Sunteți pe pagina 1din 360

O ARDIL TOTALITÁRIO

Imaginário político no
Brasil dos anos de 1930
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor Clélio Campolina Diniz
Vice-Reitora Rocksane de Carvalho Norton

EDITORA UFMG
Diretor Wander Melo Miranda
Vice-Diretor Roberto Alexandre do Carmo Said

CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (presidente)
Ana Maria Caetano de Faria
Flavio de Lemos Carsalade
Heloisa Maria Murgel Starling
Márcio Gomes Soares
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Roberto Alexandre do Carmo Said
Eliana de Freitas Dutra

O ARDIL TOTALITÁRIO
Imaginário político no
Brasil dos anos de 1930

2ª edição

Belo Horizonte
Editora UFMG
2012
© 1997, Eliana de Freitas Dutra
© 1997, Editora UFRJ; Editora UFMG
© 2012, Editora UFMG, 2ª ed.

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem
autorização escrita do Editor.
___________________________________________________________________________

D978a Dutra, Eliana Regina de Freitas.


O ardil totalitário : imaginário político no Brasil dos anos de 1930 /
Eliana de Freitas Dutra. – 2. ed. – Belo Horizonte : Editora UFMG,
2012.
359 p. – (Humanitas)

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7041-964-4

1. Brasil – História, 1930-1937. 2. Brasil – Política e governo,


1930 -1937. I. Título. II. Série.

CDD: 320.981
CDU: 32(81)
___________________________________________________________________________

Elaborada pela DITTI – Setor de Tratamento da Informação


Biblioteca Universitária da UFMG

DIRETORA DA COLEÇÃO Heloisa Maria Murgel Starling


COORDENAÇÃO EDITORIAL Danivia Wolff
ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo
COORDENAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro
REVISÃO DE PROVAS Camila Figueiredo, Davi Bezerra de Souza e Késia Oliveira
COORDENAÇÃO GRÁFICA Cássio Ribeiro
PROJETO GRÁFICO Cássio Ribeiro, a partir de Glória Campos – Mangá
FORMATAÇÃO E MONTAGEM DE CAPA Heleno R F
IMAGEM DA CAPA: detalhe de Lasar Segall, Eternos caminhantes (1919, pintura
a óleo sobre tela, 138 x 184 cm), acervo do Museu Lasar Segall - IBRAM/MinC

EDITORA UFMG
Av. Antônio Carlos, 6.627 | CAD II / Bloco III
Campus Pampulha | 31270-901 | Belo Horizonte/MG
Tel.: + 55 31 3409-4650 | Fax: + 55 31 3409-4768
www.editora.ufmg.br | editora@ufmg.br
A história é a substância da nossa vida e
o lugar da nossa morte.
Entre viver a história e interpretá-la,
nossas vidas passam.
Ao interpretá-la, vivemo-la, fazemos história;
ao vivê-la, interpretamo-la:
cada um de nossos atos é um signo.

Octavio Paz

Para Alemão,
pelo compartilhar desta e
de uma “outra” história.

Para Yonne, Carla,


Regina e Ciro que viveram comigo
importantes momentos deste trabalho.
AGRADECIMENTOS
Este livro resulta da minha tese de doutoramento em História
Social, defendida no início de 1990, na Universidade de São Paulo
(USP).1 Várias mudanças e supressões foram realizadas no texto
original a fim de limitar os traços acadêmicos de sua feição.
O seu tema central é o da construção de um imaginário
político no Brasil dos anos de 1930 — particularmente entre
1935-1937 — num cenário de confronto entre comunistas e
anticomunistas, entre revolução e contrarrevolução, precipitado
pela mobilização nacional em torno da Aliança Nacional
Libertadora e pelas insurreições aliancistas de novembro de 1935.
Esse imaginário é urdido em torno de uma “utopia totalitária”
que atravessa os campos de exercício do poder político e os
enfrentamentos ideológicos do período, assombrando os sonhos
democráticos de então.
Ao lidar com o contexto político dos anos de 1930, deparei com
questões — como a da propaganda política — que me colocaram
frente a frente com a dura realidade do autoritarismo e com os
desafios da construção de uma prática política democrática,
presentes ainda hoje no Brasil. Aprendi então que a dimensão
imaginária da vida política não pode ser descurada.
Vivências intensas acompanharam o trajeto da construção
deste trabalho, e na altura da campanha presidencial de 1989,
entre a minha mesa de trabalho e a televisão, o tempo parecia
confundir-se e eu via repostas na cena política do final dos anos
de 1980, palavras, estratégias e ações que me faziam novamente
mergulhar nos anos de 1930 e, quando voltava a lidar com o
passado, sentia-me no presente. Nesse momento, aprendi também
a lição das durações e das sobrevivências na história.
Para a sua realização, contei com a firmeza da orientação
de Adalberto Marson, com a precisão das suas indicações
bibliográficas e seus respeitosos comentários. No momento
da defesa da tese senti-me homenageada com suas palavras
de carinho. Na banca, tive o privilégio de contar ainda com
a presença dos professores Roberto Romano, Renato Mezan,
Arnaldo Daraya Contier e Nicolau Sevcenko, aos quais agradeço
pela leitura atenta e pela valiosa crítica.
De muitos outros nomes não posso esquecer. Celso Levi e Dr.
Antônio Ribeiro sinalizaram leituras importantes que municiaram
a minha incursão na área da psicanálise. Carla Santiago e Betânia
Figueiredo foram profissionais incansáveis e me apoiaram na
pesquisa documental. Lucília Neves e Leôncio M. Rodrigues,
com generosidade, abriram caminhos para que eu chegasse a
importantes parcelas da documentação. Os funcionários do
Arquivo Público Mineiro, do Arquivo Nacional, da Biblioteca
Nacional e do Superior Tribunal Militar não pouparam esforços
para me auxiliar. Ciro B. de Mello e Regina Horta foram leitores
atentos que me sugeriram com amizade importantes questões.
Yonne Grossi e Carla Anastasia foram interlocutoras amigas
que diminuíram a solidão do meu trabalho. Léa Nilce Mesquita
apaziguou a minha luta com as palavras que Ana Elizabeth Porto
da Rocha decifrou com dedicação.
Não poderia deixar de mencionar o apoio institucional,
indispensável, que recebi da CAPES e da UFMG.
Em família, Alemão, André e Felipe mais uma vez foram
presenças fundamentais, e o carinho de Cristina foi um suporte
em vários momentos.
Com a licença de Clarice Lispector eu diria que “este livro se
pediu uma liberdade maior que tive medo de dar. Ele está muito
acima de mim. Humildemente tentei escrevê-lo. Eu fui mais forte
do que eu.”
Belo Horizonte, 1997

NOTA
1
Originalmente intitulada O ardil totalitário ou a dupla face na construção do
Estado Novo e orientada pelo professor Doutor Adalberto Marson.
SUMÁRIO

PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO 13

PREFÁCIO 17

INTRODUÇÃO 23

Parte 1
C OM UNISMO E ANTICOMUNISMO
A IDENTIDADE DOS OPOSTOS

O EXORCISMO DO MAL 39
AS ARMADILHAS DO BEM 87

Parte 2
PÁTRIA AMAD A, MÃ E GENTIL
A FANTASIA DA PROTEÇÃO ONIPOTENTE

A EXPLOSÃO PATRIÓTICA 139


A SUPRESSÃO DA DESORDEM 206
Parte 3
TR ABALHADO RES, AO T RABALHO!
A TORPEZA DO IMPRODUTIVO

A VIRTUDE DO ESFORÇO 265


A REGULAÇÃO DO TEMPO 300

CONSIDERAÇÕES FINAIS 339


REFERÊNCIAS 343
FONTES PESQUISADAS 350
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

INTRIGAS TRÁGICAS

O presente livro é resultado de uma busca intensa, de farta


documentação e de uma sofisticada abordagem teórica do lar-
go debate travado nos anos de 1930 entre as diversas forças
políticas brasileiras.
Os atores centrais – para além da imensa literatura já existente
sobre como foram montadas as condições para a Revolução de
1930, a implantação da ditadura logo em seguida e as lutas pela
democratização do país culminando no trágico golpe de 1937
e na ditadura do Estado Novo – são, desta feita, os discursos
combatentes sobre o poder e as instituições de um Brasil novo.
Os homens – desde Vargas até Prestes e Plínio Salgado,
passando por luminares do intelectualismo nacional, como
Austregésilo de Athayde – são enunciadores de falas que mol-
dam, conformam, distorcem e torturam ideias e pessoas numa
sociedade fragmentada, dividida e em boa parte atônita.
Em seu escopo inicial a autora pretendia uma análise densa da
Aliança Nacional Libertadora, buscando nos seus documentos,
manifestos e proclamações o entendimento de uma visão “de
Brasil” que, então, se queria moderna, progressista e libertadora.
Desde o início a pesquisadora não se deixou levar pelo clima de
luta e paixões da época, assumindo uma postura, comum em
certos historiadores, de repetição das lutas já havidas. Contudo,
através das lutas que deveriam definir pelos próximos (mínimos)
cinquenta anos de história do Brasil, Eliana Dutra percebeu,
com sutileza e acuidade, que o debate era mais amplo, rico e
envolvia diversos projetos combatentes de construção do Brasil.
Nos argumentos da Aliança Nacional Libertadora e de seus
oponentes construíam-se os elementos fulcrais sobre o futuro do
país – lá estavam 1935, 1937, 1945 e, com certeza, 1961 e 1964.
As formas sociais, a questão do agrarismo, o industrialismo, o
papel das novas classes médias, a emergência insuperável do
proletariado industrial e do seu papel político e, claro, as formas
do Estado, da representação e da participação popular eram a
agenda central do debate.
Assim, de uma análise inicialmente centrada na Aliança
Nacional Libertadora – para além, repito, da história histori-
cizante (mas, cujos marcos são balizados e indicados quando
significativamente relevantes) – emerge um debate amplo, de
fôlego extremo, que traz as correntes fundantes do getulismo
(ou varguismo) – base da explosão trabalhista, desenvolvimen-
tista e estatista posterior –, e o multifacetado e rico universo do
catolicismo social, com o impacto da doutrina social da Igreja e
sua percepção e apropriação pelos círculos políticos brasileiros
– tudo que florescerá até 1961, 1964 e mesmo depois, o que
assegura a atualidade deste livro.
Uma corrente merece, desde logo, um tratamento original e
com profunda capacidade de revelar séries de não ditos supostos,
embora não explícitos: o integralismo.
Tais atores – inimigos mortais, muitas vezes envolvendo com
sangue das ruas o seu debate político – são, contudo, entendi-
dos pela autora (com precisão cirúrgica e com total ausência de
misericórdia) como capazes, nos seus extremos, de confluir – e
aí reside a tragédia desta história revelada por Eliana Dutra
– para uma visão comum, homogeneizante e, mais uma vez
convergente, sobre a sociedade brasileira. Assim, para além das
notórias antinomias da díade comunismo versus anticomunismo
(fiat comum e repetitiva da historiografia brasileira), a autora
identifica, recenseia e cruza argumentos, conceitos e ideias que
fazem ambas as correntes se aproximarem de uma utopia de

14
futuro que aprisiona o homem e nega sua capacidade de escolha.
Ora em nome de um determinismo, ora em nome de uma trans-
cendência, o indivíduo é subsumido numa luta que, em seu nome,
acaba por negar sua liberdade. Eis a tragédia que aponta para um
desejo permanente de elites políticas e intelectuais combatentes
nos anos de 1930 no Brasil. Eis o ardil totalitário.
A fineza intelectual de Eliana Dutra, antes de tornar seu texto
combatente de época, se faz denunciante de “fantasmagorias
orgânicas”, todas tendo como centro comum uma gramática
do poder.
Tal abordagem revela maturidade teórica e acuidade de
historiador, além de uma sofisticação intelectual que aflora a
cada página do livro. Claro, só com maturidade e sofisticação
um livro como este poderia ser escrito. Da mesma forma, Eliana
Dutra – professora da UFMG, especialista na imbricação da
história cultural com a história política, autora de uma obra de
relevância sobre o Brasil contemporâneo – nos apresenta uma
escrita agradável, acessível (sem ser pobre) e que capacita histo-
riadores e não historiadores para o debate sobre a participação
política no Brasil de hoje.
O texto é, todo ele, fortemente documentado, revelando uma
pesquisa arquivística de anos e uma familiaridade pouco comum
com os arquivos, o que permite que as afirmações e ilações
estejam vinculadas aos documentos de época. Mas, toda esta
documentação entretém, através de Eliana Dutra, um diálogo in-
tenso com grandes teóricos contemporâneos, desde Carl Schmitt,
Hanna Arendt até Cornelius Castoriadis e Roberto Romano.
Tudo isso de forma adequada, sem o leguleio desnecessário ou
o exibicionismo acadêmico tão comum entre nós.
Em O ardil totalitário, texto, fontes e abordagens teóricas
cruzam-se na produção de uma história que ainda não fora
contada, revelando implicações inesperadas, verdades mal ditas
e, enfim, toda a dimensão trágica da história.
Francisco Carlos Teixeira da Silva

15
PREFÁCIO

Em 1937, Carl Schmitt, um defensor da vontade hitleriana,


escreveu o texto clássico do pensamento totalitário. Trata-se do
pouco citado Totaler Feind, Totaler Krieg, Totaler Staat. Nele,
são definidos os sofismas do pensamento oposto à convivência,
ao debate, à democracia. Não basta que o adversário seja per-
seguido. Ele precisa ser posto numa outra dimensão metafísica.
Ninguém pode ser inimigo apenas “um pouco”. Se o amigo é
absoluto, o seu contrário é total. Os liberais espalharam a tese do
diálogo e acreditaram na administração da diferença. Os arautos
dos novos tempos anunciaram, com o decisionismo jurídico e
político, o fim do palavrório. Um econômico e pequeno vocábulo
inimigo serve para nos livrar dos homens e mulheres que, sendo
a nossa antítese, devem morrer.
O Brasil não entrou com muito atraso na cruzada em prol
dessa ideologia. Já em 1936, Tristão de Athayde, partindo das
mesmas fontes doutrinárias de Carl Schmitt, sobretudo de Bonald
mais os autores da contrarrevolução semântica, afirma em alto
e bom tom que o “nosso inimigo” estava, enquanto doença,
diagnosticado. Tratava-se do comunismo. Na mesma época,
as falas comunistas distribuíam epítetos aos quatro ventos,
definindo, elas também, quem era o inimigo do povo. Vários
alvos serviram às flechas da “ortodoxia” marxista. No dia 23
de agosto de 1939, ocorreu o pacto germânico-soviético. No-
temos a proximidade das datas, unindo o panfleto assassino de
Schmitt sobre o inimigo total, o artigo de Athayde e o aperto de
mão entre Stalin e Ribbentrop. No universo concentracionário
do pensamento, por onde caminham o comunismo do Estado,
o nazismo e todos os seus herdeiros, entre eles o integralismo
caboclo, as palavras de ordem se embaralham, estabelecendo
a fusão temporária das línguas. Afinal, quem é hostil? Quem
é amigo? Quem deve ser destruído? Enquanto os meios para
destruir a diferença continuam azeitados, estando em pleno
funcionamento a formidável máquina dos partidos, as línguas,
como num Pentecostes maldito, martelam o anátema dos mili-
tantes contra todos os que moram fora dos redis.
Que o leitor assuma a máxima cautela ao ler as páginas des-
te livro. Delineando a intolerância dos pensadores e políticos
totalitários, Eliana Dutra retoma o nosso passado comum e o
nosso presente. O futuro está previsto. As películas da memória
política desvelam tecidos malcheirosos do espírito nacional.
Carnes podres da alma, os discursos expostos ao longo destas
páginas causam náusea e melancolia. Mal podemos acreditar
na desrazão que se prolonga em delações, torturas, estupros dos
direitos e das liberdades. São pertinentes as análises, feitas aqui,
sobre o imaginário do totalitarismo em terras brasílicas. Jarbas
Medeiros, em livro de mesmo porte, com fatura diversa, discutira
esses problemas. Apavora, entretanto, notar que as sementes da
violência maniqueia ainda jazem na cultura contemporânea. O
ressurgimento do nazismo, dos fascismos, das massas religiosas
manipuladas por líderes através de intensa propaganda, a caça
às diferenças étnicas, o antissemitismo, enfim, tudo o que foi
desenvolvido, a partir dos discursos totalitários, continua vivo
como nunca, ameaçando até mesmo os mortos, conforme dizia
com propriedade Walter Benjamin.
Este livro não é uma história convencional da política brasi-
leira. Ele também não se limita à “história das mentalidades”.
Se eu fosse definir sua forma, o colocaria no rol das “descidas
ao inferno” ao modo de Jean Starobinski. Trata-se de identificar
as máscaras totalitárias, repelir o seu falso sorriso, dirigindo os

18
olhos para o outro lado da retórica que hipnotiza os intelectu-
ais, as massas, os líderes. Starobinski escreveu A invenção da
liberdade. Nossa autora apresenta, diríamos, uma “invenção do
servilismo”. Lado sombrio das luzes, o pensamento totalitário
bane o livre exame e a crítica e libera energias demoníacas para
o culto da morte, transformando seres humanos em força letí-
fera: “O trabalho liberta”, conforme o dito sobre o portão do
matadouro nazista.
Uma pergunta permanece no ar, após a leitura das páginas
seguintes. Até que ponto, no Brasil e no mundo, o imaginário do
totalitarismo conseguiu invadir o plano da existência? “Todo ra-
cional é efetivo”, dizia Hegel,“todo efetivo é racional”. A fórmula
pervertida desta equação,“todo irracional é efetivo, todo efetivo
é irracional”, poderia ela ser mantida em toda sua plenitude? A
resposta ainda é um “não”. O conceito de sociedade totalitária
só existe, plenamente, nas falas e nas intenções dos que a ela
sucumbem. Para torná-la existente, eles procuram destruir todas
as oposições a seu plano imaginário e utópico. “Quem não fala
como nós, é inimigo.” A perfeita identidade do social com seme-
lhante delírio mostrou-se enganosa. Na Alemanha, na URSS, na
Europa do Leste e na Ásia, em todas as partes do mundo em que
o Estado assumiu o rumo do totalitarismo, restaram os que não
foram vencidos no íntimo da consciência e resistiram, no início,
e atacaram, depois, as instituições montadas para estabelecer a
nova tirania. Se, mesmo nos Estados que instalaram o mando
sem piedade do “povo uno”, o totalitarismo não conseguiu se
firmar com segurança, no Brasil essa sandice revelou-se pouco
promissora. Mas bastou a parcela de efetividade, surgindo os
discursos desta palavra na vida pública, para que as nossas
instituições se tornassem ainda mais rígidas e antidemocráticas.
Na sua luta mortal, comunistas e anticomunistas, unidos, aju-
daram a destruir, entre nós, antigas bases do direito dos povos
e dos indivíduos, reforçando a ditadura Vargas. Integralistas e
comunistas formaram o clima para que o Estado, em nome do
social, abalasse todas as crenças na liberdade do indivíduo e dos

19
grupos. Não tivemos um Estado totalitário. A “Polaca” e seus
defensores não chegaram a resultados idênticos aos de Hitler,
Stalin, Mussolini. Os porões da ditadura varguista, entretanto,
conheceram uma mostra do que poderia ser, no Brasil, o Estado
ideal, tanto dos uniformes verdes, quanto dos seus adversários.
Afinidade eletiva entre doutrinas liberticidas, reforço do poder,
força pura legitimando a violência política a partir da própria
sociedade. Dentre todas as violências, a primeira é a do verbo.
Este último traço é muito visível nos discursos recolhidos
pela autora. Tanto os cortesões varguistas quanto os fraternos
inimigos, comunistas e integralistas, tentam desqualificar a fala
que não sanciona a “sua” verdade. Neste processo, salienta-se
o papel nauseante da imprensa, tomada em sua maioria. Nos
jornais, lemos discursos que se reduzem à propaganda pura,
seja do governo, seja dos movimentos “revolucionários”. Os
periódicos operam enquanto caixas de ressonância, renegando
qualquer compromisso com a verdade ao espalhar doutrinas
antidemocráticas. Oficialismo, esta desgraça caracteriza, até
hoje, a corporação jornalística brasileira. Raros escritores da
imprensa assumem autonomia diante dos poderosos, poucos
jornais exibem com orgulho a distinção do informe livre. Não
raro, jornalistas que adquiriram notoriedade denunciando ma-
zelas sociais usam sem vergonha essa fama para vender-se aos
senhores da hora, aos donos dos partidos, recebendo benesses
para caluniar adversários, calando a boca dos críticos. Se isso é
verdade hoje, com a leitura deste livro ficamos sabendo até onde
atinge a curvatura das espinhas, nas redações nacionais. Isso não é
motivo para desesperar da liberdade de imprensa, pelo contrário.
Mas torna-se urgente repensar a sua função entre nós. Caso não
sejam definidos padrões éticos mais sólidos, as consciências dos
jornalistas podem servir novamente, e muito bem, como pode-
rosas impulsionadoras de propagandas autoritárias e, no limite,
totalitárias. Também não é por acaso que as seitas, as igrejas e
os políticos em geral buscam a posse da mídia. Pesquisa recente
no Parlamento do Brasil mostra que um número muito grande

20
de representantes do povo é composto por donos de rádios,
televisões, jornais etc. Liberdade sem concorrência é letal em
qualquer mercado. Nas transações eleitorais, o monopólio gera
conformismo e uniformidade nos juízos. Esses são pré-requisitos
das aventuras totalitárias.
Semelhantes problemas teóricos possuem relevância prática.
Eliana Dutra realiza a “descida aos infernos” em nossa lembrança
política e social e nos convida para acompanhar as suas várias
paradas nos sítios da consciência antidemocrática brasileira.
Poucos livros, hoje em dia, foram escritos de modo tão lúcido e
responsável. Que o leitor esqueça, por um instante, a mídia e a
propaganda, e mergulhe nestas águas turvas da memória nacio-
nal. Depois, atinja as fontes lustrais do pensamento, lavando os
olhos com os conceitos que, neste texto, unem-se aos fatos his-
tóricos. A razão, operante no livro de Eliana Dutra, nos obriga a
definir limites. O totalitarismo é pesadelo, no Brasil e no mundo.
Hoje, ele dormita entre os miasmas das atitudes e falas racistas,
nacionalistas, fanáticas ou “religiosas” etc. Cabe-nos lutar para
que seu espectro não se materialize, jamais, mesmo sob formas
atenuadas, em nosso convívio republicano e livre. Os milhões de
mortos, da Alemanha nazista ao Khmer Vermelho, berram para
que não tombemos nas armadilhas místicas e ideológicas, nas
jaulas dos partidos que tangem e matam as massas e não res-
pondem diante de ninguém, porque a História, arcaica maneira
de ordenar os fatos, não é um sujeito, como Deus ou homem.
Finda a leitura de O ardil totalitário: imaginário político no
Brasil dos anos de 1930, podemos encarar o nosso tempo sem
medo: se uma fantasmagoria tão sinistra, como o pensamento
totalitário, não conseguiu destruir a arte política, se depois da
tormenta veio um interregno democrático no mundo, ainda
resta esperança para nós e para nossos filhos. Neste livro lateja
semelhante certeza, o que lhe confere a dignidade e a eminência
de um essencial trabalho do espírito.
Roberto Romano

21
INTRODUÇÃO

A história poderá esclarecer a origem


de muitos de nossos fantasmas,
mas não os dissipará.
Octavio Paz

Várias questões, no período de 1935 a 1937, mobilizaram as


forças da sociedade e do Estado no Brasil convergindo para a
criação do Estado Novo. Em torno de temas como comunismo,
revolução, pátria, ordem, trabalho, as várias instituições e classes
da sociedade expressaram suas concepções, interesses, formas
de participação e atuação. Felizmente, fragmentos dessa movi-
mentação foram preservados para a posteridade, constituindo
um rico e diferenciado acervo documental.1 Da exploração desse
material brotou um quadro instigante esboçado em torno de dis-
positivos, estratégias e conteúdos reveladores de uma disposição
totalitária presente na sociedade brasileira de então. Essa dispo-
sição totalitária é por nós entendida a partir de nossas leituras
sobre o totalitarismo, em particular de Arendt (1979 e 1982),
Lefort (1974 e 1983) e Maffesoli (1981). Ela se deixa entrever
enquanto referida, fundamentalmente, não a um regime, e sim
a uma ideologia que sustenta a imagem de uma sociedade una,
indivisa e homogênea; advoga um controle social que normalize,
uniformize e totalize o conjunto da vida social em nome de um
valor dominante que pressupõe a identificação entre o público e o
privado, o Estado e a sociedade civil; que representa a sociedade
enquanto uma organização prenhe de racionalidade; que não
prescinde do fantasma do inimigo para manter coeso o corpo
social e também não prescinde do recurso à ficção, à mentira e
à violência na representação e no controle de um real. E é essa
mesma disposição que nos põe diante da dimensão imaginária
da vida política.
Nessa perspectiva deparamo-nos, no Brasil dos anos de 1930,
com um movimento de fascistização2 perpassando o conjunto
social e revelando a gestação de um projeto de sociedade com
pressupostos totalitários, o qual vai se adensando após novem-
bro de 1935.
Chamou-nos a atenção o entendimento estratégico existente
entre as diferentes forças sociais em direção ao modelo de uma
sociedade totalitária. Empresários, integralistas, parlamentares,
intelectuais, religiosos estruturam um discurso em torno de temas
e imagens portadores de uma finalidade totalitária. Ordem, famí-
lia, pátria, moral, trabalho, propriedade, autoridade e obediência
são temas que confluem para o objetivo da preservação da ordem
social, para o saneamento da sociedade, para reforçar os poderes
da família, da Igreja, do Estado, da polícia, dos empresários. A
moral, os costumes, a disciplina serão o objeto de normatização
e valoração, tendo em vista a intenção de que fossem depurados
o homem e a nação brasileira. O comunismo, a partir do eixo
da Aliança Nacional Libertadora, é o grande tema mobilizador
do período, responsável pela coesão dos diferentes setores e
instituições e pelas propostas de reformulação da sociedade.
Para enfrentar esse “inimigo” é que a ordem social necessita
ser preservada, a sociedade saneada e os poderes resguardados.
Um imaginário anticomunista é construído, o perigo comunista,
como lembra Chaui (1978), assume representações diversas e o
termo comunista vai apresentar uma variedade de significações.
A Aliança Nacional Libertadora desde a sua constituição
encontra setores da sociedade no dilema de assumir a tarefa de
dotá-la de uma feição totalitária. Contudo, sua característica de

24
movimento de oposição ao regime, suas relações com o Partido
Comunista e o nível de mobilização que consegue alcançar junto
a diferentes classes sociais fizeram com que viesse à tona o que
estava implícito na sociedade — uma disposição totalitária. Os
mecanismos de controle acionados na sociedade, os dispositivos
mentais e materiais postos em prática e camuflados na retórica
do “perigo comunista” se deslocam, se expandem e se anexam
aos dispositivos repressivos criados para combater o comunismo
e às formas e táticas de dominação global do Estado.
O Estado, também portador de um projeto totalitário, recebe a
colaboração de outras instituições, da sociedade, e nem a Aliança
Nacional Libertadora, que enfrenta a escalada totalitária, fica
imune à utopia do uno.
Ao tentarmos apreender a tentativa de construção dessa ordem
brotou-nos a percepção de que o seu vigamento se realizava em
cima de quatro pilares discursivos e estratégicos básicos: antico-
munismo/revolução, trabalho, pátria e moral. Para eles conver-
gia toda a discussão acompanhada na documentação. A partir
desses quatro pilares, espraiou-se pelo todo social um conjunto
de práticas, normas e valores que confluíam para a preservação
da ordem e da estabilidade social; para o controle das diferenças
sociais; para o enquadramento do mundo do trabalho; para a
racionalização do poder, unificando numa perspectiva totalitária
empresários, integralistas, Igreja, parlamentares, chefes de gover-
no, burocracia estatal, intelectuais, imprensa. No polo oposto,
os comunistas — que participaram desse vigamento a partir dos
mesmos pilares, com exceção do pilar “anticomunismo”, ao qual
contrapõem o pilar “revolução”.
Portanto, foi tomando como base as estratégias políticas
elaboradas, os conteúdos utilizados, o imaginário construído,
ao redor dos pilares anticomunismo, revolução, trabalho, pátria
e moral, que este estudo foi organizado.
Essas constelações imaginárias, do trabalho, pátria e moral,
possuem uma potencialidade estratégica que servirá não só para
sustentar um ideário anticomunista, mas sobretudo para engendrar

25
a nova ordem em construção — e dentro desse engendramento, o
anticomunismo é um dos momentos e um dos aspectos, entre ou-
tros, essenciais, ainda que nele essas constelações não se esgotem.
O mesmo se pode dizer quanto ao ideário da revolução. E
aqui cabe ressaltar que as dimensões do trabalho, pátria e moral,
não obstante seu papel na construção desse ideário, podem ser
captadas também em maior amplitude em meio às tentativas
comunistas de contraposição à ordem em construção.
Na construção dessa ordem, como e por que anticomunismo,
revolução, trabalho, pátria e moral são vigas mestras a sustentar
o arcabouço do edifício totalitário?
Tornou-se-nos clara a adequação dessas vigas quando nos
deparamos com o fato de que as imagens, os conteúdos e os dis-
positivos estratégicos presentes dentro de cada um desses pilares
se articulavam em torno de pares antitéticos.
Se, dentro do pilar anticomunismo/revolução, os pares são,
por exemplo, ordem/subversão, bem/mal, civilização/barbárie,
saúde/doença, razão/loucura, liberdade/escravidão, no pilar
trabalho, os pares são, entre outros, produtivo/improdutivo,
esforço/negligência, economia/desperdício, energia/indolência,
trabalho/ócio, ordem/desleixo, dentro do pilar pátria, os pares
são ordem/desordem, hierarquia/subversão, progresso/atraso,
certeza/incerteza, patriota/traidor, unidade/fragmentação,
construção/ruína, sacrifício/egoísmo, novo/velho, realidade/
especulação, ordem/estabilidade, honestidade/corrupção e no
pilar moral, os pares são castidade/devassidão, recato/sensua-
lidade, clausura/orgia, verdade/mentira, ordem/desobediência,
docilidade/rebeldia, união/dissolução, bom/mau, consciência/
instinto, forte/fraco, virtude/vício.
Ora, isso, segundo entendemos, nos remete à lógica totalitária.
Maffesoli (1981), ao tratar da organização totalitária, aponta a
conexão existente entre o poder e a estrutura religiosa, revela o
enraizamento sagrado do poder e indica que a força do poder
reside no fato de este remeter ao múltiplo do sagrado. Nesse
sentido,

26
Os pares antitéticos de Deus bom e Deus mau, criador e destruidor,
claridade e sombra, Deus e Satã, impregnam as mitologias e exprimem
sempre uma fascinação de dupla face. E é precisamente esta sideração
ambígua que (...) permite ao poder legitimar o seu exercício (Maffes-
soli, 1981, p. 197).

