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RECONCILIANDO CORPO E MENTE:

Uma Aproximação Teórica entre


Cognição Corporificada e Letramentos Contemporâneos

Natalia de Lima Nobre1

Resumo

Nas últimas décadas, parece haver uma cisão entre as ciências cognitivas e os
estudos sobre letramento. Essa desvinculação aponta para uma concepção de
cognição como restrita a habilidades e competências individuais contidas em uma
mente desvinculada de seu entorno biofísico e sociohistórico, habilidades de uma
computação (codificação e decodificação) específica do signo linguístico. Entretanto,
desde a década de oitenta, tem sido construído um diálogo interessante entre
perspectivas cognitivas e sociais para o estudo da construção de sentidos. Tomando
como ponto de partida essa possibilidade de diálogo, buscaremos no presente
trabalho demonstrar como a vertente da Linguística Cognitiva conhecida como
Corporificada (LAKOFF; JOHNSON, 1999), bem como desenvolvimentos das ciências
cognitivas apresentam uma visão de cognição humana compatível com e útil a atuais
propostas de letramentos e demandas sociocomunicativas e interacionais de nossos
dias. Para tanto, primeiramente, faremos uma pequena revisão das bases filosóficas
que subjazem à concepção de cognição como atividade puramente mental e sua
recente desconstrução pós-moderna. Em seguida, buscaremos situar a hipótese de
uma cognição corporificada no paradigma das Ciências Cognitivas. Por último,
apontaremos alguns caminhos de intersecção frutífera entre a Linguística Cognitiva
Corporificada (Embodied Cognitive Linguistic) e os Estudos em Letramento na
contemporaneidade.

Palavras-chave: Letramentos Contemporâneos. Linguística Cognitiva Corporificada.


Demandas Sociocomunicativas. Processamento do Discurso.

1Doutoranda pelo PIPGLA/UFRJ e professora do Departamento de Letras da UFRN.

Rev. Episteme Transversalis, Volta Redonda-RJ, v.9, n.2, p.132-152, 2018.


RECONCILING BODY AND MIND:
A Theoretical Approach between Cognition and Contemporary Literacies

Abstract

In the last decades, there seems to be a split between the cognitive sciences and
literacy studies. This unlinking points to a conception of cognition as restricted to the
individual skills and competences contained in a mind unrelated to its biophysical and
sociohistorical environment, a computational (encoding and decoding) specific to the
linguistic sign. However, since the 1980s, an interesting dialogue between cognitive
and social perspectives has been constructed for the study of the construction of
meanings. In this paper we will try to demonstrate how the Cognitive Linguistics aspect
known as Corpored (LAKOFF; JOHNSON, 1999), as well as developments in the
cognitive sciences present a view of human cognition compatible with and useful to
current proposals of literacies and sociocommunicative and interactive demands of our
day. To do so, we will first make a small revision of the philosophical underpinnings
underlying the conception of cognition as a purely mental activity and its recent
postmodern deconstruction. Next, we will seek to situate the hypothesis of a cognition
embodied in the Cognitive Sciences paradigm. Finally, we will point out some paths of
fruitful intersection between the Embodied Cognitive Linguistic and the Literature
Studies in contemporaneity.

Keywords: Contemporary Literature. Cognitive Linguistics. Sociocommunicative


demands. Speech Processing.

O corpo é um instrumento que registra seus usos anteriores, e que,


embora continuamente modificado por eles, dá maior peso ao anterior
deles; ele contém (...) o traço e memória dos eventos sociais (Pierre
Bourdieu – The economics of linguistic exchanges)

A compreensão cabal da mente humana requer a adoção de uma


perspectiva do organismo; que não só a mente tem de passar de um
cogitum não físico para o domínio do tecido biológico, como deve
também ser relacionada com todo o organismo que possui cérebro e
corpo integrados e que se encontra plenamente interativo com o meio
ambiente físico e social (António Damásio – O erro de Descartes).

Introdução

Nas últimas décadas, parece haver uma cisão entre as ciências cognitivas e
os estudos sobre letramento. A agenda contemporânea das pesquisas em
letramentos tem se voltado para os contextos sociais, para as práticas de

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letramento(s) locais e contextuais pelas quais os sujeitos operam em grupos sociais
para além das salas de aula (BAYNHAM; PRINSLOO, 2009), para as relações de
poder e hierarquia social que definem (ou tentam definir) o que conta como letramento
e para a multimodalidade proporcionada pelos meios digitais de produção e circulação
de textos.
Essa nova direção2 parece indicar um afastamento de questões cognitivas,
sendo muitas vezes descrita sob os termos de “afastamento de questões pedagógicas
e psicolinguísticas” ou oposição “a posição que vê letramento como uma mera
questão de habilidades, como um processo único, no qual leitores e escritores são (...)
mais ou menos proficientes processadores de textos” (BAYYNHAM; PRINSLOO,
2009). Tais definições apontam para uma concepção de cognição como restritas a
habilidades e competências individuais contidas em uma mente desvinculada de seu
entorno biofísico e sociohistórico, habilidades que diriam respeito a uma computação 3
(codificação e decodificação) específica do signo linguístico.
Tal concepção de mente descorporificada4 muito relaciona-se com uma
perspectiva cognitivista bem atuante desde meados do século passado: gerativismo,
que ancora-se em uma concepção internalista, autônoma e essencialista de
linguagem e de cognição, atrelada a um projeto modular de mente. Entretanto, sua
fundação remonta à radical separação clássica e ocidental entre mente e corpo e
atividade mental interna e sem qualquer localização física e social. Esta separação,
por sua vez, se desenrola sobre um embate filosófico e epistemológico mais amplo,
que diz respeito às condições gerais que possibilitam aos seres humanos construir
conhecimentos e significados e foi fundamental para o estabelecimento da
racionalidade moderna. Nesse sentido, renovam-se antigas questões filosóficas em
torno de dicotomias como mente/corpo, objetividade/subjetividade,
raciocínio/imaginação, inato/adquirido, lógica/senso comum.

