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ANOITE A
Reinaldo Arenas
Tradução de
IRENE CUBRIC
2# EDIÇÃO
RECORD
EDITORA RECORD
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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
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O Bosque
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O Rio
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A Escola
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O Centro
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O Poço
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A Colheita
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O Espetáculo
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A Neblina
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A Terra
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O Mar
Foi minha avó quem me fez conhecer o mar. Uma das suas
filhas tinha conseguido encontrar um marido fixo que trabalhava
em Gibara, o porto marítimo mais perto de onde morávamos. Pela
primeira vez peguei um ônibus; acho que, para minha avó, com seus
sessenta anos, também era a primeira vez. Fomos a Gibara. Minha
avó e o resto da família não conheciam o mar, apesar de morarem
a uns trinta ou quarenta quilômetros do porto. Lembro-me da minha
tia Coralina, que chegou um dia chorando na casa da minha avó e
disse: "Sabem que já estou com quarenta anos e nunca vi o mar?
Vou acabar morrendo de velhice sem nunca ter visto ! " Desde então,
meu único pensamento era o mar.
"O mar engole um homem todos os dias", dizia minha avó.
Experimentei então uma necessidade irresistível de chegar até o
mar.
Como expressar a primeira vez que me vi diante do mar! Seria
impossível descrever aquele instante; existe apenas uma palavra: o
mar.
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A Politica
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Holguín
.
A medida que a ditadura de Batista se perpetuava, a situação
econômica tornava-se cada vez pior, pelo menos para os campone-
ses pobres como meu avô ou meus tios, que já não encontravam
mais trabalho nas refinarias de açúcar ou como cortadores de cana.
Meu tio Rigoberto passou mais de quatro meses fora de casa e todos
pensávamos que havia encontrado trabalho; após todo esse tempo,
ele voltou sem um centavo e com acessos de febre altíssima;
perambulara por quase toda a província de Oriente sem encontrar
qualquer lugar onde pudessem contratá-lo como cortador de cana.
Minha avó o curou com uma das suas poções.
A situação econômica foi se tornando tão difícil que meu avô
resolveu vender o sítio - uns três hectares de terra - e mudar-se
para Holguín, onde pensava abrir uma vendinha de alimentos e
frutas. Fazia anos que meu avô e minha avó queriam vender o sítio,
masjamais conseguiam chegar a um acordo. Finalmente, venderam
o sítio a um dos genros do meu avô, que na ocasião era adepto de
Batista e tinha boa situação financeira.
Chegou um caminhão do povoado e nele foram colocadas todas
as coisas: mesas, banquinhos, cadeiras da sala. Como choravam
minha avó, meu avô, minhas tias, minha mãe, e até eu ! Sem dúvida,
naquela casa de barro onde havíamos passado tanta fome, também
havíamos vivido os melhores momentos de nossas vidas; talvez
estivesse acabando uma época de absoluta miséria e isolamento,
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mas também de encanto, expansão, mistério e liberdade, o que não
iríamos encontrar em nenhum outro lugar e muito menos num
povoado como Holguín.
Holguín representava para mim - então adolescente - o
tédio absoluto. Cidade chata, comercial, quadrada, absolutamen-
te carente de mistério e personalidade; quente e sem nenhum
recanto onde se pudesse encontrar uma sombra, ou um lugar
onde se pudesse dar asas à imaginação. A cidade se localiza no
meio de uma planície desoladora, com uma colina totalmente
árida chamada colina da Cruz, porque, no topo, erguia-se uma
enorme cruz de concreto; a colina tem vários degraus que levam
até a cruz. Holguín, dominada por essa cruz, parecia um cemité-
rio; naquela cruz apareceu certa vez um homem enforcado. Eu
via Holguín como uma imensa tumba; suas casas baixas lembra-
vam túmulos castigados pelo sol.
Certa vez, por simples tédio, fui até o cemitério de Holguín;
descobri que era uma réplica de toda a cidade; os túmulos eram
iguais às casas, embora menores; achatados e sem qualquer enfeite;
eram caixotes de cimento. Pensei em todos os habitantes da cidade
e na minha própria família, vivendo tantos anos naquelas casas-cai-
xões para depois ficar para sempre em caixões menores. Acho que,
naquele lugar, prometi a mim mesmo ir embora tão logo conseguis-
se e, se possível, nunca mais voltar; meu sonho era morrer bem
longe dali, mas não era um sonho fácil de realizar. Para onde ir sem
dinheiro? Por outro lado, Holguín, como todo lugar sinistro, exercia
uma certa atração fatal; transmitia um certo desânimo e uma
resignação que impedia as pessoas de partir.
Eu trabalhava numa fábrica de doces de goiaba; levantava-me
de manhã cedo e começava a fazer caixas de madeira onde a
goiabada fervente era colocada; ela endurecia rapidamente e for-
mava aquelas barras que ganhavam um rótulo onde se lia "Goia-
bada La Caridad", com uma imagem da Virgem da Caridade. Não
creio que existisse muita caridade por parte do dono da fábrica, que
nos obrigava a trabalhar até doze horas por dia, pagando apenas um
peso. No dia do pagamento eu ia ao cinema, que era o único lugar
onde a gente podia entrar e fugir da cidade, pelo menos por umas
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horas. Eu ia sozinho ao cinema, pois gostava de curtir aquele
espetáculo sem ter de compartilhá-lo com ninguém. Eu me sentava
no poleiro, que era o lugar mais barato, e às vezes chegava a ver
três filmes por cinco centavos. Era um prazer enorme ver toda
aquela gente cavalgando por campos imensos, mergulhando em
rios profundos e matando-se a tiros, enquanto eu morria de chatea-
ção naquela cidade sem mar, sem rios, nem pradarias, nem bosques,
nem nada que pudesse oferecer algum interesse para mim.
Talvez por influência desses filmes, quase sempre norte-ame-
ricanos ou mexicanos, ou quem sabe por que razão, comecei a
escrever novelas. Quando não ia ao cinema, ia para casa e, ao som
dos roncos dos meus avós, começava a escrever; assim ficava até
de madrugada; e da máquina de escrever - comprada do meu
primo Renán por dezessete pesos - seguia para a fábrica de
goiabada; lá, enquanto fazia as caixas de madeira, continuava
pensando nas minhas novelas; às vezes, martelava meus próprios
dedos e não tinha outra saída a não ser voltar à realidade. As caixas
que eu fazia iam ficando cada vez piores e eu escrevia novelas
imensas e horriveis, com títulos como esses: "Como a vida é
dura!", "Adeus, mundo cruel". Certamente minha mãe ainda
guarda essas novelas em Holguín, e deve achar que são a melhor
coisa que escrevi.
Minhas tias e minha mãe, em Holguín, conseguiram um rádio
e agora podiam ouvir, todas juntas, a mesma novela que ouviam no
campo. Acho que essas novelas radiofônicas, que eu também ouvia,
influenciaram as novelas que escrevi aos meus treze anos.
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O Roça-Roça
Natal
Uma das minhas maiores alegrias, quando era garoto, era
ouvir o meu avô dizer "Boas Festas". Ele pronunciava com tama-
nha sonoridade que parecia que a gente já estava na noite de Natal.
Quando pronunciava a saudação ele dava uma risada muito rara,
em se tratando dele, e suas palavras continham toda a alegria do
mundo.
No Natal de 1957, meu avô não falou "Boas Festas"; não
houve Natal. O que houve foram as Festas Sangrentas, como disse
a revista Bohemia, devido à quantidade de assassinatos políticos
cometidos pelo governo naquele mês. O terror passara a ser uma
coisa cotidiana; ouviam-se tiroteios por toda parte; quase toda a
provincia de Oriente estava contra Batista e havia rebeldes nas
montanhas; às vezes, eles atacavam o exército de Batista, que
acabava fugindo, porque os soldados, em sua maioria, eram gente
muito pobre e faminta que não queria perder a vida por tão pouco.
No entanto, não se pode falar de uma guerra aberta entre os
guerrilheiros de Fidel Castro e as tropas de Batista; quase todos os
mortos foram pessoas assassinadas pelos tiras de Batista: estudan-
tes, membros do Movimento 26 de Julho ou simples simpatizantes
de Castro, presos nas cidades, torturados e assassinados; eram logo
atirados numa vala para assustar a população e, principalmente, os
conspiradores. No entanto, não houve muitas baixas entre os sol-
dados de Castro, assim como também não houve no exército de
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Batista. Quando a Revolução triunfou, Castro falou em vinte mil
mortos, número que passou a representar uma espécie de mito
simbólico; apesarde tudo, nunca foram publicados os nomes desses
vinte mil mortos, e nunca serão, porque não existiram nessa guerra.
Na realidade, nem houve guerra, e sim a reação quase unânime de
um povo contra um ditador; o povo se encarregava de cometer atos
de sabotagem e, principalmente, espalhar a notícia de que havia
milhares de rebeldes por toda parte; aúnicacoisaque havia por toda
parte era o desprezo pelo regime de Batista e, por isso mesmo, em
todo lugar aparecia uma bandeira do 26 de Julho; eu mesmo, certa
vez, fiquei segurando uma dessas bandeiras. Além do mais, Batista
era um ditador torpe que não exercia o controle absoluto, e foi
perdendo o poder por causa da corrupção constante entre seus
próprios aliados e as deserções dos mais honestos. É preciso reco-
nhecer que havia uma campanha popular contra Batista, a qual, às
vezes, era veiculada pelos meios de comunicação. A revista Bohe-
mia publicava fotografias e entrevistas dos rebeldes em Sierra
Maestra e publicava também as fotos dos jovens assassinados por
Batista. O New York Times apoiou Fidel Castro desde o início e, em
geral, era nos Estados Unidos que Castro e quase todos os seus
agentes podiam conspirar livremente. Além do mais, a burguesia
cubana também detestava Batista, que era negro; apoiava Castro, o
branco, filho de um rico espanhol que tinha estudado numa escola
de jesuítas. Foi justamente o bispo mais importante de toda Cuba
que, certa vez, salvou a vida de Fidel Castro. Antes de renunciar e
deixar definitivamente o país, Batistajá estava desmoralizado. Era
um vigarista, e o que mais queria era salvar todos os seus milhões;
na noite antes de sua partida, ofereceu uma festa no cabaré Tropi-
cana. Alguns anos mais tarde, em Paris, Batista fez declarações
contundentes e muito irônicas a respeito dos seus últimos anos no
poder em Cuba; diz-se que afirmou o seguinte: "Entrei pelaporta,
saí pela pista e deixei a peste."
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Rebelde
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Virgilio Pinera
Virgilio Pinera, apesar de sua obra extraordinária já publicada
e de toda a sua fama, entrava sem dúvida na categoria da bicha de
coleira; ou seja: teve de pagar um preço muito alto por ser homosse-
xual. Ele foi preso no início da Revolução e levado para El Morro, de
onde, graças à intervenção de altas personalidades (dentre as quais
creio que estava Carlos Franqui), conseguiu sair. Depois, foi sempre
olhado com suspeição e sofreu constantes censuras e perseguições.
Como bicha de coleira, era um sujeito extremamente autêntico e sabia
enfrentar o ônus de tal autenticidade.
Eu ia visitar Virgilio Pinera em sua casa às sete horas da manhã.
Era um homem de uma incrível capacidade de trabalho; levantava-
se às seis, tomava café e já naquela hora ele me ajudava a trabalhar
na minha novela El mundo alucinante. Sentávamo-nos frente a
frente. A primeira coisa que me disse quando começamos foi o
seguinte: "Não pense que estou fazendo isso por algum tipo de
interesse sexual; é por pura honestidade intelectual. Você escreveu
uma boa novela, mas há algumas coisas que precisamos acertar."
Virgilio, sentado à minha frente, lia uma cópia da novela, e quando
achava que era preciso acrescentar uma vírgula ou trocar uma
palavra, me avisava. Serei sempre profundamente grato pelas aulas
de Virgilio Pinera; eram aulas que iam além da literatura, eram de
redação. Foi muito importante para um escritor delirante como
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sempre fui, a quem faltava uma boa formação universitária. Ele foi
meu professor universitário, além de meu amigo.
Virgilio escrevia incessantemente, embora não parecesse levar
a literatura muito a sério. Detestava qualquer elogio à sua obra,
detestava também a pura retórica; detestava profundamente Alejo
Carpentier. Era homossexual, ateu e anticomunista. Na época da
República, ele tivera o atrevimento de fazer a apologia da poesia
completa de Emilio Ballagas, uma poesia eminentemente homos-
sexual; tivera o atrevimento de contestar o prólogo de Cintio Vitier,
que dava um jeito de camuflar aquela poesia, essencialmente sen-
sual e erótica, sob um tom religioso. Virgilio afirmou tudo muito
claramente. Vitier nunca o perdoou por essa atitude tão franca.
Virgilio rompeu com a revista Origenes por volta do ano de
1957 e, junto com José Rodríguez Feo, fundou outra revista muito
mais irreverente; uma revista praticamente homossexual, durante a
ditadura reacionária e burguesa de Batista. A primeira coisa que
Virgilio fez na revista Ciclón foi publicar Os cento e vinte dias de
Sodoma e Gomorra, do marquês de Sade.
Virgilio entra no novo regime já marcado por sua condição de
homossexual e também por sua tradição anticomunista. Em Ciclón,
ele havia publicado um conto de uma lucidez anticomunista realmente
premonitória, intitulado "El Muneco", um conto que mais tarde,
sistematicamente, o governo de Fidel Castro suprimiu de todas as
antologias ou dos livros de contos publicados por Virgilio Pinera.
Virgilio era também feio, magro, desajeitado, anti-romântico.
Não participava de típicas hipocrisias literárias ao estilo de Vitier,
onde a realidade sempre está envolta numa espécie de nuvem
violácea. Virgilio viu a Ilha em toda a sua terrível claridade deso-
ladora; seu poema, "La Isla en peso", ê uma das obras-primas da
literatura cubana.
Durante a República, por problemas econômicos - e, segundo
Virgilio, por causa da confusão cultural reinante em Cuba -, ele
emigrou para a Argentina e ficou lá por mais de dez anos, exercendo
pequenos trabalhos burocráticos; uma espécie de Kafka subdesen-
volvido. Foi lá que conheceu o polonês Witold Gombrowicz.
Ambos emigrados, tornaram-se amigos e companheiros de flerte e
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aventuras eróticas. Gombrowicz, segundo Virgilio, era um homem
muito bonito; para sobreviver, chegou a exercer a prostituição
masculina nas termas de Buenos Aires e transava em troca de algum
dinheiro. Certa vez encontrou-se com um argentino que tinha um
falo enorme; o homem pagou e exigiu possui-lo; fez o que quis,
mas Virgilio contou que Gombrowicz chegou em casa com o ânus
todo ensangüentado. Virgilio encheu a banheira de água quente,
despiu o amigo e o colocou na banheira, para aliviar suas dores.
Gombrowicz passou dois dias na banheira até curar as feridas.
Acredito que essa amizade tenha exercido uma influência
marcante na ironia e na irreverência de Virgilio. Talvez essa influên-
cia tenha sido mútua. Viviam a mesma vida isolada e estranha, não
acreditavam na cultura institucionalizada, nem na cultura levada
muito a sério, como fazia Jorge Luis Borges, que naquele período
era a figura máxima da literatura argentina. Zombavam de Borges,
talvez até com certa crueldade, mas tinham seus motivos. Quando
Gombrowicz deixou definitivamente a Argentina para se estabele-
cer na Europa e alguém lhe perguntou que conselho daria aos
argentinos ele respondeu: "Matar Borges." Tratava-se, obviamen-
te, de uma resposta sarcástica; com a morte de Borges, a Argentina
deixou de existir, mas a sua resposta era antes uma vingança por
tudo que ele sofrera na Argentina.
Segundo Guillermo Cabrera Infante, Virgilio era um homem infeliz
no amor. Mas acho que não. Virgilio gostava de homens negros, e
sou testemunha de que ele pôde transar com negros maravilhosos.
Certa vez, viu passar um negro com um carrinho cheio de limões
que ele apregoava em voz alta, embora esse tipo de comércio já
fosse clandestino. Virgilio chamou-o até o seu apartamento, com-
prou todos os limões e depois fizeram amor. Acho que o negro
voltava sempre com o pretexto de trazer limões e Virgilio levava-o
para o seu quarto.
Houve outro negro com quem Virgilio manteve relações se-
xuais muito profundas; tratava-se de um cozinheiro que, como
contava Virgilio, tinha um pênis enorme. O maior prazer de Virgilio
era ser penetrado por aquele cozinheiro enquanto ele mexia com
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panelas, colheres, e continuava cozinhando com Virgilio agarrado
a seu membro; Virgilio era realmente uma bicha frágil que conse-
guia ser empalado e sustentado pelo falo poderoso daquele negro.
Antes da Revolução em Cuba, Virgilio já levava uma vida
sexual intensa; tinha uma casa em Guanabo e freqüentava o pros-
tíbulo masculino de José Rodríguez Feo, naquela cidade. Era um
prostíbulo onde homens robustos trabalhavam como garçons e, ao
mesmo tempo, realizavam outras atividades, conforme os pedidos
do freguês. Foi lá também que trabalhou Tomasito La Goyesca.
Rodríguez Feo pertencia a uma família rica que emigrara para
os Estados Unidos com o triunfo da Revolução. Ele entregou suas
propriedades à Revolução e permaneceu em Cuba, pensando talvez
ser considerado uma pessoa importante. Na verdade, tornou-se
informante da Segurança do Estado, um policial da cultura, e tinha
um pequeno apartamento ao lado do de Virgilio. Rodríguez Feo,
medíocre e desprezível, deixou de lhe dirigir a palavra e nem foi ao
seu enterro quando Virgilio caiu em desgraça.
Rodríguez Feo e Virgilio partilhavam a mesma varanda. Dizem
que certa vez havia muita gente na casa de Rodríguez Feo e Virgilio
apareceu na varanda; alguém perguntou se aquele era Virgilio
Pinera e Rodríguez Feo respondeu: "Não; ele foi Virgilio Pinera."
Por isso, não foi ao seu enterro; de fato, como Pinera caíra em
desgraça com o regime de Castro, ele o considerava morto.
Tais coisas ocorrem porque, nos sistemas políticos de esquerda,
muitas pessoas passam a ser de esquerda; são raros os que conse-
guem escapar dessa maldade delirante e envolvente, e quando
alguém consegue, acaba falecendo. Rodríguez Feo, antes da Revo-
lução, era uma espécie de mecenas e foi ele quem financiou Cuentos
frios, e também as revistas Origenes e Ciclón. É claro que existiam
interesses de ordem pessoal e pequenas vaidades da sua parte, mas
havia também generosidade; outros milionários cubanos nunca se
preocuparam em custear revistas, nem em ajudar escritores.
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Lezama Lima
Além de Virgilio, outro escritor cubano com quem mantive
grande amizade foi José Lezama Lima. Conheci-o quando da
publicação da minha novela Celestino antes del alba. Já o tinha
visto na UNEAC; era um homem corpulento, enorme, com um
grande crucifixo preso numa corrente que saía sempre de um dos
seus bolsos laterais. Aquele crucifixo que ele exibia no centro de
propaganda comunista, a UNEAC, era certamente uma provoca-
ção. Fina García Marruz disse-me que Lezama queria me conhecer;
eu nunca ousaria procurá-lo, pois ficava apavorado diante de um
homem tão culto. Havia conhecido Alejo Carpentier e passara por
uma experiência muito dolorosa por causa daquele homem que
manipulava dados, datas, estilos e números como um computador
muito avançado mas totalmente desumano. Meu encontro com
Lezama foi completamente diferente; estava diante de um homem
que fizera da literatura sua própria vida; diante de uma das pessoas
mais cultas que jamais conheci, mas que não fazia da cultura um
meio de ostentação, e sim, muito simplesmente, algo a que se
agarrava para não morrer; algo vital que o iluminava e que, por sua
vez, iluminava quem estivesse ao seu lado. Lezama possuía o
estranho privilégio de irradiar uma vitalidade criadora. Por isso
mesmo, conversar com ele significava voltar para casa e sentar-se
diante da máquina de escrever; era impossível ouvir aquele homem
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e não ficar inspirado. Nele, a sabedoria associav
a-se à inocência.
Tinha o dom de dar um sentido à vida dos outros.
A primeira paixão de Lezama era a leitura. Além
do mais, tinha
o dom crioulo da boa risada, da brincadeira; a
risada de Lezama era
algo inesquecível, contagiante, que não deixava nin
guém sentir se
infeliz. Ele passava das conversas mais esotér
icas às banalidades
circunstanciais; podia interromper seu discurso
sobre a cultura
grega para perguntar se era verdade que José Tria
na não praticava
sodomia. Podia também dignificar as coisas mais s
imples, transfor-
mando-as em algo grandioso.
Virgilio e Lezama tinham muitas coisas diferentes, mas havia
algo que os unia: era sua honestidade intelectual. Nenhum dos dois
era capaz de dar preferência a um livro por oportunismo político
ou por covardia, e sempre se negaram a fazer p
ropaganda do
regime; foram, principalmente, honestos com sua obra, honestos
com eles mesmos.
Em 1966, a publicação de Paradiso foi simplesment
e um
acontecimento heróico, do ponto de vista literário. Acho que nunca
se publicou em Cuba uma novela tão violentamente homossexual ,
tão extraordinariamente complexa e rica em imagens, tão cubana,
tão latino-americana, crioula e, ao mesmo tempo tão estranha.
Quanto a Virgilio Pinera, também realizou o ato heróico de
apresentar, no ano de 1968, para o Concurso Casa das Américas,
sua obra teatral Dos viejos pánicos, reflexo supremo do terror e do
medo que imperam sob o regime de Fidel Castro.
Naturalmente, foram ambos condenados ao ostracismo, foram
censurados e passaram a viver numa espécie de exílio interior; mas
nenhum deles amargurou sua vida com ressentimento, nenhum
deles deixou de escrever; até a morte, continuaram trabalhando,
mesmo sabendo que, na maioria das vezes, suas produções iriam
parar nas mãos da Segurança do Estado, e que talvez a única pessoa
a ler seus textos fosse o policial encarregado de arquivá-los ou
destruí-los.
Lezama tinha seu centro vital na própria casa; lá, na rua
Trocadero,164, atuava como um mago, como um estranho sacer-
dote. Conversava, e quem o ouvisse, querendo ou não, ficava
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completamente transtornado. Virgilio preferia espalhar sua vitali-
dade por toda a cidade de Havana; amava as sabatinas literárias fora
da sua casa, as conversas no bar da esquina, nas conduções. Seus
gostos sexuais eram mais populares que os de Lezama. Virgilio
gostava de homens rudes, negros, caminhoneiros, enquanto Leza-
ma tinha preferências helênicas; tinha um culto extremo em relação
à beleza grega e, conseqüentemente, aos adolescentes. Virgilio
colocava em prática com assiduidade suas realizações sexuais;
Lezama era muito mais retraído, talvez por ter vivido tantos anos
com a mãe.
Certa vez, Lezama e Virgilio encontraram-se por acaso numa
espécie de prostíbulo para homens, na parte velha de Havana, e
Lezama disse a Virgilio: "Você deve estar aqui para caçarjavali."
E Virgilio respondeu: "Não; só vim para foder com um negro."
A formação de ambos era européia; especialmente francesa. Os
dois cultuavam a literatura francesa. No entanto, suas diferenças
eram múltiplas; Lezama praticava um humanismo católico e Virgi-
lio era ateu. Mas os dois sentiam tamanho amor para com a Ilha e,
principalmente, por Havana, que se tornava quase impossível para
eles afastarem-se da cidade. Uma vez, Lezama conseguiu um
trabalho na cidade de Santa Clara, onde só tinha que dar uma
conferência de caráter provisório; no dia seguinte voltou, porque
era-lhe impossível permanecer longe de Havana. No início da
Revolução, Virgilio pôde ficar fora da Ilha; estava a par das perse-
guições contra os homossexuais, pois até já fora preso; entretanto,
voltou. "A maldita circunstância da água por toda parte" exercia
uma atração da qual esses dois homens não conseguiam escapar.
Tive o privilégio de gozar da amizade de ambos simultanea-
mente. A partir do afastamento de Rodríguez Feo da revista Orige-
nes e da fundação da revista Ciclón, houve certo distanciamento
entre Lezama e Virgilio, mas a grandeza de ambos era superior a
qualquer discrepância de caráter. Assim, quando Lezama publicou
Paradiso, que provocou a impugnação oficial do regime e a censura
de toda a sua obra posterior (incluindo a própria novela Paradiso,
que circulou em Cuba quase que clandestinamente, e nunca mais
foi publicada), Virgilio, que não era amigo íntimo de Lezama
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naquele período, foi o primeiro a reconhecer os valores literários
da obra e o primeiro a elogiá-la publicamente, até mesmo antes do
famoso artigo de Julio Cortázar.
Lezama também soube reconhecer em Virgilio o grande poeta
e dramaturgo que este havia sido. Quando Virgilio fez sessenta
anos, Lezama escreveu um dos seus poemas mais profundos,
"Virgilio Pinera faz sessenta anos".
Por fim, esses dois homens foram se unindo, talvez motivados
pela perseguição, discriminação e censura que ambos sofriam. Toda
semana, Virgilio visitava Lezama, que se casara com María Luisa
Bautista, uma amiga da família; pouco tempo antes de falecer,a
mãe de Lezama pediu que a aceitasse como esposa. Maria Luisa
era uma mulher extraordinária, valente, culta e que não tinha papas
na língua; xingava os funcionários que vinham pedir informações
sobre Lezama, passava a limpo as obras escritas a mão por Lezama
pois este nunca chegou a bater a máquina. Essa mulher amou
profundamente Lezama, apesar de nunca terem mantido relações
sexuais.
María Luisa, pelo mistério da amizade, da solidão partilhada,
da devoção entre duas pessoas, da sobrevivência em tempos terrí-
veis, costumava sair com uma velha bolsa de náilon branco para
ficar nas filas de Havana e conseguir comida para Lezama. Ele
dizia: "Lá vai a corça desgrenhada." Ela voltava sempre com algum
pedaço de queijo, um iogurte; algo para satisfazer o apetite voraz
daquele homem. Às nove da noite, María Luisa preparava o chá;
sempre dava um jeito para conseguir um pouco, não se sabe de
onde. Quando o chá atrasava um minuto, Virgilio lembrava: "María
Luisa, você se esqueceu do chá." A reunião daqueles três persona-
gens, naquela casa um tanto desmantelada, que costumava ficar
inundada, tinha um caráter simbólico; era o fim de uma época, de
um estilo de vida, de uma maneira de ver a realidade e superá-la
através da criação artística, de uma fidelidade à obra de arte acima
de qualquer circunstância. Além do mais, era como uma espécie de
conspiração secreta, para juntar-se e brindar a um apoio imprescin-
dível para ambos.
Quando María Luisa ia para a cozinha preparar o chá, Virgilio
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e Lezama falavam a respeito das suas aventuras mais ou menos
eróticas, que na verdade agora já eram muito mais platônicas.
Lezama, por exemplo, confessava a Virgilio que Manuel Pereira, o
novelista amante de Alberto Guevara, ia visitá-lo e sentava-se no
seu colo, o que provocava às vezes violentas ereções. Virgilio
contava a Lezama que um dos atores negros de Electra Garrigó
fazia amor com ele. Quando María Luisa voltava, a conversa era
interrompida.
Um dia, falei com Eliseo Diego da minha admiração pela obra
de Virgilio Pinera. Eliseo olhou para mim apavorado e disse,
textualmente: "Virgilio Pinera é o diabo." Quando passei a ser seu
amigo, compreendi que talvez houvesse em Cuba apenas um inte-
lectual que pudesse superar Virgilio Pinera em inocência; esse
homem era Lezama Lima.
Em 1969, Lezama leu na Biblioteca Nacional um dos ensaios
mais extraordinários da literatura cubana, intitulado "Confluên-
cias". Reafirmava a tarefa criadora, o amor à palavra, a luta pela
imagem contra todos os que se opunham a ela. A própria beleza é
perigosa em si, conflitiva para toda ditadura, porque implica um
âmbito que vai além dos limites em que essa ditadura submete os
seres humanos; é um território que escapa ao controle da polícia
política e onde, portanto, não pode reinar. Por isso mesmo, irrita
todos os ditadores, que querem destruí-la de qualquer maneira. A
beleza sob um sistema ditatorial é sempre dissidente, porque toda
ditadura é por si mesma antiestética, grotesca; praticá-la representa,
para o ditador e seus agentes, uma atitude escapista ou reacionária.
Por essa razão, tanto Lezama quanto Virgilio acabaram sua vida no
mais completo ostracismo e abandonados pelos amigos.
O próprio Lezama proibiu que Miguel Barniz e Pablo Armando
Femández fossem visitá-lo. Percebera que não eram poetas e sim
vulgares policiais que queriam arrancar-lhe alguma informação em
troca de uma pequena viagem para o exterior.
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Minha Geração
Paralelamente à minha amizade com Lezama e Virgilio, eu
também mantinha relações com muitos escritores da minha gera-
ção. Organizávamos encontros culturais mais ou menos clandesti-
nos onde líamos os últimos textos que acabáramos de escrever.
Escrevíamos incessantemente e líamos em qualquer local; em casas
abandonadas, parques, praias, enquanto andávamos nos penhascos.
Líamos nossos textos, mas também os dos grandes escritores.
Participavam daquelas leituras Delfín Prats, talentoso e diabólico;
Coco Salas, de corpo e alma disformes; René Ariza, um pouco
desvairado, embora não tanto quanto agora; José Hernández (Pepe :
o Louco), com um talento tão grande e excessivo quanto a sua
própria demência; José Mario, que acabava de sair de um campo
de concentração; Luis Rogelio Nogueras, Guillermo Rosales e
muitos outros. Líamos em voz alta para a satisfação de todos. Minha
geração lia os poemas, proibidos pelo regime de Fidel Castro, de
Jorge Luis Borges, e recitávamos de cor os poemas de Octavio Paz.
Nossa geração, a geração nascida nos anos quarenta, tem sido uma
geração perdida, destruída pelo regime comunista.
A maior parte de nossa geração perdeu-se em cortes de cana,
vigias inúteis, assistência a discursos infinitos (onde sempre se
repetia a mesma ladainha), em tentar burlar as leis repressivas; na
luta constante para conseguir uma calça pequena demais ou um par
de sapatos, no desejo de poder alugar uma casa na praia para ler
118
#
poesia ou ter nossas aventuras eróticas, na luta para escapar da
eterna perseguição da polícia e suas prisões.
Lembro-me de que, durante um dos Festivais da Canção de
Varadero, ao chegarmos à praia, fomos imediatamente presos pela
polícia e mandados de volta a Havana; deveriam vir muitas perso-
nalidades estrangeiras e nossa presença, ao que parece, não era
desejável aos olhos de tão proeminentes convidados.
O que foi feito de quase todos os jovens de talento da minha
geração? Nelson Rodríguez, por exemplo, autor do livro El regalo,
foi fuzilado; Delfín Prats, um dos melhores poetas da minha gera-
ção, acabou completamente alcoólatra e desprezível; Pepe o Louco,
o narrador exagerado, acabou suicidando-se; Luis Rogelio Nogue-
ras, poeta de talento, morreu recentemente em condições bastante
estranhas: não se sabe se de AIDS ou se nas mãos da polícia
castrista. Norberto Fuentes, contista, foi primeiro perseguido e
depois transformado em agente da Segurança do Estado; agora caiu
em desgraça; Guillermo Rosales, um excelente romancista, está
definhando lentamente numa clínica em Miami. E o que foi feito
de mim? Depois de ter vivido 37 anos em Cuba, estou agora no
exílio, padecendo de todas as desgraças dessa situação e esperando
uma morte iminente. Por que tanta fúria contra todos nós que um
dia quisemos romper com a tradição trivial e com a monotonia
cotidiana que têm caracterizado nossa Ilha?
Creio que nossos governantes, e também grande parte do nosso
povo e da nossa tradição, nunca puderam tolerar a grandeza nem a
dissidência; quiseram reduzir tudo ao nível mais chulo, mais vulgar.
Aqueles que não se ajustavam à norma de mediocridade foram
hostilizados ou colocados no pelourinho: José Martí teve de fugir
para o exílio e mesmo lá foi perseguido e acossado por grande parte
dos próprios exilados. Voltou a Cuba não apenas para lutar, mas
para morrer. O próprio Félix Varela, uma das figuras mais impor-
tantes do século XIX cubano, teve de viver no exílio o resto da sua
vida. Cirilo Villaverde foi condenado à morte em Cuba e teve de
fugir da cadeia para salvar-se; no exílio, tentou reconstruir a Ilha
com seu romance Ceciliu Valdés. Heredia também foi exilado e
faleceu com 36 anos, moralmente destruído, depois de solicitar uma
119
#
licença especial ao ditador para poder visitar a Ilha. Lezama e
Pinera morreram também de uma forma estranha e reprimidos pela
mais absoluta censura. Sim, sempre temos sido vítimas de um
ditador, e talvez isso represente uma parte da tradição cubana e
também da tradição latino-americana, isto é: da herança hispânica
que nos coube padecer.
Nossa história é uma história de traições, alistamentos, deser-
ções, conspirações, motins, golpes de Estado; tudo dominado pela
infinita ambição, abuso, desespero, orgulho e inveja. Até Cristóvão
Colombo, em sua terceira viagem, depois de descobrir toda a
América, voltou para a Espanha acorrentado. Duas atitudes, duas
personalidades parecem sempre estar em conflito na nossa história:
a dos rebeldes constantes, amantes da liberdade e, portanto, da
criação e da experiência, e a dos oportunistas e demagogos, amantes
do poder e, portanto, praticantes do dogma, do crime e das ambições
mais mesquinhas. Essas atitudes têm se repetido ao longo do tempo:
o general Tacão contra Heredia, Martínez Campos contra José
Martí, Fidel Castro contra Lezama Lima ou Virgilio Pinera; sempre
a mesma retórica, sempre os mesmos discursos, sempre o estrondo
e o aparato militar asfixiando o ritmo da poesia ou da vida.
Os ditadores e os regimes autoritários podem destruir os escri-
tores de duas maneiras: perseguindo-os ou oferecendo-lhes cargos
oficiais. Em Cuba, os que optaram por esses cargos também fale-
ceram e de uma maneira ainda mais lamentável e indigna; pessoas
de talento indiscutível, depois de aceitarem a nova ditadura, jamais
voltaram a escrever nada que tivesse valor. O que houve com a obra
de Alejo Carpentier, depois de escrever El siglo de las luces?
Bobagens incríveis, impossíveis de se ler até o final. O que acon-
teceu com a poesia de Nicolás Guillén? A partir dos anos sessenta,
toda essa obra tornou-se prescindível; pior ainda, tornou-se abso-
lutamente lamentável. O que foi feito dos ensaios brilhantes, em-
bora sempre um pouco reacionários, de Cintio Vitier dos anos
cinqüenta? Onde está agora a grande poesia de Eliseo Diego escrita
nos anos quarenta?
Nenhum deles voltou a ser o que era; morreram, apesar de
120
#
continuarem vivos, infelizmente, para a UNEAC e para eles mes-
mos.
Agora vejo a história do meu país como aquele rio da minha
infância que arrastava tudo com seu estrondo ensurdecedor; esse
rio de águas violentas foi aniquilando, pouco a pouco, a todos nós.
Seja como for, ajuventude dos anos sessenta deu umjeito não
para conspirar contra o regime, e sim para atuar em prol da vida.
Clandestinamente, continuávamos a nos reunir nas praias ou em
casas de amigos, ou simplesmente desfrutávamos de uma noite de
amor com algum recruta de passagem ou com um estudante bolsis-
ta, ou com um adolescente desesperado que procurava uma forma
de escapar da repressão. Houve um momento em que se desenvol-
veu, às escondidas, uma grande liberdade sexual em todo o país;
todo o mundo queria transar desesperadamente e os rapazes osten-
tavam imensas cabeleiras (as quais, naturalmente, eram persegui-
das por mulheres na menopausa munidas de grandes tesouras),
usavam roupajusta e adesivos, copiando a moda ocidental; ouviam
os Beatles e falavam de liberdade sexual. Em grupos enormes, nós
jovens nos reuníamos na Coppelia, na cafeteria do Capri ou no
Malecón, e curtíamos a noite apesar das ruidosas perseguições
policiais.
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#
Uma Viagem
O Erotismo
Às vezes, nossas aventuras não terminavam como gostaría-
mos. Lembro-me de que Tomasito La Goyesca certa vez atirou-se,
em pleno ônibus, sobre a braguilha de um rapaz bastante atraente.
O rapaz, na verdade, já fizera vários sinais com a mão e tocara o
próprio pênis, obviamente ereto. Quando Tomasito o agarrou, o
rapaz reagiu de maneira violenta, espancando-o e chamando-o,
assim como a todos nós, de bicha. O motorista abriu as portas do
ônibus e tivemos que saltar e começar a correr por toda a praça da
Revolução, enquanto uma multidão de homens e mulheres "cas-
tos" nos perseguia e insultava. Buscamos refúgio na Biblioteca
Nacional, entrando pela porta dos fundos, e ficamos no escritório
de María Teresa Freyre de Andrade.
Tomasito estava com o rosto inchado e Hiram Prado percebeu
que ele segurava uma carteira que não lhe pertencia. Em meio à
confusão, pegara a carteira pensando que fosse a sua, mas ela
pertencia ao rapaz que o tinha surrado e que era simplesmente um
oficial do Ministério do Interior. Tomasito perdera sua carteira,
trocada pela do homem excitado que batera nele. Algum tempo
mais tarde, o homem chegou furioso na Biblioteca, procurando por
Tomasito. Como Tomasito recusou-se a sair do seu esconderijo,
Hiram e eu fomos falar com ele. Marcou um encontro conosco em
sua casa à meia-noite, e disse que se não chegássemos na hora certa
com a carteira seríamos presos.
125
#
À meia-noite em ponto chegamos, os três tremendo de medo.
Ao chegarmos à sua casa, ele estava tomando banho e saiu comple-
tamente nu, enxugando-se com uma toalha que amarrou na cintura.
Obrigou-nos a assinar uma folha de papel onde constava que
estávamos devolvendo todos os seus documentos, e ele os nossos.
Enquanto assinávamos e líamos aquele documento ele começou a
tocar seu pênis, que novamente ficou duro; ao mesmo tempo,
insultava-nos, chamando-nos de imorais. Depois, fez uma espécie
de interrogatório e ficou sabendo que Hiram já estivera na União
Soviética; perguntou-lhe então como era possível alguém ser bicha
após ter estado naquele país. Acrescentou ainda que faria o possível
para que fôssemos expulsos da Biblioteca Nacional. Quando soube
que eu era escritor, olhou-me indignado. Mas seu pênis continuava
cada vez mais duro e ereto, e sua mão não parava de acariciá-lo.
Finalmente, pediu que nos sentássemos e contássemos nossa
vida. A toalha dava sinais cada vez mais evidentes da excitação
daquele homem. Olhávamos atônitos e loucos de desejo de tocar
naquele volume tão promissor. Por volta das quatro da manhã
saímos de lá e o homem despediu-se de nós com o membro ereto
por debaixo da toalha; não tivemos coragem de estender a mão e
tocar aquela região maravilhosa. Pensamos que podia ser uma
armadilha e que a casa estivesse cheia de policiais para nos prender
com a mão "na massa" ; mas certamente não era nada disso; aquele
homem que nos perseguira por sermos veados no fundo queria que
agarrássemos seu sexo e o esfregássemos, chupando-o ali mesmo.
Talvez fosse uma aberração existente em todo sistema repressivo.
Lembro-me também de uma aventura com outro jovem militar.
Nós nos conhecemos em frente à UNEAC; dei o meu endereço, ele
foi à minha casa e sentou-se na única cadeira que havia. Não
precisamos falar muito; ambos sabíamos o que queríamos, pois nos
banheiros da Coppelia ele já havia revelado sinais de uma excitação
inadiável. Entregamo-nos a um combate sexual bastante notável.
Depois de me possuir com intensa paixão e gozar, vestiu-se calma-
mente, pegou um bloquinho do Departamento da Ordem Pública e
me disse: "Venha comigo; está preso, preso por ser veado." Fomos
até a delegacia. Todos lá eram rapazes como aquele que me havia
126
#
enrabado. Ele afirmou então que eu era veado e que tinha chupado
sua pica. Expliquei a verdade e disse que ainda devia haver uma
certa quantidade do seu sêmen dentro do meu corpo. Isso provocou
uma discussão. Como ele era o ativo, achava não ter cometido
nenhum delito. Ou talvez se visse como uma virgem violentada por
algum depravado. O fato é que ele havia realmente gozado e agora
queria me meter em cana. Os policiais ficaram perplexos diante
dessa confissão; o escândalo era demasiadamente óbvio. Acabaram
dizendo que era uma vergonha um policial fazer tais coisas; porque
eu, pensando bem, tinha minha fraqueza, mas para ele, que era
macho de verdade, o fato de se meter com um veado era realmente
imperdoável. Acho que houve um processo contra ele, que acabou
sendo expulso da polícia, ou, pelo menos, transferido.
Tive problemas desse tipo com outros militares. Certa vez,
fiquei no hotel Monte Barreto, em Miramar, com um soldado.
Desde o início, falamos claramente; ambos estávamos excitados.
Quando chegamos ao local em questão, ele me disse: "Abaixe-se
e segure-me aqui." Apontou para sua barriga. Segurei-lhe o mem-
bro, que já estava fora da calça, mas ele levou minha mão mais para
cima, até o cinto e o que senti foi um revólver. Ele pegou o revólver
e disse: "Vou te matar, seu veado. " Comecei a correr, ouvi uns tiros,
dei um grito e me atirei no matagal. Fiquei ali um dia inteiro,
ouvindo carros da polícia me procurando. Com toda certeza, o
militar que perdera toda a sua excitação devia estar me perseguindo,
mas não me encontrou.
Ao amanhecer, voltei para o meu quarto em Miramar. Lá
encontrei um rapaz muito lindo à minha espera; era um dos meus
inúmeros amantes que sempre voltava. Ficara esperando por mim
a noite toda; subimos até o meu quarto e procurei abrigo entre as
suas pernas, assim como fizera no matagal enquanto estava sendo
perseguido pelo militar.
Meus amigos também sofriam inúmeras decepções amorosas
ou eróticas. Durante um dos carnavais mais alucinantes de Havana,
Tomasito La Goyesca entrou num dos mictórios improvisados no
bulevar do Prado. Ninguém ia ali para urinar, ou talvez só fossem
os que tinham bebido e queriam se aliviar. Mas aí se excitavam e
127
#
acabavam transando. Havia dezenas de homens em pé, enquanto
outros chupavam-lhes as picas; outros eram enrabados ali mesmo.
A princípio não se via nada; depois dava para enxergar falos
reluzentes e bocas chupando. Tomasito, ao entrar, sentiu que aca-
riciavam suas nádegas e pernas; mãos que o tocavam em todo o
corpo. Finalmente, não agüentando mais e completamente satisfei-
to, saiu para a rua; foi quando percebeu que alguém, naquele
banheiro, havia apanhado um monte de merda do chão e lambuzara
todo o seu corpo; era incrível ver aquela bicha cheia de merda dos
pés à cabeçaem pleno bulevar do Prado, em pleno carnaval, cercado
de milhares de pessoas. Na verdade, não foi muito difícil abrir
caminho no meio daquela multidão, porque o fedor que exalava era
tão violento que, enquanto corria, abria-se uma brecha no meio
daquela gente toda. Assim, conseguiu chegar ao Malecón, e, de
roupa mesmo, atirou-se na água. Nadou até depois de El Morro. Eu,
que o seguia de perto, vi quando se afastou e temi que fosse
devorado pelos tubarões; ficou nadando horas em mar aberto e
voltou de madrugada, ensopado, mas sem fedor de merda.
Ao voltarmos ao bulevar, nos separamos; arranjamos dois
marinheiros fabulosos e os levamos para a casa de Tomasito, que
morava com a mãe; uma mulher velha e tolerante, que não se
incomodava quando o filho trazia homens em casa, com a condição
de não fazerem barulho. Gozamos com aqueles jovens rapazes,
assim como eles conosco.
Pepe Malas também tinha constantes aventuras trágicas, quan-
do tentava pôr em prática suas inquietações eróticas. Uma vez
apaixonou-se por um farmacêutico, um belo exemplar masculino,
que trabalhava no turno da noite. O prazer de Pepe consistia em
enfiar a cabeça pela janelinha que ficava aberta durante a noite e
comprar aspirina enquanto ficava olhando fixamente para a bragui-
lha do belo farmacêutico. Certa noite, cansado de ser acordado por
aquele veado, gritou que não tinha mais aspirina e fechou a janela
com tamanha força que a cabeça de Pepe ficou presa. Ele passou
toda a madrugada assim, como numa espécie de guilhotina travada
no último segundo. As pessoas que passavam na rua ficavam um
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tanto espantadas de ver aquele homem preso najanelinha, enquanto
do outro lado o farmacêutico roncava.
Numa outra ocasião, a aventura foi um pouco mais complicada.
Ele levou um vagabundo para seu quarto, na rua Monserrate; ficava
no quinto andar de um velho prédio, com uma varanda que dava
para a rua. O vagabundo mandou Pepe tirar a roupa. Ele obedeceu;
o vagabundo o empurrou até a varanda, trancou por dentro a porta
do quarto e deixou-o completamente nu na varanda. Colocou numa
maleta todos os pertences da bicha e foi embora. Pepe, nu e de frente
para a rua Monserrate, não sabia o que fazer. Chamar a polícia seria
ridículo; não tinhacomo explicar por que deixara aquele vagabundo
tão maravilhoso tirar a sua roupa e roubá-lo.
Hiram Prado sempre teve problemas nos teatros. Fora expulso da
União Soviética, onde tinha ido estudar como jovem comunista,
porque, em plena apresentação do balé Bolshoi, foi descoberto
chupando o pau de um jovem russo.
Tempos depois, em uma de nossas aventuras eróticas e literá-
rias na ilha de Pinos, Hiram ligou-se a um rapaz que trabalhava nas
brigadas que colhiam frutas. Ele estava num momento de excitação
máxima, chupando a pica daquele rapaz por trás de uma cortina do
teatro, quando, subitamente, a cortina se abriu por completo e
apareceu no palco aquele espetáculo. Não foi exatamente com
aplausos que o público se manifestou; houve um rugido ensurde-
cedor. O rapaz, cujo pau Hiram estava chupando, devia ter uns
dezesseis anos. Hiram foi preso e rasparam-lhe a cabeça. Durante
uma semana, andei por toda a ilha de Pinos tentando saber em que
cadeia ele se encontrava; finalmente, quando já ia pegar o barco
que me levaria de volta para Havana, vi Hiram escoltado por vários
guardas, sendo conduzido para o barco. Atrás, igualmente preso,
vinha o belo rapaz. Ele foi deportado da cidade de Havana e
mandado para uma fazenda agrícola na província de Oriente, onde
tinha nascido. Por algum tempo mantivemos uma longa correspon-
dência.
Às vezes, os amantes que arranjávamos tinham intenções cri-
minosas ou complexos que os levavam a manifestar uma violência
129
#
sem justificativa. O caso de Amando García foi bastante significa-
tivo. Encontrou um belo rapaz que praticava judô e o levou para
casa. O rapaz mandou que se deitasse e começou a admirar Gluglu,
nome de guerrade Amando García. "Que lindo pescoço você tem",
disse ojovem. "Estique-o mais um pouco", acrescentou. "Agora,
feche os olhos", mandou o belo exemplar masculino; e Amando,
com o pescoço esticado e os olhos fechados, como que em pleno
êxtase, esperava louco de desejo. Nisso, o rapaz soltou um grito
horrível, típico dos que praticam judô; atirou-se contra o corpo de
Amando e, com a mão aberta, deu-lhe um soco no pescoço. O que
queria realmente era arrebentar-lhe o pomo-de-adão, matá-lo ins-
tantaneamente. Amando, uma bicha muito forte, soltou um grito e
todos os vizinhos da casa de família onde ele alugava um quarto
acorreram em sua ajuda; levaram-no rapidamente para o hospital,
enquanto cuspia sangue. O rapaz desapareceu, xingando-o com os
piores palavrões.
Várias aventuras eróticas de Gluglu terminaram no hospital.
Lembro-me de uma vez em que o apresentei a um dos recrutas que
vinham me visitar. Eu tinha uma espécie de exército particular;
conhecia um recruta, no dia seguinte ele trazia um colega, que por
sua vez trazia um outro; assim, às vezes havia de quinze a vinte
recrutas no meu quarto; era demais. Além disso, éramos generosos
e compartilhávamos nossos amigos; eles também sentiam-se esti-
mulados pelo fato de conhecer novas pessoas. Apresentei esse
recruta a Amando; na verdade, tratava-se de um rapaz belíssimo,
mas tinha um pênis menor do que Amando esperava. Insatisfeito,
pediu que o recruta lhe introduzisse no ânus um taco de beisebol
que ele guardava para esse uso específico; mas o recruta foi longe
demais e introduziu todo o taco no ânus de Amando, o que provocou
uma perfuração intestinal, seguida de peritonite. Durante muito
tempo, foi preciso que ele usasse um ânus artificial. Gluglu mudou
de apelido: passou a ser conhecido por Bicu.
Costumávamos também ser vítimas do ciúme por parte daque-
les homens ou bagarrones, como costumavam se chamar. Às vezes,
havia ciúme entre eles também. Um dia, instalei um rapaz muito
bonito numa cabine na praia de La Concha e um outro, apaixonado
130
#
pelo rapaz, chamou a polícia e disse que havia dois homens trepan-
do na cabine. Desnecessário dizer que toda atividade homossexual
era ilegal e reprimida, e podia nos custar muitos anos de cadeia.
Mas aquele rapaz, bem malvado pelo jeito, levou a polícia até a
cabine onde estávamos fornicando, nus e ensopados de suor. Exi-
giram que abríssemos a porta, pois já nos tinham visto trepando
pela parte de cima. Tudo levava a crer que não haveria escapatória:
dois homens completamente nus e excitados, trancados numa ca-
bine, não tinham a menor justificativa diante da polícia. Rapida-
mente, enrolei todos os pertences na minha camisa, abri a porta e,
antes que a polícia pudesse me prender, dei um grito e comecei a
correr escadas abaixo de La Concha, atirei-me na água e comecei
a nadar. Nesse momento, a natureza me ajudou: de repente, desabou
um aguaceiro tipicamente tropical. Foi quase um milagre; eu podia
ver a polícia me procurando num barco-patrulha, mas o temporal
era tão forte que me perderam de vista. E assim, completamente nu,
cheguei à praia Patrice Lumumba, a uns dois ou três quilômetros
de La Concha. A chuva tinha parado e três rapazes pulavam do
trampolim. Eram rapazes extraordinários. Na frente deles, subi no
trampolim e coloquei a sunga. Comecei a conversar com eles e não
sei se desconfiaram do que tinha acontecido, mas não me fizeram
nenhuma pergunta. Nadamos um pouco e logo em seguida estáva-
mos todos no meu quarto, que por sorte não distava muito da praia
Patrice Lumumba. Eles me recompensaram por toda a angústia que
eu passara em La Concha, mas fiquei vários meses sem freqüentar
aquela praia, onde nunca vi tantos homens dispostos a trepar com
outros. O lugar era famoso neste sentido desde a época da Repúbli-
ca, quando todo mundo vinha fornicar naquelas cabines; fechava-se
a porta e cada um fazia o que bem queria. Além do mais, todos
aqueles homens, de sunga ou nus, eram verdadeiramente irresistí-
veis.