Contudo, parece-nos que essa sideração ambígua aponta


para algo mais do que a sacralização do poder e esse algo mais,
a nosso ver, está no fato de o poder no totalitarismo jogar com
a possibilidade de remeter o sujeito a uma regressão de tipo
primitiva, o que Lacan (1966, p. 68-69) denomina de “etapa do
espelho” (stade du miroir).
Essa etapa gira em torno do problema da identificação plena
e da conquista de uma imagem, a do corpo, que estrutura o ego,
o eu. Ela estrutura a história do indivíduo e põe fim à angústia
(primitiva) do corpo dividido (corps morcelé) substituindo-a pela
imagem antecipada do corpo como totalidade.

A unidade do corpo não é um dado primitivo, mas termo de uma


longa conquista. É a angústia do corpo dividido (corps morcelé), ao
contrário, que parece ser inicial. A função do espelho e da etapa a ele
ligada consistirá em pôr termo a essa dispersão atemorizante, integran-
do a criança numa dialética que a constituirá como sujeito (Palmier,
1977, p. 25).

A construção do sujeito necessita, portanto, da mediação da


imagem do corpo. A identificação lhe permite reconhecer-se e nesse
reconhecimento se realiza o imaginário. Há um reconhecimento
do corpo no plano imaginário e o ego existe em função dessa
imagem e do próprio imaginário. A ruptura, a desestruturação
do reconhecimento do corpo, da imagem do corpo, se relaciona
diretamente ao processo psicótico. A apreensão do corpo enquan-
to unidade só é possível3 porque somos de início constituídos
como unidade pelo olhar do outro sobre nós, pelo discurso que

27
nos designa como ser único. Nós só podemos nos ver porque
o outro nos vê e nos fala de nós. É por uma identificação com
a imagem dos outros sobre nós que podemos ter uma imagem
de nós mesmos. Daí que o todo na procura de sua identidade
necessita do reconhecimento do outro.
O ego primitivo, contudo, parece possuir desde o início uma
tendência à integração e é exposto também desde o início à
ansiedade provocada não apenas pelo temor do espedaçamento
mas também pela “polaridade inata dos instintos”, apontada por
Melanie Klein, por exemplo, no conflito imediato entre o instinto
de vida e o instinto de morte, pelo trauma do nascimento que lhe
dá ao mesmo tempo a vida, o calor, o amor e a mãe (Segal, 1975).
Contra a ansiedade da aniquilação, o ego desenvolve meca-
nismos primitivos de defesa através dos processos de divisão,
identificação, projeção, introjeção. A primeira ordenação da ex-
periência do ego no seu processo de constituição se dá, portanto,
através da divisão entre objetos bons e maus, a experiência boa
e a experiência má. O seio presente é prazer; a sua ausência é
desprazer, é fome. É a diferenciação primitiva entre o bom e o
mau. Separando as emoções boas das emoções más, o sujeito se
confronta com um objeto ideal (mãe, seio materno, que ele quer
adquirir, quer conservar e tenta com ele se identificar) e com o
objeto mau no qual projeta seus impulsos agressivos e que sente
como uma ameaça a si e ao objeto ideal. É a identificação do
corpo dividido (corps morcelé) com o objeto total.
A partir, portanto, dessas fantasias inconscientes e arcaicas,
podemos também compreender as polaridades, os pares anti-
téticos, a fascinação de dupla face, a sideração ambígua e os
antagonismos maniqueístas que impregnam o discurso totalitário
e seu conteúdo imagético.
Eles surgem como referências para a construção de uma iden-
tidade e como defesa à ameaça de desfiguração desta identidade.
O apelo ao temor arcaico da desfiguração, nesse sentido,
é o que, a nosso ver, confere êxito à representação do uno, à

28
denegação da divisão do social, à busca de identidade através
do corpo político, trabalhadas por Lefort (1983) e Kantorowicz
(1985). A lógica totalitária é enriquecida, ganha assim novo
sentido e a imagem do corpo político também.4
Contra a fantasia de desfiguração da identidade se contrapõe
a fantasia do ego único, do ser uno e indivisível, reatualizada no
totalitarismo na imagem do Povo Uno, Sociedade Una. Isso explica
o porquê de os imaginários anticomunista e revolucionário, como
veremos, não dispensarem a figura do inimigo como encarnação
do mal, da doença, do demônio, da destruição, do apocalipse.
Esse inimigo é o próprio objeto persecutório, objeto de perse-
cução que ameaça a integridade do sujeito e o seu objeto ideal
(objeto de amor, de desejo), no caso, a pátria.
Esse mesmo objeto de persecução ganha força no discurso da
moral travestido nas paixões que escravizam, na luta da malda-
de contra a bondade, do interesse contra o ideal, da iniquidade
contra a justiça, do instinto contra a razão, da devassidão contra
a castidade. Se o ego se esforça para introjetar o bom, esforça-se
também para projetar o mau, manter fora de si o objeto mau e
as partes do eu que contêm o instinto de morte.
A partir dessa projeção, desenvolve-se o mecanismo chamado
por Melanie Klein de “identificação projetiva”, em que as partes
más ou objetos maus expelidos, projetados no objeto externo, se
corporificam neste que se torna identificado com elas.
Segundo Freud em O instinto e suas vicissitudes, na fase au-
toerótica, o ego não necessita do mundo externo, porém, pelos
instintos de autopreservação, ele entra em contato com objetos
desse mundo. Quando esses constituem fonte de prazer, ele os
introjeta; quando constituem fonte de desprazer, ele os expele.5
Aqui, no caso em estudo, o uso dos pares antitéticos se reveste da
função de identificação projetiva. Conjuram-se, no caso do anticomu-
nismo e da revolução, a morte, a escravidão, a doença, a indisciplina,
a barbárie, a anarquia, a loucura, a injustiça; no caso da pátria, a
traição, a agressão externa (comunismo, de um lado; imperialismo,

29
de outro), a ruína, a instabilidade, o atraso, a velhice, a incerteza,
a fragmentação; no caso da moral, a devassidão, o egoísmo, a
sensualidade, a orgia, o pecado, a corrupção, a imoralidade, o
instinto, a mentira, a desobediência; no caso do trabalho, a im-
produtibilidade, o desleixo, a incompetência, o individualismo, a
indolência, o ócio, o desperdício, a fraqueza e a promiscuidade.
Tudo isso é projetado no objeto externo, no outro, ou seja,
no comunista e/ou burguês capitalista, no latifundiário, no ope-
rário, no liberal, no ateu, no judeu, no miscigenado, no pobre,
no matrimônio ilícito, na vida mundana. Ao projetar o mal
(mau), identificam-se nele todas as ameaças da decomposição,
do esfacelamento social e defendem-se instituições que garantam
a identidade e confiram segurança contra a decomposição: a
pátria, a propriedade, a família, a autoridade, a civilização, o
cristianismo, a moral.
A percepção e a representação da sociedade como uma vas-
ta organização comportando uma rede de micro-organizações
“como representação chave” que compõe, segundo Lefort (1983,
p. 84), a matriz ideológica do totalitarismo, parece-nos melhor
compreendida se as organizações e instituições sociais (família,
escola, empresas, partidos, associações etc.) são pensadas como
o lugar privilegiado que o imaginário encontra na luta pelo
reconhecimento. No temor da desfiguração da identidade e na
procura da identidade social e da afirmação de uma unidade
compacta, as organizações dão aos indivíduos a segurança da
definição de seu papel, de seu estatuto, e a referência das normas
e das interdições. Enfim, vão lhes dar elementos de identidade
social e princípios para uma conduta coletiva.
Por outro lado, a estruturação e a estabilidade das organi-
zações permitirão, segundo Henriquez (1974), a expressão do
narcisismo individual e darão a ilusão do ego sólido e indiviso.
Daí o desejo de onipotência do indivíduo e a erotização das
relações sociais. O indivíduo se reconhece como onipotente e se
identifica com o outro como o instrumento de sua satisfação.

30
Dessa identificação dos homens num só (homem-objeto) a quem
conferem maior importância, tomam como exemplo e de quem
se sentem dependentes, decorre a relação erotizada que, a nosso
ver, pode-se dar com um chefe, um dirigente político, um partido,
um líder religioso, entre outros.
Novamente, é eficiente a fascinação de dupla face, tornando
mais inteligível o jogo da sideração ambígua que envolve o poder
e, em particular, o poder de natureza totalitária.
O indivíduo se identifica com o poder total da organização e
seu desejo de onipotência vai ser realizado através da criação de
um objeto comum que todos devem amar, com o qual devem se
identificar e em seu nome se submeterem — objeto este que, no
nosso caso em estudo, é a pátria. Afinal, o ideal do ego possui,
como afirma Freud (1974b, p. 119), um aspecto social além do
individual. Ele constitui também o ideal comum de uma família,
de uma classe, de uma nação. Na distinção e na relação entre o
ego e o ideal do ego pode ocorrer a identificação do ego com o
objeto ou a substituição do ideal do ego por um objeto. Nessa
relação entre o ego e o ideal do ego, estará posta a qualidade
emocional comum dos laços dos grupos com um líder, uma ideia
etc. (Freud, 1976b, p. 136). Se a pátria é o objeto comum do
desejo, o trabalho será o ideal comum, o valor dominante para
o qual vão concorrer todas as condutas individuais. O acaba-
mento final desses recalcamentos (pois é disso que se trata com
a canalização dos desejos) se dá através da moral. Os valores
impostos são para o bem, para a felicidade, para o bem-viver
e isso justifica o fim da regulação espontânea, a interdição da
paixão, e a centralização e uniformização das atitudes sociais. Em
nome da fantasia de segurança e de proteção, institucionaliza-se a
relação de submissão. É o monoteísmo dos valores e dos desejos
ameaçado a todo momento pelo fantasma do despedaçamento.
Por isso são também eficazes os pares antitéticos. Ao mesmo
tempo que apresentam o objeto de amor, apresentam o objeto
persecutório. E as organizações, ao mesmo tempo que criam e

31
servem de objeto de amor, exercem a interdição; e, ao mesmo
tempo que criam a expectativa do uno, submetem-se à experi-
ência da fragmentação. Nesse processo, se valida a autoridade
necessária através da distinção entre dirigentes e dirigidos; a
necessidade de uma estrutura de relações estabilizadas, através da
divisão técnica e científica do trabalho; a unidade da pátria e da
sociedade, através de corporações; o ideal de progresso, através
da divisão entre o velho (atraso — inércia — passado) e o novo;
a integridade moral, através da distinção entre bons e maus.
Em meio a tudo isso, fazem sentido, numa direção claramente
manipulatória e conservadora: a referência às origens, às raízes,
às fontes primitivas e à tradição, tão caras ao discurso totalitário;
a repulsa à miscigenação e o impedimento a que não se distinga
o que é nacional, indistinção que resulta no nacionalismo; a
representação da sociedade como infantil e amorfa à espera de
que a organizem e ajudem a crescer com identidade.
Por outro lado, como bem mostra Henriquez (1974), quando
as organizações, as instituições, se sentem realmente ameaçadas,
de instância recalcante elas se transformam em instâncias re-
pressivas. Se o recalcamento inibia as pulsões (desejos-paixões)
a repressão vai negá-las, aniquilá-las. O recalcamento, como
sugere Henriquez, é da ordem da proibição; a repressão é da
ordem da censura e da violência.
A violência é direta, imediata e total. É o reino do “corpo a
corpo”, como sugere Henriquez.
Isso nos ajuda a entender por que o espectro do comunismo
em 1935, mais do que sustentar um discurso anticomunista,
desencadeará um arsenal repressivo através da linguagem da
Lei de Segurança Nacional e do Tribunal de Segurança Nacional
que atingirá não só o corpo físico do cidadão, mas também sua
mente, pelas justificativas de ordem moral.
Esse desejo de identidade, esse temor do despedaçamento,
enfim, essas fantasias primitivas6 às quais vimos nos referindo,
ao longo deste texto, parecem-nos revestidas de validade teó-
rica para a análise de um momento do processo de construção

32
de uma ordem totalitária no Brasil na década de 1930. Porém,
não como instrumento para localizar atributos, características
ou condutas de personalidades individuais,7 mas como instru-
mento para pensar a existência de elementos de base psíquica,
conformando certas exigências e desejos dos sujeitos sociais e
políticos e predispondo à maior ou menor aceitação de formas
de dominação político-sociais.8 Esses elementos não podem, a
nosso ver, ser dissociados das necessidades às quais responde o
imaginário ideológico. A força da ideologia, lembrando Chaui
(1978), está no desejo de identidade. O imaginário ideológico

(...) responde a duas necessidades. De um lado fornece aos membros


de uma sociedade dividida e separada do poder a imagem da indivisão
política; por outro, elabora para a classe que detém o poder uma imagem
de si e do social que faça do poder um representante homogêneo e eficaz
da sociedade como um todo. Assim a operação ideológica passa por dois
ocultamentos: oculta a divisão social e oculta o exercício do poder por
uma classe ou uma de suas frações sobre as outras (Chaui, 1978, p. 122).

O totalitarismo dá o acabamento perfeito a esse ocultamento


dos sinais da divisão social, e do seu temor, criando a ilusão do
uno, que vai “banir a indeterminação que persegue a existência
democrática” e que “tende a soldar o poder e a sociedade” (Lefort,
1983, p. 120), separados pela revolução democrática que apaga
a identidade do corpo político. Na democracia, não há, como na
monarquia, poder ligado a um corpo mas, nos lembra Lefort, a
procura de identidade permanece latente.
A tentativa de construção de uma ordem totalitária nos anos
de 1930 no Brasil, ao remeter ao desejo de identidade, se me-
tamorfoseia, portanto, na formação de polaridades temáticas.
Essas polaridades alicerçam também a constituição do imaginário
anticomunista e do imaginário da revolução e, ao mesmo tempo,
alicerçam o embate entre ambos e os seus respectivos projetos
de construção de uma identidade para a nação.

33
Para tratar dessas questões é que optamos pela divisão do livro
em três partes. A primeira, num capítulo, procura desvendar a
construção do imaginário anticomunista; em outro, privilegia o
imaginário da revolução, tal como engendrado pelos comunistas.
No percurso empreendido nessa parte, em ambos os capítulos,
nos detivemos, como o leitor poderá constatar, nas imagens e
nos conteúdos utilizados por comunistas e anticomunistas ao
construírem suas elaborações imaginárias e ao se organizarem
para agir na sociedade. Nessa parte, uma das preocupações foi
detectar o substrato cultural de onde partiram os elementos
utilizados na composição e na associação de imagens e como
estas vão suportar diferentes plataformas ideológicas.
A segunda parte se escuda nas elaborações imaginárias que
têm a pátria e a ordem como o seu fulcro central. Aqui foi útil
nos aproximarmos das campanhas desenvolvidas pelo Estado
e instituições da sociedade em torno de um fervor “moral e
cívico”, do culto a mitos nacionais, da cultuação de símbolos,
da preocupação pedagógica com conteúdos de disciplina esco-
lares; de censura a livros, jornais, revistas e às artes em geral;
dos certames de caráter anticomunista; do culto à família.
Eles foram fundamentais para a compreensão e perscrutação
das estratégias do Estado e das instituições que com ele cola-
boram na tentativa de criação de uma ordem totalitária. Ao
mesmo tempo nos detivemos, nessa parte, nas manifestações
dos comunistas acerca desses pontos contemplados no discurso
oficial, dentre eles o culto à pátria e aos heróis nacionais, o
valor da família, da ordem, da disciplina e da hierarquia. Isso
foi feito no sentido de detectarmos a existência de possíveis
diferenças entre o nacionalismo de direita e de esquerda e entre
os princípios norteadores da ação política de um e de outro.
Finalmente, a terceira parte voltou-se para a recuperação
das dimensões dadas ao trabalho e à política trabalhista pela
ordem totalitária em implantação. Indagamo-nos, em meio aos
pronunciamentos e às políticas acionadas no período, acerca do

34
espaço da classe operária dentro de um projeto de dominação
orquestrado, simultaneamente, como veremos, por diferentes
setores da sociedade. A imagem operária construída, os dispo-
sitivos de controle acionados para conter os trabalhadores, o
reconhecimento do trabalho como valor orientador das condutas
sociais, a autoimagem que os trabalhadores constroem acerca
de si próprios, a aproximação dessa autoimagem com a imagem
criada pelo governo e pelas elites, as vivências da classe operária
e a sua prática, bem como de seus dirigentes frente à política
de organização científica do trabalho, o papel do Ministério do
Trabalho, são pontos que tentamos esclarecer ao longo da parte.

NOTAS
1
Este inclui jornais da grande imprensa do período; discursos e debates de par-
lamentares; falas do chefe do Executivo; processos do Tribunal de Segurança
Nacional; pastorais da Igreja; atos de associações de empresários; leis e decretos
estaduais e federais, memórias de políticas; documentos do PCB e da ANL.
2
A presença de elementos da ideologia fascista no discurso, na prática política
efetiva e no dia a dia de diferentes agentes sociais é significativa nestes anos e não
se restringe aos integralistas, como veremos a seguir. Assim como o stalinismo
e o nazismo, entendemos que o fascismo não só é informado ideologicamente
por uma perspectiva totalitária (o que já justificaria a nossa referência à sua
presença, tendo em vista o nosso marco de análise), como se constitui enquanto
um “maquinismo totalitário”, como sugere Guattari (1985).
Esse maquinismo, segundo o autor, segue capturando os desejos nos campos
individual e social (indivíduo, família, escola, sindicato etc.), agenciando-os no
campo da micro e da macropolítica com diferentes “fórmulas” cujos rearranjos
resultam numa química totalitária que “atravessa não apenas a História, mas
também o conjunto do espaço social” (p. 181). A reatualização dos componen-
tes maquínicos do fascismo latente na sociedade engendra novas cristalizações
fascistizantes, o que explica a permanência do fascismo, sob diferentes formas
tal como o fascismo molecular, numa transversalidade histórica e social. O que,
dito de outro modo, significa desatar a expressão do fascismo da sua instância
político-institucional. Noutra direção, sobre a perspectiva totalitária do fascismo
e o pensamento do integralista Plínio Salgado, uma criteriosa discussão pode
ser encontrada em Totalitarismo e revolução, de Ricardo Benzaquen de Araújo
(1988).
3
Aqui e em outros momentos deste texto, tomamos como nossas as palavras
de Henriquez (1974). Sua análise abriu-nos várias possibilidades, fornecendo
importante apoio teórico a nossas reflexões.
4
Lefort utiliza as reflexões de Kantorowicz, em que este, através de seus estudos
sobre a teologia política medieval, nos mostra que a ideia do corpo místico

35
(corpo corporativo, eclesiástico) da igreja foi transferida às entidades políticas
fundamentando em particular “as concepções da realeza centradas no Deus-
-homem” (Kantorowicz, p. 421). À doutrina dos dois corpos do Cristo (o natural
e o místico, o individual e o coletivo) se relacionaria a ideia dos dois corpos do
rei (o natural e o político, o individual e o coletivo) numa unidade orgânica de
cabeça e membros (p. 188-259). Segundo Lefort, a sociedade do antigo regime
representava sua identidade como um corpo associando-se ao corpo do rei.
O antigo regime seria composto de pequenos corpos organizados num corpo
imaginário tal como o do rei. A revolução democrática explode, de acordo com
ele, quando ocorre a destruição do corpo do rei e quando a corporeidade do
social se dissolve. Com ela, o lugar do poder aparece vazio e desvinculado de um
corpo. É o totalitarismo que vem refazer a imagem do corpo político. A partir
da democracia (sociedade indomesticável, indeterminada) e contra ela é que o
corpo será refeito (Lefort, 1983, p. 117-120).
5
Esta identificação se presta a vários objetivos. Ela pode se voltar tanto para o
objeto ideal quanto para o mau objeto. No primeiro caso, o objetivo é o de evitar
a separação; no segundo, controlar a parte de perigo.
6
Aqui queremos deixar claro que o retorno das instituições arcaicas e a persistên-
cia de heranças também arcaicas, às quais nos referimos aqui, são feitas numa
perspectiva ontogenética e não filogenética tal como sustenta Freud em vários
de seus escritos.
7
Aqui lembramos a análise de Adorno (1965).
8
Estas predisposições estiveram na base do fenômeno do fascismo, como mos-
traram Reich (1982) e Fromm (1983).

36
Parte 1
COMUNISMO E ANTICOMUNISMO
A identidade dos opostos

Quando a claridade diz,


eu sou a escuridão, disse a verdade.
Quando a escuridão diz,
eu sou a claridade, não mente.
Heiner Müller
O EXORCISMO DO MAL

As verdades esmagadoras morrem


quando são reconhecidas.
Albert Camus

Debruçados sobre a força da mobilização contra o comunis-


mo, fomos lançados ao centro da efetuação das relações sociais,
entre os anos de 1935 e 1937, na forma da sua expressão ima-
ginária. O embate ideológico entre grupos sociais antagonistas
é responsável, nesses anos, pela intensificação da produção de
imaginários sociais concorrentes, onde, em torno da ideia de
revolução, proliferam representações — umas, legitimando
relações de força; outras, postulando uma nova legitimidade no
campo político. Toda essa produção imaginária, que tem a revo-
lução como centro da sua representação política, será o objeto
e o lugar dos conflitos sociais que marcam o país nesses anos.
Não se deve estranhar que a revolução esteja a ocupar o plano
central nas representações políticas construídas. Afinal, desde
o advento da era moderna, ela toma esse lugar e nele continua
no mundo atual, “à esquerda como a maneira privilegiada de
mudança, à direita como o espectro temido de ruptura” (Furet,
1978, p. 139). A revolução não apenas determinou a fisionomia
política do século XX e se constituiu enquanto uma de suas
questões políticas básicas. Ela se tornou também o destino do
mundo moderno, vinculando-o ao seu próprio destino como
mito, conforme veremos.
E é pensando na revolução, como promessa para a esquerda e
medo para a direita, que nos ocorre cogitar, na linha de raciocí-
nio que estamos desenvolvendo, que no Brasil o anticomunismo
pode ser tomado como seu reverso, como seu “irmão gêmeo e
inimigo”. Por que o comunismo? Porque 1917 foi interpretado
como tendo significado, para o século XX, o mesmo evento
fundador que 1789 significou para os séculos XVIII e XIX com
todo o seu impacto e agressividade.
Acompanhar, pois, a construção do imaginário anticomunista
no Brasil dos anos de 1930 só faz sentido se empreendermos um
percurso simultâneo com o seu contrário, decifrando a ideologia
comunista enquanto espinha dorsal da revolução, esboçando
os traços que fundamentam seu imaginário, focalizando as
imagens que o ilustram, os temas que o traduzem e as palavras
que o veiculam. Seguir o debate ideológico entre os comunistas
(e sua proposta de revolução através da sua inserção dentro da
Aliança Nacional Libertadora) e os anticomunistas permitirá que
qualifiquemos melhor a afirmação de que o imaginário social
é o objeto e o lugar dos conflitos sociais. Isso porque a ligação
entre os interesses e as reivindicações de segmentos sociais rivais
com os imaginários será revelada em toda a sua concretude uma
vez que as condutas, ações, discursos, imagens, disputas desses
agentes sociais estão subjacentes a esse imaginário e são “con-
dição de possibilidade da própria ação das forças em presença”
(Baczko, 1985, p. 298).
É fato que a revolução, comunista,1 é o grande tema mobi-
lizador dos desejos, das aspirações, das energias e também dos
temores e dos rancores que envolvem as vivências da sociedade
brasileira na passagem para a segunda metade dos anos de 1930.
Em torno dessa mobilização, vivida enquanto um conflito real e
potencial, ocorre uma intensa elaboração imaginária que, mais
do que responder a esse embate, parece-nos pretender elaborar,
a partir da posição dos conflitantes e da consequente adesão a
normas e valores,“uma representação global e totalizante, como
uma ‘ordem’ em que cada elemento encontra o seu lugar, a sua

40
identidade, a sua razão de ser” (Baczko, 1985, p. 309). Nessa
tentativa de construção de uma identidade coletiva, a visão do
“outro” é tão fundamental quanto a imagem de si mesmo, seja
do amigo ou do inimigo, do rival ou do aliado, sem o que, como
afirma Baczko, nenhuma relação social e nenhuma instituição
política seria possível.
Assim é que iniciaremos o nosso percurso tentando captar
pelos discursos, em torno da revolução — dos comunistas e dos
anticomunistas —, a comunicação das representações imaginárias
que eles elaboram quando se transportam para fora de si mesmos
e se defrontam com a imagem do outro. Esse outro é o inimigo
e são necessários atos de imagem para figurá-lo. Nesse ponto,
um primeiro fio condutor nos advém da presença da simbologia
do bem e do mal.
O imaginário social se assenta, como nos lembra Castoriadis
(1982), no simbólico. O imaginário utiliza o simbólico “não so-
mente para exprimir-se, o que é óbvio, mas para existir” (p. 154).
E a sua existência implica a adesão a um sistema de valores e a
um sistema de regras que se remetem à estruturação das forças
afetivas que atuam sobre o conjunto da vida social. O trabalho
de estruturação dessas forças é realizado através da operação
com “pares antitéticos”, ou melhor, com uma série de oposições.
Entre estas, a oposição bem/mal.2
No caso da figuração do “inimigo”, seja do comunista ou
anticomunista, a oposição bem/mal aparece aplicada à esfera
política e articulada com outras oposições, o que lhe garante,
como veremos, um amplo espectro de significações. Se as oposi-
ções constituem, como quer Heller (1983, p. 58-59), “categorias
de valor” e são referências que permitem aos homens se situarem
no social, assimilando-o “como um mundo ordenado”, não é de
se surpreender que ocorram manipulações do imaginário (uma
vez que é fato que este intervém no exercício do poder político),
no sentido de se constituírem imagens em torno dessas categorias
de valor que ameaçam esse ordenamento do mundo. Assim é que
a figura do inimigo aparece construída como a encarnação do
mal, e comunistas e anticomunistas não irão dispensá-la.

