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artigo internacional
uma revisão dos efeitos
do storytelling* nas
tradições religiosas
J. D. Sunwolf, PhD
Departamento de Comunicações, Universidade Santa Clara.
E-mail: sunwolf@scu.edu
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comunicação & educação • Ano X • Número 3 • set/dez 2005
the beginning. Journal of trazem lições implícitas e explícitas. Se, como argumentou Fisher, as pessoas
Commun ication, 35(4),
74-89, 1985. Id. Human buscam instintivamente uma lógica narrativa, e todos os seres humanos são
communication as narra em essência contadores de histórias, então compartilhá-las é uma ferramenta
tion: toward a philosophy
of reason, value, and ac poderosa para ajudar a conferir sentido a valores espirituais, dividir essas
tion (Comunicação huma
na como narração: para
crenças com outros e, assim, entender profundamente suas próprias mentes
uma filosofia da razão, e almas.
valor e ação). Columbia:
Press University of South
As histórias estão entre nossas unidades mais básicas de comunicação. So-
Carolina, 1987. mos socializados através da narratividade, embora possamos ser educados por
4. Fisher, W. R. The narra meio da racionalidade 4. O papel das histórias, sob uma perspectiva social, foi
tive…, op. cit.
analisado em campos tão diversos como psicologia, sociolingüística, ciências
5. Sarbin, T. R. Narrative
psychology: the storied políticas, história, antropologia, direito e comunicações. Os seres humanos
nature of human conduct pensam, percebem, imaginam e fazem escolhas morais de acordo com as es-
(Psicologia narrativa: a
natureza da conduta hu truturas narrativas5.
mana contada). New York: Ainda que os efeitos de compartilhar narrativas visando à transmissão de
Praeger, 1986.
cultura entre crianças em ambientes educacionais e entre aqueles que estão
6. Sunwolf, J. D. The
pedagogical and per
doentes tenham sido bem documentados, pouca atenção acadêmica direciona-se
suasive effects of Native à questão de como ouvir narrativas afeta os membros de tradições e comunida-
American lesson stories,
African dilemma tales, and des espirituais. Os próprios contadores de histórias, entretanto, há muito tempo
Sufi wisdom tales (Os efei reconhecem o poder de as narrativas transportarem os ouvintes do momento da
tos pedagógicos e persua
sivos de histórias morali dor a um “e todos viveram felizes para sempre”6, com poderosos relatos provo-
zantes americanas nativas, cando intensos flashes de introspecção para os ouvintes com necessidades, físicas
contos de dilema africanos
e contos de sabedoria ou espirituais. Desespero, trauma, doenças e luto criam florestas amedrontantes
Sufi). Howard Journal de dor, com trilhas desconhecidas; em tal contexto, ouvir histórias, para aqueles
of Communications, 10,
47-71, 1999. que sofrem, pode significar novos caminhos para sair da escuridão7.
7. Id. Grief tales: the the
Os contos orais vieram antes dos textos escritos em todas as tradições re-
rapeutic power of folk- ligiosas. Há muito é reconhecido na espiritualidade judeo-cristã, por exemplo,
tales to heal bereavement
and loss. (Contos de tris que os próprios textos sagrados originaram-se de histórias orais que traziam
teza: o poder terapêutico não apenas proezas, mas também os ensinamentos tradicionais8, uma vez que as
de contos folclóricos para
curar luto e perda). Diving narrativas maiores (o Pentateuco ou as histórias deuteronômicas, isto é, aquelas
in the Moon, Honoring dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento atribuídos a Moisés: Gênesis,
Story, Facilitating Healing,
4, 36-42, 2003. Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) careciam da estrutura enxuta das
8. Campbell, A. F., sj. The
histórias orais do dia-a-dia, a partir da qual esses épicos foram compostos. Um
storyteller’s role: reported histórico maior sobre as tradições orais e escritas, e o efeito da ausência de
story and biblical text (O
papel do contador de
aptidão literária geral, é fornecido por Nidith9.
histórias: história contada e Para iniciar a discussão, serão esclarecidos três termos: espiritualidade, fé
texto bíblico). The Catholic
Biblical Quarterly, v. 64, e religião.