Alguns homens vinham com as esposas e sentavam-se na praia
para relaxar, mas às vezes entravam na cabine, onde tiravam a roupa
e tinham suas aventuras eróticas com algum outro rapaz; depois
voltavam para as esposas. Lembro-me de um homem particular-
mente bonito que brincava com a esposa e o filho na areia. Deita-
131
#
va-se, levantava as pernas e eu via seus testículos
belíssimos.
Observei-o brincar com o filho durante longo tempo, erguendo as
pernas e exibindo-me os testículos. Finalmente, dirigiu-se ao prédio
das cabines, tomou banho e subiu para se trocar. Fui atrás dele, acho
que lhe pedi um cigarro ou fósforo, e ele convidou-me a entrar.
Durante uns cinco minutos, foi infiel à esposa de uma maneira
incrível. Depois, vi-o novamente de braço dado com a esposa e o
filho, uma linda cena familiar. Creio que foi aí que surgiu a idéia
de escrever minha novela Otra vez el mar, porque era realmente o
mar o que mais nos excitava; aquele mar dos trópicos repleto de
adolescentes maravilhosos, de homens que tomavam banho nus ou
com suas sungas mínimas. Chegar até o mar, ver o mar, era uma
festa, onde a gente sabia que haveria sempre um amante anônimo
à espera entre as ondas.
As vezes, fazíamos amor debaixo d'água. Eu me tornei espe-
cialista nisso; consegui uma máscara de mergulho e pés-de-pato.
Era maravilhoso mergulhar e ver aqueles corpos debaixo
d'água,
de vez em quando eu fazia amor no fundo do mar com alguém que
também usava máscara. Ocasionalmente essa pessoa estava acom-
panhada, e enquanto conversava, submerso até o pescoço, eu chu-
pava-lhe com força o membro até fazê-la gozar, afastando-me
depois a nado com a ajuda dos pés-de-pato. O interlocutor da pessoa
só notava, talvez, um suspiro profundo no momento da ejaculação.
Quase sempre enfrentávamos filas enormes para conseguir
cabines em La Concha, mas quando isto não era possível, fazíamos
amor em cima das amendoeiras que cercavam aquela praia; como
toda planta tropical, elas eram frondosas e tinham uma densa
folhagem; não era difícil para um adolescente subir naquelas árvo-
res, e lá em cima, entre os ruídos dos pássaros, realizávamos
manobras eróticas dignas de equilibristas profissionais.
Nosso maior prazer era a possibilidade, sempre difícil, de
alugar uma casa em Guanabo. No entanto, durante os anos sessenta,
quase sempre algum amigo dava um jeito de conseguir uma; ele
mesmo não podia alugá-la, tinha que ser uma mulher ou alguêm
casado, mas, de alguma forma, conseguíamos a casa por um fim de
semana e, às vezes, por uma semana completa. Era a maior festa.
132
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Levávamos nossos cadernos e escrevíamos poemas e capítulos de
novelas; transávamos com exércitos inteiros de adolescentes; o
erótico e o literário andavam de mãos dadas.
Nunca pude trabalhar em total abstinência, porque o corpo
precisa sentir-sesatisfeito para que a mente possa soltar-se. No meu
pequeno quarto de Miramar, eu me trancava durante as tardes, e por
vezes ficava escrevendo até altas horas da noite. De dia, andava
descalço por todas aquelas praias e já tivera aventuras bastante
insólitas com belíssimos adolescentes entre os matagais; dez, onze,
às vezes doze e, em outras ocasiões, com apenas um, só que
extraordinário e que valia por uma dúzia.
Muitos daqueles rapazes voltavam depois, mas isso represen-
tava um problema, já que a casa não era minha; eu morava no quarto
de empregada da minha tia Agata, que era informante da Segurança
do Estado. Por essa razão, era perigoso quando os rapazes volta-
vam, principalmente na minha ausência, e ficavam batendo na
porta. Minha tia possuía muitos gatos e meus amantes, por orien-
tação minha, nunca entravam pela frente da casa e sim pelo pátio,
pulando um muro que dava para o mar; eu os esperava no quarto;
infelizmente, em certas ocasiões, ao pularem, caíam em cima dos
gatos da minha tia, que faziam um barulho terrível, provocando o
maior escândalo por parte da minha tia; em várias oportunidades,
os rapazes, de tão apavorados, nem podiam entrar no quarto onde
eu os esperava. Os mais ousados subiam pelo telhado ou escalavam
a varanda que dava para a rua. Às vezes, vinham quatro ou cinco
juntos, e enquanto eu trepava com um deles, os outros se mastur-
bavam, esperando a vez, ou então desfrutavam da aventura coletiva
e então era uma festa fantástica.
Lezama apreciava ouvir minhas aventuras. Enquanto María
Luisa saía para preparar o chá, ele perguntava o que eu tinha feito
ou como andavam meus amores. Eu ia muito bem, embora tivesse
ocasionalmente de suportar as consequências da violência de al-
guns dos meus amantes.
Certa vez, descendo da condução, lembro-me de ter intercep-
tado um adolescente bastante robusto. Não foi preciso falar muito;
essa era uma das vantagens do flerte em Cuba, falava-se pouco; as
133
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coisas aconteciam com um simples olhar, pedia-se um cigarro,
dava-se logo o endereço. Quando a pessoa aceitava, não havia
necessidade de falar mais nada. O rapaz aceitou. Ao chegar em casa,
fiquei surpreso, pois em vez de realizar o papel de ativo, ele me
pediu que o fizesse. Na verdade, eu também gostava muito de
desempenhar essa função. O rapaz começou a me chupar; depois o
enrabei e ele gozou como um condenado. Em seguida, ainda nu,
perguntou-me: "E se formos apanhados, quem é o homem aqui?"
Referia-se a quem tinha comido quem. E eu, talvez com uma certa
crueldade, respondi: "Claro que sou eu, pois fui eu
quem te enra-
bou." Ele ficou furioso; sendo praticante de judô, começou a me
atirar contra o teto; por sorte, ele amparava minha queda em seus
braços, mas continuava a me arremessar. "Quem é o homem?
Quem é o homem? Quem é o homem?", repetia sem parar Como
eu estava com medo de morrer naquela briga, respondi: "É você,
porque luta judô."
Felizmente, nem todos os desportistas tinham esse comporta-
mento. Perto da casa da minha tia havia uma escola imensa chama-
da INDER - Instituto Nacional de Desportos e Recreação. Milha-
res de rapazes ali praticavam ciclismo, boxe, atletismo e outros
esportes. Diversos desses bolsistas passaram pelo meu quarto, às
vezes em bando, outras vezes apenas um. Um dia, aconteceu de se
encontrarem um professor e um aluno. O professor pertencia à
Juventude Comunista e quando bateu na porta não abri, pois estava
com o estudante. Ele subiu pela varanda, empurrou a janela e
entrou, deparando com o aluno sem roupa. Como explicaria àquele
estudante por que, às três da manhã, pulava a janela do quarto de
um veado? Na verdade, nem sei como resolvi isso. Naquela noite
o professor foi embora e voltou no dia seguinte quando, felizmente,
o estudante não estava.
Minhas aventuras eróticas não se limitavam às praias ou aos
quartéis; também ocorriam em alojamentos universitários, onde
centenas de estudantes dormiam. Uma vez conheci um estudante
chamado Fortunato Granada; era colombiano e viera para Cuba na
esperança de ser médico. Nessa ocasião o governo revolucionário
convidara muitos jovens de toda a América Latina para estudar nas
134
#
universidades cubanas. Após seu ingresso nas universidades rece-
biam doutrinação política e, finalmente, era-lhes incutida a idéia de
libertar seu próprio país, vítima do imperialismo norte-americano;
tinham que voltar na qualidade de guerrilheiros.
Fortunato me contou tudo aquilo enquanto fazíamos amor num
colchonete, no sótão do alojamento. Não queria voltar como guer-
rilheiro, queria ser médico e para isso viera estudar em Cuba. Como
se recusara a obedecer, seu passaporte havia sido confiscado e agora
ameaçavam expulsá-lo da universidade. Estava desesperado e sem
saber o que fazer em Cuba, expulso da universidade e sem nenhum
documento de identificação.
Continuamos sendo amantes durante um ano e, no final, ele
teve de se alistar como guerrilheiro; não sei se o mataram, pois
nunca mais tive notícias dele. Quando escrevi EI palacio de las
blanquisimas mofetas, eu quis render uma pequena homenagem a
esse magnífico amante; o herói da minha novela chama-se Fortu-
nato.
Alguns guerrilheiros mais sortudos voltavam a Cuba. Certa vez
bateu à porta de minha tia um rapaz chamado Alfonso, que tinha
conhecido Fortunato nas guerrilhas. Perguntou por mim e identifi-
cou-se como amigo de Fortunato. Logo percebi o que queria; nós
nos tornamos bons amigos e excelentes amantes. Ele passara pelas
guerrilhas e trabalhava agora para o Ministério do Interiorde Cuba;
ocupava cargos oficiais nas representações diplomáticas junto a
Fidel Castro, formando parte do seu corpo de segurança. Talvez
tenham ignorado suas tendências homossexuais por ser estrangeiro,
ou talvez o governo nem soubesse; o fato é que continuou me
visitando durante anos; vinha esporadicamente, é claro, e se com-
portava como um verdadeiro macho. De repente, desapareceu.
Talvez tenha sido transferido para outro país em missão oficial, e
quem sabe onde estará atualmente.
Além da pegação realizada de dia, geralmente nas praias,
Havana oferecia também uma outra vida homossexual poderosís-
sima; clandestina, porém muito evidente. Essa vida era a pegação
noturna em La Rampa, na sorveteria Coppelia, em todo o bulevar
do Prado, no Malecón, em Coney Island de Marianao. Todos esses
135
#
lugares estavam repletos de recrutas e bolsistas; homens solitários
trancados em quartéis e escolas que saíam à noite loucos de vontade
de fornicar; agarravam o primeiro que aparecesse. Eu fazia tudo
para ser sempre um dos primeiros a chegar em qualquer um desses
lugares. Levei uns cem desses rapazes para o meu quarto; às vezes,
eles não queriam ir tão longe e então era preciso aventurar-se pela
cidade velha de Havana, subir uns lanços de escada e, no último
andar, abaixar as calças. Acho que nunca se trepou tanto em Cuba
quanto nos anos sessenta. Exatamente quando se promulgaram
todas as leis contra os homossexuais, teve início uma violenta
perseguição contra eles e foram criados os campos de concentração;
foi quando o ato sexual virou tabu, enquanto se exaltava o "homem
novo" e o machismo. Quase todos aqueles rapazes que desfilavam
na praça da Revolução, aplaudindo Fidel Castro, quase todos
aqueles soldados de fuzil na mão, que marchavam com ares mar-
ciais, depois das manifestações vinham aninhar-se em nossos quar-
tos e lá, sem roupa, mostravam sua autenticidade, e às vezes uma
ternura e uma maneira de gozar que dificilmente encontrei em
qualquer outro lugar do mundo.
Talvez no íntimo percebessem que estavam fazendo algo proi-
bido, que infringiam a lei da periculosidade, tornavam-se malditos.
Por isso, quando chegava aquele momento, exibiam tal plenitude,
tal esplendor, e gozavam cada instante como se fosse o último ou
que lhes podia custar muitos anos de cadeia. Por outro lado, não
havia prostituição e sim o prazer, o desejo de um corpo por outro,
a necessidade de satisfação.
O prazer sexual entre dois homens era uma espécie de conspi-
ração; algo que acontecia no escuro ou em plena luz do dia, porém
clandestinamente; um olhar, uma piscada, um gesto, um sinal eram
suficientes para iniciar a seqüência que levaria ao gozo total. A
aventura em si, mesmo quando não chegava a culminar no corpo
desejado, já representava um prazer, um mistério, uma surpresa.
Entrar num cinema era pensar ao lado de quem sentaríamos, e se
aquele rapaz, instalado em sua poltrona, esticaria a perna para tocar
a nossa, estenderia a mão lentamente para apalpar uma coxa, e
depois ousaria um pouco mais e tocaria por cima da calça um pênis
136
#
aprisionado e louco de desejo. Ali mesmo, enquanto projetavam um
velho filme americano, poder masturbá-lo; ver como ele ejaculava
e depois sair antes do final do filme. Talvez nunca mais voltássemos
a encontrar aquele rosto, visto apenas de perfil; mas, de qualquer
forma, teria de ser um cara maravilhoso.
As pessoas ficavam mais excitadas durante as longas viagens
entre as províncias; tomar os ônibus abarrotados de rapazes e
sentar-se ao lado de um deles já representava a certeza de que
algum jogo erótico ocorreria durante a viagem. O chofer apagava
as luzes e o carro corria pela estrada cheia de buracos; a cada
pulo do veículo, tinha-se a oportunidade de esticar a mão e tocar
um pênis ereto, uma coxajovem, um peito forte; podia-se deixar
que as mãos percorressem o corpo, apalpassem a cintura, abris-
sem o cinto, se introduzissem, cautelosas e ávidas, onde se
escondia o membro fabuloso. Aquelas aventuras, e as pessoas
que delas participavam, eram maravilhosas. Os homens assu-
mindo seu papel de macho ativo, que queria ser chupado e até
mesmo trepar no próprio ônibus.
Depois, quando fui para o exílio, percebi que as relações
sexuais podem ser enfadonhas e pouco satisfatórias. Existe uma
espécie de categoria ou divisão no mundo homossexual; a bicha-
louca junta-se com outra e cada uma faz de tudo. Primeiro uma
chupa a outra, depois os papéis se invertem. Como pode haver
prazer dessa maneira? Se o que se procura éjustamente o contrário !
A beleza das relações daquela época estava no fato de encontrarmos
nossos opostos; encontrávamos aquele homem, aquele recruta forte
que desejava desesperadamente trepar conosco. Transávamos de-
baixo de pontes, nos matagais, em todos os lugares, com homens
que queriam satisfação enquanto nos enrabavam. Agora não é
assim, ou é difícil que seja assim; tudo foi regularizado de tal forma
que se criaram grupos e sociedades onde é muito complicado para
um homossexual encontrar outro homem, isto é, o verdadeiro
objeto do seu desejo.
Não sei como chamar aquelesjovens rapazes cubanos de então;
não sei se posso dizer que eram pederastas ativos ou bissexuais. O
certo é que tinham namoradas ou esposas, e quando vinham conos-
137
#
co, gozavam de uma forma extraordinária, às vezes, mais do que
com as próprias esposas, pois elas se recusavam a chupá-los ou
tinham inibições que tornavam o sexo menos prazeroso. Lembro-
me de um mulato extraordinário, casado e pai de vários filhos que
dava uma escapada semanal, para trepar comigo na cadeira de ferro
do meu quarto; nunca vi um homem gozar tanto. No entanto, era
um excelente pai de família e um marido exemplar.
Acho que a revolução sexual em Cuba foi realmente um
produto da repressão existente. Talvez como um protesto contra o
regime as práticas homossexuais começaram a proliferar cada vez
mais. Por outro lado, como a ditadura era considerada um mal, tudo
que ela havia condenado era interpretado como uma atitude positiva
pelos dissidentes, que nos anos sessenta representavam a maioria.
Acredito francamente que os campos de concentração para homos-
sexuais e os policiais disfarçados de rapazes obsequiosos, para
encontrar e prender os homossexuais, trouxeram apenas como
resultado um maior desenvolvimento da atividade homossexual.
Em Cuba, quando se ia a um clube ou a uma praia, não havia
uma parte específica para homossexuais. Todo mundo compartilha-
va de tudo junto, não havia uma divisão que colocasse o homosse-
xual numa posição de militante. Isso se perdeu nas sociedades mais
civilizadas, onde o homossexual teve que se transformar numa
espécie de recluso sexual e separar-se da parte da sociedade supos-
tamente não-homossexual, que, sem dúvida alguma, também o
exclui. Como não havia essas divisões, o mais interessante do
homossexualismo cubano consistia no fato de que não era necessá-
rio ser assumido para manter relações com um homem; um homem
podia ter relações com outro como um ato normal. Da mesma
forma, quando uma bicha gostava de outra, podia ficar com ela e
morar junto sem nenhum problema; mas se gostasse de um macho
de verdade, também podia encontrar um que quisesse morar junto
ou manter uma relação amistosa, sem atrapalhar em nada a ativida-
de heterossexual desse homem. O normal não era uma bicha transar
com outra, e sim procurar um homem que a fodesse e que sentisse
tanto prazer com o ato quanto ela ao ser possuída.
A militância homossexual tem conquistado direitos excelentes
138
#
para os homossexuais do mundo livre, mas quebrou o encanto
maravilhoso de se encontrar um hetero ou bissexual que sinta o
desejo de possuir outro homem, sem que peça para ser possuído
também.
O ideal, em toda relação sexual, é a busca do oposto, e por isso
o mundo homossexual de hoje tem algo de estranho e tristonho,
porque quase nunca se encontra o que se deseja.
É claro que aquele mundo também oferecia perigos. Eu, como
todos os homossexuais, também fui roubado e chantageado. Uma
vez, após receber meu salário na Biblioteca Nacional, cometi a
imprudência de ir à praia com todo o dinheiro, noventa pesos, que
não representava muito, mas era tudo o que eu possuía para viver
durante um mês. Nesse dia, conheci um rapaz maravilhoso, que
pegara um caranguejo e o segurava amarrado; ele ia andando pela
areia com o caranguejo, como se fosse um cachorro. Elogiei o
caranguejo, enquanto olhava para as pernas do rapaz, o qual, logo
em seguida, veio para minha cabine. A única coisa que usava era
uma sunga mínima. Não sei quejeito deu, mas enquanto executava
sua ginástica sexual com extrema habilidade, conseguiu roubar
todo o dinheiro que eu trazia no bolso da calça e escondeu-o naquela
sunguinha. O fato é que, depois que foi embora, percebi que tinha
sido furtado; não tinha nem os centavos necessários para pagar a
condução de volta para casa. Procurei por ele em toda La Concha;
numa das cabines abertas encontrei o caranguejo todo despedaçado.
Ele era, obviamente, uma pessoa muito violenta; tudo o que restava
do caranguejo era sua carapaça. O belo adolescente tinha desapa-
recido sem deixar sequer mesmo o caranguejo como testemunha
do furto.
Naquela tarde, fui a pé para casa. Cheguei ao meu quarto e
retomei um poema já iniciado. Era um poema longo intitulado
"Morir en junio y con la lengua afuera". Alguns dias depois, tive
de interromper esse poema, pois alguém entrara no quarto pela
janela e roubara a minha máquina de escrever. Foi um roubo sério
para mim, pois a máquina representava meu único bem de valor e
era o objeto que eu mais prezava. Sentar-me à máquina de escrever
era, e continua sendo, algo extraordinário. Tal qual um pianista eu
139
#
me inspirava no ritmo das teclas que me embalavam. O
s parágrafos
sucediam-se uns aos outros como as ondas do mar; às ve
zes mais
intensos, outras menos; ou então, eram como ondas giga
ntescas que
cobriam páginas e páginas sem nenhum ponto. Minha máquina
era
uma velha Underwood de ferro, mas representava para
mim um
instrumento mágico.
Guillermo Rosales, então um jovem e simpático escrito
r, em-
prestou-me sua máquina e pude terminar o poema.
Dias depois, veio à minha casa um policial mulato,
bastante
simpático. Disse que minha máquina encontrava-se na dele
gacia.
O ladrão tinha sido preso quando cometia outro roubo;
revistaram
sua casa e encontraram um arsenal de coisas roubadas
, entre as
quais minha máquina de escrever. Parece que o próprio la
drão
confessou que me pertencia. Houve uma série de trâmites
burocrá-
ticos, mas finalmente embarquei num ônibus lotado carr
egando a
máquina que parecia pesar uma tonelada. Mas eu temia q
ue
fosse
novamente roubada, e aí meu amigo Aurelio Cortés teve a
idéia
brilhante de aparafusá-la na mesa de metal onde ela co
stumava
ficar.
Várias vezes, rapazes com quem eu tinha feito amor
tentaram
em vão roubar a máquina; era impossível levá-lajunto com a m
esa
de metal, onde a máquina parecia estar soldada. A partir de então,
senti-me mais seguro para continuar com minha vida a
morosa, sem
que o ritmo da minha produção literária corresse perigo. E
sse ritmo
era parte de mim, mesmo nos momentos de maior intens
idade
amorosa, ou nos momentos de maior perseguição policial.
Era
como o auge ou o complemento de todos os outros praz
eres, assim
como de todas as desgraças.
Na década de sessenta, houve três coisas maravilhosas
que
provocaram em mim um prazer enorme: minha máquina de e
scre-
ver, diante da qual me sentava como um concertista s
e posiciona
diante do piano; ajuventude incrível daépoca, quando tod
o mundo
queria romper com as políticas oficiais e seguir um rumo diferente
daquele traçado pelo regime e ser livre para fornicar;
e, por último,
a plena descoberta do mar.
Desde criança, eu já passara temporadas em Gibara, na
casa da
140
#
minha tia Ozaida, cujo marido, Florentino, trabalhava como pedrei-
ro naquela cidade. Pude então conhecer o mar. Mas eu era criança
e ainda não podia desfrutar da aventura do mar como fiz depois,
aos 25 anos. Durante os anos sessenta tornei-me um excelente
nadador; ia mar a dentro e nadava naquelas águas transparentes,
olhando para praia como algo remoto, enquanto curtia as ondas
que me acariciavam. Era maravilhoso mergulhar e ver o fundo do
mar; aquele espetáculo era algo insuperável, por mais que eu tenha
viajado e conhecido outros lugares muito interessantes. A platafor-
ma insular que rodeia Cuba é um mundo de rocha e coral, branco,
dourado, único. Eu voltava à tona, reluzente, cheio de vitalidade,
em direção ao sol brilhante que se refletia na água.
O mar foi então para mim a mais extraordinária fonte de prazer
e descoberta; e ver as ondas revoltas do inverno, sentar-me frente
ao mar, andar da minha casa até a praia e de lá desfrutar o
crepúsculo. O entardecer em Cuba é extraordinário, quando a gente
está perto do mar, especificamente em Havana, onde o sol cai como
uma bola imensa sobre o mar, enquanto tudo vai se transformando,
em meio a um mistério único e breve, com um cheiro de salitre, de
vida, de trópico. As ondas, chegando quase aos meus pés, deixavam
um reflexo dourado na areia.
Eu não podia viver longe do mar. Diariamente, ao me levantar,
botava a cabeça na varandinha e olhava para aquela imensidão azul,
cintilante, perdendo-se no infinito; aquele luxo de água extraordi-
nariamente brilhante. Não podia sentir-me infeliz, porque ninguém
pode sentir-se infeliz diante de tamanha expressão de beleza e
vitalidade.
Às vezes, eu me levantava à noite para ver o mar. Quando a
noite era muito escura, seu estrondo era um consolo e representava
a melhor companhia naquele período, e tem sido sempre assim. O
mar adquiria, para mim, certas ressonâncias eróticas.
Um dia, sentado na praia Patrice Lumumba, vi um adolescente
caminhar ao longo do paredão e desaparecer atrás dele. Segui o
rapaz e vi que tinha abaixado a sunga e se masturbava, olhando o
mar.
Eu conhecia quase todos os recantos do mar ao longo da costa
141
#
de Havana, os lugares onde, subitamente, abri
a-se uma depressão
! e apareciam peixes de cores inesperadas, as r
egiões povoadas de
corais roxos, as rochas, os locais onde se er
guiam imensos bancos
de areia e onde dava para ficar de pé e descans
ar. Depois daquelas
caminhadas, eu voltava para casa e tomava uma
ducha. Geralmente,
comia mal e pouco; o racionamento era terrível
e, além do mais,
meu nome constava do livro de racionamento de
minha tia; por isso,
ela quase não me dava comida ou me dava sempre
a pior parte.
Certa vez, eu a ouvi comentar com meu tio: "E
u disse-lhe que o
frango estava podre para que sobrasse mais pa
ra nós." Recebíamos
frango uma vez por mês e, logicamente, minha tia tinha três filhos
e um marido, além de vários amantes; por essa razão, eu sofria mais
do que ninguém com a rigorosa cota de racionamento imposta por
Castro. No entanto, depois de tomar uma ducha, ou melhor, me
molhar com um pouco de água, já que esta não subia mais até o
chuveiro, eu ia para a UNEAC sentindo-me tão revitalizado que
aquelas horas de trabalho burocrático pareciam suportáveis. Eu
revisava publicações tão horríveis quanto a revista da própria
UNEAC, da qual supostamente era editor, mas não passava de um
mero revisor, sem opinião e sem direito de publicar. Depois do mar,
eu encarava aquilo tudo como algo que não passava de um pesadelo;
a verdadeira vida estava perto da costa, naquele mar resplandecente
que esperaria por mim no dia seguinte, e onde poderia sumir por
algumas horas.
Possuir máscara de mergulho e pés-de-pato representava um
grande privilégio em Cuba. Eu os conseguira graças a Olga, uma
francesa, esposa de um amigo meu. Os pés-de-pato e a máscara
eram motivo de inveja por parte de todos os rapazes que me
cercavam na praia. Jorge Oliva treinou com aquele equipamento
inúmeras vezes, até o dia em que conseguiu alcançar a nado a base
naval de Guantánamo e a liberdade. La lVica, namorada de Jorge
Oliva, também treinou com meus pés-de-pato até ficar apta a fugir
clandestinamente pela base naval.
Um dia, um adolescente lindíssimo pediu-me emprestados os
pés-de-pato. Não vi nenhum perigo nisso e assenti. Não sei como
conseguiu desaparecer daquela maneira: deve ter saído a vários
142
#
quilômetros do lugar onde estávamos, mas o fato é que nunca mais
o vi, nem os meus pés-de-pato.
Hiram Prado, que estava comigo e conhecia o rapaz, disse que
podíamos ir até sua casa. Não pensei duas vezes e acompanhei
Hiram até um dos bairros mais perigosos de Havana; ficava perto
de Marianao e era conhecido pelo nome de Coco Solo. Quando
batemos na porta da casa, o rapaz ficou tão sem graça que nos pediu
que o esperássemos na esquina; apareceu com mais de 25 margi-
nais, armados de paus e pedras. Tivemos que fugir a toda velocida-
de.
Só nos restava esperar que Olga viajasse para a França e nos
trouxesse outros pés-de-pato. Olga era uma mulher incrível; gosta-
va de homossexuais, e era-lhe impossível ter relações sexuais com
um homem que não o fosse. Imagino que levava uma vida insatis-
feita, mas conheci muitas mulheres com essas preferências. Seu
marido saía constantemente à caça de homossexuais, que tinham
de ser passivos e que quisessem possuir Olga, uma mulher belíssi-
ma. Muitos heteros ficavam loucos por ela, mas nada conseguiam,
pois só gostava de ir para a cama com homossexuais passivos,
bichas escancaradas. Miguel pedia a todos nós que fizéssemos amor
com Olga, e acho que quase todos, por uma questão de amizade,
acabamos possuindo sua esposa.
No entanto, Miguel afirmava ser heterossexual, embora seus
amigos fossem verdadeiros monumentos masculinos. Certa tarde,
na praia, desabou uma violenta tempestade e Miguel e dois de seus
amigos, José Dávila e um belo judoca que devia pertencer à
Segurança do Estado, tiveram que se abrigar em meu quarto.
Anoiteceu e passaram a noite comigo. À meia-noite, o judoca deu
sinais de uma ereção descomunal; eu nunca tinha visto um homem
com um membro tão grande. Miguel e José Dávila dormiam ou
fingiam estar dormindo e o judoca, que segundo Miguel e José era
um dos maiores mulherengos que conheciam, trepou comigo numa
relação fora do comum.
Dias mais tarde, Miguel veio me visitar e não quis acreditar no
que lhe contei. De qualquer maneira, disse que precisava ser
possuído e insistiu para que eu o fizesse. Não tive escolha. Voltou
143
várias vezes a minha casa com esse tipo de pedido, que eu sempre
atendia. Depois, vestia-se e me dizia: "Não faço isso por prazer; o
problema é que preciso de massagem prostática, que é uma das
coisas mais importantes para manter o equilíbrio da saúde."
Esses casos eram muito frequentes. Lembro-me de um rapaz
bronzeado, encantador, extremamente viril, que sempre vinha a
meu quarto querendo ser possuído. Confesso que gostava muito de
possuir esse tipo de rapazes que pareciam muito machões. Talvez
após muitas relações, aquilo se tornasse enjoado, mas no início era
uma aventura. Esse rapaz, após ser enrabado e gozar muito mais do
que eu, vestia-se, me dava um forte aperto de mão e dizia: "Já vou
indo, preciso encontrar com minha mina." De fato, acredito que
não fosse mentira; era um belíssimo rapaz e tinha namoradas
encantadoras.
Sempre marcávamos nossos encontros de frente para o mar.
Hiram Prado me esperava debaixo de umas árvores, perto das
ondas. Quando podíamos, a nossa caravana ia para Guanabo, Santa;
María e Varadero, perto da baía de Matanzas, ou até as praias mais
afastadas de Pinar del Río; mas nossa meta final era sempre o mar
O mar era uma festa e nos obrigava a ser felizes, mesmo quando
não queríamos ser. Talvez, inconscientemente, amássemos a água
como uma forma de escapar da terra onde éramos reprimidos;
talvez, flutuando no mar, fugíssemos daquela maldita circunstância
insular.
Uma viagem por mar, fato praticamente impossível em Cuba,
representava o prazer maior. Tomar a lancha de Regla e atravessar
a baía, só isso já significava uma experiência maravilhosa.
Como já disse antes, aquele período desfrutado frente às ondas do
mar foi o que inspirou Otra vez el mar Tive de reescrever (o
trabalho) três vezes, porque os originais, como as próprias ondas,
perdiam-se incessantemente e iam parar, por uma razão ou outra,
nas mãos da polícia. Posso imaginar que todas essas versões perdi-
das preencheram, no Departamento de Segurança do Estado de
Cuba, uma enorme prateleira. A burocracia é muito aplicada e só
espero que, por isso mesmo, os textos não tenham sido destruídos.
144
#
Naquela êpoca, em 1969, eu sofria uma perseguição constante
por parte da Segurança do Estado, e temia sempre pelos escritos
que eu produzia incessantemente. Pus todos esses originais e os
poemas escritos anteriormente - isto ê, os que não tinham sido
mandados para o exterior - num saco de cimento vazio e visitava
todos os meus amigos a fim de achar alguém que os escondesse
sem levantar suspeitas da polícia. Não era fácil encontrar quem
aceitasse essa tarefa; de fato, a pessoa corria o risco, se fosse
encontrada com meus manuscritos, de passar anos em cana.
Foi Nelly Felipe quem guardou tudo para mim. Durante meses,
meus manuscritos ficaram escondidos em sua casa. Um dia, ela
começou a lê-los; foi muito honesta comigo e disse: "Gosto mui-
tíssimo da novela, mas meu marido ê tenente da Segurança do
Estado e não pode descobrir esses manuscritos." Novamente, tive
que voltar a andar pela Quinta Avenida com o saco de cimento cheio
de papéis amarrados, sem ter para onde levá-los.
Por fim, levei tudo para minha própria casa. Havia em meu
quarto um pequeno closet que podia ser camuflado com papel de
parede, assim como o resto do quarto, e com revistas estrangeiras
conseguidas clandestinamente. Assim, o closet desapareceu, como
se fosse mais uma parede do quarto; dentro, estavam perfeitamente
escondidas todas aquelas folhas que eu escrevera ao longo dos anos.
Na verdade, todo o cuidado era pouco. Um dia, Oscar Rodri-
guez foi me buscar na UNEAC e me levou atê a sua casa no Vedado,
na rua H número 17. Depois de preparar um chá, ele disse: "Rei-
naldo, sou seu amigo, mas também um informante da Segurança
do Estado." Na opinião dele, a Segurança queria saber exatamente
como eu conseguia enviar meus manuscritos para fora de Cuba,
com a ajuda de quem, quais os manuscritos que ainda eram inêditos,
onde os guardava e quais eram as minhas conexões com o exterior.
Eu já tinha publicado uma obra no exterior, El mundo alucinante,
e anunciava-se a próxima publicação de Celestino antes del alba.
El mundo alucinante fora proibido em Cuba, apesar de premia-
do pela UNEAC. Oscar Rodríguez trabalhava no Instituto Cubano
do Livro e tinha sido procurado pelos órgãos da Segurança do
Estado. O fato de ser informante lhe dava certos privilêgios; se fosse
145
#
apanhado praticando relações homossexuais, é claro que não ia
parar num campo de concentração. Tinham-lhe prometido também
uma viagem a um país socialista e uma possível transferência, como
tradutor, para o Setor de Interesses Norte-americanos em Cuba,
onde, de fato, passou a trabalhar mais tarde.
Quanto a mim, é claro que não contei a Oscar como conseguira
contrabandear meus manuscritos para o exterior, nem o que estava
escrevendo. FiQuei muito surpreso com todas as perguntas, mas
também bastante desconfiado. Nada me garantia que aquele amigo
de tantos anos não fosse um policial tão excelente que tivesse
chegado ao ponto de fingir uma traição para com seus chefes a fim
de obter as informações desejadas e realizar um trabalho ainda mais
eficiente. Talvez, diante daquela sua confissão, ele esperasse que
eu fizesse a minha e lhe contasse onde havia escondido o saco de
cimento. Nada falei; pelo contrário, no dia seguinte, levei o saco de
cimento para a casa de outro amigo bastante íntimo, o Dr. Aurelio
Cortés, Que morava na rua San Bernardino, 57, em Santos Suárez.
146
jorge e Margarita
155
#
O Superstalinismo
159
#
A Central Açucareira
Nos anos setenta, também fui parar numa plantação de cana.
Os oficiais da Segurança do Estado que já controlavam a UNEAC,
dentre eles o tenebroso tenente Luis Pavón, mandaram-me cortar
cana e escrever um livro elogiando essa odisséia e a safra dos dez
milhões, na central açucareira Manuel Sanguily, em Pinar del Río.
Essa central, na verdade, era uma imensa unidade militar. Todos os
que participavam do corte de cana eram jovens recrutas forçados a
trabalhar nesse local. Tratava-se de uma armadilha do castrismo:
transformar o serviço militar obrigatório, em tempos de paz, num
tipo de trabalho forçado que abastecia a agricultura de mão-de-obra.
Abandonar aquelas plantações podia representar, para qualquer um
dos rapazes, de cinco a trinta anos de cadeia.
A situação era realmente desesperadora. Para quem não passou
por isso, não é possível compreender o que significa estar ao
meio-dia numa plantação de cana cubana e morar em barracões
como os escravos. Levantar-se às quatro da madrugada, pegar
o facão; e um cantil de água e sair de caminhão para trabalhar o dia
inteiro, sob um sol ardente, no meio daquelas folhas afiadas dos
canaviais, que produzem uma coceira insuportável. Entrar num
daqueles lugares era como penetrar no último círculo do Inferno.
Ali, completamente cobertos dos pés à cabeça, de mangas compri-
das, luvas e chapéu - única maneira de conseguir entrar naqueles
lugares infernais -, podíamos entender por que os índios prefe-
160
#
riam o suicídio a continuar trabalhando como escravos; entender
por que tantos negros tiravam a própria vida por asfixia. Agora eu
era esse índio, eu era o negro escravo, mas não estava só; estava
junto com centenas de recrutas. Talvez fosse mais patético vê-los
do que me ver, porque já vivera alguns anos de esplendor, embora
clandestinamente; mas esses rapazes de dezesseis ou dezessete
anos, tratados como burros de carga, não tinham nenhum futuro
pela frente e nenhum passado para trás. Muitos cortavam a própria
perna ou o dedo com facão, faziam qualquer barbaridade para serem
dispensados do corte da cana. A visão de tanta juventude escravi-
zada foi o que inspirou meu poema El central. Lá mesmo redigi
essas páginas; não podia permanecer como testemunha silenciosa
de tanto horror.
Eu tinha visto os julgamentos em que se condenavam a vinte
ou trinta anos de cadeia aqueles rapazes, pelo único fato de terem
ido visitar a família, a mãe ou a noiva durante um fim de semana.
Agora, eram julgados por um conselho de guerra como desertores.
A única saída que lhes restava era aceitar o plano de reabilitação,
ou seja, voltar à plantação de açúcar, agora por tempo indetermina-
do, na qualidade de escravos.
E tudo aquilo acontecia no país que se proclamava o Primeiro
Território Livre da América.
A cada quinze dias, os rapazes tinham direito a três ou quatro
horas livres para descansar e lavar o uniforme. No entanto, apesar
daquele trabalho extenuante, estávamos vivos, e nos acampamentos
reinava um clima de erotismo. Era um erotismo que se insinuava
debaixo de um mosquiteiro, na ostentação evidente de um membro
ereto sob o pano grosso do uniforme. Sim, eram lindos os rapazes
escravos, e era lindo vê-los na hora do banho, olhando uns para os
outros meio apreensivos, mas profundamente excitados.
Lembro-me de um tenente que, ao saber que eu falava um
pouco de francês, insistiu para que eu lhe desse aulas nas horas
livres. E as aulas começavam quando o tenente me dizia: "Vamos
estudar francês." Pondo os testículos para fora, colocava-os na
mesa em que eu dava as aulas. Com aquele membro ereto e os
testículos a poucos milímetros do caderno onde eu escrevia para ele
161
#
frases em francês, nossos estudos acabavam se pro
longando horas
seguidas.
Havia, sem dúvida, um quê de magia naquele ambien
te, e era
a paisagem que nos cercava; a paisagem da parte
norte de Pinar del
Río era uma paisagem vulcânica, com altas montanhas
de pedras
azuis que se erguiam do chão. Era uma paisagem aére
a, com uma
brisa leve e fina, como nunca pude sentir em Or
iente, que é um
lugar de terra escura e vegetação negra. Sim, sem q
ualquer dúvida,
apesar de tanto horror, era um consolo poder olhar para aquelas
montanhas aéreas, envoltas em neblina azul.
Comecei a escrever um diário, o Diário de Ociden
te", onde
contava os acontecimentos do dia: a conversa co
m um recruta, o
caso de outro que cortou o pé para conseguir cinco dias de folga;
outro que foi condenado a dez anos de cadeia.
O barracão onde nós, escravos, dormíamos, era um lugar cheio
de beliches colocados uns em cima dos outros, f
eitos de pau e lona,
com uma espécie de prateleira onde se guardavam o
s poucos
pertences do recruta: uma lata de leite condens
ado era um privilé-
gio, um caderno e um lápis eram objetos de luxo.
Durante as noites, era uma festa conseguir um pouco de açúcar,
apesar de estarmos numa plantação de cana muito pro
dutiva; que-
ríamos improvisar um café com a borra roubada da co
zinha, ou um
chá de folhas de laranja.
De dia, o barracão parecia uma espécie de hospit
al onde só
podiam ficar os doentes e o chefe, isto é, o home
m que vigiava os
outros. Esses pacientes eram pessoas a quem fal
tava um braço, ou
doentes graves que aguardavam transferência para
uma clínica ou
um hospital; isso podia demorar meses e às vezes nunca acontecia.
Durante o dia, podiam dormir ali os recrutas qu
e trabalhavam à
noite nos caminhões de transporte da cana. Esses
eram quase
privilegiados.
Um dia, mandaram-me ao jornalista regional -
todas as cen-
trais tinham seu jornalista local, encarregado de relatar o cumpri-
mento das metas - para que o ajudasse a redigir
uma informação
qualquer. Felizmente, terminamos cedo aquela ta
refa e pude ficar
à tarde no barracão, tomar banho e em seguida deitar-me debaixo
162
#
do mosquiteiro no meu beliche. A meu lado dormia um daqueles
caminhoneiros. Observei seu corpo magnífico, levantei o mosqui-
teiro para enxergar melhor e, pouco a pouco, percebi que sua calça
começava a levantar-se bem em cima do sexo; mas o recruta
continuava roncando ritmicamente. Levantei-me e peguei uma
cueca entre as centenas que se encontravam jogadas; com todo o
cuidado, deixei cair a cueca sobre as pernas do recruta. Isto me daria
o pretexto para chegar perto dele; para todos os efeitos, eu ia pegar
aquela roupa. Apanhei a cueca e nada aconteceu. Recomecei a
mesma manobra; e mais uma vez o rapaz, que continuava roncando,
esticou as pernas voluptuosamente e o membro ergueu-se, por
baixo do tecido rústico, em todo seu esplendor.
Não havia muitas possibilidades de realizar um ato erótico
pleno naquele lugar, mas, de qualquer maneira, debrucei-me sobre
aquele jovem e tivemos um encontro breve, porém intenso.
À noite, houve um temporal terrível que trouxe ainda mais
mosquitos, o que tornou a vida naquele lugar ainda mais infernal.
Como se não bastasse suportar os canaviais durante o dia, era
preciso participar da sua queima à noite. Tínhamos que acelerar as
metas porque era preciso chegar aos dez milhões de toneladas de
açúcar; a data limite se aproximava cada vez mais, e as possibili-
dades de alcançar a meta ficavam cada vez mais remotas. Assim, a
ordem oficial era queimar a fim de acelerar o processo de corte,
com as canas já desfolhadas pela ação do fogo.
A queima de um canavial à noite era um espetáculo horrivel.
Milhões de aves, insetos, répteis e toda sorte de seres, saindo
apavorados daquelas chamas, e nós tentando controlar o fogo, com
os corpos suados, ardentes e excitados.
No dia seguinte, tínhamos que penetrar na plantação recém-
queimada, como personagens medievais, cobertos de novas arma-
duras: botas, cinturões, capacetes com uma espécie de viseira de
arame para evitar que a cana queimada ferisse nossos olhos. E
começávamos a cortar sobre o solo fumegante, onde ainda havia
cana ardendo.
Até mesmo para beber um pouco de água tínhamos que pedir
permissão ao tenente, que nos vigiava como um capataz.
163
#
Às vezes, chegava algum visitante ilustre nos fins de semana,
um alto funcionário em seu Alfa Romeo, que fiscalizava os livros
e conversava com os chefes do barracão; em seguida, ia embora
de cara amarrada. Obviamente, estávamos longe dos dez milhões
de toneladas de açúcar. Os recrutas e camponeses comentavam
que era impossível alcançar tal cifra. Mas quem se atrevesse a
dizer tal coisa publicamente era tachado de traidor; até o próprio
chefe da indústria açucareira, um senhor chamado Borrego, foi
exonerado por Fidel Castro, porque, meses antes do fim da
colheita, disse que, tecnicamente, era impossível alcançar a cifra
de dez milhões de toneladas. No entanto, três meses mais tarde,
o próprio Fidel teve que reconhecer publicamente que não ha-
viam sido produzidos dez milhões de toneladas de açúcar; e
assim, todo aquele sacrifício fora inútil.
Os campos tinham sido devastados, milhares de árvores frutí-
feras e palmeiras-reais podadas para tentar produzir aqueles dez
milhões de toneladas de açúcar. As centrais, por tentarem dobrar
sua produtividade, também estavam arruinadas; era necessária uma
fortuna para consertar todas aquelas máquinas e reiniciar a produ-
ção agrícola. O país, absolutamente quebrado, era agora a província
mais pobre da União Soviética.
Castro, como sempre, recusou-se a reconhecer o erro e
tentou desviar a atenção do fracasso da safra para outras áreas,
dentre as quais seu ódio para com os Estados Unidos, que em sua
opinião eram os verdadeiros culpados. Naquela ocasião, inven-
tou-se a história de que uns pescadores tinham sido sequestrados
por agentes da CIA numa ilha do Caribe. De repente, toda aquela
multidão que cortara cana durante um ano devia agora se con-
centrar na praça da Revolução, ou em frente ao que tinha sido a
embaixada americana em Havana, para protestar pelo suposto
seqüestro dos pescadores. Era grotesco ver osjovens desfilando
e gritando horrores contra os Estados Unidos - onde talvez nem
se soubesse o motivo de tanta confusão. Lembro-me de ter
ouvido Alicia Alonso pronunciar as palavras mais grosseiras
contra o presidente Nixon; algo como: "Nixon, filho da puta,
devolva nossos pescadores."
164
#
Aquilo terminou como costumam terminar todas as tragédias
cubanas: numa espécie de rumba. Bonecos representando o
presidente Nixon eram queimados ao som dos tambores. Distri-
buíam-se comida e cerveja, coisas inexistentes no mercado; o
povo comparecia para comer batata frita ou outra coisa qualquer.
Por outro lado, as pessoas eram recrutadas por seus comitês de
defesa. Assim, de repente, o povo esqueceu o fracasso da safra.
O mais importante agora era conseguir que os pescadores, su-
postamente sequestrados, fossem devolvidos. Após uma semana,
os pescadores apareceram e Fidel pronunciou um discurso "he-
róico", onde dizia que conseguira intimidar os Estados Unidos,
que haviam devolvido os pescadores. Tudo aquilo era muito
patético e ridículo; se os pescadores tiveram algum problema,
foi simplesmente porque violaram os limites das águas territo-
riais de uma ilha, que nem pertencia aos Estados Unidos, e sim
à Inglaterra; após uma investigação mais detalhada, eles foram
devolvidos a Cuba. Mas o espetáculo teatral tem sido sempre
uma das brincadeiras praticadas por Castro. Dessa maneira,
aqueles pescadores voltaram como heróis, fugindo das garras do
imperialismo norte-americano.
Naquele ano, realizaram-se grandes festejos carnavalescos
nos quais foram gastos os poucos recursos econômicos ainda
restantes. Desfilaram carros gigantescos com animais de todo
tipo; alguns eram enormes aquários cheios de peixes tropicais,
em cima dos quais encontravam-se mulheres seminuas, dançan-
do ao som dos tambores. A festa prolongou-se por um mês e
houve cerveja à vontade, distribuía-se comida em cada esquina.
Era preciso esquecer a qualquer preço o ridículo pelo qual Cuba
acabava de passar: todo o esforço daqueles anos fora inútil e
éramos um país absolutamente subdesenvolvido, a cada dia mais
escravizado.
Desnecessário dizer que também curtimos aquele carnaval;
embora não fosse permitido usar máscaras nem fantasias, pelo
menos podíamos rir e nos embebedar; sabíamos que não se repetiria
e tínhamos de aproveitar ao máximo. A luxúria, depois de tanta
repressão, manifestou-se de forma brutal; os banheiros eram enor-
165
#
mes centros de fornícação; em meio ao cheiro de urina, todo mundo
chupava-se e transava. Houve um momento em que a polícia
passou a entrar naqueles mictórios públicos, descobrindo centenas
de homens nus possuindo-se em pleno carnaval, em meio a milhares
de pessoas que, subitamente, viam com espanto uma quantidade
imensa de homens excitados.
166
#
Olga Andreu
Muitos intelectuais, por essa época, começaram a pedir para
sair do país, pedidos esses indefinidamente adiados, enquanto eles
tinham que realizar tarefas agrícolas para sobreviver. As tertúlias
clandestinas tornavam-se cada vez mais perigosas e todos os escri-
tores iam em casas particulares onde podiam divulgar fragmentos
de suas obras. Uma dessas casas foi a de Olga Andreu, que corria
todos esses riscos porque considerava a literatura algo sagrado.
Acho que se Virgilio Pinera continuou escrevendo nos últimos anos
da sua vida foi graças ao estímulo de Olga Andreu: sabia que
naquela casa podia contar com um público que o admirava. Olga
sabia ouvir, o que é raro entre os cubanos; como não tinha preten-
sões literárias, ficava à margem de toda crítica implacável e de todo
elogio oportunista.
Na casa de Olga Andreu podia-se respirar livremente e ser
espontâneo. Há pouco fiquei sabendo que essa mulher suicidou-se
em Havana, atirando-se da varanda do pequeno apartamento onde
morava.
É claro que essas tertúlias foram suspensas em pouco tempo;
alguns dos participantes deixaram o país, outros tornaram-se fun-
cionários do regime castrista. Outros ainda, como Pepe el Loco,
suicidaram-se na Ilha ou no exílio, como Calvert Casey.
O mundo de Olga Andreu, em seus últimos anos, era povoado
de fantasmas queridos, desaparecidos tragicamente. Sua morte
167
#
talvez tenha sido um ato de afirmação; há momentos em que o fato
de continuar vivendo corresponde a rebaixar-se, comprometer se,
morrer de puro tédio. Olga quis penetrar nessa região atemporal,
onde a Segurança do Estado não pode mais definir seus parâmetros,
com toda sua jovialidade e dignidade intactas.
Naquela época, os parâmetros de muitos artistas não estavam
ainda bem definidos. O governo sabia que conspiravam, pelo
menos verbalmente. A casa de Lezama Lima era outro centro de
reunião literária, onde esse homem, sempre muito correto e justo,
dava conselhos sábios, ou recomendava um bom livro. Virgilio
Pinera também frequentava as tertúlias na casa de Olga Andreu, ou
lia na casa de Jorge Ibánez, neto de Juan Gualberto Gómez.
A casa de Ibánez era solitária e ficava nos arredores de Havana,
uma das poucas casas do século XVIII ainda intactas, com enormes
jardins e vegetação luxuriante. Entrar naquela casa era como chegar
a um lugar que a Revolução de Castro não parecia ter alcançado.
As tertúlias começavam à meia-noite. Com toda certeza, já havia
agentes da Segurança do Estado infiltrados; escritores que se trans-
formaram em informantes, como logo descobrimos; era o caso de
Miguel Barnet, Pablo Armando Fernández e César López. Tudo o
que se lia num daqueles lugares, no dia seguinte já era do conheci-
mento da Segurança do Estado.
A perseguição intensificava-se, e o povo queria cada vez mais
conhecer as obras dos escritores proibidos; Lezama tornou-se muito
popular, e algumas pessoas sabiam de cor os versos proibidos de
Padilla. O mais perigoso para o regime era a grande quantidade de
jovens que seguiam esses escritores dissidentes e, por esta razão,
era necessário desmoralizá-los para que não se transformassem em
símbolo; era necessário humilhá-los e diminuí-los.