2
Segundo Baynhan e Prinsloo (2009), nos últimos vinte e cinco anos, os estudos em letramento têm
passado por uma virada conceptual, construindo uma nova direção de pesquisa frequentemente
chamada de New Literacy Studies (NLS – Novos Estudos em Letramento).
3
Desde meados da década de 50, com os avanços nos estudos das Ciências da Computação da época,
“a cognição passa a ser explicada a partir do pressuposto de que o agente executa ações com base
[em] representações com a finalidade de resolver problemas que lhe são apresentados. A assunção de
que o comportamento depende de uma capacidade cognitiva internalizada fundamenta a ideia de que
a cognição pode ser bem explicada se for compreendida como uma computação (operação lógica
realizada sobre símbolos, repercutindo na execução de determinadas funções)” (DUQUE; COSTA,
2011)
4
O termo usado em inglês para esse conceito é disembodied, traduzido por desencarnado,
descorporificado, desencorpado.
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Entretanto, desde a década de oitenta, conforme Koch e Cunha Lima (2011),
tem sido construído um diálogo interessante entre perspectivas cognitivas e sociais 5,

Criando espaços muito frutíferos para o desenvolvimento de


pesquisas que compreendam fenômenos cognitivos em geral, e a
linguagem em particular, como fenômenos capazes de oferecer
modelos de interação e da construção de sentidos cognitivamente
plausíveis ou cognitivamente motivados e, ao mesmo tempo, como
fenômenos que acontecem na vida social. (...) Entre esses
pesquisadores estão dissidentes do gerativismo clássico, como
George Lakoff ou Ronald Langacker, que propõem que a linguagem
seja vista como uma forma de ação no mundo, integrada a outras
capacidades cognitivas. (Idem, p. 254, 255)

Pesquisadores das áreas sociais também passaram a se preocupar com a


dimensão cognitiva de seus modelos (GIBSON, 1979; JONHSON, 1987; SINHA,
1988; HUTCHINS, 1995, BARDONE, 2011). A atividade de processamento da
linguagem para tais pesquisadores seria altamente situado e sensível ao contexto
sócio-histórico. Trata-se de uma cognição que não se restringe à mente, nem mesmo
aos corpos dos indivíduos, mas acontece socialmente, nas interações que as pessoas
constroem com seu entorno biofísico e social.
Tomando essa possibilidade de diálogo entre uma perspectiva social e uma
perspectiva cognitiva para o estudo da construção de sentidos, buscaremos no
presente ensaio demonstrar como a vertente da Linguística Cognitiva conhecida como
Corporificada (LAKOFF; JOHNSON, 1999), bem como desenvolvimentos das ciências
cognitivas apresentam uma visão de cognição humana compatível com e útil a atuais
propostas de letramentos e demandas sociocomunicativas e interacionais de nossos
dias.
Para isso, primeiramente, faremos uma pequena revisão das bases filosóficas
que subjazem à concepção de cognição como atividade puramente mental e sua
recente desconstrução pós-moderna. Em seguida, buscaremos situar a hipótese de
uma cognição corporificada no paradigma das Ciências Cognitivas. Por último,
apontaremos alguns caminhos de intersecção frutífera entre a Linguística Cognitiva
Corporificada (Embodied Cognitive Linguistic) e os Estudos em Letramento na
contemporaneidade.

5
Para uma discussão acerca das intersecções entre Ciências Cognitiva e linguística Aplicada, ver
GERHARDT. É de pessoas que se trata: o lugar da Linguística Cognitiva numa Linguística Aplicada
Indisciplinar. No prelo.
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A separação entre mente e corpo na tradição ocidental

Excluir os aspectos cognitivos ou dar-lhes menor importância nos estudos de


letramentos parece estar ligado a uma concepção de cognição como atividade
puramente interna, individual, separada da experiência social e corpórea. Sob essa
concepção, a atividade mental se daria sob as mesmas condições para qualquer
indivíduo, pois estaria submetida a regras inatas e universais de funcionamento. Essa
concepção de cognição, embora ainda em vigor em algumas correntes, tem suas
raízes na tradição filosófica Ocidental, e está na base da construção da racionalidade
moderna.
A racionalidade ocidental, desde Platão, nos legou uma abissal separação
entre mente e corpo, espírito e matéria, intelecto e experiência. Mas Descartes levou
essa cisão a sua formulação extrema ao afirmar, não apenas que mente e corpo são
separados, mas que são, assim como em sua concepção seria a realidade,
constituídos de substâncias diferentes: substância mental (res cogitans – não divisível
e não espacial) e substância material (res extensa – divisível e ocupando lugar no
espaço) (DUQUE; COSTA, 2011).
Conforme Damásio (2012), a célebre frase de Decartes, “penso, logo existo”,
sugere ainda que é a atividade intelectual, racional o verdadeiro substrato da
existência, e da Verdade. Para Descartes, é somente através da atividade mental que
o ser humano pode obter conhecimento seguro sobre si mesmo e sobre o mundo que
o rodeia.
Entretanto, essa concepção cartesiana de ser humano cindido em
corpo/mente gera problemas ontológicos e epistemológicos para a compreensão da
experiência humana, os quais, em certa medida, tem acompanhado o
desenvolvimento das ciências humanas no Ocidente até os dias atuais.
Um problema ontológico advindo dessa concepção é como se unem mente e
corpo, uma vez que são de substâncias distintas. A razão, na concepção cartesiana,
pode fazer uso da materialidade apresentada pelos sentidos, mas não é ela mesma
de natureza corporificada.

