Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira

&
Isabel Cristina Ferreira dos Reis
(Organizadoras)

HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL

Discussões e Práticas

D I T O R A

Salvador-2010
 perdido muito do brilho dos primeiros anos. Havia motivações políticas
para tentarem relegar ao esquecimento aquela data e os acontecimentos Q/ftemâ?<ia e Aióútoia: itftfe#a<xU2áfioóá6u4Í&
que culminaram na abolição. Uma delas tinha intenção de censurar algo
que era identificado como a grande realização da monarquia. A outra, Sara Oliveira Farias
talvez mais velada, tinha por objetivo silenciar conflitos e demandas dos
ex-escravos por cidadania.

Q/Vo mundo contemporâneo, é praticamente impossível pen-

sar o presente e o futuro.Vlissociado da memória. E pensar a História
não é diferente. Nesse sentido, é significativo ressaltar que os estudos e
as pesquisas que utilizam a metodologia da história oral se ampliaram,
inserindo-se em uma perspectiva teórica já consolidada, desde a década
de 1970, quando a metodologia da história oral ainda era uma novidade
entre os historiadores.
Muitos são os estudos sobre memória. Entre eles, podem-se
destacar os de Michel Halbwachs que discute, entre outras questões, a
memória como um fenómeno coletivo e social, e afirma tratar-se de um
fenómeno construído coletivamente e submetido a modificações, sempre
em profunda interaçáo com a memória individual. 1 Para Halbwachs,
a memória é sobretudo uma (re)construção do passado no presente.
Contribuiu também com o debate que distingue Memória e História.
Outra contribuição importante para a discussão foi a de Pierre Nora
que elaborou o conceito "lugares de memória" e iniciou uma discussão
nos seus estudos sobre como os grupos sociais e os países na atualidade
mudaram sua relação com o passado.2 Na acepção de Nora, esses lugares
são construções históricas, onde a memória se ancora, se cristaliza e se
refugia. Michel Polack enriqueceu ainda mais o debate com as discussões
teóricas sobre a memória, 3 sobretudo quando identificou o que nomeou
como os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva:

1 H A L B W A C H S , Maurice. A memória coletiva. S ã o Paulo: Vértice, 1990.

2 N O R A , Pierre. Entre M e m ó r i a e História. A problemática dos lugares. Proj. História, São
Paulo.(IO), dez. 1993. p.7-28.
5 P O L L A C K , Michel. M e m ó r i a c identidade social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol.
5, n. 10, 1992, p. 202.

