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A descolonização africana não terá sido apenas um

SAIR DA acidente tumultuoso, um estilhaço à superfície, o sinal


de um futuro a subtrair-se! No presente ensaio crítico
GRANBE NOITE Achillc Mbcmbe demonstra que - para lá das crises e
da destruição que muito afectaram o continente desde
ENSAIO SOBRE A ÁFRICA DESCOLONIZADA as independéncws - novas sociedades emergem, con-
cretizando a sua smtese a partir da reconstituição, da
distribuição déls d1lerenç.1'> entre si e os outros e da
Achille Mbembe circulação dos homens e das cultu ras. Esse universo
crioulo, cuia tr<una 1ntnncada e invariável oscila 1nces-
santcme11te etllre uma forma e outra, const1tu1 a b.ise
de um..i mockrn1d~1de que o autor qualifica de "afrn-
politana»

Obviamente que e llL'U:'5~ario desencriptar es~~ª'


mutações africanas. (:unfrnntando-as também com as
evoluções d.ts sodctl~1dL's pós-coloniais europci<is -
designadamente a francesa, que descolonizou sem se
auto-dcscolunin1r - para acabar definitivamente 1..om
a raça, a fronteira e a violênci<i que continuam arraiga-
das nos imagin<irios de ambas .lS margens do Mediter-
rân~o. Eis a condição p<lra que o passado comum se
torne, fina lmente, num passado partilhado.

Escrito num tom que tem tanto de moderado quant<'


de incandescente e mui tas vezes <le poético, o presen -
te ensaio constitui um Lextu essencial do pensamentl}
pós-colomal em língua trancesa.
Copyright C 2013, La Découvert
Titulo Original· Sortir de la grande nuit. Essal sur rAfrique décolonísée
Q desta edição
Edições Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto
Título: Sair da Grande Noite. Ensaio sobre a África descolonizada
SAIR DA
Autor. Achille Mbembe
Colecção· Reler Afraca
GRANDE NOITE
Coordenador da Colecção. V1clor Ka1ibanga ENSAIO SOBRE A ÁFRICA DESCOLONIZADA
Tradução; Narrativa Traçada
Revisão do Texto: Sílvia Neto
Desjgn e Paginação: Mérc1a Pires
Impressão e Acabamento· Caíllesa. Soluções Gráficas
ISBN: 978·989-8655·31·8
Achille Mbeinbe
Depósito Legal. 373106/14

Abril de 2014
,.
A presente publicação é uma coedição das Edições Pedago e das Edições Mulemba
da Faculdad~ de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto, Luanda, Angola.

Nenhuma parte desta publicação pode ser transmitida ou reproduzlda por qualquer
melo ou forma sem a autorização prévia dos editores. Todos os direitos desta edição
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~edições pedago
Colecção Reler África
Nota de Apresentação

Uma das lacunas do mercado editorial dos países de língua oficial


portuguesa é a ausência. em língua portuguesa, de obras de referência
de autores africanos e africanistas. que fize ram cátedra no domínio
dos chamados "estudos africanos" nas academias dos países anglófo-
nos e francófonos.
A Colecção Reler África pretende colmatar essa lacuna. Trata-se de
um;i colecção especializada em temáticas africanas no domínio das
Ciências Sociais e Humanas. Ao inaugurar esta colecção, as Edições
Mulemba da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho
Neto (Luanda - Angola) e as Edições Pedago (Mangualde - Portugal)
pretendem criar um espaço de debate, a lteridade e reflexão crítica
sobre o continente africano.
A colecção publicará obras, textos e artigos compilados de reconheci-
dos autores africanos e africanistas, que contribuam para a compreen-
são e a reinterpretação do continente africano.
Além de apresentar uma visão endógena (de dentro) do continente,
a colecção está aberta à comunidade científica internacional que tem o
continente africano como objecto da sua pesquisa.
Publicar e divulgar conhecimentos e saberes sobre África e provenien-
tes de África é, assim, um desafio que a colecção abraça. de contribuir
para a construção de uma nova epistemologia e uma nova hermenêu-
tica dos estudos africanos no espaço lusófono, livre de estereótipos e
de um olhar fo lclórico e exótico. Ao abraçar esse desafio. a colecção
pretende ser uma galeria de conhecimentos e saberes de África e
sobre África. que interpele os leitores e investigadores especializados
a reler África para compreendê-la e reinterpretá-la.

Luanda, 19 de Agosto de 2012.

Victor Kajibanga
(Coordenador da Colecção Reler África)
Ao amigo Paul Gilroy, precursor do imaginário.
E em memória de dois pensadores do futuro ilimitado,
Frantz Fanon ejean-Marc Éla.
«Aqueles que assentam cada vez mais longe do lugar onde nasce-
ram, aqueles que guiam o seu barco para outras margens, sabem
cada vez melhor o curso das coisas ilegíveis; e subindo os rios até à
sua nascente, entre as verdes aparências, são invadidos subitamente
por esse brilho austero onde toda a língua perde as suas armas.»

Saint-John Perse, Neiges, IV, in Exil


Índice
Prólogo lJ Colonl:th~mi> e d<>4!nç.as pó~tumas d<! memórb 131

Introdução 19. 30 V.
O melo século 19 África : a casa sem chaves 141. 163
Retomar o sen1ldo pnm1tlvo da dcscolonir.ação 20 Antigas o novas cartogrnllas 142
Para onde vamos nós? 23 O long(nquo e a longa disllncl.l 146
Democratliação e lntem>clonaliuiçio 27 lnfonnahzaçlo da econom1.i e d1rracçãodo pollllco 154
Novas mob1bzaçeks 29 Militarismo c> lum~m·r3d1c,.ll<mo 160

1. VI.
A partir do crilnlo de um m orto. Trajectó rlas de uma vida 3 1. '48 Clrculaçao dos mundos: a e>CJ>erfência aírlcana 165. 190
Fr3gmento de memória J.? Recomposlções sociais proíund~s 165
A refeição nigfc.l lS Lut..s sexuilis e novos esúlos de vida 1n
A força do simulacro 38 AíropolitanlS11IO 178
Afastamento 40 PasSM a outra coisa 184
N• orla do séaJlo 42
Spllogo 1.91 . t 94
IJ.
Abertura do mundo<' asren.são em humanidade <19. 77 Entrl'vlsta com At'.hUle Mbc>mbe 195. 200
Do mundo enqu.lnto cena htst6rlca 49
Haiti e a Libéria: duas falh..s 53
Raça e descolonização do saber 57
Nascimento de um pens •men10 mundo 64
A dupla estrutura de Incapacidade e de lgnorãncla 73

Ili.
Sociedade rrao~ proxlmldadc> sem reciprocidade 79 99
O decUnlode uma naç!lo cristali~da 81
Llquldor o Impensado da rap 89
Para uma p~rtllha de singularld.tdes e uma éUca do reencontro 96

IV.
O lonco Inverno Imp erial franch 101. 139
Suspen$Jo e discordtncla dos tempos 102
Convulsões de expressões plurais li O
Querelas bizantinas 11 7
Desejo de provlnclali~çào 122
Colo líalismo e doenças póstumas da memória 131
Prólogo
V.
África: a casa sem chaves 141. 163
Antigas e novas cartografias 142
O longínquo e a longa dislância 146 Há meio século, a maior parte da humanidade vivia sob o jugo colonial,
lnformalllação da economia e difracção do político 154 uma forma particularmente primitiva da supremacia racial. A sua
Militarismo e lumpem-radicalismo 160 ltbertação constitui um momento-chave na his tória da nossa moderni-
dade. O facto de esse acontecimento não ter deixado a sua marca no
VI. espírito filosófico do nosso tempo, não é, em si, um enigma. Nem to-
Circulação dos mundos: a experiência africana 165. 190 dos os crimes produzem necessariamente coisas sagradas. De entre
Recomposições sociais profundas 165 vários crimes da história, apenas remanesceu desonra e profanação,
Lutas sexuais e novos estilos de vida 172 a esplêndida esterilidade de uma existência atrofiada, em suma, a im-
Afropolitanismo 178 possibilidade de «existir em comunidade» e de voltar a percorrer os
Passar a outra coisa 184 caminhos da humanidade. Poder-se-á afirmar que a colonização foi
precisamente o espectáculo por excelência da comunidade impossível
Epílogo t 91. 194 - uma convulsão tetânica e simultaneamente um sopro vão? O presen-
te ensaio só aborda indirectamente essa questão, pelo que a história
Entrevista com Acbille Mbembe 195. 200 integral e detalhada ainda está por relatar.
O seu objecto central é a vaga de descolonizações africanas do século
XX. Não se trata de recontar a história, nem de fazer sociologia - e ainda
menos de estabelecer tipologia. Esse trabalho já foi fe ito e. salvo alguns
detalhes, pouco há a acrescentar.• Tratar-se-á ainda menos de fazer o
balanço das independências. A descolonização é um acontecimento cujo
significado político essencial residiu na vontade activa de comunidade
- como outros falavam a ntigamente de vontade de poder. Essa vontade
de comunidade era o outro nome daquilo que se poderia designar por
vontade de viver. Visava a realização de uma obra partilhada: suster-se
a si própria e constituir uma herança. Nessa época de desilusões, mar-
cada pelo cinismo e pela frivolidade onde tudo tem o mesmo valor, tais
palavras só poderiam ser a lvo de zombaria. Todavia, na época, muitos
estavam dispostos a arriscar a sua vida pela afi rmação de tais ideais
que não constituíam pretextos para se esquivarem ao presente ou à
acção. Pelo contrário, como uma seta, serviam para apontar para o fu-
turo e impor, pela práxis, uma nova redistribuição da linguagem e uma

l. Ler a síntese de Prasenjlt Duara (dír:), Decolonlzatlon. Perspect1ves Now and Then. Routledge.
Londres, 2004.

Prólogo 13
nova lógica do sentido e da vida. Numa tentativa de se erigir sobre os para infindáveis futuros que eram, por defü1ição, contingentes. As
escombros da descolonização, a sua comunidade não era entendida trajectórias seguidas pelas nações recém-libertadas foram, em pa rte,
nem como um destino nem como uma necessidade. Pensava-se que consequência das lutas internas nas sociedades consideradas.• Essas
desmembrando a relação colonial, o nome perdido voltaria a assomar lutas foram cinzeladas segundo modelos sociais antigos e estruturas
à superfície. A relação entre aquilo que tinha sido, aquilo que acabava económicas herdadas da descolonização, em técnicas e práticas de
de acontecer e aquilo que estaria por vir, inverter-se-ia, tornando pos- governação dos novos regimes pós-coloniais. Na maior parte dos ca-
sível a ma nifestação de um poder próprio de génese, uma capacidade sos, conseguiram implementar uma forma de dominação que alguns
própria de articulação entre uma diferença e uma força positiva. qualificam de «dominação sem hegemonia 5 ».
A vontade de comunidade era reforçada pela vontade de saber e pelo O ensaio é encetado com um registo deliberadamente narrativo e
desejo de singularidade e originalidade. Em larga medida, o discur- autobiográfico (capítulo 1). Aqui se relata como começou o momento
so anticolo nial abraçara o postulado da modernidade e os ideais de pós-colonial propriamente dito, para muitos, com uma experiência de
progresso. mesmo onde esboçava uma crítica, independentemente de descentralização. Em vez de agir como uma marca onusta que força o
ser explíci la (o caso de Gandhi) ou não. Essa crítica era animada pela ex-colonizado a pensar para e por si próprio, e em vez de ser o p alco
busca de um futuro que não estava escrito de antemão; que associ- de uma génese de sentido renovada, a descolonização - sobretudo nos
aria tradições recebidas ou herdadas, interpretação, experimentação pontos onde foi concedida - afigurou-se um encontro forçado cons igo
e criação do novo, sendo essencial partir desse mundo em direção a própria: não resultando, de todo, de um desej0 profundo de liberda de,
outros mundos possíveis. No cerne da análise jazia a ideia segundo a algo que o sujeito se permite e que se torna a o rigem necessária da
qual a mode rnidade ocidental fora imperfeita, incompleta e inacabada. moral e da política, mas uma exterioridade, uma enxertia aparente-
A pretensão ocidental de epilogar a linguagem e as formas segundo as mente desprovida de qualquer capacidade de metamorfose. De segui-
quais o acontecimento humano podia surgir, ou ainda de monopoli- da, propõe-se um percurso duplo. Os capítulos 3 e 4 tratam daquilo
zar a própria ideia de futuro, não era mais do que uma ficção. O novo que se designa devidamente de (<ocupante sem lugar», tal como acon-
mundo pós-colonial não estava condenado a imitar e reproduzir tece actualmente em França. Enquanto forma e figura, acto e relação a
aquilo que tinha sido feito noutro lugar. 2 Dado que ·a história se produz descolonização foi, em muitos aspectos, uma co-produção de colonos
sempre de modo singular, a política do futuro - serh a qual não haveria e colonizados. Em conjunto, embora em diferentes posições, forjaram
descolonização plena - exigiria que fossem inventadas novas imagens um passado. Mas dispor de um passado em comum não significa neces-
do pensamento e isso só seria possível se as mesmas se sujeitassem sariamente partilhá-lo. Estudam-se os paradoxos da «pós-descolonização»,
a uma longa aprendizagem das marcas e modalidades da sua inter- numa antiga potência colonial que descolonizou sem se auto-descolo-
secção com a experiência, o tempo próprio dos lugares da vida. 3 nizar (capítulo 3). As disjunções e ramificações dessa realização são
A miscigenação das realidades que prevalece hoje em dia invalidará alvo de atenção no presente, especialmente por conta de uma aparente
tais proposições e desprovê-las-á da sua densidade histórica, ou até incapacidade para narrar uma história comum partindo de um pas-
da sua actualidade? A descolonização - contanto que um conceito sado comum (capítulo 4).
tão aberto possa efectivamente constituir uma marca - não terá pas- Os capítulos 2 e 5 versam sobre o que se considera o paradoxo cen-
sado de um fantasma sem densidade? Em última análise, não terá tral da descolonização: desdobramento estéril e reiteração seca, por um
sido apenas um acidente tumultuoso, um estilhaço à superfície, uma lado, e proliferação indefinida, por outro (termos tomados de emprés-
pequena fenda externa, o sinal de um futuro a subtrair-se? Será a du- timo a Gilles Deleuze6). Porque considerando uma certa experiência
alidade colonização/descolonização dotada de um único sentido? En- africana, um dos processos envolvidos no rescaldo da descolonização
quanto fenómenos históricos, uma não se reflectirá na outra, uma não terá sido a destruição, tanto vagarosa quanto caótica, da forma Estado
implicará a outra, como duas faces de um mesmo espelho? Estas são e das instituições herdadas da colonização. A história dessa destruição
algumas das questões que o presente ensaio procura analisar. Segundo ainda não foi inteiramente assimilada na sua singularidade. Agora,
uma das suas teses, a descolonização inaugurou a era da bifurcação
4. jean-François Bayart, l'État en Afrique, Fayard, Paris. 2006 (1989).
5. Ranajít Guha, Domínance without Hegemony, Harvard University Press, Cambridge. 1998 e Par·
2. Dilip P. Gaonkar (dir.) Altemative Modernitíes, Duke University Press. Durham, 2001. tha Chatterjee, The Nation and its Fragments, Princeton Uníversity Press, Princeton, 1993.
3. Fablen ~boussí Boulaga, la Crise du Muntu, Présence africaíne, París. 1977. 6. Gilles Deleuze, logique du sens, Minult, Paris, 1969, p. 44.

4 A(hl!~ Mbembe Sair da Grande Noite. EMaio sobr~ a África dn<oloniuda Prólogo 15
navegando mais ou menos livres, as novas nações independentes - O presente ensaio é fruto de longas conversas com Françoise Verges.
sendo, na verdade, enxertias heterogéneas de fragmentos aparente- Retoma, por vezes, verbatim, reflexões desenvolvidas no decurso
mente incompativeis e conglomerados de sociedades de longa duração da última década, abrangendo simultaneamente África, França e os
- retomaram o seu curso, assumindo todos os riscos. Essa imbricação Estados Unidos sob a forma de artigos publicados em revistas (Le
- sucessão de dramas, rupturas inesperadas, declínios anunciados, Débat, Esprit, Cahiers d'études africaines, Le Monde diplomatique),
sobre um fundo de uma astenia formidável da vontade - prossegue, apontamentos de aulas, seminários e oficinas, ou contribu cos na
pelo que a mudança ganha contornos de uma repetição, quanto mais imprensa africana e outros meios de comunicação internacionais.
longe a forma relampeja sem consequências, mais ainda a aparência Gostaria de manifestar o meu reconhecimento àqueles que suscita·
se dissolve e mergulha no desconhecido e no imprevisto - a revolução ram, incentivaram, fomentaram ou acolheram essas reflexões: Pierre
impossível. Nora, Olivier Mongin, Jean-Louis Schlegel, Michel Agier, Didier Fas·
No entanto, a vontade de vida persiste. Um enorme trabalho de re- sin, Georges Nivat, Pascal Blanchard, Nicolas Bancel, Annalisa Oboe,
construção está em curso, a qualquer preço, no continente africano. Bogumil Jewsiewicki, Thomas Blom Hansen, Arjun Appadurai, Dilip
Os seus custos humanos são elevados, chegando mesmo a afectar a Gaonkar, Jean Comaroff, John Comaroff, Peter Geschiere. David Theo
estrutura do pensamento. Paralelamente, à crise pós-colonial, opera-se Goldberg, Laurent Dubois, Célestin Monga, Vara El-Ghadban, Anne-
uma reconversão do espírito. A destruição e a reconstrução estão tão Cécile Robert, Alain Mabanckou e lan Baucom.
intimamente ligadas que, isolando-se uma da outra, se tornam pro- A obra foi escrita durante a minha longa estadia no Witwatersrand
cessos incompreensíveis. A par do mundo das ruínas e daquilo que se
designou de «Casa sem chaves» (capítulo 5), esboça-se um continente ... lnstitute for Social and Economic Research (WISER). em Joanesbur-
go, onde pude conta r com o apoio dos meus colegas Deborah Posei.
africano que desenvolve a sua síntese sobre o modo da disjunção e John Hyslop, Pamila Gupta, lrma Duplessis e Sarah Nuttall. Benefi-
da redistribuição das diferenças. O futuro dessa África-em-movimento ciei também das críticas, no âmbito do Johannesburg Workshop in
assentara na força dos seus paradoxos e da sua matéria indócil (capí- Theory and Criticism (JWTC), dinamizadas por Kelly Gillespie, Julia
tulo 6). É uma África cuja organização social e estrutura espacial estão Hornberger, Leigh-Ann Naidoo, Eric Worby, Tawana Kupe e Sue van
doravante descentradas; que ruma simultaneamente para o sentido Zyl. François Geze, Béatrice Didiot, Pascale li tis e Johanna Bourgault,
duplo do passado e do futuro; cujos processos éspirituais são uma das Éditions La Oécouverte, acompanharam brilhantemente o pro-
associação de secularização da consciência, imanência radical (preo- cesso de preparação do livro e não hesitaram em partilhar as suas
cupação com este mundo e com o momento presente) e de imersão intuições.
no divino sem mediação aparente, cujas línguas e sons passam a ser
profundamente criouJos; que atribui uma importância primordial à
experimentação; na qual germinam imagens e práticas de existência
surpreendentemente pós-modernas.
Essa Áfnca-gleba fará nascer algo de fecundo, um latifúndio de tra-
balho da matéria e das coisas, capaz de suscitar um universo infinito,
extenso e heterogéneo, o universo das pluraJidades e do lato. Esse
novo-mundo-africano, cuja trama, complexa e móbil, oscila incessante-
mente de uma forma para outra e afasta todas as línguas e sonoridades
dado que já não se prende a qualquer língua, nem na sua forma mais
pura; esse corpo em movimento, que nunca está no devido lugar, cujo
centro se desloca por toda a parte; este corpo que se move na grande
máquina do mundo recebeu um nome - afropolitanismo - a África do
Sul como laboratório privilegiado (capítulo 6).

Joanesburgo, 4 de Agosto de 2010

16 A<Nlle Mbfombe S.lr do Gnondo Noito. EnMlo sob<e • Afrka dH<olonluda Prólogo 17
Introdução

O meio século
O colonialismo esleve longe de ser um rto de Ariadne. Uma estátu.i
colossal perante a qual. temerosas ou foscinadas, as multidões se
vinham prostrar. o colonialismo paliava, na realidade, um Imenso
abl~mo. Como uma carapaça de melai CT'3vcjada de esplêndidas jóias.
também roçava o Animal e a lmundlcle'. Braseiro em fogo lento dis·
pt>rsando por toda a parte os seus anéis de fumo, procurava firmar-se
simultaneamente como rito e acontecimento; como palavra gesto e
sabedona, conto e mato, homacldío e acidente. É. em parte. graças à
sua fant1stíca capacidade de prollferaçlo e de metamorfose que faz
estremecer o presente daqueles que escravizou. Infiltrando-se até nos
seus sonhos. preenchendo os seus pesadelos malS medonhos. antes de
lhes arrebatar lamentos ;itruzes•. Por sua vez. a colonização não passou
de uma tecnologia ou de um simples dispositivo. não passou de am·
blguldades>. Foi também um complexo. uma trama de certezas. umas
mais ilusórias do que outras: a força do falso. Foi certamente um com·
plexo nómada, assumindo tDmbém, em muitos aspecms. um caracter
fixo e Imóvel. Habituada a vencer sem ter razão. exigiu aos colonizados
que mudassem as suas razões de viver e, como se não bastasse, que
muda~sem também der.não - seres em mutação perpétua•. E foi assim
que a Coisa e a sua representação su,cltaram a reslmncla daqueles
que vlvlam sob o seu 1ugo, provocando simultaneamente insubmissão,
medo e sedução e semeando esparsamente algumas insu11:êndas.
A presente obra dedia-se precisamente a essa descolonlz.ação,
enquanto experiência de eme11:@ncia e Insurreição. Trata-se de uma
Interrogação sobre a comunidade descolonizada. Nas condições da

1 Yombo~L#Dew#rdl-.1.e~t ~ pluo...._ P•n>. 2001


Z.Ach!Re Mbemlw', Lo Nau:SGnaW.....,.udu"''- s.d.Qt'""1"0n. lfl0-1960' h&StOlrrdau._.,.
d• M tvi•n ""colOflff!., KartlwM. hnl. l 996.
3 CorollM 1Jkfn>, lmpffl'1/ -.r,.,.. rr.. IJnWW Sloty o( Bnlll'"'s Culog 1t1 K<Jty<t, Henry HOI~
,..<Mi1orqut', ZOOS, e D•vld AndcrHn. llut.orln ofdw Ho'Wftl Brltoln's Dlttl Wor ln ~nyo oftd

-
•h• Cnd o{limpl.... W•ldenf•lí. NIColJrO<I. L.ondro1. 2005
4 .Cht"fkh H•nddou t<.aint. Li4W".ntureombWul. 10/ll. 200.J.-

..
época, a Insurreição consistiu, cm grande pnrte, numa redistribuição uma das vitórias da sua consciência' •· Fanon não propunha apenas
das linguagens, não sendo apenas um caso no qual foi necessáno que não se •seguisse• essa Europa; propunha •largá-la• porque a sua
recorrer às armas. Presos como se rstavessem sob o fogo de Paráclito, trama tinha chegado o fim. Afirmava que tinha chegado o momento
a diversos níveis, os colonizados, davam por si a falar ~ri.1'> llngu.is, de passar a •ourra coisa•. Dai a necessidade de retomar a •quest.'lo do
rm vez de uma única Nesse st>nlldo, a descolonização repn"çl'nta, na homem•. De que forma? Marchando, «todo o tempo. de noite e de dia,
h1stóna da nossa modernidade, um grJnde momento de separação r na companhia do homem, de todos os homens"». Era isso que fazia da
bifurcação das linguagens. De agorn em diante, não há um orador nem comunidadl.' de~colonlzada uma comunidade em movimento, uma co-
mediador unlcos. Não há um mestre som contramestre. NJo hâ unlvo- munidade de millwntcs, uma enorme caravana universal. Para outros,
ddadr Cada um pode exprimir· se na sua própria língua e os desuna- essa vasta companhia universal não poderia concretl7.ar-se através de
t.irlos dessdS palavr.is podem recebê-las na sua. Depo1~ de dcsawdos urn afasi.imento da Europa, mas sim dedic;1ndo-l he um olhar atento e
oç nós, restar<i apenas uma Imensa linha. Para aqueles que se liber- compassivo, rest<Jurnndo o su.plemento de humanidade que tlnha per·
taram, descoloni:r.ar nunca s1gmílcou reproduzir. num momento dife- d ido•.
rente, as Imagens da Coisa ou dos seus substitutos. O desenlace pro- Além da complla~o dos detalhes históricos. é necessário que ~e
curava sempre fechar o parêntesis dl' um mundo composto por duas '13iba retomar as 1cl.'pções primitivas do acontec:1menro que re~1dem
categonas de homens: por um lado, os su1e1tos que agem, por outro, na própna matéria da experiência colonial, na língua, no verbo, nos es·
os objectos sobre os quais se intervém Visava uma met<lmorfose radi- cri tos, nos cânticos. nos actos e na consciência dos seus protagonist;Js,
cal da relaçilo. Os anrigos colonizados criariam então o seu próprio e na história das Instituições de que se dotaram, tal como na memória
tempo, construindo o tempo do mundo No terrlço das suas tradições que forjaram desses acontecimentos".~ necessário compreender que
e dos seus Imaginários, e arreigado> dtl seu longo passado, poderiam,
no futuro, reproduiír-se na sua pr6prla história que, por sua vez. era
a llustraçlo manifesta da história de toda a humanidade. A partir de
·j a sublevação (nome;;tdomente, o armada), organizada para pôr termo à
ascendência colonlal e à lel da raça que a sustentava, jamais teria sido
possível sem a produção consciente de um poder estranho por p;irte
então, reconhecer-se-ia o Acontecimento como se tudo recomeçasse. dos Insurgentes - subllme Ilusão ou poder onlrlco? - de uma potência
O poder da niação opor-se-ia ao logo da repetição imutável e às forças vigorosa e incendl~rla, de uma estrutura de afectos construída com
que, no tempo da servidão, tentaram esgotar ou encemir a continul· calculismo e cólera, fé e oportunismo, d~jo~ e exaltação, messianismo,
dade, ou seja, aquilo que Franu Fanon referia, numa linsuagem pro- e mesmo de loucura, e sem uma tradução desse fogo em linguagem e
metlana, como a salda da •grande noite• anterior à vida-, enquanto em práxis: a práxis da eclosão, do nascimento, da emergência". O hori -
Almé Césalre evocava o desefo •de um sol mais brilhante e de estrelas zonte traduzia-se pela inversão dos antigos vínculos de sujeição e pela
mais puras>... ocupação de um novo lugar no tempo e no estrutura do mundo. E caso
ao longo dessa escalada até aos confins se Impusesse um cruzamento
com a morte, eswrla fora de questão morrer como um rato ou outro
Retomar o sentido primitivo da descolonização animal doméstico, preso numa armadllha na capoeira, nas cavalariças,
no estábulo, sob o martelo ou, simplesmentr, à queima-roupa '!
Sair da grande noite anterior à vida requeria uma iniciativa consci- Para muitos agentes da época. tratava·se deOnltívamente de um
ente da •provlncialha.ção da Europa». Segundo Fanon, era necessário combate maniquefHa". Interpretação da vida e preparação para a
voltar as costas a essa Europa que •não cessa de falar do homem,
massacrando-o por toda a parte onde o encontram, em todas as es- 7. fnno. F•noa. La Oomnb d• lo ....,,.. op. '"" p. 302
quinas das suas ruas. em todos os cantos do mundo•. Relativamente 11. /bNI. pp 303·304
9 Uooold ~rS.n&hor. Chontfd'oml>tt. S.ulL Porú. 19~6t wry WILDER. •Ratt, R..<0n. lrn·
::i ess::i Europa que nunca deixou de falar do homem, o autor acrl.'scen- p;isse~ cn..1.-e Fanon 1nd tho l.egMy ofE~ncip;;1tlon1t, Rodlcol llncory RtvHrW, n• 90. Outono
tava, •Sabemos hoje com que sofrimentos a humanidade pagou cada d•2004.
lO.Acblllt Mbern~. •Pouvolr du moru tt lanpgcs dnvtvl.nU-•, Polidqw ofrlc.am•. n• 2Z. 1982
11. Davtd l.ln..GunsoffdRoinf Cut!rltlasandSpirlc NHlurru ltt ZJmbabw, Uniwnhyoftal1foml•
P...... - l e y, 198S
12-Sobrr o lf'tn-. de t.lrN morte .-tt'lll hvre.menta. W Nelson M<1nd«-La. t.or., Kblk ro Fiwdrll'l't
S Ff•nti:F•non.tCJDornnês'd~J.1.KrW, t..Dkouwn..,hns.2003(1968) f" 10\ e..
um. e.-. a Lo!>d..... t99s.
6 A...WC4sow.L<ir..,.,._,.,,......,,__r..1hnur4.hrt.. t970.p 1s 13.HoChl Minh.aow. '"'tbColothO...,._ Waldmllello. Vono Lond....,2007.

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morte, a luta pela descolonização ganhava multas vezes contornos Reposição da autoridade aqui, multipartidarlsmo administrativo
de uma procriação poética. Para os heróis da luta - como relembra acolá, fracos progressos passiveis de '11.'r revertidos ali e, um pouco por
a cançiio popular - exigia o seu próprio dcspo1amento, uma incrível toda a parte, nlveis extremamente elev<1dos de violência social, e mõ·
capacidade de ascese e, em alguns casos. o frémito da embriaguez. A mo situações de entumedmento. de coníllto latente ou de guerra aberta.
colonização tinha agrilhoado uma parte tmportante do mundo com sobre um fundo de uma economia de extracção que - em Unha dlrecta
uma Imensa rede de dependência e supremacia Em re<.posta, o com· com a lógica mercantilista colonial - continua a suscitar a predação:
bale iura aniqull.i·la a<<umlu uma escala planetária Movimento de assim se apresenta o panorama. Na verdade, é um turbilhão destruidor.
repotenci.d1zação. íoi imaginado por alguns como um.i celebr.iç;!o da Imponderado ou brusco, no melo de t.,ntos desastres - ao qual acrcs-
libertação universal, uma ascensão do homem ao mais alto grau das Cl.'m apoquentações inútei~. a Improvisação crónica, a ind1Sciplina, a
suas faculdades simbólicas, a começar pelo próprio corpo, meneando dispC"rsão, o desperdlclo e um peso de Indignidade, desprezo e hu·
os seus membros e a sua razão ao ritmo dos cânticos e da dança - riso milhação ainda mais persistenles do que na época colonial. Na maioria
estridente e supcrabundllnda de vida. Assim SI' conferiu ao combate dos casos, os africanos não dispõem sequer da possibilidade de eleger
antlcoloniallst.i a sua dimensão simultaneamente oninca e estética. livremente os seus dirigentes. Muitos pafse~ conLin uam à mercé de
Cinquenta anos depois, que vestígios, marcas" resquiclos subsistem sátrapas, cujo único ob1cctivo consiste cm ílncar·se ao poder para o
dessa experiência de sublevação, da paixão que a inflamou, dessa ten· resto da sua vida. Logo. a maioria das eleições são viciadas. Presclnde-
tat:iva de passagem do estado de coisa ao estado de sujeito. da von- ·se dos procedimentos mais elementares da concorrência, mas não do
tade de retomar a «quesc.lo do homem»? Haver.:., re.ilmente, algo a conrrolo das prlndpals alavancas da burocracia, da economia e. sobre·
comemorar ou. pelo contrario, é necessário rl'começar? Recomeçar tudo, do exército, da policia e das m1líclas. Dado que quase não existe
o quê, porqu~. como e em que condições? Em que llnguas, culturas a possibilidade de derrubar os governos pelas umas, só é posslvel
e pabvras nova< no caos nebuloso do presente? Se. 1411 como reiterara combater o principio da penrumênda Indefinida no poder através de
Frantz Fanon, a comunidade descoloniutda se deílne pela sua relação homicld10, da revolta ou da sublevação armada Com a exfs~nda de
com o futuro. a experiência de uma nova forma de vida I' uma nova manipulações eleitorais e sucessões d~ pais para filhos vive-se, de fac·
relação com• humanidade". o que redefinira entlo o conteúdo ongí· to, sob chefarias disfarçadas.
nal para o qual deve ser criada uma nova forma7 Se uvermos de em -
preender novamente a extraordinária viagem para um mundo novo.
qual será o saber que a concretizará? Em suma. como dar vida a uma Para onde vamos nós?
mera est:ihua? Ou, visto tratar-se de uma matéria aparentemente inerte
e de um sujeito que se tornou pesado, será necessário deslntegra·la Cinco pesadas tendências circunscrevem o futuro, toldando o hori·
simplesmente? ionte Imediato com um vêu de tempestlldc. A primeira é a ausência
E, decai rido melo béculo, em vez. de uma verdadeira reapropriação de um pensamento democrático que serviria de base a uma verda·
do si mesmo e no lugar da instância fundadora, o que se vê? Um bloco delra alternativa ao modelo predador cm vigor. um pouco por toda a
aparentemente desprovido de vida que tudo repreSl'nta, excepto a parte. A segunda é o retrocesso de qualquer perspectiva de revolução
forma de um corpo vivo e feliz que desvanece sob uma camada dupla social radical no continente. A terceira é a senilidade crescente dos
de Ira e de fétfches. Alguns objectos cintilam no melo de um rio que in· poderes negros. Salvaguardando as devidas proporções, essa situação
verte o seu curso. E no fundo de tudo, estão Jazidas Ilegíveis ainda por evoca os desenvolvimentos que prevaleciam no século XIX. quando,
explorar. Porque está África rasgada e esventr.ada? Porquê essa pleni· incapazes de usar a pressão externa em seu beneflcio, a maioria das
tude esmagadora e esse ruido que se antepõe incessantemente ao su· comunidades políticas se autodestrulu em guerras de sucessão inter-
jeito que parece mergulhá· lo num estoido inominável? E esse furor que mináveis. A quarta é o entumeclmento de fnanjas Inteiras da sociedade
envolve a calma aparente das coisas, que só escapa à sua genealogia e o lrreprlmlvel desejo, de centenas de milhões de pessoas. de viver
muda para se abater vertiginosamente no vauo? Quando se alcançara em qualquer outro lugar do mundo que não o seu - vontade generaltzada
a coisa trabalhada? Entao, para onde vamos7 de fuga, abandono e deserção; renúncia da vida sedentária. na lm·

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posslbilldade da existência de uma residência ou local de descanso.
- - --- Oomnb O.
14 .,.,._""· hnun, La lo rsrnr, op. dt.

..
A estaS dinâmicas estruturais, junta-se outra: a instltucionalização das Essas observações ásperas não significam que, em África. não existe
práticas de extorsão e da predação, convulsões abruptas, Insurreições nenhuma aspiração sã à liberdade e ao bem-estar. É diflcíl a esse de-
intermináveis que. a dado momento, se transformam facilmente na sejo encontrar uma linguagem, práticas efcctivas e, sobretudo, uma
guerra de pilhagem. Esse tipo de lumpen-radicalismo - na verdade, tradução em novas Instituições e uma nova cultura polltica. na qual a
violência sem projecto polltico alternativo - não é envergado apenas luta pelo poder jã não é um jogo de soma zero. Para que a democracia
por «cadetes sociais», de entre os quais as • crianças-soldado" ou os se enraize em África, deve ser apoiada por forças sociais e culturais
«desempregados» dos bairros de lata constituem slmbolos trágicos. organizadas; Instituições e redes resultantes da genialidade, da cria·
Esse tipo de populismo sangrento também é mobilizado, quando ne· tividade e, sobretudo, das lutas diárias das próprias pessoas e das suas
cessá rio, pelas forças sociais, que, tendo colonizado o aparelho de Es· próprias tradições de solidariedade. Mas isso não é suficiente. Tam·
tado. o converteram no ins trumento de enriquecimento de uma class e bém é precíso uma Ideia. da qual África seria a metáfora viva. Por ísso,
ou. simplesmente, num recurso privado. ou ainda numa fonte de açam· rearticulando, por exemplo, a polltlca e o poder à volta da critica das
barcamentos de todos os géneros. Correndo o risco de utilizar o Es· formas de morte ou, mais precisamente. do Imperativo de alimentar
lado para destruir o Estado. a economia e as instituições. essa classe as «reservas de vida», poder-se·la abrir caminho para um novo
está disposta a tudo para conservar o poder. pelo que, aos seus olhos. pensamento da democracia, num continente onde o poder de matar
a política não passa de um modo de conduzir a guerra civil ou a luta permanece mais ou menos ilimitado, e onde a pobre?:a, a doença e os
étnica e racial por outros meios. perigos de todos os tipos tomam a existência incerta e precária. No
Ma.s é no plano cultural e do imaginário que as transformações em fundo, tal pensamento deveria ser uma conjugação de utopia e prag·
curso estt1o m:iis acesas. África deixou de ser um espaço limitado. cuja matismo. Por necessidade, deveria ser um pensamento do que está
localização se pode definir. ou que ocultaria no seu Intimo um segredo para vir, da emergência e da insurreição. Mas essa insurreição deveria
ou um enigma. ou que se possa circunscrever: O continente continua Ir muito além da herança das lutas anticolonialistas e antl·lmperialistas
a ser um lugar porque. para muitos, ninda é um local de passagem ou cujos limites são agora evidentes, no ãmb1to da mundialização e aten·
de transito frequente.~ um lugar que se desenvolve em torno de um dendo ao que se passou desde as Independências.
modelo nómada de transição, de errância ou asilo. A sedentarlzação Entretanto. três factores decisivos atrasam uma democratização do
tende a tomar-se a excepção. Os Estados, onde existe, são nós mais ou continente. Em primeiro lugar; uma certa economia polftica. Em segui·
menos justapostos que se tentam contornar; escalas e locais de pas- da. um certo imaginário do poder. da cultura e da vida. E, por fim, es·
sagem, ou seja, uma cultura da itlnert!ncia - sobretudo para aqueles truturas sociais cujo traço proeminente é a conservação da sua forma
que estiio a caminho de outras paragens. Contudo, quantos obstácu· aparente e das suas antigas máscaras, transformando-as profunda e
los existem agora para ultrapassar; num mundo cercado de tapumes e Incessantemente. Por um lado, a brutalidade das constrlções económi·
cor0ado de muralhas. Para milhões de pessoas como essas, a globalização cas que os palses africanos viveram no último quarto do séc. XX - e
não representa o tempo infinito da circulação. é o tempo das cidades que prosseguiu sob a égide do neoliberalismo - contribuiu para fabri-
fortificadas. campos e arames farpados, cercas e enclaves, fronteiras car uma multidão de «gente sem parte», cuja aparição na cena pública
que se Interpõem e que, cada vez mais, servem de obstáculo ou pedra se efectua cada vez maís sob a forma de tumulto ou. pior. de matança
tumular - a morte desenhada sobre a poeira ou as ondas; onde jaz no em ataques xenófobos ou lutas étnicas, sobretudo, no seguimento de
vazio o corpo--Objecto largado. Agora, África encontra-se maloritari· eleições fraudulentas, no âmbito de protestos contra o custo de vida.
amente povoada por potenciais transeuntes que - confrontados com a ou ainda no contexto das guerras para açambarcamento dos recursos
pilhagem. inúmeras formas de ganância, corrupção e doença. pirataria escassos. Na maioria. desclassificados dos bairros de lata. destituídos
e muitas formas de violação - estão dispostos a deixar a sua terra na· de escolarização, privados de qualquer hipótese de casar ou fundar
tal. na esperança de se reinventarem e de criarem ral?:es noutro lugar. uma famUia, são pessoas que, objectivamente, nada têm a perder e
Alguma coisa está a brotar. borbulhando. violentamente. da roda que que, além disso, do ponto de vista estrutural estão mais ou menos ao
constitui a desagregação das forças vivas do continente, da fuga força· abandono - condição da qual na maioria das vexes só podem escapar
da face à terrível alternativa: ficar ali, em plena seca e correr o risco de recorrendo à migração. à criminalidade e a um sem número de ilegali-
se transformar em simples carne humana ou abalar para outro lugar; dades.

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partir. correr todos os ríscos.

"
t uma dasse de «supérfluos» perante os quais o Estado (onde existe), essa lei é a da extracção e do aç3mbarcamento e, eventualme,nte, do
e o próprio mercado. não sabem como actuar; pessoas que não po- homlddio. Uma estrutura pesada, esmagadora e nodosa, a sua função
dem ser vendidas como escravas, como sucedeu nos primórdios do consist e em estabelecer um laço fúnebre entre a vida e o medo. Ao
capitalismo moderno, nem submetidas a trabalhos forçados, como na tomar a morte pela vida e ao manter ambos os termos unidos num.i
época colonl;il e durante o apartheld. ou deposlt;ad.is em tnstltulçõ~ relaçjo de uoca, tão fnfernal que e quase permanente. pode assim
penitencl.trlas. à semelhança dos Estados Unidos Do ponto de Vista do renovar. discricionariamente, os ciclos predatórios com que cada um
cap1talismo, tal como funciona nessas regiões do mundo. representam enterra. cada vez mais profundamente, a Arrica na região dlonlsfaca a
carne humana sub1ugada à lei do desperdício, da vioU!ncia e da doen- que Bataille chamava a «despesa•
ça, entttgues ao evangelismo norte-americano, às cruzadas islâmicas
e a todos os tipos de fenómenos de feitiçana e clJr1v1dência. Por outro
lado. a brutalidade das constrições económicas também desproveu o Democratização e internacionalização
projecto democratico de todo o conteúdo, reduzlndo·o a uma simples
form;ilidadc um nrtlffclo sem sentido e um ritual privado de eílc3- A descolonização de África nJo foi meramente uma questão afri-
c1a simbólica. Acrescendo ainda a tudo Isso, como se sugeria ancerlor- cana. Tanto antes. quanto durante a Guerra Fría, foi uma questão in-
niente. a lncapacítlade de abandonar o ciclo de oxlracção e predação ll'rnaclonal Multas potônclas externas ~6 a aceitaram a contragosto.
que, segundo a história, antecede a colonli<1çao. Esses faccores, anali- Algumas opuseram uma recusa, por vezes militante, ao Imperativo
sados no seu todo, Influenciam stgniflcatlvamcnre os contornos do de uma descolonizaçllo a par da democratlzaçllo ou, como aconteceu
combate polhJco em muitos palses pós-coloniais na Aírlca Austral, um grau slgnlílcatlvo de desracialização. No seu
A esses dados fundamentais junta-se o acontecimento que terá sido domln10, a Fra.n ça das décadas d!' 1950 e l960 recorreu, sempre que
a grande difracçlo social, que surge no Inicio da década de 1980. Essa neces~rio, à corrupção e ao homlcldlo •. Ainda hoje é reconhecida,
clifrac?o da sociedade suscitou, um pouco por toda a parte. uma ln- com ou sem raz.ão, pelo -;eu apolo mais tena-i. retorcido e indefectlvel
formaHução das relações sociais e económicas, uma fragmentação .ls sacraptas mais corruptas do continente e precisamente aos regimes
sem precedences em maténa de regras e normas, e um processo de que voltaram as costas à causa africana. Existem duas razões para tal·
desinstítudonallzação que não poupou nem o próprio Estado. Provo- por um lado as condições históricas segundo as quais se efectuaram a
cou Igualmente um grande movimento de deserçao por parte de mui- descolonização e o regime das capltações que cimentaram os acordos
tos agentes sociais, abrindo caminho a novas formas de luta social - na desiguais «de cooperação e de defesa•, celebrados na década de 1960;
base, uma luta sem piedade pela sobrevivência centrada no acesso aos por outro, a volatilidade revolucionária. a Impotência e a desorganiza-
recursos essenciais; no topo, a corrida à privatlzaç.'lo. Actualmente, o ção das forças sociais Internas. Os acordos secretos - nos quais deler-
bairro de lata tornou-se o ponto nevrálgico dessas novas formas de mlnadas cláusulas versavam sobre o direito de propriedade da terra.
«secessões» sem revolução. altercações aparentemente anónimas. de do ~ubsolo e do espaço aéreo das antigas colónias - não tinham por
tipo molecular e celular. e que combinam elementos da lura de classes, objectlvo desfazer o laço colonial, mas contratualizá-lo e subcontratá-lo
da luta de raças. da luta étnica, de mllenarismos religiosos e das lutas aos procuradores lndlgenas. Longe de serem meros brinquedos nru;
de feitiçaria. m<ios de um prestidigitador. os úlumos dispunham de uma relativa au-
Quanto ao resto, a fraqueza das oposições é conhecida. Poder e tonomia da qual souberam tirar partido, a ponto de terem constitufdo,
oposição operam em função de um breve perfodo, marcado pelo im- um século mais tarde, uma verdadeira •classe• com tentáculos agora
proviso, acordos pontuais e Informais, compromissos e comprome- transnactonaJS.
timentos diversos, Imperativos de conquista Imediata do poder ou a Talvez os Estados Unidos não se oponham actlV311lente à democra-
necessidade de o conservar a todo o custo. As alianças sJo constante- tização de África. O cinismo, a hlpoaisla e a lnstrumentallzaçio são
mente urdidas e desfeitas. Mas. acima de tudo. África continua a ser largamente suficientes - ao passo que, pondo de parte moralismo,
uma região do mundo onde o poder, de qualquer tipo, sob a chancela evangelismo e anti-intelectualismo, multas lnstlrulções privadas ameri-
do sátrapa. se reveste automaticamente de Imunidade. Com efeito, as canas oferecem um apolo multiforme li consolidação das sociedades
coisas s:lo simples. O poderio é uma lei em si mesma. Em muitos casos,
civis aíricanas. Um facto crucial do próximo século será a presença recul"Sos naturais de um pais. É óbvio que agentes pnvados, locais ou
da China - potl!nda sem Ideia - em África. Se não for considerada internacionais poderiam Igualmente ser vls;idos por tais disposições
um contrapeso será, ao menos, um expediente na troca desigual. tào É nesse nfvel de profundidade bístôrlca e estratégica que Importa
C3racterlst1ca das rel<lçóes que o continente africano mantém com as agora considerar a q uestão d3 descolom7.aç'1o. da democrati7.aç3o e
potencias ocidencus e as Instituições financeiras internacionais. Por do progresso económico em África. Não há dúvida de que a democr.i
enquanto, a relação com a China não foge ao modelo da economia de tlMçllo de África é essencialmente uma ques tão africana que passa.
extracção - modelo <1ue somado à pred.1çi\o, constitui a base materi- evidentemente, pela constituição de forças sociais capazes de a fazer
..1 das tiranias negras. Por conseguinte, n3o é de esperar que .i China nascer. apoiar e defender. Mas é igualmente um assunto 1nrernac1onal.
venha a constituir uma grande ajuda nos combates a travar em nome
da dcmocrana. A influência de outra pott!ncla cm asccn~o. a lnd1a.
e por ora, 1rrts6na n'1o obstante a presença na África Orlem.li e Aus- Novas mobilizações
tral de uma diáspora solidamente estabelecida. Quanto à Afnca do Sul.
esta n~o pode, por si ,ó, promover a democracia em África, pois não No meio século que se segue. uma parte d:i runç:lo dos intelectuais,
dispõe de meios, vont:1dt> ou criatividade. Além disso, primeiramente dos Indivíduos do mundo dil cultura e da socled;ide civil afric.rnu con -
Lerá de consolidar a sua democracia antes de pensar em promove-la sist ir.\ justamente em, por um lado, contribuir para a corHlltu1çào
no estrangeiro. dessas forças partindo da base e, por outro, em mternaciondllt:ar a
Face à ausenda de forças sociais inlemu capazes de impor. se ne- •questlo de África», em linha com os esforços dos últimos anos para
ces~rlo pela força. uma transfonnação radical das relações soclaiS e partilhar a segurança e o direito internacional e que assistiram ao apa-
económicas, é necessJriO Imaginar outras vias para um possível renas- recimento de instâncias Jurfdicas S\Jpranac1onais. Sendo igualmente
cimento. Serão longas e sinuosas. Todavia, as linhas de pressa.o mul- necess~rlo superar a conccpçlo tradicional d:i sociedade civil, herda-
ti plicam-se. ainda que se f.'lçam acompanhar de formas pcrvel"Sas de da direct<tmente da história das democracias capitalistas. Por um lado,
reterrltorlalização 1•. Multo em breve, será necessário abandonar essa é preciso contemplar o factor objectlvo da multiplicidade social - mul-
alternat.wa pervel"Sa fugir ou perecer. Dever-se-ia chegar a uma espé- tiplicidade das Identidades. dependê.nelas. autoridades e normas - e.
cie de •New Deal• continental, negociado colectlvamenre pelos dlvel"Sos a partir dai, Imaginar novas formas de luta, mobilização e liderança_
Estados africanos e pelas potênaas tnternacionais - um •New Oeal• Por outro lado. a necesstd.. de da criação de uma maiS-valia intelectual
em prol da democracia e do progresso económico que vtria a com· nunca tinha sido tão premente. Essa mais-valia deve ser reinvestida
pletar e encerrar definitivamente o caplrulo da descolonização. MatS num projecto de transformação radical do continente. A sua criação
de um século após a famosa Conferência de Berlim, que Inaugurou a não será uma iniciativa exclusiva do Estado, será a nova missão das so-
partilha de África, esse «New Oeal» seri3 complementado por um pré- ciedades civis africanas. Para concr etizá-la, será necessário abandonar
mio económico para a reconstrução do continente. Mas seria também a lógica do humanitarismo a todo o custo - ou seja, da urgência e das
dotado de uma vertente 1urid1a e penal, de mecanismos de sanção, e necessidades imediatas - que, até :io momento, colonizou o debate em
até de exdusão, cuia Implementação seria forçosamente mullllateral torno de África. Enquanto não llver sido abolida a lógica da extracção e
e que poderia ir busc:.ir a sua ínsplraç<lo às ~nsformaçõe~ rec~ntes da predação que caracteriza a economia política das matérias-primas
do d1re1to internacional Isso Implicaria que. no caso dos regimes cul· em África - e, com ela. os modos existentes de exploração das rlqut'-
pados de crimes contra os seus povo:., esses pudessem ser depostos us do subsolo africano - poucos progressos se registarão O tipo de
legitimamente pela força e que os autores desses crimes fossem per· capitalismo que Incrementa essa lógica alia maravilhosamente mer-
seguidos pela justiça penal lntemacíonal. A p rópria noção de «crhnes cantilismo, agitações políticas. humanitarismo e militarismo. As suas
contra a Humanld3de» deveria ser obfecto de uma lnterpretaç!lo alar- prernbsas já eram pen:eptlvcls na época colonial, com o regime das
gada que inclulssc n3o só os massacres e as violações graves dos direitos sociedades concessionárias. Ora, tudo aquilo de que necessita para
humanos. mas também os actos graves de corrupção e pilhagem dos funcionar ~ de enclaves fortificados, cumplicidades frequentemente
cnminosas. no selo das sociedades locais, do m!mmo possível de Es-
tado e dn Indiferença internacional

_....
A descolonização sem a democracia é uma forma de reapropriação
de si mesmo, flctlcla e multo lastimável Mas, se os Africanos almejam
a democracia, então compclc·lhcs Imaginar os seus contornos e as·
sumir responsabilidades. Ninguém o f.lrá cm seu lugar. Também não
a conseguirão obter a crédito. Ter.lo de recorrer a novas redes de soh·
dariedade internacional. a uma grande coligação moral superior aos
Estados que reúna todos aqueles que acredit<im que. sem a sua parcela
Africana. além de o nosso mundo ser ainda mais pobre em espírito
e humanidade. a sua segurança cnconlrar-sc·á. mais do que nunca.
gravemente hipotecada
SAIR DA 1.
GRANDE NOITE A partir do crânio de um morto.
Trajectórias de uma vida
ENSAIO SOBRE A ÁFRICA DESCOLONIZADA
•(.~)deve pensar-se a noite do mundo como um destino, que acon·
tece aquém do pess1m1smo e do opUmismo. Talvez se aproxime

Achille Mbembe agora a noite do mundo da sua me1a-no1te. Talvez a era do mundo se
torne por completo um tempo Indigente. Por outro lado, pode ser que
nlo, ulvcz ainda nlo, sempre ;iinda não, apesar da necessidade inco-
mensur.lvel, apesar de todos os sofrimentos, apesar da miséria sem
nome. apesar da carência incessante de descanso e de paz. apesar da
confus.lo crescente.» Assim discorre Heidegger num teXto intitulado
•Par:i quí! poetas'?•. ao longo do qual analisa e desenvolve a elegia de
A partir do crlnlo de um morto. Trajec:tórlaa de uma vida 31""8 tlõlderlln. •Pão e Vinho•, procurando especialmente dar uma resposta
Fragmento de memória 32 à seguinte questJo : •E para quê poetas em tempo indigente?• Uma vez
A refeiçao trágica 35 que o •tempo indigente,. se afigura longo, Heidegger considera que
A força do simulacro 38 mesmo o horror. •tomado como c:;:iusa possível de uma viragem. não é
capa7' de nada enquanto nao se proporcionar uma viragem nos mor-
Afastamento 40
tais,.. Ora, prossegue o íllósofo, •essa viragem só se dará quando os
Na orla do século 42 monals encontrarem a sua própria essência». E concluí: «Ser poeta
em tempo Indigente significa: cantar. tendo em atenção o tempo dos
deuses foragidos», partir da •css6ncia Indigente da era•, não obstante
o facto de 1<quanto mais a noite do mundo se aproxima da s ua mela·
-noite, tanto mais hegemónico é o domínio da Indiferença, de tal modo
que subrral a sua essência,., e os seus traços se desvanecem.
Mas também não se pode obscurecer o indivíduo celebrando a bele-
u do mal e as mitologldS que procuram justamente arregimentar o es·
plrlto. tal como fez o próprio Heidegger na sua referência ao projecto
na7'1. Também é neccss1\rio resistir à cumplicidade por encantamento,
e saber para onde se encaminha o nosso canto. e qual é a sua filiação
no •destino da noite do mundo,..

l M<lrun ll<rtd.,..,. •Pounlool da poê1a». ln lll. CMm.JU'IUf MmlMnr .-pon. Callinard.


l'lrú.1006 (1961)