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Não há nada sobre os seres humanos mencionados em qualquer lugar
nesta conta - nem a sua capacidade de entender, nem a sua atividade
imaginativa, nem sua natureza como organismos em funcionamento,
nem qualquer outra coisa sobre eles. (...) a natureza humana (a
corporeidade humana) do entendimento não tem qualquer influência
significativa sobre a natureza do significado e da racionalidade. A
estrutura da racionalidade é considerada como transcendendo
estruturas da experiência corporal. E o significado é considerado como
objetivo, porque consiste apenas na relação entre símbolos abstratos
e coisas (com suas propriedades e relações) no mundo. Como
consequência, a forma como os seres humanos compreendem as
coisas como significativas - a maneira como compreendem a sua
experiência - é considerada acessória em relação à natureza do
pensamento significativo e da razão. (JOHNSON, 1987, p. 10)

Para Descartes, a junção dessas duas substâncias se daria em algum lugar


do cérebro (glândula pineal). Mas, embora aprisionada no corpo, a mente teria sua
própria “essência”, as ideias e a lógica ou razão que as rege e organiza, ambas
transcendendo a natureza e a experiência humanas (TEIXEIRA, 2000), ou seja, sua
situatividade sócio histórica e sua ação.
Desta concepção bifurcada da experiência humana decorre outro problema,
de natureza epistemológica: se o que nossa mente conhece é de natureza imaterial
(suas próprias ideias submetidas a regras lógicas), como podemos conhecer o mundo
(ou mundos) que nos rodeia(m)? A resposta de Descartes recai em uma explicação
teológico-filosófica que envolve (1) a existência de uma realidade (e uma
racionalidade) objetiva, transcendental, a priori e independente da ação e pensamento
humanos e do desenvolvimento histórico, e (2) a garantia dada por Deus do acesso
às características, propriedades e relações dessa realidade pela participação na
racionalidade divina. Sob a perspectiva em tela,

O mundo consiste em objetos que têm propriedades e estados em


diversos sentidos independentes do entendimento humano. O mundo
é como é, não importa o que qualquer pessoa passa a acreditar sobre
ele, e há um correto "ponto de vista de Deus" sobre o que o mundo
realmente é. Em outras palavras, há uma estrutura racional da
realidade, independente das crenças de todas as pessoas em
particular, e a razão correta espelha essa estrutura racional.
(JOHNSON, 1987, p. 10)

Essa perspectiva acarreta sérias implicações para a concepção de linguagem,


de cognição humana e de significado.

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Para descrever uma realidade objetiva desse tipo, precisamos de uma
linguagem que expresse conceitos que podem mapear os objetos,
suas propriedades e relações em uma literal e unívoca forma
independente de contexto. Raciocinar para obter conhecimento de
nosso mundo é visto como exigindo a união de tais conceitos em
proposições que descrevem aspectos da realidade. A razão é, assim,
uma capacidade puramente formal para conectar e fazer inferências a
partir destes conceitos literais de acordo com as regras da lógica. As
palavras são símbolos arbitrários que, embora sem sentido em si
mesmos, recebem o seu significado em virtude de sua capacidade de
corresponder diretamente às coisas do mundo. E o pensamento
racional pode ser visto como manipulação algorítmica de tais
símbolos. (idem, p. 10)

Tal perspectiva transcendental de cognição, separada da vida cotidiana, da


experiência sensível, quase teológica, foi a base que justificou durante muito tempo a
hierarquização da inteligência e da civilização dos povos, a subalternização de
saberes e cosmovisões.
O objetivismo que tal cognitivismo sustenta possibilitava (e ainda possibilita)
a reivindicação de uma verdade. O conhecimento era como que gerado, nas palavras
de Mignolo (2003, p. 42), a partir do Espírito ou do Ser, de uma hermenêutica
“monotópica (isto é, uma perspectiva de um sujeito cognoscitivo, situado numa terra-
de-ninguém universal)”.
E, mesmo em pleno século 20, esse objetivismo transcendental possibilitou
que Max Weber ignorasse a subalternização do conhecimento do processo colonial e
celebrasse “o verdadeiro saber [ocidental] como valor universal” (MIGNOLO, 2003, p.
23). Esse sujeito universal foi aparato conceitual que ancorou e continua ancorando a
classificação e hierarquização dos povos e seus sistemas de conhecimentos, que
continua a sustentar uma “colonialidade do poder”.
Embora não estejamos estagnados na dualidade cartesiana, muitas tentativas
de superar ou “implodir” a racionalidade moderna acabam por trazer o “ranço” dessa
orientação dual, agora por rejeitar qualquer participação ou importância de aspectos
cognitivos na experiência humana em seus diversos contextos sociais, ou negar o
papel da configuração física e biológica (o corpo propriamente dito) na atividade
cognitiva/mental.
Ora toma-se a mente como puramente interna por não ter ligação com a
experiência sensível ora por consistir em um programa computacional de uma
“máquina cerebral” que nada tem a ver com a experiência social. Em ambas as

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versões, há uma compreensão de cognição de-situada, alheia aos contextos em que
acontece e aos agentes que a realizam.
Para o neurocientista português António Damásio, o erro de Descartes em
separar mente e corpo continua a prevalecer.