168
#
O "Caso" Padilla
A Segurança do Estado escolheu Heberto Padilla como bode
expiatório. Padilla tinha sido o poeta irreverente que se atrevera a
apresentar, para um concurso oficial, um livro critico intitulado
Fuera deljuego.
No exterior já se tornara uma atração internacional, e era
necessário portanto destruí-lo, assim como todos os outros intelec-
tuais cubanos que tivessem atitudes semelhantes.
Em 1971, Padilla foi preso com sua esposa, Belkis Cuza Malé.
Foi trancado numa cela, ameaçado e surrado; trinta dias depois, saiu
daquela cela transformado em farrapo humano. Quase todos os
intelectuais cubanos foram convidados pela Segurança do Estado,
por intermédio da UNEAC, a ouvir Padilla. Sabíamos que estava
preso, e ficamos surpresos com sua aparição. Lembro-me de que a
UNEAC estava rigorosamente vigiada por policiais em trajes civis;
só podiam entrar para ouvir Padilla as pessoas que constassem de
uma lista, minuciosamente checada. A noite em que Padilla fez sua
confissão foi uma noite sinistra e inesquecível. Aquele homem
vital, que escrevera lindos poemas, arrependia-se de tudo o que
havia feito, de toda a sua obra anterior, renegando-se a si próprio,
intitulando-se de covarde. miserável e traidor. Dizia que, durante o
tempo em que estivera preso pela Segurança do Estado, entendera
a beleza da Revolução e escrevera poemas dedicados à primavera.
Padilla não só retratava-se de toda a sua obra anterior, como
169
#
também delatava publicamente todos os seus amigos e até sua
esposa, os quais, segundo ele, também tiveram uma atitude contra
revolucionária. Padilla dava o nome de todas essas pessoas, uma
por uma: José Yanes, Norberto Fuentes, Lezama Lima. Mas Leza-
ma recusou-se a assistir àquela retratação. Enquanto Padilla conti-
nuava citando os escritores "contra-revolucionários", Virgilio Pi-
nera levantou-se da cadeira e sentou-se no chão para que não o
vissem. Todas as pessoas citadas como contra-revolucionárias por
Padilla, entre socos no peito e lágrimas nos olhos, tinham que vir
até o microfone perto de Padilla, assumir sua culpa e reconhecer
que eram abjetos traidores do sistema. Tudo foi filmado pela
Segurança do Estado e o filme percorreu todos os meios intelectuais
do mundo, sendo exibido especialmente a todos aqueles que haviam
assinado uma carta em protesto contra a prisão injusta de Padilla.
Entre estes estavam Mario Vargas Llosa, Octavio Paz, Juan Rulfo
e inclusive o próprio García Márquez, hoje transformado numa das
estrelas mais importantes de Fidel Castro.
Sucessivamente, passaram diante do microfone, fazendo sua
confissão, todos aqueles escritores. Ade Pablo Armando Fernández
foi extensa e lamentável; ele se acusava de uma maneira ainda mais
violenta que Heberto Padilla. César López também estava lá, e
confessou todos os seus erros ideológicos. Norberto Fuentes fez o
mesmo, só que porém, já no final, quando tudo parecia concluído
tal como previsto pela Segurança do Estado, pediu a palavra e
voltou ao microfone. Disse não concordar com o que estava acon-
tecendo ali, que Padilla encontrava-se numa posição muito difícil
e que não tinha outro jeito senão fazer aquela confissão. Mas ele,
Norberto, não pensava assim, pois havia trabalhado duro e, como
escritor, estava morrendo de fome. Além do mais, não se conside-
rava um contra-revolucionário só por ter escrito vários livros de
contos, fictícios ou críticos. Terminou dando um soco na mesa, e
os membros da Segurança presentes se levantaram e vi alguns deles
procurando as armas. Norberto Fuentes foi calado com gritos e
ameaças.
Enquanto acontecia esse vergonhoso espetáculo da confissão
de Padilla, o governo de Castro organizava o I Congresso de
170
#
Educação e Cultura, que tratava exatamente do oposto do que o
nome expressava; obviamente, o que se queria era acabar com toda
a cultura cubana. Ali foram ditadas regras até a respeito da moda,
que era considerada como uma forma de diversionismo ideológico
e uma sutil penetração do imperialismo norte-americano.
A mais violenta perseguição daquele congresso foi dirigida
contra os homossexuais. Foram lidos textos rotulando o homosse-
xualismo como um caso patológico e, mais importante, dizia-se que
todo homossexual ocupando um cargo em órgãos culturais seria
imediatamente exonerado. Teve início a chamadaparametraje, isto
é: cada escritor, cada artista, cada dramaturgo homossexual recebia
um telegrama informando-o de que não reunia os parâmetros
políticos e morais para o bom desempenho do cargo que ocupava
e, portanto, perdia seu emprego e tinha que ir para um campo de
trabalhos forçados, onde executaria outra tarefa.
Trabalhar na agricultura como coveiro eram as ofertas de
trabalho feitas aos intelectuais "parametrados". Era evidente que
as trevas desciam sobre todos os intelectuais cubanos. Naquele
momento, já era impossível pensar em abandonar o país; desde
1970, Castro proclamara que todos que desejavam sair do país já o
tinham feito; Castro transformou a Ilha em prisão de segurança
máxima, onde todos, segundo ele, sentiam-se felizes em permane-
cer.
Todo artista com um passado homossexual ou algum deslize
político corria o risco de perder o cargo. Lembro-me do caso dos
Camejo, que fundaram uma das instituições artísticas mais impor-
tantes de toda a Ilha, o teatro Guinol. De repente, assim como quase
todos os atores que integravam aquele grupo, eles foram "parame-
trados" e o teatro destruído.
Agentes da Segurança, como Héctor Quesada ou o tenente
Pavón, eram agora os responsáveis pela caça às bruxas. Recome-
çaram as prisões e apareceram de novo os lindos rapagões da
Segurança do Estado, disfarçados de bichas obsequiosas para pren-
der qualquer um que olhasse para eles.
Um dos escândalos mais badalados daquele período foi a prisão
de Roberto Blanco e seu julgamento público. Ele era um dos
171
#
diretores teatrais mais importantes de Cuba, entre os anos sessenta
e setenta; mas cometera a imprudência de olhar para o falo ereto de
um daqueles lindos rapazes. Algemado e com a cabeça raspada, foi
levado para umjulgamento público que aconteceu no mesmo teatro
onde ele era diretor.
A humilhação pública tem sido um dos métodos mais utilizados
por Castro; a degradação das pessoas diante de um público sempre
disposto a zombar de qualquer fraqueza alheia ou de qualquer
pessoa caída em desgraça. Não bastava ser acusado, era preciso se
arrepender, bater no peito diante do público que ria e aplaudia.
Depois, naturalmente, de cabeça raspada e algemados, os acusados
tinham que se purificar das fraquezas num campo de cana ou com
qualquer outro trabalho agrícola.
As detenções sucediam-se. Escritores agraciados com prêmios
nacionais de poesia eram subitamente condenados a oito anos de
cadeia por diversionismo ideológico, como foi o caso de René
Ariza. Outro premiado também condenado a trinta anos de cadeia
foi José Lorenzo Fuentes. Beny também tinha sido preso por
corrupção de menores ou algo parecido, e encontrava-se então num
campo de trabalhos forçados. Alguns, é claro, tentavam fugir do
país, fosse como fosse. Esteban Luis Cárdenas tentou atirar-se de
um edifício e cair na embaixada argentina; caiu no pátio da embai-
xada, mas as autoridades cubanas, pouco dispostas a respeitar
qualquer tratado diplomático, entraram e ele acabou sendo preso.
Quantos jovens não morreram (e continuam morrendo) afoga-
dos, tentando atravessar o estreito da Flórida ou, simplesmente,
baleados pela guarda costeira da Segurança do Estado? Outros
optaram por uma forma de fuga mais segura, ou seja, o suicídio.
Foi o caso da poetisa Martha Vignier, que se atirou do telhado de
casa, caindo despedaçada sobre a calçada.
Naquele período, talvez sobrassem pouquíssimas opções para
os escritores ou para qualquer outra pessoa. Vivíamos num Estado
policial, e o mais prático para muita gente foi virar polícia; Pepe
Malas, Hiram Prado e Oscar Rodríguez subitamente transforma-
ram-se em informantes do regime. Outros, apesar de todos os
172
#
obstáculos, queriam continuar escrevendo reunidos em pequenos
grupos, como o do parque Lenin, que formei com os irmãos Abreu.
Certa vez, tive tanta necessidade de ler um conto que alugamos
um barco na praia Patrice Lumumba, quando ainda era permitido.
Enquanto navegávamos bem perto da praia, já que não podíamos
ir muito longe, li aquele conto para Reinaldo Gómez Ramos, Jorge
Oliva e os irmãos Abreu.
Agora não se tratava apenas de esconder os textos e mandá-los
para o exterior no momento adequado; tratava-se também de sair-
mos do país; sair a nado, atravessando a base naval de Guantánamo,
infiltrando-nos num avião clandestinamente, o que era praticamen-
te impossível.
Contava-se que alguém tinha construído, com uma cadeira da
sorveteria Coppelia e um ventilador gigantesco, uma espécie de
helicóptero com o qual conseguira passar sobre a cerca da base de
Caimanera, indo cair em território norte-americano.
Uns tiveram mais sorte naquela época, como foi o caso de Jorge
Oliva e Nica, que fugiram a nado para a base de Guantánamo.
Quando soubemos do fato, já se encontravam em Nova York.
Comentava-se que Jorge Oliva enviara um telegrama para Jorge
Guillén, no qual dizia: "Você não costumava dizer que eu era
piranha? Pois bem, fui embora a nado."
Felizmente, durante todos esses anos, minha amizade com
Jorge e Margarita Camacho foi indestrutível. Eles sempre deram
umjeito para que eu recebesse uma carta de consolo e, muitas vezes,
através de algum turista francês, mandavam-me uma camisa, um
par de sapatos, um lenço ou um perfume. Estes presentes se
tornaram um símbolo de vida para mim, só pelo fato de terem
chegado de uma região livre; tinham até um cheiro diferente. Ao
usar essas roupas, eu caminhava de modo diferente; até certo ponto,
isso me tornava um pouco mais livre também, me colocando em
contato com um mundo onde ainda era possível respirar. O mais
impressionante de tudo, porém, era quando um daqueles turistas, a
quem tínhamos contado nossos horrores, voltava para casa. Aquela
pessoa transformava-se, para nós, numa espécie de ser mágico pelo
único fato de poder pegar um avião e sair de Cuba, sair daquela
173
#
cadeia. Com que inveja víamos Olga atravessando a barreira de
vidro, só possível de ser transposta por quem tivesse uma licença
especial de saída, ou pelos estrangeiros que vinham visitar o país.
Olga se perdia por trás daquelas vidraças, e corríamos todos até o
terraço, de onde podíamos vê-la subindo a escada do avião. Era um
prazer imenso poder pensar em subir no avião e deixar aquele
inferno para trás. Quando o avião começava a subir, nós o víamos
desaparecer entre as nuvens, lotado de gente que podia ir embora,
não ligar para tudo o que se passava aqui, dizer o que bem quisesse,
comprar um par de sapatos novos. Mas nós ficávamos ali mesmo,
formando uma imensa fila para pegar a condução que nos levaria
para Havana, olhando para nossas calças de tecido grosseiro e nossa
pele ressecada pelo sol e a falta de vitaminas.
174
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Uma Visita a Holguín
Uma das poucas escapadas que eu ainda podia realizar
naquele período era visitar minha mãe em Oriente. E chegar lá era
uma verdadeira odisséia. Tinha-se de ficar na fila para pegar o trem
permanentemente lotado, apesar da passagem comprada com vá-
rios meses de antecedência. E chegando a Holguín, eu via aquele
povoado cheio de lojas fechadas, e grupos de camponeses dormin-
do dias seguidos na porta dessas lojas para conseguir comprar um
par de sapatos.
Antes de entrar na casa onde morava minha mãe, eu sempre a
imaginava no portão ou na rua, varrendo. Ela possuía esse dom de
varrer com tanta delicadeza, como se o que importasse não fosse
tirar o lixo e sim passar a vassoura. Sua maneira de varrer era como
um símbolo; tão aérea, tão frágil, com aquela vassoura que não
limpava nada, mas que, por um costume ancestral, tinha de conti-
nuar utilizando. Talvez quisesse varrer assim o horror que a acom-
panhara durante toda a vida, tanta solidão, tanta miséria, e eu, seu
único filho, transformado em homossexual, em desgraça, em escri-
tor perseguido.
Mesmo agora posso vê-la resignada e triste, movimentando-se
com aquela vassoura no portal de madeira, o olhar fixo no hori-
zonte, esperando o amante, ou noivo, aquele homem que a seduzira
um dia e que nunca mais voltara.
O pesadelo de minha mãe era que eu fosse parar na cadeia.
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Costumava dizer que eu devia casar, sempre que ia visitá-la. Seu
pedido era tão triste e tão absurdo! Acabei deixando-me convencer
por suas palavras. Por que não dar àquela mulher, que tivera tão
poucos prazeres, uma última satisfação? Ela me dizia que tivera um
filho para não ter de passar a velhice tão sozinha. E eu voltava para
Havana ainda mais triste do que antes.
Minha tia queria expulsar-me a qualquer preço da sua casa e
criava todo tipo de problemas com os vizinhos. Contava que eu
trazia homens para o meu quarto, que era contra-revolucionário e
que se o quarteirão estava cheio de ladrões, era por causa das
minhas amizades. Com toda certeza, minha tia roubava as poucas
coisas que eu ainda possuía, as roupas que Jorge e Margarita me
mandavam do exterior. Seu marido, um homem gordo e grotesco,
era membro do Partido Comunista; sempre achei que era um veado
enrustido, e era por isso que ficava furioso cada vez que via um
daqueles lindos recrutas ou bolsistas entrando no meu quarto.
Minha tia o traía com todos os homens disponíveis, mas não havia
muitos: o dono de uma loja, um velho que tinha sido expropriado,
o marido de Gloria, uma de suas melhores amigas, que também
trabalhava para a Segurança do Estado. Enquanto minha tia fazia
amor com esses homens no quarto, meu tio Chucho lavava os pratos
na cozinha.
Seus dois filhos já eram rapazes; o maior estava casado e o
outro, embora homossexual, também queriacasar-se, pois não tinha
outra escolha. Desta forma, eu precisava deixar o quartinho onde
morava naquela casa.
Minha tia não era apenas mexeriqueira, luxuriosa, intrigante,
como também muito cruel. Era como um personagem picaresco;
por exemplo, quando se mudou para aquela casa, em Miramar,
conseguida graças a um alto funcionário do governo de Castro, a
primeira coisa que fez foi "limpar" todas as casas vizinhas. Elas
tinham pertencido à burguesia rica que fugira para o exterior.
Aquela área fora declarada "congelada" e só a administradora
regional, Noelia Silvia Fonseca, estava autorizada a entregar uma
dessas casas; no entanto, eram necessários tantos documentos que
durante anos, em sua grande maioria, permaneceram fechadas.
176
#
Minha tia, tirando proveito da situação, entrava de noite com os
filhos e roubava tudo o que conseguia.
Os blecautes eram comuns em Havana; o governo cortava a luz
durante a noite para economizar energia. Minha tia aproveitava-se
daqueles blecautes para invadir as residências desertas e apoderar-
se de tudo que encontrava. Certa noite, ao atravessar a rua com
um aparador cheio de louça e copos de cristal, a luz voltou e minha
tia começou a correr, largando o aparador no meio da rua. A própria
polícia estranhou quando encontrou aquele móvel em plena Quinta
Avenida, mas nunca ficou sabendo que tinha sido minhatia aautora
daquela façanha.
O ato mais cruel que ela cometeu não foi comigo, e sim com
uma velha, sua vizinha. Essa senhora tinha todos os filhos no
exterior e ficara sozinha em casa, com uma filha retardada. Minha
tia, que era presidente do Comitê de Defesa e, segundo ela mesma
afirmava, alta informante da Segurança cubana, prometeu àquela
velha senhora que providenciaria sua saída do país em troca de
todos os seus móveis. A casa da senhora ficou completamente vazia.
Era a mãe de Alfonso Artime, famoso preso político. O governo
pensava que Artime fosse voltar algum dia para ver a mãe clandes-
tinamente, e queria prendê-lo nessa oportunidade; por essa razão,
aquela pobre senhora nunca poderia ir embora. Minha tia, enquanto
prometia ajudá-la a fugir, passava informações espantosas à Segu-
rança do Estado, para que nunca a deixassem partir. A velha morreu
em Cuba, numa casa absolutamente vazia; todos os seus móveis
foram parar na casa da minha tia.
Eu receava tanto a polícia quanto a vigilância de minha tia, a
qual, para mim, acabava sendo muito mais perigosa. Dessa forma,
nos últimos anos em que morei naquela casa, tudo o que eu escrevia
durante o dia tinha que ser rapidamente escondido debaixo do
telhado.
Naquele ano,1972 ou 1973, eu já era conhecido no exterior
pelas minhas obras El mundo alucinante e Celestino antes del alba,
traduzidas em várias línguas, e também por minhas crônicas. Fre-
qüentemente, as editoras me mandavam cartas que eu nunca rece-
bia; minha tia, encarregada de pegar a correspondência, intercep-
177
#
tava tudo. Outras vezes, a Segurança do Estado nem lhe dava tempo
de realizar sua atividade "heróica", e nem permitia que as cartas
chegassem às suas mãos.
Quando Hiram Prado foi mandado para um campo de concen-
tração em Oriente, escreveu-me constantemente, fazendo não ape-
nas referência às suas aventuras eróticas como também às minhas.
Certo dia, um tenente da Segurança, Vladimir Cid Arias, meu primo
por afinidade e amigo íntimo da minha tia, foi até meu quarto e
disse: "Reinaldo, você precisa sair dessa casa porque tem sido
completamente imoral; aqui está a prova." E me mostrou uma carta
de Hiram Prado endereçada a mim; era uma carta que eu nunca
havia lido, pois nunca a recebera. Minha tia tomara a liberdade de
abri-la, ler o conteúdo e chamar aquele primo para me expulsar do
quarto. Foi demais. Fiquei revoltado e disse que tal fato represen-
tava uma violação da minha privacidade. Apesar de saber que era
absurdo, eu também disse que chamaria a polícia e acusaria os dois
de violação de correspondência. Finalmente, embora não me de-
volvesse a carta, ele disse que preferia não se meter naquele negócio
sujo.
Minha tia também exercia rígida vigilância sobre os adolescen-
tes que vinham me visitar. Quando um deles pulava o muro para
entrar no meu quarto, ela saía com uma vassoura e, aos berros,
ameaçava chamar a polícia.
Dentre os poetas que me visitavam na ausência de minha tia,
estava Guillermo Rosales, então um belo rapaz que escrevera um
romance maravilhoso e planejava escrever outros cinqüenta, cujos
temas eram, na verdade, excelentes. Uma vez, Guillermo sentava-
se na varanda do meu quartinho, esperando que eu terminasse um
capítulo, quando chegaram também Nelson Rodríguez e Jesús
Castro Villalonga, ambos escritores.
Ao terminar o capítulo, que devia pertencer ao romance El
palacio de las blanquisimas mofetas, passei da agonia que estava
escrevendo à agonia dos meus amigos que estavam desesperados;
Guillermo queria fugir da Ilha, nem que fosse num balão; sempre
tinha planos incríveis: sair numa balsa conduzida por peixes velo-
zes; vestir-se como Nicolás Guillén e tomar um avião, pois ele era
178
#
o único escritor cubano que viajava livremente para qualquer país.
Na verdade, quando Padilla foi preso, chegamos a pensar no
sequestro de Nicolás Guillén, em troca da liberdade de Padilla, que
seria colocado num avião para o exterior. Era uma idéia minha, mas
totalmente descabida num país comunista. Se não atendessem
nosso pedido, mandaríamos a cabeça de Guillén ao administrador
da UNEAC, o temível Bienvenido Suárez.
Além de ser uma loucura, Padilla não nos deu tempo de
realizá-la. Convém deixar claro aqui que Nicolás Guillén, certa-
mente a par do que ia acontecer na UNEAC, teve pelo menos a
dignidade de não estar presente quando da confissão de Padilla; de
fato, na qualidade de presidente da UNEAC, cabia a ele essa tarefa.
Um mês antes, ficou "doente", de repente, e internou-se num dos
hospitaís oficiais, reservados para os altos funcionários do governo
de Cuba. Guillén permaneceu trancado e não saiu até que Padilla
fizesse aquela famigerada confissão.
O encarregado de dirigir todo aquele teatro sujo foi José Anto-
nio Portuondo, uma das figuras mais sinistras de toda a cultura
cubana, junto com Roberto Fernández Retamar.
179
#
Nelson Rodríguez
A inquietação de Guillermo Rosales naquela tarde em minha
casa devia-se ao desejo de ler um capítulo de um romance que
estava escrevendo, inspirado na personalidade de Stalin. Ele leu
rapidamente e foi embora. Nelson e Jesús convidaram-me para dar
um passeio na praia. Nelson estivera num campo de concentração
em 1964, e agora, com a nova onda de perseguições, andava
apavorado; não tinha forças para passar novamente por todo aquele
horror. Disse que precisava da minha ajuda, pois queria sair do
país;
não me contou de que maneira pensava executar seu plano. A ajuda
que Nelson precisava era do tipo intelectual; queria que eu escr
e-
vesse uma carta recomendando um livro de contos seus. Tratava-se
de um livro extraordinário constituído de vários capítulos, onde ele
narrava fatos ocorridos no campo de concentração onde estivera
preso.
Fui para casa, fiz a carta e depois seguimos até a UNEAC, onde
eu tinha de assinar um livro de ponto para poder receber meu
salário. Já não podia escrever para a UNEAC; nem me deixavam
fazer a revisão dos textos publicados no La Gaceta de Cuba; no
entanto, como ainda não fora despedido, precisava assinar aquele
livro. Depois disso, Nelson e Jesús me convidaram para tomar
sorvete no El Carmelo da rua Calzada; ficamos numa fila imensa
e, finalmente, conseguimos sentar. Pouco se podia falar num res-
taurante cubano, onde a gente não sabia quem estava ao nosso lado
180
#
e podia ouvir nossa conversa; mas observei que Nelson queria ficar
mais. Num dado momento, ele disse: "O único que poderia nos
salvar dessa situação seria São Heberto." Ele chamava Heberto
Padilla assim enquanto estava preso; mas Padilla já não era mais
santo; tinha-se convertido, diante de todo aquele público, num
traidor. Agora, só nos resta fugir do país. É o que vou fazer", disse
ele ao sairmos.
Andávamos pelas ruas do Vedado criticando tudo, até o sol, o
calor; tudo nos incomodava. Nelson estava muito agradecido pela
carta que eu escrevera para ele; era uma recomendação para meu
editor na França. Finalmente, à noite, nos abraçamos e despedimos.
Durante a noite inteira, tive a impressão de que Nelson queria me
dizer mais alguma coisa, mas não teve coragem.
Dois dias depois, na primeira página do jornal Granma, lia-se
a seguinte notícia: "Dois contra-revolucionários homossexuais,
Nelson Rodríguez e Angel López Rabí, tentaram desviar um avião
da companhia aérea Cubana Aviación rumo aos Estados Unidos."
A nota dizia que todos os passageiros do avião haviam reagido
contra aqueles dissidentes, que foram prontamente controlados.
Acrescentava também que um dos contra-revolucionários jogara
uma granada, mas felizmente o avião fizera um pouso de emergên-
cia no aeroporto José Martí; os contra-revolucionários seriam con-
denados por um tribunal militar. Isso era tudo que dizia o jornal;
obviamente, não queriam dar ao fato nenhum tipo de publicidade,
omitindo que se tratava de dois escritores.
Fiquei apavorado. Nelson devia ter levado minha carta de
recomendação para seu manuscrito sobre os contos da UMAP
Depois, soubemos como tudo aconteceu. Nelson, seu amigo Angel
López (um poeta de dezesseis anos) e Jesús Castro compraram
bilhetes para um vôo doméstico, em direção a Cienfuegos. Toma-
riam o avião com todas suas malas e seus velhos livros, com o
objetivo de ir até os Estados Unidos. Jesús e Nelson, durante o
serviço militar, tinham roubado umas granadas e o plano consistia
em ameaçar os pilotos do avião com essas granadas, se não des-
viassem o rumo. No entanto, na última hora, Jesús Castro ficou com
medo, arrependeu-se e não pegou o avião. Quando este decolou,
181
#
Nelson pegou as granadas e disse aos passageiros que se o avião
não mudasse o rumo, ele as lançaria. Imediatamente, vários agentes
da Segurança e a escolta oficial fortemente armada que costuma
viajar em todo avião cubano agarraram Nelson para matá-lo. Um
dos passageiros, cujo nome prefiro não mencionar, pois ainda mora
em Cuba, contou-me toda a história. Nelson corria pelo avião com
a granada, colocando-a atrás dos passageiros aterrorizados como
forma de ameaça, enquanto seus perseguidores tentavam acertar
um tiro nele. Nelson gritou para Angel jogar a granada, mas este
ficou com medo e Nelson jogou a sua. Um dos chefes da Segurança
atirou-se sobre a granada para abafá-la, mas não conseguiu. A
explosão provocou um enorme rombo no avião, que já se encontra-
va numa altitude considerável. Quando o avião conseguiu aterris-
sar, Nelson aproveitou-se da confusão e atirou-se pelo buraco. As
hélices o feriram e durante um ano ele teve de permanecer hospi-
talizado em estado grave. Quando os médicos da Segurança conse-
guiram curá-lo, foi condenado à morte e fuzilado, junto com o
amigo Angel López, de apenas dezesseis anos.
Jesús Castro Villalonga, que não tomara o avião, mas estava a
par do plano, foi condenado a trinta anos de cadeia.
Os passageiros que permaneceram sentados, sem colaborar
com a polícia castrista, foram presos como suspeitos e submetidos
a uma investigação. Acho que também queriam que o avião fosse
sequestrado.
Quanto à minha carta, imagino que tenha desaparecido em
meio à explosão provocada pela granada e no incêndio que se
seguiu. Talvez a Segurança a tenha guardado para acumular mais
provas contra mim. Eles sabiam que podiam me prender a qualquer
momento.
Ainda em Cuba, escrevi uma crônica sobre as experiências de
Nelson nos campos de concentração, intitulada Arturo, a estrela
mais brilhante, e a dediquei a ele. Dizia assim: "A Nelson, no ar."
Depois, no exílio, escrevi um poema no qual pedia aos deuses que
Nelson permanecesse sempre assim, com a granada na mão, fugin-
do da Ilha. Não sei se terão atendido ao meu pedido.
Minha tia, logicamente, estava a par da intenção de Nelson em
182
#
fugir da Ilha. Agora, na sua opinião, eu não só era um veado
contra-revolucionário, como também estava vinculado a terroristas
que desviavam aviões com granadas na mão. De qualquer maneira,
era preciso que eu saísse daquela casa, mas não tinha para onde ir.
Em Cuba, todas as casas pertencem ao Estado; conseguir um
simples apartamento representa um privilégio concedido apenas
aos altos funcionários. Obter uma televisão ou uma geladeira exigia
vários anos no corte da cana, acumulando méritos no trabalho e na
política, e ter uma conduta irrepreensível. Eu não tinha nenhum
desses atributos e minha conduta estava longe de ser irrepreensível.
Entretanto, aquela área estava cheia de residências vazias,
embora algumas delas estivessem ocupadas por estudantes bolsis-
tas que vinham do campo e ficavam felizes de poder morar naquelas
casas luxuosas de Miramar, as quais foram lenta mas minuciosa-
mente destruídas. Certa vez, minha tia e eu ouvimos um grande
barulho: as estudantes camponesas estavam quebrando todas as
janelas de madeira de uma mansão a fim de fazer uma fogueira no
pátio para ferver a roupa e desinfetá-la. Assim, muitas partes mais
elegantes daquelas residências, assim como seus móveis, foram
transformadas em combustível.
183
O Casamento
Perto da casa da minha tia, havia um quarto em uma das
residências abandonadas; quem quer que tivesse morado ali já
falecera há muitos anos; ninguém o ocupava. Pedi o quarto por
intermédio da UNEAC, mas só podia ser cedido a uma pessoa
casada, conforme me informou Bienvenido Suárez, um marginal
que chegava, às vezes, a ser gentil e delicado. A Revolução não
daria um quarto a um homossexual para que ele levasse homens
para lá; era isso, obviamente, que Bienvenido Suárez queria me
dizer. Eu precisava procurar uma mulher, casar e fazer o pedido
formal à Sra. Noelia Fonseca, administradora regional.
Ingrávida Félix era uma atriz de talento que tivera excelente
atuação em La noche de los asesinos, peça de José Triana e dirigida
por Vicente Revuelta. Também atuara num dos filmes cubanos mais
famosos daquele período, Lucia, de Humberto Solás. Ela gostava
de homens, não era lésbica; era uma mulher divorciada, cuja vida
particular não podia ser classificada de imoral pelo fato de ter
amantes. No entanto, o puritanismo castristadesconfiava igualmen-
te das mulheres solteiras, com vida particular um tanto liberal. Po
r
essa razão, Ingrávida foi "parametrada" e despedida do emprego,
apesar do seu enorme talento como atriz. Nesse corte entrou até a
cantora Alba Marina, porque tinha um amante vinte ou trinta anos
mais jovem que ela.
Naqueles anos, tornaram-se notórias as prisões de mulheres nas
184
#
pousadas. Eram lugares criados pela Revolução onde os heterosse-
xuais podiam alugar um quarto por umas horas e fazer amor. A
polícia, no entanto, costumava invadir esses locais para descobrir
quais as mulheres que cometiam adultério e, principalmente, se
eram esposas de algum militante do Partido Comunista. Elas so-
friam punições e eram até afastadas do emprego; os maridos eram
imediatamente informados, numa assembléia pública.
Dessa maneira, a mulher e o homossexual são considerados no
sistema castrista como seres inferiores. Os verdadeiros machos
podiam ter várias mulheres e isso era visto como um ato de
virilidade. Por essa razão, mulheres e homossexuais uniram-se,
mesmo que apenas para se proteger, sobretudo quando se tratava
de uma mulher como Ingrávida Félix, que também sofrera perse-
guições pela mesma fraqueza: gostar de homens. Assim, quando
contei toda a minha situação, ela aceitou casar se comigo e pedir
aquele quarto. Por outro lado, tinha dois filhos e não sabia o que
fazer para alimentá-los; eu, com meu salário da UNEAC, ajudava-a
economicamente. Virgilio Pinera organizava contribuições para
que ela e os filhos não morressem de fome. Com a autorização para
compras que dão em Cuba às pessoas que vão casar, adquirimos
algumas roupas e coisas essenciais e nos casamos.
O padrinho de casamento foi Miguel Figueroa, que queria,
naquela noite mesmo, ir para a cama com Ingrávida para que eu
ficasse com Olga; Miguel, coitado, sempre procurava um homos-
sexual para ficar com a esposa. Não aceitei porque queria ir des-
cansar na praia; outro extraordinário privilégio dos que se casam é
poder alugar uma casa na praia por quatro ou cinco dias.
Ingrávida, finalmente, aceitou ir com Miguel para um hotel, ou
talvez para a casa onde ele morava com Olga. Ela me disse que, no
dia seguinte, nos encontraríamos na praia. Ao lado da casa havia
um grupo de rapazes e, enquanto aguardava minha esposa, fiz
amizade com um deles. Revelei que estava esperando por minha
esposa com quem acabara de casar, o que o excitou ainda mais.
Tivemos uma relação inesquecível, embora ele, talvez por eu estar
recém-casado, resolvesse desempenhar o papel de passivo. De
185
#
qualquer forma, era um rapaz muito viril, e não dava para entender
sua atitude.
Quando Ingrávida chegou, eu já tinha um amante, que aliás
mostrou-se ciumento diante da beleza da minha esposa; Ingrávida
era uma mulher belíssima. Chegou com os filhos, que nunca tinham
brincado perto da praia. Havia uma espécie de playground e passa-
mos o dia brincando com as crianças, sob o olhar desconfiado do
meu jovem amante.
Ali mesmo na praia redigimos a carta para Noelia Silva Fonse-
ca, solicitando o quarto. Corria o boato de que essa mulher era
amante de Celia Sánchez. O texto da carta era bastante patético e
apelava para a condição de mulher revolucionária de Noelia. De
qualquer forma, o quarto e todos os nossos planos não passaram
disso: apenas planos.
Noelia nunca se preocupou em nos dar uma resposta. Continuei
morando no quarto de empregada da minha tia, sempre ameaçado
de ir para a rua ou para a cadeia. No final, Ingrávida ficou grávida,
sem saber de quem; ignorávamos se a criança que ia nascer seria
um mulatinho, ou um negrinho, ou até mesmo um chinesinho. Sua
situação econômica tornou-se desesperadora e, pelo fato de estar-
mos casados, eu teria de assumir aquela criança de acordo com a lei.
Sentia-me perseguido, e com toda a razão. Às vezes, quando
estava escrevendo, a polícia estacionava o carro bem debaixo do
meu quarto e ficava ali horas a fio; era como uma advertência ou
uma maneira de me intimidar. Agora, Miguel Figueroa, Jorge
Dávila e eu só nos reuníamos perto da praia, onde não houvesse
nenhum policial para nos ouvir. Olga regressara a Paris e Miguel
encomendara pés-de-pato e equipamentos de mergulho para fugir,
nem que fosse a nado; depois de estar em mar aberto, conseguiria
ser recolhido por um barco qualquer, fosse para onde fosse.
Certa vez, na casa de Lezama, fiquei sabendo que uma mulher
se atirara ao mar, do Malecón, para alcançar um barco grego que
saía do porto. Os gregos ajudaram-na a subir a bordo, depois
chamaram a polícia cubana para entregá-la. Nada tinham a ver,
186
#
obviamente, com aqueles gregos tão clássicos que travaram a
guerra de Tróia.
Às vezes, as pessoas eram presas sem nenhuma prova concreta
de que pretendiam fugir do país. BaStava terem feito um simples
comentário ou cultivado certos planos. Foi o caso, por exemplo, de
Julián Pontes, que contara a amigos que pretendia pedir asilo
numa embaixada latino-americana; esses amigos eram informantes
da Segurança e estimularam-no a se aproximar da embaixada da
Argentina; ele nem chegou até a calçada da embaixada, pois foi
preso antes.
Foi uma das coisas mais horríveis que o castrismo conseguiu:
romper os laços de amizade, fazer com que desconfiássemos dos
nossos melhores amigos, transformá-los em informantes, em tiras.
Eu já desconfiava de muitos amigos meus.
O mais dramático de tudo foi que muitas pessoas se tornaram
vítimas da chantagem e do próprio sistema, até perderem sua
própria condição humana.
Finalmente, Ingrávida deu à luz um menino branco e de olhos
bem azuis. De quem seria aquela criança? Ingrávida afirmava ser
de René de la Nuez, mas este, furioso, fez com que ela redigisse
uma carta na qual comunicava oficialmente que o filho não era dele.
Esse homem pertencia ao Partido Comunista e trabalhava como
cartunista no Cranma; não queria estar comprometido com uma
mulher de má fama.
187
#
A Detenção
Achava que minha situação chegara ao limite; no entanto, se
existe algo que um sistema totalitário pode nos ensinar; é que as
desgraças são infinitas. No verão de 1973, Pepe Malas e eu estáva-
mos tomando banho na praia de Guanabo. Lá, tivemos relações
sexuais com uns rapazes, no meio dos manguezais. Passamos
realmente horas maravilhosas com eles.
Depois de transar com os rapazes, deixamos as bolsas na areia
e voltamos à água. Meia hora depois, havíamos sido roubados por
aqueles amantes recentes. Pepe chamou a polícia, o que nunca se
deve fazer em semelhante caso. O carro-patrulha percorreu a praia
para ver se localizávamos os ladrões. De fato, num pinheiral perto
da praia, vimos os rapazes com nossas bolsas.
Foram presos pela polícia e o roubo era evidente; estavam com
nossos pertences. Fomos até a delegacia, coisa que eu jamais faria,
pois quando se vive numa ditadura o melhor a fazer é evitar
qualquer contato com a polícia. Os rapazes chegaram com nossas
bolsas, cheios de ironia: "São veados que tentaram nos seduzir,
seguraram nossa pica. Só pegamos as bolsas porque eles fugiram
depois de levarem umas porradas. Na verdade, a gente estava vindo
à delegacia para devolvê-las." A história era pouco convincente
,
mas éramos homossexuais e os rapazes tinham um tio policial
lotado na delegacia de Guanabo. Assim, passamos de acusadores a
acusados e ficamos presos; dormimos lá mesmo, na delegacia.
188
#
Eu pensava, inocentemente, que não tinham provas contra nós
e o único fato concreto era o roubo do qual fôramos vítimas. Mas
não me lembrei de um artigo da lei castrista que diz que se um
homossexual cometer um delito erótico, basta a denúncia de uma
pessoa para que seja preso. E além de ficarmos detidos, ainda
abriram processo contra nós.
Chamaram a UNEAC, que deu as piores informações a meu
respeito. De repente, tudo que havia de positivo sobre minha pessoa
desapareceu; eu não passava de um contra-revolucionário homos-
sexual, que publicara livros no exterior.
Fomos soltos sob fiança. Lembro-me de que Tomasito La
Goyesca se encarregou de arranjar o dinheiro; não era nada fácil,
pois a fiança era de quatrocentos pesos, que não possuíamos. Ainda
tínhamos alguma esperança de ser soltos, já que tudo aquilo era
absurdo e não existia provas contra nós.
Naturalmente, era preciso continuar indo à UNEAC, para
assinar o livro de ponto e receber o meu salário; mas a cada dia me
olhavam como se eu fosse um leproso e agora, com umjulgamento
pendente, era realmente o fim. De repente, tornei-me invisível; nem
os porteiros me cumprimentavam quando passava, embora alguns
também fossem homossexuais.
Escolhi um advogado para cuidar do meu caso. Disse-me para
não me preocupar, pois na verdade não havia qualquer prova e não
podiam me acusar de nenhum delito. No entanto, um dia chamou-
me, bastante nervoso, e pediu que nos encontrássemos na casa dele.
Lá mostrou-me um comprometedor dossiê a meu respeito, incluin-
do os títulos e descrições dos meus textos publicados no exterior.
Tudo aquilo representava uma prova de que eu era contra-revolu-
cionário, pois os livros tinham saído do país sem licença da
UNEAC; e tudo estava assinado por pessoas que, até aquele mo-
mento, eram aparentemente excelentes amigos, que me davam
tapinhas nas costas, dizendo-me que não me preocupasse, pois nada
de mal iria acontecer. Dentre os assinantes, que agora me acusavam
de um trabalho constante como contra-revolucionário, encontra-
vam-se Nicolás Guillén, Otto Fernández, José Martínez Matos e
Bienvenido Suárez.
189
#
Era óbvio que não se tratava mais de um simples delito, de um
escândalo público, como disseram no início. Tratava-se agora de
alguém que fazia uma constante propaganda contra o regime e a
publicava fora de Cuba; tudo havia sido montado para trancar me
na cadeia. O promotor, em suas conclusões, disse que a pena que
eu merecia correspondia a oito anos de prisão.
De uma maneira muito estranha, Pepe Malas estava sendo
acusado apenas de escândalo público. Seu nome mal aparecia em
todo o processo.
Minha tia, naturalmente, estava a par de tudo. Também forne-
cera dados ao tribunal, relatando minha vida depravada e minha
atividade contra-revolucionária. Eu não tinha escapatôria.
Olga, esposa de Miguel, voltou de Paris naqueles dias. Foi a
última vez, pois também receava que, num dado momento, não a
deixassem mais sair de Cuba. Contei tudo o que estava acontecen-
do. Em Paris, ela ia contactar meus amigos, Jorge e Margarita
Camacho, e meu editor. Fariam alguma coisa para me ajudar a sair
do país clandestinamente. Falei a respeito do perigo iminente de ser
preso antes do julgamento. O melhor era não me apresentar no
tribunal para poder fugir. Nesse caso, eu me esconderia em algum
lugar e mandaria um telegrama a Olga, com as seguintes palavras:
Mandem o livro dasflores. Mandariam então um bote inflável, um
passaporte falso com minha foto, e um equipamento de mergulho
- algo com que eu pudesse sair do país.
Eram esperanças muito remotas, nascidas do desespero, mas
quase sempre as esperanças são dos desesperados. Não queria
conformar-me com a cadeia; antes que Olga fosse embora, datilo-
grafei rapidamente meu poema Morir en junio y con la lengua
afuera - eu dera o rascunho para uns amigos ainda residentes em
Cuba - e Leprosorio, escrito a partir de minha experiência na
cadeia de Guanabo. Olga levou esses poemas.
Eu tinha um lindo amante negro com quem fazia amor frequen-
temente nos matagais do Monte Barreto. Não podia mais serna casa
da minha tia porque ela ameaçara chamar a polícia. Ser possuído
por aquele homem em pleno campo, nu, cheirando à relva, era
extremamente excitante, muito mais do que se fosse numa cama.
190
#
Contei o que estava acontecendo e ele disse para nos encontrarmos
na praia, no dia seguinte; de lá iríamos a Guantánamo, onde me
ajudaria a fugir pela base naval.
Naquela noite, encontrei-me com Hiram Prado e Pepe Malas.
Comuniquei a Hiram minha decisão de sair do país numa lancha
pela base naval de Guantánamo. Foi um ato de extrema ingenuida-
de, sem dúvida alguma; em Cuba não se pode confiar nenhum
segredo. O fato é que no dia seguinte levantei-me muito cedo. Tinha
deixado minha máquina de escrever com os irmãos Abreu, que me
deram em troca algum dinheiro para chegar até Guantánamo. A
polícia, no entanto, acordou ainda mais cedo do que eu.
Ouvi quando bateram na porta e fui até a varanda. Havia vários
policiais cercando a casa; entraram e fui preso na hora. Trataram-me
com violência desnecessária. Bateram em mim, tiraram-me a roupa
para ver se portava arma, mandaram que eu me vestisse e me
levaram até a patrulhinha. No instante em que estava subindo no
carro, minha tia abriu a porta; vi seu rosto radiante e o olhar
cúmplice dirigido aos policiais.
Trancaram-me numa cela com mais vinte homens na delegacia
de Miramar. Antes de entrar, fui interrogado rapidamente; os inter-
rogatórios mais longos viriam depois. Perguntaram o motivo da
minha prisão. Respondi que não sabia, que estava livre e sob fiança;
portanto, minha prisão era ilegal. Foi o bastante para que me
enchessem de porradas.
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#
A Fuga
Não havia banheiros na cela e os detentos tinham constan-
temente de pedir licença para poder usá-los, do lado de fora. O
policial ficava na porta vigiando os outros com o cadeado na mão.
Num dado momento em que o tira encontrava-se nessa posição,
chegou outro avisando que trouxera café, um privilégio em Cuba,
onde o café está racionado. Aquela voz provocou uma tremenda
algazarra na delegacia; todos os policiais queriam pegar a garrafa
térmica. O que tomava conta de nós também foi até lá, deixando o
cadeado aberto na grade. Rapidamente, tirei o cadeado e fugi às
pressas do xadrez.
Saí correndo pela porta dos fundos que dava para a praia, tirei
a roupa e lancei-me na água; era um bom nadador; Afastei-me da
costa e nadei até a praia Patrice Lumumba, perto da casa de minha
tia. Vi um amigo com quem tivera umas aventuras eróticas, contei
o que estava acontecendo e ele me conseguiu um short com os
salva-vidas da praia. Foi nesses trajes que cheguei em casa. Minha
tia ficou espantadíssima ao me ver, pois pouco tempo atrás eu fora
levado por uma patrulhinha. Contei-lhe que havia sido um erro
rapidamente esclarecido; eu tinha apenas de pagar uma multa e
viera buscar o dinheiro. Meu dinheiro já não estava lá; minha tia o
roubara e precisei pedir com certa violência que o devolvesse. Um
pouco assustada, só me deu a metade do que me pertencia.
Corri até a praia para encontrar o meu amigo negro, mas elajá
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#
estava cheia de policiais, claro que procurando por mim. Felizmen-
te, não pensaram em ir até a casa de minha tia e pude pegar o resto
do dinheiro e destruir tudo que pudesse me comprometer. O amigo
que conseguira o short escondeu-me numa das cabines da praia e
foi até perto da minha casa para se certificar de que estava sendo
vigiada por policiais com cães. Disse que eu devia me lançar ao mar
e ficar escondido atrás de uma bóia, pois ali os cães não poderiam
me descobrir. Permaneci ali o dia todo. À noite meu amigo fez um
sinal, significando que eu podia sair da água; comprou-me uma
pizza com seu próprio dinheiro, pois o meu estava completamente
encharcado. Escondeu-me na cabine dos salva-vidas. No dia se-
guinte, toda a praia estava repleta de policiais à minha procura; era
difícil sair do esconderijo. Meu amigo conseguiu uma câmara de
ar, uma lata de feijão e uma garrafa de rum. À noite, caminhamos
por entre os pinheiros até a praia de La Concha. Ele também
conseguira uns pés-de-pato, e a única solução era sair do país
naquela bóia. Antes de atirar-me na água, peguei o dinheiro que
ainda me sobrava e o escondi na praia, no meio de um monte de
pedras. Meu amigo e eu nos despedimos. "Meu irmão, boa sorte",
disse ele. Estava chorando.
Amarrei a câmara em meu pescoço com uma corda; ele tinha
ajustado um saco de aniagem ao fundo da bóia, de modo que eu
pudesse ficar sentado. Numa bolsa de lona colocara a garrafa de
rum e a lata de feijão. Pus tudo no fundo da bóia e entrei no mar.
Tinha de sair dali fugindo por aquela mesma praia onde passara os
mais belos anos da minha juventude.
À medida que me afastava da costa, o mar ia se tornando mais
violento; eram as ondas revoltas de novembro, que anunciam a
chegada do inverno. Continuei me afastando a noite toda à mercê
das ondas, avançando lentamente. A uns cinco ou seis quilômetros
da costa, percebi que dificilmente chegaria a algum lugar. Em
alto-mar também percebi que não havia como abrir aquela garrafa,
e minhas pernas e as articulações estavam quase congeladas.
De repente, em plena escuridão, surgiu um barco que vinha
diretamente em minha direção. Mergulhei fundo e me escondi
debaixo da bóia. O barco parou a uns vinte metros de mim.
193
#
Estenderam uma espécie de enorme garfo, que parecia um caran-
guejo, e mergulharam-no na água. Parece que era um barco areeiro,
extraindo areia daquele lugar; eu ouvia as vozes, risadas; mas
ninguém me viu.
Percebi que não podia continuar; mais à frente, via-se uma linha
de luzes: eram a guarda-costeira, os barcos pesqueiros ou outros
areeiros, que formavam uma espécie de muralha no horizonte. As
ondas ficavam cada vez mais violentas. Era preciso tentar voltar
Lembro-me de ter visto algo brilhando no fundo do mar e temi
que um tubarão pudesse abocanhar minhas pernas, por isso as
mantive fora d'água. Pouco antes do amanhecer, me dei conta de
que aquilo era um absurdo. A própria bóia representava um obstá
culo, eu poderia chegar mais rápido aos Estados Unidos nadando
do que usando aquela bóia sem remos e sem leme. Livrei-me da
bóia e nadei durante mais de três horas até a costa, com a bolsa que
continha a garrafa e a lata de feijão amarrada na cintura. Estava
quase paralisado e meu maior medo era sentir cãibra e me afogar.
Alcancei a costa de Jaimanitas e vi uns prédios vazios. Entrei
num deles; nunca sentira tanto frio, nem tamanha solidão. Havia
fracassado, e a qualquer momento viriam me prender. Só me restava
uma possibilidade de escapar: o suicídio; quebrei a garrafa de rum
e com os cacos de vidro cortei as veias. No início, pensei que
chegara ao fim e me deitei num canto daquele prédio vazio; pouco
a pouco, fui perdendo os sentidos. Pensei que fosse a morte.
Por volta das dez horas da manhã seguinte, acordei, pensando
que despertara no outro mundo. Mas estava aqui, no mesmo lugar
onde tentara acabar com tudo, porém sem qualquer resultado. Devo
ter perdido muito sangue, mas, aos poucos, este parou de escorrer.
Com os cacos de vidro, abri a lata de feijão; comi e aquilo me
fortaleceu um pouco. Depois, limpei as feridas no mar. Percebi que
a bóia tinha vindo parar ali com as ondas.
Comecei a andar sem rumo pela praia e de repente encontrei
um grupo de homens com a cabeça raspada, deitados no chão.
Olharam para mim com certo espanto, mas não falaram nada.
Compreendi que se tratava de condenados ao trabalho forçado;
presos de uma fazenda do lote Flores. Passei na frente deles,
194
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descalço, com os braços cobertos de feridas; não podiam pensar
que eu fosse um simples banhista. Cheguei até La Concha para
resgatar o meu dinheiro escondido entre as pedras.
Quando me dirigi ao lugar onde devia estar o dinheiro, alguém
me chamou; era o meu amigo negro, fazendo sinais para que me
aproximasse; resumi tudo o que tinha acontecido e ele disse que
podíamos ir imediatamente para Guantánamo; ele era de lá e
conhecia toda a região. Deitados debaixo das árvores, ele desenhou-
me toda a região de Caimanera na areia e explicou como fazer para
chegar à base naval norte-americana.
O mais importante agora era conseguir roupas. Encontrei um
dos meus primos na praia e contei-lhe que precisava de roupa. Ele
disse que a polícia procurava por mim em todos os lugares. A
estupidez da polícia era incrivel; procurava em vão por mim em
todos os lugares por onde eu passava. Meu primo disse que iria
buscar roupas. Deixou a moça com quem estava e logo voltou com
uma muda completa de roupa. Foi um gesto de bondade que me
surpreendeu, pois nunca esperara isso da parte dele.
Vesti-me rapidamente e fui com meu amigo negro até sua casa
em Santos Suárez. Era uma casa enorme, cheia de vitrines. O negro
raspou minha cabeça, transformando-me em outra pessoa. Real-
mente, quando me olhei no espelho, fiquei espantado. Meu cabelo
comprido tinha desaparecido e estava agora curtíssimo, com uma
divisão ao meio. A camisa que meu primo me dera também foi
substituída por outra, mais rústica. Segundo explicou, só assim eu
poderia chegar até Guantánamo sem ser preso.
Com o dinheiro que eu tinha e o pouco que a avó do meu amigo
lhe deu, fomos até a estação de trem. Não era fácil conseguir uma
passagem para Santiago de Cuba ou Guantánamo, pois era preciso
fazer reserva com muita antecedência. Mas ele deu um jeito;
combinou tudo com um funcionário, a quem subornou com alguns
pesos.