............"'_..__....,,............_.... _ ,.,
Fragme nto de memória quando os caes começavam a ladrar; ou uma chuva torrencial ou um
exército de fonnlgas selvagens se abatlam sobre a aldeia, lmportunan·
Julho. Naso afortunadamente num dia de Julho, já o mês se aproXi· do o sono da:. galinhas, obrigando os carneiros. as cabras e os cabritos
mav;i do fim, num;i região arncana à qual foi atribuldo, tardiamente, o a abriolar cada vez mais alto, rasgando a e<cundão com relãmpagos
nome de «Camarões•, em homenagem à admiração que se apoderou terrificantes, e f.n.endo a mem6na recuar longe no tempo ate aos dias
dos naveg.-idores portugueses do skulo XV quando, ao .;ub1rem o rio anteriores à c1vllização.
nas cercanias de Douala, se depararam com a presença de uma multi· Lembro-me da escola da mlss3o católica. situada entre a 1gre1a e o
plic1d.ide de crust.keos e baptizaram o local de «Rio dos D!marões•. d1spensâno. não mwto distante do cem1téno por trás das mangueiras
Cresci à sombra dessa região desprovida de nome próprio pois, em e à frente da bananeira, no qual repousavam corpos num numero que
certo sentido. o nome que ostenta é fruto do espanto de um outro - sempre desconheci, sob as pedras tumulares que se assemelhavam a
tratar ·sc á de um equivoco de ordem lexical? Na cercadura de uma das uma Infinidade de túmulos mais ou menos rectiiíneos. mas na reah
vána) norestas do sul, passei muito tempo à sombra de uma aldeia ddde dbpersos no espaço sobre a encosta de uma espécie de colina
cujo nome n3o tem nome - muito tempo à sombra das suas histórias e Junt o ~ qual corria um pequeno rt'gato Por vezes, assomada a tarde
da sua gente da qual ainda preservo a memória, assim como de quem enquanto se consumava a noflc, v..g.irO\d e c~trelada, imaginava es·
faleceu durante a minha .idolescéncia ou pereceu posteriormente na <ia<; sepulturas que vira em pleno dia durante um jogo de futebol doç
minha aus~ncla. dada a minha partida. Ainda sei os seus nomes e con· alunos. Silenciosamente, interrog<wa·mc como poderia alguma vez
sigo ver os seus rostos. Ainda ouço o rufar dos tambores anunciando arqultectar um discurso sobre essas sepulturas, com o seu talhe tão
a passagem de~te ou daquele deste mundo para o outro. Trata-se da ressequido sob a foice do sol, t.lo vlslvel por conta da sua cor ocre,
palavra certa. «passagem•, pois era essa que a minha tnle utilizava essas sepulturas de tal forma envoltas na sua sombra alíndrica que
para evitar pronunciar .a terrível Outra, a •morte•. Tudo Isso vivenciei me Impregnavam de melancolia. tnsteZ<t e piedade, como se, 1á nessa
nessa aldeia. altura. o passado esttvesse perdido, o infinito do céu tolhido, e o fim do
Recordo -me também dos lutos e das exéquias, das histórias que se mundo à espreita.
contavam nessas ocasiões: sobre este ou aquele cuia sombra. num dia Ainda hoje. depois de tantas ouuas marcas, nã.o teço explicações so-
deslumbrnnte, foi avistada nos campos onde essa mesma pessoa cos- brt o como e o porquê do presente texto vertiginoso, refiro-me àquilo
tumava trabalhar. E sobre o menecma de outro que se ergueu das en· que nos atinge a todos e que se design<t de morte, como tudo se tornou
tranhas da terra parn prosseguir com os passeios, coltlr a madeira, tão Indissociável desses dias de traMumãncia. nas paragens da minha
extrair o vinho de palma, visitar a sua casa já calda a noite, refazendo adolescência, e da memória errante que conservei. Sempre me eludiu
assim o caminho sempre inconcluso que, desde tempos Imemoriais, o motivo pelo qual a escuridão da noite - máscara opaca e, no entanto,
é suposto culminar n.t morte e vice·versa, numa e:.pécie de epifania Ulo penetrável - me imbuia, todas as vezes, de um medo lndescrldvel
mágica que enca ndeav:i por completo o meu espirita de medo e de êxtase. com a sua legião de pirilampos sobre os quais se dizia repetidamente
Distingo os túmulos sob o anteparo das habitações, ou na beira da es· que, em cada um, germinava um fantasma, com os seus cânticos lúgu ·
trada, bem como nesse cemitério abandonado, no coração da aldeia. bres de mochos entretidos. conforme nos contavam, a devorar a carne
mesmo diante da concessão do chefe, entre as llrvores e uma ou duas do$ outros. esses câ.nticos de sabor enferru1ado, salgados das corrup
palmeiras denunciando o fardo do tempo, junto dos coqueiros e da ções da felllçarla, essa esp~de delapldaçlo, de exaurlmento perverso
capela, e onde, um dia. o Caterpillar que levava a cabo as obras de re- e desmesurado, que resistia aos destroços do dia e às eras do mundo,
construção da estrada acabou por abrir uma sepultura, desordenando como o crânio das cavernas.
umas velhas ossadas, dispersando-as e arrastando-as pel;i vala, quais Dezembro. Todas as noites, o nevoeiro abatia-se sobre o mato e.
object0s perdidos, atirados à frente dos nossos olhos, como farrapos. chegada a aurora. banhava as veredas, quais navios rebentados, en·
Tamb~m existi:am rituais, designadamente as vigílias que se prolon· curralados na ribanceira. Era o prenúncio do Natal. outra sequência do
gavam por nove noites e, por vezes, mais, pois era costume proteger calendário cristão. dado que, para multa gente dessa aldeia, as lendas
os cadávere~ acabddos de enterrar contra salteadores e vendedores sibilantes do cristianismo se haviam transformado, pelo menos a par·
de ossadas humanas. Eram noites assustadoras - garanto - sobretudo llr da década de 1930, nesse labirinto de todos os possíveis graças ao
qual o pr6prio horiz.onte era recolocado ao alcance do nosso espírito. cada um desses enigmas, mais do que outrora. Ora. esses aspectOs sao
Tam~m havia as Páscoas, antecedidas, anualmente. pelo Domingo de apenas uma parte ínfima. um fragmento de imagens a respeito de um
Ramos e por vias-s<1cras infindáveis· a Quaresma, como é evidente, a passado cujos s1na15 são e.lo numerosos, os resvalamentos tão furtivos.
ornç.. o, a penitência. os dnticos mon6tono~ de Idosas proferindo o que qualquer relato perde necessariamente a sua garantia. e o esqueci-
Stabat Mater a meio da tarde, as catnrJ:e estações. a crucificação e a mento e o não-dito acabam por prevalecer. Cresci nessa região sobre
sepultura, Judas, Pilatos, o Gólgota e a Ressurreição. a qual haveria ainda muito para dizer. Quanto àquilo que me serve de
Não era devoto Porém. o cruclílxo suscitou a minha curiosidade idenud.ide, devo-o em grande parte às minhas vivências nesse pab a
durante um lnrgo período de tempo. Oe íacto, enquanto o homem es- cuja memória me refiro sempre, o mais próximo possível do lugar que
tava pregado na cruz. profundamente abalado pela dor; a sede. o ~ofri­ me viu nd~Cl'r e das suas lnquirtações. Depois, um dia, parti.
mento e a febre - pdo menos assim o 1mag1no - não entendia porque
Cnsto nao estava transfigurado de tanto padecimento. porque o supli-
ciado, su1e1to a essa tonura monstruosa. mantinha os seus sentidos A refeição trágica
lndlterados, porque não sucumbia no seu estremecimento, porque não 1
se prostrava e se entregava,\ lourura, porque, nesse horror supremo, 1 Uma vez que nasci no rescaldo das independl!nclas, fui, em larga me-
n:lo estavam os seus olhos esgazeados e exauridos, porque nao cho- dida. fruto da primeira ldJde do p6s·colonlali~mo - da sua lnílncla
rava, porque não estava 1rreconhedvel e desfigurado, porque emanava e da sua adolescência. Cresci cm África .\ .sombra dos naclonalismos
o seu rosto serenidade" ponto de esboçar um sornso, a ponto de triunrantes. Nessa época. a divida. o ajustamento estrutural, o desem-
em<1nar essa espécie de lu;t mágica que conft>na à sua coroa dt' ~pinhos
e.\ sua Imagem um ar tolo, correndo o risco de fazer da sua mune e do
seu nome epítetos vulgares?
Nfto sabia como lidar com o cristianismo Mé que. multo tompo de-
pois, numa tarde, na bibl ioteca dos padres dominicanos, pe&uel quase
·j prego em massa, a grande corrupção e a grande cnmioahdade, as
rapinas e mesmo as guerras depredatórias praticamente não faziam
parte da vida quotidian:i ou, pelei menos, o seu grau de lnten>idade
não era Igual ao dos dias de hoje. Mais concretamente, no meu país
natal, tratava·se do combate contra o que se designava na époai de
por acaso num livro da autoria de um tc61ogo peruano, Gustavo Gutier- •rebelião• e de •terrorismo».
rez. Intitulado Théologu: de la /1bérotJon'. O autor a1udou-me a repen- Só depois da Segunda Guerra Mundial, surgiu um movimento anti-
sar o cristianismo como memória e linguagem da insubm1Ss30, como colonialista em Douala, a principal cidade do pais, cuja independ~n
narrauva da libertação e ligação a um acontecimento. seia de ordem da lmediata constitula uma das prmcipals reivindicações polft1cas'
simbólica. hiperbólica. mltlca ou hist6nca - a mone e a ressurreição A ideia de liberdade, de outo-constituição e auto-governação tomou
de um homem nascido em Belém e crucHicado pelo poder público no forma rapidamente, propagando-se por todas as c:amadas sociais, pelo
Gólgota. após um calvário espinhoso. Ajudou ·me também a concebê-lo menos, no sul do pais. No ano de 1955, cm virtude do agravamento dd
como um relato cr!ttco dos potentados e das autoridades. uma poética repressão colonlal, o movimento de lndepend@ncia viu-se encurralado
social, um sonho subversivo e uma recordação proséllta. a actUação numa luta annada para a qual não estava preparado. Sofreu uma der-
de uma linguagem (literal e figurada) sobre o sentido da vida Porém, rota mllltarcontra a França que, aquando da descolonização, aproveitou
fez.-me ainda compreender que o além da morte merece ser pensado o ensejo para legar o poder aos seus colaboradores nativos'. Os diri-
enquanto tal, como anterior a qualquer estlncia do mundo histórico. gentes nacionalistas que andavam a monte foram executados. Os seus
No decurso desses anos, assim se aprofundou a existência como restos mortais foram alvo de desonra sendo enterrados funlvamcnte
um horlz.onte de arelG, envolto numa turba de signos tanto efémeros como se fossem salteadores de estrada. Foi o caso de Ruben Um Nyobê
quan to eternos. Desde que me lembro, nunca desejei enlevar os dias cujo ass11SSlnlo prefigurou tantos outros - o de Patrice Lumumba, Amíl-
- que. na altura. não pareciam seguir-se em atropelo-, enterrá-los em car Cabral, Eduardo Mondlane, a extenS<I IISta dos mártires africanos
livros antigos ou mesmo encarcerá-los no tempo que, desde daf. avan-
çou sem cessar. de tal modo que, partindo do pressuposto de que hoje
é um re<:omeço de tudo, me pergunto se re<1lmente tirarei pruvello de J. Rl<Mrd 1_,,i..i..-...,,.,,1,,.."°""lllko•CC>_,,,•.,l<.lnl\N.l'lnl, t986eAchllle Mborn
be, t.o No1no,,c.du "10qvtsdons~Sud<clntff'DUI\. op.c't
2 Cu.mwo Cuti~rrei. 11tlofog# • lo l11Wrvuo"· Wmrn VH••· 8n..-~las, 19? 1 º"
4 Je.iln- Froin,01; 8a)'U1. L'tfot Cam1roun. Prff:tft ~la l'NSP. Pari .. l98S (2.• «lição)
da independência'. Aqueles que tinham enveredado pelo caminho do sozinha, os cânticos de lamentação enquanto se ocupava de uma tarefa
exílío foram, na sua maioria, perseguidos e assassinados, como suce- doméstica. Uma vc1 que Um fora privado de exéquias após a sua morte
deu com F'éllx Moumié. Outros encetaram uma luta armada durante a e o seu enterro decorrera furtivamente no cemitério da missão presbl·
primeira década da Independência, o que culminou na sua detenção. À téria de Éséka, imagino que esses cânticos destinavam-se a acompanhar
sem!!lhança de Osendé Afana•. houve também quem fosse decapitado o seu espírito e proporcionar-lhe um possfvcl descanso, como forma
ou. ral como aconteceu com Emest Ouandié, sujeito a uma execução de compensar as injustiças lnqualificáveis da qual fora vitima apôs o
pública. na sequência de uma mascarada judicial•. seu falecimento. Compreendi. d~de muito cedo, que esses cânticos
Inicialmente, uma insurreição contra o poder colonial, essa luta ar- testemunhavam duas coisas. Por um lado, referiam·se ao luw e ao frente·
mada. que adqulríu os contornos de uma guerra cMI, com a proclama· -a-frente, ao protagonista derradeiro do lamento e da consolação. Por
ção da independência form;il em 1960, foi enfarpelada com o qualifica· outro, assinalavam um acontecimento. um aparecimento no qual, por
tlvo de «terrorismo• pelo nosso governo no senlido de desprovê-la de fim. se propiciou um desaparecimento. Era esse o enigma manifestado
qualquer ripo de signiílcado moral ou político. Assim. o último poderia por Um, ou mais precisamente a parábola, ou ainda o mistério.
suspender a lei, declarar um estado de emergência pem1anente, a fim Foi a minha avó que. por melo des5es cânticos de lamentações, me
de lograr a sua missão atravé.~ de recursos extralegals. Para apagar da iniciou no rasto de um home m desaparecido. cuja memória soterrada
memória da nação os acontecimentos relacionados com a luta pela In- sob os escombros das proibições e da ce nsura do Estado, estava escrita
dependência. os nomes dos protagonistas do movimento nacionalista - conforme descobri mais tarde - foneticamente, perante um esqueci·
foram banidos do discurso público. Muíto depois da sua execução. era mento oficial, cujo manifesto excedente de significação constituía, por
proibido nomeá·los em público. aludir aos seus ensinamentos ou estar si só, uma confissão. Pois, no próprio aêto de esquecer - fábula oficial
em posse dos seus escritos. Tudo se passava como se nunca tivessem que ameaçava conílná·lo à inexistência para todo o sempre e cxilá·lo
existido e como se a sua Juta tivesse sido uma mera iniciativa de na- no caos do inominável - houve alguma coisa de Um que subsistiu.
tureza oi minai. Ao proceder desse modo, o novo Estado Independente No inconsciente dessa região africana que se apelidou, tardlamente.
pretendia contornar o mandamento outrora dirigido a Caim: «Onde de «Camarões•. o seu nome e o texto que constltuia a sua morte
está o teu irmão Abel?•. Por conseguinte, à cabeceira do Estado inde- não tinham desvanecido. Porém, o Estado negro não reconhecia a
pendente jaz o crôn/o de um parente morto. sua morte nem qualquer dívida quanto a esse nome. Na alrura, estava
A minha tia tinha sido casada com Pierre Vém Mback. assassinado longe de imaginar que qualquer grafema - a morre de Um assumia-se
ao mesmo Lempo que Ruben Um Nyobê, a l3 de Setembro de 1958, no como o grafema por excelência-era. na sua essÍ!ncia, um testemunho.
matagal de Libel·li·Ngoy. nas imediações de Bumnyébel. Pierre Yém E que, no próprio acto de esquecer Um, de manter um discurso sa-
Mback era o único filho de Susana Ngo Yém. Muito depois da morte liente a seu respeito, de afirmar que ele não era 0<nada,., o poder negro
do seu filho, foi ela quem cuidou da viúva de Yém - a minha tfa - e revelava, paradoxalmente. a insubstituibilidade do morto. pois apenas
dos seus filhos. Segundo a tradiç3o africana mais pura, Susana era, aos se desconstruía o que estava previamente edificado.
meus olhos. a minha avô. À semelhança da maioria das pessoas hu· No meu entender. por mais que tenha em conta as circunstâncias, o
mildes do nosso país, a sua vida consistiu numa série de provações meu distanciamento espiritual focc ao meu país natal sem. no entanto,
e lutas de crescente dificuldade. Conrudo, essa longa vida repleta de deixar de me preocupar - sem que ele deixe de me preocupar - deve·
obstáculos não corroeu a sua bele:z.a física e tampouco domou o seu es- -se, em grande parte, à sua recusa em reconhecer a existência desse
plrlto, apesar de as adversidades atravessadas terem deixado vestígios crãnio. Esta questão de recusar a sepultura e de desterrar as vitimas
de melancolia no seu coração. Por diversas ocasiões, presenciei essa que tombaram durante as lutas pela independência e a autodeter-
miscelânea de tristeza, dor e esperança no seu entoar dos cânticos minação, esse acto original de crueldade contra o «innão» torna·se,
que deram ritmo à luta pela independência. Por vezes, ouvia-a entoar, desde multo cedo. o objecto principal do meu trabalho académico as·
sim como o prisma através do qual - constato-o boje - a minha ci1tica
5. Lrr Ruben Uu HyoW. t.r Problbnd ttOt.IOlfol com~rcx,,,ois. L'lbrmattilln. Paris. 1984; e 10, tC'rlu sobre África - enquanto lugar de acolhimento do crânio de um parente
sousmaquls.L'H.•nnattan. Parfs.1989.
5. O..ndl AI.ma. L'Sconomle de l'O<lut afncvftt. l'tt'!r,-Ova d• dll>elapf""'MC, Franç.ols Ma.poro,
morto - ganhou forma e medrou•. Ao Inaugurar a sua vida entre as nações
Pui.. 1966.
7_Mongo e.d. Moln bane J'Uf'ltt C.meroun, Li: Okouwrte. P.arls. 2010 (1972). 8 Ltr em ~mcubr AchJlle Mbe-mbe-. Afriquu lndodl# Chrtst•onúm~ pou\'Oír rr l1nt "" S«ilt'
através da recusa de sepultura ao parente morto, o meu pafs natal Aprendemos a cantá-lo com fervor, de peito insuflado e timbre crfs·
manifestava o seu dese10 de Instituir uma ordem polftlco assente na Lalino, em frente à bandeira ondulante tricolor: Sabiamas que outros
recusa inexorável da humanidade do adversarlo polftico, além de re- paises tinham a sua própria bandeira.. Contudo, a nossa. com o seu
alçar a sua preforencia por uma polltica da cruclddde, .io Invés de uma verde. encarnado e amarelo fulgurantes, estampada com uma estrela .
poHl1ca da fr;uernldade e da comunidade. S3<"nfit'ava a ideia dt" uma era a única que, a bem dizer, devlamos honorificar. Todos os anos, o
liberdade pela qual se lutou, em prol de uma noção de Independência feriado nacional era agradado com uma celebração patriótica Par·
concedida de bom grado pelo senhor. em toda a 'u" magnanimidade. t1c1p.ivamos no desfile com entuslumo. Subentende-se que, passando
ao seu ex· escravo. 1unto à cribuna oficial, mardlavJmo~. quais pequenos soldados, com as
bandeirolas bem erguidas, exaltando os louvores do potentado e de·
votando a nossa vida à nação. Para nós, a nação e o potentado semp1e
A força do simulacro roram a mesma coisa. O polentado engendrava a nação, e a preserva·
çJo da última dependia do potentado, que, por essa razão, era o •Pai•.
Pelo menos é essa a minha visão actu.il das col,.is. Pois, durante a o «Guia iluminado», o •Criador Incansável•, o •Grande Timoneiro», o
minha juventudr. a~ palavras que compunham o dl~curso oficial vis:i· •Primeiro Camponês,., o «Primeiro Desportista•. Segundo a máxima
vam a «ordem e a dlsclplfna•. o •desenvolvimento au tocentrado... a oficial, •Um único povo, um único partido, um único Líder».
•auto·suflclt'nda alimentar»,"ª paz e a unld.ldc nacional>• Havia uma O nosso potentado tinha tanta necessidade de ser amadol E nós, o
mirlade de técnicas destinadas à ass1mllaç.iu de)se catecismo. Por povo no seu todo, amávamo-lo umo quanto possível. Por exemplo,
exemplo, todas as crianças escolanzadas deviam entoar o hino nacio- a sua figura adornava todos os espa~ públicos, chegando a f.tz.er-nos
nal todas as manhãs. comp;anhia nas nossas res1di!ncias privadas. Cada grande praça públl·
ca. cruzamento lmponante, alaml'da e avenida principais. o e..<úd10
Ó Cameroun beneau de nos oncitres. nacional de futebol - tudo o que 1mponava no pais, recebia automat1·
Vo deboul ec 10/oux de co liberte, c:amente o seu nome. O seu semblante glolifiC<MI a nossa moeda nacional
Comme un solei/ ton dropeou fier do1t itrc, outorgando-lhe o seu valor verdadeiro. A cada dnro anos, na vêspera
Un symbole ordene de foi ec d'unicé, das eleições presidenciais, o •Guia 1lumlnado» recebia inúmeras
•moções de apoio• de todas as •forças vivas» do pais. Por melo desse
Que tous tes enfoncs du nord au sud, gesto «espontâneo», lmplorévamos-lhe qu.e se apresentasse nova-
De l'est ó l'ouest sole tout amour; mente como nosso único candidato às eleições. E, a cada cinco anos, no
Te servir qur ce so1L /e seu/ buc, nnal do congresso do nosso único grande partido nacional, declarava
Pour remp/1r lc11r devofr toujours: com uma voz poderosa e sob os aplausos do povo: •Bem, aceito! Acel·
tol Aceitohl. Aceitou-o tanlds vezes que, durante mais de vinte anos.
Chere pacrte, cerre chéne, a minha geração só conheceu efcctivarnente um único partido e um
Tu es nocre seu/ ec vro1 bonheur; único líder •eleito regularmente• com resultados que ascendiam,
Notre jo1e, nocre vle, todas as vezes, a 99 % dos votos'.
À tof l'omour e1 le grond honneur.•«m A força do simulacro: estávamos descolonizados mas, mesmo
assim, seriamos livres? A Independência desprovida de liberdade. a
liberdade constantemente p rotelada, a autonomia no selo da tirania,
por«clc l'llW. tunNl.t rana.. 1-.e.10. Lo HaUsonce du 111oqvt1 floo1 i.. s...t-CallNf'Olll\ op. CJL era essa a marca própria - facto que descobri mais tarde - da
e ID.. OI lo 1N".roloa1e ts.Jo1 Ulf l"lllflllgt1t0t101t po/rbqn dont l"Afrlqw ~Lmt'°"''"~· K.anhala. pós-colónia. o verdadeiro selo da farsa que constituiu a coloniuç3o.
hns.ZOOO
l<dTI (Em portu..... I OC.m.tr6" bom> do> nossos >n<H1ralL M•olfm lt •<11ddo t . - cb
Talvez não nos apercebamos disso hoje em dia, mas, no cômputo geral,
tUA llbttda.Je, A tva blnM•~ dew ftl05t.r.lr-R Ol'Julhosa como um IOI. Um sfmbolo an::l~tice de África l\Ao bene6dou assim tanto dos anos da colonbação. No caso
(f • uni<IMM. I Ou• todos 01 tev,j; hlhos ~ none •sul. De orwnte a ocidente Rjtim só amor: E quti
tervfr-t•. Hj.I O NU .,nico pt'Opôs:ho; hnt cvmprir-.m O ffU d_.,.r P'1'11 1 .t•fnktad•, 1 Querida
PJtrfa.. QuMda t•rr.. C. a no~P Unia• Vttd1tde1r.t í•hddxfo. A nolA •ltari•. • nos:,.. víd.t. A ti 9 Abtf fytl'IP,. Htmdor d'orrlt "°""" C'Ollff d''1«tloM, t:Uarmattan. Puts. 1978; • tO... Co"1t"f'Ot11t
oamM•malorhonn1 196'11990. LoJlo d.,Mecti.,,,_ l.'H•"""IUll.Parll. 2000

1 À,.,.llÕOC,.,_ .. _ _.Tr~--.... Jt
particular do meu pais natal. as infra-estruturas pesadas eram pratl· e nunca mais regressei - pelo menos. para viver ou trabalhar: Iniciei
camenle Inexistentes. Duas ou três pontes construídas pelos alemães. os meus estudos universitários no meu pais e concluí·os em Paris, à
Apenas algumas escolas. dispensários e hospitais. Pouqulssimas es· semelhança de outros que rumaram para Londres ou Oxford. Desde a
tradas alcatroadas. caminhos-de-ferro ou aeródromos. Um ou dois época dos f'anon. Césaire e Senghor, sempre foi assim. Ourante alguns
portos para o transporte de cacau. algodão, banana, madeira. café, e anos. percorri assiduamente esses lugares: os anfiteatros. os museus.
óleo de palma para a Metrópole. Nenhum museu nacional. Nem um as livrarias, as bibliotecas e os centros de arquivo. os concertos, as ruas
único teatro. Nem uma única universidade. Uma elite exígua. Ademais, e os cafés. LI e aprendi com os mestres da época. Num contacto estreito
o nosso governo Insistia continuamenre no facto de termos começado com as pessoas proporcionado pelas minhas viagens, deparei -me com
do nada e que, portanto, era Imperativo construir tudo de raiz e que, um país antigo e orgulhoso, consclenle da sua história - evidenciando,
para tal, a ordem e a disciplina afiguravam-se imprescindíveis - aquilo aliás, uma propensão par.i glorificá-la a todo o momento - e partlcu·
que nós, alunos, cantávamos. wna vez mais. com alegria: larmente doso das suas tradições. Sem o seu contributo no âmbito da
filosofia. da cultura. das artes e da estética. o nosso mundo seria indu-
Camerounals, revellle·toi, bitavelmente nia1s pobre em espírito e humanidade. Graças aos meus
Prends res oudls. 110 vice à ton chant1er. anos parisienses. também compreendi que a veiustez, por si só. não
Que /e travai/ soit la dure /oi, torna necessariamente os povos e os Estados sensatos, e muito menos
Ou Cameroun touL entier (bis). NdT? vinuosos. Cada cullura antiga - e nomeadamente as antigas culturas
colonizadoras - oculta um lado negro sob a máscara da razão e da civi·
Carecia mos de ordem e disdp!Jna. A partir dai. tudo, ou quase tudo, lldade.
era calculado por um. A unidade a qualquer preço, ern essa a regra. Não Antes de chegar a França, já tinha consciência do seu lado negro.
tinha mos necessidade de vários partidos polftlcos. Bastava um, caso Não linha França desempenhado um papel eminente nessa questão
oontrãrlo era a «guerra tribal•. O mesmo se aplicava às associações do crânio do morto - e, por isso. de recusa da sepultura e do dester·
civis, aos slndicalos, à rádio, à Unlversldade, à Imprensa - um único rodas \-ltlmas que tombaram durante as lutas pela independência e
jornal dtirio com a ílgura do «Guia iluminado», em medalhão, a par do a autodeterminação no meu país? Não foi a sua política africana su-
seu «pensamento do dia»: um excerto luminoso dos seus inúmeros dis- ficientemente Ilustrativa sobre o f.icto de que não basta «descolonl·
cursos. Qualquer discordilncia, qualquer parecer não oficial, qualquer uir•; é ainda necessário operar uma verdadeira auto-descolonização?
dissidência real ou hipotética - a «subversão~ - representava o mais Paradoxalmente, nno será a sua tradição de. universalismo abstracto
alto custo. Dispúnhamos da nossa Robben lsland - Mantoum e Tcholli· contrária à sua fé no dogma republicano da igualdade universal? No
ré, por exemplo - onde alguns estiveram duas, ou mesmo três décadas concernente a França e Paris, considerei-me sempre um individuo de
no mais absoluto dos anonimatos. As leis draconianas que remontam passagem, em transito, rumo a um alhures (um passageiro). Todavia,
à época colonial permitiam, de facto, suspender o direito a qualquer em concomitância, certos modos de pensar. de raciocinar e de argu·
momento e Instaurar o estado de emergência a fim de «cortar pela mentar tornaram-se· me familiares. Do ponto de vista do espirita, aca·
raiz» qualquer tentativa de rebelião e de «neutralizar os pescadores bei por transformar-me num habitante, num herdeiro pela habituação
em águas turvas~. Sabemo-lo bem: por mais que se seja Independente, à língua, aos gostos e aos costumes do pais, e pelo convívio com certos
não se pode descolonizar tudo ao mesmo tempo. aspectos da cultura erudita. Tinha ã minha disposição o acervo do sa-
ber e pensamento humanos. Devorei-o de tal forma que, hoje em dia.
me considero, com toda a franqueza, um sucessor legitimo desse
Afastamento património. Não afirmou Fanon que nós seremos os herdeiros do
mundo, no seu todo?
Actualmente, não sei como lograremos passar da palavra à acção. Nova Iorque foi a metrópole que me permitiu entrar efectivamente
atendendo a esse lastimável teatro do poder. Deixei o país muito cedo nos Estados Unidos e graças à qual, pela primeira vez, comecei a ter
uma vísão do mundo e fui, de súbito, ao seu encontro. Em Nova Iorque,
NdT2. [Em pom.iguh) Cimaronfs. aconút. P~ nu tu1s rerramentas e- preaptr.a~te p1rJ. o tJ!U esse ecúmeno global, pude contemplar, pela primeira vez e de um
es,.ldro, Que o trabolho ••IJI a dun lel, l>e 1adosos Camarões (bis). modo concreto, o semblante do unlversal - sobre o qual poetava Senghor.
O semblante de Nova Iorque é extremamente diferente do de Paris, e ab)ecta susci tando uma resistência não menos selvagem. Ainda era
só mais tarde me aperct'bi disso - o universal à francesa expressa-se possível vislumbrar a effg1e do deus-com-robo-de-cobro na paisagem,
numa linguagem narcisista. Em Nova Iorque, descobri, pela primeira na arqultectura, no modo de construção das cidades, nos nomes das
vez. uma metrópole alicerçada na lei da hosplt.illdade. Aí. tudo pareeta ruilS e das a11Cnldas. nas cstituas, nas formas de falar de uns e de outros.
ser um convite a uma atitude dl.' abertura face àquilo que h6-de vir: o nos hábitos consdcntcs e sobretudo inconscientes Com efeito, o que
bullc10 dos povos. das rnç;1s e dJs humanld3des. a cacofonia das vozes, se afigurava mais grave eram as escariftcações mentais passiveis de
a variedade de cores e de SOM , Mais do que em Paris. aí deparei-me serem detectadas em todos, negros e brancos, mestiços e Indianos
com o menecma de Áfnca. que corresponde .l América africana negra - incluindo aqueles que tentaram sair lle~os da loucura Não restam
- a música negra, uma 1ntt'lectualld.1de negra. o fantasma que vive dúvidas de que todos perderam, em nfvels variáveis, mais do que um
do escrdvo para além do Atlãnllco, ,1 sua presença nos primórdios da vestígio de d"~ncta no turbilhão do apartheid - e os séculos marca
modernidade enquanto marca insurrecclon~I que, na sua radicalidade. dos pelo regres~o à selvajaria rarlal que o precederam. Nas igre,as.
recorda mte:>>Jntemente que. em m.itO:na Je liberdade, existem apenas n.io obstante os Inúmeros pequenos gestos de compaixão praticados
suct>Ssores E que, enquanto J última n~o for usufruída por todos. diariamente nas relações t>nttt senhores e servos, os movunentos de
poder·s~à fald r Je tudo, menos de democracia. resistência e as amizades de natureza inter-racial sofreram um alque-
Além disso. havia uma rolu\:io t'l<traordmána de culturas que. como bramento por cont.l das deç1gualdades e do contexto repressivo, um
é evidente, tornava essa cidade na metrópole por excelência do opti· muro opaco separava-os. Foram literalmente despojados de qualquer
mismo. da fé no " mesmo P naquilo qut' hó·dt' vir - um futuro Pm que prox1m1dade human3, ou seia. da capacidade de imaginar o significa-
haverá sempre ;alguma coisa para criar. AI, rudo levava a crer que, tanto do de ter; algures, qualquer coisa em comum. O pais estava repleto de
nas perifenas quanto no centro. havia espaço para todas as vozes - lmundkles. de cotos - essa combina~o de beleza estupefaciente e de
não havia, em pnnclp10, sem·propriedade, mas só sucessores. Era pos· fealdade do espírito Lão caracterfstlca dos lugares a certa altura es·
sfvel olhar de perto els o motivo pelo qual Nova Iorque era mais do colhidos pelo demónio humano como local de residência.
que uma cidade - uma Ideia ao encontro do espírito, da matéria e dos Muitos brancos Ili não sabiam onde haviam estado durante todos es-
mundos Devo dl:ter que enquanto ldc10, marca e utopia Nova Iorque ses anos torpes. Tu dose passava como se rlvessem saido dlrectamente
seduziu-me, literalmente, e estimulou profundamente o meu trabalho do asilo. Outros não queriam saber de nada. Nem mesmo do nome do
intelectual. Pela primeira vez na vida, conseguia distinguir claramente seu pofs de rcsidl!ncla onde, teoricamente, gozavam de cidadania.
o clamor dos mundos, o eco sussurrante do encontro das nações sobre Tratava-se de expatriados mentais que contavam histórias ininter-
o qual se referia, uma vez mais, o poeta Senghor. Também eu almejei ruptamente. Embora vivessem nesse pais, na realidade, pertenciam a
ser parte Integrante dessa epifania. Será necessário frisar que, ao dizê· um •alhures•. à Europa, vendo-se forçados a reproduzi-la em termos
-lo. não me esqueço ele que, nessa me$ma metrópole, um negro pode quase exactos, tal como acontecera anteriormente com os colonos
ser crivado de quarenta balas pela polfcla apenas por estar no lugar er- ingleses nas margens do Potomac. Com o poder político a escapulir·
rado à hora crrada7 E que, para centenas de milhares de descendentes ·Se-lhe das m!los, a maioria procurava esquecer tudo o mais rapidamente
de escravos no Novo Mundo, a prlsllo tomou rapidamente o lugar da possível, tef.liendo, melhor ou pior, um arremedo de vida. Queriam. de
plantação. facto, olhar para o futuro, mas multas vezes sem saber como se posi-
clondr relativamente ao presente e ao passado. Outros, por sua vez.
queriam agir como se nada tivesse mudado. como se tudo estivesse na
Na orla do século mesma ou como se tudo tivesse mudado demasiado rápido. Esforça·
vam·se por se convencer de que continuavam Iguais. Apenas o tempo
Cheguei à Áfnca do Sul no último ano do séc XX. Deparei-me. literal· havia fugido, passando sobre as suas cabeças, quase despercebido'°.
Por vezes, tinha a lmpressJo de estar num casino fuMrdrio. Jamais
mente, com um pais fracturado, repleto de estigmas do Animal, o
esquecerei esses nomes da.s ruas, dos lugares, das alamedas e das
deus-com-rabo-de-cobra, ao qual - conforme exige a ideologia da
avenidas, das montal\Ns. dos lagos e dos Jardins. das barragens, dos
supremacia branca - alguns devotaram um culto, durante décadas.
Era evidente que se tinha passado aleuma coisa de particu.l armente

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monumentos e dos museus. Serviam de manto obscuro de qu~? Quais para o surgimento de uma forma de fus3o cultural inMita em Joanes·
•p.irtes vergonhosas• desse pais escondiam a ida ao escritório, todas burgo, quf! constitui a base de uma modernidade afropolica".
as manh.ts, ao longo da avenida Vorster; a oração numa Igreja situada A presença de estrangeiros em território sul-africano não é inaudita.
na avenida Verwoerd, o almoç-0 na rua Botha e o jantar relativamente À semelhanç;a do que acontecia no resto do continente antes da colo·
próximo do cruzamento da Princesse Anne? lmponarã considerar nização, as migrações eram comuns. A miscigenação das populações
esS<lS marcas como slmbolo da mediocrídade da qu;ll se alimentam devido às guerras. às trocas comerciais, às transacções de ordem
todas as formas de racísmo e de mimelísmo colonial? Porquê criar e religiosa ou das alianças evldenclav.i um cariz SIStem.itico. O el\lGlme·
inventar unta res1stênoa para o si mesmo? Porquê de1ltã·los, após o amento corresponde à forma predominante de mobilidade. •Forjar a
desfecho do ;ipanhe1d, intactos? Porque não reunir num museu todas sodedade" consistia. no fundo, f!m •forjar uma rede•. tecer cadeias
essas est.ituas com pés de argila. todos esses cavalo~. generais. rrafican· de parentela e urdir dividas. sejam ela' reais ou fictícias. Longe de
tes de ouro, monumentos e marcas da loucura racial? Quase 10 anos serem unidades fechadas,"'~ a 1atào peld qual a~ entidades étnica~ sul·
após a 4 bollçilo do raci~mo Institucional, uma espécie de íedor ainda ·africanas se encontram tão enredadaç nos planos cultural. lingulstlco
emanava do caldo, Insidioso. A segregação racial fora oficialmente e 1crr1torial, já que as relações estreitas entre elas também as vincu·
abolida, mas o espll"lto do racismo deslocara-se, manifestando-se lnm aos seus pares de Moçambique, 'l,lmbabwc. Botswana, Lesoto ou
doravante cm outras línguas. Suo7ll:'indla A Imigração europeia a pJrtir do séc. XVII, a importação
Porém, a África do Sul por mim desconin:ida era l.'!mbt\m um pais de da milo·de·obra servil na re~iào do Cabo. o estabelecimento de lndla·
múluplos enclaves: o pais da concatenação dos mundos, das nações e dos nos cm Natal. no início do boom do açúcar. e até de chineses, no inicio
sistemas. O Cauteng. a região mais rica do condnente, é representativo da era Industrial em Witwatersrand, contribuíram de forma s1gn1n-
dessa concatenação. t ai que se situa Jo<1aesburgo, a metrópole afncana c.111va para a edificação da África do Sul t'nquanro pais transnacio!l<ll,
de maior modemldJde. podeno e miscigenação. Desde o inicio da déca· pe>e embora o facto de nunca ter sido reconhecida nessa qualidade
da de 1990, ttSa enorme cidade-região fundada em 1896 por migrantes por conta do apartheid. Essa natureza trançnacional acentuar-se-á no
oriundos de diversas partes do mundo, na sequência da descoberta das decorrer da primeira metade do séc. XX graças à afluência de judeus
minas de ouro do Witwatersrand, assumiu-se como a nov;a fronteira do e posteriormente. em meados da década de 1970. com a chegada de
continente. Ao longo do último quartel do séc. XX. e graças ao desmoro· ex-colonos portugueses que abandonaram Moçambique e Angola. de
mmento do apartheid e à translçiio para a democrada. novas ondas mi· ex-colonos rodesianos após a independência do Z1mbabwe e das mi·
gratórlas provenientes dos restantes país~ de África juntaram-se a esse norias oriundas da Europa Oriental. No fundo, desde a descobena d:u
complexo social e urbano jã fortemente pintalgado. Nessa Nova Iorque. minas de diamante Klmberley e. sobretudo.das minas de ouro em Wit·
São Paulo e Los Angeles em miniatura à escala africana, encontramos watersrand. no final do séc. XIX. as fronteiras efectlvas da África do Sul
actualmenle quase todas as nacionalidades do mundo. estendem-se desde o Cabo até ao Kalanga, sendo que os contributos
Vários s;!o originários de países cm guerra, divididos contra si própri- europeu e asiático dilatam ainda mais a Identidade desse país. atrl-
os ou sujeitos à Incúria e à malversação de elites depredatórias e (ou) bulndo·lhe uma dimensão transversal, transnacional e plurlcultural
senis. Enquanto alguns procuram refúgio, outros são movidos pela suscepúvel de ser apregoada apenaç por um número reduzido de n:t·
esperança de íuglr a situações de miséria crónica e de corrupção en·
ções modernas.
démlc;i Ao entrarem no país Uegalmente. muitos levam uma eldstênoa
A fim de criar e aumentar as suJS rlqucus. a África do Sul esteve
predria e quase clandesdna, sendo alvo de uma perseguição constan·
sempre dependente do trabalho estrangeiro. Aquando da industrializa·
te por parte das autoridades sul-africanas e de ameaças condnuas
ç-ão, o recrutamento de uma parte cons1deravel da mão ·de-obra m1·
de detenção e deportação. Paralelamente a essa clmigração na base
nelra era levado a cabo em toda a África Austral No país, o trabalho
da hierarquia•. assistiu-se ao florescimento de uma segunda. constl-
sa:tonal e migrante constitui também uma das lecnologias-chave do
tulda por quadros africanos altamente qualificados e ehtes existentes
processo de proletarizaçiio. Privados das suas terras e destituldos da
em domínios t.Jo diversos quanto as finanças, o~ meios de comunica·
sua cidadania. os negros sul·afrlcanos foram exilados para os bantustões.
ção. as telecomunlc;ições, as novas tecnologias, as universidade~. ~s
gabinetes Internacionais de peritos e as grandes emp.-esas comerc1a1s.
Limitando-nos ao exterior. tudo parece apontar. pela primeira vez. i 1 S..roh Nutlllll • Achllle Mbembe (dlr),/o/lon.,..butJ lllf E/uS/,.. MotropOl•J. Ouke UniV<ni\)'
Prns. Durlum, 2008
lipos de reservas nativas onde a luta pela reprodução social assumia tor informal - espaço prlvilcglado do combate pela sobrevivência - ou
proporções de maior gravidade A sua estadia na cidade branca era ainda no domínio da habitação, do emprego e Inclusivamente pela ocu-
obrigatoriamente tcmpor;lria. A Instituição do livre-trânsito permitia pação de um pedaço de espaço nos campos da fortuna cujo crescimen·
controlar a sua mobilidade no selo de uma economia capitalista na to era continuo. Esses campos da pobreza estendem-se lnílmtamente
qual a raça engendrav;i a classe. bloqueando, tanto quanto possível, cercando as grondes metrópoles da Áfrlca do Sul. São zonas onde o
a emergência dessa conscl~ncla O trabalho sazonal e migrante, por n.10-dlrelto, a doença, a morte prematura e a luta Impiedosa pela so·
um lado, e a cxpuls;io dos negros sul-africanos para as reservas, por brevivêncla se conjugam, pelo que apresenr.:im um carácter explosivo
outro, íordm determln.1nles na lmplos3o das estruturas famlllares ur· ameaçando objecthr.imente a estabilidade do pais.
banas Os laços comunlt.lríos regi~taram um dcílnhamento A cultura O significado político e cultural do presente sul-afraca.no corr.,spon
do pequeno cmprt.-endedorbmo e da ln1clallva Individual foi estilha· de, logo, do ensejo do fim e da reinvenção. Ora, a reinvenção só é pos-
çaWI ao passo que a liberdade de exercer o pequeno comércio não foi sível através da contl'mplaçllo tanto do passado quanto do futuro. Pois,
abohda pela let quando aquilo que começou no sangue termina no sangue, as lúpó·
Para os negros sul-africanos. o hm do aparthetd s1gniílcou o acesso teses de um recomeço S<lo enfraqueodas e ensombradas pelo horror
de pleno direito :. cidade. O desmantt>lamento das leis racistas abriu do passado. Afigura ·se complicado proceder a uma reinvenção, se1a
caminho para as liberdades de movimento e de residência Todavia ela qual for; simplesmente através da canalt7..içào. contra o outro. da
- e trota· se de um facto crucial esteve na origem de um movi· v1olêncla praticada contra o s1 mesmo. Não exiSte automaticamente
mento migratório duplo. interno e externo, com consequências soa· uma cboa violência• que devena seguir-se a um;i «rná violência• que a
ais e poliucas potencialmente explosivas. No plano Interno, o regime precedeu, ou que nel<a deveria encontrar a sua legitimidade. Cada vio-
do apartheid começou a ruir no Inicio da década de 1980, no preciso lêncla. tanto a boa quanto a má, sancionam sempre uma separação. A
momento em que - devido ao agravamento da crase de reprodução nos relnvençlo da esfera pollllca nas condições do pós-apartbeid implica,
bantustões - o Est.. do racl\t.l deixou de ter condlÇÕf'S para lacrar her· de~de logo, o abandono da lógica da vingança, independente de enver-
meticamente as suas fronteiras lntern3s, controlar a mobilidade dos gar os andrajos do direito.
negros e intenslílcar a sua exploração atravé:. do capital, sem prejuízo Posto Isto, a lula pelo afastamento em relação a uma ordem lnu·
do reforço da segregação racial. Assim. uma massa de pessoas sem mana das coisas não pode prescindir daquilo que se poderia apelidar
trab;ilho, pouco lnstruldas e cujo único melo de sobrevivência residia, de produtividade poética da memória e do religioso. O religioso e a
amiúde, na pequena depredação, começa a abandonar as zonas rurais memóna representam, neste caso. o recurso Imaginário por excelên-
e a aílulrpara a periferia dos grandes centros urbanos. minando desde cia. Por religioso, entende-se a reiaçflo com o divino e alnda a «instân·
logo e quase em absoluto qualquer esforço de plantncação urbana, cla da cura• e da esperança, num contexto histórico onde a violência
deformando pelo caminho as principais cld:idcs sul-africanas. provo· afectou tanto as infra-estruturas materiais quanto as infra-estruturas
cando a fuga das classes médias brancas e negras para bairros resi· ííslcas, através da difamação do Outro, a afirmação segundo a qual ele
denclais (suburbs) ou endaves protegidos por empresas privadas de não é nodo Certa~ formas do religioso questionam precisamente esse
segurança, e propiciando práticas de sobrevivência que conferem um discurso - por vezes interiorizado - sobre o nada cu10 objectlvo IÍI·
papel de destaque ao crime. timo consiste em garantir que aqueles que estavam de joelhos pos·
A extraordinária lutd pelos recursos, até então diífcll de refrear no sam por nm «levantar-se e andar». Nesse contexto, a questão de cariz
selo dos bantustões. alastr0u·se para o contexto urbano que. quase simultaneamente filosófico, político e ético consiste em saber como
em concomitJncla, acolhia milhares de imigrantes ilegais originários acompanhar esse •reforço de humanidade• - no final do qual será
dos restantes pontos do continente. Por conseguinte, ao Invés dos seus possível o di.alogo entre os homens, em detrimento das imposições de
opressores de antigamente, os negros sul-africanos viram-se con- um homem face :10 seu objecto.
frontados, pela primeira vez, com outros migrantes (na sua maioria A experiência sul-africana demonstra que a ordem «levantar e
mals lnstruidos, conhecedores da vida citadina e habituados a não man:hant - a descolonização - dirige-se a todos, Inimigos e oprimidos
depender do Estado) oriundos de outros palses africanos e com os de oulrOra. A suposu libertação consiste na crença de que basta matar
quais entram de Imediato em compcllçlo, muito em particular no sec- os colonos e tomar o seu lugar para reçtaurar a relação de reciproci-

1.. . .,.
otii.*---T~·-..... "1
dade. No ãmbito da polllica de vingança. é posslvel pensar que o caso
da África do Sul constl1111 uma reprodução do complexo de Caim. Posto
isto.a preocupaçao de reconoliaçao, por si só, não pode sersub>lilulJ..
pela exlg~ncia radical de justiça. Para que aqueles que ontem es~vam II.
Je juclhu> "cu1 vado$ pesante o pc30 da opressão possam lcvon1or
-se e marchar. é necessário que se1a íelta jus1lça. Por conseguinte, Abertura do mundo
a exigência de justlç<l não será descurada, acarretando a libertação
do ódio do si mesmo e do ódio do Outro, condição essencial para um e ascensão em humanidade
retomo .l vida. Implica igualmente superar ;a dependência rel:mva à
recordação do sofnmtnlo próprio. própria da consciência viumárla.
De facto, a libertação dl'<<a dependência é condição para a reapren· A descolonização acabou por transformar-se num conceito de juns·
dlzagem da linguagem humana e. evenludlmente, para a criaçllo de um tas e hl~loriadores'. mds nem ~empre foi assim, dado que a noçJo se
mundo novo. foi dep~uperando nas suas mãos. As suas múltiplas genealogias foram
Rcsw a quest~o dJ memória que, na África do Sul contemporllnca, ocultadas o o conceito foi despojado do seu teor Incendiário que, além
se coloca em termos de um passado doloroso. mas também repleto de tudo, conslltufa " marc.1 d~s; suas orlscns. Sob essa forma lnfima,
de esperança, utilizado pelo conjunto dos protagonistas como estribo a descolonização designa. simplesmente, a traMferência de poder da
para a criação de um íuturo novo e diferente. O que pressupõe pôr a Metrópole para as antigas colónias. aquando da Independência. Ten·
descoberto o sofnmento outrora inOtgido aos mais fracos: proclamar do sado esboçada no inicio da década de 1940, essa transferência de
a verdade acerca do que foi suportado; renunciar à dissimulação. à poder é geralmente o fruto de negociações pacificas e compromissos
repressão e à negação - lrata·se da primeira etapa no processo de re· ll!>sumldos entre as elites pollrlcas dos novos palses independentes e
conhecimento mútuo da humanidade de cada um e do dlrelt<l de cada as antlg:is potências colonl:ils, ou uma consequência de uma luta ar·
u111 d uma vida de liberdade perante a lcí Uma parte consldcrnvel do rnad .. para abolir a ascend~nda estrangeira, resuliando na derrota, ou
trabalho de memoriali~ção traduz-se por exemplo em sepultar devi- mesmo na ev1cção dos colonos e na reaproprlaçlo do território naclo·
damente as ossadas dos que faleceram em combate; a Implantação de nal pelo novo poder autóct0ne'.
estela$ funerárias nos localS onde pereceram, a ratlficaç3o de ntuais
religiosos cradicional-crlstJos destinados a csalvar» os sobreviventes
da cólera e do deseio do vingança, a criação de uma mulUpllcldade de Do mu ndo enquanto cena histórica
museus e parques visando a celebração da humanidade comum de
todos, o florescimento das artes e, acima de tudo, a implementação Enunciada por melo de lnumeras designações ao longo dos séculos
de pollttcas de reparaçllo orientadas para a superação de séculos XIX e XX africanos, a descolonização foi, contudo. uma plena categoría
de negligência (um telhado. uma escola, uma estrada. um centro de polltlca. polémica e cultural. Sob esse prisma maior, a descolonização
saúde, água potável. rletuicídade). O trabalho da memória ~. neste assemelh;ivt1-se a uma •luta de libertação• ou como sugeria Amílcar
caso. inseparável da rcOexão sobre o modo de transformar a dcstnução cabral, a uma •revoluçdo'». Em suma, essa luu almejava a recon·
f!slca daqueles que se perderam e se transformaram em pó numa pre· quista, por parte dos colonizados, da superffcll', dos horizontes, das
sença Interior. Meditar sobre essa ausência e sobre os meios de recu· profundezas e das eminências da sua vida. Nos meandros dess.i luta
perar simbolicamente o que foi destruldo consiste, em grande medida, - que exigia um enorme esforço físico e capacidades extraordinárias
conferir à sepultura toda a sua força subversiva. Porém, neste caso, de mobilização das massas - as estruturas da colonização deviam ser
a sepultura não é tanlO a celebração da morte em si. mas antes o re-
torno a esse complcmcnlo de vida nect!sdrlo à elevação dos mortos.
!~l'fd«nck CoopO< - . . . , . . , _ ""4 J.Jrl<-• Soc1<9'. C.mbnd«O ln...,rsiry PrHs. C.mbf1d&<,
no selo de uma cultura nova que procura atribui r um lugar, quer para
os vencedores quer para os vencido<. Z.. rr.,._t Gilfonl~W M. ~ lANü (du). ThC" Tram;Jrrofl"owtr#tA/t'Q. Oewlc1tuwdott. IHO~
·JJ611. '•lo
UnrversllY Press."ew H•wn. 1982.
l . AmOcorC.bral Un1úrtl.u1t1.Mul)01'0, P>rit.1975

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desmanteladas e instituídas novas relações entre o sujeito e o mun- colonial propriamente dita. As matérias-primas são produzidas a
do, reabilitando-se o possível. À luz de tal perspectiva, o conceito da preços baixos e os custos de trabalho reduzidos fomentam o aumento
descolonização revela-se elíptico, remetendo para a difícil problemáti- das taxas de lucro, tal como o próprio Marx assinalava. Essa divisão
ca da reconstituição do sujeito, da abertura do mundo e da ascensão do trabalho - e a consequente especialização - não teria constituído
universal em humanidade, evocando as principais linhas do trajecto a apenas uma das condições do crescimento do capitalismo industrial,
que nos dedicamos na primeira parte do presente capítulo. teria formulado igualmente condições estruturais de troca desigual
Todavia, muito rapidamente se percebeu que a reconstituição de um que, desde então, caracterizam as relações entre o centro e a perife-
sujeito dotado de rosto, voz e nome próprios não consistia numa mera ria6. Por conseguinte, as colónias não constituiriam, de todo, fronteiras
incumbência prático-filosófica. Pressupunha um enorme trabalho exteriores. Longe de serem meros exutórios formariam elos essenciais
epistemológico, e mesmo estético. Acreditava-se que, para acabar de- do devir-mundo do capitalismo.
finitivamente com a a li enação colonial e sarar as feridas infligidas pela Nesse âmbito, a descolonização explicar-se-ia facilmente. O trabalho
lei racial, seria necessário o conhecimento de si mesmo. O último - as- histórico concretizado pelo imperialismo colonial consistiria na im-
sociado à preocupação renovada do eu - constituiria, a partir de então, plementação das condições estruturais de uma troca contrafeita e
condições prévias ao desapego dos panoramas mentais, discursos e desigual entre o centro e a periferia. De acordo com as suas condições,
representações de que o Ocidente se servira para arrebatar a ideia do e atendendo às circunstâncias, qualquer emancipação eventual de-
futuro. Tanto na condição de sinal quanto de acontecimento, a própria veria ser impossibilitada ou nimiamente dificultada. Lograda essa
descolonização era imaginada como um elo de ligação ao futuro que, missão, a forma propriamente colonial da supremacia tornar-se-ia
por seu turno. constituía o outro nome dessa força de autocriação e in- ,. obrigatoriamente anacrónica. A sua preservação deixaria de ter fun-
venção. Para recuperar essa força, acreditava-se que seria necessário damento, cedendo o lugar a outros mecanismos de exploração e de
reabilitar as formas endógenas da linguagem e do conhecime nto~. Só exercício do poder mais eficazes, menos onerosos e mais rentáveis.
elas permitiriam que as novas condições da experiência se assimilas- Durante a prolixa história do capitalismo. o imperialismo colonial não
sem adequadamente e se tornassem novamente pensáveis. Também teria passado de um momento: ao longo do qual, a expropriação dos
seria necessário forjar um pensamento à medida élo mundo, capaz de nativos, a conversão da força de trabalho em mercadoria, a especialização
relatar a história comum que a colonização possibilitara, nascendo das sociedades colonizadas na produção de matérias-primas a preços
assim a crítica pós-colonial abordada na segunda parte do presente baixos e a reprodução do capital a longo prazo foram implementadas.
capítulo. Mas enquanto forma de expropriação original, cuja função consistia
Uma teoria da descolonização em si, não existe verdadeiramente. em institucionalizar a longo prazo o regime de troca desigual e con-
Para explicar os factos coloniais e de influência - e, por tabela, da trafeita, acabaria por consistir num modo primitivo de valorização
descolonização - muitas abordagens clássicas do imperialismo fri- dos recursos naturais e sociais e das forças produtivas, e mesmo n um
saram os factores económicos. Como tal, Lénine defende que a função ónus para as forças da metrópole, como sugere Jacques Marseille. A
das colónias no desenvolvimento histórico do capitalismo consiste em transição para a independência e a soberania nacional (ou seja, para
absorver o capital excedentário da metrópole e que esse excedente se a forma de Estado-nação) seria assim inevitável dado que não con-
manifesta em mercadorias, dinheiro ou demograficamente - a super- seguiu abolir a submissão económica, política e ideológica das antigas
população. Nessa óptica, as colónias contribuiriam, na qualidade de colónias. Nesse aspecto, a descolonização constituiria certamente uma
mercado, para mitigar a crise de superprodução que ameaçaria, in- cisão e, apesar disso, um não-acontecimento. De qualquer forma, teria
ternamente, o modo de produção capitalista5 • Segundo os teóricos da preparado sobretudo o te rreno para o neocolonialismo, uma modali-
dependência, a divisão do trabalho e a especialização - constrita e dade das relações de· força internacionais que amalgama rendas e co-
forçada - das colónias na produção de matérias-primas agrícolas e in- erção, a violência, a destruição e a brutalidade são acompanhadas de
dustriais constituem, por isso, tanto a forma quanto o conteúdo da relação uma nova forma de acumulação através de extorsão 7 •

4. Ngugl WA Thlong'o. Decolonisln9 the Mlnd, Heinemann, Portsmouth, 1986. 6. Sarnir Amin, l'Échange inégol et lo lo/ de la valeur, Anthropos, Paris, 1988.
S. Vladimir llitch l..emne, L:lmpéríalisme, stade suprême du capíta/isme, Science marxlste, 7. Kwame Nkrumah, le Néocolonlalisme, demler scode de l'impéria/isme, Présence africaine, Paris.
Montreuil-sous-Bois, 2005. 1973.
Tal como existiram diversas eras da colonização, existiram diversas e a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Salvo as antigas colónias
vagas de descolonização. Os historiadores distinguem habitualmente lusitanas de Moçambique e de Angola, o resto do continente africano é
duas eras do colonialismo. A primeira corresponde ao período do mer- o epicentro da segunda vaga do colonialismo. Essa vaga caracteriza-se
cantilismo. No caso das potências europeias, trata-se de conquistar pela grande extracção. Assume diversas formas e alia considerações
territórios estrangeiros, marcá-los e estabelecer com as populações demográficas a outras, estratégicas, de prestígio e abre caminho para
autóctones laços de submissão, geralmente legitimados por qualquer aquilo que se designa de «imperialismo moderno'º».
ideologia da supremacia racial, fazendo-as trabalhar. de seguida, e
produzir riquezas das quais essas populações usufruem ínfimamente.
Inaugurada pelas denominadas «grandes descobertas», e consolidada Haiti e a Libéria: duas falhas
posteriormente pelo comércio dos escravos negros, o período do mer-
cantilismo marca a verdadeira entrada num novo «tempo do mundo». Na qualidade de acontecimento histórico, a descolonização é um
Tempo que se caracteriza pela imbricação das fronteiras, a caldeação dos momentos de transição daquilo que poderia designar-se como
das moedas e o prolongamento das zonas de trocas e de cruzamentos. modernidade tardia. Com efeito, é ela que assinala a reapropriação
Evidentemente que a fragmentação não se dissipa. E ainda menos as planetária dos ideais da modernidade e da sua transnacionalização.
diferenças, as hierarquias e as desigualdades. Mais, constrói-se pro- Na história negra, o Haiti representa o primeiro lugar onde essa ideia
t
gressivamente uma relativa unidade e coerência do mundo. As novas moderna se materializa. Entre 1791 e 1804, escravos e ex-escravos
formas de transgressão dos limites, accionadas pelo desenvolvimento 1 erguem-se e edificam um Estado livre sobre as cinzas daquela que,
do mercantilismo, propiciam a transição de uma concepção do mundo ~1 quinze anos antes, era a colónia mais rentável do mundo 11• Na sua De-
- enquanto enorme superfície composta por blocos diferenciados - claração dos Direitos de 1795, a Revolução Francesa afirmara o
para uma consciência do globo - enquanto panorama massivo no qual carácter inalienável do direito dos povos à independência e à sobera-
a história se desenrola doravanteª. A colonização e a descolonização nia. É o Haiti, «a primogénita de África •z», mas também «a primogénita
constituem parte integrante dessa nova era da mundialização. da descolonízação 13» que outorga. pela primeira vez, a esse princípio
A segunda era do colonialismo é uma consequência da revolução in- o seu alcance universal 14• Com um gesto puramente soberano, os es-
dustrial. Se a primeira era movida pela economia do tráfico e da plan- cravos negros devotam-se de corpo e alma ao postulado da igualdade
tação, tendo terminado, mais ou menos, com as independências dos de todos os seres humanos. Esse gesto soberano é simultaneamente
Estados Unidos e da América Latina, entre o séc. XVIII e em meados um acto de abolição cuja dimensão hi5tóriça foi objecto de copiosos
do séc. XIX, a segunda é caracterizada pelo imperativo duplo de acesso comentários, mas cujo carácter de fenómeno ainda está por decifrar.
às matérias-primas e de preparação de mercados para os produtos Dado que, primeiramente, o conceito de liberdade, tão estreitamente
industriais9• As primeiras vagas de descolonização na América Latina associado à experiência da modernidade. só é dotado de sentido con-
ocorrem cerca de 1880 e 1890 e, posteriormente, em 1920. Coincidem creto em oposição à realidade da escravatura e da servidão. Ora, aquilo
com a época áurea do pan-americanismo. Sendo um projecto simul- que, em primeiro plano, caracteriza o escravo é a prática de cisão e a
taneamente político e ideológico, o pan-americanismo define-se pela falta de autonomia. Nesse plano, a emergência da líberdade reside na
oposição aos intentos hegemónicos dos Estados Unidos. Um dos seus
objectivos consiste em eliminar a política americana de ingerência nos
assuntos dos seus vizinhos. Essas vagas são marcadas por conflitos - a 10. Vladimir llltch Lénine, L'lmplrlalisme, stade supréme du capitol1sme, op. cit.; John A Hobson,
lmperialism, University of Michigan Press. Ann Arbor (MI), 1938 (1905); David K. Fieldhouse,
guerra entre o México e os Estados Unidos (1846-1848), que resulta The Theory ofCapitalist lmperialism, Longman, Londres, 1967 e to.. Economics and Em pire, 1830-
na anexação de metade do território mexicano; a guerra pela inde- 1914, Cornell Universlty Pr-ess, lthaca (NI), 1973.
pendência de Cuba (1895-1898); a revolução mexicana (1910-1917) 11.1..aurent Ou bois, Aven9ers of the New World, The Story ofthe Hal(lan Revolution, The Belknap
Press of Hal"Vilrd Uníversity Press, Cambridge. 2004
12. Blair Nlles, B/ock Hoid: A 81ogrophy of Afnca s Eldest Dau9hter, Grosset & Dunlap. Nova
8 . Femand Braudel, Civilisation matérielle, éronomie et capicalisme (XVe·XVlfe siêc/e). vol. 3: "Le Iorque, 1926.
Temps du monde", LGF, Paris, 1993 (1979). 13. René Depestre, c l..a France et Haiti, Le mythe et la réalité», Gradhlva, Revue d'onthropolo9ie et
9. Peter J. Caln e Anthony G. Hopkins. «Tbe Political Economy of British Expansion Ovcrseas, d'histoire des arts, n.9 l, 2005, p. 28.
1750-1914,., The Eronomic Hlstory Review, 33(4) e 10., •Gentlemanly Capltalism and British Ex- 14. Aimé Césalre, Toussalnt Louverture, La Rifvolutlon française et /e prob/eme colonial, Présence
pansion Overseas li: Néw lmperfallsm, 1850-1945•, The Economic History Review, 39(4). africaine, Paris, 1981, p. 344.
abolição dessa cisão e na reunificação do objecto e do conceito. No seu Também aqui se trata de antigos escravos. O comércio dos escravos,
sentido primitivo, a descolonização tem início com a libertação dos e a instituição esclavagista enquanto tal, são abolidos no Império
escravos e a sua alforria em relação a uma existência vil. Essa alfor- Britânico, designadamente, em 1807 e em 1834. A guerra civil norte-
ria concretiza-se por meio de um jogo de forças firmadas simultanea- -americana lança as bases para a Emancipação e, posteriormente, para o
mente da matéria e da consciência. Trata-se de abolir esse momento período da reconstrução da década de 1860 16 • Esse período caracteri-
ao longo do qual o eu se constituiu como objecto de um outro; como za-se igualmente por uma renovação religiosa. A pedra basilar dessa
se nunca habitasse mais do que o nome, a voz, o rosto e a morada nova fase do evangelismo protestante consiste na aspiração da con-
de outro, o seu trabalho, a sua vida e a sua linguagem. Essa primeira versão africana ao cristianismo. Apresenta dimensões paralelamente
abolição visa abolir uma relação de extraversão. proféticas, messiânicas e apocalípticas. Alimentam-se enormes expec-
No Haiti, os escravos insurrectos travam um combate, que consiste tativas relativamente ao progresso africano e à regeneração da raça
literalmente num combate mortal. Para renascer para a liberdade, negra. Também os negros alforriados, que se estabelecem na colónia
visam a morte dos seus senhores. Mas, ao periclitar a vida dos seus da Libéria, se enlevam com a reminiscência do Jubileu e a imagem da
senhores, põem em risco a própria vida - aquilo que a tese hegeli- Etiópia que, segundo se acredita, muito em breve, abraçará o Eterno 17•
ana sobre a servidão e dominação denominava de «constatação pela Por conseguinte, desenvolve-se aqui um imaginário da soberania, da
morte», especificando: «Só arriscando a vida, a liberdade pode ser nação e da liberdade através do repatriamento dos escravos negros
provada e comprovada. O indivíduo que não tenha arriscado a sua norte-americanos na África Ocidental. É também na Libéria que se
vida pode, certamente, ser reconhecido como pessoa; mas não alcan- bosquejam as primeiras reflexões críticas modernas relativamente à
çou a verdade desse reconhecimento emanada de uma consciência de ideia de uma nacionalidade africana que constituiria um corpo político
si autónoma 1s». A transição de uma consciência danificada para uma e resultaria na criação de um Estado negro cristão, moderno e civi-
consciência autónoma exige que os escravos se exponham e suprimam lizado. No pensamento africano da época, esse Estado é imaginado
esse fora-de-si que constitui precisamente o seu duplo. Todavia, a como o único local no qual os antigos descendentes de escravos dis-
história pós-colonial do Haiti demonstra que essa abolição inicial não seminados pelo Novo Mundo - raça aviltada e desprezada - encon-
é suficiente para que se produza o reconhecimento e para que se esta- trarão paz e sossego e poderão determinar livremente o seu destino
beleçam novas relações de reciprocidade entre os antigos escravos e colectivo. A emergência de um Estado negro independente representa
os antigos senhores. É necessária uma segunda abolição, muito mais um passo no sentido da regeneração moral e material africana e da
complexa do que a primeira, na medida em que, no fundo, a mesma sua conversão ao cristianismo. Considera-se que será nesse exacto
não é uma mera negação instantânea. Não se trata simplesmente de momento que se renovarão as virtudes criadoras do povo negro que,
abolir o Outro: mas de se auto-abolir libertando-se da parte servil pela primeira vez na história moderna africana, será confrontado com
constitutiva de si, almejando a auto-consecução enquanto figura sin- a prova da concretização dos seus valores numa cidade sobre a qual
gular do universal. assumirá plena responsabilidade.
Ora, a libertação dos escravos não produziu exactamente esse estado Edward W. Blyden é o pensador que mais terá contribuído para a re-
de autodomínio. Pelo contrário, tratando-se de uma negação sem au- flexão sobre as novas figuras da consciência negra possibilitadas pelo
tonomia, induz a reduplicação, novas formas de servidão, actividades estabelecimento da Libéria, ao longo da segunda metade do séc. XIX.
do outro, praticadas por si mesmo e contra si mesmo. É assim que a A seu ver, a soberania de então significa, em primeiro lugar, o «retorno
servidão sobrevive ao processo de abolição. Dado que a emancipação a si». Esse retorno concretiza-se através da memória dos sofrimentos
produziu precisamente o inverso daquilo que almejava ser, a vertente infligidos e suportados na época da dispersão e, segundo o autor, esses
objectal da existência é formulada na permanência, não havendo auto- sofrimentos são comparáveis aos do povo judeu 18 , sendo os de uma
-reencontro por si mesmo.
Observa-se um processo quase similar nesse segundo lugar onde as 16. W. E. 8. du Bois, 8/ack Reconscruct1on m Amerlco, 1860-1880, Free Press, Nova Iorque, 1999
ideias de liberdade e igualdade, o princípio de uma nacionalidade afri- (1935).
17. Edward W. Blyden, «"Ethiopía Stretchang out her Hands unto God or Africa·s Service to lhe
cana e de um corpo político negro sobera_no se corporizam: a Libéria. World", Discourse delivered before the Amerlcan Colonizatlon Society, May 1880" in ID., Christi-
anít;y. lslom and the Negro Roce, Edinburgh University Press, Edimburgo. 1967 (1887).
15. G. W. F. Hegel, Phénoménologle de /'Esprit, Aubier. Paris, 1991, p. 153. 18. Edward W. Blyden, Thefewish Question, Uonel Hart. Liverpool, 1898.
raça que foi profundamente alanceada, na sua mais pura essência•9 • Raça e descolonização do saber
Por outro lado, a emancipação significa o aparecimento da singulari-
dade, contanto que a mesma esteja reconciliada com o universal 20• No contexto colonial propriamente dito, essa «coisa morta», essa
Essa experiência de emancipação ver-se-á confrontada com inúmeros «espécie de osso», foi a raça, que não operava em colónia, como acon-
problemas, cuja maioria advém da natureza ilegítima da iniciativa. A tecia na plantação. No caso do império colonial francês, os modelos
Declaração de Independência, carta simbólica da nova nação, não sus- do pensamento racial tinham modalizado ao longo do tempo, desig-
cita qualquer identificação com África e o seu povo. O novo Estado é a nadamente após o séc. XVII, quando grandes populações não brancas
progenitura da Sociedade Americana de Colonização, um organismo foram chamadas a viver sob a égide francesa. Não obstante as varia-
privado filantrópico. O regresso dos exilados à sua home/and não é as- ções, desde o Iluminismo, esses modelos partilhavam três postulados.
similado a uma reposição dos laços com os seus parentes históricos e O primeiro dizia respeito à procedência de todas as raças da humani-
raciais, mas a uma expatriação. Teriam sido privados da «terra que os dade. O segundo sustentava que as raças não são todas iguais, mesmo
viu nascer[ ...) a fim de constituir estabelecimentos coloniais numa ter- apesar - longe de serem imutáveis - das diferenças existentes entre a
ra bárbara», a África Ocidental. O deus invocado pelos novos emigran- raça branca, a nação e a cultura francesasz•.
tes que afirmam ser também o dos seus pais é, na verdade, o Deus cris- Essa tensão entre raça, cultura e nação não tinha sido inteiramente
tão trazido da América. Contrariamente ao caso do Haiti, o nascimento apagada, nem pela Revolução nem pelo republicanismo. Evidente-
do Estado novo não resulta de um acto de abolição, mas de um gesto mente que a Revolução reiterara a primazia da igualdade de todos e
filantrópico e de um reconhecimento unilateral. Aliás, a Declaração de da procedência comum da Cidade republicana sob todas as restantes
Independência compara-o mais a uma «descolonização programada», formas de distinção social ou racial. Mas, simultaneamente, a França
do que a uma auto-libertação. Muito lestamente, a experiência depara- revolucionária não deixara de converter a diferença racial num fac-
-se com as questões de raça e democracia. Os emigrantes oriundos da tor de definição da cidadania22• Pouco a pouco, a tensão entre um uni-
América definem-se por oposição aos «Aborígenes», que pretendem versalismo desconhecedor da cor e um republicanismo liberal, ávido
«civilizar» e dos quais procuram diferenciar-se através do número, dos dos estereótipos raciais mais grosseiros, impregnou-se na ciência e na
modos de vida, e mesmo da cor, e de um sem número de diferenças cultura popular francesas durante a expansão colonial. Exacerbara-se
internas e externas que convertem a categoria «negra» em qualquer num contexto no qual a função do imperialismo colonial consistia em
coisa, excepto numa unidade coerente - uma categoria polémica. avivar a nação e o «carácter francês» e «divulgar os benefícios da nossa
O Haiti e a Libéria partilhavam o facto de serem repúblicas directa- civilização». De resto, a necessidade de difundir a nossa «civilização» só
mente resultantes da experiência da plantação. O processo de eman- se justificava pela distinção nacional entre a França e os seus Outros23•
cipação, do qual se tornaram marcas na consciência negra, era asso- Ao longo do séc. XIX, os modelos do racismo popular em França es-
lado por uma enfermidade originária. Encerrara em si mesmo algo de tavam, em parte, associados às transformações sociais de relevo (tais
objectal que desde sempre caracterizara a existência sob o regime da como a colonização, industrialização, urbanização, ascensão da famí-
plantação. Daí, por exemplo, o pessimismo associado à possibilidade lia burguesa), que conferiam um carácter de urgência à questão da
de uma vida democrática cujas marcas também se distinguem com diferença em geral e à das diferentes qualidades raciais em particular.
Blyden. Ambas as experiências fracassaram pelo facto de serem assom- Em resposta ao descaso aristocrático em relação aos sans-culottes da
bradas, e mesmo habitadas, pelo espírito da plantação, que não deixava época da Revolução, manifestava-se agora, como um eco, aquele da
de se lhes manifestar como uma coisa morta, como uma espécie de democracia burguesa relativamente às classes trabalhadoras emer-
osso - reduplicação e repetição, mas sem diferença. gentes. A raça era simultaneamente o resultado e a reafirmação da
ideia global da irredutibilidade das diferenças sociais. Todos aqueles

21. Para uma súmula, ver Maxlm Stlvennan, Deconstructfng the Nadon: tmmi9rotion, Rocism and
Citizenship ln Modem Fronce. Routledge, Nova Iorque, 1992.
19. Edward W Blyden, Christionit;y, tslom ond the Negro Roce, op. etc.
20. 1.er. designadamente, Edward W. Blyden, «"Our Orlgin. Dangers and Dutles". Annual Address 22. l.aurent Dubois, Les Escloves de la République: l'histolre oubliée de ta premiêre t!mancipation,
before Mayor and Common Coundl of Monrovia, National lndependence Day, 26 July 1865•, ln 1789-1794, Calmann-Lévy, Paris, 1998.
Henry S. Wilson, Orlglns o/ West African Nadonalism, Macmillan/St Martin's Press, l.ondres, PP 23. Ler, designadamente. Alexls de Tocqueville, Écrits et díscours politlques, ln <Euvres complêces.
vol. 3, Galllmard, Paris, 1992.
94-104.
que se situavam além dos seus caracteres racial. social e cultura lmente de abertura inclui a de eclosão, de nascimento, do aparecimento d e
definidos e ram estrangeiros à nação. Também nas colónias a identi- a lgu ma coisa nova, de d esabrochame nto. Logo, abrir é libertar aquilo
dade nacio nal, e mesmo a cidadania, se confundiram intim a men te com que estava encerrado para que possa nascer e desabrochar. A questão
a ide ia racia l de brancura24. Por mais que se evocassem as expe riê ncias da abertura do mund o - de pertencer ao mundo, habitar o mundo, criar
varo nis e não brancas da Martin ica, Guadalupe, Guiana, Re uni ão e das o mune.lo, ou ainda as condições sob as quais nos constituímos como
Quatro Comunas do Senegal, tratar-se-ia apenas de escassos milhares herdeiros do mundo - é o fulcro do pensa me nto anticolonialista e da
d e indivíduos seleccionados a d edo num vasto domínio povoado de mil- noção de descolonização. Poder-se-ia mes mo a firmar que é o seu ob-
hões d e indivíduos. jecto fundam e nta l. Também é abordada po r· Fa non, para quem a mes-
Em finais do séc. XIX, era poss íve l constatar que a assimilação tinha ma se confunde com o projecto d e autonomia humana ou ainda de a u-
fracassado. Até meados do séc. XX, o império era mais com posto por toc riaç5o da humanidade, como comprova a sua formu lação: «Eu sou
indivíduos do que por cidadãos. Por conseguinte, os na tivos deviam o meu próprio fundame nto:ª.» Além de represe ntar uma inte rrogação
ser «civilizados», nos parâmetros da sua própria diferença - a d as so- interminável. a qu estão da autonomia humana não é novidade, está na
ciedades sem história nem escrita, cristalizadas no tempo. Em larga origem da filo so fi a da Grécia Antiga. Po r conseguinte, tal como evocam
med ida, a d escolonização a penas se limitou a ratifica r esse fracasso. Co rne lius Cac::tori adis o u Vincent Descam bes, faze r mundo, habitar 0
Consagrava jurid icame nte a ide ia segundo a qual todos os s uje itos não mundo e herdar o mundo é participar no projecto d e uma humanidade
bra ncos do Império não pode riam tornar-se cidadãos fra nceses. Entre que formula. por s i e ::i parti r de si, os princípi os da sua conduta i''.
a cidadania e a identidade francesas interpôs-se sempre a barreira da O pensamento fanoniano da abertura do mundo é uma resposta ao
raça2'. tal como se abordará também no capítulo segu inte. Num plano contexto de servidão, subjugação aos senhores estrangeiros e de vio-
dife rente, e a longo prazo, existiu sempre uma estreita re lação entre lência racíal que ca racterizou a colonização. Nessas circunstâncias -
uma d eterminada expressão do nacionalismo francês e um pe nsa mento tal como acontecia a ntes, sob a escravatura - o conce ito do humano
da diferença racial qu e palia o para digma universalista e re publicano. e a noç5o de human idade, que uma p2rte do pensamento racial torna
Simultaneamente, também existiu, desde sempre, uma forma de uni- por adquiridos, não e1·am evidentes. Com efeito, face ao escravo ne-
versalismo francês que é efectivamente um produto do pensamento gro ou ao colonizado, a Europa interrogava-se in cessanteme nte: «Será
racial. Na medida em que França, enquanto nação, e a civilização fran- outro homem? Será outro que não o hom e m? Será outro exemplar do
cesa, enquanto cultura, travaram um conflito permanente com aqueles homem? Ou será a ntes outro além d o mesmo?» No pensamento d a
que foram definidos como «outros», não é de estranhar que a noção de descolonização, a humanidade não existe a µr.iori. Deve fazer-se surgir
humanidade e d e liberdade defendida pela República assente histori- pelo processo através do qual o colonizado desperta para a consciê n-
came nte numa oposição racializada entre civilizados e primitivosL". cia de si, apropriando-se subjectivamente do seu eu, desmonta a sua
Como também não se pode estranhar que o principal intui to do pensa- cerca e permite-se falar na primeira pessoa. Em contrapartida, o des-
mento da descolonização tenha sido a abertura do mundo. pertar para a consciência de si ou ainda a apropriação de si não visam
O propósito da descolonização e do movimento antico lonialista unicamente a realização do eu, mas também - e ainda mais significa-
poder-se-ia e pilogar numa única palavra que a possibilitou: a abertura tivamente - a ascensão em humanidad e, um recomeço da criação, a
do mundo. Segundo jean-Lu c Nancy, a abertura «designa o levanta- abertura do mundo.
m e nto de uma clausura, o descerramento de uma vedação 2' ». A ideia Para Fanon, essa ascensão em humanidade só pode resultar de uma
luta: a luta pela vida. Essa luta - igual à luta pela eclosão do mundo
Z4.Sobre-;; id-;;;~i;~ma «raça francesa», cf. Robert Soucy, Foscism in France: ~he Cose ?f Mourice - consiste em forjar essa capacidade d e ser s i mes mo, de actuar por
Barri:s. Unive rsity ofCalifornia Prcss. Berkeçey. 1972 e Zeev Stcrnhell. Mourice 8urres ec /e no· s i mesmo e d e se e rgue r por si mesmo que Fanon compara a um sur-
cion alisme [rançais. Fayard. Paris. 2000. . . . .
25. No q1 1c se refere à Argél i;i. em pa rticu lar. ve r Pi erre Nora. les Fronço1s d'Algér1e. Jull1ard. Pans.
gimento - , surgime nto das profundezas daquilo a que chama «uma
196 1· David Prochaska, Making A/geria French: Colonialism in Bone, 1870 ·1920. Ca mbndge Uni · região extraordinariamente estéril e árida», essa zona de não-ser que,
vc rsi;y Press . Cambridge. 1990 e Alain Lardilli er, le Peuplemenc [rançais en Alyérie de 1830 ó
1900, Atlanthrope. Versailles. 1992.
26. Tylcr Stovall ... universalisme. diffé rence et invisibilité. Essai sur la not1on de race dans 28 . Frnntz Fanon. Peau noire, masques bloncs. Seuil. Pa ri s, 2001 ( 19 52). p. 187.
l'histoire de la France contempo raine». Cahiers d'histoire, Revue d"h1stoire cricique, n.9 96-97. 2005. 29. Vinccnt 0('SCombcs. l e Complémenc de sujet, Enquêre sur le /ait d 'a91r de soi·même, Gallimard,
27. jean-l.uc Nancy. Déconstruction du chnstionisme, vol. l , la Déc/osion. Galilée. Paris, 2005, p. 16. Paris, 2004. p. 383.