41
Comecemos pelo imaginário anticomunista. A organização,
pela Aliança Nacional Libertadora,3 de um comício de comemo-
ração das revoluções tenentistas de 1922 e 1924 a ser realizado
no dia 5 de julho de 1935, na capital federal, quando seria lido
o manifesto revolucionário de Prestes à nação, foi o suficiente
para que o país se visse mergulhado num crescente clima de
apreensão. Esse clima foi fortemente manipulado por segmentos
do poder ligados às hostes governistas, e a opinião pública se
viu defrontada com o fantasma do comunismo que se tornaria
de fato real em novembro desse mesmo ano.
É inegável que antes disso já existia certa intranquilidade:
com a decretação da Lei de Segurança Nacional4 (a famosa “Lei
Monstro”, como foi apelidada pelos setores progressistas e de
oposição ao governo Vargas); com a ameaça fascista interna,
personificada no avanço da Ação Integralista Brasileira; com
a intensificação dos confrontos entre integralistas e aliancistas
que assume maiores proporções no famoso comício de junho em
Petrópolis, quando houve morte e ferimentos; com as dúvidas da
opinião pública sobre o futuro da democracia no país.
Contudo, é após a divulgação do manifesto de Prestes (que,
aliás, não se deu no comício programado que foi astuciosa-
mente impedido pelo governo),5 que culminou no fechamento
da Aliança Nacional Libertadora, em decreto datado de 11 de
julho — sob a acusação de estar desenvolvendo “atividades
subversivas da ordem política e social”6 — que ganha corpo
uma estratégia de alarde com a ação dos comunistas. Sucedem-se
nas primeiras páginas dos jornais7 notícias acerca do “rigoroso”
policiamento adotado no dia 5 de julho, data do comício; sobre
as providências “enérgicas” tomadas pelo Ministro da Guerra
para manter a ordem; a propósito do “reforço” às guardas dos
edifícios públicos na Capital; informando sobre o “fechamento”
de sindicatos, como o dos bancários, e do varejamento de suas
sedes no Rio; sobre a decisão do Ministro da Guerra de punir
os militares que compareceram à reunião da Aliança Nacional
Libertadora; a respeito do “fechamento” dos núcleos aliancistas

42
regionais; acerca das “prontidões” nos quartéis; sobre o manifes-
to de Prestes, bem como especulações sobre o paradeiro do Ca-
valeiro da Esperança; e, ainda, a propósito da “calma reinante”,
após serem acionadas medidas de precaução. Com as insurreições
dos dias 23, 25 e 27 de novembro, respectivamente em Natal,
Recife e Rio de Janeiro, o comunismo se torna efetivamente o
grande tema nacional e, até a instalação do Estado Novo, em
novembro de 1937, é em seu nome e pelo temor de sua revolução
que se prende, se tortura, se censura, se cerceia e se amedronta.
Milhares de prisões são efetuadas em todo o país, instala-se um
Tribunal de Segurança Nacional, decreta-se o estado de sítio,
reforça-se a Lei de Segurança Nacional, equipara-se o estado de
sítio ao estado de guerra (que será renovado três vezes consecu-
tivas), censura-se a imprensa, fecham-se sindicatos e associações.
Mantém-se o clímax na imprensa com a busca e a posterior prisão
de Luís Carlos Prestes e Olga Benário,8 com revelações sobre as
relações do casal, o roteiro de Prestes na sua volta ao Brasil, a
descoberta e a prisão de Harry Berger9 e sua mulher Elise, os
arquivos “secretos” encontrados nos aparelhos, as ligações com
“Moscou e a terceira internacional” e a descoberta de “planos”
comunistas para o Brasil.
Teria a nação encontrado um inimigo? A resposta nos é dada
por Tristão de Athayde numa conferência intitulada Educação
e Comunismo, parte de um ciclo organizado pelo Ministério da
Educação, em particular por Gustavo Capanema, para debater
os problemas nacionais, dentro de um plano de doutrinação
contra o comunismo:

Dizia Bonald que, durante as revoluções, o difícil não era tanto


cumprir o dever como saber onde ele está. Também nos momentos
históricos de transição como o nosso, não é tão difícil talvez combater
os inimigos como desvendá-los. De modo que não só para as pessoas
mas ainda para os Estados o fato de fixar10 um inimigo é tão impor-
tante como para os doentes o diagnóstico de um mal obscuro. Tanto
mais quanto nas épocas que perderam a uniformidade de princípios,

43
como a nossa, e estão sujeitas à lei de heteronomia, é considerável
a confusão e mais considerável ainda o número das provocações de
confusão por interesses.
Foi, portanto, para o Brasil, a última e fugaz revolução de novembro
um desses acontecimentos providenciais que permitiram convencer
muitos céticos da iminência de um perigo social que havia adotado,
com êxito, a tática da confusão para despistar os incautos. E com isso
pode ser fixado, com segurança, ao menos um dos inimigos em ação:
o comunismo. Falar no comunismo, entre nós, hoje em dia, já não é
assunto exótico, ou ser acusado de viver no mundo da lua. Muito pelo
contrário, representa o tema do dia, o mais debatido, o mais atual, já
talvez o mais monótono, que oxalá perdure por algum tempo, para
ao menos ser um pouco mais conhecido em toda a sua extrema com-
plexidade.11

Esse discurso de Tristão de Athayde é revelador, em vários


aspectos. O primeiro deles diz respeito ao fato de seu autor
admitir implicitamente a necessidade de um inimigo oculto
e onipresente. Nesse sentido, a insurreição de novembro foi,
como ele diz, providencial. Ela faz convergir para a figura do
inimigo a possibilidade de pôr termo à dispersão de princípios e
às divergências sobre a ameaça ou não de um perigo social. Ela
permite tocar o inimigo e legitima o fato de ser este transformado
em “tema do dia”. Dessa forma, o que se depreende é que mais
importante do que desvendar o inimigo é tê-lo enquanto um
mal para onde se pode direcionar as energias da nação e em seu
nome assegurar-se um domínio no plano social, reagrupando
princípios, ideias e pessoas. Por outro lado, temos a associação
da ideia de localização do inimigo como diagnóstico de um “mal
obscuro” com o “perigo social”, o que focaliza o mal e o perigo
enquanto duas ideias complementares e vitais à figuração do
inimigo, que serão recorrentes nos vários discursos do período.
Que recursos imagéticos são associados à ideia de mal e perigo
que tornam o inimigo tão terrível? O inimigo é terrível e perigoso
porque é invasor, é estrangeiro, vem de fora, é o estranho.

44
Assim é que Getúlio Vargas, ao falar à nação no dia 1º de
janeiro de 1936, se expressou da seguinte maneira:

Forças do mal e do ódio campearam sobre a nacionalidade, ensom-


brando o espírito amarável da nossa terra e da nossa gente. Os aconteci-
mentos lutuosos dos últimos dias de novembro permitiram, felizmente,
reconhecê-los antes que fosse demasiado tarde para reagirmos (...)
Padrão eloquente e insofismável do que seria o comunismo no Brasil
tivemo-lo nos episódios da baixa rapina e negro vandalismo de que
foram teatro as ruas de Natal e de Recife, durante o surto vergonhoso
dos implantadores do credo russo, assim como na rebelião de 27 de
novembro nesta capital (...) Os fatos não permitem mais duvidar do
perigo que nos ameaça. Felizmente, a Nação sentiu esse perigo e reagiu
com todas as suas reservas de energias sãs e construtoras.12

O inimigo é, pois, o comunista a serviço de uma ideologia


“de fora”, o credo russo, é o invasor que rouba com violência
(rapina) e tudo destrói (vândalo). Por isso mesmo é expressão
do mal e do ódio. Saques, pilhagens, rapina são representações-
-chave do imaginário da guerra, expressão máxima do confronto
com o inimigo externo. Sem elas, a figuração do inimigo ficaria
incompleta. E a expressão “campear” não sugere apenas o mo-
vimento, o caminhar livre sobre um amplo espaço, o da pátria,
mas também o submetimento, o domínio do estrangeiro sobre
a nacionalidade. Esse inimigo, esse estrangeiro, se constitui em
ameaça mais visível enquanto seja possível figurá-lo em um rosto
e um corpo: Stalin considerado a figura central do comunismo.
Apelos são feitos para que os homens de bem, os bons bra-
sileiros, apoiem o governo, quando este decretar o estado de
guerra, uma vez que aqueles não querem “ver sua terra sob o
tangente férreo do salteador Stalin”. Se Stalin personifica o
inimigo salteador e o comunismo russo, Harry Berger é o “pa-
ladino de Stalin”13 e o “sórdido judeu comunista (...) delegado
do Partido Comunista e futuro mandão no Brasil escravizado”.14

45
Se Stalin encarna o inimigo estrangeiro, porém distante, e Harry
Berger e Prestes, ao contrário, são presenças vivas nos noticiários
nacionais, e, portanto, próximas, Moscou é o centro irradiador
do perigo que é instrumentalizado pela terceira internacional.
De lá, partem os mercenários, figuras integrantes do imaginário
da guerra, pagos pelo “ouro de Moscou”, profissionais arregi-
mentadores, membros dos corpos de espionagem e organizações
secretas que se espalham pelo mundo.

Há muito que Moscou procura envolver o povo do novo continente


na trama horrível da sua sórdida ambição. O Brasil começa a sentir
os efeitos da terrível invasão vermelha! Panfletos, boletins e jornais
clandestinos são dirigidos pela terceira internacional comunista com
sede no Uruguai, derramam em todos os recantos da pátria a palavra
desorientada do bolchevismo. (...) O ouro de Moscou aí está e não são
poucos os êmulos de Luiz Carlos Prestes que, mascarados, vivem dentro
desta grande pátria a serviço de tão nefasta e repugnante traição.15

São traidores os que estão do lado do inimigo e são seus


emissários. Nada melhor para o povo se ver enquanto totalida-
de — e se ver como bom, fiel e unido — do que espreitar a ação
do inimigo. Nada melhor para exorcizar o fantasma arcaico da
dilaceração que ameaça a integridade do corpo social do que
colocá-lo fora de si e projetá-lo no inimigo externo, num agente
maléfico.
A figura do inimigo é, assim, essencial. Ela serve para fornecer
ao povo a consciência de sua unidade e, ao poder que conduz o
combate, a legitimidade. Afinal, a “campanha contra o inimigo é
febril: a febre é boa, é o sinal, na sociedade, do mal a combater”
(Lefort, 1983, p. 113).
Aqui chegamos à associação do inimigo com o mal encarado
como doença. Daí, a ideia de “diagnóstico” usada por Tristão de
Athayde e reiterada numa vasta rede metafórica que envolve o
discurso anticomunista. É pensando no comunismo como uma

46
doença que Vargas se referiu às “reservas de energia sã” com que
a nação teria reagido às insurreições de 1935. Só essas energias
seriam capazes de enfrentar tal mal uma vez que, como ele afirma
no mesmo discurso,

o fermento das doutrinas exóticas e subversivas facilmente se pro-


paga, quando encontra meio adequado e propício. (...) Compreende-se,
assim, que não basta punir os que pretenderem, usando de violência e
traição, abater o regime. Torna-se indispensável, também, fazer obra
preventiva e de saneamento, desintoxicando o ambiente, limpando
a atmosfera moral e evitando, principalmente, que a mocidade, tão
generosa nos seus impulsos e tão impressionável nas suas aptidões de
percepção e inteligência, se contamine (...).16

O “diagnóstico” de Vargas, para ficarmos de acordo com a


metáfora médica, é endossado e retomado ao longo dos anos
em questão em manifestações vindas de diferentes partes da
sociedade. Tal é o caso dos seguintes editoriais do jornal Folha
de Minas, em 1937, sendo, o segundo deles, escrito por ocasião
da divulgação do plano Cohen:

Todos sentem que a democracia precisa defender-se. Mas não se


defende a democracia apenas de armas na mão e muito menos com
belas tropas de retórica. Quando se impõe a repressão pela força e
pelos recursos de exceção é que o mal já se alastrou demasiado, infec-
cionando o organismo político. Isso não invalida o recurso à violência,
à repressão pela força. Mostra simplesmente que a terapêutica se há
de seguir à intervenção cirúrgica.17
O povo poderá compreender toda a extensão do perigo que ameaça
a Nação em suas bases (...) E porque o povo terá assim a compreensão
nítida da gravidade do perigo, há de também compreender a justeza
das medidas que seja necessário pôr em prática para conjurar esse
perigo, para evitá-lo, para livrar a sociedade dessa contaminação. (...)
A sociedade já se acha contagiada pelo vírus comunista.18

47
A imagem do vírus fortalece a imagem do agressor externo
e, por isso, se compõe, numa combinação bem-sucedida, com a
imagem da infiltração. “Lançam [os comunistas] mão de todos
os ardis para infiltrar na alma inquieta das multidões o vírus
peçonhento do terrível perigo vermelho”.19 Essas imagens se
sucedem não de forma isolada, ao contrário, elas se ajustam
dentro de uma mesma percepção de vida política e social. Ora
o comunista é quem “infiltra o vírus”, ora é ele quem envolve
o estudante e o operário “inoculando-lhes o germe da demoli-
ção”.20 Enquanto isso, as suas células são consideradas “focos
de infecção comunista”21 e a Aliança Nacional Libertadora
(ANL) — na sentença que a dissolve, dada pelo Juiz Federal
Edgard de Ribas Carneiro — é definida “como uma incubadora
desses miasmas, organização antibrasileira, olhos voltados na
obediência do comando de Moscou”.22
Todas essas imagens confluem para a representação do
comunismo tão bem expressa por Macedo Soares como uma
“verdadeira enfermidade”.23 E enfermidade, note-se, vinda “de
fora”, como um espectro a rondar o organismo nacional cuja
integridade é garantia da identidade — por isso mesmo é que
a “moléstia” precisa ser remetida a um lugar exterior, não se
concebendo que ela parta de dentro. Assim a concebem Otávio
Mangabeira e Cypriano Lage ao afirmarem, respectivamente,
que:

(...) só trocaram os regimes livres pelos sistemas ditatoriais, as


nações que se viram atingidas por graves enfermidades. Seria, pois, o
cúmulo da insânia para não dizer da crueldade, mas ao mesmo tempo
do ridículo, que pretendêssemos inocular, no organismo do Brasil,
por sinal ainda tão jovem, germes oriundos de outros climas, para,
adoecendo da moléstia, ainda que por autossugestão, aplicar contra
ela os remédios que, pelos rótulos, nos parecem bonitos. Como se a
terapêutica dos males, que por aqui não existem, pudesse ter qualquer
aplicação às nossas enfermidades tropicais (...).24

48
O Brasil nunca pensou que a enfermidade moscovita batesse um
dia a nossa porta com intenção de entrar. Nós a imaginávamos uma
doença social sui generis de caráter asiático, com um habitat particular,
vivendo num ambiente confinado, sem possibilidade de penetração em
nossa terra, devendo interessar apenas a alguns espíritos amantes de
exotismos políticos ou doutrinários.25

São elementos de identidade da nação brasileira o ser jovem


e o ser tropical. O comunismo é exótico, não faz parte da nossa
experiência de mundo, não tem raízes nacionais, é estrangeiro,
perturba a saúde política.
Assim é que termos como vírus, germes, miasmas, fermento
(micro-organismos), foco, contágio, contaminação, infecção,
incubação, inoculação, saneamento, desintoxicação, prevenção,
terapêutica, intervenção cirúrgica e organismo político pontuam
e saturam a rede metafórica anticomunista, desvelando uma
concepção da realidade social: a orgânica. Essa concepção é que
dá sentido às metáforas médicas e biológicas, às analogias entre
comunismo e doença, às imagens que expressam a unificação
do organismo com a sociedade. O que caracteriza a concepção
orgânica da sociedade é o fato de que esta é vista como enraizada
na natureza física. Nessa concepção, a realidade reproduz o es-
quema de funcionamento dos organismos vivos. Daí, o recurso à
imagem do corpo enquanto figuração central da vida orgânica.26
A aplicação do conhecimento médico à política e à literatura
constitui, como sabemos, importante componente da cultura
ocidental. Hegel, por exemplo, como bem ressalta Romano
(1985), definiu o Estado como um organismo, e é dele a afir-
mação de que o organismo é composto de forma tal que se
uma parte fica independente das outras, o todo desintegra-se.
O orgânico pressupõe, portanto, uma sociedade unitária e uma
vida política harmoniosa. E, por assentar-se numa lógica binária
e autoritária, a construção orgânica tende a criar um oposto,
identificado com a máquina, o antinatural, o artificial, a doença,
o desvio (Marson, 1989).

49
O corpo social brasileiro, enquanto um “todo orgânico”, é
visualizado nas falas anteriores como enfermo e a sua totalidade
como ameaçada pela maléfica doença comunista. Daí a ênfase
na profilaxia social, na terapêutica após a intervenção cirúrgica
(repressão pela força), no saneamento, como bem frisou Getúlio
Vargas ao afirmar após as insurreições de 1935: “Impõem-se
agora sanear o ambiente e afastar os elementos cuja atividade
antissocial vem perturbando a vida do país.”27
Nessa linha da profilaxia social, é exemplar uma publicação
católica28 que sintetiza a concepção orgânica da sociedade.
Numa campanha contra o “estrangeirismo” russo na literatura,
seu autor de uma só vez localiza nos livros “um foco de lepra
moral”, alerta para a necessidade de “reprimir este bacilo e
germe de decomposição” e de não se “deixar sem desinfecção
o foco pestilencial das doutrinas comunistas”, uma vez que
existe uma “crosta vulcânica já formada em alguns lugares pela
onda rubra dos livros de Moscou”. Ao propor um programa
“regenerador” da sociedade, sugere que os governos estabeleçam
uma “espécie de Inspetoria de Saúde Pública, sobre gêneros ali-
mentícios literários”. Aqui aparecem associadas ao organismo
social que se precisa manter saudável (e, por isso, os alimentos
ingeridos precisam ser inspecionados na sua qualidade) imagens
de manifestações incontroláveis e ameaçadoras do mundo físico,
tais como “onda” e “crosta vulcânica”, sendo que esta última
fixa a ideia de petrificação do que antes era vida e após a lava
passa a ser morte.
É ainda à força do naturalismo que, em outros escritos, se
diz da ideologia comunista que ela “frutificou” no terreno que
o alto custo de vida preparou para a “germinação” e, ainda,29
que é “planta daninha”: “as plantas daninhas das venenosas
ideologias exóticas, cujas frutas amargas e temporãs felizmente
já experimentamos.”30
As ervas daninhas, portanto, têm que ser eliminadas para que
não se alastrem às demais plantas, e as doenças precisam ser
tratadas a tempo para não se comprometer o organismo inteiro.

50
Se o corpo social está doente, não esqueçamos do poder que
sobre ele exerce quem diagnostica o mal e o trata para efeito de
cura ou, melhor dizendo, de recuperação da saúde social. Essa
“fantasmagoria orgânica”, no dizer de Romano (1985), está
edificada no pressuposto

(...) do Todo superior ontológica e logicamente às partes sociais;


o apelo às elites é mantido; a inocente irresponsabilidade das massas,
vistas como perigo ou salvação, continua intocada (p. 119).

Não é preciso muito esforço para perceber a direção clara-


mente conservadora e autoritária das representações que vimos
analisando. Essa “fantasmagoria orgânica”, cujos desdobramen-
tos para o conjunto da vida sociopolítica serão desvelados no
desenrolar dos próximos capítulos, é acrescida, dentro da tônica
anticomunista, das imagens de peste, praga e flagelo. Contudo,
a associação da figura do inimigo ao mal enquanto doença
assume nova conformação com essas imagens, ocorrendo um
afastamento da imagem de doença dos planos físico e biológico.
Isso porque as imagens de peste e flagelo aparecem fortemen-
te ligadas, em particular na tradição judaico-cristã, à ideia de
pecado, e esta, por sua vez, à imagem do demônio que amplia
enormemente as representações acerca do mal e do perigo comu-
nista, acrescentando-lhes uma nova faceta: a diabólica. É nesse
imaginário religioso, que os católicos souberam aproveitar tão
bem, que o repertório de imagens anticomunistas irá se abastecer.
A noção de pecado no pensamento religioso constitui, segundo
Le Goff (1978, p. 286),“uma resposta ao problema da origem do
mal, da não conformidade do mundo, da sociedade e do homem
ao que deveriam ter sido, dada a sua origem divina”. Nesse sen-
tido, o pecado é transgressão ao divino, obra do diabo, provoca
culpa, suscita medo e remorso. Essas punições caracterizam-se,
na ordem temporal, em doenças, epidemias, cataclismas naturais
e guerras e, na ordem eterna, pela evocação das penas do Inferno.

51
O Brasil dos anos de 1930 não estará distante dessas represen-
tações que, ao contrário, lhe serão bastante familiares.
A utilização das imagens de peste e flagelo são mais frequentes
nos ataques anticomunistas dos católicos — ao contrário das
imagens de demônio, diabo, do contratermo inferno e de suas
variáveis, que são usadas mais indistintamente por diferentes
segmentos oponentes do comunismo. Em algumas ocasiões, a
vinculação flagelo/pecado é feita com sutileza, tal como no texto
abaixo, de orientação católica:

Muito se tem falado ultimamente a respeito das atividades comunis-


tas que procuram alastrar-se pelo mundo. Todos, pelo menos as pessoas
de boa fé, reconhecem mesmo que é inadiável uma ação enérgica para
acabar com esse flagelo da humanidade. Mas quais os meios? (...) o
cristianismo dá ao indivíduo aquilo que o sistema político não lhe pode
dar: a consciência de que agiu bem ou mal e de que deverá prestar
conta de seus atos ao Juiz Supremo que é a própria Justiça e Bondade.31

Desse texto é possível perceber que enquanto se sugere que


a conduta pautada pelo bem evita o flagelo — que é provocado
pela transgressão, ou seja, pelo pecado da possível adesão ao
comunismo — se reforça o temor pelo castigo a ser dado pelo
“Juiz Supremo”. Em outro texto, a relação pecado/comunismo/
erro é explícita:

A Igreja condena as ideias más que são o gérmen dos crimes e


dos pecados. E quando ela combate os maus atos não fica apenas
na superfície, na coisa em si. Sobe para o espírito e o coração, onde
está a raiz do mal. (...) O que se deve fazer é o combate da ideia pela
ideia. À má doutrina oponha-se a doutrina sã e boa. Divulgue-se o
conhecimento do bem, ao mesmo tempo que se coíba a divulgação
do mal. (...) Um jornal divulgando diariamente os erros comunistas
termina por desfazer as ilusões vermelhas.32

52
Um intelectual católico também aborda o tema.

A reação que se vem fazendo ao comunismo é útil e justificável. É


preciso punir para que as faltas não se repitam. O Brasil tem sido vítima
de sua condescendência. Daria um ensaio histórico de grandes propor-
ções o tema seguinte: As desgraças públicas do Brasil e os processos
de anistia. Entretanto a força exterior não é o bastante. A repressão
externa resulta inútil se o interior não for trabalhado cuidadosamente.
Um indivíduo pode abandonar os seus vícios sabendo que, ao repeti-los,
sofrerá o castigo. Mas, se em seu íntimo não se processou a adesão
sincera à virtude, desde que se descuide a força exterior, os instintos
reprimidos explodirão mais fortes e terríveis. Assim uma nacionalidade.
É preciso descer ao seu interior, ao profundo do seu espírito porque aí
é que estão localizadas as razões do erro. (...) Para penetrar no âmago
da nacionalidade só um processo existe, a educação.33

Aqui, punição, vício, castigo, virtude, erro evocam a ideia do


pecado e a necessidade de libertação. Essa mesma visão está posta
num editorial, de jornal ligado a importante família de liberais,
onde se diz acerca do combate à ideologia comunista: “Trata-se
de um verdadeiro expurgo dessas doutrinas que não assentam
em bases sólidas, que tomam o erro e o mal por fundamento.”34
Em editorial, o mesmo jornal católico que mencionamos ante-
riormente, na conjuntura que antecedeu o golpe que implantaria
o Estado Novo,35 busca apoio na autoridade do papa Pio XI que
mandava “ver, na diabólica ideologia comunista, o maior mal
de todos os tempos, a peste mais danada que o poder infernal já
inoculou no curso de todos os séculos” e denuncia a organização
de “frentes pela democracia”, no país, como não sendo mais do
que “uma preparação inicial para o estabelecimento do inferno
comunista entre nós”.
Assim, o diabo, o comunismo, o mal, a peste e o inferno se
entrelaçam para compor uma imagem poderosa, a do “mal abso-
luto”, contraponto inevitável, reverso do bem e do sublime que
parecem perseguir a cultura humana e a existência dos sujeitos

53
sociais. Pelo tema do diabólico, do satânico e do demoníaco36
somos levados tanto a nos defrontar com o horror, o medo, a
morte, a perversidade, a peste, como a testar a nossa sensibilidade
ao mal. Daí, todo o poder dessas imagens, o seu fascínio, a sua
durabilidade que levam à afirmação de que “o diabo é provavel-
mente um componente inalienável do mundo.” (Kochakowicz,
1987, p. 264).
A presença do maligno na retórica anticomunista vai da sua
simples associação com o comunismo — que é neste momento
o seu instrumento —, passa pela livre associação de imagens
que liga os comunistas ao horror enquanto expressão do Mal
absoluto, e chega até a insinuação implícita e velada, mas nem
por isso menos informada pela sua força imaginária.
Exemplo do primeiro caso é o discurso de Agamenon Maga-
lhães na União dos Empregados do Comércio do Rio de Janeiro,
em outubro de 1937:

Nessa hora delicada da nacionalidade em que se articulam todas as


energias para preservar o Brasil da infiltração de uma doutrina satânica
que procura escravizar o operário (...) todos vós comerciários do meu
país deveis estar alerta e prevenidos contra o nosso maior inimigo, o
mais cruel inimigo da humanidade, que é o comunismo.37

Se aqui a associação aparece com o satânico, em outras


manifestações a ação comunista é chamada de “insídia demô-
nica”38 (sic) e os seus métodos de “infernais”.39
Quanto às combinações que transfiguram o comunismo na
ideia-imagem do Mal absoluto podemos dizer que elas tomam
por base o diabo em uma de suas facetas: a horrível.40 Essa faceta
que figura o diabo como a expressão do terror, senhor do sofri-
mento e do desespero, é oriunda das representações religiosas
de católicos e protestantes difundidas pelos escritos teológicos,
pelos sermões e iconografia religiosa. É essa face horrível que
informa as descrições das insurreições lideradas pela Aliança
Nacional Libertadora, bem como o perfil dos comunistas como

54
assassinos, ladrões, violadores, cruéis, gozadores sem piedade.
A carta pastoral do episcopado brasileiro assim se expressa:
“Onde logrou implantar-se, [o comunismo] aparece então com
a fisionomia dura, cruel, violenta.”41 O divertimento com o so-
frimento alheio, tão próprio do diabo, segundo as mencionadas
representações religiosas, é descrito em cores fortes:

(...) para aumentar a hediondez das chacinas que praticaram,


entregaram-se às forças legais, rindo, chalaceando, blasonando, num
revoltante menosprezo, num escárnio diabólico das pobres vítimas do
dever. (...) Vede-os, operários do Brasil, contemplai-lhes nas fotografias
das revistas os rostos abertos para riso de escárnio pelo vosso pranto e
pela vossa miséria. Esse mesmo riso eles gargalhavam quando, devido
à vossa debilidade, se viram senhores do poder.42

Assim, estigmatiza-se o ano de 1935 — pela força de imagens


que reconstroem os acontecimentos. A partir delas, portanto, ten-
ta-se construir uma memória e fixar um passado que se estende,
cronologicamente, até 1937 com comemorações que relembram
“os mortos” de 1935. Dessa forma, o perigo se alonga no tempo:

O ano que ontem findou foi cheio de agitações e de intranquilidade


no mundo inteiro. (...) No nosso Brasil não faltaram também tumultos
e morticínios. Um dos cavaleiros do Apocalipse andou a esmagar sob
as patas de seu cavalo assassino, corpos de soldados e civis brasileiros
que preferiram morrer a atraiçoar a pátria e os juramentos prestados.
De modo que o ano de 1935 terminou para nós no receio, na revolta,
no pranto e no luto. Inquietações, sobressaltos, crises políticas, crises
econômicas, irreligião, conspirações e revoltas, ameaças e crimes, mortes
e risos de escárnio, tudo viveu, se agitou, tumultuou nos trezentos e
sessenta e cinco dias desse ano que vai (...).43

Numa romaria ao Cemitério São João Batista na Capital da


República em 1937, para homenagear as “vítimas” da insurrei-
ção de novembro, à qual comparecem Getúlio Vargas, Francisco

55
Campos, o almirante Álvaro de Vasconcelos e o general (inte-
gralista) Newton Cavalcanti, este assim se referiu ao momento
vivido pelo país:

Não existiu e não existe em todo o curso da nossa História e


creio, mesmo, que da Universal, um período tão cheio de apreensões
e perigo e tão pontilhado de indecisões como o que estamos vivendo.
(...) Nele assistimos à realização do absurdo apavorante das maiores
forças aniquiladoras e das maiores correntes incendiárias. (...) Nele
presenciamos a aberração incrível de os homens negarem Deus, traírem
a Pátria, assassinarem irmãos em benefício de uma tutela estranha e
falaz, combaterem a Fraternidade para se acumpliciarem, consciente
ou inconscientemente, com essa força apocalíptica que anseia pela
realização de uma megalomaníaca loucura da absorção, de escravidão
e de extermínio: — o Comunismo selvagem e sanguinário. (...) Como
permitirmos, povo do meu Brasil, sem que sejamos instrumentos da
nossa própria desgraça, que celerados de 35, acobertados pela magna-
nimidade das nossas leis, gozem, dentro da própria Capital do país, a
liberdade dos bons e dos justos, quando existem vítimas e mártires a
vingarem-se, viúvas que ainda creem na justiça dos homens, mães que
rolaram para a miséria e para a dor e pequeninos órfãos que choram,
em vão, a falta de pais idolatrados que tombaram, para sempre, sob o
grande assassino dos miseráveis vermelhos.44

É nesse quadro dantesco, onde o perigo é também prolongado


no “espaço” (“universo”), que Luiz Carlos Prestes é chamado não
de Cavaleiro da Esperança, como o consideram os comunistas,
mas de Cavaleiro do Apocalipse, aquele que

veio semear no Brasil a desordem, a anarquia, a discórdia, o luto, o


pranto, a viuvez, a orfandade. (...) veio derramar sangue. Veio procurar
dinheiro. Veio escravizar seus irmãos. Veio tentar apoderar-se da Pátria
para entregá-la ao capitalismo judaico dos exploradores do mísero povo
russo. (...) Os bancos saqueados de Natal já nos revelaram os propósi-
tos desses desprendidos libertadores. As virgens infelicitadas gritam a

56
sua acusação contra os seus miseráveis algozes. O sangue dos oficiais
assassinados fria e covardemente é a mancha estigmatizadora na face
dos Cains, rinchavelhantes e cínicos. O pranto das mães, dos órfãos e
viúvas é o clamor insufocável contra os carrascos assalariados. (...) Era
isto que o cavaleiro da Esperança queria nos trazer. Para executar seus
planos diante de nada recuou. Era preciso matar, era mister trucidar.
Pois mate-se, trucide-se, roube-se, estupre-se.45

Diante dessas cenas, o que temos? O terror selvagem, o


assassinato sistemático, a honra conspurcada, a intriga torpe,
o crime como arma, o ódio como inspiração. A que isso leva?
Às imagens do inferno, da profanação e do sacrilégio. Nesse
contexto, a guerra civil na Espanha vai ser utilizada — não só
pelos católicos46 — como caso exemplar, síntese do espectro
infernal que aguarda o país, caso caia sob o domínio comunista:

Cidades florescentes, grandes patrimônios de arte e de tradição


inteiramente destruídas pelas chamas; igrejas seculares e conventos de-
molidos; oficiais, soldados e milicianos fuzilados às centenas; mulheres
violentadas, crianças abandonadas, sacerdotes e freiras martirizadas,
enfim toda a Espanha convertida em um caos de inaudita ferocidade
e degradação.47

Parece-nos que a recorrência às imagens do diabo e do de-


mônio se explica, dada a força simbólica que essas imagens
possuem no inconsciente individual e no imaginário coletivo, por
duas razões principais. A primeira delas, acreditamos poder ser
reportada à presença avassaladora da tradição judaico-cristã no
mundo ocidental. A segunda, pensamos, advém dos “fantasmas”
presentes na vida mental dos sujeitos sociais, mais propriamente
da ambivalência que envolve as relações dos indivíduos com a
figura paterna à qual dirigem “(...) impulsos de natureza afetu-
osa e submissa mas também impulsos hostis e desafiadores. É
nossa opinião que a mesma ambivalência dirige as relações da

57
humanidade com sua divindade” (Freud, 1976c, p. 110). Assim,
Deus e Diabo seriam figuras originalmente idênticas, cindidas
posteriormente em duas, com atributos opostos, o mesmo ocor-
rendo com a figura do pai. Daí, de acordo com Freud, a presença
de uma visão satânica do pai na vida mental dos indivíduos. A
partir dessa divisão da imagem paterna, projeta-se Deus como
o protetor e o Diabo como hostil. O apelo ao medo arcaico do
lado hostil (portanto, satânico) do pai está, a nosso ver, na base
das caracterizações do mal enquanto demoníaco e explica a força
de que são revestidas essas caracterizações.
À presença no inconsciente, pela força da tradição judaico-
-cristã das reminiscências arcaicas, dos fantasmas do maligno e
do infernal, atribuímos a ocorrência nos discursos anticomunis-
tas de três importantes agrupamentos de imagens. O primeiro
se estrutura em torno das imagens de sombra/luz — e o reino
infernal do maligno aparece associado às trevas, à ausência da
luz. Essa associação é antiga e pode ser remontada à tradição
mitológica iraniana que, segundo Kochakowicz (1987), divide o
mundo entre o bem e o mal, sendo este personificado pelo diabo
que coexistia com o senhor da bondade como seu reverso, ambos
filhos de um Deus primordial. O universo seria, segundo ele, um
“campo de batalha permanente entre os poderes da luz e das
trevas” (p. 245). Também a heresia maniqueísta sustentava, se-
gundo esse autor, sua cosmologia na luta entre o reino das trevas
e o reino da luz, porém não advindos de um ser primordial bom,
mas de seres independentes, originais e opostos. O diabo aqui,
como Deus, seria primordial. Isso implica que o bem e o mal co-
existam, se oponham, se hostilizem e não se reconciliem em cada
ser humano.48 É claro que esses pontos remetem diretamente à
questão do estatuto ontológico do diabo,49 porém o que aqui nos
interessa reter, no momento, é que essas mitologias influenciaram
a tradição judaico-cristã, legaram-lhe um maniqueísmo que fez
com que o diabo atravessasse os séculos associado ao reino das
trevas. Por outro lado, a metáfora solar com seu recurso simbó-
lico à luz, à sombra, à treva tem marcado os ideários políticos

58
autoritários conservadores e antirrevolucionários.50 Na Doutrina
das Cores, de Goethe, luz e sombra, tal como Deus e Diabo, são
dois princípios indissociáveis, “a cor é determinada ao mesmo
tempo pela luz e por aquilo que a ela se opõe”.51 Assim, as cores
se originariam do choque da luz com a sombra (Romano, 1981,
p. 76). Na mesma filiação teórica, acompanhando Schelling, diría-
mos que estão condenados à zona da escuridão os transgressores
que ameaçam a harmonia, a organicidade do corpo social, pois:

o corpo turva-se para a luz na medida em que se separa da totalidade


dos demais corpos e aparece como corpo independente. Pois a luz é
a identidade de todos os corpos, na proporção em que se separa da
totalidade, separa-se também da luz, porque mais ou menos acolheu
em si a identidade com o particular (...).52

Bastante ilustrativo desse ponto é o texto publicado no bole-


tim do Ministério do Trabalho no final do ano de 1935:

Congratulando-se com os Governos Estaduais pela rápida e enérgica


debelação do movimento criminosamente irrompido no seio de duas
antigas unidades da guarnição desta capital, flagrante negro que, ligado
aos episódios antecedentes de Natal e Recife, tristes manifestações da
anarquia transfigurada de objetos sociais, dolorosamente sombreia a
luminosidade esplêndida que enche as páginas da história pátria (...).53

Aqui a desordem é negra e sombria e a ordem é a luz que


ilumina o País. Tancredo Neves, discursando numa solenidade
onde Benedicto Valladares reúne os políticos mineiros para um
congraçamento a pretexto da crise nacional e, particularmente,
da ameaça comunista, utiliza também o recurso metafórico em
torno da ausência da luz. Segundo ele, as instituições nacionais
estavam necessitando de “um travejamento novo, de vigas fortes
e maleáveis, capazes de resistir à fúria dos vendavais impetuo-
sos que ameaçam subvertê-las na noite tenebrosa das ditaduras

59
exclusivistas e absorventes”.54 A subversão, também aqui, é
confinada ao espaço da escuridão que, com sua voracidade,
absorve e aniquila.
Também porta-vozes de corporação policial se referem aos
comunistas nesses termos. Num momento

(...) as nossas famílias ameaçadas sentem e veem com os olhos


da razão, o vulto sinistro de Iscariotes, que, agindo nas trevas, luta
desesperadamente, para vender e entregar esta grande pátria à Rússia
Soviética.55

Noutro momento, quando se solidarizam com um policial que


afirmam ter saído ferido num confronto com um comunista — e
que a imprensa denuncia ter sido torturado barbaramente — fa-
lam que, com a sua solidariedade, “fixaram de modo eloquente
a responsabilidade de uma corporação na hora sombria em que
vivemos e que está a exigir de todos nós uma ação conjunta (...)”.56
Em outra manifestação, ao descrever a ação de um policial da
capital mineira que, ao flagrar um militante operário do partido
comunista distribuindo alguns boletins da Aliança Nacional
Libertadora, o mata, fala-se que os boletins eram

(...) ocultamente espalhados a horas mortas, maneira especial com


que esses mandriões e covardes conspurcadores do sossego pátrio e da
hora da família procuram distribuir alhures (...).57

Dessa forma, as metáforas se sucedem e ora se manda abrir os


olhos para as trevas da noite, porque os inimigos não dormem,
ora para a sombra, onde os inimigos agem.58
Parece-nos que as imagens de luz/sombra não podem ser
suficientemente esclarecidas se deixarmos de levar em conta
também um outro componente imagético que lhes é associado:
a profundeza. Acreditamos nisso reportando-nos à afirmação de
que “o espaço do mundo está ordenado em maneira descendente

60
a partir de Deus” (Le Goff, 1987, p. 57). A nosso ver, podemos
inferir daí não apenas que o diabo ocupa um plano inferior a
Deus, mas, principalmente, que lhe é reservado ocupar o espaço
do fundo da terra, enquanto a Deus é reservado o topo, e seu
reino se instala no céu. O céu é o espaço solar, o inferno é a
escuridão quebrada pelo fogo que queima e tortura.
Todas essas crenças e conceitos constituem uma herança —
reforçada, como vimos, por tantas vertentes e tradições — cujo
resultado é a presença, na cultura política, desse legado que
aprisiona o mundo, os seres, os valores e os sentimentos em
extremos dicotômicos tais como a maldade e a bondade, a luz e
a escuridão, a verdade e a mentira.59
Quanto ao segundo agrupamento de imagens decorrentes
do fantasma do Maligno, vemos sua articulação a partir do
par visível/invisível, o qual se desdobra naturalmente a partir
da figuração sombra/luz. O inimigo é invisível, coloca-se na
escuridão, de forma a não ser visto. A invisibilidade torna o
inimigo ainda mais ameaçador e a sociedade, ainda mais mal-
-assombrada pela insegurança. É como um poder invisível, e
superior ao mundo terreno, que ele ameaça todas as cidadelas
da segurança. O invisível é a treva criminosa e cruel, invisíveis
são os planos sinistros e fatais. Os inimigos não são visíveis uma
vez que, como afirma um boletim integralista,60 “tramam oculta-
mente em todos os lugares” e “têm agentes secretos no Brasil”.
Outras falas reforçam essa invisibilidade quando expressam
que os agitadores extremistas “proliferam na sombra”61 e “de
tocaia permanente aguardam a hora propícia para seus golpes
de vandalismo e trucidamento”.62 O Ministro do Trabalho,
Agamenon Magalhães, é claro e explícito:

O inimigo não invade mais as fronteiras com os seus exércitos,


nem se ouvem mais o rufar de seus tambores e o toque de comando.
O inimigo é invisível, e a sua ação é clandestina.63

61
Ele está escondido, mas a sua ação é onipresente. Mesmo
quando fora do escuro, sua visibilidade permanece como um
desafio, porque se mascara e se disfarça. Assim é que se diz dos
membros da Aliança Nacional Libertadora que “(...) deixavam
a propaganda aberta para agirem no subsolo (método predileto
do marxismo) sob disfarces, mascarando os seus intentos com
aparências ingênuas”.64 Também Getúlio Vargas usa a imagem da
máscara ao afirmar: “Sejam quais forem os disfarces e os proces-
sos usados, os adeptos do comunismo perseguem invariavelmente
os mesmos fins”.65 O recurso à imagem da máscara, a nosso ver,
se torna mais inteligível se recuperarmos “o Maligno”, o que faz
com que o inimigo apareça travestido de uma força demoníaca:

A única expressão plástica que os demônios [seres sem figuração]


poderiam adquirir e que os gregos lhes destinaram de forma implícita
foi a máscara, a figura do equívoco, o signo da aparência polimorfa
(Detienne, 1987, p. 17).

Quando é possível então localizar o inimigo? Quando ele se


torna visível. E quando isso acontece? Quando são desmasca-
rados, quando são presos pela polícia. Que máscaras o inimigo
usa para se ocultar? Várias. A da mentira, da dissimulação, da
inocência, da ingenuidade. Aliás, a palavra diabo é oriunda do
grego diábolos, ou seja, “caluniador”. E o demônio que tenta
e engana, “sob a máscara do diabo, reconhece-se pelas suas
seduções e por um poder de agir sobre os espíritos pela via
das aparências. O (Maligno) ameaça o mundo e os homens
através dos seres mais frágeis: as mulheres, os melancólicos,
os insensatos” (Detienne, 1987, p. 56).
Essas características são minuciosamente desveladas por
Vargas na descrição que este faz dos comunistas, com enorme
apelo emocional:

62
Nunca poderá vencer [o comunismo], portanto, utilizando a pro-
paganda aberta e franca, feita lealmente e sem temor à verdade, para
dominar a vontade das maiorias, pelo exercício do voto livre. Bem
diversos, daí, os seus métodos e expedientes de expansão e proselitis-
mo. Pregando ou conspirando, os seus apóstolos jamais confessam o
que são, mas ao contrário, desdizem-se ou se declaram, quando mais
corajosos, socialistas avançados ou pacíficos simpatizantes das ideias
marxistas. A dissimulação, a mentira, a felonia, constituem as suas
armas, chegando, não raro, à audácia e ao cinismo de se proclamarem
nacionalistas e de receberem o dinheiro da traição para entregar a Pátria
ao domínio estrangeiro. (...) Como por toda a parte, também entre nós
distribuem-se por categorias de fácil identificação.
Há os conspiradores, partidários da violência, querendo precipitar
os acontecimentos pelos golpes de força e pela técnica da rebelião certos
de que nunca poderão contar com a maioria da representação política,
ou antes, seguros de que terão que enfrentar sempre a repulsa integral
do povo brasileiro (...)
Há os pregadores, os professores, os doutrinadores do comunismo,
disfarçados em marxistas, em ideólogos da nova era social, mistifica-
dores de toda a casta, perniciosos e astutos. São os que envenenam o
ambiente, turvam as águas, não praticando mas ensinando o comunis-
mo nas escolas, distribuindo livros sectaristas, propinando o veneno e
protestando inocência a cada passo, pois não invocam, na sua lábia,
a violência e sim a modificação evolutiva dos valores universais. Tão
perigosos quanto os outros, definem-se pela pusilanimidade e pela
hipocrisia com que mascaram, adaptando-se às exigências do meio
social onde vivem e de cujo trabalho se mantêm parasitariamente.66

A denúncia das intenções e das ambições ocultas e veladas


dos adversários cria, portanto, a condição para uma competição
política incessante.
Uma vez descoberto o inimigo, este é preso e desmascarado e
Vargas faz a sua identificação: é o agente externo, é o intelectual
marxista. São eles que,

63
onde há o colegial sonhador ou o operário revolucionário (...)
sabem procurá-los e captar-lhes a confiança inoculando-lhes o germe
da demolição. Utilizam-se de todos os recursos, acenando às pessoas
simples com um paraíso terrestre (...).67

Aqui, os seres frágeis, portanto, facilmente tentáveis e iludidos,


são os operários e os jovens. Em outra descrição, a referência à
fraqueza permanece e é acrescida sutilmente da referência aos
pobres e necessitados:

A infiltração comunista processa-se sub-repticiamente. Embora


encontre, entre nós, a repulsa, o repúdio, a aversão mais profunda, as
suas promessas falazes podem chegar a seduzir os mais desprevenidos,
podem aliciar os fracos, podem envolver os timoratos, assim como
podem servir de refúgio aos desesperados que não hesitam em vender
a alma a troco de vantagens utilitárias. Contra a insídia demônica é
preciso estar atento e vigilante.68

O recurso ao tema fáustico torna essas imagens ainda mais


fortes — afinal, a venda da alma significa a perda definitiva do
divino e o vínculo irreversível ao Maligno.
Não poderíamos passar ao próximo agrupamento de imagens
sem mencionar a presença das referências a um símbolo animal:
a serpente. Esta tem sido imemorialmente conhecida, desde o
Jardim do Éden, como uma das principais máscaras do diabo.
A ligação das representações do comunismo com esse animal só
vem reforçar a presença demoníaca no imaginário anticomunista.
Veneno e bote serão seus contratermos. A figura mitológica da
Hidra, que foi morta por Hércules, é ressuscitada para melhor
representar a extensão do mal e do perigo. Daí que se fale que
os comunistas destilam o veneno das ideias subversivas,69 alerte-
-se o governo contra “os botes e as investidas”,70 sugira-se um
“contraveneno potente que anule todos os efeitos mortíferos das

64
doutrinas malsãs”,71 critique-se o governo por não ter tido “a
energia suficiente para jugular de uma vez a hidra moscovita”.72
Finalmente, chegamos ao terceiro grupo de imagens, orga-
nizado em torno da inteligência/incapacidade. Apesar de todo
o mal que os comunistas configuram, eles infundem respeito
pelas qualidades que lhes são atribuídas, tais como habilidade,
planejamento, persistência, tenacidade, inteligência.
Assim é que Tristão de Athayde, ao discorrer sobre educa-
ção e comunismo, critica a filosofia da educação e os valores
do materialismo dialético que orientam a escola soviética, nele
elogiando, contudo, o fato de vincular o problema escolar às
condições políticas e ao ambiente ideológico:73

A pedagogia ou é dirigida ou não é dirigida. Foi o que os comunistas


viram com o conhecimento realístico de sua visão das coisas, realismo
muitas vezes irreal por falta de objetividade suficiente para se libertarem
de uma filosofia insuficiente do universo, como é o materialismo, mas
realismo poderoso e desassombrado.

Critica-se o princípio, mas exalta-se a firmeza, o destemor e a


clarividência. Como Tristão de Athayde, o escritor católico Ayres
da Mata Machado Filho, ao propor uma linha de ação dentro
da Ação Católica, afirma que

o mal do comunismo não é ser extremista. É iníqua a situação atual,


de sorte que a verdade se encontra nos extremos. (...) O grande mal da
propaganda comunista reside na força das verdades que divulga. A co-
biça dos ricos e o luxo em que vivem tornam revoltante a desigualdade
natural. (...) A exemplo dos comunistas, a ação católica precisa atuar
nas fábricas com intensidade, pregando a verdade interna por meios
lícitos e o programa de realização verdadeiramente viável, opondo esta
conduta realista à falácia dos adversários, que se propõem demolir sem
capacidade para construir e prometem o que não podem dar.74

65
De novo os comunistas aparecem como exemplo de ação,
sendo o seu mal paradoxalmente baseado na virtude. Por ocasião
da divulgação do plano Cohen, apesar dos ataques violentos
aos comunistas, dele se diz: “Analisando-se o plano comunista
surpreende a minúcia, a malícia, o calculismo, o método com que
foi elaborado”.75 É claro que a valorização do inimigo acaba por
valorizar quem o combate; entretanto não se pode desconhecer
que aí existe um certo fascínio pelo oponente:

O governo agiu pronta e energicamente dominando os rebeldes.


Prendeu os chefes da trama infernal. Desorganizou-lhes a rede que
haviam estendido sobre todo o país. (...) Pois apesar de tudo isso, os
persistentes adversários da pátria, da família e da religião não esmore-
cem, não abandonam o terreno, não desistem de seus planos sinistros
e fatais. Reorganizam-se, refazem-se, retecem os fios partidos, fundam
novos núcleos, planejam outras masorcas, arrolam novos nomes de
vítimas, (...) a rede comunista se refaz em todo o território nacional,
apesar da vigilância indormida da polícia, cuja tenacidade e eficiência
no combate dos inimigos do regime é digna de louvor.76

Dessa forma se constrói a imagem do comunista como um


ser tenaz, que não arrefece seu entusiasmo, que não receia a
morte nem o castigo, e como que emprega “métodos de refinada
astúcia e impressionante eficácia”.77 A atividade ininterrupta,
incansável e firme dos comunistas, tão alardeada, é condição da
continuidade do combate e do reforço incessante da vigilância,
mas também é condição da sedução e do fascínio erótico que
os comunistas exercem sobre seus oponentes. Como se sabe, a
inquietante atração pelo mal e pela onipotência fundamenta as
identificações com o agressor.78
Do que examinamos ocorreu-nos pensar que, sendo a inteli-
gência, a minúcia, a tenacidade, a dedicação, a coragem, atributos
simbólicos que designam os comunistas, através desses atributos
adviria, se não a identificação, pelo menos o desejo dela. E o

66
desejo é mimético. E o que se deseja adquirir é o desejo dos co-
munistas. Afinal, é por “desejarem” que eles são tenazes, firmes,
abnegados. Nessa circunstância, os anticomunistas tornam-se
seus rivais.
De novo, as contradições de dupla face que parecem ser “o
fundamento de todas as ligações entre os homens” (Girard, 1985,
p. 219). Não só essas identificações estão por trás da valoriza-
ção da tenacidade do inimigo e das ambíguas afirmações que
caracterizam o inimigo como “cruel mas inteligente”, “perigoso
mas hábil”, como afinal, se estamos nos reportando ao Maligno,
devemos lembrar-nos de que são características importantes do
diabo a inteligência e capacidade extraordinárias. E, se o inimigo
é tão extraordinário, mais extraordinário será o combate e mais
prazer trará a luta.
Por outro lado, boa parte do enorme rancor dirigido aos co-
munistas talvez possa ser explicado como um forte sentimento
de inveja daqueles que, identificados com a autoridade, a ela se
submetem incondicionalmente, contra aqueles “que se permitem
adotar um comportamento inconformista e violam as normas
da ordem e da tranquilidade pública” (Kühnl, 1982, p. 165).
Segundo este autor, a perseguição de minorias, no fascismo, por
exemplo, é o reverso do masoquismo, que encontra expressão
na submissão prazerosa à autoridade. Freud (1974b, p. 147 et
seq.) nos explica isso como a reversão de um instinto em seu
oposto, que é própria do par de opostos sadismo/masoquismo. A
reversão é de finalidade, ou seja, a finalidade ativa é substituída
pela passiva ou vice-versa. Daí que, de um prazer no próprio
submetimento, se passa ao ódio em submeter aqueles que não
se submetem.
Também é possível pensar que os comunistas, ao serem trans-
formados na figura do inimigo, transformam-se no que Girard
(1985) chama de bode expiatório ou vítima propiciatória. Os
comunistas se prestam, na direção indicada por esse autor, não
só como alvo de descarga dos impulsos agressivos contidos nos
sujeitos sociais, como para distrair a atenção das causas reais

67
da insegurança social que, ao serem atribuídas aos comunistas,
estão, habilmente, sendo postas fora do social.
O resultado disso é a validação, na mente dos agentes sociais,
de uma concepção de mundo orgânica e coerente, baseada “na
divisão radical do mundo em branco e negro, em bons e maus,
em anjos e demônios, com a qual não se fez senão reconhecer o
esquema de ancestrais mitos” (Kühnl, 1982, p. 163).
Até aqui viemos tentando mostrar como a simbologia do
mal sustentou as representações do imaginário anticomunista.
Não podemos perder de vista que elas não só traduzem um en-
frentamento entre forças políticas rivais, como são a expressão
pensada de uma das forças em conflito e a condição mesma
da efetuação desse enfrentamento. De qual força? A contrar-
revolucionária — que enfrenta o inimigo global: a revolução.
É pelo temor da revolução que os comunistas são representados
como encarnação do mal. É o seu fantasma que assombra com
a doença, o Maligno, o apocalipse, a morte, a escravidão.
É contra a revolução que o anticomunismo se manifesta
através de determinados conteúdos,79 tais como a defesa da in-
tegridade nacional, da pátria soberana, da civilização cristã, da
família, da moral, da propriedade, da ordem. E é através deles
que o imaginário anticomunista sintoniza-se com o universo
contrarrevolucionário da década de 1930 e torna-se uma de suas
expressões no Brasil.80
Esses conteúdos aparecem articulados, simultaneamente, por
um lado, enquanto os únicos sustentáculos de uma muralha
capaz de deter a ameaça das forças que vêm de fora e, de outro,
enquanto valores positivos que encarnam as forças do bem.
É interessante acompanhar como é feita a caracterização do
“bem”, para o qual se recorre a Deus, à tradição, ao costume,
à sociedade, à natureza, enquanto conceitos ou realidades que
o distingam do mal.
Um bom exemplo do recurso aos conteúdos mencionados está
num discurso proferido pelo governador de Minas, Benedicto
Valladares, em 1937.

