago (IL): v. 80, n. 5, p. 1221-1243, Dec. 1975.
18 – MURATORI, Louis-Antoine [Lodovico Antonio]. Traité sur le bonheur publique.
Trad. de L.P.D.L.B. (de l’édition de Venise, 1756). Lyon, Chez Ve. Reguilliat, 1772. 2v.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):131-148, jan./mar. 2016. 137


Guilherme Pereira das Neves

resultado, construído por acontecimentos e opções sucessivas, foi o sur-


gimento do Estado como se concebe hoje19. É possível defender que tal
processo pressupôs, quase sempre, duas dimensões decisivas. Primeira,
um elevado grau de autonomização do poder civil em relação às igrejas
ou, como vem defendendo Marcel Gauchet desde 1985, a substituição da
heteronomia da lei divina por uma autonomia da lei humana20. Segunda
dimensão, a concorrência à religião por parte de alguma forma de pen-
samento secular, igualmente capaz de tornar inteligíveis as mudanças e
convenções do mundo social. Pensamento que veio a assumir, em geral, a
aparência de uma certa forma de história, como argumentou John Pocock
em O momento maquiaveliano de 197521.

Em 1992, consciente tanto das deficiências dos estados-nacionais


que se tinham enfrentado nas duas grandes guerras do século XX quanto
dos esforços para a construção de uma União Europeia, capaz de fazer
conviver culturas, línguas, costumes e leis diversas, John Elliott chamou
a atenção para o caráter composto ou heterogêneo da Europa dos tem-
pos modernos e para as dinâmicas de relacionamento que daí resultavam.
Como conclusão, ressaltava que tal situação não podia ser compreendida
como “um prelúdio insatisfatório à construção de uma forma de associa-
ção política mais efetiva e permanente” – o estado-nação – e sim “como
uma das muitas tentativas para conciliar, de acordo com as necessidades
e possibilidades dos contemporâneos, as aspirações opostas em direção
seja à unidade, seja à diversidade, que permaneceram constantes na histó-
ria européia”22. Não obstante, de algo como 500 unidades políticas mais

19 – VENTURI, Franco. Utopia and Reform in the Enlightenment. Cambridge: Cam-


bridge University Press, 1971.
20 – GAUCHET, Marcel. Le désenchantement du monde: une histoire politique de la re-
ligion. Paris: Gallimard, 1985 e IDEM. La condition historique: entretiens avec François
Azouvi et Sylvain Piron. Paris: Gallimard, 2005.
21 – POCOCK, J. G. A.. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the
Atlantic Republican Tradition. Princeton: Princeton University Press, 1975.
22 – ELLIOTT, John H. A Europe of Composite Monarchies. Past & Present, Oxford: v.
137, p. 48-71, Nov. 1992. Cf. p. 71 para a citação. Ver também DUVERGER, Maurice. O
conceito de império. In: DORÉ, Andréa Carla; LIMA, Luís Filipe & SILVA, Luiz Geraldo
(orgs.). Facetas do império na história: conceitos e métodos. São Paulo / Brasília: Ader-
aldo & Rothschild / Capes, 2008. p. 19-38.

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Em torno de 1815: Dimensões da política e da religião no império português

ou menos independentes que compunham a Europa em 1500, ainda res-


tavam mais de uma centena em 1815, como Arno Wehling lembrou na
conferência de abertura, e que em 1900 estavam reduzidas a cerca de 2523.

Para o surgimento dessas nações modernas, efeito do mencionado


processo de uniformização conduzido pelas monarquias ditas absolutis-
tas, como Tocqueville já percebera em 1856, a Revolução de 1789, os
conflitos que em seguida conflagaram a Europa e os romantismos contri-
buíram cada qual à sua maneira. Contudo, em outro artigo de 1992, foi
Stuart Woolf quem precisou que o principal impulso talvez tenha vindo
de certas políticas desencadeadas por Napoleão. Afinal, as

(...) mesmas técnicas de uniformidade administrativa, imposição lin-


guística e pressão para assegurar integração social, que tinham marca-
do a tentativa de Bonaparte de remodelar a Europa, viram-se aplicadas
ao interior de suas fronteiras nacionais pelos homens de governo dos
novos países da Europa contemporânea, a fim de eliminar o que consi-
deravam como as forças desagregadoras das identidades locais. Assim
sendo, não foi apenas o estado-nação o módulo de unidade política
que a Europa exportou para o resto do mundo, mas igualmente a sua
versão particular da experiência napoleônica conduzida pelo Estado24.

Parece dispensável realçar a aplicabilidade dessa arguta observação


ao que se passou com o Brasil depois de 1822, com seu primeiro soberano
coroado imperador em cerimônia diretamente inspirada pela de Bonapar-
te e encenada por um discípulo de Jacques-Louis David.

Por outro lado, é verdade que tal processo desenrolou-se depois de


1815, por motivos e interesses que se manifestaram a partir de então.
Meia-volta, por conseguinte, ao ano de proclamação do Reino Unido e à
temática proposta no início, ou seja, a do império.

23 – ELLIOTT, A Europe ..., p. 49. Os dados provêm da introdução de Charles Tilly à obra
The Formation of National States in Western Europe, Princeton, 1975, por ele também
organizada.
24 – WOOLF, Stuart. The Construction of a European World-View in the Revolutionary-
-Napoleonic Years. Past and Present. Oxford: v. 137, p. 72-101, Nov. 1992. Cf. p. 101.

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Guilherme Pereira das Neves

Até agora ignorado nessa breve apresentação, nenhum corpo políti-


co reunia mais características desse caráter heterogêneo identificado por
John Elliott com o mundo do Antigo Regime que o Sacro Império Ro-
mano de Nação Germânica, objeto de uma síntese inacreditável de Marc
Bloch em 1927 / 1928, que anuncia muito do que Ernst Kantorowicz
expôs em 195725. Aqui, no entanto, ingressa-se em território minado, por
conta da ignorância do autor a respeito do assunto e do período. Portan-
to, não cabe esmiuçar detalhes, mas somente delinear alguns aspectos
que parecem pertinentes. Segundo o estudo de Fred Schrader, que serve
de guia neste ponto, entre os traços que caracterizam o Sacro Império
após o término da Guerra dos Trinta Anos, encontram-se: (i) um sistema
constituído por elementos tradicionais “reorganizado de acordo com uma
lógica nova, mais racional”; (ii) a “harmonização de interesses confli-
tuais através de determinadas instituições”; (iii) o “estabelecimento de
um sistema de direito”; e (iv) a formação e recrutamento de um corpo
novo de agentes políticos e administrativos, que combina tanto a nobreza
antiga quanto indivíduos novos num conjunto contraditório”, para o qual
a palavra elites parece a melhor designação26. O que distingue assim o
sistema consiste na busca de compromissos políticos e sociais, a partir da
motivação gerada por uma experiência traumática – no caso, a da guerra
civil religiosa à qual a Paz de Vestfália em 1648 pôs fim. Como em outras
regiões europeias, o que foi sendo estabelecido procurava

(...) renovar as estruturas políticas interiores e exteriores, integrar sis-


temas novos de natureza econômica, técnica, cultural, intelectual, so-
cial; evitar conflitos; buscar compromissos (...), mas, tudo isso, sem
tocar nos fundamentos mesmos da sociedade existente.

Trata-se de um esforço reformador, nunca revolucionário. Ao ver-se


dissolvido em 1806, porém, o Sacro Império converte a antiga Alema-

25 – BLOCH, Marc. “L’empire et l’idée d’empire sous les Hohenstaufen”. In: Mélanges
historiques. Paris: Serge Fleury / Éditions de l’EHESS, 1983. v. 1, p. 531-559 e KAN-
TOROWICZ, Ernst. The King’s Two Bodies: A Study in Mediaeval Political Theology
[1957]. Princeton (NJ): Princeton University Press, 1997.
26 – SCHRADER, Fred E. L’Allemagne avant l’État-nation: le corps germanique
1648-1806. Paris: Presses Universitaires de France, 1998. Cf. p. 90.

140 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):131-148, jan./mar. 2016.


Em torno de 1815: Dimensões da política e da religião no império português

nha, corpus fictum político graças a essas estruturas, em um número de


Estados monárquicos característicos, inviabilizando as instituições tradi-
cionais, “sobretudo aquelas que teriam conduzido a um sistema de repre-
sentação política” e à criação do imaginário de uma nova nação no século
XIX, nos moldes das demais27.

A essa altura, certamente, o responsável por essas divagações parece


enredado nos fios que foi desembaraçando, evidenciando a sua incapa-
cidade de encontrar o caminho para uma conclusão clara e concatenada.
Em suma, diante dos dados apresentados, em que medida eles contribuem
para esclarecer o uso do termo império na época da declaração do Reino
Unido?

Em primeiro lugar, parece claro que, para a maioria dos historiadores


atuais, a palavra império continua desprovida de maior substrato semân-
tico, significando seja uma unidade política extensa, fragmentada ou não,
seja um grande poder político concentrado. Portanto, sem grandes dife-
renças em relação aos usos atuais, algo que, em história, sempre sugere
cautela. Por esse ângulo, no entanto, a frequência do recurso à expressão
pelos autores do século XVIII e de inícios do XIX levanta a suspeita de
que algo mais estava em jogo. Nas Instruções políticas, por exemplo,
D. Luís da Cunha, ao redor de 1740, não apenas concebe, como tantas ve-
zes se menciona, o plano de transferência da Corte portuguesa para o Bra-
sil em algum momento difícil, como observa que, ao fazê-lo, o soberano
podia tomar “o título de imperador do Ocidente”28. Nos Autos da devassa
da inconfidência mineira, uma testemunha refere-se ao cônego Luís Viei-
ra da Silva, leitor de Raynal e da Encyclopédie, que ouvira-lhe “dizer
algumas vezes que, se no tempo da aclamação do Senhor Rei D. João IV,
viesse esse Príncipe para o Brasil, que a esta hora se acharia a América
constituindo um formidável Império”29. Possivelmente entre 1810 e 1814,
27 – SCHRADER, L’Allemagne ..., p. 91.
28 – CUNHA, D. Luís da. Instruções políticas. Intr. e ed. de Abílio Diniz Silva. Lisboa:
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. Cf.
p. 366.
29 – Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, Brasília / Belo Horizonte, Câmara dos
Deputados / Governo do Estado de MG, 1976-2001, 11 v., v. 1, p. 158.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):131-148, jan./mar. 2016. 141


Guilherme Pereira das Neves

o bacharel por Coimbra Antônio Luís de Brito Aragão e Vasconcelos, que


haveria de defender os réus da revolta de 1817 em Pernambuco perante a
Relação da Bahia, redigiu nesta cidade e deixou incompleto o manuscrito
de uma memória sobre o “Estabelecimento do Império do Brasil ou novo
Império Lusitano”. Ao abrir a “Introdução”, considerava que chegara
(...) finalmente a época em que o soberano de Portugal deve tomar o
título de imperador, que justamente corresponde à Majestade de sua
pessoa, ao heroísmo de seus augustos progenitores e à extensão de
seus Estados. O Brasil soberbo por conter hoje em si o imortal prín-
cipe que nele se dignou estabelecer o seu assento, adquire um tesouro
mais precioso que o áureo metal que desentranha, e os diamantes e
rubis que o matizam. Ele já não será uma colônia marítima isenta do
comércio das nações, como até agora, mas sim um poderoso império,
que virá a ser o moderador da Europa, o árbitro da Ásia e o dominador
da África30.

Cerca de dez anos mais tarde, após a Independência, fazia-lhe eco


do Rio de Janeiro o padre Luís Gonçalves dos Santos: “Escrito estava no
inexcrutável livro da Providência Eterna, que o príncipe, o mais pacífico
e justo da Europa, a quem o Corso menos temia e de quem nada des-
confiava, fosse aquele que, com o heróico sacrifício da sua real pessoa e
família, transtornasse os pérfidos conselhos e planos de Napoleão; e que,
não só não perdesse o seu real trono e antiga herança dos seus augustos
avós, mas também que viesse para a América fundar e criar um novo Im-
pério31.” Sem dúvida, a célebre coroação de Bonaparte em 2 de dezembro
de 1804 e suas façanhas tinham feito reviver o fascínio da ideia imperial,
que não se apagou com o fim do Sacro Império dois anos depois. Por
volta de 1821, o futuro Pedro I (1798-1834), herdeiro do trono portu-
guês, subia a cavalo a encosta de uma das montanhas que cercam o Rio
30 – VASCONCELOS, Antonio Luís de Brito Aragão e. Memórias sobre o estabeleci-
mento do Império do Brazil ou Novo Império Lusitano. Anais da Biblioteca Nacional.
Rio de Janeiro: Officinas Graphicas da Biblioteca Nacional, v. 43/44, p. 2-48, 1931. p. 7.
Ver também LYRA Júnior, Marcelo Dias. Arranjar a memória, que ofereço por defesa:
cultura política e jurídica nos discursos de defesa dos rebeldes pernambucanos de 1817.
Dissertação apresentada ao PPGH-UFF. Niterói, 2012, datilografada.
31 – SANTOS, Luiz Gonçalves dos (padre). Memórias para servir o Reino do Brasil
[1825]. Belo Horizonte / São Paulo: Itatiaia / EDUSP, 1981. v. 1, p. 229.

142 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):131-148, jan./mar. 2016.


Em torno de 1815: Dimensões da política e da religião no império português

de Janeiro, em companhia de D. Leopoldina (1797-1825), sobrinha-neta


de Maria Antonieta (1755-1793), rainha de França, para visitar o conde
Dirk van Hogendorp (1761-1822) e dele ouvir as histórias de Bonaparte,
a quem servira a partir de 1811 e que se estabelecera na cidade em 181732.
A palavra império parece guardar, assim, mais que o sentido corrente.

Viana Lyra, por sua vez, ao relacionar império e utopia no tempo de


Rodrigo de Sousa Coutinho, como já dito, tocou num nervo sensível, ou
será que a prodigiosa atividade do futuro conde de Linhares, mais bem
conhecida depois da grandiosa biografia que lhe dedicou Andrée Man-
suy-Diniz Silva33, não constitui uma tentativa de

(...) renovar as estruturas políticas interiores e exteriores, integrar


sistemas novos de natureza econômica, técnica, cultural, intelectual,
social [mediante a constituição e valorização de uma elite]; evitar con-
flitos; buscar compromissos (...), mas, tudo isso, sem tocar nos funda-
mentos mesmos da sociedade existente (...),

como Schrader caracteriza a trajetória do Sacro Império entre 1648


e 1806? Será que o anseio de Azeredo Coutinho, traduzido sob forma
de profecia de que sua pátria havia de tornar-se o primeiro império do
novo mundo, despojara-se do conteúdo sebastianista que se encontrava
no Quinto Império de Vieira? Será ousadia demasiada propor então que,
mesmo sem recorrer à palavra, a declaração do Reino Unido em 1815
vinha assombrada pelo espectro do império?

32 – MACEDO, Roberto. Cronologia do general de Napoleão, conde. Revista do Instituto


Histórico e geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro: v. 341, p. 21-25, out-dez 1983. Ver
também NEVES, Lúcia Maria Bastos P. das. Napoleão Bonaparte: imaginário e política
em Portugal (c. 1808-1810). São Paulo: Alameda, 2008. Cf. p. 116-118.
33 – SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portrait d’un homme d’État: D. Rodrigo de Sou-
za Coutinho, Comte de Linhares, 1755-1812. Lisbonne / Paris, Commission Nationale
pour les Commémorations des Découvertes Portugaises / Centre Culturel Calouste Gul-
benkian, 2002. v. 1: “Les années de formation, 1755-1796” e IDEM. SILVA, Andrée
Mansuy-Diniz. Portrait d’un homme d’État: D. Rodrigo de Souza Coutinho, Comte de
Linhares, 1755-1812. Lisbonne / Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2006. v. 2:
“L’homme d’État, 1796-1812”.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):131-148, jan./mar. 2016. 143


Guilherme Pereira das Neves

Convinha articular tais indagações às conclusões de Arno Wehling,


de Annie Jourdan e de Armelle Enders, pelo menos, entre as comunica-
ções apresentadas neste congresso e que se relacionam diretamente ao
tema, cada uma de acordo com a ótica escolhida por eles, mas a emprei-
tada mostra-se aqui impossível. Na realidade, a reflexão acima pretendeu
apenas chamar a atenção para uma dimensão do imaginário da época e
que integrava o espaço de experiência dos atores de então34. Algo que, ao
final desse percurso, faz lembrar uma observação de Franco Venturi, ao
discutir os populistas russos. Dizia o historiador italiano em 1952:

Uma idéia que parece olhar para trás no tempo, que se refere apa-
rentemente ao passado, que parece preferir o que foi e excluir o que
será, uma tal idéia será, em si mesma e por ela mesma condenada a
desempenhar um papel negativo (...)? Ou será que ela não representa
melhor, ao menos algumas vezes, um “recuar para melhor saltar”, uma
tentativa que pode ser frutífera de conservar o que havia de precioso
no passado a fim de transmiti-lo ao futuro? A história não se faz so-
mente olhando para a frente, mas, eu diria, olhando ao mesmo tempo
para trás e para a frente35.

No caso do Brasil, porém, visão distorcida talvez pelo momento


de crise no presente, não parece que, de 1815 aos nossos dias, se tenha
aprendido a recuar para melhor saltar. Preferiu-se olhar para trás e, quan-
do, porventura, se olhou para a frente, ignorou-se o passado. Para nossa
infelicidade.

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34 – KOSELLECK, Reinhart. ‘Espaço de experiência’ e ‘horizonte de expectativa’: duas


categorias históricas. In: Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Trad. de W. P. Maas & C. A. Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto / Ed. PUC-Rio, 2006.
p. 305-327.
35 – VENTURI, Franco. Les intellectuels, le peuple et la révolution, Paris: Gallimard,
1972. Cf. v. 1, p. 29.

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O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de emancipação colonial

149

O BRASIL COMO REINO UNIDO A PORTUGAL: UM MODELO


DE EMANCIPAÇÃO COLONIAL
BRAZIL AS A UNITED KINGDOM WITH PORTUGAL: A MODEL
OF COLONIAL EMANCIPATION
Maria de Lourdes Viana Lyra1

Resumo: Abstract:
Este artigo é uma reflexão sobre a criação do This article is a reflection on the creation of the
Reino Unido luso-brasileiro, em 1815, aconteci- Luso-Brazilian United Kingdom, in 1815, an
mento inexplorado pela historiografia e, portan- event unexplored by historiography and thus
to, ausente na memória coletiva. Aqui analisado absent from our collective memory. Here it is
como um fato histórico marcante e de grande analyzed as a defining historical fact of great
importância no desenrolar do processo de In- importance in the unfolding of the process of
dependência e formação do Estado Nacional, Independence and formation of the National
sob a forma de Império do Brasil, tanto quanto State, in the form of the Empire of Brazil, as
importou o fato da transferência da Corte por- much as the fact of the transference of the Por-
tuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. Refle- tuguese Court to Rio de Janeiro in 1808 was of
tindo sobre a relevância de tais acontecimentos importance. The article reflects on the relevance
no direcionamento da forma imperial então ado- of such events leading to the imperial form ad-
tada e no consequente processo de construção opted at that time and in the resulting process
da unidade territorial e da identidade do Esta- of construction of territorial unity and the iden-
do brasileiro. Verificando os condicionamentos tity of the Brazilian State. It looks at the condi-
que particularizaram tal processo: ocorrido num tions that made such a process unique: taking
movimento inicial de aproximação e não de re- place with an initial movement of approaching
jeição à ex-metrópole. Refletindo sobre o prin- and not rejecting the former metropole; reflect-
cípio de unidade luso-brasileira, necessário à ing on the beginning of Luso-Brazilian unity,
formação do almejado poderoso império atlân- necessary for the formation of the sought after
tico. Situando o acirramento do confronto entre powerful Atlantic empire. It situates the growing
interesses divergentes, que levou à falência do conflicts between divergent interests that led to
modelo de Reino Unido e à consequente rup- the collapse of the United Kingdom model and
tura da unidade luso-brasileira. Quando foram the resulting rupture of the Luso-Brazilian unifi-
definidos novos limites de uma nova unidade cation. Then new boundaries of a new imperial
imperial, “do Amazonas ao Prata”, e iniciado o entity were defined, “from the Amazon to the
processo de construção do Império do Brasil e River Plate,” and the process of construction
da identidade brasileira of the Empire of Brazil and Brazilian identity
was begun..
Palavras-chave: Reino Unido; Império luso- Keywords: United Kingdom; Luso-Brazilian
-brasileiro; Estado; Nacionalidade brasileira. Empire; State; Brazilian nationhood.

O Reino Unido luso-brasileiro, instituído por Carta de Lei, em 1815,


é, sem dúvida, um acontecimento histórico marcante e de influência in-

1 – Doutora em História; (Sorbonne-X), professora do Departamento de História da Uni-


versidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, sócia titular do Instituto Histórico e Geográ-
fico Brasileiro (IHGB); do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro (IHGRJ); da
Academia Portuguesa da História (APH).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):149-172, jan./mar. 2016. 149


Maria de Lourdes Viana Lyra

conteste no desenrolar do processo de formação do Estado Nacional bra-


sileiro, apesar de constituir um fato inexplorado pela historiografia da
Independência e, portanto, desconhecido da maioria dos brasileiros. Ape-
nas ultimamente o tema do Reino Unido vem merecendo atenção dos his-
toriadores, através de estudos específicos de reflexão sobre a conjuntura
de mudanças ocorridas após o fato extraordinário da instalação da Corte
portuguesa no Brasil, em 1808. Buscando, sobretudo ampliar o conheci-
mento sobre o processo histórico que resultou na preservação da unidade
do território colonial e na consequente edificação de um Estado imperial
no Novo Mundo.

Em geral, a elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Por-


tugal é apenas mencionada na produção historiográfica tradicional, sem
qualquer apreciação sobre o novo status de Reino legalmente instituído
e usufruído pela ex-colônia Brasil. Ausência que persistiu nas produções
historiográficas subsequentes, resultando na continuidade de um saber
histórico incompleto por não levar em conta o significado da supracitada
lei, que legitimava a passagem do Brasil – desde 1808, sede monárquica
da Coroa portuguesa – à condição de Reino Unido a Portugal. Mesmo em
se tratando de um fato histórico extraordinário e de influência direta no
encaminhamento diferenciado da Independência do Brasil, no contexto
das demais independências coloniais da América. Lacuna que levou à
omissão desse acontecimento histórico nos manuais escolares e, conse-
quentemente, na sua completa ausência na memória coletiva. Tanto que
esta é a primeira vez que historiadores e cientistas sociais são convocados
a um evento acadêmico especialmente dedicado à discussão sobre impor-
tância do fato acontecido há duzentos. Iniciativa oportuna, pela promoção
de uma urgente e necessária reflexão sobre o significado da Carta de Lei
de 16 de dezembro de 1815, assinada pelo príncipe regente D. João, que
oficialmente determinava:

Desde a publicação desta Carta de Lei o Estado do Brasil seja elevado


à dignidade, preeminência e denominação de Reino do Brasil (que)

150 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):149-172, jan./mar. 2016.


O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de emancipação colonial

formem d`ora em diante um só e único Reino, debaixo do título de


Reino Unido de Portugal, e do Brasil, e Algarves2.

Ordenando que:

Aos títulos inerentes à Coroa de Portugal, e de que até agora hei feito
uso, se substitua em todos os diplomas, cartas de leis, alvarás, provi-
sões, e atos públicos o novo título de “Príncipe Regente do Reino de
Portugal, e do Brasil, e Algarves, d’aquem e d’alem mar” (...)3.

Enunciados que não deixavam dúvidas sobre o alcance da delibe-


ração que estava sendo explicitamente tomada quanto à objetividade da
nova condição de Reino, que o Brasil passava a usufruir. O que hoje sus-
cita o imediato questionamento sobre a falta de referência na produção
historiográfica, ao desconsiderar a existência do Reino Unido luso-brasi-
leiro e, consequentemente, deixar de atentar para o peso que o reconhe-
cimento oficial da libertação do Brasil do estatuto colonial exerceu no
encaminhamento peculiar do processo da Independência e de formação
do Estado Nacional e Imperial brasileiro.

Portanto, é bastante oportuna a realização desse Congresso Interna-


cional – Brasil como Reino Unido: 200 anos depois, convocado pelo Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao qual parabenizo pela inicia-
tiva. Ao mesmo tempo que externo imensa satisfação pela oportunidade
de participar do primeiro evento acadêmico dedicado ao estudo sobre o
tempo do Reino Unido luso-brasileiro, existente entre 1815 e 1822. Colo-
cando em discussão a análise focada na reflexão sobre o peso histórico do
acontecimento, argumentando sobre a significativa influência exercida no
desenrolar do peculiar processo de libertação colonial, e na consequente
institucionalização do Império do Brasil. Tema de estudo ao qual venho
centrando a atenção desde a década de 1980, ao iniciar a pesquisa docu-
mental e desenvolver a análise proposta sobre a centralização política e
fiscal do Estado imperial e os movimentos em prol da autonomia provin-
cial que marcaram a primeira metade do século XIX, para elaborar a tese
2 – Cf. Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815. Colleção de Leis do Brasil. 1814-1815.
3 – Idem. Ibidem.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

de doutorado, apresentada e aprovada na Universidade de Paris X, em


19854. Quando percebi a carência de análises pontuais sobre as circuns-
tâncias históricas específicas ao cenário do Brasil, no alvorecer do século
XIX, reflexão necessária ao esclarecimento das razões sobre o modelo de
Estado Imperial aqui adotado.

Apesar de constituir um dos objetos de estudo mais presentes na


historiografia brasileira, a temática da Independência do Brasil é, geral-
mente, caracterizada por centrar a análise do rompimento dos laços de
subordinação do Brasil a Portugal nos acontecimentos ocorridos entre
os anos de 1820 e 1822, abordando-os no contexto usual de luta entre
colônia e metrópole5. Além de não argumentar sobre a opção monárqui-
4 – Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. Centralization, sistème fiscal et autonomie pro-
vinciale dans l`empire brésilien: la province de Pernambuco 1808-1832. Université de
Paris X – Nanterre, 1985 (Tese de Doctorat – mimeo).
5 – A produção historiográfica sobre a Independência é vasta e indispensável ao conhe-
cimento histórico, por fornecer elementos essenciais ao estudo do tema. No entanto, entre
as obras inicialmente produzidas – VARNHAGEN, F.A. História da Independência do
Brasil. Ed.1981; SILVA, J.M. Pereira da. História da Fundação do Império Brasileiro.
Ed. 1865; LIMA, Oliveira. O Movimento da Independência. Ed 1972; MONTEIRO, To-
bias. História do Império: A Elaboração da Independência. Ed. 1981. MORAES, A.J.
de Mello. História do Brasil Reino-Reino e Brasil-Império. Ed. 1982 –, o fato da criação
do Reino Unido em 1815 é apenas citado. Ou somente analisado em relação aos acordos
diplomáticos firmados no Congresso de Paz em Viena, como se vê em LIMA, Oliveira.
D. João VI no Brasil. Ed. 1945. Nas análises posteriormente elaboradas – relevantes por
entender a Independência como o desenrolar de um longo processo –, o Reino Unido luso-
-brasileiro continua merecendo pouca ou nenhuma reflexão sobre o sentido histórico de
sua criação, nem tampouco a ligação com a opção pelo Império do Brasil – como se pode
ver em: PRADO JR. Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Ed. 1963, e Evolução
Política do Brasil e outros estudos. Ed. 1966; HOLANDA, Sérgio Buarque de. "A Heran-
ça colonial - Sua desagregação" e CUNHA, O. Carneiro da "A fundação de um império
liberal". Ed. 1970; COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos de-
cisivos. Ed. 1972; C.G.MOTA (org.) 1822: Dimensões. São Paulo. Perspectiva, Ed. 1972
(coletânea de artigos de diversos autores); RODRIGUES, José Honório. Independência:
revolução e contrarrevolução. Ed. 1975; FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Ed.
1979; FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Ed., 1981; CARVA-
LHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: A Elite Política Imperial. Ed. 1980; C.G.
MOTA e F. NOVAIS. A Independência Política do Brasil. Ed. 1986. Além de estudos

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O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de emancipação colonial

ca do Estado independente e, portanto, não atender aos questionamentos


que surgem, quando se se procura identificar no cenário sociopolítico da
época as questões internas definidoras da singularidade do processo da
Independência, que levou à adoção do Estado monárquico e imperial do
Brasil, forma de governo completamente estranha ao Novo Mundo.

A PARTICULARIDADE DO PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO DO


BRASIL COLONIAL
O alargamento do campo de pesquisa e de análise da documentação
referente – perscrutando as injunções das conjunturas externa e interna;
estudando o discurso e a ação política dos agentes públicos –, foram os
caminhos traçados na busca de ampliação do conhecimento histórico da
época, permitindo identificar o peso das mudanças extraordinárias que
estavam então ocorrendo. Sobretudo, a partir de 1808, em face da transfe-
rência da sede da Corte real portuguesa e de todos os órgãos de governan-
ça, de Lisboa para o Rio de Janeiro. Fato inusitado, jamais acontecido no
mundo conhecido, e realmente modificador do status de possessão colo-
nial até então referente ao Brasil, entendido como uma verdadeira inver-
são colonial acontecida e claramente percebido pelos agentes da época.
Depoimentos de alguns contemporâneos expoentes na cena pública são
eloquentes quanto às significativas mudanças que estava então ocorrendo
e que expressavam a real libertação do Brasil do estatuto colonial. Nesse
sentido, é exemplar o registro feito por Luiz Gonçalves dos Santos, o pa-
dre Perereca, autor da obra clássica História do Reino do Brasil6.
Logo que o Príncipe Regente Nosso Senhor felicitou a grande e aben-
çoada terra do Brasil e nela estabeleceu seu trono, este país deixou de
fato de ser colônia7.

mais recentes, com novas interpretações sobre o complexo tema da Independência, com
destaque: JANCSÓ, Istvan (org.). Independência do Brasil: História e Historiografia. Ed.
2005.
6 – Cf. SANTOS, Luis Gonçalves dos (Pe. Perereca). Memória para servir à História do
Reino do Brasil. Rio de Janeiro. 1943. (I e II vol.)
7 – Cf. SANTOS, Luis Gonçalves dos (Pe. Perereca). Op. cit. II vol. P.465.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

Saudando efusivamente o acontecimento como


O início de um novo tempo (ao lançar os) fundamentos de um grande
império (que iria) gradualmente elevando-se ao maior auge de força,
riqueza e consideração política, tal que em um período não muito lon-
go de anos tomará lugar na ordem das primeiras potências do Univer-
so; (entendendo que) a memorável Carta de Lei de 16 de dezembro de
1815 confirmou de direito um Reino, por tal conhecido e havido entre
as nações; (e) de um só golpe desfez a anomalia política e irregular do
antigo regime colonial. Já os portugueses da América não são inferio-
res em graduação e direitos aos portugueses da Europa. Já os filhos da
nova Lusitânia tomam assento igual com os filhos da antiga; e, posto
que distantes uns dos outros pela sua situação geográfica, são, contu-
do, um mesmo povo e uma mesma nação identificada8.

Descrevendo as

Festas que, desde o Amazonas até o Prata, se fizeram em todas as


cidades e vilas do Brasil; e as deputações que as Câmaras mandaram
a esta Corte para beijar a real mão de S.A e agradecer tão singular e
honorífica graça9.

Além de comentar sobre os atos de regozijo expedidos pelos Senados


das Câmaras Municipais do Rio de Janeiro, da Bahia, de Minas Gerais, de
São Paulo, de Pernambuco. E, também, detalhar os festejos ocorridos na
Corte – no decorrer de três dias, com cerimônia religiosa na Igreja de São
Francisco, Te Deum Laudamus regido pelo pe. José Maurício, repiques de
sinos, desfile das autoridades pelas principais ruas engalanadas da cidade –,
encerrados com fogos de artifícios no Terreiro do Paço.

Igualmente, o presidente do Senado da Câmara do Rio de Janeiro


exprimiu, em sessão solene, a exaltação do momento, pela confiança na
política em prol da unidade luso-brasileira:

8 – Idem. Ibidem, p. 469.


9 – Idem. Ibidem, p. 473.

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O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de emancipação colonial

O ato desta união será objeto de uma brilhante página da nossa histó-
ria (...) os dias 7 de março e 16 de dezembro, rivais em celebridade,
vão ser consagrados igualmente nos anais do Brasil10.

Outro exemplo notável é o texto do jornalista Hipólito José da Costa,


publicado na sessão “Miscelânea”, do Correio Brasiliense, de fevereiro
de 1816, no qual transcreveu a Carta de Lei para o Reino do Brasil, ao
mesmo tempo que questionou a menção nela contida sobre as conversa-
ções diplomáticas dos “plenipotenciários das potências que formaram o
Congresso de Viena”11, como justificativa da elevação do Brasil à gradua-
ção de Reino:

Parece-nos claro, da expressão daquele tratado, que a denominação


de Reino do Brasil foi reconhecida no Congresso de Viena; mas não
é igualmente claro, que a ideia fosse sugerida pelos soberanos alia-
dos, ou seus ministros no Congresso; e nós sinceramente desejamos,
e supomos, que esta alteração de nome seja moto próprio e lembrança
original do soberano do Reino Unido, ou dos seus ministros, e de for-
ma nenhuma sugestão do Congresso. E nesta suposição, não teremos
grande temor de que o nome Reino, posto que Unido, seja capa de
alguma intentada desunião. É necessário, porém, estar alerta12.

Advertindo sobre o significado da nova denominação:

Com a mudança do nome daquele Estado do Brasil, para Reino do


Brasil, necessariamente deveria haver melhoramento da forma de go-
verno, ou da administração interna (ou seja) graduais melhoramentos
nas leis (como a) mudança total dos governos militares das capitanias
e de todas as mais instituições que se possa deduzir do princípio de ad-
ministração (...) longe de ser uma revolução ou convulsão moral, não
será outra coisa mais do que uma consequência natural (da circuns-
tância) a louvável resolução de elevar o Brasil à dignidade de Reino13.

10 – Cf. Fala do Presidente do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, aos 28 de dezembro


de 1816. Transcrito em: MORAIS, Mello. Op. cit., Tomo I, p. 526.
11 – COSTA, Hipólito José. Correio Brasiliense ou Armazém Literário. São Paulo, SP:
Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Correio Brasiliense, 2001 “Edição fac-similar”.
12 – COSTA, Hipólito José. Op. cit., vol. XVI, p. 184.
13 – Idem. Ibidem, p. 187-190.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

Ora, se era tão evidente aos contemporâneos o reconhecimento de


que a Carta Régia de 1815 significava a real libertação do Brasil do sis-
tema de dominação colonial, como entender o discurso dominante dos
agentes públicos diretamente envolvidos na luta política travada após
1820, quando foi proclamada a constitucionalidade da monarquia por-
tuguesa e, sobretudo, no plenário das Cortes Gerais e Constitucionais de
Lisboa, centrado na discussão na defesa dos interesses da Corte do Rio de
Janeiro, sem remeter o debate diretamente à questão do status de Reino
legalmente adquirido! E, também, como compreender o direcionamento
da produção historiográfica, ao minimizar a excepcionalidade do acon-
tecimento de 1808 – inclusive, nomeando-o de “vinda da família real”,
expressão que minora a relevância histórica do fato –, além de deixar
de ressaltar a existência do Reino Unido luso-brasileiro, continuando a
entender o Brasil na condição de colônia até o 7 de setembro de 1822!