Si-ir da Gninde N ott•. Ens•io \Obre• Africa dcs<oioni.radoil u Abertura do m vndo e tlscen;;Jo ~m hvmanidade
58 S9
no seu entender, é a raça. Assim, para Fanon, sair das 1·egiões estéreis Glissant, a abertura consiste precisamente em ir ao encontro do mun-
e áridas da existê nci.-i é, acima de tudo, sair da claus ura da raça - clau- do, sabendo a braçar o tecido impossível de desenlear das filia ções que
s ura na qual o o lhar do Outro e o poder do Outro tentam agri lhoar o formam a nossa identidade e os e ntrelaçame ntos de redes que fazem
s ujeito. Contribuindo também para dissipar o espaço das distinções com que qualquer identidade se prolongue n ecessariamente numa
nítid as, das separações, das fronteiras e das claus uras e rumar para relação com o Outro - um Outro que, à partida, está sempre lá. Por
o universal que afirma ser «in e re nte à condição huma naJº». Logo, na co nseguinte, a verdadeira abertura do mundo reside no encontro com
co nce pção fanoniana da eclosão d o mundo existe uma tripla dimen são a sua intei reza. aquilo que Glissant designa de Todo o Mundo. Nesse
in s urrecciona l visto assemelhar-se a um retorno à vida (anástase}, à aspecto, e la é, acima de tud o, uma práxis da inter-relação. A tem áti-
s ubtracção da vida às forças qu e a limitavam. A seu ver, a eclosão do ca da inter- re lação e a qu estão da inteireza també m são tratad as por
mundo equivale à sua abertura se - segundo jean-Luc Nancy - por abertura, Paul Gilroy, g;rn hando contorn os de uma nova consciência plan etá ria i2•
se entender a d esmontagem e o d es mantelamento das cercas, clausu- Tanto para Gi lroy quanto pa ra Glissant, o proj ecto não consiste nem
ras e vedações. Mas, para que a abertura do mundo se concretize, será na parti ção do mundo nem na s ua divisão. Pe lo contrá rio, a procura d e
necessário um desprendimento do eu, a lm ejando-se precisamente um centro d eve ceder o lugar à construção d e esfe ras de ho rizontali-
e nfrentar aquilo que vem e fa;:endo s urgir outros recursos da vida. dade tratando-se, assim, de um pensamento h orizo ntal do mundo que
Razão pela qual o e u fanoniano é s imultaneamente a bertura, disten- privilegia a é tica da mutua lidad e ou, como s uge re Gilroy, da co nvivên-
são e afastamento - o Aberto. A raça já foi evocada como a região árida cia do ser- com outros:<!.
d a existência . Pa ra Fanon, a abe rtura do mundo pressupõe a abolição No p en sam e nto negro, a inte rrogação ace rca da descolonização
d a raça. Só pode co ncretizar-se quando se admitir a verdade segundo (entendida co mo um mom ento eminente do projecto de abertura do
a qual «O negro não é. Não é mais do que o branco»; «O negro é um mundo} é indissociável da questão da Europa. Sob esse prisma, o pensa-
homem igual aos outros, um home m como os outros», «Um homem e n- mento da d escolonização é uma contenda com a Europa, aquilo que
tre outros home ns» 3 '. Na óptica d e Fétnon, o postulado de uma similari- a última afirma ser o seu te/os e, ainda mais especificamente, co m a
dade fundamental, de uma cidadania humana originária é a chave do questão de saber sob qu e condições o d evir-europeu poderia consti-
projecto de abertura do mundo e do projecto de autonomia humana tuir um momento positivo do devir-mundo em geral. Na história da
da descolonização. filosofia, os europeus tiveram tendência a autodefinir-se de três ma-
O tema da abertura do mundo ocupa um lugar de destaque com outros neiras. Por um lado, frisaram o facto de que «a história não é prim e ira-
pe nsadores negros corno Léopold Sédar Senghor, para o qual a descolo- mente a história da humanidade», só o sendq através «da passagem da
nização implica a existência de um s ujeito que nutre a preocupação história do Ocidente para a da Europa e do respectivo alargamento à
daquilo que é próprio a si mesmo. Mas também aqui aquilo que nos é história planetária H». Por outro lado, defend em que a própria história
próprio e que nos define particularmente só é dotado d e sentido, na europeia elevou a humanidade europeia «a um nível. até então. nunca
medida em que se destine a ser partilhado. Senghor chama de «encon- antes alcançado por outra forma de humanidade.Is». O facto d e que «a
tro entre o dar e o receber» ao projecto do em-comum. No seu entender, humanidade eu ropeia tenha conseguido tomar-se pela humanidade
d essa comunhão dependem o renascimento do mundo e a ascensão de em geral» e que tenha conseguido considerar as s uas formas de vida
uma comunidade universal mestiça, regida pelo princípio da partilha como «globalm ente humanas» não seria mais do que a marca de uma
das diferenças, daquilo que é único e, como tal, aberta ao todo. Tanto exigência de responsabilidade, e mesmo de capitania universal.
para Fanon quanto para Senghor, somos herdeiros do mundo todo. Si- Essa vocaçã o de capitania, que também é uma vontade d e pod er,
multaneamente, o mundo - e, logo, essa herança - estão por criar. O derivaria das suas diversas heranças, incluindo do cristianismo. Por
mundo está a ser criado, e também nós. Além desse processo de cria- exemplo, a respeito do último. Jean -Luc Nancy afirma ser indissociável
ção, co-criação e autocriação, é mudo e inatingível. Ao contribuir pa ra
esse processo triplo adquire-se o direito de herdar o mundo na sua 32. Paul Gilroy. 1.:Ac/a11tique noir, modernité ec double conscience, Kargo. Paris, 2003 e ID. Agamst
totalidade. Para outros pensadores negros, à semelha nça de Édouard Roce, lma9inm9 Po/1cica/ Cu/cure beyond che Calar line. Harvard University Press. Cambridge.
2000.
- - - - ·- - -- 33. Paul Gilroy. Postcalonial Melancholia, Co lumbia University Prcss. Nova Iorque, 2005.
30. Frantz Fanon, Peau naire. masques blancs, op. cit .. Seuil. pp. 7-8. 3 4. Jan Patocka, /..'Europe aprés /'êuropc. Verdier. Paris, 2007, p. 13.
31. lbid. pp. 54 e 91. 35. /bid., p. 235 .

60 Adi.ti ~ M b('-mbe S•if da Gr•nde Noite. Ensai o sobre a África dt!Scolonit~ • li, At>ertvril do muodo e as<tMio tm humanidade 61
do Ocide nte. «Não se trata d e um eve ntual acidente que lhe te rá s uce- radical, é a outra d es ignação do totalitaris mo. A terceira é «aquela que
dido e também não lhe é transce nde nte. É co-extens ivo ao Ocidente co rrompe a vocação universal da Europa» em ascendência impe rial,
como Ocidente, ou seja, a um d eterminado processo de ocide nta lidade colonial ou neocolo nial. As duas primeiras formas de cisão operam -se
que consiste precisamente numa forma de auto -reabsorçã o e d e auto- no seio da Europa, a o passo que a terceira se in sere numa separação
-superação36.» Na década de 1930, Husserl já dilucidava que a Europa rad ical entre a Europa e os povos não-bran cos. Nesse caso, a alteri -
se definiu pela razão e pela sua universalidade. Paul Val é ry, por seu dade estende-se assim às fronteiras espirituais, geográficas e raciais. O
turno, a ludia ao Velho Contine nte como um «cabo» - po nta de terra Outro são os não-europeus que se nos opõem. E o estatuto desse Outro
que avança pelo mar - e como aquilo que está à cabeça ou é a cabeça. se rve para enuncia r a ameaça. Por conseguinte, segundo Patocka, o
que lide ra e domina, que exe rce uma es pécie de capita nia so bre o res - triplo risco res ide na rej e ição da racionalida d e, do excesso d e racio-
to. A respe ito da Europa. acrescentava a inda que é «a pa rte preciosa do na lidade e d a pe1·ve rsão do princípio da unive rsalidade em ascendê n-
unive rso te rrestre, a pérola da es fera, o cé rebro de um co rpo ime nso», cia universal. Numa posição que nos é mais próxima, Jacques Derrida
o corpo da humanidade, a sua extre mida de. tentou elabora r uma s íntese entre a prime ira e a segunda abordagem.
Qu er tratando-se de Husse rl ou de Valé ry, rezava id eia d e q ue, na Num dos seus últimos textos, inte rroga-se acerca do sentido a d ar
Europa, o universal se tinh a inscrito in s uhstituive lm e nte tanto na ao nome e a o co nce ito, logo ao destino, da Europa 1 R. A sua ideia de
razão, quanto no singular. Com essa in scrição, a Europa tornava -se o Europa, a que cha ma <<uma outra Europa», uma Europa «sem o men or
vértice do espírito, mas també m o testemunho úni co da essê ncia da curocentrismm>e que, «sem renunciar ao realis mo e aos trunfos indi s-
humanidade e do «pr óprio do homem». O seu carácte r exe mplar re- pensáveis de uma superpotência económica, militar, técnico-científica
sidia precisamente nesse aspecto - a inscrição do universal 110 corpo evocaria a sua memória, a sua memória ún ica, nas suas memórias
próprio de uma singular idade, um idioma, uma cultura e, nos casos mais mais luminosas (a própria filosofia, o Iluminis mo, as suas revoluçõ es.
obscuros, de uma raça. Afigurando-se a uma tarefa filo sófi ca, a missão a história aberta e a inda a pensar direitos d o homem), mas també m
Europa consistia em alumiar as luzes da razão em no me da liberdade. nas suas memórias mais sombrias, mais culpáveis, mais penitentes (os
Para os me nos ineptos, a filiação europeia equiparava-se a uma aber- genocídios, o Holoca usto, os colonialismos, os tota litarismos nazi, fas-
tura à humanidade no seu todo. cista ou estalinista , e inúmeras violências opressivas) [ ...],encontraria
Por fim, uma certa tradição filosófica privilegiou uma forma de re- nas suas memórias, a melhor e a pior, a força política» não de uma
flexão sobre a ideia da Europa cujo ponto de partida é aquilo que a política do mundo, mas daquilo que designa uma política altermun -
mesma considera ria como ameaças e perigos que o princípio europeu dialista. Assim, Derrida procura uma Europ? que associaria o bem à
teria de e nfre ntar. Desd e sempre, a ameaça foi representada sob a figu - soberan ia, ou seja. uma Europa que resistiria à tentação d e red uz ir a
ra do Outro da Europa de duas caras. Tal como frisa Marc Crépon, surge comu nidade originária dos homens a uma comunidade a ni mal, cujo
inicialmente sob a figura dos «processos através dos quais a Europa se chefe seria, em suma, uma espécie de lobo. Logo, trata-se de uma Eu-
tra nsforma no seu Outro, ou ainda se torna estrangeira d e si mesma ·~. ropa que se oporia ao princípio do Homo homini lupus (o homem que
A a lteridade é então a alteração da identidade ou, pelo me nos, daquilo não é um home m, mas um lobo para o seu seme lhante). Derrida é
que é proposto como identidade». Para Patocka, essa am eaça d e al - provavelmente o único pensador europeu a propor implicitamente a
ce ração assemelha-se sempre a uma cisão. Ao longo d o século pas- re leitura da biogra fi a da Europa. não a pe nas à luz da razão e do uni -
sado, distingue três cisões, e m particular, que afectaram e continuam versal, mas a partir da temática do lobo, ou seja, do devir -animal e do
a afe ctar profundamente o princípio europeu. A prime ira consiste no devir-animal de um soberano que só se dete rmina como soberano na
hiato existente na Europa entre espaços culturais e políticos abertos a condição de an imal. e só se institui como s oberano graças à possibi -
essa vocação universal e outros tentados pe lo recolhimento nessa sin- lidad e de d evorar o seu inimigo. Ora. essa forma de escrita d a biogra -
gu laridade. A segun da v ê «uma insurgir-se contra a outra, no seio da fi a e u ropeia está patente na corrente de pensamento des ignada d e
Europa, duas versões do princípio de racionalidade», sendo que uma, «crítica pós-colonia l» e que defende tanto uma «provincialização da
Europa» quanto a sua abertura.
- ---- -
36. jean-Luc Na ncy. Déconstroction du christ1anisme. vol. 1: " La Déclosio n-, op. cit ., p. 207.
37. Marc Crepon. «Pe nser l'Eu ro pe avcc Patocka. Réílexi ons sur l'a lté ri té~. Esprit, Dezem bro de
2004. 38. Jacq ues Oerrida, «l..e souverain b ie n - o u l'Europe en mal de souverain eté», Cités, n .9 30. 2007.

6> A(hille Mbembe Sair da Grande Norte. Ensaio sobre • Afrk• descoloniudil !I. Abc:rtur-~ do mu,,do ~ ln.ct:nsâo em hvmcimd.tde 63
Nascime nto de um pen sa m e nto mundo lntimate Enemy" ) que formula a pro posição de que o colonialismo foi
acima de tu do, um a qu estão física; e que, como tal. a luta contra o co~
Pode afirma r-se que existe m três momentos centrais no desen- lonial ismo foi simultaneamente uma luta material e menta l (mental
volvimento do pensamento pós- colonial. O momento inaugural é o war) e que. em todas as circunstâ ncias. a resistência ao colonialismo
d as lutas anticolonia is. Essas lu tas são antecedidas e acompa nhadas e o nacionalismo - o seu corolário - foram o brigados a operar sob os
pela reflexão dos colo nizados sobre si mesmos, sobre as contradições termos ?ré-definidos pe lo Ocidente. ~uito a ntes dos outros, é Nancy
resultantes do seu estatuto dualista d e «nativos» e d e «sujeitos» no que facilita a passagem d e Fanon na lndia. Pa ralela mente, intro duz a
Império; po r uma análise minuciosa das forças que permitem resistir psica nálise no discu rso pós-colonial, encetando um diálogo e ntre essa
à suprern:.icia coloni a l; pelos debates acerca das relações e ntre aq uilo co rrente de pensamento e a Dialéctica do esc/arecim ento 4 ' d e Ho1·k-
que é inerente aos fa ctores d e «classe» e aq uilo que é atinente aos fac - hei mer e A<lorno. Por outro lado, Gayatri Cha kravorty Spivak. universi -
tores de «raça». O discurso da é poca a rticula-se então e m torn o da- tá ria d e origem.indiana. tradutora de Jacques Derrida (Gramatologia),
quiio que poderia d esig nar-se por política da autonomia, ou se ja, reto- au tora d e um celebre texto que se tornou um clássico, Les Subalternes
mando Vince nt Descombes, a possibilidade d e «dizer eu», de «actuar peuvent·elles porler? (As s ubalternas podem falar?) e de um compên-
por si mesmo», d otar-se de uma vontade cidadã parti ci pando. assim, dio intitulado A Critique of Postcolonial Reason 15• Por fim, Homi Bhabha,
na criação do mundo. edi to r da obra colectiva Notion and Narration, come ntador de Fa non e
O segundo momento que su cede situa -se geograficam en te pela déca - o a utor d e The l ocation of Culture"'.
da d e 1980, no momento d a g rande hermenêutica (high theory), cuja É também ao IOJigo das décadas de 1980-1990 que começa a operar-se uma
epíto me é a publicação, por Edwa rd Said, da sua obra-prima, Orientalis- conve rgência entre o pen sa mento pós-colonial, por um lado, e muitas
m o '4, que o a utor prolonga e a pu ra alguns anos mais tarde com The outras corre ntes, e as gen ealogias particulares, por outro. Basta citar
World, the Text, the Critic e, posteriormente, Culture et impérialisme•r.. duas, c:uj o mérito faculta um fund a mento historiográ fico ao que, até
Com efeito, é Edward Said, um palestinian o a pátrida, que lança as e ntão. consistia sob retudo numa análise d e textos lite rá rios. E, inicial-
primeiras bases daquilo que se torna rá progressivam ente na «teoria me~te •. os «subaltern studies», corrente de reflexão his tórica originária
pós-colonial», entend ida agora como uma forma alternativa de sa- da lnd 1a e que d ese nvolve uma crítica da his toriografia nacionalista e
be r sobre a mode rnidade e uma disciplina a cadémica plena. Um dos anticolonia l tenta ndo. simultaneamente, recuperar as vozes e capaci-
contributos decisivos de Said consistiu em demonstrar. em oposição dades históricas dos vencidos da descolonização (camponeses. mulheres,
à doxa marxista da época, que o proj ecto colon ial não era redutível a casta dos intocáveis, margi nais, suba lternos) .através de uma revisão e
um s imples dispositivo militar-económico. mas que era su bentendido de uma re leitu ra criteriosa do marxismo (ver, designada mente, Dipesh
por uma infra-estrutura discurs iva, uma economia simbólica, todo um Chakrabarty. Provincializing f;"urope). Atende ndo ao p r ivilég io co nce-
aparato d e saberes cuja viol ência era tão epistémica quanto fí sica. A d1~0. ao~ ~<s.e m-v oz» e aos «Sem-poder». uma boa parte da inspi ração
análise cultural da infra-estrutura discurs iva ou simplesmen te da te o n ca 1n1c1a l da escola dos subaltern studies emana d e Gramsci. Mas a
imaginação colonial converter-se-á progressivamente na própria maté ria «tradução» de Marx para co ntexto ~ e línguas não euro peus visa. acima
da teoria pós-colonial e suscitará críticas austeras junto dos intelectuais de tudo. co mpreender· porquê, na lndia, a luta anticolonial não resulta
de tradição marxista e internacionalista como Aijaz Ahmed (ln Theory: de todo numa trans forma ção radical da soci edade, mas n uma espécie
Classes, Nations Literatures4 1), Chandra Talpade Mohanty (Third World de «revolução passiva» caracterizada pela re taliação do «com unalis-
Women and the Politics of Feminism 42) ou ainda Benita Perry. mo», ou seja, em última instância, numa figura de anti-nação.
No contexto indiano, três pe nsa dores contr ibuem também para au- Por outro lado, existe um pensa mento afro-mode rno que se de-
mentar a fresta aberta por Said. Em primeiro lugar, Ashis Nandy (The senvolve na periferia d o Atlâ ntico e q ue, a liás, toma essa formação
- ..
39. Edw;:ird W. Sai d, L'Orienta/isme, L'Orienc crée par l"Occident, Seu il, Paris. 1997. 43. Ashi s Nandy. T/Je /1111mace En emy. Oxford Unive rsíty Press. Deli. 1983.
40. Edw<ird W. Said. The World, the Text, tire Critic, Harvard Univc rs ity Press. Cambridge. 1983. e 44. Max Horkhc imer e Theodor W. Ad orno, La Dialectique de lo roison, Gallimard, Paris, 1983
1D. Culture et ímpérialisme. Fayard, Paris, 2000. 4 5. Gaya.t~i Ch~ kravorty S~ivak. Les Subulternes peuvent-elles porler?, Amesterdão, Paris. 20 09, e
41. A1jaz Ahmed, ln Theory: Classes, Nacfons Literatures. Verso. Londres, 1994. 10 .• A Crwquc of Post colo111ol Reoson. Harvard Uníversity Press, Cambridge. 1989.
42. Chandra Tal pade Mohan ty, Third Wor/d Women ond the Politics o{Fem inism, Ind iana Univer· 46. H~m i Bhabha. (d ir.). Nation and Norrotion. Routledge. Londres/Nova Iorque, 1990 e 10 .• The
síty Press. Bloomington. 199 l. Locot1on of Cu/cure, Routl edge. Londres/Nova Io rque. 1994.

S.air da Grande N oite. Enwio sobr~ ~ Áfri<a descolonludai


oceânica e transnacional como a própria unidade da sua análise (no- Em primeiro lugar, a denegação revela-se uma operação da linguagem.
meadamente, o caso de Paul Gilroy com t.:Atlantique noir). Essa cor- De seguida, é_ uma forma de recalcame nto. Finalmente, é uma pulsão
rente de pensamento é in erente aos afro-bri tânicos, a fro-america nos d estruidora. Africa é um objecto de fruição e de aversão. Assemelha-se
e afro-caribenhos. A sua preocupação central reside na reescrita das ao objecto anal. A fruição sentida consiste inicialmente na expulsão de
múltiplas histórias da mode rnida de enquanto encruzilhada de factos um excremento e d e um detrito. No entanto, esse objecto anal não é de
de raça e de factores de classe. Nesse âmbito, esse pe nsa me nto afro- todo desprovido de presença nem de image m, consistindo na presença
-moderno interessa-se tanto pela questão das d iásporas quanto dos e na imagem de um orifício e de uma ruína originária. É essa ruín a
procedimentos através dos quais os indivíduos são s uhmetidos a catego- que é objecto de figuração e é tamb ém ela que a literatura ficcion ará,
ria s infamantes, que lhes barram qualquer via de acesso ao estatuto argumentando que para lá da v iolência jaz uma verdade, mesmo que
d e s ujeitos na história. Com o é efectivamente o caso da oclusão numa a última tenha perdido o seu nome, que é necessário recuperar. Por
raça. Nesse aspecto, W. E. 8. Ou Bois (Les Âmes du peuµle noir·) é o conseguinte, o discurso africano pós-colo nia l nasce de um «fora-do-
pensador afro-americano que ana li sou mais adequadamente os efei- -mundo», dessa zona sombria e opaca que definiu o não-ser tratado
tos do «véu sombri o de cor» que cobriu os indivíduos d e origem afri - por Hegel em A razão na história. Surge da obscuridade, dos confins do
cana no Novo Mundo. Defende que um «véu» assim não se limita atol- porão ao qual a huma nidade negra esteve confinada anteriormente no
dar aquele que é obrigado a e nvergá -lo, torna-o ainda irrecon hecível discurso ocidental. Na história do pensa m e nto africano, a literatura,
e in compreensível, vítima d e uma «co nsciência dupl a». É igualmente a música e a religião oferecem respostas a essa exclusão, ao indeferi-
uma corrente de pensamento muito sensível à temática da «libertação mento e à den egação que revelam o nascimento d e África ao mun do.
dos espíritos» e da memória e m condições de ·cativei ro (designada- Esse nascimento ocorre num espaço nocturno. Daí, por exemplo, ares-
m e nte, a religião, a música e as artes performativa s), à problemática p o_sta de Senghor sob a forma de um hino órfico: o «canto d e sombra».
da dispersão (diásporas), ou a inda ao que Glissant d esigna de «poética A negação da humanidade sobrepõe-se a afirmação da alteridade ir-
da ielação>}. A experiência artística e estética desempe nha um papel redutível do africano e a inscrição do signo africano numa estrutura da
crucial nas reflexões da corrente. Abordando o cântico dos escravos. diferença dotada de atributos psicológicos. Aqui, a Antropologia, irmã
«velhos cânticos misteriosos através dos quais a alma do escravo ne- da Psiquiatria na colónia, constitui a disciplina por excelência dessa
gro comunicou com os homens», W. E. 8. Ou Bois afirma que «aqueíes leitura do Outro que ter-se-á privado de razão de antemão. Uma estru-
que caminhavam nas trevas, antigamente, entoavam cânticos de dor tura justamente psicótica, devido à identificação do continente com a
- p orque o seu coração estava fraco». O tema da música negra é reto- loucura e, globalmente, com a doença sob as suas duas formas : orgâni -
mado por Paul Gilroy que o estende à análise do jazz e do reggae• 8 . ca (à imagem da epilepsia) e psíquica (à imagém da melancolia)•9. Ora,
Na vertente africana do Atlâ nti co, o momento propriamente p ós-co- essa experiê ncia d a negatividade é produtora de ficção. A ficção visa
lo nial nasce na literatura. O acto literário não resultando do acto psi- libertar o s uj eito da ausência e do nada aos quais esteve confinado.
canalítico puro e simples, prové m, ao m enos, de um s is te ma s imbólico Desde a sua origem, o objectivo da literatu ra africana consiste em evi-
cuja principal intenção é a cura. O local de nascimento dessa literatura é tar a ausência de realidade que tem enfarpelado o signo africano. Sem
uma estrutura de terror, na qual a África se apresenta como aquilo que matar o «pai», impregna-o de uma culpabilidade que induz um an·e-
nunca chegou a existir e que, co mo tal, é desprovida d e qualquer força pendimento.
de representação, visto ser o princípio por excelência d a obstrução e O terceiro momento é assinalado pelo facto central da nossa época -
da cristalização. Nunca tendo nascido verdadeiramente, nunca tendo a globalização, a expansão generalizada da forma mercadoria e o seu
abandonado a opacidade do nada, só pode penetrar n a con sciência uni- embargo da totalidade dos recursos naturais, das produções humanas,
versal à força - e ainda assim. Ou seja, é uma realidade sem real. Na sua em suma, do vivo. Nesse â mbito, o texto literário em si já não pode consti-
origem, o acto literário africano é uma resposta a essa exclusão que é, tui r o único arquivo de predilecção. Mas a refl exão crítica acerca das
s imultaneamente. ablação, excisão e pejoração. No discurso ocidental, formas contemporâneas de instrume ntalização da vida pode reforçar
essa operação primitiva de denegação opera segundo um eixo triplo. a sua radicalidade, caso se proponha a encarar com seriedade essas
formações antigas e recentes do capitalismo, como a escravatura e a
47. W. E. B. Ou Bois, LesÁmes du peuple 11oir, La Découverte, Paris. 2007 ( 1903).
48. Paul Gilroy, Darker than 8/ue. Harvard University Press. Cambridge. 201 O 49. Bernard Mourahs. J:éurope. l'Afrique et la folie. Présence africaine, Paris 1993.

66 A.(h1U ~ M bembc Sair da Grande Noite . Enw10 ~bre a África deKoloni:zad•


colonização. Com efeito, no modus operandi do cap italismo colonia l, que tipo de morte se padece? Demonstra que, no humanismo colonia l
con s tata-se como foi cons tante a recusa de instituir a esfera do vivo europeu, exis t e algo que deve designar-se por ód io inconsciente d e si.
co mo um limi te à apro pria ção econ ó mica. A escravatura, por s ua vez. O racismo, e m ge ral. e o racis mo colon ia l, em particular, constituem a
foi um modo d e produção, circulação e distribui ção das riquezas as - transferência, para o Outro, d esse ódio e desprezo de s i mesmo. Ain da
sente na recusa de institucionalização de algum tipo de domíni o d o mais grave, a figura da Europa que a colónia (e, antes dela, a «planta-
«não apropriáve l». Soh todos os aspectos, a «plantação», a «fábri ca» e ção » sob o regime da escravatura) vivencia e com a qual se vai familiari -
a «Colónia» fora m os principais la boratór ios nos quais foi experimen - zando gradualmente, em nada se assemelha à da libe rdade, igualdade
tado o devir autoritá rio do mundo, tal como se observa hoje em dia. e fraternid ad e. Sob a máscara do humanismo e do universalis mo, os
Co mo se cons tata, a crítica pós-colon ial é uma constelação intelec- co lon izados não desvendam a penas um sujeito freq uen temente s urdo
t ual cuj a força e fraqueza provêm da sua própria e closão. Resultad o da e cego. É so bretudo um sujeito ma rcado pelo d esejo da sua própria
circulação dos sab eres e ntre dive rsos co ntinentes e através de dive r- morte por intermédio da morte dos outros. É t ambém um sujeit o para
sas tradições a nti -imperialistas, é como um rio d e múltiplos aflu e n · o qual o dire ito é quase sempre dissociável da jus tiça sendo, ao invés,
tes. Essa crítica salie nta dois pontos. Em primeiro lugar, alumia clara - um meio de induzir a guerra, co nduzi-la e pere nizá-la. Por fim , é um
mente a violência inerente a uma ideia particular da razão de que o sujeito para o qual a riqueza é. so bretudo, um ins trumento de exer-
fosso colo nial separa o p ensamento ético europe u das suas decisões cício do dire ito d e vida e de morte sobre os outros, como se evocará
p ráticas, políti cas e si mbóli cas. Na verdade, co m o pode reconcili- adiante.
a r-se a fé proclamada no homem e a leviandade com que se sacrifica Dõravante, sa be-se que, em parte, a retórica do huma nis mo e do uni-
a vida, o t raba lh o dos colonizados e o se u mundo de s ignificações? A versalism o fo i utilizada para acobe rtar a força - uma força que não
título de exemplo, é essa a interrogação formulada por Aimé Césaire, sabe ouvir e não sa be transformar-se. Uma vez mais, é Fanon que
1
no seu Discurso sobre o colonia!ismo 50• Por outro la do, essa crítica fri sa mais se destaca na consideração dessa esp écie de força necropolíti-
a humanidade por vir, aquela que deve aàvir da abolição das figuras ca que, ao transita r pela ficção, adoece com a vida, ou ainda, num acto
coloniais do inumano e da di fe rença racial. Essa espera n ça no advento de reversão permane nte, toma a morte pela vida e a vida pela morte.
de uma comunidade universal e frate rnal aproxima-se muito do p ensa- Motivo pelo qual a relação co lon ial oscila constan temente e ntre o de-
mento judeu, pelo menos, na óptica de Ernst Bloch, e m esmo de Walte r sejo de explorar o Outro (formulado como racial me nte inferior) e a ten-
Benja m in - a dimensão teológico-política em falta. t ação de eliminá-lo, exterminá-lo. A terceira característica da crítica
Essa crítica também tenta desconstruir a prosa colonial. ou seja, a pós-colonia l reside no facto de que é um pensam e nto da imbricação e
montagem mental, as representações e as forma s simbólicas que ser- da concatenação. Nesse aspecto, opõe-se a uma certa ilusão ocidental
viram de infra-estrutura ao projecto imperial. Procura desmascarar o segundo a qual só haveria sujeito mediante o retorno circular e pe r-
poderio de fals ificação - em sum a, a reserva de fa lsidade e as funções manente a si mesmo, a uma s ingularidade essencial e inexaurível. In -
de fabulação sem as quais o colonialismo teria fracassado enquanto versamente. essa crítica sublinha o facto de qu e a identidade nasce da
configuração his tórica de poder. Revela que aquilo que aconteceu ao multiplicidade e da dispersão; que o retorno a s i mesmo só é possível
humanismo europeu manifestou -se sempre nas colónias sob a figura no entremeio, no inte rs tício en tre a marcação e a desmarcação, naco-
da duplicidade, da linguagem dupla e, muito frequentemente, da d e- -constituição. Nessas circu nstâ ncias, a colonização não se revel a uni-
turpação do real, sabendo-se também que a colonização não deixou d e camente como uma supremacia mecânica e unilate ral, que impõe ao
mentir ao seu próprio sujeito e ao sujeito de outrem. Os procedimen- subjugado o silêncio e a inacção. Pelo contrário, o colonizado é um in-
tos de racialização do coloniza d o constituíam o m otor dessa economia divíduo que vive, fala, tem con sciência, actua e cu ja identidade resulta
d a mentira e d a duplicidade. Com efeito, a raça representava a região de um movime nto triplo de efracção, extinção e reescrita de si mesmo.
selvagem do humanismo e uropeu, o seu Anima l. Por conseguinte, a Como tal, a universalização do imperialis mo não se explica exclusiva-
crítica pós-colonial tenta desarticular a ossamenta do Animal, desem- mente pela violência e coerção. De facto, por motivos mais ou menos
boscar as suas moradas privil egiadas. Mais radicalmente, interroga-se : válidos, mui tos colonizados aceitaram tornar-se cúmplices conscientes
como se v ive sob a égide do Anima l? De que tipo de vida se trata e de de uma fábula que os fascinava em diversos aspectos. A identidade d o
coloniza d o, bem como a do colon izador, constitui-se na e ncruzilhada
5 0. AiméCésaire, D;scours sur /e colonialisme, Présence africaine, Paris. 2004 ( 1950).

68 Ach,ne Mbembt S•it da Gf'ande Norte. Ennio sobre• África descoloniud1 li AbE'rtura do m undo• .ucef'lsào em hvmamdt1dc '9
entre a elipse, o desprendimento e a retoma. Esse vasto campo de am- forçadas. É o tempo da miscigenação forçada das popu lações, da cisão
bivalência e os considerandos estéticos dessa imbricação e os seus criadora em torno d a qual surge o mundo crioulo das grandes culturas
efeitos paradoxais têm sido alvo de inúmeras análises. A crítica do urbanas contemporâneas. É igualmente a era das grandes experiên-
humanismo e do universalismo europeus no pensamento pós-colonial cias planetárias. Como demonstra Paul Gil roy em L'Atlantique Nair ou
não é um fim em si. lança os fundamentos de uma nova interrogação ainda historiadores como Peter Linebaugh e Marcus Rediker (The Many
acerca da possibilidade de uma política do semelhante. O reconhe- Headed Hydra-s 1), é o momento no qual homens. afastados da terra, do
cimento do Outro e da sua diferença é preliminar a essa política do sangue e do solo aprendem a imaginar comunidades para lá dos laços
semelhante, tal como se abordará também no capítulo seguinte. Essa da terra, abandonando o aconchego da repetição e inventando novas
inscrição no futuro, na busca interminávei de novos horizontes do formas de mobilização e solidariedades transnacionais. Enquanto as
hom em através do reconhecimento do outro fundamentalmente corno colónias ainda não se tinham conve1-tido nos grandes laboratórios da
homem, é um aspecto d esse pensamento que muito frequentemente se modernidade no séc. XIX, a «plantação» já prefigurava uma nova consciên-
olvida. Ora. é parte integrante da busca de Fanon, das CEuvres poétiques cia do mundo e da cultura.
de Senghor, então prisioneiro num campo de co ncentração alemão (o A par desses factores históricos, existem outros níveis de articu-
Front Stalag 230). das meditações de Edward Said no ocaso da sua lação de natureza teórica, designadamente o caso em que começa a
vida ou, mais recentemente, das considerações de Paul Gilroy acerca esboçar-se um diálogo entre o pensamento pós-colonial e o pensa-
da possibilidade de uma vida convivia!, num mundo que é agora multi- mento afro-moderno, oriundo dos Estados Unidos e das Caraíbas.
cu ltural e heterogéneo (Postcolonial Melancholio). Deparamo-nos com Esse pensamento afro-moderno é um pensamento do entremeio e do
as mesmas tónicas em grande parte do pensamento afro-am ericano entrelaçamento. Reitera que só se pode apelar verdadeiramente ao
que, aliás, se depara com a dificuldade de reapropriação dos legados ·! mundo quando, por força das circunstâncias, se permaneceu com os
da escravatura e do racismo, para dispô-los ao serviço da resistência outros. Nessas condições. «entrar em si mesmo», é antes de mais «sair
dos dominados sem. no entanto, cair na armadilha da racialização e da !' de si mesmo», sair da noite da identidade, das lacunas do seu pequeno
global ização da raça. mundo. Deparamo-nos, então, com um modo d e ver o mundo que as-
Pode alvitrar-se que, sob muitos aspectos, o pensamento pós-colo- senta na afirmação radical da corpulência da proximidade, da desloca-
nial é um pensam ento-mundo, mesmo se, à partida, não aplica esse ção, e mesmo do desmembramento 52• Noutrns termos, a consciência do
conceito. Em primeiro lugar, demonstra que não existe qualquer dis- mundo nasce da actualização daquilo que já e ra possível em mim, mas
junção entre a história da nação e a história do império. O Napoleão através do meu cruzamento com a vida de oµtrem, da minha respon-
do restabelecimento da escravatura e Toussaint Louve1·ture, o repre- sabilidade em relação à vida de outrem e dos mundos aparentemente
sentante da revolução dos direitos do homem representam as duas longínquos e, sobretudo, de pessoas com as quais, aparentemente, não
faces da mesma nação e do mesmo império colonial. O pensamento tenho qualquer ligação - os intrusos.
pós-colonial revela como o próprio colon ialismo foi uma experiência Mas a crítica pós-colonia l também é um p ensamento do sonho: o
planetária e contribu iu para a universalização das representações, téc- sonho de uma nova forma de humanismo - um humanismo crítico
nicas e instituições (o caso do Estado-nação. d a mercadoria nas suas que, acima de tudo, assentaria na partilha daquilo que nos diferencia,
espécies moderna s) . Indica-nos que, na base, esse processo de univer- aquém dos abso lutos. É o sonho de uma pó/is universal e mestiça .
salização - longe de ser unilateral - foi paradoxal, povoado por toda Aquilo que Senghor preconizava na sua CEu vre poétique - o «renasci-
a la ia de ambiguidades. Além disso, no que se refere ao Atlântico, à mento do mundo» do qual fala, por exemplo, a sua «Oração às máscaras».
«colónia» acresce outra agregação d o poder - a «plantação», unidade Para que essa pó/is universal exista, o direito universal de herdar o
central de uma era anterior que poderia designar-se por era da pro- mundo no seu todo deve ser reconhecido a todos. Em contrapartida, o
toglobalização. A crítica pós-colonial revela que a nossa modernidade pensamento da pós-colónia é um pensamento da vida e da responsabi-
gl0bal deve ser pensada muito a lém do séc. XIX, a partir do período lidade, mas sob o prisma daqu ilo que desmente ambos. Baseia-se em
ao longo do qual a mercanti lização da propriedade privada se efectua
juntamente com a das pessoas, na época do trá fi co de escravos. A era
Sl. Peter Linebaugh e Marcus Rediker, The Many Headed Hydra. Sfaves, Saifors, Commoners and
do tráfico atlântico é também a era das grandes migrações. mesmo que the Hidden History ofthe Revolutionary Atlantic, Beacon Press, Nova Iorque. 2001.
52. Claude Mckay, Banjo, André Dimanche. Paris, 2002.

70 Ac:h1lle M bembe Sair da: Grande Noite. Ens.iio sobr~ a Afriu desc.oloniiada li. Abertura do mundo e as;c.ensão em hvrn anid~d~ 71
determinados aspectos do pensamento n egro (Fanon, Sengh or, Césaire de metáforas, através das quais procu rou dizer-se e dizer o mundo,
e out ros). É um pensamento da responsabilidade, e nqua nto obriga~·~o faze r-se Ideia. Para não caducar, essa Ideia deve constituir-se inces-
de respond er por si mesmo, de afia nçar os seus actos. A ética s ubj<i- santemente objecto d e uma reinterpretação. Temos d e aceitar que ela
cente a esse pe nsamento da responsabilidade é a existência futura de seja arr iscada por outras leituras a lém da sua, e só assim poderá en-
si mesmo, com a memória daquilo que já se foi nas mãos de outro, com riquecer e constituir uma força de enca ntamento. Mas o alcance dessa
a memória dos sofrimentos infligidos nos tempos de cativeiro, quando força de encantamento será necessariamente a sua capacidade de con-
a lei e o sujeito estavam segmentados. tribuir para a abertura do mundo. Uma Europa que, ao proclamar urbi
Por fim. o pe nsa m e nto pós-colonial não é um pensamento anti-euro- et orbi a sua vocação unive rsal, se reinventa sob o s igno da clausura
peu. Pelo co ntr;frio, nasce do cruzamento entre a Europa e os mundos que não interessa o mundo e que não se reveste de qualquer interesse
que outrora íi:1,e ra m parte dos seus territórios longínquos. Ao eviden- para ele.
ciar como a expe riência colon ia l e imperial foi codificada em represen- Por conseguinte, é necessário re-imaginar a Europa como uma multi-
tações. divisões di sciplinares, as suas m etodologias e os seus objectos. plicidade sem limites exte rnos. sem extcrnalidade. É sob essa condição
propõe uma leitura a lte rnativa da nossa mode rnidade global. Ape la ú que espelhai-.1 o mundo e não um fragmento - seguramente s igni fi cati·
Europa para que viva responsavelmente aquilo que afirma se re m <is vo - dos infindáveis arquivos do mundo. A Europa deve procurar a sua
suas origens, o se u futu ro e a s ua prom essa. Se, tal como a Europa se m - definição num jogo pericl itante, se mpre outro, que frustra qualquer
pre almejou, o objectivo d essa promessa consistir verdadeiramente no definição - uma contra-escrita que a niquila qualquer clausura e que,
futuro da humanidade no seu todo, então o pensamento pós-co lonia l 1 ao invés d e encerra r o propósito, se formula como uma questão ina-
'
apela à abertura d a Europa e ao rela nçamento incessável desse futuro, cabada, em a be rto. Essa definição d eve permitir obrigatoriamente a
d e mod o s ingular, respo nsável p e rante si mesma. p elo Outro e pera n te .i inclusão d o qualquer-outro na língua do ser. Deve ceder obrigatoria-
o Outro. Como tal, a Europa já não é o centro do mundo. A sua soberania mente espaço ao absolu tamente estra ngeiro, caso prete nda abordar
tornou-se ancilar. O mundo contemporâneo é de fin itivamente h etero- de outra forma as suas p róprias possibilidades. Uma dessas possibi-
géneo, ou seja, constituído por uma multiplicidade de enredos gover- lidades consiste na redacção da sua autobiografia com base no Outro,
nados pela lógica dúpl ice do entr elaçamento e d o d esprendimento. e m resposta às questões que este lhe dirige. Dado que é a partir ào
Essa heterogeneidade implica a existência de outras formas de vida Outro que toda a redacção do mundo causa verdadeiramente su rpre-
e de outros modos de pensa r, outras possibilidades da vida. Actual - sa. Ao invés de se posicionar no p ico da huma nid ade, a Europa d everia
mente, o Outro já não é aquele que produz e inventa a Europa quando mostrar-se atenta ao que está por vir. A s ua vocação - se é que o termo
a m esm a toma a seu cargo pensar-se sob o signo do universal. O Outro faz sentido - consiste em avançar, como afirmava Derrida, exemplar-
é simultan eamente inerente à heteronomia absoluta e à similaridade mente em direcção ao que ela não é, ao que actualmente se procura
e proximidade radical. Assim, a teoria pós-colonial d eve efectivamente ou promete. Essa Europa não deve considerar as suas fronteiras como
a firm ar que a ideia da Europa é, ao mesmo tempo, tudo e mais alguma adqu iridas, deve ace itar o acon tecimento imprevisível, contribuindo
coisa, além do seu espaço e passado. Aquilo que define a Europa já não ass im para a abertura do mundo.
lhe pertence como coisa particular. Logo, nessa óptica, a unive rsali-
dade não é m a is do que a outra designação do descentram ento. Então,
a ameaça resid e no confinamento entre fronteiras circunscritas d e Adupla estrutura de incapacidade e de ignorân-
antemão; a obsessão d a implantação em detrimento da preocupação cia
com o lato e o Aberto.
Existe a quilo que podería mos denominar de autobiogra fi a d a Eu- Para concluir, retome mos a colonização e a sua pós-vida, visto consti-
ropa, a forma como a mes ma se escreve e autodesigna. No fundo, essa tui r o cerne dos debates con te mporâ neos acerca da pós-colonialidade.
autobiografia (autodesignação) não é mais do que um m e ro ca mpo Enquanto fórmula geral d a s upremacia, a colonização criou uma nova
pol émico. Presentemente, a Europa já não representa o centro d o mun- estrutura de acção e d e sentido, um novo regime de historicidade (ou,
do, salvo num mundo fi ctício. O centro do f!1Undo deslocou-se para outra antes, um novo prosaísmo). Esse processo de reordenação do campo
parte. Eis o contexto no qual a Europa deve relançar o seu produtivismo no qual se desenrolam agora as interacções entre dominadores e

n Ach1Ue M~mbf, S•1r da Grande Noite. Ensaio sobte a Ãfriu dtt<olonix.cla li Abtttu~ do m-undô ~ as.cen.slo em human'dade 73
subjugados colon iais em nada atenua o conj unto dos costumes e das suas ficções, das suas evidências por vezes desprovidas de conteúdo,
lógicas autóctones preexistentes. Foi fundamentalm e nte heterónomo. das suas dissimulações. das suas astúcias e - vale a pena repetir - da
Não obstante essa tentativa de invenção de novos costumes ter sus- sua vontade de poder (que, como ainda agora se sugeriu, está profun-
citado novas constrições, também libertou novos recursos e obrigou damente embutida numa estrut ura de incapacidade e de ignorância).
os suj eitos coloniais quer a tentar beneficiar dessa situação, quer a Porque, para lá da compilação das minudências empíricas. a críti ca do
contestá -los ou deformá-los, quer a fazer tudo isso em simultâneo ou, colonialismo ou do facto imperial nada aventa rá acerca do colon ialis -
no mínimo, de modo paralelo' '· mo e do imperialismo, enquanto não enfrentar essa vontade de poder
Por outro lodo. sabe-se que a colonização se definia, em larga me- e a forma como as suas dimensões ontológica, metafísica. teológica e
dida, pelas linh as de fuga. Desde o início até ao fim, o regime colonial mitológica são constantemente alvo d e deformação. Enquanto von -
atravessou fases de fissuras. cisões e fendas que tentou colmatar e tade de poder, a razão colonial é ao mesmo tempo religiosa, mística,
vedar permanentemente. Mesmo ao transformar-se num aparelho messiânica e utópica. A colonização é indissociável das portentosas
relativamente centralizado, continuava a ser acometido por lógicas da construções imaginárias e das representações simbólicas e religiosas
segmentação. Na maioria das situações, cada decisão apenas ind uzia através das quais o pensamento ocidental figurou o horizonte terreno.
a deslocação das linhas de fuga para outra parte. Um mundo de mi- Por conseguinte, na crítica das situações coloniais e dos factos do im -
cro determinações, o mundo colonial também assentava na gestão dos pério, existe lugar para uma crítica filosófica e ética e um exame cir-
pequenos e grandes temores. a produção e a miniaturização de uma cunstanciado daqui lo que, na coisa. se consagrava como a sua chama
insegurança partilhada tanto por dominadores quanto por subjuga - 1 interior. Na prática, essa lei interna era efectivamente deformada, de-
1
dos. Esse temor estruturá! e molecular advinha do facto de que sem- sajustada, perturbada e a sua claridade era obscurecida, mas isso não
pre lhe escapava alguma coisa, que tentava incessantemente alcançar,
promulgando continuamente novas leis e novas proscrições. E mesmo
'i
1
passou de um assunto co rrente e não axiomático. Ora. como foi pos-
sível constatar, o que a dinamiza no seu interior, o seu ímpeto, é larga-
quando a alcançav<i, nunca estava certo de que se t ratava do objecto em i mente a raça - aquilo que, no fundo, governa a sua linguagem, os seus
questão. O temor constante - e mesmo a paranóia - também resultava esquemas perceptivos. ou ainda as suas práticas. «Velhos» ou «novos»,
da dupla estrutura de incapacidade e de ignorância tão característica os múltiplos repertórios e as diferentes estratégias implementados
dessa forma de sup1·emacia. Os senhores coloniais desconheciam, 1
. pelos impérios coloniais, com vista a integrar as populações he tern··
quase sempre, aqu ilo que na simples imitação constituía, na realidade, géneas numa única entidade política, preservam simu ltaneamente as
oposição; aquilo que na oposição aparente não passava de uma mera distinções e as hierarquias que só são providas de sentido à luz da
inversão; ou ainda aquilo que. assemelhando-se a uma revolta propri - incontornável realidade da raça.
amente dita, emanava s implesmente de uma simples lógica do desejo. A colonização era igualmente um sistema de signos que vários agen-
Desde o início até ao fim. o regime colonial viveu com a sensação de tes tentaram decifrar incessante me nte à sua maneira. Era dotada dos
que a lgo das sociedades autóctones - independentemente da escala. seus próprios modos de auto-representar a sua própria mitologia e
da amplitude ou das dimensões - emanava do indeterminável. tinha palavras através das quais se auto-designava. Sabia delegar com-
Por conseguinte, a história da colonização não é apenas uma história petências aos substitutos nativos que a prolongavam. A relação colo-
de ambivalências e contingê ncias, de grandes acasos e de extraordinári - nial de supremacia não foi simples nem unilateral, evidenciando de-
os encontros. como tende a fazer crer uma certa crítica historiográfica pressões. Tinha sempre um enredo : a vontade de poder e aque la que
e sociológica - documentada, amiúde erudita e, por vezes, ingénua. transmite ao sujeito questões gerais da força e do direito, do direito e
Nos impérios coloniais do séc. XIX existem elementos de novidade, da justiça. da justiça e da responsabilidade, da fragi lidade e da p otên-
modernidade e mesmo, em dadas situações, de coerência. Pe lo facto cia, em suma, daquilo que antigamente se design ava como «próprio
de se profe rirem, não se atenuam. de todo, os laços complexos urdidos do hom em» e as suas relações com o seu semelhante. Paralelamente,
entre a administração colonial e os seus s ujeitos. Afastando-nos da su- a colonização também libertou forças, fluxos de rique za, fluxos de de-
ficiência positivista, é necessário reler a história do Ocidente fora do sejos e crenças; o choque, o espanto, a sedução do p oder e o apelo
Ocidente, ao invés do discu rso ocidental acerca da própria génese, das à assimilação. Os colonos e subjugados eram assolados tanto pelos
desejos e crenças quanto pelos interesses. Em vez de se resumirem
53. Ler Achil le Mbembe, La Naissance du maquis dons le Sud-Cameraun, op. cit., introdução.

AchiUe M be mbe Sair da Gtande Noite. Ensaio sobre• Afriu des.<oloniz.ada 11, Abertvía do mundo e asc~n$âo ~m hvm~nidad~ 7S
a complexos político-económicos, os diferentes regim es coloniais co ntanto que a relação com o passado se converta no passe io do pro-
foram ta mbém complexos do inconsciente deixand o, por isso, fre- prietário pelo seu jardim. Mas político, na medida em que se visa o
quentemente, marcas indeléve is na imagi nação dos colon izados. E, não reencontro co nsciente com o passa do, não apenas como aquilo que te-
obsta nte todo o peso da ince rteza qu e envolvi a as suas p níticas, não mos presente. mas também mediante a existência d a possibilidade da
passaram de escânda los sem co nsequências. pa rtilha e do em-comum, por ma is infinitesimal que seja.
A supremacia co lonial foi comparável a um estad o de guerra' '. Em
inúmeras situações, afigurou-se a um a guerra permanente e de fraca
intens idade. Como o vencido procurou sempre prolongar indefinida-
mente a «relação conquista dor-conquistado», pode afirmar-se que a
«paz colonial» só se diferencia da guerra porque um dos campos não
dispõe de armas 55, co mo se evoca rá no capítul o seguinte. Os nativos
saíram desse confronto dilace rados, desintegrados e d esfigurados. Os
colonos, por seu turno, arriscavam-se a sair apenas quando tivessem
arrasado tudo o que eram capazes d e arrasar, dado que toda a prática
colonial é a nimada por um ímpeto interno: a ebriedade da força, um a
emulação sombria d e matar e, caso necessário, de perecer. Além da
demanda do lucro, constitui-se sempre na cr ista d e uma linha intensa:
a linha fria da força e da destruição pura. Essa fo rça. po r vezes cega,
cruza e inclui as linhas de fuga que, de resto, se julga capaz de blo-
quear, ta l é a natureza da vontade colonial de pode r. Asse nte na par-
tilha e ntre posse de a rmas, por um lado, e a privação d e armas, por
outro, consiste agora na vo ntade d e voltar a arriscar tudo. Como tal.
essa vontade é uma a posta que arrisca a morte dos outros e a própria,
embora a última impliq ue sempre, alegadamente, a dos outros - uma
morte delegada.
Numa humanidade à escala planetária, eis justa mente as questões
que nos são mais próximas, no próprio enigma d o nosso p resente e na
sua capacidade mais caracte rística de futuro. Com efeito, foi através da
escravatura dos negros e da colonizaçã o - logo, de assuntos de ordem
geral - que a nossa língua comum foi forjada e que os habitantes da
terra fora m justapostos, no â mbito de uma unida de tanto emblemática
quanto problemá tica. Esses aco ntecimentos in citam-nos a aprofund ar
a interrogação acerca da questão das cond ições de uma confl uência
autêntica. Essa confluência não começa pelo esquecimento desmedido
que nos converteria em sonâmbulos, nem por um revisionis mo semi-
-ocultado pelos apelos ao pos itivismo científico, mas pelo d ese nraiza-
mento recíproco. Por sua vez, a necessidade d e tal desenraizamento
exige a e laboração de um pensamento que seja, simultaneamente,
profunda mente histórico, filosófico e é tico - memória e anti-memória,
militante e anti-militante, político, anti -político e poético. Anti-militante

54. Simone Weil. CEuvres Choisies. Gallimard, col. «Quarto», P;iris, 1999, p. 41 9.
55. lbid.. p. 4 20.

76 A.chillc Mbemt>e Sair da Grande Noit•. Enuio sobre i'Âfric. des<oloniuda


li. Abertura do mundo e "S(ens~o em humairh<fade n
SAIR DA III.
GRANDE NOITE Sociedade francesa:
proximidade sem reciprocidade
ENSAIO SOBRE A ÁFRICA DESCOLONIZADA
Por que mouvo. no século considerado de unificação do mundo sob
a alçada da globahiação dos mercadol> financeiros, dos nuxos culturais
e d" caldeaçilo das populaçõe~. a França teima em não pensar a pos·
Achille Mbembe ·ool6mo de forma crítica, ou st>j.i. em última anabse a história d.i l>Ua
presença no mundo e a históna da presença do mundo no seu ~e11> tan·
to antes, quanto durante ou após o lmpério7 QuêllS as consequências
políúcas, Intelectuais e culturais dessa crispaçilo e o que nos transmite
acerca dos limites do modelo republicano e da sua pretensão de sim
bollzar um modo de universalismo? Quais as condições intelectuais
que podt>rlam persuadir o velho un1versahsmo à francesa a ceder lugar
Sociedade francesa: proximidade sem reciprocidade 79-99 a esS<J altematlw lntessantemente rechaçada: a de uma nação verd;i-
O decllnio de uma nação cristalizada 81 delramente cosmopollt;i, capaz de formular com tennos inéditos. e em
Liquidar o impensado da raça 89 nome do mundo no seu todo, a quest.do da futuro democracia•?
Para uma partilha de singularidades e uma ética do reencontro 96 Para d;ir resposta a essas Interrogações. parte-se da ideia segundo
a qual a problemática da futura democracia está profundamente as·
soctada ao futuro dessa lnstttulçilo especlllca d a fronteira' - motivo
pelo qual é necess~rlo e ntender tanto a rel:açào entre a constiluiçüo do
poder polltlco e o controlo dos espaços, quanto a questão ma is global
de ~abcr quem~ o meu pr6xfmo, como tratar o m1m190 e o que fazer do
e!>tran9elra. A dlílculdade Inerente à opresentaç6o de resposta rela tiva-
mente a essas três figuras prende-se fundamentaJmente com a forma
como as democracias existentes lldaram com o problema da raça, como
se abordou no capitulo anterior Para manter tão longamente o modelo
republicano como o veiculo consumado da incluslo t' da emergência
para a Individualidade, a República acabou por ser convertida numa
instituição im3ginâria e subestimaram-se as capacidades originais de
brutalidade, discriminação e exclusão.