427-441, 2002. O termo espiritualidade tem diversos significados, muitas vezes utilizados er-
9. Nidith, S. Oral world roneamente, como sinônimos de religião ou, pejorativamente, como sinônimos
and written word: ancient
israelite literature (Mundo
de religiões não-tradicionais e não-institucionalizadas (experiências da Nova Era,
oral e palavra escrita: por exemplo). Aqui, utilizaremos várias definições úteis de praticantes externos
literatura israelita antiga).
Louisville, Westminster:
às organizações religiosas. Canda10 define espiritualidade como a “busca humana
John Knox Press, 1996. pelo significado pessoal e pelos relacionamentos mutuamente recompensadores
10. Canda, E. R. Spiri entre pessoas, o ambiente não-humano e, para alguns, Deus”. Já Bullis11 a con-
tuality, religious diversity,
and social work practice
ceitualiza como “os sentimentos e experiências internas de proximidade com
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Era uma vez, para a alma • J. D. Sunwolf
fundamentado, não na trama, mas na emoção, que a oralidade da narrativa 12. Angell, G. B.; Den
nis, B. G.; Dumain, L.
destaca. A emoção, por sua vez, é o local exclusivo de morada da alma. O E. Spirituality, resilience,
modo pelo qual a emoção de um conto é comunicada, porém, torna-se mais and narrative: coping with
parental death (Espiritua
difícil de compreender. lidade, resiliência e narra
A investigação da trama emocional de uma história envolve prestar aten- tiva: lidando com morte
parental). Families in So
ção à sua essência. Harold Scheub, professor de humanidades e de língua e ciety, 79, 615-630, 1998.
literatura africana “Evje-Bacom” da Universidade de Wisconsin, em Madison, 13 . Ibid.
colecionou contos orais ao caminhar mais de seis mil milhas15 pela África do 1 4 . I b i d . Krippner ,
Sul, Suazilândia, Zimbábue e Lesoto. Ele era motivado pela pergunta: “Qual S.; Welsh, P. Spiritual
dimens ions of healing
a essência da história?”. Como o contador de histórias transmite significado? (Dimensões espirituais da
Aprendeu isso por meio de Nongenile Masithathu Zenani, uma mulher que, cura). New York: Irvington
Publishers, 1996.
dentre esses contadores de histórias, admitiu que freqüentemente se via em
15. Equivalente a 9.655,8
uma batalha entre a tradição e as tendências sociais contemporâneas. Ela ex- quilômetros.
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Estruturas de histórias
História
1. uma narrativa, seja verdadeira ou fictícia. 2. um jeito de saber e lem-
brar informações; uma forma ou padrão no qual informações podem ser
organizadas e experiências, preservadas. 3. uma ordem antiga e natural
da mente. 4. fragmentos isolados e desconexos da experiência humana
ligados em um todo significativo.
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pelos pregadores em todo o mundo. Ele enfatiza que as parábolas contêm 23. White, W. R. Stories
for telling…, op. cit.,
sabedoria, e cita Mateus 13,34: “Jesus disse às multidões todas essas coisas em p. 21.
parábolas; sem uma parábola, ele nada dizia a elas”. 24 . Bausch, W. J. A
Bausch situa o dilema do contar histórias e da espiritualidade bem no world of stories for prea
chers and teachers (Um
âmago dos efeitos de mídia, citando a preocupação de George Gebner, do mundo de histórias para
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Houve uma vez um mercador cuja mulher estava doente e, então, quando
ela sentiu a morte se aproximar, pediu à única filha que se aproximasse
de seu leito. Urgentemente, com uma voz cheia de amor, ela disse a sua
filha, “Seja devota e boa, e Deus sempre cuidará de você. E para sempre
olharei para você do céu, e assim você nunca ficará sem mim”. Então,
fechou os olhos e morreu. A filha visitava o túmulo de sua mãe todos
os dias e chorava amargamente.
Aschenputtel
pastores e professores).
