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Claúdio Abramo disse certa vez que para ser jornalista seria preciso uma formação
cultural sólida, científica ou humanística, mas que as escolas eram precárias.
“Como dar um curso sobre algo que nem eu consigo definir direito?”, se perguntava
ele. “Trabalhei quarenta anos em jornal e acho muito difícil definir o que meia dúzia
de atrevidos em Brasília de nem como curso de jornalismo.” Pois bem, em 27 de
setembro passado, o Conselho Nacional de Educação instituiu para todo o país as
novas diretrizes para os cursos de jornalismo, atendendo à demanda de um único
setor de professores universitários dessa área, interessado em desvincular a
formação do jornalista da cultura científica e humanística da área de comunicação.
A proposta, que se lançou como modernizadora do ensino de jornalismo, em
verdade significou um retrocesso em todo um trabalho de décadas, que se
propunha à construção de mentes críticas na imprensa brasileira.
E não era para menos. Todos os membros da Comissão “Marques de Melo”, que
elaborou o projeto, faziam parte do mesmo credo, compunham um mesmo espírito
que hoje grassa na universidade brasileira, de afastamento da Academia, de suas
pesquisas, sua reflexão de base, suas teorias, e aproximação ao mercado, forçando o
curso a uma preparação mais técnica do que intelectual. Isso tem motivos
acadêmicos e políticos, sem contar o trem da alegria em favor de seus propositores.
A perda do vínculo majoritariamente universitário se compensa com as vantagens
para as empresas, rebaixando o ensino a um apêndice das redações de jornal. Nem
precisa mais se chamar universitário. Afonso de Albuquerque já havia apontado, no
debate realizado pela Revista CULT em outubro passado, que a escolas de
jornalismo hoje em dia existem basicamente para dar emprego a jornalistas. Veja-
se, por exemplo, os concursos acadêmicos para preenchimento de vagas de
professor, em que a pontuação majoritária, em lugar de recair sobre estudos,
publicações e pesquisas, é atribuída pelos avaliadores à atuação profissional na
área, como se isso legitimasse a própria capacidade para formação de novos
jornalistas.
Sua “proeza” teria sido conseguir falar de jornalismo sem se pronunciar sobre o
sistema empresarial, o oligopólio, “ firmado sobre a propriedade cruzada de
diferentes meios de comunicação” e que dá as cartas hoje na comunicação e no
jornalismo brasileiro. Sintomaticamente, ignorou-se, nas palavras dele, o sistema
responsável pela produção da maior parte do jornalismo brasileiro, diário ou
semanal, seja ele impresso, televisivo, radiofônico ou digital.
Muniz Sodré
Vale a pena refletir um tanto sobre duas frases do estadista e jornalista francês
Georges Clemenceau (1841-1929): (1) “O homem absurdo é aquele que nunca
muda”; (2) “a guerra é uma coisa grave demais para ser confiada aos militares”.
Vale igualmente, a título de exercício, deslocar a primeira frase para uma questão
identitária qualquer, pessoal ou coletiva, como a identidade profissional do
jornalista. Quanto à segunda, é oportuno especular sobre a possibilidade de que
aquilo que se vem chamando de comunicação, ou seja, o grande vetor simbólico do
turbocapitalismo, tenha magnitude maior do que a prática tradicionalmente
confiada aos jornalistas.
Agora, não se trata de uma coisa nem de outra: a mídia eletrônica (internet e suas
derivações), biombo ideológico do capitalismo financeiro, institui-se em arquivo
mundial do saber, com foco cultural na sincronização dos afetos em escala global. A
palavra de ordem é velocidade, e não espírito republicano. Desde a década final do
século passado, a tecnologia digital passou a impulsionar e consolidar a
fragmentação dos públicos da mídia anterior sob as formas de individualidades
comunicantes ou interativas. A antiga interação, regida pelo modelo de uma
“massa” anônima e heterogênea, dá lugar à interatividade, que implica um processo
gradativo de apropriação da tecnologia da comunicação pelos usuários. O fundo
coletivista do modelo de massa anônima transforma-se no de um individualismo de
massa. O que conta aqui não é a opinião argumentada, mas a opinião emocional ou
afetual.