1 O 1.11 ~r.w4 ~.Autourd• lant""" ~ (actasdo cn&óq-..oorpnl.Udo ~tre 8 e- 18


do Mllo do 2002 no e..,.,.. cullwol 1ntenwil>0Nld• C«ruy lo Sall•). Coliltt. hri.. 2004
2 ,.._ _ , . , . . _ , . . , .. ..il-<k bm.w llalll»r,€.,,..,,._ C . - 0 - ,,,,,,_._tal·
uona ctu P.,..nc. P•rt.. 2005.
O palco principal dessa bruralidade e discriminação foi a plantação cidad(lnla aos descendentes de escravos ou nativos não provocou uma
sob o regime da escravatura e. posteriormenlc. a co/6nia a partir do transformação profunda da forma como a França procede à figuração
séc.XIX. De forma muito direcla, o problema formulado pelo regime da polltíca da democracia. Também não induziu uma renovação das mo·
plantação e pelo regime colonial é o da funcionalidade da raça como da tidades de lnstituiçãolmaginária da nação. Essa é. de resto. a aporia
princípio de exerclcio do poder e cõmo regra da sociabilidade. No incrente à lógica da integração e de assimilação que rege muitos de·
contel<to actual. convocar a raça é apelar a uma reflexão a respeito do bates passados e actuals acerca da presença dos estrangeiros no ter·
dissemelhante, daquele ou daquela com quem nada ou pouco se tem rit6rio nacional, e mesmo a procedência dos cidadãos franceses não
em comum -aqueles e aquelas que. apesar de estarem connosco, junto brancos da República. Com efeito, a forma de universalismo que subjaz
de nós ou entre nós, em última instância, não são dos nossos. Muito a ideia republicana parece só pensar o Outro (o ex-escravo, o ex-colo·
antes do Império, a plonroção e a colónia constituíam um •alhures~ nluido) •em termos de duplicação, de desdobramento até ao infinito
Faziam pan:e do ulonglnquo» e da e''t.ranheza - de um além·mar. E é de uma imagem narclslca» à qual se enconr.ram subjugados os seus
sempre na condição de limites extremos que surgem no Imaginário alvos'. Não obstante uma rica tradição filosófica acerca das relações
metropolitano'. Presentemente. a {Jloncaçào e a colónia deslocaram-se entre o Outro e o Mesmo. no pensamento coatemporâneo francês. os
e mudaram-se de armas e bagagens Justamente para esse local, no ex arquétipos do Outro ainda dependem largamente das figuras do exótl·
terior da Cidade (no periferia). Essa deslocação torna mais complexa, coou de categorias puramente essencjaJJstas.
mais do que o próprio passado, a delimitação das fronteiras internas
e externas e, no seu decurso. suscita uma reformulação dos critérios
da procedência, "visto que j:l não basta ser cidadão francês para ser O declínio de uma nação cristalizad a
considerado um francês - e um europeu - de pleno direito, e trnlado
como tal'•· Ainda agora se reiterou que a descoloni7.ação não encerrou a questão
Por conseguinte, o proplnquo e o longínquo, bem como a coloniza- sobre o que fno:r do passado comum depois de o mesmo ter sido rela·
ção- o mundo que a última gerou e aquele que lhe sucede - Imbricam· tivamente renegado. Alude-se à cqlonização sabendo que o próprio
-se. Essa presença é paradoxal pelo facto de permanecer largamenre termo é contestado. Com efeito. muitos se interrogam se, com o fim
lnvislvel, mesmo quando se observa a eslrella imbricação entre o das tutelas formais, tudo terá sido verdadeiramente relançado, se tudo
alhures e o acá, a generalização do estranho, e pela sua disseminação e terá recomeçado verdadeiramente, a ponto de se poder afir mar que
difusão no espaço - factores cuja consequência reside no agravamento as ex-colónias reabriram a sua existência e se afastaram do seu estado
da tensão fundadora do modelo republiCllno francês. Logo, não esta· anterior. Para alguns, a resposta à questão é negativa. Colónia, neo-
mos perante a oposição entre universalismo e comunitarismo (como colónla, p6s·colónla: tudo consistiria na mesma encenação, nos mes·
a ortodoxia tende, geralmente, a pensar), mas entre universalismo e mos jogos miméticos, com actores e espectadores diferentes (e ainda
cosmopolitismo (a ideia de um mundo comum, de uma humonrdade asstml), mas com as mesmas convulsões e a mesma Injúria A título de
comum, de uma hist6rlo e de um fuwro que se pode oferecrr ocrovés exemplo. é esse o ponto de vista dos militanles anti·ímperialistas, para
do partilho). E a hesitação em transformar esse passado comum em os quais a colonização francesa em África nunca chegou verdadeira·
história partilhada explica a incapacidade francesa de pensar a pós- mente ao fim. Teria slmplesmente mudado de aparência, envergando a
·cal6nfo. partir de então imensuráveis máscaras.
Esse argumento será desenvolvido em dois momentos. Inicialmente, Para reforçar essa tese. c.ita·se. a esmo, a presença de bases milita·
defender-se-á que o problema daqueles que, apesar de estarem con· res em vários países de antiga ocupação francesa da região e uma ex-
nosco, entre nós ou junto de nós, não são dos nossos, não obstan· tensa tradição de mterve.nções directas nos assuntos desses Estados.
te a existência de um passado comum, não foi resolvido, nem com a a emasculação da sua soberania monetária através de mecanismos
abolição da escravalura nem com a descolonização. A extensão da como a Zona do Franco e o apoio à cooperação, a estruturação em rede
e o clientellsmo das suas elites, recorrendo a uma panóplia de instl·
3..Lcr Ou1$tophu L. Miller, Th•Frmch Adonhc 1'rl,mgl~. U(.-n>n1reortd CUltvrr ofdtcSlo"oT Trvd~,
tuições culturais e politlcas (caso das Instituições da Francofonia ou
Duke Unlverslty P~ Ourhlm ('N. e.). 2008
4 locdyne DAKHLIA. /slamlelrb. PUF. Paris, 2005, p. 8. S.Jacqul:$ Husoun, L°Ob:Kurobfetd~lo hafnt'.Aubiitr. Pa.ru. 1997, p. t4
do Gabinete Áfr1c;J da República Francesa). o actlvlsmo dos serviços Tanto o racismo cruzado de paternall•mo e despre?:o quanto a cor·
secretos e de dlvers.ls redes de especulação. e mesmo criminosas, a nipçilo mútua - e mesmo o jogo dJ subserviência aparente da parte
part1dpaçJo dtrecw nas potltlcas da v1olênda <' mesmo em dinãmi· das elites africanas - estavam profund<1mente enraizad0< n;is estru·
cas de naturPU 11enoc1d;i•. Não obstante o c;inktt>r por ve7es polémico turns históricas de desigualdade que uma civilidade quast' cenmo-
dessas aflrrnJçõe~. ser!J bucólico presumir que todas são infundadas. nlosa dissimulava e ratificava constantemente. Mas a des1gualdadf.'
Como qu.ilquer potenda do mundo, França é um p;iis cioso dos seus constitula. simultaneamente, uma forma de intercâmbio e de doação.
interesse' 1dcológ1cos, estratégicos, comerciais e económicos. O prl· Nesse 1ogo da subserviência, cerimónias. tndulgénaas. trocas. doações
mado do!> ~eus interessei>. tanto públicos quanto privados. comanda e contra·doações permitiam, por um lado, gerar novas dividas e, por
largamente a sua poltuc" externa. Hístonc3mentC!, soube nrar proveito outro, urdir redes de depend~ncla reciproca que propiciavam. além
da vanwgern merl'ntt' .io ~eu estatuto de anttgJ poténçi;:i Imperial para disso. uma relativa lnterculluralidad<'' Por consegumce, não sena cor·
omenwr. com JS classes dirigentes francófonas, relações desiguais se· recto reduzir a análise d.i~ dln3m1t.1s pollt1cas e culturais das socie·
!adas com o ronho ora da bruralldade, ora da venahdade dades pós·coloniais francófonas de Afrlca unicamente às relações que
Essa forma df.' supre1nacla pouco onerosa já era recomendada por as suas ehtes mantêm com França. Logo, as própridS relações sofrerJm
Alexls de To,qucvlll<', em 184 7, relativ.1n1entc ilU~ á1 Jbcs. •A experlên· Incessantes transformações. Essa lenta transfiguração desenrolou ·sc
eia ia demonstrou milhentaç vezes que, Independentemente do fana· crratlcamenle devido à falência financeira de vários Estados e .l
usmo e e.lo e'ph 1l0 11<1tur.1l e.los árabes. a ambição pessool e a cupidez generalização das guerras predatórias em todo o continente, design,1·
ganhavam multJs vt>zes ainda mais força no seu .imago, levando-os a d.:imente ao longo do último quartel do séc. XX. Mesmo se as redes de
tomu as decisões mais contrárias às suas tendências habituais, se- especulação tradicionais ainda não perderam terreno globalmente, 1•
gundo escrevia. O mesmo fenómeno também s e con~tatou semprt> nos nilo podem agir como se África fosse uma creserva de caça,. franccs.i
homens parcialmente ov11izados. O coração do sclvagt>m i como um Para preservar os grandes equlllbnos macroeconómicos (d1sc1phna
mar perpetuamt>nte revolto, mas no qual o vento nem sempre sopra fiscal. controlo do endividamento público P da 1nflaç.lo). " llberallu·
do mesmo lado.• Reclamando também uma potluca que, ora adulando ção das trocas, e mesmo o combate à pobreza. o peso dos íunclon.lnos
a sua amb1çJo. ora discrlbuindo·lhes dmhe1ro. perm1t.J que cmesmo mternac1onats aumentou. embora. de facto, as reformas que devem
aqueles que. de entre eles. manifesi:.im a sanha mais furiosa contra os gerar mais competltlvidadc naufraguem. /\$necessidades de reescalo·
cristãos tomem de rompante as armas por eles e se voltem contra os namento da dfvtda, os processos de ajuste estrururaJ e as privatiza
seus compatriotas'• Na Aírica Subsariana. essa «reviravolta das ar· ções tomaram Inevitável uma gesúlo multil3teral da crise africana e
mas. assumiu contornos diversos. Na maioria dos casos, Integrava das guerras e catástrofes humanll:Artas que, quando não são a respec·
uma simples lógica de corrupção mútua. Do lado africano, o motor da tiva causa. são, pelo menos, o seu corol~rlo Dai resultou um alar·
venolldade consistia então na conjunção de duas pulsões culturais que gamento da Influência das Instituições Internacionais (financeiras, à
antecedem o momento colonial: por um lado, o desejo Ilimitado de semelhança do Banco Mundial f.' do Fundo Monetário Internacional, ou
aquis1ç~o dos bens e d;is riquezas; e, pelo outro. a reprodução a longo especiall:tadas na acção considerada humanitária) e o aparecimento
praia de formas objectals de usufruto. Todavia, em inúmeras circunstãn· de uma nova forma de govcrnabílldade que também rol designada de
c:>as. a n"laçào aftgurnva-se pura e simplesmente a uma panóplia de • governo privado indlrecto•1t,
atitudes raclsus fracamente ocultadas sob um pJtern.ihsrno meritório. Logo, a África francófona Jã não constitui o "domínio reservado,. de
Posteriormente, -;empre que necessário. França n3o hesitava em França. Doravante, mesmo os organismos como a Agblcia Francesa
recorrer à rorça d1recta, e mesmo ao assasslnio, para lmortall%3r os de Desenvolvimento - que constltula. outrora. um dos mstrumentos
seus Interesses. privilegiados da presença econ6mlc:a do pais em África - vêem-se
obrigados a navegar no encalço d;is Instituições multllatera1s de
6.. o.t'"";"' Frano. 411r k1 • Sur'YW', L4fnqw o &orritz.. 14.IN.,.. .WO"'f',, dt* lo pol111qVe /rOfftOtR' 8. V.r 1~1.n Françok S.,.n.. •.R.ffln:iOf't\ w..-ta pohuq\I• •fMPIM de b fnnce-. l'olloqw fl/rfal1n•,
.,me.a. •.• .........,,.,.'""· tc..r1.hl.l&. Patt.a. 1995. FnnfC)JS-~ v..tvNw. Lo F'rol't(D/nqu,. n.• Sft, 1995, e 10.. •BiJ rrpe1.1ta· ta pohdq1.1• afrkatnt ctt f'ranCo11 Mictttrand•. l:n s.amy Coh•t1
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financiamento. Face às contingências inerentes à opção dc filiação à À~ primeiras deslocações forçadas dos séculos da escravatura su·
Europa. frança é agora compelida a reduzir o copioso e dispendioso cederam outras vagas migratórias oriund:is d;11s Caraíbas e, posterior·
arsenal que, durante muito tempo. a converteu numa plena «potên· mente, a partir da década de 1960, da África Subsariana anglóíona ~m
eia africana•. Tal como na époc;i colonial, os dividendos provenientes contrapartida. salvo o caso dos haitianos, aç m1g.r ações francófonas
dessa forma de sup~macla afiguram-se actualmentc multo lnslgnifl· s3o recentes, estando maioritariamente ligadas ao renómeno de dr·
cantes. Mais fundamentalmente, o pais est.\ a pPrdf.'r uma parte con- culaç.io das elites acelerado pela glob;allzação. Por outro lado, coinn-
siderável da lnflul!ncla cultural que exercia outror.i sobre as eh1es dem com li viragem anti·lmlgraçJo tJo caracteristica do último quartel
africanas f;~q perd:'l d~ve-se. em parte. à sua 1nc,1p:ic11l.lde de apoiar do sêculo europeu - ant1-1migraç-Jo que. em África. suscitou reacções
os movimentos de democratização e, também . à ~ua pol1t1ca de 1m1gra· de re1ciç.'io de França e daquilo que representa, mesmo ~. por outro
ção. Presentemente, i•• nJo existe um único grande mtelcctu;il africano lado. a francofonia e a colonização francesa se apresentam como fac.
disposto a celebrar. sem cerimónias, a aliança encre a • negritude» e o tores de dtferendação encre os africanos da América. As mlgrações
cfranceslsmo». como Léopold Sédar Senghor n.io hesitava em fazer• . tJmbóm i;Jo características dos desescolarizados que. graças ao seu
Os llst.ados Unidos são manifestamente os principal~ bcnehciímos Pspirlto empreendedor. estilo a renovar a imagem de muitos bairros
dessa apostasia e. a esse respeito. apresentam iras v;intagens de que r.las grande:. cidades americanas (corno ó o caso do Llnle Senegal, no
França quase jó nllo dispõe. Harlém. ou a presença de resr.auran1eç etiopes e eritreus, nas princi -
A primeira reside na sua capacidade. quase lhmHad.i, dt captar e pais metrópoles).
reciclar as elites mundiais Ao longo do primeiro quartel do séc. X.X. Devido à forte presença dos indivíduos de origem africana nos Es·
as suas universidades conseguiram atrair par.i d ~u.i olerd quase to· 1:ildos Unidos, tomou-se lmposslvel conceber a identidade americana
dos os melhores Intelectuais africanos (mduindo aqueles de forma- sem aludir ao «Atlântico negro•. ou seja. sem um reconhecimento ex-
ção francesa) e mesmu os universitários franceses de orlgrm africana, plicito dos pilares transnacionais e dlaspóncos da nação americana e
para os quius as portas das instituições francrsas se unham mantido da plurahdade das suas heranças". opondo-se assim duas filosofias
fechadas". A segunda é de ordrm racial : a imensa reserva s1mbóhca da nação e da presença no mundo: por um lado, um Imaginário da
que constitui a presença nos Estados Unidos de uma t'Omun1dade nação em referência à terra. logo concebida em termos de fronteiras
negra cujas classes média e burguesa se enconcram rel:itav:imente bem e lf.'rritórios, e, por outro, um lmagln6rio em referência aos fluxos e,
integradas nas estruturas pollucas nacionais e multo vtslvels no melo por isso, largamente desprovido de território. Contrariamente ao que
cultural. Ccrt:1mcnte que a referida comunidade conttnua a ser alvo se passou em França. nos Estados Unidos, o imperativo de igualdade
de diversas formas de discriminação e que, mais do que as restantes, exigido para converter cada indivíduo numa entidade jurídica e num
é a mais afectada pela pobreza urbana. Mas basta constatar o número ddadllo de pleno direito suscitou forçosamente e55a forma de abstracção
de indlvlduos de origem africana que, em dado momento, exerceu ou que representa a sugrapio jurídica do Individuo - uma das pedras
continua a exercer altas funções no exército, no governo federal, no basilares da ficção republicana. Obviamente que as polfticas de dis-
Senado, no Congre~so. na liderança de municipalidades Importantes crlminaç:lo positiva (ojfir-motlve ocllon) sllo alvo de contestações. mas
e mesmo no Supremo Tribunal para avaliar o hiato existente. nesse permitem assegurar uma certa v1S1b1lldade das minorias raciais e das
plano, entre os Estados Unidos e França. mulheres nas diferentes esferas da vida pública e cultural.
Em muitos aspectos. a globalização cultural - cujo elemento mais Por flm, apresentam-se as portentosas Instituições filantrópicas
dlnãmlco sJo os Estados Urudos - é, em domfnios t.ão variados q~nto (fundações. igrejas e outras). sendo que algumas estão sediadas no
a música a moda ou o desportD permanentemente fomentada pelos continente. A maioria visa os meios unJversldrios. as organizações da
produtos da criatividade das diásporas africanas Instaladas no país soc1ed;11de civil os meios de comunicação social e mesmo os dtdsores
desde a época do trifico de escra\•os". (poHIJcos, financeiros). Através dos subsídios que atribuem, os pro-
gramas que apoiam e o etos que promovem, essas instituições desem-
penham um papel significativo na «aculturação à americana• dos mlll·
10 l.Áot>Oid ~r StncllOr. Ub<rTJ, vol S, l.f ~ dn tult~nn. $cull Pub, l 992
11 Otd~rGondola.•LI cr1M dei.a rormaôon enhistooeMtlailnetn Fnnc.eY\lt par lts kudbnts
tantes. homens de negócios. activistas e das elites afrlc;inas em geral.
•frlalns:•, Pol1tl41uea/rlet,1ln•. n.• 64.1997
12. Glna Ot111 (dlr), Block l\JpularClllt11rw. Bay Press. S•••tl•. 1992 ll P.lulGll~tfqu~nofr;op.al
Poder-se· la sumular o conjunto dos factos enumerados com uma unica facto, nesse tipo de situação, existe sempre um equivalente lingulstlco
expressJo: a ex1stênoa de estruturas de hospitalidade. Nilo se lrata de da •Virtude do sabre• (ra1ia.s e destruições. torturas. mutilações. dcpu ·
subestimar a re.. lldade da vlol~ncla r.acl.iJ ou a persl!>tênu.i dJ Ideolo- rações e profanações) Logo. o rac1oclnio nacion.1lista/pan-africam~ta
gia da supremacia branca nos F~tado< Unidos. Também não se lrata assenta numa série de equivocas. Para começar: subestima o lacto de
de ocult.lr o~ efeitos da reviravolt.• que o •combate ao terrorismo" que, após vário' séculos de :asslmil:içào progress111a. de apropnação, de
rl'prt'~l'ntou. Por conseguinte. actualmente, França carece desse tipo reapropriação e de tr.iflcos. o francês acabou por converter·:.e numo
dt' e'truturas de hospitalidade · f\ sua ausência explica se, f'm parte, llnoua africana d~ pleno direito. Esse processo difere largamente do
pela sua incapacidade de pensar a pós colônia e, além disso, o mundo •francesismo* das dlvel"$;ls regiões de Fiança, ~orno trata Ferndrtd
contemporâneo. Pelo contrário, s;l<1 css.is cstrururas que tornam o Braudel. no seu estudo sobre a 1dent1dade de !'rança . As línguas.
modelo Jme11cano tão apelativo aos olhos das elites mundiais. Abre-se religiões e técnicas herdadas da colon1w~«to loram submetidas a um
um fosso cultur.tl crescente entr(.' as ehtrs africanas. em particular: e a processo de ~·ernacu/1zaçdo - mdub1tavclmcnte 1conoclást1co e, em
França. cu10 modelo lhes parece cada ve~ mais obsoleto no seio de uma Inúmeros aspectos, destruidor. mas também portador de novos re ·
Europa que se con«ró1 com ba\e no modelo de uma fortaleza " cursos. tanto no plano da 1magmação quanto da representação ou do
Present~mente, debrucemo· nos sobre a questão da língua. t.il como pensamento
se revel,1 através do espelho da francofoma. Para tal, será essenttal que De seguida, longe de veremo seu poder de liguração impedido ou la·
nos diHanclemos dos principais argumentos avnnçados ~lo discurso çado, as lloguas autóctones benefiaaram dn proçesso de vernacull1a~.w
ideológteo dos nac1onahsmos pan·afncanos. Segundo esse discurso, do francês. Dessa lmbn<:.1çiio nasce uma culcur.i crioula caracterisUlJ
as lfnguas europeias faladas cm África seria m línguas estrangeiras das grandes metrópoles africanas. No plano lingulstico, a cr1011/izoçó11
impostas pela força a populações desintegradas e submissas e repre· consiste numa transformação figurativa que implica incvitavclmentf.'
sentariam factorcs importantes de alienação e divisão. Além disso. só um relativo despcrdlclo. uma dissipação e mesmo um obscurecimento
senam impostas à consciência africana repellndo e margina Ili.indo .lS do originário. Es~3 d1~s1pação opera-se no St'IO de uma 3málgam~ d~
llnguas autóctones e o conjunco das reílexões religiosas. politlcas e es- obiectos, formas e coisas Por isso. num plano eplstemológtco e cul·
cét'lcas que as me:;mas veiculavam Num pi.mo puramente polltlco, a tural, crioulização rima não com a produção mimética e a allen:açfo
função da língua colonial consistuia na imposição da lei de um poder - como o dbcun.o africano do nacionalismo rende a fazer crer - mas
sem autoridade a um po~'O militarmente vencido. Para tal, nlo deve com verosimffhança. veros1m1htude. onomatopeia e metáfora Agora
apenas provocar a morte das llnguas autóctones que lhe resistem ou o discurso oficial francê:. sobre a língua (rances.a assemelha-se ao dos
amda apagar os seus vestfgios. Deve :11nda dissimular a sua própria nacionalismos pan-africanos. Independentemente do facto de que.
violência. Inserindo-a num sistema de ílcções aparentemente neutras presentemente, o número de francófonos nlém·França se1a superior
(humanismu, civilização, unlvers:illsmo). Assim sendo, não poderia ao núme.ro de franceses: ou ainda de que a llngua francesa seja. actu
existir llbertaçao polltlca. económica ou tecnológica que nao surgisse almente, mais folada fora de França do que no respectivo território.
a par de uma autonomia hnguísllca Em contrapartida, a emancipação Muitos franceses conUnuam a actuar e pensar como se Fossem os pro·
cultural n~o seria concretlzAvel sem .a 1dentiflcação plena entre línguas pnetários excluswos d3 língua, pelo que lhes ~ d1íicil compreendt>r
afncan;1s, n41ção ;1fricana e pensamenco africano•. que o francês é hoie uma lmgua no plural; que ao propagar-se além·
N.'lo se podem contest.ar ·~ virtudes da língua. designad.imente ·fronteiras france<as, ennqueceu-se. inílecuu-se e ganhou rerreno em
quando s3o exercidas num contexto de cruzamento imposto, de expro- relação às suas origens. Não se tendo descolonizado - não obstante o
priação e de desapossamenco, como aconteceu com a coloniuição. De fim do impl!no colonial - França continua a promover uma concepção
centrifuga do universal, largamente desfasada no que se refere às efec·
tivas evoluções do mundo dos nossos dias.
14. Ofclit'r F'.at\ln. Al.lin Morlet- ~ Coltherlnt Qutmuul (Jlr), LCS L.ol( d~ ftnhomm,lui. La Ol!cau·
ven.e. Parh,, t f>97 Um dos motivos subjacentes a esse narcisismo cultural assenta no
IS. Ul\e ~alpch•. •LA •.,.and•ur• d• &. Franc;:11 A hune d'un consul•t trmola_n.llt'•. Pol1tJqu• lacto de.que o francês foi sempre pensado relativamente a uma geografia
o(ricflin.e, n-• 67~ l997 (consulti1ruim~rn .a •dlç:lo •1oPKtal d.a Fnl..l'Ke rt ~m11ranl11frialn~
do m95ftt0 n\jm.111 cb rn1t.Ui)
16 N&vll W4 niOn.l•o. O«Mott.m,.,. Ut# "4•"4. "P c,t,. • P•uhn Hotimiondrl (d1t:). L4t So.._.,.. at
,,,.._.CO~IU~ a.c.r, 1994
Imaginária que convertia França no «centro do mundo,., No cerne dessa Outro motivo do decllnlo da aura francesa em Áfríca e no mundo é o
geografia mítica. a lfngua francesa veiculava alegadamente. por na· c;epticismo [tanto no mundo pós·colonial, quanto no Ocidente), ou ao
tureza e essência, valores universais (o Iluminismo, a razão e os direi· menos a dúvida. cm torno de qualquer Ideal universalista abstracto.
tos humanos. uma certa sensibilidade estética). Era essa a sua missão. As lutas anticoloniais radicalizaram essa suspeita no plano prático. No
mas também o seu poder: representar o pensamento que, distanclan· plano teórico, a critica pós-colonial e a crítica da raça (dois fenóme·
do-se de si mesmo. se auto·reílectia e pensava. Nesse brilho iluminado nos Intelectuais que, em França, contfnuam a ser confundidos errada·
dever-se-ia manifesair uma certa iniciativa de esplnto: que, num movi· mente com o terce1ro-mundlsmo) acentuaram a falta de credibiltdade
menro ininterrupto, deveria conduzir ao aparecimento do «homem» e da nossa ideologia. Ora. a reflexão manifestou-se durante muito tempo
ao triunfo da ratio europeia e universal" . Por conseguinte. a República como se a crlcico pós·colonial do unlversallsmo (cit;rndo·a exclusiva-
deveria constituir a brilhante manifestação dessa missão e dos valores mente) nunrn tivesse existido. Contemplando seriamente ambas as
que lhe eram subjacentes. A aliança entre a República e a llngua foi tal. criticas. rapidamente se teria percebido que, por um lado. as língua.<
que se poderia alvitrar que a língua não criou apenas a República (o universais são aq11clas que assumem o seu carácter «multilingue»,
Estado), mas que ela própria se criou através da República. Num atto e. por oulro, como o destino das gr~ndes culturas mundiais depende
de transubstanciação, a República delegou a sua missão a um substi- agora da sua capacidade de traduzir os idiomas do longínquo cm algo
tuto. a Jlngua francesa. que a representa e lhe dá continuidade. Logo, que já não é estranho ou exótico, mas familiar.
falar ou escrever em francês na sua forma mais pura, não é transmitir Em múltiplas esíeras da cultura, também se constatou o triunfo de
apenas a sua nacionalidade, é praticar de factD uma llngua universal.~ uma sensibilidade cosmopolita que propicia largamente a globali1.a·
desvendar o enigma do mundo, discorrer sobre o género humano. ção. Como se sabe, a globalização consiste tanto num processo de
Essa relação metafisica com a llngua explica-se pela dupla con- inter·relação dos mundos, quanto num processo de reinvenção das
tradição na qual assenta o Estado-nação francês. Por um lado. parte da diferenças. Em última análise. um dos seus ractores de êxito reside no
aliança entre a llngua e o Estado tem a sua origem no regime do 1'er· sentimento que transmite a cada um e a cada uma de poder viver a sua
ro r (1793·1 794 ). É dessa época que data o reflexo do mono/onguismo fantasia, além de viver intimamente a diferença no próprio acto pelo
- essa Ideia caracteristicamente nossa. segundo a qual, considerando qual é subsumida e sublimada. Por outras palavras. há uma feição de
que a llngua francesa é una. indivisível e centrada numa norma ú.nica. •nós" que se materializa à escala mundial - de forma privilegiada - no
tudo o resto não é mais do que uma algaravia. Noutros termos. have· acto pelo qual se part//ham diferenças. O acrlsolamento da diferença
ria uma via - e uma única - de acesso ao sentido. Essa via só poderia e a sua partilha são possíveis visto que a distinção entre a llngua e a
triunfar sobre as ruínas das restantes línguas. Po r outro lado, existe mercadoria se apagou em larga medida - comungar de uma, equivale
também a tensão. também ela herdada - pelo menos. pardalmente a participar na outra. Língua de mercado. mercado da língua, mercado
- da Revolução de 1789, entre o cosmopolitismo e o universalismo. enquanto língua, llngua sob a formo de mercado. llngua como desejo e
Essa tensão constitui a base da Identidade francesa. Na realidade, o desejo de língua enquanto desejo de mercado: em último caso, nada
universalismo à francesa não é o equivalente do cosmopolitismo. Em disso constitui mais do que uma única e mesma coisa. um único siste-
larga medida. a fraseologia do universalismo tem salvaguardado sem· ma de signos".
pre a ideologia do nacionalismo e o seu modelo cultural centralizador:
o parlslanlsmo. Ourante muilO tempo, a língua eneve Imbuída dessa
fraseologia do universalismo. manifestando e dissimulando parale- Liquidar o impensado da raça
lamente os aspectos mais chauvinistas. O triunfo do inglês como lin-
gua dominante do mundo contemporâneo deveria suscitar a tomada A discussão que ainda agora se desenvolveu motiva logicamente uma
de consciência de que uma nacionalização excessiva da língua a con- primeira conclusão: a presença do alhures no acá e do acl no alhures
verte necessariamente num idioma local, portador, nesse âmbito, de suscita uma releitura da história de França e do seu império. Actual·
valores ... locais. mente. tende-se predominantemente para a sua r eescrita elaborando
urna história da •padficação», da ICV3lor1zação de territórios desocupados e
18. Mkhi!I FouQult. Lcs Mo·u « lu Chon:li. Unt1 orch#ologfc da scfftf'IC~ liumolMS. C•lllmanL
Pans, 1990, (1966). 19 MatUI H6nali:.UPrixd•lo tl'irltl.Scull htb, "2002.
sem •enhores•, da cdifusão do ensino,., da «fundação de uma medici- das raças na acepção de tratamento. controlo, separação dn... corpo'
na modern;J•. da •criação de insllluições administrativas e jurfdlcas• e e mesmo das espcc:h!\. Nd sua essência, u·au-'e de uma guerra que
da implcmenta~o de infra-eçtruturas rodoviárias e ferrov1ánas. Esse não é liderada contra outros seres hum.1nos. mas contra espécie~ dile·
argumento assenta na Ideia antlgil de que a colonizaç3o foi uma ini- rentes que, se ne<:t!ssâr10. tenam de exterm1nJr-se". Motivo pelo qual,
ciativa humanitária e contribuiu par.a a modernização da~ velhas so- depois de terem analisado minuciosamente os procedimentos colon1·
ciedades pnmltlvas e morlbund.is que. entregues a si próprias, teriam ais de conquista e ocupação. autores como HJnnah Arendt ou S1mont-
acab.1do por suicidar-se. Abontlndo a<;Slm o colonlahsmo. perm1umo-nos Weil puderam elJbora1 uma analogld entre esses procedimentos
uma sinceridade Intima. de uma autenticidade Inicial, p;:iro detectar e o hitlerismo" Segundo Simone Weil, o hatlPri\mo •consiste na ~pll
melhor o~ .lllhis - nos quais somos os únicos a acredlw1 - de uma con · cação. por pane d,1 Alemanha, no continente tiuropou, e mais Rlob.tl
duta ~of1 ivdmente Imoral. Porque, rol como sublinhava Simone Well. mente nos pafses de raça branca. dos métodos d;i conquista e da su
•a colon1i.ição começa quase sempre pelo exercício da força na sua premacia colonl;iis ··•· Pdrd reforçar a sua tese. citam-se aind;i as c 1nas
forma pura, ou seja. pela conquista Um povo, subjugado pt>las armas. redigidas por Hubert l.yautey em Madag.lscar e Tonlon.
,·é-se sub1t;amente submetido .\s ordens de estrangeiros de outra cor, O facto de que, no plano cultural. a ordem colonial tenha sido mtcira ·
de outr.a llngu3, de uma cultura totalmente diferente. e seguros da mente marcada pelas suas amb1gu1dades e as suas contradições e m·
su~ propna superioridade. Po~tcriormente. como ~ necessJrio viver. questionável-• Actu.ilmente, a medíocnd.ide do~ seus desempenhos
e viver f'm con1unto. ansritul·se urna certa estabilidade. assente num económicos é largamente admitida Será ainda neces~no eStabelecer
comproml~o entre a imposição e a colaboração' "·Segundo as premis- uma distinção entre as suas diferentes fases Depois de se firmar du -
$.ls do rev1çtonismo. hoje em dia sustenta-se que as guerras conquls- rante multo tempo nas sociedades conét•sslonárlas - cuja hrutaltdade
tado1 ,15, º'massacres. as deportações, as razias. os trabalho~ forçados, e mhodos de pred.1ção fá não são actualml'nte negados - França v1vt'u
a discriminação racial Institucional, as expropriações e todas as espé- longamente na llus.lo de que poderia construk o seu império a b.itxo
cies de destruições tenham sido a •adulteração de uma gr.inde ldeian custo (emp1re-on·Chl'·Chcop)"'. Deveriam ser os proprios colonb;ados d
ou. como explicava outrora Alexls de Tocqueville, «necessidades de- flnanciar a sua servidão. A partir de 1900, França re1e1tara a 1de1a de
ploráveis''•· programas de investimento nos temtóncx colollldis que tenam beneficiado
Reflecttndo sobre o tlpo de guerra que pode e deve ser tnvada com de fundos da metrópole e teriam feito um uso intensivo dos recursos
os ár3bes. Tocqueville afirmava Igualmente: cDevem ser empreendidos africanos. Só após 1945 eclodiu a Ideia de um colonialismo «desenvol·
todos os meios de devastar as tribos.• E recomendar; em especial, a in- vente• (dwe/opmentol coloniolism) - e. aand~ass1m. trarava-se de um~
terdição do comércio e a «desolação do pais•. Segundo afirma: «AcredJ· economia de extracçlio. fragmentada e que operava em mercados c:itl·
to que o direito à guerra nos autoriza a assolar o pais e que devemos vos a partir de enclaves relativamente desagreg::idos"' O projecto foi
fazt'l·lo destruindo as searos. na época da colheita, ou constantemente, rapidamente abandonado por. pelo meno~. dols motivos: em primcl10
fazendo Incursões súbitas designadJs de razias e que visam apoderar-se lugar; pelos custos considerados demasiado elevados; depois. porque.
dos homens ou das tropas.• Logo. a sua exclamação não susclla espanto: em última análise, a lógica 1mpenal era simplesmente insusrent.ivel
•Deus nos protc1a de ver alguma vez França comandada por um dos ofi· A longo prazo. porque as exigências nativas em matéria de direitos
caa1s do exéroto africano!• Molrvo que se explica porque o oficial que
«tenha adopudo África. faundo dela o seu palco. rapidamente acaba
por contrair (ai] hábitos. modos de pensar e de agir multo perigosos ~~I=~ Lo Cow Gnndm.oo><>o. Colo,.-. o:t.....- . Sur Ili •W<TW" 1·tu.c a.lonlo/. f•yord.
em toda a parte, mas ainda mais num pais livre. Aveza-se e afeiçoa-se 24 H~nNhA~ttdt. W.Qrw1n«Sdul0<81ftanJmr. G.alhm;1td (oi •Quino-. Pa.rk,.2002 (1967)
a um governo rfgtdo, violento, arbitrário e rude"•. 2S.S1mooieWfo1LCTiiWWtlto;J1C1. Of' dl_, pp 4l0-4ll LertamWm ••ob:wrv~(6t$d~AimlC~u·•
sobr. a l-'j:1Unto d1voun "'' t. coktn~Usme. op nt
Com efeito. é essa a existência Hslca do poder colonial. Não se trata 26. Ann~ Stol~r • f"r9d.,,r1<'k Coo~ (d ir). Tc>ns#on1 o/ Empir-. Calo1ual CulturH '" o IJourgtoh
de uma «grande ideia ... mas de uma espécie bem determinada da lógica World, UR'i\#toriity of C.llfornfa Prus. Berkeley, J997, pp 1-S(;
21 HC!f"tHn Frankcl, CopUal lnvcscmmt ln A{nco lcs CuurH und t'lf1.."d:>. O.dord UnlvcnHy Prn11o.
t..ondros.19J8
20 S1mo,.tW•tl.a11weJ;cbOUin.op tn.., p .. t9 28. C•tht'Mnt' Coqu•l')·-V1d1ovltth, t.. Congo ou tt'rnp1 dri cornpogn1annc$i0*11tOirn. IU9
21 AI"'' deT0<q1WV&O#la-lo . . Alf'M. op ni_p. 11 · 19)0, tdlOOQ$d~llHE$i.. l'An'-197Z
21/W. p p - 29 f".-.dmdt COopor. Dlc'olun•UllM>n o.W A{nco• s-ty. op OL
cívicos e de Igualdade racial no selo de um espaço polltko único (o minorias-, ou de uma forma de «etnlcizaçJo» das questõt>s que seriam
Estado·Prov1dênc1a) nnham como consequência a transfer@ncla para sobrerudo •sociais•.
a Metrópole dos cultos qul' a ultima tentava abater nos próprios ter· Os comentários tecidos antenormente só podem revelar-se cuno·
ntónos coloniais, pelo que se explica, fundamentalmente, a decisão de sos descartando a prodigiosa lógica de clausura (cultural e intelectu•I)
descolonizar que França viveu ao longo do últtmo quartel do séc. XX. Esse reRuxo
~. cm parte, porque impera a Ideia de que se est.tbeleccu nas coló- nacionalista e provincial do pensamento enfraqueceu profundamentl'
nias uma ..c1vill1.ação benfeitora• que se toma tão dtflcll decifrar os as suas capacidades de pensar o mundo e conrnbuir decisivamente
contorno, da «nova sociedade francesa... O mesmo se pass.i com aquilo para os debates sobre a futuro democrorlo As causas dessa m1np1a
que se designa - para poder e~llgm.illzá-lo melhor - de «comunlta- eram amplamente conhecidas, não valendo d pend enunci,í-IJs J4ul,
nsmo•. M.1s a Ideia de que o •Comunltarlsmo,. agrega, por exemplo, bastando mencionar duas. Por um lado - e com algumas excepçõeç
a totalidade dos muçulmanos cm ~rança fará algum sen tido? Ollvier França não soube avaliar adequadamente o çignlflcado político da vi-
Roy nlo l!Star.í certo ao afirmar que j.i não existe •comunidade muçul- ragem da lrrup~o - nos diferentes dom Imos do saber. da filosofia. das
m.1na• ou •comunidade 1uda1ca• em França. mas populaçõe) disper- artes e da literatura - das quatro correntes intelectuais que formaram
sas. heterog~neas e globalmente pouco ciosas de uniílcaÇlo ou mesmo a teona pós-colontal, a crttJca da raça. a rellelCâo sobre a.s d1aspords e
de se reconhecerem, acima de tudo, como comunidades religiosas? todas as espccies de Ruxos culturais, bem como, numa escal.l menor.
Acredit.ir-se-á verdadeiramente que é possível reconstiru1r o laço so- o pensamento femln1s1<1. O oontrlbuto dessas correntes para a teoria
cial, tr.insíormando a laicização no polldamento da rehg13o ou do ves- democrática, a critica da cidadania e a renovação do pensamento so
tuário. ou que os problemas da Imigração e de lncegraç3o constituem bre a diferença e a alteridade é Indiscutível Nessa óptica. o reconheci·
~obretudo problemas de segurança? Como é posslvel que a figura mento do facto de que, historicamente. o individuo se constitui como
do •muçulmano• ou do •Imigrante» que domina o discurso público cidadão- através da mediação de um processo de subjectivaçJo - é ful-
nunca seja a de um •sujeito mor.il• de pleno direito. mas se baseie cral Noutros termos. é cidadão aquele. ou aquela, que pode responder
sempre nas categorias depreciadoras que tratam os •muçulmanos• ou a titulo pessoal à questão «Quem sou cu7• podendo, ao fa:tê-lo, falar
os •imigrantes• como uma mass:i Indistinta que se pode, desde logo. publicamente na primeira pessoa. Obviamente que não basta falar na
desqualificar sumariamente? primeira pessoa para existir como sujeito. Mas se essa possibilidade é
~. ali~s. essa forma de dividir os indivíduos que explica a dificul- pura e simplesmente negada, não existe democracia. Por outro lado,
dade sentida na materlaliução do modelo dvico republlano e, por pelo facto de se ler negligenciado a lmport~nda desses pensamen·
fim. ~ ls~o que dificulta tanto o process:> de figuração p0Ht1ca de uma tos oriundos de outra parte (e que, no entanto, eram prorundamenre
sociedade dbpersa numa multitude de opiniões cada vez mais dividi- mspirados nos contributos da sua fllosoRa), França viu-se frequente·
das pelas questões sociais: a questão racial e a do islamismo. Ao mutl· mente incapa:t de aumentar a sua reRexl!o acerca das relações enlre a
lar assim a história da presença francesa no mundo e da presença do memória e a nação. A thulo de exemplo. como ê possível não consta1;1r
mundo no seu seio, transmite-se a ideia de que a missão de produção que a plantaçdo e a co/6nia constituem slmulLlneamente /ugores dt
!! de instituição da nação france•a não sendo de todo uma experi· mem6rio e lugares de provação? Aqui. mais do que em qualquer outro
mentação continua - já se concretttou hã multo tempo e de que cabe lugar, se vivencia a tentativa de devir su1c1to, ou ainda de preocupaçllo
unicamente aos recém-chegados lnteg.r ar-se numa Identidade que Já consigo próprio (autos11bjectlvação). Como é posslvel não constatar
existe e que lhes é oferecida em jeito de doação. devendo, por Isso, que a plantaçlJo e a ct>/6nia rejeitam radacilmente a possibilidade de
demonstrar a sua gratidão e mesmo o crespeito pela nossa própria pertencer a uma humanidade comum, essa pt>dra basilar da ideia re-
estranheui'°lt. Uma violência semelhante leva a pensar que o modelo publicana?
cívico republicano teria, duranrn multo tempo. retomado as suas for· Na forma francesa do humanismo cfvlco (a República). a passagem
mas canónicas; ou ainda que tudo aquilo que questiona os seus fun- do meu particular ao meu universal (o homem em gerof) só é possível
damentos étnicos e raclalizantes emanaria pura e simplesmente do pela abstracção das diferenças indlvlduantes. Assim, o cidadão é acima
projecto Uo desabonado de uma «democracia das comunld;idcs e das de tudo aquele. ou aquela. que está ciente de que é 11m ser humano
Igual aos outros e de que, além disso, dispõe da capacidade de discernir
a respeito daquilo que é útil para o bem público. Todavia. as corren- de reconhecimento múruo como condição de uma vida convivlaP'.
tes de pensamento resultantes do encontro com o •todo-o-mundo», Nesse tipo de democracia, a Igualdade não consiste tanto «numa co-
mostram que, no ponto em que essas ligações foram negadas ou es- n1ensurabilidade dos sujeitos em relação a determinada unidade de
quecidas pela vlolênda e a supremacia, a ascensão à ddadania não é medida• mas na •igualdade das singularidades no incomensurável da
automaticamente incompatlvel com a vinculação a essas diferenças in- liberdade», para aludir a Jean· Luc Nancy. Nesses contextos. enunciar o
dJv1du:rnres que são a família. a religião. a corporação e mesmo a etnia plural da singularidade converte-se num dos meios mais eficazes para
ou a raça. O sentimento de fazer parte da sociedade do género humo no negociar a Babel das raças. das culturas e das nações tomada lnevi·
(a definlçllo de si mesmo. em tennos universais) não passa necessaria- tâvel pela longa história da globalização.
mente pela abstracção das diferenças individuantes. A abstracção das Se França pretende exercer um determinado peso no mundo por v1r,
diferenças não é uma condição sme qua non da consciência de fazer é essa a direoção a tomar. Mas seguir esse caminho significa que tem
parte de uma humanidade comum. de demolir o muro do narcisismo (polltlco, cultural e intelectual) que
As mesmas correntes demonstram igualmente que caso se preten- ergueu ao seu redor - narcisismo que levaria a afirmar que o impen-
da "abrir o futuro a todos», será necessário operar previamente uma sado emana de uma forma de etno-nacionalismo racializante. Essa
critica radicnl dos pressupostos q"ue fomentaram a reprodução das aspiração de provincianismo é ainda mais surpreendente pelo facto
relações de sujeição urdidas no Império entre os nativos e os colonos e, de florescer na sombra de uma das tradições do pensamento polltlco
mais globalmente, entre o Ocidente e o resto do mundo. Essas relações que. na história da modernidade evidenciou, mais do que qualquer
Impregnavam-se nas Instituições militares, culturais e económicas. outra.• uma solicitude radical para o «homem» e a «razão•. Acontece
Mas eram particularmente vislveis nos dispositivos de coacção sim· que. historicamente. essa solicitude destinada ao «homem,. e à «razão»
bólica, ou ainda nos corpora de conhecimentos entre os quais o orien- rapidamente demonstrou os seus limites sempre que foi necessário
talismo, o africanismo ou a sinologia representam indistutlvelmente reconhecer a figura do «homem» no rosto de Outrem desfigurado pela
as metamorfoses mais conhecidas. Nesse plano, a futura democracia é violência do racismo. A vertente nocturna da República, a consistência
aquela que tiver contemplado seriamente a missão de desconstrução lnerte na qual a sua radicalidade se envisca. ainda é e continuará a
dos saberes imperiais que outrora posslbllltaram a supremacia das ser a raça". A última /: a página obscura na qual, colocado pela força
sociedades não europeias. Essa tarefa deve harmonizar-se com a crftl· do olhar do Outro, o «homem• se depara com a impossibilidade de
ca de todas as formas de universalismo que, hostis à diferença e, por saber em que consiste a essência do seu trabalho e das leis. Ora. acon-
exlensão, à figura de Outro, atribuem ao Ocidente o monopólio da ver- tece que. nesse pais, uma inexpugnável tr'\dição de unlversallsmo
dade, da «civilização» e do humano. abstracto, herdada da Revolução de 1789 e do regime do Terror. negou
Ao operar uma crítica radical do pensamento totalizante do Mesmo. incansavelmente o facto hrutal da raça, sob o pretexto de que a reivin-
poder-se-ão lançar as bases de uma reflexão sobre a dlferença e a ai· dicação do direito à diferença - independentemente do seu tipo - con·
teridade, de uma prática da convivência, de uma estética da singulari· t:radiz o dogma republicano de Igualdade universal. De facto, aquilo
dade plural - multiplicidade dispersante que é menclonada amiúde que, em principio, constitui a força do ideal republicano é a sua adesão
por pensadores como ~douard GIJssant ou Paul Gilroy". Na era do uni· ao projeclo de autonomia humana. Como explica Vincent Descombes,
lateralismo e da sã consciência. poder-se·ã relançar a critica de todo o projecto de autonomia humana é o de uma «humanidade que seria
o Soberano que, tentando passar pelo Universal. acaba sempre por a própria a formular. e a partir de si mesma, os prlndpios da sua con-
produzir uma noção essenclali~ da d lferença. enquanto medida e es- duta""· Mas essa tradição finge ignorar que o «homem» se deixa iden-
trutura hierárquica destinadas a legitimar o assasslnío e a inimizade. tificar mediante figuras permanentemente diferentes e singulares. e
Essa Crttica é necessária porque abre as portas à possibilidade de uma
democracia verdadeiramente pós-colonial assente na obrigação 32.. Paul Ciflroy1 Agolnst Rou. Hitrwrd Unlvcrsily Prr:ss, Cambridge, 2002
33. Lau~nt OUbols. A Ci>lóny of Citi.t~ R~utlon ond Slow Emanc1pt:1don ln cJw Fnmth Corib-
°"""· l787·180f, Unlvonlty of Nortll C.rollna Press. Durlmn. 1004: Sue Pubody, •Tbf!rt Are
F"nntt•. Th~ PolitlcoJ Cu/e~ l>{the Aotl! ond SlatJUy 111 tht Artdtnt R4gfm.w. Oxford
No St.Jves ln
31.~douard Gll...,nt. Poltiqu•. vol. 3. PaltlqWI de lo rtlotlon, C..lllm•rd. P•rl.. 1990; 10.. Tout· Unlv•nlty p,..... Oxford. 1996• Sue ""•body •TylorStov•ll (dlr). TheColarofUbaty. lllsumett
Mondo. C.lllmud. P.arls. 1993 e P.ul Gllroy. /o{ttr tht Emplre. Hdandlolla or Con>ll.,al Cu/tu,., o{thella<ftln Fnma.OW.. Ul\MrsityPreSJ, Durhlun. 2003.
Cclumbb Unhlulily Pn!ss. Nov.i lorqUf', 2005. 34. Vln<rnl Des<omba, te c;.,,,,pitm..1duu)o~ op. clL

. ..
que nenhum pensamento do sujeito ficaria completo Ignorando que com .:a do inimigo. Nessas condições. Já nao é possível assumir que o
o mesmo s6 pode ser Jpreendldo 11través dP um distanciamento de si problema da reprc~ent;iç;ío lncorrecr;a se resolverá através da nossa
mesmo para outro Igual e só poderia provar· se com bdse numa relação capacidade de actu.i1 e de falar em nome de OU[rem. É necessário d1s·
pos1twa a um alhures . s1par 3 opacidade que envolve a presc.>nça de cidadãos tornados mvf·
slvels, no p.1ls, recorrendo a d1spos1tivos que produzem diariamente

Para uma partilha de singularidades e uma


ética do reencontro
l formas de exclusão quf' nada, além da raça. justifica
O reconhecimento da' diferenças não é muito lncompativcl com o
principio de uma sOCledade democrática. Esse reconhecimento cimbém
não ~ignafica que a sociedade agora funcione desprovida de ideias e
Segunda conclus.io. se a vtd;i da democracia faz parte de uma opera- crenças comuns. Na realidade. consutu1 um pré-requisito para que
1
ção - a retomar inchs.intemente - de figuração do social, entlo pode essas ídel.is e crenças se1am verdadeiramente partilhadas. AflnaJ, a
afirmar-se que fazer·se entender. conhecer-se a si mesmo. Cazer-se democracia t.imbém sigmíi<..a a pos:;lbi/1dade de 1dencificaf(lo com a
reconhecer e falar de si constituem aspectos centrais de qualquer Outro. Sem rssa po\~1bil1dade de 1denuficação. a República é ioactJva
prática democrática . Urn.i lnlclatJva de expresslo, capacidade de se 1 Além disso, entre outros. o processo de subJectivação - que. segundo
autoconfenr uma vo7 e um ro\tO, a democracia é fundamentllmente Sf' aí1rmou. é parte Integrante do devir-cidadão - está submetido a
urna pratica da representação - um dastand;imenio em relação a outrem
aos confins da imaginaçJo de si mesmo. de expressão de si mesmo e
de partilha, no espaço publico, dessa Imaginação e das formas que essa
expressão assume. Nesse plano, dificilmente se pode pressupor que o
l particularismos re1vand1cados h\"remente. A globalização possibilita
justamente a poss1b11tdade de sub1ect1vação d;is particularidades. O
que é. t'foctivamente, o si mt'smo na era da globalização que não o rac-
to de poder reivindicar livremente esta ou aquela partlculandade - o
ideal francf;s de humanidade clv1ca se concretizou, considerando que
uma parte dos seus cidad.}os é lateralmente exclulda da parte que é 1 reconhecimento dõJqu1io que, na nação que nos é comum. e mesmo no
mundo que nos é comum, me diferencia dos outros? De facto. poder-
alvo da estima pública quf' dispensamos diariamente, como afirma ·se-ia aventar que o reconhecimento dessa diferença pelos outros é
Pierre Rosanvallon. csob a forma de uma quota-parte de presença nas precisamente a medlaçllo através da qual eu me tomo seuseme/honte.
Instituições culturais, nos programas l'Scolares, nos entretenimentos 1
Fundamentalmente, a pare/lha das singularidades é inclusive um pré-
mediáticos. nas parddas públicas• e outras políticas de assl~tência. -requisita de uma polftlca do semelhante e do em-comum.
Uma vez mais, trata-se de írisar o facto de que a Individualização Quanto ao resto, tal como explica Jean-Luc Nancy. a singularidade
nom1ativa oculta largamente os efeitos dcslgualitários e culruralmente é simultaneamente aquilo que nós partilhamos e aquilo que nos par-
1
estruturanles do racismo que se Inscreve marcadamente na forma tilha. Reconhecer a singularidade dos lugares de provação a partir dos
ordinária d.'is relações sociais e, sobretudo, na rotina burocrática. No 1
quais nos constitulmos historlcomen[e enquanto nação, não significa
campo ideológico. uma das formas de m:ucarar consiste precisamente que as «diferenças de ser» nos separariam uns dos outros. Motivo pelo
na oposição do unlvcrs31ismo e do dlforenclalismo (comunitarista) 1 qual Nancy definiu a •fraternidade• como 3 •<igualdade na partilha do
ou a inda a arrel)lar·se a uma rcaílrmaç;1o, no abstracto, da Igualdade i11cumcnsu1 .ívcl», ma'> o lncomcnsuravel daquilo que cada um de nós
de cada Individuo perante :a lei". Parn que a futuro democracia ganhe tem de próprio. Segundo o autor. só existe «nós• no •em cada vez uma
sentido e forma e para que nasça. na su;i multiplicidade dispersante, única vez,. de vo1.es singulares. I! concluir: o ser-em-comum emana
essa nova nação que coml'ça a constituir-se. aos no~sos olhos. é ne- fundamentalmente da portflha ... Alé.m disso, reduzir a ansuflcienda de
cessária uma nova economia alargad;i da representação que considere figuração ou a base monlstica da cultura pública francesa. não equivale
todas as formaç de produção e afirmação das Identidades colectivas. a endossar uma política CUJO fund;imento seria. a cima de tudo. é.tnico.
Por enquanto, uma enorme massa de cidadJos, obscuros e lnvislveis, rnd;il ou religioso; ou ainda praticas cuhurals manifestamente con·
apal"l!nta-se literalmente aos estrangeiros no lmagm;írlo público- e isso trártas aos d1relt0s humanos. Afinal, a recusa de validar a atribuição de
numa época na qual a figura do estrangeiro se confunde pengoS3mente uma expllc:aç:<lo biológica ao sociaL a sua etnidzação ou a sua radalização é
legltlma, mas s6 ~ concrenúvel tratando a questão da representação
35 _MI;;;;;--~ (dir).
l'Mtl.2000.
u,,..,•u ,....,.,, a.:Uniw,..1111 ~- • r~. rur.
lncorreC1a. E só a transição para o cosmopolitismo pode entravar. por de multiculturalismo anglo-saxónica (/6g/ca do acocove/amenco. da
um lado, a democracia das comunidades e das minorias e. por outro, a ;ustapos/ç(Jo e do .~P9re9nçl10), n em uma certa forma de narcisismo
sua dupla dissimulação: uma democra< la impregnada dos seus própri- à francesa (16,qica da dup//coÇ{Io. rnus duplicaµio que n/Jo obsca o dis-
os preconceitos de roç;i. mas lgnorantl' dos anos através dos quais crlmlnoçdo). Neste momento, deve interromper-se essa reflexão para
pratica o racismo. suswntar que, devendo íazcr se justiça tanto ao carácter absoluto
Terceira conclusão: Lanto o desuno da democracia dependeu, a par- slngul,u do próprio, quilnto .i impropriedade comum de todos. como
tir do séc. XIX. da figura do Individuo dotado de direitos independente· sugere Nancy, a democracia deve reencontrar aquilo que, original·
mente das qualidades, rals como o estatuto social. quanto a futura de- mente, sempre a lOnstltulu como um acontecimento ético. Talvez va-
mocrocla dt'pcnderá da resposu que aprt"ientaremos à questão de lesse a pena começar. nesse caso, por nodescobrir o corpo e o rosto
saber quem é o meu próximo, como trocar o rmmigu e o que fazer do de outrem, sendo que além de representarem vest:lgios comunicantes
estrangeiro. A •nov.i questlo do Outro• çob todas as suas figuras - ou da sua existência, representam também aquilo que o transform.a no
amdil a presenÇil de outrem entre nós, o aparecimento do cerc:e1ro - meu próximo ou, pelo menos. no meu semelhant.e. Talvez seja essa a
vê-se assim substitulda. no :lmb1to da práuca contemporânea de um condição para a consecução da miss.lo de reconfiguração polltic:a do
mundo humano. de um.:i poHtlcJ do mundo. Nes..ç.as circunstãncii1S, social que lá nlo pode ser difcnda. No que se reíere à força do modelo
as interrogações de ordem lilosóhca formuladas recememente por rrancês do universalismo. emanara da capacidade de inventar formas
Maurice Merleau-Ponty. conservam toda a sua actualidade polluc:a· constantemt'nte inovadoras de coexistência humana. ActuaJmente,
..Como pode a palavra éo conjugar-se no plur<117 ( ... )Como posso ra- essa outra forma de compreender o sentido humano constitui o pré-
lar de outro Eu além do meu''7• Quer queiramos ou não, actual e fu- -requisito para qualquer polír1m do mundo. EsS<l polltica do mundo gira
turamente, as coisas passam-se de tal rorma que o aparectmenw do em tomo do cu idado que atribuiremos à unicidade de cada um. manl-
tuee1ro no domínio d;i nossa vida comum e da no<sa cultura já não festad.i pelo rosto de cada um Por conseguinte, a responsabilidade em
voltará a concretizar-se no anonimato. Fsse aparecimento condena- relaçJo ao outro e ao passado converter·se·á na órbita a partir da qual
nos a aprender a 111ver expasl.t>s uns aos outros•. girará o dlScurso sobre a justiça e a democracia e a nossa prática.
França dispõe de meios para retardar essa ascensão em visibilidade,
embora. no fundo, ela sej;i lrretorquívcL Loco. é necessário. o quanto
antes, simbolizar essa presença de modo a que a mesma possibilite
uma circulação de sentido. Esse sentido eclodlrâ à dlst.âncla, a par de
uma simples justaposição das sl ngularldades e da ideologia simplista
da integração. Se, tal como aílrma Jean-Luc Nancy, o ser-em-comum re-
sulta da partilha. cntllo a futura democrnda íundar-se-:i não apenas
numa ética do encontro, rna~ também na partilha de singularidades.
Construir-se-á com base numa d1Sllnção clara entre o «universal•
e o 0<em·comum•. O universal Implica uma relação de mclusJo em
qualquer coisa ou qualquer entidade previamente constituldas. O em-
·comum caractrrlza-se essencialmente pela comunicabilidade e pela
possibilidade de partilha. Pressupõe uma relação de co-filiação entre
múltiplas singularidades.~ graças a essa partilha e essa comunicabili-
dade que produzimos a humanidade, que não existe por si só.
Para conclulr: aduzindo ao facto de que aquilo que espera também
é aqutlo que se coaduna •com•. n3o se pnvllegta nem uma certa forma

~ Met\ee- ; ronty. ~, • • ~.... WU11".Jtd. ~l'\'l., 1445. P9- ~


401 .
38.lem Looc 1<""<)'. IACrlo"°" ' " - . . , , . _.., _ _ , ...,h,_, ........ 2002.p.176.
SAIR DA IV.
GRANDE NOITE O longo inverno imperial
francês
ENSAIO SOBRE A ÁFRICA DESCOLONIZADA
No resto do mundo. a viragem pós·colon1aJ nas aências sociais e hu-
manas concreuzou ·se h.í cerca de um quarto de século. Desde então. a

Achille Mbembe crinca pos-colomal m\p1ra inúmeros debates políticos, epistemológ1·


cos, mst1tuc1ona1s e d1sc1phn.ues nos Estados Unidos. na Grã-Bretanha
e numa séne de regiões do hemlsléno sul (América do Sul. Austrália
e Nov-.1 Zelândia \Ubconunente Indiano, Áfnca do Sul)'. Desde a sua
eclosJo, e~~e pen!>.lmemo foi objecto de Interpretações multo diversas
e suscitou. em lnterv3los relativamente frequentes. vagas polémicas
e controversas - que, ali.is, persistem - e mesmo contestações total·
mente contraditória~ entre si'. Também engendrou práticas mtelec·
O longo Inverno Imperial francês 101-139 tua1s, políticas e estêtlcas t.'lo profusas qu;into dlvergenteS, a ponto de,
por vezes. se questionar acerca dos elementos constitutivos da uni·
Suspensão e discordência dos tempos 102 dadc•. Não obstante essa fragme11taç3o, pode afirmar-se que, no seu
Convulsões de expressões plurais 110 núcleo central, a critica põs·colonlal visa aquilo que poderia designar-se
Querelas bizantinas 117 pela lncerpolaç6o das h1st6rias e a concatenaç6o dos mundos. Dado que
Desejo de provincialização 122 a escravatura, e sobretudo a colonização (mas também as migrações,
a círculaçJlo da\ formas e dos Imaginários. dos bens, das Ideias e das
pessoas). de~empenhou um pJpcl decisivo nesse processo de colisão

1 Comn •"-t•mplo dil"•U dlY•n:id.ad•. ler M>btt ~ ONn~. Eorique DuSHl. Carlos- A. l:.ure;u1 (d1r),
Ctllqn1t.1li<J ut IA"IJfl 41,,J rh• 1\i•h.,_/.Jn1ul lHOut•. Outw Univcrslty Pseu_ Ourh.11.m. 2008. Consulwr
t<tmbtm" •fol...,e dt Ftf'1\anôo Côtvn•I. •t..tJn Arnrnan P-Mte:oloru.at Studtt."l. arw;I Clobat Ot:colo
nh.•tt0n•, ln Nr'I ~u1u1 (dlr ).,,,,,,.,wtf'lc~t Utt~mcrodUCfionc:rlUqw,Ams~ Paris.
2006; bom como Y1n.y>k Chiot•rwrol (dlr). l<lopplrw S..IH>f...,, S.IH/la
V•no. l.ondrn/l'IOVI lorqlM. 2000
º""
rJrr l'oruolomol