£Q 1 HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira & Memória e história: interações possíveis '
1 Discussões e Práticas babel Cristina Ferreira dos Reis (Organizadoras)
Sara Oliveira Farias I 61
 E m primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente.
E m segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de
"vividos por tabela", ou seja, acontecimentos vividos pelo gru-
po ou pela coletividadc à qual a pessoa se sente pertencer. São
acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas
que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das
contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou
não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por
tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro
do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. 4
A pesquisa e o debate sobre a memória foi se consolidando de
maneira significativa, alicerçando suas bases teóricas. Assim, a influência
desses autores ajudou a formar gerações e gerações de historiadores no
Brasil, contribuindo para os estudos e as pesquisas de fontes orais e para
a criação de programas de História Oral, como o Centro de Pesquisa
Documental de História Contemporânea - C P D O C , da Fundação Ge-
túlio Vargas, na cidade do Rio de Janeiro, criado na década de 70, com
base em experiências internacionais já bastante consolidadas.
As pesquisas e os estudos com testemunhos de homens e mulheres
ganharam nas últimas décadas do século XX, no Brasil, uma maior visi-
bilidade, depois da criação dos programas em História Oral que, de certa
forma, ajudaram na consolidação de estudos que explorassem as múltiplas
dimensões da memória, alicerçados em bases teóricas e metodológicas
que a associam ao resultado das experiências vivenciadas de homens e
mulheres, cabendo ao pesquisador analisar e, se possível, compreender
o caminho de construção das memórias dos sujeitos.
Os estudos e as pesquisas em história que têm como ponto de
partida os trabalhos com a memória, especialmente aqueles que utilizam
as fontes orais, quase sempre enfatizam o processo complexo de cons-
trução da memória. Analisar/investigar as múltiplas possibilidades deste
processo parece fundamental, sobretudo se levarmos em consideração
que a discussão, anterior aos anos de 1970, sobre a veracidade ou como
queriam os mais ortodoxos sobre a cientificidade da História Oral está
* Idem, ibidem.
I
HISTÓRIA R E G I O N A L E L O C A L
Discussões e Práticas
Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira U
Isabel Cristina Ferreira dos Reis (Organizadoras)
ultrapassada e já foi amplamente debatida em seminários, congressos e
simpósios de história nos últimos trinta anos.
Atualmente, a história nomeada como oral não está restrita a ser
uma "outra" história, mais verdadeira, autêntica, porque estava tratando,
como se dizia anteriormente, com a "história viva". O debate que se pro-
duz hoje sobre a história oral ultrapassou essa perspectiva. Cada vez mais
o que se percebe nestes trabalhos é o uso das fontes orais na produção da
escrita da história, discutindo os aspectos teóricos e metodológicos das
abordagens. O caminho foi longo e muitos contribuíram para o trabalho
com as fontes orais.
E fundamental elencar algumas obras de historiadores que come-
çavam a militar a favor da história oral e que lentamente começavam a
demarcar o território no campo da história, contribuindo para a visibili-
dade dessa nova metodologia, já amplamente utilizada por antropólogos
e educadores, mas que era vista com certa restrição entre os historiadores.
Foi assim que trabalhos como o de Paul Thompson, 5 nos anos de 1960 e
1970, provocaram o debate académico, ao afirmar que a história oral não era
algo recente, era "tão antigo quanto a própria história". 6 Seu foco central é
a discussão e análise do uso de fontes orais pelo historiador, demonstrando
que este procedimento poderia ser perfeitamente compatível com o padrão
académico. Seus estudos foram considerados importantes, principalmente,
por sua contribuição ao método e à teoria da história oral.
No cenário internacional, muitos foram os autores que contri-
buíram, construindo conceitos para tentar explicar o complexo processo
da memória como também métodos de pesquisa para a história oral.
Podem-se destacar os estudos de Alessandro Portelli que defendem e
apresentam o conceito de "memória dividida", 7 discutindo a memória
THOMPSON, Paul. A voz do passado: hisrória oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
5
1992.
6 T H O M P S O N , op. cit, p. 104.
7 P O R T E L L I , Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de
1944): mito, política, luto e senso comum. I n : F E R R E I R A , Marieta de Moraes; A M A D O ,
Janaina (org). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: F G V , 1996.