Mystic, CT: Twenty-Third (Uma versão antiga de um conto do tipo Cinderela, adaptada pelo autor
Publications, 1999. a partir de muitas fontes. Originalmente, um conto folclórico coletado
25. Ibid., p. 1. na Alemanha por Jacob e Wilhelm Grimm, os irmãos Grimm.)
26. Ibid., p. 2.
27. White, W. R. Stories As palavras mágicas “Era uma vez...”, que muitas vezes iniciam um conto
for telling…, op. cit., folclórico ou de fadas tradicional, induzem um transe relaxante, familiar e
p. 15.
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a história não nos julga. Uma boa narrativa é aquela que podemos aceitar ou 33. Ibid., p. 290.
rejeitar e, paradoxalmente, tal liberdade torna mais provável a aceitação. Daniel 34. ROOKS, D. Spinning
gold out of straw: how
Taylor, um professor de inglês de Bethel College, em Minnesota, escreve que stories heal (Separando
as pessoas hoje estão confusas sobre quem são, por que estão aqui e o que ouro de palha: como histó
rias curam). St. Augustine,
devem fazer — dúvidas que tradicionalmente foram mais bem respondidas por FL: Salt Run Press, 2001.
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até que, por fim, nada sobrou, exceto a história. Mas contar a história
ainda era suficiente.
Doug Lipman39, adaptado de um conto oral
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mente, o de pedagogia. Livo e Rietz45 argumentam que na narrativa oral nos 45. Livo, N.; Rietz, S. Story
telling: process and practice
é apresentada uma verdade sobre quem somos e mesmo sobre por que somos (Contar histórias: processo e
prática). Littleton, CO: Libra
quem somos, pois o conto apropria-se do comum e associa-o à existência humana, ries Unlimited, 1986.
revelando a importância do trivial. De fato, estudiosos há muito concordam 46. Polkinghorne, D.
E. Narrative knowing and
que sistemas de histórias ajudam-nos a organizar as experiências e a aprender the human sciences (Narra
a partir delas; Polkinghorne46 argumenta que uma história torna um evento tiva do conhecimento e as
ciências humanas). Albany,
individual compreensível ao identificar o todo com o qual um único evento NY: State University of New
York Press, 1988.
contribui. Como este é um dos principais objetivos das religiões organizadas
47. Wanner, S. Y. On
(Por que coisas ruins acontecem com pessoas boas?), histórias são valiosas para with the story: adolescents
ajudar as pessoas a aprenderem a partir dos acontecimentos em suas vidas. learning through narrative
(Com a história: adolescen
Wanner47 descobriu que o processo de compartilhar narrativas orais valoriza tes que aprendem através
da narrativa). Portsmouth,
uma determinada lógica do saber: enquanto a linguagem escrita pode apresen- NH: Boynton/Cook, 1994.
tar lógica dedutiva ou indutiva, a linguagem falada apresenta uma visão mais 48. Gee, J. P. The narra
dinâmica. Por exemplo, a análise lingüística de Gee48 sobre o tempo de partilha tivization of experience in
the oral style (A narrati
de histórias de uma criança afro-americana de sete anos, na fase escolar de vização de experiência no
estilo oral). Journal of Edu
“mostrar e contar”, é evidência de que ela pode compreender suas experiências cation, 167, 9-35, 1985.
através de um estilo oral de fala que difere do estilo culto do professor. * Relativos à corrente
Muitas tradições religiosas utilizam “ensinar histórias” para influenciar es- mística moderna, inspirada
na Cabala. (N.E.)
colhas morais. Os judeus chassídicos* utilizavam a história como principal meio
49. Mintz, J. R. The le
para instruir suas crianças a elucidarem o significado do Antigo Testamento49 . gends of Hasidism: an
introduction to Hasidic cul
Narrativas apareceram em muitas formas nos primeiros sermões e na literatura ture and oral tradition in the
devocional cristã, falando sobre as vidas de santos, modelos da vida religiosa New World (As lendas de
Chassidismo: uma introdu
correta, fábulas, das quais os pregadores retiravam elementos de moralidade e ção para cultura chassídica
e tradição oral no Novo
até ilustrações para rememorar, oralmente, a vida de Jesus50. Storytelling é um Mundo). Chicago: University
modo de persuasão religiosa que floresceu na Idade Média e foi a ferramenta of Chicago Press, 1968.
básica dos evangelistas nos Estados Unidos, no século XX. 50. Schuetz, J. Oscar
Romero: archbishop of…,
Kaufman51 oferece uma descrição antropológica completa da literatura de op. cit. Gerhardson, B.