2 A tlrukt de nttnplo, let Slm~n Our1"J, •Postcolontuuon and CloballDlJOA:. TowudJ ~ Haston·
duuonof tht lnttr· Rl-~1ton•,Clltnu·wt Studia.14, 3--4. 2000. pp. 315-404. Hany O H.irootunt.an
......t<olon..llly'• Un<GnKIOWl/ArH SIUdlft' o...i .... l'l><tcolo•••l sa.41... 2/2. 1999. PP 127
147 \'!Hf nuls ~nttmf'nte, N~ FOt'MOtHNtJ, ft.' 59. 2006~ PMLA (Pu.bUcatioosoltbtt Modem
u n - A11o<b1>on oi Alnonai rl • 122/J. 2007 Ler tllllbem o nllmtto ._mi d• Sodo/
Tm.10. 2·1. 1"'". ooum..,, ..Pfd•ld•AM<lrko•Hutanool-. 99. 1994.CGluulurtam
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3 Ler. ... pon~~ "°"" ~ C. v... ,... - - An H - 1 l n - . lll•d•-l~
Odonl.2001•0"""'1.uddm(dw~-·•SllN,..,,,_-..Cn,_,H~~l<l«>•"W
-·CM>.hlO-o/S-U. .... - .....1111act.11..... Dd~2001
e de lmbricação dos povos, não é surpreendente que as tenha conver· nunca será alvo de qualquer critica Informada, nem de debate digno
tido nos objectos privilegiados dos seus estudos. desse nome'. E. salvo alguns textOs de Edward SaJd, quase nenhum
O sumo do pensamento pós-colonial não considera a coluniiação teórico que se considere pertencer a essa corrente de pensamento ou
nem como uma estrutura ímutável e anlstórica. nem como uma entidade aos seus diversos anuentes (subaltern srudies, por exemplo) será tra·
abstract.a, mas como um processo complexo de ínvenção de fronteiras duz1do'.
e intervalos, de zonas de passagem e espaços íntersticiais ou de trân· Acontece que quando a corrente começa a ganhar ascendência nos
sito. Paralelamcme, sustent.a que, enquanto forf" histórica ~ moderna, rneios académicos e artísticos anglo-saxónicos, a França polltlca e
uma das suas funções consistia na produção da subalterntdade. Nos cultural, avançando num sentido oposto, entra naquilo que se pode-
seus impérios, vários potências coloniais tinham instaurado uma ria designar por «inverno imperial». Sob a perspectiva da história ln·
subordinação assente em bases raciais e estatutos juridícos por vezes teleetual, esse Inverno caracteriza-se por uma série de «suspensões,.,
diferenciados, mas sempre, e em úJtlma instância. inferiorizantes. anátemas e grandes excomunhões saldados pela regressão relativa
Em contrapartida, com vista a articular as suas reivindicações à luz de um pensamento francês de cariz verdadeiramente planetário. Sob
d;i igu3Jdade, muitos su1eitos coloniais procederam à critica dos erros esse prisma. é deveras significativa a suspensão do marxismo e de uma
que a lei da raça e a raça da leí (e a do género e a da sexualidade) tinham concepção das relações entre a produção dJ saber e o empenho mili·
contribuído para criar. Logo, o pensamento pós·coloníal analisa o tante herdado. não da década de 1960 como se tende a crer frequente-
trabalho concretizado pela raça bem como as diferenças assentes no mente, mas de uma longa história intimamente lígada à do movimento
género e na sexualidade no imagínãrlo colonial. as suas funções no operário. do internacionalismo e do anticolonialismo. De facto, dado
processo de subjectlvação dos subjugados coloniais. Páralelamente, que o Império marcou profundamente a identidade francesa, sobre·
debruça-se sobre a análise dos fenómenos de resistência que mar· tudo entre as duas grandes guerras mundJais, a sua perda (e, desig-
caram a história colonial. as diversas experiências de emancipação e nadamente, a da Argélia) afigura-se a uma verdadeira mutilação no
os seus limites, tal como os povos oprimidos se constitulram sujeitos lmaglnárto nacional, subitamente privado de um dos seus motivos de
históricos e influenciaram multo caracteristicamente a constituição de orgulho. Com o fim da colonlzação, França receia não vir a ocupar mais
um mundo transnacional e dlaspórico. Por fim, incide sobre a íorma do que uma posição provincial nos equillbrlos mundiais. A história
como os vestlglos do passado colonial são actualmente objecto de um imperial - na qual, uma das funções consistia em enaltecer a glória
trabalho simbólico e prático, bem como as condições segundo as quais da nação. pintar a galeria dos seus retratos heróicos, as suas Imagens
esse trabalho produz formas Inéditas. hlbridas ou cosmopolitas, na de conquista. as suas epopeias e as suas representações exóticas - é
vida e na polftica, na cultura e na modernldode. confinada a uma região periférica e marginal da consciência nacional.
Grandes mistifórlos, mortes e provações Inúteis para uns, vergonha e
culpa para outros - essa história só suscita preocupação junto dos sec·
Suspensão e discordância dos tempos tores mais reacdonários da sociedade francesa que, a partir da mar·
gem, tentam preservar a memória na nostalgi;i e melancolia.
Com a divisão relativamente estanque entre as disciplinas, o provin· Inversamente, ;i historiografia francesa pós·colonfaJ tende agora a
cianismo relativamente acentuado dos saberes produzidos e mínistra · não tratar a colonização como "um momento inquestionavelmente
dos em frança (djsslmulado, durante muito tempo, pela exportação importante, mas, em última análise, tardio e •exógeno·, de uma lon·
dos produtos intelectuais de luxo tais como Sartre, Lacan, Foucault. gulssima história "nattva•'it. Como se houvesse necessidade de um
Oeleuze, Oerrida ou Bourdieu) e a par do narcisismo cultural, França
permaneceu longamente à margem dessas novas viagens da reflexão ~ A esse rt-.spc1lo. ler o ~rtigo d~ loacqun Povc:heP'diJS. ..La: subalte:m studtes: ou 1• crltfqut
planetária. Até uma época recente, não tendo sido totalmente neglí· po<t«>lonlal• de la mod<mlth. L"HomrM. n.• IS6. 2000 6m pleno 2000, .., Marl..0.ude
Smou"' (d lo). /,a Sltua<fon posicoloniolt. La posuolomal studt"1 daM I• dlbot {ro"'°lr. p......,.
gendado, o pensamento pós-colonial tem permanecido, no mlnimo, de Sclences. Po. Parb. 2007.
parcamente conhecido. Tratar-se-á de uma impertinência Insolente ou S. Todavb.. cof\P.lh.ar <K tci:xtos de auto~$ que rel'llndlcam os RUS subalttt'O swd&M' l'Ohgfdos ln
de uma simples insolência simultaneamente Ignorante? Ostracismo M<llmadou Oiou( (d1r. ). L'H.utonogrophit mc#f!nJHt •11 dtbo4 Cohntittflsrnct, nadonallsmt! et JOCl4t'1
post:DOlonlo/fll. KanJ\:al~fSephts. P.aris. 1999.
calculado. desenvoltura ou simples acidente? Até ao Inicio do milénio, &. Ver Sophle DuJucq. C.thc:tine Coquery-Yldrovlttcll. )e•n Fttmtp«:I, 6tMnueUe Slbcud t
le:in~l.oub TTlMld. •L'krihl~ de l 'h)stol~ de t. colonla.alion cn France depuls 1960•.Afrlque&
desprendimento súbito, não lhe é utribufdo qualquer destaque no abandonar a adesão lncond1clonal à dogmática marxista para for·
pensamento francês, no qual a parttr de agora, ela desempenha uma mular nova' posições criucas que permitiriam pensar o estalin1~mo
mera íunçJo de exterioridade, dado que é relocalluida e situada do e a política da UnlJo Soviética em termos que não retomassem pura
outro lado da fronteira. como que para marcar claramente o desapare- e stmplesmente a linguagem da direita e que n3o propiciassem uma
cimento do Outro que, segundo se acredita, terá suscitado a coloniza- nova fase da exaltação nacionalista. Nes~e ~mblto, o terceiro-mund1s ·
ção. AlndJ mab grave ê o facto de determinada crítica tenldr atribuir mo ê tão assimilado a um m11itanllsmo expiatório quanto ao ódio em
à descoloni1.aç.lo aquilo que de,igna por «derrota do J>('nsamento• em relação a si mesmo e ao Ocidente. Essa categoria polémica surge cm
Françd. Por um lado, a exprcs5ão mais nagrante dessa derrota residiria França num momento em que o íracasso do projecto revolucionário
na descon,1rução das duas ass1na1uras da modernidade ocidental - a nos mundos extra-europeus fá é inquestionável, ao passo que no país
razJo e o sujeito - e na proclamaçJo das do ferentes mortes do homem, a ideologia dos direitos do homem é alvo de um desenvolvimento no-
do sentido e da história em p3rtkular na década de 1960. Por outro ravel. Além disso, à concepção tradicionalmente anti-imperialista da
lado, e sob o mesmo prisma, ena •derrota• seria consequ~ncla da re- solidariedade internauonal••, uma parte dos Intelectuais oriundos do
futação do ecnocentrismo ocident.Jl. legitimada peta descolontzação. marxismo opõem agora uma •mora de extrem" urgência• (humani·
Ess;i refutação - assimilada como uma diabolização e culpabillução tansmo) que fr1><1 mtervenções pontuais precisamente no ponto no
do Ocidente - teria resultado na dissolução do •homem•, •esse con- qual. em resposta à mi~t'na do mundo. o pro1ccto era uma construç~o
ceito unot.3no de abrangência universal•. e na sua substituição pelo antiga do socialismo A partlr de ent.lo, reina a convicção de que o
«homem diferente•. pedra basilar de uma diversidade cultural sem único soaahsmo que pode existir fora do Ocidente é totalit:\rlo. Por
hierarquia' O relativismo rultural e a dispersão do füjclto humano conseguinte, de nJdn serve a pretensão de tnm~ferir as asplraçõc~ e
numa série de ~ingularidade:. lrredut(vel:. entre si teriam. por sua vez, utopias revolucionárias ocidentais para os movimentos de luta dos
favorecido o na~címento de profectos de transformação radical da so- pa(ses não europeus.
ciedade, que se Inculcariam no tercelro-mundismo e no esquerdismo•. í: nesse contexto que, refertos de sarcasmos. lean-Paul Sartre e. por
Quando, ao basear-se no pós·estruturahsmo, na psicanãlise e numa seu Intermédio. toda uma tradição de pensamento anticolonl3hsta,
tradição do marxismo crftlco, o pensamento pós-colonlal desponta são ob1ecto de uma retractação retumbante''. Anteriormente, Francz
no mundo anglo-saxónico, muitos pensadores cujo Interesse pode- Fanon, quase condenado ao ostracismo, dera Início ao seu longo
ria ter sido suscitado - e entre os quals, alguns foram militantes do purgatório, não suscitando nada mais além do Interesse de opiniões
Partido Comunista. roram slmpauiantes dessa formação pollúca ou marginais e rapidamente sufocadas No que se refere a Césaire, a elite
mantiveram contactos com org;anlzações radicais e antl·lmperialis· tradicionalista nfto revela qualquer Interesse pelo Discur;o sobre o
tas - aprc:.saram-se a eliminar o esquerdismo, o marxismo e as suas colonialismo, e ainda menos pela Trogédie du ro1 Chnstophe (1963)
meiamorfoses, colocando o «tcrcelro·mundismo» cm primeira linha•. ou Une saison ou Co11go ( 1966}. querendo apenas reter a Imagem do
Designadamente, à esquerda - onde a Identificação d,u lutas e •cau- homem que, voltando as costas aos alarme~ da Independência, decidiu
sas justas- com o Partido Comunista tinha sido augusta - tenta-se converter a sua Ilha num departamento francês. Salvo Sartre, Beauvoir
e algumas p.trtículas de Derrlda. nenhum dos dois grandes movimen-
,.:;.,,..., 'fOI n • • . 2~.3 a.a- .....wm ••~de I••~ •.r•rt tobft- • •h..wn
2. tos que visam desconstruir a raça ao longo do séc. XX - o rnoVJmento
ddr.lckpt'6pf"YduMKMdadc:t•fr1Ca.m-\• .m ID , L'tU1t•~-. ap. at.. dos direitos clvlcos nos Estados Unidos e a luta global contra o aparthe1d
7, Aa.11• ftM.1~l"1•1i1t. IA OlfaJt1 H lfl ,,...V•. WUirMrd. '•"._ 198'7. p 90 - deixa vestígios frisantes na obra das personalidades do pensamento
8 . Luc Fcny f' -'btn lltfUU't. •Prill« i <tU• H1lion•. Le hnsft 6e. GalUrMrd. hrts. 1988
(1965), p IS francês. Por conseguinte, ao abordar o estado racial em finais da déca-
9 a o t»tanço Ct'IUCO de Gtrard Ch.tli.lnd. ""'Hyl.ha rl'l'O/uoonng1rcs du UU1 '"º"d~. Se•nl da de 1970. Mlchel Foucault não despende uma única palavra com a
Pu'fs. l 979, Piscai BruckMt U Sonalat d• l'ltomm• blont. Tfrn mottd•. ct1lpobJliré, hau'tt de MJ1.
St-uU. Parts. t 983 e Carlos Rlngt'l. t•0tcfrf.,nc ti I• ll~Nmondet, De lo fautuc11fpob1IU4 oui vra'n
África do Sul, que, no entanto, represcma na época o 11nlco arqu~tipo
rvponsabl/lrn. Robon Larfon~ P•rll. 1982 «realmente existente" da segregação legal' '· De resto, é na América -e
t•r blmb'm Yvtt Ucos1e. Co11ttT ln onc/.tift'J·fftond;scn tt amtn ttrtalns tlcrs•mondlsrn. U
Of<ouvtn•. P~n.-. t985 e Claude Uauz.u. Au.c orl.llf'lf'.J du u.vs-lfKllt'i.Jmn. Col01tlM •e oncla>-
#oniohrr• ~" Frarww. J9J9-19.19. l'tbnNtUn. Part' 1982, 10.. •Lft lnt•ll«t:utl• (r.1~Js •u 10 fllcisl>ri>roy.LoCn1/<ju«lno,.,..,~ll. l'•ns.1974
mlrotr elafTkn,. tl~rwrus pour un• htstorMt d.. h•rt·mondb:me$•. Coll/4" d• lo HhJtUnwftft, l t. Jt•tt· h1o1J S.l"'llT. suuockms V ColoaltrflSll'W tt NNololtklltJWN. calhm.atd. Parts. l 964
n • 3. Ht«. t'94 12- Mt<MI F°"coul._ Cours •u C/111'1/c de Fro-. 1'1S "7t, tdotlons de rEHESS. hrU. 1997.
não em Paris - que Maryse Condé. Valentln Mudlmbe e ~douard Glls- precisamente no momento em que o pós-estruturalismo e a «french
sant- grandes nguras francesas ou francófonas idcntlílc:tdas com essa theory» iníl amam a Imaginação académica no resto do mundo. Ao pas-
corrente. mesmo não se identificando com a mesma Inteiramente- en- so que Foucault, Derrida, Barches, Lacan e outros inspiram uma certa
contram rerugio e reconhecimenco. e mesmo consagração. iniciativa de reflexão pós-colonial, em França, esses autores são obfec-
Uma parte do humanismo colonial francês consistia em identificar to de um ~processo» precisamente no momento em que essa corrente
e reconhecer. nos aspectos dos povos subjugados por França, o rosto de pensamento enceta a releltura das suas obras no resto do mundo
multlphce da humantd<tde e a flslonomiil lnílndável da terra. No que - outra prova da discordância dos tempos. Com efeito, são acusados
se refere aos reformadores coloniais. em particular. o reconhecimento de ser desordenadamente demolidores do Iluminismo e inimígos do
das diferenças entre grupos humanos não era, de todo, impeditivo da humanismo. São recriminados pelo facto de terem liquidado o sentido
constituição de uma fraternidade assimétrica. A própria lnic1at1va co- e a transcendência, propiciado a chegada de um processo sem sujeito
lonial fora um assunto relativamente multirracial ". Desde o coman· e inventado um mundo e uma história que nos escapam em todos os
dante de circulo ao intérprete. e mesmo ao governador; do atirador aspectos••. Quanto ao resto, desapontada com o espectáculo Infeliz dos
requisitado nas guerras de conquista ou de «pacificação» ao depurado acontecimentos subsequentes à independência e dos resvalamentos
do Palãcio Bourbon. e mesmo ao ministro da Republica o ro>LO publico autoritários dos novos regimes; persuadida de que foi essencialmente
do Império francês escava longe de ser totalmcnre pálido. No lnído da desencaminhada e que lhe foi ordenado que esquecesse, e mesmo
década de 1980. esse misllfórlo colorido não pas~a de uma recordação renegasse, uma parte relevante dos intelectuais lamenta incessante-
remota. O projecto de assimilação - que constituira urna das pedras mente os seus erros e acredita ter encontrado na cruzada anti-totali-
basilares do humanismo colonial francês e que tinha, mais do que se tária o seu novo caminho de Damasco.
pretende reconhecer frequentemente. angariado a profunda ades~o Mas. na verdade, esse grande movimento de redistribuição dos
de muitos sujeitos coloniais - foi praticamente abandonado logo apos mapas conceptuais e a transformação decisiva do espaço ideológico
a descolonização. As minorias são progressivamente ocultadas, recober· resultante Iniciaram-se multo antes da descolonização propnamente
tas com um véu de pudor que ofusca a sua visibilidade na vida pollli- dita. A última serve sobretudo de acelerador a uma din~mlca Iniciada
ca e pública da nação. No que se refere às antigas colónias de Africa, em plena década de 1930. Já nessa época, os meandros da democracia
cm especial. são abandonadas nas mãos dos seus tiranos, aos quais cristã. certas correntes liberais e dissidentes de esquerda se questionam
as classes dirigentes francesas concedem liberalmente o seu apoio acerca da natureza da URSS e das tentações subjacentes à democracia
político e Ideológico, através de corrupção e Intervenções militares. As liberal". Na sequência da Segunda Guerra Mundial, após o nazismo.
classes dos dissidentes que, como Mongo Betl, denunciam marginal- uma parte considerável do pensamento franoês é confrontada com a
mente as violências neocoloniais, são rídiculani.adas, quase pregando questão do comunismo na sua versão estallnlsta••. Mas é no decurso
no deserto". Quando a marginalização não é suficiente para chamá-los da Guerra Fria que a transição do antifascismo para o anticomunismo
à razão. recorre-se sem hesitação â censura para silenciá· los" . atinge um ponto irreversível. Para os intelectuais franceses, a leitura
Observa-se o mesmo processo de recentralização francesa do das relações internacionais efectua-se agora no âmbito de um antago-
pensamento na critica daquilo que se designa. para efeitos de estigma· nismo capitalismo/comunismo, por um lado, e de uma democracia
tização. por «pensamento 68•, que tem sido alvo de desacreditação, liberal/totalitarismo. por outro". Assinalada por acontecimentos
como o processo de Kravtchenko e de Rousset. a revolta húngara e a
Primavera de Praga essa dlnãmica atinge o seu expoente máximo na
cap. 1118- pneciso defender .a sociedade.
13 A. prop6$ito dMse frn6m.eno, W. E. 8. Ou Bois det"'t-ni• •Em P-.aris. Lldee1 (Bl;al.se) Diagne.
que r.prcsenu o 54!-n~I - t·o do o ~nttgilt bnrico e nraro - no Parhunento Fr.tnds. Mis Di 16. No que se re(e:re aos par.tdOJCO$«b criuat do 41Pftl1'11mento 68• em aer.il... ler Serce Auditr.
:ag:ne •um rrands que só~ n~ro por m"1'0 .1-caso. hr~e-me .ser deveras sobnnc"elro em re~· LJJ P*rult1 antHStt &nol sur I~ orilJlnes trunr rurall"fJtion Jru~llttet.urll•. La Oia>uverte. Paris,
çJo .;a.os.~"1S"pr6prtos wc1o( negro,: . ConVi!f'Sitl com Clnd..ace. o dcpuUido n•c,m de Cu.ldõlllOupt. 2009 (2008]
e'
q 11 ~ptdermk•mcntc írtnc&. NJo 1cm convf<"ÇÕff ae4;rCI d.a a$censA<> dos nt&n>S. txee'pto 17 l.er; a tfm1o d.e txt!mplo,.o númeroMpect.I d2 twfstl Eiprit de Jtnel.ro-~e.re1ro de 1934:
9orlt Souvart.ne-, La crfllqv~ U>dal'-.. 1931·!93• . Lo Dlfflrf!rte•. P:ui:r, 1983 .. 001nlel Cufrtn. Fos·
no rontrxto fran~h· (1n,ologfa Tlut .v~w "'~"' An l"tltf1Hlllodon. Albert ~ Chllrtes8onl No\171
IC>njuc, 192$. p 397). cJsmft •t IJt"tlnd capieol. $ylltpflt, P:uü. 1999.
14. Ler a sua f'l'Vist:a huple$ nO(f'I, JWUp1a afr/cqlnJ.. Vtr tortthlm Ambr<>IS4" KOH. "º"li" kl, 18 Ler, por ~mplo. M•urice Mttkau-Ponty, Hurnonl)m«r ~( 1ttre11r (194?) e L.o A"1tt1turo d~
porl~ Tutoment d'un esprH ~~li~. Homnlsphi&res. Paris, 2006 lo dfdoec.Jque (19SS), ln <:Gu11~s. CalUm.nd, cot. t1Q_wirto•. Pari.$.. 2010
15. Mongo a.ti. "4oln bosstsur Ui Comuoun, op. ele. 19 R.aymoM Aroh, !Hm«rod1 ~t totult<'1risrof'. ~111mar-d~ Paris. 1987 (1965)
década de 1950 acentuando-se ainda mais posteriormente. na década principal função consistia em contribuir para o enquadramento da di-
de 1970. quando os arrependidos da «luta das classes» (intelectuais versidade humana e, por outro, para a ascensão através do conheci·
de percursos e interesses diferentes, mas que partilham o facto de mento dessa humanidade primitiva ao nível dos «povos evoluídoS»''.
serem oriundos ou de terem sido próximos do marxismo-leninismo) Na sua base encontravam-se três postulados: evoludonlsla, dlferen ·
operam a transição do fllocomunismo e da fé laica no socialismo, ln· ciallsta e primitivista••. As «ciências coloniais- propriamente ditaS de-
vocando a dissidência e os direitos humanos. Num plano de crise das saparecem de cena progressivamente, na sequência da descoloniza·
relações entre os intelectuais e os partidos de esquerda. munem-se do ção. pelo facto de serem substituldas frequentemente pelas «ciências
conceito de •totalitarismo», cuja utilização associam a uma militância da Guerra Fria». Todavia, ainda persiste a •grande cisão• que presidiu
polémica e a uma apologia da dissidência e dos direitos humanos, no ao seu nascimento e que justificava a existência de um verdadeiro
àmblto dos países do Pacto de Varsóvia'º· A chegada do pensamento apartheid, não apenas dos conhecimentos, mas também das insti-
pós-colonial ao longo do úllimo quartel do séc. XX coincide assim com tuições. Quer tratando-se de disciplinas históricas, geogrãflcas, jurldl·
a tentativa, em França. de saída dos marxismos (oficiais e de oposição) cas, etnogrãflcas ou polltlcas a valorização da diferença e da alteridade
e o reconhecimento do pensamento pelo projecto anti-totalitário" . constitui, sob um prisma ep1stém1co. a pedra basilar de qualquer reor·
Contrariamente às Instituições de Hannah Arendt, a maioria das teo· denação cognitiva dos mundos extra-europeus.
rias francesas do totalitarismo negligencia o fascismo e o nazismo e A diferença assenta na epistemologia fundadora das ciências. Facto
também o colon1alismo e o Imperialismo. Teoricamente desprovido. o que explica largamente a segregação entre os discursos e saberes
conceito de «totalitarismo» funciona, acima de tudo. e salvo algumas acerca dos mundos outrora colonizados e os discursos e saberes sobre
excepçõcs, como uma arma. A sua elaboração está subordinada aos França. Além disso. dado que o espaço conferido aos estudos extra·
imperativos da polh.ica interna francesa e é primeiramente utilizado europeus é um dos mais diminutos no dispositivo académico e cultural
para instruir o processo do mands:mo21• francês, esses saberes não são incorporados nem na «biblioteca na-
Os factores breve e anteriormente evocados atrasaram a difusão do cional dos conhecimentos1t, nem numa verdadeira história-mundo".
pensamento pós-colonial em França e, al~m disso, perturbaram pnr Inversamente, predomina agora um:i topografia dos saberes assente
fundamente a recepção, acrescentando-se ainda que se poderia aludir numa nova distribuição do mundo cm «vertentes culturais,. (area stud1es).
aos motivos «eplstémicosit inerentes às condições e modalidades de existindo a mesma lógica de discnminação e confinamento nos espaços
produção do saber sobre os mundos extra·europeus nas ciências soci- reservados em matéria de dispositivos institucionais e de edição. Os
ais e nas humanidades duranre a colonização e após a descolonização. Institutos e os centros de Investigação sobre os mundos extra-europeus
Tal como demonstrou Pierre Singaravélou, o período de 1880-1910. funcionam como minorias marginalizadas no âmbito de um dispositivo
ao longo do qual o dentiílcismo e a expansão colonial culminam. cor· universitário, enquanto a maloria das grandes obras cientificas ou dos
responde ao momento de Institucionalização dos saberes acerca das artigos sobre os mundos pós· coloniais se vê confinada. pela maloria das
colónias e as populações colonizadas21• O objectivo central das «ciên· disciplinas, a um grupo distinto de revistas e editoras" .
elas coloniais» em França (a História, a Geografia, o Direito Legislativo, Intelectual e culturalmente. França procura agora alimentar o pa-
a Economia} Incidia sobre as «raças atrasadas»". Por um lado, a sua triotismo e Incrementar a sua •função imaginária•, noutra parte que

20. Mléhilc• Chrlnorrenol\. La l:ttdlt:etwcls amtH lo Rº"ch'· L1dklogf• 01ttic.otalltal~ M


1

Fl'Oncc (1968·1981}. A&one.. Mars~1n.. 2009 Ver umbiim fuHan Bourg.. From Rlvclution to ond chc Scic.nao{Frrndt Colonfoli~m. tndU!u;;i Umvenlty Pn:sa,. 81oomlngton, 1994.
Ethíc:s: May 68 orid Qmrcmpol'Ory Fr~ncll Thou.ght, McGlll·Quec:1\ S Unfversity Pre-ss, Montreal. 2S. No que >e refere ao.t n:u.i p;u11doaos e amblguld.ades. ler Emmanutlte Slkud. Unt icl~n~
0

Klna<ton, LondrtJ. lthaa. 2007. fmpttiofepour l'Afrlqu-1 t.a connru"'ºª des Javoln o/rlcanls~$ en Fronc~. 1818~1930. tdtdons
'Zl Nesn plano, ler Comellus Cutoriadí.s. L'Jnstlwtlqn lmo9lnolre dt lo sodh.I. Seul1. P•ns. de l'EHESS, Paru. 2002
1975. deifgn.;tdam~nt~. o cap. 1~ «-O m;1n:•smo! bala.nço provlsôrioJt. 26. lHbeJfe Poutdn (dlc). LéXIX~ SJtt/,, SdtftK~ politlquc- tt lrod1úort. Bergr_f'-Levrauh. P~rli.
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23. Pler... S.nprawlou (dlr.). t:õmplro dhgtograph... Gtogrophlt. up/ororloo <t co/anlsatiori. du monde dons í'Unl..,nlt6 lranç11..,,, Vlngtlbnuikl•. n..• 61, 1999. pp. 111-125.
XIX•XX• siklt. Belln, Paris, 2008. 28. Uma marca d6S. anacn>nl.smo no periodo da •literatura-mundo•, a.s prestigla.du tdfçlSH
24. Vtr ~l.I P)'tMon. C;viJ,Vttg Mlqion: EJCOcr Sci•n~ ond Frtnch Owrwas E~M~ J8JO- Calllm.ard - co.ntrarUmtnt• li StuU - nJo ror.am 1114m de """ gu•to edUorial de$ltJMdO eco....
J9-f"·John.t HetpkíM Untwrsity Prus, ~ltimor.. 1993; Mkh.ael A 0Jborn•. Not.un. Lh• E1101lc. tfnenu noirs• (IJ (Contlnen.tn N~) para arrumar a ""'lon. dos seu.a •ulOns não bn.ncos...
não no Império e nos seu~ vcstfgios dos recursos. Talvez n~o se volte Não re<;t:im dúvidas de que a época áure<i da presença afro.american;i
para ~1 mesma inteiramente. mas é atra~s da sua lente, que lhe serve no núcleo pdrislense (a p.irtlr de 1914 até à década de 1960) J;i p.J:.-
de fihro. que faz a leitura de s1 mesma e do mundo. Entre 1980 e 1995, sou' O extenso período de soberama do 1an. do reggae e da rhythm
uma geração de unavers1tános formados nas 1nsdtulções francesas e and blucs chega ao fim e a irrupção do hip-hop e a recepção das d1vcr·
maioritariamente composta por cldadàos franceses •de col'lt e oriun- sas variantes do rap não são totalmente desprovidas de ambiguidade
dos de minorias das antigas colónias. começa a an.dlsar dS consequl'n· Ma~ certas figuras de proa dessa nova forma de exprC"ssão conferem
elas desse inverno cuhur:1I e intelectual. Alvo~ da •monocromia" e do urna tonalidade pollrlca Indiscutível a esse género musical". E.~sa nov<1
sistema burocrático e do mandarlna10 em vl~or nas universidades e sensibilidade estética também é fomentada, mc~mo que indirccw
centros de anvestigaç3o. emigram para os E~l.ldos Unidos onde - quer mente, peld lenta ascendl!ncla do futebol (desporto mais popular em
tratando·se de llngu1;11c tum. selfrr!flt!X1><' mom1mc em Antropologia. França) dos atletas negro~ e de origem ãrabt> Além disso, alguns deles
ou da critica femanma e do~ cnc1cal roCP stud1~ - as Humanidades e não hesitam em participar em debates sobre racismo ou cidadania
as C1€nt:1dS vivem momentos de plena efervescência. Retornam .is ori· À semelhança de certas figuras negras do basquetebol norte·amer1 ·
gens. retomando os pensamentos afro·arnencano. das Caralbas angló· cano e do atletismo americano e caribenho, desempenham um papel·
fonas, dos mundos ~lno indianos e larlno·amerlcanos e da~ novos ln· ·modelo, pelo menos, entre os Jovens da periferia confrontados com
teq1rc1.ações da h1stón.i e lilerarura francesas que emergem no Jmbito P"ocessos contraditórios de auto·ldentificaçJo e assolados por uma
da academia americana • vontade desenfreada de participar na sociedade de consumo, da quJI
a globo/ black culture se converteu num índice pl;inetário"".
Essa fremênda também se denota nas novas formas de luta das
Convulsões de expressões plurais minorias, Independentemente de pertencerem à categoria dos lntru·
sos e complete ouc.sidcr:s (lmlgr.rntes legais ou clandestinos) aos qua1~
Os comentários anteriores não se inserem numa lógica processual, é negado o direito de auferir direitos; ou à dos sem-propriedade da
vlçam contextualizar não apenas o descompasso CJC!stente entre are- democracia francesa - aqueles que, apesar de serem nominalmente
cepção dos estudos p6s·coloníais em França, mas também o desfasa- franceses, se consideram privados do usufruto pleno e integral dos
mento francês em relação a um mundo que, finda a descolonl-iação, beneffcios simbólicos Inerentes à cidadania, a começar pelo d1re1ta à
se reconstitui posteriormente. sob o modelo de circulação de Ouxos vis1b1/1dade Acontece que, desde meados da década de 1970, drcu·
fragmentados e d1aspórlcos•. Enquanto França se dedica às suas los de penS.Jmento de extrema-direita desenvolvem a ideia segundo
problem~tlcas cradlcional~ da «assimilação» e da •Integração». a qual a Identidade nacional francesa sena maculada pelos Imigran-
prlvlleglam·se as •modernidades alternatlV•S"M, no Inicio da déca· e tes. Inicialmente alvluada pelo Front Nalional, a Ideia vai ganhando
da de l 990 que França começa a fremir timidamente a sua languidez gradualmente a direita republlcana, lnnltrando·se também numa par·
pós· colonial. Como habitualmente, esse escrc:meclmento repercute-se te conslderavel da esquerda, e mesmo da extrema -esquerda. Se. após
a partir das margens da sociedade. Numa rase Inicial, repercute-se no os ma.ssac1-es das duas guerras mundiais, França tivesse organaudo
domlnio artístico e cultural A enxertia de elementos cultura Is popul;i-
res afro-amencanos na cultura popular da penfena começa a produi.1r ll Actrca df'tM pt'riodo ltt T)t~r ~lov.a.lt P&tris M:Hr. Afnco't A1'ttt1n"'1 Jn fM Ocy o( Ug'1t
efeitos entre as 1ovens das minorias. Como acontece nas esferas da HOtllhtOA Mlffl,n. ~o.... lorqo., 1996 Post~normu~ coruultar Domtnic Thom.11. 4/" t
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Ce$1, ~r por ULmplo. o n1tmuo upttia.J dos Cahwn 'l'tl1to1ry. Rnvc dllt.c-rcWW ('t"fllqur, n • gnt<4P. 0.-wloptn.nt.. P~. 1n Al•ln Philfppe Duta•d (chr:), 8/ock. 81oJtG lkul': ror /tluot.
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efectlvamente uma lmlgraçllo para responder à necessidade premente dessa indiferença ;\s diferenças conslltula assim uma indiferença às
de mão-de-obra das suas lndúslrlas, essa imigração teria sido real- discriminações.
mente inlerrompida, apó~ a crl•e petrolífera de 1974-. Desde então, a Nesse pl,100, e até ao final da década de l 990, os meios de comuni-
Imigração em França é apenas marginal - por lntl'rmédio dos reagru- cação em geral e 3 televlsJo em especial consrltuem o palco principal
pamentos familiares, pedidos de asilo, estudos, entradas por motivos de um.i violênc1J simbólica dúplice: por um lado, a violência da indife-
de t:uríSmo ou clandestinas. rença e da const1tuiç;'lo de minorias, por outro. a violência inerente
Mas. a partir do momento em que a 1m1gração 1a não é marginal, as à produção de estereótipos e preconceitos racistas. Nessa altura, as
leis tornam -se cada vez. mais inílexfvels ao longo desse perfodo minorias não sJo definitivamente invisfvetS na 1elevisão, mas surgem
álg1do, pelo que cad.1 minlslro do Interior se outorga o dever de maiontanamenle em programas musicais ou desportivos_ Os negros,
aprovar uma ou mais leis anti-lmtgraç:lo cada vez mais draconianas do em particular. só surgem com frequência na televisão e no do mimo pú-
que as anteriores. Afl!m de Interpor mais entraves à encrada, uma das blico como comediantes. cantores ou sah:imbancos. A sua participação
consequências imediatas dessa suce,sào de dispositivos legislativos na flcçi'lo, processa-se quase sempre em produções amencanas e não
e repressivos toma cada vez mais precána a vida dos estrangeiros 1â francesas. O mesmo se passa n3 publicidade e nos programas diários_
estabelecidos em França. Outrossim, ao longo das ultimas duas déca- O~ fu1eboltsias e outros atlecas também nao estão repartidos muito
das, a acumulaçlo de leis e a envolvência regulamentar produiem um d1feren1emente s.. o ass1m11Jdos a •atiradores. modernos, dedicados
número considerável de clandesono; que o Estado se encarrega de à bandeira, mas palra sempre sobre eles a suspeita de que não estari-
perseguir em nome do comb;ite à 1m1gração clandestina" Doravante, am multo dispostos a enton a Marselhesa a plenos pulmões.
França vangloria-se pelas suas •quotns de expulsão•'". t nesse con- •, O enquadramento dos ilrabes obedece a uma lógica paralela Os
texto que alguns 1á não hesitam em ratar de •xenofobia de Estado•"- preconceitos acerca da natureza agressiva do árabe e dos seus ím-
Se a primeira forma de mobilização visa essenctalmente o direito de petos incontrol4veis constituem elementos duradouros dos disposi-
auferir direitos {a começar pelo d1re1r:o de permanlncfa em França), a tivos h1stóncos de est lgma1ização. Por conta da sua alegada pro-
segunda (que surge no final da década de 1990) é uma luta pela visi- pensão à vlolaço\o. o jovem árabe de origem imigrante magrebina
bilidade e contra a const1tu1Çt10 de mi nonas e estereótipos. Incide dl- representav;i uma fonte de insegurança dentro e fora da sua comu·
rectamente num não·<llto primordial do modelo republicano francês: nldade" O próprio Islam ismo é menos assimilado como religião do
o «branco• implícito do francesismo. Com efeito, ao invocar o principio que como cultura: ou quando Isso acontece. a sua teologia preconiza
constitucional francês de Igualdade entre os indivfduos, as diferenças um Deus veementP, colérico, inílamado de sangue e irracional. As su-
de origem, de raça (etnia), de género ou de religião entre os indivíduos cessivas controvérsias a respeito do «véu lstamico» ou sobre a burca
e os grupos não podem ser levadas em linha de conta.A república deve estão saturada~ pela Imagética orlen tal i ~La outrora denunciada por
ser laica e "co/or bllnd•. O lmpora1fvo de Igua ldade requerido «para Suld. Permitem sobretudo encenar as violências que esses homens
faz.er de cada mdMduo um cidad.io de pleno direito obriga a considerar innlgem a essos mulheres - violências que não se assemelham às
os homens de forma relatlvamentl' abstrncta. Todas as suas diferenças •nossas vlolC!nclos•: cxcls3o, casamen1os forçados. poligamia, lel
e distinções devem ser af;istadas para só serem reconsideradas na sua dos primogénitos. uso do véu, provas de virgindade. pelo que se
qualidade comum e essencia l: a de Individuo autónomo."'• As conse- manlíesta compadecimento com a vulnerabilidade das «mulheres
quências dessa indiferença radical às diferenças são 1als que a recolha muçulmanas•. Mas, sobretudo, receia-se que as mulheres francesas,
de •estat!sticas étnicas• é proibida por lei. e qualquer veleidade de pro- por seu turno, possam ser objecto de uma violência sexlsta exógena,
gramas de dlSCrimlnaço\o positiva é de$acrcdltada". O efeito perverso sendo ameaçadas no espaço público por agressores não brancos e
não cristãos''
37. Oklitt fusln. AbiJn Mwttt• Cath...-u•• q..,,,.11,,_.t (dtr). Lft ,_.,,d•J',n••.pU.a.lttl.. op.. cu..
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Por sua vez. a produção de estereótipos visa reencaminhar as mino· partida a Ideia segundo a qual a naç3o francesa não existe tal como
rias paraª' suas origens de •alhures• (em oposlç3o ao acá) e :111-tbu1r· está. totalmente pronta· é, em grande pane. o somatório das identificações
-lhes uma aJtendade irredutível Esses estereóapos são posteriormente contraditórias que os seus membros reivindicam. Os últimos fazem-na
reciclados e reinterpretados como componentes da sua estranheu es· exi>tlr concretamentr pela maneira como es.sas formas contraditórias
scncLll". Além disso, as minorias consc1rumam o ob1ecto de uma ver- de Identificação são encenadas e narr.adas E. longe de constituir um
dadeira 1ntrgraçllo no <eio da sociedade que essa mesma e~tranheza cor- obstáculo à eXJstênda de um e~paço público, essas formas contra·
reria o risco dl' conwmtnar a identidade francesa a pan1r de dentro. dltónas sao recursos para um ~profundamento da relação entre dc-
Segundo ;iflrm.J a feminista f;Hsabech Badintcr. •O véu integral stm- moc-ract.i, recíprocidade e mutu~hdade.
boliz.a a rejc1çllo absoluta de estabelecer conwcto com o outro ou mais ~ tam~m em inícios da décadJ de 1990 que >e traçam inlciat1v<1s
precl~ameme .1 rejeição da reciprocidade ( .. J Nessa pos~1h1hdade de paralelas no domlnio acadcm1co. Uma geração jovem de historiadores
ser olhado sem ser visto e de poder olhar o outra sem que ele me veia. começa a Interessar-se pelo cuml'rcio das perspectwas entre (ex)
percebo sob o meu ponto de vista da satisfação uma fruição tripla do colónias e (ex·) Metrópole, nas form;ts de colisão entre a memória e
outro atravós da n3o reciprocidade, a fruição ex1blclonl\ta e a fruição n história e na permanência e mutação dos perspectivas coloniais no
voycurlsta [ ... (. Penso que sl!o mulheres muito doente), e f.ilo d sério, e cultura popular francesa Outros privilegiam o estudo das lm;igens
não acredito qut nos caiba a nós determinar em hinç3o da patologia"». e representações e tentam salient;ir o papel central do colonlallsmo
Ao conlr.ãrlo dos •franceses de gema•, as mlnoriJ~ caracterizar-se- na evoluçllo da modernld.1de frances.1••. Essa óptica Impele-os lnevi·
-iam sobrct\Jdo pelo exotismo dos seus costumes, tra1cs e cozinhas; t:avelmente a analisar o papel constitutivo desempenhado pela ldeolo·
as 1rOp1calidadcs dos lugares de onde são originárias, os frutos e per· gla colonial na formação da Identidade republtcana. Posteriormente,
fumes frequentemente presentes na publtddade, quer tratando-se de partindo desse reconhecimento daç relações entre republicanismo e
destinos turisticos ou daquela que apresenta o cacau. a banana. os co- Império, tentam compreender a> nova:. formas híbridas resultantes da
queiros, a baunilha, os camelos e as pra13S ensolaradas A lógica dessas presença imperial francesa no mundo, ao e>Cplorar aquilo que desle·
representaÇ~ consiste em •reencaminhar os fnncescs não brancos nam de •frattura colonial». Por conSC8lJlntc, a sua Iniciativa afasta se
para as causas (geográficas, climáticas ou) culturais da sua Integração de uma tradição muito enra.izada da historiografia colonial francesa
Insuficiente na nação•. A utilização conseC\JtJva do qualificativo cét· em, pelo menos, três planos. Inicialmente, pela forma segundo a qual
nico• para rcíerHos, bem como para designar as suas práticas. resulta essa geração estabelece a ligação entre a história colonial e a história
desse facto estratégioo. Por um lado, só é posslvel compreend~·la em metropolitana. turvando assim a confortãvel separação entre o estudo
referência ao n~o·dlto segundo o qual •os franceses brancos não são de acá e o de 1<alhures•; de seguida, pela maneira como faz repercu·
"étnicos·..... Por outro lado, tenta acentuar a sua mass11nllab11idade. tlr o~ seus trabalhos no dom ln lo público e contribui ipso facto para a
Em 1999, o Collcctlf Egallté, composto por artistas e Intelectuais conslilulção de um dominlo de Investigação semelh;inte à «publlc /1/s·
negros". lnsurgc·se contra esse dlsposiuvo simbólico. As lutas pela tory•; e. por fim. pela forma como volta a problematizar o Imaginário
visibilidade e contra a constituição de minorias têm como ponto de nacional francê~.
Só no ln Ido do milénio. dep01s de ter suportado a Indiferença e inúmeras
•• V•r °' an.1p de Frf'dfonâ Coopn; •from Jm~NI IM:IU\IOn lO Rrpt.ibUon [Jl;CIO~ton?
hesitações. se constituiu uma critica assente no p6s-colonlallsmo.
Franat's Atn. . . . Pottw.ar Tn~. e • Otdtf'r ~ •TranisMnc Ouuns Tiw Othertng Logo. no campo da teoria em especial, Do pós-colónia -que se enquadra
.1nd lodtpd&IUOft or 8bdCJ 1.nd le-\lts Wilhin tlte Frtneft fit«pY~I<•. publicados tn Ch.artH frequentemente sob a égide dos •estudos pós-coloruais• - dedica-se a
l'Jhnnup. o.dltt Co6doa e Ptt« 1 Brown (dlc), frT<Kh- ond '"" Afrocv• ~ ld0t1Jty
o"4 •P'f- I• 0.•W.-"'7 Froott, lnd1a1» Un..,.,...1y Pt.u. 8100'"'""''"" 200'1
crês bezerros de ouro da ortodoxia pós·colonlallsta, designadamente,
45 ~blH-udouldrflJfcommtSS»nS/Vollet•l'lnl/votl•·l•t<&Rl·Z0090'I09-2 cm primeiro lugar; à tendência para resumir a longa história das so-
u:p>. ciedades outrora colonizadas a um único momento (a colon~ão),
46. R..t.atwa""'"t• • t\Mto o qH '°' refff'tdo Jmtl!rior-m•nt•. J.tr ;a alntl'\ft dtt lt-ic M>e#. •Post~·
k>n1.aJ1t6 et fr-af\C'lt• cbn• i.. 1m..&1n.11ru t.8éwituel't" de b naüon•, ln N IC'OIH Banttl f1ottnu
S..rnAult.. ~I Bbndu1nl, Ahmed 8oubtker. AchiUe Mbtinbe • F'n"'°OtM V•f'IM. Rupi.urs 48 Nlcol.a1 O.nce:I. h.$c.ll 8Lanch•rd e f!nn('Oal ~l•b.trrc-. Jma.gn d~rrrptrc 1930..19'0. l.9
poJt.colonl"lfA. op dt Mllnin ..re/t.. Documc.T1Qtlon fnn?IM:. P•n.. l997
47.1.wibc-1 Rtaont (dlr). Qlll • IW"r d• kl c8bislon ~n coul,•rsl l..o d1tlftf7.if' a1lturelle don.s ln 49. N1tob1 8.ancel, P.asa.I Bl1nthard • fr~nç~se V~rgk, Lo Rtpubltq"~ colonlol«., Alb•n Mtdnl.
mtdtru. Au• "~ui d'lt~. Mon~ll. 2007 e W;iryne 8rckhuJi. •Ullt' •oUOloCI• de l 'Jnvl.tnbthtf. Parts. 2003 • htal 81.lnch.ard. HkolH Ban(rl ~ ~ndr1nr lA~tre, Lo Fracr.u~ calanlol•. U
rfori~ntu notre reprd•, UstoMM. n.• 129~ 130. 2005. Okouvertct. Paris, 200.S
quando se trota de reílectir em matéria de concatennção das continui- Igualmente o c:ar.ictcr sexuado do processo de produção da raça e da
dades; de scguld.:1. à prática do fetichismo e à fus:lo das duas noções naçlio. Por seu curno, Françoise Vergês repensa a d1.s tinção tradicional
de ues1stência• e •subalterntdade»; e, por íim, aos limites das entre a naçào republicana e o império colonial e sugere considerá-los
problem.\ucas da diferença e da alteridade. Subjacente a uma ex· nlo como esferas hermetlcamenre seladas e separadas. mas como
ploração histórica. literária. politica. filosófica. estética e ~cultural uma unidade interact1va tanto sob o regime da escravatura. quanto
dos atnbuttn do poder na sequência da descolon1.taçiio, a obra opõe-se durante e após a coloniução. Na mesma alcura, !numero~ trabalhos
a toda uma tr.idiç;lo dos estudos pós-coloniais e aventa a hipótese se- dedicam-se à forma como França trata oç ~euç Imigrantes e as suas
gundo a qual uma das dimensões constitutwas - negligenciadas mais minorias. Gradualmente, vai-se esboçando uma critica da alteridade,
globalmente - da •condição pós-colonial• consiste na integração dos lill como é produzida pela sociedade francesa nas práticas roune1ras
dominantes e dos seus sujeitos numa única •cpisteme•. Critica simul- - quer relativas à habitação, aos cuidados de saúde. à familia, à ge~tJo
taneamente a dependência de um certo pensamento pós-colonial rela- normal dos centros de retençáo dos imigrantes e dos requerentes do
tívamentr a C"a tt'goriJs hipostasiadas da «diferença• e da •alterldade» direito de asilo, à vida quot1dian~ dos estrangeiros em situação de 1r·
e demonstra corno, em matéria de exerclcto e de culwra do poder após regularidade e às experiências do racismo". Desde então. um conjunto
a descolonl1:iç;ln, .1 lógica da repetição se sobrepõt? frequentemente à de ncontedmcnlos permitiu um.1 visibilidade acrescida do pensamen
da díferençJ. A obra tende assim a complexiflc:ar u conceito de agency lo pó~·colonlal no àmblto de um publico francês. Fenómeno em vo~a
evidenciando como a acção dos subalternos. longP de ser preorde- nu não, muitos anos após a publicação em língua francesa da~ obras
nada à l"Uptura revolucionária, produz amiúde situações paradoxais. de Edward Saíd, alguns textos importantes do corpus pós-colonial são
Em contrapartida, essas situações de enquadramento obrigam a um finalmente ob1ecto de traduçào e de infindáveis debates... Muitos jo·
afastamcnlo do falso dualismo, ou uma vísão v1ttm4raa, ou uma visão vens Investigadores produ:.em trabalhos oríglnaís apresent.idos em
heróica da subalternidade, em benefício de uma verdadeira critica da diversos colóquios, semininos e revistas.
respons.abflidade'".
Panllelamente, emergem outras tentativas, em especial, no domlnio
da crltlc:a liter.lrla". Observa-se. aliás. um interesse renovado pelo!' Querelas bizantinas
estudos hii.tórico-ntosóficos da raça" e uma releltura das formas da
sua cristalização na escravatura e as suas consequências póstumas". Tal como se demonstrou, a lrrupç~o do pensamento pós-colomal no
ou ainda nos processos de constituição contemporãnea das minorias domínio discursivo francês e os diferendos que suscita resultam de
enquanto sujeitos polltlcos distintos". Por exemplo, em L.o Morrice de uma m1rlade de factores e não de circunstâncias contit'lgentes. Toda-
la roce, Elsa Dorlln estudn a genealogia sexual e colonial da nação fran- v10. recentemente, a critica transitou do domínio estritamente literário
cesa no ponto de contacto da filosofia polltlca. da história da medicina e teórico para as ciências sociais. Durante essa transição, degenerou
e dos estudos sobre o género. Sem reivindicar forços;imente umn numa querela bizantina, dinamizada por um grupo de depreciadores,
procedência pós-colonial, esse trabalho repercute os estudos inicia- cuias Investidas. amiude desenvoltas. não se privam de Insinuações in·
dos por essa corrente de pensamento que não se limitam a ;iflrm;1r sldiosas e visam. acima de tudo, menoscabar os autores de trabalhos
um vínculo estreito entre o patriarcado e o colonlalismo, mas frisam que não nveram o cuidado de ler adequadamente e ainda menos de
com preender. Essa querela nlo surge, nem se desenvolve, num vazio
Ideológico. Sobretudo Junto dos zelotes do antl-pós-c:oloniahsmo, os
50.AchtlM MMfftbt>. o.1o,,.,.taHo1t'C,OfA aL Vttdc:s1.....,,..nteo '""'~••M&Und• tdJ.çlo.
ZOOS. (pp X• )U. •'" np<rdal)
seus Interesses não Incidem simplesmente - nem mesmo primeira-
Sl l«~n·M~n: Mvunt U«tt'wl.""" frv~ d tb"°'*' ,_tmlottlflk, PUF: Põlrts. 1999; fac- mente - sobre questões de saber e de conhecimento, como elucida
qucluie &anlolph. tr11dn ~tcvluttlOla d bab'utvllt.. Q.amp1on. '"b. 2002 • MKMI Btntii·
mano• LlwG.awU\. M:Woa.uJondes'1udesfra1H:Dp/to1H1J. l.a(Ofta'p<sd•bow. Presa Unwtr-
11t.lll"H d" UmotH. lJmo&n. 2005
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54 C( o aoado d• Pap Ndlaye. t.a Cond1tlon natrt. Enol Jur t1n1 mlnorltl /ron(O IM. caJmann- 56. Homl Bh.ilhM. l..IS lhttx ti• la cvlt11rw.. Unwr th#o1u postcolonlai,e. Pt1)'ot. Plilrú.. J008 e flltll
Uvy, Parts. 2008 t..urm (dfr). "-""" f• postcolo1'lol. op cl&
Catherine Coqucry-Vidrovltch numa obro multo comentada" Anima- corrente de pensamento e o uso feito por determinados partidários
dos por um fervor perfeitamente pentecostal. recorrem sobretudo ao franceses. Abordam designadamente a forma como a critica pós·colo·
pensamento pós-colonial - como outros. antes deles. fl~cram cm rela- nlal é manipulada no real - e nomead.1mentc o facto de que, nas mãos
Ç<'io ao «tercelro-mundismo• e ao cpensamento 68• - p.ua polemiur. dos seus partidários locai~. e~:.e pen,,dmento tende a converter·"
como acontec't' <'Om o paníleto em tom doloso do .1frlcamsta Jean-Loup num Instrumento de luta, confronto e re1e1ção. Numa cegueira con·
Amselle, L'Qc-cidencdi'n·ochê'". Na maioria dos C•SO~. O ulumo •fabrica• venlente, entre muitos aspectos, agem como se não existisse uma
literalmente enunciados apodlctico~. imputando-os. de seguida. aos tradição dos •estudos pós·colonia1s•. que, desde a sua origem, substi·
autores que quahflu de autondade de •pós·colon1ahstas•. enquanto tu1u Incessantemente a história da colonl;wção na per.;pectiva de um;s
além de os últimos nJo se considerarem de todo hllados a essa cor· história do 1mperiahsmo - ou, justamente, do ana-1mpen~hsmo •
rentt' de pen<;amento, também nunca enunciaram realmente os Jrgu· Posteriormente. argumentando que, em muitas regiões do mundo, a
mentos que lhes sJo atr1bu1dos e aos quais o nosso c:ru1.ado se dedica. colonização foi um processo breve, tent;im minimizar o seu impacto e
Cntiçando um argumento que montou Inteiramente segundo modali- abrangência. que qualificam de superíicia1s sem que se saiba exact•·
dades que nunca são explicadas. pode então construir um.i frente de mente qu.us os cnterios que permitem estabelecer historicamente
combate de aspl.'cto homogéneo, mas que na realidade é lnMginllria e esse balanço. Em ambos os casos. o objectlvo consiste em negar à
que Inclui, para efeitos de polémica, texms e auton:' de~cnquadr.ido~. coloniz.ição qualquer funçJo func.ladora nd história das sociedacJc~
Quando existem esses interesses de conhecimento. como defende autóctunes; minlmf~ra violência~ trdnsformá·la num oconteomenw
justlRc.adamente Jean·Franço1s 8ayart num ensaio precoce". os úlomos bronco; defender que os impérios coloniais não acrescentam multo
não podem ser dissociados, como o autor parece sugenr. dos interesses de novo: que o colonialismo não passa de um caso particular de um
éticos e mos6flcoS"'. Porque a colon1uiç30 n3o er3 m;us do que uma fenómeno ttans-histórico e um versai (o 1mperiahsmo); e que o mundo
forma particular de roctonoltdode, com as suas tecnologias e os seus Imperial está longe de consuruir um «Sistema• omnipotente, dado que
dispositivos. Thmb~m pretendia ser uma esrruwro do conhecer, uma es· é carat:tenzado por tensões e confrontos internos, e mesmo por lm·
crvwro doacred1car, e mesmo como defendeu Edward Sald, um s1Stema possibilidades e descontinuidades-O. Em seguida. como se essa c,atego·
ep1stém1co. De resto, reivindicava um duplo erututo de 1uritd1çào e de ria disciplinar fosse totalmente clara p;ira si mesma, alguns sugerem
vertdtc1dade. Como t.il, existe eícctlvamente uma singularidade moral o recurso~ •Sociologia históriu• para relat.ir os factos colorua1s que
da colonização enquanto ideologia e prática da conquista do mundo e reduzem quer a um simples problema de passagem do Império ao
da subjugnç.'o das raças consideradas Inferiores. e a critica do conhe- Estado-nação, quer a um simples Inventário comparado das prâticas
cimento histórico das situações coloniais deve efectlvamente alternar de governação 1mpenal".
aquilo que Paul RICO?ur designava de «preocupação epistemológica• Para tal. mobilizam figuras totémlcas, como Max Weber e Michel
(própria à operaçllo hislorlográflca) e a «preocupaçllo ético-cultural» Foucault, e tentam depois reacender a velha querela explicação/ln·
(que emana da análise histórica)•', sendo allós nqullo qu<' Rlca.>ur tcrpretação/compreensão que autores, como Paul Rícreur; tinham
chamava uma •hermenêutica critica•. Trata-se de uma Iniciativa à qual
não é posslvel ficar Indiferente. mas é legftlma, bc-m como as criticas
de tipo nomlnallstll ou fllosóílco da colom~çJo formulad.is através l•l Trtu H de u.m modo d~ 1nv-e-st11a{lo qut cot1d1tt em tomar como ponto d• part1d.. fllr· ª'
m.1~ dr rtslJtfnda aos trfs upos dt pocl&r car~ttrt1tK01 do lmPt"rtllmno colonial. notne-ada·
das análises históricas, literárias, psicanalíticas ou fonomenológlcas. mtnt• o podtt dr conquis«M t dom1ft.lr o podtor d• ••piorar e o poder dt .su.b1~r. hn umi
Com vista a desquallflcar em massa cos estudos pó:.·coloniais•. os •v,.h.J(lft. titr S...rbua 8u.th. lrnplflohPflt •"" "-tco'941alinrt L.onpu~. Londrn. 20"6, POltrtr1l
Wõlfr. •H..Coty .and lmp"\1.hwn A GPn1"ry of 'f'twor-y. fro"' Marx to Po&t-coaon.&.lu-m•.AMM·
seus bravateado!'fi fomentam de boa vonrade a am"gama entre essa <w1tH1~IR#YHw. n• 102,2. 1997.pp >• 420 VffrU"'Wmnodomín6oh.tst:4rito-ht•rino.
lll«b lorttlin~t'.Eepu<. fll~l•OOtlO#tblo,.JcJt.,_tA.vlo.uol ltl90 JfZO, Oxford Unn"tt'Slt) Prns.
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'"tc//ffl..•tl~. n • 27. 2009 e fean· FDnçott Bayan. Ln tn.dn poitcalontotc:J. op. oi.
64 't&n•fnnçou B.ayan. t.n tcud~s poUCOlon1olu. op. cu.; Plcrre Cl'Q.sstt,. <ommtnl knr~
60 hra utu tt-nutlY• dt1 f'onnubçlo ftlOIÓfio dn$u 1nt'-'íftftl. lf'r Alain R.rn.t1úl, Un ""mon1smf llHJtolre d ..1 rtlations lntema.uoiule.s 1u;oun:rhu1-Y Qu•lquH rtftulOM à pa.rtlr de t'Emr•nt
or
d< la d1.,....1tJ. cl< br1unnlque•. ll1stolrr ftf'ofitlqu~. Polmqw. culturw, soetlU. n • 1O. J.tn~ro..Abr1l de 2010.
61 Paul RJa.ur. Hbtolr• rr Vlrirl. S.UIL Pin.s. 1955. P. 11 . <www h~stolre-polilJq.at.fr?.
tentado atenuar. Trnt:iva·Se de um;i tlpoca - que se julgava volvida - se a análise das dimensões Imaginárias da colonização ou ainda dos
na qual, as ciências sociais continuavam ;;i ser severamente atraldas factos pslqulcos ou lconográf1cos não fossem importantes para a re·
pelos modelos quantil.ativos e posnivlstas em vigor nas ciências da constituição das reprt'sentações e pnh1cas dos agentes da época".
natureza••. Além d1i.so, como relembra Paul RIC<l!ur ou Michel de Cer· Silencia-se ai.sim Q facto de que um dos objectos privilegiados dos
teau, a lnterpretaçllo é uma marca da procura da verdade em história «estudos pós-colonlals• ~ precisamente o estudo das transacções
O mesmo aconte<:e com a dimen'>Jo narratlv-.a ou literária de qualquer materiais e slmbóllcas e das interacções subjecclvas que, no contexto
discurso histórico que comport<i <empl't', a priori, uma dimensão cog· colonial. pennitiam fonnar o vinculo colonfal. Na verdade, muitos es·
nitiva' Além dos dois oftcl.1mes - Weber e Foucault- e sob pretexto de tudos que re1vind1rnm essa corrente de pensamento dissecam - alEm
um apelo a uma releitura da •h1çtórla Imperial•. na realidade, somos do discurso. os textos e .is representações - os comportamentos dos
conduzidos a ahança entre Auguste Comte e o estruturalismo. Afinal suieltos colonla1s e .i suas respostas à pressão das nonnas coloniais,
de contas. não há qualquer necessld;ide de questionar os conceitos de as d1ver!.as manobras de negociação, justificação ou denunciação que
verdade, realidade ou conhKtmento pua defender que a actividade ostentaram Incessantemen te, muito frequentemente em contextos de
aentihca é uma construçJo <oc1al. Além disso e, em larga med1tla, os incerteza, por veles. r.ad1cal ... Mostram os sutenos colonizados não só
factos só existem através d:1 linguagem pela qual se l'Xpnmem e das il luz. da~ rel.lçõe~ dt> produção. como tambem das relações de poder;
desoiÇÕeS que os produzem. No que se refere ao quallf!catM> «histórico• 't!nlldo ~ dl' saber - todas as coisas que exigem, segwndo o próprio
sub1acente a esça cçociolog1a•. raramente <e prende com os conheci· Weber. a aliança, logo de Inicio de t"<phcação. compreensão e mter·
mentos da critica francesa da segunda metade do séc. XX. Ao frisar o pretação'•. A par da •sociologia hlstónca•, existe entJo espaço para
facto de que. em história, não existe modo privilegiado de explicação. .. outros modelo~ (mistos) de e~plicação e interpretação das situações
essa critica defende que, em retomo, existe uma variedade de tipos colonu11s e dos seus d1sposi1tvos. Na experiência colonial, não existem
de explicação•>, A «Soclolo111a hlstónc:a• é um mero tipo de explicação •praucas sociais• (ou aquilo que os :to!lotes do anti-pós-colonialismo
entre outros. Tratando-se da anállse das situações coloniais, não é for- chamam •realidades concrct;LS•) que seriam apartadas dos «discur·
çosamente verdade que, nas esc:a.las de observação, o pequeno pense sos•, das linguagens ou das representações. Discursos. linguagens ou
melhor do que o maior; o ponnenor tenha um valor superior ao da representações que, para além de serem componentes simbólicas e
totalidade, e a excepção se)a superior à generalização... Thmbém não lmaglmirla~ na estruturaçao do vinculo colonial e na constituição dos
é verdade que «OS est\ldos pós-coloniais" s6 se limitariam ao textU· sujeitos colonlzados. constituem em si recursos de acção e práticas de
alismo, à ldcologla e à denunciação mllltant.e ou «compassiva», ao passo pleno direito''.
que a «sociologia histórica• trataria da «Ciência• pura e «cínica». Em Se, sob um ponto de vista eplstemológico, a querela lançada em
diversos níveis, tanto os «estudos p6s·colonlals• quanto a «sociolo- França polos partidários do anti·pós·colonlallsmo é anacrónica, em
gia histórica• abordam representações. transmitem incessantemente contrapartida. é mnnlíestamente sintomática, sob um ponto de vista
considerações de ordem moral, nem sempre apllam a distinção entre cultural e político, dado que as suas atenções se centram agora na
aquilo que é verdadeiro e aquilo que é tomado por verdadeiro, manipu·
Iam séries aiusois contingentes por delhuç3o e s3o, cm suma, herdeiros
b9 •l rrfl'.110 d~tml\lltiCJir a tn4dnc111 cloh.31dn re.il enmo t1\Ulld~t a ser resthutcb. Nlo hi
de um mesmo género discursivo; a «fllosofla critica da história•. "o" re.. 1com o qual """' dtp.>nrbmoc .cob ..-ondJçto N 1411.tir ck tudo ou cH citrtas e.oi.As maiU
Aliás, pressupõe-se que «OS estudos pós·colonlals• abordaram "rHIJ" 6o qw• a• outra.. • qu. bltud~mot. .-m be-Mftdo de- abstracç6es (~tes. se n0t.
apenas os «discursos• e os textos, e não as «pr.h.lcas reais•, como se re.sc:nnp,... mos e r.)uf' •JNr«tt OYtrol cWmc-ntos e OUtnf AI~ Seria. predso, &aJvn. mtn·
rotar t.1.mbbn o pr•nt'lpto, lmpl1cu11"'erue •dmlbdo. com trwqufnct.i. de ciue' útda rnhdoth •
o discurso dos Individuas não fizesse parte da sua «realidade• e como qur.,.hlst6rW dil'wn.t 111p1r.. r•a pr6pNIOCWf/off.- hn um.1 CO~illlarpct.. e sobre o ~;ai
• ;u""'°ª'· rtt0menda·M • te1tur1cM MkHI Fouault,.Dtuf'C Unes. IV. l98Q..J988,Callimard.
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própria identidade francesa, nos llmites do seu modelo democrático e dos valores ocidentais ou ainda da identidade cristã de França. das
nas ambiguidades do seu uojversalismo republicano. Porque, no fun- crftic::as da Europa materialista, das nostalgias do sagrado e da cultura
do, a querela a respeito do pensamento pós-colonial - como aquelas clássica, dos leitores de Maurras e de Mau confundidos, dos membros
acerca da regulamentação do islamismo, do ocvéu Islâmico• ou da bur- da Académie Française, dos partidários do anel-americanismo de es-
ca. os debates patrocinados recentemente pelo Estado sobre a Iden- querda e de direita, dos cruzados anti-pós-modernistas e adversários
tidade nacional, a febre das comemorações ou os mcontáve1s projec- do «pensamento 68», para os quais Auschwl12 deve permanecer o
IOS de monumentos, museus e estetas Funerárias - é principalmente o eixo da memória colectiva do mundo ocidental e a metáfora funda-
sintoma de um quiasmo profundo no presente, e do mal-estar francês dora da narrativa da reunião da europa. diversas fuces do extremismo
na mundialização. Esse qulasmo - outra designação daquilo que Ano francês (da esquerda lnsurreccional ao populismo aristocrático e aos
Stoler qualifica como afasia - é uma consequêneia directa das doenças monárquicos). retransmissores polltlco·culturals e mediáticos tais
francesas da colonização. tal como se aludia antig<imente às doenças como Fronce-Culwre, le F19aro Ma9a.zinc, le Point, l'Express ou Ma ri·
do espirito 11• Encontra os seus efeitos privileglados no confronto em- anneu.
preendido por dois desejos opostos: por um lado, o desejo de fronteira Recorrendo, sempre que necessário, ao uso liberal de estereótipos e
e de policiamento das identidades. sentido por uma neo-revisionista de não-ditos racistas, essa nebulosa procura reacender o mito da supe·
nebulosa e, por outro, o desejo de reconhecimento si mbólico e de alar- rioridade ocidental formulando gritante e pusílanimemente a questão
gamento de uma cidada mo em suspenso-., sentido especlalmence pelas da procedência e da coesão nacional. Mas explorando, sobretudo, todo
minorias e pelos que as apoiam. Há um aspecto que une essas mino· o conjunto das emoções e paixões populares, cultiva a quimera do
rias fragmentadas : aquilo que entendem subjecdvamente como uma «homem sem Outro• e de uma França desembaraçada dos seus iml·
condição de espoliação simbólica. Espoliação que, em França, é actu- grames. Inversamente a uma tradição de pensamento filosófico, que se
almente agravada pela aparente remanência e reprodução de práticas, estende desde Maurice Merleau-Ponty até Emmanuel Lev\nas, e mes-
sistemas de pens;imento e representações herdados de um passado de mo Jacques Derrida e lean-Luc Nancy. o novo ~outro» é. por definição,
lnferioriz:ação 1urfdica e estigmatização racial e cultural. aquele com o qual ninguém pode identiílcar·se, cujo desaparecimento
se deseja e cuja infiltração nas nossas formas de vida deve ser impedi-
da em todas as circunstâncias, pois acabar:\ por envenenã-las. Nas Unhas
Desejo d e provincialização seguintes. examinar·se-ão sucessivamente determinados diferendos
polltico-culturais em redor dos quais se artl<;ula a tnicfatlva oco-revi-
O desejo de fronteiras - e, consequentemente, de separação e pro- sionista. De seguida, mostrar-se-á de que forma esses diferendos. por
vinciallzação - agrega correntes neo-revlslonistas e provinciallstas um lado, aludem constantemente a um controlo das identidades mais
muito heteróclitas, cuja unidade assent<i na rejeição quase visceral de rigorosas e severas, preferencialmente sob a forma de proibições de
qualquer visão além da ocidental. paralelamente ao próprio Ocidente todos os tipos e, finalmente, como iníluenclam negativamente a recep·
e ao mundo dos outros. Essa constelação - que, na realidade, é um ção do pensamento pós-colonial em França.
somatório de trajcctórlas com origens e destinos diferentes - reúne O primeiro diferendo incide sobre a descodfflcação do tempo do
ideólogos oriundos de horizontes diversos. No seu seio encontram-se, mundo e a caracterização do momento contemporâneo. Segundo as
a esmo, aqueles para quem a perda do Império e, em particular, da correntes neo-revlslonistas, a nossa época será marcada por uma
Argélia francesa foi sofrida como uma catástrofe, os marxistas dog· transformação qualitativa da violência mundial e por uma nova redis-
mádcos - para os quais a luta das classes constitui o sentido oculto da tribuição planetária da Ira. Em muitos aspectos, essa situação caótica
história - os antigos partidários da esquerda proletária. os catequistas equivaleria a uma guerra civil mundial e exerceria um impacto di-
da laicidade e do modelo republicano, os defensores autoproclamados reclO na natureza dos riscos de segurança pública aos quais França
e outros países ocidentais se encontra riam expostos. arriscando-se
a sobrevivência da própria «civilização ocidental•. Uma das consequên-
71Ann Laura Stoler; •Co'°'11.al Apbam; R»cc- ô'nd 01.sabled Hls:torics ln Fl'illnc••· Pllbllt' Cultun. cias dessa leitura ult:rapesslmista do momento contemporâneo é a
tmpubl~ilo
74.0 termo .ddadiil'lla •m suspenso-; utíht.ado •qu1 como ulTUI cana em JU;Jpen.$0, que nao
dlt"gou ao KU destino e que ficou, de fac.to. s.em resposa
redeOnlçllo - em curso - do estrangeiro enquanto tipo soclal aparen- qualquer direito, entregues à precariedade e às quais é recusada a pos·
t<ldo tanto ao Imigrante clandestino (figura por excelência do Intruso slbilldadt> de deterem direitos e ainda uma existência Jurldica" Esse
e do indesejáwl), quanto ao Inimigo~. O novo estatuto polémico da dispositivo foi ainda completado por um complexo de dispositivos
figura do estrangeiro no imaginário e no terreno francês dos afectos, diferenciados. legü1litções e acordos internacionais formais ou tnfor·
das paixões e das emoções é acompanhado por um desejo renovado rna1S celebrados encre França e países terceiros. O conjunto de~se pro-
da fronteira, bem como de um<1 reactlvação das técnicas de separação cesso culminou com a constituição de um •Mlnlst~rio da ldent1dJdl'
e selecçAo que lhes estJo associadas - designadamente, os rontrolos de Nacional e da lmlgraçJo,.... No seu todo. esse complexo tem como oh·
identidade e a lógica das expulsões O estrangeiro n~o é unicamente jec:tivos pnvllcgiados determinadas categorias de Indivíduos e certos
o cidadão d!! um outro Estado: ó sobretudo aquele que é diferente de grupos sociais definidos em função das suas características étnicas,
nós, cuja peri~os1dade é real, do qual nos separa urna dis~nclJ cullural religiosas. raciais e de nacionalidade. Visa circunscrever a sua Hber·
comprovada e que, sob essas Oguras, constitui uma ameaça mortal ao dade de clrculaçào e mesmo anulá-la, pura e simplesmente. Sendo que
nosso modo de existência qualquer rolítica de controlo fronteiriço e Identitário visa a possibi-
Ali.is. as correntes neo-revis1onlstas e proviociahstas eslimam que. lidade de controlar as próprias fronteiras do polltlco, o último é pro-
para corre~ponder As dimensões de segurança pública dessa angús- gress1vaml'nre ob1ecto. em França. de uma íragmentação. de acordo
na e>n<tl'ncial, o Estado de d1re1to deve ser modificado na sua acep· com as linhas blo-raclais que. por meio de denegação e de banalização,
ç3o clássica. A diferenciação das funções das forças policiais (que se o poder tenta ratificar como tais. de acordo com o senso-comum••
ocupavam dos estrangeiros no território nacional) do ex~rclto (que O segundo diferendo Incide especificamente sobre o •islamismo
se ocupava dos Inimigos externos) deve ser amenizada Devem lmple· radical•. ob;ecto fantasmal por excelência que. nas condições actuals,
menear-se novas polftlcas para defender o território conLra a migração serve de fronteira Imaginária à n:iclonalidade e Identidade francesas.
clandestina "· recentemente, o terrorismo islãmico. A<slstlu-se tam- No presence. um determinado conjunto de práticas. tanto domésticas
bém â eclosão - mesmo no selo da ordem democrática e republicana quanto públicas, do Islamismo são questionadas em nome da laicidade.
- de uma forma específica de govemabilldade que poderia designar-se Com eíelto, pressupõe-se que três prindplos ou Ideais constituam a
por "!}lme do dausuro. Entre outros, esse regime caractenui-se pela base da bicidade e do republicanismo à francesa. E constituindo à par-
m!lltariiação crescente das tecnologias civis de governação, pelo alar- úda o Ideal de lgudldade, que exige que as mesmas leis se apliquem
g<imento das práticas e domfn1os abrangidos pelo segredo de Estado, igualmente a todos - a lei republicana deve prevalecer sobre todas as
por uma extraordJnária expansão e rrunlaturização das lógicas polí- normas rehglosas em todas as circun~ncias. De seguida, o Ideal de
clals, judiciais e penitencl:lrlas, nomeadamente :is que se prendem liberdade de autonomia que pressupõe que nada deveria submeter-se.
com a administração dos estrangeiros e dos Intrusos. Para eíeltos de contra a própria voncade, à vontade de outrem. E. por fim, o Ideal de
gestJo das populações consideradas Indesejáveis foram Implementa- fraternidade, que Impõe a todos um dever de assimilação - condição
dos múltiplos dispositivos jurldlcos. regulamentares e de vlg1lância, necessária il constituição da comunidade dos cidadãos. Ora, aos olhos
com vista :i facilitar as práticas de armazenagem. retenção. encarcera- das facções mais conservadoras do movimento neo·revisionlsta, o «IS·
mento, confinamento nos campos ou .. inda de expulsão·•. lam1smo radical• dl'ílne·se como o avesso obscuro do Iluminismo e a
Tendo dai re!õult:ado não apenas uma proliferação im~r das zonas figur.1 invertida da modernidade e seria lncompatlvel com a noção re-
de nlio·dlrelto no seio do próprio Estado de direito, mas tamWm a publicana de lalddade. Não visará a aplicação, em França.de um direito
lnst1tulção de uma clivagem radical entre. por um lado, os cidadãos para •estrangeiro• - sfmbolo de uma recusa de Integração e de assim ilação
os quais o Estado tenta assegurar protecção e segurança e, por outro, por parte dos seus adeptos? Esse direito não entrar:! em contradição
um somatório de pessoas literalmente acossadas e então privadas de t'om os prlndplos de liberdade, de Igualdade entre os sexos e de frater·
nldade fundadores da República, visto que consagra o tratamento
7f:"Ar1un Ap~dunl. C-'ogt"Ophie d• lo pkur. P.tyot.. P1tU. 2007.
11. flt-t•lMrNf\t• A q~do cb ft'Mlteolra. ler ~m plnicular: oc trabalho• d• ttJennt O..llbar. We 79. Ler •L·Europe dn amp.1, La mlst": à rmn. dei fcr.tngf'f'I•, nt1mero espec~t de 0,,/turcs ti
tltc hopl• o( &tlroJH1 Rlfl~IOIU on T;-ont.nohonal CltJiett1hlp. Prfnc.ton UnlwNlt)' Prus. "º
COllf/1u, 57, 2005
ftrtncrtof\, 2004 80. o.a.to o.•2001·99ido31doMü>de2007,..,.tlYolutnbvlçOHdomlAisuodo lmjlll'O(Jo,
78. Mac:Ml~MtnySaungvba-C.,...•Adl•l•Mbcmbe..c.MobUtt&.tric.la1n•A. ...d.•rncf,..f\ da l~e da ldt<lllClode NóldOulodoCbd.wn...Mnwnlo (cwwwloatfntnca..-fP)
pjp, - .... 43, 2008.pp. HL 8LN.Aptt•Cnnmpmwnt~mnwnouwiapacepol1b!fu.•.~n.•44.200l.pp 2 3

