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Linguística1
Fernanda Mussalim2
A linguagem é algo que faz parte da vida humana, mas nem sempre foi objeto de
reflexão. Apenas à proporção que as sociedades foram se tornando mais complexas,
subdividindo-se em estratos e classes sociais, e organizando-se a partir de esferas de
atividades humanas cada vez mais específicas, é que os homens passaram a focalizar
com atenção o fenômeno linguístico3.
O linguista brasileiro Joaquim Mattoso Câmara Jr., em seu livro História da Linguística
(1975), aponta sete fatores sociais e culturais que despertaram a humanidade para a
reflexão em torno da linguagem. Cada um desses fatores, por sua vez, desencadeou
diferentes estudos da linguagem.
O segundo fator que, de acordo com Câmara Jr., despertou a humanidade para a
reflexão em torno da linguagem foi o contato de uma dada sociedade com
comunidades estrangeiras que falavam outras línguas. Esse contato – hostil ou não –
exigiu dos falantes envolvidos um esforço pela busca de uma compreensão
linguística, que se desenvolveu a partir de comparações sistemáticas entre as línguas
postas em relação nesse intercâmbio linguístico. Ao estudo decorrente dessas
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MUSSALIM, Fernanda. Linguística I. Curitiba: IESDE Brasil S/A, 2008, p. 17-21.
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Professora da Universidade Federal de Uberlândia. Graduação e Pós-Graduação realizada na
UNICAMP.
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A invenção da escrita, por exemplo, característica de sociedades mais complexas, fez com que, na
tentativa de reduzir os sons
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condições de intercâmbio, o autor chamou de Estudo da Língua Estrangeira.
O conceito de sociedade humana como fenômeno histórico, com base no qual todas
as manifestações culturais das sociedades podem ser tomadas como objetos
passíveis de um estudo histórico, é o sexto fator que propiciará o surgimento de um
novo tipo de estudo da linguagem, que Mattoso Câmara Jr. Classifica como o Estudo
Histórico da Linguagem. Nessa perspectiva, a linguagem é focalizada como um
acontecimento histórico, visto que a história de seu desenvolvimento é reconstruída a
partir de inúmeras relações estabelecidas entre fatos linguísticos que se sucedem ao
longo de uma linha no tempo.
Entretanto, como nos aponta Câmara Jr., todo fato social (como a linguagem, por
exemplo), além de ser um acontecimento histórico, também possui uma função social
atual. A esse estudo (o sétimo tipo apontado pelo autor), que focaliza a função da
linguagem na comunicação social, bem como os meios pelos quais ela preenche
aquela função, Mattoso chama de Estudo Descritivo da Linguagem.
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Estudos da linguagem X Linguística: em pauta os critérios de cientificidade
Toda esta classificação proposta por Câmara Jr., e exposta acima, tem por objetivos
delimitar o campo da Linguística frente aos estudos da linguagem em geral, isto é,
separar os estudos científicos da linguagem dos estudos não-científicos. Para
Mattoso, somente os estudos decorrentes dos fatores 6 e 7 – o Estudo Histórico da
Linguagem e o Estudo Descritivo da Linguagem – constituem o âmago da ciência da
linguagem ou Linguística, visto que “em ambos tomamos a linguagem como um traço
cultural da sociedade, ou explicando sua origem e desenvolvimento através do tempo
ou o seu papel e meio de funcionamento real na sociedade” (CÂMARA JR., 1975, p.
19-20; grifo nosso).
Claro que “O Estudo do Certo e Errado não é ciência. Nada mais é que uma
prática do comportamento linguítico. O Estudo da Língua Estrangeira apresenta
aspectos científicos na medida em que se baseia na observação e na
comparação objetivas. Mas ainda não é ciência no sentido próprio do termo,
uma vez que não apresenta o verdadeiro significado dos contrastes que
descobre e não desenvolve um método científico de focalizar a sua matéria. O
mesmo não [sic] se pode dizer do ‘Estudo Filológico da Linguagem’”.
Considerando as colocações feitas por Câmara Jr., é possível perceber que o autor
elenca alguns critérios que separam o estudo científico do não-científico.
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Observar e comparar de maneira objetiva um fenômeno linguístico faz parte do
processo de descrição, próprio do fazer científico, mas não é suficiente para
caracterizá-lo enquanto tal. É nesse sentido que Câmara Jr. afirma que “O Estudo da
Língua Estrangeira apresenta alguns aspectos científicos”. Mas para se configurar em
um estudo científico propriamente dito é necessário, além disso, apresentar o
verdadeiro significado dos contrastes que descobre – exigência relacionada ao
caráter explanatório da ciência – e desenvolver um método científico que focalize o
objeto estudado.
Com base nessa classificação é que Mattoso Câmara Jr. afirma que uma história da
Linguística deveria concentrar sua atenção na Europa no século XIX (onde e quando
se desenvolveram os estudos históricos) e do século XX (quando se fortaleceram o
que o autor chama de estudos descritivos da linguagem), bem como em outros países
não-europeus que assimilaram os principais traços e tendências do pensamento
científico dominante4.
O pensamento científico dominante ao qual se refere Câmara Jr. diz respeito ao que
hegemonicamente é considerado ciência no século XIX e, pelo menos, até meados do
século XX. De acordo com esse paradigma, as explicações dadas pela ciência –
diferentemente, por exemplo, das explicações dadas pelo senso comum – deveriam
ser sistemáticas, controláveis pela observação, de modo a possibilitarem conclusões
gerais, isto é, que não valem apenas para os casos observados, mas para todos os
que eles se assemelham. Além disso, a concepção do que é ciência nessa época
sustenta-se sobre uma forte recusa à subjetividade, visto que se aspira à objetividade
científica, que garantiria, em princípio, que as conclusões de uma teoria ou pesquisa
pudessem ser verificadas por qualquer outro membro competente da comunidade
científica. Para ser objetiva e precisa, a ciência teria, pois, que se dispor de uma
linguagem rigorosa, uma metalinguagem específica, a partir da qual definiria não
somente conceitos, mas também procedimentos de análise. Tais procedimentos de
análise configurariam um método que, se aplicado, garantiria o controle do
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Apesar desse recorte no tempo e no espaço. Mattoso esclarece que a Linguística não teria evoluído
sem as experiências da pré-l
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conhecimento produzido pela ciência. Conforme nos apontam Aranha e Martins (2003,
p. 158):
Nessa busca pela cientificidade, cada área da ciência teria que delimitar um campo de
pesquisa e procedimentos de atuação específicos que garantissem a sua
especificidade, isto é, que possibilitassem a definição de qual ou quais o(s) setor(es)
da realidade seria(m) privilegiado(s) enquanto objeto(s) de estudo(s): grosso modo, a
Biologia, por exemplo, privilegiaria o estudo dos seres vivos; a Física (ou pelo menos
certas regiões da Física), o movimento dos corpos e assim por diante.
ü CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. História de Linguística. São Paulo: Vozes, 1975.
ü ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria helena Pires. Filosofando:
introdução à filosofia. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2003.
O Curso de Linguística Geral, publicado originariamente em 1916, foi organizado por dois colegas [sic]
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