Memory and manuscript:
“sabedoria”, inclusive das fábulas, apólogos, parábolas, contos religiosos, anedotas, oral tradition and written
contos de moral, piadas e provérbios. Todos esses tipos de histórias derivam de transmission in rabbinic Ju
daism and early Christianity
um gênero que continha um propósito comunicacional duplo (conhecido no (Memória e manuscrito:
tradição oral e transmis
espanhol como instruir deleitando, ou seja entreter, mas, ao mesmo tempo, en- são escrita no Judaísmo
sinar). As histórias têm o poder de ensinar moralidade, evitando o formato de rabínico e no cristianismo
primitivo). Trad. E. J. Shar
palestra, que é desagradável para os ouvintes. O arcebispo dom Oscar Romero pe. Copenhagen: Ejnar
Munksgaard, 1961.
foi influente, em parte, por causa de sua habilidade em escrever histórias nas
51. Kaufmann, W. O.
quais personagens maus perdiam a luta contra os bons52. Anteriormente, argu- The anthropology of wis
mentei que os efeitos persuasivos de histórias orais ao transportar aprendizados dom literature (A antro
pologia da literatura da
profundos para os ouvintes podem derivar de (a) pensamentos autogerados pelo sabedoria). Westport, CT:
Bergin & Garvey, 1996.
ouvinte enquanto escuta o conto, (b) da percepção cognitiva ativa do ouvinte
52 . schuetz, J. Oscar Ro
durante a narrativa do conto, (c) da modelagem de comportamentos e valores mero: archbishop of…, op.
apropriados (ou caros) na trama do conto e/ou (d) da introdução de eventos cit. Id. Storytelling and pre
aching: a case…, op. cit.
ou conseqüências que provocam deliberação consciente53. 53. Sunwolf, J. D. The
O papel do storytelling na tradição espiritual de muitos povos nativos norte- pedagogical and persua
sive effects..., op. cit.
americanos incluía a crença de que uma história bem contada seria lembrada
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por mais tempo pela audiência do que dizer “você deve!” ou “você não deve!”54 .
Os contos da sabedoria sufista, originários do Oriente Médio, reconhecem o
poder das histórias orais para enfatizar pontos de ensinamento sem ordenar a
resistência mental que o raciocínio lógico mais afiado aparenta deflagrar55 . Já
contos de dilemas africanos trazem ensinamentos morais profundos, muitas vezes
negociados e renegociados dentro das próprias comunidades que os contam.
Tais contos funcionam como uma parte integral do treinamento moral e ético
em muitas sociedades africanas; eles terminam com uma pergunta, que deve
ser respondida pelos ouvintes56 .
Os contos folclóricos dos Upâya, do leste asiático, propõem ensinamentos
espirituais através da técnica de “instruções erradas”. Miller57 conclui que há uma
conexão intricada entre as estratégias narrativas dos contadores de histórias e as
mensagens religiosas e morais. A estrutura desses contos folclóricos fundamenta-se
em um ser super-humano central que aparece para trazer melhorias espirituais
ou morais a alguém. Há, portanto, uma intervenção sobrenatural nos assuntos
humanos. Os contos são baseados em sabedoria transcendental (prajñâ), isto é, o
conhecimento claro da realidade, como ela verdadeiramente é, que deve incluir
a introspecção para o estado espiritual da pessoa na qual o poder sobrenatural
deve operar. As ações são conduzidas pela compaixão, com o intuito de ajudar
54. Bruchac, J. Roots of
survival: native american
outras pessoas e que vem diretamente de sentir o sofrimento delas como se
storytelling and the sacred sente o próprio pesar, de forma que as deidades são altamente empáticas. Um
(Raízes da sobrevivência:
narração americana nativa
exemplo do poder de ensinamento desses contos folclóricos é a famosa parábola
e o sagrado). Golden, CO: da “Casa em Chamas”, recontada por Miller, e resumida aqui:
Fulcrum, 1996.