Memória e história: interações possíveis
Sara Oliveira Farias I 63
coletiva como um campo de disputa e que, ao estudarmos essa memória,
estaríamos lidando com "uma multiplicidade de memórias fragmentadas
e internamente divididas... além de culturalmente mediadas". 8 A expe-
riência internacional, no uso de fontes orais, foi fundamental para que
outros continentes, a exemplo da América Latina, se beneficiassem dos
estudos em curso. Merecem destaque os estudos de Eugenia Meyer 9 que
trabalha permanentemente o uso de novas fontes para uma nova histó-
ria, com destaque para os métodos de pesquisa para a história oral. Para
Meyer, desde a segunda metade do século passado, "um bom número
de aventureiros da história, de forma pontual, gradual, mas nem por
isso menos apaixonada e arriscada, se lançaram à conquista da memória,
com o objetivo de abater o esquecimento [...] E o combate pela história
obrigou-nos a reconhecer na memória um verdadeiro desafio". 1 0 Histo-
riadores como Meyer, Portelli, Pollack e Paul Thompson, entre outros,
influenciaram estudiosos de vários países da América Latina.
No Brasil, deve-se registrar, entre outros, os trabalhos de Marieta
de Moraes Ferreira, Janaina Amado, Verena Alberti, 1 1 pesquisadoras de
um dos principais centros de documentação do país que trabalha com
a metodologia da história oral, C P D O C , contribuindo de modo sig-
nificativo para o desenvolvimento e a difusão de pesquisas com fontes
orais, alicerçando as questões sobre memória e história oral com den-
sidade teórica. Também não se pode deixar de registrar os trabalhos de
• P O R T E L L I , op. cit, p.106.
9 Eugenia Meyer é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de
Filosofia e Letras da Universidade Nacional A u t ó n o m a do México. Foi uma das pioneiras
no desenvolvimento da história oral no continente americano. A contribuição de Eugenia
Meyer está registrada pelos editores da revista do C P D O C Estudos Flistóticos. Ver o artigo
M E Y E R , Eugenia. O fim da memória. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 22, n ° 43,
janeiro junlio de 2009, p. 31-44.
10 M E Y E R . op. cit.33.
11 Esses s ã o alguns dos nomes sclecionados entre muitos historiadores e estudiosos que contri-
b u í r a m para a difusão de programas, pesquisas e estudos com a metodologia da história oral.
Devido aos limites do artigo restringimos nossa análise nos autores citados. Ver F E R R E I R A ,
Marieta de Moraes; A M A D O , Janaina (org) Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro:
F G V , 1996. A L B E R T I , Verena. História oral: a experiência do C P D O C . R i o de Janeiro,
FGV, 1990.
r / 1 HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira &
O* I Discussões e Práticas Isabel Cristina Ferreira dos Reis (Organizadoras)
José Carlos Sebe Bom Mehy com seus estudos sobre a sistematização da
metodologia utilizada, os significados da pesquisa em história oral, além
de ter ampliado os debates sobre como abordar a memória. 1 2 Em outra
vertente teórica, merecem registro os estudos de Antonio Montenegro
que compreende e analisa o uso das fontes orais apenas como uma forma
de produzir uma fonte para o trabalho do historiador, centralizando so-
bretudo as implicações teóricas e metodológicas da escrita da história. 1 3
Estes e muitos outros contribuíram e continuam contribuindo para a
consolidação e divulgação das pesquisas em história com o uso das fontes
orais no Brasil. Os trabalhos mais recentes em história oral, pelo menos
em sua maioria, consolidam a posição de que esta é uma metodologia
de trabalho bastante utilizada e respeitada e não "outra" história, mais
verdadeira, mais viva. O historiador cada vez mais procura trabalhar com
os mais variados tipos de fontes, procurando entrecruzá-las c tecendo as
tramas das narrativas que constrói.
Histórias possíveis
Durante o período de 2003 a 2007, desenvolvi um projeto de
pesquisa que tinha entre outros objetivos analisar os variados signifi-
cados das relações entre trabalhadores e uma empresa multinacional,
a Jacobina Mineração e Comércio S/A (anteriormente nomeada como
Morro Velho), durante o período de 1980 a 1998, na cidade de Jacobina,
município do estado da Bahia. 1 4
Os fios que engendraram esta história me conduziram a inves-
tigar como foram construídas essas relações, focalizando, sobretudo, os
significados da prática do trabalho de perfurar rochas para extração do
12 Ver B O M M E I H Y , J. C . S., Manual de história oral. 5. ed.. São Paulo: Loyola, 2005; B O M
M E I H Y , José Carlos Sebe; H O L A N D A . Fabíola. História oral. S ã o Paulo: Contexto, 2007.
, J M O N T E N E G R O , Antonio Torres. História oral e memória: a cultura popular revisitada. 3.
ed., S ã o Paulo: Contexto, 2001. Ver t a m b é m M O N T E N E G R O , Antonio. História, método-