De repente, me vi novamente num daqueles trens, lentos e
calorentos, a caminho de Santiago de Cuba. O negro logo fez
amizade com todos os passageiros sentados no mesmo banco; ele
comprara uma garrafa de rum e começou a beber. Explicou-me que,
195
#
para passar despercebido, o melhor era fazer amizade com todo
mundo.
Durante toda a viagem, que durou três dias, continuou bebendo,
convidando a todos, rindo e contando piadas. Logo tornou-se
íntimo de outros negros, uns muito bonitos. Eu bem que gostaria
de poder saltar e entrar num hotel para fazer amor com o negro,
como fazíamos no Monte Barreto; nos momentos de maior perigo
eu sempre sentia a necessidade de ter alguém a meu lado. O negro
disse que era difícil conseguir um hotel em Santiago, e que talvez,
ao chegarmos em Guantánamo, pudéssemos dar um jeito.
Em Santiago, tínhamos que pegar um ônibus até Guantánamo.
Mas antes comemos uns croquetes-do-céu, como chamam em Cuba
aqueles croquetes vendidos nas cafeterias, porque têm a caracterís-
tica de colar no céu da boca e não há jeito de sair.
Chegamos em Guantánamo, lugar que me pareceu horrível,
ainda mais chato e provinciano que Holguín. O negro me levou até
um local repleto de marginais. Pediu-me que tirasse todas as minhas
roupas, pois conseguira outras ainda mais rústicas. Pediu também
que lhe desse todo o dinheiro; não fazia sentido, já que eu ia entrar
em território dos Estados Unidos, levar comigo dinheiro cubano.
Na verdade, não me agradou, mas eu não podia fazer nada. Ele
levou-me até a rodoviária, de onde saía o ônibus para Caimanera,
e não quis viajar comigo. Eu já tinha todas as informações perti-
nentes: descer na primeira parada de controle, virar à direita em
direção ao rio, andar ao longo da costa até enxergar as luzes, esperar
a noite escondido nos pântanos, atravessar o rio a nado e continuar
andando pela outra margem até chegar no mar, passar o dia escon-
dido e à noite mergulhar na água e nadar até a base naval.
Não foi difícil passar despercebido no ônibus; o negro estava
certo quanto à sua idéia de me disfarçar daquela maneira. Ao saltar,
para evitar ser notado, fiquei andando de gatinhas nos pântanos
durante horas. À meia-noite, enquanto ainda me arrastava por
aqueles pântanos selvagens, as codornas e outras aves saíam,
assustadas com o barulho. Continuei andando de quatro. De repen-
te, ouvi um barulho; era o rio. Senti também uma imensa alegria ao
ver aquelas águas; meu amigo não tinha me enganado, lá estava o
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#
rio. Continuei caminhando pela margem; o lugar era todo pantano-
so; eu tinha na mão um pedaço de pão, pois o negro me dissera para
não comer até a hora de mergulhar na água. De madrugada, vi
finalmente as luzes do aeroporto; foi como uma festa. As luzes se
acendiam apagavam, e, para mim, era como um chamado. Era o
momento de mergulhar.
Durante toda a minha caminhada pela margem do rio, ouvira
uns ruídos que pareciam estalos. Não sei por que, mas tive a
impressão de que a lua me dizia para não entrar naquelas águas.
Continuei andando até encontrar um lugar onde não se ouviam mais
os estalos, e mergulhei. Naquela hora, apareceram nos matagais
estranhas luzes verdes; eram como relâmpagos, mas não vinham
do céu e sim do chão, entre os troncos das árvores. Continuei
avançando e as luzes verdes se repetiam. Em poucos instantes,
ouviu-se o ruído de uma metralhadora; era uma rajada que passou
raspando. Mais tarde, percebi que aquelas luzes verdes eram um
sinal; eram raios infravermelhos. Souberam que alguém queria
cruzar a fronteira e tentavam localizar a pessoa; obviamente, matá-
la também. Corri e trepei numa árvore frondosa, abraçando-me ao
tronco; fui até o ponto mais alto que pude. Carros cheios de soldados
levando cães estavam atrás de mim; passaram a noite inteira à
minha procura, pertinho de onde eu estava. Finalmente, foram
embora.
Fiquei na árvore a noite toda e o dia seguinte também. Era
dificil descer sem ser visto e, mais ainda, com toda aquela região
em estado de alerta. Ao anoitecer, desci da árvore; estava cansado
e precisava reunir todas as minhas forças para voltar a Guantánamo
e planejar uma fuga por outra rota, talvez menos perigosa, para
chegar até a base naval. Arrastei-me na lama e adormeci perto da
estrada, entre a folhagem. No dia seguinte de manhã, limpei como
pude a roupa e a cara, e voltei à estação de controle número um,
onde tomei o ônibus para Guantánamo. Cheguei à cidade sem saber
como encontrar meu amigo negro, e perambulei pelas ruas, o que
era muito perigoso no meu caso. Não tinha dinheiro. Na estação de
trem de Guantánamo, encontrei o negro, que me olhou assustado;
obviamente, pensava quejá estivesse morto ou que houvesse fugido
197
#
pela base naval. Disse que era impossível recomeçar o plano de
fuga, que aquele lugar era o melhor, e seus amigos tinham avisado
que a vigilância estava muito mais rígida. Afirmou também que eu
tivera muita sorte, porque as caixas que eu dizia ter visto eram minas
e se tivesse pisado numa delas, meu corpo teria voado em mil
pedaços.
No entanto, eu não me dava por vencido; voltar representava
um fracasso. Começaria tudo de novo. Agora a vigilância era muito
maior, mas eu não tinha nada a perder. Era absurdo ter confiado na
lua. Na segunda vez em que entrei na água, à luz da lua, pude ver
o que eram aqueles estalos: todo o rio estava infestado de jacarés;
nunca vi tantos animais ferozes e sinistros num espaço de água tão
pequeno. Estavam esperando que eu entrasse na água para me
devorar. Era impossível atravessar o rio. Mais uma vez, voltei a
Guantánamo coberto de lama. Com certeza, o motorista do ônibus
pensou que eu devia ser um oficial da guarda-costeira da Segurança
do Estado, transferido para aquela região.
Perambulei durante três dias em Guantánamo. Não tinha um
centavo e continuava dormindo na estação. Nunca mais vi o negro.
Lá mesmo, fiz amizade com dois rapazes que queriam ir para
Havana de trem sem pagar. Explicaram-me que tudo consistia em
entrar no banheiro cada vez que o cobrador passasse; não tinha outra
solução e optei por viajar dessa maneira.
Tomamos o trem e todos entramos no banheiro quando o
cobrador passou. Os rapazes logo ficaram excitados, e assim pude
me satisfazer com eles enquanto o trem percorria as colinas de
Oriente. Parava em todas as estações e eu saltava. Depois, conti-
nuávamos a viagem e cada vez que o cobrador passava, mais ou
menos de quatro em quatro horas, voltávamos ao banheiro; eles
sempre se excitavam e meu corpo deslizava por entre aquelas
pernas tão lindas. Contei-lhes que era um fugitivo do serviço militar
obrigatório e que estava tentando voltar para casa em Havana.
Quanto a eles, eram de fato insubmissos e queriam ir para Havana,
achando que lá passariam mais despercebidos do que em Guantá-
namo, sua cidade natal. Numa das paradas, Adrián, um dos rapazes,
me deu sua carteira de identidade; disse que tinha outra e que aquela
198
#
me seria útil. Era uma carteira com sua foto, mas esse tipo de
fotografia é sempre tão opaco e impessoal que qualquer pessoa
pode se fazer passar por outra. Passei então a me chamar Adrián
Faustino Sotolongo. Saltei do trem em Cacocún e comecei a andar
rumo a Holguín, um longo trajeto. Consegui carona num caminhão
de operários, que não me fizeram qualquer pergunta. Cheguei em
casa de madrugada.
Voltava para casa sozinho, perseguido, frustrado. Foi minha
mãe quem abriu a porta, e deu um grito quando me viu. Pedi que
se calasse. Começou então a chorar baixinho e minha avó se
ajoelhou e rezou, pedindo a Deus para me salvar. Minhas outras tias
achavam que o melhor era me esconder debaixo da cama. Minha
mãe trouxe um pedaço de frango e disse que estava muito triste por
me ver assim, debaixo da cama, comendo escondido como um cão.
Aquilo me deixou tão aflito que nem consegui provar a comida,
embora não comesse nada há vários dias.
Minha avó continuava ajoelhada no chão, suplicando a Deus
para me ajudar. Nunca me senti tão ligado à minha avó; ela sabia
que só um milagre me salvaria. Num dado momento, pude falar
com ela; nem sabia o que lhe dizer. Não a via desde a morte de meu
avô; ela o amara muito, apesar de viver apanhando o tempo todo.
Quando ela entrou no quarto, saí do esconderijo e nos abraçamos.
Ela disse que não conseguia viver sem meu avô Antonio, um
homem tão bom. Choramos juntos; meu avô batia nela quase toda
semana, mas mesmo assim viveram cinquenta anosjuntos. Eviden-
temente, existia entre os dois um grande amor. Minha avó envelhe-
cera de repente.
No dia seguinte, minha mãe e eu fomos para Havana. Um tio
por afinidade, chamado Vidal, foi conosco até a estação e nos
emprestou algum dinheiro. Eu tinha a esperança de que Olga, com
quem deixara o endereço dos irmãos Abreu, tivesse feito algum
contato com alguém no exterior. Eu avisara, no telegrama, qual era
a nossa senha: Mandem o livro dasflores. Ela sabia o que aquilo
significava: que me tirassem dali o quanto antes.
Consegui dormir no trem. Nunca viajara com minha mãe num
vagão-leito. Ela disse: "Que pena que uma viagem tão bonita tenha
199
#
de ser feita nessas condições ! " Minha mãe sempre se lamentava a
respeito de tudo, mas naquele momento estava certa. Pensei como
seria bom poder desfrutar aquela paisagem, se não fosse um fugi-
tivo; como seria agradável viajar ao lado de minha mãe se não
estivesse naquela situação. As coisas mais simples adquiriam para
mim um valor extraordinário. Durante toda a viagem, minha mãe
pediu que me entregasse à polícia; disse que era o melhor que tinha
a fazer. Contou que um vizinho dela, condenado a trinta anos de
cadeia, cumprira apenas dez anos da pena e agora, livre, passava
todos os dias cantando diante de casa. Eu não conseguia me
imaginar cantando diante da casa da minha mãe depois de dez anos
de cadeia; esse destino, na verdade, não era nada promissor. Queria
fugir daquele inferno, a qualquer preço.
Ao chegar à estação de Havana, fui preso por dois policiais em
trajes civis. Minha mãe ficou profundamente abatida, seu corpo
fraco tremendo violentamente. Peguei suas mãos tão magras entre
as minhas; pedi que esperasse por mim, que nada de mal iria me
acontecer. Os policiais me levaram para um quartinho e começaram
a fazer perguntas. Respondi que vinha de Oriente e exibi minha
passagem e a carteira de Adrián Faustino Sotolongo. Disseram
então que eu era muito parecido com uma pessoa que estavam
procurando e que fugira de uma delegacia em Havana; respondi que
não fazia sentido, pois eu estavachegando, e o lógico seria a pessoa
tentar sair da cidade ao invés de entrar. Minha resposta era lógica,
eu tinha mostrado outra identidade, por isso soltaram-me após
tirarem a medida do meu pescoço, sabe-se lá para quê. Minha mãe
continuava tremendo, de uma forma cada vez mais patética. Expli-
quei que não podíamos continuar viajando juntos, era melhor que
ela fosse para a casa da minha tia Mercedita, que morava em
Havana do Leste; eu ligaria para ela, deixando o telefone soar
apenas uma vez. Se recebesse este sinal, ela podia voltar para a
estação, onde nos encontraríamos para tentar um outro plano.
Quanto a mim, tentaria me esconder na casa de um amigo.
Tinha a esperança de que, se alguém falasse com o embaixador
francês, talvez eu conseguisse asilo naembaixada da França; talvez
o embaixador pudesse esconder-me em sua própria casa e conseguir
200
#
um visto. Na verdade, todos os meus livros eram publicados na
França. Também esperava que minha mãe fosse à casa de um
francês que tinha sido meu professor e com quem estabelecera certa
amizade; seria fácil para ele falar com o embaixador. Saíramos de
Holguín com uma carta dirigida ao embaixador; era uma idéia
muito loucá, mas talvez funcionasse.
Toquei a campainha na casa de Ismael Lorenzo, que morava
com a esposa. Mostrou-se gentil comigo e disse que podia ficar. Em
várias ocasiões, havíamos planejado juntos nossa fuga, pensando
sempre na base naval de Guantánamo. Ele achava que eu escapara
por milagre, pois quando os raios infravermelhos aparecem, o
exército não descansa até encontrar o fugitivo; a única vantagem
desses raios, segundo me explicou, é que aparecem com o calor e
afonte de calor pode ser qualquercriatura viva perto dos detectores.
Talvez tivessem pensado que fosse um animal, e por esse motivo
pararam as buscas.
A casa de Lorenzo era vigiada porque ele já apresentara um
requerimento de saída do país; o Comitê de Defesa vinha freqüen-
temente visitá-lo, supostamente de maneira amigável. Eu não que-
ria comprometê-lo. Depois de passar uma noite em sua casa, fui
embora e me dirigi à casa de Reinaldo Gómez Ramos, que ficou
apavorado ao me ver. Logicamente, sabia da minha fuga e disse que
não existia a menor possibilidade de me esconder; eu tinha que ir
embora imediatamente.
Voltei à rodoviária e liguei para minha mãe, marcando o
encontro na rodoviária. Meu tio Carlos chegara de Oriente e já
estava a par de tudo. Carlos era do Partido Comunista, mas para ele
a família vinha em primeiro lugar e agiu muito bem em relação a
mim. Foi com minha mãe para falar com o professor de francês e
entregar-lhe minha carta.
Voltaram em pouco tempo. Tinham visto o professor, que se
mostrara muito acessível e em duas horas os levara até o embaixa-
dor. A resposta do embaixador foi negativa: não podia fazer abso-
lutamente nada por mim, embora ficasse com a carta.
Dei à minha mãe e a Carlos o endereço dos irmãos Abreu. Era
um absurdo permanecer na rodoviária, que era o centro das ações
201
#
policiais, onde pediam a carteira de todos os passageiros. À noite,
quando vi a polícia dando batidas, pensei que todas tinham a ver
com a minha procura. Tomei então a decisão de me esconder no
parque Lenin; tratava-se de um local usado para muitos eventos
oficiais, e talvez o último lugar onde a polícia fosse procurar um
fugitivo político. Redigi uma breve mensagem para Juan Abreu,
marcando um encontro do lado esquerdo do anfiteatro do parque,
que era cercado de arbustos onde eu podia passar despercebido.
Não precisei explicar muito a Juan sobre meus planos de fuga
com a ajuda de Olga. Disse que talvez Olga mandasse alguém da
França para tirar-me do país. Abreu olhou para mim e disse: "A
pessoa já está aqui; chegou há três dias. Estávamos desesperados à
sua procura. Passei na casa da sua tia e quase acabei preso."
Acrescentou que no dia seguinte iria encontrar-se com o emissário,
que parecia ser um francês inteligente com perfeito domínio do
espanhol.
A casa dos Abreu era estreitamente vigiada; todos sabiam que
eram meus melhores amigos. O francês chegara com um frasco de
perfume, dizendo que trazia um recado de Olga sobre o "livro das
flores". Conseguira iludir a vigilância da polícia do hotel e, sem
conhecer a cidade de Havana, tomara três ou quatro ônibus diferen-
tes até chegar finalmente ao ponto de encontro com Juan Abreu.
Este lhe contou a verdade: que eu era um fugitivo e meu paradeiro
desconhecido. O francês só dispunha de mais alguns dias de per-
missão para permanecer em Havana. Eu chegara no momento
oportuno.
Em Paris, meus amigos Jorge e Margarita, ao saberem por Olga
da minha situação, resolveram que era preciso encontrar imediata-
mente alguém desconhecido do governo castrista para entrar em
Cuba e me tirar de lá. Contactaram o jovem Joris Lagarde, filho de
amigos deles, que era um aventureiro e falava um perfeito espanhol;
já percorrera toda a América do Sul e a América Central em busca
de tesouros, supostamente enterrados pelos espanhóis ou que ja-
ziam no fundo do mar. Sua teoria era que diversos galeões haviam
naufragado perto da costa de Maracaibo e que todo o ouro encon-
trava-se no fundo daquele mar, esperando que algum mergulhador
202
#
habilidoso o encontrasse; ele era um excelente nadador e especia-
lista em velejar, a pessoa indicada para vir me resgatar. Jorge e
Margarita compraram um barco a vela, uma bússola, e Olga me
enviou comprimidos alucinógenos para me manter eufórico. Com-
praram para Lagarde uma passagem até o México com escala em
Cuba, para ssimular suas intenções. Lagarde explicaria às auto-
ridades cubanas que ia participar de uma competição de iatismo no
México e que necessitava praticar nas costas de Cuba; por isso
levava um bote. Lagarde chegara a Havana ao mesmo tempo em
que eu tentava fugir pela base naval de Guantánamo.
À meia-noite, Lagarde e Juan chegaram ao parque Lenin. Era
realmente um jovem intrépido e fizera o possível para entrar com
o barco, mas as autoridades do aeroporto disseram que ele tinha
permissão para visitar Cuba, mas o barco ficaria sob custódia até
sua partida para o México. Um barco, claro, era um meio de
transporte proibido em Cuba. Apenas altos funcionários podiam
velejar, e mesmo alguns deles tinham fugido para os Estados
Unidos.
Mais uma vez, minhas esperanças de deixar Cuba iam por água
abaixo. Joris Lagarde me deu de presente um isqueiro e todos os
cigarros estrangeiros que tinha, a bússola e a vela do barco; prome-
teu ir para a França e voltar por mim, de uma forma ou de outra.
Conversamos juntos a noite inteira; ele estava chateado por me
abandonar naquela situação e disse que nos veríamos de novo
dentro de quatro dias, antes da sua partida.
No dia seguinte, Juan me trouxe um barbeador, um pequeno
espelho, A Iliada de Homero e um bloquinho para escrever. Escrevi
logo uma mensagem que começava assim: "Havana, parque Lenin,
dia 15 de novembro de 1974." Tratava-se de um comunicado
desesperado, dirigido à Cruz Vermelha Internacional, á ONU, à
UNESCO e aos povos que ainda tinham o privilégio de poder saber
a verdade. Eu denunciava toda a perseguição a que vinha sendo
submetido; começava dizendo, textualmente: "Faz muito tempo
que estou sendo vítima de uma perseguição sinistra por parte do
regime cubano." Continuei enumerando a censura, o duro trata-
mento dado aos intelectuais, os escritores fuzilados, o exemplo de
203
#
Nelson Rodríguez, a prisão de René Ariza, a incomunicabilidade a
que era submetido o poeta Manuel Ballagas. Numa parte, abordei
minha situação desesperadora; mostrei como, enquanto as perse-
guições se multiplicavam, eu redigia clandestinamente aquelas
linhas, esperando o fim a qualquer momento, com os aparelhos de
tortura mais sórdidos e criminosos. Finalmente, declarei: Volto a
afirmar que tudo isso é verdade, mesmo se as torturas me obriga-
rem depois a dizer o contrário.
Lagarde chegou para me ver na hora e dia combinados. Entre-
guei-lhe minha mensagem para que fosse publicada em todos os
órgãos possíveis da imprensa. Escrevi igualmente uma carta para
Jorge e Margarita, pedindo que publicassem todos os manuscritos
quejá mandara, onde denunciava abertamente o regime cubano. Os
irmãos Abreu também aproveitaram para mandar com ele tudo o
que podiam. Resolvemos que eu resistiria o quanto fosse possível,
até que ele pudesse vir me buscar, de uma forma ou de outra.
Lagarde chegou à França com a notícia da minha situação, e
todos os meus amigos fizeram uma campanha a meu favor O
documento foi publicado em Paris, nojornal Le Figaro, assim como
no México. Eu tivera a idéia de pedir a Olga e a Margarita para
mandarem vários telegramas a diversos funcionários cubanos, as-
sinados por mim, onde afirmava ter chegado muito bem. Assim,
enquanto eu dormia na relva do parque Lenin, Nicolás Guillén
recebeu um telegrama onde estava escrito o seguinte: "Cheguei
bem. Graças à sua ajuda. Reinaldo. " O telegrama havia sido
mandado de Viena.
Isso os deixou confusos durante uma semana; depois, porém,
perceberam que eu não tinha fugido e começaram a vigiar meus
amigos de perto. A casa dos irmãos Abreu foi cercada e o pavor fez
com que queimassem os manuscritos dos meus romances e todas
as obras inéditas escritas por eles - cerca de uns doze livros.
Nicolás e José sentiam-se pressionados e vigiados, e por essa razão
nem foram me ver no parque.
Vários amigos meus, agora delatores, tinham ido visitar Nico-
lás Abreu no cinema onde trabalhava como projecionista, indagan-
do a meu respeito; um deles foi Hiram Prado. A polícia não só
204
#
vigiava José como também ameaçava prendê-lo se não revelasse
onde eu me encontrava. O homem que comandava o grupo encar-
regado da minha captura era um tenente chamado Víctor.
Uma vez, um policial à paisana sentou-se no ônibus onde
viajava José Abreu. Começou a conversar com ele a respeito das
maravilhas dos Estados Unidos, e disse que seu escritor preferido
era Reinaldo Arenas. José limitou-se a trocar de lugar, sem dizer
uma palavra. Quando a vigilância se tornou mais intensa, Juan ia
até o nosso ponto de encontro e, ao invés de me esperar, deixava
alguma comida.
Foi quando comecei a escrever as minhas memórias, nos ca-
dernos que José me trazia. Sob o título bastante apropriado de
"Antes que anoiteça", escrevia até que a noite caísse, à espera da
outra noite que me aguardava quando fosse encontrado pela polícia.
Não podia perder tempo e redigia antes da escuridão instalar-se
definitivamente em minha vida. Antes de ir parar numa cela. Tal
manuscrito, é claro, se perdeu, assim como quase todos os que eu
escrevera sem conseguir mandá-los para fora do país. Mas era um
consolo contar tudo; era uma maneira de permanecer com os meus
amigos quando não estivesse mais entre eles.
Sabia perfeitamente o que era uma cadeia; René Ariza tinha
enlouquecido numa delas, Nelson Rodríguez tivera de confessar
tudo o que lhe mandaram dizer para, em seguida, ser fuzilado; Jesús
Castro encontrava-se numa cela horrenda de La Cabana; eu sabia
que, uma vez preso, não poderia mais escrever. Guardava comigo
a bússola e não queria perdê-la, embora soubesse do perigo que
representava; mas para mim era uma espécie de talismã. A bússola,
apontando sempre para o norte, era como um símbolo; tinha que ir
para lá, para o norte; não importava a distância em relação à Ilha,
mas era preciso ir para o norte, sempre fugindo.
Ainda tinha alguns dos alucinógenos enviados por Olga. Eram
maravilhosos; por mais deprimido que me sentisse, bastava tomar
um e experimentava um forte desejo de dançar e cantar. Às vezes,
durante a noite, sob o efeito daqueles comprimidos, corria pelo
bosque do parque e dançava, cantava e subia nas árvores.
Certa noite, sob o efeito da euforia, ousei chegar até o anfiteatro
205
#
do parque, onde estava dançando a famosa Alicia Alonso. Ocultan-
do-me nos arbustos, vi Alicia dançar o famoso segundo ato de
Giselle. Depois, Quando cheguei na alameda, um carro freou de
repente na minha frente e percebi que fora descoberto. Atravessei
o palco improvisado em cima da água, mergulhei e saí do outro lado
do parque. Um homem me seguia de perto com um revólver.
Comecei a correr e subi numa árvore, onde permaneci escondido
durante vários dias, sem me atrever a descer.
Recordo Que, enquanto todos os policiais procuravam inutil-
mente por mim com seus cães, um cachorrinho de caça parou bem
debaixo da árvore e ficou me olhando sem latir, como se estivesse
alegre por não me delatar. Três dias depois, desci da árvore. Estava
esfomeado; era muito difícil entrar em contato com Juan naQuele
momento. Estranhamente, na mesma árvore em Que eu ficara
escondido, havia um cartaz com meu nome, minha descrição, uma
foto e um título enorme que dizia: PROCURADO. Segundo a
descrição da polícia, fi Quei sabendo que tinha uma mancha debaixo
da orelha esQuerda.
Após esses três dias escondido, vi Juan andando entre as
árvores. Tivera a coragem de vir ao parQue. Disse Que minha
situação era realmente das piores, Que para despistar a polícia ele
passara o dia mudando inúmeras vezes de ônibus para chegar ao
parQue; tudo indicava que não haveria escapatória. Por outro lado,
não recebera notícia nenhuma da França, e o escândalo internacio-
nal a respeito da minha fuga era tremendo. A Segurança do Estado
estava alarmada. Fidel Castro dera ordem para me encontrarem
imediatamente, pois num país onde a vigilância funcionava à
perfeição, era impossível Que a polícia não me encontrasse depois
de dois meses; além do mais, eu continuava redigindo documentos
Que mandava para o exterior.
Quanto a mim, mergulhado na água até os ombros, pescava
com um anzol trazido por Juan. Assava os peixes numa fogueira
improvisada perto da represa e procurava ficar na água a maior
parte do tempo. Assim, era muito mais difícil ser encontrado
Mesmo naQuela situação tão perigosa, tive minhas aventuras eróti-
cas com jovens pescadores, sempre dispostos a passar momentos
206
#
agradáveis com alguém que olhasse para sua braguilha como se
fosse um convite. Um deles fez questão de me levar até a sua casa,
que ficava muito perto, para conhecer seus pais. No início, pensei
que agia assim por causa do relógio que Lagarde me dera de
presente; mas não era nada disso. Queria simplesmente apresentar-
me à sua família. Comemos e passamos momentos muito agradá-
veis; depois, voltamos para o parque.
O pior era à noite. Estávamos em dezembro e fazia frio; eu tinha
que dormir ao ar livre; às vezes, amanhecia todo molhado. Nunca
dormia no mesmo lugar. Escondia-me em valas cheias de grilos,
baratas e ratos. Juan e eu tínhamos vários pontos de encontro, pois
era perigoso demais ficar sempre no mesmo. Às vezes, durante a
noite, eu lia A Iliada à luz do isqueiro.
Em dezembro, a represa secou por completo e pude então
esconder-me entre suas enormes paredes. Eu possuía uma espécie
de biblioteca ambulante; Juan trouxera mais livros: Do Orenoco ao
Amazonas, A montanha mágica, O castelo. Fiz um buraco numa
das paredes da represa e foi lá que escondi tudo. Para mim, aqueles
livros representavam um grande tesouro. Coloquei-os em bolsas de
polietileno que proliferavam em toda a Ilha; acho que foi a única
coisa que se conseguiu produzir em abundância, sob aquele regime
de ditadura.
Enquanto me escondia no parque, continuava me encontrando
com o jovem pescador. Ele estava apavorado com o excesso de
vigilância no local. Contou-me que, segundo a polícia, havia um
agente da CIA escondido na região. Também me informou que
outros pescadores e a Segurança do Estado divulgaram inúmeras
versões diferentes para alarmar a população, e todos deviam avisar
se vissem uma pessoa suspeita. Diziam tratar-se de alguém que
havia assassinado uma anciã e violentado uma menina; todo tipo
de crimes repulsivos que pudessem incitar qualquer um a denunciar
os suspeitos. Era muito estranho que, até então, ainda não tivessem
conseguido me prender.
207
#
A Captura
Eu quase não comera nos últimos dez dias e, com A Iliada
debaixo do braço, aventurei-me por um caminho até uma lojinha
que ficava em Calabazar. Acho que, naquele momento, assumi uma
atitude suicida. Foi o que disse alguém que encontrei no parque,
um amigo meu daquele tempo. Chamava-se Justo Luis e era pintor.
Morava por lá e estava a par de tudo o que se passava. Trouxe
comida para mim na mesma noite. Deu-me cigarros e dinheiro,
dizendo: "Aqui você está se entregando de bandeja; precisa mudar
de esconderijo."
Aquele dia, em Calabazar, comprei um sorvete e voltei rapida-
mente para o parque. Estava acabando de ler A Iliada, justamente
no trecho em que Aquiles se comove e acaba entregando o cadáver
de Heitor a Príamo, trecho sem igual em toda a literatura. Emocio-
nado com a leitura, nem percebi que um homem se aproximara de
mim, com um revólver apontado para a minha cabeça. "Qual o seu
nome?", perguntou. Respondi que me chamava Adrián Faustino
Sotolongo e mostrei a carteira. "Você não me engana; é Reinaldo
Arenas. Faz tempo que estamos procurando você em todo o parque.
Não se mexa ou lhe meto uma bala na cabeça." Imediatamente,
começou a dar pulos de alegria. "Vou ser promovido, vou ser
promovido ! Eu peguei você! " Cheguei a desejar partilhar a alegria
daquele pobre soldado. A seguir, chamou os outros que estavam por
208
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perto e todos me cercaram, segurando-me pelos braços; assim,
pulando pelos matagais, fui levado até a delegacia de Calabazar.
O soldado que me prendeu mostrava-se tão agradecido que
procurou me pôr na cela mais confortável. Apesar de entender que
estava preso meu corpo resistia em aceitar a situação e queria
continuar correndo e pulando por entre as árvores.
Lá estava eu metido naquela cela, com a bússola no bolso. O
policial me deixara ficar com a Iliada e tomara minha autobiogra-
fia. Em pouco tempo, todos os habitantes do lugarconcentravam-se
diante da delegacia; já sabiam que o agente da CIA, o estuprador,
o assassino da velhinha, fora capturado pela polícia revolucionária.
Lá estava toda aquela gente pedindo o paredón, como era hábito no
início da Revolução.
Todos queriam inclusive invadir a delegacia, e algumas pessoas
já subiam pelo telhado. As mulheres eram as mais furiosas, talvez
pelo estupro da anciã; jogavam pedras e qualquer outro objeto que
encontrassem. O policial que me prendeu gritou que a justiça
revolucionária cuidaria do meu caso e conseguiu conter um pouco
aquela ira, apesar de todos permanecerem na rua. Naquele momen-
to, era perigoso tirar-me dali; no entanto, acabaram me levando com
uma escolta de elite. Foi quando conheci Víctor, que estivera
interrogando todos os meus amigos.
Pouco antes de me levar, Víctor recebera uma ordem superior
dizendo que eu tinha de ser imediatamente transferido para a cadeia
de Castillo del Morro. Enquanto andávamos pelas ruas, eu podia
ver as pessoas caminhando normalmente, livres para tomar um
sorvete ou ir ao cinema ver um filme russo; e sentia uma profunda
inveja de toda essa gente. Eu era o fugitivo, agora o preso; o preso
que ia cumprir sua sentença.
209
#
O Presídio
Castillo del Morro é uma fortaleza colonial construída pelos
espanhóis para defenderem o porto de Havana dos ataques de
corsários e piratas. É um lugar úmido, encravado num promontório,
e que foi transformado em prisão. A construção tem um estilo
medieval com uma ponte levadiça, pela qual passamos para entrar.
Depois, atravessamos um enorme túnel escuro, cruzamos o portão
de ferro e penetramos na prisão.
Fui levado para o posto de triagem, uma espécie de cela onde
os presos são classificados pelo delito cometido, idade e prefe-
rências sexuais antes de serem conduzidos para o interior daque-
le castelo medieval para cumprir a sentença. Foi muito estranho,
mas nem o agente da Segurança do Estado que me prendera e
que esperava ser promovido nem o oficial superior chamado
Víctor puderam ultrapassar a grade levadiça. Talvez, naquela
hora, estivessem tão nervosos quanto eu e não souberam impor
sua presença. Além do mais, estavam à paisana. O fato é que
entrei em meio à maior confusão, com a carteira e o nome de
Adrián Fausto Sotolongo, a bússola, o relógio e todos os compri-
midos alucinógenos.
Na cela da triagem havia uns cinqüenta presos; alguns por
delitos comuns, outros por acidentes de trânsito e outros por moti-
vos políticos. O que mais me impressionou ao chegarfoi o barulho:
centenas de presos estavam indo comer; pareciam estranhos mons-
210
#
tros, que gritavam entre si e se cumprimentavam, formando uma
espécie de rugido unânime. O barulho sempre se impôs em minha
vida, desde a infância; tudo que tenho escrito sempre foi contra o
barulho dos outros. Acho que os cubanos se caracterizam por
produzirem barulho; é como uma condição inata neles e faz parte
também da sua condição exibicionista. Não sabem se divertir ou
sofrer em silêncio; têm que incomodar os outros.
Aquela prisão talvez fosse a pior de toda a cidade de Havana.
Para lá iam os piores marginais; toda a cadeia destinava-se a presos
comuns, com exceção de um pequeno galpão reservado para os
presos políticos à espera do julgamento ou da sentença.
Eu queria conservar o relógio a qualquer preço para dar à minha
mãe, e o escondi na cueca. Um preso com quem logo fiz amizade,
e que já tinha experiência de várias outras cadeias, disse para
esconder o relógio o quanto antes. Quando mostrei-lhe a bússola,
achou incrível eu ter conseguido entrar com o objeto. Eduardo-
este era o seu nome - disse que, em alguns casos, certas pessoas
chegaram até a pegar oito anos só por possuírem uma bússola; era
precisojogá-la imediatamente na privada para que ninguém pudes-
se provar que era minha.
Os comprimidos alucinógenos, tomados em dose excessiva,
podiam provocar a morte. Eu tinha pavor de tortura e não queria
comprometer meus amigos, alguns dos quais se haviam arriscado
muito por minha causa. Por esta razão, tomei um punhado daquelas
pílulas com um pouco de água e deitei-me perto de um caminho-
neiro rude mas bem-apessoado que cometera um delito qualquer de
trânsito. Pensava nunca mais despertar; três dias mais tarde recu-
perei os sentidos na enfermaria da prisão: uma ala enorme lotada
de gente com doenças infecciosas. O médico disse que eu não tinha
morrido por milagre; todos achavam que eu não iria me refazer e
morreria de enfarte.
De agora em diante, toda a minha energia de outrora, com a
qual eu desfrutara centenas de adolescentes, iria permanecer tran-
cada naquela prisão com outros 250 criminosos.
O mar parecia muito remoto, visto por detrás de uma grade
dupla. Eu não passava de um preso comum, sem qualquer influên-
211
#
cia para poder chegar mais perto daquelas grades e ver o mar, ao
menos de longe. Além disso, já nem queria vê-lo; assim como
recusava as propostas eróticas dos presos. Não era a mesma coisa
fazer amor com alguém livre, e fazê-lo com um corpo escravizado
atrás de uma grade, que talvez me escolhesse como objeto erótico
porque não existia nada melhor a seu alcance, ou porque, simples-
mente, estava morrendo de tédio.
Recusava-me a fazer amor com os presidiários, embora alguns
deles, apesar da fome e dos maus-tratos, fossem bastante atraentes.
Não havia nenhuma grandeza naquele ato, teria sido rebaixar-me.
Além do mais, era muito perigoso; alguns marginais, depois de
possuírem um preso, sentem-se donos dessa pessoa e dos seus
poucos pertences. Na prisão as relações sexuais transformam-se em
algo sórdido que se realiza sob o signo da submissão e do desdém,
da chantagem e da violência; até mesmo, em muitos casos, do
crime.
O belo na relação sexual está na espontaneidade da conquista
e do sigilo em que esta se realiza. Na cadeia, tudo é óbvio e
mesquinho; o próprio sistema carcerário faz com que o preso se
sinta como um animal, e qualquer forma de sexo é sempre algo
humilhante.
Quando cheguei a El Morro, ainda tinha A Iliada de Homero;
faltava ler o último canto. Queria lê-lo e esquecer de tudo o que
me cercava, mas era difícil; meu corpo se negava a aceitar o
confinamento, sem não poder mais correr pelos campos. Apesar
da minha inteligência tentar explicar a situação, não aceitava ter
de permanecer meses ou anos num leito cheio de percevejos, em
meio àquele calor horrível. O corpo sofre mais que a alma, pois
esta encontra sempre algo a que se apegar: uma lembrança, uma
esperança.
O mau cheiro e o calor eram insuportáveis. Ir ao banheiro
representava uma verdadeira odisséia; o banheiro não passava de
um buraco onde todo mundo defecava; era impossível chegar até
lá sem sujar de merda os pés, os tornozelos, e depois não havia água
para se limpar. Pobre corpo; a alma não podia fazer nada por ele,
naquelas circunstâncias.
212
#
A cadeia era também o império do barulho; era como se todos
os ruídos que sempre me perseguiram, durante toda a minha vida,
estivessem reunidos em um só naquele lugar, onde eu era obrigado
a ouvi-los, precisamente pela minha condição de preso: pelo fato
de não poder fugir.
Entrei em El Morro cercado por uma fama horrível que foi,
apesar de tudo, o que me manteve vivo em meio a todos aqueles
assassinos. Eu não era classificado como preso político ou como
escritor, e sim como estuprador, assassino e agente da CIA. Tudo
isso me cobriu com uma aura de respeitabilidade, mesmo entre os
assassinos de verdade.
Por essa razão, só dormi no chão na primeira noite, naquela
galeria número sete onde me confinaram; não era certamente o
lugar dos homossexuais, e sim dos presos que cometeram os mais
diversos crimes. Os homossexuais ocupavam as piores galerias de
El Morro: as galerias subterrâneas que ficavam inundadas quando
a maré subia; um lugar asfixiante e sem banheiro. Os homossexuais
não eram tratados como seres humanos e sim como animais. Eram
sempre os últimos a comer e por causa de uma besteira qualquer
apanhavam cruelmente. Os soldados que tomavam conta de nós,
autodenominados de "combatentes", eram recrutas mandados para
lá como punição, e descarregavam sua fúria nos homossexuais. Ali
não eram chamados de homossexuais, e sim de veados, ou, na
melhor das hipóteses, de bichas-loucas. A galeria das bichas-loucas
era realmente o último círculo do Inferno; é preciso lembrar que
muitos daqueles homossexuais eram criaturas destroçadas que a
discriminação e a miséria transformaram em criminosos comuns.
Entretanto, não perdiam o senso de humor. Com os próprios lençóis
faziam saias; pediam graxa de sapato aos seus familiares e com isso
se maquiavam, fazendo sombras nos olhos. Usavam até a própria
cal das paredes para se pintar. Às vezes, quando saíam para tomar
sol no terraço, davam um verdadeiro espetáculo. O sol era um
privilégio racionado para os presos; tínhamos permissão para sair
uma vez por mês ou de quinze em quinze dias, durante uma hora.
As bichas-loucas aguardavam este acontecimento como se fosse
um dos mais extraordinários da sua vida, e, na verdade, acabava
213
#
sendo. Do terraço via-se o sol e também o mar, assim como a
cidade de Havana, onde tanto sofrêramos, mas que parecia agora
um verdadeiro paraíso. As bichas-loucas se embelezavam para a
ocasião: usavam perucas feitas de corda obtida sabe Deus como;
maquiavam-se e colocavam saltos altos feitos de pedaços de
madeira. Na verdade, não tinham nada a perder; talvez nunca
tivessem tido nada a perder e, por isso mesmo, podiam dar se ao
luxo de ser autênticas, desmunhecar, fazer piadas, e até mesmo
expressar admiração pelos combatentes. Isso, aliás, podia lhes
custar uns três meses sem pegar sol, o pior que poderia acontecer
a um preso, já que sol matava os piolhos e os carrapatos que
penetram debaixo da pele, infernizando a vida, não deixando
ninguém dormir.
Meu catre era o último da fila, junto à clarabóia. Sentia muito
frio e quando chovia a água entrava, assim como entrava a luz do
farol de El Morro, a cada três minutos, batendo no meu rosto; era
difícil dormir com aquela enorme luz girando na minha cara, além
do barulho dos presos e das luzes internas da própria prisão, que
nunca se apagavam.
Eu dormia abraçado com A Iliada, cheirando as páginas. Para
manter-me ocupado, organizei umas aulas de francês; não havia
livros, claro; mas aos poucos conseguimos papel, lápis e outras
coisas mais. Eu ditava as aulas do meu catre e era difícil pronunciar
e me fazer entender em francês em meio àquela gritaria, mas pelo
menos aprenderam umas poucas frases; às vezes conseguíamos até
manter um pequeno diálogo em francês. As aulas chegavam a ter
um certo horário fixo, depois das refeições, e às vezes se prolonga-
vam até duas horas. Há sempre alguém interessado em aprender
algo numa prisão, e até mesmo os assassinos podem gostar da
língua francesa.
Por outro lado, nem todos eram assassinos. Havia, por exem-
plo, um pobre pai de família com todos os Filhos, condenados a
cinco anos de cadeia por terem matado uma das suas vacas para
comer, algo que as leis de Castro não permitiam. Havia também
outros presos que mataram vacas alheias para vender a carne no
mercado negro; mas a fome em Cuba era tão grande que as pessoas
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#
brigavam desesperadamente por aqueles pedaços de carne, vendi-
dos no mercado negro a preços altíssimos.
Na minha ala havia muita gente presa por "picacídio"; como
chamavam o estupro de mulheres ou menores. Mas o picacídio
incluía qualquer outra coisa; por exemplo, encontrava-se preso
comigo um homem que, ao tomar banho em sua casa, fora visto por
umas velhas que o denunciaram. Havia outros que realmente ti-
nham praticado estupro com espancamento e deformações faciais.
Para estes o promotor tinha pedido pena de morte, mas acabaram
pegando trinta anos de cadeia. Muitos presos nem sabiam qual a
extensão de sua pena; no meu caso calculava-se de oito a quinze
anos; outros, trinta anos ou a pena de morte, de acordo com o pedido
do promotor.
Os presos sempre davam um jeito de saber qual o delito dos
outros, até mesmo através dos próprios guardas. Havia um rapaz
que entrara numa casa em traje militar, roubando tudo; tratava-se
de um delito grave, pelo fato de ter usado um uniforme do exército
de Fidel Castro para roubar.
Uma vez por mês, tínhamos direito a uma hora para receber
visitas. Eu não recebia ninguém, pois minha mãe estava em Holguín
e eu também não queria visitas; distraía-me olhando para os outros
presos recebendo seus parentes. A família daquele rapaz pensava
que sua pena seria curta, mas não foi assim; ele pegou trinta anos.
Não consigo esquecer os gritos da mãe, das irmãs e da noiva do
rapaz; ele tentava consolá-las, mas os gritos eram horríveis. Trinta
anos.
Um preso que já estivera na cadeia por motivos políticos e
encontrava-se lá agora por um delito comum ajudou-me um pouco
a sobreviver naquelas circunstâncias. Chamava-se Antonio Corde-
ro e conhecia todos os truques; a primeira coisa para suportar aquele
lugar era não morrer de fome. Aconselhou-me a não comer o pão
nas refeições, e sim guardá-lo para comer depois. Os presos co-
miam suas minguadas rações com a maior gula: um pouco de arroz,
macarrão sem sal e um pedaço de pão. O almoço era às dez da
manhã e não se dava mais nada até as seis ou as sete da noite; se o
preso não guardasse o pão, morreria de fome com a ínfima quanti-
215
#
dade de comida que serviam. Certas vezes, por motivos inexplicá-
veis, não havia jantar e era insuportável ficar tantas horas sem
comer nada; então aquele pedaço de pão dormido era um verdadeiro
tesouro, que não devia ser comido de uma só vez, e sim em
pedacinhos a cada três horas, com um pouco de água. Conseguir
açúcar era uma proeza; às vezes, deixavam passar meio ou um quilo
de açúcar nas sacolas trazidas pelas visitas; um pouco de água com
açúcar em El Morro era um dos maiores prazeres. Meus amigos, os
alunos de francês, formaram uma cooperativa para a qual eu não
precisava levar nada, mas fui aceito como sócio; o negócio era levar
o que os familiares traziam nas visitas e fazer uma espécie de cesta
comum para uma merenda coletiva.
Não era nada fácil guardar água ou açúcar, nem mesmo
almofadas e colchas para dormir. Os presos mais perigosos e o
"xerife" da ala roubavam tudo. Às vezes, era preciso comer o
pouco que pertencia aos outros; um pedaço de pão, um pouco de
açúcar e até a própria almofada. Eu não largava A Ilíada, pois
sabia o quanto representava para os presos; não pelos seus
valores literários, e sim porque com suas páginas servia para
enrolar "cigarros" feitos com enchimento de colchões ou almo-
fadas. Os livros tinham muita procura, sendo utilizados como
papel higiênico naqueles banheiros cheios de merda e moscas
que se nutriam dela, zumbindo à nossa volta o tempo todo. Minha
galeria ficava perto dos banheiros, e eu tinha de suportar não só
aquele fedor, como também o barulho dos ventres se aliviando.
Certas ocasiões colocavam na comida algum tipo de condimento
que provocava diarréia; era horrível ouvir, do meu catre, aqueles
homens soltando peidos terríveis e constantes, excrementos
caindo sobre excrementos ao lado da minha galeria cheia de
moscas. O fedorjá impregnava nossos corpos, como parte de nós
mesmos, pois o ato de tomar banho era uma coisa apenas teórica;
de quinze em quinze dias, quando recebíamos visita, enchiam de
água alguns tanques e tínhamos que entrar em fila, nus, e passar
diante dos tanques, onde os "xerifes" enchiam uma vasilha de
água ejogavam sobre nós; continuávamos a andar, nos ensaboan-
do até passarmos outra vez na frente dos tanques, onde jogavam
216
#
outra vasilha para nos enxaguar. Este era o nosso banho. Era
impossível alguém ficar limpo assim, mas o simples fato de tomar
esse banho representava enorme consolo. Os "xerifes" ficavam na
parte superior do tanque com porretes, e se alguém tentasse passar
duas vezes tomava porrada.Entre eles havia fanchonos que ficavam
de olho nos rapazes de corpo bonito e depois tentavam cantá-los;
ou então tinha uma bicha que se encontrava naquele lugar com seu
macho. Durante um desses banhos vi todos os "xerifes"enrabando
um pobre adolescente que nem era bicha. Um dia, o rapaz pediu
para ser transferido, falou com um dos guardas e explicou o que
estava acontecendo; mas o guarda não deu a menor atenção à sua
história; e ele teve de continuar a dar o rabo, a contragosto, a toda
aquela gente. Como se não bastasse, ainda era obrigado a lavar a
roupa de todos aqueles homens, cuidar das suas coisas, entregar-
lhes parte da sua própria comida. Essas pobres bichas ou adoles-
centes forçados tinham que abaná-los e espantar as moscas, como
se fossem escravos daqueles criminosos.
Cada vez que chegavam rapazes novos, chamados de "carne
fresca", aqueles delinqüentes os estupravam. Os "xerifes" ti-
nham paus com pregos na ponta, e quando um rapaz os repelia,
furavam-lhe as pernas com esses pregos; era difícil escapar.
Primeiro, tinha que chupar o pau e deixar-se possuir por eles; se
recusasse, levava com os pregos nas pernas. Alguns que não
agüentavam tudo isso suicidavam-se. O suicídio também não era
fácil lá dentro, mas alguns presos aproveitavam a hora do banho
de sol no terraço do castelo, a uma boa altitude; quem se atirasse
de lá de cima se arrebentava sobre as pedras de El Morro. Foram
muitos os que se atiraram. Um rapaz que eu conhecia atirou-se,
e nem sei como não morreu; fraturou as duas pernas e ficou
paralítico. Um mês depois, chegou de volta numa cadeira de
rodas.
Quando esses rapazes queixavam-se à direção ou aos comba-
tentes a respeito dos abusos a que eram submetidos, não lhes davam
a menor atenção. Havia uma cela reservada aos adolescentes, mas
era a mais infernal de todas; aqueles presos eram mais ferozes e
desumanos.
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Rapazes heterossexuais constantemente estuprados por aque-
les homens acabavam confessando que eram bichas-loucas só para
passarem à galeria dos veados; lá, pelo menos, não seriam violen-
tados. No entanto, nem lá tinham sossego; as bichas, por qualquer
razão, odiavam os que acabavam de ser enrabados e sentiam uma
certa inveja; sempre davam um jeito de feri-los no rosto. Além
disso, as brigas entre bichas-loucas eram terríveis; havia sempre
um clima de violência que era descarregada sobre o mais infeliz e
desprotegido.
As bichas-loucas preparavam uma arma muito eficaz: paus
com lâminas de barbear; com tais armas, feriam qualquer pessoa,
em qualquer lugar.
Os criminosos que não eram bichas utilizavam paus com
pregos na ponta, navalha, punhal ou algum tipo de estilete. Mas as
bichas preferiam as lanças com gilete, pois com isso era difícil
matar, mas conseguiam acabar com o rosto de quem quisessem. A
vítima dessas lanças ficava cheia de feridas não muito profundas,
mas que deixavam cicatrizes permanentes. Quando duas bichas-
loucas brigavam com lanças, o objetivo de cada uma delas era
atingir o rosto da outra, provocando marcas profundas. Acabavam
sempre em meio a poças de sangue.
Os combatentes não tomavam partido nessas batalhas; ao con-
trário, divertiam-se bastante com toda aquela desgraça. Tais cenas
ocorriam sempre antes das refeições, no pátio; talvez porque lá
houvesse mais espaço. Nas celas, o espaço era muito reduzido e às
vezes corria-se riscos mortais ao descerdo beliche se, casualmente,
alguém pisasse na mão ou no rosto de quem estivesse dormindo
embaixo; essa pessoa podia pensar que se tratava de uma ofensa e
simplesmente matar a outra. Para descer, eu me segurava com todo
o cuidado no pau da cabeceira, sem tocar em ninguém; depois, já
no chão, todo o cuidado ainda era pouco para não pisar alguém,
pois ali costumava dormir gente que nem tinha leito. Concluí que
a maioria daqueles homens, incluindo os assassinos, não passava
de retardados mentais; por isso manifestavam tanta violência gra-
tuita, levando a sério o menor detalhe insignificante. Mas para o
governo não interessava interná-los num hospício.
218
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Havia bichas-loucas que, apesar de tudo, se divertiam transan-
do com todos naquela ala. No entanto, corriam um risco enorme,
pois alguns presos ficam apaixonados e, por uma questão de "ma-
chismo", acabam sempre cortando a cara da bicha simplesmente
por ter olhado para outro, ou porque alguém lhe ofereceu um gole
de café, ou porque cumprimentou outro "macho" da cadeia. Além
do mais, quem fosse considerado homem era objeto de chantagem
e tinha que se deixar enrabar por todos. Corria igualmente o risco
de ser atacado por uma bicha enciumada, que inventava todo tipo
de intrigas a seu respeito, inclusive que era alcagüete dos comba-
tentes, delatando os presidiários.