68
As revoluções para mudança de governos políticos constituem um
mal algumas vezes necessário, quando inspiradas em nobres objetivos
de servir à coletividade. Se as revoluções, porém, têm por fim destruir
a organização social, a família, a religião, a propriedade, para satis-
fazer ambições que não podem vencer na luta de concurso de dotes
morais e intelectuais elas se transformam num monstruoso atentado.
Contra essas revoluções, temos o dever imperioso de sacrificar a nossa
existência de povo digno.
Qualquer fraqueza ou tolerância para com os autores morais ou
materiais de tão hediondo crime não se justifica.81

Aqui, o bem é o interesse da coletividade. Por ele até a revo-


lução se justifica, como um mal necessário. Qual revolução? A
de um passado recente, e que assim foi denominada pelos seus
protagonistas: a de outubro de 1930. A “outra”, a comunista, é
ambiciosa, subverte o social porque altera a regulação da mobi-
lidade tradicionalmente vinculada à inteligência e ao esforço. O
interesse da coletividade é o que diz respeito à propriedade, à fa-
mília, à religião, tal como na organização social vigente. Quanto
à crítica da ambição, é bom lembrar que ela aparece vinculada,
nesses anos, à crítica do egoísmo individual, que por sua vez é
expresso pela luta de classes, que é negada — como veremos
com mais detalhes à frente — em função da grande coletividade
que é a Nação. Esta, sim, é um valor positivo — pátria, família,
religião, ordem são postos enquanto valores-chave, miragens
do bem a prenunciar um oásis onde proteção e segurança são
promessas incessantes e amuletos contra o mal para aqueles que
nele se abrigam. Getúlio Vargas, ao se referir às “forças do mal”,
afirma que estas foram reconhecidas

(...) antes que fosse demasiado tarde para reagirmos em defesa da


ordem social e do patrimônio moral da Nação. Alicerçado no con-
ceito materialista da vida, o comunismo constitui-se o inimigo mais
perigoso da civilização cristã. (...) O comunismo trata o homem como
instrumento, como simples fator de trabalho, escraviza-lhe o esforço

69
materializando-o. Diverso deve ser o nosso objetivo. Cumpre prepará-lo
para ser útil a si mesmo e à sociedade e para que, vivendo em comum
com os outros homens, se compraza em amá-los sem egoísmo e sem
preconceito de superioridade de classe ou de raça.82

A revolução comunista é má porque seu ateísmo instaura um


império sem Deus e, sendo materialista, retira do homem sua
condição humana — portanto, é contra a natureza; escraviza
o homem, portanto, tira-lhe a liberdade; destrói o patrimônio,
assim anula o que foi construído no tempo; opõe os homens uns
aos outros, tornando-os hostis, egoístas, inúteis, incapazes para
a vida em comum. O egoísmo, expresso na luta de classes, deve
anular-se quando todos se irmanarem na Nação. Assim, os valo-
res do bem aparecem associados aos valores do cristianismo, ao
amor ao próximo, à tradição, à ordem, à moral, à propriedade,
à defesa da Nação.
Estes valores, que são postos enquanto valores da coletividade,
vêm legitimar, no instante da polarização anticomunistas versus
comunistas, a apropriação da ideia de revolução pelos vencedores
de 1930 e o poder por eles instaurado, o qual torna 1930 um
marco fundante, tal como nos mostra Vesentini (1982; 1986)
nas suas reflexões sobre a memória histórica. Por esse ângulo, as
falas de Benedicto Valladares e Vargas, acima citadas, sugerem
que, já em 1935, inicia-se a refundação da memória de 1930,
o que é realizado prioritariamente, e em 1937 pretende-se a
continuidade do outubro de 1930.
Diante do projeto revolucionário dos comunistas em 1935,
torna-se necessário recuperar 1930, dominar o tempo do acon-
tecimento revolucionário, reapossar-se de seu marco e reafirmar
seus valores. Se a legislação trabalhista é, como conclui Vesentini
(1986, p. 117), “ponto fulcral da afirmação de 37”, em 1935,
no espaço do embate com os comunistas, ordem, propriedade,
interesse coletivo e utilidade à sociedade são valores que divi-
dem com o trabalho a mesma área política, a qual é ampliada
para abrigar não só a defesa da política social da revolução de

70
1930, consubstanciada na política do trabalho, mas, sobretudo,
a defesa da ordem social vigente enquanto tal e com todos os
seus valores de bem.
A afirmação da superioridade do poder dos segmentos anti-
comunistas implicou a preservação dos valores da tradição, da
propriedade, da ordem, da moral e consequentemente na sua
associação com o bem, ao tempo em que os representantes do
poder são associados aos “bons”. Assim parece pensar Vargas.
Como o Presidente, parece pensar seu Ministro da Agricultura,
Odilon Braga, ao afirmar:

Não há (...) quem não pressinta a ronda dos trágicos perigos que, à
esquerda, ameaçam desabar sobre nossos lares, nossos templos, nossas
oficinas, nossas fábricas, nossas lavouras (...).83

Aqui também, a revolução comunista é o que põe em perigo


a família, a religião, a propriedade.
Parece-nos que o importante é assinalar que esses discursos,
enquanto discursos ideológicos, se oferecem como um discurso
sobre o social, embora de fora do social, um discurso impessoal,
anônimo, veiculando um saber como se este surgisse da “ordem
material das coisas”.
Assim é que, numa ordem das aparências, a ideia da fa-
mília, da propriedade, da sociedade, da ordem, da pátria, da
civilização cristã surge como determinação do real embora
pareça transcendê-lo. Isso faz com que essas ideias apareçam
cercando a existência da instituição, da família, da proprie-
dade, da ordem, da sociedade, da pátria, da civilização cristã,
sobre as quais se vergam uma vez que atestam sua existência.
Os limites e as condições da possibilidade dessas instituições
são postas como concebidas a partir do centro da ideia de
família, de propriedade, sociedade etc. A ideia, enquanto
transcendência, posta como centro da instituição, é que re-
veste essas instituições de uma sacralidade tal que, segundo
nos parece, faz com que se tornem realidades inquestionáveis

71
porque são princípio ontológico desse real. Daí entendermos
que é a partir do atributo da sacralidade da instituição que
se concede à família a condição de célula-mater da sociedade;
que se faz da propriedade um direito natural; da ordem, um
imperativo da sociedade; da pátria, um espaço inalienável; da
civilização cristã, uma realidade fundante; da sociedade, uma
vocação humana; e de seus paladinos, os portadores do eterno
(cf. Lefort, 1974).
A menção ao costume e às tradições da pátria, do povo e por
sua vez do regime,84 quando se apela aos valores da propriedade,
da família, da religião, da ordem, é feita no sentido de se atribuir
ainda maior sacralidade a esses conteúdos, relembrando a sua
autoridade ancestral. Daí as afirmações, como as de Benedicto
Valladares, de que “os extremistas querem subverter o regime
em que vivemos felizes, por ser o único de acordo com a nossa
formação política, social e religiosa”.85 Ou que o comunismo, no
dizer de representantes do legislativo, “é o perigo da destruição
do patrimônio secular. É a própria democracia que periga. É a
inconsciência fanática, alheia às tradições liberais da Pátria”,86 e
pretende “nos impor o predomínio de um falso idealismo mate-
rialista, contrário ao regime em que vivemos, no que ele tem de
mais alevantado: o valor e o sacrifício das gerações passadas na
formação da nossa Pátria; a instituição da família a que traduz
a pureza de nossos sentimentos”.87
Nesse sentido, o que ameaça essas instituições ameaça a
própria existência do real. Isso torna explicável porque o que
abala a segurança e a inteligibilidade do real determinadas por
uma “ordem de aparência” do discurso ideológico é traduzido
enquanto um mal. Quando o discurso anticomunista elege a
família, a pátria, a sociedade, a propriedade, a ordem enquanto
bastiões para a defesa da cidadela ameaçada, por um lado, e, por
outro, como ponto de abertura para a entrada do inimigo — o
que exige maior investimento e dedicação, em termos defensi-
vos —, é a sacralidade que se quer resguardar. A defesa desses
conteúdos, portanto, não é feita pelos conteúdos em si e, sim,

72
pela força que os reveste e pelo poder que eles sustentam no
domínio do social. Esse poder é que está na base, como veremos
nos capítulos seguintes, dos vários significados atribuídos a esses
conteúdos e das estratégias políticas que os envolvem.
Se a pátria, a família, a ordem, a propriedade, a civilização
cristã são realidades inquestionáveis, há de ter alguma eficiência
a estratégia política que figura o inimigo como aquele que tem
por princípio a destruição dessa realidade. É, pois, em função
desse enfrentamento pelo domínio do social que esses conteú-
dos são investidos de uma carga retórica defensiva, pois em si
mesmos eles não necessitam de nenhum tipo de justificativa. E
toda a retórica tenta desmontar o que se apresenta como sendo
o “conteúdo” do inimigo. Esse inimigo é o comunismo, objetiva-
ção do objeto persecutório que ameaça essa totalidade formada
pela propriedade, ordem, família, civilização cristã, irmanadas
no corpo da pátria.
Com a representação de quais conteúdos essa ameaça do
inimigo ganha visibilidade? O materialismo histórico é um bom
exemplo para começarmos. A sua descaracterização é feita atra-
vés da associação com as imagens da máquina, do “instrumen-
to”, como vimos Vargas afirmar, à escravização ao trabalho, ao
atendimento das necessidades puramente biológicas, como a da
alimentação e do sexo. Assim se manifesta um adepto do Sigma
ao defender o “Regime Integral”:

(...) o anarquismo, socialismo, comunismo, cujo fim é bestializar


a humanidade ou reduzi-la ainda mais — mecanizá-la, torná-la uma
grande máquina, que produzirá o material indispensável para cobrir
os “déficits” materiais da nossa vida animal. (...) mas não podemos
também nos entregar a um governo de superestrutura material que
transformará o homem numa máquina de apetite e que abafará os
sentimentos superiores e as consciências humanas com ferro e fogo,
como fazem os comunistas.88

73
Assim também parecem entender os bispos brasileiros em sua
carta pastoral de 1937:

O comunismo ateu baseia-se, de fato, como bem sabeis, no mate-


rialismo absoluto, materialismo na concepção da natureza humana,
materialismo na concepção de sua história. Produto necessário e total
da evolução da matéria, (o homem), nesta doutrina de morte, já não é
criatura de Deus, destinada a uma felicidade imortal. Sua pátria única
é a terra; aos bens terrenos deve cingir-se a totalidade de seus desejos e
a imensidade de suas esperanças. Na orientação dos próprios destinos,
como no desenvolvimento da história, nenhuma função desempenha a
sua liberdade, impiedosamente checada e substituída pelo determinismo
cego dos fatores econômicos que condicionam inexoravelmente toda
a concatenação dos fatos humanos.89

Portanto, o materialismo é o que leva à perda da condição


humana, ao reforço da condição animalesca do homem, ao
regresso ao primitivismo, à negação da vida espiritual, ao pre-
domínio da carne.
Toda essa descaracterização é posta pelo discurso eloquente
de Vargas que enuncia:

À luz da nossa formação espiritual, só podemos concebê-lo [o


comunismo] como o aniquilamento absoluto de todas as conquistas
da cultura ocidental, sob o império dos baixos apetites e das ínfimas
paixões da humanidade — espécie de regresso ao primitivismo, às for-
mas elementares da organização social, caracterizadas pelo predomínio
do instinto gregário e cujos exemplos típicos são as antigas tribos do
interior da Ásia.90

É na direção da vulgarização do conceito de materialismo


que vemos os comunistas serem acusados, por um lado, de te-
rem se acostumado “a enxergar tudo através do tubo digestivo
do homem”;91 por outro lado, o mundo é posto como estando

74
dividido “em dois campos opostos: de um lado, os que defen-
dem a civilização cristã; do outro, os novos bárbaros, que em-
punham a bandeira rubra da revolução marxista”.92 Regresso
ao primitivismo para uns, retorno ao barbarismo para outros,
o materialismo é ponta de lança da derrocada do patrimônio
moral, religioso, econômico e social. Afinal, por ser materialista
é que o comunismo é posto como ateu e herético, e, por isso
mesmo, o materialismo é dissolvido, no discurso da Igreja e dos
católicos, na imagem do paganismo e do hedonismo.93 Assim é
que a hierarquia católica alerta e se manifesta contra

a tendência cada vez mais pronunciada ao relaxamento dos cos-


tumes e tudo que constitui o paganismo moderno. (...) veremos as
nossas fronteiras invadidas, os nossos direitos violados e o nosso rico
patrimônio religioso arrebatado pela pequena horda desses bárbaros
modernos, que tentam suprimir a Deus, a Religião, e a Igreja na vida
da família e da sociedade para reconduzir-nos às aberrações de um
novo paganismo.94

Em que consistem as aberrações desse paganismo moderno,


explica-nos um bispo da Igreja em sua Pastoral:

O comunismo, por fim, é a súmula de todas as violências e aberra-


ções. É a guerra aberta a Deus, de quem se proclama implacável inimigo
e que desejara aniquilar. Arrasa a família com a prática despudorada do
amor livre, com a nacionalização da criança e da mulher: reduz a mero
maquinismo produtor o pobre operário e, como única regra moral,
estabelece esse princípio — bom é tudo que ao Estado aprouver impor,
mau tudo que o contraria. Numa palavra é a guerra feroz do inferno
contra o céu, da matéria contra o espírito, do mal contra o bem.95

Assim, o comunismo materialista é imoral, violento, potên-


cia infernal. Também é amoral, tal como entende o episcopado
brasileiro:

75
Desta concepção materialista da vida resulta o mais absoluto (amo-
ralismo). Já não há bem nem mal. Já não há lei superior ao homem e
norma de seus atos. Já não há dever nem sanção. O partido e os seus
interesses elevam-se absolutos sobre a destruição de todos os valores
morais.96

Além disso, o marxismo, no entender de um pensador católico,


“consiste numa síntese de todas as heresias”.97 Aqui lembramos
o significado de heresia no cristianismo: uma fuga aos cânones
estabelecidos pela autoridade. Isso nos remete à questão da posse
da verdade, o que torna possível tanto a analogia entre o fenôme-
no herético do campo religioso com o do campo político, como
a utilização do conceito de heresia nos dois campos. E é por se
autodenominarem portadores da verdade que os construtores do
discurso anticomunista podem caracterizar o ideário comunista
como “utópico”, como “falso idealismo materialista”,98 conside-
rando as promessas comunistas como “abundantes e falazes”.99
Utópico, enquanto funcional, sonhador, quimérico. O utopista,
tal como entendem, é o fabricante de ilusões e, nesse sentido,
está sempre distante da posse da verdade. Dessa forma, a justiça
e a igualdade, conteúdos tão caros ao ideário comunista, são
desqualificados como falsos e utópicos. Essa desqualificação
encontra ampla sustentação na experiência de exclusão à qual
desde o começo da República, com seu liberalismo excludente,
são submetidos rotineiramente os brasileiros comuns.
Assim é que “o regime comunista é uma pura utopia, im-
praticável entre os homens, e que não passa, entre nós, de uma
bandeira que os ambiciosos acenam para os ingênuos que acre-
ditam nas suas promessas impossíveis de serem realizadas”.100
Também se diz que “é muito difícil contrariar a ordem natural,
a tal igualdade estabelecida por decreto não passou, desde o
primeiro instante, da maior das utopias”.101 Assim, a igualdade
é considerada um mito, e promessa de um paraíso terrestre. A
igualdade não só é reduzida à condição de “utopia” como, na

76
visão integralista, é considerada como parte do materialismo
histórico, conquanto este é quem põe em ação “as forças cegas
da prometida nivelação bestial de todos os seres”.102 Por que
bestial? Porque é contra a natureza humana. O que a igualdade
e o nivelamento pressupõem? O fim da propriedade privada e a
sua conversão em propriedade coletiva. O tema da propriedade
privada é objeto de uma operação que pretende denegá-la en-
quanto empecilho à justiça, à prosperidade, à liberdade, e ao fim
da miséria. E é a propriedade coletiva, ao contrário, que é posta
como injusta, como responsável pela precariedade da vida dos
operários que não podem conquistar bens, dispor livremente de
seu salário e alcançar melhor posição social — escolher livre-
mente seu trabalho. Ela perpetua a miséria e eterniza a injustiça.

A teoria socialista, comunista, seria a escravidão do operariado ao


Estado, portanto, a fome, a morte do operário, que nada mais poderá
produzir para si. (...) É pois uma teoria prejudicial e injusta, contrária
ao direito natural. A teoria socialista posta em prática pelo Estado seria
uma escravidão insuportável.103

A mesma operação é executada pelo chefe do executivo na-


cional ao sustentar que:

(...) os nossos comunistas imitam os apóstolos do bolchevismo


russo, evitando, porém, relembrar como conseguiram sovietizar a
Rússia. Também eles se diziam protetores do proletariado, e supri-
miram a sua liberdade, instituindo o trabalho escravo; prometiam a
terra, e despojaram os camponeses de suas lavouras, sob o jugo de
uma ditadura feroz, reduzidos ainda a maior miséria.104

Assim, contra a utopia, fala-se em nome do real, que é posto


como o contrário de todas as promessas.

77
Mentira a prometida liberdade, mentira a exaltada prosperidade,
mentira a elogiada igualdade, mentira a aplaudida fraternidade. O
operário russo ganha menos que um sem trabalho de outros países. O
camponês russo está morrendo de fome. O operariado russo é escravo
com cadeias douradas. A igualdade é um mito. A fraternidade é uma
burla. Só a força vale.105

A imagem da escravidão ao Estado é bastante útil não só


para enfrentar o tema da liberdade no discurso comunista, mas
também o da propriedade, uma vez que o Estado é figurado como
um ser poderoso, o grande senhor de tudo e de todos. O que, em
tom dramático e apelativo, é figurado num volante integralista:

O comunismo está seriamente ameaçando o Brasil. O comunismo


quer acabar com o casamento e a família; tirar as criancinhas da casa
paterna e entregá-las ao Estado para cuidar delas longe dos pais. (...)
O comunismo vai tomar a sua casa e os seus bens porque o Estado
comunista será o único proprietário.106

Essa característica do Estado comunista vai sustentar também


a correlação entre despotismo e revolução, enquanto forças que
nascem uma da outra e que se encontram encadeadas através da
História. Enquanto regime de força, o comunismo é a impossi-
bilidade de realização da vocação humana de liberdade, e, ao
contrário, é a expressão de sua negação. Com isso, de um golpe
só, esvaziam-se dois conteúdos: propriedade e liberdade.
A figuração do Estado comunista como um invasor também
do espaço da privacidade, vivenciado em torno do lar, da família e
dos bens pessoais, vai tornar legítima a convocação dos cidadãos
para que saiam do âmbito da vida privada para a vida pública
— que uma é a extensão da outra, e o perigo que ameaça uma
é o mesmo que ameaça a outra. É preciso, pois, cerrar fileiras
com os princípios, a autoridade e a ordem da sociedade para ter
resguardado o espaço da intimidade. Assim é que Vargas, em
diferentes ocasiões, afirmará:

78
Colaboram também indiretamente para a nefasta expansão dessas
doutrinas todos os que pelo indiferentismo, pela descrença, pela ocio-
sidade, pela pobreza de senso moral, vivem à margem da vida pública,
atuando como força de inércia ou de ação negativa na marcha das
atividades construtivas do país.107
(...) o povo, o Exército e a Armada estão unidos e em guarda para
a defesa da Pátria, também contra os fracos, os timoratos e os como-
distas e não só contra os que tiverem a coragem de trair a sua Pátria,
mas ainda contra aqueles que não tiverem a coragem de defendê-la.108

E como o comodismo não sobreviverá com a revolução, esta


é novamente trazida à tona:

O perigo está iminente, prestes a devorar-lhe a comodidade e o con-


forto, talvez mesmo a vida. Mas nem assim. O burguês faz (vista grossa)
sobre tudo; finge mesmo desconhecer a catástrofe real e visível que se
aproxima. Querem exemplo? A história está repleta deles. Haja vista a
Revolução Francesa. Ninguém mais do que aqueles fúteis e gozadores
cortesãos e nobres de Luís XVI estava ciente da revolta que campeava
intensa e ameaçadora entre a plebe miserável e oprimida. (...) E agora
mais recentemente o bolchevismo medrou na Rússia ante a quase in-
diferença e depois a estupefação de seu povo, de seus dirigentes. Aliás,
um dos móveis mais favoráveis, que o comunismo encontra para se
apossar do mundo moderno, é esse indiferentismo, essa incapacidade
de reação por parte da burguesia dominadora.109

Aqui voltamos, como no começo, à presença da ideia de


revolução enquanto representação política-chave do mundo
moderno, atada a 1789 e 1917. Cabe-nos agora passar do
reverso ao verso e espreitar o imaginário da revolução, sob a
perspectiva dos comunistas brasileiros.

79
NOTAS
1
Não desconhecemos a existência do projeto de “revolução espiritual” dos integra-
listas e a adesão a ele de milhares de militantes ativos em todo o país na década
de 1930. Contudo, parece-nos que a força da ideia de revolução, nesse contexto,
advém da sua associação simbólica com o comunismo e não com o integralismo
em si, e que este, nos anos do nosso estudo em questão, teve garantida boa parte
da sua visibilidade na cena política graças ao seu anticomunismo. Dessa forma,
optamos por situar os integralistas no reverso da Revolução.
2
Esse par bem/mal é denominado por Heller (1983) como um “par categorial
secundário”. Categorial porque, segundo essa autora, bem/mal são categorias
orientadoras de valor; e secundário, porque é o par bom/mau que é conside-
rado por ela como sendo o par mais geral de categorias orientadoras de valor
e, portanto, definido como o par categorial primário, uma vez que substitui
todos os outros pares categoriais. A orientação de valor é condição, segundo
essa autora, de existência da vida social.
3
Sobre a organização e atuação da Aliança Nacional Libertadora (ANL) no
período da legalidade e até a insurreição armada em novembro de 1935, ver os
seguintes autores: Carone (1973 e 1974), Silva (1969), Hilton (1986), Levine
(1980), Hernandez (1979). (Mimeogr.).
4
BRASIL. Lei n. 38, de 4 de abril de 1935. Coleção de leis da República. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1936. p. 36-44.
5
Carone (1974, p. 259), Levine (1980, p. 157).
6
BRASIL. Decreto n. 229, de 11 de julho de 1935. Coleção de leis da República.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1936. v. II, p. 206-209.
7
ESTADO DE MINAS, 1935-1937; ESTADO DE S. PAULO, 1 a 31 jul. 1935.
8
Sobre Olga Benário, um texto importante é o de Fernando Morais (1985).
9
Sobre Harry Berger, ver o livro de José Joffily (1987).
10
Grifos encontrados no texto, tal como publicado na imprensa.
11
TRISTÃO DE ATHAYDE. Educação e comunismo. O Diário, Belo Horizonte,
p. 5, 5 abr. 1936.
12
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, 1 jan. 1936. Boletim do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 17, jan. 1936.
13
O MONSTRO de mil cabeças. O Diário, Belo Horizonte, 25 nov. 1936.
14
Idem.
15
PERIGO vermelho. Argus: revista policial, Belo Horizonte, p. 39, dez. 1936.
16
BOLETIM DO MINISTÉRIO DO TRABALHO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO,
n. 17, jan. 1936.
17
HORA decisiva para a democracia. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3,
19 ago. 1937.
18
O PLANO tenebroso. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 2 out. 1937. O
trecho selecionado é parte de um editorial no qual se defende a candidatura de
José Américo de Almeida à sucessão de Vargas.

80
19
PERIGO vermelho. Argus: revista policial, op. cit.
20
AGITAÇÕES extremistas. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 2, 31 out. 1936.
(Editorial).
21
OS PIORES cegos. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 11 jul. 1936. (Editorial).
22
SENTENÇA de 11 dez. 1935, transcrita da revista Argus: revista policial, Belo
Horizonte, p. 40, dez. 1935.
23
SOARES, Macedo. A situação. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 2, 27 nov.
1935.
24
DISCURSO pronunciado por Octávio Mangabeiras num comício em Belo
Horizonte, pró-candidatura de Armando Salles Oliveira. O Diário, Belo Ho-
rizonte, p. 9, 17 ago. 1937.
25
LAGE, Cypriano. Táctica comunista. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 2,
22 out. 1937. Transcrito do jornal carioca A Noite, de 20 out. 1937.
26
Sobre a concepção orgânica da realidade, são importantes os trabalhos de Ro-
mano (1985), Lenharo (1987), Marson (1979), Bresciani (1985) e Rago (1985).
27
BOLETIM DO MINISTÉRIO DO TRABALHO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO,
n. 16, p. 341, dez. 1935.
28
AFONSO, G. Repressão ao extremismo. O Diário, Belo Horizonte, p. 3, 6
fev. 1935.
29
O GRANDE aliado. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 16 jul. 1936.
30
GOMES, Francisco Magalhães. Noblesse Oblige. O Diário, Belo Horizonte,
p. 4, 11 jan. 1936.
31
PEQUENO comentário. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 19 fev. 1936.
32
NEGROMONTE, Pe. Álvaro. Ideia e força. O Diário, Belo Horizonte, p. 5,
14 jul. 1935.
33
GODÓI, Edgard de. Campanha anticomunista nas escolas superiores. O Diário,
Belo Horizonte, 1 jan. 1936.
34
COMBATE decisivo. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 23 out. 1937. Esse
jornal era dirigido pela família Mello Franco.
35
SALVEMOS o Brasil. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 5 ago. 1937.
36
Sobre o demônio, parece-nos importante remeter a Marcel Detienne (1987) e
aos esclarecimentos que este autor dá a respeito dessa figura que é representada
de maneira oposta pelos gregos e pela tradição cristã. Para os gregos, o demônio
(do grego daimon) é uma potência intermediária entre os deuses e os heróis (sem
individualidade, portanto, potência coletiva), que participa, ao mesmo tempo, da
natureza humana e da divina, podendo ser bom ou mau e se manifestando pela
magia, encantamento, adivinhação, sonhos. Detienne menciona, para demonstrar
isso, a existência da figura do Bom Demônio, que era protetor da família arcaica.
É na tradição judaico-cristã que o demônio surge como uma potência decaída,
identificada ao mal e ao Maligno. Nessa visão religiosa, demônio e demoníaco
se vinculam ao diabo, à tentação, ao pecado, ao Espírito de Malícia. Assim, o
demônio perde o papel de intermediário entre o humano e o divino para Cristo.