Foram essas as questões norteadoras da pesquisa encetada e das re-


flexões elaboradas, sobre o tempo do Brasil como Reino Unido a Portu-
gal. Os textos resultantes, propondo a reflexão sobre a importância desse
acontecimento no processo histórico em curso, se destacam por introduzir
o tema na historiografia brasileira, ao colocar em pauta, como tema ne-
cessário de análise, a discussão sobre a relevância da institucionalização,
em 1815, do Reino Unido de Portugal e do Brasil14. Investigando-o no
contexto mais amplo e a partir do movimento revolucionário, desenca-
deado com a Revolução Americana (1776) e aprofundado com a Revolu-

14 – A introdução do fato histórico da criação do Reino Unido luso-brasileiro, como tema


de análise na historiografia brasileira, só ocorreu em tempos recentes e a partir de estudos
diretamente focados na reflexão sobre sua criação e implicação decorrente no processo
da Independência, publicados em livros e artigos, nas últimas três décadas. Cf. LYRA,
Maria de Lourdes Viana. A utopia do Poderoso Império - Portugal e Brasil, bastidores
da política, 1798-1822. 1994; WEHLING, Arno. “Monarquia dual luso-brasileira: crise
colonial, inspiração hispânica e criação do Reino Unido”. Anais do Seminário Interna-
cional – D. João VI, um rei aclamado na América. 2000; MELLO, Evaldo Cabral de. A
outra Independência; o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. 2004; LYRA, Maria
de Lourdes Viana. “A transferência da Corte, o Reino Unido luso-brasileiro e a ruptura de
1822”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 2007. WEHLING, Arno e
Maria José. “Soberania sem Independência: Aspectos do discurso político e Jurídico na
proclamação do Reino Unido”. Niterói: Revista Tempo. 2011.

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O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de emancipação colonial

ção Francesa (1789). Demonstrando que ao atribuir ao Brasil a condição


de Reino Unido a Portugal, a Carta Régia de 16 de dezembro de 1815
legalizava a emancipação do Brasil do status de colônia, conquistada em
1808. Ao mesmo tempo que aponta e realça a particularidade da Inde-
pendência do Brasil, ocorrida num movimento de aproximação e não de
rejeição à antiga metrópole, como ocorreu nos demais casos de indepen-
dências coloniais da América. Além de salientar a peculiaridade do pro-
cesso de institucionalização do Império do Brasil, entendendo-o no con-
texto da inter-relação de três acontecimentos históricos extraordinários,
definidores da forma monárquica que o Estado independente brasileiro
assumiu. Ou seja, em 1808, a transferência da sede da Corte monárquica
e de todo o aparato de poder, de Lisboa para o Rio de Janeiro, abolindo,
de fato, o status de colônia para o Brasil; em 1815 – o reconhecimento, de
direito, da emancipação do Brasil, convertendo-o por lei em Reino Unido
a Portugal; em 1822 – a falência do modelo de unidade luso-brasileira,
ante a ruptura política do Brasil, em relação a Portugal, e a consequente
proclamação do Estado Independente Monárquico e Imperial Brasileiro15.

O IDEAL POLÍTICO DE CONSTRUÇÃO DA UNIDADE


ATLÂNTICA
O primeiro registro sobre a formulação de um modelo de Estado
atlântico, com vistas à permanência da união entre (ex-)metrópole euro-
peia e (ex-)colônia americana, encontra-se no livro a Riqueza das Nações,
escrito em 1776, por Adam Smith. O pensador inglês, ao criticar com
veemência a política de monopólios, em pleno momento de ruptura dos
laços de dominação colonial da Inglaterra na América, ressaltou as vanta-
gens das relações comerciais para a riqueza das nações e pregou a política
livre-cambista como base do desenvolvimento das forças produtivas16.

15 – A análise mais abrangente sobre as questões aqui apontadas, encontra-se em: LYRA,
Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império. Op. cit.; “A transferência da
Corte, o Reino Unido luso-brasileiro e a ruptura de 1822”, Op. cit.; e O Império em cons-
trução: Primeiro Reinado e Regências. 2000.
16 – Cf. SMITH, Adam. Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações.
Ed. 1979 (Col. Os pensadores).

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Maria de Lourdes Viana Lyra

Traçando o perfil modelador de um novo Estado-Nação fortalecido, caso


a metrópole inglesa optasse por abandonar

Toda sua autoridade sobre as colônias e deixando que elas elejam seus
próprios magistrados, decretem suas próprias leis (concedendo a elas
uma) autonomia voluntária17.

Remarcando que, apesar de “nunca ter sido adotada”, dizia tratar-se


de uma medida oportuna, sob a argumentação de que

Esse gesto poderia não somente dispô-las a respeitar durante sécu-


los o tratado de comércio que tivessem concluído conosco no ato da
separação, mas também a favorecer-nos, tanto na guerra como no co-
mércio e, ao invés de se tornarem súditos turbulentos e facciosos, se
transformassem em nossos aliados mais fiéis, afeiçoados e generosos;
e, entre a Grã-Bretanha e suas colônias poderia reviver o mesmo tipo
de afeição paternal de um lado, e o mesmo respeito filial de outro18.

A sugestão do pensador ilustrado não foi assimilada pela Inglaterra,


ou não houve tempo de ser escutada. Anos depois, possivelmente nela se
inspirada, a Ilustração portuguesa propôs uma saída salvadora à monar-
quia lusa, igualmente atingida pela crise europeia, cada vez mais agrava-
da pelos ecos da Revolução Francesa de 1789, que destruíra as bases do
absolutismo, o outro esteio do Ancien Régime. Nesse quadro de incer-
tezas, o ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho apresentou à Junta de
Ministros um detalhado programa de reformas, chamando-o de

Princípios gerais que deveriam formar o sistema político que mais


convém que a nossa Coroa abrace para a conservação de seus vastos
domínios, particularmente os da América19.

17 – SMITH, Adam. Ibidem. Vol. II. Cap. VII, p.76.


18 – Idem. Ibidem, p. 86.
19 – Cf. Coleção Linhares. Discurso pronunciado perante a junta de Ministros e outras
pessoas sobre assuntos referentes ao desenvolvimento econômico e financeiro de Portugal
e Domínios Ultramarinos, principalmente o Brasil. S. Manuscritos – ABN. Transcrito em:
MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O Intendente Câmara. 1958, p. 268-290. Ver também
análise aprofundada desse documento em: LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do
poderoso Império. Op. cit., p. 61 a 83.

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O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de emancipação colonial

Traçando com precisão a nova diretriz a ser seguida, na qual, o Reino


luso figuraria como

Ponto de união e de assento da monarquia (e) de entreposto para o


comércio com as outras três partes do mundo; (o) feliz nexo que une
os nossos estabelecimentos (pela) feliz posição de Portugal na Euro-
pa, que serve de centro ao comércio do Norte e meio dia do mesmo
continente (sem o qual, as colônias) não poderiam conseguir o grau
de prosperidade a que a nossa situação convida (sob a argumentação
de que) “Portugal reduzido a si só seria dentre breve período uma
província da Espanha”20.

Esclarecendo sobre como deveria ser concebido o novo Estado mo-


nárquico a partir de então:

Os domínios da Sua Majestade na Europa não formarão senão a capi-


tal e o centro de suas vastas possessões (divididas estas, em) provín-
cias da Monarquia, condecoradas com as mesmas honras e privilégios
(...) todas reunidas ao novo sistema administrativo, todas estabeleci-
das para contribuírem à mútua e recíproca defesa da Monarquia, todas
sujeitas aos mesmos usos e costumes (o único meio de assegurar) o
sacrossanto princípio da unidade, primeira base da Monarquia que se
deve conservar com o maior ciúme a fim de que o português nascido
nas quatro partes do mundo se julgue somente português e não se
lembre senão da glória e grandeza da Monarquia, a que tem a fortuna
de pertencer, reconhecendo e sentindo os felizes efeitos da reunião de
um só todo, composto de partes tão diferentes que separadas, jamais
poderiam ser igualmente felizes21.

Note-se que no modelo de Estado proposto, a metrópole não mais


figurava como o centro dominador e monopolizador das relações comer-
ciais, mas como polo dinamizador dessas relações. E o novo império luso
assim constituído surgia como o elemento unificador das partes distintas
e dispersas pelo mundo lusitano, enquanto o sentimento de pertencimento
à nação portuguesa, explicitamente evocado, aparecia com a função obje-
tiva de fortalecer a unidade luso-brasileira, o que asseguraria a criação de
20 – Cf. Coleção Linhares. Ibidem, p. 278.
21 – Idem. Ibidem, p. 280.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

um sentimento único de identidade lusitana entre os habitantes do Brasil.


Anotemos, ainda, que esse programa de reformas estava sendo proposto
em uma conjuntura de crise europeia bastante agravada pela guerra de ex-
pansão napoleônica. Na qual, Portugal, vendo-se encurralado frente aos
grandes interesses envolvidos na disputa entre a França e a Inglaterra,
pela hegemonia do poder na Europa, optou pela estratégia de transferir
sua Corte monárquica para o Brasil, ideia antiga, sempre evocada em mo-
mentos de grande crise. E, justamente, retomada em 1801, pelo mesmo
ministro que formulara o programa de reformas, D. Rodrigo de Sousa
Coutinho, aconselhando o monarca a se transferir para as terras da Amé-
rica, sob o argumento de que ali poderia “Criar um ‘poderoso império’ e
donde se volte a reconquistar o que possa ter perdido na Europa22”.

Ante a ameaça de aniquilamento do Reino luso, como sucedera com


a vizinha Espanha, e a percepção de que transferir-se para o Brasil era
a decisão acertada para salvaguardar a “dignidade do trono” – além da
oportunidade de concretizar a aspiração lusa longamente acalentada de ali
fundar um fortalecido e venturoso estado imperial –, o monarca não titu-
beou em realizar a façanha inédita (que surpreendeu a Europa) de trans-
portar a sede da Corte monárquica e todos os órgãos de governança da
metrópole portuguesa para as terras do Novo Mundo. Mas a ousadia de
tal decisão não foi anunciada com a devida clareza e determinação, pelo
soberano, aos seus súditos, sobre os novos rumos que estavam sendo tri-
lhados pela monarquia portuguesa. Na proclamação expedida aos reinóis,
em fins de 1807, o príncipe regente D. João restringiu-se a participar que

Tendo procurado por todos os meios possíveis conservar a neutrali-


dade (...) vejo que pelo interior do meu Reino marcham tropas do
imperador dos franceses (...) tenho resolvido, em benefício dos meus
vassalos, passar com a rainha minha senhora e mãe, e com toda a real
família, para os estados da América, e estabelecer-me na cidade do
Rio de Janeiro, até a paz geral23.

22 – Cf. Memória sobre a mudança da sede da Monarquia (1803). Coleção Linhares. S.


M. Biblioteca Nacional. Ver também análise mais abrangente sobre essa conjuntura em:
LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império. Op. cit. p. 107-172.
23 – Cf. Decreto de 26 de novembro de 1807. Transcrito por: SILVA, J.M. Pereira da.

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O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de emancipação colonial

Deixou implícito o caráter provisório da transferência, o que não


alarmou tanto de início os habitantes do Reino, ocupados na luta contra
as tropas francesas invasoras. No entanto, a abertura dos portos do Brasil
às nações estrangeiras, abolindo o monopólio comercial, e as iniciativas
seguintes no sentido da instalação do corpo diplomático e de todo o apa-
rato institucional do governo monárquico na nova sede, além de libertar
o Brasil de qualquer laço de subordinação a Portugal, punha às claras o
objetivo da política empreendida com vistas à instalação de um vigoroso
centro de poder monárquico nas terras da América e de ali permanecer.
Diretriz que atendia à estratégia traçada pelos agentes do reformismo ilus-
trado e, cada vez mais, ganhava força entre os nascidos na colônia e os
que aqui chegavam. Após a expulsão dos franceses de seu território, os
reinóis passaram a sentir com maior veemência tanto as perdas sofridas
no decorrer da guerra e, sobretudo, a relevante diminuição das rendas
auferidas com as transações comerciais, quanto o peso da inversão acon-
tecida, que os colocara submissos às ordens vindas do Rio de Janeiro. E,
logo depois do fim da guerra napoleônica na Europa, o descontentamento
entre os reinóis aumentou, levando-os a reagir com vigor ao comando do
interventor inglês, o general William Beresford, e a reivindicar o retorno
da prerrogativa de sede da monarquia, medida urgente e necessária para a
“regeneração” de Portugal. Como traduz a queixa dos mercadores lusos,
no jornal O Português, publicado em Londres, em outubro de 1814:

Fomos a nação do mundo que fez as maiores épocas da história com


mui limitados meios; somos hoje a potência que com maiores recursos
figura menos no teatro das nações.

Ante a pressão crescente pelo retorno da Corte à Lisboa, a pedido


do príncipe regente, o conselheiro Silvestre Pinheiro Ferreira, um dos
ilustrados mais proeminentes na Corte do Rio de Janeiro, elaborou o tex-
to: “Memórias políticas sobre os abusos gerais e modo de os reformar e
prevenir a revolução popular”. Alertando que:
Em circunstâncias críticas (...) são necessárias grandes e extraordi-
nárias providências, para assegurar a integridade da monarquia” (de-
História da fundação do Império brasileiro. Livro 1º, p. 279-281.

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Maria de Lourdes Viana Lyra

vendo D. João) fixar aqui sua residência (e) exercer por si mesmo a
regência do império do Brasil24.

Cabendo ao príncipe D. Pedro assumir a regência do Reino de Por-


tugal, até a morte da rainha-mãe, quando o primeiro tomaria “o título de
imperador do Brasil e soberano de Portugal” e o segundo o título de “rei
de Portugal, herdeiro da Coroa do Brasil”. Além de indicar, como medida
necessária e imediata a reformulação administrativa do Estado monárqui-
co, ou seja:

A divisão do Reino de Portugal e suas dependências, como o império


do Brasil e domínios da Ásia e da África, em províncias, comarcas,
distritos e freguesias; a fim de se estabelecerem em ambos os Estados
correspondentes os tribunais ou estações de governo (...) abolindo a
odiosa distinção de colônias e metrópole (...) e sem distinção alguma
de países25.

Ao mesmo tempo que a representação diplomática lusa atuava na


Europa, imbuída da missão de participar com proeminência das reuniões
decisórias do Congresso de Viena, onde fora decidido que apenas as gran-
des potências teriam voz e poder de decisão. Os diplomatas portugueses
valeram-se então do recurso de se apresentarem junto aos principais ple-
nipotenciários da Europa ali reunidos como representantes do Reino de
Portugal e do Reino do Brasil, obtendo não apenas o aval político dos
europeus para serem incluídos entre os grandes, como o significativo re-
conhecimento político da existência do Reino Unido luso-brasileiro. Tan-
to que, ao editar a Carta de Lei proclamando a criação do Reino Unido de
Portugal, do Brasil e Algarves, o monarca remarcou o fato como justifi-
cativa do ato de legalização de um modelo já existente e aceito interna-
cionalmente. Em relação ao título do novo Estado monárquico adotado,
vale anotar que a inclusão de Algarves se deveu tão somente à tradição

24 – Cf. FERREIRA, Silvestre Pinheiro. Proposta autografada sobre o regresso da Corte


para Portugal e providências convenientes para evitar a revolução e tomar a iniciativa
na reforma política. Documentos para a História da Independência. Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro. P. 129-134.
25 – Idem. Ibidem, p.132.

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O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de emancipação colonial

criada a partir de 1249. Quando os portugueses conquistaram a antiga


província romana da Lusitânia – que, desde o ano 711, constituía domínio
dos árabes e se chamava Al-Garb –, esta passou a ser considerada como
um segundo reino da Coroa portuguesa e, como deferência, os monarcas
passaram a ostentar o título “Rei de Portugal e Algarves”.

A RUPTURA DO MODELO DE UNIDADE LUSO-BRASILEIRA


A elevação do Brasil à condição de Reino Unido a Portugal atendia
à estratégia do reformismo ilustrado e, além de revelar a opção pela per-
manência da Corte no Reino mais promissor, oficializava a emancipação
do Brasil, com a anulação de qualquer resquício de submissão a Portugal.
Que poderia ser entendida como uma notável ousadia do rei português,
caso não tivesse sido proclamada com a timidez característica de um mo-
narca absolutista, cujas propostas de mudanças na estrutura do Estado
eram sempre atendidas só em parte. E, no caso ora em pauta, deixando de
determinar a necessária reforma administrativa, medida pleiteada pelos
reformistas e apontada como indispensável à consolidação do modelo de
Estado atlântico a ser instituído. Que era a transformação das capitanias
coloniais do Brasil em províncias, com direitos iguais às existentes em
Portugal, reforma prevista desde a apresentação do programa de refor-
mas, em fins do século XVIII. A negação do monarca em assumir o avan-
ço proposto barrou o avanço apregoado pelo reformismo ilustrado, ao não
atender às perspectivas de mudanças estruturais no novo Reino do Brasil.
A continuidade da prática administrativa, regida segundo os ditames do
Ancien Régime, caracterizada pela subordinação das instâncias do poder
local aos governos militares, exercidos por capitães-generais nomeados
pela Corte centrada no Rio de Janeiro, provocaria forte reação à política
em prol da unidade luso-brasileira. Ao mesmo tempo que o ato do rei
também não agradou aos reinóis, constrangidos por verem o velho Reino
lusitano, de tradição consagrada, na humilhante posição de “colônia do
Brasil”, situação reveladora de uma drástica inversão de papeis ocorrida
desde 1808, como bem anotou o ilustrado abade De Pradt, em 1817:

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Maria de Lourdes Viana Lyra

Portugal não tinha mais colônia; pois ele próprio se transformara em


colônia. A metrópole não está mais em Portugal, e não é mais em
Portugal que deve procura-la. Ela passou para a América e a colônia
ficou na Europa26.

Igualmente constrangedora era a situação nas demais partes do Rei-


no do Brasil, pela indefinição do próprio status – sendo tratadas ora como
capitania, ora como província –, em virtude da não alteração na estrutura
administrativa no Reino Unido instituído. Seus habitantes, praticamente
marginalizados dos benefícios da autonomia adquirida em 1808, e ratifi-
cada em 1815, se sentiram completamente alijados das perspectivas que
se mostravam promissoras para a sede da Corte, o Rio de Janeiro e a re-
gião circunvizinha. Além de se sentirem incomodadas pelo considerável
aumento da carga tributária, sobretudo aquelas mais desenvolvidas, como
no caso do imposto criado sobre a população do Recife para pagar as
despesas de iluminação da cidade sede da Corte, o Rio de Janeiro, o que
levou ao arrefecimento da euforia inicial em relação à unidade luso-bra-
sileira. As manifestações de regozijo ocorridas no momento da criação do
Reino Unido luso-brasileiro e o consequente sentimento de identidade lu-
sitana ativado foram sendo substituídos por demonstrações de desconten-
tamento em relação ao modelo de Estado Atlântico, no mesmo compasso
em que ia diminuindo o sentir-se pertencente à nação portuguesa.

É, portanto, nesse cenário de confronto entre grupos de interesses


divergentes – no interior do novo e entre os dois reinos – que a atenção
deve ser centrada para melhor apreensão das reais questões então envol-
vidas. Tanto em relação ao andamento da política de implantação do Rei-
no Unido luso-brasileiro quanto à identificação das causas que levaram à
falência do modelo de autonomia colonial estruturada na unidade atlânti-
ca. É, portanto, no contexto do acirramento dessa confrontação que vem
sendo retomada a reflexão sobre o tema da Independência e vêm sendo
elaboradas as análises mais recentes, no sentido de melhor apreender a
razão dos movimentos de contestação ao modelo de Reino Unido que
estava sendo implantado e desencadeados nos dois lados do Atlântico, a
26 – Cf. DE PRADT, Abade. Des Colonies e la Révolution Actuelle de L`Amérique. 1817.

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O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de emancipação colonial

partir de 1817. No novo Reino, quando setores importantes da sociedade


de Pernambuco – uma das principais áreas de concentração das relações
sociais e, desde o início da colonização, carro-chefe da economia agroex-
portadora – lideraram uma forte reação contra a unidade luso-brasileira e,
revolucionariamente, proclamaram o governo republicano, colocando em
pauta outro modelo de independência colonial27; no velho Reino, quando
um grupo integrado por oficiais do Exército e da Maçonaria se rebelou em
Lisboa, reagindo à situação calamitosa em que lá viviam, sob a opressão
do governo de Beresford e a total submissão aos interesses britânicos.

Em Pernambuco, grandes proprietários de terras, comerciantes urba-


nos e membros do clero se posicionaram contra o modelo de autonomia
instaurada com o Reino Unido e, em nome da “restauração da pátria”,
reagiram contra a continuidade da prática administrativa arcaica e opres-
sora da monarquia absolutista, centrada no Rio de Janeiro. Inspirados nos
ideais de liberdade e da efetiva participação do homem na sociedade,
proclamaram que “o povo entrava na posse de seus legítimos direitos
sociais”, por considerarem-se “revestidos da soberania pelo povo em que
ela só reside”, logo cuidando de elaborar os princípios gerais de uma “Lei
Orgânica”, para regulamentar o governo republicano, que atuou na região
por cerca de três meses28. A consternação da Corte do Rio de Janeiro ao
receber a notícia da “estranhíssima rebelião” eclodida em Pernambuco
foi “indubitavelmente enorme” e a mobilização empreendida pelo gover-
no para abafar o movimento que buscava abolir os “sagrados direitos de
El-Rei nosso senhor e a integridade da nação” foi devastadora. A Gazeta
do Rio de Janeiro publicou, em 14 de maio, a saída de um “poderoso
comboio”, preparado sob as vistas diretas do monarca, composto de uma
nau, dez navios e 3 mil homens, para combater os revoltosos29. Os líderes
foram condenados à morte – as cabeças e mãos decepadas, espetadas em
mastros espalhados por diversos municípios da província, e os corpos ar-
rastados por cavalos até os cemitérios – como ação disciplinadora, tradi-
27 – Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência. Op. cit.
28 – Cf. Preciso. Coleção Documentos Históricos. Vol. CV. Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro.
29 – Cf. SANTOS, Luis Gonçalves dos. Op. cit., p.96

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):149-172, jan./mar. 2016. 165


Maria de Lourdes Viana Lyra

cionalmente utilizada nos crimes de lesa-majestade e, para que ninguém


mais se atrevesse a falar em revolução, nem duvidar da validade do sis-
tema monárquico30. Em Portugal, os líderes do movimento, que haviam
se organizado para desencadear um movimento em prol da “regeneração”
do Reino europeu e promover a “salvação da independência” da pátria,
foram combatidos com igual energia pela Corte do Rio de Janeiro. Acu-
sados de “traidores da pátria”, foram sentenciados à pena de morte por
enforcamento, sequestro de bens e degredo31.

Mas a ação disciplinadora do governo não foi suficiente para impe-


dir que novos focos de reação ressurgissem, reivindicando modificações
mais profundas quanto à composição do Estado monárquico, sob forma
de Reino Unido luso-brasileiro, e quanto à definição da participação do
homem na sociedade. O movimento revolucionário de 1817 significara
a entrada em cena, no mundo português, de um outro projeto de organi-
zação política calcado nos sedutores princípios da liberdade e da repre-
sentação. Enquanto no cenário europeu o momento era de reacomodação
de forças, o que favorecia a discussão contra as instituições arcaicas do
Ancien Régime. Um tempo marcado pela guerra expansionista do Im-
pério francês, que desestruturara as bases das instituições estabelecidas
em muitos países da Europa, e pela consagração do princípio da liber-
dade política, no qual as atenções centravam-se na questão da definição
das novas formas de poder do novo Estado proposto. E nesse contexto
de restauração dos princípios de governo monárquico-constitucionais na
França, situou-se o movimento liderado pela burguesia portuguesa, que
passou a ver no caminho da constitucionalidade da monarquia a forma
mais segura de se fazerem representar nas decisões políticas relativas à
recomposição do Estado. Tanto que, em agosto de 1820, rebentou em
Portugal o movimento em prol da “salvação da pátria” e, revolucionaria-
mente, reivindicando a convocação das Cortes Constitucionais, como “o
órgão da nação”, para a elaboração de “uma Constituição que segure os
nossos direitos”. Ao mesmo tempo que confirmava a fidelidade ao rei “D.
30 – Cf. COSTA. F.A. Pereira da. Anais Pernambucanos. Vol. 7, p. 478 e segts.
31 – Cf. MONTEIRO, Tobias. História do Império: a elaboração da Independência. Op.
cit., p. 204-209.

166 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):149-172, jan./mar. 2016.


O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de emancipação colonial

João VI (...) amante de um povo que o idolatra”32, enquanto a Corte do


Rio de Janeiro permanecia atenta ao clima de intranquilidade do Reino
de Portugal.

Nesse contexto, sucederam-se os conflitos entre os grupos dominan-


tes do poder nos reinos de Portugal e do Brasil, todos eles engajados em
torno do mesmo objetivo, ou seja, a plena institucionalização do novo
Estado português – sob a forma de monarquia constitucional, baseado
na unidade luso-brasileira –, mas confrontados por interesses e princí-
pios divergentes e, portanto, com sérias implicações à consolidação da
política em prol do Reino Unido luso-brasileiro em implantação33. Não
constituíam grupos homogêneos entre si e divergiam, tanto em relação
às propostas de organização constitucional e ao grau de adoção do sis-
tema proposto quanto ao peso político das partes componentes do Reino
Unido. No contexto da inversão das relações de dependência, complexas
eram as ligações estabelecidas entre os interesses econômicos e as for-
mulações político-ideológicas, constituindo um elemento relevante, que
não pode deixar de ser apreciado. As pressões em torno da volta do rei a
Portugal ou da sua permanência no Brasil; o movimento em prol da con-
servação de uma Corte no novo Reino e a reação portuguesa contra tal
prerrogativa; as diferentes formas de reação nas demais partes do Reino
do Brasil, em face da proposta constitucional; as mobilizações de rua para
forçar o prévio juramento do rei à Constituição que estava sendo elabo-
rada em Portugal; e tantos outros eventos – alguns narrados com profu-
são de detalhes pela historiografia tradicional – desenvolveram-se nesse
quadro de enfrentamento entre projetos divergentes de reorganização do
Estado imperial português. No qual, é necessário acentuar, o Reino do
Brasil constituía parte importante, pela extensão territorial e comprovada
potencialidade de produção e desenvolvimento34.
32 – CF. Proclamação lida pelo coronel Cabreira. Transcrita em SANTOS, F. Piteira dos.
Op. cit., p. 152
33 – Sérgio Buarque de Holanda, numa das mais lúcidas análises sobre o tema, analisa
com clareza o movimento da Independência, como o resultado do confronto entre portu-
gueses do Brasil e portugueses de Portugal. Cf. A herança Colonial – Sua Desagregação.
Op. cit., p. 13.
34 – Uma análise mais aprofundada sobre as questões aqui mencionadas, pode ser confe-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):149-172, jan./mar. 2016. 167


Maria de Lourdes Viana Lyra

A convocação de eleições para a representação do Reino do Brasil


às Cortes Constituintes de Lisboa ampliou o debate sobre a reestruturação
do Estado monárquico e sobre a participação dos novos cidadãos (não
mais vassalos do rei) da monarquia constitucional portuguesa, levando às
ruas uma discussão antes restrita aos círculos dos ilustrados. Nesse am-
biente de efervescência da discussão política em torno da graduação do
sistema constitucional a ser adotado, o confronto de ideias e de interesses
divergentes de grupos expoentes (no interior e entre os dois reinos) levou
à ruptura inevitável da unidade luso-brasileira, em 1822, inviabilizando
a continuidade da execução do projeto português de grandeza imperial,
a partir do Novo Mundo. O teor do Manifesto aos Brasileiros, de 1º de
agosto de 1822, traduz com clareza o chamamento aos habitantes do Bra-
sil sobre a necessidade de substituir a noção de pertença ao império por-
tuguês, pela identidade com o Brasil como corpo referencial político. Ou
seja, pelo sentimento de pertencimento ao novo e poderoso império do
Brasil, que passava a ser gestado:

Acordemos, pois, generosos habitantes deste vasto e poderoso impé-


rio, está dado o grande passo da vossa independência e felicidade, há
tanto tempo preconizado pelos grandes políticos da Europa. Já sois
um povo soberano, já entrastes na grande sociedade das nações in-
dependentes, a que tínheis todo direito (...) o mesmo direito que teve
Portugal para destruir as suas instituições antigas e constituir-se, com
mais razão o tendes vós, que habitais um vasto e grandioso país (...).
Que nos resta pois brasileiros? Resta-nos unir-nos todos em interesse,
em amor, em esperanças; fazer entrar a augusta Assembleia do Brasil
no exercício das suas funções para que, meneando o leme da razão e
da prudência, haja de evitar os escolhos nos mares das revoluções (...).
Não se ouça, pois, outro grito que não seja união. Do Amazonas ao
Prata não retumbe outro eco que não seja – independência. Formem
todas as nossas províncias o feixe misterioso que nenhuma força pode
quebrar35.

rida nos textos de: LYRA, Maria de Lourdes Viana, aqui citados.
35 – Cf. Manifesto aos Brasileiros, em 1º de agosto de 1822. Ver também a análise dessa
documentação em: LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império. Op.
cit., p. 191-227.

168 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):149-172, jan./mar. 2016.


O Brasil como Reino Unido a Portugal: Um modelo de emancipação colonial

Seria a partir de então que o princípio da unidade de um almejado


poderoso império se restringiu a área de amplitude, passando a ser pensa-
do nos limites “entre o Amazonas e o Prata” e defendido como fundamen-
to essencial na luta pela separação entre os dois Reinos, o do Brasil e o de
Portugal. Ou seja, requerendo a ruptura do Reino Unido luso-brasileiro,
ao mesmo tempo que passava a ser substituído o sentimento de identidade
lusitana pelo de pertencimento ao novo Estado nascente, o Império do
Brasil. Foi, portanto, nesse quadro conjuntural específico que se desenca-
deou a luta em prol da construção do Estado independente, monárquico e
imperial do Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, creio ser possível aventar que o discurso inflamado da re-
presentação política do Reino do Brasil, no confronto travado no plenário
das Cortes Gerais e Constitucionais de Lisboa – cuja documentação re-
gistra o clima de forte tensão entre os grupos empenhados na defesa dos
interesses divergentes –, tenha induzido os representantes do novo Reino
ao clamor pela autonomia, temerosa da perda dos direitos legalmente ad-
quiridos em 1815. A permanência da unidade luso-brasileira, almejada
por ambos os lados, constituía uma questão central a ser enfrentada na-
quele momento de definição sobre a forma de monarquia constitucional a
ser estruturada. Enquanto a possibilidade de perda do status de Reino do
Brasil, que acarretaria o consequente retorno ao cenário de dominação do
velho sobre o novo, como pleiteavam os deputados de Portugal, era ina-
ceitável aos do Brasil, levando ao acirramento da discussão em torno da
autonomia já conquistada pelo novo Reino, com ênfase no alerta de que
a anulação dos direitos adquiridos provocaria a irremediável separação
dos dois reinos, solução evocada no sentido corrente de independência
colonial, palavra que só então passou a ser utilizada com mais frequência
no discurso político da época.

Acredito que tais questões possam explicar, em parte, o silêncio ou


a inexistência de análise referencial na produção historiográfica brasilei-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):149-172, jan./mar. 2016. 169


Maria de Lourdes Viana Lyra

ra, sobre o modelo de autonomia – libertação do sistema de dominação


colonial –, conquistada pelo Brasil, ao sediar a Corte monárquica (1808)
e adquirir a condição de Reino Unido a Portugal (1815). Ao entender-
-se que, induzidos pelo testemunho documental do tempo enfocado, os
fundadores da historiografia brasileira deixaram de perceber, e/ou realçar,
o quanto fora excepcional o modelo de emancipação da colônia Brasil,
com a legalização da passagem do status de colônia ao de Reino Unido
a Portugal. Condição privilegiada e legalmente existente, entre os anos
1815/1822 revelando a particularidade do processo da Independência do
Brasil no contexto das demais independências coloniais. O que resultou
na produção de um conhecimento histórico incompleto, por não reconhe-
cer o novo status adquirido em 1815, centrar o foco da análise nos aconte-
cimentos próximos ao ato final do rompimento da unidade luso-brasileira
e, sobretudo, continuar considerando o Brasil na incômoda situação de
colônia. Ou seja, entendendo que a autonomia, a emancipação, ou a In-
dependência do Brasil, ocorreu no contexto usual de luta entre a colônia
e a metrópole, sendo finalmente conquistada em 7 de setembro de 182236.

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36 – Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. “Memória da Independência: Marcos e Repre-


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172 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):149-172, jan./mar. 2016.


Reino Unido: Uma Coroa entre a Europa e a América

173

REINO UNIDO: UMA COROA ENTRE A EUROPA E A


AMÉRICA
UNITED KINGDOM: ONE CROWN BETWEEN EUROPE AND
AMERICA
Lucia Maria Bastos P. Neves1

Resumo: Abstract:
O objetivo deste artigo é analisar as visões de The goal of this article is to analyze the views
Portugal e do Brasil sobre um mesmo fato – a of Portugal and Brazil on one event – the el-
elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal evation of Brazil to the United Kingdom of Por-
e Algarves, em 1815. Por meio das percepções tugal and the Algarves in 1815. By way of the
distintas apreendidas por homens do mesmo differing perceptions held by men of the same
tempo, verificam-se as diversas linguagens, que time period, we can see the diverse language
procuravam expressar tanto as diferentes iden- used to try to express both the different politi-
tidades políticas e sociais como as tensões que cal and social identities and the tensions that
se faziam presentes naquela conjuntura histórica were present at that historical juncture between
entre os dois reinos irmãos. Se para aqueles que the two fraternal kingdoms. Whereas for those
se encontravam no Brasil a elevação do Brasil a who found themselves in Brazil the elevation of
reino representava a possibilidade de certa auto- Brazil to a kingdom represented the possibility
nomia e de proeminência no interior do Império, of certain autonomy and prominence within the
para os que permaneceram no reino português, a inside of the Empire, those who remained in
situação era de inferioridade, pois Portugal tor- the Portuguese kingdom held an inferior status
nava-se colônia de sua antiga colônia. No entan- since Portugal itself became a colony of its own
to, se o Reino Unido em 1815 não representou a former colony. However, if the United Kingdom
garantia de unidade do império Português, tam- in 1815 did not represent a guarantee of unity in
bém não significou a ideia de separação entre the Portuguese empire, neither did it signify the
as suas partes. Somente na segunda metade de idea of a separation between its parts. Only in
1820, tal equilíbrio frágil acabou por se romper. the second half of 1820 did the fragile equilib-
rium finally rupture.
Palavras-chave: Reino Unido; Identidades; Keywords: United Kingdom; Identities; Politi-
Linguagens políticas; Diplomacia. cal Language; Diplomacy.

A Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815, que ele-


vou o principado do Brasil a predicamento de Reino,
e o declarou Unido ao de Portugal e dos Algarves, é
Benefício Político (...). A notoriedade da participação
que a Corte fez dessa Magnânima Resolução Régia
aos Gabinetes da Europa, e das Respostas diplomá-
ticas das Potências em louvor de tão Esplêndido Ato

1 – Doutora em História. Professora titular de História Moderna e procientista da Uni-


versidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora 1 A do CNPq. Cientista do Nosso
Estado FAPERJ. Sócia honorária do IHGB.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):173-192, jan./mar. 2016. 173


Lucia Maria Bastos P. Neves

Soberano, é não menos o anúncio da Grande Razão


de Estado que se fundou o Magnífico Diploma (...).
José da Silva Lisboa2.

Um decreto criou os Estados do Brasil em reino e


uniu este aos dois outros reinos de Europa que V.
M. possui. A medida, em si mesma, é indiferente ou
nula. Será boa ou má segundo o proceder posterior
do governo. Todavia, apesar da conservação do seu
antigo título e da preeminência nominal, o nobilíssi-
mo reino de Portugal que foi o berço da monarquia e
há pouco se restaurou por si, está posto no humilde,
injurioso e incômodo estado de colônia!
João Bernardo da Rocha Loureiro3.