Não tive relações sexuais na cadeia; não apenas por precaução,
como também porque não fazia sentido; o amor é algo livre e a
cadeia é algo monstruoso, onde o amor se transforma em bestiali-
dade. De qualquer maneira, eu também era um marginal que
estuprara uma anciã e assassinara não sei quantas pessoas, e tam-
bém um agente da CIA. Além do mais, chegara num estado de
euforia provocado pelos comprimidos alucinógenos. Os outros
presos nunca imaginaram que eu tentara me suicidar, e sim que
havia tomado todos os comprimidos na esperança de fugir daquela
realidade. Eu era chamado de "doidão", porque durante semanas
fiquei cambaleando pelo refeitório; quando me davam a bandeja
com a comida, eu ia para a frente e para trás, e a bandeja acabava
caindo.
Como nada se esconde para sempre, acabaram sabendo que eu
era escritor. Não sei o que a palavra "escritor" significava para
presos comuns, mas muitos vieram me pedir que escrevesse cartas
de amor.para as namoradas ou familiares. O fato é que improvisei
uma espécie de escrivaninha na minha ala, e para lá vinham todos
para que eu redigisse suas cartas. Alguns tinham o seguinte proble-
ma: a cada visita, chegavam duas ou três namoradas ao mesmo
tempo, e eu tinha então que bolar duas ou três explicações diferen-
tes, desculpando-me junto àquelas mulheres. Passei a ser o namo-
rado ou o marido literário de todos os presos de El Morro.
Quando as mulheres chegavam de visita e abraçavam os mari-
dos ou namorados eu me sentia gratificado, pois aquela reconcilia-
219
#
ção devia-se à minha interferência. Muitos presos queriam me
pagar poresses favores, mas o dinheiro na prisão não tinha o menor
sentido e nem era permitido possuí-lo; a melhor forma de pagamen-
to era com cigarros, um verdadeiro privilégio ali. Era muito difícil
obtê-los, pois só deixavam passar um maço a cada quinze dias, e
era também muito difícil obter qualquer coisa não permitida pelo
regulamento. Antes e depois das visitas éramos submetidos, com-
pletamente nus, a uma rigorosa revista.
Sempre me perguntei por que muitos soldados usavam óculos
escuros; só descobri o motivo mais tarde: alguns deles se excita-
vam, e com óculos escuros podiam admirar os corpos nus dos
presos sem que eles ou os outros guardas percebessem. Devia ser
um enorme prazer para aqueles homens ver-nos desfilar à sua
frente. Às vezes, a revista era extremamente minuciosa e não sei
por que nos mandavam ficar de quatro e abrir as nádegas, levantan-
do os testículos e o pênis. Tudo indica que temiam que conseguís-
semos fazer passar algum recado, um comprimido ou qualquer tipo
de objeto proibido; nada podia passar, muito menos dinheiro. Quase
sempre esse tipo de revista era feito com presos mais jovens e de
boa aparência. Queriam revistá-los mas também humilhá-los, fa-
zendo aqueles jovens másculos exibirem as nádegas daquela ma-
neira.
No entanto, existia uma forma de burlar a revista; era o que
faziam umas bichas-loucas muito habilidosas, chamadas de "ma-
leteiras". Os presos davam às maleteiras o que seus familiares
tinham trazido: maços de cigarros, dinheiro, comprimidos, crucifi-
xos, anéis. As maleteiras colocavam tudo numa sacola de náilon,
iam até o banheiro e enfiavam tudo no cu. Algumas tinham uma
capacidade realmente surpreendente, chegando até a transportar
cinco ou seis maços de cigarros, centenas de comprimidos, corren-
tes de ouro e inúmeros outros objetos. É claro que, por mais que se
revistasse uma maleteira, era impossível descobrir o que estava
guardado em seu cu; introduziam tudo lá no fundo e quando
voltavam à sua ala, a primeira coisa que faziam era ir correndo para
o banheiro e descarregar a mercadoria. Naturalmente, cobravam
dez por cento pelo transporte, ou até vinte ou cinqüenta por cento
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da mercadoria que transportavam; mas tratava-se de um meio
seguro.
Uma vez, uma bicha chamada La Macantaya recusou-se a
entregar um maço de cigarros que transportara para uns presos,e
armou o maior escândalo. A bicha conseguiu impor-se aos presos
graças a seu pau com pregos. A confusão ficou ainda maior quando
a La Macantaya furou a cara de um dos donos da mercadoria, sendo
mandada para a cela dos castigos.
Os presos comuns costumam ter uma espécie de memória que
não perdoa uma ofensa, e praticam a ética da vingança. Aquele
grupo de presos jurou que se vingaria da bicha. Simularam uma
briga, deram-se socos leves e foram parar na cela dos castigos com
La Macantaya; naquela mesma noite, cortaram-lhe a cabeça, ou
seja, foi decapitada. O corpo sem cabeça foi descoberto três dias
mais tarde por causa do fedor. Os combatentes não entram na cela
dos castigos e, de longe, via-se o corpo de La Macantaya, que
parecia estar dormindo. Todos aqueles presos foram levados para
a prisão de La Cabana e fuzilados, porque em El Morro não se
fuzilava mais; por isso, quando alguém era levado para a cela dos
castigos, ficava apavorado de ser transferido depois para La Caba-
na, e finalmente executado.
Esses ajustes de contas eram constantes em El Morro. Os
delinqüentes, freqüentemente acusados de vários crimes sérios,
tinham uma espécie de puritanismo exagerado; nunca perdoa-
vam quem tivesse tocado uma das suas nádegas ou xingado a sua
mãe. Juravam matar o ofensor, e geralmente era o que faziam.
Obviamente, caso um preso em perigo pedisse transferência para
outra ala, o preso que jurara vingança dava um jeito para conti-
nuar vigiando o outro e esperava uma oportunidade - durante
a visita, no refeitório, no terraço enquanto tomavam sol; e matava
sua vítima na primeira oportunidade, com um estilete ou uma
navalha.
Num dia de visita, eu me encontrava na fila e trocava umas
palavras com um prisioneiro. Tudo aconteceu tão depressa que mal
percebi o que ocorria. Chegou outro preso, pegou um gancho
enorme e o enfiou no peito do preso ao meu lado. Este pôs a mão
221
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no peito, inclinou-se para a frente e caiu morto. O que mais me
surpreendeu foi o rosto do assassino e a sua atitude depois de
cumprida a vingança; ficou estático, pálido, imóvel, com o gancho
nas mãos. Um guarda se aproximou e o desarmou sem que ele
demonstrasse o menor sinal de resistência; parecia em transe.
Imagino que depois o fuzilaram.
As vezes, os atos de violência dos presos eram dirigidos contra
eles próprios; certa vez, amanheceu em minha cela um jovem
enforcado. Disseram que tinha problemas políticos e que ficara
louco; e não era para menos, pelo único fato de se encontrar nesse
lugar; também acho que era meio louco. Era muito difícil alguém
se enforcar numa ala com mais de duzentas pessoas; acho que um
grupo de presos rivais acabou enforcando-o, talvez até por proble-
mas sexuais, pois era um rapaz de boa aparência; talvez o tivessem
matado e depois passado a corda para simular suicídio.
Nesses casos de suicídio aparente, o Estado também costumava
se envolver. Em nossa galeria, repleta de presos comuns, havia
agentes da Segurança do Estado; era difícil conseguir descobri-los,
pois às vezes passavam um ano apanhando como o resto de nós,
vivendo em meio aos excrementos, mas na verdade eram informan-
tes da Segurança infiltrados entre nós para delatar qualquer ativi-
dade política dos presos. Às vezes, perseguiam algum preso espe-
cífico, que fora colocado na galeria dos presos comuns mas que na
verdade era um preso político como eu. Mais tarde, quando me
encontrava na galeria dos trabalhadores, descobri alguns desses
agentes. Estranhamente, eles não dormiam na galeria e os guardas
fingiam não perceber, o que me levou a deduzir que tinham uma
licença especial para visitar a família. Eram homens sinistros;
podiam matar qualquer um ali e ninguém saberia que eram agentes
da Segurança do Estado; não diferiam de um preso comum que dava
uma estocada em outro; depois de cometido um crime eles eram
retirados, supostamente parajulgamento, e nunca mais os víamos;
deviam ter sido promovidos.
Mas havia também suicídios de verdade. Foi o caso de La
Maléfica, uma bicha negra que esticava o cabelo ali mesmo na
prisão; tinha uma cara horrível. Diziam que matara várias pessoas;
222
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zombava de todo mundo e não respeitava nem os próprios guardas;
por isso mesmo era tratada a patadas e socos. Um dia, na hora da
refeição, La Maléfica pegou um pau com uma faca na ponta, que
tinha afiado durante um mês no chão de cimento; todo mundo
pensou que fosse matar alguém, mas ela pediu que ninguém se
aproximasse, girou o facão e cortou a própria garganta. Uma
autodegolação; nunca mais quero ver um ato como aquele. Ela ficou
sangrando no pátio da cadeia, enquanto as outras bichas faziam o
maior escândalo. La Maléfica, enquanto sangrava, continuava gi-
rando a faca e o pau, gritando para que ninguém se aproximasse,
até acabar caindo, morta. Os combatentes divertiram-se e riram
bastante com a cena; depois, arrastaram o corpo ensanguentado e
levaram-no, provavelmente para enterrá-lo.
Os guardas eram tipos sádicos, que talvez tivessem sido esco-
lhidos a dedo para trabalhar ali; ou talvez tivessem se tornado
sádicos naquele ambiente. Adoravam nos maltratar; havia um des-
cendente de asiático de uns vinte anos que ficava excitado ao bater
nos presos, mas era tão evidente que ele chegava a agarrar o pênis,
aliás enorme. Era impressionante ver aquele falo enorme erguen-
do-se por debaixo do pano da calça comprida, enquanto um preso
era espancado.
Quando encontravam uma arma numa das galerias, os com-
batentes exigiam que os presos dissessem a quem pertencia.
Logicamente, ninguém dizia uma palavra, pois aquilo podia
custar-lhe a própria vida. Então, o castigo era coletivo e realmen-
te draconiano; eramos levados para o pátio e obrigados a abaixar
a calça; um guarda começava então a bater nas nossas nádegas
até não aguentar mais de cansaço. Os homens se continham e não
gritavam, mas as bichas-loucas berravam enquanto apanhavam.
O oriental da pica grande ficava excitado vendo aquilo; acho até
que ejaculava.
Depois daqueles castigos era o único momento em que se podia
dormir na ala, pois ninguém tinha ânimo para falar; estávamos
moídos de dor.
Um preso chamado Camagüey conseguiu improvisar uma es-
pécie de anzol, que lançava com bolinhas de pão pela clarabóia. E
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#
pegava uns passarinhos que pareciam tão famintos que ás
vezes, pescava um toti ou uma andorinha; era um pescador de
pássaros que pescava no ar ao invés de no mar. Camagüey tinha um
dom especial para se dar bem com todo mundo e ser respeitado;
talvez porque tivesse tentado fugir de Cuba mais de cinco vezes,
sendo sempre recapturado. O fato é que preparava uma sopa
deliciosa com aqueles pássaros e ninguém o incomodava; nem
mesmo os "xerifes". Tinha tato para sobreviver e senso de humor.
Eu desfrutava o prazer de tomar suas sopas, que me ajudaram
muito.
Apesar de não ter tido relações sexuais com ninguém no
cárcere, como já disse anteriormente, mantive um romance plato-
nico com Sixto, um negro da província de Oriente que era o nosso
cozinheiro. Alguns diziam que era um assassino, mas outros afir-
mavam que só tinha matado vacas clandestinamente. Sixto se
afeiçoou a mim e quando terminava a faxina na cozinha convida-
va-me para comer. Acho que ele era, com toda a certeza, um
assassino, porque só se dava essa função a quem tivesse um
temperamento forte; um assassino com várias mortes nas costas era
a pessoa ideal para racionar a comida na cozinha; ele era implacável
e honesto, e não dava um grão de arroz a mais para ninguém, mesmo
se ameaçado de morte.
Sixto sentava-se no meu beliche e falava a respeito de qualquer
besteira; começou a sentir afeto por mim e era mútuo, mas nunca
me fez qualquer tipo de proposta; nem mesmo um "disparo", que
era uma espécie de relação sexual, muito comum na cadeia, que se
realizava por telepatia mútua. O "disparo" consistia em algo mis-
terioso, quase impossível de se descobrir; duas pessoas ficavam de
acordo para realizar o "disparo"; o passivo abaixava as calças no
leito, e o ativo, situado a uma certa distância, masturbava-se e
quando ejaculava o passivo cobria as nádegas. Sixto nunca me
pediu para fazê-lo. Depois que saí de El Morro, fiquei sabendo que
tinha sido morto com um facão de cozinha durante uma briga com
outro preso, a quem Sixto negara outra concha de sopa.
Não vi a morte de Sixto, mas vi a de Cara de Boi, um fanchono
famoso em El Morro; acho que estava preso por ter estuprado vários
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#
meninos. Dizia-se que após violentar os meninos os colocara em
tanques de cal, para que não se queixassem aos pais.
Parece que Cara de Boi esperava a sentença de morte, mas os
julgamentos em Cuba são muito demorados, até para autorizar a
morte de alguém. Como ele era um dos presos respeitados na
cadeia, mandava na cozinha e nos banheiros; colocava-se por trás
de uma parede na hora em que os presos iam tomar banho e ficava
espiando-os. Alguns se queixavam que Cara de Boi se masturbava
enquanto se lavavam. Com certeza era o que ele fazia; pude vê-lo
certa vez;já era velho, mas tinha uma picaenorme. Seu único prazer
era olhar os homens no banheiro e se masturbar. Isso lhe custou a
vida, pois outro preso o surpreendeu enquanto se masturbava e o
matou na cozinha, enfiando-lhe uma faca nas costas.
Cara de Boi sempre me respeitou. Nunca falou de assassinatos
ou de crimes de nenhum tipo; conversava comigo a respeito da
esposa, mas ninguém vinha visitá-lo. Não era violento; seu único
momento de exaltação era no banheiro, ao olhar para as nádegas
dos outros homens enquanto se masturbava. Isto lhe custou caro,
mas o fato é que o prazer sexual se paga quase sempre muito caro;
mais cedo ou mais tarde, por cada minuto de prazer que vivemos,
passamos depois anos de sofrimento; não se trata da vingança de
Deus, é a vingança do Diabo, inimigo de tudo que é belo. O belo,
porém, sempre foi perigoso. Martí dizia que aquele que traz a luz
permanece sozinho; eu diria que aquele que pratica certa beleza é,
mais cedo ou mais tarde, completamente destruído. A humanidade
não tolera a beleza, talvez porque não possa viver sem ela; o horror
da feiúra avança cada dia a passos acelerados.
Por falar em beleza, lembro-me de um rapaz em El Morro que
representava a beleza levada à perfeição. Tinha uns dezoito anos e,
segundo ele próprio, estava preso por deserção do serviço militar;
mas outros afirmavam que traficara com drogas ou que estuprara a
namorada, o que era absurdo, pois aquele rapaz não tinha necessi-
dade de estuprar ninguém; ao contrário, era ele que incitava os
outros ao estupro. El Nino, era como o chamavam; talvez por causa
da sua pele clara, do cabelo ondulado e do rosto, onde o terror ainda
não deixara nenhum vestigio. Não participava de nenhuma ativida-
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#
de sexual; permanecia à distância e, ao mesmo tempo, amável;
os presos não podiam admitir tanta beleza em meio àquele horror.
Os "xerifes" tentaram conquistá-lo e não conseguiram; isso
representava um risco.
El Nino dormia na fileira de beliches opostos ao meu. Para
mim, era um imenso prazer poder contemplar aquela figura, as
pernas tão bem moldadas. Imagino que ele sabia quanto perigo
representava ser tão bonito num lugar como aquele; quando se
deitava, era como um deus. Um dia, na hora da chamada, El Nino
não se levantou; tinham cravado um estoque em suas costas en-
quanto dormia, o qual chegava a sair pelo estômago. Os estoques
eram varetas de metal fabricadas pelos presos, com fios de arame
grosso. Alguém deve ter vindo por baixo do catre, que não passava
de uma lona, e enfiou a arma. Ninguém ouviu grito algum, e parece
que El Nino morreu no ato.
O que os presos mais temiam era esse tipo de morte; uma morte
traidora que era praticada durante o sono, e pelas costas. Essas
mortes eram quase sempre resultado de alguma vingança, mas o
único delito daquele rapaz era saber sorrir com sua boca tão
perfeita, ter um corpo maravilhoso e um olhar quase inocente.
O verão chegou e começou aquele calor insuportável. O calor em
Cuba é sempre insuportável, úmido, pegajoso. Mas quando se está
numa cadeia marinha, cujas paredes têm um metro ou mais de
largura, sem nenhuma ventilação, e com mais de 250 pessoas
trancadas no mesmo recinto, o calor se torna inconcebível. Por essa
razão, os percevejos e as baratas se reproduziam com uma veloci-
dade incrível, as moscas enegreciam o ar e o fedor de merda
tornava-se ainda mais pungente.
Lá fora, ao longo do dique de Havana, celebrava-se o carnaval
de 1974, a festa que Fidel transformara em sua própria homenagem
e que ocorria por volta do dia 26 de julho. Todos nós queríamos sair
da cadeia e tomar cerveja, dançar ao som dos tambores; essa era a
maior felicidade que aqueles homens podiam desejar; no entanto,
muitos ali não poderiam jamais desfrutá-la.
As bichas-loucas organizaram seu próprio carnaval, com mú-
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#
sica de tambores confeccionados com pedaços de madeira ou ferro.
Dançavam rumba dentro daquela cela calorenta, e uma delas en-
cerrava o espetáculo cantando Cecilia Valdés; cantava muito bem
e sua voz de soprano ecoava na cadeia com as palavras: "Sim... Eu
sou Cecilia Valdés." Na verdade, poderia ter sido a estrela de
qualquer zarzuela, ou comédia musical.
Os presos ficavam impressionados ouvindo aquela bicha-
louca, que dizia chamar-se Yma Sumac. Gonzalo Roig teria
ficado orgulhoso de ter uma intérprete dessa importância. Aquela
cantoria durava até de madrugada, quando os combatentes irrom-
piam na ala das bichas-loucas e as faziam calar aos berros e
socos. Uma vez, Yma Sumac foi retirada toda ensangüentada;
dizem que uma bicha invejosa, que também queria representar
Cecilia, embora não tivesse voz para tanto, dera-lhe uma estoca-
da. Nunca mais a vimos.
Eu já estava há seis meses em El Morro e ainda não fora a
julgamento; outros estavam ali há mais de um ano e também não
foram convocados. Um dia, um combatente me chamou e me
mandou passar pelas grades; foi o que fiz, sem saber por que
estavam me chamando. Levaram-me escoltado até um quartinho
onde estava a minha mãe, que conseguira uma autorização para me
ver. Ela se aproximou e me abraçou, chorando; tocou meu uniforme
de presidiário e disse: "Que tecido grosso! Que calor você deve
estar sentindo!" Aquilo me comoveu mais do que qualquer outra
observação; as mães sempre têm esse encanto secreto de tratar a
gente como criança. Nós nos abraçamos em silêncio e choramos
juntos; nesse momento, aproveitei para lhe pedir que fosse ver meus
amigos e os avisasse para tomar cuidado com meus manuscritos
que mantinham guardados; prometeu ir visitá-los. Eu não podia lhe
contar como era aquele lugar; só disse que estava muito bem e que,
com certeza, logo sairia daquela cela; que não viesse mais me visitar
e esperasse minha saída. Quando se levantou, percebi o quanto
havia envelhecido naqueles seis meses; seu corpo tinha desmoro-
nado e a pele perdera a consistência.
Sempre pensei que, no meu caso, era melhor viver longe da
minha mãe para não fazê-la sofrer; talvez todo filho devesse deixar
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#
a mãe e viver a própria vida. Na verdade, são dois egoísmos em
luta: o da mãe querendo que vivamos de acordo com seus desejos
e o nosso, querendo realizar nossas próprias aspirações. Toda
minha vida foi uma constante fuga da minha mãe; do campo para
Holguín, de Holguín para Havana; em seguida, querendo fugir de
Havana para o exterior. Eu não queria ver o rosto decepcionado da
minha mãe por causa do modo de vida que eu levava; seus conse-
lhos, apesar de práticos e elementares, eram, com toda certeza,
muito sábios. Mas eu só podia abandonar a minha mãe ou tornar-me
igual a ela - isto é, um pobre ser resignado, com uma grande
frustração e sem qualquer instinto de rebeldia; e principalmente,
teria que afogar meus desejos fundamentais.
Naquele dia, quando minha mãe foi embora, experimentei a
maior solidão de toda a minha vida; ao entrar na ala, os presos
começaram a me pedir cigarros, mas notaram que eu estava tão
perturbado que os próprios criminosos permaneceram em silêncio.
Quando cheguei ao meu beliche, percebi que alguém havia roubado
o volume de A Iliada; era inútil tentar procurá-lo, pois com certeza
Homero já devia ter virado fumaça.
Na manhã seguinte gritaram meu nome na grade e disseram
que eu tinha cinco minutos para me apresentar com todos os meus
pertences. Todos os presos se acercaram do meu catre, fazendo mil
conjecturas; uns diziam que ia ser solto, outros gritavam que iam
me mandar para trabalhar numa fazenda, outros ainda achavam que
iam me levar para uma prisão aberta ou para La Cabana. Na
verdade, queriam que eu repartisse o pouco que possuía: a almofa-
da, o jarro ou a garrafa de água. Camagüey aproximou-se e disse
que, numa hora dessa, não chamavam ninguém para libertá-lo; além
do mais, eu nem tiverajulgamento; não achava que fossem me levar
para uma fazenda, porque geralmente levam vários presos juntos;
disse que eu seria levado para a Segurança do Estado. Era um
homem sábio. Despedi-me dos conhecidos e dividi todas as minhas
coisas. Em momentos como esses, na cadeia, sempre há um certo
estado de euforia e tristeza, porque é muito provável que nunca mais
se veja a pessoa que vai embora.
Sem qualquer explicação, levaram-me escoltado até uma cela
228
#
de castigos; ao chegar lá, o oficial que me escoltava empurrou-me
para dentro e foi embora. Era o pior lugar de toda a prisão, onde
vinham pararos assassinos irrecuperáveis antes de serem fuzilados;
os que ali ficavam esperavam apenas pelo "pauzinho", como
diziam os presos a respeito do poste, no paredón de fuzilamento,
ao qual eram amarrados. Aquela cela era um lugar sórdido, com
chão de terra, onde eu nem conseguia ficar em pé porque não tinha
mais que um metro de altura; a cama não passava de uma espécie
de estrado de ferro sem colchão; quanto às necessidades fisiológi-
cas, tinha que fazê-las num buraco, e não havia nem vasilha para
tomar água. Aquele lugar era como o centro de abastecimento de
pulgas e percevejos; aqueles insetos atiraram-se sobre meu corpo
para me dar as boas-vindas.
Em El mundo alucinante, eu falava de um frade que tinha
passado por várias prisões sórdidas (incluindo El Morro). Ao entrar
ali, resolvi que de agora em diante teria mais cuidado com o que
fosse escrever, pois parecia estar condenado a experimentar em
meu próprio corpo tudo o que eu escrevia.
Durante todo o primeiro dia, ninguém veio me visitar ou me
trazer algum tipo de alimento; como quase todos ali destinavam-se
ao paredón, não havia muito interesse em alimentá-los. Nem era
possível fazer queixa; havia a mais total falta de comunicação e o
desespero absoluto. Dois dias depois, trouxeram algo para comer e
fizeram uma revista; eracompletamente absurdo naquelas celas tão
seguras; ninguém podia fugir de lá.
Havia um preso que cantava noite e dia, imitando a voz de
Roberto Carlos à perfeição. Aquelas canções tão tristes tinham sido
como hinos para o povo de Cuba; de certa forma, transformaram-se
em gritos pessoais para cada um de nós. E aquele preso cantava
essas canções com mais autenticidade e com dor mais profunda que
o próprio Roberto Carlos.
Após uma semana, o mesmo oficial que me trouxera até aquela
cela de castigos abriu a porta e mandou que o acompanhasse.
Percorremos o mesmo caminho de uma semana atrás e ele me levou
até um escritório onde se encontrava um tenente chamado Víctor,
o qual ficou de pé e me estendeu a mão. Disse que lamentava muito
229
#
pelo fato de eu me encontrar naquela cela, mas era melhor ficar
isolado, pois me fariam uma série de perguntas e achavam melhor
eu permanecer incomunicável para não chamar a atenção dos
presos.
Percebi então que toda aquela história de me levar para El
Morro não passava de uma grande encenação; queriam apenas
confundir a opinião pública estrangeira, transformando-me em
preso comum; mas, ao mesmo tempo, ia ser submetido aos
interrogatórios da Segurança do Estado. Sabia, por amigos meus
que já haviam passado pela Segurança, o que isto significava:
torturas, humilhações de todo tipo, interrogatórios constantes até
que a gente acabasse delatando os amigos ; eu não estava disposto
a isso.
O oficial continuou falando, sempre num tom amável. Disse
que viera para me ajudar e que, de acordo com meu comportamento,
minha estada na cela de castigos iria se prolongar ou não. Levan-
tou-se e ficou andando pelo recinto, esfregando os testículos.
Imagino que soubesse que eu era homossexual, e esfregar os
testículos na minha frente devia ser uma prova da sua virilidade;
era como se me dissesse que o macho ali era ele. Víctor devia ter
uns trinta anos, era alto, de boa aparência; para mim, era muito
agradável vê-lo andando, enquanto agarrava os próprios testículos;
na verdade, era uma verdadeira homenagem, levando-se em conta
que eu estava há mais de seis meses sem realizar nenhuma atividade
sexual. Quando me levaram de volta à cela, apesar da minha
fraqueza, ainda pude masturbar-me com uma agradável fantasia:
Víctor, com a mão nos testículos, se aproximava de mim, abria a
braguilha, e eu começava a chupar seu pau. Naquela noite, dormi
como um anjo.
Durante uma semana, Víctor veio todos os dias a El Morro para
interrogar-me, e continuava a esfregar os testículos. A Segurança
do Estado queria saber como eu conseguira enviar meus manuscri-
tos e o meu comunicado para a Cruz Vermelha Internacional, a
ONU e a UNESCO. Meus amigos Margarita e Jorge se tinham
empenhado numa grande campanhajunto à imprensa francesa para
denunciar a situação em que eu me encontrava. Le Figaro relatou
230
#
que eu estava desaparecido há cinco meses; a Segurança queria
saber quem passara essa notícia ao jornal, quais eram meus amigos
em Cuba e no exterior. Eu tinha pneus em meu quarto, assim como
câmaras de ar; minha tia me denunciou quando revistaram meu
quarto. Possuir um objeto flutuante era uma prova de querer fugir
do país, o que podia representar uns oito anos de cadeia. Meu caso
era complexo. Segundo Víctor, numa noite em que eu estava
fugindo, havia explodido uma mina e um rapaz morrera, despeda-
çado; acreditavam que a culpa fosse minha. Estavam a par da minha
viagem a Guantánamo e queriam que eu revelasse quem me ajudara
a chegar lá. Se eu confessasse, iria delatar mais de quinze ou vinte
amigos que se tinham sacrificado por mim; não podia fazer tal
coisa. Por essa razão, depois de uma semana de interrogatórios,
tentei novamente o suicídio; não era fácil naquelas celas de casti-
gos, onde não havia nem talheres e nem cordões de sapato. Parei
de comer, mas o organismo resiste infinitamente, e muitas vezes
acaba triunfando.
Certa noite, rasguei o uniforme e fiz uma espécie de corda com
a qual me pendurei pelo pescoço no ferro da cama. Fiquei assim
umas quatro ou cinco horas; perdi os sentidos, mas parece que não
tinha muita prática para me enforcar, e não consegui morrer. Os
soldados me acharam, abriram a cela, me tiraram daquela posição
e me deixaram no chão; o médico da prisão veio me ver, o mesmo
que me atendera seis meses antes por causa dos comprimidos
alucinógenos. Disse: "Você não teve sorte; não conseguiu."
Fui carregado de maca. Estava sem roupa e os soldados faziam
piadas; diziam que qualquer um podia se aproveitar daquelas
nádegas indefesas. Na verdade, aqueles soldados não eram de se
desprezar; eram todos fanchonos e acariciavam minhas nádegas
enquanto os presos no corredor da morte riam. Fiquei umas duas
horas no chão em frente à ala dos condenados à morte. Aos poucos,
todos foram ficando eufóricos; alguém estava mostrando o rabo,
deitado, nu, numa cela em frente à deles.
Por fim, levaram-me para o hospital; me deram soro e remé-
dios. No dia seguinte, o mesmo médico veio me ver. Era um homem
bastante cruel, e disse que eu não ficaria em El Morro por muitos
231
#
dias; de fato, a Segurança do Estado não queria suicídios antes de
confissões. No terceiro dia, Víctor veio com mais dois oficiais;
mandaram que eu ficasse de pé e fosse com eles. Tiraram-me de El
Morro e lá fora subimos num carro da G-2, devidamente escoltado
por soldados armados; rapidamente, atravessamos toda a cidade de
Havana.
232
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Vila Marista
Chegamos a Villa Marista, sede principal da Segurança do
Estado. Levaram-me até um escritório, tiraram toda a minha roupa
e me deram um macacão amarelo, levaram minhas sandálias e me
deram outras, mandaram que me sentasse numa cadeira que parecia
uma cadeira elétrica, cheia de correias nos braços e nos pés; sim,
era uma espécie de cadeira elétrica tropical. Fui fotografado e
tiraram minhas impressões digitais. Depois, levaram-me para o
segundo andar; enquanto ia andando, podia ver as pequenas celas
com uma luzinha que permanecia acesa dia e noite sobre a cabeça
do prisioneiro; compreendi então que aquele lugar era, de fato,
ainda mais terrível que a própria Inquisição.
Cheguei à cela número 21, onde me mandaram entrar. A
pequena janelinha que dava para o corredor ficou fechada. Ali, eu
nunca soube quando era dia ou noite; aquela luzinha permanecia
acesa o tempo todo; o banheiro era um simples buraco no chão. No
quarto dia, fui retirado da cela e levado para um interrogatório.
Um tenente chamado Gamboa começou seu interrogatório,
perguntando se eu sabia onde estava; respondi que estava na Segu-
rança do Estado. Então ele disse: "Você sabe o que isso significa?
Significa que aqui podemos sumir com você, podemos acabar com
você e ninguém nunca vai saber; todo mundo pensa que está em El
Morro e é muito fácil morrer por lá, de uma simples estocada ou de
qualquer outra forma." Entendi logo o que estava querendo dizer;
233
#
compreendi, naquela hora, por que não tinha sido trazido diretamen te
para a Segurança do Estado, e sim levado para El Morro; eu ainda
estava em El Morro para todos os meus amigos, inclusive para minh a
própria mãe, a quem intencionalmente tinham dado permissão para
me ver. Agora, se me assassinassem, a opinião pública pensaria qu e
tinha sido morto nas mãos de algum marginal em El Morro, já que
nunca estivera no prédio da Segurança do Estado.
Era muito difícil não me confundir em meio àquelas inúmeras
perguntas que constituíam o interrogatório. Às vezes, começava de
madrugada e podia se prolongar durante todo o dia; outras vezes,
deixavam de me interrogar durante uma semana e pareciam ter
esquecido de mim; no entanto, logo em seguida voltavam e me
levavam outra vez diante do oficial. Aquele homem não acreditava
numa única palavra minha; às vezes, furioso, ia embora e eu ficava
sozinho naquela sala, ou então aparecia outro oficial para continuar
as perguntas.
Havia muitos russos na Segurança do Estado; na verdade, tudo
era controlado pelo KGB, a Segurança não passava de uma de suas
dependências. Os oficiais soviéticos eram os mais respeitados e
temidos; todos faziam continência na sua frente, como se fossem
generais; e talvez fossem mesmo.
O tenente Gamboa insistia muito sobre o fato da minha solidão,
pois todos os meus amigos tinham me abandonado e ninguém se
interessava por mim. Insistia também sobre as minhas relações
sexuais com Rafael Arnés. Começou perguntando como estava meu
amante; eu nem sabia a quem estava se referindo porque, na
verdade, tivera tantos que não conseguia saber de qual se tratava.
Então, disseram-me que se tratava de Arnés e perguntaram várias
coisas a seu respeito, inclusive detalhes bastante íntimos. A Segu-
rança do Estado sempre quer ter todos os elementos possíveis sobre
qualquer pessoa, mesmo sendo sua aliada, para poder utilizá-los
quando ela cair em desgraça, ou quando quiserem eliminá-la.
Naquele momento, não tinha absolutamente nada a dizer a respeito
de Arnés.
"E as irmãs Bronte?", perguntou-me um dia aquele oficial.
Naquele momento, percebi que uma das pessoas que dera informa-
234
#
ções a meu respeito, durante muitos anos, tinha sido Hiram Prado;
as irmãs Bronte eram os irmãos Abreu, e apenas Hiram Prado sabia
que eu os chamava carinhosamente daquela maneira. O tenente
estava a par das nossas reuniões no parque Lenin, assim como da
nossa amizade. Não fiquei muito surpreso com o fato de Hiram
Prado ter sido um delator; depois de viver tantos anos sob aquele
regime, eu aprendera a entender como a condição humana vai
desaparecendo aos poucos entre os homens e o próprio ser humano
acaba se deteriorando para sobreviver; a delação é algo que a
imensa maioria dos cubanos pratica diariamente.
Ao sair da cadeia, soube que Hiram Prado, sob a pressão da
Segurança do Estado, tinha ido visitar quase todos os meus amigos
tentando saber onde eu estava escondido, na época em que era
fugitivo. Também foi ver a minha mãe.
Na noite em que fiquei sabendo que Prado era delator, voltei à
minha cela bastante deprimido.
Um dia, comecei a ouvir um estranho ruído na cela ao lado; era
como se algum pistão estivesse soltando vapor; depois de uma hora
comecei a ouvir gritos horríveis; o homem tinha um sotaque uru-
guaio e berrava que não aguentava mais, que ia morrer, que paras-
sem o vapor. Compreendi então o que significava aquele tubo
instalado perto do banheiro da minha cela, e que, até então, consti-
tuía um enigma para mim. Era um cano através do qual injetavam
vapor na cela dos presos, a qual, completamente trancada, se
transformava em verdadeira sauna. Injetar o vapor era, na verdade,
uma prática de tortura parecida com o fogo; aquele lugar trancado
e cheio de vapor era capaz de matar por asfixia. Vez por outra
entrava um médico para verificar a pressão e a frequência cardíaca
do preso. Dizia então: "Podem continuar mais um pouco." O vapor
recomeçava, tornava-se mais forte, e quando o preso já estava a
ponto de enfartar, tiravam-no da cela e o levavam para mais um
interrogatório.
Isso aconteceu com meu vizinho durante mais de um mês; eu
dava umas batidas na parede e ele me respondia. Na verdade, estava
sendo assassinado, pois não há organismo que resista àquela ali-
mentação tão deficiente e aos constantes banhos de vapor. Após
235
#
algum tempo, os banhos cessaram; pensei que talvez tivesse con-
fessado ou simplesmente morrido.
Transferiram-me para uma cela pior que a anterior. Senti que
era um castigo por causa da minha falta de sinceridade para com o
tenente que me interrogava. Entretanto, as denúncias feitas por
meus amigos no exterior estavam surtindo efeito; embora conti-
nuassem a me ameaçar, temiam a opinião pública estrangeira. Claro
que não iam me tirar da cela. Queriam é que eu fizesse uma
confissão dizendo ser contra-revolucionário, que me arrependia da
fraqueza ideológica que demonstrara em meus livros já publicados,
que a Revolução dera provas de uma justiça extraordinária em
relação à minha pessoa. Ou seja, uma confissão que representasse
uma conversão e, obviamente, um compromisso de trabalhar para
eles e escrever livros otimistas. Deram-me uma semana para refle-
tir. Eu não queria me retratar; não acreditava que fosse preciso me
retratar em nada; mas, depois de três meses na Segurança do Estado,
assinei a confissão.
Obviamente, esse fato vem apenas comprovar a minha covar-
dia; minha fraqueza, a certeza de que não tenho fibra de herói e que
o medo, em meu caso, está acima dos princípios morais. No entanto,
sentia-me reconfortado em saber que, enquanto estava no parque
Lenin, escrevera no meu comunicado para a Cruz Vermelha Inter-
nacional, a ONU, a UNESCO e muitas outras organizações que
nunca publicaram nada, que as denúncias que fazia contra o regime
de Fidel Castro eram absolutamente verídicas, que tudo aquilo era
verdade, mesmo quando tive de negar, num certo período da minha
vida; sabia que a hora da minha retratação haveria de chegar.
Assim, quando disse ao oficial que estava disposto a redigir
minha confissão, ele mesmo me deu papel e lápis. Minha Confissão
foi longa; falava da minha vida e da minha condição de homosse-
xual, renegando-a; falava do fato de ter me transformado num
contra-revolucionário, das minhas fraquezas ideológicas e dos
meus livros malditos, que eu nunca voltaria a escrever; na verdade,
renegava toda a minha vida, salvando apenas a possibilidade futura
de pegar o trem da Revolução e trabalhar para ela dia e noite. Eu
pedia, logicamente, a reabilitação, isto é: ir para um campo de
236
#
trabalho; e me comprometia a trabalhar para o governo e escrever
novelas otimistas. Tecia elogios aos delatores que me tinham de-
nunciado, que eram pessoas importantes a quem deveria
ter obedecido sempre: Portuondo, Guillén, Pavón; eles eram heróis.
Aproveitei também para falar a respeito de Hiram Prado, contando
as piores coisas que sabia a seu respeito; mas não ligaram muito,
pois sua tarefa como informante era fundamental, tanto nos meios
intelectuais como no submundo de Havana.
Após eu ter redigido a confissão, o tenente a leu com calma.
Três dias mais tarde, veio até minha cela e me cumprimentou;
parecia eufórico. Era evidente que tinha sido muito pressionado
pelos superiores para que eu assinasse logo a confissão e saísse
daquele lugar. Fiquei sabendo mais tarde que jornais estrangeiros
publicaram que eu estava desaparecido e que meu nome não
constava em nenhuma prisão de Havana; estava na hora da Segu-
rança do Estado me tirar dali e me levar de volta a El Morro; fazia
quatro meses que era mantido incomunicável.
Na confissão, porém, não citei o nome de ninguém que pudesse
ser prejudicado em Cuba, nem dos meus amigos no exterior. No
final, o que ficou de tudo aquilo foi o seguinte: eu era um contra-
revolucionário que mandara os manuscritos para fora de Cuba;
publicara tudo, e que agora se arrependia e prometia nunca mais ter
contato com o mundo ocidental, nem escrever uma só linha contra
a Revolução. Prometia também corrigir me sexualmente.
Depois de assinar a confissão, levaram-me de volta para a cela.
Poucas vezes me senti tão infeliz. Fiquei lá mais uns quinze dias
antes de ser novamente transferido para El Morro e tive outra
entrevista com o tenente Gamboa; estava presente o tenente Víctor,
que parecia furioso e amável ao mesmo tempo. Na realidade,
nenhum dos dois podia acreditar que aquela confissão fosse autên-
tica; mas também não podiam esperar uma confissão autêntica
numa cela de torturas.
Enquanto eu redigia a confissão tinham insistido para que eu
declarasse ter corrompido dois menores, que não eram outros senão
os pivetes que roubaram a minha roupa e a de Pepe Malas na praia.
Aliás, Pepe Malas nunca esteve na cadeia, pois era informante da
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Segurança do Estado. Uma vez, explicou quem era na delegacia de
polícia e saiu livremente, enquanto fiquei preso.
Eu deveria ser julgado por um grave delito comum: corrupção
de menores. Falava-se até de estupro. Assim, para evitar um escân-
dalo internacional, seria condenado por um delito comum. Deixan-
do-me preso, pelo menos durante uns oito anos, estariam me
destruindo e me afastando completamente do mundo literário.
Nos dias que se seguiram à minha confissão, às vezes, um dos
soldados de guarda no corredor abria a janelinha e ficava conver
sando comigo; imagino que fazia isso sob a orientação do tenente
Gamboa. Aquele mulato boa-pinta abria a janelinha e batia papo
comigo por mais de uma hora; ficava esfregando os testículos e me
excitava; assim, muitas vezes, eu me masturbava enquanto ele
caminhava diante da minha porta.
Uma noite, enquanto dormia, ele entrou e me pediu fósforos;
claro que não era permitido ter fósforos naquele lugar. Falou
comigo durante uns cinco minutos e depois foi embora. Talvez
fosse uma maneira de me deixar desconcertado. Desde aquelanoite
eu sonhava que ele entrava em minha cela e fazíamos amor. Talvez
soubesse que me masturbava olhando para ele e talvez se divertisse
com isso; mas, de qualquer forma, nossos papos duraram até minha
transferência.
Antes da confissão, eu tinha uma grande companhia: meu orgulho.
Depois da confissão, já não tinha mais nada. Perdera minha digni-
dade e minha rebeldia. Por outro lado, assumira um compromisso
com o tenente de colaborar no que fosse possível, e podiam perfei-
tamente me pedir para fazer uma aparição pública na qual teria de
ler toda a minha confissão. Além disso, após a confissão, podiam
até me eliminar físicamente.
Agora estava só com a minha desgraça; ninguém podia con-
templar minha infelicidade naquela cela. O pior era continuar
vivendo apesar de tudo, depois de ter traído a mim mesmo e de ter
sido traído por quase todos.
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269
#
Fiz inúmeras cópias dessa nota e enviei-as a todas as pessoas
que tiveram uma atitude incorreta em relação a mim. O primeiro
que recebeu o recado foi Nicolás Guillén; em seguida, logicamente,
Reinaldo Gómez, Rafael Arnés, Otto Fernández, Roberto Fernán-
dez Retamar.
Hiram Prado, com seu jeito diabólico, fez mais de cem cópias
e as mandou, imitando minha assinatura, a quase todos os meus
verdadeiros amigos. Aquilo criou uma enorme confusão, pois pes-
soas como Ismael Lorenzo, Amando García e a própria Elia del
Calvo receberam essa comunicação. Percebi logo que se tratava de
uma brincadeira de Hicam Prado; redigi então uma Notificação de
Rompimento de Amizade para ele; durante muito tempo deixamos
de nos falar, e ele aproveitou para continuar enviando a nota a todas
as pessoas que tinham me prestado algum tipo de favor. Por
vingança, fiz a seu respeito uns quebra-línguas irônicos; essa era
uma das minhas armas contra quem me prejudicasse.
Durante o ano de 1977, esses quebra-línguas tornaram-se fa-
mosos em toda a cidade de Havana; incluíam mais de trinta pessoas
conhecidas no mundo da dança cubana e no mundo literário.
Uma das características mais lamentáveis das tiranias é que
levam tudo a sério e fazem desaparecer o senso de humor. Histori-
camente, os cubanos sempre fugiram da realidade através da sátira
e da zombaria, mas com o advento de Fidel Castro o senso de humor
foi desaparecendo até ser totalmente proibido; assim, o povo cuba-
no perdeu uma de suas poucas possibilidades de sobrevivência; ao
lhe tirarem o riso, tiraram-lhe também o mais profundo sentido das
coisas. Sim, as ditaduras são pudicas, metidas a importantes e
absolutamente enfadonhas.
270
#
Hotel Monserrate
Finalmente, minha tia conseguiu os mil pesos e pude me
mudar para o quarto de Rubén. Fizemos uma espécie de contrato
clandestino no qual se estipulava, com minha tia e seus dois filhos
marginais como testemunhas, que Rubén me vendia aquele quarto
de forma definitiva, e que aceitava a soma de mil pesos. Entretanto,
só em caso extremo aquele documento podia ser exibido às autori-
dades cubanas, porque a venda de um imóvel era proibida por lei.
Mas era uma maneira de obrigar Rubén a manter seu compromisso;
se tentasse tirar o quarto, eu podia mostrar o documento, apesar de
irmos ambos para a cadeia.
O Hotel Monserrate já fora antes um lugar muito bom, mas
agora não passava de um edifício de quinta categoria, totalmente
habitado por prostitutas. Utilizavam o hotel para realizar seus
negócios, mas, com a Revolução de Castro, tornaram-se proprietá-
rias do quarto onde moravam; imagino que isso se deva às suas
relações com os novos oficiais do Exército Rebelde. Aconteceu no
início da Revolução; quando me mudei para lá, havia apenas poucas
mulheres aposentadas ou semi-aposentadas; outras, com a velhice,
tinham-se reabilitado, e ocupavam agora vários cômodos com dois
ou três filhos.
Ali residia uma verdadeira fauna à margem da lei; se a polícia
chegasse, simplesmente colocava uma grade de ferro na porta do
271
#
edifício - único meio de entrar e sair - e todo mundo poderia
considerar-se preso.
No primeiro andar, moravam Bebita e sua amiga; eram duas
mulheres que tocavam tambor e diariamente trocavam socos, por
problemas de ciúmes. Bebita tinha outras amigas e costumava
levá-las para o quarto, enquanto a outra dormia; quando esta
despertava, armava uma confusão que sacudia todo o prédio; pratos
e copos eram quebrados em mil pedaços durante esses escândalos.
Ao lado de Bebita, moravam "Branca de Neve e os sete anões" ;
era uma família de irmãos, todos anões, e uma irmã, que viviam do
mercado negro e do jogo.
Em frente à Branca de Neve e os sete anões, morava Maomé,
uma bicha-louca de uns sessenta anos que pesava mais de cem
quilos; enfeitava o quarto com flores de papel encerado e cobria as
paredes com capas de revistas estrangeiras; esse quarto era uma
estranha combinação, cheia de portas falsas e simuladas por trás
daquele papel que cobria as paredes; ali guardava dinheiro e garra-
fas de bebidas alcoólicas. Maomé passava o tempo fazendo enor-
mes ramos de flores de um gosto extremamente duvidoso, e vendia
tudo no edifício e em toda a cidade de Havana. Conseguia algum
dinheiro vendendo aquelas flores horrendas, mas com certo encanto
versalhesco. Esses ramos de flores de tamanho descomunal tinham
um certo brilho e um resplendor incríveis para Cuba, onde não
existiam os mais elementares materiais para fazer flores artificiais.
Maomé sempre enchia seu quarto de fanchonos violentos, que o
agrediam e roubavam seu dinheiro, fugindo pela sacada em meio
aos gritos da bicha. Morava com a mãe, uma velha de uns noventa
anos, que desabafava comigo e com Bebita e sua amiga, dizendo
que nenhum dos homens que o filho trazia para casa prestava, que
não era gente séria.
Um dia, um desses homens, amante de Maomé e que morava
no mesmo prédio com a esposa e o filho, apareceu no quarto da
bicha com um pau e começou a dar-lhe porradas na cabeça; o quarto
ficou cheio de sangue e todo mundo veio correndo para tentar
salvá-lo. O homem caiu fora e Maomé foi hospitalizado por uma
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semana. Sua mãe, que levara as sobras da luta, morreu poucas
semanas depois.
No segundo andar, onde eu morava, também ocorriam batalhas
freqüentes; por exemplo, na casa de Teresa, que tinha um marido
que partilhava com a irmã, conforme tudo levava a crer; as duas
irmãs brigavam o tempo todo, sacudindo o edifício inteiro com seus
escândalos.
Era preciso juntar água em tanques velhos que eu mesmo
limpei; tínhamos que estar sempre atentos para enchê-los, pois a
água chegava de dois em dois dias. Rubén literalmente morria de
fome e, portanto, não tinha forças para trabalhar e nem queria
fazê-lo. Era bissexual e quando me mudei para aquele lugar tive
que fazer grandes esforços para mantê-lo afastado; de fato, de vez
em quando, encontrava-o em minha cama. Finalmente, tive que
entijolar a porta do meu quarto que dava para o de Rubén. Chamei
para o trabalho um pedreiro chamado Ludgardo, que tinha uma
imaginação bastante estranha: em sua casa, em Guanabacoa, criara
uma espécie de canais aéreos por cima dos telhados de zinco
permitindo que a água da chuva se acumulasse em tanques dentro
de casa. Nunca faltava água para ele. Com latões cheios de buracos
fabricara também rodas-gigantes, aviões e outros equipamentos-
um completo parque de diversões para os filhos. Com qualquer
pedaço de madeira, fazia um par de tamancos; toda a sua família
passava o dia martelando o chão com aqueles tamancos artesanais.
Rubén era um caso perdido; o sonho da sua vida era comprar
uma calçajeans; agora que eu tinha pago os mil pesos, mostraram-
lhe um par de calças mais modernas; o vendedor disse que custavam
duzentos pesos a mais; ele pagou e deram-lhe um pacote que só
abriu quando chegou no meu quarto; dentro, só havia jornais velhos.
Ele tinha sido enganado. Tentei contornar a situação, mas era difícil.
Rubén era muito generoso com os amigos e vivia convidando todo
mundo para comer; chegou a me convidar para ir ao restaurante
Moscou, um dos mais sofisticados de Havana naquela época.
Obviamente, Víctor conseguiu meu endereço e veio me visitar;
fez perguntas a respeito das minhas novas amizades e, mais uma
vez, prometeu me arranjar um emprego. Para evitar aos meus
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#
verdadeiros amigos qualquer tipo de complicação, coloquei na
porta do meu quarto um cartaz com as seguintes palavras: AGRA-
DECEMOS AS VISITAS MAS NÃO RECEBEMOS NINGUÉM.
Perto da parede, com tinta vermelha, coloquei a palavra: NÃO. Esse
"não" era meu protesto em relação a qualquer tira disfarçado de
amigo que quisesse me visitar.
Às vezes, às três horas da manhã, Rubén escrevia um poema e
vinha bater na minha porta para lê-lo; eu não tinha outro remédio
a não ser ouvi-lo.
No terceiro andar daquele prédio morava Pepe Malas. A dona
do quarto era uma prostituta francesa que vivia fazendo escândalos
terríveis porque os homens que trazia não queriam pagar ou porque
ela queria roubar suas carteiras. Um dia, a mulher resolveu voltar
para a França, pois já estava cheia de tanta miséria; assim, Pepe
ficou com o quarto.
Pepe e eu não nos falávamos, mas ambos estávamos a par das
nossas vidas e, em geral, tentávamos torná-las ainda mais difíceis.