81
37
DISCURSO do ministro Agamenon Magalhães na União dos Empregados do
Comércio do Rio de Janeiro, 30 out. 1937. Boletim do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, n. 39, nov. 1937.
38
PERIGO imenso. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 1 out. 1937. (Editorial).
39
COMBATE decisivo. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 23 out. 1937.
(Editorial).
40
Kochakowicz (1987), ao mencionar os diferentes aspectos do diabo, fala da
existência de três facetas: a horrível, a grotesca e a trágica. A grotesca é encon-
trada no folclore e na literatura popular, em que o diabo aparece como estúpido,
desajeitado e que fracassa sempre em seus truques e é vencido pela esperteza
dos camponeses. A trágica é uma figura literária e os aspectos trágicos seriam a
“dignidade e a sabedoria glacial” (p. 250-256). O diabo é desobediente e prefere
o sofrimento a submeter-se ao poder do senhor. Ele assume a sua rebeldia e o
seu destino de perdedor e por isso é respeitado.
41
CARTA pastoral do episcopado brasileiro. Boletim do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, n. 38, p. 110, out. 1937.
42
LIÇÕES dos fatos. O Diário, Belo Horizonte, p. 2, 4 dez. 1935.
43
O DIÁRIO. Belo Horizonte, p. 4, 1 jan. 1936. (Editorial).
44
DISCURSO pronunciado pelo general Newton Cavalcanti em romaria ao Cemi-
tério São João Batista. Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,
n. 38, p. V-VII, out. 1937.
45
O CAVALEIRO do apocalipse. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 6 mar. 1936.
(Editorial).
46
O caso espanhol vai ser amplamente utilizado pelos católicos, como arma contra
os comunistas, com extrema parcialidade. Referências sobre a Espanha podem
ser encontradas, entre outras, em: O Brasil é por Cristo hoje e por Cristo será
eternamente. A ÚLTIMA sessão solene do segundo Congresso Eucarístico. O
Diário, Belo Horizonte, p. 1-2, 7 set. 1936; MEDITAÇÃO para o dia de hoje.
O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 7 maio 1937; CARTA pastoral do episcopado
brasileiro. Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, op. cit., p.
113. Exemplo de utilização do tema pela imprensa não católica pode ser visto
em: HORRORES do comunismo na Espanha. Folha de Minas, Belo Horizonte,
p. 3, 20 nov. 1937.
47
OS COMUNISTAS. Argus: revista policial, Belo Horizonte, n. 11, p. 1, nov.
1936.
48
Segundo Kochakowicz, para os maniqueístas, o reino material estaria em poder
do demônio, o que também seria sustentado pelas seitas gnósticas no século II. E
embora a raça humana estivesse dividida entre os poderes antagônicos do bem
e do mal, o bem é que seria o poder verdadeiro, “a essência divina do homem”
(p. 249).
49
Essa questão é particularmente delicada, conquanto polêmica e insolucionada.
Ela está no centro do chamado “enigma do diabo cristão” que, segundo Ko-
chakowicz, é o enigma do “Ser e do Mal”, responsável pela posição ambígua do
diabo. Esse enigma do Ser e do Mal está posto uma vez que “o Nada e o Mal são
tão coextensivos quanto o Ser e a Bondade” (p. 250). Isso porque se Deus era

82
primordial, o criador, o Ser e o Bem eram coextensivos, e o mal como negação,
falta de bondade seria coextensivo com o Nada. Daí que Kochakowicz aponta
o enigma metafísico do diabo como sendo este: “se só Deus é ser no verdadeiro
sentido, se a existência do homem é divina na medida em que é existência, não
deveria toda a variedade do mundo criado aparecer como uma ilusão, como um
Nada que é Mau devido à sua existência, e um Mal que é Nada devido a ser
mau?” (p. 250). Enigma à parte, a figura do diabo é polêmica bem como sua
origem, e a questão está em se atribuir a ele ou retirar dele uma dependência
frente a Deus. É sabido que no Novo Testamento o diabo é potência decaída
pelo pecado e obedece a Deus que é onipotente, embora seja seu inimigo. O
certo é que a sua presença, na cultura ocidental, aparece indissociável da figura
de Deus. Por outro lado, essa ambivalência em torno do diabo não nos deve
causar tanta estranheza se nos lembrarmos de Freud em Uma neurose demoníaca
no século XVII (1976c), no qual ele a associa com a ambivalência em torno da
figura paterna.
50
Ver trabalho de Romano (1981).
51
Citado por Romano (1981, p. 71).
52
Ibidem, p. 76-77.
53
BOLETIM DO MINISTÉRIO DO TRABALHO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO,
n. 16, p. 341, dez. 1935.
54
DISCURSO pronunciado por Tancredo Neves pela Câmara Municipal de
Minas Gerais. In: Minas e seu pensamento político: discursos pronunciados
na manifestação do povo de Minas a S. Excia. o Sr. Governador Benedicto
Valladares Ribeiro, por motivo do congraçamento político mineiro. Belo Ho-
rizonte, 1936. p. 73.
55
O COMUNISMO. Argus: revista policial, Belo Horizonte, n. 11, p. 1, nov. 1936.
56
UM por todos, todos por um. Argus: revista policial, Belo Horizonte, set. 1937.
A prisão desse militante comunista e o subsequente tratamento policial que ele
recebeu se transformaram num caso rumoroso em Belo Horizonte, devido ao
fato de uma denúncia telefônica a um jornal da capital ter dado conta da trans-
ferência do preso em estado dramático — em decorrência das torturas sofridas
na prisão — para o Pronto Socorro da cidade. A versão da polícia é a de que o
preso havia tentado suicídio. O repórter policial, que cobria o caso, publica fotos
onde aparecem os pés do preso, no momento da sua detenção, e que estavam
em condições normais, contrastando com o estado que o repórter encontrou
no Pronto Socorro, endossando a denúncia de que o preso teria tido unhas ar-
rancadas com alicate. Essas fotos foram anexadas aos autos do processo que o
Tribunal de Segurança Nacional abriu contra o “comunista Barros”, como ficou
conhecido na ocasião. Ver Processo n. 412 do Tribunal de Segurança Nacional
(T.S.N.) e Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 10, 28 maio 1937.
57
MAIS vítimas do comunismo. Argus: revista policial, Belo Horizonte, p. 12,
nov. 1935.
58
Ver, para esses exemplos: O Diário, Belo Horizonte, 26 nov. 1935; 19 jun. 1936.
59
Urge que retomemos a contribuição hegeliana ao tema da essência dividida:
“(...) o ser é representado de certo modo como a imagem da pura luz, como a
claridade da visão não turvada, e o nada, por sua vez, como a pura noite, e a

83
diferença entre eles é relacionada a esta bem conhecida diferença sensível. Mas,
na realidade, também quando alguém está representando este ver de um modo
mais exato, pode muito facilmente notar que na claridade absoluta não se vê
nem mais nem menos do que na absoluta obscuridade, isto é, que um dos dois
modos de ver, exatamente como o outro, é um puro ver, vale dizer, um ver nada.
A pura luz e a pura obscuridade são dois vazios que são a mesma coisa. Somente
na luz determinada — e a luz se acha determinada por meio da obscuridade — e,
portanto, somente na luz turva é que se pode distinguir algo; tal como somente
na obscuridade determinada — e a obscuridade se acha determinada por meio
da luz — e, portanto, na obscuridade clareada, é possível distinguir algo, porque
somente a luz turva e a obscuridade clareada têm em si mesmas a distinção e,
portanto, são um ser determinado, uma existência concreta (Dasein).” (Hegel,
1976, p. 85-86).
Assim, diante do fato da essência una e contraditória, as dicotomias podem ser
superadas e a verdade e a moralidade, libertadas dos extremos.
60
BRASIL ameaçado. Tribunal de Segurança Nacional. Processo n. 620, folha 38.
(Folheto avulso).
61
AGITAÇÕES extremistas. Estado de Minas, op. cit.
62
OS PIORES cegos. O Diário, op. cit.
63
DISCURSO do ministro Agamenon Magalhães na União dos Empregados do
Comércio do Rio de Janeiro, 30 out. 1937, op. cit.
64
COMENTÁRIOS. O Diário, Belo Horizonte, p. 2, 9 out. 1935.
65
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, op. cit.
66
Ibidem.
67
AGITAÇÕES extremistas. Estado de Minas, op. cit.
68
O PERIGO imenso. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 1 out. 1937.
69
O DIREITO de greve. O Diário, Belo Horizonte, p. 9, 19 jun. 1937.
70
EM DEFESA dos camaradas. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 12 jan. 1936.
71
LIÇÕES dos fatos. O Diário, op. cit.
72
GOLPE dos comunistas. O Diário, Belo Horizonte, p. 2, 26 nov. 1935.
73
TRISTÃO DE ATHAYDE, op. cit.
74
MATA MACHADO FILHO, Aires da. Propaganda comunista e ação católica.
O Diário, Belo Horizonte, p. 2, 17 fev. 1935.
75
O PLANO tenebroso. Folha de Minas, op. cit.
76
OS PIORES cegos. O Diário, op. cit.
77
COMUNISMO, regime de escravidão, fome e de desumana crueldade. Folha de
Minas, Belo Horizonte, p. 1, 23 out. 1937.
78
Sobre identificação com o agressor, ver La Planche e Pontalis (1975, p. 295-302).
79
Esses conteúdos estão presentes e manifestos em vários trechos selecionados das
falas anteriormente citadas. Vamos agora tentar trazê-los à luz em novas falas
ou mesmo em novos trechos dos que já foram utilizados.

84
80
A caracterização do universo contrarrevolucionário da década de 1930 será feita
ao longo dos vários capítulos subsequentes.
81
BENEDICTO Valladares. Argus: revista policial, Belo Horizonte, set. 1937. Esse
discurso foi feito numa concorrida solenidade organizada pelo governo mineiro,
para homenagear um capitão morto na insurreição de novembro. Dela, constou
uma visita ao túmulo do militar, por parte de significativas autoridades do meio
político de Minas.
82
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, op. cit.
83
DISCURSO do Ministro Odilon Braga. In: Minas e seu pensamento político, op.
cit., p. 15.
84
Não é nosso objetivo aqui estabelecer uma discussão acerca das filigranas do
ideário político da elite brasileira e, tampouco, discutir os significados que para
ela contém, por exemplo, um termo como “regime”. Apesar das indicações
de várias imprecisões conceituais e políticas, e confusões quanto à forma e o
conteúdo, o que queremos ressaltar é que, do ponto de vista das elites, o que é
comum a todos e que o que se quer preservar é a ordem capitalista, no plano
econômico, e a ordem institucional, no plano político.
85
MINAS GERAIS. Mensagem do governador Benedicto Valladares Ribeiro
apresentada à Assembleia Legislativa. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1937,
p. 17.
86
DISCURSO do vereador Alberto Deodato pelo município de Belo Horizonte.
In: Minas e seu pensamento político, op. cit., p. 95.
87
DISCURSO do deputado Rodrigues Seabra. In: Minas Gerais, Anais da Assem-
bleia Legislativa 1935, Belo Horizonte, 1936, p. 701. v. II.
88
ALVES, João de Rezende. Necessidade de outro regime. O Diário, Belo Hori-
zonte, p. 2, 19 out. 1935.
89
CARTA pastoral do episcopado brasileiro, op. cit., p. 108-109.
90
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, op. cit.
91
MATTA MACHADO, J. Conversa com a esquerda. O Diário, Belo Horizonte,
p. 6, 12 maio 1936.
92
OS CATÓLICOS e o marxismo. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 19 set. 1936.
93
Marilena Chaui (1978), ao analisar o imaginário integralista, mostra-nos
como, na operação com imagens no discurso integralista, se reduz o conceito
a uma imagem fácil de ser distinguida na experiência cotidiana. No caso do
“materialismo histórico”, os integralistas, segundo ela, traduzem-no por he-
donismo e evolucionismo, sendo que os termos são separados de maneira que
“materialismo” conote maquinismo, busca de prazer, e histórico “(...) evolu-
cionismo determinista do tipo biológico” (p. 43). A mesma operação é feita no
documento do episcopado brasileiro, como vimos anteriormente, e também
aqui neste documento dos bispos de Minas Gerais.
94
CONFERÊNCIAS episcopais da província eclesiástica de Belo Horizonte. Belo
Horizonte: Imprensa Diocesana, 1935. p. 2-3.
95
ARAÚJO, D. Hugo Bressane de. Pastoral. Petrópolis: Vozes, 1936. p. 2.

85
96
CARTA pastoral do episcopado brasileiro, op. cit., p. 110.
97
GODÓI, Edgard de. Campanha anticomunista nas escolas superiores. O Diário,
Belo Horizonte, p. 3, 1 jan. 1936.
98
DISCURSO do deputado Rodrigues Sales. In: Minas Gerais, Anais da Assembleia
Legislativa 1935, Belo Horizonte, 1936, p. 701. v. II.
99
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, op. cit.
100
COMBATE ao extremismo. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 2, 8 dez. 1935.
(Editorial).
101
CRIADO na Rússia. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 30 ago. 1936.
102
DISCURSO pronunciado pelo general Newton Cavalcanti em romaria ao
Cemitério São João Batista, op. cit., p. 5. Aqui, se faz presente o evolucionismo
histórico e determinista, apontado por Marilena Chaui.
103
DISCURSO do deputado Olynto Orsin. In: Minas Gerais, Anais da Assembleia
Legislativa 1935, Belo Horizonte, 1936, p. 692. v. II.
104
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, op. cit.
105
O CAVALEIRO do apocalipse. O Diário, op. cit.
106
BRASIL ameaçado. Tribunal de Segurança Nacional. Processo 620, livro 1,
v. 1, folha 38. (Folheto integralista).
107
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, op. cit.
108
DISCURSO pronunciado por Getúlio Vargas em romaria ao Cemitério São João
Batista, op. cit., p. 19.
109
BURGUESIA e comunismo. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 6 jul. 1937.

86
AS ARMADILHAS DO BEM

Entre a intenção e o ato recai


a sombra.
T. S. Eliot

O maniqueísmo rígido e imóvel, entre bons e maus, presente


nas elaborações ideológicas do nosso tempo — tal como nas do
anticomunismo, como vimos anteriormente — é responsável
pela perspectiva imobilizadora das oposições, o que faz com
que as essências do bem e do mal, do oprimido e do opressor
estejam encarnadas em alguém.1 Isto significa a impossibilidade
de uma abertura para a visão da sociedade enquanto um mundo
“dividido contra si mesmo”, sulcado pela alteridade, dilacerado
pelas contradições, traduzido pela ambiguidade como na visão
trágica grega.2
Em contraposição ao espírito trágico, o que encontramos,
nas elaborações do nosso tempo, é o maniqueísmo travestido
na luta do bem contra o mal, dos bons e dos maus, dos patrio-
tas e dos traidores. Se o mal absoluto por vezes se empalidece,
é pela força da figuração do seu reverso: o bem absoluto. E
é esse bem absoluto que vai estar na base das promessas de
igualdade e liberdade a se realizarem no “futuro radioso” da
utopia comunista.
Por esse fulcro, vamos tentar acompanhar o imaginário da
revolução veiculado pelo discurso que se constitui no interior
do espaço da utopia e da ideologia comunista. Não vamos em-
preender aqui uma discussão acerca do conceito de “utopia” e
da complexidade do fenômeno utópico, objetos de farta análise,
particularmente na sociologia, e de várias tentativas de teorização,
tal como a realizada por Mannheim (1968). Uma excelente dis-
cussão sobre o tema — com o cuidado de situá-lo no terreno da
história onde são apontadas direções de pesquisa — é realizada
por Bazcko (1985b), a qual, em linhas gerais, irá informar nossas
considerações. Como ele, entendemos que a utopia está no campo
do imaginário social enquanto uma de suas formas e, dentro do
qual, funciona sempre em interações, relações, oposições, osmose.
Daí, a consideração de que as fronteiras da utopia são fugidias e
seus contornos, vagos, o que leva ao estudo das movimentações
de suas fronteiras nas regiões do mito e da ideologia. E é nesse
entrecruzamento do terreno da utopia, do mito e da ideologia
que situamos o imaginário revolucionário dos comunistas. Por
entender que é próprio do trabalho utópico traduzir em imagens
os valores e princípios da alteridade social, o autor designa por
“ideias-imagens” o material com o qual a imaginação utópica
trabalha, e será da mesma maneira que empregaremos essa
designação aqui.
A presença de ideias-imagens utópicas no discurso da revolu-
ção se destina à tradução, numa linguagem política, da promessa
e da esperança comunista. Afinal, é preciso transformar a ideia
de revolução em “ideia-guia” ou “ideia-força”, para orientar
e mobilizar as expectativas e potencializar as esperanças e as
energias coletivas latentes em certos momentos históricos das
sociedades, tal como o vivido pela sociedade brasileira na metade
dos anos de 1930. Que ideias-imagens utópicas são essas a que
nos referimos? As que representam uma

sociedade outra e melhor cuja alteridade é fundada pela revolução


e está posta na transparência, harmonia, coerência e unidade; na
promessa da sua realização no futuro; na criação do homem novo,
feliz e regenerado (Baczko, 1985b).

88
Como essas ideias-imagens estão manifestas no discurso dos
comunistas? Antes é necessário assinalar que a utopia comu-
nista aparece aqui enunciada, traduzida e estruturada através
de uma linguagem doutrinária informada por uma teoria da
revolução. Essa teoria da revolução3 que norteia os comunistas
brasileiros desde os anos de 1920, baseada no modelo leninista
relativo à Rússia, define o caráter da revolução brasileira como
democrático-burguês. Isso porque o país é diagnosticado como
estando em fase de transição para o capitalismo. Esse caráter,
no caso brasileiro, “decorre da estrutura semifeudal e semico-
lonial do país”,4 daí o fato da sua condição ser, numa primeira
etapa, agrária, antifeudal e anti-imperialista. Segundo o bureau
do PCB em 1935,

(...) a sua primeira tarefa é destruir os restos feudais que existem


e a dominação imperialista sobre o país. (...) E o governo será um
governo popular, nacional revolucionário, em caminho para o governo
operário e camponês.5

Como condição da sua realização nos anos de 1930, conforme


a orientação revolucionária reiterada pelo comitê central do PCB
em julho de 19356 e reforçada pelo VII Congresso da Internacio-
nal Comunista também em julho de 1935,7 impõem-se a política
de frente única, as frentes populares, também chamadas de frentes
democráticas de lutas. É esse espírito que envolve a existência da
ANL. Seus alvos: o imperialismo, o latifúndio e o fascismo, nas
expressões locais do integralismo e do governo “reacionário” de
Getúlio Vargas, tal como designado pelos comunistas.
Uma representação importante veiculada pelo discurso
comunista aparece através da promessa da boa sociedade,
exemplo de alteridade social a ser construída, cuja consecução
só é possível pela revolução dirigida pela Aliança Nacional Li-
bertadora (ANL). A representação de uma outra sociedade, de
uma “boa” sociedade, que é situada num futuro que os homens
podem construir com suas próprias mãos, é uma resposta aos
problemas do presente. Assim é que as ideias-imagens da boa

89
sociedade são precedidas das ideias-imagens de um presente em
crise, ou seja, de uma descrição de um presente odioso e respon-
sável pela perspectiva de um futuro dramático. Dito de outro
modo, de um presente de ponta a ponta grassado pelo mal. Que
mal? O que é causado pelo imperialismo, pelo fascismo e pelo
latifúndio, artesãos de um presente abominável, descrito assim
num panfleto da Aliança Nacional Libertadora:

É aqui o reinado da miséria e das doenças, onde se acha localizada


em sórdidas pocilgas, em promiscuidade revoltante, mas obrigatória,
a população que trabalha e produz, para conforto dos exploradores,
nacionais e estrangeiros. O operário e o camponês, o soldado e o ma-
rinheiro, o pequeno negociante e o pequeno proprietário, o médico
e o advogado sem serviço, todos ligados no sofrimento, porém nesse
momento em posição de combate aos inimigos, para quebrarem, sob
a bandeira da Aliança, as algemas que os torturam. Só conhecemos o
trabalho e o desconforto, vivemos subalimentados permanentemente,
nossos filhos não têm instrução nem saúde, nossas companheiras vivem
esmagadas de trabalhar, lutamos com falta d’água, não podemos ter
higiene, somos devorados pelos mosquitos e expostos às emanações
pútridas das valas fronteiriças às nossas habitações. Temos por conse-
quência de nos defender, unindo-nos todos (...) em torno à bandeira da
Aliança Nacional Libertadora, que recebe todos quanto sinceramente
queiram lutar pela independência concreta do Brasil e extinção do
regime ignominioso do latifúndio e do imperialismo.8

Essas imagens nos descrevem a vida cotidiana dos trabalha-


dores como envolta pela tortura da sujeira, dos odores fétidos,
da fome e da promiscuidade. Mas não há apenas isso. Porque
o regime do latifúndio e do imperialismo é a própria imagem
da miséria, exploração, privação e escravidão que tornam
insuportável o dia a dia dos trabalhadores brasileiros, em
torno da segunda metade dos anos de 1930, é que ganham em
eloquência as descrições sobre as condições da juventude —
que deve ultrapassar o tempo presente — e que são mostradas

90
no manifesto de convocação para o I Congresso da juventude
proletária, estudantil e popular, organizado pelo PCB:

Manietados às fábricas, aos escritórios, às terras, com os estudos


parados por falta de tempo e dinheiro para pagar as taxas, abandonados
pelos governos nas suas aspirações culturais, os moços de nossa terra
se debatem dolorosamente na maior ansiedade que já se lhes deparou
na História. Habitantes de um país, em que todas as forças econômicas
são estrangeiras (...) nós vemos a nossa vida solapada até nos alimen-
tos que nos sustentam. Os capitais estrangeiros aqui convertidos em
bombas sugadoras de energias nacionais, enviam anualmente para fora
quantias fabulosas arrancadas ao trabalho nacional. Salários miseráveis,
tarefas estafantes, falta de higiene e proteção, tudo concorre para que
a juventude veja diante de si o mais negro dos futuros. A exiguidade
dos salários acarretando a exiguidade da alimentação, as tarefas esta-
fantes acarretando o depauperamento, a falta de higiene acarretando
as infecções, a falta de cultura acarretando os males que a ignorância
gera, leva a refletir sobre o pavoroso aspecto dum povo, cujos moços
caminham para a tuberculose, para a sífilis, para a miséria, para o
aniquilamento. (...) Nossa vida é um caminhar contínuo para a miséria
orgânica. Excesso de trabalho e insuficiência alimentar. E os tubarões
estrangeiros se enchem. (...) E a juventude que se arranje porque os
poderes públicos não a protegem.9

Aqui se faz presente o que, segundo Moore (1987), é frequente


nos movimentos de esquerda,10 a cólera e a indignação frente
ao esforço não recompensado e a hostilidade frente àqueles que
sem esforço e sem trabalho usufruem dos prazeres do mundo.
Se o imperialismo mata o trabalho na cidade e o latifúndio,
no campo, se a juventude está ao desamparo e a nação, des-
guarnecida, se as energias do povo são sugadas e as riquezas
do país, sorvidas é porque o capitalismo internacional e a
“feudal-burguesia” brasileira possuem dois poderosos aliados
internos: o integralismo e o governo de Getúlio Vargas. Se, de
um lado, o governo é visto como agente de empresas como

91
a Light, a São Paulo Railway, a Cantareira e outras, sendo a
elas associados os nomes de Vargas, Vicente Rao, Armando
Salles, Benedicto Valladares — entre outros —, por outro
lado, o integralismo é considerado como força auxiliar do
imperialismo, enquanto organização burguesa e inimiga dos
trabalhadores e os seus adeptos são denominados “fascistas
caboclos”.11

O integralismo, ou fascismo, é o regime em que os feudal-burgueses


e o imperialismo procuram se apoiar no Brasil. Apresentando-se com
o título de “salvadores da Pátria”, os seus agentes tentam nos entregar
de mãos atadas aos nossos opressores. São eles os defensores de uma
classe que nos humilha e nos tapeia, nos massacra nas guerras internas
e externas, manda atirar contra o povo em praças públicas, de uma
classe que prostitui as nossas irmãs, que mata à míngua os nossos filhos
e lança o desespero nos lares de trabalhadores, joga ao desemprego os
nossos pais e irmãos.12

Assim, enquanto o capitalismo é a causa de todos os males


do presente, o integralismo simboliza a escravidão e significa
miséria, opressão e humilhação sem conta e o governo Vargas
é aquele que

(...) articula e toma posições para o golpe fascista, destinado a


mergulhar o Brasil no inferno da reação fascista, do massacre brutal,
da negação de todos os direitos, do esmagamento das liberdades, e na
acentuada exploração em proveito dos imperialistas.13

Como vimos, o presente é traduzido, através de imagens de


carência material e de liberdade, pela espoliação estrangeira,
pela opressão exercida por um governo conivente, truculento e
arbitrário. A essas imagens se acrescenta o fantasma da guerra
e a ronda sinistra do inimigo externo. Os perigos do avanço do
nazifascismo na Europa e do belicismo das potências do Eixo

92
são trazidos às portas do país, apresentados como uma realidade
próxima e iminente a tingir com cores dramáticas o quadro do
presente.

Um conhecido astrólogo contemporâneo fez recentemente uma


série interessante de cálculos cabalísticos e chegou à conclusão de que
o Anticristo, falado no Apocalipse, é o Fascismo, representado por
Hitler e Mussolini.
Segundo aqueles cálculos, o Fascismo afogará ainda o mundo numa
verdadeira hecatombe de fogo e sangue. Absolutamente não queremos
apoiar-nos em revelações de ciências de civilizações desaparecidas. (...)
Mas a realidade é que Mussolini acaba de iniciar a sangueira universal,
massacrando milhares e milhares de negros na Etiópia. E Hitler ensaia
já uns arreganhos contra a França num maldisfarçado desejo de re-
conquistar a Alsácia e a Lorena. O mundo ainda terá muito que sofrer
enquanto o flagelo fascista existir sobre a face da terra.14

Também aqui a figuração do inimigo, tal como no imaginário


anticomunista, é expressão do infernal e da morte e o sangue e
o fogo são seus enunciadores fundamentais. O que faz com que
esse inferno esteja tão próximo?

Alemanha, Itália e Japão querem fazer de nossa Pátria uma colônia


completa para terem o monopólio de nossas matérias-primas, do nosso
ferro, do nosso petróleo, do nosso algodão e para disporem da costa
brasileira como posição estratégica. (...) Contam os fascistas com o
apoio direto dos integralistas aos quais financiam e fornecem arma-
mentos. Contam com as formações semimilitares de fascistas italianos
e alemães e das colônias japonesas. Toda esta Tramoia Traidora [sic]
conta com o apoio do Governo, especialmente de Getúlio Vargas e do
Ministério das Relações Exteriores. (...) Auxiliados pelos integralistas,
grupos de técnicos alemães, italianos estão espalhados no território
nacional, investigando estratégias, preparando a guerra civil disfarça-
dos de jornalistas, altos funcionários de casas comerciais, inspetores
de imigração etc.15

93
Se o presente já é revoltante pelas condições de privação
e negação da liberdade, aqui a operação com imagens tem o
objetivo de torná-lo ameaçador. E o sentimento de desamparo
já existente, uma vez que o governo e os poderes públicos não
protegem os cidadãos porque estão associados aos explorado-
res, é reforçado quando aqueles aparecem acumpliciados com
o inimigo externo — “oculto” sob várias máscaras — e, assim,
preparam a tomada final do país mergulhando-o na guerra. Aqui
o governo é duplamente traidor.
A ameaça da guerra, por outro lado, é utilizada também
como um elemento capaz de predispor ao internacionalismo. Ao
imperativo da luta pela democracia interna se alia o imperativo
da luta na esfera internacional.

Não se trata, porém, de defender a democracia somente dentro


das fronteiras nacionais. Somos apenas o setor de uma vasta frente
internacional de luta entre a democracia e o fascismo. E o centro dessa
frente está na Espanha. O inimigo é lá Hitler e Mussolini, que estão
atrás de Franco. O inimigo é aqui Hitler e Mussolini, que estão atrás
de Getúlio e Plínio Salgado. É preciso que derrotemos aqui e lá. Se ele
vence lá, fortalece-se aqui, se ele vence aqui, fortalece-se lá. Ele não
pode vencer nem aqui e nem lá.16

É preciso liquidar com o inimigo externo (imperialismo —


fascismo) e o inimigo interno (integralismo — Governo Vargas
— latifundiários — burguesia) para que o objetivo de melhoria
das condições de vida possa ser concretizado e a esperança da
massa por melhores dias seja realizada. A guerra da Espanha,
também aqui, é o que permite revelar a extensão do perigo e
dos malefícios trazidos pelo inimigo. Assim é que, num panfleto
distribuído pelo comitê regional do PCB em São Paulo, o alerta
é este:

94
Você é trabalhador? Tem família e filhos? Gosta do Brasil, porque
é a terra onde nasceu ou onde ganha o sustento para si e para os seus?
Tem ódio à guerra porque é desumana? Então ouça! Já ouviu falar
da Guerra da Espanha? Sabem que ela é provocada pelos fascistas
estrangeiros, italianos e alemães, que invadiram aquela Nação e lutam
contra o seu heroico povo? Pois bem! Os mesmos estrangeiros querem
reproduzir essa guerra no Brasil. (...) No Brasil eles se valem de um
general vendido — o general Góes Monteiro — e dos integralistas, que
são os agentes do fascismo internacional em nosso país. Sabem como
eles querem desencadear essa guerra no Brasil? Praticando atentados
terroristas, matando, assaltando, incendiando.17

Assim, se o integralismo já era a fome e a peste, “peste ver-


de” como é designado pelo jornal comunista A Lucta, passa a
ser também guerra. Porque é guerra, é desvario, loucura; por-
que é guerra com sangue e terror, vai “cobrir de luto os lares
brasileiros”; porque é guerra, pretende “beber o sangue dos
trabalhadores” e “deixar na rua milhares de cadáveres, como
aconteceu na Alemanha e Itália”; porque é guerra, amedronta
o povo e o proletariado com “ameaças de massacres coletivos
e de noites de São Bartolomeu”; porque é guerra, semeia “o
pânico e o desassossego na família brasileira”.
Também aqui a família é um valor que é preciso defender e o
inimigo se torna mais facilmente perceptível e mais fortemente
ameaçador por se arremeter contra sua sacralidade. E esse inimi-
go é encarado, na forma que tradicionalmente o é em todos os
movimentos de esquerda, no dizer de Moore (1987, p. 656), como
parte da autodefinição do grupo, “como moralmente maligno e
como uma fonte de poluição que precisa ser destruída” (p. 574).
A figuração do inimigo é essencial também à figuração do
povo uno e ambas as imagens se combinam.

A identidade do inimigo é constitutiva da identidade do povo. (...)


A campanha contra os inimigos do povo vê-se posta sob o signo da

95
profilaxia social: a integridade do povo dependendo da eliminação
dos seus parasitas. (...) Enfim, assim como a identidade do povo, a
integridade do corpo dependeu de uma luta constante contra os ele-
mentos estrangeiros ou os parasitas, a virtude da organização supõe a
ideia de uma desorganização, de um caos, sempre ameaçadores, e a de
perturbadores, sabotadores das leis do socialismo (Lefort, 1983, p. 84).