Duas visões sobre o mesmo fato – a elevação do Brasil a Reino Uni-


do de Portugal e Algarves. Percepções distintas apreendidas por homens
do mesmo tempo, que por meio de diversas linguagens procuravam ex-
pressar tanto as diferentes identidades políticas e sociais como as tensões
que se faziam presentes naquela conjuntura histórica. Afinal, como afirma
Javier Fernández Sebastián, é importante distinguir as diferentes percep-
ções que os homens possuem ao formularem as opiniões que os situam
no espaço público de poder, a fim de viabilizar a apreensão das variadas
visões de mundo de uma época4.
2 – LISBOA, José da Silva. Memória dos benefícios políticos do Governo de El-Rey
Nosso Senhor D. João VI, Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818, p. 111-112.
3 – LOUREIRO, João Bernardo da Rocha. Memoriais a D. João VI. Edição e comen-
tários por Georges Boisvert. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian; Centro Cultural Por-
tuguês, 1973, p. 56. Os Memoriais a D. João VI foram redigidos em forma de carta a D.
João VI por Rocha Loureiro, a partir de 1816, inseridos em O Português. Posteriormente,
foram publicados em 1973.
4 – SEBASTIÁN, Javier Fernández. Hacia una Historia Atlántica de los conceptos po-
líticos, en Idem, Dicionario politico y social iberoamericano. Iberconceptos I. Madrid:
Fundación Carolina/Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales/ Centro de Es-
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174 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):173-192, jan./mar. 2016.


Reino Unido: Uma Coroa entre a Europa e a América

Em relação à primeira citação, seu autor, José da Silva Lisboa,


nasceu na América portuguesa, mas fez seus estudos em Coimbra. Mo-
narquista convicto, embora constitucional, e partidário da dinastia dos
Bragança, opunha-se às propostas mais democráticas veiculadas desde
a Revolução Francesa, defendendo a manutenção do soberano como re-
presentante da nação. Em sua visão, a elevação do Brasil à categoria de
Reino Unido representava uma distinção de direito, que se justificava por
uma necessidade de razão de Estado, perspectiva tão cara aos homens do
setecentos, sem, contudo, significar qualquer ato de independência em
relação à antiga mãe pátria. Como afirmava em sua Memória, era absurdo
“(...) considerar Colônia a Terra de Residência do Soberano”5. A própria
vinda da família portuguesa para o Brasil havia, na visão de época, feito
desaparecer o nome de colônia. Portanto, o novo título era a confirma-
ção de algo já constante havia muito: a presença do soberano em terras
americanas rompia a subordinação destas a Portugal6. Tal fato, porém,
não significava qualquer veleidade de independência entre os dois reinos.
Assim, em 1821, ao publicar o periódico O Conciliador do Reino Unido,
considerava que “os laços naturais entre Portugal e Brasil serão fortifica-
dos de dia a dia; e que o Reino Unido, criado por D. João VI, subir[ia],
sem alguma dúvida, ao mais alto grau de potência e prosperidade”7.

Já João Bernardo da Rocha Loureiro, nascido em Portugal e também


formado pela Universidade de Coimbra no início do oitocentos, distin-
guiu-se por suas ideias mais radicais a favor de uma monarquia liberal e
constitucional. Por tais razões, emigrou para a Inglaterra em 1813, publi-
cando no ano seguinte o periódico O Portuguez, em que fazia a análise
da vida pública portuguesa, relacionando-a com a sucessão dos aconte-
cimentos europeus. De forma distinta do jornalista brasiliense Hipólito

Francisco (dirs). Diccionario político y social del siglo XIX español. Madrid: Alianza
Editorial, 2002.
5 – LISBOA, José da Silva. Memória dos benefícios políticos do Governo ..., p. 68 e 114.
Grifo no original.
6 – Para esta questão, ver SCHULTZ, Kirsten. Versalhes Tropical. Império, monarquia
e a Corte Real portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008, p. 275-281.
7 – O Conciliador do Reino Unido. Rio de Janeiro, no. 3, p. 28, 1821.

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da Costa, Rocha Loureiro atacava diretamente a D. João, inaugurando os


primeiros argumentos sobre a inversão do sistema colonial. Por conse-
guinte, por suas críticas ferozes ao despotismo e, em especial, à dinastia
de Bragança foi logo proibido em todo o Império. Acreditava que não
era admissível haver “colônias na Europa que pertençam a metrópoles
transatlânticas”, em uma clara alusão à inversão de papéis entre Portugal
e o Brasil8. Em suas palavras, foi em virtude do governo de D. João que
“nossa antiga e ilustre metrópole (oh, infelicidade!) em vez de ser cabe-
ceira, tem disso escabelo calcado aos pés de todos os outros governos”9.
Indagava ainda se a Europa devia consentir que suas leis poderiam vir
da América. Para o redator, esta era a questão fundamental que ocorria
com a passagem do Príncipe de Portugal para o Brasil e da elevação deste
último a Reino. Não se tratava de “uma questão de mera soberania”, mas
sim de saber se a América terá colônias na Europa e se está receberá leis
de América”.10 Assim, a elevação do Brasil a Reino era um fator que ia
além do problema da diplomacia e da soberania.

Essas duas opiniões refletem a importância de 1815 no Império por-


tuguês. Abordada durante muito tempo, pela historiografia, como uma
simples questão diplomática, com o objetivo de reforçar a posição de
Portugal nas negociações de Viena, a elevação do Brasil à condição de
Reino conheceu um papel fundamental no horizonte de expectativas11 dos
dois reinos irmãos, que começavam a trilhar caminhos distintos. Como
apontava, anos mais tarde, em 1819, com grande lucidez, Pedro de Sousa
Holstein, conde de Palmela: “Não podemos deixar de considerar que a
Monarquia Portuguesa tem dois interesses distintos, o Europeu e o Ame-
ricano, os quais sempre se podem promover juntamente, mas que não

8 – LOUREIRO, João Bernardo da Rocha. Memoriais a D. João VI ... p. 63.


9 – LOUREIRO, João Bernardo da Rocha. Memoriais a D. João VI ... p. 226. Para uma
análise sobre a postura de Rocha Loureiro, ver MUNARO, Luís Francisco. O jornalismo
português em Londres (1808-1822). Retrato de um tempo e de uma profissão. Rio de Ja-
neiro: Publit, 2014, p. 125-130 e p. 215-218.
10 – O Portuguez. Londres. V. 4, no. 22, p. 358-360. Apud Memoriais a D. João VI …. p.
63.
11 – A expressão é de KOSELLECK, R. Futuro Passado – contribuição à semântica dos
tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 305-327.

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Reino Unido: Uma Coroa entre a Europa e a América

devem em caso nenhum sacrificar um ao outro”.12 A visão da Coroa por-


tuguesa continuava a ser de um compromisso com um só corpo político
formado pelas diversas partes constituintes do Império. Não à toa, no
decreto de 16 de dezembro, a expressão utilizada, como já apontou Arno
e Maria José Wehling, era Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves,
em vez daquela adotada na ata final do Congresso de Viena – “S. A. R. Le
Prince-régent du Royaume de Portugal et de celui du Brésil”13. O decreto
era claro: “Que os meus Reinos de Portugal, Algarves e do Brasil formem
dora em diante um só e único Reino”, demonstrando a preocupação do
soberano em manter os vínculos entre as duas partes do Império14.

Ainda que Evaldo Cabral de Mello afirme que “a construção impe-


rial não passou de figura de retórica”, uma vez que é possível questionar,
em função das distâncias das datas, se a decisão de D. João fora real-
mente inspirada pelo Congresso de Viena, tal acontecimento não deixou
de interferir no imaginário de época nos dois lados do Atlântico. Para o
historiador, a ideia, provavelmente, fora vendida por Palmela ao príncipe
regente, “fazendo-a passar por sugestão de Talleyrand, de modo a dar-lhe
maior autoridade”15. Na época, no entanto, o Encarregado dos Negócios
de Portugal em Paris, em nota ao Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios Estrangeiros, afirmava que esse ato – o da elevação do Brasil a
Reino – fora previsto “por todas as Potências da Europa no Congresso de
Viena”, sendo solenemente realizado pela referida Lei de 16 de dezem-
bro16.

Em outra leitura, Hipólito da Costa, em seu Correio Braziliense,


afirmava que não era igualmente claro que a ideia fosse sugerida pelos
Soberanos Aliados ou seus Ministros no Congresso. Desejava sincera-
12 – Para a citação, ver ALEXANDRE, Valentim. Os sentidos do Império. Questão nacio-
nal e questão colonial na crise do Antigo Regime Português. Porto: Edições Afrontamen-
to, 1993, p. 355.
13 – Soberania sem Independência: Aspectos do discurso político e jurídico na proclama-
ção do Reino Unido. Revista Tempo, Niterói, no. 31:89-116, 2011, especialmente, p. 102.
14 – Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815. [Rio de Janeiro]: Impressão Régia, [1815].
15 – MELLO, Evaldo Cabral de. “O Império frustrado”. In: Um imenso Portugal. Histó-
ria e Historiografia. São Paulo, Editora 34, 2002, p. 47.
16 – Gazeta de Lisboa. Lisboa, no. 231, 28 de setembro de 1816.

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mente que essa alteração de nome fosse de “moto próprio” do Soberano


do Reino Unido17. Já uma Memória anônima sobre a situação do Brasil e
Portugal, escrita em Londres, em 1822, dava outra explicação. Informava
que os ministros da legação portuguesa no Congresso de Viena, embora
não tivessem instrução alguma, resolveram “sondar as diferentes Potên-
cias sobre o reconhecerem a criação do Reino Unido de Portugal e Brasil,
elevando este último à categoria de Reino”. O objetivo dessa iniciativa
era consolidar sobre “bases firmes os interesses mútuos, a perpétua união
dos diversos membros da Monarquia”. Como não encontraram dificulda-
des por parte dos representantes das grandes potências, propuseram em
seus ofícios tal ideia aos ministros de Sua Majestade, para que Ele decla-
rasse por lei fundamental da monarquia a união dos dois reinos debaixo
do título de Reino Unido18.

Qualquer que fosse a origem da adoção do novo título – Reino Uni-


do de Portugal, Brasil e Algarves – este, sem dúvida, no imaginário dos
governantes portugueses da época, assegurava a Portugal um novo lugar
na diplomacia europeia, pois deixava de ser um pequeno país para se
transformar em um grande Império. A visão de cada reino para essa mo-
dificação, entretanto, era distinta, pois podia implicar resultados diversos
e imponderáveis. Para a parte americana do Império, a elevação garantia,
ainda que temporariamente, a permanência da Corte no Rio de Janeiro e
era lida por seus habitantes como indicação de certa opção pela manuten-
ção da capital do Reino nessas terras19. Testemunhavam tal perspectiva
as inúmeras representações enviadas ao regente pelas diversas Câmaras
espalhadas pelo Brasil.

De acordo com o Senado da Câmara do Rio de Janeiro, tratava-se de


uma “ilustrada política e de uma espontânea deliberação”. O Brasil me-

17 – Correio Braziliense. Londres, v. 16, no. 93, fevereiro de 1816, p. 186.


18 – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Col. IHGB DL15,15. Memória sobre
a situação de Portugal e do Brasil desde a saída de Família Real de Lisboa em 1807 até
1822, indicando algumas providências tomadas para a elevação do Brasil à categoria de
Reino Unido de Portugal e Algarves. Londres, 1822, p. 3-4.
19 – Cf. LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil (1909). 3a. ed. Rio de Janeiro: Topbooks,
1996.

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Reino Unido: Uma Coroa entre a Europa e a América

recia aquela preeminência “pela sua vastidão, fertilidade e riqueza”. E D.


João reconheceu tais qualidades ao firmar tal decreto. Aliás, o “ato dessa
união [seria] o objeto de uma brilhante página na História [de sua] Glorio-
sa Regência”. Declarava ainda que essa atitude constituía-se como funda-
mental para a “prosperidade geral das partes constituintes da monarquia
portuguesa”20. Ainda, outro regozijo por esse ato, foi realizado pelos mais
destacados negociantes da Praça do Rio de Janeiro, entre outros, Fernan-
do Carneiro Leão, João Rodrigues Pereira de Almeida e Amaro Velho da
Silva. Estes ofereciam ao soberano, “além de outras demonstrações de
sua gratidão e aplauso”, por tal atitude, uma “subscrição voluntária para
se formar um capital, cujo rendimento anual” fosse empregado em favor
da “educação pública”21.

Igualmente, representações de outras Câmaras eram transmitidas ao


regente e divulgadas na Gazeta do Rio de Janeiro. A Câmara de Vila Rica,
em 20 de janeiro, ao tomar conhecimento da Carta de Lei de 16 de dezem-
bro, congregou seus membros para, em nome de todos seus habitantes,
se congratularem por tão importante acontecimento. Houve luminárias,
uma solene Ação de Graças e ópera gratuita no teatro da referida vila,
indicando práticas tão comuns nas cerimônias do Antigo Regime22. Na
mesma capitania, na vila de Sabará, o contentamento contagiou a cidade.
Diversas autoridades acordaram em iluminar suas residências, por três
dias consecutivos, o que foi seguido pela maioria de seus habitantes. O
juiz de fora, “querendo manifestar seu patriotismo”, determinou que nas
noites de iluminação “vagassem pelas ruas diversos coros de música ins-
trumental” e durante os intervalos se lançassem fogos de artifícios. No
último dia, o mesmo Juiz de Fora deu um jantar para os presos “com toda
a profusão” e se cantou um Te Deum em ação de graças23.

Também, na vila de Mariana, a notícia provocou no “coração dos


Brasileiros” satisfação enorme levando seus habitantes a dar testemunhos
20 – Gazeta do Rio de Janeiro, no. 3, 10 de janeiro de 1816. A notícia foi também trans-
crita na Gazeta de Lisboa, no. 98, 25 de abril de 1816.
21 – Gazeta de Lisboa, no. 167, 16 de julho de 1816.
22 – Gazeta do Rio de Janeiro, no. 14, 17 de fevereiro de 1816.
23 – Gazeta do Rio de Janeiro, no. 36, 4 de maio de 1816.

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públicos de seu júbilo e agradecimento ao Príncipe Regente. As cerimô-


nias foram semelhantes às das outras vilas, mas destaca-se que, paralela-
mente, entre essas festas, houve um curioso e “alegórico bando”, recitado
em verso. Neste, concorria a figura do Brasil, representado por um índio,
que aparecia ricamente vestido e montado em um cavalo, levando um
estandarte com as armas reais24. Representação curiosa para um momen-
to em que a ideia de Brasil ainda se encontrava em forma embrionária,
mas que, certamente, representava a imagem da América. Bem verdade,
a figura do índio era também alegórica, pois estava vestido segundo os
costumes ocidentais, o que fugia a qualquer padrão dos hábitos dos habi-
tantes originais da terra.

Não só a capitania de Minas Gerais se fez presente, mas também


outras, como a de São Paulo, Bahia e Pernambuco, entre várias. Afinal,
na linguagem eloquente do padre Perereca, as festas ocorreram “desde o
Amazonas até o Prata”, e em “todas as cidades e vilas do Brasil”, além
de inúmeras deputações que as Câmaras mandaram para a Corte a fim de
“beijar a Real mão de Sua Alteza e agradecer tão singular e honorífica
graça”25. Para os enviados pela Câmara da Cidade de São Paulo, a Carta
de Lei de 16 de dezembro constituía uma “das épocas mais gloriosas da
felicíssima Regência de Vossa Majestade”. Reconheciam a importância
do benefício e propunham empregar “todas as suas forças para se mostra-
rem sempre os mais fiéis vassalos” do Reino26.

Dessa forma, a Gazeta do Rio de Janeiro transcrevia o decreto e


narrava as comemorações em homenagem a tal acontecimento. Outros
comentários surgiam em escritos, sermões e narrações sobre o evento.
Para o cônego Romualdo Antônio de Seixas, D. João consolidava o Im-
pério ao mesmo tempo que dava ao Brasil um “ponto de dignidade e de
representação”. A elevação à categoria de Reino permitia que o Brasil
ocupasse um lugar e um nome entre as potências europeias, “tão bem me-

24 – Gazeta do Rio de Janeiro, no. 29, 10 de abril de 1816.


25 – SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir à História do Reino do Brasil
(1825). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1981, v. 2, p. 28.
26 – Gazeta de Lisboa, no. 231, 28 de setembro de 1816.

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Reino Unido: Uma Coroa entre a Europa e a América

recido pela extensão, grandeza e produtos deste fertilíssimo Continente”,


mas, sobretudo, reunia “todos os Portugueses como Irmãos e Membros de
uma só Família, debaixo das vistas e dos cuidados de seu Pai comum”27.

Hipólito da Costa, apesar de se regozijar da mudança, não apenas a


glorificava. Almejava que ela implicasse mais do que uma simples altera-
ção no nome, uma vez que devia trazer em si desdobramentos em relação
ao governo interno do Reino do Brasil, abrindo a porta para “reformas
úteis e melhoramentos radicais”. Ainda assim, não pensava em qualquer
proposta de “alguma intentada desunião”, posto que o nome era Reino
Unido. De qualquer forma, era “necessário, porém, estar alerta”28.

Por conseguinte, os discursos e homenagens que aconteciam no


Brasil, para além de confirmarem uma perspectiva legal, resultante da
transferência da Corte para essas terras, demonstravam, sobretudo, que
tal mudança não servia a um objetivo de desunião entre os dois reinos
irmãos. Ao contrário, a elevação a Reino consolidava a ideia de triunfo de
um Império unificado. De certa forma, retomavam-se antigas propostas
de estadistas portugueses, como a de Rodrigo de Sousa Coutinho. Segun-
do sua visão, Portugal não sendo “a melhor e mais essencial parte da Mo-
narquia”, ainda restava “ao soberano e aos seus povos”, depois de ele ter
sido “devastado por uma longa e sanguinolenta guerra”, a criação de um
poderoso Império no Brasil, “donde se volte a reconquistar o que se possa
ter perdido na Europa”29. Nesse caso, o ministro revelava uma perspec-
tiva mais ampla, que implicava não apenas um deslocamento transitório

27 – Sermão de Acção de Graças que no dia 13 de maio celebrou o Senado da Camara


desta capital do Pará pela feliz aclamação do muito Alto e Poderoso Senhor D. João VI.
Rey do Reino Unido de Portugal, do Brazil e de Algarves. Recitado e oferecido a Sua
Magestade Fidelsíssima pelo presbytero Romualdo Antonio de Seixas. Rio de Janeiro:
Impressão Régia, 1818, p. 15.
28 – Correio Braziliense, Londres, v. 16, no. 93, fevereiro de 1816, p. 187.
29 – BNRJ – Divisão de Manuscritos, I- 29, 13, 22. Carta dirigida ao Príncipe regente D.
João, fazendo uma detalhada exposição sobre as condições políticas da Europa em face
das guerras de Napoleão, por Rodrigo de Sousa Coutinho. 16 de agosto de 1803. Para a
discussão do conceito de Império, ver Guilherme Pereira das Neves, em artigo nesta re-
vista. Cf. ainda LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império: Portugal
e Brasil: bastidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.

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da Corte, mas sobretudo numa profunda reforma do império português


como um todo.

Já do outro lado do Atlântico, entre as elites intelectuais e politiza-


das, marcadas por alguns princípios da Ilustração, a proposta do Reino
Unido de Portugal, Brasil e Algarves produziu reações bastante distintas,
como também diversas apreensões, pois estes se consideravam órfãos de
seu rei. A questão fundamental discutida era que a equiparação do Brasil a
Reino representava a possibilidade da permanência efetiva da Corte neste
lado do Atlântico, tornando Portugal cada vez mais dependente da antiga
colônia, com a possibilidade de nunca mais tornar a ser a sede da monar-
quia. José Liberato de Carvalho, redator do Investigador Português em
Inglaterra (1814-1818), indagava: “O que é pois atualmente Portugal ou
para falar mais corretamente o Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos
Algarves?” A resposta era clara: “Um reino fraco, pobre e despovoado:
um reino quase sem agricultura, sem comércio, sem artes e sem indústria:
um reino, finalmente, com bem pouca ou quase nenhuma consideração
política na Europa e no mundo.” Transcrevia ainda uma correspondência
publicada no Morning Chronicle de Londres, em fevereiro de 1816, que
narrava a iniciativa de D. João em elevar o Brasil à categoria de reino,
já intitulando-se “Príncipe Regente de Portugal, Brasil e Algarves”. Na
visão do jornal, tal fato, segundo a opinião dos cortesãos portugueses,
confirmava, se mais provas eram necessárias, “a ideia de que a Corte está
resolvida a não sair do Rio de Janeiro”. Ficava claro que, para Liberato de
Carvalho, o Reino Unido Português devia ter sempre em atividade “uma
força permanente e respeitável que lhe conserve intacta a união física e
moral no meio de todos os revezes e acontecimentos possíveis”, sendo
Portugal a cabeça do Império30.

Rocha Loureiro também fazia coro com Liberato de Carvalho, em-


bora possuíssem posições políticas distintas. Julgava que era inviável
essa nova situação. “Ah, Senhor! V. M. não tem senão dois braços e quer
abranger com eles os dois mundos!” Missão impossível para Portugal,
30 – Investigador Português em Inglaterra. Londres, v. 15, no.1, março de 1816 e v. 16,
no. 2, agosto de 1816, p. 232.

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Reino Unido: Uma Coroa entre a Europa e a América

que não podia se equiparar à grandeza e força da Grã-Bretanha. Esta co-


bria “com o tridente de Britânia o pequeno reino de Hanover, encravado
no continente europeu, e as imensas possessões em todos os mares e am-
bas as Índias”31. Portugal, no entanto, não possuía o mesmo vigor, estan-
do reduzido a um estado mesquinho. Outrora, era o “berço da monarquia
lusitana, oriente do sol da nossa glória”; naqueles dias, era “túmulo sau-
doso de heroicas memórias”. Era um país caído em decrepitude, esgotado
por todos os sucos vitais. Era por isso que devia se acudir de imediato a
ele e não ao Brasil32.

Esse descontentamento se fazia presente também nas camadas so-


ciais mais representativas do Antigo Regime português, ou seja, no clero
e na nobreza, ainda que não totalmente sensíveis ao espírito do liberalis-
mo. Assim, um dos membros da alta aristocracia portuguesa, o marquês
de Fronteira, em suas Memórias, captava um dos sentidos da revolução
que eclodiu no Porto em agosto de 1820 e que se relacionava a essa pers-
pectiva de Portugal ter perdido seu lugar de preeminência no interior do
Império Português. Em sua visão, as ideias de revolução eram gerais.
“Rapazes e velhos, frades e seculares, todos a desejavam. Uns que co-
nheciam as vantagens do governo representativo, queriam este governo”.
Mas, ressaltava, todos desejavam a “Corte em Lisboa, porque odiavam a
ideia de ser colônia de uma colônia”33.

A situação precária e singular de Portugal também vinha à luz em


bilhetes anônimos, enviados posteriormente a D. João, no Rio de Janei-
ro. Em alguns, a questão fundamental era o abandono do país, entregue
ao domínio inglês: “Não se desarme V.M. não mande as tropas. O fim
dos malvados brasileiros é desarmá-lo V.M. tem aqui portugueses sábios.

31 – LOUREIRO, João Bernardo da Rocha. Memoriais a D. João VI ..., p. 56. A referen-


cia à Grã-Bretanha devia-se à formação do Ato de União de 1o de janeiro de 1801, que
criava o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda.
32 – Idem. Ibidem. p. 86-87.
33 – Memórias do Marquês de Fronteira e de Alorna (revistas e coordenadas por Ernesto
de Campos de Andrada). Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926. Tomo I-II, p. 194-
195. Para essa visão nacionalista da Revolução do Porto, cf. ALEXANDRE, Valentim. Os
sentidos do Império ..., p. 452-455.

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Ouça-os”. Assinado por “um vassalo”. Ou, em linguagem mais eloquen-


te, escrevia-se:

Rogamos a Vossa Majestade que leia hum livro intitula[do] Gabinete


Particular de Bonaparte para se desencanar que o [que] queriam então
aos franceses assim como agora o querem, ou ia tem vendido [sic] aos
ingleses entregando o comando absoluto do exército a tal homem, a
nomeação privativa de todos os generais, e dos empregos do exército,
consentindo 3 generais ingleses no serviço, desguarnecendo os portos,
e as praças, que mais é preciso para a entrega deste reino.
Ah Senhor! Acorde. Deus Nosso Senhor lhe acuda e nos valha!
Veja o que faz!34

Sem dúvida, o “tal homem” era o marechal Beresford35 e as lamú-


rias demonstravam o estado de desânimo, a acefalia do reino português e
as susceptibilidades feridas dos súditos portugueses. Afinal, a elevação a
Reino e a decisão pela permanência no Brasil por parte de D. João, naque-
le momento da paz europeia, acabou interpretada como uma primeira op-
ção da Coroa bi-fronte, na expressão de Valentim Alexandre36, pela parte
americana do Império, cujas repercussões, do outro lado do Atlântico,
não tardaram a se manifestar, com os movimentos de 1817 e de 1820.

Instigante é outra opinião que também aparece em carta anônima,


em perspectiva próxima aos lamentos do abandono de Portugal, mas,
principalmente, preocupada com a possibilidade de revoltas no Brasil,
que levariam ao desmoronamento de todo o Império Português. Em uma
curiosa missiva dirigida à Rainha D. Maria I, provavelmente, redigida
em 1816, em virtude de seu teor, alertava-se para “o iminente perigo” em
que se achava toda a Família Real. Segundo os autores, que, dificilmente,
não deviam desconhecer o estado de saúde mental da rainha, depois da
Europa ter passado pela terrível tragédia da Revolução Francesa e das

34 – Fundação Biblioteca Nacional. Divisão de Manuscritos. II-30,32,017 n° 002. Bilhe-


tes anônimos de desagrado e ameaças.[s.d.].
35 – O marechal Beresford (William Carr Beresford) foi o general britânico escolhido
para comandar o Exército português nas guerras peninsulares. Com o fim da Guerra, de-
pois de 1814, continuou no commando do Exército português.
36 – Os sentidos do Império ..., p. 355ss.

184 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):173-192, jan./mar. 2016.


Reino Unido: Uma Coroa entre a Europa e a América

invasões napoleônicas, essa situação era transportada para a América


portuguesa e hispânica. Maquinavam-se “novos projetos, com o terrível
fim de por em desordem este continente”, com o objetivo de introduzi-
rem nesses Estados “os irmãos de Bonaparte, que se acham nas Américas
Inglesas”, e, em seguida, tudo devia ser entregue ao próprio Napoleão
Bonaparte, a quem eles pretendiam “a poder de forças arrancar da Ilha
de Santa Helena”. Toda essa conspiração era apoiada por alguns estados
do Brasil, especialmente, Pernambuco, e, secretamente, com membros
de outras Nações. Igualmente, “ministros de maior autoridade, os do Es-
tado Eclesiástico, os chefes de Corpos Militares, e todos os Subalternos
destas corporações”, eram os que conspiravam contra “a Real Pessoa do
Nosso Amável Soberano, e toda a Real Família! El Rei está inteiramente
iludido com o que estão tramando estes homens!”37. Forjava-se o espectro
da conspiração, que, desde o fim do século XVIII, rondava o imaginário
político das sociedades. Se a eclosão da Revolução Francesa propiciou o
surgimento de alguns desses exemplos, Napoleão Bonaparte representava
a continuidade de todo o mal, que podia assolar a terra e que, em seus
defeitos e vícios, equiparava-se aos membros da seita jacobina38. Para que
tais projetos não tivessem êxito, a carta aconselhava a Rainha a conversar
com o príncipe D. Pedro a fim de tomar as medidas necessárias, como a
prisão de tais suspeitos para evitar a perda da Coroa. Ressaltava que D.
João não podia saber de tais planos, pois, nesse caso, tudo estaria perdido.
Somente D. Pedro, que no futuro devia ser aclamado Imperador da nação
portuguesa. Revelando uma postura clara de fidelidade aos princípios do
Antigo Regime, afirmava-se ainda que D. Pedro devia seguir os passos
do soberano espanhol D. Fernando VII, que estava colocando a “Espanha
em boa ordem” e que tudo fazia para se extinguir “a seita dos jacobi-

37 – Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. II-31,01,021.


Quatro cartas anônimas a D. João VI. [1817].
38 – Para o mito da conspiração, ver GIRARDET, R. Mitos e mitologias políticas. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987. NEVES, Lucia Maria Bastos P. Napoleão Bona-
parte. Imaginário e política em Portugal (c. 1808-1810). São Paulo: Alameda, 2008, p.
151-161.

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nos”, que tem sido a “a causa de tanta desordem na Europa e, agora nas
Américas”39.

Sem dúvida, naquela conjuntura pós invasões napoleônicas, a posi-


ção do governo joanino apontava para uma maior tendência à parte ameri-
cana do Império. Algumas medidas confirmavam esta hipótese: as solici-
tações às Cortes europeias, para que estas não só tivessem conhecimento
da nova estrutura do Império, que, pelo menos teoricamente, passava-se
a constituir-se de três reinos soberanos: Brasil, Portugal e Algarves, mas
sobretudo a reconhecessem. Essa atitude pode ser comprovada nas cor-
respondências diplomáticas enviadas pelo Marquês de Aguiar, à época,
ministro assistente ao despacho, secretário dos Negócios do Reino e dos
Estrangeiros e da Guerra. Em participação ao núncio apostólico, Cardeal
Callepi, sediado no Rio de Janeiro, solicitava que a notícia fosse mandada
a Sua Santidade para seu conhecimento. Na mensagem de Callepi para o
Papa, aquele dava sua visão sobre os fatos: a lei agradara imenso aos ame-
ricanos e confirmava na opinião pública de que Sua Majestade pensava
em fixar-se no Brasil. E, para fixar-se de fato, os ministros das potências
estrangeiras estavam chegando ultimamente, como o dos Países Baixos,
esperando-se aqueles da Rússia e da Prússia40.

O mesmo marquês de Aguiar solicitava ao Duque de Richelieu, mi-


nistro dos Estrangeiros da França, que El Rei Luís XVIII reconhecesse os
saudáveis efeitos dessa atitude do príncipe regente, pois ela possibilitava
a tranquilidade e prosperidade da América e a vantagem do comércio
europeu nos Estados Portugueses reunidos em um só Reino. A resposta,
publicada nas Gazetas de Lisboa e do Rio de Janeiro, congratulava-se
com tal resolução, pois era um testemunho da “judiciosa política” do go-
verno de D. João, como dava uma “mais alta e justa ideia da importância
e extensão do seu Reino”41.
39 – Fundação Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos. II-31,01,021.
Quatro cartas anônimas a D. João VI. [1817].
40 – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. DL1080,02.15. Carta do Mons. Núncio
Apostólico Lourenço Callepi ao Cardeal Consalvi. Cópia transcrita do Arquivo Secreto do
Vaticano – Secr. di tato 1816 – Rubrica 25I – fasc. nº I – fol. 87, 1816.
41 – Gazeta de Lisboa. Lisboa, no. 231, 28 de setembro de 1816.

186 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):173-192, jan./mar. 2016.


Reino Unido: Uma Coroa entre a Europa e a América

Fazia-se também presente a resposta do visconde de Castlereagh,


principal secretário de Estado na Repartição dos Negócios Estrangeiros
da Corte de Londres, enviando as congratulações sobre tal acontecimen-
to, que acreditava promover a prosperidade e felicidade do Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves. Outras respostas de reconhecimento do
Reino Unido foram enviadas pela Dinamarca, Prússia, Rússia e Suécia42,
entre outros. Em todas, um ponto era claro – a possibilidade de fazer
da América a principal parte do Reino Unido. De certo modo, D. João
procurava tirar proveito da nova situação internacional, após a derrota de
Napoleão Bonaparte, procurando se aproximar de outras nações, evitando
uma dependência exclusiva da Inglaterra.

A estrutura do Império único alterava-se com a constituição dos três


reinos – Portugal, Algarves e Brasil – e demais domínios. Igualmente,
a organização político-administrativa do próprio Brasil era modificada
com a existência de províncias em lugar de capitanias. No entanto, se o
Brasil alcançava alguma autonomia, a essência da política continuava a
mesma – não se pretendia adotar novas medidas em relação a uma polí-
tica mais liberal ou constitucional, tanto no Brasil quanto em Portugal.
A linguagem e a prática utilizadas continuavam a ser do Antigo Regime.
Como afirmava Hipólito da Costa em seu Correio Braziliense, a questão
fundamental dessa mudança devia ser a de “reformas úteis”, ou seja, a de
mudanças graduais e melhoramentos de leis que possibilitassem “os pro-
gressos da civilização”. Para ele, todos os que tiveram delegação de poder
por parte de D. João deviam obrar, doravante, segundo “a conformida-
de da lei”. Todas as arbitrariedades que eram cometidas, especialmente
aquelas pelos governos militares das capitanias, deviam ser anuladas43.
Esta perspectiva, porém, não era contemplada na proposta do Reino Uni-
do de Portugal, Brasil e Algarves.

42 – Para o reconhecimento da Suécia, ver Arquivo Nacional. Gabinete de D. João VI. U1.
00.415. Carta tratando do reconhecimento do Brasil como Reino Unido e Algarves pelo
Reino da Suécia.
43 – Correio Braziliense. Londres. v. 16, no. 93, fevereiro de 1816, p. 187-188.

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Lucia Maria Bastos P. Neves

Desse modo, 1815 apresentava apenas um duplo aspecto aos súditos


portugueses da América e da Europa: de um lado, um processo de maior
autonomia era alcançado pelo Brasil com sua elevação a Reino Unido; de,
outro, atribuía-se a essa nova situação o estado cada vez mais lastimável
em que se encontravam a economia e as finanças em Portugal. Duramente
atingidos com a transferência volumosa e contínua de créditos públicos
e particulares para a Corte do Rio de Janeiro, com os pesados encargos
militares e a drástica recessão no comércio luso-brasileiro, além da vir-
tual tutela inglesa e a ausência do soberano, a autoestima dos portugueses
era abalada. Sinal desse mal-estar, após a aclamação de D. João VI, em
1818, o jornal O Português passou a denominar de “governo Tupinambá”
a Corte no Brasil.

Por conseguinte, apesar da partilha de traços comuns de uma cultura


política, bastante homogênea, os acontecimentos e desdobramentos após
1815, de um lado, e de outro do Atlântico, começavam a encontrar pro-
jetos distintos para traduzir as diferentes modalidades de apreensão do
mundo, que se foram desenvolvendo ao longo desses anos. Em Portugal,
no intervalo tumultuado entre a partida da Corte, no fim de 1807, e a volta
de D. João VI à Europa, em 1821, a ausência do rei, substituída pela mão
forte de uma debilitada regência do reino, e a frágil situação de se sentir
uma simples colônia trouxeram à tona novas tensões. É verdade que, de
um lado, indivíduos cada vez mais numerosos esperavam que as luzes de
um governo esclarecido fossem capazes de trazer as ansiadas reformas.
Do outro, porém, permaneciam em vigor as trevas representadas pelos
mecanismos de repressão do Antigo Regime, tais como a censura, a dela-
ção e a Inquisição; tanto quanto subsistia o pânico de qualquer conspira-
ção contra a união sagrada do trono com o altar, o que levava a enxergar
não só princípios de sedição nos mais triviais pretextos, como jacobinos
perigosos em quaisquer indivíduos de comportamento ou ideias um pou-
co desviantes das normas predominantes. Dessa incongruência resultou,
no reino, a conspiração de Gomes Freire de maio de 1817, severamente
reprimida, assim como, na América, mutatis mutandis, a revolta pernam-
bucana em março do mesmo ano, igualmente sufocada a ferro e fogo.

188 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):173-192, jan./mar. 2016.


Reino Unido: Uma Coroa entre a Europa e a América

Essa última representava o novo status político do Reino do Brasil: a


Corte do Rio de Janeiro transformava-se em nova metrópole, substituindo
Lisboa, em relação às demais províncias.

Pode-se afirmar, portanto, que a elevação do Brasil a Reino Unido


de Portugal e Algarves, em 16 de dezembro de 1815, representou bem
mais que a consolidação de Portugal diante das potências europeias. Em
primeiro lugar, serviu de aval à permanência da Corte no Rio de Janei-
ro, acreditando-se que mais valia a D. João conservar um maior poder
na América a se sujeitar ser potência de terceira ordem na Europa. Em
segundo, estabelecia, a plena soberania do Brasil e o estabelecimento da
igualdade de direitos entre os distintos reinos44. Contra esse pano de fun-
do, porém, não havia ainda qualquer possibilidade ou ideia de separação
por parte do Reino do Brasil em relação a Portugal. Novos horizontes
abriam-se aos súditos, mas não obrigatoriamente a separação entre as
suas partes. No entanto, no outro lado do Atlântico, os ressentimentos
afloravam a cada dia, levando aos homens de época a uma percepção
que se evidenciava: tal política configurava-se como uma opção da Coroa
pela parte americana do Império.