Certa vez, Pepe e um grupo de amigos, entre os quais Hiram
Prado, juntaram dinheiro para pagar um rapaz que cobrava vinte
pesos para trepar com todos eles. Quando o rapaz entrou no edifício
eu me encontrava no elevador. Aquelas bichas-loucas estavam
todas reunidas na varanda de Pepe Malas, esperando por ele. Como
o rapaz não sabia usar o elevador, comecei a mostrar como se fazia;
assim, ficamos subindo e descendo inúmeras vezes do primeiro ao
quinto andar. Pepe Malas e seu bando viram o elevador subindo e
descendo - como umajaula suspensa - sem parar no andar onde
estavam, cada vez mais excitados. Finalmente, paramos no meu
andar. O rapaz trouxera abacaxi e propus que fôssemos comê-lo
juntos em meu quarto; comemos o abacaxi e depois fizemos amor.
Pepe, louco de raiva, ia de um andar a outro chamando pelo
rapaz, enquanto nós dois, em meu quarto, nus, morríamos de tanto
rir. Pepe nunca me perdoou. A partir de então, na porta do meu
quarto, começaram a aparecer vários despachos: pés de galinha,
cabeças de pombo, e outras coisas mais.
Quanto a mim, terminara a nova versão de Otra vez el mar, que
ficava escondida numa gaveta na casa de Elia, o que era perigoso,
274
#
i na pois ela era muito favorável à Revolução; no entanto, mais perigoso
era ficar com o texto no meu quarto, pois a qualquer momento
podiam me revistar; Pepe podia me denunciar, bem como umas
prostitutas reabilitadas ali residentes, que eram militantes do Parti-
do Comunista.
Naquele período, estava em moda o jirau, isto é, a construção
de um andar de madeira nos quartos, para o qual se subia por uma
escadinha. O objetivo era conseguir um pouco mais de espaço
naqueles cômodos; muitas vezes, nesses jiraus, nem dava para ficar
em pé, era preciso andar agachado. Os jiraus eram proibidos pelo
governo e tinham de ser construídos clandestinamente; no entanto,
até Branca de Neve e os sete anões tiveram um.
Eu quis ser igual a todos, e no mercado negro obtive a madeira
necessária para fazer um jirau. Justamente no dia em que andava
carregando uma tábua imensa, Alejo Carpentier dava uma confe-
rência na mesma rua, sentado em cima de um tablado. Interrompi
sua conferência, passando bem no meio do público e do escritor
com minha tábua no ombro; parei ali mesmo e comentei com um
ouvinte que o conferencista não falava mais espanhol; tinha adqui-
rido um profundo sotaque francês, gutural, tão marcado que parecia
um estrangeiro. Apessoa começou a rir e eu também; o que fez com
que a ponta da minha tábua batesse na mesa onde Alejo apresentava
a palestra.
Quando estive em Oriente para ver minha mãe, conheci um bonito
recruta de Palma Soriano com quem mantive um certo flerte;
entretanto, como não podia dar nenhum endereço, marcamos um
encontro para três meses depois, atrás da rodoviária de Havana. Na
data combinada, fui até o lugar marcado sem a menor esperança de
encontrar o recruta; no entanto, lá estava ele. Chamava-se Antonio
Téllez, mas preferi o apelido de Tony. Fomos para o meu quarto e,
estranhamente, aquele rapaz nunca mantivera relação homosse-
xual; quando comecei a tocá-lo, riu; percebia-se que era um novato,
não conseguia excitar-se e estava muito nervoso. Finalmente, ter-
minamos sendo apenas bons amigos.
Foram Tony e Ludgardo que fizeram meujirau; era um trabalho
275
#
pesado. Precisava abrir, com martelo e pedaços de ferro, enormes
buracos na parede, e além do mais, tinha que ser no maior silêncio
para que a administradora não ouvisse; para isso, era preciso cobrir
os martelos com panos a fim de abafar o barulho. Era uma verda-
deira odisséia trazer as tábuas para dentro do prédio; trabalhávamos
à noite. Bebita e sua amiga, Maomé e eu procurávamos, em todas
as lixeiras da parte velha da cidade, pedaços de madeira e velhas
tábuas.
Nicolás Abreu trouxe uma quantidade enorme de pequenas
tábuas encontradas em diversas lixeiras, perto da sua casa em
Arroyo Apolo; com elas, revestimos todo o jirau. Entre as vigas e
esse revestimento ficou um enorme buraco onde pude colocar os
originais de Otra vez el mar, e o documento assinado por Rubén
Díaz, onde confirmava ter me vendido o quarto por mil pesos.
Havia perto do prédio um ponto de ônibus chamado jocosa-
mente de Ponto do Sucesso ou A Última Esperança. Ali se reuniam,
em frente ao Quarteirão de Gómez, um ponto de referência, todas
as bichas-loucas que queriam flertar; havia tanta gente por lá que
era difícil não se ligar em alguém. Foi aí que encontrei novamente
Hiram Prado, na ocasiáo um inimigo mortal de Pepe Malas. Após
uma troca de cumprimentos, ele perguntou onde eu morava e
respondi que estava junto com Pepe. Hiram ficou espantado, pois
sabia que Pepe era um tira, responsável por minha prisão. Hiram
não podia acreditar que estivéssemos morando juntos. A partir
daquele dia, começou a espalhar por toda a cidade que eu morava
com Pepe Malas, e certa noite foi à casa de Pepe com um grupo de
amigos marginais; bateram na porta, gritando palavrões contra
mim. Pepe saiu e tentou acertar Hiram com um cabo de vassoura,
mas os acompanhantes dele lhe deram uma boa surra.
Durante meses, Pepe ficou louco de raiva, porque minha cor-
respondência ia para ele e muitas visitas minhas iam bater à sua
porta.
No mesmo andar de Pepe morava Marta Carriles com sua
família e uma "escrava", chamada La Gallega. Conheci La Gallega
bem na hora em que estava tentando fugir com um dos seus
amantes; vi uma enorme mala amarrada com corda descendo diante
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#
da minha janela; em seguida, ouvi um barulho enorme no terceiro
andar; era Marta perseguindo La Gallega para que esta não fugisse.
O marido de Marta Carriles era caminhoneiro e trazia alimentos
que Marta vendia rapidamente na vizinhança. Marta era também
mãe-de-santo e recebia muita gente para se consultar. Tinha dois
filhos lindissimos, um dos quais já tivera relações sexuais com
Rubén; era um adolescente de uns quinze anos. O outro também
era um belo rapaz que eu sempre via no elevador, acompanhado de
uma mulher. Quanto a mim, que nem dentes tinha, não nutria muitas
ilusões. Por outro lado, colocar os dentes tornara-se quase impos-
sível, pois era necessário o pedido de um médico, uma carteira de
trabalhador, algum tipo de autorização de um clínico geral; eu não
tinha absolutamente nada disso, e talvez nunca fosse ter.
Apesar de tudo, recuperei o sorriso graças a Alderete, um
homem de seus sessenta anos que trabalhava como travesti, às vezes
no Tropicana ou em algum outro cabaré de menor vulto. Tinha sido
muito famoso nos anos quarenta e possuía uma quantidade de
perucas de todas as cores; imitava quase todos os artistas famosos
de Cuba e seu maior sucesso era uma paródia de Rosita Fornés,
porque tinha uma voz ainda melhor que a própria artista. Dizem
que certa vez Alderete levou um marginal para casa e este tentou
roubá-lo, ameaçando-o com uma faca; a bicha-louca mandou espe-
rar um instante para ir buscar o dinheiro e se trancou num closet;
saiu de lá disfarçado de uma linda mulher; o marginal ficou com-
pletamente fascinado e Alderete acabou chupando seu pau e rou-
bando-lhe a carteira; o rapaz nem percebeu que aquela mulher era
a bicha velha que pretendia assaltar. Mais tarde, o safado apaixo-
nou-se pelo personagem que Alderete representava, e ele colocava
seus melhores enfeites para esperá-lo.
Um dia, o homem percebeu que por trás de todos aqueles panos
e maquiagem havia apenas um horrivel veado; talvez soubesse
disso desde o início, mas o fato é que, nesse dia, ficou furioso e
resolveu vingar-se e tirar da bicha velha tudo o que possuía;
inclusive sua coleção de perucas.
Conheci-o em plena crise depressiva, resultado do "grande
roubo", como ele se referia ao fato. Completamente calvo e enro-
277
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lado num lençol, era com toda a certeza um ser tão horrível quanto
Pepe Malas. No entanto, em pouco tempo conseguiu reaver todas
as roupas e adereços e voltou a imitar Rosita Fornés.
Foi graças a Alderete que pude colocar meus dentes postiços.
Ele conhecia um dentista que o apreciava muito e não me cobrou
um só centavo para fazer uma nova prótese, da qual eu precisava
tanto. Agora podia abrir a boca sem que meus dentes caíssem pelo
chão.
O fato de poder sorrir de novo me animou a fazer exercícios
físicos; comecei a dar saltos no jirau, o qual, não sendo muito
resistente, desabou comigo junto. Passei uma semana arrancando
pregos para desmontar o jirau, até conseguir colocar novas vigas.
Estava em pleno trabalho quando dois franceses bateram na porta:
um rapaz e uma moça que vinham da parte de Margarita e Jorge
Camacho. Encontravam-se como turistas em Jibacoa e iriam per-
manecer em Havana por toda uma semana; foi assim que minha
terceira versão de Otra vez el mar saiu do país.
Os franceses ficaram muito surpresos quando me viram: eu
usava um short feito de uma calça velha, cortada com faca, estava
sem camisa, arrancando pregos de um monte de paus naquele
quarto; não podiam imaginar que um escritor vivesse em tais
condições, muito menos depois de lerem meus livros na França.
Convidaram-me a comer no restaurante e queriam que eu fosse a
Jibacoa, mas as autoridades não me deixaram entrar na praia.
Os franceses se foram e passei uma semana apavorado, espe-
rando a visita da Segurança do Estado. Não sabia se tinham conse-
guido sair do país com os manuscritos, ou se estes tinham ido parar
nas mãos de Víctor. Felizmente, conseguiram.
Eu estava cercado de tábuas e pregos quando ouvi Hiram Prado
andando pelo corredor; ele já descobrira que eu não morava mais
com Pepe Malas; pus a cabeça para fora e pedi que me esperasse
na rua. Rapidamente, redigi uma espécie de documento burocráti-
co, um indulto, onde dizia que a sentença de dois anos, durante os
quais nossa amizade deveria manter-se rompida, estava agora re-
duzida a seis meses; ele teria que voltar nesse prazo, quando lhe
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daria as condições da nossa futura amizade. Entreguei-lhe o docu-
mento e Hiram se foi.
Rubén decidiu me cobrar cinqüenta centavos por cada vez que
eu usasse o seu banheiro; era uma terrível chantagem, mas o
banheiro era dele. Minha situação tornava-se a cada dia mais difícil,
e já nem tinha onde cair morto, quando apareceu na minha porta
um rapaz lindíssimo, descalço e sem camisa, pedindo-me um
cigarro. Eu não tinha, mas pedi que entrasse e fechasse a porta. Ele
disse saber que eu era escritor; quanto a mim, não tinha o menor
interesse em falar de literatura. Fiquei sabendo que se tratava do
fílho mais velho de Marta Carriles, chamado Lázaro; Maomé me
avisou que se tratava de um rapaz excelente, embora o ascensorista
afirmasse que era um porra-louca.
Sua mãe, Marta, era uma verdadeira bruxa que vivia se indis-
pondo com as vizinhas, chegando às vias de fato com elas e todos
os seus filhos. Mas o próprio Lázaro me contou horrores sobre sua
casa, e fui percebendo aos poucos que era diferente do resto da
família; tinha problemas mentais evidentes, mas tratava-se de al-
guém completamente diferente de toda a família, composta de gente
safada. Lázaro ansiava por paz e queria ser capaz de ler boa
literatura.
Fizemos várias excursões fora da cidade; fomos a Guanabo e
nadamos no Malecón, embora fosse proibido, e nadamos também
perto de La Concha. Um dia, observei nele uma necessidade de
violência muito perigosa; estávamos brincando, quando me deu um
soco no meio da cara com tamanha brutalidade que receei ter
quebrado os dentes. Furioso, corri atrás dele com um porrete. Creio
que depois deste incidente emocional nossa amizade tornou-se
ainda mais profunda; ele sabia que precisava ter mais cuidado
comigo. Quanto a mim, fiquei sabendo que já estivera internado no
Hospital Psiquiátrico de Mazorra, o que fez crescer minha afeição
por ele.
Com a finalidade de ter menos uma boca para alimentar, a
família o internara naquele manicômio, o mais horrível da cidade
de Havana. Lá, recebeu inúmeros tratamentos com eletrochoques.
Ele contou-me que certa vez foi dormir em casa e não abriram a
279
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porta, porque sua mãe ganhara de um criador um pedaço de carne
de porco, que os pais estavam comendo naquele momento, tranca-
dos, para não ter que dividir com ele, que acabou passando a noite
fora. Após ouvir sua história, disse-lhe que meu quarto estava à
disposição e até dei-lhe uma chave. Nosso maior prazer era ficar
andando pela cidade; às vezes, pulávamos as cercas e tomávamos
banho de mar nas praias proibidas.
Por intermédio de Rubén, conhecemos outro sujeito fascinante
que estava sempre inventando as maneiras mais esquisitas de fugir
da Ilha. Segundo ele, era possível fugir numa balsa plástica, depois
de pescar peixes bem grandes, inclusive tubarões; bastava amarrá-
los à balsa e ir em direção ao norte; dessa maneira, em três dias
poderíamos chegar a Miami. Dizia chamar-se Raúl, embora nunca
se soubesse com certeza os nomes verdadeiros dos amigos de
Rubén.
No teatro Payret havia sempre filas enormes porque passavam
filmes franceses e norte-americanos. Raúl calculava que a bilhete-
ria deveria arrecadar uns dez mil pesos por dia, e elaborou um plano
de assalto bastante estranho. Consistia em se aproximar da bilhete-
ria com um enorme balão de gás comprimido, deixar o gás escapar
e provocar uma imensa nuvem, para então roubar o dinheiro e
desaparecer no meio da multidão. Ou também podia-se chegar
perto da bilheteira com uma garrafa de clorofórmio, obrigá-la a
cheirar até cair desmaiada, e pegar o dinheiro.
Rubén e seus cupinchas chegaram a inventar uma máquina para
fabricar dinheiro falso, mas certa noite todos foram presos. A
máquina ficava escondida na casa de Julio Gómez, muito amigo de
Pepe Malas. O mais estranho, porém, foi que Raúl desapareceu para
sempre, enquanto Julio e Rubén permaneceram em liberdade. Um
dia, no entanto, compreendi por quê: vi o tenente Victor saindo da
casa de Rubén.
Havia também uma pintora que visitava Rubén e que aparen-
temente caíra em desgraça; chamava-se Blanca Romero. Tinha sido
casada com Sigmundo Bonheur, que ocupara certos cargos diplo-
máticos na África e depois fora mandado por Castro para um campo
de concentração em Camagüey. Um dia, Rubén entrou no meu
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quarto queixando-se de que Blanca roubara toda a sua roupa
enquanto ele estava tomando banho. Fui com Rubén e Lázaro até
a casa de Blanca, uma espécie de cortiço na rua Monserrate; não
tinha janela, e a porta era mínima. Blanca tinha muitos filhos de
pais diferentes: negros, árabes, chineses. Praticava um certo inter-
nacionalismo sexual. Depois da prisão do marido, fizera da prosti-
tuição um meio de vida, pois ninguém comprava seus quadros,
embora fossem extraordinários.
Naqueles dias, ela e seu marido atual, Theodosio Tapiez, visi-
tavam pintores conhecidos como Raúl Martínez, Carmelo Gonzá-
lez e outros. Enquanto o marido elogiava os quadros, Blanca
roubava os pincéis e tintas que precisava para pintar; comprava
clandestinamente sacos de farinha e recolhia pedaços de tela en-
contrados nas lixeiras. Assim, pintava aqueles quadros imensos que
ocupavam paredes inteiras do seu apartamento.
Quando chegamos, Blanca nos mostrou com o maior orgulho
uma de suas obras-primas e esquecemos de pedir as roupas. Desde
então, passei a visitar Blanca com certa regularidade; ela sempre
dava um jeito de ter em casa um pouco de chá, um ovo cozido. Era
disso que todos viviamos, em Havana; os ovos não eram raciona-
dos, e podia-se comprar chá russo no mercado, embora com alguma
dificuldade.
Um dia, Blanca chamou todos os amigos e filhos para uma
reunião naquele quarto mínimo, onde quase morríamos asfixiados.
Ela disse: "Chamei a todos vocês para dar uma notícia horrível:
minhas mamas murcharam e caíram." Levantou a blusa e mostrou
duas mamas pretas, caídas sobre a barriga. Aquilo representava uma
verdadeira tragédia, pois já não podia mais exercer a prostituição,
graças à qual mantinha os filhos, a mãe e Theodosio, que cursava
a universidade e não podia trabalhar. Lembro-me que todos os
filhos ficaram chorando à sua volta, por causa daquela desgraça.
Todos tentamos consolar Blanca, inclusive sua mãe, que disse:
"Não se preocupe, vamos achar um jeito de te ajudar, mas agora
vê se lava os pés, que estão cheios de gordura." De fato, os pés de
Blanca estavam tão imundos que sua mãe pegou uma faca e
começou a raspá-los.
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Fazia um calor insuportável e Blanca se queixou da falta de
janela; na mesma hora, começamos a abrir um buraco na parede
para fazer uma janela. A parede tinha mais de um metro de espes-
sura e, ao alcançarmos o outro lado, percebemos que não dava para
a rua, e sim para um imenso convento, o convento de Santa Clara,
abandonado pelas freiras com o triunfo de Castro. O convento
estava praticamente intacto e cheio de móveis, baús, vitrais e todo
tipo de objetos.
Com disciplina de formigas, nos dedicamos a desmontar todo
o convento e vender tudo o que havia dentro. De repente, naquele
quarto minúsculo onde Blanca morava e onde só havia espaço para
poucas cadeiras, apareceriam vinte ou trinta cadeiras de balanço ou
quatro ou cinco baús, que vendíamos em toda a cidade de Havana;
certa vez, chegamos a encher um caminhão.
Um dia, a administradora regional bateu na porta de Blanca e
disse que não entendia como conseguira tudo o que havia no quarto.
O buraco que dava para o convento estava tampado por um dos
quadros de Blanca. Não havia outro jeito a não ser subornar a
administradora, e assim foi feito. Ela escolheu o que bem quis e não
nos denunciou.
Instalei no meu quarto um banheiro, uma cozinha de mármore,
um jirau de puro cedro, e minha pequena sala de estar ficou cheia
de móveis do século XVIII.
Depois, Lázaro e eu arrancamos toda a madeira do teto artesa-
nal do convento; meu jirau era uma espécie de mostruário para a
venda daquela madeira. Blanca, é claro, cobrava uma comissão por
tudo o que saía de lá. Os mármores vermelhos tiveram um sucesso
todo especial; até a própria Elia e Pepe compraram alguns.
Uma noite, um policial nos deteve quando transportávamos
uma grande quantidade de crucifixos, cálices de prata e outros
objetos valiosos. Perguntou de onde vinha toda aquela merda;
dissemos que tínhamos encontrado tudo num edifício demolido na
cidade velha, e queríamos apenas enfeitar nossas casas. Como ele
ignorava o valor daqueles objetos, deixou que levássemos todo o
carregamento.
Ludgardo montou uma fábrica de tamancos de cedro graças ao
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buraco de Blanca. Para nós, aquele buraco representou um verda-
deiro tesouro; até os ladrilhos foram vendidos por toda a cidade.
Por fim, Bebita deu a idéia de fazermos varandas e outros jiraus
no nosso prédio, e assim fizemos com a madeira e os ladrilhos do
buraco de Blanca. Meu quarto foi transformado num apartamento
que tinha inclusive uma varanda com grades medievais. Até a
administradora teve o seu jirau.
Quando viu a nova aparência do meu quarto, Rubén disse que
qualquer dia desses iria reclamar sua posse, já que eu não era o
proprietário legal. Olhei para ele com toda a calma e afirmei que
tinha a posse daquele lugar. Pediu que lhe mostrasse algum docu-
mento. Aí fui até a cozinha, peguei um facão que trouxera do
convento e falei: "Aqui está, pode ver que esse quarto me perten-
ce." Depois disso, nunca mais tocou no assunto.
Blanca resolveu dar uma festa no buraco depois de quase tudo
ter sido vendido; compramos velas no mercado negro e enfeitamos
todo o convento. A festa começou à meia-noite; tínhamos apenas
ovos cozidos e chá, mas Blanca convidara quase todos os velhos
amigos: prostitutas aposentadas, cafetões elegantíssimos, travestis
que só saíam à noite. Hiram Prado apareceu também. Nessa noite,
Blanca e eu bolamos um documento no qual dizíamos que, tendo
em vista a natureza diabólica de Hiram Prado, só podíamos nos
encontrar em lugares como aquele buraco, na copa das árvores ou
no fundo do mar; estava definitivamente perdoado por nós.
Hiram estava escrevendo sua autobiografia e nessa noite leu-
nos alguns trechos. Falava de Blanca como uma das mulheres mais
cultas e como uma das maiores pintoras do século; dizia que eu era
o José Martí de nossa geração. Depois, fiquei sabendo que Hiram
mudava o texto daquela autobiografia conforme o lugar onde se
encontrava. Em outras versões, eu aparecia como um marginal,e
Blanca como uma prostituta vulgar.
Outro convidado era Bruno García Leiva, um porra-louca que
estava sempre imitando alguém, talvez porque ele mesmo não
existisse. Naquela noite, estava disfarçado de padre, com escapu-
lário e hábito preto; parecia um padre de verdade e muitas prosti-
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tutas pediram-lhe para se confessar, o que ele aceitou fazer solene-
mente.
Às vezes, ele se disfarçava de médico e entrávamos no hospital
Calixto García. Enquanto eu ficava dando gemidos de dor, Bruno
me levava até uma das salas de emergência; roubava atestados,
carimbos e receitas do hospital, o que representava um verdadeiro
tesouro. Bruno vendia os atestados a preço de ouro para quem não
quisesse ir trabalhar nas fazendas. Os alcoólatras compravam re-
ceitas para poder comprar álcool nas farmácias. Hiram Prado,
alcoólatra crônico, pagava qualquer preço por uma daquelas recei-
tas.
Na festa daquela noite também compareceram Amando García,
Sekuntala e Ludgardo. Este era um mulato gigantesco, cujos pênis
e bagos imensos destacavam-se, como que desenhados na calça.
Lembro-me de que cada pessoa tinha de representar um número
artístico; Amando deitou-se no chão, coberto por um dos quadros
de Blanca, e de uma maneira cada vez mais ardente, começou a
cantar uma espécie de ode a Ludgardo que dizia o seguinte: "Ai
Ludgardo, vem logo que estou ardendo, não demore, não se atrase,
vou te morder, me dê seu dardo, me dê seu dardo, meu Ludgardo."
Ludgardo, na verdade, nem era chegado, mas se divertia muito.
Recitei alguns dos meus pensamentos; havia um que dizia o
seguinte: "Sinto-me feliz como se Minerva, depois do trabalho
voluntário, em troca dos seus celestes honorários, recebesse uma
Materva gelada do Partido."
Alderete levou sua coleção de perucas e, entre as velas, ecoou
sua voz de Rosita Fornés. Por último, Ludgardo declarou que devia
existir um tesouro enterrado no convento e que iria encontrá-lo.
Então, Blanca nos fez assinar um documento no qual jurávamos
que se fosse encontrado algum tesouro ali, receberia uma comissão
de cinquenta por cento. Assim, a festa se transformou numa espécie
de excursão para descobrirmos algo. Cavamos muito, mas só
achamos uma cisterna, que em Havana era quase um tesouro.
A partir de então, passamos a vender até duzentas latas de água
por dia; formavam-se filas imensas diante do buraco de Blanca.
Blanca e Amando García decidiram deixar Hiram Prado tran-
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#
cado no buraco. Quando perguntei o motivo, disseram-me ter
descoberto o que Hiram realmente escrevera sobre Blanca em sua
autobiografia. Blanca tinha-se apoderado dessa autobiografia, na
qual era descrita como uma bruxa de setenta anos que espalhara
sífilis por toda a cidade de Havana e que trepara com todos os
marinheiros gregos; que era uma lésbica que transava até com as
próprias filhas, além de ser informante da Segurança do Estado.
Blanca decidiu que Hiram ficaria preso naquela caverna até que
acabasse de escrever outra autobiografia; quanto à primeira, nunca
a devolveria. Três dias mais tarde, Lázaro e eu soltamos Hiram
Prado.
Nada mais havia a ser vendido no convento exceto as paredes;
foi exatamente o que Lázaro e eu decidimos fazer: derrubar as
paredes internas do convento, limpar cada tijolo e vender tudo,o
que representava um grande negócio; de fato, em Cuba, ninguém
conseguia comprar um só tijolo.
Foi sem surpresa que recebemos uma carta "anônima" de
Hiram, na qual dizia que iria denunciar às autoridades superiores
todos os delitos e as orgias cometidas no buraco de Blanca.
Um dia, a administradora regional mandou chamar Blanca e
disse que uns policiais tinham feito perguntas; queriam saber se
Blanca vendia ilegalmente madeira e água. A mulher sugeriu que
ela suspendesse imediatamente todas as suas vendas.
A única coisa que podíamos fazer para apagar nossos rastros
era não deixar pedra sobre pedra no convento; mas antes eu queria
arrancar o que ainda restava do teto e vender as tábuas restantes.
Era extremamente agradável olhar lá de cima para a velha Havana.
Ao tentarmos derrubar uma parede, descobrimos a existência
de outro recinto, onde havia quatro cofres trancados. Ao que
parecia, as freiras tinham feito aquela parede falsa para esconder o
verdadeiro tesouro. Como não tínhamos o segredo dos cofres,
levamos uma semana tentando abri-los a marretadas, só para des-
cobrir que não havia nada dentro. Obviamente, era por essa razão
que o local fora abandonado; os oficiais de Castro tinham passado
por lá e saqueado aqueles cofres e quiseram encobrir o roubo. Se
fôssemos acusados daquele roubo, podíamos pegar trinta anos de
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cadeia por apropriação indébita. Destruímos rapidamente a parede
que sustentava o restante da estrutura do convento que continuava
de pé; quando estava quase caindo, Ludgardo amarrou uma corda
e ficamos puxando com toda a força, até que tudo veio abaixo, em
meio a um pavoroso estrondo.
Poucos dias depois, houve uma terrível epidemia de tifo na
cidade velha de Havana. Fidel Castro ficou andando por todo o
bairro, dizendo que a doença era causada pela grande quantidade
de lixo acumulado. Na verdade, fazia mais de três anos que não se
recolhia o lixo dessa parte da cidade; os prédios eram derrubados
e o local tornara-se um verdadeiro paraíso para os ratos e todo tipo
de bichos que transmitem doenças infecciosas.
A cidade se encheu de caminhões militares, cuja tarefa era uma
"ofensiva de limpeza"; assim, em 24 horas, sumiu tudo o que
restava do convento de Santa Clara.
Semanas depois, Lázaro voltou a ficar doente dos nervos, o que
costumava acontecer frequentemente. Sentava-se na escada do
prédio, falando sozinho, olhando para o teto, dizendo coisas incoe-
rentes. Nessas ocasiões, não reconhecia ninguém, nem mesmo a
mim.
Ele queria escrever, mas não conseguia; depois de duas ou três
linhas, largava a folha de papel e chorava, impotente. Eu lhe dizia
que continuaria sendo escritor, mesmo que não conseguisse escre-
ver uma única página, e isto o consolava. Ele queria que eu lhe
ensinasse a escrever, mas escrever não é uma profissão, e sim uma
espécie de maldição; o mais terrível era que ele havia sido tocado
por essa maldição, mas o estado em que seus nervos se encontravam
impedia que escrevesse. Nunca o apreciei tanto como no dia em
que o vi, sentado diante da folha de papel em branco, chorando de
impotência por não conseguir escrever.
Emprestava-lhe livros que acreditava úteis em sua formação
literária; era incrível como aqueles livros despertavam cada vez
mais sua sensibilidade, fazendo-o descobrir coisas que muitos
críticos nunca haviam imaginado. Às vezes, me chamava do ba-
nheiro e começava a ler trechos do Don Quixote; em certas oca-
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siões, essas leituras acabavam com pedras atiradas pelos vizinhos,
porque não os deixávamos dormir.
Havia um débil mental que também participava de nossas
tertúlias; chamava-se Turcio, tinha sido arrais e amava a literatura;
ficara completamente louco por causa da esposa. Turcio falava sem
parar e quando acontecia, por exemplo, uma discussão entre duas
mulheres, ele ficava o dia todo repetindo o que as mulheres disse-
ram. Assim, quando tínhamos essas tertúlias, durante o resto do dia
Turcio repetia os trechos da nossa leitura, como uma espécie de
ladainha. Outras vezes, ficava no corredor e começava a gritar todas
as notícias que ouvira: "Não haverá carne o ano todo" ; "Chegou
frango, mas só para crianças com menos de seis anos" ; "O ônibus
32 não passará mais por aqui", e outras coisas no gênero. Repetia
tudo que seus ouvidos enlouquecidos captavam.
Um dia, o recruta de Palma Soriano, que continuava sendo meu
amigo, veio até meu quarto com um primo, que era tira; veio
uniformizado e com o revólver na cintura. O recruta disse: "Não
se preocupe; vim com ele porque sei que assim você terá mais
prestígio no edifício, e ninguém o incomodará." O tira era um
fanchono de Oriente, e mal chegou no meu quarto, tirou a cartu-
cheira com o revólver; quando subi com ele para mostrar o jirau,
pôs para fora o seu membro maravilhoso. O recruta ficou lá
embaixo, louco de raiva. Uma hora mais tarde, nos despedimos
amigavelmente. O tempo todo, Turcio ficou gritando que havia um
policial na minha casa; o que nenhum vizinho podia imaginar era
o tipo de arma que o tal policial estivera apontando para mim.
Às vezes, quando o recruta ou o policial vinham me visitar,
Lázaro tinha verdadeiras crises de ciúmes. Eu sempre lhe falava a
verdade; ele era a pessoa de quem eu gostava mesmo, os outros
eram simples passatempo. Sempre entendi o amor como coisa
diferente da relação sexual. O verdadeiro amor envolve uma cum-
plicidade e uma intimidade que não existem nas simples relações
sexuais.
Lázaro tinha relações sexuais com mulheres, e nunca exigi que
rompesse com elas; pelo contrário, encorajava-o a continuar; acha-
va que assim chegaríamos a um entendimento melhor. Eu preferia
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ter relações com um homem que também fizesse sexo com mulhe-
res; queria ser amigo desse homem, mas não sua esposa, cozinhan-
do para ele e atendendo-o em tudo o que fosse preciso. Assim, ao
me possuir, ele o faria por amor a um amigo e não por compromisso.
Portanto, fiquei feliz com a notícia de que Lázaro ia se casar
com Mayra, uma moça muito agradável que já fora sua namorada
durante anos. Achavam que, casando-se, conseguiriam uma casa,
já que o padrasto da noiva era bem relacionado junto ao governo.
O casamento ocorreu no Palácio dos Matrimônios e fui padrinho.
A lua-de-mel seria em Santa María del Mar, e Lázaro insistiu
para que eu fosse com eles. Uma noite, Mayra bateu em minha porta
e disse que Lázaro estava se sentindo mal e queria que eu fosse até
o seu quarto; lá estava ele com uma das suas crises. Nunca pude
entender muito bem a loucura, mas acho que as pessoas que sofrem
desse mal são como uma espécie de anjos que não conseguem
suportar a realidade que os cerca, e, de alguma forma, necessitam
partir para um outro mundo. Quando me aproximei, Lázaro pediu-
me que ficasse ali e pousou a cabeça em minhas mãos; Mayra se
comportou de forma muito inteligente. No dia seguinte, Lázaro
estava muito melhor e fomos todos à praia.
O padrasto de Mayra acabou não conseguindo o apartamento
e eles tiveram que ir morar na casa de Marta Carriles. Construímos
um jirau em cima da cozinha; Marta já fizera outro jirau na sala. O
jirau de Lázaro era tão pequeno que não conseguiam ficar de pé.
Uma vez, a panela de pressão explodiu no teto e ecoou como uma
bomba. Todos os vizinhos saíram correndo, pensando que fosse
uma explosão, enquanto eles, morrendo de rir, continuavam fazen-
do amor no jirau. Lázaro me chamou pela janelinha; apareci na
varanda improvisada e fiz um sinal com a mão; sabia o que estava
acontecendo entre eles e também me divertia.
Lázaro e eu fomos juntos a Pinar del Río. Nadamos nus nos
riachos, andamos a cavalo e desfrutamos a natureza. Durante as
noites, a cama que nos deram para dormir rangia furiosamente.
Enquanto permanecemos numa daquelas casas de campo, fi-
quei sabendo da história de La Gallega. Tivera um noivo com quem
fugira de casa, grávida; alguns meses depois, ele a abandonou. Ela
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foi rejeitada pela família e Marta Carriles a acolheu em sua casa
com a condição de ser sua criada; mais do que criada, uma verda-
deira escrava, pois trabalhava sem descanso, como minha mãe. La
Gallega tinha uma filha, criada no campo pelos sogros, que nem a
deixavam ver a criança.
Quando voltei ao antigo Hotel Monserrate, aconteceu um dos
escândalos mais famosos de toda a sua história; foi entre Hiram
Prado e Pepe Malas.
Hiram Prado tinha um amante de Holguín, chamado Nonito,
de quem gostava muito, ao que tudo indica. De pazes já feitas com
Pepe, Hiram comentou com ele sobre as qualidades físicas daquele
adolescente. Sem pensar duas vezes, Pepe tomou o trem para
Holguín e trouxe Nonito para Havana, prometendo-lhe várias cal-
ças jeans e camisas. Um belo dia, Hiram bateu à porta de Pepe e
quem abriu foi o próprio Nonito, completamente nu. Hiram ficou
profundamente perturbado; foi me procurar e pediu um martelo e
outros objetos de carpintaria; munido dessas armas, subiu até o
quarto de Pepe e destruiu em mil pedaços a porta de vidro. (Todas
as portas do Monserrate eram de vidro, embora eu tivesse reforçado
a minha com uma placa de ferro.) Pepe e Nonito saíram com uma
vassoura e o escândalo foi tal que Hiram, além da porta de Pepe,
quebrou também a de Marta Carriles e a de uma família de teste-
munhas de Jeová, com vários filhos. Toda aquela gente quis acabar
com Hiram, que veio se esconder no meu quarto; eu temia que
arrebentassem minha porta, por isso chamei Bebita, que apareceu
com um facão, seguida por Victoria. "Uma guerra civil foi decla-
rada no Hotel Monserrate", gritava Turcio. Em meio àquela loucu-
ra, todos saíram para resolver rixas passadas; Maomé foi atacado
por Branca de Neve e os sete anões; Teresa e sua irmã voltaram a
arrancar os cabelos uma da outra; Caridad González, a administra-
dora regional, foi esbofeteada por Marta Carriles; o ascensorista foi
chutado por uma das testemunhas de Jeová. Enquanto isso, Hiram
e eu ouvíamos os fragores da batalha, escondidos no meu quarto;
Bebita e Victoria, com vozes fortes de macho, tentavam pôr ordem
naquele caos.
O escândalo foi tão grande que Hiram e eu, no dia seguinte,
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partimos para Holguín; lá, depois de enfrentarmos uma fila imensa,
tomamos um ônibus e fomos parar em Gibara. Mais uma vez, estive
junto ao mar da minha infância, mas aquela cidade já parecia uma
cidade fantasma, e o próprio porto fora invadido pela areia.
De volta a Holguín, comemos na casa da mãe de Hiram, uma
pobre camponesa, discreta porém a par de quase todas as aventuras
eróticas do filho. Este aproveitou para me apresentar a uma série
de pessoas famosas no município, dentre as quais, Gioconda Car-
relero, casada com uma bicha terrível; ela amava seu marido acima
de tudo, mas este era louco por adolescentes. Enquanto estávamos
lá, um rapazinho chamou da rua o marido de Gioconda, gritando:
"Armando, seu veado, quero o par de sapatos que me prometeu;
não pense que te enrabei por prazer." O escândalo foi tão grande
que Gioconda saiu de casa e entregou um par de sapatos de
Armando ao adolescente.
Conheci também Beby Urbino, que era um homossexual repri-
mido. Morava numa casa enorme, invadida pelas plantas silvestres.
Sua filosofia era que amor e sexo não passavam de uma fonte de
amargura. Nunca pude viver em total abstinência, por isso disse a
Urbino que assumia os riscos.
Hiram e eu passeamos pelo parque Calixto García; lá, encon-
tramos um bando de adolescentes e fomos juntos para a colina da
Cruz como última homenagem à cidade de Holguín. Lá, perto da
cruz no topo, fomos enrabados por uns doze rapazinhos e, em
seguida, triunfantes e rejuvenescidos, tomamos o trem de volta para
Havana.
Lázaro trabalhava agora como torneiro numa fábrica. Levan-
tava cedo e dava plantões nos finais de semana, o que fez com que
seus nervos ficassem novamente abalados. Muitas vezes, deixava
Mayra no jirau e vinha dormir no meu quarto. Mais tarde, chegou
a colheita e Lázaro teve que ir cortar cana em Camaguey; poucos
dias depois, recebi uma carta onde me perguntava o que eu estava
fazendo e me pedia para ir visitá-lo.
Seu irmão Pepe e eu tomamos um daqueles trens infernais e,
depois de uma semana de viagem, chegamos a um lugar chamado
Manga Larga; de lá, fomos até o acampamento, onde encontramos
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Lázaro, que tivera uma de suas crises nervosas e estava incapaz de
trabalhar nos canaviais. No dia seguinte, fomos à colheita com ele.
Tive a sensação de ter entrado no inferno mal pisei naquele cana-
vial. Permanecemos juntos uma semana; mas quando viu que
estávamos de partida, Lázaro começou a berrar e ficou louco de
raiva.
Um mês mais tarde, ele voltou, com quinze quilos a menos; sua
doença nervosa se agravara e sua mãe ainda queria ficar com a
pequena quantia que ele recebera pela colheita. Lembro-me que
Lázaro levantou-se à meia-noite e desceu do jirau, pegou um facão
que trouxera do campo, e vi quando quis enfiá-lo na barriga. Desci
correndo para tirar o facão das suas mãos e ele tentou me agredir.
Corri para fora, completamente nu, e chamei os pais de Lázaro; ao
me verem daquele jeito, vieram correndo. Quando abrimos a porta,
ele caiu no chão, desmaiado. Durante uma semana, teve uma das
piores crises.
A mãe de Lázaro bateu na minha porta, trazendo um balde com
duas tartarugas dentro. Disse que São Lázaro lhe pedira para que
eu ficasse com elas, pois me dariam sorte. Aceitei, embora fosse
muito triste ver os dois bichinhos presos, e muito difícil conseguir
comida para eles; só comiam carne ou peixe.
Algum tempo atrás, Hiram Prado tinha me apresentado a um
estranho personagem, que dizia ser um ex-preso político que estava
tentando a todo custo fugir do país num barco; chamava-se Samuel
Toca e morava num aposento da catedral episcopal, situada no
Vedado. Na verdade, Samuel Toca já tentara fugir numa lancha com
outros amigos pelo sul do país, com o objetivo de chegar à ilha
Grande Caimã. Samuel tinha profunda paixão pela Inglaterra e
achava que, chegando àquela ilha, seria imediatamente levado à
presença da rainha Elizabeth, por quem experimentava uma adora-
ção compulsiva. Em pleno mar, o motor da lancha quebrou e não
houve jeito de consertá-lo, pois não tinham ferramentas para abri-
lo. Naquelas circunstâncias, o motor não passava de um estorvo que
jogaram no mar, para seguirem remando até Grande Caimã; foi
quando descobriram que as ferramentas estiveram debaixo do
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motor. Continuaram mais um pouco à deriva, até que viram terra
firme e começaram a gritar saudações para a rainha. Foram presos
imediatamente por soldados da milícia e condenados a oito anos de
cadeia. Samuel Toca se "reabilitou" e cumpriu apenas dois anos e
meio. Quando o conheci, estava saindo da cadeia e morava na
catedral episcopal, embora sua mãe, com câncer, ainda morasse na
sua própria casa em Trinidad. Durante uma das visitas que fiz a
Trinidad, pude ver uma foto enorme da rainha Elizabeth da Ingla-
terra, bem no meio da sala. Sob a fotografia, havia uma mesinha
onde Samuel Toca se sentava todas as tardes, religiosamente às
cinco horas; vestia-se de preto, com cartola e luvas pretas, e tomava
chá na companhia de alguns amigos.
Samuel circulava por Trinidad naqueles trajes sob uma tempe-
ratura de mais de quarenta graus. Não era só pela estranha roupa
que vestia; tratava-se também de uma das mais extravagantes
criaturas: alto, desajeitado, com o cabelo liso caído na testa, olhos
esbugalhados, nariz proeminente e adunco, boca imensa, dentes
gigantescos e a cara cheia de espinhas, além das mãos muito
grandes e ossudas. Era a imagem personificada de uma das bruxas
de Macbeth ou dos desenhos de Disney.
Embora levasse uma vida erótica bastante evidente, ainda
mantinha os hábitos de seminarista, pois estivera estudando para a
carreira religiosa em Matanzas, transferindo-se depois para a igreja
episcopal em Havana. O aposento de Samuel Toca, mais do que um
simples local de meditação religiosa, era principalmente um centro
de encontros literários; todas as noites, reuniam-se ali mais de
quinze pessoas. Era preciso pular uma cerca bastante alta, atraves-
sar todos aqueles corredores e subir uma escada imensa para chegar
finalmente aos seus aposentos. Héctor Angulo, Roberto Valero,
Amando García, eu e outros amigos nos reuníamos diariamente.
Quando estávamos a sós, Samuel e eu falávamos da possibili-
dade de deixar o país clandestinamente. Ele disse que conhecia uma
pessoa em Matanzas que, por uma boa soma em dinheiro, podia nos
tirar da Ilha.
Por volta da meia-noite, no quarto de Samuel Toca, costumava
cair uma chuva de pedras. Segundo ele próprio, eram pessoas da
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administração regional; em protesto contra sua atividade religiosa,
atiravam pedras; era preciso fechar todas as janelas do quarto;
aqueles ataques duravam sempre uma meia hora e depois tudo
voltava à tranqüilidade anterior. Nessa hora, Samuel servia o chá
com a maior cerimônia, sempre invocando sua majestade britânica,
e começava a ler alguns dos seus poemas horríveis.
Fomos finalmente a Matanzas, onde contactamos uma mulher
que disse poder nos tirar do país. Pediu os nomes das pessoas que
iriam no barco; eu não queria dar o meu nome nem o de Lázaro.
Samuel Toca foi muito explícito e falou com ela como se a conhe-
cesse de longa data. Depois, ficamos na casa de Roberto Valero,
com quem percorremos toda a cidade de Matanzas e chegamos até
a baía, onde tomamos banho. Nunca esquecerei a cena de Samuel
de short; aquele sujeito totalmente desajeitado, com seu corpo
foi alvo das pedras lançadas pelos garotos da praia, era
simplesmente arriscado permanecer ao lado de uma pessoa tão
horripilante. Mergulhei e nadei submerso; quando subi à tona-
que horror! -, estava ao lado de um barco russo, que porém se
afastou rapidamente.
De volta a Havana, fui visitar Víctor que disse: "Bem o que
foi que aconteceu com o barco no qual queria fugir?" Eu não sabia
o que responder; ele estava a par de tudo. A partir de então, comecei
a ficar com medo de todo mundo, principalmente de Samuel Toca.
Víctor acusou-me de contra-revolucionário, que não merecia a
benevolência que a Revolução tinha para comigo e, a qualquer
momento, poderia voltar para a prisão.
Naquele período começou o que poderíamos chamar A Guerra
das Cartas Anônimas; todo mundo recebia esse tipo de cartas
ofensivas. Várias me foram enviadas, ou a outras pessoas, referin-
do-se a mim como a um sujeito desprezível, que tinha inclusive
assassinado um adolescente; tenho certeza de que foi Pepe o autor
de várias delas. Mas não deixei passar; escrevi nas paredes de todos
os mictórios da cidade as piores difamações a respeito de Pepe
Malas: que era o mais aveadado de todos os veados, um dedo-duro
da Segurança do Estado; o próprio Pepe ficou horrorizado, pois
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quando ia paquerar nos mictórios, saía correndo ao ver aqueles
grafitos.
A carta anônima que mais chocou Pepe foi a que se escreveu a
respeito de Samuel Toca.
Pepe Malas dissera a Samuel que seus poemas eram realmente
pavorosos e este deixou de falar com ele. Hiram e eu redigimos uma
nota que espalhamos por toda a cidade; tratava-se de um apelo
moral e patriótico, dirigido a todas as almas respeitáveis da cidade,
pela condenação das orgias que ocorriam na igreja episcopal. Na
realidade, a nota não mentia, pois Samuel deixava entrar na igreja
qualquer pessoa que encontrasse, inclusive um tira que acabou se
revelando uma bicha-louca.
Conheci aquele tira antes de Samuel. Lembro-me do que me
contava: quando ele ou seu parceiro estavam de ronda e viam algum
rapaz bem-apessoado, pediam seus documentos e depois simula-
vam prendê-lo para averiguações. No entanto, ao invés de levá-lo
à delegacia, iam para o mato, baixavam a calça do rapaz e chupavam
seu membro.
As tertúlias de Samuel Toca não eram apenas literárias, como
também eróticas; às vezes, o próprio bispo saía da sua residência,
nosjardins da igreja, e encontrava dez ou doze rapazes nos aposen-
tos de Samuel. Este dizia que estavam estudando o livro intitulado
A oração comum, uma espécie de catecismo utilizado naquela
igreja. A nota elaborada por nós dois falava de todas essas orgias e
as descrevia com cores ainda mais sombrias. Dizia, textualmente:
"À meia-noite, são ouvidos no interior das sacras paredes os
gemidos mais estranhos, resultado dos atos sexuais mais estra-
nhos." Em seguida, dávamos uma lista de todos os participantes
dessas orgias, uma espécie de missa negra na igreja episcopal, à
meia-noite. Nessa lista, as pessoas apareciam com um epíteto que
as caracterizava; por exemplo, Rafael Arnés, anti-social, bicha-lou-
ca, matrona licenciosa; Aristóteles Pumariega: sátiro inveterado;
Manuel Baldín, bicha dengosa; Cristina Fernández, mais conhecida
como Hércules de Trinidad; Nancy Padregón, sapatão boca-suja
que, vestida de homem em plena catedral, faz uma paródia de
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"Sóngoro Cosongo", de Nicolás Guillén; Reinaldo Arenas, ex-fu-
gitiva e bandoleira; Hiram Prado: travesti.
Nós também nos incluíamos na lista para despistar; Hiram, que
na ocasião fingia ser amigo íntimo de Samuel, contou-lhe que Pepe
estava preparando uma carta anônima contra ele, que seria espa-
lhada portoda a cidade. No fim da carta, constava que Samuel Toca,
vestindo traje religioso, ficava na porta da igreja e entregava a cada
participante um exemplar do livro A oração comum.
Esta carta circulou por toda a cidade de Havana e uma das
primeiras pessoas a recebê-la foi o bispo da igreja episcopal. Como
se não bastasse, num dia de missa a carta apareceu colada na porta
da igreja, para que todos pudessem lê-la. Quase todas as pessoas
que liam a carta acrescentavam algum detalhe, e a coisa acabou se
transformando numa espécie de novela. Samuel ficou louco de ódio
e o bispo o chamou para esclarecer o caso.
Na carta, havia outro personagem dantesco chamado Marisol
Lagunos, ajudante ou coroinha da igreja, e que aparecia com o
epíteto de "marafona clandestina". Certa noite, o bispo levantou
de madrugada e encontrou Marisol completamente nu, sendo enra-
bado por um negro imenso atrás do altar-mor; o bispo o expulsou
da igreja e avisou a Samuel que tinha apenas trinta dias para
abandonar o local.
Samuel chegou à casa de Pepe Malas com seu guarda-chuva
preto e Cristina, a qual passou a agredir Pepe enquanto este amea-
çava chamar a polícia, jurando não ser autor daquela carta. Marta
Carriles saiu em defesa de Pepe e começou a trocar socos com
Cristina.
Pepe teve vários dentes quebrados, mas Samuel também aca-
bou levando umas boas bofetadas de Marta Carriles. De qualquer
forma, ninguém levou aquela carta a sério, e Samuel continuou
morando na igreja.
Amando García se mudara para um quarto na casa do pintor
Eduardo Michelson; aquela casa era como uma grande gaiola de
loucas. Quando Amando se mudou para lá, pediu-me que fosse
morar com ele por uns dias para fazer uma série de consertos.
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Certa noite, Michelson entregou a cada um de seus inquilinos
todo tipo de ferramentas: martelos, facas, machados. O problema
era que, naquela noite, estava esperando um amante, um marginal
da pior espécie. Se ele desse um grito, todos nós tínhamos que correr
para ajudá-lo com essas armas. Felizmente, não houve grito ne-
nhum.
Durante o Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes,
Michelson resolveu fazer um minifestival em sua própria casa;
obviamente, tratava-se de um evento clandestino, para o qual
seriam chamadas apenas pessoas de confiança; como convidados
especiais, levei Maomé e Hiram Prado.
Todos nós tínhamos que apresentar algum número, e com a
ajuda de Maomé e Hiram Prado, que faziam o coro, apresentei as
quatro grandes categorias em que se dividem as bichas cubanas.
A festa se prolongou até o dia seguinte; estávamos morrendo
de fome, mas ninguém se atreveu a ir para a rua; os comitês de
defesa vigiavam todas as esquinas para que nenhum contra-revo-
lucionário fosse visto pelos estrangeiros convidados para o Festival.
Por fim, Pedro Juan, outro inquilino de Michelson, resolveu se
disfarçar de homem e saiu vestido de miliciano; ficou numa fila
imensa e comprou pacotes de macarrão. Cozinhamos o macarrão
numa tina. Michelson tinha guardado um galão de aguardente, e
quando foi apanhá-lo encontrou em seu lugar um galão de água;
armou um escândalo tão violento que expulsou todo mundo da sua
casa, inclusive os que pagavam aluguel.
Naquela hora, uma chuva de pedras se abateu sobre a casa,
quebrando as vidraças que ainda restavam. Michelson disse para
ninguém se preocupar, pois essa chuva de pedras acontecia diaria-
mente e era assim que os vizinhos manifestavam sua desaprovação.