Pode bem ter sido a ideia cartesiana de uma mente separada do corpo
que esteve na origem, na metade do século XX, da metáfora da mente
como programa de software. De fato, se a mente pudesse ser
separada do corpo, talvez fosse possível compreendê-la sem nenhum
recurso à neurobiologia, sem nenhuma necessidade de saber
neuroanatomia, neurofisiologia e neuroquímica. É interessante e
paradoxal que muitos investigadores em ciência cognitiva, que se
julgam capazes de investigar a mente sem nenhum recurso à
neurobiologia, não se considerem dualistas.
A separação cartesiana pode estar também subjacente ao modo de
pensar de neurocientistas que insistem em que a mente pode ser
perfeitamente explicada em termos de fenômenos cerebrais, deixando
de lado o resto do organismo e o meio ambiente físico e social – e, por
conseguinte, excluindo o fato de parte do próprio meio ambiente ser
também um produto das ações anteriores do organismo. (...) não só a
mente tem de passar de cogitum não físico para o domínio do tecido
biológico, como deve também ser relacionada com todo o organismo
que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra plenamente
interativo com um meio ambiente físico e social. (DAMÁSIO, 2012, p.
220, 221)

A pós-modernidade, em sua crítica à racionalidade moderna, dá um grande


passo para a retirada da mente “do nenhures etéreo que ocupou desde o século XVII”,
através da implosão da lógica “logocêntrica” 6 e essencialista com seus significados
transcendentais e universalmente válidos, por meio de uma desessencialização da
realidade e restabelecimento do papel da experiência e dos contextos não só na
compreensão, mas também na construção dessa realidade (DERRIDA, 1973).
Para o conhecido teórico da pós-modernidade Zygmunt Bauman, a visão de
mundo pós-moderna dissipa toda a ‘objetividade’.

Nosso tempo é marcado pelo fim da hierárquica estrutura de valores


e a rejeição de todo tipo de recorte binário, que representam o domínio
do cultural sobre o código natural, como os cortes entre o Ocidente e
o resto, instruídos e ignorantes, estratos superior e inferior. (BAUMAN,
1992, p.)

6
Logocentrismo é a suposição de que tanto sinais falados quanto escritos são apenas dicas e
expressões externas de significados mais profundos e verdades, verdades que se encontram tanto em
pensamentos de homens ou, em última instância, as mentes dos deuses”. (BROCKMEIER; OLSON,
2009, p. 15)
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A percepção pós-moderna do mundo é irredutivelmente pluralista, com o
poder e a autoridade dividida em um grande número de unidades e lugares, sem uma
pré-determinada ordem horizontal ou vertical.

A questão central é como localizar, identificar, separar um mundo


particular, sabendo muito bem que este mundo é apenas um dos
muitos possíveis e coexistentes; e que a exploração deste mundo,
apesar de profunda, é pouco provável que nos leve mais perto da
verdade universal ou de descobertas capazes de reivindicar
legitimamente, quer geral, ou exclusiva validade obrigatória.
(BAUMAN, 1992, p. 30)

Derrida, em sua Gramatologia, também defende “a destruição, não a


demolição, mas a de-sedimentação, a desconstrução de todas as significações que
brotam da significação de logos. Em especial a significação de verdade”. Ao discutir o
“transbordamento e apagamento” do conceito ocidental de linguagem para além do
imperialismo do logos, esse autor chama a atenção como a noção de signo
saussuriana “não adere apenas (e já é muito) a distinção entre o sensível [significante]
e o inteligível [significado]”. Uma concepção que olha para a língua em sua
transparência, como se os signos exprimissem naturalmente as coisas e os estados
da alma.
Tais teóricos da pós-modernidade apontam para a razão pela qual os
aspectos cognitivos têm muitas vezes sido excluídos da agenda dos estudos
contemporâneos do letramento, a saber, a inclusão da cognição em categorias
subjacentes do espectro cartesiano, ora na mente imaterial, não localizável e
transcendental, ora no cérebro puramente bioquímico e desvinculado de um corpo,
qual hardware de um computador.

O corpo na mente

Conforme mencionado anteriormente, a radical separação entre fenômenos


internos (cognitivos/mentais) e fenômenos externos (corpóreos e sociais) parece estar
na base da separação ou rejeição das ciências cognitivas nos estudos em letramento.
Entretanto, já há algum tempo que vertentes das ciências cognitivas têm defendido