Em síntese, o Reino Unido em 1815 não representou a garantia de


unidade do Império Português, mas também não fomentou a ideia de se-
paração entre as suas partes. O equilíbrio era precário, mas ainda perma-
necia no imaginário político dos súditos a figura paternal de um soberano.
Alguns anos ainda se passaram para um desenlace final. Somente na se-
gunda metade de 1820, tal equilíbrio frágil acabou por se romper.

Em agosto, o movimento liberal do Porto deu início ao processo de


substituição de mitos e representações mágicas das monarquias tradicio-
nais por outras linguagens políticas, herdeiras dos princípios de 1789,
em que a palavra constituição servia de conceito central. No Brasil, ago-
ra desprovido do primeiro rei aclamado na América, o choque propicia-
do pela literatura de circunstância trazida do reino, e logo reproduzida
e alargada aqui, não tardou a revelar a incompatibilidade entre as duas
44 – Para essa questão, ver o texto de Arno Wehling nessa revista.

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Lucia Maria Bastos P. Neves

principais partes do império45. Doravante, Brasil e Portugal percorreram


caminhos distintos, ignorando-se em geral um ao outro, por alguns anos,
embora partilhassem, mais do que gostariam de reconhecer, práticas polí-
ticas e identidades muito semelhantes.

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nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime Português. Porto: Edições
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NEVES, Lucia Maria Bastos P. Napoleão Bonaparte. Imaginário e política em

45 – Cf. NEVES, Lucia Maria Bastos P. Corcundas e Constitucionais: a cultura política


da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan/Faperj, 2002. LUSTOSA, Isabel.
Insultos Impressos: a Guerra dos jornalistas na Independência (1821-1823). São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.

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Tempo, Niterói, no. 31:89-116, 2011.
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Gabinete de D. João VI. U1. 00.415. Carta tratando do reconhecimento do Brasil
como Reino Unido e Algarves pelo Reino da Suécia.
Fundação Biblioteca Nacional
Divisão de Manuscritos, I- 29, 13, 22. Carta dirigida ao príncipe regente
D. João, fazendo uma detalhada exposição sobre as condições políticas da
Europa em face das guerras de Napoleão, por Rodrigo de Sousa Coutinho. 16 de
agosto de 1803.
Divisão de Manuscritos. II-30,32,017 n°002. Bilhetes anônimos de desagrado e
ameaças. [s.d.].
Divisão de Manuscritos. II-31,01,021. Quatro cartas anônimas a D. João VI.
[1817].
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
DL15,15. Memória sobre a situação de Portugal e do Brasil desde a saída de
Família Real de Lisboa em 1807 até 1822, indicando algumas providências
tomadas para a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido de Portugal e
Algarves. Londres, 1822.
DL1080,02.15. Carta do Mons. Núncio Apostólico Lourenço Callepi ao Cardeal
Consalvi. Cópia transcrita do Arquivo Secreto do Vaticano – Secr. di tato 1816 –
Rubrica 25I – fasc. nº I – fol. 87, 1816.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):173-192, jan./mar. 2016. 191


Lucia Maria Bastos P. Neves

Fontes Impressas
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(revistas e coordenadas por Ernesto de Campos de Andrada). Coimbra: Imprensa
da Universidade, 1926. Tomo I-II.
BRASIL. Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815. [Rio de Janeiro]: Impressão
Régia, [1815].
LISBOA, José da Silva. Memória dos benefícios políticos do Governo de El-Rey
Nosso Senhor D. João VI, Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818.
LOUREIRO, João Bernardo da Rocha. Memoriais a D. João VI. Edição e
comentários por Georges Boisvert. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian; Centro
Cultural Português, 1973.
SANTOS, Luiz Gonçalves dos Santos. Memórias para servir à História do Reino
do Brasil (1825). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1981, 2v.
SEIXAS, Romualdo Antonio de. Sermão de Acção de Graças que no dia 13 de
maio celebrou o Senado da Camara desta capital do Pará pela feliz aclamação
do muito Alto e Poderoso Senhor D. João VI. Rey do Reino Unido de Portugal,
do Brazil e de Algarves. Recitado e oferecido a Sua Magestade Fidelsíssima pelo
presbytero (...). Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1818.
Periódicos
Lisboa. A Gazeta de Lisboa. 1816.
Londres. Correio Braziliense. 1816.
Londres. Investigador Português em Inglaterra. 1816.
Rio de Janeiro. A Gazeta do Rio de Janeiro. 1816.
Rio de Janeiro. O Conciliador do Reino Unido. 1821.

192 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):173-192, jan./mar. 2016.


Uma forma sutil de poder: A cultura inglesa no Rio de Janeiro joanino

193

UMA FORMA SUTIL DE PODER: A CULTURA INGLESA


NO RIO DE JANEIRO JOANINO
A SUBTLE FORM OF POWER: ENGLISH CULTURE IN JOANINE
RIO DE JANEIRO
Maria Beatriz Nizza da Silva1

Resumo: Abstract:
O presente trabalho objetiva analisar a presença This text aims to analyze the presence of English
da cultura inglesa no Rio de Janeiro do período culture in Rio de Janeiro during the period of
de D. João. Apesar da predominância da cultura John VI. In spite of the predominance of French
francesa nos dois lados do Atlântico, e com as culture, on both sides of the Atlantic, and with
invasões francesas, procura-se demonstrar que the invasions of the French, we seek to dem-
a cultura inglesa foi-se insinuando, quer na ma- onstrate that English culture was creeping in,
terialidade do cotidiano, quer na propagação do whether it was in the materials of everyday life,
idioma, quer na cultura letrada. or in the propagation of the language, or in let-
tered culture.
Palavras-chave: Cultura inglesa; Cultura Mate- Keywords: English Culture; Material Culture;
rial; Cultura Letrada; Cotidiano. Lettered Culture; Everyday Life.

Quando a sede da Corte foi transferida para o Rio de Janeiro, em


1808, ninguém duvidava do poderio econômico, naval e político da Ingla-
terra. Contudo, apesar da guerra com as tropas de Napoleão, era a cultura
francesa que dominava de um e outro lado do Atlântico, embora só depois
de reatadas as relações diplomáticas entre Portugal e a França, essa cultu-
ra voltasse a impor-se. Mas até a embaixada do duque de Luxemburgo e
o início da imigração francesa, a cultura inglesa foi-se insinuando no Rio
de Janeiro, quer na materialidade do cotidiano, quer na propagação do
idioma, quer na cultura letrada.

Os primeiros estrangeiros a instalarem-se no Rio de Janeiro foram os


negociantes ingleses. Quando esteve na sede da monarquia em outubro
de 1813, James Prior comentou o elevado número de seus compatriotas
com estabelecimentos mercantis na cidade. Nem todos tinham chegado
ao mesmo tempo. Alguns já residiam na cidade havia alguns anos; outros
tinham aproveitado a vinda da Corte; e, finalmente havia os que tinham

1 – Doutora em História. Professora Titular da Universidade de São Paulo (aposentada).


Sócia correspondente do IHGB.

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Maria Beatriz Nizza da Silva

recentemente deixado a Inglaterra. A lista dos negociantes no Almanaque


de 1816 inclui 59 nomes, alguns referentes a sociedades, como por exem-
plo William Harrison e Cia2. Este número é mais seguro do que aquele
fornecido por Henry Ellis, que nesse ano apenas permaneceu no Rio uns
escassos dez dias. Escreveu ele em seu relato: “A cidade conta com 30
ou 40 estabelecimentos comerciais ingleses, e o comércio de exportação
é totalmente dominado por eles. As importações consistem, sobretudo,
em manufaturas inglesas e em todos aqueles artigos europeus que são
necessários no Brasil”.3

Graças a um manuscrito da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro


constatamos a presença dominante dos ingleses na sede da Corte joa-
nina, mesmo depois da paz com a França e da chegada de imigrantes
franceses4. Em 1820 eram 443 os súditos britânicos, e eles marcaram a
vida carioca não só em vários aspectos da cultura material como também
na cultura letrada, contrabalançando desse modo a influência francesa de
longa data, só esmaecida durante o período napoleônico. Aliás, tinham
entrado 159 embarcações inglesas no porto do Rio em 1819, enquanto as
francesas eram apenas 32.

A permanência, mais longa ou mais curta, desses ingleses no Rio de


Janeiro deu azo a contatos com a população local, apesar de a maior parte
deles conviver sobretudo no círculo fechado de seus compatriotas. Mas
sua maneira de viver, até seus hábitos alimentares e seus horários para as
refeições, seu modo de trajar, seus passeios a cavalo pelos arredores da
cidade, seus estabelecimentos comerciais, constituíam novidade para os
moradores e despertavam sua curiosidade e interesse, e em muitos casos
um desejo de imitação.
2 –PRIOR, James. Voyage along the Eastern Coast of Africa to Mosambique, Johanna,
and Quiloa; to St. Helena; to Rio de Janeiro, Bahia and Pernambuco in Brazil, in the Ni-
sus Frigate. Londres, 1819; “Almanaque do Rio de Janeiro para o ano de 1816”, Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 268, 1966.
3 – FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino.
Antologia de textos, 1809­1818. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2013, p. 92.
4 – Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro. Divisão de Manuscritos I-31,30, n. 95, “Mapa
dos estrangeiros, cujos nomes se acham descritos nos livros de matrícula feita pela Inten-
dência Geral da Polícia da Corte e Reino do Brasil”, elaborado em 31 de julho de 1820.

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Uma forma sutil de poder: A cultura inglesa no Rio de Janeiro joanino

A CULTURA MATERIAL E O COTIDIANO


Com seu jeito ao mesmo tempo erudito e desorganizado, Gilberto
Freyre, em seu livro Ingleses no Brasil. Aspectos da influência britânica
sobre a vida, a paisagem e a cultura do Brasil, cuja primeira edição data
de 1948, revela seu interesse por aquilo a que chama “interpenetração de
culturas”. Tratava-se, segundo ele, de um

processo que tem agido menos no sentido da desintegração ou degra-


dação de qualquer das culturas presentes na nossa formação que no
da integração de todas numa sociedade e numa cultura nova e híbrida,
múltipla e rica, ainda que confusa, em suas heranças, em suas técnicas
de desenvolvimento, em seus valores e estilos de vida moral e intelec-
tual, estética e material5.

Freire chamava a atenção para o fato de as diferenças entre a po-


pulação local e os novos moradores ingleses se irem atenuando “com a
leitura de livros traduzidos do inglês e com a importação de artigos ingle-
ses de uso doméstico, pessoal ou cotidiano”. Para ele, são estes artigos
que mais rapidamente modificam a cultura de um povo: “talheres, louças,
alimentos, móveis, fazendas, roupas feitas, chapéus, calçados, selins, car-
ruagens”, sem esquecer o vidro e o ferro empregados na arquitetura civil,
e as máquinas6.

Embora o campo de pesquisa de Freyre seja muito mais amplo do


que o Rio de Janeiro joanino, ele fornece informações relevantes colhidas
por exemplo em Gilbert Farquhar Mathison, Narrative of a visit to Brazil,
Chile, Peru and the Sandwich Islands during the years 1821 and 1822,
publicado em Londres, 1825. Segundo esse viajante, a colônia britânica
no Rio de Janeiro era formada por “respectable merchants”, além de “tra-
desmen, artisans, and other”, estabelecendo assim uma clara diferença
entre os negociantes respeitáveis e os comerciantes e artesãos.

Dos negociantes ingleses estabelecidos no Rio logo após a abertura


dos portos, o que mais se destacou pela opulência seu estilo de vida foi
5 – FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil (…), introdução, p. 4.
6 – Ibid., p. 3.839.

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Maria Beatriz Nizza da Silva

George March, que morava numa bela residência em Botafogo, adaptada


ao gosto inglês, e que além disso elegeu Teresópolis para passar o verão
numa casa de campo, inaugurando assim o hábito de veraneio na serra,
segundo Freyre, “uma revolução nada insignificante nos hábitos ou esti-
los de vida da gente mais ilustre da Corte”7.

Nessa área das mutações culturais, Gilberto Freyre foi, como em


tantas outras, um pioneiro, e por essa razão quis aqui prestar-lhe minha
homenagem antes de começar a abordar as mudanças no cotidiano cario-
ca no período joanino em consequência de inovações na cultura material.

John Luccock, um dos primeiros negociantes a estabelecer-se no Rio


em meados de 1808, comentou os erros que seus conterrâneos tinham
inicialmente cometido com as mercadorias trazidas consigo e que eram
totalmente impróprias para o modo de vida carioca. Só a pouco e pouco
eles foram percebendo qual o tipo de comércio que convinha à cidade.

O gosto inglês por cavalos e por tudo o que se relacionasse com a


equitação e com o transporte urbano difundiu-se no cotidiano com uma
maior sofisticação graças a lojas especializadas, como a de Jackson e Ri-
chardson, na Rua do Ouvidor. Ali se vendiam selins para homem e mu-
lher, freios, mantas, chicotes “da última moda e das manufaturas mais
aprovadas”, arreios para carrinhos e carruagens guarnecidos de latão e
casquinha, e lanternas para esses meios de transporte. Na verdade, as mo-
das inglesas imperavam nessa área, tendo o inglês Diogo Adamson, no
Largo de São Francisco de Paula, uma fábrica de carruagens, carrinhos e
seges, encarregando-se também de vender, em segunda mão, um “sociá-
vel inglês” e um “landó”. O landau era uma carruagem de quatro rodas,
com a cobertura dividida em duas partes, que podiam ficar fechadas, ou
meio abertas, ou totalmente abertas. Também com quatro rodas, o sociá-
vel era uma carruagem aberta com bancos de dois lugares de frente um
para o outro, o que permitia a conversa entre seus ocupantes, e daí o nome
que lhe foi atribuído. Havia além disso um assento separado à frente para
o condutor. A fábrica de Adamson ainda existia em 1821, dedicando-se
7 – Op. cit., p.51-52.

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Uma forma sutil de poder: A cultura inglesa no Rio de Janeiro joanino

ao fabrico de “carruagens, carrinhos, seges”, realizando consertos nesses


meios de transporte e oferecendo cocheira para quem quisesse ali dei-
xar suas seges. Para atender às novas modas de transporte urbano, um
mestre segeiro pôs à venda, logo em 1810, “um carrinho inglês de bom
gosto com seus arreios para um cavalo”. E também nesse ano Freese e
Blanckenhagen, na rua do Ouvidor, tinham para vender uma carruagem
importada de Londres. Dera-se portanto uma mutação nos meios de trans-
porte, que se tornaram mais sofisticados do que as pesadas carruagens
portuguesas, ou mesmo do que as “traquitanas” vindas de Lisboa.

Outra área de atuação foi a navegação a vapor na baía. Em 1820


começou a circular entre a cidade e as ilhas de Paquetá e dos Frades, e
também para a Praia Grande, uma barca a vapor que partia do Largo do
Paço e cujos bilhetes eram vendidos na loja do inglês João Buck, certa-
mente ligado ao empreendimento. Não se tratava de um serviço diário,
pois se alternavam as partidas para aquelas duas ilhas. É interessante no-
tar que crianças e escravos pagavam meia passagem. Em dias diferentes,
o destino era a Praia Grande. Nos dias santos, a barca a vapor navegava
num calendário especial, anunciado na Gazeta, alternando os principais
destinos, que eram Paquetá e Praia Grande.

O comércio de instrumentos musicais constituía outro ramo em que


os ingleses atuavam. Diogo Wood, por exemplo, em 1814, vendia “pia-
nos fortes de várias qualidades, perpendiculares e horizontais, harpas ele-
gantes e outros instrumentos músicos”. Recém-chegado de Londres em
1817, João Ferguson trazia para vender “uma porção de pianos fortes, e
também uma porção de rabecas, e com suas competentes encordoações, e
um bom órgão para qualquer igreja”, além de se apresentar como “mestre
de afinar pianos e órgãos”. Três anos depois anunciava uma “nova parti-
da de pianos”, de um autor chamado Guilherme Stodart, “aprovado por
todos os melhores mestres em música”, ao mesmo tempo que garantia
“ter sempre um bom sortimento de pianos, e mais instrumentos”. Tal va-
riedade de possibilidades musicais substituía a monotonia da viola local.

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Maria Beatriz Nizza da Silva

Em 1808, segundo John Luccock, já se tinha instalado no Rio um


carpinteiro inglês com vários artesãos trabalhando com ele. Quando em
1818 morreu Guilherme Hardman, foi posta à venda sua “fábrica gran-
de de marceneiro” na rua dos Barbônios, na qual trabalhavam 50 ofi-
ciais, além de oito escravos serradores e palheiros, ou seja, capazes de
fazer móveis de palhinha. Mas, alguns meses depois, sua viúva resolveu
desistir da venda e administrar a fábrica, onde se encontravam à venda
móveis ingleses “do gosto mais moderno”. Pela mesma época, March e
Companhia, com loja na rua do Ouvidor, vendia “móveis para casa do úl-
timo gosto, novamente chegados de Londres, e também um bilhar”, jogo
que era muito apreciado nos botequins. O interior das habitações cariocas
podia agora ser mobiliado com uma maior variedade de móveis: guarda-
-roupas, guarda-louças, secretárias, cômodas, aparadores, mesas de todo
tipo, camas ricas “com seus pertences”, canapés e cadeiras de mogno,
madeira até então pouco usada no Rio.

Enfrentando a concorrência francesa, que era muito forte na área de


acessórios femininos, Harris, instalado na rua do Ouvidor, importava de
Londres, mas também de Paris, em 1820, flores de ouro e prata, grinal-
das do mesmo material e de pérolas, coletes para senhoras e meninas de
todo tamanho, do último gosto moderno, tonquins, ou seja, xailes de seda
provenientes daquela cidade asiática, cabeleiras e rendas de prata e ouro,
guarnições para mantos, leques de pelica e “outras mais modas”. Só no
fim do período joanino é que uma modista inglesa pôs à venda mercado-
rias inglesas e francesas, que incluíam: peles de várias cores para guarne-
cer vestidos e para bonés, chapéus pretos de palha ingleses, “rufos”, ou
seja, uma guarnição toda em pregas, de cambraia, vestidos bordados de
filó de ouro e de prata e de pérolas. E através dos desenhos e descrições do
tenente Chamberlain, que esteve no Rio de Janeiro em 1819 e 1820, po-
demos conhecer algumas características do modo de trajar dos cariocas.
Ao representar uma família saindo da igreja, comenta que o trajo de um
senhor idoso era praticamente o mesmo de alguns anos atrás. Quanto às
mulheres, mostravam-se mais atentas à moda europeia, preferindo contu-
do cores berrantes, exceto quando participavam de cerimônias religiosas.

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Uma forma sutil de poder: A cultura inglesa no Rio de Janeiro joanino

Produtos ingleses começaram a fazer parte do cotidiano carioca,


como, por exemplo, uma graxa, vendida em garrafa ou pote, “muito boa
para dar lustro em botas, segundo a experiência de muitas pessoas”, sen-
do proveniente de “uma das fábricas de maior conceito da Inglaterra”.
Nos leilões, a miscelânea de produtos era grande. Em 1815, Guilherme
Lennox leiloou “uma grande coleção de livros em várias línguas”, uma
lanterna mágica e “um telescópio completo” feito por Gilbert. No leilão
organizado por J. D. Thompson em 1816 comercializaram-se sobretudo
“painéis pintados pelos melhores pintores”, entre os quais consta o nome
do flamengo Teniers.

A importação de mercadorias inglesas tornou-se mais variada, como


podemos ver pelos artigos à venda na rua do Ouvidor em 1818: novas e
elegantes carruagens, ornamentos de casquinha polida, estojos, escrivani-
nhas, caixas de ferramentas de cirurgia, lustres, bandejas finas, soberbos
lavatórios de bronze, toda qualidade de cutelaria, chapéus de sol de seda
e de algodão, agulhas, lanternas para carruagens, ferramentas de carpin-
taria, caixas de costura.

Para termos uma ideia do comércio inglês no Rio de Janei-


ro, em 1811 os navios tinham partido dos seguintes portos: Londres,
Portsmouth, Liverpool, Falmouth, Hull, Bristol e Jersey. Quanto às mer-
cadorias transportadas, dou apenas um exemplo tirado das notícias marí-
timas dos primeiros dias de julho de 1819: de New Castle vieram vidros,
ferro e massame, ou seja, cordas para navios; e de Londres, carvão, além
de outros gêneros não especificados. Deve dizer-se que os vidros impor-
tados ou se destinavam à construção, para substituir as proscritas rótulas,
ou para melhorar o serviço de mesa com vidros finos, que certamente
eram superiores aos da fábrica de vidros instalada na Bahia e comerciali-
zados no Rio. Eram serviços de mesa de cristal, vidros lapidados, lustres,
lanternas para seges que chegavam de Londres.

Quando John Luccock chegou ao Rio, em 1808, praticamente não


havia ferreiros na cidade e os cavalos não eram ferrados. Da segunda
vez que se instalou na cidade, em 1813, eles já proliferavam e os cavalos

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Maria Beatriz Nizza da Silva

já ostentavam ferraduras. Quanto aos objetos de ferro, os ingleses eram


mestres em seu fabrico, e por essa razão Samuel Noel, na rua do Ouvi-
dor, vendia “burras e armários de ferro sortidos de todos os tamanhos”,
ou seja, objetos sólidos para a guarda de dinheiro e valores. Os fogões
de ferro “e seus pertences para cozinhar, de melhor invenção”, fizeram
sua aparição no Rio em 1820. E foi um viajante francês, Freycinet, que
comentou: “Os ingleses mandam muitos objetos de casa em ferro fundido
e batido, como marmitas, chaleiras, caçarolas e frigideiras8.” Aliás, era
comum na época a ideia de que cozinhar em objetos de ferro era mais
saudável do que utilizar os habituais de cobre.

Os comerciantes ingleses introduziram-se também no comércio ali-


mentar, mas não em força como os italianos. Em 1816, abriu na rua da
Alfândega uma casa de pasto inglesa, onde havia “mesa redonda às 2
horas por $640, com uma garrafa de vinho de Bordeaux a cada pessoa”.
Devo explicar aqui que a “mesa redonda” era, de acordo com os hábitos
europeus, uma mesa coletiva, enquanto aqueles que queriam privacidade
e comer em separado recorriam em geral a um espaço fechado. Essa casa
de pasto é mencionada no relato de Abel Clarke, que nesse ano passou
alguns dias no Rio. Ele e alguns companheiros dirigiram-se a ela por ser
considerada “o melhor hotel inglês da cidade”. E acrescentou:
Embora o estabelecimento não oferecesse as comodidades que en-
contramos em um estabelecimento similar da Inglaterra, a comida era
excelente e o atendimento muito cortês, o que nos tornou menos exi-
gentes em relação às condições de hospedagem. Não possuía quartos
individuais e dispunha de poucas camas9.

John Luccock comentou que em 1808 as batatas eram praticamente


desconhecidas no Rio, que consumia sobretudo vários tipos de feijão.
O cardápio carioca enriqueceu-se com um maior consumo de batatas
inglesas, nomeadamente de Jersey, e com presuntos de Yorkshire. Um
londrino, José Mathan, com loja na rua dos Ourives, negociava com vi-
8 – FREYCINET, Louis de. Voyage autour du monde (…). tomo I. Paris, 1825, p.181.
Sobre a permanência de Freycinet no Rio de Janeiro, ver Gazeta do Rio de Janeiro, nº 56,
1820.
9 – França, op. cit., p. 107.

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Uma forma sutil de poder: A cultura inglesa no Rio de Janeiro joanino

nhos, aguardentes, chás, azeites, e outros gêneros, “tanto do país como


estrangeiros”. Novidades eram, em 1820, os “pós para fazer água de soda
em caixas, contendo uma dúzia de copos cada uma”, produzidos por G.
Marshall e Companhia, de Londres. E ainda, segundo Freycinet, os ingle-
ses tinham introduzido alguns utensílios de mesa: “Colocam-se as igua-
rias sobre faiança de barro de que os ingleses trazem grandes quantidades.
(...) Os copos e as garrafas vêm principalmente de Inglaterra.”

Para terminar esta descrição da presença inglesa no cotidiano cario-


ca, é útil salientar alguns temas abordados pelo cônsul-geral da França
Maler num ofício ao duque de Richelieu, datado do Rio de Janeiro a 30
de janeiro de 1818, com observações sobre as mercadorias francesas que
mais convinha enviar, levando em conta a concorrência inglesa. Acerca
da cerveja, escrevia que era demasiado fraca, sendo preferida a da Ingla-
terra. Quanto à manteiga, aquela que era consumida na cidade vinha da
Irlanda. O bacalhau seco era resultado da pesca inglesa e chegava através
de Portugal em barris. Acerca da manufatura têxtil, a Inglaterra tinha-se
apropriado do fabrico dos baetões e saietas que serviam para o vestuário
dos negros e cujo consumo era muito grande. Quanto aos tecidos de al-
godão, era difícil competir com os ingleses. Para conseguir vender selas,
chicotes e outros acessórios de montaria, era preciso seguir os modelos
ingleses10.

Em janeiro de 1822, Maria Graham comentou que as ruas estavam


repletas de mercadorias inglesas: algodão estampado, panos largos, louça
de barro, mas principalmente ferragens de Birmingham e de Sheffield.
Comparando a presença francesa e inglesa na cidade, escreveu em seu
Diário:

Quanto a alfaiates, penso que há mais ingleses do que franceses, mas


poucos de uns e outros. Há padarias de ambas as nações, e abundantes

10 – SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A correspondência consular no Arquivo dos Negó-
cios Estrangeiros em Paris, Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. São
Paulo, 3: 105-115, 1996/1997., 1996/1997; Sobre a cultura material, ver SILVA, Maria
Beatriz Nizza da. A Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822): Cultura e sociedade. Rio de
Janeiro, Ed.UERJ, 2007.

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Maria Beatriz Nizza da Silva

tavernas inglesas, cujas insígnias com a bandeira da União, leões ver-


melhos, marinheiros alegres, e tabuletas inglesas, competem com as
de Greewinch ou Depford11.

Até o maquinário para os engenhos de beneficiara da presença ingle-


sa. Gilmour, em 1818, recém-chegado de Londres, trouxera consigo dois
engenhos completos “e de nova invenção” para moer cana. Armara um
deles no trapiche da Ordem e convidava todos os interessados em enge-
nharia para o examinarem. Oferecia-se para aceitar qualquer encomenda
de engenhos ou máquinas, e transmiti-la à fábrica em Londres para sua
execução. No mesmo ano, chegou ao Rio Thomas Reed, vindo da Jamai-
ca, que era especialista em reformar as fornalhas para fazer açúcar.

Mas não se tratava apenas de mercadorias e de maquinário. Era um


novo estilo de vida, um cotidiano mais bem apetrechado que a presença
inglesa tornara possível, modificando os hábitos e as necessidades locais,
antes da presença francesa e mesmo depois desta.

A CULTURA LETRADA
Uma dificuldade grande para o acesso direto à cultura inglesa, por
meio da importação de livros de Inglaterra, era sem dúvida a ignorância
generalizada dessa língua, embora em 1813 o comércio livreiro da cidade
tenha investido nuns spelling books “próprios para a mocidade aprender
o idioma inglês”. É certo que se vendiam dicionários, mas não de portu-
guês e inglês, e sim de espanhol/inglês, de um autor chamado Newman,
ou de italiano/inglês, de Darett, o que parece indicar que não houvera em
Portugal interesse em publicar esse tipo de obra. Aliás, foi em Liverpool
que Manuel de Freitas teve editada, em 1812, sua Nova gramática inglesa
e portuguesa, divulgada por Hipólito da Costa no Correio Brasiliense.

O período joanino insere-se no longo período do domínio do francês,


como constatou um viajante durante os festejos em São Cristóvão pelo
aniversário de D. Leopoldina. Ele testemunhara conversas entre alemães,
11 – GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/Ed.
USP, 1990, p.230-231.

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Uma forma sutil de poder: A cultura inglesa no Rio de Janeiro joanino

poloneses, russos, espanhóis, ingleses, prussianos: “Todos falavam fran-


cês para se fazerem entender. Fiquei contente por pertencer a uma nação
cuja língua pode servir de meio comum de comunicação para tantos e
variados povos12.”

O grupo mercantil português era aquele que, por necessidade, mais


se esforçaria por entender a língua inglesa. Henry Sydney, que chegou ao
Rio, vindo de Londres, em abril de 1809, viajara com um certo senhor
Ávila que se fazia acompanhar por duas sobrinhas, e por Mary Wilmont,
a governanta inglesa das moças que as instruiria em seu idioma. Ávila
alugara uma casa nos arredores da cidade com um amplo terreno, e logo
Miss Wilmont imprimira o toque britânico à administração doméstica,
chegando mesmo a fazer produzir manteiga, produto raro no Rio13. É cer-
to que também os negociantes ingleses, como Thornton, estabelecidos na
cidade havia mais tempo, procurariam se fazer entender em português
com aqueles com quem transacionavam. Mas fora do grupo mercantil, de
uma aristocracia cosmopolita e culturalmente bem preparada e de alguns
profissionais que conheceriam o inglês técnico, e não o literário, o conví-
vio com a língua inglesa era escasso.

A solução mais comum para uma ampla leitura de obras inglesas era
a tradução, principalmente de obras científicas. Foi o que ocorreu, por
exemplo, com a Exposição anatômica do útero humano grávido e dos
seus conteúdos, livro traduzido do inglês de Guilherme Hunter, médico
da rainha da Grã-Bretanha, pelo cirurgião Antônio Lopes de Abreu, e
publicado em Lisboa em 1813, ou com Thomas Denman, Aforismos so-
bre as hemorragias uterinas e convulsões puerperais, reimpressos pela
Impressão Régia do Rio na tradução do cirurgião-mor da Real Câmara.

Como foi também em português que os leitores tiveram acesso à


literatura inglesa do século XVIII: As viagens de Gulliver a vários paí-
ses remotos, de Jonathan Swift, mas impresso sem nome de autor, teve
quatro edições portuguesas entre 1793 e 1816; a obra de grande sucesso,

12 – França, op. cit., pp. 145-146.


13 – Ibid., pp. 24-25.

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traduzida em nova edição em 1817 e com três edições anteriores, Vida e


aventuras admiráveis de Robinson Crusoe, que contêm a tornada à sua
ilha, as suas novas viagens e as suas reflexões, sem que o nome do autor,
Daniel Defoe, fosse indicado; ou a obra de Fielding, também em quatro
volumes, Tom Jones, ou o enjeitado. História galante e divertida, e, do
mesmo autor, Memórias do cavalheiro de Kilpar, o homem raro. Só atra-
vés de traduções os habitantes do Rio tiveram conhecimento das grandes
viagens realizadas por Dampier e Cook, sendo este último traduzido em
Lisboa só em 1819. Em 1821, o livreiro Manuel Joaquim da Silva Porto,
com loja na rua da Quitanda, anunciava os três volumes da Última via-
gem à roda do mundo, pelo capitão inglês Collen Smith, tradução que se
vendia em brochura.

A aristocracia portuguesa, mais versada na língua inglesa, sentiu-se


atraída pelo Ensaio sobre a crítica, de Pope. A condessa de Oyenhausen
traduziu em verso português essa obra “com o original à margem”, numa
impressão feita em Londres “nítida e em papel de holanda”. E o conde
de Aguiar também se interessou por esse autor, publicando na Impressão
Régia do Rio, em 1810, sua tradução dos Ensaios morais, além de outra
tradução do Ensaio sobre a crítica. Aliás, Alexander Pope teve também
seu Ensaio sobre o homem, classificado como poema filosófico, traduzido
do inglês por A. Teixeira, numa edição de Lisboa.

Em 1812, saíram pela Impressão Régia do Rio os Extratos das obras


políticas e econômicas, de Edmund Burke, na tradução de José da Silva
Lisboa, que aliás foi o grande divulgador da cultura anglo-saxônica em
suas obras econômicas, revelando sua admiração por Adam Smith e Ben-
jamin Franklin. Bento da Silva Lisboa, oficial da Secretaria de Estado dos
Negócios Estrangeiros e da Guerra, já tinha publicado em 1810 o Com-
pêndio da obra da riqueza das nações, de Adam Smith, obra por ele tra-
duzida “do original inglês”, como se pode ler no título. Esta advertência
era importante, dado que obras inglesas já traduzidas em francês serviam
frequentemente para a edição portuguesa, como foi o caso, por exemplo,
do Conhecimento prático dos medicamentos, de Lewis, em três volumes.

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Uma forma sutil de poder: A cultura inglesa no Rio de Janeiro joanino

O redator da gazeta, Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, por sua


formação profissional como professor da Academia dos Guarda-Mari-
nhas e da Academia Militar, era versado no inglês. E, à falta de notícias
políticas, resolveu publicar no periódico uma relação dos progressos da
vacina antivariólica inventada por Jenner no século XVIII, extraída do
periódico inglês London Chronicle. Quando o clima político se agitou
mais em 1815, o redator procurou nas “folhas inglesas” material para a
gazeta, mas ficou decepcionado, achando-as “mais estéreis do que anun-
ciavam boatos incertos”. Mesmo assim, apressou-se a comunicar a seus
leitores o que pudera concluir de “uma leitura sôfrega”, sentindo muito
que o resultado não correspondesse às esperanças depositadas nessa leitu-
ra. Em 1820 traduziu um artigo da gazeta inglesa The Courier, de grande
interesse para as ciências, que publicava um sumário dos trabalhos apre-
sentados no Liceu de História Natural de Nova York durante suas sessões.

Entre as bibliotecas particulares existentes no Rio de Janeiro, sobres-


saía a de Antônio de Araújo de Azevedo, conde da Barca. A análise do
catálogo de sua biblioteca, elaborado em 1818, depois de sua morte em
1817, revela uma multiplicidade de interesses culturais e uma enorme ca-
pacidade de ler em várias línguas. Eram 2.418 títulos e, embora de acordo
com a tradição cultural portuguesa os livros em francês predominassem
(786 títulos), os ingleses representavam um núcleo importante dessa bi-
blioteca: 413 títulos.

Algumas obras de filósofos ingleses encontravam-se em latim


(Ralph Cudworth e Thomas Hobbes) e em francês (John Locke), mas
outras tinham sido lidas na língua original: os Philosophical Works de
Bolingbroke e Robert Boyle; An essay on the history of civil society, de
Adam Ferguson; os Essays and Treatises on several subjects, de David
Hume. Abundam nessa biblioteca aristocrática as obras em inglês sobre
comércio, inclusive a obra do reverendo T. Clarkson, An essay on the
impolicy of the African slave trade (1788), e de W. Wilberforce, A letter
on the abolition of slave trade (1807). No que se refere às Belas Letras,
o conde da Barca lia no original Alexander Pope, Thomas Ward, Thomas
Gray, John Gay, Matthew Prior, John Ogilvie, Edmund Spenser. A rubrica

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Maria Beatriz Nizza da Silva

“contos e novelas” era muito reduzida, não atraindo o homem político:


apenas três obras, uma em alemão, outra em francês, e uma terceira em
inglês, The adventures of Hugh Trevor, de Thomas Holcroft14.

Uma biblioteca profissional, como a da Academia dos Guarda-Mari-


nhas, tinha necessariamente de conter muitas obras de cientistas ingleses,
mas como a língua estava menos expandida do que o francês, os alunos
apreendiam o conteúdo de seus livros em edições francesas, como acon-
teceu com a obra de Roger Cotes, Leçons de physique expérimentale, sur
l’équilibre des liqueurs et sur la nature et les propriétés de l’air, e com a
de John Theophilius Desaguliers, Cours de physique expérimentale. Em
contrapartida, as obras de George Adams, mais recentes, encontravam-
-se em inglês nessa biblioteca, talvez porque ainda não havia delas uma
tradução francesa: Essays on the Microscope (1787), An Essay on Elec-
tricity (1787) e An Essay on Vision (1789).

