Livros infantis
antigos e esquecidos
6s
P.. que vocé coleciona livros?” — Alguém ja fez essa
pergunta a um biblidfilo, para induzi-lo 4 auto-reflexao?
Como seriam interessantes as respostas, pelo menos as sin-
ceras! Pois apenas os ndo-iniciados poderiam crer que nao
existe aqui o que esconder ou racionalizar. Arrogancia, so-
lidio, amargura — muitas vezes esse é o lado noturno de
muitos colecionadores cultos e bem-sucedidos. Toda paixio
revela de vez em quando os seus tracos demoniacos, e nada
confirma tao cabalmente essa verdade como a histéria da bi-
bliofilia. Nao existe nada disso no credo de colecionador de
Karl Hobrecker, cuja grande colec&o de livros infantis € agora
divulgada ao piblico, através de sua obra.* Para quem nao se
deixasse sensibilizar pela personalidade cordial e refinada do
autor, nem pelo proprio livro, em cada uma das suas p4ginas,
s6 poderiamos dizer 0 seguinte: esse tipo de colecio — o de
livros infantis — s6 pode ser apreciado por quem se manteve
fiel A alegria que experimentou quando crianca, ao ler esses
livros. Essa fidelidade est4 na origem de sua biblioteca, e toda
colecdo, para prosperar, precisara de algo semelhante. Um
livro, ou mesmo uma pagina, e até uma simples imagem num
exemplar antiquado, talvez herdado da mae ou da avé, podem
ser o solo no qual esse impulso lancara suas primeiras e deli-
(*) Hobrecker, Karl. Alte Vergessene Kinderbiicher. Berlim, Mauritius Ver-
lag, 1924, 160 p.236 WALTER BENJAMIN
cadas raizes. Pouco importa se a capa esta solta, se faltam
paginas ou se aqui e ali m&os inabeis amarrotaram as gra-
vuras. A procura de belos exemplares também é legitima nesse
tipo de colecdo, mas justamente aqui o pedante ficar4 per-
plexo. E uma boa coisa que a patina depositada nas folhas por
maos infantis pouco asseadas mantenham 4 distfncia o bi-
blidfilo esnobe.
Quando Hobrecker iniciou sua colegio, ha 25 anos, os
yelhos livros infantis eram usados como papel de embrulho.
Ele foi o primeiro a oferecer-Ihes um asilo, por algum tempo,
contra as fabricas de papel. Entre as milhares de obras que
abarrotam suas estantes, h4 talvez centenas que tém nesse
local seu Gltimo exemplar. Nao 6 com pompa e dignidade
profissional que esse primeiro arquivista dos livros infantis
aparece em publico. Ele nao visa o reconhecimento pelo seu
trabalho, mas a participacdo do leitor na beleza que ele re-
velou. O aparelho erudito — principalmente um apéndice
bibliografico de cerca de duzentos dos titulos mais importan-
tes — é bem-vindo para o colecionador, sem importunar 0
leigo. Segundo o autor, o livro infantil alemao nasceu com o
Tluminismo. Era na pedagogia que os filantropos punham
prova o seu grande programa de remodelagéo da humani-
dade. Se o homem é por natureza piedoso, bom e sociavel,
deve ser possivel fazer da crianga, ente natural por exceléncia,
um ser supremamente piedoso, bom e socidvel. E como em
todas as pedagogias teoricamente fundamentadas a técnicas
da influéncia pelos fatos s6 é descoberta mais tarde e a edu-
cago comega com as admoestacdes problematicas, assim
também 0 livro infantil em suas primeiras décadas é edificante
e moralista, e constitui uma simples variante deista do cate-
cismo e da exegese. Hobrecker critica esses textos com severi-
dade. Nao podemos, com efeito, negar sua aridez e mesmo
sua irrelevancia para o leitor infantil. Mas essas falhas, j4 su-
peradas, s4o insignificantes se comparadas com os equivocos
que hoje estao em moda gracas a uma suposta “‘empatia” no
espirito da crianga: a jovialidade desconsolada das histérias
em versos e as caretas hilares desenhadas por pretensos “‘ami-
gos das criancas” para ilustrar essas hist6rias. A crianca exige
dos adultos explicagdes claras e inteligiveis, mas n&o explica-
des infantis, e muito menos as que os adultos concebem como
tais. A crianga aceita perfeitamente coisas sérias, mesmo asMAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA BI
mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas e espon-
taneas e, por isso, algo pode ser dito a favor daqueles velhos
textos. Ao lado da cartilha e do catecismo, na origem do livro
infantil est4 a enciclopédia ilustrada, o dicionério ilustrado,
no estilo do Orbis Pictus, de Amos Comenius. O Iluminismo
também cultivou esse género, 4 sua moda, produzindo a
monumental Obra elementar, de Basedov. O livro é agradavel
de mais de um ponto de vista, inclusive quanto ao texto. Pois
lado a lado com um didaticismo universal, que segundo o
espirito da época procurava mostrar a utilidade de todas as
coisas — desde a matemitica até a arte de equilibrar-se numa
corda —, havia hist6rias de moralismo t4o radical que bei-
rayam (nao de todo involuntariamente) 0 cémico. Ao lado
dessas duas obras mereceria mencdo o Livro ilustrado para
criangas, publicado posteriormente. Abrange doze volumes,
com cem gravuras coloridas cada um, e apareceu em Weimar,
entre 1792 e 1847, sob a direcao de F. J. Bertuch. Essa enci-
clopédia ilustrada demonstra, em seu cuidadoso acabamento,
com que zelo se trabalhava entdo para as criancas. Hoje a
maioria dos pais se recusaria com indigna¢4o a colocar essa
preciosidade nas m&os das criancas. Imperturbavel, Bertuch
aconselha em seu prefacio que os leitores recortem as ima-
gens. Enfim, os contos de fadas e as cangées, e até certo ponto
também os livros populares e as fabulas, constituiam fontes
para os textos dos livros infantis. Evidentemente, eram esco-
thidas as obras mais “puras”’. A atual literatura romanesca
juvenil, criagdo sem raizes, por onde circula uma seiva melan-
célica, nasceu no solo de um preconceito inteiramente mo-
derno. Trata-se do preconceito segundo o qual as criancas sio
seres t4o diferentes de nés, com uma existéncia tao incomen-
surdvel @ nossa, que precisamos ser particularmente inven-
tivos se quisermos distrai-las. No entanto nada é mais ocioso
que a tentativa febril de produzir objetos — material ilustra-
tivo, brinquedos ou livros — supostamente apropriados as
criangas. Desde o Iluminismo, essa tem sido uma das preocu-
Pagdes mais estéreis dos pedagogos. Em seu preconceito, eles
ndo véem que a terra esta cheia de substfncias puras e infal-
sificdveis, capazes de despertar a atengao infantil. Substancias
extremamente especificas. As criangas, com efeito, tem um
particular prazer em visitar oficinas onde se trabalha visivel-
mente com coisas. Elas se sentem atraidas irresistivelmente