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que a cognição é de natureza corporificada, situada e social 7. Já na década de 1970,
a Linguística Cognitiva (LC) surge como uma dessas vertentes.
A partir do trabalho de teóricos interessados na relação entre cognição,
linguagem e sociedade (como Charles Fillmore, George Lakoff, Ronald Langacker),
começa-se a enfrentar as ideais da perspectiva então predominante de que a estrutura
e a significação linguísticas poderiam ser explicadas por características internas e
especificas da linguagem, de que a mente seria um autônomo e modular sistema de
manipulação simbólica e de que as representações mentais seriam símbolos das
coisas do mundo. Em vez disso, a LC voltou-se para o estudo da linguagem e sua
relação com “nossa experiência enquanto organismos corporificados funcionando em
interação com um ambiente” (JOHNSON, 1987, p. XVI), fundando a concepção de
“mente corporificada” (embodied mind).
Segundo essa nova perspectiva, há uma relação de mútua e contínua
influência entre nossa configuração biológica (estrutura neural, perceptual, sensório-
motora e musculoesquelética) em interação com nosso entorno biosocioafetivocultural
e nossa organização conceptual mais abstrata, incluindo a estrutura linguística.
Evidências encontradas nos estudos sobre os modos de pensamento e
organização não-ocidentais, sobre a formação de conceitos, sobre categorização e
sobre a variação semântica (ver JONHSON, 1987) reforçaram o papel do corpo
(sistemas perceptuais e motores) na configuração de nosso sistema conceptual, ou
seja, da experiência sensório-motora e perceptual (somática) na formação de nossos
conceitos.
Como argumentado pela pragmática, em primeiro lugar, a experiência
nunca foi ontologicamente bifurcada, até podemos identificar aspectos
de nossa experiência unificada e abstratizá-los como se fossem
entidades separadas e distintas estruturas ou processos. Experiências
vêm como um todo contínuo, a partir do qual fazemos distinções e
construímos padrões abstratos desse todo qualitativo. Sob esse ponto
de vista, cognição é um processo orgânico, corporificado de enação
em que o organismo está dinamicamente articulado com seu entorno,
e não separado ou alienado dele. [...] Os padrões desse nosso
engajamento são padrões sensório-motor, esquemas imagéticos,
metáforas conceptuais e outras estruturas imaginativas. (JOHNSON,
2007, p. 145)

7Há ainda abordagens que compreendem a cognição também como distribuída, ou seja, ela acontece
para além dos nossos corpos, nos ambientes e artefatos que nos rodeiam e a partir das possibilidades
de interação eles nos apresentam. Há possibilidade de aproximação entre essas abordagens e a
discussão proposta por Harold Innis e outros teóricos sobre o papel da mídia (mediação material), mas
esse seria assunto para um outro ensaio ou artigo.

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Na contramão do dualismo cartesiano, a LC concebe cérebro/mente e corpo
como um organismo indissociável, e é esse organismo como um todo (não apenas o
cérebro) que interage com o nosso mundo (físico e social). A cognição, nesse sentido,
deixa de ser entendida como uma operação interna de manipulação simbólica e passa
a ser entendida numa perspectiva ecológica.

Essa perspectiva nos leva à compreensão de que a linguagem, antes


de ser um sistema representacional, é um trabalho intersubjetivo que
nos permite estabilizar, mesmo que transitoriamente, o conteúdo
variável de nossas experiências. As atividades cognitivas, por sua vez,
deixando de ser compreendidas em separado da interação do corpo
com o meio e à parte da vida social, passam a ser consideradas como
parcela fundamental da ação conjunta que se dá na atividade
linguística. (DUQUE, no prelo)

As características estruturais e relacionais de tais experiências 8 recorrentes


são armazenadas sob a forma de padrões cognitivos estabilizados (esquemas
imagéticos9 e frames). Esses padrões são estáveis, porém não estáticos. Sua principal
característica é a flexibilidade, uma vez que são “acessados” a todo o momento para
dar sentido a novas informações e por elas são retroalimentados.
Numa perspectiva corporificada, de acordo com Lakoff e Johnson (cf. 1999,
p. 37-38), as mesmas estruturas neurais engajadas na percepção, no movimento
corporal ou na manipulação de objetos são também responsáveis pela
conceptualização e raciocínio. Estruturas conceptuais seriam, portanto, “estruturas
neurais que nos permitem caracterizar nossas categorias e raciocinar sobre elas”
(LAKOFF; JOHNSON, 1999, p. 19).
Em termos simples, nossa tenra experiência de estarmos dentro ou fora de
um berço, de uma casa, de uma banheira ou de nos levantarmos e nos abaixarmos,

8De acordo com Johnson, a noção de “experiência” deve aqui ser entendida de maneira bem ampla,
incluindo as dimensões perceptuais básicas, motoras, emocionais, históricas, sociais e linguísticas.
9Esquemas imagéticos são imagens multi-estésicas (mapas perceptuais) que esquematicamente

representam características estruturais e relacionais de recorrentes interações organismo-ambiente


armazenadas em nossa memória de longo termo, experiências sensório-motoras, tais como
deslocamento no espaço, e seus aspectos perceptuais, como, por exemplo, orientação, equilíbrio,
forma etc. Os frames também correspondem a estruturas cognitivas complexas, mas guardam
informações esquematizadas de nossas interações sociais, roteiro, constituição de cenários, categorias
etc.
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nos possibilitam construir esquemas imagéticos 10 do que seja um CONTEINER, com
seu interior, exterior, limites, conteúdo e portal de acesso, ou do que seja ACIMA e
ABAIXO, ou ainda VERTICALIDADE. Nossa experiência em uma dada cultura utiliza
tais estruturas sinestésicas de nossa experiência e, por meio de projeções metafóricas
e metonímicas, nos possibilita, por exemplo, diferenciar contêineres e conteúdos com
os quais interagimos, uma geladeira de um guarda-roupas, por exemplo.
Tais estruturas cognitivas estáveis podem ser compreendidas como
“representações neurais, que são modificações biológicas criadas por aprendizagem
num circuito de neurônios” (DAMÁSIO, 2012, p. 96), e seriam ativados como padrões
neurais com atividade sincronizada em diversas regiões cerebrais.
Toda atividade cognitiva, ativação desses conjuntos ou padrões neuronais, se
dá no encontro entre organismo e mundo, possibilitando a construção online (situada)
dos significados e um constante retroalinhamento dos frames.
Nesse “encontro com o mundo ao nosso redor”, nossa configuração física e a
do nosso entorno nos possibilitam a extração de affordances11. Cunhado por Gibson
(1986/2015), esse termo diz respeito às possibilidades de interação entre os
indivíduos e as coisas em seus ambientes. “Nesse sentido, superfícies possibilitam
locomoção, alguns objetos possibilitam manuseio e alguns animais possibilitam
interação” (DUQUE; COSTA, 2012, p. 117).
Um tipo recorrente de manipulação/uso de um dado objeto em uma dada
cultura pode cristalizar ou tornar prototípicas e até exclusivas determinadas
affordances, mas apenas as características físicas e/ou biológicas dos objetos ou dos
agentes que interagem com eles podem servir de restrições à extração de novas
affordances.
É interessante notar que colocar o corpo como centro da experiência e da
cognição humana, logo do processo de construção e significação do(s) mundo(s) que
nos rodeia(m), não significa buscar a universalidade dos significados. Apesar de
possuirmos uma mesma configuração biológica, as possibilidades de encontro desses
corpos com seu entorno físico e social, as possibilidades de experienciação desses
corpos variam de cultura para cultura, logo, possibilitam construções de padrões de
significação variados, plurais. Pensar o corpo ou os corpos que são tomados como