Algumas das grandes viagens marítimas realizadas por ingleses só


podiam ser lidas nessa biblioteca em francês, com poucas exceções, como
a livro de Sir Alexander Mackenzie, Voyages from Montreal on the river
St. Lawrence, through the continent of North America to the Frozen and
Pacific Oceans, in the years 1789 and 1793, with a preliminary account
of the rise, progress and present state of the fur trade of that country; e
também o original inglês da terceira viagem de Cook (1785).

Analisando o conteúdo dessa biblioteca profissional, constatamos


que nas áreas mais técnicas houvera a preocupação de adquirir obras re-
centes, do início do século XIX. Através das informações fornecidas pelo
autor do catálogo manuscrito, sabemos que 84 cientistas ainda estavam
vivos em 1812, data de sua elaboração, enquanto 76 já tinham morri-
do. Tratava-se portanto de uma biblioteca atualizada, na qual a presença
científica e técnica inglesa é preponderante, embora muitas obras se en-
contrassem na tradução francesa. Aliás, a rapidez com que se traduzia em

14 – SILVA, Maria Beatriz Nizza. Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821). 2ª


Ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1978.

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Uma forma sutil de poder: A cultura inglesa no Rio de Janeiro joanino

França o que era publicado em Inglaterra revela claramente a concorrên-


cia das duas nações nas ciências e na tecnologia15.

Quando Lúcia Bastos P. Neves analisou o manuscrito da Biblioteca


Nacional do Rio de Janeiro intitulado “Livro para nele se fazer memória
de todas as obras que entrarem na Real Biblioteca”, constatou que ape-
nas 1% dos 1.431 títulos listados estavam escritos em inglês. Eram obras
de Robert Sothey, History of Brazil, e duas sobre Ceilão, An account of
the Island of Ceylon e A description of Ceylon, além da obra de Samuel
Clark, The Bible16.

Foram certamente anunciados na Gazeta, em 1817, por um particu-


lar morador na rua dos Pescadores, e não por um livreiro, os 22 volumes
da Enciclopédia em inglês, impressos em Edimburgo em 1810. Era co-
mum no Rio de Janeiro a venda de bibliotecas particulares que não inte-
ressavam a seus proprietários, talvez porque tivessem sido herdadas e não
formadas de acordo com as respectivas necessidades de leitura. Entre os
livros de Medicina, Cirurgia, Matéria Médica, Química etc. que se ven-
diam, ou trocavam, por outros “de diferentes matérias” em Matacavalos,
havia obras de cientistas ingleses. Quando não eram os proprietários de
bibliotecas que procuravam se desfazer delas pessoalmente, havia leiloei-
ros que se encarregavam do leilão de obras, que por vezes eram de autores
ingleses.

Quanto ao comércio livreiro, na rua do Ouvidor Mateus Buchanan


vendia periódicos e livros ingleses “dos melhores autores antigos e mo-
dernos”, dando assim acesso direto a quem dominava o idioma aquilo
que se publicava em Inglaterra. Carlos Moke especializou-se em livros
científicos, sobretudo de História Natural e Medicina, e entre as obras

15 – Bibllioteca Nacional – Rio de Janeiro, Mss. 7,4,92; Ver meu artigo: “Livros e forma-
ção profissional na Corte do Rio de Janeiro”. Anais de História de Além-Mar, Lisboa, XII:
319-332, 2011.
16 – NEVES, Lúcia M. Bastos Pereira das. O Livro para nele se fazer memória de todas as
obras que entraram na Real Biblioteca. In: ALGRANTI, Leila Mezan & MEGIANI, Ana
Paula (orgs). O Império por escrito: Formas de transmissão da cultura letrada no mundo
ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009.

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Maria Beatriz Nizza da Silva

que pretendia retirar da Alfândega, encontrava-se o livro de Meade sobre


as bexigas.

Para que o conhecimento da língua inglesa se ampliasse no Rio de


Janeiro, era necessário que essa língua fosse ensinada por mestres parti-
culares ou em colégios, embora se perceba uma certa desconfiança devi-
do à diferença de religião, sendo certamente preferidos os católicos da Es-
cócia ou da Irlanda. Em 1812, no colégio de nobres dirigido por Joaquim
Manuel de Faria, além das habituais aulas de português, latim e francês,
foi inaugurada a de inglês, cujo professor moraria no colégio para que os
colegiais mais facilmente conseguissem “a boa pronúncia”. O ensino do
inglês surge assim como algo de que só a elite dispunha. A primeira men-
ção a um ensino mais democrático da língua inglesa surge no anúncio de
uma “casa de instrução da mocidade de um e outro sexo” situada na rua
da Pedreira, em 1815. Só mais tarde o inglês foi ensinado por naturais da
Inglaterra. Com licença do Desembargo do Paço, Guilherme Paulo Till-
bury, natural de Londres e clérigo in minoribus, anunciou em fins de 1819
seu programa de estudos para o ano seguinte. De manhã, das 8h às 10h,
aula de francês; das 10h às 11h, geografia e prática nos globos; das 11h à
13h, aula de inglês. Além de oferecer aulas de português para estrangeiros
durante o período da tarde, de noite, às segundas, quartas e sextas, das 19
às 21 horas era ensinado o francês; e às terças, quintas e sábados, às mes-
mas horas, o inglês. Como se vê, dada a maior difusão do francês, nem
esse londrino se dispôs a ensinar apenas a sua língua.

Pelo que se refere à cultura letrada do Reino Unido e à presen-


ça nela da cultura inglesa, gostaria, para finalizar, de levantar um pro-
blema e lembrar uma expressão muito conhecida nos meios literários:
traduttore, traditore. Para confirmar a verdade dessa expressão seria ne-
cessário proceder a um estudo comparativo, por exemplo, entre o original
de Robinson Crusoe e sua versão portuguesa. Além dos cortes prováveis
numa obra considerada demasiado extensa para o gosto do leitor comum,
o tradutor poderia facilmente, a fim de evitar a censura, modificar ou
suprimir passagens menos ortodoxas para os censores. E a dupla tradu-
ção, com uma edição francesa pelo meio, ainda dificultava mais o acesso

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Uma forma sutil de poder: A cultura inglesa no Rio de Janeiro joanino

direto à cultura inglesa. Só uma aristocracia cosmopolita, pelos cargos


ocupados no exterior, como era o caso do conde da Barca, ou uma elite
intelectual cujo maior expoente era José da Silva Lisboa, podiam usufruir
em sua plenitude de uma produção literária e filosófica notável, ao lado
de obras relevantes do ponto de vista científico e tecnológico. Aliás, é
preciso não esquecer o decisivo papel de Hipólito da Costa e de seu Cor-
reio Brasiliense na divulgação da cultura científica e tecnológica inglesa,
como mostrei em artigo recente17.

Concluindo, o período napoleônico permitiu uma brecha por onde


se insinuou, junto do público leitor do Rio de Janeiro joanino, a ideia
de que não era só a França a produtora de saberes e ideias. Do mesmo
modo, a convivência com súditos ingleses e suas famílias possibilitou o
acesso a uma cultura material mais diversificada e mais útil no cotidiano
da cidade. Mas todos sabemos que é muito lento o processo de substitui-
ção de uma língua e de uma cultura dominantes internacionalmente por
outra: o latim tardou a desaparecer, substituído pelas línguas nacionais; o
francês tornou-se uma língua diplomática e política e a cultura francesa
dominou a Europa durante séculos; só recentemente, digamos há meio
século, o inglês e a cultura anglo-saxônica invadiram definitivamente o
mundo global.

Referências bibliográficas
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joanino. Antologia de textos, 1809-1818. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
2013.
FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. Aspectos da influência britânica sobre a
vida, a paisagem e a cultura do Brasil. [s.n.t.].
NEVES, Lúcia M. Bastos Pereira das. “O Livro para nele se fazer memória de
todas as obras que entraram na Real Biblioteca”. In: ALGRANTI, Leila Mezan
& MEGIANI, Ana Paula (orgs). O Império por escrito: Formas de transmissão
da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX, São Paulo, Alameda,
2009.
17 – SILVA, Maria Beatriz Nizza. Hipólito da Costa e a divulgação da cultura técnico-
-científica inglesa no império luso-brasileiro, Revista do Instituto Histórico e Geográfico
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Maria Beatriz Nizza da Silva

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. “A correspondência consular no Arquivo dos


Negócios Estrangeiros em Paris”, Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa
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210 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):193-210, jan./mar. 2016.


No Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves: Pradier e a economia política
das imagens de arte e poder

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NO REINO UNIDO DE PORTUGAL, BRASIL E ALGARVES:


PRADIER E A ECONOMIA POLÍTICA DAS IMAGENS
DE ARTE E PODER
IN THE UNITED KINGDOM OF PORTUGAL, BRAZIL AND THE
ALGARVES: PRADIER AND THE POLITICAL ECONOMY OF THE
IMAGES OF ART AND POWER
Rogéria de Ipanema1

Resumo: Abstract:
Este trabalho é um recorte temático que quer This text is a thematic passage that seeks to
pensar a economia política da arte a partir de um think through the political economy of art based
determinado manejo do capital artístico-cultural on a specific treatment of the artistic-cultural
das imagens instituídas no período joanino bra- capital of the images instituted during the Bra-
sileiro. A constituição e produção dessa econo- zilian Joanine period. The constitution and pro-
mia significaram, naquele momento, mais um duction of this economy signified, at that time,
suporte técnico e intelectual da celebração da an additional technical and intellectual support
união do velho reino com o novo, desdobrando- for the celebration of the union between the old
-se em atos e datas demarcadoras da vida da kingdom and the new, unfolding in pivotal acts
Coroa portuguesa na Corte do Rio de Janeiro. and dates in the life of the Portuguese crown in
D. João precisava pensar o lugar de Portugal the court of Rio de Janeiro. John VI needed to
no Brasil, reproduzir a ordem dos reinos e o think about the place of Portugal in Brazil, to
modelo das coroas europeias, para tornar-se a reproduce the order of the kingdoms and the
representação de uma monarquia absoluta que model of the European crowns, to become the
acontecia na América. representation of an absolute monarchy that
was taking place in America.
Palavras-chave: Economia política da arte; Keywords: Political economy of art; the en-
o gravador Charles S. Pradier; imagens de ce- graver Charles S. Pradier; images of celebra-
lebração do Reino Unido de Portugal, Brasil e tion from the United Kingdom of Portugal, Bra-
Algarves. zil and the Algarves.

Em um reino far, far away, um príncipe viajou pelo oceano para


escapar das perseguições de um imperador que queria conquistar o mun-
do, ou parte dele, e com um exército muito, muito poderoso, o príncipe
daquele pequeno reino reuniu a sua família, encaixotou objetos e posses
– têxteis, porcelanas, quadros, joias, pratarias –2, encaixotou a livraria,
mas que ficou para trás, lá no cais, e partiram para a América. Junto com
ele, nobres, juízes, clérigos, um maestro e um organista, e do autodesterro

1 – Doutora em História. Professora do Depto. de História e Teoria da Arte e do Progra-


ma de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
2 – D. João ficava no Palácio de Mafra e d. Carlota e família no Palácio de Queluz.

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Rogéria de Ipanema

na colônia, o príncipe protegeu a sua dinastia destituída politicamente


por Napoleão3. A Corte e a governança, com os ministros e conselheiros,
quando tudo e todos estavam embarcados nos navios de Portugal, salva-
guardados pela esquadra britânica, navegaram para o oeste do Atlântico-
-Sul tropical. Logo, conservando o Estado português do Novo Mundo, o
príncipe D. João continuou a escrever a sua história amaneirada em uma
nova fase, inédita na ordem das monarquias europeias, durante os 13 anos
em que trouxe um reino de lá para cá, e depois o uniu com o Brasil.

CONGRESSO, TRATADO, CARTA DE LEI


O processo político internacional iniciado em 1814 que acondicio-
nou o projeto de transformação do Reino português, leia-se a transcri-
ção: “considerados pelos plenipotenciários das potências que formaram
o Congresso de Viena, assim no Tratado de Aliança concluído aos 8 de
abril...”4. Este texto da Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815, D. João
articulou a graduação necessária porque “a providência divina confiou ao
meu [seu] soberano regime” e dando “a importância devida à vastidão e
localidade dos meus domínios da América, à cópia e variedade dos pre-
ciosos elementos de riqueza que eles em si contêm”. Segue com “uma
perfeita união e identidade entre os meus reinos de Portugal e dos Algar-
ves, e os meus domínios do Brasil”. O inciso I cria o Reino do Brasil e o
segundo une-o.

Com a Carta de Lei, D. João regia um reino unificado, capitalizado


pelo poder central do Rio de Janeiro, onde o Brasil participava com um
território de dimensões continentais, configurado em uma relativa inte-
gralidade geopolítica. No entanto, não foi sem reações que a nova paisa-
gem política se estabelecera, e os regionalismos, nacionalismos e “ideais
3 – Em 21 de novembro de 1807. Mais em: ASSUNÇÃO, Paulo de. Ritmos da vida:
momentos efusivos da família real portuguesa nos trópicos. Rio de Janeiro: Arquivo Na-
cional, 2008.
4 – No inciso I da Carta, ordena a elevação e denominação de Reino do Brasil e no inciso
II, que se “formem d’ora em diante um só e único reino debaixo do título – Reino Unido
de Portugal e do Brasil e Algarves.” Carta de Lei – de 16 de dezembro de 1815 – Eleva o
Estado do Brasil à graduação e categoria de Reino. Coleções de leis do Brasil, ano 1815,
p. 68-69. http:// www2.camara.leg.br.

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No Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves: Pradier e a economia política
das imagens de arte e poder

republicanos” vieram, com a insurgência pernambucana da Revolução de


18175.

Na sede da Corte, o tempo dividia problemas urbanos junto ao pro-


cesso civilizatório, a partir de um repertório inaugural de instituições,
sistemas, programas e práticas6, que vinha sendo implantado na cidade
desde a chegada de D. João em 1808. O príncipe regente deu novas in-
formações à Corte, absolutamente fundamentado no regime escravocrata,
e a sua presença e a nova sede aprofundaram quantitativamente e quali-
tativamente as questões econômicas, políticas e sociais da escravidão no
Brasil.

A queda de Napoleão, as potências europeias congressadas, a Alian-


ça tratada, a dinastia de Bragança restaurada e a Corte portuguesa reim-
plantada com maior soberania política sob o estatuto de Reino Unido,
restavam expressivas representações, muito caras aos reinos, que se dão
com a entrada das artes para o estatuto do poder. Desde o modelo das cor-
tes modernas, que ainda vigorava, a lógica dos recursos artísticos – mate-
riais e humanos – sempre estiveram para a ordem política, em que estilo
e arte, imagem e poder se fundiam para produção de sentidos, afirmação
de governos e construção da história.

Tanto quanto a teoria crítica de Guy Debord sobre a espetaculari-


zação7, a sociedade de Corte sempre foi a sociedade do espetáculo, res-
guardadas as temporalidades, regimes e sistemas dos períodos das teorias
da massive mídia com as reflexões de Norbert Elias8. No entanto, em
ambas, a imagem construída na, ou pela, efemeridade torna-se um esta-

5 – As aspas são devidas à citação do verbete de: NEVES, Guilherme Pereira das. Revo-
lução de 1817. In: VAINFAS, Ronaldo, NEVES, Lúcia Bastos Pereira das. (orgs.). Dicio-
nário do Brasil Joanino 1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. p. 389-391.
6 – Impressão Régia e a imprensa, Real Horto Botânico, Museu Real, Teatro São João,
Real Biblioteca torna-se pública. Instituiu o imposto predial com a Décima Urbana; a prá-
tica do Beija-mão. Intensificação e maiores condições comerciais dos modelos europeus
nas formas vestimentares, decorativas dos lares e gastronômicas.
7 – DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
8 – ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e
da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

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Rogéria de Ipanema

tuto de mundo que se quer determinar. Na Corte, não só pela cênica de


etiqueta cerimonialista dos contatos e interlocuções com a realeza, como
o ritual do beija-mão, mas também na celebrização dos movimentos da
coroa, constituía-se, também, uma dimensão aproveitada politicamente
para elevar a definição do poder e efetivar uma memória simbolicamente
elaborada. Tudo, tudo representação.

O CONDE DA BARCA: EXILAR E IMPORTAR A ARTE


E ARTISTAS
A ideia e mediação da inserção das belas artes cortesãs no Brasil são
responsabilidade do estadista Antônio de Araújo e Azevedo9. Os histo-
riógrafos analisam o seu redimensionamento no governo joanino, num
alinhamento mais francófilo, ao assumir, em 1814, a Secretaria dos Negó-
cios da Marinha e Domínios Ultramarinos10, e a dos Negócios Estrangei-
ros e da Guerra em 181611. A conjuntura europeia que recuperou Araújo e
Azevedo às secretarias, além da morte de D. Rodrigo de Souza Coutinho,
também é demarcadora para a historiografia de uma larga produção ar-
tística brasileira no século 19 com causas, efeitos e resultados até os dias
de hoje. Registra-se que Araújo e Azevedo recebera o título de conde da
Barca no dia 17 de dezembro, um dia depois da Carta de Lei da união dos
reinos12.

Barca planejou, em 1815, as conexões na França para a importação


da arte e artistas pela exportação de bonapartistas, alguns, membros do
Instituto de França, que se dissolveria em março de 1816, com a Res-
tauração dos Bourbons. Os artistas envolvidos, já muito estudados, e as
construções historiográficas vão circunstanciando o circuito realizado em
Paris, entre o embaixador extraordinário de Portugal13, o secretário perpé-
9 – IPANEMA, Rogéria de. Conde da Barca: um estadista no governo de D. João. In:
IPANEMA, Rogéria de. D. João e a cidade do Rio de Janeiro 1808-2008. Rio de Janeiro:
Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro/Gabinete Português de Leitura, 2008.
10 – De fevereiro de 1814 a 21 de junho de 1817.
11 – De 30 de dezembro de 1816 a 21 de junho de 1817.
12 – Universidade do Minho, Arquivo Distrital de Braga, PT/UM-ADB/FAM/FAA-AAA.
http://pesquisa.adb.uminho.pt/details?id=1408708
13 – D. Pedro José Joaquim Vito Meneses Coutinho (?-1823), 6º marquês de Marialva e

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No Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves: Pradier e a economia política
das imagens de arte e poder

tuo da Classe de Belas Artes do Instituto de França, com o outro membro,


o cientista Humboldt14, acompanhadas de perto de um funcionário da em-
baixada, ex-secretário do conde da Barca15.

O agrupamento dos artistas16, com atores definidos e definindo o pro-


cesso do exílio político, uns mais que os outros, é devido ao ministro An-
tonio de Araújo e Azevedo; o seu apoio, mesmo que por pouco tempo, foi
decisivo para os franceses no Rio de Janeiro, chegados em 26 de março
de 181617. As relações do ensino artístico oficial e o conde da Barca não
são uma questão menor ou pontual, pois foi sua a articulação política go-
vernista, as quais devem ser compreendidas dentro do conjunto de ações
introduzidas e desenvolvidas pelo ilustrado nos campos das ciências na-
turais, agricultura, tecnologias e caminhos para a indústria, durante os
nove anos no Brasil, onde veio a falecer em 1817.

8º conde de Cantanhede. “Ele se destacava mais do que tudo pelos vastos conhecimentos
nas ciências naturais, na literatura e nas belas artes, das quais praticava, com proficiência,
a pintura e a gravura. Contratante da missão artística francesa, inspirador da vinda de
cientistas estrangeiros”. RIOS FILHO, Adolfo Morales de los. O ensino artístico: subsídio
para a sua história. Anais do III Congresso de História Nacional. Rio de Janeiro: IHGB,
v. 8, p. 3-432, 1943. p. 5.
14 – Para Rios Filho, o cientista Alexandre Von Humboldt (1769-1857) intermediou o
contato entre o marquês de Marialva e Joaquim Lebreton.
15 – Francisco José Maria de Brito era funcionário da embaixada e fora secretário particu-
lar do conde da Barca em Haia, correspondendo-se permanentemente com o estadista no
Brasil. Mais em: RIBEIRO, Marcus Tadeu Daniel. O conde da Barca e a vinda dos artistas
franceses: contribuições documentais. Anais do Seminário EBA 180. Rio de Janeiro: Es-
cola de Belas Artes/Centro de Letras e Artes/UFRJ, p. 65-77, 20-22 nov. 1996.
16 – Na historiografia brasileira são encontradas várias denominações: Colônia Lebreton;
Colônia artística; Colônia artística francesa; Colônia de artistas de 1816; Missão Artística;
A Missão Artística de 1816; A Missão Francesa; a Missão Artística Francesa de 1816.
Referências: TAUNAY, Afonso de E. A Missão Artística de 1816. Rio de Janeiro: MEC/
DPHAN, 1956. (v. 18); BITTENCOURT, Gean Maria. A Missão Artística Francesa de
1816. Petrópolis: Museu de Armas Ferreira da Cunha, 1967; BANDEIRA, Julio, XEXÉO,
Pedro Martins Caldas, CONDURU, Roberto. A Missão Francesa. Rio de Janeiro: Sextan-
te Artes, 2003; RIOS FILHO, Adolfo Morales de los. op. cit
17 – Sessenta e três dias após a partida do Havre, em 22 de janeiro de 1816, a Gazeta do
Rio de Janeiro de 30 de março noticiava a chegada do navio norte-americano Calpé com
os artistas. Mais em: RIOS FILHO, Adolfo Morales. op. cit.

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Rogéria de Ipanema

Desta forma o famoso núcleo: Lebreton18, Debret19, Montigny20,


Taunay21 e Pradier, mais os oficiais mecânicos22, passaram a servir ao
Estado e à Coroa creditados na criação da Escola Real de Ciências, Artes
e Ofícios. Joaquim Le Breton, com sua experiência institucional qualifi-
cada, estruturara dois projetos para a Escola23, endereçados exatamente
para o conde da Barca24. Portanto, era uma colônia francesa, um grupo de
artistas, e um projeto os engajava numa missão.

ESCOLA REAL DE CIÊNCIAS, ARTES E OFÍCIOS


Assim se iniciava uma economia oficial das artes visuais à europeia,
pela afirmação do seu papel cortesão, mesmo que nunca tenha chegado à
área das ciências ou dos ofícios, como decretado em 1816:

Atendendo ao bem comum que provém aos meus fieis vassalos de se


estabelecer no Brasil uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios25
18 – Joachim Lebreton (Ille de Villaine, 7 abr.1760 – Rio de Janeiro, 9 jun. 1819). Traba-
lhou no Ministério do Interior como chefe da seção de museus, conservatórios e bibliote-
cas.
19 – Jean Baptiste Debret (Paris, 18 abr .1768 – 28 jun. 1848). Pintor de história, montou
e deu aulas em seu atelier no Catumbi. Era primo do revolucionário Jacques Louis David.
20 – Nicolas Antoine Taunay (Paris, 10 fev.1755 – 20 mar.1830). Pintor de paisagem,
membro fundador do Institut de France, teve 6 filhos, instalando-se nas terras da Floresta
da Tijuca, onde moraram ao lado, da até hoje existente, Cascatinha dos Taunay; Auguste
Marie Taunay (Paris, 26 maio 1768 – Rio de Janeiro, 24 abr. 1824), escultor e irmão único
de Nicolas.
21 – Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny (Paris, 15 jul. 1776 – Rio de Janeiro,
2 mar. 1850). Foi um arquiteto premiado no Salão de Paris com estudos na Academia de
S. Lucas. No Brasil, formou mais de 50 alunos em arquitetura na Academia Imperial das
Belas Artes. Instalou-se na Gávea, e hoje o neoclássico Solar Grandjean de Montigny está
integrado à área da PUC-RIO.
22 – CARDOSO, Rafael. A Academia Imperial das Belas Artes e o ensino técnico. 19&20,
Rio de Janeiro, v. VIII, n. 1, 2008. http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/rc_eba-
tecnico.htm
23 – Para uma análise dos projetos de Lebreton, leia-se: PEREIRA, Sonia Gomes. A Es-
cola Real de Ciências, Artes e Ofícios e a Academia Imperial de Belas Artes do Rio de
Janeiro. In: IPANEMA, Rogéria de, op. cit.
24 – Um de 12 de junho e o outro em 5 de julho de 1816. BARATA, Mario. Manuscrito
inédito de Lebreton: sobre o estabelecimento de dupla Escola de Artes do Rio de Janeiro,
em 1816. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janei-
ro, MEC, n. 14, p. 283-307, 1959.
25 – Idem, p. 77.

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No Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves: Pradier e a economia política
das imagens de arte e poder

em que se promova e difunda a instrução e conhecimentos, indis-


pensáveis aos homens destinados não só aos empregos públicos da
administração do Estado, mas também ao progresso da agricultura,
mineralogia, indústria e comércio, de que resulta a subsistência, co-
modidade e civilização dos povos (...) fazendo-se portanto necessário
aos habitantes o estudo das Belas Artes com aplicação e referência
aos ofícios mecânicos, cuja prática, perfeição e utilidade depende dos
conhecimentos teóricos daquelas artes e difusivas luzes das ciências
naturais, físicas e exatas26 (...)

O texto continua,

e querendo para tão úteis fins aproveitar, desde já, a capacidade, ha-
bilidade e ciência de alguns dos estrangeiros beneméritos, que têm
buscado a minha real e graciosa proteção para serem empregados no
ensino e instrução pública daquelas artes: hei por bem, e mesmo en-
quanto as aulas daqueles conhecimentos, artes e ofícios não formam
a parte integrante da dita Escola (...) cumprindo desde logo cada um
dos ditos pensionários com as obrigações, encargos e estipulações que
devem fazer a base do contrato, que ao menos pelo tempo de seis anos
hão de assinar, obrigando-se a cumprir tudo quanto for tendente ao fim
da proposta instrução nacional das belas artes aplicadas à indústria,
melhoramento e progresso das outras artes e ofícios mecânicos27.

É esclarecedor como o texto enfatiza o lugar das artes no contexto do


progresso industrial, na verdade, contida na macrodimensão da economia
política do conceito de civilização esclarecida. E finda “O Marquês de
Aguiar (...) encarregado interinamente da Repartição dos Negócios Es-
trangeiros e da Guerra”, e o “assim o tenha entendido, e faça executar
com os despachos necessários. Palácio do Rio de Janeiro 12 de Agosto
de 1816. Com a rubrica de sua majestade28”. Notar o sua majestade, pois
mesmo ainda não aclamado, D. Maria I já havia falecido em 20 de março
do mesmo ano.

26 – Idem, ibidem.
27 – Idem, p. 78
28 – Decreto de 12 de Agosto de 1816. Coleção de Leis do Império do Brasil, v. 1, 1816,
p. 77.

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Rogéria de Ipanema

PRADIER E A ECONOMIA POLÍTICA DAS IMAGENS DE ARTE


E PODER
Joaquim Le Breton planejara cursos para pintura, desenho, arquite-
tura e para gravura a água-forte e em corte doce, argumentava, citando
Mario Barata: “o trabalho da gravura só pode ser ensinado no atelier do
mestre”29. Pois é do corte aberto do gravador Pradier que exemplificamos
uma economia política das imagens de arte e poder segundo os pincéis do
Estudo para o desembarque de D. Leopoldina no Brasil, de Jean Baptiste
Debret.

O dossel celebrativo para o desembarque da arquiduquesa austría-


ca, em 5 de novembro de 1817, foi financiado pelo Corpo do Comércio
e constituiu uma ação conjugada nos gastos comemorativos da Coroa
para saudar a princesa da poderosa Áustria de Francisco II/I30. A estampa
Desembarque...31 registra a chegada de Carolina Josefa Leopoldina para
o casamento contratado com o príncipe D. Pedro, um ano antes32, sob ne-
gociação diplomática de grande interesse político entre o marquês de Ma-
rialva e Metternich33, como estudado por Maria de Lourdes Viana Lyra34.

29 – Idem, p. 289.
30 – O imperador Francisco II era um dos líderes da Santa Aliança.
31 – Desembarque de Sua Alteza Real, a Archiduquesa D. Carolina Leopoldina – Prin-
cesa Real do Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves no Rio de Janeiro em 5 de
Novembro de 1817, p. 219. Do lado esquerdo: Pintado por... Debret, pensionário de S. M.
Fma, e Sócio da R. Ac. de Bellas Artes do Rio de Janeiro; do lado direito: Aberto por C.
S. Pradier, pensionário de S. M. Fma e Sócio de R. Ac. de Bellas Artes do Rio de Janeiro.
32 – Assinado em 29 de novembro de 1816.
33 – Metternich (Klemens Wenzel Nepomuk Lothar von) foi o diplomata presidente do
Congresso de Viena.
34 – Mais em: LYRA, Maria de Lourdes Viana. Relações diplomáticas e interesses políti-
cos no casamento de D. Leopoldina. In: 200 anos – Imperatriz Leopoldina: realizações do
Simpósio comemorativo do bicentenário de nascimento da imperatriz Leopoldina. Rio de
Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1997.

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No Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves: Pradier e a economia política
das imagens de arte e poder

PRADIER, Charles S. segundo Debret. Desembarque de sua alteza real, a arquiduquesa


D. Carolina Leopoldina... no Rio de Janeiro em 5 de novembro de 1817. Gravura em corte doce, /1820/.
(Biblioteca Nacional de Portugal, cota do exemplar digitalizado e-54-r, purl.pt/14887)

A tradução de Charles Simon Pradier35 é exata e conserva o mesmo


sentido da criação de Debret e a qualidade da gravura francesa domina-
da desde o século 17. Como gravura de reprodução, a imagem pictórica
trasladada ganha muito em preto e branco, advinda de uma paleta original
inundada de vermelhos.

A composição privilegia e distingue o príncipe-rei que sobe ao co-


che , localizando-o em espaço principal, e cujas linhas do grande dossel
36

abobadado, a proteger a comitiva, ajudam a convergir para o monarca.


Este, ao virar-se, toma seu olhar para a arquiduquesa de costas, em grande
luminosidade branca do vestido estilo-império e da grande pluma. Ela
está contrastada pela casaca escura de D. Pedro, que a conduz com de-

35 – Com datas de vida e morte: de 1783 a 1847 segundo o dicionarista Emmanuel Bé-
nézit; e de 1786 a 1848 segundo Henri Beraldi.
36 – Príncipe-rei, porque o desembarque é de fins de 1817 e a pintura é de 1818 e a gra-
vura está aproximada entre os anos de 1818 e 1820.

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licadeza e etiquetamente recebe a sua mão sobre a dele, entre os olhares


profundos de reconhecimento. Em carta à irmã um ano antes, dizia: “Se
estar apaixonada significa não ter outra coisa na cabeça a não ser o Brasil
e dom Pedro, então estou37.” Tempos de submissão, obediência e papéis
de atuação.

Entre D. João e o príncipe, D. Carlota Joaquina. Os três estão ali-


nhados na diagonal esquemática do quadro, a qual determina a hierarquia
patriarcal: D. João, três degraus acima, enfatizado pela reverência do vas-
salo a beijar a sua mão; abaixo, D. Carlota, que olha para o espectador,
diferentemente da pintura; depois, o herdeiro do trono e a futura consorte,
um atrás do outro. Com a seção cortada por esses atores, o artista encon-
tra a segunda construção de personagens mais importantes do quadro, ou
seja, o espaço da família real na porção diagonal superior, onde D. Miguel
está mais próximo ao epicentro do que suas irmãs38. Ao mesmo tempo, as
princesas apresentam mais material a ser pintado, protagonizados pelos
seus vestidos vermelhos e azuis iguais ao da mãe; receberam o destaque
merecido, pela nitidez conferida aos elementos que compõem o primeiro
plano de uma vista. Elas aparecem iluminadas pelo raio de sol encomen-
dado por Debret, que atravessa o dossel, destacando o núcleo, a frente do
obscurecido conjunto de pessoas à direita. D. Leopoldina e D. Carlota são
banhadas pela mesma luz. Os turbantes à moda, a esconder os cabelos,
com grandes penachos vermelhos, fazem as cabeças das princesas e da
rainha; em suas mãos, o leque. As jovens expressam um certo incômodo
da formalidade da cerimônia e do calor39.

Na seção esquerda da diagonal, outro grupo com homens de Estado,


frades e o destaque para o bispo José Caetano da Silva Coutinho40.
37 – JANCSÓ, István, MACHADO, André Roberto de A. Tempos de reforma, tempos de
revolução. In: D. Leopoldina: cartas de uma imperatriz. São Paulo, Estação Liberdade,
2006. p. 89.
38 – Por ordem de nascimento, Maria Francisca, Maria Teresa, Maria Isabel e Maria da
Assunção.
39 – A família real é distinguida pela faixa que desce do ombro direito à cintura, à esquer-
da.
40 – 8º Bispo, José Caetano da Silva Coutinho (Caldas de Rainha, 13.02.1768 – Rio de
Janeiro 27.01.1833). Era o confessor de D. Maria I e D. Leopoldina.

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No Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves: Pradier e a economia política
das imagens de arte e poder

No primeiro plano, a presença de cinco homens negros que traba-


lham em prol de um desembarque seguro define a escravidão. No último
plano, o mosteiro de São Bento, no alto do morro, define o estado luso-
-cristão. La em cima, uma multidão de pé, sentada e recostada na própria
topografia da encosta, remete a uma longa espera com expectativas, e
sob uma quantidade de sombrinhas que protegem as pessoas do forte sol
daquele novembro carioca. Pois é do sol que o grande dossel no cais de
São Bento poder-se-á ser construído, para proteger D. Leopoldina, além
de preservar a realeza, oficialidade e convidados do contexto do plano de
fundo que dimensiona o distanciamento social.

A vertical que desce pela aresta da edificação religiosa, passando


pela margem da porta do coche, e o vestido de D. Carlota, deixam livre
a figura de D. João à esquerda. Uma horizontal estabelece duas ideias de
espaço. O espaço inferior descreve o tópico principal do tema, concor-
rendo também para uma maior visualização do seu maior personagem,
o príncipe regente, que se encontra próximo ao centro e ao meio, estra-
tegicamente deles deslocado, conferindo maior dinâmica compositiva à
obra. No espaço superior, os cocheiros aguardam o início do cortejo de
celebração, com as parelhas de cavalos ornamentados. Observar o horário
do dia, pela intensidade do contraste da pequena sombra dos cocheiros
projetada nos encostos e assentos.

A cena está em média distância e nos parece que Debret se localiza


no backstage desse pequeno palco, também a três degraus acima, regis-
trando politicamente um fato histórico, ou pintando historicamente um
fato político. E nesse olhar de dentro para fora, como quer Debret, aquele
rei-príncipe, não há mais dúvida, é um rei, como comprovam as inscri-
ções da coroa e a letra “J” e os algarismos VI nas curvaturas da abóboda
do dossel.

A estampa está devidamente intitulada com as autorias inscritas: do


lado esquerdo, Pintado por... Debret, pensionário de S. M. Fma e Sócio
da R. Ac de Bellas Artes do Rio de Janeiro; do lado direito: Aberto por

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Rogéria de Ipanema

C. S. Pradier, pensionário de S. M. Fma e Sócio da R. Ac. de Bellas Artes


do Rio de Janeiro.

UM REINO, UMA IMAGEM PARA EXPORTAR


Essa imagem contém uma forte representação simbólica41. Franceses
pintando e gravando para o governante português que casa o herdeiro do
trono com uma princesa de Schönbrunn, sobrinha-neta de Maria Antonie-
ta e cunhada de Napoleão. Unindo as casas de Bragança e Habsburgo42,
num reino de Capricórnio, o Reino Unido de Portugal, do Brasil e Al-
garves garantia, naquele momento, o Atlântico ocidental consagrado no
antigo regime diante das iminentes repúblicas atlânticas e pacíficas que
não tardariam a se reproduzir nas Américas do Sul e Central.

Com a presença do gravador Charles Simon Pradier e com ele a gra-


vura de reprodução, poder-se-ia ativar no que lhe é próprio, na repro-
dutibilidade e na circularidade da arte em geral, e as de usos políticos
em específico43. Subsumidas ao poder e protegidas segundo a pintura,
essas imagens de arte tornavam-se imagens mais fáceis, em dispositivos
que multiplicassem em número e aumentassem a economia dos bens sim-
bólicos e as representações do poder. Pradier traduzia a elevada arte do
corte e da Corte da França, que vinha desde quando Colbert reuniu os
melhores gravadores no estatizado Ateliê dos Gobelins44, para reproduzir
os quadros da galeria real e da história política de Luís XIV. Dessa forma,
constituir o que denominamos de Museu Volante de Papel.