..-o...,..-~..__ ..
inumano das mulheres (uso de burc;a, imposlçao do véu, murllações consuetudinarlamcntc entre essas duas esferas da vida... De nada ln·
genitais, casamentos forçados, vloloções, poligamia, excisão, provas tcressa se, dessa forma, a confusão se lrtstala entre a moralidade públi-
de Virgindade)? Segundo o consenso neo ·revlslonlsta, lníliglr-se-ia às ca (os valores da Republica) e os preconceitos culturais da sociedade
mulheres muçulmanas o peso de um jugo duplo - a submissão ao seu francesa. Tal como o demonstrou claramente Cécile Labordc, a descodi-
marido ou aos seus 1rmlos e J subml~'.lo a umd rcllg13o desigual Nos ílcaç;lo do sentido dos sfmbolos religiosos muçulmanos não assenta
casos em que os tr.itamentos indt>xado\ n.lo lr.iMgridem qualquer lei. tanto no direito. quanto nos preconceitos culturais e estereotipados.Se
sena neCt:)).Íno cri.u um• lei que permlusse 1nterd1t.í-los e repnmi· o E~~do l.alco •oube proceder a «conciliações razoáveis» em prol dos
los. Uma das obrigações da Republica sena libertar os muçulmanos cr1çLios e dos Judeu.,, tr:it:indo-sP dos muçulmanos, Insiste que sejam
desse 1ugo. Eventualmente, poderia fol"Ç'.i los a serem livres, sem se eles a fazê-las restringindo a express.lo da sua identidade pública"'. O
interrogar acerca do seu con,ent1men10. F.m 1c1to de repetição do pro· republicanismo preconi:Mdo pelas correntes neo-reviSionistas tende.
cesso de c1vili1..3ção colonial e, em nome do p3temahsmo republicano, aliá...,, a ass1m1l:tr .is práticas culrurats francesas à neutralidade ideal.
poderia emanc1p.a·los recorrendo à coerçao. em caso de ne«ssidade. lnve~1mente, sustent41 que a esfera publica francesa não é cultural e
Além das controvérsias sobre o h11ob ou a burca - ou. mais geral- religiosamente neutra. N~ sua ópuca, os pedidos das minorias de con-
mente. sobre o destino dJ\ mulhe1h muçulmanas - tecem-se e im· ciliações razoilve1s n.10 constJtuem pedidos de justiça, pois qualthca-as
bncam-se diversos processo< O primeiro reside na mstttutção de um de •ComuniUnsmo• precisamente para poder desquaUfká· las"'
«íemmismo de Est.adu• qu" usd a quest.lo das •mulheres muçulma· O Lcr~c1ru ponto d' 11.xaç!lo dos discursos neo-reVislonlsus e provm·
nas• para travar um combate de natureza racista contra uma cultura c1altstas prende-se com o ret'ncant.amento da mitologia nacional, num
isl4mica fonnulad;a como fundamentalmente seJc1stau. Tanto à es·
querda quanto à d1rc1ta. o feminismo republicano converteu-se numa
Incubadora de islamofobia, sendo utiliZ<1do para alimentar represen-
l momento em que França sofre um decllnlo aparente e uma desclas-
siílc:.açào relativa no plano Internacional. A temática do declínio não ~
novidade n11m exclusiva a este domlnio. Reaparece em Intervalos regu-
tações e práticas racistas e ainda para torná-las acen.áve1s porque são lares na htst6r1a francesa Cerdlmente. o seu apareamento coincide
manifestadas de modo eufem!suco e por meio de lltotes . O segundo com os momentos de crise e de grandes receios. Discurso da perda e
consiste numa «Injunção paradoxal de liberdade• juntamente com a 1 da melancolla. um dos seus efeitos Imediatos consiste então em acen·
culturall-zação dos valore~ republicanos'" Em conformidade com o tuar as cri.,pações ident1úrlas, desperoir a nostalgia da grandiosidade
processo colonial de clvl lliação, o projeclo consiste eni emancipar. em e deslocar tanto o terreno, quanto o conteúdo do polftko e as formas
sã consciência, os lndlvfduos •parn o seu próprio bem•. se necessário, do anlllgonlsmo social''. Assim aconteceu, ao. longo do último quartel
contra a sua vontade e recorrendo a Interdições, ostracismo e à lcl, do séc. XX, quando prevaleceu o sentimento - para muitos e não ape·
cuja função principal não~ fazer justiça, mas estigmatizar e produzir nas da fracçao da extrema-direita - de que a grande narrativa nacional
figuras Infamadas•". tinha des moronado Esse desmoronamento não advinha unicamente
Na perspectiva dos movimentos neo-revfslonlstas e provfnclallstas, das transformações da economia e da crise do modelo republicano
ao se enraizarem numa cultura e numa lfngua, a consecução dos Ideais de Integração. Scrin também uma das consequências do pensamento
republicanos opera-se tanto na observãncla do direito da República, desconstruclonlsta, do qual o Maio de 68 constituiria a metamorfose.
quanto na obediênc-ia a uma c-u llUra e~pt>cfílca: a cultura francesa e A identidade sólldõl e as certezas que antigamente eram Inerentes :i
laica, que prescreve os comportamentos privados e píibllcos e essa narrativa, teriam sido arrastadas pela corrente do relativismo
abole - ou, pelo menos, atenua - a separação que se estabelecia
86 AJa1m f. d• r«"'to. at<onomt• do re-ln6tKt Swl L«Bff'IQn:tSrul. l.llrdtl~ lttpublMfut'. 11.:tp
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200I. <bup://lm'M.IWt./'P'f'phP" ...nkk7l7> Ltt &.Mnbl'M toe '~"'n. ._t.. dctnocntait' ~ '9- Oidu·~F-sit~ ttk F•WI (d.Ir.). Drlu~JOOOJedloq~ racHl,.':.oP-0&. e Robe-n
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ambiente e das fllosonas da ..morte do sujeito•. Nessas circunstâncias, Com efeito, de acordo com o esplrito da época, consistiam antes numa
como pode reanimar-se a Ideia nacional, se não reinvestirmos no pas· marca da dvilizaçàQ francesa - uma civilização capaz de se afirmar
sado e nos reapropriarmos das suas Inúmeras jazidas simbólicas? Dai, tanto pelo espirito, quanto pelas armas••. Para outros, apesar de se
desde há vários anos, a existência de tentauvas de reabllltaçlio de uma terem cometido crimes e Injustiças, o balanço final da colonização é
concepção cultural, sacriftcíal e quase teológico-polltlca da história de globalmente «positivo•'"· E França rem o direito de exigir gratidão e
França. reconhecimento da parte dos ex-colonizados.
lnspirando·se nos manuais escolares de finais do séc. XIX e inícios do Os lineamentos dessa concepção sacrificial e cultuai não se encon·
séc. XX, essa concepção da história dedicou-se inteiramente às glórias tram unicamente numa série de discursos proferidos por Nicolas
do passado. Caracteristicamente, slrua a França numa aproximação Sarkozy, ao longo da última campanha presidencial francesa e no
Franco·centrada em relação à Europa e ao mundo e atribui à disciplina seguimento da sua vitória. No que se refere à questão colonial, esses
nistóríca missões de civismo e moralidade. Além de ser edificante, a discursos caracterizam-se pela mesma "recusa de arrependimento• e
h lstórta deve remeter para uma essência nacional que será forjada ao a mesma urgência de auto·absolvição e de Ilibação. Esses discursos - o
longo do tempo. Por conseguinte, a homogeneidade do povo e a sua que é proferido em Toulon no dia 7 de Fevereiro de 2007, e o de Oacar
unidade concretizar-se-iam em tomo de três datas: a batalha de Poitiers (26 de Julho de 2007), no qual Sarkozy declara que o homem africano
de 732, que põe um fim à invasão árabe; a conquista de Jerusalém em não é suficientemente contemplado na história - procuram oficializar
l 099, que comprova o poder alargado da Europa cristã; e a revoga- um trabalho culrural empreendido há muitos anos em diversas redes
ção do ~dito de Nantes em 1685, que confirma a longa tendência na 1 pollticas e culturais, não apenas de extrema-direita, mas também da
história de França da «escolha de Roma .. e demonstra simbohcamenre direita e da esquerda republicanas": «0 sonho europeu necessita do
que França é, acima de tlldo, um pais católico, mas também que il sua sonbo mediterrânico. Tornou·se acanhado quando se despedaçou o
identidade se forjou com :i exclusão dos árabes, judeus e prolestan·
tes•o. História que também é gloriosa na medida em que relata feitos 1 sonho que outrora lançou cavaleiros de toda a Europa nas rolas do
Oriente, o sonho que atraia para sul rantos imperadores do Sacro lm·
grandiosos, de uma sucessão de «grandes homens" e acontecimentos pérto e tantos reis de França, o sonho que foi o sonho de Bonaparte
que comprovam alegadamente o génio francês. no Egipro, de Napoleão Ili na Argélia, de Lyautcy em Marrocos. Esse
ti;, aliás. uma história da qual, uma das funções consiste no enalte<· 1 sonho que não foi tanto um sonho de conquista e mais um sonho de
imento do patriotismo. Por fim, é uma história que atribui um papel de civilização.[...] O Ocidente pecou, durante multo tempo, por arrogân·
relevo à velha retónca de uma França que alumia a.s suas colónias com ela e Ignorância. Foram cometidos muitos çrlmes e Injustiças. Mas
as suas Luzes e as difunde no mundo. Logo, não se trata de ocultar a a maioria dos que partiram para sul não eram nem monstros nem
colonização enquanto tal. mas de usá-la como uma matriz ídeológ1ca exploradores. Muitos empenharam a sua energia na construção de
da educação cidadã, como aconteeeu. aliás, com a expansão Imperial. estradas. pontes. escolas, hospitai s. Muitos extenuaram·se a cultivar
quando a República era impensável sem os seus incontáveis territórios um pedaço de terra Ingrato nunca antes cultivado. Muitos partiram
além·mar. Trata-se igualmente de Inverter os termos do reconheci· unicamente para tratar. para ensinar. Chega de denegrir o passado
mento da obra colonial. Para os mais diligentes, essa Inversão passa, [ ...]. Podemos desaprovar a colonização à luz dos nossos valores de
caso necessário, pela atribuição de carizes heróicos aos crimes colonl· ho1e. Mas devemos respeitar os homens e as mulheres de boa von·
ais e à tortura. Esses crimes não exigiriam qualquer arrependimento, tadc que pensaram contribuir de boa-fé para um Ideal de civilização
pois só seriam considerados crimes aos olhos dos nossos contemporâneos. no qual acreditavam [..•].•

90. Hervf Lemofnr, Lo MafSOn do l'H1Jtt>'re de Frona. Pour la rrlauon d'urr ctntr! ff rttherc~ 91 Pllul Aussa~sses,S.rvfcnsploawr.Alaérte. 1955·1957, Punn. Paris. 2001.
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1Jtt1r1- M1ntJ"cn d• kt Ol("«rt.~et Modam~ la mlntsln: dt la Culture" d• la Communltoüon. <www. nol.-., 1830·1930, Ptn1n. Poros. 2009.
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Aúma. «Cuy M6quet, S.rko:Jy •C 1• rom.an rgdonal•, l'H.ltcol,... 1' • 323. Stt.c:mbro de 2007, Su· 2001; Dan11!1 l.e(@t.1Ynt Pour an /inir átft:C lo reJH!nl'anct colontol«. F1.11mmarl0f\. P•rl.s. 2006; PAul~
u:niw Otro~ W M_ftho notionat L1'twxre d~ Fro11r:. .-.vlllch. t.:Atelttt, PariJ. 2008 e Syl'1e Ap.rtle, FrançolJ PJioU. Nou:t,... SOttm'lt.f pas coupobln. ~d* rt(H'ntancn!. La table rond~. PJ-rts. 2006.
•L1d.uolr. par Hlcolitl$ Sari<oq: te tf:w passtiste d'un futur nadonaJ-IIbfr-..J•. CVUH, -e ht19!// Mu CaUo. /:W d''tn fronroJ:t. F'~~rd. Paris. 2006 e Pual ONckn..: f.Q f)Y'Ottnle d• Ja pl_nlt,.ttt:f!.
c:vuh.free.fr/:rplp._phpla11lde82>, 30 df: Abril de 200?~ Enol SUi' J~ mosodti.sm• ô«ldeo.ntof. Cr.t-SH1, Paris. 2006.
O quarto diferendo diz respeito à raça e ao racismo. Esquecendo abommam França Obviamente que exlstem dispersamente «franceses
naturalmente as experiéncias históricas da escravatura e da coloniza- racistas [ ...J. que não gostam dos árabes nem dos negroS». Mas «como
ção, os movimentos neo-revlsioniscas e provinciailstas defendem que querem que eles gostem de quem não gosta deles?w. Além disso, «gos·
o raosmo nunca penetrou em todas as fracções da sociedade francesa tarão ainda menos agora (após os motins), quando se aperceberem
e que, contrariamente ao caso dos Estados Unidos, a segregação racial de quão os pr6prlos os detestam». Outrossim, os negros e os árabes
em França nunca foi legal e lnsâcucional". O racismo em França teria também não se consideram rranceses. Faz.emos alguma ideia do modo
sido sempre alvo de uma desqualificação simb6ilca e a sua existênci" como falam francês? «É um francês decapitado, a pronúncia, as pala-
nunca teria sido m:us do que residual. As discriminações existentes se- vras, a gramáeica.• «(A sua) Identidade não cst.i ali.» Como só estão em
riam negligenciáveis e desapareceriam se, para uns.se reduzissem con- França por «interesse», tratam o Estado francês como uma •gra nde
sideravelmente as desigualdades econ6m1cas e se, para outros, França companhia de seguros•. Relativamente aos enormes sacririclos con·
pud~e Lriar us seus imigrantes Além disso. os problemas sociais sentidos pela República apenas interpõem ira e grosseirismos. eis a
fundamentais do país resultariam do racismo anti-brancos. Quando a manifestação da sua alteridade radical - o que prova que nunca for4m
realidade do racismo anti-não-brancos é reconhecida, é tratada como e nunca serão verdadeiramente dos nossos; que são «inintegráve1s» e
uma simples diferença cultural. Por conseguinte, qualquer evocação que a sua presença entre nôs corre o risco de ameaçar a nossa existên-
d:t raça - para eíetlos de discriminação positiva. ou de reparação de cia a longo prazo. Segundo Flnkielkraut, o verdadeiro problema reside
erros comeridos sob o ideal de igualdade- é estigmatizada. Com ela, a no anti-racismo que. segundo profetiza, "será no séc. XXI aquilo que
República correria o risco da etnlclzação das relações sociais. o comunísmo foi no séc. XX». A principal função dessa ideologia se·
Assim, ao comentar os motins que Inflamaram multas perlfori:ls ria produzir, partindo do nada, uma culpabilidade de controlo exigida
francesas em Novembro de ZOOS, Alaln Finklelkraut considerava-os pelo pensamento «correcto.,». Pior, o anti-racismo é a nova designa·
uma demonstração da ira sentida pelos negros e árabes em relação ção do anti-semitismo".
a França. DI? facto. segundo estima. esses motins representariam um
instantâneo da guerra que uma parte do «mundo árabe-muçulmano»
teria declarado ao Ocidente e da qual a RepúbUca seria o alvo preíeren· Colonialismo e doenças póstumas da memória
cial. Segundo Finkielkraut. os negros que «abominam França como
república~ têm a pretensão de atribuir à escravatura o mesmo estatuto As políticas oficiais da memória - republicana ou nacional - foram
de excepção. o mesmo peso sagrado de destino e a mesma força para- desde sempre marcadas pela sua enorme miríade de ambiguidades.
digmática do «Holocausto,.. Logo, segundo explica, •se colocarmos o para além de constítufrem à partida Intensas· paixões, afrontamentos
Holocausto e a escravatura no mesmo plano, então somos obrigados a e dilaceramentos. Acerca da construção da memória republicana, em
mentir. porque [a escravatura) não é um Holocausto. E não const:ltula particular. Pierre Nora afirma que a mesma foi «simultaneamente au·
um crime contra a humanidade porque não era apenas um crime. Era toritária, unitária, exclusivista, universalista e Intensamente passadis·
algo de ambivalente. [ ... ) Começou muito antes do Ocidente. Com efel· ta•. Além da sua coerência se prender com aquilo que exclula. ainda
to, a especificidade do Ocidente em rude o que se refere à escravatura, se definiu sempre contra inimigos reais ou fantasiados... Com efeito,
é precisamente rudo aquilo que se refere à sua abolição[ ... )». De resto, como pode inventar-se um passàdo. apropriar-se do espaço, dos espfri·
a República não fez «nada senão bem» aos africanos. A colonização tos e do tempo e provocar o aparecimento de uma religião civil (com
não tinha por objectivo «educá-los» e. para o efeito, «levar a civilização as sua.s liturgias. os seus altares e templos, as suas estátuas. frescos.
aos selvagens•?
Por conseguinte, a causa dos motins não se encontraria na vertente
95. Relat.iWtmttitt a tudo o que: foi reftrido. ~a tntrevis:til de Ala.ln Flnklelk.nut puhltcada pelo
do racismo. Seriam, antes de mais, a prova de uma ingratidão magis· sem.inário 1-Sf"aelim túan!tl, fm 18 de Novembro de 2005 e o artigo de Sylvafn Cypet. •\..a volx
trai. De resto, o «racismo francês» seria um mito urdido pelos que ·U'h-dWlante:• d'Ala1n Ftnkfelknut •u ci.uot.ldlt11 Haarttt-. Lf! HomJ~. 24 de Novembro de 2005
96..Ataln Fmklelkraut.Av nom de 1:\ut~ Mjlaf.ons surl'ontú:lmllismo'lU' vl~nc.. Go111matd. Par•1.
2003. Sobre t.cmn relattvatMnte aprvxim~os. ver- PiC!n'"e'-And~ Tasu1Pfí. Lo )u~pholm~ das
94 R~~dV21ment:e ao ~pl$6dio d~ n<:r.tWtura. cm pattkullr. e aos parad.ox0$ ~ ~ça •da d· moderna. da Lumllntl'OU JIMd mortdlol, Odde Jocob. hrl&, 2008 • 10.. t.o /tlo.Jw:lt* Judlophobi~.
datbnia, ltt Liru.Ant Dnbo1s,. A CDlony o/Ot;uns. R~WJlutton & Sfctw: Emonclpatlon l.n th~ F"1Vtch Mllle4t Un• Nuiu.. Paris. 2002-
C<irib//<o" 1181-JIJOf. Cl\>poll llil~ Univcrslty of Nonh C.n>llna Prus. 2004, 97. Ple-rreNora,. 1.aUftlx41ttnt,moln.Gallimard.c:ol. •Quarto•. Paris. 1'197.p.560.
estelas e comemorações), ao passo que o novo regime resultante da lado. por uma concepção da nação que ;:i converte numa aJma e num
Revolução era contestado, tanto pela direita quanto pela esquerda. e prlndpio espiritual e, por outro, pela virtude social e política que a
confrontado, ao mesmo tempo, com a ameaça clerical, um exército cultura polltica francesa sempre atribuiu ao cadáver. Os elementos
refractAno e a aliança da burgul'~1a bancária e industrial l' da cl.15St' constituintes dessa alma e desse prlndp10 espmrual residem, em par·
rural, tudo Isso num pais que tam~m é consntuído histonamerrte te, na partilha de um nco legado de memórias (o pas<>ado) e, noutra
por !'f1&1ões relativamente compart1mencadas"? pane. no desejo de viver em conjunto, e na vontade de continu.ir a
O facto de que a política da memória tinha constttu Ido, frequentemente, defender no prtstnte a herança que se recebeu do passado. A ambas
esse elemento de divisão nacional explica-se, por um lado. pela capa- a~ características acresce uma consciência rt'publlcana que se faz valer
cidade da memória de despertar as mágoas de um passado difícil e so· de uma excepclon.1liddde exorbitante, dado que pretende fazer con-
brf? o qual nos questionamos como coloca-to à dis;>0slç•10 dd narrativa vergir a slngul;iridade francesa com o universal Facto de sacriflc1os e
fundadora da nação, recorrendo ao luto. Por outro lado, explica se pela de devoção, também o passado é concebido em termos heróicos, glo-
relação estreita que sempre exlsclu - desde a Revoluçao na cultura nosos e promete1eos - passado de esforço-;, sacriflcios e devoção A
política francesa entre a morte (~obrt>tudo violenta). o esque~1mento e valorização do legado e das memórias comuns passa por uma forma
a divida - e, logo, pela relação entn- a morte e a Ideia de 1usnça"'. O que de culto dos anlt'passados - os grandes homens O culto dos antepa<·
foi sobretudo o raso quando se tr.itou de subtrair os crime~ políticos sados tem o seu equivalente no culto do sacnílcio. Porque a nação t!
e as mont.'S violentas à lógu:a da lncnmlnação" . Des5e ponto de vis- uma consciênci.i moral, pode exigir legitimamente, como sublinhava
ta, a Revolução engrenou uma meclln1ca sepulcral. cuias exteMões se Renan, a cabdicaçüo do Individuo• em prol da comunidade. O culto
encontram na Restauração (Inflação das honras concedida~ às dnzas, dos antepassados e das suas proezas e o c11lto do sacrlflclo constituem
mart<1ção desenfreada dos locais de sepultura, lncont.íve1s exumações um capital social e sln1bóllco que é tão mais decisivo para a construção
e relnumanações). Na época, o luto público constitui uma manifesta· da ideia nacional que, uma geração após o regicídio, o pais se depara
ção da força política. e a própria memória é susceptlvel de ser utilizada com uma cr ise da representação e uma lnsuRcl~ncla de sacralldade. O
como Instrumento de justiça punitiva e gládio expiatório. Assim, na amor pela p;lttria e o orgulho de ser francês traduzem-se, alills, nos ges·
política de Estado, a memória nacional funcionou sempn- como um tos públicos e nos rituais de piedade dvica: paradas militares, museus,
Hpaço de expiação. a melo caminho entre a lógica da incrimln3ção e o memoriais, comt'morações, estetas, e:.látuas, nomes de avenidas, ru;u,
desejo de reparação. Diante do monumento ou dos ntos encontra-se, alamedas, pontes e grandes praças e, por ílm. o Panteão.
então, aquilo que Chateaubriand chamava um •campo de sangue•. Directamente associado à concepção sacrlOclal e cultuai da naçilo que
!!; esse sangue derramado que us monumentos e os ritos s3o chamados se descreveu sucintamente, está o 4 de Abril de 1873 quando é votada.
a expurgar e é o motivo pelo qual n sua função consiste em conílrrnar pela primeira vez na história da França moderna, uma lei relativa à
o esforço de reconciliação com a perda conservação dos tumulos dos soldados monos, nomeadamente, dos
O racto de que se tenha tecido uma relação tão estreita entre a memóna falt'cidos na guerra de 1870-1871. A lel previ! pormenorizadamente •O
e a provação da morte violenta e a sua Interiorização explica-se, por um estatuto dos terrenos e o tipo de sepultura a criar'º'•· Durante mais de
um século, a polltlca oficial da memória vlsar.5 a comemoração, ant es
;s;:;;- t WM ...._~ wr ;...,._, p. 560 ttfo&.1.Unmf'n.t• i comp;trtu11reu("Jo. ~r f~~MI 8nu-- de mais, daqueles que •morreram por França•, pelo que a comunidade
dol. L._a" Ih lo l'lona, op. ele.; Tbtodore ZeldU\. H_,.. . ._ . ,,._ _, Pans.
hy,>~ cívica se institui e reproduz simbolicamente nas celebrações fúnebres,
2003 (1971) o Eucu w.w~ La F11tda .....,.11. Lo,....,,....,,_ drlaFrw...avrow 1•10.J9H. definindo-se sob esse prisma como uma «comunidade da perdn, mas
fl)'llnl/~hm. t983
99 Pan YmJi ·~ eenf dls.M'S ..t..WMK. ln Paul RK\'Pllr, t..a U/.trJtHnt. l1l1W0tf'fl. l'DMbl'. de uma perda que não é esquecida. Jé no ponto de viragem entre os
Seu1l '~ 2001 (2000).. nomeacbml'nl• PP .açq.490 séculos XVIII e XIX, França vivia uma revoluç:lo funerária. As paixões
100 Oqi.tt(oC. pM.umplo,o<•'°•"tn 1?fl(>e 179S 8ana re-ltmbr:trH~-~htpdbUcud•
Lut't: XVJ, M•rt• Atitonlf1a e tllubeth. •" <•~• df'Capltadas e nlbldu de U.uney (.,oyemador
políticas manifestam-se através da conslruçJo de novas necrópoles.
d1 a.nllha} , ôt f'leutlle:s (prc:botte do• co~n1•nln de Pub}, no punh•do dt ftno n• boa as paradas dos cortejos fúnebres que calcorn-avam a cidade, a p~tlca
de ~ulon. no co~ .rn:ncado ck Oerthterdc S.vvlcny (hne:ndetH• d• 1cn.C!rthdide de Pilr1s).
,... c•b«• du d~udo Nraud. dcopttad• • txlbidil ~m plena conwmçlo em 1975. ou .lind.1. n.t
s.n.l"IÇlo dos c.nlltkios e CJSdriol de L.1 M1d1t.lne, '1cpus. E1n1:nd1 •de S..Jnt.. M1rgu.~rtlt. 101 N.:ob--;a;;:;t e P.11caJ etanc:h.vd, cColoniac1on comrMmor9.tfOM ti mf:D"Of"Uwc. Cot\llt('to
Sobre o uwnto. Str EnunanlJ8 Furelx. Lo Frvnce d# IG~ 0-1ts polit.Hfun 1 ,.,.. romo•t1qur tuol~f -W. ., pohuqut d'uo ••IW - ·· ln Ni<olat lanctl FloRnar S.""""~ PdUI
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doç elogios wbre o túmulo, a manifestação oStenslva de um luto públi- mortes provocadas por França, como acontece ~om a colonização. que
co ora expiatório. ora dolonstd ou protestatório, ou ainda o culto das desafia não só a linha que separa gemi mente o~ no~sos defuntos dos
rellqu1as profanas'"'. Alegadamente. o culto dos mortos produ? con- defuntos dos outros, mas divide também os meandros e as margem da
sen!>O e leg1umidade. Ma.s. dependendo dos defunto!>. t.11nbiim e sus· cidade política, dado que, no que se refere a este acontec1mento. ela \P
ceptivel de servir de local de cxpresslo :i dissens.io, dado que o sangue apresenta simult.tncamente como a sua própria vítima e o seu própno
dos vencidos, em particular: pode !>er convocado como um mstrUme.nto carrasco.
que n.io apela .1 reconoliação, ma:. .1 Vln~nça comurulána. Especl;ilmente Sendo um dos motivos pelos quats ela conslllui o olho do c1clono
a p;irtlr de 1830, assiste· se ao triunfo de um republíc;inlsmo de tipo memoria l que i.opra no pais. Desde há alguns anos, o próprio Í:\tado
sacrtílclal e ó, em parte, esse p.m1d1J!lma que alguns tentam reactuali· Instiga o tornado. querendo •modernl7.ar» oficialmente as comemo·
ur nos d 1:is de hoje rações, pelos motivos ilnteriormenle reforldoi.. Nessa inílaçào de
Tod.ivld. ao longo da década de 1980. uma evoluçào ganha contor- cerimónias da memória. homenagen.~. Inauguração de monumento\,
nos' uma pnhtlca da memóna assenti' na celebração dos dl'funtos co- museus e praças públicas, :is fronteiras entre a história, a memón.i e
mu~ f !>Ubstituida, pouco a pouco, por uma economia diferente da!> a propaganda tomam·se turvas•'•. Por conseguinte, num pro1ecto cm
comemorações. centrada ll.l\ •morte> provocadas por França•. Du· curso, a guerra de 1914 1918 - que marcara um retrocesso único d:t
rante muito tempo, França nunc" se mosrrou d1sposw a reconhecer democracia e preparara o aparecimento luturo do fasasmo e do n.:i ·
a sua responsabilidade no genocid10 dos judeus. catástrofe que era z1smo - é reinterpretada dialecticamente, como tendo partiopado "''
Imputada ao regime de Vichy, que deveria ser o un1co a ostentar a ln· origem da construç.'lo europeia. A propósito do coníllto de 1939· 1945,
fâmla Essa autude altera-se progressivamente e as primeiras «mortes j:\ não se aílrma que se tratava de uma •guerra mundial•, mas de umo
provocadas por FranÇ<1» a serem reconhecidas são as dos •mortos cm
deportaçJo•. Em 1990, a lcl Gayssot promulga definitivamente o seu
estatuto de •vitimas. e deflnl' a funçlo do Estado 113 construção de
uma •n1emóri.t do Holocausto». Em 1993, um decreto Instaura «Um
feriado nacional come mor.uivo cfas pe~guições racistas e anti-semi·
i guerra de ordem fundamentalmente europelo. com abrangências ln
ternacionais relevanteç. Relativamente aos soldados das tropas colo-
nlalS convocada~ para os combates que, l>egundo se afirma agord, lhes
eram estrange1ms, avan~·se que •morreram em nome da Uberdade e
da CivUização•, sendo, por isso, meritórios do privllfgio de terem sido
tas cometidas sob a autondade de facto dita "do governo do Estado 1 colonizados. Tanto nesse caso quanto noutros, a 111iciativa guerreara
franc~s·•, seguido, em 1994. da lnauguraç3o do Mémorlal du Wl'd'Hlv', em geral é assimilada a uma cruzada. cu1os mortos são mártires qu~.
em memória das vitimas do llolocausco. A última etapa do processo movidos por um esplrfto patriótico, teriam renunciado à vida de boa
consiste no reconhecunento, em 1995, por Jacques Chlrac da respon· vontade por uma Ju'>ta causa'"'·
s;abilldade de Frnnça no genocfdlo dos judeus. Seguem-se as lnaugu· O discurso contra o arrependimento visa assumir serenamente a LO·
rações do M6morfaJ de la ShoJh e do Mur des noms (os 76000 judeus talidade da história de França, tendo por objectlvo a reablhtação da
deport.ido~). em Pari$, em 2005 O processo culmina com a entrada obra colonial. Alega-se que as verdadelr.u vitimas da colonização nJo
do> Ju>lO> no Panteão em 2007'"' terão sido os nallvos. mas os colonos. Os primeiros devem a sua gra-
Mei.mo se a nova política da memória concede um lugar.\~ mortes tidão aos segundos O ponto de incandescência dessa lógica da 1lib;i-
provocadas por França, ainda pers1sle uma d1sl1nç.io. Enqu•nto as ção e da auto·absolv1çl!o verifica-se no caso d;i Argélia, cuja memóna
•mortes por França• são morte> •sofndaS» por franceses em nome da constitui o epicentro das doenças francesas da colonização''~ e onde
nação e cuias vltunas são transfiguradas em «heróis•, as •mortes pro· França esteve presente durante quase um século e meio. Foi um local
vocadas por França• são apresentadas no altar da memória nacional
com o est.ttuto de •vitimas•, designadamente no caso do Holocausto. 104 La\tnmC"t Dr Codc. Fanny M.addine, NKolas Offrn1Udl t Sophk" Wahntch. Cammtttt N't"Ola1
Relativamente a outros acontecimentos. existem franceses entre as Sorl<ozy t!crir l"hlsU>lrt 11# f'ronett, Apne, M.,...llt<l, Z008
105. Ltr o Ropport d1 lo Commtn;on d• '"'flutof'I J.ur lo rttodern11auon d" co111mlmorutforn
publlquu (pn1tdfnct.t And"' Kupll. N~mbru dei 2008. < http ~/Jwww~documt.nt.ulonfr•n
102. Annc·Emnunurile Ortm•rtlnl r Oom1n1que KAUf.a (dlr). lmaglnolre ~e Htnlbt/ith ou Xl'Xt- ais• lr/raPl>Oru·publícs/064000707/(n<lex.shlml>
slklit. Crt•ph1J1. Grint, zoos.
103 MtLtll~.tmfnl• àJ Qbsrnaç.6H itnt~HN'f'S. ln Nkobs &ncel t Pasal 81.lndUrd. •Calontu·
106 Guy Pervllle, f'our •n• h1$1olre d• lo•••"" d"All/in• tU• 1961. P1<•rd. Parb 2002
Moh.am:m•d H...tbl • Rf'nla"'lm Stol"I (dlr:.). Lll Cu•r,.. d'A/g4r;,. 19S;f ·ZotH fln d• fo"'"'"•·
uon comn-'nw>rahoe'!i. fl mbnoruru.x. Conni.nwlJtf soct~le et pohtiquit d'un t>n~ mtmonc4•. Robtn l..lffoat. Part'- J004 . t...r Llmbl.. Pascal BlilnChtrd • IPbtll• V.,nt•Ma.Json (d1r J. Lf'f
loc,at 11wr~ "• mlMicN:ra. IA Fl'91klt .e so. ll1JU1frw. LI Dikovvertit, Parta. 2010 (2008).
onde quatro ou cinco gerações de europeus 07eram dela a sua rerra guerra, pelo exército francês nas fronteiros tunisln:i e marroquina com
natal, enlre 1830 e 1962, e no qual lmport.tnles tropas do exército vista a Impedir a entrada dos nuhtant<?S da ALN na Tunísia e em Mar·
francês (Harkls. convocados, alistados) se bateram Oeçdf' a década de rocos .S.-gundo a Argélia, essas minas provocaram uma enorme devas
1920 a~ à de 1970, uma 1m1graç.lo s1gnlílcat1va provinha da Argélia. E. taçlio, provocando 40 000 mortos e feridos ilpós o final da colonl~çao.
para culminar. o confüto fei. centenas de milhares de monos "'. Ainda Acrescem ainda os legados calamitosos dos testes nucle<i.r es no Sul da
não se avalia o quão a perda da Argélia francesa - que ocorre após a Argélia, na década de 1960, e a qucst.lo do ;icompanhamento médico
derrota em 01fn P1fn Phu - terá constltuido um verdadeiro trauma para as vitimas de radiações atómicas no Sara 11
para Fr.inça, de amplitude proporcional à derrou de 1870 ... Todavia, Os coddddos das antigas colónias 1mper1als e os seus dcsccndcnt~
dessa vei. tr.ita~·se de uma derrota wnto m1h1<1r quanto poht1ca e não S<io as úmcas vítimas dos traumas coloniais na França contem-
moral. que, enlre oucros, revelava abertaml'nte a pr.'.mc:i da tortura porânea. O mesmo acontece com os ex· colonos franceses da Argélia e
pelo exército francês. É, designadamence. em nome dessa f(uerra que os seus descendentes. Importa compreender as doenças da memória
não teve nome durante muito tempo e que est.wa rodeadd de práticas associadas à crise da dcmocracl:i frances:i e a um espírito do tempo
Indecorosas - que aluda é conhecida em Fran\·a sob o eufemismo de que confere particular lmporWncla a formação e à expressão das
•acontecimento~ de Argélia» - que se constatou um processo de ocul- Identidades mortlílcadas e feridas"·· Para serem consideradas polltl
tação e de esquecimento arquitectado. camente. as lutas pelo reconhecimento devem articular-se. cada ver.
Mas. desde 2002. mult1pllcam-se testemunhos. livros. ç(tios de Inter- mais. incidindo num significante excepcional - o meu sofnmento e as
net, artigos fomalisticos, filmes (La Trohlson, de Philippe Faucon, cm minhas mágoas. Arquet!pico e Incomparável, esse sofrimento deve
2005; Mon colonel. de Laurent Herbiet e lndtgénes. de Rach1d Boucha-
reb, em 2006; L'Ennem1 mame, de Flori:in Emiho Siri, em 2007), docu-
·, re,ponder necessariamente a um nome cujo valor deve ser superior
ao de qualquer outro. Na medida em que as doenças da memónd (o
menur1os e ncçõcs teleVISIV3S (Nu1c no1re, 17 octobre 1961, de Al:iin qulasmo no preseote) têm tendência a p1 opiciar oposições absolutas
Tasma. 2005; Lo Bototlle d:41ger. de Yves Boisset, em 2006)'"· Em entre as v(Limas dos me:.mos carrascos, a querela reside sempre na
grande, é a perda da Argélia que eStá na origem da célebre lei de 23 questão de saber qual o sornmento humano a sanbHcar e qual nJo
de Fevereiro de 2005. com o seu artigo 4.0, que evoca os «beneficios de passa. no fundo. de um mero lndd<?nle sem Importância, na escala das
uma colonlz.tçao positiva•. lalve~ promulgada por um «estrato de par- vidas e das mortes que contam verdadeiramente. Por conseguinte,
lamentares de segunda Unha""•. mas adoptada pela Assembleia Nacio- a luta visa rejeitar qualquer equival~ncl~ entre as díferentes vidas e
nal francesa. Obviamente que artigo sera revogado por Jacques Ch1rac. mortes humanas pols, segundo se pensa. algumas v1das e algumas
em 2006. embora a conlrovérsia não fique esquecida. afect;1ndo tanto mortes são universais, ao passo que outras não o são de todo e nem
a comomoraçllo dess<1 guerra quanto a questão dos museus, memo· dc.-vcrlam aspirar a sê·lo'"·
riais. muros e cstelas no Sul de França ( Marselha, Pcrplgnan e Mont· De acordo com o espírito contemporllneo. são muitos aqueles que
pelller) e :1 contabilização dos defuntos franceses. Do outro li.ldo do acreditam na existência de um Luto primacial, interminável, ao qual se
Medltcrrãneo. mesmo na Argélia, também se fazem ouvir os apelos à apela Incessantemente para remontar ao plano do sintoma. mas nunca
contabilização exacta do número de argelinos morto~ desde 1830 pela a suturar a fissura. Na estrlt:i observância do csp!rito do mo note Ismo,
França. bem como o número de aldeias incendiadas, de Uibos dizimadas esse Luto primacial não poderia comparar-se a qualquer outro luto. A
e de r lque-us roubadas. Salientando-se ainda o contencioso relativo à lu~ desse Luto primacial, qualquer outro luto nad:i maís seria além de
constltulç-:io do plano dos 11 milhões de minas lnst<lladas, durante a um assunto pagão. Só esse Luto pnmaC1al estana apto a reílectir·se
no espelho da História. Desprovido de duplo, preencheria a superfide
107. De KU'do<Otf'I Odt"~O KJnwC Katm. o bUa.ft'(O dOCOftftttO rond~ru OI 40UOOO monos.
~nd••rntlOIMC•mpaJ t VIU~ CIVIS Kft'l(td.l~ 111 Ltt o ll'UIO dt S...-tn S.on. •Ealnl i. fr1.,,. ltf rA!dfW. w tnUJIQllsnw (-)CDlo•
108. Tbdd Shoponl. n.r 1,,..,.w,,. o{ D«olonuat...,. n.. """""" ™'' oOI/ "" -lu•ll o/ """ dH 1ontt> 2000., 111 Ni<obs Bon<ol, Fknna a..nwut~ P1.tcal Bbndwd, AblMd IWubo-
Frv-Comell Un,Wt'llt)I p,..., hh.Ka. 2006 A<h•ll• Mbembe t f~ V.-..k. Rvpt1'1W pomo,,.,,toln, op Cll
109 Bcnluiln Storo. •Ciu•"" dºA'&h1• 199'1·2003, los xttlfrol<ons de 11 mfmotr1'•, li""'""" ltf 11 2 W•ndy Brown. Sl»tn o{ln/•"f Po- ond F,...,,_ ln IAU Mod<ntlt;y, Pnncrton Unl--.1tY
MigrotJons. n • 1244. lulho-Aaosto. 2003 Prtt< Prln<'f1.Gn. 1995
110. Jtan·Fra.nçolt 81)'1n. •l.es ftudes postt:Olonlalt-s. unf' lnvenlion pnhuque dt": I• lrMhtion?~ 1 t 1 Judhh Buld.tr. Pr.c8l"lou1 Uf~ ,.,_, PoWt'I o{ Ho11r"lttg ond Viol4tntt. Verw. NOYI lorquf'.
Sod'tbpolU:lquncomparM. n.• 14.Abrif dr 2009. di$JM>nffff ti1n e ht1p·//W'WWfa-.Opo orp 200•

NO._._....,....,....... IP
do espelho de uma extremidade à outra, tal como o Um. Logo, o acesso superioridade em relação aos que deviam obedecer. Acrescendo ainda
ao campo da palavra e da linguagem deve ser barrado a todos os res· a (ntlma certeza de que a colonização era um acto de caridade e de
tantes acontecimentos, por mais ntcrradores que possam ser. visto benevolência. facto ao qual os colonos deviam retribuir com li sua
que, de qualquer modo, esse campo fá se encontra esgotado pelo gratidão, dedlcação e submissão.
Acontecimcmto. Mas, para conceber o Luto primacial dessa forma. ~nesse complexo rriplo que assentam os fundamentos da sà consciên-
conslitui·se, afinal, um luto Impossível. E. por conra dessa impossibili· cia europeia que íoi, desde sempre. uma amálgama de nJo interwn·
d.ade e desse carácter Interminável, alcança-se aquilo que constltul um ção, indiferença, vontade de não saber e de presteza em Isentar-se de
dos principais parado)(QS das doenças contemporâneas da memória: o responsabilidades. Nunca se mostrou disposta a responsabilizar-se por
meu luto consisti?, antes de mais. em provocar a morte, não do meu nada, nem a considerar-se culpada. Essa recusa obstinada de qualquer
carrasco, mas, de preferência, de um terceiro. O que demonstro a sentimento de culpa assenta na convicção de que: os instintos de ira,
nossa aversão pelo sofrimento de outrem, é a pulsão de morte que inveja, cupidez e ascendência «pertencem, essencial e fundnmental·
caracreriza qualquer consciêncin vitimãria, designadamente, quando mente, à economia da vlda"••. Ainda para mais, não poderia haver
a mesma só pode conceber-se em relação concorrencial com outras moral válida paro rodos, tanto os fortes quanto os fracos. O homem
consciências do mesmo nome. Logo. tenho de calar o Outro ou. caso superior não poderia ser co ndenado com base na moral do fraco.
contrãrlo, obrigá-lo a sucumbir ao delírio, para que o seu soírlmenlo E, dado que existe uma hierarquia emre os homens, deveria existir
histórico se1a remetido para um esrado anterior à linguagem - um es· também entre as morais. Dai o cinismo com o qual são abordadas as
tado amerior a qualquer norneaç-iio. Aquilo que cm França se designa questões relatlvas à memória da colonrzação. Aos o lhos de muitos. a
de «guemi das memónas• Inscreve-se. assim, no âmbito das lutas pela evocação do passado apenas serve para debilirar a virilidade europeia
transcendência no contexto das Ideologias vitimárias que marcaram o e enlanguescer a sua vontade. Dai, também, a recusa em ver a «bcs
final do séc. XX e o inicio do séc. XXI. Essas lutas Integram fundamen· la chifruda» que, segundo Nietzsche, exercerd desde sempre grande
talmente projecws necropolfticos. Com efeito, na medida em que nunca atracção sobre a Europa. Continuando a tent:S·la ainda, meio século
é passivei fundar o transcendente sobre a sua própria morte, ê sobre depois.
a morte sacrificial de qualquer outro que deve lnstituJr-se o sagrado.
Relativamente ao rest0, multo longe de se tratar de arrependimento,
a era reside mais na sã consciência. Com a descolonização, as potências
europeias tentavam criar o mundo à sua imagem. «Raça dura e labo·
riosa de mecânlcos. agricultores, de construtores de pontes'"" e de
estátuas, os colonos não terão tido senão trabalho grosseiro a executar.
Mas estavam munidos de um punhado de certezas que a descoloni·
zaçlio não atenuou de todo e cujo ressu rgimento e mutações nas
condiçães contemporâneas se podem constatar" '. A primeira era a fé
absoluta na força. Os mais fones ordenavam, alinhavam, dispunham, e
moldavam o resto do rebanho humano. A segunda, toialmente nietzs·
chiana, residia no facto de que a própria vida era, antes de mais,
vontade de poder e lnstlnto de preservação. A terceira consistia na
convicção de que os nativos representavam fonna.ç mórbidas e degenera·
das do homem, corpos obscuros à espera de auxílio e que requeriam
ajuda. Quanto à paixão de comandar. nutria-se do senllmento de

114 Frttdtlch NI<~. Par..Otldlrb<•n rr/rmol,Galllmord, Pan., 1971, p 33


115 LOf Dettk C"'IJOry, 1'11< Colontol Pru.nt A{ghanlnao. Palesti•<, Iro~. Blacl<wóll, LondttS.
tOOS. Ey.al Wetunan. llo/low Lond. lsro•l's Archftttwrtt of O<c11PO<ia1t, v.,.,.,, Londl't'S. 2008; •
AdJ Ophir, Mkhal CM>nJ • Ss.tri """""(dar.). Th• Powera{lnclusf11< ExcluS'on, 2on< Books. N0v.1
lorqut, 2009.
SAIR DA V.
GRANDE NOITE África: a casa sem chaves
ENSAIO SOBRE A ÁFRICA DESCOLONIZADA Movida por poderosas forças demográficas e migratórias, África
depara-se com aquilo que convém designar a sua •grande transforma ·
ção• - uma mutaçao relanvamente à qual, com a distância h1stónca,
o episódio colonial surgirá como um pnênteses. Empreende-se uma

Achille Mbembe extraordinária rcorganiLd~:lo do~ espaços, da sociedade e da cultura