10
A grafia dos nomes de frames ou esquemas imagéticos em letras maiúsculas é uma convenção
notacional utilizada na LC.
11
Voltaremos a esse conceito no decorrer de nossa discussão.
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prototípicos da experiência humana em uma dada cultura, logo em um dado sistema
conceptual, explica muito do que entendemos e/ou defendemos por acessibilidade,
normalidade, beleza. Pensar sobre o apagamento da pluralidade dessa experiência
sensório-motora e perceptual dentro de regimes de poder e controle durante a
construção desses sistemas conceptuais é reforçar a existência de algo essencial ou
a priori da existência e experiência humanas. Uma cognição corporificada é, portanto,
compatível com de-sedimentação do logos e construção/compreensão da realidade
contemporânea.
Tal perspectiva toma o corpo não apenas como suporte à vida, mas como
conteúdo e parte integrante da cognição, raciocínio e compreensão humana.
A linguagem, nessa perspectiva, é compreendida como uma capacidade
cognitiva geral de estruturação do nosso conhecimento. Assim, a construção de
significados para os mais diferentes tipos de estímulos, incluindo para as estruturas
linguísticas, relaciona-se aos padrões recorrentes de experiências corporificadas e
interação social e ao nosso aparato sensório motor e perceptual.
Um ponto crucial nesta perspectiva é que cognição consiste em

Uma maneira de ter um mundo, a maneira de experienciarmos o nosso


mundo como uma realidade compreensível. Tal compreensão
[cognição], portanto, envolve todo o nosso ser – nossas capacidades
e habilidades corporais, nossos valores, nossos modos e atitudes,
nossa inteira tradição cultural, a maneira como nos ligamos à
comunidade linguística, à nossa sensibilidade estética e assim por
diante. (JONHSON, 1987, p. 117)

Interfaces entre cognição corporificada e letramentos contemporâneos

Assim como aponta Bauman (1992, p. 64), a pós-modernidade consiste em


“uma profunda transformação social – provocada pelo desenvolvimento moderno, mas
em uma série de aspectos vitais descontínuos com ele”. Entre essas vitais
descontinuidades, encontra-se a dissipação da objetividade. A contemporaneidade
legitimou a pluralidade na construção de versões públicas do mundo que não são nem
independentes nem a priori da existência dos indivíduos.
Citando François Lyotard, Bauman aponta para a “‘atomização’ do social
dentro de flexíveis redes de jogos de linguagem” (idem, p.37), nas quais cada vez
mais as unidades sociais são compreendidas como fundadas somente na linguagem.
Tais unidades sociais são, portanto, fluidas, processuais e inerentemente flexíveis,
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Rev. Episteme Transversalis, Volta Redonda-RJ, v.9, n.2, p.132-152, 2018.
dependentes das práticas situadas de seus membros para existirem, se legitimarem
e se manterem.
Jogos de linguagem estão sobrecarregados com uma tarefa nada
invejável de constituir a presença a ser legitimada, em vez de se
preocuparem apenas com a legitimação de uma presença já garantida
por outros meios. Os limites são eles próprios as apostas e resultados
provisórios das estratégias linguísticas.

Isso explica o crescente interesse no estudo de práticas de letramento nos


contextos sociais (cultural, histórico, político e econômico) particulares de que são
parte e nos quais operam (BAYNHAN; PRINSLOO, 2009). Mas, conforme discutido
até aqui, fazem parte dessas práticas de construção e significação da ‘realidade’ ao
nosso redor a configuração física e biológica dos seus participantes, ou seja, seus
corpos, e os específicos tipos de interação que essa particular configuração
possibilita.
Nessa experiência conjunta, situada econômica, sócio e historicamente de
construção e manutenção de versões públicas de mundo em “jogos de linguagem”,
estabilizamos e compartilhamos padrões de experiências recorrentes, os quais
armazenamos em nossos cérebros e aos quais recorremos para estruturar e significar
experiências futuras. Também desestabilizamos e reformulamos ou descartamos
padrões já armazenados anteriormente, mas considerados não mais produtivos.
Toda ação social consiste, portanto, em uma ação cognitiva. Construímos e
monitoramos, na maioria das vezes de maneira não consciente, representações
mentais/neurais dos estados do nosso organismo (corpo e mente/sistema nervoso) “à
medida que [ele] é perturbado pelos estímulos do meio ambiente físico e social, e à
medida que atua sobre esse meio” (DAMÁSIO, 2012, p. 202). As próprias
representações do mundo exterior se dão em termos “das modificações que produz
no corpo propriamente dito” (idem, p. 205), desde o rubor ou lividez (como resposta à
necessidade de regulação bioquímica) à ação (movimento de um membro) ou
extração de affordances.
Nesse sentido, Blommaert, em seu Grassroots Literacy, ao discutir questões
relativas à mobilidade das vozes nos regimes e economias de letramentos, parece
coadunar com o conceito de padrões cognitivos estabilizados (frames), uma vez que
tais questões implicam em organização, categorização, armazenamento e prática da