logia. memória. São Paulo: Contexto, 2010.
14 F A R I A S , Sara Oliveira. Enredos e tramas nas minas de ouro de Jacobina. Recife: E d . Universitária
U F P E , 2008.
Memória e história: interações possíveis
Sara Oliveira Farias ! 65
minério e as relações de força construídas pela mineradora. Destas rela-
ções, pode-se tentar compreender como muitos trabalhadores contraíram
uma doença letal e sem cura: a silicose. Classificada pela Organização
Internacional do Trabalho ( O I T ) como doença ocupacional, adquirida
no ambiente de trabalho, decorrente da exposição agressiva a agentes
químicos como gases e poeira. Cientificamente é uma fibrose pulmonar
produzida pela inalação de poeira. É uma das pneumoconioses de maior
prevalência no Brasil. Em 1971, passa a ser definida como acúmulo de
poeiras nos pulmões e a reação tecidual à sua presença.
Na pesquisa, os relatos orais de memória foram fundamentais para
analisar as variadas experiências desses indivíduos com o trabalho que con-
duzia à doença. A temática dessa pesquisa associava trabalho, saúde, direito
e memória, fabricando uma narrativa histórica envolvente e dolorosa.
O convívio com a silicose afetou de muitas maneiras a vida dos
trabalhadores das minas e suas famílias. Em um primeiro momento, a
desconfiança e, posteriormente, a confirmação da doença significaram
modificações, muitas vezes abruptas no curso da vida, promovendo
também alterações no cotidiano daquelas famílias. "Ao se tornar incapaz
para a atividade laborativa, o mineiro, portador de silicose, muitas vezes
desenvolveu u m sentimento de impotência diante da vida, tomando
consciência de que o trabalho realizado, durante longos anos na empresa
Morro Velho, o expulsara do mundo nomeado produtivo". 1
Os relatos orais de memória permeados de emoção, dor e tam-
bém sentimento de impotência diante da nova condição de doente
foram significativos. Através deles foi possível reconstruir esse passado,
compreendendo através dos variados discursos produzidos, como se re-
conheceram nessas relações laborativas, como tomaram conhecimento
sobre a silicose e suas reações, como registraram na memória esse período
de suas vidas, como apreenderam e instalaram os sentidos do histórico e
do social construídos nas práticas cotidianas, principalmente, como os
revelaram nas suas narrativas, nas suas histórias.
1 5 F A R I A S , O p . cir, p. 179.
r r 1 HISTÓRIA R E G I O N A L E L O C A L Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira Sc
OO | Discussões e Práticas Isabel Cristina Ferreira dos Reis (Organizadoras)
As narrativas construídas, tomando por base as práticas cotidia-
nas dos trabalhadores, revelaram múltiplos sentimentos, muitas vezes
contraditórios, mas vivenciados em um período crucial de suas vidas,
marcadas por ambiguidades e tensões nas relações construídas entre os
portadores de silicose, suas famílias, o sindicato e a empresa. Os atores
sociais, que vivenciaram a experiência de ter contraído silicose no am-
biente laborativo, instituem uma história para explicar seu passado e
seu presente. A temporalidade revelada nas narrativas de memória dos
mineiros foi marcada pelos significados que atribuem a determinadas ex-
periências e não por um tempo linear, cronológico. O tempo reconstruído
foi compreendido como tempo humano, com base nas experiências de
trabalhadores que viveram intensamente o trabalho na lavoura em áreas
rurais de Jacobina e também em outras localidades da Bahia e do Brasil.
Buscaram e acreditaram numa vida melhor, construíram e perseguiram
o ideal de um outro tipo de trabalho, talvez menos árduo e associado a
algum tipo de reconhecimento social. O emprego na mineração Morro
Velho poderia significar em parte a conquista de um sonho, a realização de
um projeto de vida. Acostumados com o trabalho da roça, não hesitaram
em aceitar a missão de furar rochas abaixo do solo. Nessa perspectiva,
estas histórias permitem compreender alguns traços da dimensão "da
invenção da experiência humana" dos trabalhadores da mineração. 1 6
Nessa perspectiva, percebe-se que u m dos caminhos possíveis
para a escrita dessa história foi a análise das práticas culturais de homens
e mulheres que vivenciaram a experiência da silicose, mas este trato
metodológico só foi possível "quando as memórias se constituíram em
elementos para a construção de narrativas, para isso foi preciso compre-
ender seus caminhos percorridos, seu lugar de produção". 1 7
O trabalho de fabricação de narrativas é fundamental no ofício
do historiador, por isso é preciso traçar seus percursos, seguir a trilha
16 R I C O E U R , Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994, p. 15, (t. 1); G U I M A R Ã E S
N E T O , Regina B. Cidades da mineração: memória e práticas culturais. Mato Grosso na pri-