A imagem da organização, no caso a ANL e o PCB, também


não pode prescindir do seu contrário e os seus militantes também
não, sob pena de não edificarem sua própria identidade.
O forte investimento em imagens que traduzem o triunfo da
injustiça, do terror absoluto, da escravidão material e moral e do
despotismo político se presta à caracterização de um presente em
crise. Como se sabe, faz parte do trabalho de revolucionários, e
também de contrarrevolucionários, “expor e exagerar as falhas
existentes em uma sociedade atingida pela crise” (Mayer, 1977,
p. 71). Daí, o fato de representantes do projeto revolucionário
denunciarem de forma implacável e furiosa, como afirma Mayer,
os vários aspectos da vida, instituições e cultura contemporâneas.
Afinal, é das crises, dos descontentamentos, das desarticulações
e divisões na economia e na sociedade que vivem, segundo esse
autor, a revolução e a contrarrevolução. E a imagem da crise e
o seu discurso são elementos-chave, a nosso ver, para que aflore
nos sujeitos sociais o sentimento que os antropólogos denominam
de “comunidade de destino”, tão bem expresso na fala mencio-
nada de um militante do PCB — ao referir-se a si e aos outros
trabalhadores enquanto membros da população que trabalha e
produz para conforto dos exploradores — estando todos “ligados
no sofrimento”. Essa ligação pelo sofrimento, essa igualdade na
vivência do desamparo e na exposição ao perigo, essa percepção
de um destino compartilhado, se predispõem, por um lado, à
comunidade de destino, por outro, fortalecem o sentimento de
incerteza quanto ao dia de amanhã e favorecem a indicação e a
aceitação de caminhos de libertação da crise, dos seus efeitos e
da descrença generalizada.

96
A crise, tal como é exposta no discurso comunista, possui um
centro irradiador: o capitalismo. Assim é que o imperialismo
e o fascismo são duas faces da sua perversidade e a sua manu-
tenção representa a realimentação da crise e o aprisionamento
dos agentes sociais num universo de sisifismo onde o trabalho
é inútil e sem esperança. Com o capitalismo não há saída e
essa é a primeira lição de um programa de curso para ativistas,
elaborado pelo Bureau de Agitação e Propaganda Nacional do
PCB, em maio de 1935:

O capitalismo corroído pela crise geral desmorona-se cada vez mais.


A crise geral que mina o organismo velho e enfraquecido do capitalismo
atinge todos os países, abarca todos os ramos da produção, é uma crise
do próprio sistema para a qual não há solução dentro dos quadros do
regime. É uma doença mortal sem cura. É insolúvel porque não existem
mais novas terras, novos mercados, novas fontes de matérias-primas e
conquistas que podem ajudar o capitalismo a encontrar uma solução.
(...) Sem perspectivas o capitalismo torna-se reacionário e apodrece
como as suas máquinas enferrujadas que não trabalham.18

Existe saída possível? A resposta é que existe uma única saída,


por um único caminho que leva a um único futuro. Essa saída
é pela revolução anti-imperialista, antifeudal, antifascista, para
o estabelecimento imediato de um governo nacional-popular; o
caminho até ela é o da Aliança Nacional Libertadora; e o seu fu-
turo é a sociedade comunista. O caminho da ANL é ora apontado
como caminho da realização de “um programa amplo socialista
e brasileiro”, ora como “caminho que nos apresenta o Partido
Comunista”, ora como “caminho da luta ao lado das grandes
massas populares, o caminho de Barbusse19 que nos libertará
do podre regime feudal burguês”.20 Quando se menciona outro
caminho,21 este é situado sempre na direção contrária da Aliança,
o que implica na sua associação com aqueles que se vendem aos
interesses do capitalismo internacional, que se colocam ao lado
dos opressores, que abdicam por completo do sentimento de

97
dignidade, que não sofrem, não sentem fome e não sabem o que
é a miséria. Contudo, é num longo artigo doutrinário publicado
pela Revista Proletária que as opções em torno da ANL aparecem
definidas com maior clareza: “a revolução nacional-libertadora,
com sua consequência (todo poder à ANL)” é o único caminho
seguro e justo

para abrir as portas ao desenvolvimento crescente da revolução. Ou


se quer seriamente a revolução e então o proletariado deve participar
ativamente da luta revolucionária anti-imperialista e pela derrubada
do governo reacionário e feudal — luta esta que corresponde a to-
dos os interesses da classe operária — ou se abandona o campo da
revolução, com todas as consequências: ataque à Aliança Nacional
Libertadora, ataque à palavra de ordem do Governo Popular Nacional
Revolucionário. O Governo Popular Nacional Revolucionário não
constitui o ponto final da revolução. É, pelo contrário: como órgão de
luta eficaz para a vitória imediata da revolução e para o esmagamento
da contrarrevolução, o Governo Popular cria as condições superiores
para as lutas de massa pela emancipação total.22

Apontada a saída e o caminho a ser trilhado em direção ao


futuro, o discurso e a imagem da crise e da desilusão abrem
espaço à esperança e à imagem da boa sociedade não sem antes
pretender “reforçar a submissão a um poder miraculoso que
emana dos chefes esperados e que encarnam em suas pessoas
a identidade possível da sociedade consigo mesmo” (Chaui,
1978, p. 129). Assim é que o mesmo discurso que qualifica a
ANL como a organização capaz de direcionar a luta pela supe-
ração de um presente em crise, numa mesma operação, realiza
a identificação da ANL com Luiz Carlos Prestes, expressa na
palavra de ordem que acompanha a fala dos aliancistas e todo
o material de propaganda da Aliança: “Todo o poder à Aliança
Nacional Libertadora com Prestes à frente”, ou: “Por um Go-
verno Nacional Popular Revolucionário com Prestes à frente”.

98
Essa operação está presente num boletim de instruções aos
comitês da Aliança, claramente inspirado por diretrizes do PCB:

Todo o povo brasileiro deseja lutar contra o imperialismo e, comple-


tamente desiludido dos politiqueiros e dos partidos ou bandos em que
estão reunidos, sentiu instintivamente que a ANL, pelo seu programa, é
realmente a organização política capaz de dirigir as grandes lutas pela
emancipação do Brasil. (...) A ANL tem já hoje um nome que chegou
ao coração de grande parte da população do Brasil. O nome de nossa
organização é para a parte mais miserável do nosso povo o sinônimo
de luta contra o imperialismo, de luta contra a brutalidade dos grandes
senhores feudais reacionários, é o sinônimo de luta contra a barbárie
fascista, contra o integralismo enganador e serviçal dos imperialistas e
contra os senhores reacionários do governo. Para a grande maioria da
população do Brasil o nome da ANL tem como sinônimo o de Prestes
e significa a grande esperança de melhores dias, significa a real emanci-
pação do jugo do imperialismo e do feudalismo. (...) A ANL continuará
a viver, porque o seu programa está vivo na consciência das grandes
massas e será amanhã executado pelo governo que vai surgir da grande
revolução anti-imperialista e antifeudal que será vitoriosa amanhã.23

Entre as desilusões contabilizadas nesse presente em crise,


mais uma é agregada nesse diagnóstico: a descrença com o
princípio da organização partidária que, aliás, é compartilhada
por diversas correntes políticas em ação nos anos de 1930 que
vão engrossar o caudal das opções autoritárias.24 À descrença se
contrapõe a esperança corporificada na ANL, que por sua vez
se corporifica em Prestes, que, por seu lado, figura a si mesmo
como o chefe que dispõe do remédio miraculoso capaz de salvar
a sociedade e o país da crise que os atormenta.
Em carta enviada por Prestes a Pedro Ernesto, então prefeito
do Distrito Federal, é possível acompanhar o pensamento que
o líder da ANL tem sobre sua própria liderança e sobre a ANL:

99
(...) o povo espera de nós atos revolucionários, orientação e direção
prática na grande luta pela emancipação nacional. (...) A ANL, sob
minha direção pessoal, está tomando todas as medidas práticas para
orientar e realmente dirigir a grande vontade de luta do nosso povo.25

Em outra carta, em rascunho do próprio punho de Prestes:

A situação atual é muito mais grave do que em 1930. A própria


crise econômica insolúvel, apesar do otimismo das mensagens oficiais,
levará as massas trabalhadoras ao desespero e às lutas violentas que o
governo pretende afogadas em sangue. É numa situação como a atual
que surge quase que espantosamente a ANL [sic] como organismo
de frente única, capaz de congregar todos os que queiram lutar por
melhores dias para o Brasil. (...) Com a ANL estão todos os que que-
rem diminuir os sofrimentos do povo [frase riscada]. Porque a ANL
por sua vez apoia a todos os que fazem alguma coisa em benefício do
povo. Os comunistas para isso apoiam e mesmo participam da ANL.
Estou convencido que se conseguirmos unificar as forças de todos
os verdadeiros democratas, de todos que compreendem o mal, e não
concordam com o terror fascista, poderemos evitar para o nosso país
os males terríveis que o ameaçam.26

Essas considerações de Prestes são bastante significativas em


algumas direções. Por um lado, apontam para o perigo de desa-
gregação da sociedade pelo mal capitalista e fascista, enquanto
num mesmo movimento reforçam a ideia de frente única como
proteção eficaz e reconfortante contra a ameaça dos “terríveis
males”. A questão da frente única é colocada como uma questão
de “vida ou de morte da revolução”. Contudo, muito embora os
comunistas definam, estrategicamente, que o principal objetivo
dela é o de conquistar a maioria do proletariado e das massas
populares para fortalecer “orgânica e politicamente o PC”, 27
parece-nos que a ideia de frente acalenta, em seus recônditos
mais secretos, o sonho de uma sociedade harmoniosa e homo-
gênea que os sujeitos sociais se inclinam a aceitar quando a crise

100
os faz sentirem-se unidos numa comunidade de destino. Na
“frente única”, materializada na ANL, estão os que querem o
bem do povo, os que não querem o mal fascista e os que sofrem
com o mal imperialista. Enfim, estão os operários, os pequenos
e médios agricultores, os intelectuais, desde que honestos, os
comerciantes e industriais que não estão ligados ao capitalismo
estrangeiro, os artesãos, a juventude “do campo, da fábrica e
das escolas”, 28 a maioria dos oficiais das forças armadas, todos
os soldados e marinheiros, os grandes agricultores que se sentem
explorados pelo capitalismo estrangeiro.29 Ao sentimento de uma
comunidade de destino vem se colar a necessidade de alianças.
As classes são assim dissolvidas e as diferenças ideológicas postas
em segundo plano, tal como está expresso num panfleto oriundo
do comitê regional do PC em São Paulo:

Não se trata agora de defender esta ou aquela organização; militan-


tes deste ou daquele partido; trabalhadores desta ou daquela ideologia;
o furor dos asseclas do poder, o ódio imperialista procuram eliminar
a todos aqueles que, comunistas ou socialistas, marxistas ou liberais,
católicos, protestantes, espíritas, ateus, estejam dispostos a defender
as liberdades populares conquistadas através de lutas no curso de
centenas de anos. Trata-se de defender a vida do povo trabalhador —
jurado de morte pelo fascismo. As divergências ideológicas que possam
existir entre essas organizações proletárias e populares não são, neste
momento, motivos de dispersão das forças revolucionárias.30

A defesa do “povo”, a supressão das classes e das diferenças


ideológicas, sob o pressuposto da homogeneidade social cuja
consecução é inviabilizada pelo capitalismo, se dão em nome
da própria luta contra o capitalismo, responsável pela existência
das classes e dos vários interesses ideológicos. Nesse ponto, a
nosso ver, o discurso e a prática dos comunistas se aproximam do
discurso e da prática contrarrevolucionários, uma vez que estes
últimos também se caracterizam pela tentativa de se ignorar a
existência de classes.

101
Por outro lado, as considerações de Prestes apontam para um
futuro de “melhores dias”, enquanto ele mesmo se representa
como alguém em quem foi depositada a expectativa da direção
e orientação da disposição de luta do povo, uma vez que, como
um utopista, “possui um saber sobre a alteridade social situada
num futuro que sua obra decifra. O seu papel ou missão consiste,
sobretudo, em ajudar esse futuro a emergir” (Bazcko, 1985b).
Esse futuro é o da sociedade comunista, cujas representações
utópicas doravante se constituem em espaço para o qual des-
bordam os conflitos políticos e sociais de natureza ideológica,
uma vez que elas sustentam um projeto ideológico que postula
uma legitimidade “outra” no campo político. Como é descrito
esse futuro? Que ideias-imagens o traduzem? Como o tempo
da realização de uma comunidade fraterna onde os homens são
iguais e felizes. Assim é que Prestes, numa carta endereçada à
juventude do Brasil, apela à energia e ao entusiasmo dos jovens,
aos quais, segundo ele,

(...) cabe o papel principal e decisivo na luta pela liquidação do


presente odioso e bárbaro e pela criação de um futuro radiante e alegre.
A juventude do Brasil quer e pode transformar a tristeza da sua vida
de hoje nos dias alegres de amanhã.31

O futuro é radioso porque é conquista de terra, pão e li-


berdade. Nesse lema da Aliança Nacional Libertadora se faz
presente um aspecto arcaico do fenômeno utópico, tal como o
denomina Bazcko (1985b, p. 388-389): o esquema do “mundo
às avessas”, através do qual valores e princípios — ou imagens
— da alteridade social significam sempre o avesso da realidade
social à qual se opõem. Assim, pela promessa de pão se opõe à
realidade da fome e da miséria; pela promessa de terra se recusam
os constrangimentos ao espaço do trabalho e da sobrevivência;
pela promessa de liberdade se negam a opressão e os entraves à
ação e à palavra livres. No mundo do futuro imaginado, terra,
pão e liberdade são ideias-imagens que traduzem a promessa

102
da supressão do mal e o advento da abundância, da saúde,
da justiça, do gozo, da plenitude. O que, dito de outro modo,
significa a presença da “síndrome paradisíaca” na imaginação
utópica comunista. Assim é que o tempo do futuro é o tempo
da nova sociedade almejada, que é figurada como a “boa so-
ciedade” porque liberta do mal. Isso porque a sua existência
depende da revolução que vai instaurar um “Governo Popular
Nacional Revolucionário, presidido por Prestes, que acabará
com a fome, a miséria, o desemprego, a reação contra as massas
e garantirá para todos a cultura, o pão, a terra, e a liberdade”.32
Assim é que nela “cada qual pensará como entender (...) haverá
liberdade e assim poderemos ter família, pois não haverá mais
a miséria ameaçando nossos lares”.33 Por ela se deverá travar o
bom combate:

Todos os homens pobres deve [sic] se unir para obter a terra livre e a
igualdade de direito. Existindo a terra livre e a igualdade acaba-se com
todas as misérias que nós sofremos. A riqueza é um roubo. Não existindo
pobres nem ricos, também não existirá exploração. (...) Porque os ricos
são hipócritas, gananciosos e invejosos é os ricos [sic] que prostitui [sic]
as filhas dos pobres é a causa de todas as nossas misérias.34

Aqui, a libertação do mal é traduzida com imagens próximas


ao cotidiano na figura do “rico”, cuja supressão do mundo do
futuro implica, no esquema do “mundo às avessas”, a elimi-
nação do pobre. E se a igualdade e o acesso à terra significam
abundância, também significam o fim do “pobre”, porque este
só existe sob o império da necessidade.
A representação de um paraíso na terra na utopia comunista
faz ressoar elementos da tradição religiosa — de valor para a
classe trabalhadora e/ou arraigados no imaginário popular. Daí o
fato de se reportar a promessa socialista a um imaginário bíblico
bastante familiar.35 É preciso lembrar que “no mundo em que
o movimento operário moderno nasceu, a religião permanecia
inseparável da ideologia do povo e fornecia a linguagem principal

103
para a sua expressão” (Hobsbawm, 1987, p. 57). Se a conversão
ou a prática religiosa ofereciam a garantia de uma outra vida no
paraíso, a conversão ao socialismo e o ingresso no movimento
operário e em movimentos de libertação de classe acenavam
também com o acesso ao paraíso, porém na terra.
O fim desse reino de privações e a instalação de uma boa
sociedade introduzem um tema caro à imaginação utópica,
remetendo-a novamente à “síndrome paradisíaca”: o tema da
paz perpétua. Assim é que as ideias-imagens de um reino de
justiça, de abundância e de igualdade que recusam, pelo aves-
so, a injustiça, a miséria e a desigualdade contêm a promessa
de realização de um valor supremo: “o ideal humano de amor
entre irmãos e de paz eterna entre os povos”36 — ou seja, um
mundo sem guerras, uma sociedade sem conflitos e sem dispu-
tas, um império de harmonia e de fraternidade universal. Aqui
é interessante observar que a “ideia de revolução”, ao significar
a garantia de acesso a esse mundo, se torna uma “ideia-força”,
por um lado, porque é apresentada como ponto de passagem
inevitável para se alcançar a boa sociedade, portanto, como
a única depositária de confiança da promessa igualitária. Por
outro lado, a sua condição de ideia-força advém não só do fato
de mobilizar e direcionar as esperanças e os sonhos coletivos de
um mundo melhor, mas também por possibilitar, em nome dessas
esperanças que capitaneia, que, em seu nome, se exorcizem os
fantasmas do mal que a impedem de se realizar. Ela se torna
um elemento de mediação para que sujeitos sociais projetem
no burguês, no capitalista, no latifundiário, no imperialismo,
todas as partes más que desejam expelir de si próprios e de
sua realidade.37 E ao fazê-lo, eles tentam conjurar a injustiça,
a desigualdade, a miséria, a fome, a doença, a morte às quais a
revolução promete pôr fim e que burgueses (ricos), capitalistas,
latifundiários e o imperialismo estão a encarnar. Ao significar
a promessa de um mundo que é o avesso da realidade social
vivida, a “revolução” identifica as mazelas dessa realidade e

104
aqueles que lhe dão suporte, fazendo com que se tornem mais
insuportáveis à vista da alteridade social. Assim, permite uma
enorme purgação de dores, ódios e frustrações.
No espaço das representações utópicas do futuro, se prolonga
o conflito com os integralistas. O lema da ANL, terra, pão e liber-
dade, se instala no seio desse conflito e se torna a sua expressão
ao tentar descaracterizar o lema integralista, pátria, família e
propriedade, o que é feito com os seguintes argumentos:

Nossa família não é família porque temos fome e não ganhamos


para vestir-nos e alimentar-nos. Queremos Pão para nossas famílias.
Nossa Pátria está cada dia mais vendida aos imperialistas (os papais
Noel dos Plínios) e sofrendo as garras vorazes do latifúndio. Quere-
mos Terra para que nossa Pátria, nosso Brasil seja realmente Nosso.
Queremos Liberdade porque com ela seremos o que entendermos:
católicos, protestantes, espíritas. Não te impressiones, ó Plínio — o
trabalhador brasileiro escolheu já: queremos Pão, Terra e Liberdade!38

O conflito continua e sua nitidez ideológica assume coloração


mais forte quando a União Soviética é apontada como o modelo
de “boa sociedade”, porque:

Lá se quer extinguir as classes e sua luta, lá não há mais a explo-


ração e a opressão contra os trabalhadores, como acontece no mundo
capitalista do qual Plínio é um dos representantes mais ignóbeis. Lá
quem governa é o proletariado como classe. Lá quem dirige são os
trabalhadores, os que produzem e criam e que são escravos no mundo
de Plínio e Barroso. (...) Fala [o integralismo] em “eliminar a luta de
classes”, fiscalizando os patrões e protegendo os operários. É mais do
que tudo irrisório e sem a menor dose de lógica a alguém [sic] que
se elimina alguma coisa “fiscalizando” os que exploram e oprimem,
“protegendo” os que são explorados e oprimidos. Luta de classes para
Plínio Salgado é uma espécie de verme ou solitária, qualquer purgante
elimina.39

105
Aqui, dois projetos ideológicos se enfrentam no espaço da
representação da sociedade ideal. E a experiência soviética é que
fornece os elementos que compõem uma visão pormenorizada
da sociedade vindoura. Nesse sentido, a URSS, numa topografia
imaginária, é o espaço descrito como uma “Terra-sem-mal”.40 E
o imaginário comunista nessa descrição faz dele um lugar que
é simultaneamente realidade e sonho. A descrição que informa
sobre uma realidade “outra” apela à ação tanto quanto à descri-
ção da paz e da felicidade no espaço sonhado. Ambas mobilizam
desejos e esperanças em direção a um “mundo novo”, tal como
é designado esse espaço utópico, e acalentam a construção de
um novo homem para esse novo mundo:

Na URSS, (...) não há crise, porque a produção lá não é feita para


enriquecer capitalistas, mas de acordo com as necessidades das popula-
ções. (...) Lá as forças técnicas e as invenções são aproveitadas em toda
a sua plenitude em benefício do povo, porque seu aproveitamento não
depende do lucro individual dos proprietários, mas sim dos interesses
das massas. (...) Um mundo novo se constrói na URSS, o mundo so-
cialista, onde desaparecem a exploração do homem pelo homem e as
classes serão abolidas. O bem-estar, a instrução, a cultura e a liberdade
tornam-se patrimônio comum. Uma nova geração de homens aparece
na URSS: geração de homens robustos, sadios de espírito e de corpo.
Tudo isso pode ser na URSS graças ao regime soviético, governo de
operários e camponeses. (...) A URSS é a única atualmente interessada
na paz. Ela não tem necessidade de conquistar mercados nem colônias
de ninguém. A URSS tem empregado e emprega o melhor de suas forças
na manutenção da paz mundial.41

Essas representações do mundo socialista são acrescidas de


autoridade quando as descrições da experiência soviética são
feitas por autoridades da Internacional Comunista, e, portanto,
precisam ser conhecidas pelos comunistas brasileiros. É esse o
caso de uma mensagem aos russos, enviada por Dimitrof, então
secretário geral da Internacional, que confirma:

106
(...) o país soviético foi transformado (...) num país avançado, culto
e em poderoso estado socialista (...) o sistema capitalista de economia
e as classes exploradoras foram abolidas uma vez por todas. A pro-
priedade privada dos instrumentos e meios de produção foi abolida.
A exploração do homem pelo homem foi abolida. Este é o único país
do mundo onde não há exploração do homem pelo homem.42
[E o povo soviético é] (...) saudável, forte e jovem.43

Assim é que a promessa utópica comunista é a de uma socie-


dade futura onde inexistem classes; não há exploração entre os
homens; o Estado não é o representante de uma classe opressora;
onde impera a harmonia, a igualdade (porque sem conflitos e sem
classes e com igual participação no poder) e há transparência,
porque sua realização é visível nos “novos homens” que o viés
pedagógico da utopia vai educar para essa nova sociedade; onde
reina a justiça porque todos têm a garantia de suas necessidades
e acesso aos bens materiais e culturais; onde é visível a coerência
porque o socialismo, enquanto projeto fundador, se realiza em
todas as experiências sociais, ou seja, nas relações humanas, nas
relações com a natureza (força técnica e invenções), na política,
nas relações internacionais (paz — triunfo do internacionalismo).
Assim é que a vida social sonhada é mostrada como coincidindo
com o projeto que a fundamenta e a provê. E a vida na sociedade
socialista é a realização mesma do projeto socialista expresso
pela nova geração de homens fortes, robustos, sadios de corpo
e mente. O homem socialista não é só estômago, como dizem
os anticomunistas, é também mente. Ao lado da resolução dos
problemas do mundo das necessidades (fome, miséria etc.),
uma nova moralidade se faz presente. O apelo da nova ordem é
universal porque o objetivo é a construção de uma nova ordem
para o mundo. Nesse ponto, da sociedade harmoniosa e trans-
parente, é que se realiza no seu interior um só e idêntico projeto
fundador, a utopia comunista, que com sua promessa una e eterna
abre espaço para a promessa totalitária de uma sociedade una,
estruturando-a em ideias-imagens.

107
Contudo, esse projeto fundador se pretende e se afirma a
realização de qual princípio? Do princípio democrático. E é
esse princípio que está subjacente nas metáforas e nas imagens
da utopia comunista que, como outras representações utópi-
cas, “traduzem apenas autorrepresentações do próprio social”
(Bazcko, 1985b, p. 390). E esse social, ao surgir como tendo
sido fundado por si mesmo, ou melhor, fabricado a si próprio,
faz aparecer a vontade coletiva como seu instituinte e, desse
modo, a sociedade sonhada é também sonho democrático.44
Essa convergência entre os espaços da democracia e da utopia
cuja expressão é a sociedade fundada por um projeto coletivo,
se, por um lado, é o que atribui uma feição moderna à utopia,
por outro, é o que garante a presença, no discurso utópico, do
tema da democracia. Ora como democracia social, ora como
democracia econômica, ora como democracia soviética, o tema
da democracia aparece como inseparável da promessa de uma
sociedade fraterna e igualitária.45
Em maio de 1935, um membro do sindicato dos capitães e
pilotos e da ANL faz a seguinte declaração ao jornal A Manhã:

(...) a nossa obra construtora é baseada na verdadeira democracia


social, que é a democracia proletária, sem classes e sem privilégios,
onde todos os homens e todas as mulheres terão os mesmos direitos e
assumirão os mesmos deveres perante a sociedade numa obra gigantesca
e consequente com os destinos da humanidade (...).46

Se aqui a obra de construção do socialismo é chamada de


“democracia social”, em outras considerações a existência da
democracia política é vinculada à democracia econômica:

A verdade é que a democracia não faliu. Por um motivo simples: não


pode falir uma coisa que ainda não teve existência real. A democracia
que nos prometeram não foi realizada. Prometida pelos que fizeram a

108
Revolução Francesa, foi depois desvirtuada, desviada, para essa comédia
a que nós estamos assistindo, de punhos fechados, com grande revolta
dentro de cada homem consciente e a forte certeza de que os dias
melhores hão de vir. A democracia não morreu porque a democracia
ainda não nasceu. Nós é que iremos realizá-la com o governo popular
em que os representantes do povo serão escolhidos democraticamente
por delegações populares. Nós é que iremos realizá-la nacionalizando
as empresas imperialistas, negando o pagamento das dívidas externas,
destruindo o fantasma feudal do latifúndio, quebrando a munheca
da reação fascista, realizando a verdadeira democracia, ou mais sim-
plesmente, a democracia. Mesmo porque não pode existir democracia
política sem democracia econômica. E democracia econômica é o que
ainda está para haver. (...) A democracia existe! Vamos realizá-la no
Brasil! 47

Se a Revolução Francesa fracassou na sua promessa demo-


crática, a URSS é quem garante a sua realização e se torna o seu
paradigma e a certeza de sua possibilidade porque:

A democracia soviética é a única que assegura a participação de


milhões de trabalhadores na direção do Estado, a única que permite a
administração do país em proveito da imensa maioria do povo (dos 160
milhões de habitantes, 90 milhões votam). Não é essas [sic] ditaduras
disfarçadas do capitalismo que se intitulam “democracia”, sob cujas
formas se escondem leis fascistas, ou então as ditaduras cínicas do
fascismo, com todo o seu cortejo de crimes, violência e brutalidade.48

A confirmação da democracia soviética por Dimitrof é posta


a circular pelo PC:

Esta “Democracia Socialista” é possível e está sendo edificada


somente num país do mundo, na União Soviética, onde as classes
foram abolidas, onde não há exploração do homem pelo homem. A

109
democracia soviética não está à mercê do capital. No país soviético há
uma comunidade de interesse de todo apoio ao grande fim comum da
construção do socialismo, ao fim supremo de chegar ao comunismo.
Aqui classes hostis não brigam nos postos, nem há partidos hostis nas
eleições.49

Desse modo, no discurso comunista, a promessa utópica e


a democrática se confundem e ambas aparecem associadas ao
ideal igualitário e fraterno, ao desaparecimento do capitalismo,
à presença dos trabalhadores no poder, à inexistência de um
sistema partidário competitivo.
Contudo, a promessa utópica de uma sociedade outra, e
democrática, não se sustenta apenas pela oferta de um futuro.
Sua viabilidade é reforçada quando se apoia na tradição das
lutas populares do passado, as quais são interpretadas como
prenúncios de um futuro ainda por vir. A luta da ANL é posta
como a continuação de uma luta “começada há mais de três
séculos pelo povo brasileiro”.50 Com o objetivo de elaborar
uma reapresentação mental do passado que se coadune com o
reforço da coragem e da disposição da luta dos brasileiros, são
resgatados momentos, episódios e vultos da história nacional.51
Dessa forma, opera-se com a recordação da expulsão de Duclerc
do Rio de Janeiro, da guerra contra os holandeses, dos heróis da
Inconfidência e da Revolução Pernambucana. São relembrados
o sete de abril, a abolição, a república e os levantes tenentistas.
Exaltam-se os líderes das aspirações populares: Castro Alves,
Gonçalves Dias, Tiradentes, os 13 do Forte e Prestes. São todos
exemplos, entre outros, dos que lutaram pelos anseios do povo
brasileiro. E quando os destinatários do discurso igualitário são
os negros, invoca-se um passado que contenha elementos da sua
história particular tal como o heroísmo do 13 de Maio; a com-
batividade dos heróis anônimos mortos na luta pela libertação
dos escravos; os negros de Palmares, a “República Negra de
Pernambuco”; os quilombos de Paty do Alferes.52

110
Não só o passado é repleto de lutas, também a construção
do futuro as irá exigir e, por isso, invoca-se um passado antigo e
recente para justificá-las, ao mesmo tempo que a sua importância
para o futuro é reforçada:

Parafraseando Lenine, pode-se dizer que o Governo Popular


Nacional Revolucionário tem um passado e um futuro: seu passado
é a opressão dos imperialistas, a submissão nacional, o governo de
reações de Vargas, a opressão dos camponeses; seu futuro é a luta
dos operários e camponeses contra toda opressão, é o esmagamen-
to da burguesia, é o caminho do sovietismo e, por este, a luta pelo
socialismo.53

Por outro lado, a promessa de futuro dos comunistas, que


se põe como democrática, ao aparecer referida à experiência
soviética, se reveste da chancela de autoridade que um passado
utópico, o da Revolução Russa de 1917, lhe concede. Assim,
1917 é o exemplo a ser seguido.54
Esse enraizamento no passado que se realiza tomando 1917
como a referência histórica fundamental, legitima a projeção
do passado em direção ao futuro e torna a grande promessa
de futuro dos comunistas inseparável do mito revolucionário.
A revolução de 1917 foi figurada como aquela que realizaria
definitivamente as promessas não concretizadas pela Revolução
Francesa que é transformada nessa figuração em “mãe” da Re-
volução Russa (Furet, 1978). Assim, outubro de 1917 é o filho
que vai resgatar o sentido fundador da revolução-mãe. Se a mãe,
a Revolução Francesa, é a promessa, o filho, outubro de 1917,
é o “rosto” da revolução. Daí a revolução socialista se tornar o
marco de origem, e, por que não dizer, o começo primordial e
absoluto da alteridade social. Nesse sentido, passado, presente
e futuro adentram numa mesma temporalidade. O passado
soviético, cuja referência é a revolução de 1917, é considerado
pelos comunistas como a realização do presente pela ANL; e este
presente, como abertura para o futuro; e o presente soviético,

111
como o futuro almejado pelo presente. Assim, o recomeço da
história, com a instituição de uma sociedade outra, a socialista,
é também continuidade em relação a uma história que começou
em 1917, o que faz com que o futuro prometido seja também
passado.
Nesse sentido, a ideia de revolução aparece prenhe de dois
significados ou dois sentidos, como apontados por Arendt
(1988). De um lado, o significado original do termo enquan-
to termo astronômico: o de restauração. De outro, o sentido
moderno do termo ligado a um “novo começo da história”,
a um novo princípio. Isso porque a ideia de revolução, tal
como aparece nas representações dos comunistas brasileiros
na década de 1930, é promessa de fundação de uma sociedade
outra na medida em que é restauração de um passado utópico:
o soviético de 1917. Dessa forma, o começo é reencontro com
uma história primordial, é retorno às origens, é restauração
de um “começo absoluto”. E o passado é o futuro e o futuro
é o passado e a utopia deixa de ser apelo do futuro para ser,
como quer Eliade, citado por Bazcko (1985b, p. 352), “avatar
da nostalgia das origens”. Assim, a revolução brasileira deveria
ser democrático-burguesa, agrária ou antifeudal, porque, como
a Rússia em 1917, o Brasil nos anos de 1930, com seus restos
feudais, estava em transição para o capitalismo. E a experiência
de lá aparece determinando, doutrinária e teoricamente, a daqui.
Segue-se que o Governo Nacional Popular Revolucionário é

(...) o caminho do sovietismo e por este a luta pelo socialismo.