Aos desavisados, isto bem que poderia parecer apenas mais uma construção teórica
para dar conta das novas relações sociais que espelham a lógica ou a ideoestrutura
visível e consciente do mercado de bens e serviços. Elas sempre estiveram
implícitas na dimensão industrial do jornalismo, mas ganharam um vulto ampliado
no âmbito da financeirização e da tecnologização do mundo.
E o fato é que hoje tais relações constituem-se como objeto prioritário dos estudos
de mídia, especialmente nos Estados Unidos, conforme especificou o professor
Ronald Yates, da Universidade de Illinois, ao justificar a substituição de
meras communications por media na designação do seu college: “O que nós
realmente fazemos é estudar e ensinar ‘comunicação midiatizada’ [mediated
communications] (…). Nós estudamos e ensinamos mídia – mídia velha, mídia
nova, mídia emergente, mídia futura. Em resumo, o College of Communications é
sobre mídia. O mais importante de tudo isso (…) não é encontrar uma
nomenclatura precisa, mas dar conta das mudanças que estão ocorrendo (…)
Essas mudanças nas formas de distribuição [de informação e entretenimento] e na
maneira como as pessoas pensam a respeito da mídia provocaram mudanças no
escopo das comunicações como disciplina.” (LIMA, Venício A. “História, fronteiras
conceituais e diferenças”. In: Observatório da Imprensa, nº 749, 4/6/2013).
Isto não equivale a dizer que tudo leva aos caminhos teóricos da comunicação, às
ditas teorias da comunicação. Já Wilbur Schramm, um dos principais nomes do
marketing acadêmico da comunicação (aliás, um esperto do auto-marketing…),
após a Segunda Grande Guerra, chamou a atenção para o fato de que a Journalism
Quaterly, a mais antiga revista acadêmica da área (fundada em 1924 com o nome
de Journalism Bulletin), não publicou, durante os seus primeiros 21 anos, “um
único artigo sobre teoria da comunicação”.
Essa não é, obviamente, a avaliação feita pela própria CE, para quem o Relatório é o
resultado de um processo democrático: (v. a íntegra do Relatório
em: www.portal.mec.gov.br/dmdocuments/documento_-
nal_cursos_jornalismo.pdf):
Mas, mais significativo ainda, a maneira como foi produzido o Relatório foi um
retrocesso, quando comparada a um evento também realizado em 2009: a Iª
Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), preparada por audiências
públicas realizadas em 27 unidades da federação, envolvendo diretamente 30 mil
pessoas. Como observa o grupo Intervozes, conhecido por sua militância em defesa
da democratização da comunicação (www.intervozes.org.br/conferencia-nacional-
de-comunicacao-um-marco-para-a-democracia-no-brasil:
• Afirmação da comunicação como direito humano, e o pleito para que esse direito
seja incluído na Constituição Federal;
• Criação de um Conselho Nacional de Comunicação que possa ter caráter de
formulação e monitoramento de políticas públicas;
As NDCJ, para fazer frente aos desafios postos para o Jornalismo contemporâneo,
deveriam apontar propostas capazes de oferecer uma perspectiva democrática à
integração do Jornalismo na vida das comunidades, incluindo midiativismo,
construção e desenvolvimento de redes sociais capazes de proporcionar canais de
cooperação comunitária, adequação de linguagens às especificidades culturais
regionais, utilização das tecnologias de informação para promover valores
identitários condizentes com os direitos humanos. E, claro, preparar os estudantes
também para atuar em veículos da “grande mídia”. Os estudantes, enfim, deveriam
ter a opção de traçar o seu próprio caminho, de acordo com as suas convicções
pessoais. Na liberdade de escolha reside a real democracia; as NDCJ rejeitam
ambas.
José Arbex Jr. foi editor internacional da Folha de S. Paulo, editor chefe do
Brasil de Fato e é atualmente editor da Caros Amigos. É chefe
do departamento de jornalismo da PUC-SP