qu1> opera por multo~ d1>w1os e oscilações Traduz-se. em todos os dS·
~ctos. por um.i acentu.içJo d.is formds de mobilidade, uma radicaliza·
ção das motivações de procedência de exclusão, a deslocação relativa
dos crlténos da dominaçiio, a formação de Identidades vazias e Ul'lld
substancial recomposlç3o simbólica da realidade.
No presente cipítulo, an:ihsar-se·á primeiramente a forma segundo a
qual as fronteiras africanas se alargaram e contraIram lncessantemente.
no decorrer do último século. O car.kter estrutural dessa instabilidade
V. África: a casa sem chaves 141 -163 contribuiu largamente para alterar o corpo territorial do conllnente,
surg111do formas Inéditas de tcnitonalidades e figuras Inesperadas da
Antigas e novas cartografias 142 localidade. A!!i suas fronteira!> não coincidem necessariamente com os
O longlnquo e a longa distância 146 limites oficiais ou com as normas. ou a linguagem dos Estados. Alongar-
lnformalízaçao da economia e dlfracçao do político 154 ·nos-emos de seguida sobre lr!s acontechnenfos relevantes que, ao lon·
Militarismo e lumpem-radicalismo 160 godo último quartel do séc. XX. afectaram profundamente as condições
materiais de produção da vida e da cultura na África Subsariana.
Esses acontecimentos são: o endurecimento da pressão monetária
e os seus efeitos de rcvlviílcaçilo dos lmagindrlos do longlnquo e das
praticas históricas de longa dlstãncia: a concomitância da democra·
trzaç3o, da lnformalizaç:!o da economia e das estrucuras estatais; a
dlfracção da sociedade e o estado de guerra. Tendo ocorrido quase
concomitantemente e no seguimento da descolonização. por vezes. es·
ses trl!s acontecimentos revezaram· se. Ocasionalmente, os seus e.feitos
também se anularam mutuamente ou, pelo contrário. estimularam-se
entre si, a ponto de provocar uma espiral da experiência social e cul·
tural. Na sua slmulta.neldade, esses acontecimentos constituem o con·
texto de emergência de lmagln6rios do político que conferem especial
relevânoa às lutas pelo poder e contra o poder. confrontos belazes
cuja finalld:ide reside na conquista tripla d os recursos, do corpo e,
definitivamente, da vida
Antigas e novas cartografias Todavia, as fronteiras interna~ que a iniciativa colonial dellm1tou no
mtenor de cada país constitulram um factor decisivo; salientando-se
Historicamente. a implementação das fronteiras africana<; antecede ainda que existiram várias formas de estruturação colonial dos e•·
a Confer~nci~ de Berlim (1884-1885), cu10 ob1ectivo era ...segurar paços económicos. políucos e adm1mscrativos Essas mesmas rormas
uma reparttçao da soht-ram;1 entre as d1íercntes potências europeias eram tributárias das m1tolog1<1s espaciais específicas a cada pocêncm
envolvidas na divisão do conllnente. A sua protogóncse rernont.J à ocupante. O que ro1 deslgnad01mente o caso nos colo nacos, onde a roçJ
época dd economl3 dr b:ilcJo. quando os europeus implantaram feito· se converteu num factor estruturante do espaço. Por exemplo, no ca\o
nas nas costas e comt'çaram a negociar com os autócu:>nes. N:t fachad:> da África do Sul, as deslocaçõc~ em massa da população ao longo do:.
atlânuc.n. a implemcnta~.lo des:.a economid e os séculos de comércio seculo\ XIX e lCX resultaram, pmgre'isivamente. na Implementação de
dos esciavos explicam, em pane. alguma<; d;is aracterlst1c;i~ lis1cas 14 enudoide~ terrnonai~ de e~latutos distintos e desiguais, no seio
dos Est~do> afncanos. a começar pelas d1v1sões entre o lltorJI e o mte· de um úmco pais Considerando que o facto de pertencer a uma raçJ
r1or que marcam tão profundamente a estrutura geográfic;i dos dife- ou a uma etnia servia de condiç5o de acesso à terra e aos recur'ios.
rentes país<>s, ou ainda o encr;ivamenro de vastas enridades ofast;idas surgiram três tipos de cerritónos: por um lado, as prov(nc1as brancas,
dos oceanos. As fronteiras crlstalíz.ar-se-.lo gradualmente durante o nas quais só os europeus go:<avam de direitos permanentes (o Estado
pcriodo do •Império informal• (d.t abolição do tráfico de escravos até Livre de Orange, a Provínclil do Cabo, Transvaal e Natal); por outm,
à subrnls!>.lo dos primeiros movimentos de resistência). graça!. à acção os bantustões ditos clndependl'ntes• consticuldos por grupos ~tntcos
combinada de negociantes e mtSsionános. O l\3Sc1mento das fronteiras teoricamente homogêneos (Bophulhatswana, VendJ, Transkei, Ciske1)
ganhar~ contornos militares com a construçJo dos fortlns, a penetra· e, por ílm. os bantustões •autónomos• (Kwa Ndebclc. Ka Ngwane Kwa
ção do Interior e a rendição das revoltas locais Zulu, Qwaqwa, Lebowa e Gazankulu). O mesmo tipo de divisão tam·
l.onge de ser o mero produto da coloniiaçilo. as fronteiras actuals bém vigorava no domínio do ordenamento urbano. Ao dehm1rar os es·
constituem assim a e>epressllo das realidades comerciais, religiosas paços urbanos espedf1camcnte reservados aos não brancos, o sistema
e mllli.ires desses períodos, as rivalidodes, as relações de força~ e ds do apartheld privava os ui li mos de qualquer direito nas zonas brancas.
alianças que prevaleoam entre as diferentes potências imperiais e, Como consequência, essa excisão exercia sobre as própria< populações
postt'riormente, entre as úlomas e os africanos, ao longo dos s~culos negras o peso fmanceiro da sua própna reproduçao e circunscrevia o
que antt'cederam a colonlz.ação proprtamente dita. Nessa óptica. a sua fenómeno da pobreza a enclaves territoriais rac:lalmente conotados.
con<titufção emana de um processo socai e cultural de relativamente O cunho d o apartheid tamMm era vislvel na paisagem e na orgamz..i·
long<1 duração. Antes da conquista colonial, apresentavam-se como es· ção do espaço rural As diferenciações dos regimes fundiário~ (pro·
paços de encontro, negociações e oportunidades entre europeus e ha- priedades Individuais nas zonas comerciais e brancas e regimes mistos
bitantes locais. Na época da conquista, a sua principal função cons istia nas zonas comunais). a apropriação racial e a distribuição étnica dos
em marcar. no espaço. os limites que agora separavam umas colónias recursos naturais mais favorave1s à agricultura e Ouxos migratórios -
das outras, não contemplando as aspirações, 1n.1s a ocupaçao real e que resultam numa multilocallzação das familias negras - constituíam
efecuva do terreno. Mais tarde, o controlo íls1co dos territórios con· as marcas mais caracterlsticas da organização dos espaços rurais Em
qu1stados e subjugados lançaria as bases para a 1ns!ftuição dos dispos•· palses como o Quénia ou o Z1mbabwe, também se observou o mesmo
uvos de dlsdpllna e comando, à semelhança das chefarias - no mo· processo de espoliação das terr:is africanas em beneflcio dos brancos
mento em que as mesmas I~ não existiam - ou circunscrições e postos Foram lnstituldas reservas, ao passo que se propagava uma legislação
admlnlstriltivos. Com a demarcação das circunscrições, a arrecadação que visava alargar o modo de concessão Individual e limitar as formas
do Imposto, os trabalhos forçados e outras corvelas a difusão das cul- de arrendamento em parceria de explorddores n.:gros em proprlc·
turas de renda, a esCX>lariz;tção e a urbaniz.aç:lo, funcionalidade administra· dades brancas. Assim se criaram os reservatórios de mão-de-obra.
tiva, funcionalidade económica e funcionalidade política foram com· Essa estruturação colonial dos espaços económicos não foi total·
binadas, sendo que o poder administrativo, o poder do mercado e 0 mente abolida pelos regimes pós-coloniais que frequente.mente a pro
poder social teceram uma rede na qual o Est;ado colonial tPntar;\ fir· longaram. Por vezes, radicalizaram a lógica de criação das fronteiras
mar senão a sua legitimidade, pelo menos, o seu controlo. internas que lhes era incrente, como aconteceu, designada.mente, com
as zonas rurais. Obviamente que as modalidades da penctraçJo estatal
resultaram na retirada acelerada - por ve-.te:., de alcance regional - da\
variaram de uma regi.lo para outra. tendo em conta a mnuencia das populações em direcção às costas ou às grandes concentrações urh.i-
elites locais, e mesmo, cm certos casos, das confrarias religiosas. Mas nas. Assim, grandes cidades como Lagos, Douala, Dacar ou AbldJan
logo após a conctetit.ação da independência, a África oficiosa Iniciou converteram-se em unponanres receptáculos de massas humdnas e
um vasto movimento de remodelação das entidades territoriais ln· pass.im a constiwir vastas metrópoles onde emergem figuras inêd11:as
temas, ao passo que mesmo ofioalmente, se c;on~gr.. va o principio de urna nova clvUlzação urbana afnana.
da 1ntane1b11tdade das fronteiras dos Estado$ Em quase toda a pane. F.ssa nova urbanidade, crioula e. em muitos aspectos. cosmopoht<I,
a nova dehm1taçilo das fronteiras internas foi concret1z.1da sob pre- caracteriz.a·se pela mtstura e mescla das formas, tanto no plano do ves·
texto da cnaç~o de novas arcunscr1çõcs admm1strat1vas. provindas tu.irio. da musica ou das lfnguas quanto do ponto de vista das pr:itícas
e municipalidades. Essas d1v1sões administrativas serviam fins simul· de consumo. De entre os dispositivos que regulam a vida quotidiana,
taneamente polfucos e económicos. mas contrtbufam também para a um dos mais importantes é, inq uestionavelmente, a multiplicídade e a
cri•tall-zaçJo d;is identidades étnicas. Com efeito, enqu.into, durante a heterogeneidade dos regimes religiosos. Com a proliferação das igrc.
colonlzaç:lo propriamente dila, a afecraçao do espaço antecedia oca- Jas e das mesquitas, constituiu-se urna verdadeira esfera territorial
sionalmente a organização dos Estados - ou la ao seu encontro - após e ~lmbóhca. frequentemente tradicional, à volta dos locais de culto.
a decada de 1980. observa-se o contrário. Di~tlnguc·~c nJtídarnente da adminlslraç:lo territorial do Estado, n~o
Por um lado, empreende-se uma redassificação das localidades em apenas pelos serviços prestados pelas Instituições reUgiosas. mas tam-
grandes e pequenas massas Massas que são divididas em funçJo das bém pela ética de vida que promovem. A par das fundações religiosas
culturas e línguas alegadamente comuns A essas entidades que asso- responsáveis pela manutenção dos hospitais e das escolas. emerge um
ciavam parentesco, etnicidade e proximidades religios.1s ou culturais. Individualismo religioso que assent.::1 na Ideia da soberania de Deus.
o Estado confere o estatuto de Estado Federado (no caso da Nigéria). Es$a soberania traduz-se por actos m 11.igrosos e é exercida em todas as
de província ou de dtstnto administraovo. Por outro lado. esse trabalho l'~feras da vida. Manifes1A11-se sob :a forma da graça e da salvaç3o. Cra·
burocrinco é precedido (ou acompanhado) por outro, de Invenção de ça e salvaç.lo que se obtêm como recompensa de uma cransfonnação
parente5COS irnagtnár1os. fortemente revezado pel:a proliferação re- radical da pessoa e da natureza d0$ seus laços com o mundo profano e
cente de ldeolog1as que promovem valores da autoctonia A distinção o da tradição. Esse •novo nascuncnto• implica a rejeição dos costumes
entre autóctones e alógenos acentuou-se por toda a parte, pelo que o associados ao principio demonfaco e a fntenorlzação da graça opera
principio ecno-raclal serviu crescentemente de ba~e à cidadania e de se através do rigor dos costumes, do gosto pela disciplina e do trabalho
condição de ace~so à terra, aos recursos e aos cargos de responsabl· e do ?.elo dedicado à vida sexual e familiar.
lidade elect1va Crnças ao multiparticlarisrno, as lut.•u pela .iu1octonia Nos palses muçulmanos, uma territori3lldadc em redes está na base
ganharam contornos mais conílituosos, na medida em qur se coadu· do poder de jurisdição que os mora bitos exercem sobre os seus fiéis
narn com a Implementação de novas circunscrições ele1torn1s. Alvos de estima no plano nacional e. frequentemente internadonnl,
Um dos principais legados da colonização foi a implementação de as redes estilo Interligadas às cidades santas e às figuras proféticas
um processo de desenvolvimento desigual em funç..o da.s regiões e .ls quais os dlscipulos prestam obediência. Nesse aspecto, o caso de
dos palses. Essa desigualdade concnbu1u para uma d1strtbu1ção do Touba, a cidade dos mourides no Senegal, é emblemát.tco. Na década
espaço cil'CUndante de loc:als, por vezes, claraml'nte diferenciados. As- de 1980, a mesquita tomou-se um dos slmbolos marcantes da tenta·
sim, à escala continental, uma primeira dlferenclaç.\o opõe as regiões tiva de reconquista da sociedade e da cld:ide pela religião. Sel'Vlu ora
de forte concentrafllo demográfica a outras. quase vazias. Desde a de refúgio ~ra aqueles que se julgavam perseguidos. ora de recesso
déada de 1930 01té ao nm da década de 1970, dois factores prlnd· para aqueles que já não podiam avanç.ir. ReUro derradeiro para os de·
pais contribuíram para a consolidação dos grandes centros de gravi- sespcrados, tomou-se na primeira referência para todos aqueles cujas
dade demograílca. o de$envolvimento das culruras de renda e o dos certezas estavam abaladas pelas mutações em curso Em determina·
grandes eixos de com unicação (designadamente. a via ferroviária). das -zonas do continente, SCl'VIU ocasionalmente de foco de uma cul
O abrandamento da produção de determinadas culturas de renda e a tura da contestação. de novas figuras do Imã que vi nha materializar
transição para outras formas de exploração dos recursos e do comércio novas práticas do culto e da predicação e a uma espiritualidade de na-
tureza propriamente polftlca.
Nos países de predominância crist!I. a proliferação das Igrejas foi dominada, por um lado, por sociedades est<Jr..lls controladas pelos
substituída por uma lógica territonal de npo ramificado. Com a rup· adeptos do poder e. por outTO, pelos monop6hos que datam maion·
tura do dogma, :assistiu-se a uma relativa democratização dos caris· tariamt'nte da era colonial e operam em mer~Jdo~ cativos A dicotomia
mas e a uma red1stribu1ção da autonomia sacerdotal O exerdclo da economia urbana~conom1a rural. ou ainda t'('onomi:i formal·econo·
prep\"llo. a adminisn<>çiio dos sacromt'ntos, a hwrgia t' os diversos mia Informal caracter!stica da pós-coloní1;;1çJo imedlalil desfragmcn
rltu.us consagrados à cura, ou à luta contra os demónio~ ou ainda à tou-se por completo e foi substituída por uma m;mta de retalhos. um
busc-a de nqun:.~ )á não do o ;ipan;\gio de uma clasw sacerdotal to· mosaico de esferas, ou seja, uma economia dlfractada, composta por
talmente dlslinta dos laícus. As guerras, a crise económica e os aca· vários núcleos regionais relativamente Imbricados, por veies para·
sos da vidil quotidiana também .ibnnim caminho a reinterpretações leios, e que manr(lm relações variáveis e extrcm:imente voláleis com
por vcze~ originais das narrutívas d.l Paixão e do Calvário, bem como as redes internacionais. A partir dessa lragmentaçao extrema nasce -
das hgura~ do Juizo Final, da Ressureiçào e da Redenç-.io. tm determl· frequentemente no selo de um único pai' - um~ mult1phcidade de ter·
nados movimentos armados, essa dlmensllo escatológica deparou-se ritórios económico~. por vezes. encaixados t'ntre si e frequentemente
com um cxutono feno. A re-1slamlzaç.10 e a recrístianiUçi\o evolulram desagregado~.
paralelamt'nt... sendo que ambos os processos se esforç~ram por re· Sahente·se que essa nova geografia alude ;,quela que prevaleceu ao
combtrur elementos díspar~. e mesmo contraditórios, dos p.11,>anls· longo do século XIX. nas vésperas da conqu1<ta colonial e da partilha
mos afncanos. do pietismo ambiente, e at~ das sociedades ~ecret:ls e Na época, cada espaço económico fazia pane de uma vasta unidade
das pr.iliws d.i geumancia. regional e multinacional. mais ou menos coerente, no seio da qual o
poder e o comércio se desenvolviam frequentemente em paralelo.
Essas unidades regionais e muld~tnlcas nao se caracterizavam por
O longínquo e a longa distância fronleiras est:\vels e precisas ou ainda por ílguras nítidas da sabera
nla, mas por uma gama complexa de cores verticais, eixos lateral'i e
Retomemos o endurecimento da pressão monetária e os seus efeitos redes frequentemente Imbricadas entre si dt' acordo com o princfplo
de rev1Vlficação dos imaginários do longínquo e das pr.lidcas da longa da lntercalaçdo e da mu/11p/1cidode. Na época, qualquer economia era
dlstlncla Esse endurecimento prende-se, em parte, com a evoluç;io subentendida por uma dmãmica dupla de ordem espada) e de ordem
das modalidades de inserção de África na economiil internacional. demográfica. Veja-se o exemplo da bacia ch~diana qut', antenormente
aproximadamente uma década após as independência~ Iniciada no à coloniução, se caract.enuva por três pólos de poder e iníluêncla: a
Início da dk:lda de 1970, essa evolução durou cerca de um quarto de Cirenaica (na extrema periferia do Império Otomano). o Sud5o Egíp
século e estJ longe de acabar. Mesmo não tendo desempenhado Isola· cio, o califado de Sokoto e as c1dades haúças (Sokoto, Katsina. Kano).
damente o papel que os seus crftlcos lhe atribuem geralmente, os pro· Dentro de cada trllngulo, cuja base asscntallil no Equador e os fü1ncos
gramas de a1ustamento estrutural das décadas de 1980 e 1990 repre- orientais e ocldent.ils remetiam para o Sara e o Nilo e cuja ponta avan·
sentar.im uma das viragens mais frisantes. Esses programas em nada çada era o MedltemnPo, paniam caminhos do lúnem e do Wadai que,
permitiram alterar a estrutura da especlalizaçâo internacional das por um lado, pa.:.savam por Murzuq e, por outro. por Koufra conílulndo
su..s econom1Js em benelkio dos palses africanos, mas contnbulram directamente para Tripoli e Benghazi depois de atravessar inúmero<
larpmt'nte para a implementaçlo de novas configurações da con1un- oásis. Esse eixo Norte-Sul era completado por um enorme corredor
tura t'COnóm1a, que já não bastam para descrever ou explicar nem os que ligava a região ao sultanato do Darfour. estabelecendo Ligação com
velhos regimes est:ruturallstas •centro·periferia•. nem as teorias da Kordofan e Bahr cl·Chazal.
dependl'ncla, e ainda menos as da •marginalização•'· A essa disposlçilo de dupla dimensão (vertical e lateral) acrescia
Com efeito, no perfodo entre 1980 e 2000, desenvolveu-se um capl· uma segunda dinllmlca de natureza propriamente Institucional. At6 ao
talismo otoml?~1do - sem efeito de aglomeração, nem pólos gigantescos Início do séc. XIX, as duas lnsdtulções domlnanlcs - através das quais
de crescimento - nos escombros de uma economia rendeira outrora se operava a soclalluçllo das elites, bem como a mobili~ção dos re·
cursos e das Ideia~ - consistiam na zaw1yo, por um lado, e na zarlba,
1 "-1..i.to, .........l ..... d• l>OMSHrp ..... Cloào/Shodow<.Uol.....il)'of C.l,rom~ p,.... por outro. Essas duas instituições muito originais tinham por função,
lleriwWy ZOOI
entre outras, regular o comércio car.wanlsta transnacional, cimentar economia do descno, dominada pelo comércio de írutos e cereais, o
as allanÇa!> comerciais, polltlcas e religiosas, negociar a proximidade contraio dos oásis, a técnica dos ralds e a con•m1u1çâo de entrepostos.
com os vi71nhos (caso dos Bideyat e dos Toubous. por e><emplo) e os Além do m:us, o sistema de circulação e as fronteiras em movimento,
conO.tos ent re diversas facções e, CilSO necessário, liderar a guerra que se desloçam constantemente em função das oporrunidades dt' ex·
atrilvés de uma séne de 1mplantaçõe< íort1ílcadas, havendo assim no- ploração, tamMm nlo representam qualquer novidade.
madismo e metropolizaç-.lo. A terct'1r.i dmãm1ca combinava guerra, Anteriormente à colonização, guerreiros. comerciantes e morab1to~
mobilidade e comércio porque. neste caso, a guerra e o comércio eram podiam partir de Koufra e atravessar alegremente o maciço do Tibe~u
concomitantes com a prática do Islamismo. Não exbtia comércio sem a e ocupar a capl1<1I do Wadal, Abéché. No eixo Darfour-Kordoían-Bahr
capacidade de criar alianças transversais, alargar e investir pontos no- el-Ghazal seviciavam o~ nubianos arabizados da região de Dongola,
dais num csp:iço permanentemente octivo. Do mesmo modo. a própria bem como os )o/loba. Lucrando com as expedições turco-egípcias d.i
guerra era sempre uma guerra de movimento - nunca local. sempre déC<1da de 1840, os ultimos abriram a fronteira económlca do Sul do
transnacional As instituições respoM:lve1s pela regulaç3o da guerra e Darfour; das montanhJs Nuba, do Nilo ALul <llé à~ provindas da Etló·
do com~rc10 eram. ahás, geradas pela confraria dos Sanuss1 A~ carava- pia. Mais 1mportmte ainda, alargaram os seuç tentáculos até ao equa
nas alcanÇ3V3m enormes d1stânci<1s e fomcnta\13m os diferentes ciclos dor; Impuseram 3 sua presença nas grandes planícies que se estendem
comerciais (ciclo~ dos cerea1\ e das l.'imaras, ddo do gado, ciclo do desde o Nilo, p.ira oe~te e para sul. até ao Congo "à actual Republica
nurlim e do< escravos e, actualmente, ciclo do petróleo e assim suces- Centro-Africana (RCA) onde se d1stingu1rão no comércio dos escr-dvos
sivamente). Se a maioria dos estabelecimentos comercldi~ de Tripoli, e do marfim e onde estabelecerão fortificações (zarlba) no seio de po
e posteriormente de Benghaii, pcrt..-ncia a comerciantes judeus italia· • vos nilóticos, tais como os Dlnka, os Nuer; os Azande (acrual Sudão), o~
nos e o maltescs, os intermediários. por sua vez. eram <\rJbes mejabra Banda (actual RCA), os Bongo e Sara (actual República do Chade). Os
CZUWJ)'a. }a/loba encontram·se mal~ a leste, no Darfour, no Kanem e no Bornou.
Aqui o drama da colonh:açào não consistiu na divisão arbitraria de Hoje em dia, a nova fronteira - pelo menos, nessa reglão-éo petróleo.
entidades outrora reunidas - a balcanliação Incessantemente invoca- Noutros pontos, são outros recursos: madeira, diamantes ou cobalto.
da peld vulgatll afro-nacionalisu Inversamente, consistiu na vontade A exploração desses recursos deu o rigem a novos ciclos de extracção e
de ret<llhar os pseudo· Estados partindo daquilo que consutula, runda- predação. Uma parte consideravel da punção concretiza-se atrav@s da
mentalmente, umil federação de red#S, um espaço mulrmac1onal, que, guerra ou de conflitos intermináveis de fraca mtens1dade. A extrema
em vn de composto por •povos• ou «nações• enquanto t.lls, era com· íluldez e volalllldade dessa nova fronteira da punção, da extracção e
posto por red~. Consistiu na vontade de fücar fronte1r;1s estntaç para da predação que confere aos conflitos africanos os seus significados
aquilo que era, estruturalmente, um espaço de circulação e de regateio, Internacionais. t nesse contexto que os enclaves mineiros, petrollferos
ílexlvel, de geometria variável ou hallêutlcos se rcve~tlram de uma lmportàncla primordial. lndepen•
Historicamente, os verdadeiros Impulsos do poder n.1 regl:to estru· dent emente de serem marítimas ou terrestres, as economias dos en·
turaram·se. desde sempre, graças a um ciclo duplo: o do comércio e claves são de natureza ext ractiva e, ou se encontram desligadas do rcs·
o da predaçlo. Comércio e predaçâo foram constantemente suben· to do território nacional, ou apenas lhe estão Interligadas por melo de
tendidos pela poss1bibdade da guerra, de preferência sob a fonna de redes ténues; o que~ designadamente o aso da exploração petrollfera
ralds. As lut;as de poder e os conílltos a respeito da captação, controlo no mar. Em contrapan:lda, essas economias artlculam-sedirectamente
e partilha de recursos pautaram-se sempre por linhas translocals por com as redes de comércio Internacional. Nos casos em que não fomcn·
definição O íacto de que essas linhas remetem para as confrarias:, clãs ram as lógicas de guerra. os próprios enclaves tendem a constituir es·
e linhagens é Irrelevante, a sua formaçao obedeceu sempre ao que paços disputados. Ocasionalmente controlados por multinacionais às
poderia de~ignar-se por /6g1ca das anuas movediças. Além disso, não quais o Estado central subcontrata - ou delega, praticamente - a sua
tendo transformado essas lógicas. a colonluição t entara utllld-las em soberania, por vezes em conluio com formações armadas dissidentes.
seu próprio beneficio, com os resultados catastróficos que são do conhe· os enclaves apresentam uma economia que simboliza a osmose entre a
cimento geral. O íacto de que o poder se estrutura e se desorganlia actlvldade extracllva, a actlvldade predadora e guerreira e a actMdade
devido aos ciclos predatórios não é novidade. Assim se passou com a mercantil.
Outro aspecto da transnadonallzação das economias ao longo do úl- da organização da morte em massa. A gestão da mobilidade das pessoas,
timo qu:>rtel do séc. XX é a emergência de zonas «francas» ou ccinzcn- e mesmo dos grupos, é por vezes assegurada por furlsdições ou forma
tas10 ou de corredores que, entre outros. se caracrerlzam por abrigara ções armadas excerlores ao Estado. Essa própria gestão é indissociável
exploração intensiva de territórios ncos e de fomentar a circulapo e do controlo dos corpos que se submetem ao trabalho nas explorações
o escoamento de recursos produzidos nos contextos de militarização que aliam mercantlllsmo e militarismo, que se haurem para servir de
latente. Essas zonas «cinzentas» ou «francas» funcionam à imagem mão·de·obra em inúmeros mercados militares, onde se induz o êxodo
das capitanias ou concessões. São const1tuldas por territ6rios sem massivo, ou que se imobilizam em espaços de cxcepção à sernelnança
herdeiros. ou parques e reservas naturais, autênticos extra-territórios dos campos e outras o-zonas de segurança»; que se incapacitam fisica-
adminlstr.ldos sob diversos regimes 1ndirectos. explorados por inicia- mente através de massacres. Às técnicas de policiamento e de disciplina
tivas privadas que dispõem frequentemente de força militar. De entre ualfzadas sob o período autoritário para assegurar o controlo dos 111·
todas as consequências resultantes desse processo de atomização da divlduos; à escolna entre obediência e desobediência que caracteriza·
economia de mercado, duas em especial desempenharam um papel va o modelo de comando colonial e do potentado pós·colonfal sucede,
c:rudal na form:ição dos imaginários do poHtlc:o enquanto relação bela.z, em condições extremas. uma alll.!rnatlva mais trágica: a escolha entre
jogo de azar e confronto mortal. Por um lado, doravante associam-se a decadência e, a sobrevivt1nc:la e a morte lenta ou diferida.
e mterhgam-se duas formas da v1olência. A primeira é a violência de Doravante. o cerne do exercfcio de um poder mais fragmentado e
mercado que resulta de lutas pelo controlo e da pnvatização das novas rnmíflcado do que nunca reside, em grande parte, na posslbtlfdade de
fronrelras da extracção, da predação e da punção. A segunda é a vlolên· produção e reprodução da vida. Essa nova forma de poder, baseada
eia social que se tomou incontrolável devido à perda do seu monopólfo na multiplicação das situações extremas ou de vulnerabilidade, ape-
pefo poder público. Um exemplo da Violência de mercado é o endure- nas vlSa os corpos e a vida para controlar melhor o fluxo dos recur·
cimento da pressão monetária e o enfraquecimento generalizado da sos flutuantes. Mas rorno a vida se converteu, além do passado, numa
liquidez e a sua posterior concentração progressiva em determinadas colónia de poderes Imediatos, os seus termos não são exclusivamente
redes, cujas condições de acesso se tomaram cada vez mais draconi- econ6mícos. Logo, importa analisar. por instantes, o significado desse
anas. Facto que provocou a redução severa do número de indivíduos trabalho de destruição, do qual uma parte considerável reslcle no dls·
capazes de transmitir dividas a outros. A natureza da própria dívida pêndio de ln contáveis vidas humanas. Na sua era. Georges Bata1lle ob-
tende a mudar, pelo que a ~divida de protecção~ (que Inclui o dever de servava que esse tipo de dispêndio questiona o princípio clássico de
allmen.ar) se converte no derradeiro significante da~ relações de parentesco utilidade. Baseando-se especificamente nos.sacriflcios e nas guerras
(reais ou fictícias) ou simplesmente das relações sociais. Ma is do que aztecas, debruçou-se sobre aquilo que designou por «preço da vida• na
antes. o dinheiro transformou-se numa força de separação dos lndl· sua relação com o «Consumo», estabelecendo a exi.s tênda de uma for-
vlduos e no objecto de conflitos acesos. Surge uma nova economia das mação do poder. na qual a preocupação de sac:rificar e imolar o maior
pessoas assente na mercantillzação das relações que, até então, não número constitui. em si, uma forma de «produção». Nessa base, os
eram consideradas merc:adoria. pelo menos pardalmente. O vínculo sacrifícios humanos explicavam -se assim pela convicção de que, para
baseado nas coisas e nos bens clmencou-se a par da Ideia segundo a continuar a brilhar; o sol deveria alunentar-se do coração e do sangue
qual tudo pode ser vendido e comprado. do maior número de pessoas. designadamente de prisioneiros. Assim
Face às restrições Inerentes a uma redução drástica da circulação sendo, a guerra advinha da necessidade de assegurar a reprodução do
fundiária. um facto fulcral do último quartel do séc. XX é a emergência ciclo solar; não estando inicialmente associada a qualquer aspiração
de práticas que consistem em Ir ganhar dinheiro para longe. As no- de conquista. O seu significado central era possibilitar o acto de con·
vas dinãmlcas de aquisição de proveitos. ocasionadas pela escassez de sumo, evitando assim o risco de ver o sol escurecer - e apagar a vida.
dmhelro, suscitaram uma revivificação sem Igual nos imaginários do Para esse povo, os sticrlflcíos humanos permitiam restituir ao mundo
longlnquo e da longa distãnc1a Por um lado, essa revivificação traduziu· sagrado aquilo que a uallzação servil degradara e profanara. Para Ba·
-se num crescimento Inédito das capacidades de mobillda.de extensiva taille, essa forma de destruição - ou ainda, de consumo violento e sem
dos agentes privados e, por outro, em tentativas violentas de lmoblUza- proveito - constltulaa melhor forma de negar a relação utllltárla entre
ç.ão e fixação espacial de categorias Integrais das populações e mesmo o homem e a coisa.
No caso sobre o qual nos debruçamos. em muitos aspectos. os mas- da gene;iloglB. Com eíelto, os bços de sangue permitem fundar a dis-
sacres e a destruição das vadas humanas íazem parte de um principio tinção entre os «autóctones• e os •alógenos•. os •natos• (origln.inos)
de negação relativamente semelhante. Todavia. não é certo que t"Sses e os •estrangelroS». Essa produção 1dentit..iria permitiu o re.stabelect ·
desperdícios sangrentos contribuam para a produção de coisas sagra- menta dos antigos reinos e cheíarias. o nascimento de novos gru ·
das - função que Batallle atribui ao sacnflcio em geral. Em contrapar- pos étnicos, tanto pela separação em relação aos antigos quanto por
tida, a ideia de um mi migo. um corpo estranho que é necessário expul· amalgamaç!lo. Também originou conílttos violentos cimentados por
:;ar ou erradicar, é originariamente subJatente a esses despcrdlclos. Na inúmeras dcdoetções popul:aclonols. Por ílm, fomentou os 1rreden
medida cm que a relaçilo com o inimigo, anti parente por excel~ncia. é tismos, dc~lgnadamente nos países nos quais as mmorias se senrlam
formulada através da luta entre espécies diferentes, é possível afirmar excluídas dos benefícios materiais do poder.
que tal lógica da inomm1de é uma forma de •política total•. Ent.30. o Por conseguinte, surgiram duas pólis e dois tipos de espaços cívicos
complexo de guerra (que Inclui a punç.lo, a extracção e a predaç-.lo) nas formas complexas de entre1'1çamento: por um lado, a cidade ln•
engloba o con1unto das actlvldades que Bauille descreve como com- era muros (local das origens e dos costumes. cujas marcas se podem
ponentes do dispêndio, trat.indo-se de tud.u as formas consideradas levar caso necessário, nessas de~locações para lugares ionginquos) e.
«1mprodu11vas• que, por i~so, não são Út('I~ pnr:i a produção a curto por outro, a c;ldnde extra muros (possibilitada pelJ dispersJo e pela
ou longo prazo: o luxo, o luto, o culto. os espectáculos, as aLtlvidJdes Imersão no mundo). O papel emblemático desempi-nhado pelos mi ·
sexuais perversas. o sofrimento e a crueldade, os suplícios parcfals. as grantes e pelas diásporas resulta do facto de que cada pólls dispõe
danças orgiacas, as cenas lúbricas, os prazeres fulgurantes, a satisfa- ;agora do seu duplo ou ainda do seu -alhures•. De resto, o processo
ÇilO v1olen1a da cópula, em ~uma. a ve1culaçiio de exaltação propicia â duplo d~ rransnaclonalização das sociedades ;aírlcanas e o regresso .\s
excreç~o. Enquanto corpo estranho ou •veneno•, o inimigo está •ubiu· ongc~. a par da mercantllliação acresctda do trabalho consecutiva
gado à pulsJo excrementiclil: deve ser expulso. à semelhança de uma ao aumento das capacidades de mobilidade extens1V3 vão reacendl'r
coisa abjeeta, com a qual urge romper brutalmente. Nessas círcunstân· os conílltos tent.rados na relação enrre comunidade, procedi!ncl:i e
das, a vaolêncfa é susceptlvel de se assemelhar à defecação.Maça lógi· propriedade. A dispersão e a debandada Impostas pelas necessidades
Cil da defecação não exclui outras dinâmlcaç, como acontece com essa de aquisição de proveitos em lugares longínquos não aboliram cerra·
outra forma de violência que visa ingurgit.ar e Incorporar o Inimigo mente as caracteristicas antigas da comunidade que, em muitos casos,
morto ou partes do seu corpo. O objectivo dessa lógica da manduação continuou a ser esse território de origem, concreto e geograficamente
reside na captação da condição viril da vitima e da sua capacidade ger· situado, do qual os mdivfduos se apropriam. deíendem e tentam prole·
mmauva Tanto a ló&lca da defecação quanto a da manducação exigem ger dos intrusos e daqueles que não fazem parte do mesmo. É também
a violaçlo das proibições e dos tabus - uma forma de proíanação. uma ílcç:lo pela qual alguém se predispõe a matar e a morrer. caso
Pelo facto de assentarem maioritariamente nos valores da flmerãn· necessário. Todavia. surgiram inOexões consideráveis na relação entre
CIJ cm oposição aos do sedentarismo. as nov;is dinâmicas de nqulslçào aquilo que pertence a mais do que um, a muitos ou a todos (e que é
dos proveitos suscitaram uma alteração profunda das figuras da pro· compartilhável pela dívida de doação Inerente :'I procedência da me<-
cedência. A violência social tende a cristallur-se em tomo de questões ma comunidade de origem) e aquilo que, sendo estritamente privado,
tornadas cruciais como a constituição das Identidades, as modalidades está ~t>rvado a um usufruto estritamente individual
da cidadania, a gestão da mobllid<1de das pessoas. a circulação e a Considerando que o oootrolo das consequências da transnaoon.;ihu·
captação dos recursos Ouruantes. Essas novas formas da luta social e ção não tmphca unicamente o controlo e o domínio das distâncias, mas
polltica privilegiam trés temáticas: a da comunidade de origem (terra também a arte de multipllcar as procedências, uma cadeia de Inter·
e autoctonia), a da raça e a da religião e, pelo menos, duas concepções mediários, urdidores de llgações com o mundo externo, agentes e es
da cidadania acabaram por opor-se e. por vezes, a complementar-se. peclallstas do negócio dos obicctos, das narrativas e das identidades
Por um lado, prevalece a ideia oficial segundo a qual é cldad3o de um viram os seus estatutos serem sobrevalonz;ados Essa sobrevaloriza·
pais aquele a quem o Estado reconhece o devido atributo. Por outro, ção beneOdou do afastamento crescente entre as fronteiras oAclais
predomina a concepção de que o principio de cidadania decorTe prln· e as fronteiras reais, que foi sucedido pelo a celeramento das migra·
dpalmente dos laços de sangue (reais ou alegados). do nascimento e ções e também pela consdtulçjo de redes e llgações que, pelo facto
de ultnpassarem os âmbitos territoriais dos Estados pó~·colonlals. se cstat.ils. Ao longo do último quartel do séc. XX. a lnformalização da
especlaltz.lram na mobilização dos recursos de longa distancia. Num ttconomia e a dispersão do poder do Estado desenvolviam-se parale-
rpgisro diferente, a~ posses monetárias (ou a sua Impossibilidade) lamente. Muito frequentemente, reforçavam-se mutuamente. Desde
deslocar.1m profunddmente os âmbitos de formação da 1ndividuali· a década de 1980. os mecan1~mos cullUr.11s ~ institucionais que pos·
dade e os sistema~ de subJectiVldade. Por um lado. onde predomina a s1blhldvam d sub1ugação. e através dos quais a subordinação se con-
escasse~ a 1n~ns1dade das nece:ssidades e a imposs1bllidadc de satis· cret17..iva. tinham alcançado os seus limite, , Sob a capa da ordem e
f.tt~·las foram tais que ocorreu uma ruptura na forma como os suJeltos o h•dtro de Estado, decorria um prote\~o ~ubterrãneo de diSpersão
sociais YlYCnciam o dese10. a vontade e a saciedade, 1mper.1ndo agora gradual do poder. Não há dúvida dP que pelo facto de o Estado se ter
a pen:epçao segundo a qual tanto quanto o dinheiro. o po<.ler e d vida consol1dacJo ao longo das déc;odas anteriores, a admlni~vação dinda
também se regem pela lei do acaso. Constituem-se enormes fortunas dispunh.t de uma boa parte dos seus recursos coercivoç. Contudo, a~
de um dia para o outro ~em que os factore~ c.iusals se)Jm, de alguma condições materiais de exercício do poder e da soberania tinham-se
forma, Ylsivels. Outras fortunas volatillzam-se ao mesmo ritmo, sem deteriorado gradualmente, .J par da acentuaç<lo das constrfções lneren·
causa aparente. Como nada~ certo e tudo é possível. arrisca-se o donhc1 tes .to reembolso da divida e à aplicaçilo de polltlcas de aiustamcnto
ro. bem como o corpo. o poder e a vida. Tanto o tempo quanto a vida. c'trutui-al Sem o abrandamento da crls!! das economias. o desfibra·
e a morte, se resumem a um imenso jogo de azar. Em contrapartida. mento manteve-se durante a década de 1990 e a des;ogrcgação das
entre as cawgorlas sociais capazes de acumular facilmente fortunas. estrutu1 as estatais ganha contornos por vezes Inesperados. No cerne
são as relações entre o desejo e os seus obiectos que se alter;iram. a do processo de informalização d;iç l'struturas estatais está a ameaça
preocup;ição sensualtsl<I e hedonista do consumo. a posse Idólatra e a de 1nsolll3b1lldade geral que, ao longo do ultimo quartel do século,
fruição ostenl<ltiva dos bens materiais tomam--;e o próprio palco dos caracterizou a vida econômica e matl.'ri~I no seu todo. Afectando tanto
novos estilo~ de vida. o Estado qu01nto a sociedade, o enfraquecimento da llquidez suscitou
Todavia, em ambo~ os casos, os conteúdos culturais do pr~sso de uma alteração consideravel dos smemas de troca e de equíHbrio. que
diferenctição foram os mesmos, designadamente, por um lado, uma estavam na base da socializ.aç.'io estatal dur.rntc o período autontãrio .
consciência profunda da volatilidade e da fnvohdade do dinheiro e da A medida que. a nlvel estatal. a prauca dos montantes em diVida orça-
fortuna, por outro, uma concepção instan~nea do tempo e do valor- o mentais se tomav;o regr.1. a cadela desses montantes em divida alcan
tempo breve da vida. Mesmo nos casos em que as estratégias adopta· çava tamb~m o patamar da sociedade.
das pelos agentes Individuais variaram enc:re sicuações. a concepção O~ agentes sociais reagiram quer com a Intensificação das pr.hlcas
do tempo e do valor como conteúdos no, e que se esgotam no. Instante, de contorno e desvio, quer com o recurso a diversas formas de desobc·
e a do dinheiro como volátil e frlvolo conc:rlbuíram fortemente para a diêncla flsal. quer com a aplicação de práticas de falsificação e de·
transformaç!lo dos Imaginários tanto da riqueza quanto do desprovi· çcrçilo. Paralelamente, a dlstrlbulç3o dos uctivos do Estado através do
mento e do podPr Tanto o poder quanto a fortuna. a frulç.ão, e a miséria processo de prlll3t.1zação resultou na cessão de urna grande parte do
da própria morte foram vividos Inicialmente segundo critérios mate ri· património público a operadores provados, sendo que alguns já eram
alistas. Dai o aparecimento de subjectividades no núcleo das quais se detentores do poder públíco. A simultaneidade de ambos os processos
encontra a necessidade de tangibilidade, palp:ibilidade e tactilidade. (por um lado. a insolvabilidade geral e, por outro, a alteração dos slste
Em suma. deparamo-nos com essas caracteristlcas nas formas de ex- mas de apropriação daquilo que, até então, constituía o ob1ecto de urna
pressllo canto da vlol~nd:i qua.n to da fruição, ou ainda na utillução co-propriedade, foi fictícia) acentuou a crise da propriedade. No total,
geral dos prazeres os processos sumaTiamente abordados anteriormente transferlr.1m os
parâmetros da luta pela subsistência. A distinção entre as lutas pela
subsistência propriamente díta e as lutas pela simples sobrevívéncia
lnformalização da economia e difracção do político dissipou-se. Em ambos os casos. a vida quotidiana definiu-se cada vez
mais com base no paradigma d:i ameaça, do perigo e da incerteza. Pouco
Debrucemo-nos agora sobre os efeitos da concomlt.\ncla da de- a pouco, começou a esboçar-se um mundo social no qual a desconfi-
mocratlz..iç.lo e da lnformall:taçao da economia e das estruturas ança em relação a todos e a suspeit3 se manifestam paralelamente à
necessid.ide de protecç3o contra os inimigos cada vez mais lnvlslvels. Eclodirão nov-.as arenas do poder. à medida que os Imperativos de so
Essa sensibilidade social íoi reforçada. em muitos pontos. pela predi· brevivêncf.a acentuarem o processo de autonomlzaçJo das esferas dJ
caçllo d.os novas igre1as pentecostistas cu1:i mensagem fulcral consiste vida social e Individual. Mais do que antes. as pr.h1cas da lnformah:a-
na lut.J generahzada contra os dem6n10$. Gradualmente, reforçou-se ção não se limitarão unicamente aos aspectos económicos e às rst1 até·
a 1dt·la da separação em relação a outrem, um mobvo de preocupação. glas de sobrevivência material A pouco e pouco. tornar-se-ão formas
Como a produção da vid.i se efect1.1a agora num contexto generall7.ado privilegiadas da lmaginaçlio cultural e política
de l11scgur;1nça - e, em casos extremos. com a p roximidade da morte As consequências desse novo estado cultural para a vida flsica e il
- as lutas sociais assemelham-se cada vet. mais à actlvidudc guerreira constituição dos movimentos sociais, bem como a formação de :\11nn ·
propriamente d11.a Em contrapartlda, a guerra enquanto ~1gnificante ças e colfgações serão consideráveis. Por um lado, o tempo breve mar·
pnmonhal da condut.1 da vida quoud1dna tornou-se, por exrenslo, oa cado pela Improvisação, os ilCordos pontuais e informais. os 1mperau·
metifora central da luta polltica. pelo que a luta pelo poder se mani· vos de conquista Imediata do poder ou a necessidade de preservaçao
festa pnmeiramente como o poder de provocar a morte; e a resistência a qualqut>r preço <erão pnv1legiados. em deirtmento dos pro1t>cto' ,.
ao poder t.imbém tomd .1gora por objecto e por ponto de sustentação longo prazo. Resultará um.i lnswbilidade cultural de naturei.i estru·
o vivo"" \ua general!d,1de. tural Urdlr·se-ão e dissolver-se-ao alianças con~t.internente. O c.irácwr
A dfçpersão do poder do Estado ganhara formas paradox.11s. Por um provisório e constantemenl<' renegociável dos contratos e acordo!
lado, o enfraquecimento dns capacidades odmloistrativas do Estado acentuará a reversibilidade fundamental dos processos. Noutro plano.
acompanhar.! a privauzaçâo de algumas das suas funções de regalia. a oposição fnstltucionah:tar ·se á fracamente. Actuará ao sabor dos
Por outro lado, no terreno, a compensação da desregulação t.raduzlr- acontecimentos. oscilando entre compromissos e cedências. no meio
·Se·.t por um movimento de deslnstituclonallzação que umbém é de reviravoltas bruscas de situações, da Ouldez e do car.lcter aberto
proplci3 à generalliaçào das práticas informais. Essa informalidade das coisas. A Imbricação das lógicas segmen~rlas e das l6g1cas ht
ser.i perceptlvel não só no domlnlo económico, mas também no seio erárqulca<, das dinâmicas profanas e das do invlslvel, a divergência
do próprio Estado e da admi nistração e em muitos sectores da vida dos mtere~ses, a muklpllcldade das obediências e das relações de .iu·
social e cultural que, de .tlguma forma, se prendem com a luta pela so- torldade entravarão qualquer coalescência e crista fiz.ação durável dos
brevivência. Ora a generalização das prátlClls Informais susclt.ará uma movimentos sociais. Dai uma Interminável d1vlslo em parecia,; dos
prohft-ração das instJnclas de produçJo das normas e uma desmul· connJtos, o vazio de legíllmaçlo, e o carácter confinado, fragment.ino
ríplicação médtta das poss1b1hdades de contornar as leis e as regras. e dsslparo das lutas organizadas. Os facto~ estruturan~ analisa ·
mesmo no momento em que as capacidades de sanção detld3s pelos dos antes. além de influenciarem os resultados da democratização
poderes públicos e outras autondades estarao mais enfraquecidas. A em ÁfrlCD, enquadraram também a transformação dos imaginários do
partir dai, as condutas que visam lnílectlr as normas - para aumen· polltico e dos modelos do poder.
t.<11 as rendas e benl.'ílclar ao máximo da lnsuflcle!ncia das Instituições Dur;1nto o período autorlt6rio. inúmeros regimes políticos tinham
formais - prevalecerão tanto com os agentes públicos quanto com os cultivado a noção segundo a qual, nas sociedades marcadas pelas
pnvado,;. diferenças culturais e a diversidade étnica. o fundamento da comu
Muluphcidade da~ 1dent1dades, das obediências. das autoridades e nidade poHtlca devena Incidir, antes de mais. sob~ a ameaça dlrect.i
das jurisdições. acenruaç:lo da mobilidade e d.i diferenciação e velocl· ou lndlrecta à Integridade ffslca dos Indivíduos Dai a necessidade de
dade na circulação das Ideias, a reapropriação das marcas e a recon- se protegerem pe.rmanentemente contra ela, nJo contestando os seus
vcrs:lo dos slmbolos, volatilidade do próprio tempo e da duração, ca· fundamentos. mas medindo eradualmente os riscos que tal contesta·
pacidades acrescidas dr permutabilidade dos objectos e de conversão ção acarretaria para a sua sobrevivência. Por conseguinte, proteger-se
das coisas na sua anútcse, funcionalidade .1cresclda das pr.1ticas de contra o poder conslstla em calcular permanentemente o risco ao qual
Improvisação: tudo se ut11lurá para alcançar rodos os tipos de flnali· as suas próprias palavras e acções se poderiam expor. O prisma sob o
dades e tudo constituirá objecto de negociação e regateio. Em resposta qual o sujeito encarava a vida residia então no dese10 de evitar a morte
ao fracc1onamento do poder público, ecoarão a constituição, a multi- a qualquer custo. Era esse dese10 que o Estado instrumentalizava, nlo
plicaçllo e a disseminação de fulcros conflituais no seio da sociedade. para llbert<lr o sujeito da angústia que constltula o seu corolário, mas
para agravar a Incerteza. NC!SS3 óptlcn, a instabilidade convertia-se Por um lado, a dinâmica de desinslitucionali7.ação e de informaliza-
num recurso nas mãos do poder, como dtonteceu com as experiências çllo acderou·:.e. Por outro, nJste uma nova divisão social que sepa-
de democratizaçJo. ra aqueles que esti\o protegidos (porque estão armados ou porque
As elttes do poder desde lilS mdcpend~ncias res1stir:1m habilmente bencllc1am dtl protecçJo daqueles que estão armados) daqueles que
à pressão das forças da oposl~o e puderam Impor unilateralmente nJo est.io (e que se encontram e1<postos). Por fim. mais do que pelo
os lim1tcs à abertura polltica Determinando apenas os contornos. a passJdo, as lut.al> pollllcas resolver:im-se tendencialmente pela força,
ruitureza e o conteúdo, foram as unlcas a decretar as regras do jogo. pelo que a clrculaç.io das armas na sociedade se converteu num dos
Essas regras sacnficam os aspectos processuais m:us element;orK da principais foctor<>s de divislo e num elemento central nas dinâmicas
concorrênc1a No entanto, permitem mdnter controlo das pnndpa1s da ms<>gur.inça, d.i protccç.lo da vida e do ac:esso à propriedade.
alavancas do Est.ldo e da economia e garJntem a sua continuidade no PoMeriorml'nte, foi nec:.. ~~áno d1v1dir a oposição através do agra-
poder. No pah, amdd persistem .u-urdos fundamentais entre o poder vamento d.is ten,õe' élmc.is e operando rivalidades no seu seio. Por
e aqueles que se opõem, coex.lsondo simultaneamente situações de vezes. nas reelõe~ largamente adquindas à oposição. suscnavam·se
conflito cu10:. períodos de latência alternam com periodos de mani- conílitos locôlis entre os illUtóctones e os alógenos, entre sedentários e
festação violenta e aguda Na maioria dos casos, a 1mpos1ção unilateral nómadas, pesCddores e agricultores. para 1ustlficar melhora repressão
das regras do 1ogo polltlco caractenzou·se por duas fases. Ourante a através do armamento das m1llcias. De seguida, apostou-se na duração
primeira rase. tratou-se de conter o impulso protestatório, caso ne- para assel{urar a deterioração da s1tuaç.io, enfraquecer os protestos,
cessário com uma reprcss.lo ora dissi mulada, ora expediâva, brutal e desgastar os recu1>0• internos e reunir as condições de esgotamento
imoderada (encarceramentos, fuzilamentos, licenciamento dos opo- das massas. A dmSmlca da exacerb;içSo dos conflitos étnicos e das d ife-
nentes. instauração de medidas de urgência. censura de imprensa, renças rl'ligiosaç e c:ulturais t<lmbêm permitiu d1V1dir os intelectuais
diversas formas de coc1µ0 económlc.a). Para facilitar a repressão, os conhn.indo·os;, delesa dos 1nterf.'sses d.JS suas regiões e comunidades
regimes no poder ten taram despolitizar os protestos sociais. conferir de origem Depois de ronclulda e~«a ema«eulação - ou no decurso do
novos contornos ~tnicos ao confronto e atribuir aos movimentos de seu desenvolvimento - foi necess~rlo fazer concessões, designada·
rua o carácter de simples motins. Ao longo dessa fase repressiva, es· mente através da implcmenta~o de reformas acessórias q_ue deixa-
ses regimes alargaram o papel do exército às missões de manutenção vam Ilesa a estrutura da supremacia, ou através do estabelecimento de
da ordem ao controlo dos movimentos das pessoas. Em determinados •governos de união nacional•. De modo geral, essa fase de violência foi
casos, regiões Inteiras foram colocadas sob a égide de uma dupla acompanh:1da. ou sucedida, por um amplo mçvhnento de privatização
administração mllltar e civil. da economia. No total, esses regimes conseguiram afectar as motiva-
No ponto no qual os regimes esrobelecldos se sendram mais ame- ções económicas da sua supremacia: que agora assenta noutras bases
açados, levaram ao extremo a lógica da radlcaliuição, suscitando ou materiais.
apoiando a emergllncl<J de gnng~ ou milrcia,r; controlados quer por Por conseguinte. nesses palses, não çe constatou qualquer alternãn-
cúmplices na sombrd, quer por rcsponsável.s militares ou pollticos ckl pacifica. Os segmentos da oposição aderiram ao poder. As formas
que exerciam funções de poder nas est1·uturas formais. Em determi- da sua violência e as modalidades da sua gestão ganharam contor-
nadas situações, a exlstêncta das mllfclas limitava-se ao perlodo de nos inéditos. Por um IJdo, a criminalidade urbana e a pilhagem rural
conflito. Noutras, as millclas ganharam progressivamente autonomia acentuaram -se. Surgiram novas formas de fragmentação territorial de
e converteram-se em auti!ntlcos exércitos, no selo de estruturas de :ionas Inteiras, rurais ou urbanas escapando efectivarnente ao controlo
comando diferentes das dos exércitos habituais. Noutras ainda, as es- do poder publico. Os conílitos fundiários agravaram-se. Por outro lado.
truturas militares formais acobertarnm acovldades Ilegais, pelo que as formas de apropriação violenta dos recursos flutuantes tornaram-se
a multiplicação dos traflcos se desenvolvia paralelamente à pilhagem mais complexas e estabeleceram-se vínculos entre as forças armadas,
dos recursos naturais, à confiscação das propriedades e à repressão a polida e, ocasionalmente, a 1ustiça e os meios da predação. Pontos de
propriamente dita. fixação dos conflitos permitem ocupar permanentemente uma parte
O fraccionamento do monopólio da força e da dlstnbwçào desigual dos dos militares com missões de represdo Interna ou em guerras de
Instrumentos de violência na sociedade susduram três consequências. fraca Intensidade nas fronteir<1s. Essas guerras são então associadas
à extracção de recursos locais, pois, alendenclo à simultaneld,1de exts- No que se i-efere ao primeiro processo, salienta-se que a in«ltuiçào
lenle entre guerras e tráhccx. a maioria encontra interesse msso Quan- militar sofreu cons1deravels 1ransformações ao longo do ultimo quar•
doª' alterações na chefia do Estado não result<tvam de prepotências, tel do séc. XX, em Afnca. Esse penodo co1ncid1u com o fim das pnnc1 ·
eram fruto de revoltas sustentadas a partir do exterior. Quer tratando- pais lutas armadas anllcolonfa1s e o aparecimento, bem como a pos-
-se de uma forma natural (doença) ou criminosa (hom1cidio, ao;sass1- terior extensao de uma nova geraç3o de guerras que apresentam tres
nato), a morte do autocrata, o seu desaparecimento ou a sua fuga - em caracteristkas. Por um lado. visam principalmente M populações c1v1s l'
suma, a sua evicção do poder frequentemente forçada - continuam menos as formações armadas adversas. Por outro. o seu interesse p11v1
a cOMtitulr o ponto nevrálgico do imaginário político nas configura- legiado reside no controlo de recursos cuias mod;ihdades de extracção
ções cultura15 analisadas antes. Essa aspiração de morte está profun- e formas de comcroahzaçào alimentam, em contraparu<la, os coníl1to~
d:amente assoctada ao posrulado da duração subjaa:nte a experiência mortíferos e as praucas de pn:d.-içao. Por hm, com vista a leg11Jma·los.
do poder. Na medi.da em que o poder se desdobra como uma duração os agentes das refendas guerras 13 não recorrem a retonca ant:l·1mpe-
sem fim, o postulado da não-mortalidade só pode ser desmentido pelo rialista ou a qualquer pro1ec.10 de emancipação ou transformação social
faClo derradeiro do as•Jssinato. Dado que a possibilidade de .irrulnar revoluctonâna. como acontl'ceu na< décadas de 1960 e 1970. Apelam d
o poder pela via eleitor.ti quase não existe, s6 o assassinato pode con· categorias morais cuja espcc1lmdJa.le 1es1de n" ~0111ugaçdo de imag111Jri·
lrarlar o principio de contlnuJção indefinida no poder. os utfllt;:irlstas modernos e 1~~fduos das concepções autóctones da vida
- feitiçari.l. riquez.a e devoraçJO, doença e loucura
Esse novo ciclo da guerra surge no momento em que as guerras
Militarismo e lumpem-radicalismo sofrem um agravamento das d1ferenoações mtcrnas Devido " cn,,;:
económica, as condições de vida nas casemas degradaram·se. Em mui-
Por ílm, Impõe-se outra configuração cultural: aquela que, segundo tos palses. o empobrecimento acelerado dos homens do exército d<!u
a definição do polltico, confere particular importância à possibilidade origem a violências e perturbaçõe• públicas, sendo que uma das causa~
de que qualquer pessoa possa ser morw por qualquer outra. Essa con- residiu no Incumprimento do pauamento de satã rios. Gradualmente. o
figuração apresent.a três características próprias. Em primeiro lugar. abandono d.Js casemas mulllplu:ou-se. designadamente aquando de
assenta numa pirâmide da destruição da vida, na qual a anterior Insiste diversas operações ditas de preservação da ordem e pilhagens Ol'i'J
nas condições da sua preservação. Em segundo lugar; ao estabelecer nlzadas. De seguida. as p~ucas de extorslo gencrahuram-se, pelo que
uma n!lação de quase igu:aldade entre a capacidade de matar e a pos- a soldadesca n.!io hes1rou em erigir barreiras ao longo das estradas. a
slbllidade de ser morto - igualdade relatlva que só pode ser detida puncionar o habitante e mesmo a orgamur verdadeiros raids contra
pf'l:l posse das armas, ou pela sua falta - essa configuração autoriza a população c1v1I, a fim de açambJrcar as propriedades. Com o fim do
o poHtlco a rraduzlr-se íundamenlitlmcnte quando defron1.ado pela confmamcnto sistemático das torças armada'> nos l'spaços geográficos
morte. Em terceiro lugar. ao elevar a violi!ncla a formas ora p3r6dlcas, circunscritos, e com a rnultlplicação dos seus excessos intermitentes
ora ramificadas, ora paroxlstlcas ela acentua o carácter funcional do e regulares cm diversas esferas da vida quotidiana, as tecnologi.is do
terror e do pânico e poss1bil1ta a destruição de qualquer laço ou, de controlo polluco tomaram-se cad:i vez mais 1..ictcls, e mesmo anat6m1
qualquer modo, a tr.Jnsformação de qualquer vínculo soei.li em vin- cas Ao longo desse pcriodo, nos escalões mais gr;iduados do e"er"to.
culo de Inimizade. t esse vinculo de mímlzade que permite normalizar coronéis e generais puderam constituir as suas próprias redes, quan-
a ideia segundo a qual o poder só pode adquirir-se e exercer-se às cus· do não se dedicaram pura e simplesmente ao contrabando, à alDn-
ta.s da vida de outrem. Nesse aspecto, três processos desempimharam dega, à revenda de armas e ao trafico do marflm, de pedras preciosas
uma função determinante. O primeiro corresponde às form:is de dife- ou mesmo de reslduos tóxicos. Paralelamente, opcr.iva-se um coníln;1
renciação no seio das instituições militares ao longo do últlmo quar· mento relattvamente lnflexlvei entre os diferentes corpos de exercito'
tel do séc. XX. O segundo refere-se à alteração da lei de distribuição e as diferentes Instâncias responsáveis pela segurança (brigada presl
das armas na sociedade ao longo do perfodo considerado. O último denclai, forças especializadas, policia, guarda, Informação), quando
prende-se com a emer&l!ncia do militarismo enquanto cultura e a mas- a concorT~ncia entre essas diferentes instãncias n3o resultava numa
cullnldade enquanto ética reprodutiva, sob a expressão pública e vio- dispersão geral, em contrapartida, a lógica da repressão acentuava a
lenta dos haveres viris. lógica da lnformallzaç:ão.
Pelo facto df' ter desempenhado um papel directo na generalização doç paradigmas do podPr. Surgiu tambf>m uma sêrle de dispositivos
da relação belicosa, o segundo processo prende·se com a lel de dlstri· que modificaram as retaçõc~ que os Africanos estabeleciam habitual ·
buição das arma~ nas soc-1ed<1des ronslderadas. Por lei de distribuição mente entre a vida, o poder e a morre
das armas, entenda·se símplesmente a qualidade da relaçclo de poder
estahelecída no ponto em que os diferendos pollt1cos e outra~ formas
de disputas, e todos os tipos de monopólios, podem ser reg\llados com
o rerurso, de uma das partes. à força das armas Essa capacidade de
captura e de reorg:rni"-l~O dos recur;os coercivns propíciou o dl!Sen·
volv1mento de formas lnéd1U1s da luta social Por exemplo, a guerra
não opõe necesS<irlamente os C'Xérctros a ourros ou os Estados sobera·
nos a outros opõe, cada vez mais, formações armadas privadas - que
actuam sob a capa do Eslildo - a Eslóldos sem exércitos verdadeiros Ao
resultarem na vit6ría militar de uma das partes em confluo, as guerras
contemporâneas não foram forçosamente sucedidas pela liberalização
dos regimes Implementados pela força
Eclodnam sobretudo as formações sociais e pohucas que associam
as característic-.as de principados militares. tlrani3S étnicas form3das a
partir de um mlcleo armado e de um conjunto de fanfarras, que exer·
cem um controlo quase absoluto sobre o comércio de longa d1stânc1a e
a extracção dos recu1sos ndtu1-.ils e da íauna. Nos casos em que as d1s·
sidêndas armadas não conquistaram a totalidade do poder estatal, pro-
vocaram cisões terrltorlalS e penhoraram as bolsas que administram
de acordo com o modelo das capitanias, designadamente nos locais
das ja>:1da~ mineiras. AS$lm, a fragmentação dos territórios opera·se
de formas variadas: emergência de feudos regionais controlados por
forç3s distintas com a ocult:aç3o de recursos comercializáveis e ados·
sados aos Estados vizinhos; provfnclas mais ou menos dissidentes
no perlmetro nacional. cinturas de segurança à volta das capitais e
regiões adjacentes, campos de con nnamento de populações clvlS con·
sideradas próximas dos rebelde~. O último proce~so. que se prende
dlrectamenle com a ampliílaAçllu da relação bélica, reside na emergên·
ela de uma cultura do mllltarismo que. tal como se referiu. assenta
numa ética da m;isculinldadc que confere considerável importância à
expressão violenta dos haveres viris.
Todas essas evoluções Indicam que, longe de serem lineares, as tra·
jectórlas da luta social em África s!lo variadas. Não hã dúvida de que
os itinerârios seguidos entre palses apresentam diferenças significati-
vas, mas também comprovam convergências profundas. Melhor, cada
vez mais nos deparamos com um:i conc:itenação de configurações
em cada pais. As formas do polftlco também são variadas. De resto,
as condições materiais de produçilo da vida sofreram lransfonnações
profundas que se desenvolveram paralelamente a alterações decisivas
VI.
Circulação dos mundos:
a experiência africana
A África pós-colonial é uma junção de formas, signos e linguagens
que são a expressão do trabalho de um mundo que tenta existir por
si. No capítulo anterior, tentou esboçar-se as linhas gerais desse lavor,
medir a sua velocidade e sugerir os tipos de relações que, no âmbito
das transformações operadas ao longo do último quartel do séc. XX,
tendem agora a estabelecer-se· entre a violência e a vontade de vida
. que, tal como se mencionou anteriormente, constituía o principal im-
pulso filosófico do projecto de uma comunidade descolonizada. Ainda
não se frisou suficientemente que essas transformações se pautam
por diversas linhas, ora oblíquas, ora paralelas, ora curvas. Na ver-
dade, são linhas frenéticas incessantemente quebradas, cuja direcção
se a ltera constantemente, abrindo caminho para um movimento q ue
produz turbilhão - o acidente e não o acontecimento, os espasmos, a
laminação a partir de baixo, o movimento no local e, em todas as cir-
cunstâncias, a complicação e a equivocidade. Agora, já não se trata de
descrever o movimento de contracção, mas outras alterações de estru-
tura que funcionam de acordo com outras lógicas: a da dilatação, dos
pontos de fuga, das evasões. O presente capítulo analisa precisamente
essa produção de intervalos e de outras formas de montagem da vida.

Recomp9sições sociais profundas


No cerne dessas transformações reside a redefinição dos termos da
soberania dos Estados africanos. Esse primeiro factor de mutação re-
sulta, em parte, da multilaterização da qual as instituições financeiras
internacionais foram os vectores mais visíveis ao longo dos últimos 20
anos e, ainda mais caricaturalmente, da acção dos infindáve is inter-
venientes, cujo estatuto ultrapassa largamente as distinções clássicas
e ntre o público e o privado (organismos não governamentais, agentes
privados ...). Simultaneamente, emergiu um labirinto de redes institu-
cionais no plano local. Todos afirmam pertencer à «sociedade civil»,

Vl. Circulação dos mundos; o .,_Mnc~ ofric•n• .Ss


mas alguns são, na realidade, cripto-estatais. A maioria resulta de uma vezes, sangrentas. De facto, os regimes autoritários pós-coloniajs
imbricação entre redes extra-estatais e outras que constituem um pro- tinham elevado a dupla construção do Estado e da nação a um impera-
longamento informal. Outras ainda são cortinas de fumo dos partidos tivo categórico. Paralelamente, tinham desenvolvido uma concepção
políticos ou das elites urbanas, ou dos satélites locais de organizações da nação assente na afirmação de direitos colectivos que os dirigentes
internacionais. A heterogeneidade das lógicas implementadas pores- opunham deliberadamente aos direitos individuais 1 • Enquanto metá-
ses diferentes agentes explica, em grande parte, o carácter fragmen- fora central do poder e utopia da transformação social, o desenvolvi-
tado das novas formas de montagem da vida que agora prevalece, pelo mento representava o local de realização desses direitos e do bem-es-
menos, no meio urbano. O velho mundo desmorona-se, sem que os tar colectivo 2 • O desenvolvimento passava pela implementação de um
costumes se perenizem automaticamente. conjunto de dispositivos institucionais (partidos e sindicatos únicos,
Também as formas de estratificação social se diversificaram. Na base exército nacional) e o recurso a uma gama de práticas cuja inspiração
da pirâmide, a precariedade e a exclusão afectam cada vez mais as cama- residiria alegadamente nas tradições autóctones do comunitarismo.
das populacionais. Designadamente nas cidades, a pobreza em massa Sendo de inspiração socialista (à imagem do ujama na Tanzânia)
converteu-se num factor estrutural nas dinâmicas da reprodução. No ou capitalista (Costa do Marfim, Camarões ou Quénia), valendo-se
topo, uma camada cada vez menor de propriedades recompõe-se gra- do governo civil ou dos regimes militares, o comunitarismo pós-co-
ças ao controlo que exerce sobre os recursos de longa distância e à sua lonial salientava - apenas verbalmente - na procura do consenso, do
capacidade de mobilizar as socialidades locais e internacionais. Entre equilíbrio regional e étnico, da assimilação recíproca dos diferentes
ambas, uma camada intermédia tenta sobreviver, e mesmo constituir segmentos da elite, da constituição de um mundo comum através do
algum legado, associando recursos tanto da economia formal quanto controlo social e, caso necessário, da coerção. Essas tácticas e disposi-
dos mercados paralelos. Com o agravamento da sua vulnerabilidade tivos visavam evitar as dissensões e a constituição de facções de bases
económica face ao exterior; os agentes privados e os agentes estatais étnicas. Ora, ao salientar as noções de direitos individuais e reacender
africanos foram obrigados a procurar noutra parte novos recursos de os debates sobre a legitimidade da propriedade e a desigualdade, o
rendimento, mesmo num momento em que as rivalidades pelo con- multipartidarismo e o modelo da economia de mercado arruinaram
trolo dos aparelhos se intensificara. No entanto, a transnacionalização essa construção ideológica. Em contrapartida, não resultaram numa
das economias no contexto da mundialização abriu uma larga margem transição imediata para o modelo da democracia liberal, e ainda me-
de autonomia para a iniciativa privada que não hesita em fruí-la. Para- nos para uma reapropriação e traduções locais dos seus próprios nú-
doxalmente, uma das formas de exercício dessa relativa autonomia re- cleos filosóficos (reconhecimento político d9 indivíduo como cidadão
side na capacidade de operar guerras. racional, capaz de proceder por si mesmo a escolhas independentes;
O segundo factor na origem das recomposições sociais do último afirmação da liberdade individual e dos direitos conexos). Um dos
quartel do séc. XX - a guerra - é, em todas as vertentes, a consequência equívocos da democratização nas circunstâncias específicas do capi-
de um imbricamento de diversos processos, de entre os quais, alguns talismo atomizado operado no continente, relança então, a uma escala
são de ordem política. Com efeito, inúmeras guerras resultam de desa- inigualável, disputas sobre a moralidade de exclusão.
cordos de tipo constitucional, na medida em que incidem, em última Na sequência dessas disputas surgiram novos imaginários do Estado
instância, sobre razões de ser da comunidade política e na moralidade e da nação, entre os quais, dois são meritórios de especial atenção. O
dos seus sistemas de repartição dos encargos, dos poderes, dos bens primeiro tenta resolver a contradição aparente entre cidadania e iden-
e dos privilégios. Esses desacordos prendem-se com as condições de tidade ao preconizar uma filosofia de refundação do Estado e da nação
exercício da cidadania, num contexto de rarefacção das vantagens dis- cujo princípio de base é o reconhecimento constitucional das iden-
tribuídas pelo Estado e do alargamento das possibilidades de reclamá- tidades, culturas e tradições distintas. Essa tradição de pensamento
-las abertamente (democratização), e mesmo de monopolizá-las com nega a existência de indivíduos em África. Na sua óptica, apenas
recurso à força. Cristalizam-se agora à volta do tríptico de identidade, existem comunidades, existindo unicamente individualidade de grupo. O
propriedade e cidadania e visam a refundação do Estado-nação.
De resto, os argumentos, que após as independências, serviam para 1. Ler; a título de exemplo. Julius Nyerere, Freedom and Socialism, 1968; e Essoys on Soc/alism.
legitimar o projecto do Estado-nação são objecto de contestações, por 1977.
2. julius Nyerere, Freedom and Development, 1974.

VI. Circ.vlaçlo dos mundos; ~ experiência 1friuna 1.67


grupo seria a manifestação por excelência da individualidade de cada Desse comércio emergem formações culturais híbridas e em vias de
um dos seus membros. Nesse âmbito, refundar o Estado e a nação crioulização acelerada, tal como acontece, em especial, com a África
consistiria numa arte subtil de organizar o acesso - caso necessário, muçulmana Sudo-Saheliana, onde as migrações e o comércio de longa
de modo rotativo - de cada grupo ou comunidade às vantagens e privilé- distância acompanham a propagação das identidades e uma utiliza-
gios decorrentes do controlo do aparelho estatal. O acesso a essas ção habilidosa das tecnologias modernas7 e que é também o caso dos
vantagens concretizar-se-ia através da afirmação diferencial das iden- movimentos religiosos pentecostais nos países cristãos. Para muitos
tidades, culturas e tradições de cada grupo, e não com base na igual africanos, a relação com a soberania divina constitui agora a principal
dignidade de todos os seres humanos, enqua nto cidadãos dotados de fonte de significações. Em quase toda a parte, a vida cultural torna-
uma razão prática. -se no lugar a partir do qual se formam novas parentelas, que não são
Assim, a legitimidade do Estado assentaria na sua capacidade de forçosamente biológicas. Frequentemente, transcendem as antigas
considerar essas diferenças para aplicar um tratamento particular a aparências, independentemente de serem étnicas ou inerentes às linha-
cada grupo e comunidade, através de espoliações de que se julgaria gens8. O desenvolvimento dos novos cultos divinos assenta na explora-
vítima. Diversas versões desse tratamento operam-se dispersamente. ção de quatro formações ideológico-simbólicas, cuja influência sobre
Por exemplo, na África do Sul, onde o regime do apartheid legou es- as auto-concepções contemporâneas é manifesta: a noção do carisma
truturas de redistribuição dos rendimentos entre as mais iniguali - (que autoriza a prática do oráculo, da profecia e da cura); a temática do
tárias do mundo, foram implementadas políticas preferenciais ou de milagre e da riqueza (ou seja, da crença segundo a qual tudo é possível);
discriminação positiva, em prol dos grupos historicamente desfavo- a temática da guerra contra os demónios; e, por fim, as categorias do
recidos. Todavia, essas companhias desenvolvem-se paralelamente .. sacrifício e da morte. Recorre-se às figuras da linguagem para pensar a
ao reconhecimento dos direitos individuais prescritos por uma das discórdia e mesmo a morte. Essas figuras constituem quadros mentais
constituições mais liberais do mundoJ. Em contrapartida, nas configu- a partir dos quais a memória do passado recente é reinterpretada e
rações mais perversas, as tentativas de reconstrução do Estado e da a provação do presente se torna significativa9• Servem também para
nação, com base no princípio da diferença e do reconhecimento das instituir relações imaginárias com o mundo dos bens materiais'º·
identidades articulares, servem para excluir, marginalizar e eliminar Esse cosmopolitismo dos pequenos migrantes suscitou a prolifera-
algumas componentes da nação•, o que é designadamente o caso de ção de espaços da clandestinidade constatáveis através da existência
países nos quais as distinções entre autóctones e alógenos são reto- de verdadeiras cidades oficiosas constituídas pelo conjunto das for-
madas na luta política. Noutros ainda, os grupos que se consideram mas ditas irregulares de aceso à terra. Tamb.ém se observam através
lesados a nfvel dos seus direitos e marginalizados no plano político das práticas correntes adaptadas pelos migrantes ilegais nos países de
nacional utilizam o discurso da diferença para reivindicar direitos acolhimento e da xenofobia que, além disso, contribui para os confinar
colectivos, entre os quais um acesso mais significativo aos recursos ainda mais à sombra. Nessas esferas da ilegalidade, os quadros comu-
extraídos subterraneamente5 • nitários fragmentam-se, ao passo que novos se urdem. Em casos extre-
O outro imaginário do Estado e da nação em plena constituição é mos, surgem zonas extralegais e introduzem-se rupturas significativas
inerente aos fenómenos de transnacionalização. No mínimo, duas no tecido urbano. Uma economia criminosa que opera no interstício do
versões do cosmopolitismo eclodiram ao longo do último quartel do institucional e do informal permite firmar geograficamente sistemas
séc. XX. O primeiro é um cosmopolitismo prático, de tipo vernacular, de troca com o ambiente local e internacional, obrigando os agentes
que, ao assentar na obrigação de proveniência de uma entidade cultural sociais a criar recursos em condições de instabilidade permanente,
ou religiosa distinta, propicia um comércio intensivo com o mundo6 •
CODESRIA Bulletin, n.'t t . 2000.
3. Anlhea leffrey, •Spectre of the New Racism», Fronciers o/ Freedom, Fourth Quarter. Joanesbur· 7 . Robert Launay, ..Spirit Media: The Electronlc Media and lslam among the Oyula of Northem
go, 2000, pp. 3-12. Côte d'lvolre ... A/nco, 67, 3, 1997, pp. 441·453.
4. Ren~ Lemarchand, •Hate Crimes' Race and Retnbution ln Rwanda», Trons1tion, n.0 81· 82, 8. Ruth Marshall, Politfcol Spiritualides. The Penterostol Revolution ln Nlgerlo, Universlty of Chi·
1999.pp. 114-132. cago Press, Chicago, 2009.
5. john Boye Ejobowah, •Who Owns the Oil? The Politlcs of Ethnlclty ln the Niger Delta of Nige· 9. Achille Mbembe. «À. propos des écritures africaines de sol•, Polltique ofrlcaine, n.t 77, 2000.
ria•, A/rico Todoy, n.9 37. 1999, pp. 29-47. 10. jean Comaroff. cThe Polltics of Convictlon: Faith on the Neo-liberal Frontieno, Social Anolysis,
6 . Mamadou Diouf, «The Murid Trade Diaspora and the Making of a Vemacular Cosmopolitanism•, vol. 53, n.9 l, 2009, pp. 17-38.
incerteza quase absoluta e num horizonte temporal extraordinaria- das sociedades africanas, o domínio dos recursos locais revelou-se um
mente.curto. factor crucial de acesso aos recursos internacionais. Considerando que
A nível das elites. deparamo-nos com uma segunda forma de cosmo- a mobilização dos recursos locais é indispensável na negociação com o
politismo que tenta reconstruir a identidade africana e o espaço públi- plano internacional, verificou-se claramente que, longe de se oporem,
co, de acordo com as exigências universais da razão. Essa reconstrução as lógicas da localidade e as lógicas da globalização se reforçavam mu-
é bidirecional: por um lado, consiste num esforço de reencantamento tuamente.
da tradição e dos costumes; por outro. procede através da abstracção Aliás, considerando que o domínio dos recursos locais resjde essen-
da tradição. sendo que a principal preocupação reside na emergência cialmente no controlo das funções administrativas. políticas e financei-
de um eu moderno e desterritorializado. Nessa vertente, é enfatizada ras. inúmeros agentes sociais tentaram mobilizar solidariedades con-
a temática do governo civil, que deve incentivar a criação de instituições suetudinárias para arrebatar a concorrência aberta. Motivo pelo qual
favoráveis à participação igualitária no exercício da soberania e da os processos de descentralização e de democratização contribuíram
representação. No plano filosófico, essa vertente sustenta o aspecto tão nitidamente para o reaparecimento dos conflitos e m torno da au-
no qual os africanos são idênticos aos restantes seres humanos 11 • A toctonia e para o agravamen to das tensões entre nativos de uma lo-
problemática em torno da propriedade e dos direitos individuais calidade. por um lado, e os migrantes e os alógenos, por outro 13 • As
prevalece sobre as individualidades raciais, culturais ou religiosas ou solidariedades de base genealógico-territorial são reinterpretadas por
as filosofias da irredutibilidade 1z. toda a parte e re lançadas as rivalidades e os contenciosos internos com
Essa segunda forma de cosmopolitismo é indissociável da difícil as sociedades locais. A produção da localidade e a produção da autoc-
emergência de uma esfera da vida privada. O impulso para a construção tonia constituem as duas faces de um mesmo movimento, operado por
de uma esfera privada resulta de inúmeros factores. O primeiro
,. diversos agentes: chefes consuetudinários. notáveis, morabitos, elites
prende-se com as possibilidades de migração de que as elites dispõem. profissionais, associações diversas, partidos políticos. intermediários,
Como tal, podem subtrair-se dos requisitos da família imediata e s ubprefeitos, funcionários, redes de entreajuda e à e solidariedade,
libertar-se do controlo social comunitário. O segundo refere-se às elites urbanas 14• Todos esses agentes participam na cristalização de
novas possibilidades de enriquecimento sem usurpação do Estado - arenas locais, através de procedimentos. tão formais quanto infor-
possibilidades que as ideologias da privatização só legitimaram. Por mais, e segundo relações de força ou de conivência permanentemente
conseguinte, o usufruto dos direitos individuais, designadamente na variáveis e frequentemente difíceis de desenredar.
sua ligação à propriedade, torna-se um elemento crítico das novas Esse processo simultaneamente cultural, político e económico não
imaginações próprias. é incentivado exclusivamente pelos agentes privados, sendo também
O terceiro acontecimento é a tensão entre a transnacionalização da pelo Estado, pelas instituições financeiras internacionais e pelas or-
produção cultural africana e as formas de produção da localidade e ganizações não-governamentais envolvidas na luta pela protecção do
da autoctonia. Ao longo do último quartel do séc. XX. três situações ambiente e dos direitos dos povos nativos. Em muitos países, a trans-
específicas serviram de receptáculo a essa tensão: o movimento de ferência da gestão dos recursos renováveis do Estado para as comu-
transferência de poderes do Estado central para novas colectividades nidades rurais não originou apenas a criação de novas comunas e
territoriais (descentralização). a metropolização do continente à volta regiões - entre as quais, a maioria foi estabelecida com base em di-
de grandes focos urbanos regionais e cosmopolitas e o aparecimento visões de linhagens e étnicas - resultou também na promulgação de
de novos estilos de vida. Po r um lado. paralelamente ao movimento de nova legislações e, por vezes, no reconhecimento. de facto, dos direi-
descentralização. verificaram-se novas divisões territoriais profundas tos ditos consuetudinários. O plano fundiário é um dos domínios que
em função de múltiplos interesses sociais e políticos. Com efeito,
essas divisões traduzem-se geralmente por dotações em serviços e 13. Peter Geschiere e Francis Nyamnjoh. «Capitalísm and Autochthony: The Seesaw of Mobility
empregos. Ainda mais importante, no âmbito da transnacionalização and 8elonging». Public Culture, vol. 12, n.g 2, 2000. pp. 423-4S2. Ver também Peter Geschlere,
The Per/Is a/ Belongíng: Autochthony. Citizenship. and Exc/usíon in A/rico and Europe, Chicago Uni-
versity Press. Chicago. 2009 e John L. e Jean Comaroff, Ethnicity, lnc., Chicago University Press.
11. Cf. Achille Mbembe. v.À propos des écritures africaiaes de soi», toe. cit. Chicago, 2009.
12. Cf. Níabulo S. Ndebele, «Of Lions and Rabbits: Thoughts on Oemocracy and Reconciliation», 14. Thomas 8íerschenk e Jean· Pierre Olivier De Sardan (dir.), les Pouvoirs ou vil/age. Karthala.
Pretexts: literory and Cultural Studies, vol. 8, n.il 2, 1999, pp. 147-158. Paris. 1998.