41 – Em aproximações com: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro:


Bertrand Brasil, 2007; BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo:
Perspectiva, 2007.
42 – Mais em: PRANTNER, Johanna. Imperatriz Leopoldina do Brasil: a contribuição da
casa Habsburg-Lothringen e da cultura austríaca ao desenvolvimento do Brasil durante a
monarquia no século XIX. Petrópolis: Vozes, 1997.
43 – HUSKIN, John. A economia política da arte. Rio de Janeiro/São Paulo: Record,
2004.
44 – Para as referências sobre a gravura francesa do século 17, leia-se: IPANEMA, Ro-
géria de. Os 11 cortes de Robert Nanteuil e os Seiscentos do Museu. In: CAVALCANTI,
Ana, MALTA, Marize, PEREIRA, Sonia Gomes. (orgs.). Coleções de arte: formação,
exibição, ensino. Rio de Janeiro: RioBooks/Faperj, 2015.

222 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):211-226, jan./mar. 2016.


No Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves: Pradier e a economia política
das imagens de arte e poder

Segundo Escragnolle Taunay, Pradier, não encontrando as condições


materiais de produção45, retornou à Europa em 1818, sendo custeado pelo
próprio embaixador Marialva46, numa pensão garantida pela pressão dos
compatriotas no Rio47. Naquele momento, a gravura exercida oficialmen-
te na Corte estava lotada na Impressão Régia com gravadores do cor-
te doce e da água forte da Tipografia do Arco do Cego, que tinha sido
instituída, em Lisboa em 1799, exatamente para formar e atender uma
determinada produção portuguesa de gravura. E a produção das esferas
privada e comercial estava timidamente se constituindo.

O possível circuito das gravuras de Pradier está para ser quantifi-


cado, ou seja, uma aferição efetiva e o impacto que o capital pretendido
por D. João fez a economia política de imagens impressas circular, mas
pode-se qualificá-lo por algumas ações, como da participação da estampa
Desembarque48, no Salão de Paris de 1822.

PARA FINALIZAR: ESCOLA DE BELAS ARTES, 200 ANOS


DEPOIS
É do “formem d’ora em diante um só e único reino”, quando começa
a história da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, que somamos a este Congresso, no índice dos “200 anos depois”.
Foi da “Real Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro”, como assinam
Debret e Pradier, ou da proposta do texto de Lebreton que sugeria “Tal-
vez, criando simultaneamente uma Escola de Belas Artes”49, a instituição
de matriz estético-acadêmica neoclássica francesa tenha superado a mo-
narquia absoluta portuguesa e a monarquia imperial constitucional brasi-
leira, e na República, nesta democrática República Federativa do Brasil,
tenha continuado o papel que D. João rubricou50. A Escola Real, criada no
45 – “pois nem sequer existia papel próprio para tal impressão”. TAUNAY, Afonso E. op.
cit., p. 335.
46 – RIOS FILHO, Adolfo Morales de los. op. cit. p. 48.
47 – TAUNAY, Afonso E. op. cit, p. 335.
48 – Pradier já havia entrado no Salão de Paris em 1819, com o corte do retrato do mar-
quês de Marialva, segundo Caldas Xexéo. op. cit.
49 – PEREIRA, Sonia Gomes. op. cit., p.387.
50 – Hoje dispõe de 11 cursos: 10 bacharelados em Artes e Design, assim como proposto

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):211-226, jan./mar. 2016. 223


Rogéria de Ipanema

mesmo ano, de 1816, em que a Classe de Belas Artes é reautonomizada


em Academia na França, foi inaugurada por D. Pedro I, em 5 de novem-
bro de 1826, como Academia das Belas Artes, no prédio de Grandjean de
Montgny, na Travessa do Sacramento, hoje Travessa Belas Artes, uma
placa e um nome de um prédio que já era. Era o mesmo ano em que
faleceu o seu criador, D. João, e mesmo ano de morte da imperatriz Leo-
poldina51.

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portuguesa nos trópicos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008.
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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2007.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,
2007.
CARDOSO, Rafael. A Academia Imperial das Belas Artes e o ensino técnico.

no decreto, incluindo o Bacharelado de História da Arte e de Conservação e Restauração


e uma Licenciatura em Educação Artística.
51 – No número do mesmo dia em que D. Leopoldina chegou ao Rio, e um pouco mais de
um mês antes de sua morte em 11 de dezembro de 1826. D. João VI faleceu em Lisboa no
dia 10 de março.

224 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):211-226, jan./mar. 2016.


No Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves: Pradier e a economia política
das imagens de arte e poder

19&20, Rio de Janeiro, v. VIII, n. 1, 2008. Disponível em www.dezenovevinte.


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Rogéria de Ipanema

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TAUNAY, Afonso de E. A Missão Artística de 1816. Rio de Janeiro: MEC/
DPHAN, 1956. Petrópolis: Museu de Armas Ferreira da Cunha, 1967. (v.
18)

226 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):211-226, jan./mar. 2016.


Reino Unido: Atos legais, manifestações impressas
e a oração de graças do padre Mororó

227

REINO UNIDO:
ATOS LEGAIS, MANIFESTAÇÕES IMPRESSAS
E A ORAÇÃO DE GRAÇAS DO PADRE MORORÓ
UNITED KINGDOM: LEGAL ACTS, PRINTED EXPRESSIONS
AND THE PRAYER OF THANKS BY FATHER MORORÓ
Cybelle de Ipanema1

Resumo: Abstract:
A apresentação selecionou atos impressos que This presentation selected printed acts related
tiveram relação com o criado Reino Unido de to the established United Kingdom of Portugal,
Portugal, Brasil e Algarves. A base foram os Brazil and the Algarves. The base for the acts
catálogos da Impressão Régia do Rio de Janei- was the catalogs of the Royal Press of Rio de Ja-
ro: de Alfredo do Vale Cabral (1881) e Rubens neiro: from Alfredo do Vale Cabral (1881) and
Borba de Moraes (1993). Assim são indicados Rubens Borba de Moraes (1993). In this way the
os verbetes escolhidos que justificam o título chosen entries have been selected, justifying the
triplo eleito. three-part title.
Palavras-chave: Impressão Régia; Imprensa Keywords: Royal Press; National Press; Legal
Nacional; Atos Legais; Manifestações impres- Acts; Printed Expressions; Father Mororó.
sas; Padre Mororó.

1. Introdução

Título triplo, fonte primária única para as duas primeiras partes, sem
embargo de utilização em diferentes edições. Refiro-me aos levantamen-
tos da produção da Impressão Régia do Rio de Janeiro, primeira gráfica
autorizada, por Decreto de 13 de maio de 1808, aniversário do regente
D. João, em sua chegada à capital da colônia americana, ainda Vice-reino,
situação imediatamente superposta pela de Reino que, assim, se transfe-
rira de Portugal.

D. Marcos de Noronha e Brito, 8o conde dos Arcos, fechou o ciclo,


iniciado em 1763, com a transferência da capital, Salvador, preparando
a cidade do Rio de Janeiro para receber os monarcas, desembarcados em
março de 1808, depois de pequena estada na Bahia, a contar da chega-
da de parte da frota, em que iam o regente e a rainha, em 26 de janeiro,
quando assina, a 28, a Carta de Lei, dirigida ao governador da capitania,
1 –1Livre-docente e doutora pela Escola de Comunicação da UFRJ. Sócia emérita do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

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Cybelle de Ipanema

6o conde da Ponte, João de Saldanha da Gama Melo e Torres, liberando


o comércio “às nações amigas” e rompendo com o então vigente pacto
colonial.

D. João regente, desde 1792, da rainha-mãe D. Maria I, falta das


faculdades mentais, presente no Rio de Janeiro, com a Corte, a família
real e todo o aparato do Estado, a partir de 1808, foram objeto, em 2008,
de torrente bibliográfica e factual, nesta cidade e no Brasil, possibilitando
eventos e participações dos 200 anos, em Cursos, Seminários, Congres-
sos, inaugurações, restauração de monumentos que o momento bem me-
receu e o recebeu.

Os tempos são outros. Napoleão é vencido em 1815. Reúne-se o


Congresso de Viena, na Áustria (1814-1815), para redesenhar o mapa da
Europa, com o chanceler Talleyrand (Charles-Maurice de Talleyrand-Pe-
rigord), figura de proa do Congresso e apontado como diretamente ligado
à decisão que enseja o presente bicentenário: a criação do Reino Unido
de Portugal, Brasil e Algarves, pelo ato, firmado por D. João, “Carta de
Lei de 16 de dezembro de 1815 – Eleva o Estado do Brasil à graduação e
categoria de Reino2.

2. Análise das fontes

A produção da Impressão Régia do Rio de Janeiro foi levantada


por Alfredo do Vale Cabral (1851-1894) e representou “Homenagem da
Tipografia Nacional” à Exposição de História do Brasil. Esta, memorá-
vel feito, nunca repetido, de reunião de espécimes manuscritos, impres-
sos, bibliográficos, hemerográficos, cartográficos, iconográficos, em
monumental mostra no Rio de Janeiro, em 1881, inaugurada em 2 de
dezembro, aos 56 anos do imperador D. Pedro II. Comandada pela Bi-
blioteca Nacional, sob a direção de Benjamin Franklin de Ramiz Galvão
(1846-1938), futuro barão de Ramiz, teve a participação de estudiosos,
colecionadores particulares e instituições culturais, administrativas e de
2 –1Coleção de Leis do Brasil de 1815. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890 (no
verso da folha de rosto: Reimpressa pelo 1o escriturário do Tesouro Nacional, Joaquim
Isidoro Simões). No Índice das Cartas de Lei, Alvarás, Decretos e Cartas Régias, p. 62-63.

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Reino Unido: Atos legais, manifestações impressas
e a oração de graças do padre Mororó

variadas naturezas, entre as quais, o Instituto Histórico e Geográfico Bra-


sileiro.

A edição de seu extraordinário Catálogo (autêntico guia de fontes


sobre a História do Brasil) constituiu o volume IX dos Anais da Bibliote-
ca Nacional (publicados desde 1876), em dois volumes e um suplemen-
to3. Em 1981, no Centenário, fez jus a edição fac-similar pela Editora da
Universidade de Brasília.

Sob o título de Anais da Imprensa Nacional do Rio de Janeiro –


1808-1822, a sistematização do que fora impresso pela tipografia oficial
foi o trabalho metódico daquele graduado funcionário da Biblioteca Na-
cional, Alfredo do Vale Cabral4, que representou, por mais de um século,
bíblia de referência sobre a Impressão Régia, lançado junto com o Catá-
logo da Exposição de História do Brasil.

Nasceu Impressão Régia, em 13 de maio de 1808, e assumiu su-


cessivos nomes, conforme a situação nacional. Distribuída a matéria em
ordem cronológica, ano a ano, e dentro dos anos, em ordem alfabética, foi
socorro dos estudiosos de imprensa, de outras especialidades, como até
da evolução cultural primordialmente da cidade do Rio de Janeiro.

No período em estudo por Vale Cabral, 1808 a 1822, que inclui a


edição de folhas periódicas, com e sem censura, intitulou-se: Impressão
Régia, passou por outros apelativos, até Tipografia Nacional e Imprensa
Nacional, como chegou a nossos dias, e se transferiu do Rio de Janeiro
para Brasília.

Só em 1993 – 112 anos depois, portanto –, aparece o trabalho do


bibliófilo e bibliógrafo Rubens Borba de Moraes (1899-1986), revendo
e completando o estudo pioneiro de Vale Cabral. Teve a colaboração de
estudiosa de São Paulo. São dois volumes, o primeiro dedicado às peças

3 –1Anais da Biblioteca Nacional, vol. IX, 2 vol. e 1 suplemento. Rio de Janeiro: Tipo-
grafia Nacional, 1881.
4 –1CABRAL, Alfredo do Vale. Anais da Imprensa Nacional do Rio de Janeiro – 1808-
1822. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1881.

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Cybelle de Ipanema

de qualquer categoria e o segundo, aos atos legais emanados e ali impres-


sos5.

Estuda cada verbete de Vale Cabral, os últimos ausentes do estudo de


188l, com o rótulo restrito de “Legislação”.

A obra de 1993 complementa Vale Cabral e dá outras indicações


das peças reproduzidas. Nas referências bibliográficas, porém (“Obras
citadas”, p. 209-213, do 2o vol.), embora diga “Esta relação compreende
apenas as obras citadas nos verbetes”, é omissa na citação de trabalho por
mim organizado, D. Pedro I: proclamações, cartas, artigos de imprensa
(Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1973), conquanto figure nos verbetes
estudados, 20 vezes: 19 no 1o vol. e uma no 2o.

As peças que embasam a presente fala sobre o Reino Unido de Por-


tugal, Brasil e Algarves, entre 1815 e 1821 (recorte temporal escolhido)
foram todas impressas (ou reimpressas) pela Impressão Régia do Rio de
Janeiro (ou nomes em sucessão), buscados em Alfredo do Vale Cabral e/
ou Rubens Borba de Moraes. Os verbetes citados amarram-se às iniciais
dos autores dos respectivos levantamentos, de 1881 e 1993: AVC e RBM.

Classifico as peças nas categorias que elegi: Atos legais, Manifesta-


ções impressas e Oração de Graças, do padre Mororó, que justificam o
triplo título.

O foco foi que tivessem alguma ligação (física, no nome) com o


Reino Unido.

3. Atos legais

O primeiro é, naturalmente, a Carta de Lei, de 16 de dezembro de


1815, incluída na Coleção de Leis do Brasil daquele ano, mas que não
deixou de ser impressa pela Impressão Régia, também em 1815.

5 –1CAMARGO, Ana Maria de Almeida, MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia da


Impressão Régia do Rio de Janeiro. São Paulo: Edit. da Universidade de São Paulo: Kos-
mos, 1993, 2 vol.

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Reino Unido: Atos legais, manifestações impressas
e a oração de graças do padre Mororó

A essência desse ato era: “de maneira que formem um só corpo po-
lítico, debaixo do título de Reino Unido de Portugal e do Brasil e Algar-
ves”.

Há discrepâncias irrelevantes no título: “Brazil, com z e com s”,


“Portugal, Brasil” e “Portugal, do Brasil” e “Algarves, Algarve”6.

Em sequência, urgia institucionalizar a nova unidade, o que prescre-


ve o seguinte ato real, de 13 de maio de 1816, conforme ementa: “Carta
de Lei pela qual Vossa Majestade há por bem dar Armas ao seu Reino do
Brasil e incorporar em um só Escudo real as Armas de Portugal, Brasil e
Algarves, para símbolo da União e identidade dos referidos três Reinos.”

Os comentários a esse Ato são hauridos em Rubens Borba de Mo-


raes, que descreve a referida Carta de Lei como constante de três páginas,
contendo a última “gravura colorida da esfera armilar e do escudo real
português, feita por Brás Sinibaldi”7.

Chama atenção o Ato a seguir. Para bem caracterizar o novo Reino,


fazendo ademais ligação com a legislação anterior, um alvará com força
de Lei é baixado em 9 de janeiro de 1817, com remissão à Carta de Doa-
ção do ancestral, D. João IV, do século XVII.

Na elucidação de Rubens Borba de Moraes, de ser referendado pelo


conde da Barca, é o
Alvará com força de Lei, por que Vossa Majestade há por bem que o
Príncipe d. Pedro, seu muito amado e prezado Filho Primogênito, e
os mais Príncipes Filhos Primogênitos desta Coroa que depois dele
vierem, tenham o título de Príncipe Real do Reino Unido de Portugal,
e do Brasil e Algarves e duque de Bragança, em lugar do título de
Príncipe do Brasil que lhe foi conferido pela Carta de Doação de 27
de outubro de 16458.

6 –1A Carta de Lei de criação do Reino Unido foi impressa na Impressão Régia. Biblio-
grafia..., 2º vol., 301. Não figura no Vale Cabral, como, a registrar, que não consta das
Efemérides brasileiras, do barão do Rio Branco, editadas mais de uma vez no século XX.
7 –1RBM, 2º vol., 313.
8 –1RBM, 2º vol., 326.

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Cybelle de Ipanema

D. João, como rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves,


baixaria outros Atos, como, por exemplo, o Decreto de 6 de fevereiro de
18189, quando já está aclamado, com toda a pompa, ao assumir a chefia
plena do governo, após a morte de D. Maria I, em 1816, e a espera a que
se votou.

4. Manifestações impressas

Nestas, selecionei os impressos da Impressão Régia, entre 1816 e


1821, que mencionassem expressamente a condição de Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves. Agrupam-se por dois critérios: pela ordem
cronológica (mescladas, naturalmente, as intenções) e pela identidade
dessas, o que foge à estrita ordem em que foram produzidos.

Há pequenas diferenças de redação nos dois levantamentos das pe-


ças.

As Manifestações impressas referem-se a atos realizados em relação


a personagens da monarquia, e alguns outros assuntos, consubstanciados
em impressos da tipografia oficial. Privilegiei os ligados a D. Maria I, a
D. João/D. João VI e ao príncipe D. Pedro, a seguir, regente do Brasil.
Algumas figuras da Corte, embora com qualificação vinculada ao Reino
Unido, preferi descartar, como os Ofícios fúnebres pelo Núncio Apostó-
lico do papa Pio VII, D. Lourenço Caleppi, e pelo ministro marquês de
Aguiar, D. Fernando José de Portugal.

4.1. Orações fúnebres

A rainha D. Maria I é a primeira pessoa mencionada, em sua qualifi-


cação, com vinculação ao Reino Unido. Trata-se das exéquias realizadas,
em sua homenagem, no Rio de Janeiro e fora dele. Registram-se a igreja,
o local (cidade), o autor e/ou intérprete e sua qualificação, a data e qual-
quer circunstância complementar. Fecham as duas indicações bibliográ-
ficas dos levantamentos da Impressão Régia, de Vale Cabral e de Rubens
Barbosa de Moraes.

9 –1RBM, 2º vol., 355.

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Reino Unido: Atos legais, manifestações impressas
e a oração de graças do padre Mororó

a) Oração fúnebre, na Capela Real da Corte do Rio de Janeiro,


por D. Luís Antônio Carlos Furtado de Mendonça, deão da Sé
Primaz de Braga, 1816.
Impresso à custa da Real Fazenda, dando-se 200 (duzentos)
exemplares ao autor.
(AVC, 435; RBM, 506)
b) Oração fúnebre, na Igreja da Cruz, da Corte do Rio de Janeiro,
por fr. Francisco de São Carlos, 1816.
(AVC, 436; RBM, 507)
c) Oração fúnebre, pelas exéquias celebradas pelo reverendíssi-
mo bispo do Grão Pará, D. Manuel de Almeida de Carvalho, e
recitada por seu provedor e vigário-geral, Romualdo de Sousa
Coelho, 1817.
Foi, também, impressa em Lisboa, na Oficina de J.F.M. de
Campos, em 1817.
(AVC, 483; RBM, 574)
d) Oratio, por Joachimo Navarro Andradio, dezembro de 1816.
Em latim, impressa em 1818 e “em primorosos caracteres de
imprensa”.
(AVC, 530; RBM, 623)
Há uma, no mesmo sentido, sem se reportar a D. Maria I como rai-
nha do Reino Unido.

4.2. Relacionadas com o príncipe regente e rei D. João/D. João VI

Corporificada a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algar-


ves, em 1815, passa-se a falar – e agir –, em 1817, em torno da Aclama-
ção do cabeça do novo status assumido pela monarquia. Posteriormente,
seguir-se-ão as manifestações de 1818, ano, realmente, da Aclamação. Ao
fim de cada citação, o ano da respectiva publicação. Retirada toda a adje-
tivação que não poupava o superlativo “faustíssimo”, como a “desejada
Aclamação”, o “indelével dia 6 de fevereiro” etc.

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Cybelle de Ipanema

4.2.1. Aclamação

a) Aclamação de Sua Majestade, o senhor d. João VI, por Joa-


quim José Pedro Lopes, 1817.
(AVC, 456; RBM, 526)
É reimpressão
b) Discurso gratulatório pela Aclamação de d. João VI. Para ler-
-se na Câmara da Vila de Santo Antônio de Alcântara, Co-
marca de São Luís do Maranhão, presentes Clero, Nobreza e
Povo, feita por J.C.G. de C., a rogo do Juiz Ordinário Antônio
José Rodrigues de Sousa, em 6 de abril de 1817 (1817).
(RBM, 535)
c) Ratificação de juramento de fidelidade e vassalagem, ofere-
cida ao senhor d. João VI no dia de sua Aclamação, em nome
do bispo do Pará, d. Manuel de Almeida de Carvalho, por seus
deputados Romualdo de Sousa Coelho, arcipreste da catedral,
e Raimundo Antônio Martins, primeiro mestre de cerimônias,
1817.
(AVC, 489; RBM, 582)
d) Oração de ação de graças pela Aclamação do rei d. João VI,
recitada na catedral da cidade de São Paulo, pelo vigário Joa-
quim Antônio Fernandes de Saldanha, lente de Teologia Dog-
mática, e Moral, e examinador sinodal do Bispado, em 8 de
abril de 1817 (1818).
(AVC, 525; RBM, 619)
e) Bando do Senado, para as luminárias da Aclamação de d. João
VI, 1818.
(AVC, 502)
f) Discurso pela Aclamação, recitado na matriz do Recife, por fr.
João Batista da Purificação, em 13 de maio de 1818.
(AVC, 505; RBM, 601)

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Reino Unido: Atos legais, manifestações impressas
e a oração de graças do padre Mororó

g) Elogio a D. João VI, pela Aclamação. O. d. c. /Oferece, dedica


e consagra/ Diogo Duarte Silva, Tesoureiro-geral e Deputado
da Real Fazenda na província de Santa Catarina, em 21 de
fevereiro de 1818, oferecido a el-rei por Antônio Mendes de
Carvalho, 1818.
(AVC, 511; RBM, 603)
h) Hino real à Aclamação de D. João VI, 1818.
(AVC, 514; RBM, 609)
i) Oração em Ação de Graças a Deus pela Aclamação do rei D.
João VI, na Igreja Matriz de S. Pedro do Rio Grande do Sul, na
festividade pública que fez o sargento-mor Mateus da Cunha
Teles, composta e recitada pelo padre José Rodrigues Malhei-
ro Trancoso Souto-Maior, em 29 de março de 1818.
(AVC, 526; RBM, 618)
j) Relação dos festejos pela Aclamação do rei D. João VI, na
noite de 6 de fevereiro e nas duas subsequentes, pelos habitan-
tes do Rio de Janeiro, seguidas das poesias dedicadas ao mes-
mo objeto, coligidas por Bernardo Avelino Ferreira e Sousa,
oficial supranumerário da secretaria da Intendência-Geral da
Polícia, dada ao prelo e gratuitamente distribuída pela mesma
Intendência, 1818.
Por ordem de Sua Majestade. De p. 35 a 51 ocorre um Canto
épico à Aclamação, por Estanislau Vieira Cardoso.
(AVC, 535; RBM, 638)
k) Sermão de Ação de Graças, pela Aclamação, celebrado pelo
Senado da Câmara da capital do Pará, pelo padre Romualdo
Antonio de Seixas, em 13 de maio de 1818.
(AVC, 536; RBM, 639)
l) Descrição dos emblemas originais e seus epigramas com que
se adornou a iluminação que, na fachada da casa de sua resi-
dência, apresentou ao público o coronel Antônio José da Silva
Braga, na noite de 6 de fevereiro de 1818, em que se celebrou

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):227-246, jan./mar. 2016. 235


Cybelle de Ipanema

a Aclamação de D. João VI, e nas três seguintes, dias 7, 8 e 9,


1821.
(AVC, 695; RBM, 807)
4.2.2. Revolução de 1817
No reinado de D. João (ainda não oficialmente aclamado) do Reino
Unido de Portugal, Brasil e Algarves, ocorre a Revolução de 1817, epi-
sódio fartamente estudado e aqui inserido pelas produções emanadas da
Impressão Régia, felicitando o monarca pela vitória.
a) Elogio pelo sucesso das armas portuguesas contra os insur-
gentes de Pernambuco, oferecido ao senhor D. João VI, por
Manuel Joaquim da Silva Porto, 1817.
Em verso solto.
(AVC, 468; RBM, 556)
b) Elogios em aplauso da vitória das armas portuguesas contra os
rebeldes de Pernambuco, oferecidos ao senhor D. João VI, por
José Pedro Fernandes, 1817.
Em verso10.
(AVC, 469; RBM, 557)
4.2.3. Relações internacionais
São dois atos assinados entre D. João e a Inglaterra, ambos em 1817.

a) Convenção adicional ao Tratado de 22 de janeiro de 1815,


entre o rei do Reino Unido de Portugal, do Brasil e Algarves
e o rei do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda, feita em
Londres em 28 de julho de 1817 e ratificada por ambos.
(AVC, 463; RBM, 546)

10 – Manuel Joaquim da Silva Porto e José Pedro Fernandes pedem licença para imprimir
na Impressão Régia suas produções sobre a vitória em Pernambuco. (IPANEMA, Cybelle
de, IPANEMA, Marcello de. Silva Porto: livreiro na corte de D. João, editor na Indepen-
dência. Rio de Janeiro: Capivara, 2007, p. 115). A de Silva Porto foi também publicada
em O Investigador Portuguez em Inglaterra, vol. XXI, mar. 1818, p. 3-6 (Silva Porto...,
op. cit., p. 119).

236 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):227-246, jan./mar. 2016.


Reino Unido: Atos legais, manifestações impressas
e a oração de graças do padre Mororó

b) Artigo separado da Convenção assinada em Londres aos 28


de julho de 1817, adicional ao Tratado de 22 de janeiro de
1815, entre o rei D. João VI e o da Grande Bretanha e Irlanda,
ratificado por ambos, em 11 de setembro de 1817 (1818).
(AVC, 499; RBM, 592)
4.3. Relacionadas ao príncipe D. Pedro

a) Auguri di felicita..., serenata per musica..., pelo casamento de


D. Pedro de Alcântara com D. Carolina Josefa Leopoldina,
arquiduquesa da Áustria, no Real Palácio do Rio de Janeiro,
1817.
A música e a poesia são de Marcos Portugal, a maior parte das
vezes servindo-se de versos de Metastásio.
(AVC, 459; RBM, 534)
b) Elogio dramático pelo aniversário da princesa real, D. Caro-
lina Josefa Leopoldina, recitado no Real Teatro de São João
do Rio de Janeiro e composto por Bernardo Avelino Ferreira
e Sousa, 1818.
Em verso.
(AVC, 510; RBM, 602)
c) Parabéns ao rei D. João VI e aos príncipes reais pelo feliz
parto da princesa real. O. d. c. José Bernardes de Castro, 1819.
É o nascimento de D. Maria da Glória, futura rainha D. Maria
II, de Portugal.
(AVC, 571; RBM, 673)
d) Prolegômenos que servirão às observações /sobre moléstias
cirúrgicas do país/ que for dando Domingos Ribeiro dos Gui-
marães Peixoto, cirurgião da Câmara de El-Rei /.../. Aos sere-
níssimos príncipes D. Pedro e D. Leopoldina, 1820.
Por ordem de Sua Majestade.
(AVC, 612; RBM, 685)

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Cybelle de Ipanema

e) Carta a D. Pedro de Alcântara. Datada de Lisboa, 12.10.1821,


assinada “O Patriota”.
É reimpressão. A edição original, de Lisboa, na Oficina de Si-
mão Tadeu Ferreira, em 1820.
(AVC, 652; RBM, 780)
f) A Sua Alteza Real, D. Pedro de Alcântara, Coleção de versos
constitucionais, impressos a benefício do Montepio Literário
desta Corte. O. c. Bernardo Avelino Ferreira e Sousa, 1821.
Nos comentários de 1993, encontra-se que a presente obra era
vendida por 320 rs. “na Rua da Quitanda na Loja de Livros
de Manuel Joaquim da Silva Porto, Tesoureiro do Monte Pio
Literário”11.
(AVC, 850; RBM, 731)
4.4. Outros assuntos

a) Monumento à elevação da Colônia do Brasil a Reino e ao es-


tabelecimento do tríplice Império Luso. Obras de Públio Vir-
gílio Maro, T I, 1818.
(AVC, 522; RBM, 615)
b) Monumento à elevação da Colônia do Brasil a Reino e ao es-
tabelecimento do tríplice Império Luso. Obras de Públio Vir-
gílio Maro, traduzidas em verso português e anotadas pelo dr.
Antônio José da Silva Leitão, 1819, 2 vol.
(AVC, 652; RBM, T II, 668 e T III, 669)
c) Memória institucional e política sobre o estado presente de
Portugal e do Brasil, dirigida a el-rei e oferecida a Sua Alteza
Real e regente do Brasil, por José Antônio de Miranda, fidalgo
cavaleiro da casa de Sua Majestade e ouvidor eleito do Rio
Grande do Sul, 1821.
(AVC, 770; RBM, 893)
11 – Realmente, Manuel Joaquim da Silva Porto foi Tesoureiro do Montepio Literário,
criado em Lisboa, em 1806, e instalado no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1821. (IPA-
NEMA, Cybelle de; IPANEMA, Marcello de. Silva Porto..., op. cit., p. 81-84).

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Reino Unido: Atos legais, manifestações impressas
e a oração de graças do padre Mororó

d) Instruções para as eleições dos deputados das Cortes, segun-


do o método estabelecido na Constituição espanhola e adotado
para o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a que se
refere o decreto de 7 de março de 1821.
(AVC, 755; RBM, 875)
e) Projeto para o estabelecimento político do Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves, oferecido aos ilustres legisladores
em Cortes Gerais e Extraordinárias, por Antônio d´Oliva de
Sousa Sequeira, 1821.
Impresso em Coimbra, na Real Imprensa da Universidade
(1821) e reimpresso no Rio de Janeiro. Há uma Análise do re-
ferido Projeto, por José Joaquim de Almeida Moura. Também
impresso na Imprensa da Universidade de Coimbra, em 1821.
(AVC, 814; RBM, 934)
5. A Oração de Graças do padre Mororó

O padre Gonçalo Inácio Loiola Albuquerque e Melo12, padre Mo-


roró, teve formação no Seminário de Olinda, fundado pelo bispo José
Joaquim de Azeredo Coutinho, e era daquele naipe de clérigos letrados
que tomaram parte nas duas revoltas havidas em Pernambuco, com es-
praiamento ao Nordeste, em 1817 e 1824.

Foi figura de destaque na província do Ceará, de onde era natural, e


propagador dos ideais de 1824, sendo preso, condenado e executado, con-
denação idêntica à de fr. Joaquim do Amor Divino Rebelo e Caneca – frei
Caneca –, criador e redator do Typhis Pernambucano.

O padre Mororó redigiu o primeiro jornal saído na terra cearense, o


Diário do Governo do Ceará, de 1824, ao tempo do governador Sampaio.

Se, em 1824, é um adepto da Confederação do Equador, anterior-


mente louvava a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves,

12 – Ora aparece como Gonçalo Inácio Loiola Albuquerque e Melo, ora como Gonçalo
Inácio de Loiola Albuquerque e Melo.

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Cybelle de Ipanema

com exaltação à monarquia portuguesa e à conservação “sobre o Trono /


da/ Família dos nossos reis”.

A Oração de Graças pelo objeto, que recitou em 1816, foi impressa


no Rio de Janeiro, em 1818, e ensejou uma edição fac-similar, providen-
ciada em 2010, por compatriota seu, o estudioso e editor Jorge Brito,
radicado em Brasília.

Ela figura nos levantamentos de Alfredo do Vale Cabral, de 1881,


sob o no 527, e no de 1993, de Rubens Borba de Moraes, verbetado sob o
no 621. Um pequeno equívoco do editor de 2010, em pensá-la registrada
à p. 621 da Bibliografia..., quando o é na de no 206 (o livro termina na p.
430). 621 é o número do verbete, não da página.

À afirmação de que saía atrasada (de 1816 em 1818), lembro que a


Impressão Régia não tinha mãos a medir, atestado por esse requerimento
de Silva Porto, quando, em 1822, pretendeu montar tipografia na Corte:

Diz Manuel Joaquim da Silva Porto, Mercador de Livros nesta cidade,


que ele, observando que a Tipografia Régia não pode vencer nem me-
tade das obras que tem a imprimir, pois o supe ali as tem de sua conta
há mais de um ano, as quais estão paradas e sem esperança de que
tão cedo se acabem; (grifo nosso)13.

Muito meritória a edição intentada por Jorge Brito, obtida da edição


original de José Mindlin, a pedido do diplomata cearense Rubem Amaral
Júnior. Constitui uma plaqueta de 22 p. (nota biográfica do padre Mororó,
circunstâncias da edição e tradução, pelo mesmo diplomata, das expres-
sões latinas inseridas no texto) + 30 p. do fac-simile de seguinte título:
Oração de Graças /recitada/ no dia 12 de outubro de 1816 na Igreja /
Matriz da Vila da Fortaleza,/ Capital /da Capitania do Ceará/, pela Feliz
União dos três Reinos /de/ Portugal, Brasil e Algarves; na /solenidade
que fez celebrar o Batal-/ hão de Linha da mesma Capital, /Oferecida/ ao
/Illustríssimo senhor/ Manuel Inácio de Sampaio, /Governador da mes-
ma Capitania,/ pelo padre /Gonçalo Inácio Loiola/ Albuquerque e Melo/

13 – IPANEMA, Cybelle de; IPANEMA, Marcello de. Silva Porto..., op. cit., p. 87.

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Reino Unido: Atos legais, manifestações impressas
e a oração de graças do padre Mororó

Rio de Janeiro: 1818 /Na Tipografia Real./ Com licença da Mesa do De-
sembargo do Paço.

No dia da recitação, comemorava-se o aniversário do príncipe D. Pe-


dro, mencionado na Oração, autoridade que vai presidir, oito anos depois,
a execução do louvador.

A capa da plaqueta de 2010, de Afonso Miguel Filho, é reprodução


da “Igreja Matriz da Vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção,
baseada no prospecto mandado fazer pelo governador Barba Alardo de
Meneses, em 1811”.

O texto exalta a Virgem Maria, padroeira e protetora “dos povos


onde o nome de Jesus é conhecido”, os reais governantes, lembrando o
“grande Afonso” e o “Sereníssimo Senhor dom João IV”, episódios de
campanhas “dos Portugueses, única Nação que abriu as bronzeadas por-
tas da liberdade universal!”

Pergunta: “... e a que cúmulo de desgraças não teria chegado o ven-


turoso Brasil, se o nosso Augusto Soberano não tivesse salvado a Monar-
quia, passando-se com sua Real Família para os seus Estados da Améri-
ca?”

Cita benefícios do governo de Manuel Inácio de Sampaio e Pina


Freire, primeiro visconde de Lançada, iniciado em 1812.

A obra, como dito na folha inicial, é oferecida ao governador pelo


“mais humilde criado Padre Gonçalo Inácio de Loiola Albuquerque e
Melo”.

Se o governador chancela o aparecimento da imprensa na capitania


em 1824, como dito atrás e já o diz o levantamento do barão de Studart,
em 1908, no centenário da imprensa no Brasil14, não é menos verdade que

14 – STUDART, Barão de. Estado do Ceará. Jornais, revistas e outras publicações periódi-
cas, de 1824 a 1908. Catálogo organizado por ... Anais da imprensa periódica brasileira.
Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Parte II, vol. I,
1908, p. 219-322.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):227-246, jan./mar. 2016. 241


Cybelle de Ipanema

ela pode ser considerada de 1817, embora manuscrita. O próprio barão


de Studart admitia possuir exemplar da Gazeta do Ceará, não impressa,
de responsabilidade de Manuel Inácio de Sampaio, “que a fazia circular”.

Aliás, em nossos estudos de imprensa sempre houve lugar para a


posição de que, mesmo sem letra tipográfica, a circulação de ideias se so-
brepunha à presença dos mecanismos de reprodução, não se descartando
o jornalismo manuscrito, tal o que ocorre igualmente na província do Rio
de Janeiro, onde o primeiro órgão é o não impresso O Espelho Campista,
de 1826.