55. Friedlander, S. O personagem central é um pai benevolente, que tem muitos filhos. O
Talks on Sufism: When
you hear hoofbeats think pai volta para casa e descobre que ela está em chamas; mas, seus muitos
of a zebra (Conversas em filhos estão tão envolvidos com brincadeiras que ignoram seus gritos para
Sufi: quando ouvir um
tropel, pense em uma que saiam da casa. Assim, decide contar uma mentira. Ele diz que trouxe
zebra). Costa Mesa, CA: vários brinquedos novos para eles brincarem, e que estão lá fora. Ouvindo
Mazda, 1992.
isso, todas as crianças correm para fora, mas não há brinquedos novos.
56. Bascom, W. R. Afri
can dilemma tales (Contos
de dilema africanos). Paris: Nessa tradição de instruções erradas, insiste-se que não há, na verdade,
Mouton, 1975.
nenhuma “mentira”. O que ocorre é que se trabalha com uma sabedoria trans-
57. Miller, A L. Spiritual
accomplishment by mis
cendental misteriosa.
dir ect ion: some Upâya
folktales from East Asia
(Realização espiritual atra
vés de instruções erradas: Ferramentas de histórias: uma forma de criar
alguns contos folclóricos
de Upâya da Ásia Orien Histórias podem funcionar como receitas para o pensamento futuro sobre
tal). History of Religions,
40, 82-108, 2000. comportamentos e resultados. Em comunidades religiosas, a justiça social e a
58. Frey, R. The world of mudança são os principais objetivos, além da busca pela iluminação pessoal.
the Crow Indians: as drif Frey58, estudando contos orais de tradições espirituais dos nativos americanos,
twood lodges (O mundo
dos índios Corvo: como argumenta que as próprias “palavras” às vezes são produtivas. Muitas tradições
chalés de madeira flutuan espirituais acreditam que narrar um conto tem o poder de trazer o evento ao
te). Norman: University of
Oklahoma Press, 1987. presente. Assim, os contos são perigosos e sagrados. Em especial, alguns povos
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Era uma vez, para a alma • J. D. Sunwolf
resultado, pertence à religião, não ao contador; sem autor, a história é publicada 61. LaMothe, R. Perfor
mances of faith: a relation
vez após vez, sendo transportada pelo fôlego do contador ao ouvido (e coração) between conscious and
do ouvinte. O espírito vivo da religião recebe músculos e um esqueleto através da unconscious organizations
of faith (Desempenhos
história, para que possa agir junto às pessoas que ela serve. Sabemos que a memó- de fé: uma relação entre
ria narrativa é forte, facilitando a retenção e a lembrança individual. A pesquisa organizações conscientes
e inconscientes de fé).
de Schank62 sobre a inteligência artificial, por exemplo, iluminou a memória e Pastoral Psychology, 49,
a inteligência humanas. Especialista em inteligência artificial, Schank concluiu 363-377, 2001.
que podemos informar as pessoas sobre regras gerais abstratas que derivamos de 62. Schank, R. C. Tell
me a story: a new look at
nossas experiências passadas, mas é muito difícil as pessoas aprenderem com elas. real and artificial memory
Temos dificuldade de memorizar tais abstrações, mas conseguimos lembrar mais (Conte-me uma história:
facilmente uma boa história. Ele nos diz ainda que todo pensamento envolve um olhar novo sobre a
realidade e memória artifi
alguma forma de indexação. Para assimilarmos um fato, precisamos fixá-lo em cial). New York: Charles
algum lugar em nossa memória. Informações às quais não há acesso não são Scribner’s Sons 1990.
informações. A memória, fundamental para a vitalidade de qualquer religião, 63. Halper, L. Ancestral
perception with a Nati
é, com efeito, criada e preservada contando-se histórias. ve American storyteller
Registrar histórias, ou fazer um álbum de recordações, é uma atividade (Percepção ancestral com
um contador de histórias
proeminente em muitas tradições religiosas. Tribos de nativos americanos, bem americano nativo). Journal
como vários grupos mestiços do Havaí, são excelentes exemplos de povos que of Religion & Psychical
Res earch, 19, 232-234,
mantêm os ensinamentos espirituais de ancestrais em suas histórias. Halper63, 1996.