meira metade do século X X . C u i a b á . Carlini &Caniato. E d U F M T , 2006, p. 56.
17 F A R I A S , op. cit, p. 21.
Memória e história: interações possíveis
Sara Oliveira Farias
de muitos atalhos, permeados de bifurcações, obstáculos como a lacuna
das fontes, a experiência cotidiana da pesquisa muitas vezes diferente da
forma como esta foi concebida, enfim, uma longa trajetória que precisa
ser o tempo todo redimensionada.
O trabalho com as fontes orais requer também procedimentos que
são fundamentais na operação historiográfica. Em Jacobina, deparei-me
com narrativas fascinantes daquelas pessoas que contavam suas experi-
ências vivenciadas. Isto foi fundamental porque permitiu:
1) analisar a condição de produção dos relatos. Saber quem é seu
depoente. De onde ele fala. E u m dos aspectos metodológicos que se
deve levar em consideração. Não se pode ir a campo de forma ingénua,
acreditando que aquele relato é a verdade única, mas lembrando que o
relato é a "verdade" do depoente;
2) compreender os múltiplos caminhos trilhados pelo depoente,
suas escolhas para interpretar a própria vida e a dos outros. Porque narra
daquela forma, os silêncios contidos na narrativa, os receios de falar, a es-
colha do léxico, as emoções que quase sempre vem à tona. Enfim, captar
os variados aspectos de como os indivíduos vivenciaram determinadas
situações.
Nessa perspectiva, o relato oral pode ser considerado "um texto
onde se inscrevem desejos, reproduzem-se modelos, apreendem-se fugas
[...] u m texto articulador de discursos". 18 Na pesquisa sobre as práticas
do trabalho nas minas de ouro de Jacobina, esses relatos (re)significam
constantemente o passado no presente e apontaram a construção da tensa
e desigual relação social entre os trabalhadores e a mineradora.
A temática da pesquisa que focalizava esta relação social do
trabalho conduzia a um campo minado. Como tratar de questões que
produziam uma memória permeada de muita dor? Como fazer o depo-
ente reatualizar seu passado naquele presente? Questões fundamentais no
trato com fontes orais que abordam uma temática delicada e complexa.
Foi preciso um esforço constante, além de uma interação profunda
entre entrevistadora/ entrevistado. Só a partir da confiança estabelecida
" G U I M A R Ã E S N E T O , Regina Beatriz. O p . cit, p. 47.
r 1 HISTÓRIA R E G I O N A L E L O C A L Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira &
Oo | Discussões e Práticas Isabel Cristina Ferreira dos Reis (Organizadoras)
entre ambos e um desejo profundo de narrar aquelas histórias é que foi
possível traçar um verdadeiro mosaico das relações entre trabalhadores/
viúvas (mulheres dos mineiros), a empresa multinacional e outros atores
sociais envolvidos nos enredos que teciam aquela história.
História e trabalho em Jacobina: uma história regional?
A pesquisa que selecionou os acontecimentos, as fontes escri-
tas, orais e os procedimentos teóricos metodológicos tramou uma das
histórias possíveis sobre trabalhadores, mineração e doença na cidade
de Jacobina. Alguns nomeiam tais histórias que não se desenrolam nos
centros metropolitanos do Brasil de história regional. Diferente deles,
prefiro compreender a história sobre trabalho e mineração como mais
uma das histórias possíveis sobre esta temática. Prefiro o termo história,
porque o que se produz nos mais variados estados da federação, nos mais
diversos lugares, são histórias.
A nomeação de uma História Regional está circunscrita ao perí-
odo dos anos de 1960 e 1970, a partir da crise dos paradigmas. Anterior
a esse período, sobretudo nos anos de 1950, havia os grupos de trabalho
do Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek que era o Grupo de
Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste - G T D N , com enfoque
no regional (Nordeste aí incluído).
Analisando a formação deste conceito, percebem-se as redes de
interesses políticos, as estratégias discursivas de pensar a região como algo
natural, dado. A região é um discurso da geografia como nos lembrou
Michel Foucault. Segundo ele, o conceito de região muito se aproxima do
discurso estratégico (militar). Antes de remeter à geografia, encaminharia
para uma noção fiscal, administrativa, militar. 1 9
19 F O U C A U L T , Michel. Sobre a geografia. In: Microfisica do poder. 16. ed., Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979. p. 157.
Memória e história: interações possíveis
Sara Oliveira Farias ! 69
 Nessa linha teórica de inspiração, segue o historiador Durval
Muniz Albuquerque Jr. afirmando que a região é uma construção. 2 0
Esta tese é a que melhor traduz as opções teóricas e metodológicas
que inspiram as pesquisas que realizo. Pensar um determinado lugar e
um determinado objeto de história é pensar, sobretudo, que estes são
resultados de interesses, de relações de força, de jogos. Os historiadores