242 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):227-246, jan./mar. 2016.


Reino Unido: Atos legais, manifestações impressas
e a oração de graças do padre Mororó

6. Ilustrações
CARTA DE LEI – DE 16 DE DEZEMBRO DE 1815

Eleva o Estado do Brasil à gradução e categoria de Reino

D. João, por graça de Deus, Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves


etc. Faço saber aos que a presente carta de lei virem, que tendo constantemente
em meu real ânimo os mais vivos desejos de fazer prosperar os Estados que a
providência divina confiou ao meu soberano regime; e dando ao mesmo tempo
a importância devida à vastidão e localidade dos meus domínios da América, à
cópia e variedade dos preciosos elementos de riqueza que eles em si contêm; e
outrossim reconhecendo quanto seja vantajosa aos meus fiéis vassalos em geral
uma perfeita união e identidade entre os meus Reinos de Portugal e dos Algar-
ves, e os meus Domínios do Brasil, erigindo estes àquela graduação e categoria
política que pelos sobreditos predicados lhes deve competir, e na qual os ditos
meus domínios já foram considerados pelos Plenipotenciários das Potências que
formaram o Congresso de Viena, assim no tratado de Aliança concluído aos 8 de
abril do corrente ano, como no tratado final do mesmo Congresso: sou portanto
servido e me praz ordenar o seguinte:

I – Que desde a publicação desta Carta de Lei o Estado do Brasil seja eleva-
do à dignidade, preeminência e denominação de – Reino do Brasil –

II – Que os meus Reinos de Portugal, Algarves e Brasil formem de agora


em diante um só e único Reino debaixo do título – Reino Unido de Portugal e do
Brasil e Algarves –

III – Que os títulos inerentes à Coroa de Portugal, e de que até agora hei
feito uso, se substitua em todos os diplomas, cartas de leis, alvarás, provisões e
atos públicos o novo título de – Príncipe Regente do Reino Unido de Portugal e
do Brasil e Algarves, daquém e dalém mar, em África, de Guiné e da Conquista,
Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Persia, e da Índia etc. –

E esta se cumprirá como nela se contém /.../ e guardando-se o original no


Real Arquivo, onde se guardam as minhas leis, alvarás, reginentes, cartas e or-
dens deste Reino do Brasil. Dado no Palácio do Rio de Janeiro aos 16 de Dezem-
bro de 1815.
O PRÍNCIPE com guarda
Marquês de Aguiar
Fig. nº 1 – Carta de Lei criando o Reino Unido de Portugal e do Brasil e Algarves

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Cybelle de Ipanema

Fig. nº 2 – Fac-simile da Oração de Graças, do padre Mororó

Fig. nº 3 – Capa da Oração de Graças, do padre Mororó, da edição de 2010

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Reino Unido: Atos legais, manifestações impressas
e a oração de graças do padre Mororó

Referências bibliográficas
CABRAL, Alfredo do Vale. Anais da Imprensa Nacional do Rio de Janeiro –
1808-1822. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1881.
CAMARGO, Ana Maria de Almeida, MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia
da Impressão Régia do Rio de Janeiro. São Paulo: Edit. da Universidade de São
Paulo: Kosmos, 1993, 2 vol.
IPANEMA, Cybelle de, IPANEMA, Marcello de. Silva Porto: livreiro na corte
de d. João, editor na Independência. Rio de Janeiro: Capivara, 2007.
STUDART, Barão de. Estado do Ceará. Jornais, revistas e outras publicações
periódicas, de 1824 a 1908. Catálogo organizado por ... Anais da imprensa
periódica brasileira. Rio de Janeiro: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Parte II, vol. I, 1908, p. 219-322.

Publicações seriadas
Coleção de Leis do Brasil de 1815. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1890.

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Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

247

QUADROS JURÍDICOS DO REINO UNIDO


DE PORTUGAL, BRASIL E ALGARVES
LEGAL FRAMEWORKS OF THE UNITED KINGDOM OF
PORTUGAL, BRAZIL AND THE ALGARVES
Rui de Figueiredo Marcos1

Resumo: Abstract:
O estudo versa a emergência jurídica do Reino This study covers the legal emergence of the
Unido de Portugal, Brasil e Algarves e a pro- United Kingdom of Portugal, Brazil and the Al-
blemática que o envolve. Analisa o seu desenho garves and the issues involved. It analyzes its ju-
jurídico-constitucional e a controvérsia que ge- dicial-constitutional design and the controversy
rou nas Cortes vintistas. it generated among the vintista Courts.
Palavras-chave: Reino Unido; História do Di- Keywords: United Kingdom; History of Luso-
reito Luso-Brasileiro; D. João VI; Constituição Brazilian Law; John VI; Constitution of 1822;
de 1822; José Bonifácio de Andrada e Silva; José Bonifácio de Andrada e Silva; Liberalism.
Liberalismo.

1. Passam dois séculos sobre a elevação do Brasil à categoria de


Reino. Não empalideceu a cintilância do seu significado histórico, nem o
interesse dos estudiosos esmoreceu. Comemorar o Reino Unido de Por-
tugal, Brasil e Algarves é, de certo modo, voltar a vivê-lo. Comemorar
o bicentenário do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves é oferecer
uma viagem a esse tempo através de uma refletida lembrança do seu con-
texto problemático.

Ora, a um primeiro relance, não se afigura temerário supor que a


história do Direito brasileiro e, mais estrondosamente, a história política
do Brasil teriam seguido um curso bem diferente se a Corte não houvesse
estanciado em terras brasileiras. Não foi um tempo imenso, mas durou
o bastante para mudar a face da ordem jurídica brasileira, avultando, no
plano político, a elevação do Estado do Brasil à categoria de Reino, em
consonância com os ditames da Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815.

Legislações houve e haverá sempre que se assemelham a corredores


sombrios e misteriosos. Dá vontade de as repreender, de agredir essas leis,
1 –1Doutor em História. Professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade
de Coimbra.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):247-274, jan./mar. 2016. 247


Rui de Figueiredo Marcos

para as obrigar a dizer o seu segredo. Os diplomas joaninos encontram-se


nos antípodas da situação descrita. São transparentes e compreensíveis.
Entraram harmoniosamente no conjunto da paisagem nascente brasileira.
Passaram a fazer parte da decoração.

2. Mesmo sem esquecer a ineliminável artificialidade de qualquer


tentativa de periodização perante o contínuo fluir da realidade histórico-
-jurídica, verdadeiramente irrepressável em compartimentos temporais,
somos tentados a distinguir, no processo evolutivo do Direito joanino
brasileiro, duas fases ou períodos fundamentais, diferentes entre si, tanto
na perspectiva adotada, como nos objetivos que se pretendiam cumprir:
antes e depois de 1815. Ano da ascensão do Brasil à categoria do Reino
que se convoca agora como divisória simbólica. Marca o primeiro perío-
do uma extraordinária aceleração legislativa e caracteriza-se pela assom-
brosa predominância que assumiam as normas de Direito público. Já o
acentuou de modo cintilante o Senhor Presidente Arno Wehling. Por seu
turno, o outro período que se identifica na legislação joanina denuncia um
claro abrandamento do furor legislativo, acompanhado pela tentativa de
aprimorar múltiplos sectores do ordenamento jurídico brasileiro. Tratava-
-se agora de uma legislação de largo espectro.

A linha divisória alicerça-se em abundantes argumentos. Todos eles


lançam amarras aos reflexos da emergência do Reino Unido. Percorramos
alguns deles, antes mesmo de mergulharmos nas ondas legislativas de D.
João VI no Brasil.

Nos expressivos termos da Carta de Lei de 16 de dezembro de 1815,


ascendeu o Brasil à “dignidade, preeminência e denominação” de Reino
do Brasil. Daí que se formasse um só Reino debaixo do título “Reino
Unido de Portugal, e do Brasil e Algarves”. Não foi, com certeza, arbitrá-
ria a ordem desta trindade de Reinos. O Brasil, atendendo ao seu relevo
no concerto imperial, vinha naturalmente numa posição que antecedia a
dos Algarves, apesar da sequência do tempo histórico. Em todo o caso, o
Reino dos Algarves não podia ser apagado da intitulatio. Mas apagou-se

248 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):247-274, jan./mar. 2016.


Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

de panfletos e controvérsias. Simpliciter, porque não levantava o mínimo


problema.

Um importante reflexo da mudança recaiu precisamente na intitula-


tio que devia encabeçar os diversos diplomas legislativos. De sorte que,
em cartas de lei, alvarás, provisões e atos públicos, o monarca passava a
ostentar o título de “Príncipe Regente do Reino Unido de Portugal, e do
Brasil, e Algarves, d’aquém e d’além Mar, em África de Guiné e da Con-
quista, Navegação, e Commercio de Ethiopia, Arabia, Persia e da Índia
etc.” Quanto mais não fosse, a carga simbólica para os brasileiros não
podia deixar de tremeluzir de modo cintilante.

Mais tarde, o Alvará com força de lei de 9 de janeiro de 1817, dado


no Palácio do Rio de Janeiro, acolheu uma determinação de D. João VI
que promoveu uma mudança na intitulação, dessa vez no tocante aos
príncipes primogênitos da Coroa de Portugal.

É que, saída da pena de D. João IV, a Carta de Doação de 27 de


outubro de 1645 outorgara, 172 anos antes, aos primogênitos o título de
“Príncipes do Brasil”, ficando, daí em diante, a chamarem-se “Príncipes
do Brasil, e Duques de Bragança”.

Só que esse título, conforme D. João VI reconhecera, expressis ver-


bis, tornava-se incompatível com a elevação do Brasil à dignidade de
Reino. Por isso, a lei vinha agora conferir um título mais preeminente e
ajustado à nova condição político-jurídica. Também, por isso, declarou-se
que o príncipe D. Pedro e qualquer primogênito, daí em diante, passariam
a gozar do título de “Principe Real do Reino Unido de Portugal, e do Bra-
sil, e Algarves”, conservando sempre o de Duque de Bragança.

3. O plano simbólico, no que ao Reino Unido tocava, carecia de um


acabamento de razão que saltasse aos olhos de todos. À imagem do que
sucedera com D. Afonso III relativamente ao Reino dos Algarves, vinha
agora D. João VI declarar que, na nova circunstância político-jurídica,
impunha-se incorporar em um só Escudo Real as armas de todos os três
Reinos.

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Rui de Figueiredo Marcos

Como o Brasil não dispunha de armas que traduzissem a conclamada


preeminência, a Carta de Lei de 13 de Maio de 1816 ordenou que o Rei-
no do Brasil tivesse por armas uma “Esféra Armilar de Ouro em campo
azul”2. De sorte que o Escudo Real Português inscrito na esfera armilar
de ouro em campo azul ficava composto pelas “Armas do Reino Unido de
Portugal, e do Brasil, e Algarves, e das mais partes integrantes da Minha
Monarquia”3. Em consequência, as novas armas passavam a figurar em
estandartes, bandeiras, selos reais, cunhos de moedas e em documentos
oficiais. Encontra-se por averiguar, todavia, a inteira observância desta
última providência.

A esfera armilar atribuída ao Brasil não escondia a inclinação univer-


salista dos portugueses através das ramificações dos Descobrimentos. A
esfera apontava em todas as direcções. Mais sugestivamente ainda, mos-
trava que o império pátrio se encontrava a girar em torno do Brasil e do
Rio de Janeiro.

Como não se ignora, em 1818, ocorreu a aclamação de D. João VI na


cidade do Rio de Janeiro. E, em coerência intencional, o monarca exibiu
e fez luzir o novo escudo real, já registado na chancelaria para servir de
norma futura em toda a correspondência de Estado.

4. Para se aquilatar da relevância do surgimento do Reino Unido,


nada melhor do que darmos voz a alguém que o viveu. Aludimos a José
da Silva Lisboa, Deputado da Real Junta do Comércio, Desembargador
da Casa da Suplicação do Brasil e reputado conhecedor dos meandros da
economia política, que, em 1818, nos legou um eloquente testemunho.
A abrir, logo se apressou a classificar o Reino Unido como um benefício
político que sobreexcedia a sua “esphera de fraseologia”.

Fundando o diploma na “Grande Razão de Estado”, registou o aco-


lhimento benévolo que obteve por parte das potências europeias que so-
bre ele derramaram louvores na sequência da participação diplomática da
deliberação do monarca português. Uma decisão a que não seria alheio
2 – Ver Carta de Lei de 13 de maio de 1816, § I.
3 – Ver Carta de Lei de 13 de maio de 1816, § II.

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Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

o voto de preponderância da coroa portuguesa na América, não só para


contrabalançar a já notória emergência política dos Estados Unidos do
Norte, como, sobretudo, para coibir e esmorecer o perigoso exemplo da
desenfreada rebeldia das colónias limítrofes de Espanha.

Considerava o Reino Unido uma peça fundamental na consolidação


e estabilidade da monarquia lusitana no concerto das nações. Um argu-
mento que funcionava também no sentido inverso. É que o novo rei da
monarquia portuguesa representava o conservador da realeza na América
e o seu melhor ponto de apoio. Um esteio benfazejo que os tronos da Eu-
ropa ficavam a dever ao soberano português.

Sem rebuço anunciava Silva Lisboa que o sistema colonial cessara


com a Lei da União do Brasil ao patrimônio original da monarquia. Desa-
pareciam desigualdades e esfumavam-se pretextos de querelas e emula-
ções mercantis. Não mais o Brasil seria encarado de um modo apendicu-
lar ao Estado pátrio. Nas palavras do Visconde de Cairu, nada justificaria,
doravante, “a política schismatica, que desunia interesses da Grey Portu-
gueza pela differença do lugar da neutralidade, e latitude do Equador”.
Bem vistas as coisas, assistia-se à queda fragorosa do sistema colonial.

Lobriga-se também, na gestação do Reino Unido, um claro vislum-


bre do liberalismo. Conforme salientava Silva Lisboa, “a boa razão acon-
selha que na Economia ao Estado não se turbe a Ordem do Regedor da
Sociedade e o curso natural das coisas, sacrificando-se huma parte dos
habitantes em indevida vantagem dos outros, com Systema de força di-
reta ou indireta, tolhendo-se a cada um o ativo interesse de trabalhar, e
desenvolver os seus recursos territoriaes e mentaes, para a progressiva in-
dustria e riqueza”. É esta uma ostensiva condenação do sistema colonial.

Contra ele arremessou Silva Lisboa a autoridade de Adam Smith e


o teorema da Riqueza das Nações que exorcizava os malefícios mono-
polistas. Só encontrava vantagens na legislação liberal, na ideia da livre
concorrência e na benquista união das colónias aos Reinos da Europa.

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Rui de Figueiredo Marcos

Na base do princípio de que cada Estado ou indivíduo deve ser co-


mensurado com a mesma medida, o decretado Reino Unido abandonava a
acanhada visão das mãos e bolsas alheias para se concentrar no indepen-
dente e voluntário mercado do mundo. Cumpria-lhe incrementar as suas
próprias produções e obras, de feição que retirasse préstimos proveitosos
da lei da concorrência.

Os princípios da igualdade e da justa reciprocidade no seio do Reino


Unido podiam desencadear uma outra consequência político-administra-
tiva do maior relevo. Tocava ela a mudança do capital consoante fundada
avaliação régia. Na verdade, como sublinhava o nosso autor, a “Séde do
Imperio então se fixará na Estancia mais adequada á Geral Protecção,
com pleníssima escolha do Real Arbitrio”.

Ainda um fortíssimo argumento extraído do plano juscomparatista


reforçava o incentivo à constituição do Reino Unido de Portugal, Brasil
e Algarves. Subido exemplo encontrava-se já, ante os olhos do universo
político, na providência que o governo inglês tomara no início do século
XIX, mais exactamente, em 1 de janeiro de 1801, de decretar a “União do
Reino da Irlanda ao da Gram Bretanha, como já antes havia unido o limi-
trophe Reino da Escocia”. Em nome dos superiores interesses da pátria
inglesa, vencida ficava a distância marítima e sepultado jazia o espírito de
partido4. Escusado será acentuar que o Reino da Grã-Bretanha resultara
da fusão, operada em 1707, entre os Reinos da Escócia e da Inglaterra.
Daí a designação de Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.

5. Não constitui decerto um destemperado propósito indagar as reac-


ções que a criação do Reino Unido suscitou. Nesse quadro, pintaram-se
argumentos contrastantes que originaram visões assaz diferentes.

Descobre-se, desde logo, uma perspectiva distinta consoante os la-


dos do Atlântico. No Brasil, choveram aplausos e incontidos louvores de
que as palavras do Visconde Cairu constituíam expressão eloquente. Em
4 – Sobre o que se acaba de expor, ver LISBOA, José da Silva, Memoria dos Beneficios
Políticos do Governo de El-Rey D. João VI, Rio de Janeiro: Impressão Regia, 1818, p. 66
ss.

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Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

Lisboa, o cenário de um Reino sem rei começou, a partir de certa altura,


a atormentar os espíritos. A velha capital padecia a angústia da ausência
da sua cabeça retora.

O receio metropolitano sobrepujava-se na medida em que a falta do


soberano podia servir de elemento entusiasmante para sugestões e ma-
quinações de índole revolucionária. A figura do monarca encerrava um
enorme poder dissuasor.

Mas ainda de outro ângulo os portugueses do velho Reino de Por-


tugal e dos Algarves sentiam uma deminutio de cariz político. E os desa-
bafos não se ocultavam. Soava estranho que uma nação que descobriu e
povoou outra estivesse agora na condição de dependente de uma antiga
colónia. Uma inversão que desencadeava queixumes de que se fez eco,
designadamente, o diplomata Heliodoro Jacinto Carneiro.

As hostes liberais experimentaram uma tendência ferozmente nacio-


nalista. A crise do Império português parecia estar no Rio de Janeiro que,
encantatoriamente, prendia o monarca, fosse por que fosse. Contra o Rei-
no Unido lançava-se um manto de artificialidade. Daí que se falasse da
“metafísica unidade dos Reinos de Portugal, Brasil e Algarves”.

O exacerbamento patriótico de raiz metropolitana radicalizou a acri-


mónia perante o que julgavam ser uma situação vexatória. Como subli-
nhou, em 1820, Liberato Freire de Carvalho, “Portugal não é o que antes
foi, isto é, a cabeça e a sede desse magnífico Império, é uma colónia e até
misérrima colónia de uma das suas antigas colónias”5.

As incongruências de um tempo instável nas relações luso-brasilei-


ras conduziram ainda a um outro caminho. Um rumo de sensibilidade
política bem diversa. Aludimos às forças latentes do iberismo que asso-
maram à janela. E com algum estridor.

A União Ibérica erguia-se das cinzas para, em lance desafiante, de-


frontar o Reino Unido. Mas a quimera vinda do passado nunca consegui-

5 – Ver O Campeão Portuguez, vol. II, nº 24, de 16 de junho de 1820.

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ria vencer. Mais parecia uma propensão desvairista. Reunir a Espanha e


Portugal constituía uma peça de uma certa ideia de integração europeia.
Não vingou, porque não podia vingar. Apesar de tudo, havia quem susten-
tasse que ser sócio de uma nação já livre como a Espanha, era preferível
do que ser colonia pobre de uma antiga colónia. Um velho complexo
colonizador que o tempo se encarregou de desvanecer!

6. A ideia do Reino Unido começou a abrasear em chamas perante


a necessidade de lhe desenhar uma imagem com um certo teor jurídico-
-constitucional. Antes de tudo, não se tratava de várias Coroas que caíam
na cabeça do mesmo soberano, ou seja, uma união pessoal. Ao invés,
havia apenas uma Coroa única para os diversos Reinos, o que traduzia,
em termos jurídicos, uma clara união real.

O título de Reino atribuído ao Brasil não podia ser vão ou assumir


o mesmo sentido evanescente que o conferido ao Reino dos Algarves.
Reclamava conteúdo.

As Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes Portuguesas ba-


lançavam de um extremo ao outro. Uma corrente altamente conservadora
imaginou que a Corte nunca estanciara no Rio de Janeiro. Com irredutí-
vel propensão centralista, a soberania una não admitia poderes separados
para o Brasil. No âmbito judiciário, postulava a existência, no Reino Uni-
do, de um único supremo tribunal de justiça, com sede em Lisboa. Além
disso, o conclamado princípio de indelegabilidade redundava em recusar
a entrega ao Brasil de qualquer delegação do poder executivo e muito
menos legislativo.

Do ângulo oposto, a inteireza da unidade do Reino Unido dificil-


mente subsistiria sem mácula. O Brasil precisava de um supremo tribunal
próprio. Em desenvolvimento máximo do velho princípio da especiali-
dade do Direito colonial, carecia de legislação específica, organicamente
expressa na distinção entre Cortes gerais e Cortes especiais. E reclamava
uma delegação do poder executivo de grande amplitude. Houve mesmo

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Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

quem sustentasse a proliferação de governos delegados, com os riscos


que logo se vislumbraram para a unidade do Brasil.

No plano dos factos, as Cortes vintistas açularam os ânimos bra-


sileiros. Pretenderam desconstruir a obra de D. João VI. Desde logo, o
projecto de decreto de relações comerciais entre os Reinos de Portugal
e Brasil levado à sessão de 15 de março de 1822 soava quase a um ato
de agressão econômica. Saído de um discutível patriotismo financeiro,
esmerava-se em não desfalcar as rendas públicas, regressando, no suges-
tivo acerto do deputado António Carlos Ribeiro de Andrade, ao “odioso
exclusivo colonial”.

Também o repúdio de um projeto de artigos adicionais à Constituição


apresentado em 15 de junho de 1822 não se revelava menos ameaçador.
Nele sobressaía a previsão de um parlamento para todo o Reino Unido e
de parlamentos especiais para cada um. Recebiam os parlamentos espe-
ciais competência legislativa em matérias de interesse específico de cada
Reino, enquanto ao parlamento do Reino Unido pertencia a faculdade de
produzir leis de interesse geral e de sancionar as normas provenientes
de cada Reino ou de as vetar se suscitassem ofensa à Constituição. De
realçar ainda que se guardava para o Brasil um poder executivo exercido
através de uma delegação com poderes régios, os quais recaíam, de prefe-
rência, sobre o sucessor da Coroa. E, perante a sua eventual impossibili-
dade, compunha-se uma regência. Mas tudo isto se esboroou.

Perante desenganos e agravos, não poucos moderados cavaram trin-


cheiras independentistas. O mais emblemático expoente de tal desliza-
mento foi José Bonifácio de Andrada e Silva.

Num documento mandado imprimir em outubro de 1821, com o tí-


tulo “Lembranças e Apontamentos do Governo Provizorio da Provincia
de S. Paulo para os seus Deputados”, José Bonifácio sustentava, expres-
sis verbis, o princípio da integridade e indivisibilidade do Reino Unido,
declarando que as suas possessões em ambos os hemisférios “serão man-

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tidas e defendidas contra qualquer força externa, que as pretender atacar


ou separar”6.

Quanto o permitissem a diversidade de costumes, territórios e cir-


cunstâncias, preconizava a igualdade de direitos políticos e civis no seio
do Reino Unido. Uma questão em que não se afirmava peremptório res-
peitava à fixação da sede da monarquia. Havia argumentos para que se
estabelecesse, quer no Reino do Brasil, quer no Reino de Portugal, mas
admitia perfeitamente a alternância da capital entre o Brasil e Portugal,
com recurso, inclusive, a um regime de rotatividade temporária7.

Do ponto de vista jurídico, no capítulo que dedicou aos negócios do


Reino do Brasil, afigura-se deveras interessante o edifício projetado por
José Bonifácio de Andrada e Silva. De toda a conveniência seria estabele-
cer um “Governo Geral Executivo” para o Reino do Brasil, ao qual se su-
bordinariam os governos provinciais. A ele assistiria, desde que a capital
do Império não se encontrasse no Brasil, o direito de demarcação, tanto
das fronteiras externas, como dos limites entre as diversas províncias do
Reino do Brasil8.

De subido relevo mostra-se a adopção por parte de José Bonifácio


do princípio da especialidade do direito brasileiro relativamente ao di-
reito metropolitano. Assim, as Cortes da nação, quando resolvessem dar
acolhimento ao movimento codificador já implantado na Europa, e, fla-
grantemente, na elaboração de um futuro Código Civil e Criminal deviam
ter muito em conta a realidade brasileira. Ao ponto de aí introduzirem
modificações, “segundo a diversidade de circunstancias do clima e estado
da Povoação, composta no Brasil de classes de diversas cores, e pessoas
humas livres e outras escravas, pois estas considerações e circunstancias

6 – Vide SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Lembranças e Apontamentos do Governo


Provizorio da Provincia de S. Paulo para os seus Deputados, mandadas publicar por or-
dem da Sua Alteza Real, o Princípe Regente do Brasil, a instancia dos mesmos Senhores
Deputados. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, M.D.CCC.XXI, cap. I, § 1, p. 5.
7 – Ibidem, cap. I, §§ 2 e 3, p. 6.
8 – Ibidem, cit., cap. II, § 2, p. 7.

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Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

exigem uma Legislação Civil particular”9. Era a tal complexa amalgama-


ção de que falava José Bonifácio a ditar normas.

Erigidos em alvo predileto por parte do poder legiferante deviam


ficar, de acordo com o alvitre de José Bonifácio, a catequização e civiliza-
ção progressiva dos índios bravos que vagueavam nos montes e brenhas,
por um lado, e a emancipação gradual dos escravos, melhorando a sua
sorte e convertendo-os em cidadãos ativos e virtuosos. Sem espanto, mais
tarde, para a assembleia geral constituinte e legislativa de 1823, José Bo-
nifácio acabaria por apresentar dois projetos de lei. Um contemplava um
regulamento para promover a civilização dos índios do Brasil. O segundo
alvitrava a elaboração de uma lei, com o fito de abolir a escravatura.

7. Na ótica de José Bonifácio de Andrada e Silva, um governo cons-


titucional só subsistiria apoiado na “maior instrução e moralidade do
povo”. Daí que, além de uma rede de escolas de primeiras letras, defendia
que, em cada província do Brasil, houvesse um colégio ou ginásio, em
que se ensinassem as ciências úteis. A coroar este plano educativo à esca-
la do Reino do Brasil, julgava imperioso que se fundasse uma Universi-
dade composta pelas Faculdades de Filosofia, Medicina, Jurisprudência,
sendo a quarta e última de Economia, Fazenda e Governo. Via em S.
Paulo o local mais afeito à instalação da Universidade. Recomendavam a
escolha “o clima temperado, mais frio que quente, a salubridade dos ares,
a barateza e a abundancia de comestíveis, e a fácil communicação com
as províncias centraes e de beira mar”10. De resto, S. Paulo já dispunha
de edifícios para as diversas Faculdades nos Conventos do Carmo, S.
Francisco e dos Bentos.

A coerência do Reino Unido gizado por José Bonifácio ressaltava


também de uma outra linha argumentativa. Ao lado da cabeça retora do
Reino no plano cultural, que era a Universidade, julgava necessário er-
guer um centro retor, mas agora inscrito na órbita político-administrativa.
Daí a sua proposta de levantar uma cidade central no interior do Bra-

9 – Ibidem, cap. II, § 5, p. 7 ss.


10 – Ibidem, cap. II, § 8, p. 8 ss.

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sil, em sítio sadio, ameno, fértil e regado por algum rio navegável onde
passaria a residir a Corte ou a Regência. No fundo, tratava-se de criar a
capital política e administrativa do Reino, para além de receber a cúpula
da organização judiciária brasileira, com destaque para um “Tribunal Su-
premo de Justiça”11.

8. Apesar do desvelo inicial pela fórmula do Reino Unido, José Bo-


nifácio transformou-se num intransigente arauto da Independência. Con-
tra a perfídia das Cortes portuguesas fez trovejar a sua voz. Os assomos
recolonizadores soavam-lhe intoleráveis. Não admira, pois, que José
Bonifácio tivesse sido um desassombrado pregoeiro da Independência
e da liberdade do Brasil. Todavia, nas suas próprias palavras, apregoava
uma “liberdade justa e sensata debaixo das formas tutelares da Monarchia
Constitucional”.

Um aspecto de subido esplendor constitucional, até pelo seu caráter


pioneiro, e cuja importância tem passado quase despercebida respeita ao
facto da União Real Luso-Brasileira haver sido recebida em cheio pela
Constituição portuguesa de 1822. Aí se proclamara, sem rodeios, que a
Nação Portuguesa é a união de todos os portugueses de ambos os he-
misférios, formando o seu território o Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves. Aí se previa que, no Brasil, houvesse uma Delegação do poder
executivo, confiado a uma Regência composta por cinco membros, no-
meados pelo rei, ouvido o Conselho de Estado.

Um dos Secretários de Estado assumiria a pasta dos negócios do


reino e da fazenda. Um outro incumbir-se-ia da justiça e dos assuntos
eclesiásticos. A um terceiro ficaria a pertencer a secretaria da guerra e da
marinha.

Do lado da arquitetura vintista do poder judicial para o Brasil, en-


contrava-se a existência de um Supremo Tribunal de Justiça brasileiro,
com sede no lugar onde residisse a Regência do Reino e gozando de idên-
ticas atribuições ao Supremo Tribunal de Justiça de Portugal. Também no

11 – Ibidem, cap. II, §§ 9 e 10, pág. 9.

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Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

Brasil, à imagem de Portugal, se excogitara um Tribunal Especial para


proteger a liberdade de imprensa.

À união real constitucionalizada ficou apenas a faltar, para se con-


siderar obra acabada, uma assembleia eletiva que funcionasse junto dos
órgãos do poder executivo brasileiro. Isto não obstante o Brasil não fugir
à regra de eleger para as Cortes os seus deputados em função de divisões
eleitorais, nos termos do artigo 38º. Mas era demasiado tarde. Não era
possível pedir ao tempo que desse mais tempo ao Reino Unido.

A despeito da fratura com a Monarquia absolutista, a Constituição de


1822 não se coibiu de, em lance intencional de afirmação de continuidade,
lançar amarras às velhas Leis Fundamentais da Monarquia. Cansados e
vagos arquétipos pré-constitucionais, cingiam-se a uma função legitima-
dora da realeza, disciplinando o magno problema da sucessão ao trono.

O certo é que o preâmbulo da Constituição de 1822 não hesitou em


salientar que as desgraças públicas que oprimiam o povo português ti-
nham origem no desprezo dos direitos do cidadão e no esquecimento das
Leis Fundamentais da Monarquia. Ora, só pelo restabelecimento destas
leis ampliadas e reformadas se alcançaria a prosperidade do país, de fei-
ção que se decretava a Constituição Política, a fim de assegurar os direitos
de cada um e o bem geral de todos os portugueses.

Da sorte comum luso-brasileira de 1822, transitou-se para uma es-


pécie de irmanação constitucional. Na sequência da Independência do
Brasil, o Imperador ofereceu-lhe a sua primeira Constituição. Corria o
ano de 1824. Talhava um compromisso entre os ideais liberais e a tradição
monárquica europeia. Se, vehementer, não esquecia os direitos indivi-
duais, também guindava o Imperador a uma posição de superlativo relevo
constitucional, entregando-lhe, de um só golpe, o poder moderador e o
poder executivo.

9. Impõe-se compor os diferentes rostos da política legislativa joa-


nina no Brasil. Passemos em revista os lances principais que prepararam
a emergência do Reino Unido. As faces que mais cedo se aformosearam

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ao sopro dos genuínos interesses brasileiros centraram-se nos domínios


da legislação econômica, da legislação de forte pendor político-admi­
nistrativo e da legislação que reedificou a organização judiciária.

O ano de 1808, na mira de tais propósitos, revelou-se de uma inten-


sidade vertiginosa. Mal acabado de chegar à Bahia, o príncipe regente, a
instância das autoridades e das gentes locais das mais variadas extrações,
tomou, de imediato, uma providência do maior alcance econômico. Em
termos legislativos, consagrou-a a Carta Régia de 28 de janeiro de 1808,
que determinou a abertura dos portos do Brasil ao comércio. Até então,
por via direta, o Brasil apenas se podia relacionar comercialmente com
Portugal. Com a promulgação do mencionado diploma, consentia-se a
entrada, nas alfândegas brasileiras, de todos os gêneros, fazendas e mer-
cadorias vindas de fora, ainda que transportadas em navios estrangeiros.
Por outro lado, numa direcção oposta, facultava-se a exportação dos vá-
rios gêneros e produções coloniais sem olhar ao destino portuário, quer
recorrendo a navios portugueses, quer por intermédio de navios estran-
geiros.

Uma justificação segura para o impulso legislativo não se julga fácil


de lobrigar. Fosse por insinuação do Visconde de Cairu, José da Silva
Lisboa, fosse por instilação do governo britânico, fosse por magreza do
erário régio, o ponto é que a Carta Régia de 28 de Janeiro de 1808 sacudiu
o jugo econômico que oprimia o Brasil.

Mas, bem vistas as coisas, cremos que a máxima imperante foi a


irrefutável res ipsa loquitur. A realidade fala por si mesma. Com efei-
to, como seria possível conservar o privilégio exclusivo entre Brasil e
Portugal quando o território nacional se encontrava ocupado por tropas
francesas e as forças britânicas barravam a entrada no nosso país. Manter
o privilégio exclusivo redundaria numa decisão traiçoeira que só benefi-
ciaria os invasores12.

12 – Para um retrato do contexto internacional em que se movia a diplomacia portuguesa,


consultar PROENÇA, Maria Cândida, A Independência do Brasil. Relações externas por-
tuguesas 1808/1825, Lisboa: Livros Horizonte, 1987, em especial, p. 55 e ss.

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Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

As amarras que constrangiam o comércio internacional brasileiro


não só se esboroaram em definitivo, como se começaram a desenhar os
primeiros incentivos ao giro de manufaturas brasileiras entre nações. Sem
rebuço, o Alvará de 28 de abril de 1809 estabeleceu uma isenção tributá-
ria no tocante ao tráfego mercantil de manufacturas.

Retiradas as peias ao tráfego internacional, em coerência, o princí-


pio da liberdade económica não podia sofrer estorvo no plano interno.
De tal modo que o Alvará de 1 de abril de 1808, intentando promover a
riqueza nacional, decidiu remover qualquer obstáculo legal que subsis-
tisse, no Estado do Brasil e domínios ultramarinos, ao estabelecimento
de indústrias nascentes. Para trás ficava, sumido na escuridão de ideias
econômicas já sepultadas, o Alvará de 5 de janeiro de 1785, que ordenara
a destruição de todas as fábricas existentes no Brasil. Agora resplandecia,
enfunado pelos novos ventos, o pavilhão da liberdade de navegação, de
comércio e de indústria.

10. A transferência da sede da monarquia de Lisboa para o Rio de


Janeiro implicava, forçosamente, a recomposição das estruturas político-
-administrativas brasileiras13. Desde a chegada da Corte até à promul-
gação da Constituição do Império do Brasil, virou quase uma regra a
reprodução no Brasil, por natural semelhança, das velhas estruturas da
metrópole. Pelo caráter cimeiro a que se guindavam, assumiram um papel
destacado o Gabinete Ministerial, criado no Brasil pelo Decreto de 10 de
março de 1808, e o Conselho de Estado, instituído por ordem do Alvará
de 1 de abril de 1808.

O Gabinete Ministerial no Brasil não surgiu dotado de uma eleva-


da complexidade. Num primeiro fôlego governamental, confiaram-se as
funções estaduais a um reduzido número de elementos, em que avultava
a figura do Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino. A seu
lado, tinha os titulares das pastas dos Negócios Estrangeiros e da Guerra,

13 – Acerca da divisão administrativa do Brasil pelos dos fins do século XVIII e depois da
chegada de D. João ao Rio de Janeiro, ver, por todos, SILVA, José Manuel Azevedo e. O
Brasil Colonial, Coimbra: Faculdade de Letras, 2004 ([Coimbra], 2005, p. 48.

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e dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos. Recorda-se que, no


novo governo, ocupava a pasta do Reino D. Fernando José de Portugal e
Castro. Era formado em Leis pela Universidade de Coimbra e desincum-
bira-se já do importante cargo de vice-rei do Brasil, entre 1804 e 1806.
Contribuíram para a sua escolha a confiança do príncipe regente e o vasto
conhecimento da realidade brasileira que exibia14.