Temendo que a polícia aparecesse a qualquer momento, resolvi
ir para Matanzas, para a casa de Roberto Valero, até o Festival
terminar. Depois que Blanca teve de fechar seu buraco, passei a
manter com Valero relações amigáveis, assim como financeiras. Eu
levava roupa comprada no mercado negro, ou mandada por Jorge
e Margarita, e vendia tudo em Matanzas com a ajuda de Roberto,
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que atuava como intermediário. Colhíamos também todo tipo de
frutas em Matanzas, que eu vendia depois na cidade de Havana.
Quando cheguei a Matanzas, Valero tinha sido preso pela
Segurança do Estado, e sua esposa estava aterrorizada. Durante dois
dias, não tivemos notícias dele; revistaram a casa e, felizmente, não
encontraram nada realmente comprometedor. Na noite em que
o libertaram fomos à casa de Carilda, que estava oferecendo uma
das suas tertúlias clandestinas em sua casa de Matanzas; Carilda,
assim como Elia del Calvo, também possuía muitos gatos. Durante
aquelas reuniões, lia poemas imensos, alguns de péssimo gosto e
ao mesmo tempo muito bonitos. Ela não tinha o senso do limite e,
por essa razão, fazia frequentemente um papel ridículo. Enquanto
lia, os gatos pulavam, aliás voavam, à sua volta.
O amante de Carilda, muito mais jovem que ela e completa-
mente doido, parodiava os versos daquela mulher com sua voz
grossa de barítono. Fora cantor de ópera e depois, por ter ficado
doente dos nervos, teve de largar a profissão.
Carilda nos contou em segredo que estava muito nervosa
porque seu marido, naquela noite, tomara 35 copos de água; ele
tinha um desequilíbrio qualquer na próstata e tomava água cons-
tantemente. Além da sua paixão por água, tinha mais uma fraqueza:
a de colecionar sabres; havia na casa um quarto cheio dessas armas,
e ele jurava que uma delas pertencera ao general Martínez Campos.
Amanhecia e Carilda continuava lendo seus infinitos poemas.
Deixou para o final os mais eróticos, como um que dizia: "Quando
te toco com o bico de meus seios, morro de anseios, meu amor,
morro de anseios." Depois de ler tudo o que escrevera recentemen-
te, avisou que se tratava de uma estréia mundial, naquela manhãem
Matanzas.
Um dos poemas tinha um tom nitidamente pornográfico e o
marido de Carilda apareceu de repente com o sabre de Martínez
Campos, gritando: "Eu te avisei, sua puta, para não ler esse poe-
ma." Carilda não perdeu a pose e continuou lendo; ele brandiu o
sabre várias vezes no ar e acabou atingindo um dos gatos; foi
quando Carilda perdeu a paciência e disse: "Eu lhe permito tudo
,
menos machucar meus gatos; esta casa é minha e faço tudo o que
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#
tiver vontade." Para mostrar que não estava brincando, tirou o
vestido e ficou de calcinha. O marido brandia a arma cada vez mais
perto de Carilda, até que a feriu nas costas; ela deu um grito e saiu
correndo de calcinha pelas ruas de Matanzas, enquanto o marido
vinha atrás, berrando: "Pare, sua puta!" Carilda suplicava: "Por
favor, me mate, mas não faça escândalo na minha cidade." No
entanto, marido e mulher perderam-se pelas ruas de Matanzas em
meio àquele espetáculo.
No dia seguinte, recebi meus lucros com a venda das roupas
efetuada por Valero entre seus amigos; ele mesmo comprou um
camisão hindu que ia até os joelhos, e depois contou-me que o
tecido estava podre. Voltei para Havana, e quando cheguei no meu
quarto tranquei-me com cadeado; era uma técnica que praticava há
muito tempo para despistar a polícia e os visitantes importunos.
Como a porta tinha uma espécie de janelinha que dava para o jirau,
eu podia fechar a porta com três ou quatro cadeados ao mesmo
tempo, e colocar um cartaz avisando que não estava em casa;
depois, saía pela janela e ia dar exatamente nojirau. Ninguém podia
imaginar que estivesse no quarto.
De madrugada, ouvi alguém forçando a porta; olhei com muito
cuidado pela janelinha e vi um negro gigantesco que fora um dos
meus amantes nos últimos meses; achando que não havia ninguém
em casa, ele estava tentando abrir a porta à força. Com muito
cuidado, peguei um pau debaixo da cama para me defender em caso
de agressão; abri ajanelinha e dei um golpe tão violento com o pau
que ele ficou completamente tonto. Peguei-o desprevenido e ele
não conseguiu entender de onde viera a paulada, porque fechei a
janela logo em seguida.
O negro se refez e voltei a abrir a janela; dei outra porrada;
dessa vez, ele nem quis saber de onde veio e começou a correr.
Nunca mais voltou; quem sabe pensou que os golpes viessem de
alguma força diabólica e invisível que só eu possuía.
Apenas Lázaro sabia que eu estava no quarto e, às vezes, me
trazia comida que roubava de Marta. Quando acabou o Festival,
tirei os cadeados; agora a situação ficara ainda mais difícil, porque
o Festival arruinara o país por completo e não havia absolutamente
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#
nada para comer. Quanto a mim, tudo era mais complicado pelo
fato de não ter emprego. Em meio àquela crise, as duas tartarugas
de Marta Carriles me fizeram companhia. Há muito tempo que
olhava com pena para aqueles bichos morrendo de fome; eram
quase o simbolo da minha própria vida. Peguei uma sacola e
levei-as para o Jardim Zoológico, pretendendo deixá-las no lago
das tartarugas; no entanto, ao chegar, percebi que se fosse apanhado
pelos guardas com as tartarugas, eles pensariam que eu as estava
roubando e me mandariam para a cadeia. De fato, a fome era tão
violenta que frequentemente as pessoas roubavam animais do
zoológico para ter o que comer. Ficou famoso o caso de pessoas
que mataram o leão do zoológico de Havana e o comeram. Final-
mente, consegui colocar as tartarugas no chão; os bichos correram,
quase voaram de tanta felicidade. Nunca vi dois bichos tão conten-
tes e com tanta energia. Foram até a água e desapareceram no lago.
Senti então uma imensa sensação de alívio. Logo em seguida,
desabou um temporal que inundou as ruas de Havana, enquanto eu
corria feliz debaixo daquela chuva.
Na igreja episcopal, aconteceu outro escândalo parecido com o de
Marisol. Houve um evento importante na igreja onde todos os
noviços e aspirantes a sacerdotes podiam vestir suas roupas mais
luxuosas. Para aquela ocasião, Toca se vestiu de branco e pôs uma
espécie de carapuça verde, que, obviamente, não lhe pertencia;
parecia um fantasma saído de um pesadelo escandinavo. Samuel
pedira a todos os amigos que viessem vê-lo em todo o seu esplen-
dor; sempre foi muito exibicionista.
A cerimônia teve início e Samuel fez questão de ostentar todos
os seus paramentos; o bispo iniciou o sermão e, de repente, a música
do órgão começou a fluir por todo o templo. Subitamente, apesar
da freira continuar tocando com todo o seu profissionalismo, o
instrumento não emitia os sons habituais, e sim ruídos muito
estranhos; o coro parou de cantar, embora a freira insistisse em tocar
sua melodia; o que saía daquele instrumento era um som realmente
infernal.
Quase todos os presentes, inclusive o bispo, subiram até o
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#
recinto no qual se encontravam os tubos do órgão; foi Quando
percebemos o que estava acontecendo; Hiram Prado, completa-
mente nu, estava sendo enrabado pelo jardineiro negro; e enquanto
se realizava a conjunção daqueles dois corpos, Hiram dava porradas
nos tubos do órgão. Não sei se agia assim por estar em pleno êxtase
ou por o pênis do negro ser tão gigantesco que o obrigava a
socar
os tubos daquela maneira. O fato é que em toda a história da igreja
episcopal nunca houvera algo semelhante. Hiram e o negro fugiram
nus pelos jardins da igreja.
O bispo, porém, sabendo que Samuel convidara Hiram, avisou
naquela mesma tarde que ele deveria desocupar seus aposentos.
Samuel pediu um mês e ameaçou apelar para a Reforma Urbana.
Não sei como conseguiu prolongar sua estada na igreja por mais
três meses.
Felizmente, já estávamos no ano de 1979 e Fidel Castro resol-
veu se livrar de alguns ex-presos políticos, os quais não tinham a
menor relevância; Samuel Toca foi um dos primeiros a ganhar
permissão de saída. Imediatamente, ele assumiu ares de importân-
cia; era ele quem ia embora para o mundo livre. Até o próprio bispo
ofereceu uma pequena festa de despedida em sua homenagem; mais
uma vez, fomos todos até a igreja para dizer adeus a Samuel.
Aproveitei para falar a sós com ele, pedindo-lhe que desse aos
meus amigos Jorge e Margarita o seguinte recado: por favor, que
fizessem todo o possível para me tirar do país clandestinamente;
avisei para dizer aos dois que agissem com a maior discrição.
Samuel fez exatamente o contrário: tão logo chegou à Europa,
divulgou na imprensa tudo o que eu pedira que mantivesse em
segredo. Uma semana após a partida de Samuel, Víctor apareceu
no meu quarto; trazia um exemplar de Cambio 16, da Espanha, onde
se lia, em grandes manchetes : REINALDO ARENAS PEDE PARA
SAIR DE CUBA OU AVISA QUE VAI SE SUICIDAR. Foi assim
que Samuel guardou segredo de tudo o que eu tinha pedido;
simplesmente utilizou-se da minha amizade para chegar aos órgãos
da imprensa espanhola e francesa.
Margarita e Jorge o hospedaram por mais de um mês. Em
outubro, ao perceberem que nem pensava em sair, perguntaram-lhe,
300
#
com muito tato, até quando ia ficar; Samuel respondeu que ficaria
talvez até o fim do ano. Escrevi para Jorge e Margarita contando-
lhes tudo que Samuel tinha feito, a mim e a todos nós; como já
sabiam com quem estavam lidando, mandaram-no embora, mas
ainda assim deram-lhe dinheiro para procurar um hotel.
Assim que chegou à Europa, Samuel começou a mandar cartas
muito estranhas; sabia que toda a nossa correspondênciaera censurada
pela Segurança do Estado; para certas pessoas, chegou a enviar as
cartas para os locais de trabalho ou para a universidade. Só escrevia
para nos prejudicar. Uma vez, escreveu dizendo que fizera tudo para
me tirar de Cuba, falara com Olga, minha amiga francesa, para tentar
me tirar clandestinamente num navio mercante.
Numa carta para Valero, dizia: "Espero que continuem se
encontrando na igreja episcopal ou em algum outro lugar, naquelas
tertúlias contra-revolucionárias que costumávamos celebrar jun-
tos." Mandou uma carta igual a Juan Penate, o que fez com que
perdesse o emprego e fosse internado num manicômio.
Valero foi expulso da universidade e mandado para a cadeia.
Quanto a mim, não tinham de onde me expulsar e se me prendessem
de novo isso causaria um escândalo maior; no entanto, a vigilância
sobre mim aumentou e Víctor me avisou que se aquilo voltasse a
acontecer não teriam pena de mim. Naturalmente, respondi que não
estava a par de nada e que Samuel fizera tudo aquilo para me
prejudicar.
Naquela ocasião, a Segurança do Estado fez uma visita à casa
de Virgilio Pinera; ele foi insultado, pegaram todos os seus manus-
critos e proibiram-no de voltar a organizar qualquer tipo de leitura
pública. Desde então, ele se trancou numa espécie de angústia
silenciosa e no terror.
Quem delatou as leituras de Virgilio como sendo contra-revo-
lucionárias foi Rafael Arnés; eu mesmo pude confirmar isto mais
tarde através do amigo René Cifuentes, atualmente exilado.
301
Adeus a Virgilio
Virgilio também concluiu que a única salvação possível era
fugir da Ilha. Um dia, enquanto andávamos pela cidade velha de
Havana, disse o seguinte: "Você já sabe que vão permitir a saída
de Padilla? Veja só, se estão soltando Padilla, vão nos soltar
também." Infelizmente, não foi bem assim; Virgilio jamais conse-
guiu partir.
Uma semana depois, Pepe Malas apareceu na minha porta; já
fazia algum tempo que voltara a falar comigo, certamente por
ordem da Segurança do Estado. Abri a porta e Pepe me disse:
"Virgilio Pinera morreu; seu corpo está na capela Rivero." Meia
hora mais tarde, Víctor chegou para me dar a notícia e avisou que
era melhor não aparecer. Era o cúmulo; eu nem podia ir ao enterro
de um amigo meu.
Assim que Víctor foi embora, vesti-me e fui ao velório. Lá
estavam também María Luisa, a viúva de Lezama, e outros amigos;
muitos não tiveram coragem de ir. No entanto, naquele enterro,
faltava o principal: o corpo de Virgilio Pinera. O cadáver fora
retirado pela Segurança do Estado, sob o pretexto de que era preciso
fazer uma autópsia, fato esse muito estranho, já que sempre se faz
a autópsia antes de levar o corpo para o velório.
As autoridades cubanas informaram que ele falecera de enfarte,
embora eu tivesse minhas dúvidas a respeito dessa morte. Pouco
tempo atrás, Víctor me perguntara se eu via Virgilio com muita
302
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freqüência e quem era a pessoa que fazia a faxina em sua casa. A
Segurança do Estado queria saber quando Virgilio estava em casa
sozinho, e quando estava em companhia da faxineira semanal. Um
sujeito tão estranho e maldoso como Víctor nunca faria tais pergun-
tas por mera curiosidade.
Quando cheguei ao velório e não vi o corpo de Virgilio,
desconfiei logo que aquela morte pudesse ter sido um crime.
Fidel Castro sempre odiou os escritores, inclusive os que
estavam a favor do governo, como Guillén e Retamar; mas, no caso
de Virgilio, o ódio era ainda mais profundo; talvez por se tratar de
um homossexual, e também porque sua ironia era corrosiva, anti-
comunista e anticatólica. Ele representava o eterno dissidente, o
constante inconformado, o eterno rebelde.
Com sua novela Presiones y diamantes, na qual descobre-se
que um famoso diamante é falso e o jogam na latrina, Virgilio caiu
na mais completa desgraça junto a Fidel Castro; a novela era
simbólica demais. O diamante chamava-se Delfi, isto é, um ana-
grama do nome de Fidel.
Finalmente, o corpo foi trazido apenas algumas horas antes do
enterro e levado até o cemitério. No momento exato em que estava
sendo levado, vi no rosto de Víctor um ar de satisfação e prazer;
compreendi que ele desempenhara sua tarefa à perfeição.
O carro fúnebre de Virgilio corria a toda velocidade. Era
praticamente impossível acompanhá-lo. A Segurança do Estado
tentou evitar, por todos os meios, que se formasse uma aglomeração
por causa daquela morte; no entanto, uma multidão composta de
jovens, de patins ou bicicletas, seguia o corpo. Outros, mais esper-
tos, seguiram bem antes para o cemitério, e ficaram esperando o
corpo lá mesmo.
Antes que o corpo de Virgilio baixasse à cova, Pablo Armando
leu um pequeno discurso onde dizia que se tratava de um escritor
cubano, nascido e falecido em Cuba. Lógico! foi por isso que não
o deixaram sair do país.
Seus amigos, assim como seus inimigos, estavam presentes:
Marcia Leiseca, uma das mais importantes agentes da Segurança
do Estado, toda vestida de preto, como uma imensa aranha, zelando
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#
para que o cadáver fosse realmente enterrado. Até o último momen-
to, pareciam temer que Virgilio conseguisse fugir, ou desse sua
última gargalhada irônica contra o regime.
Quando voltei ao meu quarto, estava à minha espera o meu
próprio cadáver, olhando-me no espelho.
Acho que a minha atitude durante o enterro de Virgilio chamou
a atenção da Segurança do Estado. Em primeiro lugar, desobede-
cera às ordens de Víctor, indo ao funeral. Depois, eu tinha sido a
única pessoa a fazer algum tipo de manifestação a favor de Virgilio,
dizendo que tudo aquilo era realmente deplorável. Agora, ninguém
mais acreditava na farsa da minha reabilitação, e a vigilância sobre
mim só fez aumentar.
Carlos Olivares era sobrinho do embaixador cubano na União
Soviética; era uma bicha mulata que se fingia de homem entre as
outras bichas, para poder seduzi-las e obter algum tipo de informa-
ção; parece que também fora chantageado pela polícia cubana. Um
dia, fez um enorme escândalo no Bosque de Havana; convidara um
simpático recruta para andarem juntos pelo bosque. Olivares foi se
insinuando junto ao recruta, mas este se fez de desentendido, com
muita diplomacia. Olivares insistiu e implorou para que o outro o
enrabasse já que ninguém ficaria sabendo. Como o recruta insistia
em querer ir embora, Olivares parou de repente e disse: "Ou me
fode, ou começo já a gritar." O recruta ficou nervoso e passou a
andar mais rápido, mas Olivares começou a dar berros que ecoaram
por todo o bosque. Vários policiais das unidades militares mais
próximas vieram ver o que estava acontecendo, e o recruta contou
tudo. Parece que, a partir daquele incidente, Olivares passou a ser
delator, ou talvez já o fosse, por pura maldade. Era um dos inúmeros
delatores que agora visitavam minha casa com certa frequência, por
ordem da Segurança do Estado.
Assim era minha vida no início de 1980; cercado de espiões e
percebendo como minhajuventude se esvaía sem nunca ter conse-
guido ser uma pessoa livre. Minha infância e minha adolescência
transcorreram sob a ditadura de Batista e o resto da minha vida sob
a ditadura ainda mais feroz de Fidel Castro; jamais seria um
verdadeiro ser humano, no sentido mais completo da palavra.
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#
Devo confessar que nunca me recuperei por completo da minha
experiência na cadeia; duvido que alguém que tenha sido preso
consiga. Vivia aterrorizado e com a esperança de algum dia poder
fugir do país. Toda ajuventude cubana não pensava em outracoisa.
Era freqüente alguns jovens tentarem entrar à força nas embaixa-
das.
Na memória de todos nós, porém, estava a cena de um grupo
inteiro de jovens cubanos, que foram metralhados pelas tropas
cubanas ao tentarem passar pela cerca eletrificada da base naval de
Guantánamo.
Na embaixada do México havia exilados cubanos que perma-
neciam por lá anos a fio; de fato, o governo mexicano, sempre
sinuoso e imoral, mantinha todos eles na embaixada, talvez por
ordem direta de Fidel Castro. E lá acabavam morrendo de fome;
estavam em território mexicano, submetidos, porém, à chantagem
de Castro. Era praticamente impossível entrar numa embaixada,
embora fosse o sonho de todos os jovens.
305
#
Mariel
Durante os primeiros dias de 1980, um chofer de ônibus, da
linha 32, atirou-se com todos os passageiros contra a porta da
embaixada do Peru, solicitando asilo político. O mais estranho foi
que os passageiros também resolveram pedir asilo político; nin-
guém quis sair da embaixada.
Fidel Castro chamou de volta todas aquelas pessoas, mas o
embaixador respondeu que estavam em território peruano, e pelas
leis internacionais tinham direito a asilo político. Dias mais tarde,
Fidel Castro resolveu retirar a escolta cubana da embaixada do
Peru, tentando talvez prejudicar o embaixador, para que precisasse
ceder e mandasse sair todas as pessoas da embaixada.
No entanto, dessa vez o tiro saiu pela culatra; quando souberam
que a embaixada estava sem escolta, milhares de pessoas entraram
para pedir asilo político. Uma das primeiras pessoas foi meu amigo
Lázaro, mas não acreditei na possibilidade de tal asilo; de fato, o
próprio jornal Granma publicara a notícia; pensei que se tratasse
de uma armadilha; depois que todas as pessoas estivessem lá dentro,
Castro poderia perfeitamente prender todo mundo.
Lázaro despediu-se de mim antes de ir para a embaixada. No
dia seguinte, as portas já estavam fechadas; havia mais de dez mil
pessoas lá dentro, e outras cem mil querendo entrar. De todas as
partes do país não paravam de chegar caminhões lotados dejovens
querendo entrar naquela embaixada. Fidel Castro percebeu que
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cometera um grave erro ao retirar a escolta da embaixada do Peru;
por isso, fecharam a embaixada, assim como proibiram a entrada
em Miramar de quem não fosse morador do bairro.
Cortaram a água e a luz dos que estavam na embaixada; para
10.800 pessoas, havia apenas oitocentas rações de comida. Além
diss, o governo infiltrou numerosos agentes da Segurança do
Estado, que chegaram a assassinar pessoas que tivessem ocupado
cargos importantes no governo e que também se encontravam na
embaixada. Os arredores da embaixada do Peru estavam cheios de
carteiras da Juventude Comunista e do Partido, pertencentes a
pessoas que já se encontravam asiladas.
O governo tentou abafar o escândalo, mas toda a imprensa
mundial veiculou a notícia. Julio Cortázar e Pablo Armando Fer-
nández, testas-de-ferro de Castro que se encontravam em Nova
York naquela ocasião, chegaram a declarar que havia apenas sete-
centas pessoas asiladas na embaixada.
Um chofer de táxi tentou entrar de carro a toda velocidade, mas
foi metralhado pela Segurança do Estado; apesar de muito ferido,
ainda tentou sair do táxi e entrar na embaixada, mas foi levado num
carro da polícia.
O acontecimento na embaixada do Peru passou a representar a
primeira rebelião em massa do povo cubano contra a ditadura
castrista. Depois, o povo tentou entrar no prédio da representação
dos Estados Unidos. Todos procuravam uma embaixada para se
asilar e a perseguição por parte da polícia atingiu níveis alarmantes.
Por fim, a Uníão Soviética mandou para Cuba um alto funcionário
do KGB, que teve uma série de encontros com Fidel Castro.
Fidel e Raúl Castro vieram até os portões da embaixada do
Peru. Pela primeira vez, Castro ouviu o povo xingando, chamando-
o de covarde e criminoso; pedindo liberdade.
Foi quando Fidel mandou que fossem metralhadas todas as
pessoas quejá estavam há quinze dias sem comer, dormindo em pé,
pois não havia espaço para deitar, sobrevivendo em meio aos
próprios excrementos; diante daquele tiroteio que feriu muita gente,
a resposta foi cantar o hino nacional.
Temendo que tivesse início uma revolução popular, Fidel Cas-
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#
tro e a União Soviética decidiram que era necessário abrir uma
brecha e deixar sair do país um grupo dos mais dissidentes; era
como fazer uma sangria num organismo doente.
Num discurso desesperado e irado, junto com García Márquez
e Juan Bosch, que batiam palmas, Castro acusou todos aqueles
coitados que se refugiaram na embaixada do Peru de anti-sociais e
depravados sexuais. Jamais esquecerei seu rosto de rato acossado
e furioso, nem os aplausos hipócritas de Gabriel García Márquez e
Juan Bosch, apoiando o crime contra os pobres prisioneiros.
O porto de Mariel foi aberto e Castro, depois de declarar que
toda aquela gente era anti-social, afirmou o que queria exatamente:
que toda essa escória fosse embora de Cuba. Imediatamente, come-
çaram a aparecer cartazes, dizendo: VÃO EMBORA, A PLEBE
DEVE IR EMBORA. O Partido e a Segurança do Estado organi-
zaram uma manifestação voluntária, entre aspas, contra os refugia-
dos que se encontravam na embaixada. O povo não teve outro jeito
senão assistir àquela manifestação; muita gente foi com a intenção
de ver se conseguia pular a cerca e entrar na embaixada; mas os
manifestantes não podiam aproximar-se da cerca, pois havia uma
fila tripla de policiais para protegê-la.
Começaram então a sair, do porto de Mariel, milhares de barcos
lotados rumo aos Estados Unidos. No início, não era simplesmente
quem quisesse sair que podia ir embora, e sim quem Fidel Castro
quisesse deixar sair: os criminosos comuns, que cumpriam pena,
agentes secretos para se infiltrarem em Miami, os doentes mentais.
E tudo isso foi feito à custa dos cubanos no exílio, que mandaram
embarcações para buscar seus familiares. A maioria daquelas famí-
lias em Miami gastou todas as economias para fretar barcos que
trariam seus parentes; mas, quando atracavam em Mariel, Castro
enchia as embarcações de marginais e loucos, os quais nem podiam
levar parentes. Mesmo assim, milhares de pessoas honestas conse-
guiram fugir.
Para chegar ao porto de Mariel as pessoas tinham que deixar a
embaixada do Peru com um salvo-conduto expedido pela Seguran-
ça do Estado, ir para casa e esperar que o próprio governo de Castro
desse a permissão de saída. A partir de então, a Segurança do
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Estado, e não a embaixada do Peru, iria decidir quem sairia do país
ou não. Muita gente resistiu e não quis abandonar a embaixada,
principalmente os que estavam mais comprometidos com o regime
de Castro.
As multidões organizadas pela Segurança do Estado ficavam
do lado de fora da embaixada, e várias vezes tiravam os
documentos das pessoas que tinham conseguido sair; assim, per-
diam sua condição de asilados e ainda apanhavam.
As pessoas eram agredidas não só por terem ficado na embai-
xada do Peru, mas também por telegrafarem pedindo que seus
parentes em Miami viessem buscá-las em Mariel. Vi um rapaz
apanhar até ficar completamente inconsciente, jogado na rua, pelo
fato de ter saído do correio após mandar um telegrama. Essas cenas
se repetiam diariamente, por toda parte, durante os meses de abril
e maio de 1980.
Vinte dias mais tarde, Lázaro voltou da embaixada; estava
quase irreconhecível, pois não pesava mais do que quarenta quilos.
Passara por maus pedaços para não apanhar muito, mas estava
morto de fome. Agora, tudo se resumia em esperar a permissão de
saída do país. No dia em que ela chegou, fomos juntos de táxi até
o local onde expediam os documentos, e Lázaro disse: "Não se
preocupe, vou tirar você daqui, Reinaldo." Quando ele saiu do táxi,
vi a multidão dar-lhe porretadas nas costas, enquanto ele corria sob
uma chuva de pedras e frutas podres; em meio àquela cena, vi
Lázaro desaparecer em direção à liberdade, enquanto eu permane-
cia ali, sozinho. No meu prédio, quase todo mundo queria sair do
país, de modo que, ao voltar para casa, encontrei um outro tipo de
asilo.
No meio dessa guerra civil, ocorriam coisas terríveis. Um
homem, na tentativa de não apanhar, pegou o carro e lançou-o
contra algumas pessoas que o atacavam. Imediatamente, um
agente da Segurança do Estado alvejou-o na cabeça, matando-o.
Os incidentes eram publicados no próprio Granma; o fato de
alguém ter matado aquele "anti-social" era considerado como
um ato heróico.
As casas dos que aguardavam permissão para sair do país eram
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cercadas pela multidão e apedrejadas; no Vedado, houve várias
pessoas assassinadas. Todo o terror pelo qual tinhamos passado
durante vinte anos alcançava agora o seu píco. Quem não fosse
agente de Castro corria o maior perigo.
Diante da parede do meu quarto, tinham colocado um cartaz
dizendo: QUE OS HOMOSSEXUAIS VÃO EMBORA. QUE A
ESCÓRIA VÁ EMBORA. Ir embora era exatamente o que eu
queria, mas como? Ironicamente, o governo cubano insultava-nos
e nos mandava embora, enquanto, ao mesmo tempo, impedia que
saíssemos do país. Em nenhum momento, Fidel Castro abriu o porto
de Mariel para quem quisesse sair da Ilha; seu trato foi exclusiva-
mente deixar sair as pessoas que não pudessem prejudicar a imagem
do governo; mas não deixava sair os profissionais com nível
universitário, nem os escritores com livros publicados no exterior,
como era o meu caso.
Entretanto, como existia uma ordem de deixar sair todos os
indesejáveis, sendo que, nessa categoria, entravam em primeiro
lugar os homossexuais, uma imensa quantidade deles pôde deixar
a Ilha em 1980; outros se fingiram de bichas-loucas para abandonar
o país pelo porto de Mariel.
A melhor maneira de se conseguir permissão de saída era
arranjar alguma prova documental da condição de homossexual.
Eu não possuía nada que provasse meu comportamento, mas tinha
a carteira de identidade, onde constava que fora preso por pertur-
bação da ordem pública; achei que isso representava uma excelente
prova e me dirigi à polícia.
Na delegacia perguntaram se eu era homossexual e respondi
que sim; perguntaram então se era ativo ou passivo, e tomei todo o
cuidado em dizer que era passivo. Um amigo tivera negada a licença
de saída por ter dito que era ativo; revelara apenas a verdade, mas
o governo cubano não considerava os ativos como homossexuais.
Estavam presentes umas psicólogas; mandaram que eu caminhasse
na frente delas para provar se era bicha ou não.
Passei na prova e o tenente gritou para outro militar: "Esse aí
pode mandar direto." Isso significava que não havia necessidade
de passar por nenhum outro tipo de investigação política. Manda-
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ram-me assinar um documento no qual eu afirmava sair do país por
problemas estritamente pessoais e por ser indigno de viver em meio
a uma Revolução tão maravilhosa quanto a cubana. Deram-me um
número e mandaram que não saísse de casa. O policial que preen-
cheu meus documentos avisou: "Agora, já sabe: se quiser dar uma
festa de despedida com todo mundo nu, tem de ser na sua casa; se
não estiver em casa quando a permissão chegar, vai perder a vez."
Acho que esse policial teria gostado muito de ir àquela festa de
despedida imaginária que sugeriu que eu desse em minha casa.
Minha saída do país fora tratada a nível de bairro, de delegacia
de polícia; no entanto, os mecanismos de perseguição em Cuba não
estavam ainda tão sofisticados, do ponto de vista técnico. Foi por
essa razão que consegui sair sem que a Segurança do Estado Ficasse
sabendo; saí como mais uma bicha-louca, e não como escritor; os
tiras que me deram a autorização, no meio de tanta confusão, não
sabiam absolutamente nada de literatura, nem podiam conhecer
minha obra, quase totalmente inédita em Cuba.
Após uma semana sem conseguir pregar olho, trancado naquele
quarto onde o calor era insuportável, acabei adormecendo; no meio
da noite, bateram na porta; era Marta Carriles e o pai de Lázaro,
gritando: "Levante, chegou sua permissão. A gente sabia que São
Lázaro ia ajudar! " Desci correndo de pijama e, de fato, na porta do
edifício encontrava-se um policial com um documento. Perguntou
se eu era Reinaldo Arenas; respondi que sim, o mais baixo que pude;
ele deu trinta minutos para que me aprontasse e apresentasse para
sair do país, num local chamado Cuatro Ruedas.
Enquanto subia a escada correndo, encontrei Pepe Malas, sem-
pre querendo saber de tudo, que disse: "Lá embaixo tem um tira
atrás de você; o que será que quer?" Fingindo o maior pavor,
respondi que vinham me prender mais uma vez, e que haveria outro
julgamento. Falei com tal pânico na voz, temendo que ele já
soubesse de tudo, que Pepe acreditou.
Naqueles dias era muito difícil chegar até Cuatro Ruedas em
meia hora. Quando chegou o ônibus, prometi ao motorista uma
corrente de ouro se chegássemos em menos de trinta minutos. Não
parou em ponto nenhum e cheguei a tempo. Despedi-me às pressas
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de Fernando, pai de Lázaro, e, sempre correndo, cheguei ao local
onde aguardava um militar, a quem entreguei meu cartão de racio-
namento e o documento que o tira me entregara em casa; ali mesmo
me deram um passaporte e um salvo-conduto dizendo que eu era
um dos exilados da embaixada peruana. Fui no primeiro ônibus do
dia para Mariel. Para cúmulo do azar, o ônibus enguiçou no meio
do caminho, e tive de esperar duas horas até a chegada de outro.
Chegamos a El Mosquito, o campo de concentração situado
perto de Mariel; o nome caía bem, tal a quantidade de mosquitos
que havia no lugar. Esperamos dois ou três dias até chegar nossa
vez de deixar Mariel. Encontrei por lá alguns amigos, e outros que
sabia que eram policiais; fiz o possível para não ser notado. Fomos
revistados, já que não podíamos levar nenhuma carta, nem o
telefone de alguém nos Estados Unidos. Eu sabia de cor o número
da minha tia em Miami.
Antes de entrarmos no setor das pessoas já autorizadas a deixar
o país, tivemos que aguardar numa fila imensa e mostrar o passa-
porte a um agente da Segurança do Estado, que checava nosso nome
num livro gigantesco; lá estavam listadas as pessoas que não
podiam deixar o país, e fiquei apavorado. Rapidamente, pedi uma
caneta a um vizinho na fila; como meu passaporte tinha sido feito
a mão, e o e de Arenas estava muito fechado, transformei a letra em
i e meu nome passou a ser Arinas; foi esse nome que o oficial
procurou no livro e nunca encontrou.
Antes de embarcarmos nos ônibus que nos levariam a Mariel,
outro oficial nos reuniu e explicou que estávamos saindo "limpos" ,
ou seja, em nenhum dos passaportes constava quaisquer registros
criminais e, portanto, ao chegarmos aos Estados Unidos só preci-
saríamos dizer que éramos exilados da embaixada do Peru. Com
toda a certeza, por trás disso tudo devia existir algo de muito sujo
e desonesto; o que queriam era justamente criar uma grande con-
fusão para as autoridades norte-americanas, para que não conse-
guissem saber quem era realmente exilado ou não.
Antes de subirmos nos barcos, fomos divididos em grupos: um
era formado por débeis mentais, em outro iam os assassinos e
marginais irrecuperáveis, em outro mais, as prostitutas e os homos-
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sexuais, e, finalmente, um grupo de jovens agentes da Segurança
do Estado que seriam infiltrados nos Estados Unidos. Os barcos
foram lotados com pessoas dos diferentes grupos.
É preciso lembrar que 135 mil pessoas saíram da Ilha naquele
êxodo; a maioria constituída de gente como eu, que queria apenas
morar num mundo livre, trabalhar e recuperar sua dignidade perdi-
da.
Finalmente, na madrugada do dia 4 de maio, chegou a minha
vez. Meu barco chamava-se San Lazaro e recordei as palavras de
Marta Carriles; era uma hora da manhã. Um militar tirou várias
fotos nossas, e em poucos minutos fomos nos afastando da costa.
Éramos escoltados por duas lanchas da polícia cubana; tratava-se
de uma medida de precaução para evitar que pessoas não-autoriza-
das pudessem embarcar clandestinamente.
Foi então que ocorreu uma cena horrível. Um membro da
guarda-costeira, bem na hora em que estávamos saindo, jogou seu
fuzil na água e começou a nadar em nossa direção; rapidamente, as
outras lanchas aproximaram-se do militar e lá mesmo, com suas
baionetas, ele foi assassinado dentro da água.
O San Lazaro continuava se afastando da costa; a ilha foi se
transformando num conjunto de luzes piscantes e logo tudo não
passou de uma enorme sombra. Estávamos em mar aberto.
Para mim, que há anos desejava fugir daquele horror, era fácil
não chorar. Mas havia um rapaz de dezessete anos que fora embar-
cado em Mariel, deixando toda a família em Cuba; ele chorava
desesperadamente. Havia também mulheres com crianças, que,
assim como eu, não comiam nada há mais de cinco dias. E havia
também vários doentes mentais.
O capitão do barco era um cubano que fugira para os Estados
Unidos vinte anos atrás; agora, voltara para buscar a família. Em
vez disso, seu barco ia lotado de gente desconhecida, com a
promessa de que poderia levar a família na próxima viagem. Na
verdade, fazia aquele trabalho porque não tinha outro jeito; não
entendia absolutamente nada de navegação; disse-me que alugara
o barco para buscar a família. Para piorar a situação, não havia nada
para se comer a bordo.
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A viagem de Havana a Key West costumava demorar umas sete
horas; entretanto, já estávamos navegando um dia inteiro e não
chegávamos nunca ao bendito lugar. Finalmente, o capitão confes-
sou que estava perdido e não sabia exatamente onde nos encontrá-
vamos. Havia um rádio a bordo, e ele estava tentando comunicar-se
com outros barcos, mas sem resultado.
No segundo dia, acabou a gasolina e ficamos à deriva em meio
à correnteza do golfo do México. Estávamos há tantos dias sem
comer que nem conseguíamos vomitar; só saía bílis. Um dos loucos
fez várias tentativas para se atirar na água e era preciso ficar atento
para ele não recomeçar, enquanto alguns ex-condenados gritavam
para que se controlasse, para não ir parar em "Yuma"; o pobre
louco berrava: "Que Yuma, nada de Yuma, quero ir pra casa." O
pobre coitado não fazia idéia de que estávamos indo para os Estados
Unidos. Os tubarões nos rodeavam, esperando que caíssemos na
água para nos devorar.
Finalmente, o capitão conseguiu alcançar outro barco, o qual
chamou a guarda-costeira americana, que por sua vez ordenou uma
busca de helicóptero. Três dias depois, apareceu o helicóptero
norte-americano; desceu quase até o nível do mar, tirou fotos nossas
e logo depois partiu. Deu ordem para que fôssemos resgatados, e
na mesma noite chegou um barco da guarda-costeira; lançaram
cordas e subimos a bordo; amarraram nosso barco à popa deles e
partimos. Serviram-nos comida e bebida, e lentamente começamos
a recuperar as forças e a sentir uma profunda alegria. Chegamos
finalmente a Key West.
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Key West
Quando estava deixando meu prédio na rua Monserrate, a
chefe de vigilância da administração regional aproximou-se e disse:
"Não se preocupe, não vou delatar você; só peço o seguinte: se
encontrar meu filho, diga que estou bem." Foi estranho, mas a
primeira pessoa que encontrei, ao chegar em Key West, foi o filho
dela; assim, pude dar-lhe o recado da mãe. Ele me levou até uns
armazéns onde os exilados cubanos de Miami estocavam donativos
para os recém-chegados de Mariel. Recebi dele um par de sapatos
novos, uma calçajeans e uma camisa; deu-me também sabão e uma
grande quantidade de comida. Tomei banho, fiz a barba e voltei a
parecer um ser humano.
Mais tarde, encontrei um bailarino da companhia de Alicia
Alonso, o qual me contou que, assim que saí de Mariel, meu nome
passou a ser chamado por todos os alto-falantes da cidade; a polícia
estava à minha procura. Depois disso, todas as pessoas tinham que
mostrar o passaporte antes de entrar no porto, e todos os ônibus
eram parados por policiais à minha procura; a Segurança do Estado
e a UNEAC estavam em estado de alerta e, acreditando que ainda
me encontrava em El Mosquito, elaboraram um plano para que eu
não pudesse fugir do país.
Fomos albergados em Key West, até a imigração decidir onde
nos colocar. Em meio àquela multidão, encontrei Juan Abreu;
finalmente, pudemos nos abraçar fora de Cuba, e em liberdade.
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Assim que cheguei a Miami, tentei contactar Lázaro, assim
como Jorge e Margarita Camacho, os quais se encontravam na
Espanha. Tive sorte de encontrar Lázaro quando chegava na casa
do meu tio; estava esperando por mim e parecia incrível que nós
dois, com apenas uma semana de diferença, estivéssemos juntos
nos Estados Unidos. Escrevi para Jorge e Margarita, quejá estavam
a par da minha saída de Cuba através de uma notícia publicada na
Espanha. Eu agora queria recuperar meus manuscritos; Jorge e
Margarita, que se encontravam na sua casa de campo, não os tinham
em seu poder. Telefonei para Severo Sarduy, a quem eles entrega-
ram os manuscritos, em Paris. Severo disse que também não os
tinha. Escrevi uma carta desesperada para Jorge e Margarita, os
quais me acalmaram dizendo que não me preocupasse, pois pos-
suíam os originais; os que Severo recebera eram apenas cópias. Foi
sorte terem tomado tal precaução, pois parecia que Severo Sarduy
não tinha a menor intenção de destruir aqueles manuscritos.
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Miami
A Universidade Internacional da Flórida me convidou para
uma conferência no dia 1º de junho de 1980. Intitulei minha
palestra de "O mar é nossa selva e nossa esperança", e pela
primeira vez falei para um público livre. Comigo estava Heberto
Padilla, que falou primeiro. Na verdade, sua apresentação foi
lamentável; chegou completamente bêbado e, aos trancos e barran-
cos, improvisou um discurso incoerente; o público reagiu violenta-
mente. Senti muita pena daquele homem, completamente destruído
pelo sistema, incapaz de encarar seu próprio fantasma, com a
confissão pública que fizera em Cuba. Na realidade, Heberto nunca
se recuperou daquela confissão; o sistema conseguira destruí-lo de
uma maneira perfeita, e agora parecia que o estava utilizando em
seu benefício.
Assim que comecei a denunciar a tirania que sofrera durante
vinte anos, até meus próprios editores, que ganharam bastante
dinheiro com a venda dos meus livros, declararam-se secretamente
meus inimigos. Emmanuel Carballo, que publicara mais de cinco
edições de El mundo alucinante (no México) e nunca me pagara
um centavo sequer, escreveu uma carta indignada, dizendo que em
momento algum eu deveria ter abandonado Cuba, enquanto, ao
mesmo tempo, recusava-se a me pagar. Sempre fizera mil promes-
sas, mas o dinheiro nunca chegou: aquela era uma maneira muito
rentável de praticar sua militância comunista. A mesma coisa
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aconteceu com Angel Rama, que publicara no Uruguai um livro
meu de contos. Ao invés de mandar uma carta saudando-me por ter
conseguido sair de Cuba (estava a par da minha situação, pois nos
encontramos em Cuba no ano de 1969), publicou um longo artigo
no El Universalde Caracas, intitulado "Reinaldo Arenas acaminho
do ostracismo", onde dizía que eu não deveria ter saído de Cuba
,
que fora um erro, pois o problema todo era simplesmente burocrá-
tico, e agora eu estava condenado ao ostracismo. Tudo aquilo era
extremamente cínico, ridículo, principalmente partíndo de alguém
que desde 1967 não publicava nada em Cuba e que passara pela
repressão e pela prisão naquele país, onde de fato já fora condenado
ao ostracismo. Compreendi que a guerra recomeçava, mas agora
sob uma forma muito mais velada; menos terrível que a guerra de
Fidel Castro contra os intelectuais de Cuba, mas nem por isso
menos sinistra.
Só depois de inúmeras chamadas telefônicas para Paris, Sarduy
me pagou apenas mil dólares pelas versões francesas; e além disso,
ligou para minha tia em Miami, dizendo que eu estava montado no
dinheiro; e logo para minha tia, que sempre deve ter achado que eu
era milionário.
Nada disso me surpreendeu; já sabia que o sistema capitalista
também era sórdido e mercantilista. Numa das minhas primeiras
declarações, logo depois de sair de Cuba, afirmei: "A diferença
entre o sistema comunista e o capitalista é que, embora os dois nos
dêem um chute na bunda, no sistema comunista a gente leva o chute
e tem que bater palmas; no capitalista, a gente também leva, mas
pode gritar. E vim aqui para gritar."
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O Exílio
Naquele período, viajei por vários países: Venezuela, Sué-
cia, Dinamarca, Espanha, França, Portugal. Em todos, soltei o meu
grito; era o meu tesouro; era tudo o que tinha.
Estava descobrindo uma fauna que nunca vira em Cuba; os
comunistas de luxo. Lembro-me que, no meio de um banquete na
Universidade de Harvard, um professor alemão me disse: "De certa
forma, entendo que você possa ter sofrido, mas sou um grande
admirador de Fidel Castro e estou muito satisfeito com tudo o que
fez em Cuba."
Enquanto dizia isto, o professor alemão tinha um prato cheio
de comida à sua frente. Respondi: "Acho ótimo que admire Fidel
Castro, mas, nesse caso, não pode continuar comendo todo esse
prato, porque nenhum cubano, exceto o alto comando, pode comer
tanto assim." Peguei o prato e o atirei contra a parede.
Meus encontros com esta esquerda festiva e fascista foram
bastante polêmicos. Em Porto Rico, eram muito teimosos; convi-
daram-me a falar na universidade e pediram para que não tratasse
de política. Li um trabalho sobre Lezama Lima e depois um
testa-de-ferro de Castro chamado Eduardo Galeano leu um longo
discurso político, atacando-me precisamente pelo fato de adotar
uma atitude apolítica.
Evidentemente, a guerra contra os comunistas, os hipócritas e
os covardes não terminara só porque eu saíra de Cuba.
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No exílio, porém, apesar de ter encontrado uma série de opor-
tunistas, hipócritas e gente que lucrava com a dor dos cubanos,
também encontrei pessoas honestas e extraordinárias, muitas das
quais me ajudaram bastante. O professor Reinaldo Sánchez me
convidou para trabalhar na Universidade Internacional da Flórida,
onde preparei e iniciei um curso de poesia cubana; conheci exce-
lentes estudantes por lá; era como voltar a ser cubano, mas de uma
forma diferente, porque não estávamos em nossa terra.
Além disso, tive a oportunidade de me relacionar com três
escritores da nossa história, e que considero fundamentais: Lydia
Cabrera, Enrique Labrador Ruíz e Carlos Montenegro.
A sabedoria de Lydia fazia com que me sentisse novamente
perto de Lezama. Dedicava-se à tarefa de reconstruir a Ilha, palavra
por palavra, e lá estava, num pequeno apartamento em Miami,
escrevendo sem parar, sofrendo uma série de problemas econômi-
cos, com uma enorme quantidade de livros inéditos e tendo que
arcar sozinhacom os custos de todos aqueles publicados em Miami.
Havia outros escritores vivendo em condições ainda mais pe-
nosas; era o caso de Labrador Ruíz, um dos grandes da novela
contemporânea; vivia, e continua vivendo, graças à previdência
social. Escrevera suas memórias, mas não encontrara um único
editor.
Era um verdadeiro paradoxo: aqueles grandes escritores saíram
de Cuba em busca de liberdade, e agora se encontravam impossi-
bilitados de publicar suas obras aqui.
Era também o caso de Carlos Montenegro, novelista e contista
de primeira qualidade, que vivia igualmente da previdência social,
num pequeno quarto de um bairro pobre de Miami; este era o preço
que tinha de pagar por manter a dignidade. Na verdade, a literatura
não interessava muito aos exilados cubanos; o escritor é visto como
alguém estranho, alguém anormal.
Ao chegar a Miami, encontrei-me com pessoas ricas, donos de
bancos e comerciantes, e propus que se criasse uma editora para
publicar os melhores escritores da literatura cubana, a maioria dos
quais já vivendo no exílio. A resposta de todos aqueles senhores,
multimilionários, foi categórica: literatura não dá dinheiro, pou-
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quíssima gente se interessa em comprar um livro de Labrador Ruíz;
Lydia Cabrera pode ser conhecida e vender alguma coisa em
Miami, mas muito pouco; ou seja, não valia a pena.
"Talvez fosse interessante publicar um livro seu, porque você
acaba de vir de Cuba e representa ainda uma notícia fresca",
disseram." Mas ninguém vai comprar os outros autores."
Montenegro faleceu no ano seguinte num hospital público, no
mais absoluto esquecimento. Labrador está agonizando num quar-
tinho de Miami. Quanto a Lydia, completamente cega, continua
escrevendo e publicando sozinha seus livros, em edições modestís-
simas que quase não circulam fora de Miami.
Certa vez, fui ao lançamento de um de seus livros. Vi uma
mulher idosa, sentada a uma mesinha, debaixo de uma mangueira,
autografando os seus livros; era Lydia Cabrera. Deixara sua casa
enorme em Havana, sua gigantesca biblioteca, todo o seu passado,
e agora morava em Miami, num modesto apartamento. Quando vi
esta velha dama cega autografando seus livros debaixo de uma
mangueira, entendi que ela representava uma grandeza e um espí-
rito de rebeldia que talvez já não existissem em quase nenhum outro
escritor, nem em Cuba nem no exílio. Uma das mulheres mais
importantes da nossa história relegada ao mais completo ostracis-
mo, cercada de gente que não lera nenhum dos seus livros e que
procurava apenas aparecer nos jornais, graças ao esplendor daquela
mulher idosa. Era uma espécie de paradoxo e, ao mesmo tempo,
um exemplo das circunstâncias trágicas que todos os escritores
cubanos tiveram de sofrer, em todas as épocas; na Ilha, éramos
condenados ao silêncio, ao ostracismo, à censura e à cadeia; no
exílio, ao desprezo e ao esquecimento por parte dos próprios
exilados. Existe uma espécie de destruição e inveja entre os cuba-
nos; em geral, em sua grande maioria, não toleram a grandeza, não
suportam que alguém tenha sucesso e querem que todos sejam
reduzidos ao mesmo nível de mediocridade geral; isto é imperdoá-
vel. O mais lamentável em Miami é que lá todos querem ser poetas
ou escritores, mas principalmente poetas; fiquei muito surpreso
quando vi uma bibliografia dos poetas de Miami, escrita também
por uma poeta local que não queria ser chamada de poeta e sim
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poetisa. Naquela bibliografia havia mais de três mil nomes. Eles
publicavam seus próprios livros e se intitulavam poetas, organiza-
vam grandes tertúlias a que todos tinham de comparecer para não
ficarem marginalizados. Lydia costumava chamar aquelas poetisas
de "poetesas", e chamava Miami de "O Merdal". Ela sempre me
dizia para não ficar em Miami e ir logo para Nova York, Paris,
Espanha. Lydia nunca se adaptou àquele ambiente enfadonho,
invejoso e mercantilista, mas aos oitenta anos não tinha mais para
onde ir. Lydia Cabrera pertencia a uma tradição mais refinada, mais
profunda, mais culta, e estava muito distante de todas essas poetisas
de cabelo puxado para trás e péssimo gosto, nas quais predominava
o desejo de aparecer; para elas, quem conseguisse publicar um livro
no exterior e alcançar algum sucesso era considerado quase como
um traidor.
Percebi imediatamente que Miami não era o lugar adequado
para morar. A primeira coisa que meu tio disse quando cheguei foi
o seguinte: "Agora, precisa comprar uma pasta, uma gravata, cortar
o cabelo curtinho, e andar de modo certo, direito, firme; além disso,
mande fazer cartões de visita com sua profissão, escritor." O que
queria dizer era que eu tinha de me transformar num sujeito
machista. A típica tradição machista cubana, em Miami, conseguiu
uma espécie de ímpeto realmente alarmante. Não quis permanecer
muito tempo naquele lugar, pois era como se estivesse numa
caricatura de Cuba; do que há de pior em Cuba: o boato, a fofoca,
a inveja. Também não suportava a mesmice de uma paisagem que
nem tinha a beleza insular; parecia um fantasma da Ilha; uma
península arenosa e infecta, tentando transformar-se, para um mi-
lhão de exilados, no sonho de uma ilha tropical: arejada e banhada
pelo mar e pela brisa tropical. Em Miami, o senso prático, a vontade
de ganhar dinheiro e o medo de morrer de fome passaram a
substituir a própria vida, e, principalmente, o prazer, a aventura e a
irreverência.