deveriam, portanto, questionar o próprio conceito de região "e a teia de
poder que a instituiu", 2 1 tentando compreender historicamente como
foram elaborados os discursos sobre este ou aquele conceito. Interessa-
nos saber como a história regional se constituiu, só desta forma estaremos
próximos de compreender a escrita da história. Segundo Albuquerque,
a história regional "não faz o questionamento do lugar de produção do
saber historiográfico. Os historiadores que aceitam participar da divisão
entre história nacional (História do Brasil) e história regional (História
do Nordeste)", 2 1 estabelecendo lugares hierarquizados, reproduzem
as relações desiguais de poder entre as diferentes áreas do país. Ao se
colocarem como historiadores regionais, reconhecem sua incapacidade
de fazer História do Brasil. Nesse sentido, as histórias sobre as cidades e
localidades do estado da Bahia e do Brasil são sobretudo histórias. O que
nós, historiadores, temos como dever de ofício é analisar historicamente
como se constitui nosso objeto de estudo. Talvez um caminho metodo-
lógico pertinente seja o de realizar uma microanálise, que se fundamente
na redução da escala de observação,
[...] procedimento analítico aplicável em qualquer lugar, in-
dependentemente das dimensões do objeto investigado e na
microanálise, com estudo intensivo das fontes, fundamentando-
se no princípio de que a observação microscópica pode revelar
fãtores não observados previamente em outras proporções. Tal
procedimento propõe o estudo de comunidades locais como
objetos de sistemas de pequena escala, podendo usar as categorias
2 0 A L B U Q U E R Q U E Jr. Durval Muniz dc. A invenção do nordeste e outras artes. Recife: F J N /
Massangana. S ã o Paulo: Cortez, 1999, p. 25.
21 A L B U Q U E R Q U E , op. cit, p. 28.
1 HISTÓRIA R E G I O N A L E L O C A L Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira U
I" I Discussões e Práticas Isabel Cristina Ferreira dos Reis (Organizadora»)
espaciais maiores para revelar as conexões entre comunidades de
uma região, regiões de um país e assim por diante". 2 2
E preciso reconhecer que uma realidade social não é a mesma,
depende sempre de como o historiador analisa ou, como afirma Jacques
Revel, depende "da escala de observação em que escolhemos nos situar". 2 3
Escolhendo trilhar os caminhos das microanálises como "as estratégias
individuais, as trajetórias biográficas [...] nem por isso se tornam menos
importantes", 2 4 mas, simplesmente, construídos e pensados de maneira
diferente. Sempre é interessante lembrar que a história é incompleta e
parcial e que lançamos apenas um foco de luz sobre determinado acon-
tecimento, sobre determinado lugar. A escrita da história é realizada por
operações complexas que requerem por parte do historiador, compe-
tência analítica das fontes e sua hábil capacidade de transformar maços
de documentos, relatos e discursos em narrativas repletas de tramas, de
artimanhas e de estratégias dos mais variados atores-personagens.
N o que diz respeito às múltiplas histórias sobre trabalho, mine-
ração e doença nas minas de ouro da cidade de Jacobina, o enfoque foi
construído a partir das práticas cotidianas dos indivíduos que vivenciaram
a experiência da silicose, fazendo emergir depoimentos "que compõem
o enredo da história, repleto de imbricações, ligações e armações. Dessa
forma, procurou-se percorrer algumas das linhas que engendram a trama
histórica sobre a mineração em Jacobina, encontrando nesse caminho,
diferentes trilhas e muitos atalhos". 2 5 É através desse fazer histórico que
se pode construir múltiplas formas de compreensão não somente sobre
silicose, trabalho, mas, sobretudo, sobre os mais variados temas que
despertem a atenção e o interesse do historiador.
A reflexão constante e incessante do historiador em relação ao
seu ofício e à sua prática, vinculada às necessidades e às inquietações do
2 2 A L B U Q U E R Q U E , op cit. p. 29.
2 3 N E V E S , Erivaldo Fagundes. História regionale locai fragmentação e recomposição da histó-
ria na crise da modernidade. Feira de Santana: U E F S , Salvador Arcádia, 2002, p. 47.
24 R E V E L , Jacques (org). Jogos de escalar, a experiência da microanálise. Rio dc Janeiro: F G V ,
1998. p. 13.
2 5 F A R I A S , op. cit. p. 257.
Memoria e história: interações passíveis I
Sara Oliveira Farias
i 71
presente que constroem a história, vinculada aos diálogos e às interações
^nfov o tocai' e a i^eaiovia/: foaj^fâvia e fóvideMJÚaá da,
possíveis que a operação historiográfica exige. No diálogo e nas interações
possíveis entre memória e história, entre métodos e fontes, é possível /iMfoia AocieUna *Jjva&il.
pensar sobre o fazer histórico na contemporaneidade e refletir sobre qual
ou quais histórias se pretende produzir. Wellington Castellucci Júnior