145
Rev. Episteme Transversalis, Volta Redonda-RJ, v.9, n.2, p.132-152, 2018.
“totalidade de recursos comunicativos, conhecimentos sobre suas funções e suas
condições de uso” (BLOMMAERT, 2007, p. 14) no processo de escrita.
As relações de poder e desigualdade que configuram as práticas de
letramento no atual mundo “globalizado” são, segundo esse autor, fruto de choques
de diferentes conjuntos de experiências padronizadas, estabilizados e estratificados
das práticas de letramentos locais: padrões histórico-míticos em narrativas (p. 22),
padrões sociais de escrita (p. 23), padrões e princípios organizacionais [do discurso]
(p. 28), padrões de organização dos recursos comunicativos para a construção de
significados específicos (p. 28) e mesmo a categorização de um não-familiar padrão
como a ausência de padrão (p. 30). Em outras palavras, nossas experiências de uso
da linguagem em contextos específicos no levam a construir padrões estabilizados do
que conta como escrita, texto, documento.
O conceito de frames, qual estrutura cognitiva complexa construída a partir de
nossa experiência, e constantemente retroalimentada por ela, pode somar-se, como
aparato conceitual, à proposta de um “etnográfico entendimento das grassroots
literacies em uma época de globalização” (idem, p. 16), tanto no que diz respeito ao
mapeamento das características que remetem às economias locais de letramentos,
bem como as relações dessas características com seu potencial de mobilidade
através de contextos translocais.
Conforme defende DUQUE (no prelo),

A linguagem esteja relacionada a atividades cognitivas realizadas


pelos sujeitos conjuntamente. É a partir dessas atividades que
organizamos e damos forma às nossas experiências. O pressuposto
aqui defendido nos leva a considerar os processos de categorização,
que permitem ordenarmos cognitivo e discursivamente o mundo à
nossa volta, como função primária da linguagem. Nesse sentido, o
foco de investigação se desloca para o trabalho de elaboração,
organização e manipulação de esquemas interpretativos e
imaginativos relacionados à natureza construcional das operações
cognitivas. Em última instância, são esses esquemas que nos
permitem conhecer e falar sobre tudo aquilo que nos cerca.

As relações de poder e suas divisões hierárquicas também encontram-se


inscritas no adestramento dos corpos, nas possibilidades que a cultura e o social nos
dão de perceber e manipular esses corpos, experiências que possibilitam a
construção de padrões significativos (frames) de categorização e de ação.

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Rev. Episteme Transversalis, Volta Redonda-RJ, v.9, n.2, p.132-152, 2018.
Nesse sentido, Kathy Mills, em sua proposta de Letramentos Sensoriais,
aproxima-se da noção de cognição corporificada ao chamar a atenção para a
corporeidade (embodiment) e a multisensorialidade das práticas de letramento e de
comunicação, incluindo suas tecnologias de mediação e produção.
Para ela,
o reconhecimento da dimensão corporificada de práticas de
letramento não entra em conflito com os princípios estabelecidos de
estudos sócio culturais de letramento (...). Em vez disso, por
reconhecer diferentes comunidades de prática e suas diferentes
maneiras corporais de construir sentido, pontos de vista sócio-culturais
de letramento podem apoiar abordagens sensoriais, iluminando
quadros culturais [frames] de referência para práticas de letramento
somáticas através de culturas, sub-culturas e lugares sociais. (idem,
p. 138)

O movimento que a autora descreve de voltar a atenção para o corpo e os


sentidos que ele possibilita construir em práticas de letramento em torno dos
espaços/lugares, da comunicação e interação mediada por tecnologia, a LC faz em
relação à linguagem verbal.

Ancorado na concepção de linguagem como manifestação dinâmica


da cognição e que, portanto, adota o pressuposto de que as categorias
linguísticas se organizam e se estruturam a partir de princípios que
também regem outros sistemas cognitivos. Hoje, a Linguística
Cognitiva, atenta às acomodações mútuas entre linguagem, cognição
e corporalidade, assume para si a tarefa de descrever e explicar a
configuração gramatical das línguas concomitantemente aos
processos de construção conceptual. Tais processos atestam as
relações entre o organismo e o seu meio e entre os aspectos
estruturais e a dinâmica sociocultural. (DUQUE, no prelo)

Kathy Mills também toma como pressuposto para sua abordagem, justamente
a não separação entre mente e corpo nas práticas sociais e de letramento. Como ela
mesma esclarece, não se trata de uma divinização do corpo, mas do reconhecimento
do esquecido papel do corpo e dos sentido nas práticas de letramento.
Mills retoma o papel central que o corpo teve nos estudos sobre poder,
autoridade e reprodução cultural de Foucault e Bourdieu, respectivamente. Também
discute a natureza espacialmente situada da experiência e aprendizado humano, bem
como na construção de sentidos.