.1JO Achllle Mbembe S•i.r 6- Grsnde Noite. Ensaio sobre • Africa dncolonitada
foi alvo de algum reconhecimento do direito consuetudinário. O que as principais mutações sociais referem-se às condições de acesso dos
foi designadamente o caso quando se tratou de delimitar as reservas jovens ao e mprego, à transformação da posição das mulheres na ac-
e parques naturais, ou definir as condições de exploração das con- tividade económica devido à crise e às modificações nas formas de
cessões florestais ou das zonas protegidas 15• A confiscação das terras união. Nessa óptica, o enfraquecimento relativo do estatuto social e
ditas cons uetudinárias e a atribuição desses domínios a indivíduos. económico dos homens mais jovens representa um fenómeno inédi-
que alegadamente os valorizarão, não constituem as únicas alavancas to, pelo que as taxas de desemprego aumentaram consideravelmente
de intervenção. O Estado já não procura necessariamente contrabalan- nessa categoria social. O processo de transição da adolescência para
çar o peso dos costumes e minar as autoridades responsáveis pela sua a idade adulta já não é automático e, em determinados países, os che-
implementação 16• Daí resulta uma intricação e inextricáveis imbrica- fes dos lares são ma is velhos do que e ram alguns anos antes. A idade
ções e ntre leis estatais e costumes locais 17• Esse pluralismo jurídico e no primeiro casa mento já não corresponde à idade de início de activi-
normativo regula o comportamento e as estratégias dos agentes priva- dade. A distância social entre os cadetes e os primogénitos aumenta,
dos e das comunidades em luta pela apropriação das terras. ao passo que a distribuição das funções e dos recursos entre gerações
Mas, os novos dispositivos de regulação não são suficientes para pro- se adensa. São muitos os homens mais jovens a prolongar a sua s itua-
duzir consensos sociais e os litígios nas populações multiplicaram -se. ção de dependência que só é quebrada com o alistamento de soldados
No caso das ex-colónias de populações. nas qua is a comercialização no exército.
das terras se rea lizou às custas dos autóctones, as lutas fundi árias As relações homens-mulheres e as funçõ es parentais também são
ganharam contornos mais radicais (caso do Zimbabwe). Situação que a lvo de redefi nição. Por sua vez, a composição das famílias também so-
se verificou igualmente nas regiões mas onde as consequências da co- freu a lterações. As famílías conjugais sem filho s, as famílias poligâmi-
mercialização da terra e os recursos não foram controlados e os con- cas sem pa rentes colaterais e as famílias monoparentais comprovam
flitos se alimentam de relações de força desigua is entre os empreen- a diversidade das formas de famílias em plena composição. Um pouco
dimentos multinacionais e as comunidades locais que se cons ideram por toda a parte, a mobilidade dos homens altera profundamente o
lesadas'ª· Noutros lugares, é a persistência das normas consuetudi- controlo das famílias. Parcialmente pelo facto d e pais e mães já não
nárias legadas e o peso do controlo da linhagem que suscitam o agra- habitarem juntos, muitas famílias passam a ser lideradas pelas mulheres 2º.
vamento das tensões entre os autóctones e os alógenos. Sob o efeito da precarização do assalariado e da ascensão da exclusão
social. as funções masculinas e femininas no casamento também se
transformam, empreendendo-se igualmente t1m processo de nivelação
Lutas sexuais e novos estilos de vida do estatuto das mulheres e dos homens mais jovens 21 e daí resultando
a proliferação de mico-estratégias da parte dos agentes sociais. Por
No context o de grande flutuação económica e de volatilidade in - exemplo, a poligamia possibilita novas estratégias, tanto masculinas
tensa, característica do último quartel do séc. XX, a fragmentação quanto femininas, de captação dos recursos na estrutura doméstica,
social afectou particularmente as estruturas familiares como aconte- num contexto no qual as actividades das mulheres contribuem cres-
ceu, designadamente, com as grandes metrópoles 1•1• Nesse domínio, centemente para os rendimentos da família. Os sistemas de solidarie-
dade assentes em práticas de linhage ns e consuetudiná rias passam a
coexistir com relações de mercado frequentemente brutais.
15.Jocelyn Alex.ander e JoAnn McGregor, «Wildlife and Policies: CAMPFIRE ln Zlmbabwe•, D(!lle/op Outra recomposição primordial, manifestada durante o último quar-
ment and Chafl!)e, vol. 31, Junho de 2000, pp. 605·627.
16. François Ekoko, .. ealancing Politics, Economlcs and Conservatlon: The Case ofthe Camcroon tel do séc. XX, é o lento aparecimento de uma esfera de vida privada
Forestry l.aw Reform,., Development and Chonge, vol. 31, Junho de 2000. pp. 131· 154. cujos símbolos são retirados da cultura global. Não há espaço mais
17. Cf. Émile l.e Brls, Étlenne l.e Roy e Paul Mathieu (dir.). t:Approprwtton de lo cerre en Afrrquc característico dessa transnacionalização do que os domínios do ves-
noire, Karthala, Paris, 1991 e Étienne l.e Roy (dlr.), lo Sécurisaeion fonclêre en Afrique. Pour une
gestion viable des ressources renauve/obles, Karthala, Paris, 1996. tuário, música, desporto, moda e dos cuidados com o corpo em geraP2 •
18. Cf. John Boye Ejabowah, •Who Owns the 0117 The Palitics of Ethnlcity in the N1ger Delta of
Nigena•,Africa Today, n.• 37, 2000, pp. 29-47.
19. Cf. os estudos de Philippe Antoine, Dieudonné Ouédraogo e Victor P1cM. Trais Généraaons 20. Jeanne Bisllliat (dlr.), Femmes du Sud, chefs defomil/e, Karthala. Paris, 1996.
de citadins ou Sahel, Trente ans d 'histoire sacia/e à Dokar et à Bomoka, l.'Harmattan, Paris, 1999 e 21. Cf. Luc Sindjoun (dir.), lo Biogrophie soc1ole du sexe, Karthala, Paris, 2000.
Philippe Antoine et ai., /..es Familles dakaroises face à la crise, ORSTOM-IFA N-CEPEO, Dacar; 1995. 22.Cf. a obra colectiva The Art of Afrlcon Fashian, Africa World Press, 1998, e Oomlnlque
Efectivamente, os novos imaginários da pessoa em si também dizem Esses pontos de vista - que conferem uma função crucial ao pénis
respeito a tudo isso, bem como à sexualidade21• Em muitas cidades, nos procedimentos de simbolização da vida, do poder e do prazer -
o divórcio prevalece sobre o celibato das mulheres. Emergem novos constituem largamente a regra. Ao conferir tanta preponderância à
modelos conjugais acerca dos quais se sabe muito pouco. Graças ao função do falo, negligenciam as práticas homossexuais femininas que,
acesso aos meios de comunicação modernos, a sexualidade dos jovens no entanto, estão cada vez mais disseminadas. Além disso, assentam
fora do casamento também é alvo de transformação. Agora, são mui - também numa leitura muito contestada da história da sexualidade em
tos aqueles que vivem à margem daquilo que, até há pouco tempo, era África e dos seus significados políticos. De facto, tanto muito antes,
considerado norma, como acontece com a sexualidade. quanto durante e após a colonização, o poder em África procurou sem-
Geralmente. salientam-se três argumentos pelos africanos que con- pre assumir a imagem da virilidade. A sua modelação, implementa-
sideram a homossexualidade como o sintoma da depravação absoluta. ção e a sua dotação de sentido operaram-se largamente à semelhança
Por um lado, no seu entender, o acto homossexual constituiria o exem- de uma erecção infinita. A comunidade política pretendeu ser, desde
plo do próprio «poder do demónio» e do gesto contranatura - aplicar sempre, o equivalente de uma sociedade dos homens, ou mais precisa-
as partes genitais a um vaso que não o natural. Por outro, a homossexu- mente, dos anciãos. A sua efígie residiu sempre no pénis erecto. Pode,
a lidade constituiria uma estrutura da sexualidade perversa e trans- aliás, afirmar-se que o conjunto da sua vida física organizou-se sempre
gressiva. Através do acto carnal, apagaria qualquer distinção entre o em função do elemento da inflação do órgão viril. De resto, foi assim
humano e o animal: o acto homossexual vil e imundo não passaria de que o romance africano pós-colonial pôde transmitir-se tão bem. Por
uma copulação carna l contrária à perpetuação da vida e da espécie exemplo, na obra de Sony Labou Tansi, o processo de turgescência faz
humanas. Para os mais devotos, seria, além disso, uma espécie parte dos principais rituais do potentado pós-colonial. Com efeito, é
de lubricidade e um índice da immoderata carnis petulantia - seria vivido como o momento durante o qual o potentado se redobra e se
desconhecido na África pré-colonial e só teria sido introduzido no con- auto-projecta além dos seus limites. Com esse impulso até aos extre-
tinente devido à expansão europeia. . mos, desmultiplica-se e produz uma fantasmagoria dupla, cuja função
Na base dessas afirmações encontram-se três pressupostos funda - consiste em apagar a distinção entre o poder real e o poder fictício. A
mentais. E, primeiramente, a ideia muito falocrática - mas partilhada partir desse momento, nos jogos de poder e de subordinação, o falo
tanto por homens quanto por mulheres - segurrdo a qual, mesmo em pode desempenhar uma função espectrctl. Mas, ao tentar exceder os
estado de apoplexia, o membro viril seria o s ímbolo natural da génese seus próprios contornos, o membro do poder expõe, pela força das cir-
de qualquer vida e qualquer poder. Assim sendo, não haveria sexuali- cunstâncias, a sua nudez e os seus limites e, a~ expô-los, está a expor o
dade legítima, além daquela que faz sempre bom uso do capital semi- próprio potentado e proclama paradoxalmente a sua vulnerabilidade
nal. Se tudo é organizado em função das tarefas reprodutivas, o último no próprio acto através do qual pretende manifestar a sua omnipotên-
dilapidar-se-ia nos prazeres puramente desperdiçados. De seguida, cia24.
existe a crença largamente disseminada segundo a qual o coito lícito Logo, por definição, o potentado é sexual. O potentado sexual assenta
só se concretizaria no órgão feminino. sendo que a ejaculação extra- numa práxis da fruição. O poder pós-colonial, em especial, imagina-se
vaginal (onanismo) seria a marca da própria mácula e da impureza, literalmente como uma máquina a usufruir. Nesse caso, ser soberano
mesmo da feitiçaria. A função principal da vulva consistiria em libertar significa fruir absolutamente, sem contenção ou barreiras. A gama de
o falo do seu sémen e conservá-lo preciosamente. Por fim, predomina prazeres é alargada. A título de exemplo, um ponto associa o prazer de
a impressão segundo a qual, qualquer prática coitai - nomeadamente comer (a política do estômago) à fruição que procura a felação e àquela
aquela que, em vez de pôr imediatamente em contacto os actos geni- que resulta do acto de torturar os seus inimigos reais ou alegadoszs. Daí
tais, os associaria antes aos orifícios e vias de excreção, deglutição e a posição significativa desempenhada pelo acto sexual e pelas metáfo-
sucção - seria uma profanação da carne e um abuso abominável. ras da copulação no imaginário e nas práticas de chefia. Por exemplo,
a sexualidade do autocrata funciona com base no princípio de devora-
ção e deglutição das mulheres, a começar pelas virgens que desflora
Malaquais (dlr.), «Cosmopolis», número especial de Politique africofne, n.Q 100, 2005.
23.C. Didier Gondola, «Dream and Drama: The Search for Elegance among Congolese Youth,
A/riam Studies Review, 42, 1, 1999 e Adam Ashforth, cWeighíng Manhood li;i Soweto•, CODESRIA 24. Sony Labou Tansi, Lo Vie et demie, Seull, Paris, 1979
Bu/ledn. 3-4, 1999. 25. Sony Labou Tansi, l'Étot honteux. Seu li, Paris, 1981.
alegremente. Banqueiros, burocratas, soldados, policiais, professores, recusa proclamada da submissão homossexual a outro homem não
e mesmo bispos, sacerdotes, pastores e morabitos partem para toda a significa de todo a falta de vontade, por parte dos homens e mulheres,
parte expurgar o excesso e lançando sementes ao sabor do vento. Com de adquirir e apropriar-se do pénis ideal e idealizado. Factualmente,
efeito, a linguagem indecorosa e a copulação são o capricho predilecto o aviltamento e a depreciação de que a analidade é objecto no discur-
das elites e da gente do poder, como outros se entregam à caça ou aos so público acompanham o seu aparecimento recorrente no plano do
prazeres do álcool. sintoma, sob a forma de fantasias diversas. Nesse plano, basta analisar
Assim, o falo está em acção, é ele que comunica, ordena e actua, mo- as funções que desempenha nas quimeras de permutação das funções
tivo pelo qual, aqui, a luta política ganha sempre contornos de uma masculinas e femininas, ou ainda na vontade - sentida pela maioria dos
luta sexual, sendo que qualquer luta sexual se reveste, ipso facto, de um homens e corrente nas técnicas políticas de subjugação - de servir-se
carácter de luta política. Se quisermos compreender a vida ffsica do dos outros homens ,tal como de muitas mulheres que se submetem à
poder e os mecanismos de subordinação na pós-colónia é necessário copulação e vivem a sua dominação através da consumação do coito.
analisar o membro do potentado que, adepto da violação voraz e afir- Acresce ainda a existência, nos contos e mitos, de criaturas hermafro-
mação brutal do desejo de poder, é um órgão furioso, nervoso, facil- ditas; ou ainda, nas lutas sociais e políticas, a prática que consiste em
mente excitável e que pode ascender à bulimia. O que acontece espe- despojar o inimigo de tudo aquilo que constituem os emblemas da viri-
cialmente quando o potentado se encarniça sobre as mulheres dos lidade e em consumá-los; ou ainda, a obsessão de regeneração de uma
seus colaboradores e sujeitos, ou ainda se deixa pressionar por todo virilidade declinante através de decacções e da utilização de todos os ti-
o tipo de rapazes (incluindo os seus subordinados), toldando no seu pos de cascas. Por conseguinte, a homossexualidade insere-se na estrati-
decurso qualquer distinção entre homo e heterossexualidade. Para o ficação muito profunda do inconsciente sexual das sociedades africanas.
potentado de facto, felação, venalidade e corrupção devem abrir ale-
,. Por fim, se o mapa sexual do continente se afigura actualmente
gadamente as comportas da vida. Tanto nos países de floresta conver- nebuJoso, isso deve-se, em grande parte, ao facto de o úJtimo quar-
tidos ao cristianismo quanto na região muçulmana, o autocrata, afer- tel do séc. XX ter sido marcado por uma revolução silenciosa, e in-
rado aos seus sujeitos, reina sobre essa gente disposta a sucumbir à felizmente mal documentada. Não obstante o facto de que isso só é
sua violência. Pressionados pela lógica da sobrevivência, devem assim constatável presentemente, essa revolução terá transformado radical
adular o poder para aumentar a sua congestão e o seu relevo. Ao com- e definitivamente a forma como inúmeros africanos imaginam a sua
pelir o seu falo até ao fundo da garganta dos seus sujeitos, o potentado relação com o desejo, o corpo e o prazer. Essa «revolução sexual silen-
pós-colonial nunca consegue estrangulá-los. ciosa>> ocorre num contexto caracterizado poi: uma abertura inigualável
Além disso, as tradições patriarcais do poder em África assentam das sociedades africanas para o mundo. Hoje em dia, não existe uma
num recalcamento originário: o da relação homossexual. Mesmo tendo única cidade africana na qual não circulem vídeos pornográficos. Na
assumindo várias formas, na prática, é a relação pelo ânus que é alvo qualidade de significado central do poder, o falo também foi profun-
das práticas de recalcamento. Com efeito, no universo simbólico de damente posto em causa. Em determinadas sociedades, a contestação
muitas sociedades africanas pré-coloniais, contrariamente às nádegas, do poder fálico afigurou-se a uma instabilidade marital e a uma circu-
cuja beleza, saliência e curvatura eram amiúde enaltecidas, o ânus era lação das mulheres, relativamente crónicas. Noutras, traduz-se num
considerado um objecto de aversão e mácula. Representava o próprio agravamento dos conflitos entre homens e mulheres. Por toda a parte,
prindpio da anarquia do corpo e o zénite da intimidade e do segredo. os homens mais pobres sentem-se desmasculinizados. Como se consta-
Símbolo por excelência do universo da defecação e do excremento, de tou, o estatuto do «chefe de família», do qual os homens são geral-
todos os órgãos, era o «qualquer-outro» por excelência. Sabe-se, aliás, mente os titulares, foi alvo de uma desclassificação entre as categorias
que na economia simbólica dessas sociedades, o «qualquer-outro», mais desprovidas da população, designadamente nos casos em que a
sobretudo quando se confundia com o «todo o íntimo» também capacidade de nutrir já não pode ser exercida plenamente por falta de
representava uma das figuras do poder oculto. A homossexualidade meios. Esparsamente, eclodiram pânicos urbanos cujo cerne residia
era frequentemente o apanágio dos poderosos. Podia funcionar como no receio da castração. Na cartografia cultural de finais do séc. XX afri-
um ritual de subordinação em relação ao mais forte de si e também cano, observa-se uma dinâmica fálica que, mais do que antes, constitui
estava presente em determinados rituais sagrados. Actualmente, a um terreno de mobilidades múltiplas.
Em determinados casos, as sucessivas crises dos últimos trinta e da política, da economia e mesmo da religião . Por outro lado,
cinco anos contribuíram para acentuar as desigualdades existentes operaram-se diversas releituras do marxismo, das quais resultaram
entre os sexos. Noutros, provocaram inúmeras transformações dos inúmeras figuras do «socialismo africano». Por fim, surge um impulso
termos gerais segundo os quais se manifestavam simultaneamente a pan-africanista que conferia especial importância a dois tipos de soli-
ascendência masculina e feminina, resultando daí um agravamento dariedade - uma solidariedade internacionalista e de natureza anti-
dos conflitos entre os sexos e um aumento da brutalidade nas relações -imperialista
entre homens e mulheres. Paralelamente, as formas de sexualidade Na vertente africana do Atlântico, podem distinguir-se dois momen-
anteriormente reprimidas emergem gradualmente no domínio pú- tos marcantes do afropolitanismo. O primeiro momento é propria-
blico, o repertório das fruições sexuais alargou-se consideravelmente mente pós-colonial. Essa fase é inaugurada por Ahmadou Kourouma
e as práticas de felação proliferam, enriquecendo assim largamente a e o seu Solei/ des indépendances26 , no início da década de 1970, mas
linguagem da sexualidade. Entre os jovens, afloram novas e infinitas sobretudo por Yambo Ouolonguem e o seu Devoir de violence2 1 • A es-
expressões, gradualmente mais prosaicas. Grande parte do discurso crita de si - que, para Senghor e os poetas da Negritude consistia numa
social incide na temática da força fálica declinante. Os mais velhos busca do nome perdido e, para Cheikh Anta Oiop, se confundia com a
recorrem cada vez mais a plantas e raízes cujas propriedades revigoram, articulação de uma dívida em relação ao futuro por conta de um pas-
alegadamente, a virilidade masculina e permitem a multiplicação e a sado glorioso - torna-se, paradoxalmente, numa experiência de devo-
exaltação do coito. Nas liturgias da copulação, passam a integrar-se ração do tempo, logo, de cronofagia. Essa nova sensibilidade afasta-se
todas as espécies de adjuvantes, quer tratando-se de géiseres, incenso, da Negritude, pelo menos, a três níveis.
cebola fresca, testículos de animais selvagens ou cascas e raízes re- Em primeiro lugar, relativiza o fetichismo das origens demonstrando
duzidas a pó. Por fim, as práticas estão muito mais disseminadas do que qualquer origem é ilegítima e que assenta numa série de imundí-
que aquilo que se possa reconhecer. Se, em determinados países, os re- cies. Por exemplo, Ouolonguem não se limita a questionar a própria
gimes no poder travam uma guerra contra os homossexuais e os con- noção das origens, do nascimento e da genealogia tão central no dis-
sideram refugos e resíduos humanos, na África do Sul, a constituição curso da Negritude. Tenta pura e simplesmente turvá-los, e mesmo
garante-lhes todos os direitos, incluindo o do casamento. A homofobia aboli-los, para dar lugar a uma nova problemática, a da autocriação e
contemporânea também é utilizada pelos «pequenos» como um meio do aut.o-engendrament.o. Mas se a autocriação é possível, a autodestruição
de desqualificação das classes dirigentes. Essas transformações ocor- também é. Por conseguinte, a tensão entre o si e o Outro, o si e o mun-
rem num momento em que a epidemia da SIDA atinge proporções cada do, tão característica do discurso da Negri~de, passa para segundo
vez mais e levadas da população. O sexo e a morte convergem através plano, em prol de uma problemática da evisceração, na qual o si, já
da SIDA. não pode «narrar-se histórias», parecendo condenado a defrontar-se
Num continente devastado pela guerra, assistiu-se à multiplicação a si mesmo, a explicar-se perante si mesmo - é a problemática da
das práticas de manducação. São muitas as crianças-soldado que, de- auto-explicação.
pois de tirar a vida a um inimigo, o emasculam retirando-lhe o pénis Em segundo lugar, essa nova sensibilidade volta a interrogar o esta-
e consumindo-o - para fazê- lo aperceber-se, mesmo na sua morte, da tuto daquilo que se designaria por «realidade». O discurso da Negri-
sua impotência. tude aspira a ser um discurso sobre a diferença, um discurso da comu-
nidade como diferença. A diferença era entendida como um meio de
reaver a comunidade, na medida em que se considerava que a mesma
Afropolitanismo tinha sido objecto de uma perda. Logo, era necessário convocá-la oure-
convocá-la, chamá-la à vida, através de um luto do passado, considerado um
Quer se trate da literatura, filosofia, música ou das artes em geral, significado derradeiro da verdade do sujeito. Nesse aspecto, tratava-se
durante quase um século, o discurso africano terá sido dominado por de um discurso das lamentações. A partir de Ouolonguem, o princípio
três paradigmas político-intelectuais que, além disso, não se excluíam da perda e do luto é substituído pelo do excesso e do descomedimento.
mutuamente. Por um lado, existiram diversas variantes do nacionalismo
anticolonial que exerceu uma influência durável nas esferas da cultura, 26. Ahmadou Kourouma.• le Solei/ des indépendunces, Seuil, Paris, 1968.
27. Yambo Ouolonguem, Devolrde violence, op. cft.
Por definição, a comunidade é o local do descomedimento, da despesa religião, a literatura e a música também constituem instâncias através
e do desperdício. A sua função consiste em produzir resíduos. Vem ao das quais se desenvolve a prática analítica, independentemente de a
mundo e estrutura-se com base na produção dos refugos e da gestão última se prender à manifestação do inconsciente, às dinâmicas do
daquilo que devora, transitando-se para uma escrita do excesso ou recalcamento e da catarse, ou à experiência da própria cura (interpre-
ainda do excede nte28• A realidade (quer se trate da raça, do passado, tação dos sonhos, sessões de desenfeitiçamento, tratamento dos pos-
da tradição ou, ainda melhor, do poder) não se apresenta apenas como suídos. e mesmo a luta contra aquilo que se designa de «demónios» e
aquilo que existe e é passivei de representação, de figuração. Também as outras forças oriundas do «mundo da noite» e do «invisível»).
é aquilo que reveste, envolve e excede o existente. O segundo momento do afropolitanismo corresponde à entrada de
Por conta dessa imbricação do existente e daquilo que o excede, e África na nova era de dispersão e circulação. Essa nova era caracteriza-
porque a realidade resulta, de facto, não tanto da montagem quanto do -se pela intensificação das migrações e pela implantação de novas diás-
enrolamento, apenas se poderia falar em espiral, à semelhança de um ~oras africanas no mundo. Com a emergência dessas novas diásporas,
turbilhão. Esse espaço turbilhonar é justamente o ponto de partida da Africa deixa de constituir um centro em si. passando a constituir-se por
escrita de Soni Labou Tansi, por exemplo. Não é por mero acaso que pólos entre os quais há constante passagem, circulação e repetição.
a sua última obra (póstuma) se intitula L'Autre Monde, Écrits inédits29• Esses pólos sucedem-se uns aos outros e revezam-se. Formam inúmeras
O cuidado de si converte-se assim numa preocupação com o outro regiões, superfícies e jazidas culturais às quais a criação africana
mundo, numa maneira de perscrutar a noite, os domínios do nocturno. recorre incessantemente. Quer no domínio da música ou da literatura,
onde, segundo se acredita, jaz a soberania. Essa evolução é fomentada a questão já não consiste em saber como constituir novas formas do
pela centralidade da falha que. na pós-colónia, é representada pela ·real - formas flutuantes e móveis. Já não se trata de retomar a todo
violência estatal e pelo aumento do sofrimento humano, a entrada o custo a cena primária ou reconstituir no presente os gestos passa-
numa nova era caracterizada pela crueza e a crueldade30• dos. Apesar de ter desaparecido, o passado não foi descartado. Ainda
Essa escrita turbilhonar é dominada por uma estética da trans- subsiste sob a forma de uma imagem mental. Rasuram-se, atenuam-se,
gressão. A escrita de si, a escrita do mundo e do outro mundo é, acima substituem-se, apagam-se e recriam-se formas e conteúdos. Opera-se
de tudo, uma escrita de fusão, uma escrita do abuso e da violação. A voz através de falsas junções, discordâncias, substituições e montagens -
desaparece para ceder lugar ao «grito3 1». No prefácio ao seu romance condição para alcançar uma nova força estética.
L'État honteux, Soni Labou Tansi escreve: <<Aparentemente o romance Facto que se verifica no novo romance africano e na música, na dança
é uma obra de imaginação. Por conseguinte, essa imaginação tem de e nas artes plásticas onde há criação nos meandros de encontros - al-
encontrar o seu devido lugar em qualquer realidade. Escrevo ou grito, guns efémeros e outros falhados. O objecto da criação artística já não
um pouco para obrigar o mundo a vir ao mundo.» Três instâncias de- consiste em descrever uma situação na qual a lguém se torna especta-
sempenham essa função tripla (escrever, gritar, obrigar o mundo a vir dor ambulante da sua própria vida porque se viu reduzido à impotência
ao mundo) - a religião, a literatura e a música (sendo que a última por conta dos acidentes históricos. Pelo contrário, trata-se de mani-
engloba a dança e o teatro). É através dessas três disciplinas que se festar que o homem despedaçado ergue-se lentamente, libertando-se
manifesta, em toda a sua clareza, o discurso africano acerca do homem das suas origens. Durante muito tempo. a criação africana preocupou-
em sofrimento, confrontado consigo mesmo e com o seu demónio e -se com a questão das suas origens, dissociando-a da do movimento. O
obrigado a criar o novo. Opera-se assim uma reduplicação nessas dis- seu objecto central consistia na primeidade: um sujeito que só remete
ciplinas, através da qual a imagem de si se apresenta simultaneamente para si mesmo, um sujeito na sua pura possibilidade. Na era da dis-
como representação e força de apresentação. Em muitos aspectos, a persão e da circulação, essa mesma criação já não se preocupa tanto
com a relação com o si mesmo, mas com um intervalo 32• África é agora
28. Além da escrita d e Sonl Labou Tansi ler; por exemplo. Ahmadou Kouroma, AI/ah n'esc pas
imaginada como um imenso intervalo, uma citação inesgotável pas-
oblfgé. Seuil, Paris. 2000. sível de inúmeras formas de combinação e composição. O retorno já
29. Sonl l.abou Tansl, Vlutre Mande, Écrits inédits, Revue noire. Paris. 1997. não se processa em relação a uma singularidade essencial, mas a uma
30. Achille Mbcmbe. De la postcolonfe, op. clt.
31. Patrlcla Célérier. • Engagement et esthétique du crh•. Notre lfbra/re, n.Q 148, Setembro d e
capacidade renovada de bifurcação.
2002: Jean· Marc ~la, Le Cri de /'homme africoin, L'Harmattan, Paris, 1980 e Soni l.abou Tansl.
Le Commencement des dou/eurs, Seu li, Paris, 1995. 32. Alain Mabanckou, 8/ack Bazar, Seull. Paris. 2008.
No limiar do século, operam-se então reconfigurações culturais im- dispersão, multisecular. operou-se sobre aquilo que se designa geral-
portantes, não obstante a existência de um afastamento entre a vida mente de Tempos modernos e revestiu-se de três cores: o Sara, o Atlân-
real da cultura, por um lado, e os instrumentos intelectuais através tico e o oceano Índico. Por exemplo, a formação de diásporas negras no
dos quais as sociedades apreendem o seu destino, por outro. De entre Novo Mundo resulta dessa dispersão e a escravatura - que, segundo
todas as reconfigurações em curso, duas em especial correm o risco se sabe, não visou apenas os mundos euro-americanos, mas também
de exercer uma influência s ingular na vida cultural e na criatividade os mundos árabe e asiáticos - desempenhou uma função crucial nesse
estética e política dos anos futuros. Em primeiro lugar, existem aquelas processo. Por conta dessa circulação dos mundos, as marcas africanas
que dizem respeito às novas respostas à questão de saber quem é percorrem, de um extremo ao outro, a superfície do capitalismo e do
«africano» e quem não é. Com efeito, são muitos aqueles para os quais islamismo. Às migrações forçadas dos séculos anteriores juntaram-se
é «africano» aquele que é «negro» e, logo, não é «branco», sendo que o outras, cujo motor principal foi a colonização. Actualmente, milhares
grau de autenticidade é avaliado com base na escala da diferença racial de indivíduos de origem africana são cidadãos de diversos países do
bruta. Ora, acontece que todo o tipo de pessoas têm algum tipo de laço globo.
ou, simplesmente, a lguma coisa que ver com África - alguma coisa que Quando a questão reside na criatividade estética na África contem-
as autorize ipso facto a almejar a «cidadania africana». Naturalmente porânea, e mesmo na questão de saber quem é «africano» e o que é
que existem aqueles que se designam por «negros», que nascem e vi- «africano», a crítica política e cultural tem tendência a silenciar esse
vem nos Estados africanos, dos quais são nacionais. Mas, apesar de os fenómeno histórico da circulação dos mundos. Visto a partir de África,
negro-africanos formarem a maioria da população do continente, não o fenómeno da circulação dos mundos tem, pelo menos, duas faces: a
são os únicos habitantes e não são os únicos que aí produzem arte e fP da dispersão, que acabo de referir, e a da imersão. Historicamente, a
cultura. dispersão das populações e das culturas não foi meramente um facto
Efectivamente, oriundos da Ásia, Arábia ou Europa, outros grupos de estrangeiros que se implantam em África. De facto, a história pré-
populacionais implantaram-se em diversas áreas do continente, em -colonial das sociedades africanas foi, inteiramente, uma história de
vários períodos da história e por diversos motivos. Alguns chegaram indivíduos em permanente movimento na totalidade do continente.
como conquistadores, negociantes ou zelotes, à semelhança dos árabes Uma vez mais, é uma história de culturas em colisão, presas no vórtice
e dos europeus, fugi ndo de todo o tipo de infortúnios, tentando es- das guerras, invasões, migrações, casamentos mistos, religiões diver-
capar à perseguição, simplesmente movidos pela esperança de uma sas das quais se apropriam, de técnicas que se tricam e de mercadorias
vida tranquila ou pelo desejo de riqueza. Outros instalaram-se por que se vendem. A história cultural do continente não se compreende
conta de circunstâncias históricas relativamente trágicas, à semelhança além do paradigma da itinerância, da mobilidade e da deslocação.
dos africânderes e dos judeus. Uma mão-de-obra fundamentalmente É, aliás, essa cultura da mobilidade que, por seu turno, a colonização
servil, outros deixaram a sua descendência no contexto das migra- tentou cristalizar através da instituição moderna da fronteira. Relem-
ções de trabalho, como os malaios, os indianos e os chineses na África brar essa história da itinerância e das mobilidades equivale a falar de
Austral. Mais recentemente, surgiram também libaneses, sírios, indo- mesclas, amálgamas, sobreposições - uma estética do entrelaçamento,
-paquistaneses e, dispersamente, algumas centenas de milhares de chi- tal como já se mencionou. Quer se trate do islamismo, do cristianismo
neses. Todos chegaram com as suas línguas, os seus costumes, as suas de modos de vestuário, de formas de negociação, de falar e mesmo
formas de oração, em suma, as suas artes de ser e fazer. Actualmente, de hábitos alimentares, nenhum desses aspectos sobreviveu ao rolo
as relações mantidas entre essas diversas diásporas e as suas socie- compressor da mestiçagem e da vernaculização. Facto que já se verifi-
dades de origem são as mais complexas. Muitos dos seus membros cava muito antes da colonização. Com efeito, existe uma modernidade
consideram-se africanos de pleno direito, mesmo se também perten- africana pré-colonial que ainda não foi alvo de consideração na cria-
cem a outro lugar. tividade contemporânea.
Mas, mesmo tendo representado durante muito tempo um local de O outro aspecto dessa circulação dos mundos é a imersão, que afectava,
destino de todos os tipos de movimentos de população e de fluxos em níveis variados, as minorias vindas de longe e que acabaram por gerar
culturais, também tem constituído, há alguns séculos, uma zona de descendência no continente. Com o passar do tempo, os laços com as suas
partida em direcção a inúmeras regiões do mundo. Esse processo de origens (europeias ou asiáticas) complicaram-se singularmente. Através

l

do contacto com a geografia, o clima e os homens, os seus membros inventados não pelos próprios indígenas, mas, na verdade, pelos mis-
tornaram-se bastardos culturais, mesmo se, por força da colonização. sionários e colonos.
os euro-africanos em especial continuaram a almejar a supremacia em A falência política e moral de determinada ideia da emancipação
nome da raça e a marcar a sua diferença, e mesmo o seu desdém, em africana - herdada dos nacionalismos anticoloniais do pós-guerra -
relação a qualquer marca «africana» ou «nativa» 33• O que é, em grande é incontestável. Por exemplo, na África Austral, a presença de fortes
parte, o caso dos africânderes, cujo nome significa justamente os minorias brancas imprimiu singularmente a expressão do sentimento
«africanos». Deparamo-nos com a mesma ambivalência entre os india- anticolonialista. Nessa sub-região, caracterizada desde o séc. XVIII
nos, os libaneses e os sírios. Esparsamente, a maioria expressa-se nas pela implantação de colónias populacionais, as entidades políticas
línguas locais, conhece verdadeira e praticamente alguns costumes do instituídas na sequência da conquista europeia constituíram-se como
país, mas vive relativamente fechada e pratica a endogamia. Estados racistas. Na execução dessa política das raças, esses Estados
Logo a questão não reside unicamente no facto de que existe uma tinham edificado a segregação, a crueldade e a expropriação económi-
parte da história africana alhures, fora de África: existe também uma ca dos africanos em diversos elementos determinantes dos seus mo-
história do resto do mundo da qual os negros são. pela força das cir- dos de governação. Durante muito tempo, a África do Sul constituiu o
cunstâncias, os agentes e os depositários. De resto, o seu modo de es- emblema paroxístico desses Estados racistas.
tar no mundo sempre se pautou sob a marca, se não da miscigenação Ora, os nacionalismos africanos retomaram mimeticamente dois
cultural, pelo menos, da imbricação dos mundos, numa lenta e, por elementos centrais da ideologia colonial e racista. Em primeiro lugar,
vezes, incoerente dança com os signos que não dispuseram, de todo, do aderiram à ideia, disseminada ao longo do séc. XIX, de que a colonização
privilégio de escolher livremente, mas que conseguiram, tanto quanto foi um processo de conquista, submissão e «civilização» de uma raça
possível, domesticar e fazer uso deles. A consciência dessa imbrica- por parte de outra. De resto, a maior parte dos movimentos armados
ção do aqui e do alhures, a presença do alhures no aqui e vice-versa, que luta pela independência africana interiorizara a fábula segundo a
essa relativização das raízes e as filiações primárias e essa maneira de qual a própria história se resumiria a um afrontamento das raças. Nes-
acolher, com pleno conhecimento de causa, o estranho, o estrangeiro sa luta pela vida, os conflitos de raça não se sobreporiam unicamente
e o longínquo, essa capacidade de reconhecer a sua face no rosto do aos conflitos de classe. A raça seria a matriz das relações de classe e,
estrangeiro e de valorizar os traços do longínquo no propínquo, de como tal, o motor da guerra social. A ideologia da supremacia branca (da
domesticar o ln-familiar, de trabalhar aquilo que se aparenta inteira- qual os nacionalismos africanos eram a resposta) baseava-se precisa-
mente a uma ambivalência - é essa sensibilidade cultural, histórica e mente no mesmo postulado. Nos Estados racistas da África Austral da
estética que assinala adequadamente o termo «afropolitanismo». época colonial, os indígenas não eram cidadãos: eram sujeitos raciais
considerados inimigos, enquanto não se submetessem incondicional-
mente a uma ordem política regida pela violência. Em todos os casos, a
Passar a outra coisa política e a violência constituíam um único feixe, estabelecendo-se, no
entanto, uma distinção entre a alegada violência pura dos movimentos
Nessas circunstâncias, como explicar a ascensão do reflexo indí9enista? de resistência e a violência considerada imoral dos colonizadores. No
Na sua versão benigna, o indigenismo surge sob a forma de uma ideo- mesmo espírito, os movimentos armados anticoloniais consideravam
que, por norma, o inimigo pertencia sempre a outra raça. As relações
logia que glorifica a diferença e a diversidade e que se debate pela sal-
de força que lhe eram aplicadas visavam alcançar uma vitória total.
vaguarda dos costumes e das identidades consideradas ameaçadas.
Por sua vez, a emancipação consistia em depurar constantemente a
Segundo a lógica indigenista, as identidades e as lutas políticas decli-
sociedade dessa outra raça, de preferência, invertendo radicalmente
nam-se com base numa distinção entre «aqueles que pertencem aqui»
as relações de propriedade e restituindo aos africanos tudo aquilo que
(os autóctones) e «aqueles que vieram de outra parte» (os alógenos).
perderam aquando do confronto inicial (terras, tradições, dignidade).
Os indigenistas negligenciam o facto de que, nas suas formas estereotipa-
O segundo elemento que os nacionalismos africanos retiraram da
das, os costumes e as tradições que reivindicam foram frequentemente
ideologia colonial prendia-se com a identificação da política e da guer-
ra. No ponto em que essa exclusão da política e da guerra foi levada ao
33. Cf. George E. Brooks, Eurafricans in Westem Africa, Ohio University Press, Athens, 2003.

1S,. Ac:hille Mbembe Sair ela Gnonde Nolte. Ensalo sob<9 • Alrico de..:oloolucla

..
extremo (por exemplo, em Angola e, numa escala menor, em Moçam- É igualmente uma tomada de posição política e cultural em relação à
bique), a consequência foi a derrota militar dos colonos brancos, a sua nação, à raça e à questão da diferença em geral. Na medida em que os
partida em massa e o açambarcamento dos seus bens por parte dos nossos Estados são puras invenções (além disso, recentes), em rigor,
novos regimes, a instauração de um Estado negro, o surgimento de nada têm na sua essência que nos obrigue a devotar-lhes um culto - o
uma nova classe dominante sucedido por uma guerra civil prolongada que não significa que o seu destino nos seja indiferente. No que con-
que, desta vez, opunha negros a negros. A despeito da luta armada, nos cerne o «nacionalismo africano», este representa, na sua origem, uma
casos em que as condições de uma vitória militar clara nunca foram utopia portentosa cujo poder insurreccional foi ilimitado - a tentação
reunidas, os movimentos de libertação utilizaram a violência como de nos compreendermos a nós mesmos, de nos erguermos perante o
e lemento complementar de uma estratégia de negociação e de com- mundo, com dignidade, enquanto seres dotados de um rosto humano,
promisso fundiariamente polfticos. Findos esses compromissos, esses simplesmente. Mas, a partir do momento em que o nacionalismo se
Estados depararam-se com minorias brancas consideráveis. Derrota- transformou em ideologia oficial de um Estado tornado predador, per-
das no plano político, essas minorias conservaram, no entanto, a maio- deu qualquer núcleo ético e converteu-se num demónio «que vagueia
ria dos seus bens após a descolonização. Em inúmeros casos, essas pela noite e evita a luz do dia». Essa questão do rosto humano, da figura
minorias raciais continuam a exercer uma hegemonia cultural sobre a humana é o obstáculo com o qual o nacionalismo e o indigenismo se
sociedade, como acontece com a África do Sul e, num nível intermédio, deparam incessantemente. A solidariedade racial preconizada pelo
com a Namíbia e o Zimbabwe. pan-africa~ismo não é imune a esses dilemas. A partir do momento
Desracializar o poder e a propriedade em prol dos africanos consti- em que a Africa contemporânea desperta para as figuras do múltiplo
tuiu, desde sempre, a força motriz dos nacionalismos anticoloniais na (incluindo o múltiplo racial) que são constitutivas das suas histórias
África Austral. Não obstante os compromissos alcançados, aquando particulares, reduzir o continente apenas à forma da solidariedade
da transição do «poder branco» para o «poder negro», a ideia de uma negra torna-se insustentável. De resto, será impossível negar que essa
reversão radical das relações coloniais de poder e das relações de pro- alegada solidariedade é profundamente prejudicada pelo modo como
priedade continuou a assombrar, durante muito tempo, o imaginário políti- a violência do irmão contra irmão, e a violência do irmão contra a mãe
co desses países, após as independências. Quer se trate da colonização e as irmãs, se exerce desde o final das colonizações directas?
ou do apartheid, a experiência dos «poderes brancos» em África foi de- Logo, é preciso passar a outra coisa caso se pretenda reacender o
sastrosa, o que se explica largamente pelo facto de que esses poderes espírito em África, revigorando também as possibilidades de uma arte,
eram animados pela lógica das raças. Infelizmente, os nacionalismos de uma filosofia e de uma estética que possam transmitir algo inovador
africanos do séc. XX limitaram-se a recuperar, em seu próprio bene- e significativo para o mundo em geral. Actualmente, inúmeros africanos
fício, essa poHtica das raças e o espírito de violência que constituía o vivem fora de África e outros optaram livremente por viver no conti-
seu corolário. Em vez de aderir à democracia, submeteram essa lógica nente, embora não necessariamente nos países que os viram nascer.
e esse espírito a um projecto de perpetuação do seu próprio poder. É Além do mais, muitos deles tiveram oportunidade de experimentar
esse projecto que, hoje em dia, se depara com os seus próprios limites. vários mundos e, na realidade, foram indo e voltando incessantemente,
Mas se o sonho da emancipação africana não passou de um simples acumulando assim uma riqueza incalculável a nível de perspectivas e
exercício mimético da violência das raças, iniciado pela colonização, sensibilidade. São geralmente indiv(duos que falam mais de uma língua
então deve conceber-se uma saída do nacionalismo que lance as bases e que se dedicam, por vezes involuntariamente, ao desenvolvimento
de uma concepção pós-racial da cidadania, sem a qual os africanos de de uma cultura transnacional que se designa «afropolitana». Entre os
origem europeia não terão qualquer futuro em África. últimos, contam-se inúmeros profissionais que, nas suas actividades
Por conseguinte, o afropolitanismo não é igual ao pan-africanismo rotineiras, sentem necessidade de enfrentar constantemente o mundo
ou à Negritude. O afropolitanismo é uma estiüstica e uma política, uma no sentido lato. Deparamo-nos mais profundamente com esse «espíri-
estética e uma certa poética do mundo. É uma forma de estar no mun- to lato» junto de uma série de artistas, músicos e compositores, es-
do que recusa, por norma, qualquer forma de identidade vitimária - o critores, poetas, pintores - artífices do esp(rit.o que patrulham a noite
que não significa que não tenha consciência das injustiças e da vio- profunda pós-colonial. Mas é a África do Sul que constitui o laboratório
lência que a lei do mundo infligiu a esse continente e a essa gente. mais axiomático.
Entre todos os factores que contribuíram para fazer desse país o lo- paralelamente - à formação de uma classe de grandes colonos brancos.
cal privilegiado dessa experimentação, citam-se três. Começando pelos Os domínios dos últimos advirão exclusivamente da desapropriação e
que emanam da história - muito complexa - da formação das riquezas espoliação de largos sectores da população negra e da sua transforma-
nessa parte do mundo. Dado que inúmeras sociedades do continente ção em ocupações ilegais, ou em mão-de-obra quase servil, nas terras
vivenciaram, a níveis variáveis, o tráfico dos escravos ou a coloniza- de que essa população era proprietária antigamente. A epítome dessa
ção - duas formas de integração na economia mundo de acordo com missão de espoliação consistirá na inferiorização jurídica dos negros,
o modelo da extraversão - a África do Sul constitui o laboratório mais na sua destituição cívica e na posterior conversão de milhões
axiomático do afropolitanismo. Originalmente assente na exploração de outros em migrantes sazonais. Um dos resultados paradoxais des-
das minas de diamantes e ouro, essa revolução permitiu criar bases sa proletarização extremamente elevada consistiu na emergência de
para uma acumulação interna, indiscutível e estritamente determi- um assalariado dotado de uma real consciência de classe, capaz de se
nada, por um lado, pelo capital e pela tecnologia internacionais e, por constituir como uma verdadeira força social, organizar-se em sindi-
outro, pelos ritmos da procura mundial. catos poderosos e sustentar conflitos de forte intensidade. A mobili-
De seguida, sucedem os factores inerentes ao que poderia designar- zação de uma violência social incomparável no resto do continente,
-se por fábrica da multiplicidade, ou seja, nesse caso preciso, a imple- de extraordinários capitais financeiros e técnicos e de uma forma de
mentação de mecanismos, técnicas e dispositivos de toda a espécie, governação totalmente configurada para a separação das raças terão
com o objectivo de dotar de coerência - governando com base na sepa- então proporcionado ao país a experiência de uma acumulação real e
ração racial, política e económica - uma sociedade díspar, composta de uma produção de riqueza incomensurável com aquilo que se pas-
por uma miríade de entidades raciais, religiosas, étnicas e culturais, sou noutros pontos de África. O mesmo acontece com a distribuição
mais ou menos distintas, mas cujas genealogias são, aliás, deveras in- desigual dessa riqueza em função das raças.
trincadas. Sabe-se que, nesse caso, o modelo utilizado, durante muito Mas, negligencia-se frequentemente o facto de que o processo de
tempo, para formatar uma sociedade tão proteiforme foi o da «guerra constituição de uma sociedade complexa não residiu exclusivamente
das raças». Essa guerra caracteriza-se por combinar, numa figura úni- na alienação dos direitos dos negros e na sua incorporação assimé-
ca da violência, as características de uma guerra de conquista, uma trica na ordem económica. Afigurou-se igualmente a uma lenta trans-
guerra de ocupação e uma guerra civil. formação da população exógena branca em «população endógena».
Na África do Sul, a «guerra das raças» assumiu formas diversas. Essa transformação operou-se através de diversas técnicas, a começar
Aquando da primeira ocupação colonial. consistiu primeiramente em por urna certa sacralização do vínculo com a terra e com o gado e pas-
privar, tanto quanto possfvel, os autóctones dos seus meios de sub- sando pela assimilação dos saberes e das artes de fazer autóctones,
sistência (designadamente, do efectivo e das recolhas), a conquista a invenção de uma língua híbrida (o africânder), a coabitação (ou a
militar foi acompanhada da destruição quase sistemática das econo- relação frequente) prolongada entre negros e brancos, tanto nos locais
mias domésticas nativas. Na revolução industrial. assumiu a forma de trabalho quanto nos espaços domésticos, os incessantes tráficos
da mobilização e da administração, a uma escala incomparável à das culturais entre senhores e serventes, e mesmo casos de mestiçagem
restantes regiões do continente, de uma imensa força de trabalho re- biológica. No que se refere a esse processo, o caso dos africânderes é
gional e de uma mão-de-obra vinda da Europa, Ásia e Estados Unidos. efectivamente emblemático. Hoje em dia, um dos resultados da «au-
Associaram-se técnicas de guerra às técnicas de produção e à com- toctonização» dos colonos e imigrantes europeus reside no facto de
partimentação da força de trabalho foram adicionadas medidas para que a grande maioria dos cidadãos brancos da África do Sul não constitui
limitar e controlar a mobilidade da população autóctone, e mesmo uma população estrangeira, tratando-se agora de africanos de origem
confiná-la em «parques humanos», sendo que, neste caso, o regime da europeia, tal como existem, por exemplo, nos Estados Unidos america-
clausura se traduziu na multiplicação de verdadeiros cercados territo- nos de origem africana.
riais entregues a uma pobreza abjecta. O terceiro factor que contribuiu para tornar a África do Sul num local
Esse lavor intensivo de controlo da mobilidade do trabalho e de dis- privilegiado da criatividade social contemporânea é a implementação,
tribuição territorial de grupos de populações, nos enclaves nas fron - desde o início do séc. XVIII, das principais tecnologias, instituições e
teiras mais ou menos herméticas terá sindo anterior - desenrolar-se-á dispositivos característicos da sociedade moderna, a começar por um
Estado relativamente forte, uma burocracia formal, quase racional e
suficientemente enraizada no tempo e na cultura, bancos, seguros, um
direito da propriedade e das trocas, verdadeiras cidades dotadas de
planos, uma arquitectura, em suma, bases fundamentais de uma eco-
nomia capitalista. Além disso, se a outra forma assumida pela «guerra
das raças» consistiu na ascensão do racismo a instituição, lei e cul-
tura, em contrapartida, a violência do racismo suscitou a emergência Epílogo
de um dos movimentos de resistência mais antigos do continente, o
ANC (African National Congress), a formação de uma classe política e
de actividades sofisticada, a criação de uma miríade de organizações
populares e democráticas, a emergência de uma ver~adeira sociedad.e Além da sua ambivalência e da extraordinária diversidade das suas
civil e o aparecimento de infra-estruturas que permitem o desenvolvi- formas e dos seus conteúdos, a colonização moderna era uma das
mento da vida intelectual e artística (museus, universidades, centros descendentes directas das doutrinas que consistiam em triar os ho-
de reflexão, imprensa). mens e dividi-los em dois grupos: aqueles que contam e aqueles que
Actualmente, a África do Sul representa uma potência económica se contam, por um lado, e «O resto», por outro, aquilo que ternos de
à escala do hemisfério sul. No plano internacional, desempenha uma designar por «resíduos de homens» ou ainda «detritos de homens».
função comparável à do Brasil e da fndia, designadamente na América Os primeiros. os senhores, eram os «homens derradeiros», que ten-
Latina e na Ásia. Multirracial, multirreligiosa e multiétnica a sua forma- tavam promulgar universalmente as condições propícias à sua própria
ção social é largamente composta por negros, mas conta também com sobrevivência. O «homem derradeiro» caracterizava-se pela sua von-
minorias fortes como a judaica, europeia, chinesa, indo-paquistanesa, tade de dominar e de usufruir, de conquistar e de comandar, pela sua
propensão a desapossar e, caso necessário, a exterminar. O «homem
árabe, afro-americana, bem como com muitas comunidades diaspóri-
cas oriundas do resto do continente, como acontece com as diáspo- derradeiro» invocava incessantemente a lei, o direito e a civilização,
mas actuava precisamente como se não existisse lei, direito e civiliza-
ras da África francófona nas grandes metrópoles de Joanesburgo e do
ção que não os seus. Assim sendo, nenhum crime que fosse levado a
Cabo.
cometer poderia ser julgado por qualquer moralidade. Nada poderia
Sem emanar necessariamente do «milagre», a transição do Estado
pertencer a qualquer outra pessoa que ele não pudesse aspirar obter
racial para o Estado democrático está em plena concretização. Efec-
para si, pelo recurso à força, artifícios ou embustes, facto que traduz
tivamente, não se trata de uma «descolonização» na acepção clássica a relevância que conferia à auto-preservação e o receio que cultivava
(ou à qual se assistiu no resto do continente1, mas de uma profunda relativamente a qualquer força suficientemente consistente para pro-
transição social e histórica que posiciona a Africa do Sul no mesmo teger, autonomamente, o fruto do seu trabalho e da sua vida.
plano da Espanha após o franquismo, ou os Estados do cone sul (Brasil, Incapazes de se urdirem a si mesmos, os restantes, os «detritos de
Chile, Argentina), e mesmo a Coreia do Sul e muitos países da Europa homens», eram chamados a submeter-se. Renunciando à luta, eram
Oriental, após o final das ditaduras militares e do comunismo. A seguir responsáveis pelos infortúnios dos primeiros e a sua função consistia
ao Haiti («a primogénita de África» e da descolonização) e à Libéria, ainda em lamentar-se incessantemente. Desempenhavam tão primo-
a experiência sul-africana representa talvez a única - na história de rosamente essa função que acabaram por imprimir essa lamentação
África e da sua diáspora - que parece ter condições de conjugar a interminável na definição da sua identidade. E, na medida em que a
abertura do mundo e a ascensão em humanidade. ideia de igualdade universal e de equivalência entre os homens (dog-
ma dos fracos) remetia, na verdade. para a religião sob a forma de nar-
cose da piedade, era a própria ideia da moral que deveria ser abolida,
para ceder o lugar à fé, em seu próprio direito - o bom direito que,
além de se fazer valer do pretexto da força, se deleita com a ignorância
e a sã consciência1•

1. No que concerne aos seus antecedentes históricos. ver Jennlfer Pitts. Naís:sance de la bonne
Ora, ainda estamos muito próximos da era do legítimo direito que de fomentar um universalismo lateral exige a superação da oposição
assenta na força, na ignorância e na sã consciência e do qual o colo- radical entre o próprio e o estrangeiro.
nialismo constituiu o apogeu. A nossa era tenta recuperar o velho mito De resto, a humanidade do homem não é adquirida, é arrebatada e
segundo o qual o Ocidente detém o monopólio exclusivo do futuro. gerada no decurso das lutas.
Nessas circunstâncias, não é de espantar que alguns tentem negar O anticolonialismo visava a criação de uma nova forma de realidade
qualquer significado paradigmático ao facto colonial e imperial, e repri- - a libertação face ao que o colonialismo possuía de mais intolerável e
mir os graves dilemas filosóficos e éticos resultantes da expansão eu- insuportável, a sua força morta; posteriormente, a constituição de um
ropeia no mundo, registando-os como pormenores insignificantes. sujeito que, na origem, remeteria antes de mais para si mesmo; e, ao
A reabilitação do direito legítimo colonial nas condições contem - remeter-se antes de mais para si mesmo, para a sua pura possibilidade
porâneas assenta na convicção segundo a qual a liberdade real e efec- e para o seu livre aparecimento, concatenava-se inevitavelmente ao
tiva não é conferida através de qualquer tipo de contrato entre partes mundo, a outrem, a um Alhures.
iguais ou tratado. Nasce de uma lei natural (jus naturale). Outrossim, Se existe uma herança intelectual, moral e política do nacionalismo
a única moral que é válida na nossa era é uma moral que se reduz ao que é djgna de que lhe dediquemos energia nas condições contem-
instinto de piedade; às milhentas formas de desprezo que dissimulam porâneas, então é nesse sentido que devemos procurá-la, na mensa-
a caridade e o bom samaritanismo; e à crença segundo a qual, afinal, o gem de alegria em relação a um grande futuro universal, aberto equi-
vencedor tem razão. E, qua ndo a força gera o direito e a força e a razão tativamente a todos os povos e a todas as nações.
se aliam, para quê exigir justiça e reparação? Além disso, segundo essa De seguida, surge a ideía da greve moral, que é uma forma de in-
moral, no recesso do mundo não há espaço para a culpabilidade e ,..r surreição. Começa com uma subversão das relações mentais que sub-
ainda menos para o arrependimento pois, em última instância, tanto o metem o indivíduo a uma tradição convertida em lei e necessidade e
sentimento de culpa quanto o desejo de arrependimento não passam o seu objectivo consiste em quebrar as forças mortas que limitam as
de meras manifestações cf nicas da perversidade dos fracos. capacidades de vida.
Por conseguinte, o principal desafio com o qual a nossa época se A sublevação almejava a emergência da liberdade. Tornar-se livre
defronta é o da refundação do pensamento crítico, ou seja, de um equivalia a ser por e para si mesmo, constituir-se enquanto sujeito hu-
pensamento que pensa o seu possível fora de si mesmo, consciente mano responsável perante si mesmo, perante os outros e perante as
dos limites da sua singularidade, no circuito que nos vincula sempre a nações - aquilo que, ao longo da presente obra, designámos por políti-
um Alhures. Essa refundação remete primeira e necessariamente para ca da ascensão em humanidade.
uma determinada disposição - aquela que afirma a total e radical Sustentou-se ainda que a sublevação e a luta organizada visavam
liberdade das sociedades perante o seu passado e o seu futuro. Pensa- «constituir comunidade». Ora, «constituir comunidade» advém da
mento que também sabe explicar o seu mundo, que tenta compreender vontade de vida. Em última instância, a luta destinava-se a produzir
a história da qual é parte integrante e que permite identificar o poder a vida, eliminar as forças que, no contexto colonial, se debatiam
do futuro gravado no presente. para mutilá-la, desfigurá-la e mesmo destruí-la. Esse projecto de
Se é necessário voltar a percorrer, em conjunto, os caminhos da hu- uma vida humana plenária constituiu, na sua origem, o projecto
manidade, então é melhor começar por reconhecer que, no fundo, não político do nacionalismo africano e continua a ser o projecto da
existe mundo ou lugar no qual nos sintamos plenamente «em casa», África do futuro.
senhores da casa1 . O próprio sempre é concomitante ao estrangeiro, Mas a sublevação também visava responder à tripla questão: Quem
que não provém do alhures. Nasce sempre de uma cisão original e somos e onde estamos no presente? Em quem queremos tornar-nos?
irredutível que exige, em contrapartida, desprendimento e apropriação. E o que esperar?
Evidentemente que a emergência de tal pensamento crítico susceptível Essas interrogações acerca da origem e do destino, da vontade e da
esperança acompanham-nos sempre.
A missão actualmente consiste em inscrever a ideia da greve moral
Cf)nsctence colonlole, les llblroux fronçois et brltonniques et la questlon império/e (J 770·1879),
!.:Atelier. lvry-sur-Selne, 2008.
nos actos culturais susceptíveis de preparar o terreno para práticas
2. Bernhard Waldenfels, ttudes pour une phénoméno/ogie de l'étranger. vol. 1: Topographle de políticas directas, sem as quais o futuro não se abrirá.
l'étranger, Van Oieren, Paris, 2009.

Epilogo >9)
A invenção de um imaginário a lternativo da vida, do poder e da ci-
dade exige a reactualização das solidariedades transversais que se
estendem além das filiações clânicas e étnicas; a mobilização dessas
jazidas religiosas que são as espiritualidades da libertação; a consoli-
dação e a transnacionalização das instituições da sociedade civil; uma
renovação do militantismo jurídico; o desenvolvimento de uma capa-
cidade de pululação. designadamente em direcção às diásporas; uma
Entrevista com Achille Mbembe
ideia da vida e das artes que constituiria o fundamento do pensamento
democrático.
Mas despertar o potencial de greve exige também que ponderemos «A Françáfrica ?
simultaneamente a questão da violência revolucionária. Uma questão Chegou a hora de pôr um ponto final
política e ética extremamente complexa que provém do nosso passado, nessa história perdida»
assombra o nosso presente e que é necessário abordar com reserva e
de forma responsável. Porque nem todo o sangue derramado produz Entrevista por Marie Cailletet e Olivier Milot 1
necessariamente vida, liberdade e comunidade.
Para se e rguer e seguir em frente, mais cedo ou mais tarde, os afri-
canos devem olhar para lá da Europa que não é, inquestionavelmente, a colonização, o lugar de França, o papel da China, a corrup-
um mundo que se desmorona. Mas, esmorecida, representa agora o ção ... a análise crítica e abrasiva do politólogo camaronês Achille
mundo da vida em declínio e dos pores-do-sol purpúreos e onde o es- Mbembe.
pírito se sensaborizou, britado pelas formas extremas do pessimismo,
do niilismo e da frivolidade. Professor de História e de Ciência Política na Universidade do Witwa-
África deverá olhar para aquilo que é novo. Entrar em cena e a lcan- tersrand, em Joanesburgo, e no departamento francês da Duke Univer-
çar. pela primeira vez, aquilo que nunca antes lhe foi possível e terá sity, nos Estados Unidos, Achille Mbembe é um dos maiores teóricos
de fazê-lo consciente de que deverá descerrar novos tempos, para si do pós-colonialismo. Num momento no qual culminará em Novembro
mesma e para a humanidade. a celebração do quinquagésimo aniversário das independências afri-
canas, a sua análise das relações calamitosas entre França e o conti-
nente negro - da sua transformação necessária e da revolução radi-
cal que África deve operar - é abrasiva. Este observador dedica-se a
um trabalho crítico inquebrantável, partindo do interior, percorrendo
África incansavelmente e reunindo-se com os agentes políticos, so-
ciais. económicos e culturais. Profundamente envolvido «no destino
dessa ponta do nosso mundo», o politólogo camaronês Achille Mbem-
be debate-se, livro após livro, para que chegue o momento africano.

O quinquagésimo aniversário das independências africanas é pretexto


de inúmeras comemorações, tanto em África quanto em França.
São celebrações de carácter simbólico ou vivemos actualmente um
momento crucial da história de África?

l. Entrevista publicada em T"éroma n.e 3169, de 9 de Outubro de 2010, por ocasião da publl-
c.ição da 1.• edição de Sortir de la grande nuit, La Oécouverte, COll!cção cCalúers Libres•.

• Considerando aquilo que se passou na década de 1960, essas Cinquenta anos mais tarde, as independências africanas são uma re-
comemorações são incongruentes. São desprovidas quer de conteú- alidade?
do quer de s imbolismo. Tenta-se cobrir andrajosamente aquilo que o
escritor congolês Sony Labou Tansi chamava o «Estado vergonhoso». Os africanos ainda não dispõem da possibilidade de escolher os seus
No entanto, a verdade é simples. Meio século depois, é necessário re- dirigentes. As antigas colónias francesas converteram-se em satrapias
tomar quase tudo. Mais do que as cerimónias, os povos africanos ne- geradas como feudos privados, transmissíveis de pai para filho, um dos
cessitam de uma transformação radical das suas estruturas políticas, motivos pelos quais, se lhes fosse apresentada a opção de ficar entre os
económicas. sociais e mentais. É a sua relação com o mundo que deve seus ou partir. a maioria dos habitantes escolheria partir. Mais do que
mudar. O facto que é dramático é que, quando não se encontram frag- qualquer outra constatação, esse desejo generalizado diz muito acerca
mentadas e dispersas, as forças aptas para empreender essa mudança da realidade das independências negras. Um pouco por toda a parte,
falham, embora, o continente esteja em vésperas de extraordinárias paira o especto do Haiti - entumecimento de situações autoritárias,
mutações: muito em breve contará com mais de mil milhões de poten- «tonton-macoutização» das e lites e das classes populares, retrocesso
ciais consumidores; um novo ciclo de migrações internas e externas, de qualquer perspectiva revolucionária e, na maioria dos casos, vio-
paralelamente ao afluxo de novos imigrantes, especialmente chineses; lências epilépticas sem projecto de emancipação.
o desenvolvimento de uma civilização urbana ímpar; o reforço de uma
diáspora empreendedora, designadamente, nos Estados Unidos; uma
explosão cultural e uma renovação religiosa contrastante com a senili- Durante a campanha presidencial, Nicolas Sarkozy revelara-se defen-
dade dos poderes em vigor. sor de uma ruptura com a Françáfrica.
Três anos depois, esse sistema está ou não em vias de extinção?

Por que motivo é tão difícil para França pensar de forma crítica a Não é necessário esperar que essa ruptura parta da presidência
história da colonização e das independências africanas? francesa. Nem Nicolas Sarkozy nem qualquer outro dirigente, tanto
de direita quanto de esquerda, a abolirão de livre vontade. Cabe às
Porque foi «descolonizada» sem «autodescolonizar-se». No fundo, forças sociais africanas impor a ruptura com esse sistema de corrup-
a colonização foi uma forma primitiva de supremacia racial. Após a ção recíproca que, caso contrário, perdurará. Chegou o momento de
descolonização, França manteve quase intactos os dispositivos men- pôr um termo a essa história fracassada que não acarreta qualquer
tais que legitimavam essa supremacia e que lhe permitiam brutalizar futuro digno desse nome. No fundo, ter-se-ia· resumido a uma relação
os «selvagens» de sã consciência. Essas estruturas racistas do pensa- razoavelmente abusiva que em nada reflecte a riqueza e a densidade
mento, da percepção e do comportamento voltam, aliás, a emergir das relações humanas estabelecidas ao longo de vários séculos entre
actualmente - mesmo que seja sob formas diferentes - no contexto franceses e africanos.
das controvérsias acerca do islamismo, o uso do véu ou da burca, a
questão das periferias, da imigração ou da identidade. Dado que o
racismo foi um dos principais ingredientes da colonização, descoloni- Desde há cerca de duas décadas, os interesses privados suplantaram
zar significa automaticamente desracializar. Para autodescolonizar-se, os interesses estatais na relação franco-africana. Quais são as conse-
teria sido necessário empreender um imenso trabalho, à semelhança quências?
dos a lemães aquando da desnazificação. Inexistente.
De resto, França considera que, embora a história tenha sido comum, A privatização do Estado nunca foi tão patente na relação franco-
não é digna de ser partilhada. O que, a meu ver, significa que os africa- -africana. A partir do Eliseu, o pdncipe gere - através de milhares de
nos que procuram reinventar o seu futuro, lucrariam se esquecessem agentes e cortesãos, tanto franceses quanto negro-africanos, o que se
França, que não é o centro do mundo. Chegou o momento de olhar assemelha efectivamente a um terreiro. Em vez de manter relações
para outro lado e de deixar de reconhecer-lhe o poder que o país não com os Estados, relaciona-se com os feudos liderados por sátrapas,
detém verdadeiramente. sendo que muitos deles viajam com passaporte francês, dispõem de
propriedades imobiliárias em França e contas em bancos suíços. Essa
••
lógica patrimonial, untada incessantemente por prebendas e por uma constituam; os seus inesgotáveis recursos naturais, hidráulicos e en-
corrupção recíproca, serve directamente os interesses das classes no ergéticos; os seus enormes espaços relativamente virgens. Motivos
poder em África e das redes negociais francesas. O Parlamento francês, pelos quais, na sua estratégia de progressão rápida, a China encontrou
e ainda menos os parlamentos africanos, não exercem qualquer direito um lugar para África. Ela é o único grande interveniente que concede
de vigilância sobre essa relação que, em si, constitui um vasto campo empréstimos de capitais públicos elevados aos Estados africanos sob
de imunidades que contradiz radicalmente os princípios democráticos condições que ameaçam qualquer concorrência. É o único país que in-
fundadores da vida das nações livres. centiva a emigração da sua população excendentária em África. Pre-
sentemente, quase não existem grandes metrópoles africanas que não
disponham do seu «bairro chinês». Contudo, se o novo mundo sino-
Actualmente, como caracteriza a natureza dessa relação? -africano, que se vai desenhando, deve ser diferente do velho mundo
afro-atlântico, é aos africanos que cabe imaginá-lo. Seria lamentável
Senil e abusiva. Paternalista, um cruzamento entre racismo, por um que a velha troca desigual entre África e o Ocidente fosse sucedida por
lado, e de servilidade, velhacaria e cretinismo, por outro. Um reflexo um novo ciclo no qual o continente continua a desempenhar a fun -
de fantasmas. Nada capaz de seduzir o espírito. Um desperdício ina- ~ão de provedor de matérias-primas, mas desta feita para beneficiar a
creditável de tempo, recursos e energias. Asia. As relações com a China não deveriam cingir-se aos intercâmbios
económicos, mas estender-se também aos domínios da cultura e da
arte, sendo essa a condição sob a qual encetariam uma configuração
A chegada de novos investidores ao continente africano (China, Índia,
etc.), sem vínculos coloniais, suscita novos modelos de cooperação
.. inédita da relação do continente com o mundo.

económica?
Os arrendamentos das terras aráveis a empresas estrangeiras-Arábia
Tudo dependerá da capacidade de negociação de novas oportuni- Saudita, Emirados, China - para implantação das culturas de exporta-
dades por parte dos africanos. Será necessário recorrer à alavancagem ção multiplicam-se. Quais são as repercussões desse fenómeno?
chinesa, indiana ou brasileira para possibilitar uma redefinição dos
termos da integração africana na economia mundial. Tudo depende do conteúdo dos acordos celebrados entre os Estados
Para tal, é necessário que existam ideias. E desenvolver uma estraté- africanos e os países ou as empresas em questão. África dispõe de ter-
gia continental a longo prazo. Por enquanto, corre-se fortemente o risco ras que poderiam servir para alimentar metade da população mundial
de que a recuperação dessas novas oportunidades não venha a benefi- em condições respeitadoras do ambiente. Mas também requer investi-
ciar as classes dirigentes autóctones, cuja capacidade de produção as- mentos colossais nas infra-estruturas de base - estradas, portos, aero-
sentou sempre, histórica e maioritariamente, na extracção e na preda- portos e vias-férreas intra-continentais, cursos de água, telecomunica-
ção das riquezas e nunca no poder de gerar e fornecer trabalho para ções, redes de abastecimento de energia hidráulica e solar. Para tornar
a população. Deve abandonar-se a velha lógica de açambarcamento e activa uma parte da população, terá de iniciar um ciclo de enormes
destruição, dado que não contribui para a formação de patrimónios obras coordenadas por autoridades continentais semi-públicas, semi-
colectivos. -privadas, tal como fez Roosevelt nos Estados Unidos, com o New Deal.
Se o arrendamento das terras aráveis se fizer acompanhar desse tipo
de investimentos, poderia proporcionar novas perspectivas de trabalho
Segundo escreve, o factor crucial das próximas cinco décadas em Áfri- a uma população que, presentemente, só pode optar entre o recruta-
ca será a presença da China. mento para guerras infindáveis ou a migração. A África do Sul é o único
Quais serão os efeitos para África e para os seus restantes parceiros país no qual essa estratégia foi implementada com êxito. Acresce ainda
históricos, França e Reino Unido? que, para concretizar verdadeiramente esse tipo de operação, também
é necessário investir no sectores sociais, do ensino e da saúde, em es-
África dispõe de três vantagens: a sua demografia - que, muito pecial.
em breve, ultrapassará a fndia - contanto que essas populações se
Tem uma visão muito taciturna da evolução africana e, em especial, da
África francófona. Como fundamenta esse «afro-pessimismo»?

As situações variam de um país para outro e existem, aqui e acolá. al-


gumas clareiras. Todavia. só sendo perfeitamente cínico. cego e dotado
de má-fé se pode fazer acreditar a quem quer que seja que África está
no bom caminho e que. em muitos casos, não está em vias de desen-
caminhar-se.
A relação que África mantém consigo mesma e com o mundo carac-
teriza-se por uma vulnerabilidade de natureza hjstórica que se mani-
festa frequentemente pela incapacidade das classes dominantes de pôr
as pessoas a trabalhar com vista a aumentar as suas riquezas colectivas.
Traduz-se também por uma incapacidade relativa para ditar ou trans-
formar os termos do intercâmbio com o mundo exterior. Se. o facto de
alguém se interrogar acerca da natureza dessa vulnerabilidade e falar
abertamente sobre os impasses actuais - sendo que muitos deles nos
dizem respeito - fomentam o afro-pessimismo, então paciência! O mo-
mento de África chegará. talvez.dentro de pouco tempo. Mas, para preci-
pitar a sua chegada, não poderemos economizar as novas formas de luta. ,.

Qual é a quota de responsabilidade das elites africanas nesse balanço?

É considerável. Cada pa ís tem as elites que merece. Trata-se de um


problema de relações de forças entre as classes dominantes e a socie-
dade.Arriscando-me a empregar uma linguagem um tanto anacrónica.
diria que a democracia não se implantará em África sem um mínimo
de antagonismos de classe. Enquanto a estrutura social permanecer
gelatiniforme e as classes sociais não prestarem contas a ninguém. po-
dem fazer aquilo que bem entendem com as riquezas nacionais e não
têm qualquer motivo para servir os interesses públicos. Em contrapar-
tida. servem de á libi étnico para disciplinar grupos humanos inteiros
e desprovê-los de qualquer vontade de mudança consolidando os seus
próprios interesses.
Em 2010, não obstante a crise, o crescimento africano ronda os 4,5
%. valor muito superior ao europeu ou ao norte-americano. Um sinal
auspicioso para o futuro? Trata-se de um crescimento muito frágil.
Não é estrutural e encontra-se, por isso, à mercê de uma inversão da
conjuntura. Continuamos a exportar matérias-primas sem valor acres-
centado em vez de transformá-las in loco - facto que, além de gerar
mais trabalho e especialização, proporcionaria mais receitas fiscais
aos Estados. Ainda não foram reunidas as condições para um verda-
deiro salto qualitativo.

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