Um início de conversa

0m 1989/90, a Revista Brasileira de História publicou um

importante artigo do gabaritado historiador britânico Raphael Samuel,
intitulado "História local e história oral". 1 Vinte anos nos separam
dessa importante publicação e nos mostra a pertinência desse simpósio
que ora realizamos no Campus V, da Universidade do Estado da Bahia,
promovido pelo Programa de Pós Graduação em História Regional e
Local. Creio que hoje estamos afinados com as bases lançadas pela Nova
Esquerda Britânica, a qual apontava, já nos anos cinquenta, uma nova
perspectiva historiográfica, valorizando, sobretudo, as açóes humanas
como o principal objeto de análise do historiador.
Quero, inicialmente, começar por dizer que não foi fácil a incor-
poração das novas influências advindas de escolas europeias, a exemplo
não só das contribuições da Nova Esquerda Britânica, como também
a dos annales e a da Micro-história italiana nos meios universitários
brasileiros. Lembro-me que, na época da minha graduação, por volta
•
dos anos 1990, alguns professores utilizavam um livro publicado - de
maneira muito apressada, pelo conceituado historiador Ciro Flamarion
•
Cardoso, denominado Ensaios racionalistas, como suporte "teórico-
científico-metodológico" (perdoem-me pelo excesso de adjetivos!) para se
contrapor ao que eles qualificavam de "novas tendências irracionalistas,

1 S A M U E L , Raphael. História locale história oral. In: Revista Brasileira de História, ANPUH,
S ã o Paulo, Vol. 9, n» 19, p. 219-243, Setembro de 1989/Feverciro dc 1990.

Ana Maria Carvalho dos Santos Oliveira & Entre o local e o regional: trajetória e tendências da histótia social no Brasil I
1 HISTÓRIA R E G I O N A L E L O C A L
Discussões e Práticas Isabel Cristina Ferreira dos Reis (Organizadoras) Wellington Castellucci Júnior i 73