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dade de vídeos e os muitos canais de filmes na TV a cabo contribuíram para 68. Goleman, D. Intro
duction (Introdução). In:
distanciar os indivíduos das poderosas histórias das pessoas que os cercam – e FRIEDLANDER, S. Talks
os isolaram muito de uma consciência plena de suas próprias e ricas histórias, on Sufism..., op. cit., p.
VII-IX.
pessoais. A seguir, veremos três caminhos que enriqueceriam a prática e o en-
69. Collins, R.; Co
tendimento do storytelling em tradições espirituais: como fazer novas conexões oper, P. J. The power
entre o contador e o ouvinte, como criar novos locais para os contos serem of storytelling: teaching
through storytelling (O
compartilhados e como apoiar pesquisas inovadoras sobre o contar e o ouvir poder da narração: ensi
histórias, de uma pessoa para outra no mundo real. nando por narração) 2. ed.
Scottsdale, AZ: Gorsuch,
1997.
O que as histórias fazem? 70. St. John, P. Dreamer
Afetam-nos, nada mais. (Sonhador). Pittsburgh, PA:
Carnegie Mellon University
Primus St. John70 Press, 1990.
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O Efeito Velcro®
Bausch72 argumentou sobre a importância dos contos mais curtos, como
parábolas que “permanecem no subconsciente, talvez até provocando um pe-
queno desconforto – em uma palavra, histórias que ressonam com a condição
humana”. O objetivo do contador de histórias nas tradições espirituais é o mes-
mo: manter-se muito próximo do espírito multifacetado do ouvinte. A história
desse sucesso pode ser comparada ao efeito Velcro®.
George de Mestral descobriu o segredo do Velcro® enquanto caçava nas
montanhas Jura, na França, em 1941. Após arrastar-se pela mata, por entre
arbustos, suas calças de lã ficaram cobertas de carrapichos que tinham incrível
poder de adesão. Ele analisou esses espinhos com uma lupa e descobriu que
cada um deles tinha centenas de pequenos ganchos enroscados nos laços do
tecido de suas calças. Mestral construiu uma máquina para replicar esses ganchos
e chamou o produto novo de Velcro®, das palavras francesas velour e crochet.
A mente e a alma do ouvinte são cobertas com trilhões de minúsculos
ganchos. Histórias memoráveis grudarão nesses ganchos. Quantos mais laços e gan-
chos, melhor. O objetivo dos contadores de histórias espirituais é o do coletor:
continuamente procurar por contos que têm “poder de adesão”.
As histórias não são criadas da mesma forma: uma lição é aprendida
continuamente com a proliferação da televisão e com a sedução, da mídia,
pela história superficial. O conto superficial de uma pessoa pode representar
o alimento espiritual imprescindível da outra? Talvez. Ainda assim, há contos
mais ricos a serem coletados, e comunidades de contadores de histórias das
tradições religiosas devem ser estimuladas a buscá-los.
O efeito da vividez
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Versão escrita:
Certa vez, há muito tempo, quando a mágica ainda existia, estranhos às vezes
apareciam à sua porta. Você não conhecia essas pessoas, e nunca sabia quando viriam.
Depois, sua vida era alterada para sempre. Às vezes para melhor, outras vezes, não.
Formato oral:
Certa vez,
há muito, muito tempo,
quando a má-gica
a-i—n—d-a
existia,
estra-nhos
às vezes
apareciam
à sua
porta.
Você não conhecia essas pessoas...
e nunca, nunca sabia
quando viriam.
Depois,
depois,
sua vida era alterada
p-a-r-a s-e-m-p-r-e.