Nos poucos meses que passei em Miami, não consegui encon-
trar um só instante de tranquilidade. Vivi cercado de fofocas cons-
tantes e confusões, e de uma infinita sucessão de coquetéis, festas
e convites. Era como viver num mostruário, uma estranha criatura
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que precisava ser convidada antes de perder o brilho, antes de
chegar um novo personagem que me desbancasse. Não tinha paz
para trabalhar e muito menos para escrever. Quanto à cidade-
aliás, não é uma cidade, e sim um amontoado de casas espalhadas,
um povoado de cowboys onde o cavalo fora substituído pelo
automóvel , ela me assustava. Estava acostumado com uma
cidade com ruas e calçadas, uma cidade deteriorada, mas onde era
possível andar e entender seu mistério, até mesmo desfrutar esse
encanto. Agora, encontrava-me num mundo plástico, carente de
mistério, e cuja solidão acabava sendo mais agressiva. Por isso
mesmo, comecei logo a sentir saudades de Cuba, da cidade velha
de Havana, mas minhas lembranças ruins foram mais poderosas
que qualquer saudade.
Sabia que não poderia viver em Miami. Assim, hoje, passados
dez anos, percebo que para um exilado não existe nenhum lugar
onde possa viver; não existe nenhum lugar, porque aquele com o
qual sonhamos, onde descobrimos uma paisagem, lemos o nosso
primeiro livro, tivemos a primeira aventura amorosa, continua
sendo o lugar sonhado. No exílio ele não passa de um fantasma, a
sombra de alguém que nunca consegue alcançar sua completa
realidade. Deixei de existir desde que cheguei no exílio; a partir de
então, comecei a fugir de mim mesmo.
Em Miami, Lázaro teve outra crise de absoluta loucura, ainda
pior que as outras. Todos aqui viviam num estado permanente de
paranóia, sempre trancados; até minha tia, quando a revi depois de
vinte anos, me pareceu ainda mais louca. Quando cheguei a Miami,
fiz umas declarações que, acredito, não foram do agrado de muita
gente; de fato afirmei: " Se Cuba é o Inferno Miami é o Purgató-
rio."
Em agosto de 1980, aceitei um convite para dar uma conferên-
cia na Universidade de Columbia, em Nova York. Sem pensar duas
vezes, preparei a palestra em menos de duas horas e peguei o avião;
estava fugindo de um lugar que só aumentava minhas angústias e
não combinava com minha maneira de ser; estava fugindo para
sempre de mim mesmo.
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O exilado é aquele tipo de pessoa que, tendo perdido o ser amado,
continua procurando o rosto querido em cada novo rosto que vê;
está sempre enganando a si mesmo, achando que o encontrou.
Pensei ter encontrado este rosto querido em Nova York, quando
aqui cheguei em 1980; a cidade me encantou. Pensei ter chegado
numa Havana em todo o seu esplendor, com grandes calçadas,
teatros fabulosos, um sistema de transporte que funcionava às mil
maravilhas, gente de todo tipo, a mentalidade de um povo que vivia
nas ruas, falava todas as línguas; não me senti como um estrangeiro
ao chegar a Nova York. Naquela mesma noite, comecei a andar pela
cidade; tive a impressão de que, em outra encarnação, em outra
vida, já morara nessa cidade. Naquela noite, mais de trinta amigos
meus, dentre os quais Roberto Valero, Nancy Pérez Crespo e até
mesmo Samuel Toca, a quem eu já perdoara, pegamos um carro e
atravessamos a Quinta Avenida, que, no início de setembro, já
começava a ser invadida pela névoa do outono.
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As Bruxas
As bruxas sempre desempenharam uma função muito im-
portante em minha vida. Primeiro, as bruxas que poderíamos con-
siderar como pacíficas, espirituais, que reinam no mundo da fanta-
sia; essas bruxas, graças à imaginação da minha avó, povoaram as
noites da minha infância com seus mistérios e horrores, e me
levaram, mais tarde, a escrever a novela Celestino antes del alba.
Outras bruxas, porém, de carne e osso, também representaram
papéis predominantes em minha vida. Por exemplo, a própria
Maruja Iglesias, chamada por todos de Bruxa da Biblioteca; foi
graças a ela que fiquei na Biblioteca Nacional, onde conheci outra
bruxa, embora bem mais sábia e encantadora, María Teresa Freyre
de Andrade, a qual me deu todo o seu amparo e uma série de
conhecimentos ancestrais; María Teresa tinha o hábito de piscar
como uma bruxa muito bem caracterizada numa obra de Shakes-
peare. Depois, conheci Elía del Calvo, outra bruxa perfeita, que
vivia cercada de gatos. Sua figura e sua personalidade foram muito
importantes em certa época da minha vida. Uma bruxa como ela
indiretamente possibilitou que mais tarde eu deixasse o país como
um não-ser, como um desconhecido. Em Miami também encontrei
várias bruxas que se dedicavam ao tráfico da palavra. Tal como as
bruxas usavam longos mantos pretos, eram magras e com o queixo
proeminente; algumas escreviam poemas e, tal como Elia del
Calvo, me obrigavam a lê-los. Realmente, o mundo está povoado
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de bruxas; umas mais benignas, outras mais implacáveis; mas o
reino da fantasia, assim como o da realidade evidente, pertence às
bruxas.
Ao chegar em Nova York, encontrei a bruxa perfeita; aquela
senhora pintava o cabelo de lilás, queria que o marido já bastante
idoso morresse logo, e flertava com qualquer pessoa que fosse à
sua casa. Era um flerte platônico, pois ela certamente tentava apenas
preencher a solidão em que vivia num apartamento do West Side
de Manhattan, tentando comunicar-se num inglês impossível de se
decifrar. Essa bruxa vivia cercada de homossexuais e portanto me
recebeu bem assim que cheguei. Embora seu filho também fosse
homossexual, ela, sendo bruxa, forçara-o a ter uma namorada e,
mais tarde, a se casar e ter filhos. Esta bruxa, chamada Ana Ribera,
aconselhou-me a ficar em Nova York. Dessa maneira, ajudava-me
a cumprir meu destino, meu sempre terrível destino. Conseguiu
para mim um apartamento vazio no centro de Manhattan. "Alugue-
o agora mesmo", disse ela. E de repente, recém-chegado a Nova
York, eu me vi morando num pequeno apartamento na rua 43, entre
a Oitava e a Nona, a três quarteirões de Times Square, no centro
mais populoso do mundo. Aluguei o apartamento imediatamente,
e me entreguei de novo, como sempre, ao poder misterioso, malé-
fico e sublime das bruxas.
Bruxa também foi minha tia Agata, perfeita em sua maldade;
morei com ela durante mais de quinze anos, sob o terror e a ameaça
constante de ser denunciado à polícia; mas não posso negar que
exerceu sobre mim uma estranha atração; talvez fosse a atração do
mal, do perigo. Outra bruxa memorável em minha vida foi sem
dúvida Blanca Romero, que transformou a cidade velha de Havana
numa fábrica de buracos e desistiu da prostituição quando suas
mamas murcharam, passando então a ser uma pintora extraordiná-
ria, enquanto denunciava seus admiradores para a Segurança do
Estado.
As bruxas dominaram minha vida. Aquelas bruxas nunca lar-
garam a vassoura, não porque soubessem voar, mas porque todas
as ânsias, frustrações e desejos eram exorcizados no ato de varrer:
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varriam o corredor, os pátios, as salas, como se quisessem varrer
também as próprias vidas.
Ao lado de todas essas bruxas, destaca-se a imagem da bruxa
maior; a bruxa nobre, sofrida, a bruxa cheia de saudade e tristeza,
a bruxa mais amada do mundo: minha mãe. Ela também com sua
vassoura, endo sempre, como se o que importasse fosse o valor
simbólico desse gesto.
Às vezes, as bruxas adquiriam uma forma semimasculina, e
então podiam tornar-se ainda mais sinistras. Dentre essas bruxas
que me acompanharam durante tanto tempo, no decorrer da minha
vida, como esquecer Cortés, bruxa terrível, com um perfil perfeito
de feiticeira, por culpa de quem tive de reescrever tantas vezes Otra
vez el mar, e que marcou a minha vida com profundo horror durante
toda a década de setenta; como esquecer Pepe Malas, outra bruxa
perfeita, que parecia estar sempre em constante levitação, com seu
aspecto realmente sinistro, o corpo encurvado, graças a quem fui
parar na cadeia, num dos círculos mais dantescos do inferno. E
como esquecer a bruxa clássica, a bruxa vestida de preto, com luvas
e capa preta, olhos arregalados e cabelo ralo; a bruxa de queixo
pontudo e risada sinistra: Samuel Toca, bruxa temível que me fez
saber o que significava a verdadeira traição e que, como toda bruxa
que se preza, voltava a aparecer onde quer que eu estivesse; agora,
ambos no mesmo carro, estávamos passeando pelas ruas de Nova
York.
As bruxas, minhas companheiras desde a infância, escoltaram-
me até as próprias portas do inferno.
Mudei-me para Nova York em 31 de dezembro de 1980, tendo
voltado a Miami para concluir meu curso de literatura. Lázaro viera
antes e já estava no meu apartamento. Cheguei à meia-noite, bem
na hora em que toda a cidade vivia a euforia do fim de ano. Na
minha chegada, que considerei como positiva, o motorista de táxi
- talvez nem exista mais gente assim - teve a paciência de me
ajudar a entrar no carro com todas as vinte malas cheias de livros
roupas e manuscritos que trazia de Miami. Conseguir atravessar a
cidade naquele final de ano, principalmente em Times Square, onde
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havia mais de um milhão de pessoas, representou uma verdadeira
odisséia. Não encontrei Lázaro ao chegar, e aí tive de subir até o
quinto andar, sem elevador, com aquela quantidade de malas e
caixas de livros; o motorista de táxi disse para ir subindo com as
malas, uma por uma, enquanto ficaria esperando com o resto da
bagagem até eu acabar. No final de tudo, quando perguntei quanto
lhe devia, ele cobrou quinze dólares; dei vinte e então ele disse: "É
muito dinheiro; muito dinheiro." Foi algo muito estranho, que
talvez nunca me aconteça de novo, mas tive a impressão de que a
cidade me dava as boas-vindas. Na verdade, durante os anos de
1981 e 1982, Nova York foi uma verdadeira festa; para mim, a neve
e o inverno representaram uma nova experiência; eu me deleitava
ao ver a neve caindo; era gostoso andar pela rua cheia de flocos de
neve; eu nem sequer sentia frio. A neve tem sido sempre uma
espécie de anseio incessante para os cubanos: José Lezama Lima,
Eliseo Diego, Julián del Casal, quase todos os poetas que nunca
viram a neve sempre ansiaram por ela, ao passo que outros que a
sentiram na pele passaram a vida detestando-a, como Martí e
Heredia. De uma forma ou de outra, a neve tem desempenhado uma
função fundamental em nossa literatura. Lázaro e eu vivíamos
agora a euforia da neve e de uma grande cidade que não parava
nunca; a qualquer hora do dia ou da noite, havia sempre tudo o que
se pudesse desejar; todas as frutas - muitas delas tropicais - que
a gente tanto queria comer em Cuba podiam ser conseguidas em
plena neve. Era realmente um sonho e uma festa incessante. Eu
trabalhava muito, mas nunca Nova York foi tão vital; talvez nunca
volte a ser como naquela época, mas me resta o consolo de ter vivido
esses últimos anos, antes que chegasse a praga, antes que a maldição
caísse também sobre a cidade, como sempre cai sobre todas as
coisas realmente extraordinárias.
328
#
A Revista Mariel
Havia um pequeno grupo de cubanos em Nova York, todos
chegados via Mariel. Costumávamos nos reunir com freqüência e
líamos nossos textos. O apartamento de René Cifuentes, na Oitava
Avenida, era um dos pontos de encontro; lá falava-se de qualquer
coisa, criticava-se, lia-se. Às vezes, anunciava-se uma festa à
fantasia e cada um de nós vinha disfarçado; era impossível reco-
nhecer quem era quem, nem mesmo com a ajuda do espelho.
Juan Abreu e outros amigos que também chegaram no êxodo
de Mariel, como Carlos Victoria e Luz de la Paz, viviam em Miami;
em Washington estava Roberto Valero, estudando na universidade
de Georgetown; em Nova York, estava Reinaldo Gómez Ramos,
cuja apreensão eu já perdoara, René Cifuentes e eu mesmo. Todos
nós "marielitos", resolvemos fundar a revista Mariel. Essa revista
foi elaborada sob um pinheiro, quando fui visitar Juan em Miami;
não tínhamos, é claro, nenhum local fixo nem a menor idéia de
como fazer uma revista; também não tínhamos um centavo. A
assessora literária foi Lydia Cabrera, que se ofereceu com o maior
entusiasmo para nos ajudar. A revista seria financiada por nós
mesmos, que estipulamos uma cota a ser paga religiosamente por
cada um de nós. Nunca contamos com qualquer ajuda oficial. O
primeiro número saiu na primavera de 1983 e foi dedicado a José
Lezama; era um sonho e uma esperança que Juan e eu nutríamos
há anos, quando estávamos em Cuba. Era como o nascimento
329
#
daquela revista que chamamos Ah, la marea, e que editávamos
clandestinamente no parque Lenin. Vivíamos à beira da miséria,
mas investimos nossos parcos recursos para criar Mariel, que
representou um grande acontecimento para nós. Deveria ser uma
revista de causar impacto entre os próprios exilados e, é claro,
surpreender Fidel Castro. Irreverente, a revista se metia com todo
mundo, rendia homenagens aos grandes escritores, desmascarava
os hipócritas, combatia a moral burguesa prevalecente em Miami.
Dedicamos um número ao homossexualismo em Cuba, incluindo
entrevistas com pessoas que eram vítimas de preconceito de socie-
dades conservadoras e reacionárias, como as de Miami e de grande
parte dos Estados Unidos. A revista não foi bem recebida, exceto
por um pequeno grupo de intelectuais liberais. Logicamente, não
podia ser bem recebida pela esquerda festiva dos Estados Unidos,
pelos hipócritas dessa esquerda, nem pelos comunistas, nem pelos
agentes cubanos espalhados em todo o mundo, especialmente nos
Estados Unidos, e nem pelas "poetisas" de Miami. Todos quejá se
haviam estabelecido no país viam-nos como seres estranhos, mas
a revista continuou a ser publicada durante anos. Lembro-me de ter
escrito um artigo intitulado "Elogio das Fúrias", onde afirmavaque
as Fúrias eram as únicas deusas que sempre deviam nos inspirar;
baseava minhas idéias numa série de textos que iam desde A Iliada
até La isla em peso, de Virgilio Pinera.
Não precisávamos manter as aparências nem aspirávamos a
nenhum cargo. Nunca desejei e nem quero me tornar cidadão
norte-americano. Mais tarde, integrantes do comitê da revista ou se
acovardaram ou se afastaram. Por esta razão, e por problemas
financeiros também, tivemos que acabar com a revista; no entanto,
ficaram alguns exemplares que constituem um verdadeiro libelo
para a literatura do exílio, assim como para a literatura cubana em
geral.
Outro grande sucesso daquele período foi o filme Conducta
impropia, de Néstor Almendros e Orlando Jiménez Leal. O filme
era o primeiro grande documento no qual se denunciava abertamen-
te a perseguição sofrida em Cuba pelos homossexuais e por toda
pessoa que não tivesse uma conduta conservadora sob o regime de
330
#
Fidel Castro; apareciam inclusive os campos de concentração das
UMAP, entrevistas com pessoas que ficaram nesses campos, docu-
mentos repressivos. Além do mais, tratava-se de um filme extro-
vertido, feito com muito humor; mostrava as bichas-loucas que
fugiram de Cuba e agora faziam shows de travesti nos cabarés de
Nova York. O próprio Fidel Castro aparecia em seu uniforme verde,
fazendo um papel bastante ridículo. O filme teve grande repercus-
são internacional, provocou polêmicas violentas e ganhou o Prêmio
dos Direitos Humanos, como melhor documentário exibido na
Europa naquele ano.
O filme preocupou tanto o governo cubano que se formou um
grupo de homossexuais, quase todos do Ministério do Interior, com
o fim de percorrer o mundo dando conferências e declarando que
em Cuba os gays não eram perseguidos. Aqueles coitados tinham
que desmunhecar diante do público, parecendo ainda mais afetados
do que já eram, para provar que, sem sombra de dúvida, em Cuba
não havia perseguição aos homossexuais. Obviamente, ao regres-
sarem a Cuba, foram obrigadas a guardar suas plumas, e nunca mais
se ouviu falar daquela delegação oficial de bichas cubanas. Seja
como for, elas nos devem muito, pois foi graças a nós que puderam
fazer aquela viagem à Europa.
Néstor Almendros é um espanhol republicano que fugiu da
Espanha durante a ditadura de Franco; morou em Cuba e lá teve de
agüentar a ditadura de Batista e, em seguida, a de Castro. Trata-se
de um exemplo de dignidade intelectual e artística, e sua atitude
tem sido sempre decisiva e corajosa, apesar de ter sido prejudicado,
sob vários aspectos. Famoso e com uma excelente posição econô-
mica, poderia perfeitamente deixar de nos ajudar, o que seria até
compreensível. A grande maioria dos intelectuais norte-america-
nos, para se fingir de progressista e utilizar-se do ressentimento
lógico dos povos submetidos a outras desgraças, sempre apoiou ou
"ignorou" os crimes de Fidel Castro. Agora, com a superstaliniza-
ção do regime castrista, que chega a criticar as revistas soviéticas,
posso imaginar que certos intelectuais norte-americanos, por con-
veniências politicas e econômicas, devam mudar seu modo de
pensar. Mas é impossível esquecer a violenta propaganda e as
331
#
conexões internacionais do governo de Cuba, mantidas durante
mais de trinta anos; continuam com seus centros de cultura, suas
agências de publicidade, disseminadas pelo mundo todo e, princi-
palmente, no ocidente, onde mais precisam atuar.
Quando cheguei aos Estados Unidos, lembro-me de ter ouvido
um cubano em Washington que disse o seguinte: "Nunca brigue
com a esquerda. " Para ele, brigar com a esquerda significava atacar
o governo de Castro. Mas era impossível, depois de vinte anos de
repressão, ficar calado diante daqueles crimes. Por outro lado,
nunca me considerei nem de esquerda nem de direita; também não
quero ser rotulado de político oportunista; sempre digo a minha
verdade, assim como um judeu que tenha sofrido com o racismo ou
um russo que tenha ficado no Gulag, ou qualquer ser humano que
tenha olhos para enxergar as coisas exatamente como são: grito,
logo existo.
Essa atitude, porém, me custou muito caro; tanto do ponto de
vista econômico, como no que diz respeito aos meus livros; posso
citar um exemplo: quando saí de Cuba, minhas obras eram textos
de estudo na Universidade de Nova York; à medida que fui tomando
uma posição radical contra a ditadura castrista, a professora de
literatura Haydée Vitale também foi eliminando meus livros do
currículo, até não sobrar nenhum. Fez o mesmo com todos os outros
cubanos exilados. Por fim, no programa de literatura ficaram ape-
nas umas poucas novelas de Alejo Carpentier. Aconteceu isto
comigo em várias universidades dos Estados Unidos e no mundo
inteiro; como que por ironia, enquanto estive sem poder sair de
Cuba, tive muito mais oportunidades de ser publicado; de fato, lá
não me deixavam falar e as editoras estrangeiras com tendências
esquerdistas apoiariam um escritor que morava em Havana.
Essa atitude, aliás, foi adotada com relação a todos os cubanos
exilados, pois no exílio não temos um país que nos represente;
vivemos por permissão especial, sempre correndo o risco de rejei-
ção. Em vez de um país, temos um antipaís: a burocracia de Fidel
Castro está sempre disposta a todo tipo de intrigas e trapaças para
nos destruir intelectualmente e, se possível, fisicamente também.
332
#
Tais situações acabaram provocando uma certa cautela entre vários
intelectuais cubanos
Essa cautela politica se fundamenta principalmente no medo
de morrer de fome; certas pessoas não se atrevem mais a assinar
um documento criticando a ditadura castrista; outras preferem
mergulhar numa letargia apolítica, e escrevem artigos sobre a
Bélgica; a covardia é sempre patética, mas a injustiça e a estupidez
são muito mais irritantes. Uma agente literária espanhola conheci-
díssima esteve recentemente em Cuba, junto com Gabriel García
Márquez, sendo recebida com toda a pompa por Fidel Castro em
pessoa; essa senhora representa atualmente quatro ganhadores do
prêmio Nobel de Literatura. Voltou de Cuba encantada, pois Castro
disse que ela estava usando um vestido muito elegante.
Um dos mais notórios casos de injustiça intelectual deste século
é o de Jorge Luis Borges, a quem negaram sistematicamente o
prêmio Nobel, por causa de sua postura política. Borges é um dos
escritores latino-americanos mais importantes do século; talvez o
mais importante; entretanto, deram o prêmio Nobel a Gabriel
Garcia Márquez, plagiador de Falkner, amigo pessoal de Castro e
oportunista nato. Sua obra, embora tenha alguns méritos, é marcada
por um populismo barato que não está à altura dos grandes escrito-
res mortos no esquecimento ou relegados a um segundo plano.
333
#
Viagens
Há muitos anos que eu queria ir à Europa e me encontrar
com Jorge e Margarita na Espanha; mas, como não tinha nenhum
documento oficial ou passaporte para poder viajar, não conseguia
sair dos Estados Unidos. Já recebera vários convites desde 1980,
mas só em 1983 consegui viajar com um documento que provava
minha condição de refugiado, um estranho e não muito
confiável
pedaço de papel que quase não era mais aceito por consulados ou
departamentos de imigração, bem como por funcionários de hotéis.
Um refugiado representava sempre um problema, pois poderia
querer ficar em qualquer lugar, e geralmente nunca tinha dinheiro.
Aquele documento, expedido pela ONU, deixou furiosos até os
próprios carregadores, que não recebiam um centavo de gorjeta.
De qualquer forma, depois de passar por mil peripécias, em
1983 pude viajar para Madri, na minha primeira viagem à Europa.
Comecei meu giro pela Suécia e, na companhia de Humberto
López, percorri todo o país em trens gelados, chegando quase ao
pólo Norte. Levei comigo inúmeros documentos, inclusive o vere-
dicto que condenara um poeta à cadeia, em Cuba, só por ter escrito
um livro sobre uma variedade especial de insetos, que alguém mais
tarde identificou com Raúl e Fidel Castro. Com esses documentos
atravessamos todo o país em pleno inverno. Lembro-me de que,
certa vez, tivemos que ficar num lugar extremamente isolado e
triste, na casa de um fazendeiro sueco profundamente deprimido,
334
#
por ter sido abandonado pela esposa. Não sei por que o comitê que
nos fizera o convite resolveu que passaríamos a noite lá; talvez
tenha sido por falta de outro lugar. Com a ajuda dos meus docu-
mentos, tentei falar àquele sueco sobre a solidão e o desespero
sofridos pelo povo cubano, enquanto seu único pesar no momento
era ter sido abandonado pela mulher. Ao olhar para aquela casa
dilapidada, me surpreendi que a mulher não o tivesse largado há
mais tempo.
Dei uma conferência na Universidade de Estocolmo, na qual,
para falar a verdade, pretendia somente ler alguns fragmentos do
jornal Granma; era uma maneira irrefutável de mostrar àquele
público o que estava ocorrendo em Cuba. Quase todo o auditório
compunha-se de chilenos exilados da ditadura de Pinochet; não me
deixaram falar. Armaram um tremendo escândalo e se levantaram
para me xingar; diziam que tudo o que eu contara era absolutamente
falso. Num dado momento, li várias leis que o próprio governo
cubano publicara em Cuba. Também li relatórios de todos osjornais
cubanos, mas não havia como convencê-los. Estavam vivendo
muito bem na Suécia; iam todo ano ao Chile em férias, depois
voltavam para os confortáveis apartamentos na Suécia, onde ti-
nham direito, inclusive, aos benefícios da previdência social. Quan-
to a mim, estava usando um casacão gigantesco, comprado em
Nova York por oitenta dólares. De qualquer maneira, fiquei muito
contente em visitar Estocolmo e, principalmente, ver a guarda real,
formada por adolescentes lindíssimos.
Minha palestra na universidade foi antecedida pela de Carlos
Franqui e sua esposa Margot, que enfrentaram as mesmas dificul-
dades para conseguir falar. Chegaram a colocar uma chave ou algo
parecido no chão, para que Margot caísse, o que de fato aconteceu.
Devo reconhecer que muitos intelectuais suecos me receberam
de maneira completamente diferente; tinham uma outra postura a
respeito da ditadura de Fidel Castro. Sabiam do caso de Armando
Valladares e outros intelectuais presos; não tive problema para
conversar com essas pessoas. Publicaram inclusive várias entrevis-
tas minhas e cheguei a contactar algumas editoras, as quais nunca
mais me deram notícia.
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#
Chegar à Espanha foi para mim um grande acontecimento
sentimental; ali estavam Jorge e Margarita Camacho à minha
espera, depois de tantos anos; desde 1967 que não nos víamos, e
íamos nos encontrar agora, em 1983. Durante todos aqueles anos,
nunca deixaram de me escrever, nem por uma semana, e jamais
desistiram de tentar me tirar do país, de alguma maneira viável.
Agora, de repente, estávamos juntos, passeando pelo Prado de
Madri; parecia um sonho. Depois pegamos o trem e fomos visitar
Paris. Passei com eles um dos momentos mais memoráveis de
minha vida, descobrindo uma das cidades mais lindas do mundo.
Descobrir uma cidade já era em si um ato singular, mas o privilégio
de poder fazê-lo com os amigos mais queridos transformava esse
fato em algo verdadeiramente inesquecível.
Sempre pensei que fosse melhor ler sem conhecer os escritores
pessoalmente, porque assim terríveis decepções são evitadas. Mi-
nhas amizades com Lezama, Virgilio Pinera e Lydia Cabrera, que
eram de fato pessoas extraordinárias, foram marcadas, devido à
situação em Cuba, pelo signo da adversidade ou da maldição.
Depois, conheci muitos escritores importantes, alguns famosíssi-
mos, mas prefiro não mencioná-los; estive sempre muito mais perto
deles lendo seus livros. Felizmente, acho que acabei esquecendo
suas vaidades pessoais. Também não quis fazer dessas memórias
um tratado de literatura ou uma extensão das minhas relações com
pessoas supostamente importantes; na realidade, o que é importan-
te?
Por uma dessas armadilhas do destino, estive na residência do
reitor de uma famosa universidade norte-americana. Tratava-se de
um encontro entre vários escritores de fama mundial. Uma das
figuras que mais me assombrou foi a de Carlos Fuentes. Aquele
homem não parecia um escritor, e sim um computador; tinha uma
resposta certa e aparentemente lúcida para qualquer problema ou
pergunta que lhe fossem apresentados; bastava-lhe apertar um
botão. Diversos professores universitários americanos estavam
presentes e cada um trazia, como enfermeiras num hospital, uma
plaquinha presa no peito com o respectivo nome e título.
Carlos Fuentes expressava-se num inglês perfeito e parecia ser
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#
um homem que nunca tivera qualquer tipo de dúvidas, nem mesmo
de natureza metafísica; para mim, representava o extremo oposto
do que considero um verdadeiro escritor. Aquele homem, tão
elegantemente vestido, era uma verdadeira enciclopédia, talvez
apenas um pouco mais encorpada. Há muitos escritores agraciados
com importantes prêmios literários, entre os quais o prêmio Cer-
vantes ou o Nobel, que dão conferências impecáveis.
Saí daquele encontro apavorado. Felizmente, pude pegar um
trem local e retornar a Nova York. No meio daquela fauna devo
destacar a figura de Emir Rodríguez Monegal, amante da grande
literatura, com uma intuição que ultrapassava seus méritos acadê-
micos, que também eram incontáveis. Ele não era um professor no
sentido convencional da palavra; era um grande leitor, e possuía a
habilidade mágica de instilar nos alunos o amor pela beleza. Foi o
único professor latino-americano nos Estados Unidos que deixou
uma escola de pensamento crítico.
Nos três anos após minha saída de Cuba, eu já participara de
três filmes: En suspropiaspalabras, de Jorge Ulla; La otra Cuba,
de Carlos Franqui e Valerio Rivas; e Conducta impropia, de Néstor
Almendros e Orlando Jiménez Leal. Tinha também viajado por
grande parte da Europa, escrito e reescrito seis dos meus livros,
fundado uma revista literária, conseguido que a minha mãe viesse
de Holguín para Nova York, após uma complicada burocracia,e
passasse três meses comigo e levasse de volta uma quantidade
enorme de roupa com a qual vestiu quase todo o bairro de Vista
Alegre, onde moravam seus familiares e amigos em Holguín.
Naquela época, eu já fora convidado por mais de quarenta univer-
sidades e tivera aventuras memoráveis com os negros mais fabulo-
sos no Harlem, no Central Park ou na populosa rua 42. E tinha
ouvido Jorge Luis Borges lendo pessoalmente seus poemas.
Em companhia de René Cifuentes, Jorge Ronet ou Miguel
Contreras, eu passava as noites percorrendo os lugares mais aluci-
nantes de Manhattan. Como se tivesse tempo de sobra, entrei para
uma academia de ginástica e passava boa parte do dia correndo.
Nos finais de semana, ia para as praias nova-iorquinas.
Algumas dessas praias eram cercadas por imensos matagais,
337
#
ligeiramente parecidos com o capim-guiné; para lá acorriam bandos
de bichas-loucas, nuas e excitadas, sempre dispostas a passar
momentos agradáveis. Era como se eu recuperasse meus bons
tempos, aqueles dias em que corria pelas praias de Havana. Vivia
agora meu tempo perdido e novamente quase reencontrado; o
tempo das minhas aventuras submarinas e da euforia de minha
criação literária. Com a diferença de que agora podia contar com a
facilidade absoluta para fazer e escrever o que bem quisesse, sumir
por uns dias sem precisar explicar nada a ninguém, pegar um carro
e percorrer todo o país. Assim, uma das minhas grandes aventuras,
compartilhada com meu amigo Roberto Valero, sua esposa María
Badías, e Lázaro, foi percorrer todo o país de carro, quando, pela
primeira vez, respiramos a sensação de liberdade e o gozo de uma
aventura sem sermos perseguidos; a satisfação de estar vivos.
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A Loucura
Em 1983, recebi um telefonema de um hospital fora de Nova
York. Lázaro sofrera um acidente de carro e seu estado era gravís-
simo; tinha batido numa árvore. Um dia depois do acidente, trans-
feriram-no para um hospital particular de Manhattan; quando sou-
beram que não tinha dinheiro nem seguro, ele foi posto na rua.
Depois de uma série de trâmites burocráticos, uma ambulância o
levou para outro hospital, onde passou mais de um mês com uma
perna completamente esmagada; temia-se que fosse preciso ampu-
tá-la; também estava muito machucado na cabeça. Quase à mesma
época em que saiu do hospital, sua mãe chegou de Cuba. Lázaro
não era mais a mesma pessoa. Não era mais o rapaz ágil que corria
atrás de mim no Central Park. Tinham colocado um parafuso em
sua perna e agora mancava; engordara e perdera a forma com o
tempo passado no hospital. Ao sair do hospital, veio ficar comigo,
no meu quarto; subia a escada bem devagar, com um sentimento de
derrota. É difícil esquecer a imagem daquele rapaz, que fora tão
bonito, arrastando-se a duras penas escadas acima. A mãe, ao invés
de ajudá-lo, contribuiu para agravar seu estado mental. Lázaro
acabou internado durante meses no setor psiquiátrico do hospital
público da cidade; eu ia vê-lo toda semana nas horas de visita. A
enfermaria era dantesca no pior sentido da palavra; encontravam-se
lá todos os tipos de loucos, gritando dia e noite. Ao entrar naquele
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#
prédio, eu experimentava um profundo sentimento de mal-estar e
ansiedade.
Um dia, ao sair do hospital, vi uma criança de cabeça raspada,
muito magra, regando uma árvore gigantesca com uma enorme
mangueira; comparei aquela criança a Lázaro, órfão de pai desde
menino, e agora sozinho num hospital de alienados.
Quando saiu do hospital, Lázaro não estava nada bem, mas era
preciso que lhe dessem alta. Era difícil morarmos juntos, por causa
do seu estado mental. Consegui para ele um quarto na rua 31, ainda
menor do que o meu, mas com uma árvore enorme junto à janela.
Eu tentava ajudá-lo, embora minha situação econômica nunca
tenha sido muito boa no exílio. Pouco a pouco, voltou a se integrar
na sociedade; começou a trabalhar numa companhia de aviação e
parecia muito feliz, mas a companhia faliu e, mais uma vez, ele
ficou desempregado. Após um certo tempo, conseguiu encontrar
um emprego de porteiro. Não éramos os mesmos; tínhamos visto o
horror de um hospital em Nova York, a loucura, a miséria, o
desprezo, a discriminação. De qualquer forma, era preciso conti-
nuar vivendo e enfrentar as novas desgraças por vir.
Nossa amizade continuava. Ele sempre tinha planos e uma
imaginação muito fértil, mas não conseguia levar nada até o fim.
Para mim, no exílio, Lázaro representou o único laço com o
passado; o único testemunho cúmplice da minha vida em Cuba;
com ele, sempre tive a sensação de poder voltar àquele mundo
irrecuperável. É difícil conseguir manter algum tipo de comunica-
ção neste país, ou em outro qualquer, quando se vem do futuro.
E nós, cubanos, que sofremos durante vinte anos uma perse-
guição violenta, num mundo terrível, somos pessoas que não po-
dem encontrar tranqüilidade em lugar nenhum; o sofrimento nos
marcou para sempre, e talvez possamos encontrar certa comunica-
ção com pessoas que tenham sofrido como nôs.
A grande maioria da humanidade não consegue nos entender e
também não podemos esperar isto; todas as pessoas têm seus
próprios terrores e não conseguem, realmente, compreender os
nossos, ainda que queiram; muito menos compartilhá-los.
Trabalhando como porteiro, Lázaro conheceu no prédio uma
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#
americana com quem se casou. Convidou-me então para passar
umas férias em Porto Rico. Foi quando encorajei-o a escrever suas
memórias, como um dos dez mil asilados na embaixada do Peru.
Escreveu o livro que se chamou Desertores del Paraiso, editado
por Néstor Almendros e Jorge Ulla, e muito bem recebido pela
crítica; depois, fez um curso de fotografia e é hoje um excelente
fotógrafo, apesar de continuar trabalhando como porteiro, trabalho
esse que é um dos melhores do mundo. Ao conversar com Lázaro
na portaria do seu edifício, extraí a maior parte das idéias de El
portero, que, é claro, dediquei a Lázaro. Faz muitos anos que nossa
amizade transformou-se numa espécie de irmandade. Se algumas
vezes tenho pena de deixar esse mundo, deve-se ao fato de saber
que meu irmão irá viver numa terrível solidão, entre a loucura e a
genialidade; de fato, apesar dos seus 32 anos, nunca deixou de ser
uma criança; mas também sinto pena de Jorge e Margarita, e de
minha mãe, perdida num bairro de Holguín. Na verdade, nem
consigo morrer em paz.
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Despejo
Em 1983, o dono do edifício onde eu morava resolveu
despejar todo mundo; queria esvaziar o prédio para reformá-lo e
aumentar os aluguéis. Foi uma verdadeira guerra entre o proprietá-
rio e os inquilinos, mas ele deu um jeito para quebrar o telhado,
e
assim água e neve entravam em meu apartamento. Era difícil lutar
contra os poderosos, principalmente quando não se tem o direito de
residência no país e não se conhece a linguagem jurídica. Finalmen-
te, tive de abandonar o apartamento. Fui transferido para um velho
edifício, não muito longe do anterior. Nos Estados Unidos, as
pessoas se mudam com freqüência com a maior naturalidade; mas
em Cuba, o maior problema que tive foi a falta de lugar para morar
,
vivendo sempre como um nômade; convivendo com o terrorde que,
a qualquer momento, fosse parar na rua, sem teto para me abrigar.
Agora, em Nova York, estava acontecendo a mesma coisa. Seja
como for, não tive outra solução a não ser juntar minhas coisas e
me mudar para outro cubículo. Depois fiquei sabendo que as
pessoas que se recusaram a sair conseguiram receber do proprietá-
rio até vinte mil dólares para se mudarem. Meu novo mundo não
era dominado pelo poder político, e sim por esse outro poder,
igualmente sinistro: o poder do dinheiro. Depois de viver nesse país
durante alguns anos, acabei entendendo que se trata de um país sem
alma, pois tudo está condicionado ao dinheiro.
Nova York não tem tradição, não tem história; não pode haver
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história onde não existem lembranças as quais se apegar; essa
cidade está em constante transformação, em constante construção,
para erguer novos prédios; onde, ainda ontem, havia um supermer-
cado, hoje existe uma loja de verduras e amanhã será um cinema;
em seguida, tudo se transforma em banco. A cidade é uma imensa
fábrica desumana, sem lugar para acolher quem queira descansar,
sem lugar onde se possa simplesmente ficar sem pagar em dólares
o pouco de ar que se respira, ou a cadeira em que se senta para
repousar.
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O Anúncio
Em 1985, morreram dois dos meus grandes amigos: Emir
Rodríguez Monegal, a pessoa que fizera a melhor interpretação dos
meus livros, e Jorge Renut, com quem eu tivera grandes aventuras
noturnas. Emir morreu de câncer fulminante; Jorge morreu de
AIDS. A praga que, até aquele momento, só tinha para mim cono-
tações muito remotas, transformava-se agora em algo certo, palpá-
vel, evidente; o cadáver do meu amigo era a prova de que, em breve,
eu também poderia estar na mesma situação.
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Os Sonhos
Os sonhos, assim como os pesadelos, preencheram grande
parte da minha vida. Sempre fui para a cama como quem se prepara
para uma longa viagem: livros, comprimidos, copos de água, reló-
gios, lápis, cadernos. Chegar na cama e apagar a luz tem sido, para
mim, como uma entrega a um mundo absolutamente desconhecido
e cheio de promessas, tão deliciosas quanto sinistras. Os sonhos
sempre estiveram presentes em minha vida; a primeira imagem da
minha infância é um sonho; um sonho terrível. Eu estava numa
esplanada avermelhada, e uns dentes enormes me cercavam de
ambos os lados; pertenciam a uma boca enorme que fazia um
barulho estranho; enquanto os dentes avançavam, o barulho se
tornava mais agudo; quando já estavam quase me devorando, eu
despertava. Outras vezes, encontrava-me brincando no telhado da
casa de campo e, de repente, por causa de um movimento errado,
experimentava um violento calafrio, minhas mãos ficavam suadas,
e vinha rolando e caindo num imenso vazio escuro; a queda se
prolongava como uma infinita agonia e eu acabava despertando
antes de morrer.
Outras vezes, os sonhos eram coloridos e pessoas extraordiná-
rias aproximavam-se, oferecendo-me uma amizade que eu queria
compartilhar; eram pessoas gigantescas, mas sorridentes.
Depois, passei a sonhar muito com Lezama, que se encontrava
numa espécie de reunião num salão imenso; ouvia-se uma música
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ao longe e Lezama pegava um enorme relógio de bolso; diante dele,
estava sua esposa, María Luisa; eu era menino e me aproximava;
ele afastava as pernas e me recebia, sorrindo, dizendo para María
Luisa: "Olha só, como ele está bem, como ele está bem." Naquela
época, já falecera.
Ocasionalmente, apesar de ter ido para os Estados Unidos,
sonhava que voltara para Cuba não sei por que razão - talvez por
ter seqüestrado um avião, ou porque me disseram que podia ir sem
nenhum problema -, e me via novamente em meu quarto, de onde
não podia mais sair; estava condenado a ficar ali para sempre.
Precisava receber um aviso muito estranho para ir ao aeroporto;
alguém teria que me apanhar de carro e me levar; sabia que não
poderia sair, que a polícia viria me prender. Já tinha percorrido o
mundo e conhecia o significado da liberdade; e agora, por circuns-
tâncias estranhas, encontrava-me em Cuba e não poderia fugir.
Então despertava, e ao ver as paredes deterioradas do meu quarto
em Nova York experimentava uma alegria indescritível.
Em outro sonho, desejo me aproximar da casa onde estava
minha mãe, e há uma tela de metal diante da porta. Chamo, continuo
chamando, para que abram a porta; minha mãe e minha tia estão do
outro lado da tela e faço sinais, coloco a mão no peito, e da minha
mão começam a sair pássaros de todas as cores, insetos e aves cada
vez mais gigantescas; começo a gritar para que abram a porta, e
elas olham para mim através da tela; continuo gritando cada vez
mais alto, e os bichos continuam saindo da minha mão, cada vez
maiores; mas não consigo passar pela porta.
Em outros sonhos sou um pintor; tenho um estúdio bastante
espaçoso e pinto quadros enormes; acho que os quadros se relacio-
nam com meus entes queridos; é o azul que predomina, e nessa cor
as figuras se dissolvem. De repente, entra Lázaro, jovem, esbelto;
cumprimenta-me num tom meio triste; vai andando até ajanela que
dá para a rua e pula; começo a gritar e desço a escada; o apartamento
fica em Nova York, mas estou descendo a escada em Holguín; lá
está minha avó e várias tias; conto que Lázaro se atirou pelajanela
e todas correm para a rua, que é a rua Dez de Outubro, onde fica a
casa de minha mãe; lá está Lázaro, morto, com a cabeça na lama.
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Levanto-a e olho para seu lindo rosto sujo de terra; minha avó se
aproxima, contempla o rapaz e olha para o céu, dizendo: "Por que,
meu Deus?" Mais tarde, tentei interpretar esse sonho de várias
maneiras; não era Lázaro que estava morto, era eu; ele é o meu
duplo; a pessoa de quem mais gostei é o símbolo da minha destrui-
ção. Por essa razão, era lógico que as pessoas que foram ver o
cadáver fossem os meus familiares, não os de Lázaro.
Sonhei que, quando era menino, o mar chegava até minha casa;
chegava atravessando vários quilômetros, e todo o pátio ficava
inundado; era maravilhoso flutuar sobre aquelas águas; nadava e
nadava, olhando para o teto da minha casa inundada, sentindo o
cheiro da água que continuava avançando numa enorme corrente.
Em Nova York, sonhei certa vez que podia voar, privilégio
impossível para um ser humano, embora chamem os homossexuais
de pájaros (pássaros). Mas estava em Cuba e voava sobre as
palmeiras; era fácil, bastava pensar que se pode voar. Depois,
atravessava a Quinta Avenida de Miramar e as palmeiras que a
cercam; era lindo ver toda a paisagem, enquanto eu, feliz e radiante,
conseguia voar mais alto que a copa das palmeiras. Então desper-
tava em Nova York, com a sensação de estar no ar.
Passando umas férias em Miami, tive um sonho terrível. Estava
num imenso mictório público cheio de excrementos, e tinha de
dormir ali. Havia centenas de pássaros raros que se moviam com
muita dificuldade. O lugar ia ficando cada vez mais cheio daqueles
horríveis pássaros, o que tornava impossível qualquer tentativa de
fuga; todo o horizonte parecia obstruído pelos pássaros que tinham
algo de metálico e faziam um ruído abafado, como um sinal de
alerta. De repente, descobria que todos tinham conseguido entrar
em minha cabeça e meu cérebro ia ficando gigantesco para poder
contê-los; enquanto isso, eu me tornava cada vez mais velho. Passei
várias noites em Miami com o mesmo pesadelo; despertava molha-
do de suor. Peguei um avião de volta para Nova York. Como
sempre, fui para a cama com uma porção de coisas e um copão de
água, preparando-me para o pesadelo. Antes de dormir, sempre leio
pelo menos uma ou duas horas; estava terminando a leitura de As
mil e uma noites. Estávamos em 1986; Lázaro estivera conversando
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comigo e acabava de sair; ainda se encontrava no edifício quando
ouvi uma explosão no quarto. Pensei que fosse um dos meus
amantes ciumentos, ou algum ladrão que tivesse arrebentado as
vidraças dajanela que dava para a rua; o barulho foi tão grande que
deviam ter quebrado o vidro com uma barra de ferro. Quando
cheguei perto da janela, as vidraças estavam intactas. Algo muito
estranho tinha acontecido naquele quarto: o copo de água, na
mesinha-de-cabeceira, sem que tocasse nele, estavacompletamente
estilhaçado. Chamei imediatamente Lázaro, que ainda se encontra-
va no edifício, e fizemos uma rigorosa inspeção em todo o aparta-
mento. Pensei que tivessem atirado em mim e acertado o copo, pois
já fora ameaçado de morte pela Segurança do Estado; em outras
ocasiões, tinham entrado em meu apartamento e remexido em todos
os meus documentos; ou ajanela que eu deixara fechada encontra-
va-se aberta, sem que tivessem levado nada, por isso não se tratava
de ladrão. Mas o mistério daquela noite continua sendo totalmente
indecifrável para mim. Como era possível que um copo de vidro se
quebrasse daquela maneira, com tamanha explosão? Uma semana
mais tarde, compreendi que se tratava de um aviso, uma premoni-
ção, uma mensagem dos deuses infernais, uma nova notícia terrível
de algo realmente pavoroso que estava por vir; que já estava vindo
naquele momento. O copo cheio de água talvez fosse uma espécie
de anjo da guarda, de talismã; algo tinha-se encarnado no copo, o
qual, durante anos, fora uma proteção, livrando-me de todos os
perigos: doenças horríveis, quedas de árvores, perseguições, pri-
sões, tiros no meio da noite, afogamento no mar, assaltos por bandos
de marginais armados em Nova York, em várias ocasiões. Certa
vez, fui assaltado no Central Park; uns rapazes me revistaram, com
uma arma apontada em minha cabeça, encontrando apenas cinco
dólares; meu corpo foi tão tocado por todas aquelas mãos, que
acabamos fazendo amor e, no final, pedi que me dessem um dólar
para poder voltar para casa; e me deram.
Agora, toda aquela graça que me salvara de tantos perigos
parecia ter chegado ao fim. Em outra ocasião, ao chegar em meu
apartamento em Nova York, encontrei um negro imenso que que-
brara a janela e roubara toda a minha roupa, e que me ameaçava
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com sua arma. Pude sair correndo e gritar que tinha um ladrão no
edifício; várias pessoas apareceram no corredor, dentre elas um
porto-riquenho com uma escopeta, o que fez com que o negro
fugisse, deixando todos os meus pertences.
outra ocasião, um sujeito de guarda-chuva, a quem eu
perguntara as horas, respondeu com muita grosseria. Acho que
também fui muito estúpido com ele, e acabei lhe dando um empur-
rão. Quanto a ele, furioso, pegou uma chapa de ferro escondida no
guarda-chuva e veio em cima de mim, dando pancadas com toda a
força. Cortou minha testa, tentou me atingir os olhos; parece que
queria me cegar, mas não conseguiu. Ensanguentado, cheguei ao
meu apartamento, mas fiquei bom em uma semana. Mais uma vez,
meu anjo da guarda me protegera.
Mas agora algo muito mais poderoso, mais misterioso e sinistro
do que tudo o que acontecera antes, parecia assumir o controle da
situação; não havia salvação. O copo quebrado era o símbolo da
minha total condenação. Condenação; foi assim que interpretei o
fato poucas semanas mais tarde; infelizmente, estava certo.
Lázaro e eu estávamos numa praia deserta em Porto Rico.
Tínhamos ido para lá porque o lugar lembrava as praias de Cuba.
Ele abriu um livro e começou a ler quando chegou um bando de
assaltantes, com mais de seis homens. Um deles nos apontou uma
pistola que mal conseguia ocultar por baixo de um lenço. "Deitem-
se no chão e passem pra cá tudo o que têm, ou a gente vai matar
vocês aqui mesmo", disse um deles. Peguei um pau e quis bater
neles, mas Lázaro me mandou parar, pois era muito perigoso.
Deitados no chão, fomos revistados e eles levaram o pouco que
tínhamos: pés-de-pato, uma máscara de mergulho. Quando estavam
indo embora, pedi que devolvessem a máscara; um dos assaltantes
não queria, mas outro disse que podíamos ficar com ela, pois não
tinha qualquer utilidade. Podíamos ter sido mortos, mas meu anjo
da guarda nos protegeu; o mesmo que me fez sobreviver em El
Morro, que me avisou que o terreno estava minado quando cheguei
à base naval de Guantánamo. Ele nos salvara mais uma vez.
Agora, porém, o copo estava quebrado; não havia mais salva-
ção.
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O que era aquele copo quebrado? Era o deus que me protegia,
era a deusa que sempre me acompanhara, era a própria Lua, que era
minha mãe transformada em Lua.
Oh, Lua! Sempre esteve a meu lado, iluminando-me nos piores
momentos; desde a minha infância, foi o mistério que cuidou dos
meus terrores, foi o consolo durante as noites de desespero, foi
minha própria mãe, aquecendo-me como nunca soubera fazer; em
pleno bosque, nos lugares mais tenebrosos, no mar; lá estava você,
junto a mim; era meu consolo, sempre foi quem me orientou nos
momentos mais difíceis. Minha grande deusa, minha verdadeira
deusa, que me protegeu de tantas desgraças; em pleno mar, na costa,
entre os rochedos da minha ilha desolada, era sempre para você que
eu olhava, eu a contemplava; sempre a mesma; em seu rosto, via-se
uma expressão de dor, amargura, compaixão para comigo; seu
filho. E agora, subitamente, Lua, desfaz-se em mil pedaços diante
da minha cama. Já estou só. É de noite.
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"Queridos amigos:
Devido ao meu precário estado de saúde e à terrível depressão
emocional que me impossibilita de continuar a escrever e a lutar
pela liberdade de Cuba, estou pondo um fim a minha vida. Nos
últimos anos, mesmo me sentindo muito doente, pude terminar
minha obra literária, na qual trabalhei por quase trinta anos. Deixo-
lhes pois como legado todos os meus terrores, mas também a
esperança de que em breve Cuba será livre. Sinto-me satisfeito por
ter contribuído, mesmo que modestamente, pelo triunfo desta liber-
dade. Ponho fim a minha vida voluntariamente porque não posso
continuar trabalhando. Nenhuma das pessoas que me cercam estão
comprometidas nesta decisão. Só há um responsável: Fidel Castro.
Os sofrimentos do exílio, a dor de ter sido banido, a solidão e as
doenças contraídas no desterro - certamente não teria sofrido isto
se pudesse ter vivido livre em meu país.
Conclamo o povo cubano, tanto no exílio quanto na Ilha, a
seguir lutando pela liberdade. Minha mensagem não é uma mensa-
gem de derrota, mas sim de luta e esperança.
(assinado)
Reinaldo Arenas
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