Por seu turno, o Conselho de Estado representava um desejável am-


paro do rei e do Gabinete Ministerial. Constituía um órgão de natureza
consultiva que ajudaria à condução de uma administração pública cada
vez mais exigente. Compunham-no homens de Estado e jurisconsultos
que aconselhavam o monarca no exercício dos seus amplos poderes15.

11. No Estado anterior ao constitucionalismo liberal, os príncipes,


possuídos pela ideia obsidente do bem público de que eram únicos intér-
pretes, lançavam-se, quase em delírio, numa tutela imediata de um flori-
légio de interesses, desde os mais significativos interesses econômicos
culturais ou políticos até aos aparentemente mesquinhos16. Uma febre de
salus publica que, escaldando a imaginação, lhes incutia um entusiasmo
furioso.

Não podiam os soberanos, na retórica ofícial do tempo, deixar de


ser protetores sem perderem a sua soberania. O monarca, envergando a
condição de pater patriae, fazia servir toda a grandeza de seu real poder
à felicidade dos vassalos. Um paternalismo que, aliás, marcou, de forma
indelével, um velho filão da literatura política e jurídica portuguesa, ao
ponto de pretender enlaçar, por mil fios, a imagem do pai e a do rei17. Não
escapou também a esta linha paternalista a legislação joanina brasileira. A
título ilustrativo, não se julga necessário ir além do Alvará de 28 de abril
14 – Vide SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vol. VII, Lisboa: Verbo,
1994, p. 149.
15 – Sobre o Gabinete Ministerial e o Conselho de Estado, ver, por todos, TRIPOLI, Ce-
sar, História do Direito Brasileiro, vol. II, tomo 1º, São Paulo, 1947, p. 75 s.
16 – Vide SOARES, Rogério Ehrhardt, Interesse Público, Legalidade e Mérito, Coimbra:
Atlantida, MCMLV, p. 56 ss.
17 – A expressão pater patriae remonta à Roma imperial. Vide KANTOROWICZ, E.
Morrer pela Pátria no pensamento político medieval, Lisboa, 1998, p. 6.

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de 1809 em que o príncipe regente identificava, como sendo o primeiro


e principal objeto do seus “Paternaes cuidados”, o promover a felicidade
pública dos seus fiéis vassalos.

A determinação do bem público pelo critério subjectivo do príncipe


devia conduzir, de acordo com as proclamas legislativas, à prosperidade
do Estado do Brasil. Resignados a uma felicidade que não impetraram,
mas que não desdenhavam, os brasileiros iriam assistir a uma tremenda
densificação do agere administrativo.

12. Uma refundação da organização judiciária brasileira impunha-se


a todas as luzes. A comunicação direta com a metrópole tornara-se impra-
ticável. De caso pensado, a política legislativa joanina, em domínio tão
nevrálgico, teve de abandonar qualquer recurso aos órgãos existentes em
Portugal. A um tempo, apropositou-se o ensejo para afeiçoar o aparelho
judiciário às específicas necessidades locais.

Os lances fraturantes mais significativos ocorreram ainda em 1808.


O Alvará de 22 de abril de 1808 criou, no Brasil, a Mesa do Desembar-
go do Paço e da Consciência e Ordens. Uma medida a que também não
terá sido alheia uma certa economia de meios. É que, em Lisboa, os dois
tribunais do Desembargo do Paço e da Mesa de Consciência e Ordens
nasceram e viveram como instituições distintas e separadas. Não admira,
pois, que coubesse ao Tribunal de desenho joanino decidir sobre todos
os assuntos cujo conhecimento era, em Portugal, da competência reser-
vada do Desembargo do Paço, do Conselho Ultramarino e da Mesa de
Consciência e Ordens de Lisboa18. À esfera de competência do Tribunal,
acrescentava-se a resolução dos casos que se decidiam até então na Mesa
do Desembargo do Paço da Relação do Rio de Janeiro. Salienta-se que
o primeiro presidente da Mesa do Desembargo do Paço no Brasil foi o
Marquês de Angeja, o que significava uma recondução de funções rela-

18 – De enorme relevo prático mostrou-se também o Alvará de 12 de maio de 1809, dado


no Rio de Janeiro, que regulamentava o que deviam levar de emolumentos o presidente,
deputados, escrivão da câmara e oficiais da secretaria do Tribunal da Mesa da Consciência
e Ordens.

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Rui de Figueiredo Marcos

tivamente ao cargo idêntico que já vinha desempenhando em Lisboa19.


É de admitir que transportasse consigo a mesma interpretação das suas
competências e do seu múnus.

Verdadeiramente o que, em nível judiciário, coroou a emancipação


brasileira foi o estabelecimento da Casa da Suplicação do Brasil. Nos ter-
mos do Alvará de 10 de maio de 1808, guindava-se à condição de supre-
mo tribunal de justiça, “para se findarem alli todos os pleitos em última
Instancia, por maior que seja o seu valor”20. De feição que, exceptuando
o recurso de revista, das sentenças proferidas pela Casa da Suplicação do
Brasil não cabia recurso algum. Em prol da segurança jurídica no Brasil,
tais sentenças, in terminis terminantibus, transitavam em julgado.

Erigir uma Casa da Suplicação no Brasil constituía, no fundo, um


reflexo de o rei se achar a residir no Rio de Janeiro, cidade que se devia
por isso considerar a verdadeira Corte e, por conseguinte, capital jurídica.

Com sede no Rio de Janeiro, ergueu-se, à imagem de Portugal, um


Conselho da Fazenda. Tratava-se de um tribunal especial que dirimia li-
tígios inscritos, de forma precípua, na área da arrecadação das rendas e
direitos da Coroa. A sua competência territorial abrangia o Estado do Bra-
sil, as Ilhas dos Açores e da Madeira, Cabo Verde, S. Tomé e outros domí-
nios situados na África e na Ásia21. Uma imensa vastidão que, doravante,
em matéria de justiça fiscal, ficava a depender de um tribunal instalado no
Rio de Janeiro. O império português começava a girar em torno no Brasil.

13. A reprodução de instituições jurídicas metropolitanas no Brasil


não ficou por aqui. Dado o seu relevo na vida mercantil brasileira, não
seria admissível omitir a “Real Junta do Commecio, Agricultura, Fábri-
cas, e Navegação deste Estado, e Domínios Ultramarinos”, fundada pelo
Alvará de 23 de agosto de 1808. Uma vez mais, transportava-se para o

19 – Assim o determinou a Carta Régia de 25 de abril de 1808. Vide ALMEIDA, Cândido


Mendes de. Auxiliar Jurídico. Apêndice às Ordenações Filipinas, vol. II, Lisboa: Funda-
ção Calouste Gulbenkian, 1985, p. 779, nota 3.
20 – Vide Alvará de 10 de maio de 1808, § I.
21 – Vide Alvará de 28 de junho de 1808, título VI, § I.

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Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

Brasil um estabelecimento talhado à imagem e semelhança da Junta do


Comércio que fora criada em Lisboa por D. José22.

Bem vistas as coisas, o Brasil experimentava a existência pioneira


de um tribunal de comércio, cuja competência compreendia os proces-
sos que se instaurassem num florilégio de domínios. Inscreviam-se na
sua alçada as matérias relativas ao trato mercantil terrestre e marítimo, à
agricultura, à industria e à navegação. Ao tribunal reservava-se ainda um
papel preponderante na elaboração da legislação comercial, porquanto
podia fazer subir por consulta todos os projectos de lei que entendesse
serem favoráveis à melhoria dos objectos em que superintendia. Tudo a
bem do Estado brasileiro.

À guisa de complemento da Junta do Comércio do Rio de Janeiro


e configurados em harmonia com o velho Alvará de 16 de novembro de
1771, eis que, vindos do passado, irromperam três juízes tutelares do co-
mércio no Brasil23. Aludimos ao superintendente dos contrabandos, ao
juiz dos falidos e ao juiz conservador dos privilegiados24. Todos eles de-
viam afivelar a máscara de juízes desembargadores da Casa da Suplica-
ção e, em obediência à imprescindível celeridade das decisões judiciais
no foro mercantil, os processos eram verbais e sumaríssimos.

14. Uma incursão autônoma reclama-a, sem dúvida, a fundação do


Banco do Brasil e o Alvará de 12 de outubro de 1808 que o justificou, an-
tes de tudo, com a necessidade de criar um banco nacional na capital, para
animar o comércio e promover os interesses reais e públicos. Estimular o
giro de espécies cunhadas, bem como reunir capitais ociosos e isolados,

22 – Sobre Junta do Comércio lançada em Lisboa pelo Decreto de 30 de Setembro de


1755 e cujos estatutos foram promulgados em 16 de dezembro de 1756, vide MARCOS,
Rui de Figueiredo. As Companhias Pombalinas. Contributo para a História das Socieda-
des por Acções em Portugal. Coimbra: Almedina, 1997, p. 303 ss.
23 – Assim determinaram o Alvará de 14 de agosto de 1809 e o Alvará de 13 de maio de
1810.
24 – Sobre a criação de tais magistraturas em pleno consulado pombalino, vide MAR-
COS, Rui de Figueiredo. A Legislação Pombalina. Alguns aspectos fundamentais. Coim-
bra: Almedina, 2006, págs. 216 e segs.

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Rui de Figueiredo Marcos

em ordem, designadamente, ao possível financiamento de despesas públi-


cas constituíam propósitos ostensivos do Banco do Brasil.

Com o início da actividade do banco, extinguia-se, no Rio de Janei-


ro, o chamado Cofre do Depósito. Doravante, qualquer depósito, fosse
ele judicial ou extrajudicial, de prata, ouro, joias ou dinheiro far-se-ia na
nova instituição bancária. Outrossim se impunha que os empréstimos a
juro se realizassem unicamente através do banco.

Um formidável privilégio legal se outorgava ao Banco do Brasil.


Consistia na obrigação dos “Bilhetes do dito Banco Público pagaveis ao
portador, ou mostrador á vista” serem recebidos como dinheiro em todos
pagamentos efetuados à fazenda real. Estávamos aqui perante uma prer-
rogativa que conduzia a um curso forçado.

Não se julga destituído de sentido admitir que tal providência se te-


nha inspirado na legislação pombalina. Senão vejamos. Os bilhetes do
banco passaram a ser meios de pagamento, embora no horizonte das dívi-
das à fazenda. Ora, o Alvará de 21 de junho 1766 advertira que as ações
das grandes Companhias pombalinas, designadamente as do Grão Pará e
Maranhão e de Pernambuco e Paraíba, representavam as quantias líquidas
dos respectivos valores. As ações acabavam por cumprir as funções da
moeda, uma vez que circulavam como dinheiro líquido. O mais entusias-
mante do ponto de vista jurídico é que o poder liberatório dos títulos, que
o Alvará de 21 de junho de 1766 reconhecera, implicava o afãstamento de
uma eventual recusa em os aceitar na realização de pagamentos25.

Com a lei de instituição do Banco do Brasil, baixaram os respectivos


estatutos assinados por D. Fernando José de Portugal, Secretário de Esta-
do dos Negócios do Brasil. Os estatutos do Banco do Brasil têm passado

25 – Convirá não esquecer, porém, que, em golpe de inflexão, o Alvará de 30 de agosto de


1768 e o Alvará de 23 de fevereiro de 1771 excluíram a força liberatória das acções. Vide
MARCOS, Rui de Figueiredo. Apontamento histórico sobre a aquisição de acções pró-
prias em Portugal. Da fantasia prática à magia do legislador. In: Estudos em homenagem
ao Prof. Doutor Raúl Ventura. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
2003, p. 271 ss.

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Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

despercebidos aos olhos dos estudiosos. Um apagamento que a história


do Direito das sociedades por ações não pode consentir.

No cotejo com o modelo societário proeminente no século XVIII


em Portugal, o figurino jurídico do Banco do Brasil sustenta um con-
fronto vitorioso. Os aspectos em que se avantajava eram múltiplos. Des-
de logo, uma definição clara do princípio da responsabilidade limitada.
Os acionistas não respondiam “por mais cousa alguma acima do valor
da entrada”26. O capital social do Banco compunha-se de mil e duzentas
ações, de um conto de réis cada uma, salvaguardando-se a possibilidade
de futuros aumentos de capital. A nomenclatura e o engenho do direito
das sociedades não cessavam de evoluir. Por ditame estatutário, consti-
tuía-se, no Banco do Brasil, um fundo de reserva que acumularia a sexta
parte do que tocasse a cada ação27. Desaparecia assim a velha técnica do
principal acrescentado que funcionara como fundo de reserva.

Mas onde a novidade faiscava com maior cintilância era na admi-


nistração da sociedade. Como não se desconhece, o antigo modelo de
governo das grandes sociedades portuguesas por ações fazia concentrar o
poder na chamada “junta”. Tratava-se do único órgão social existente. Di-
rigia e controlava a sociedade numa intencional confusão de atribuições,
emitindo as suas ordens em sobranceira indiferença acerca da vontade
dos acionistas.

Num lance progressivo e porventura inédito no nosso país, os es-


tatutos do Banco do Brasil previam uma assembleia geral formada por
quarenta dos seus maiores capitalistas, uma junta de dez e uma diretoria
constituída por quatro dos mais hábeis entre todos. Embora o Banco do
Brasil admitisse sócios portugueses e estrangeiros, só podiam integrar a
assembleia geral associados portugueses. Uma espécie de reserva patrió-
tica28.

26 – Veja-se o artigo III dos “Estatutos para o Banco Publico, Estabelecido em virtude do
Alvará de 12 de Outubro de 1808”.
27 – Estipulava-o o artigo XIX dos Estatutos do Banco do Brasil.
28 – Sobre o que se acaba de assinalar, ver os artigos IX e X dos estatutos do Banco do
Brasil.

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Um direito dos sócios que veio a lograr uma decisiva reponderação


foi o direito do voto. Ao contrário do recorte legislativo setecentista em
Portugal que afirmara o princípio do voto único, o Banco do Brasil acatou
a tese oposta da proporcionalidade, embora com um travão. Para que um
sócio dispusesse de direito de voto deliberativo, devia possuir, pelo me-
nos, cinco acções. E quantas vezes prefizesse o dito computo, tantos votos
teria na assembleia geral. Mas com um limite intransponível. Nenhum
dos sócios, fosse por que motivo fosse, podia reunir em si próprio mais
do que quatro votos. Em contraste com o passado societário português,
forjava-se agora um panorama menos desfavorável aos sócios no que to-
cava à possibilidade de influir nos destinos da sociedade. Ainda assim,
porém, o enlevo dos sócios pelos estatutos do Banco do Brasil decerto
luziria apenas aos olhos dos ricos titulares das grandes participações acio-
narias que seriam, do mesmo passo, os senhores da maioria dos sufrágios.

As sociedades por ações, acompanhando o desenvolvimento co-


mercial e industrial do Brasil, proliferaram no período do Reino Unido.
Denunciativas disso mesmo surgiram, por exemplo, a Companhia de Mi-
neração de Cuiabá e a Sociedade das Lavras das Minas de Ouro da Capi-
tania de Minas. São ambas de 1817.

15. No Brasil joanino, cresceu, em esplendor, o âmbito da polícia


ao compasso da administração interna do despotismo iluminado e do seu
intenso programa. Uma administração pensada, no leque crescente de te-
mas e de intervenções que albergava, não no sentido contemporâneo que
a entende como uma das actividades do Estado desenvolvidas ao abrigo
da função legislativa, mas em termos de a identificar globalmente com a
política interna do príncipe, serventuária, por dever de oficio, dos supe-
riores interesses do país29.

O soberano esclarecido absolutizava-se na condição ímpar de fun-


cionário superlativo. Nos escritos nacionais, não se detectam rasgos ino-

29 – Vide SCHIERA, Pierangelo. A polícia como síntese de ordem e de bem-estar no mo-


derno Estado centralizado. In: Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 312.

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Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

vadores30. A polícia persistia em tocar de perto aquilo que respeitava à


elevação do nível de vida material e espiritual dos vassalos, os quais ex-
perimentavam uma ventura não rogada31. Havia como que um aproveita-
mento profano de conteúdos morais e religiosos.

A noção de polícia que ao tempo imperava resplandecia, de modo


exuberante, na política legislativa joanina no Brasil32. Delamare, o pio-
neiro tratadista da matéria, esculpia um sentido de polícia que visava o
bem comum e a felicidade do homem. A realização integral desta última
dependia do acesso a três espécies de bens: os bens da alma, os bens cor-
po e os bens de fortuna.

Era, em decorrência de tal classificação, que Delamare arrumava as


matérias ao longo do seu Traité de la Police. Relativamente aos bens
da alma, aqueles cuja privação atraía as trevas ao espírito, abordava a
religião e os costumes. Na perspectiva dos bens do corpo, a míngua dos
quais abandonava o homem ao sofrimento, encarava as leis respeitantes à
saúde, aos víveres, ao alojamento, à comodidade das artérias públicas e à
segurança da vida. Assuntos como o comércio, as manufaturas e as artes
mecânicas mereciam também cuidadosa atenção, pois constituíam meios
de aceder aos bens de fortuna, libertando assim o homem da inquietude
que a sua carência provocava. As ciências e as artes liberais formavam

30 – Vide NOGUEIRA, Ricardo Raymundo. Prelecções de Direito Pubblico Interno de


Portugal. In: O Instituto, vol. VII (1858), p. 153.
31 – Chegou-se a observar que nenhuma palavra em leis e escritos eruditos teria um sig-
nificado tão incerto como precisamente o termo Polizei.
O certeiro comentário pertence ao publicista do século XVIII MOSER, Johann Jacob em
Von der Landeshoheit in Policey-Sachen, Franckfurt und Leipzig: Metzler, 1773. Vide
KNEMEYER, Franz-Ludwig. Polizeibegriffe in Gesetzen des 15. bis 18. Jahrhunderts.
Kritische Bemmerkungen zur Literatur über die Entwicklung des Polizeibegriffs, in Ar-
chiv des öffentlichen Rechts, vol 92 (1967), p. 155. Acerca da vida e da obra J. J. Moser,
ver, por todos, STOLLEIS, Michael, Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland,
vol. I (1600-1800), München: Beck, 1988, p. 258 ss.
32 – Sobre o conceito de polícia, consultar CAETANO, Marcello. Manual de Direito
Administrativo, tomo II, Coimbra: Almedina, 1990, 10ª ed. (3ª reimp.), p. 1145 ss.; e
CORREIA, Fernando Alves. O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra:
Almedina, 1989, p. 118 ss, nota 73.

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uma categoria especial que o autor expressamente incluía nos bens da


alma33.

16. A legislação joanina não descurou nenhuma das três espécies e


bens. Nos da alma, inseria-se a religião. Esta surgia como um dos prin-
cipais objectos da polícia e revelar-se-ia o único se os seus destinatários
acatassem os deveres que ela impunha. De tal maneira que a observância
dos preceitos religiosos desagravara as outras componentes da polícia. Ao
invés, Religio turbata, Politiam turbat.

Ora, num salto ao plano espiritual do príncipe regente, avulta o Al-


vará de 15 de junho de 1808, através do qual se condecorou a Sé Catedral
do Rio de Janeiro com o título e dignidade de Capela Real. Do mesmo
passo foi dotada de um florilégio de prerrogativas. Tudo em prol da maior
decência e esplendor do culto divino e glória de Deus, em cuja providên-
cia omnipotente o príncipe confiava no sentido de “melhorar a sorte dos
meus Vassalos na geral calamidade da Europa”34.

Mas a Capela Real encontrava-se numa situação de penúria patri-


monial. Despojada de rendimentos próprios, via-se na impossibilidade
de assegurar um digno culto divino. Não hesitou, pois, o príncipe regente
em determinar que, em todas as igrejas das Ordens que se provessem
no Estado do Brasil e domínios ultramarinos, se arbitrasse uma pensão
proporcional à respectiva capacidade contributiva para a sustentação da
Capela Real. Uma prescrição legislativa que devia correr através da Mesa
de Consciência e Ordens35.

Ao príncipe pertencia velar constantemente para que à alma não fal-


tasse o respiro da cultura. É conhecida a ternura que o regente dispensou

33 – Vide DELAMARE, Nicolas. Traité de la Police, où l’on trouvera l’Histoire de son


Etablissement, les Fonctions et les Prerrogatives de ses Magistrats, toutes les Loix et tous
les Reglements qui la concernent, Paris, chez Michel Brunet, MDCCXXII, 2ª ed., tomo I,
prefácio, p. 2 ss.
34 – Em causa estava também a observância do antiquíssimo costume de manter “junto
ao Meu Real Palacio huma capella Real”, para maior comodidade e edificação da família
real. Ver o preâmbulo do Alvará de 15 de junho de 1808.
35 – Assim o impunha o Alvará de 20 e agosto de 1808.

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Quadros jurídicos do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

à arte musical. Destacados cantores e executantes solenizaram as cerimô-


nias religiosas na Capela Real.

Os bens de cultura que a munificência régia veio a derramar no Bra-


sil abrangeram um largo espectro. Nasceu a Real Academia Militar, onde
se professava um curso completo de ciências matemáticas e de ciências
de observações. Surgiu a Academia das Belas-Artes do Brasil, onde se
ensinava pintura, desenho, escultura e gravura. O Rio de Janeiro viu ainda
nascer a Real Biblioteca e o Real Teatro de S. João.

Para o mundo jurídico, uma instituição que assumiu uma decisiva


preponderância foi, sem dúvida, a imprensa régia. Tratou-se de um esta-
belecimento inédito na história dos domínios ultramarinos portugueses.
E que logrou obter um retumbante significado. Desde logo, no domínio
do princípio da publicidade das leis, de tão difícil cumprimento em terras
de além-mar.

O Decreto de 13 de maio de 1808 fundou a “Impressão Regia”. Os


prelos que existiam no Rio de Janeiro estavam destinados à Secretaria
de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra36. Instado pela neces-
sidade, o príncipe regente resolveu colocar essa maquinaria ao serviço
da nova casa impressora. Em boa hora o fez para o Direito brasileiro. É
que, na “Impressão Regia”, passavam a imprimir-se, em regime de ex-
clusividade, “toda a legislação, e Papeis Diplomaticos, que emanaram
de qualquer Repartição do meu Real Serviço”. A imprensa régia abria-se
também à possibilidade de publicar quaisquer outras obras. Deste lan-
ce fundacional extraía-se um voto lúcido no enriquecimento da cultura
brasileira. Novas ideias saltariam, amiúde, dos livros impressos para o
debate público.

17. A vertente da polícia, encarada como “subsistance pour le corps”


de acordo com a expressão utilizada pelo renomado publicista Claude
Fleury, que englobava as necessidades vitais, a saúde e as comodidades,
não foi esquecida no Brasil. Pense-se na Escola Médico-Cirúrgica esta-

36 – Trata-se de uma informação contida no Decreto de 13 de maio de 1808.

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belecida no Rio de Janeiro para instrução dos que se destinavam ao exer-


cício da arte e que, depois, se anexou ao Hospital Militar.

Não menor significado tivera a criação do “Fysico Mór, e Cirurgião


Mór do Reino, Estados, e Domínios Ultramarinos”37. Na mira de con-
servar a saúde pública, evitando a propagação de doenças contagiosas,
cumpre destacar a figura do provedor-mor da saúde e Corte do Brasil.

Da cuidadosa preparação dos medicamentos dependia também a saú-


de pública. Nessa linha se inscreveu o Alvará de 5 de novembro de 1808.
À imagem da “Farmacopeia Geral do Reino”, importava fixar os preços
dos remédios no Brasil. Deveras interessante revelava-se a norma que
proibia aos boticários os abatimentos na soma das receitas38. Um preceito
que, ao invés do que se suporia, nada tinha a ver com uma ideia de defesa
da concorrência. A obrigação de os boticários venderem os medicamen-
tos aos preços determinados no regimento legal radicava no fato de os
descontos facilmente originarem substituições dolosas e faltas essenciais
na composição dos remédios39. Adulterações que poderiam causar grave
dano à saúde dos súbditos brasileiros.

Dentro da mesma racionalidade, prescrevia-se um aumento compul-


sivo dos preços dos medicamentos para os boticários do interior do Brasil
que ficavam a grandes distâncias dos portos de mar. O transporte por terra
encarecia o preço dos medicamentos, pelo que os boticários eram obri-
gados a pedir pelos remédios mais uma quinta parte dos preços fixados
legalmente.

Não se esqueça, porém, que o preço dos medicamentos estava su-


jeito a uma revisão anual. Desenhava-se, por fim, uma norma curiosa em
clara defesa do consumidor. Traduzia-se no dever de os boticários mos-
trarem, sempre que instados pelos consumidores, o regimento que fixava

37 – Consulte-se, a este propósito, o Alvará dado no Rio de Janeiro em 23 de novembro


de 1808.
38 – Vide Alvará de 5 de novembro de 1808, § I.
39 – Em razão de presumida má fé, os boticários que praticassem os tais abatimentos
seriam condenados a pagar o dobro dos descontos realizados.

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legalmente o preço dos medicamentos40. Sem dúvida, uma norma de uma


surpreendente modernidade.

O universo da polícia de modo nenhum prescindia dos bens de fortu-


na. Daí o empenho colocado por D. João VI no florescimento da mercan-
cia. Do mesmo passo não descuidava o papel essencialíssimo da indústria
na prosperidade da ordem económica brasileira.

18. A névoa do ius politiae adensava-se especialmente sobre o di-


reito criminal. O príncipe regente, convocando o modelo pombalino, re-
solveu criar, por Alvará de 10 de maio de 1808, o lugar de “Intendente
Geral da Policia da Corte, e do Estado do Brasil”, com o exato poder de
iurisdictio de que gozava o congênere lisboeta nos termos dos Alvarás de
25 de junho de 1760 e de 15 de janeiro de 1780.

No Brasil, à Intendência Geral da Polícia pertencia uma larga es-


fera de atribuições. Servia a edilidade e cumpria tarefas de natureza ad-
ministrativa que tocavam o abastecimento de água ao Rio de Janeiro, a
construção de pontes e calçadas, o aformoseamento da capital e a ilumi-
nação pública. Inclusivamente, a promoção colonizadora da vinda de ca-
sais açorianos, ao que se julga, relampejara na mente do Intendente Geral
Paulo Fernandes Viana.

Do exercício do ius politiae dependia ainda a felicidade dos povos,


saída da organização das grandes festas públicas. Como muito bem al-
vitrara o Intendente Geral do Rio de Janeiro, constituía “um dever da
polícia trazer o povo entretido e promover o amor e respeito dos vassalos
para com o soberano e a sua real dinastia”41. Além da missão precípua de
frenar a criminalidade composta por roubos frequentes e brigas desor-
deiras constantes que se instalara no Rio de Janeiro, o Intendente Geral
combateu a pobreza e a mendicidade, melhorando as condições de vida

40 – Consulte-se o Alvará de 5 de novembro de 1808, § VI.


41 – Sobre as competências e o desempenho da Intendência Geral da Polícia no Brasil,
ver, por todos, LIMA, Oliveira. Dom João VI no Brasil (1808-1821), vol. I, prefácio de
SOUSA, Octavio Tarquinio de. 2ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1945, p. 240 ss.

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dos indigentes. A largueza de vistas que o Intendente Geral da Polícia do


Brasil impôs a si próprio rivalizava com o entendimento europeu.

19. Ao arrepio do universo publicista em que o legislador se deixou


tomar por um frenesim de entusiástica reformação, no capítulo do Direito
privado, pouco se modificou. Na verdade, o legislador do início de oito-
centos vagabundeou pelo Direito privado brasileiro, levando a cabo sim-
ples alterações pontuais. Aí se inscreveram transformações que atingi-
ram, em pensado retoque, o direito de propriedade, as servidões, a tutela
dos órfãos e ausentes, as vendas a prazo e o contrato de câmbio marítimo.
Nada que desfigurasse a face do ius privatum brasileiro.

20. O voto de perpetuatio de um Reino Unido de Portugal, Brasil e


Algarves trazia consigo a semente da sua própria desaparição. Anunciava
a Independência política do Brasil. Há caminhos em que a parança não
é possível. D. João VI percebeu isso de forma cristalina. Levou a cabo a
construção político-jurídica do Brasil antes e depois do Reino Unido.

Ao jeito das findas das composições medievais, vou dar acabamento


de razão à minha torrente palavreira.

À distância de dois séculos, a monumentalidade da obra de D. João


VI tornou-se mais imponente. Como um dia escrevi, as grandes obras são
como as grandes montanhas. De longe, veem-se melhor. Se alguém perdi-
do no tempo encontrasse D. João VI, pousando suavemente o olhar num
belo mostrador com o recorte do Brasil e, tomado de um impulso infrene,
lhe atirasse a pergunta: acaso vê as horas, majestade? Ele responderia
com elevada firmeza. Sim. Vejo as horas no meu relógio do Brasil. E que
horas são? Agora, agora é a eternidade!

274 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 177 (470):247-274, jan./mar. 2016.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
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voltada para a difusão do conhecimento histórico, assim como de outras disciplinas e áreas afins, no
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resenhas, comunicações, notas de pesquisa, bem como documentos de valor histórico acompanhados
de comentários críticos. A Revista pode ainda publicar dossiês temáticos ou seletivos, elaborados por
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7. A Revista privilegia os seguintes tipos de contribuições:
7.1. Artigos: textos analíticos ou ensaísticos resultantes de estudos e pesquisas concernentes a
temas de interesse para a R.IHGB. (até dez mil palavras).
7.2. Comunicações: intervenções realizadas por sócios ou convidados nas sessões do IHGB (até
quatro mil palavras).
7.3. Notas de Pesquisa: relatos preliminares e resultados parciais de investigações em curso (até
cinco mil palavras).
7.4. Documentos: fontes históricas, de preferência inéditas ou que receberam tratamento recente
(até dez mil palavras).
7.5. Resenhas críticas, balanços bibliográficos, bibliografias temáticas, seletivas ou comentadas
(até duas mil palavras, sem necessidade de resumo e/ou abstract).

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inglês, francês, espanhol ou italiano.
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títulos e resumos nos idiomas português e inglês, independentemente do idioma do texto original, e caso
este não esteja em português ou inglês, acrescentar resumo na língua original, não podendo ultrapassar
250 (duzentos e cinquenta) palavras, seguidas das palavras-chave, mínimo 3 (três) e máximo de 6 (seis),
representativas do conteúdo do trabalho, também em português e inglês, e no idioma original, quando
for o caso.
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arquivística equivalente de onde foram copiados, acompanhados de uma introdução explicativa.
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contados da data de envio da correspondência pela R.IHGB.
• Os autores receberão dez volumes da revista quando publicada sob os auspícios da Gráfica do Senado
Federal.

APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS


• Digitação original em disquete de alta densidade ou CD, devidamente identificado com o título do
trabalho e nome (s) do (s) autor (es), e três cópias impressas, inclusive tabelas e referências; em formato
A4, margens 2,5cm, entrelinha de 1,5cm, em uma só face do papel, fonte Times New Roman corpo 12,
e numeração consecutiva. Deverá ser utilizado o editor de texto Microsoft Word ou compatível. Caso
haja imagens, identificar no texto os locais das figuras ou outras formas de ilustração.
• Ilustrações e legendas devem ser relacionadas em folhas separadas. As imagens deverão ser escaneadas
em 300 dpi no formato jpg e dimensionadas no formato de aproximadamente 5 x 5 cm.
• Página de rosto: todo artigo deverá ter uma página de rosto com o título, nome completo do autor e
instituição de origem. O rodapé da página deverá mencionar o endereço completo e o e-mail do autor, a
quem se encaminhará a correspondência. Somente nesta página constará a identificação do autor, para
fins de sigilo.
• As traduções, de preferência inéditas, deverão estar acompanhadas de autorização do autor e do
respectivo original do texto.
• As notas deverão ser colocadas em rodapé e a bibliografia no fim dos trabalhos. Ambas devem obedecer
às normas da ABNT. As principais diretrizes são as seguintes:
• Livro: SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, nnp.
• Capítulo ou parte de livro: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: SOBRENOME, Nome. Título
do livro: subtítulo. Tradução. Edição. Cidade: Editora, ano, p. nn-nn.
• Artigo em periódico: SOBRENOME, nome. Título do artigo. Título do periódico, Cidade: Editora, v.
nn, n.nn, p. nn-nn, ano.
• Trabalho acadêmico: SOBRENOME, Nome. Título: subtítulo. Tese (Doutorado em...) - Instituição.
Cidade, ano, nnnp.
• Texto obtido na internet: SOBRENOME, Nome. Título. Data (se houver). Disponível em: www......
Acesso em: dd.mm.aa.

Somente serão aceitos os trabalhos encaminhados de acordo com as normas


acima definidas.

Endereço para correspondência:


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Avenida Augusto Severo, 8 – 10º andar – Glória
20021-040 – Rio de Janeiro – RJ
E-mail: revista@ihgb.org.br
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GUIDE FOR THE AUTHORS
1. The Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro is a scientific publication, focusing on
historical knowledge diffusion, as well as other subjects and related areas, in the scope of Brazilian
Studies. It receives contributions, such as: articles, essays, notifications, review essays, research notes, as
well as documents of historical value with critical comments. It can also publish thematic and selective
dossier, organized by Brazilian and foreign specialists.
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7.1. Articles: it includes analytical texts or essays which are resultant of studies and researches
concerning the themes that are interesting to the R.IHGB. (up to ten thousand words).
7.2. Notifications: is destined to the publication of brief interventions, made by partners or guests
in the sessions of the IHGB (up to four thousand words).
7.3. Research Notes: it focuses on preliminary reports and partial results of ongoing investigations
(up to five thousand words).
7.4. Documents: it publishes sources, preferably unpublished or the ones which have been
improved recently (up to ten thousand words).
7.5. Bibliography: besides the publication of review essays, bibliographic balances, thematic,
selective and commented bibliographies are emphasized, (up to two thousand words,
summary and/or abstract are not necessary).

EDITORIAL RULES
• The contributions must be unpublished and exclusively written to R.IHGB, in Portuguese, English,
French, Spanish or Italian.
• Except works addressed to bibliography section, the authors must, mandatorily, present titles and
abstracts in Portuguese and English, independently of the language of the original text. If it is not in
Portuguese or English, it will be necessary to add the abstract in the original language as well. The
abstract cannot have more than 250 (two hundred and fifty) words, followed by the keywords, minimum
3 (three) and maximum 6 (six), in English and Portuguese, representing the content of the work.
• Documents sent to publication have to be transcribed and have the codex or archival indication from
where they were copied, followed by an explanatory introduction.
• The R. IHGB limits the opportunity of publication according to its schedule and interest, notifying the
approval or disapproval of the publication to the author. The original texts will not be returned.
• If the contribution is approved, the author will have fifteen days to give the authorization term back,
from the date R.IHGB has posted it .
• The authors will receive 10 volumes of the Revista when the publication is supported by the Gráfica
do Senado Federal.

TEXTS PRESENTATION
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the author(s), and three printed copies, including tables and references; in format A4, margins 2,5cm,
space between lines 1,5cm, on one side of the paper, font Times New Roman size 12, and consecutive
numbering. The Microsoft Word text editor or a compatible one should be used. If there are images,
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• Illustrations and captions have to be put in separate sheets of paper. The images have to be scanned in
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institution they come from. The footnote has to mention the complete address and e-mail of the author,
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• The notes should be put in the footnote and the bibliography at the end of the texts. Both have to follow
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• Books: LAST NAME, First Name. Title of the book in italics: subtitle. Translation. Edition. City:
Publisher, year, p. or pp.
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• Article: LAST NAME, First Name. Title of the article. Title of the jounal in italics. City: Publisher.
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• Thesis: LAST NAME, First Name. Title of the thesis in italics: subtitle. Thesis (PhD in …..) Institution.
City, year, p. nn-nn.
• Internet: LAST NAME, First Name. Title. Available at: www….., consulted dd.mm.yy.

Only the texts presented accordingly to the rules defined above will be ac-
cepted.

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BRASÍLIA/DF,
EM 2016, COM UMA TIRAGEM
DE 700 EXEMPLARES

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