Às vezes para melhor,
outras vezes, não.
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Embora não exista um modo certo de criar uma versão oral a partir de
um texto escrito, sua mente lembrará a diferença de forma mais completa se
ele for oralizado antes de ser decorado. A segunda versão é lúdica, o que o
espírito adora. As palavras são repetidas, quebradas ou amortecidas, entremeadas
por breves períodos de silêncio. O contar a história é mais íntimo e até mais
familiar com as coisas do dia-a-dia, alcançando diretamente a alma.
Não basta encontrar contos e estar disposto a contá-los. O compromisso
com o ouvinte deve ser mais forte para o contador de histórias religiosas, para
que estas “colem” um pouco melhor. No entanto, esta é uma tarefa difícil. Os
ouvintes não precisam de mais histórias, mas de histórias mais bem contadas.
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comunicação & educação • Ano X • Número 3 • set/dez 2005
Histórias são alimentos mágicos que são oferecidos aos outros e, quando
recebidas pelo coração, elas nunca acabam.
Fishes and Loaves [Peixes e Pães]
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Era uma vez, para a alma • J. D. Sunwolf
Resumo: Histórias estão entre as nossas Abstract: Stories are among our most
unidades mais básicas de comunicação. So basic units of communication. We are
mos socializados através da narratividade, socialized through narrativity, though we
embora possamos sê-lo também por meio can be educated through rationality. The
da racionalidade. O papel das histórias em role of stories in a social explanation was
uma explicação social foi analisado em analyzed in fields as diverse as psychology,
campos tão diversos como a psicologia, sociolinguistics, political sciences, history,
sociolingüística, ciências políticas, história, anthropology, law and communication.
antropologia, direito e comunicações. Os Human beings think, perceive, imagine
seres humanos pensam, percebem, imagi and make moral choices according to
nam e fazem escolhas morais de acordo their narrative structures. However the
com as estruturas de narrativa. Embora os effects of sharing narratives have been
efeitos de compartilhar narrativas tenham well documented for children in educative
sido bem documentados entre crianças em environments, as culture carriers, and for
ambientes educacionais, como portadoras the sick people, relatively small academic
de cultura, e entre aqueles que estão attention was focused on how listening
doentes, relativamente pouca atenção to narratives affects the members of tra
acadêmica direciona-se à questão de como ditions and spiritual communities. Though,
ouvir as narrativas afeta os membros de storytellers themselves have recognized for
tradições e comunidades espirituais. Os long time the power of narratives to take
próprios contadores de histórias, entretan the listeners from the pain in a moment to
to, há muito tempo reconhecem o poder the “and they all lived happily ever after”.
que as narrativas têm para transportar os Oral tales came before written texts in all
ouvintes da dor do momento a um “e todos spiritual traditions. To focus the discussion,
viveram felizes para sempre”. Os contos three terms are clarified: spirituality, faith
orais vieram antes dos textos escritos em and religion. Here, an intersection is given
todas as tradições religiosas. Para enfocar to frame the discussion of stories: attention
a discussão, são esclarecidos três termos: is given to the use of oral stories inside
espiritualidade, fé e religião. Aqui, uma spiritual practices, to goals that generate
interseção é oferecida para enquadrar a faith and to religious institutions. People
discussão de histórias; dá-se atenção ao have a basic necessity of spirituality to
uso de histórias orais dentro de práticas help them in giving sense to the world
espirituais, de metas que geram fé e dentro and frame their choice on what to believe
de instituições religiosas. As pessoas têm or reject, determine what to valorize and
uma necessidade básica pela espiritualida guide to behavioral choices. Religions
de para ajudá-las a dar sentido ao mundo, offer more specific structure, support and
enquadrar suas escolhas sobre em que crer foundation for a central spiritual need.
ou rejeitar, determinar o que valorizar e Storytelling is a vital tool for reaching
para guiar escolhas comportamentais. As these necessities and goals.
religiões oferecem uma estrutura, um su
porte e uma fundação mais específicas para
a necessidade espiritual central. O ato de
contar histórias é uma ferramenta vital para
alcançar essas necessidades e metas.
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