147
Rev. Episteme Transversalis, Volta Redonda-RJ, v.9, n.2, p.132-152, 2018.
uma prática corporificada é uma atividade culturalmente sancionada e
culturalmente aprendida que é realizada pelo ser humano individual
movendo-se através do tempo e espaço” (HAAS, 1996, apud MILLS,
p. 147)

A proposta de uma abordagem sensorial das práticas de letramento reforça a


concepção de que o conhecimento, o aprendizado humanos, bem como a
compreensão e produção de linguagem, se dão por meio da ação do corpo, da
estabilização e armazenamento das práticas corporificadas que compõem a vida
social e certas convenções culturais (frames), bem como da abstratização (projeção
metafórica, por exemplo) dessa experiência “para além do mundo material, podendo
trazer coerência para identificar e organizar relações entre experiências” (idem, p.
149).
Os letramentos sensoriais também destacam que as novas maneiras de
interagir (affordances) apresentadas pelos aparatos digitais móveis e responsivos ao
movimento humano (toque, movimentar das mãos e braços, respiração, fixação dos
olhos e outras formas sensoriais) podem ser responsáveis pela construção de novas
formas de representar e significar o mundo em que/sobre o qual falamos e
construímos nossas experiências em sociedade. Mais uma vez, percebemos uma
relação de congruência entre os bases lançadas para Letramentos Sensoriais e a
base da LC: a relação entre experiência e estruturação do nosso sistema conceptual.
Apesar das infinitas affordances possíveis, a tradição ocidental nos legou um
ocularcentrismo e um verbocentrismo que muitas vezes quase anulam percepções
vindas de outros sentidos. Entretanto, outras culturas podem dar espaços maiores e
mais privilegiados a outros sentidos ou capacidades humanas na significação de seu
mundo. Isso só reforça que as práticas a que nossos corpos são submetidos são de
natureza sócio e historicamente situada, variando através das culturas e dos espaços
sociais, econômicos e geográficos.
Mesmo a experiência com a linguagem verbal, o processo de construção de
significados para estímulos linguísticos não se dá em separado das outras
capacidades sensoriais humanas.

É através de conexões corpóreas significativas e encontros entre


pessoas, textos e tecnologias, ao invés de através do desenvolvimento
de habilidades de mentes sozinhas, que indivíduos podem mudar de
novatos para membros experientes de uma comunidade de práticas
letradas. (Wenger, 1998 apud Mills p. 147)

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Rev. Episteme Transversalis, Volta Redonda-RJ, v.9, n.2, p.132-152, 2018.
A cognição, como advogado pela LC, opõe-se a uma perspectiva de uma
mente separada de seu entorno. Toda atividade cognitiva se dá no encontro, na
interação do sujeito com outros sujeitos e com o seu entorno. Não se trata, no entanto,
de um exemplar de “um sujeito cognoscitivo, situado numa terra-de-ninguém
universal” (MIGNOLO, 2003, p. 42). Cada interação é sócio, afetiva e historicamente
marcada; se dá a partir dos registro estabilizados das semantizações anteriores do
“mundo”, das situações e dos sujeitos; a partir dos “rastros” das experiências histórica
e geograficamente compartilhadas.

Considerações finais

Como discutido até o momento, dar atenção à configuração social, às


relações de poder e desigualdade que envolvem as práticas de letramento e os
conflitos em torno das legitimidades de tais práticas não significa necessariamente
afastar-se de aspectos cognitivos.
A tradição filosófica ocidental, principalmente desde Descartes, separou a
cognição (mente) da experiência (corpo), com graves consequências. Essa visão
internalista e transcendental da atividade mental serviu durante muitos séculos (e
ainda hoje serve) para justificar classificações arbitrárias e subalternização de povos
e regimes de conhecimentos.
Desde os anos 1970, entretanto, tem se fortalecido uma abordagem
cognitivista que considera a cognição como uma atividade cinestésica de apreensão,
organização, interpretação e construção do nosso entorno sócio histórico e “natural” 12.
Trata-se de uma cognição corporificada, situada e distribuída. Nessa perspectiva, a
Linguística Cognitiva Corporificada vem se desenvolvendo um aparato conceitual que
apresenta interessantes pontos de intersecção com os Estudos em Letramentos:
desde seu aspecto contextualizado e sua preocupação com questões de poder e
desigualdade à seu aspecto sensorial e mediado.

12Segundo Beck (1997, p.40), atualmente, período que ele chama de Modernidade Reflexiva, mesmo
a natureza tem perdido seu caráter “pré-ordenado” ou objetivo e externo à ação humana, passando a
figurar como “projeto social”, um produto, “natureza interna integral e ajustável”.
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Rev. Episteme Transversalis, Volta Redonda-RJ, v.9, n.2, p.132-152, 2018.
Defendemos que a corporeidade da mente e do letramento vai além das
concretas e óbvias maneiras em que todo o corpo está engajado na produção,
veiculação e recepção de textos escritos. A corporeidade é constitutiva do nosso
sistema conceptual e da própria estrutura da língua 13, além de as áreas cerebrais
responsáveis pelo aparato sensoriomotor e perceptual também estarem engajadas na
compreensão da língua(gem).
Além disso, a abertura para a relativização e reconfiguração que um sistema
conceptual formatado a partir de nossa experiência cinestésica e social nos permite
pode ser de grande contribuição na construção de perspectivas críticas acerca dos
regimes de letramentos hegemônicos.

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