A ditadura nacional revolucionária não pode deixar de conduzir à
ditadura democrática revolucionária dos operários e camponeses.55

As insurreições militares eclodidas no Nordeste em novembro


de 1935 são saudadas, até mesmo depois de reprimidas, como o
início de um novo tempo e com um entusiasmo típico de quem
julgava dar início ao seu próprio 1917:

112
O nordeste escreveu uma legenda de glória no pórtico da insurreição
nacional libertadora. (...) Há de perdurar, para sempre, na tradição das
massas insubmissas, o deslumbramento daqueles feitos, que ampliaram
os horizontes da Pátria, redoirando-os numa apoteose de aurora tropical.
Os acontecimentos históricos do Rio Grande do Norte, Pernambuco e
do Rio, (...) não foram um relâmpago de longínqua tempestade, figura-
ção de um instante, logo afogado na noite de tirania. Não. O governo
Popular de Natal continua a fazer vibrar a retentiva dos brasileiros. O
formidável revérbero derrama-se por todo o Brasil, a anunciar, lá do
ponto mais oriental do continente, o levante de um sol que, enfim, nasce
para todos e nada poderá deter em sua marcha ascencional, varrendo
os miasmas do passado, purificador e fecundante, na promessa de calor,
da luz e da potencialidade do meio-dia.56

Que ideias-imagens temos aqui? Que a revolução é solar, a


tirania é noturna e o passado é infecto. E a revolução, como
o sol, fecunda e purifica. Novamente nos defrontamos com o
jogo de oposição entre luzes e sombras a reforçar a verdade dos
revolucionários e a crença na inevitabilidade do evento revolucio-
nário. Também Dimitrov (1976) não o irá dispensar no discurso
de encerramento do VII Congresso Mundial da Internacional
Comunista em 1935.

Na noite escura da reação burguesa do fascismo, em que o inimigo


de classes se esforça para conter as massas trabalhadoras dos países
capitalistas, a Internacional Comunista — Partido mundial dos bol-
cheviques — ergue-se como um farol que aponta a toda a humanidade
a única via segura para a libertação do jugo do capital, da barbárie
fascista e dos horrores da guerra imperialista (p. 124).

Aqui encontramos Dimitrov, em nome da infalibilidade da


Internacional Comunista, a colocar a Internacional como um
farol a iluminar a noite.

113
Já no Brasil, se diz a respeito dos manifestos do governo de
Natal:

(...) perpassa, na eloquência sem artifícios, na beleza e na sonoridade


das proposições, esse eterno inimitável perfume de que se impregnam
as falas e os hinos inspirados no fragor das lutas populares.57

Na ausência de artifícios, na beleza e no som, e na impregna-


ção de perfume, a sugestão de um retorno do povo ao estado de
natureza como resultado da revolução. A revolução, portanto,
é promessa da natureza, é realização da igualdade natural, é o
avesso do capitalismo, que é antinatural.
O apelo ao povo feito pelo bureau político do PCB, para
engrossar a insurreição da Aliança Nacional Libertadora, evoca
outubro de 1917:

As massas proletárias e populares do Nordeste — unidas e fraterni-


zadas com as forças armadas — travam nas capitais, nas cidades e nos
sertões nordestinos os primeiros e grandiosos combates da Revolução
Nacional Libertadora. O povo insurrecionado do Nordeste começa a
despedaçar as algemas da opressão imperialista e da exploração feudal.
Eis o exemplo que todos nós, desde já, vamos trilhar de armas na mão.
(...) Povo Brasileiro! Está sendo decidida a causa do Brasil e de todos
os seus filhos. Ninguém poderá ficar indiferente. (...) Comunistas e
simpatizantes do Partido! Ocupai os vossos postos de combate com
as armas nas mãos, com toda iniciativa e decisão. Ninguém em casa!
Todos nas ruas, nas lutas, nas barricadas, com os soldados e mari-
nheiros do Brasil! Forjemos por toda parte, nos bairros, nas empresas,
nos quartéis, nas fazendas, nas escolas — a potente e invencível frente
popular nacional revolucionária! (...) Operários dos transportes e das
indústrias — às greves e às lutas de rua por vossas reivindicações e pela
libertação do Brasil. Colonos, camponeses, assalariados, agrícolas, à
luta contra os grandes senhores de terra, por vossas reivindicações e
para que a terra vos pertença! Soldados e marinheiros do Brasil! Com

114
todo o povo libertador, libertemos a nossa Pátria do jugo imperialista.
Povo Brasileiro! Formemos lado a lado com os soldados e marinheiros
e fraternizemos com eles e contra o inimigo comum — o governo de
traição nacional de Vargas e os imperialistas.58

Aqui, outubro de 1917 inspira novembro de 1935 que retorna


a 1917.
Aqui, os limites entre utopia, mito e ideologia se esgarçam.
Isso porque, de um lado, a utopia comunista, como vimos, e a
sua promessa de uma sociedade “outra” e “liberta do mal” são
estruturadas e enunciadas numa linguagem doutrinal, conquanto
são elementos constitutivos da ideologia comunista e da teoria
revolucionária. De outro, na medida em que é portadora de uma
promessa de futuro, a utopia se abre para o mito político da
revolução em que se insere e intervém. A ideia dessa vinculação
entre utopia e mito está exposta por Vaz (1989, p. 10 e 11), no
que ele chama de mitogênese da revolução. Nessa fase, a primeira
da vida da revolução a partir do mito,59 de acordo com os está-
gios cumpridos por este na estruturação do universo simbólico
revolucionário, a representação da revolução “assume a forma
da utopia da igualdade absoluta no seio da vontade geral” (p.
10). É no centro do imaginário da revolução que mito, ideologia
e utopia encontram-se nesta e em várias representações. A revo-
lução existe como mitologia quando é “discurso de um passado
transfigurado no tempo sagrado de uma origem. A mitologia
é a forma de imortalidade da revolução para as gerações pós-
-revolucionárias que começam a distanciar-se dela no tempo”.
O fato de sua representação desde 1789 ter-se tornado objeto de
crença poderosa60 fez com que ela fosse aceita “fideísticamente
como destino da sociedade moderna” e passasse a submeter “a
práxis política dos tempos pós-revolucionários”. E o discurso
ideológico, tal como o dos comunistas, ao inscrevê-la nas leis da
história, transforma-se na “mitologia savate desse mito” (Vaz,
1989, p. 11).

115
E a história, no discurso ideológico comunista, marcha ine-
vitavelmente rumo ao socialismo e ao comunismo, movido por
uma força superior que se expressa pela revolução:

Todas as revoluções que se vêm processando através da existência


humana têm obedecido e hão de obedecer a um determinismo histórico
que força alguma poderá conter.61

Aqui, a ideia de revolução resgata um outro sentido original da


sua filiação astronômica que Arendt (1988) tão apropriadamente
apontou — o de irresistibilidade. A noção de revolução aqui
como “o movimento giratório das estrelas segue uma trajetória
predeterminada, e é independente de qualquer influência do
poder humano” (p. 38). Por isso mesmo, ela é associada também
ao Sol, como vimos atrás, que, em sua marcha ascencional, não
poderá ser detido. E o capitalismo histórica e cientificamente
está fadado, portanto, a desaparecer do planeta, e a sociedade,
contra todos os obstáculos, prosseguirá na sua evolução.
A revolução, dessa forma, está ligada à noção de inevitabili-
dade e de irresistibilidade, as quais prescindem da vontade dos
homens. Essa noção é bem expressa no prefácio do programa
de curso para ativistas que o bureau de agitação e propaganda
do PCB organiza em 1935 e que já foi mencionado aqui. No
prefácio, assinado por Bangu, ela é assim manifesta:

Precisávamos recomeçar com urgência os cursos. E fizemos este


programa um pouco apressadamente. Procuramos focalizar nele os
problemas mais importantes do momento, para serem estudados em
cursos rápidos, pois os prazos são tão curtos que há o perigo de sermos
surpreendidos pelos acontecimentos, de sermos obrigados a agir, a
avançar audazmente, mesmo apesar de todas as debilidades.62

A ideia aqui é a da velha e conhecida expressão: não perder


o bonde da história! Quem não quiser perdê-lo suba, porque o

116
seu trajeto não será interrompido, mesmo que as condições da
estrada não estejam favoráveis.
E esse mito da revolução é político não só por estar no centro
das representações simbólicas do poder e legitimar relações de
força no campo da política, como o quer Bazcko (1985b), mas
também, acima de tudo, por estar no centro mesmo das articu-
lações do poder e inspirar o seu exercício. E isso é feito através
da ideologia revolucionária. Assim como a utopia é promessa de
um novo tempo — o da realização da sociedade outra — e o mito
revolucionário nos traz a história do ato fundador — a origem,
o começo absoluto da nova sociedade — o discurso ideológico
da revolução legitima um outro tempo para o social, instituindo
um corte originário no tempo, dividindo-o, pela pretensão ou
pela instauração efetiva de uma nova ordem, em um antes e um
depois. Assim, mito, utopia e ideologia se intercambiam. O mito
incorpora a utopia, a utopia se expressa, se prolonga e é difundida
através do mito político, e a ideologia faz-se presente em ambos,
se apropria de ambos, aumenta a força e a ressonância do mito e
torna-se depositária da sua revelação. Nessa operação, ela torna-
-se inseparável do exercício da política. Pensar o imaginário da
revolução política, portanto, é impossível sem se levar em conta
os seus componentes utópico, mítico e ideológico.
Daquilo que conseguimos resgatar até aqui do imaginário
comunista no Brasil dos anos de 1930, podemos afirmar, in-
ventariando, que, vinculada à tentativa de transformação da
ideia de revolução em ideia-força, defrontamo-nos com um
esforço de construção de uma outra representação da história,
da sociedade, do poder do povo, do tempo; e com o empenho
no estabelecimento de cortes entre o antigo e o novo, o passado
e o futuro, o justo e o injusto, o natural e o antinatural, o ver-
dadeiro e o falso, o bem e o mal, os bons e os maus. É a ideia
de revolução, pressupondo um começo absoluto da história e a
absolutização da esfera política. E a representação da sociedade
como sociedade política surge sustentando-se através de um
discurso moral. A história e a política tornam-se domínios da

117
moralidade. O resultado dessa catexização: “A luta pelo poder,
que é o centro da política, tornou-se também a luta pelo bem”
(Furet, 1978, p. 134). Aqui voltamos ao mito da luta primordial
entre o bem e o mal.
E o que os revolucionários parecem não se lembrar ao lidarem
com a “ideia” de Revolução é que a ação política, como esclarece
Ponty (1968),“é em si impura porque é ação de um sobre o outro
e porque ela é ação para vários” (p. 22).
Na apresentação dos fascículos da História universal do
proletariado, destinada, de acordo com o seu tradutor, à edu-
cação intelectual do trabalhador, o articulista expressa-se de
forma ilustrativa acerca dessa questão:

(...) vendo a necessidade que tem o trabalhador de saber como se


defender e por que se defender, é que traduzi esta obra, para que ele
veja a exploração da sua pessoa e de seu trabalho que tem sido feita
de diversos modos e maneiras com franco rancor ou bondade fingida.
(...) o que tende a fazer é agrupar-vos em torno de associações de classe
(...) tratando de vos instruir para que possais distinguir a maldade da
bondade, os maus dos bons, e para vós traçardes o vosso programa de
ação e conquistas. No dia em que conseguirdes a vossa união completa,
sereis os dirigentes não somente daqui, mas do mundo inteiro (...) e
que, portanto, quando fordes instruídos e concentrados num só bloco,
num só pensamento, governareis o mundo, e realizaremos então o
ideal humano, de amor entre irmãos e de paz eterna entre os povos.63

Para lutar é preciso, portanto, que antes seja feita a distinção


entre o bem e o mal, entre o bom e o mau. O êxito da luta vai
depender da escolha do lado certo, o que pressupõe ser aquele
da “bondade verdadeira”. A violência e a morte são sacrifícios
necessários, porém passageiros, pois anunciam a paz universal
e a fraternidade. A luta pelo bem é travada então em nome “da
unanimidade sem sombras do país da utopia” (Vaz, 1989, p. 10)
e, parafraseando, acrescentaríamos nós, da unidade solar do país
da revolução. E a luta, mesmo com violência, justifica-se porque

118
pelo bem e também porque são maus os governantes, e a luta
política em suas mãos tornou-se um exercício de perversidade.
E a essa maldade dos governantes é atribuído um rosto: o
do governo Vargas com seu grupo de colaboradores. Após de-
nunciar as viagens de recreio de Getúlio Vargas a Buenos Aires
e Montevidéu como sendo inúteis e suntuosas, o jornal A Luta
investe contra ele da seguinte forma:

E não para aí a sede patológica de ostentação do Sr. Presidente. S.


Ex ainda passeia a sua faceirice e a sua vaidade nas Exposições Farrou-
a

pilhas e nas excursões a Belo Horizonte, afrontando, com seu sorriso


zombeteiro e mau, a miséria do povo. Além de vaidoso e perdulário o
Sr. Getúlio Vargas é desumano. Ele acha que o povo brasileiro possui
uma inexaurível resistência à fome e à miséria. Não o comoveu [sic] os
gritos de desespero do funcionalismo, à espera do reajustamento que
nunca virá, nem o impressiona a nossa fabulosa dívida externa, que,
de tão grande, nunca mais poderemos pagá-la.64

A associação da maldade com vícios morais torna a figura de


Getúlio desprezível. Isso porque ele é perdulário, vaidoso, frívolo
e indiferente, o que sugere, pelo avesso, que o político bom, o
comunista, é parcimonioso, modesto, recatado e solidário. Dessa
forma, o ideal moral da política é um ideal ascético, o bem co-
mum deve estar representado pela direção política moralmente
“boa”, e o exercício da política, dentro desse ideal, deve buscar o
afastamento da mundanidade para se aproximar da sacralidade.
E Vargas é mau porque é egoísta e mundano e, porque é egoísta
e mundano, é mau. A sua maldade é descrita em denúncias que
trazem à tona os crimes políticos perpetrados por seu governo,
o qual é acobertado pelo Estado de Guerra: maus-tratos, fome,
sequestros, espancamentos, torturas infernais, assassínios frios,
mortes lentas a pão e água, suicídios e fuzilamentos na Vista
Chinesa, na Polícia Especial, na Colônia de Dois Rios, prisões
ilegais.65

119
Se a maldade de Getúlio e seus colaboradores é descrita
através da enumeração, sem detalhes, das práticas ferozes de
repressão policial acionadas pelo “Estado varguista”, particular-
mente contra os comunistas e membros da ANL, num panfleto
do comitê regional do PCB do Rio de Janeiro, em defesa de
Harry Berger, a maldade é traduzida com minúcias e em imagens
facilmente localizadas na vivência cotidiana:

Povo Brasileiro! Harry Berger, companheiro de Lenine na luta anti-


guerreiros de 1914-1918 na Suíça; nome mundialmente conhecido
na Europa e Estados Unidos; como lutador antifascista, esse operário
metalúrgico e sua mulher Machla estão sendo torturados da forma mais
bárbara nas masmorras da polícia especial. Fazem-nos passar dias sem
comer, para depois tentá-los com mesas bem carregadas, de acepipes,
como continuam a recusar-se a falar, dão-lhes bacalhoada salgada e
fazem-nos depois passar o pior suplício, o da sede, durante dias. Fazem-
-nos andar nus no meio da malta de cães do tenente Queiroz que os
espancam durante horas a fio durante todos os dias.66

As terríveis torturas físicas, os espancamentos bárbaros e os


suplícios vários a que foram constantemente submetidos Harry
Berger e outros presos políticos, e que são denunciados pelos
comunistas — pela necessidade de sua sobrevivência e pela
necessidade de informar e mobilizar a opinião pública do país
— são feitos como a identificar, nesses atos bárbaros, a própria
encarnação da maldade. E enfrentar tanta maldade em nome do
país da utopia e do país da revolução exige um santo guerreiro,
ou vários santos guerreiros, que terão por missão a condução do
bom combate que liquidará a maldade e fará triunfar a bondade,
que dará fim ao velho e instituirá o novo, que derrotará o mal
e portará o bem. Lutar pelo bem significa, portanto: lutar ao
lado dos bons, e os bons são os pobres e os humildes; e contra
os maus, que são os poderosos, os possuidores; e contra o mal
que eles representam, como a miséria, a opressão etc.

120
É esse mito da luta primordial entre o bem e o mal que está,
a nosso ver, no cerne das elaborações-chave da ideologia revo-
lucionária dos comunistas. Entre elas, está a figura do militante
revolucionário, o qual, segundo Lefort (1985, p. 5), é um “ho-
mem novo, cuja vocação é a de ser agente histórico universal, e
que mescla sua existência pública com sua existência privada”.
Nesse sentido, o militante é um ser generoso e desinteressado,
corajoso e obstinado, tal como eles mesmos se descrevem, como
num volante do PCB distribuído às vésperas do 1o de maio de
1937, onde se lamenta o fracasso das insurreições de novembro:

A asfixia levou os heroicos populares (...) de Natal e Recife, os


heroicos militares do 3o Batalhão e Escola de Aviação ao protesto ar-
mado de novembro de 35, intrépidos patriotas que reivindicam, com
o penhor do próprio sangue a liberdade que a ilegalidade lhes arranca.
A derrota desses bravos foi uma torva desgraça que abateu a nação,
a quem com essa justificativa se tirou a paz, os farrapos de liberdade,
as últimas garantias de fiscalização sobre um governo antipopular.
Milhares de presos foram para o cárcere sem ar, sem luz, sem higiene,
sem umidade [sic]. Torturas indizíveis se aplicaram aos homens de
grande nobreza de caráter para que delatassem seus companheiros de
luta abnegada pela liberdade.67

A essa figura desprendida de interesses particulares, desde


que estes sejam incompatíveis com a realização do interesse
coletivo, vincula-se o seu contrário, ou seja, o sujeito afeito,
pelo individualismo, aos interesses particulares. Por isso, este é
uma ameaça à homogeneidade do país da utopia e à unidade
do país da revolução, ou à integridade do corpo social, como
quer Lefort (1985), que vê na ameaça do individualismo outro
traço do imaginário ideológico revolucionário. Se o indivíduo
universal é expressão da boa sociedade, o indivíduo egoísta,
individualista é a expressão de uma sociedade má.
Vargas, portanto, com sua vaidade e indiferença, tal como
os comunistas o descrevem, é o contrário do homem novo e o

121
retrato de uma sociedade má — e contra ela é que os comunistas
se organizam. Por quê? Eles respondem: “somos os vanguardeiros
de todos os movimentos justos”.68 Essa posição de vanguarda
na luta pela justiça cria entre os militantes um “ethos de cama-
radagem”, tal como sugere Moore (1987), e uma “hostilidade à
privacidade como uma fonte potencial de desvio e apostasia” (p.
574). Essa seria, segundo ele, uma característica proeminente nos
movimentos comunistas, embora esteja presente tanto entre os
militantes de esquerda quanto entre os de direita. Na construção
de sua autoimagem, os comunistas não apenas se representam
como bravos, heroicos, leais, nobres, abnegados e mártires, como
buscam, numa solução de continuidade, exemplos históricos
que endossam sua tradição de luta na adversidade. E o tenente
Jansen de Mello, morto na rebelião tenentista, na Praia Verme-
lha, é um dos vultos do passado que adentraram o presente dos
comunistas em 1935:

Nessa arrancada de Cids, no gesto que os homens pacatos consi-


derariam louco, por incapacidade de alcançar a beleza de um arrojo e
sentir a vibração do entusiasmo de uma causa que empolga e conduz,
uma figura iluminada de glória tombou. Era uma mocidade crepitante
de idealismo e bravura. (...) Jansen de Mello! O que sonhou um minu-
to a nação redimida, liberto um povo. (...) Mas também, Jansen, que
entusiasmo não seria o teu, o nosso entusiasmo, ao verificar que nem
todos se corromperam e ainda há quem sobrepaire as misérias de hoje
e se disponha a prosseguir.69

Noutro panfleto do comitê regional do PCB de São Paulo,


os militantes comunistas aparecem junto a outros militantes
antifascistas, sem perda, contudo, dos atributos que os definem
como aqueles que encarnam o conjunto da sociedade:

Neste momento, os cárceres do Brasil estão repletos dos melhores


e mais intrépidos combatentes pela democracia, dos mais abnegados

122
militantes de todas as organizações antifascistas, de companheiros que
em primeiro lugar tomaram posição na destacada luta em defesa de
nossas últimas liberdades. A Ilha dos Porcos e mais dezenas de pavo-
rosos presídios estão sendo reabertos para receberem os trabalhadores
do exército anti-imperialista e antifascista.70

Aqui, a designação dos militantes enquanto trabalhadores


de um exército é ilustrativa não apenas no sentido da sugestão
numérica dos contingentes engajados numa luta heroica,71 mas
sobretudo pela sua associação com a ideia de defesa nacional
e internacional, que a menção à característica anti-imperialista
e antifascista desse exército sugere, o que reforça a ideia do
militante enquanto homem universal. Nesse momento, em que
vivia a ANL, o exemplo do militante é Luiz Carlos Prestes. Se
a sua missão como líder é a de ajudar o futuro a emergir, isto
se deve ao fato de que ele é para o Partido a síntese do homem
universal. Ele é, segundo um panfleto da ANL, “a encarnação
perfeita de civismo e bravura, esperança gloriosa a iluminar
todas as vanguardas de libertação nacional”.72 A bravura é um
atributo pessoal e o civismo, uma qualidade pública. Na sua
figura, se dissolvem, numa típica operação da ideologia totali-
tária, as diferenças entre o indivíduo e a sociedade, o privado
e o público. E o elemento pessoal acaba dissolvido no interesse
coletivo, uma vez que é em nome desse interesse coletivo, pelo
qual ele luta, que surge a figura do herói. Ele é o símbolo da
esperança que vai iluminar as vanguardas na luta pela libertação,
porque é repositório do saber sobre a alteridade social. Nesse
sentido, apesar de Prestes só ter assumido a secretaria geral do
PCB quando da reorganização deste após 1945, a sua imagem
de líder, de homem excepcional, que encarna a vontade popular,
a generalidade do social e o partido comunista, data de 1935
quando da construção do projeto revolucionário.
Nesse ponto, discordamos de Cavalcante (1986), que associa
a mítica e o culto em torno de Prestes à montagem no pós-1945
de uma nova estrutura partidária do PCB. Não desconhecemos

123
que a reorganização que se processa nesses anos faz da figura de
Prestes um de seus elementos centrais e que essa prática esteja
informada por uma concepção totalitária, como tão bem mos-
tra a autora. Contudo, as representações de Prestes enquanto
o modelo de militante, enquanto sujeito universal, precedem a
reorganização do PCB e sustentam, já na segunda metade dos
anos de 1930, o projeto de uma sociedade futura em construção.
Em verdade, desde 1928 a figura de Luiz Carlos Prestes, como
bem mostram De Decca e Vesentini (1976) e De Decca (1981),
encarna a condição do sujeito político da revolução, avalizado
por sua liderança frente à Coluna Prestes junto aos revolucio-
nários de 1922 e 1924. Em torno dele, a oposição formada pelo
Bloco Operário e Camponês (BOC), pelo Partido Democrático e
pelos revolucionários se aglutina e tenta mobilizar a população.
O jornal O Combate, em outubro desse mesmo ano, se refere a
Prestes como “chefe supremo da Revolução Brasileira” e ressalta
a “honestidade indiscutível de Luiz Carlos Prestes” (De Decca,
1981, p. 98). Desde então Prestes é o chefe, o demiurgo.
É por deter a chave do futuro que ele é o chefe da revolução
e do governo nacional popular e revolucionário a ser instalado
no país pela ANL:

À frente de tal governo como chefe inconteste com maior prestígio


popular em todo o país, não é possível encontrar um nome capaz de
substituir o de Luiz Carlos Prestes, porque o nome de Prestes representa
para as grandes massas de todo o país a garantia de que tal governo
lutará efetivamente pela execução do programa da ANL, é garantia de
que tal governo não seguirá pelo caminho dos anteriores.73

Por ser então o detentor absoluto da confiança das massas


populares, Prestes é o “líder”, o “chefe inconteste”, o “querido
chefe”, o “glorioso chefe”, e o único capaz de representar os reais
interesses da massa que é encarnada por ele. Essa atitude diante
do líder é um indicador claro da demanda por uma autoridade

124
superior, a única capaz de redimir a sociedade. A fonte desse
sentimento se encontra em um “sentido de impotência individual
e de incapacidade para controlar o mundo que parece maligno
e opressivo” (Moore, 1987, p. 574). E a busca dessa autoridade,
parece-nos, faz retornar um sentimento de dependência infantil
frente à autoridade paterna. E o líder, como um pai, deve ser
amado, respeitado e imitado. Essa imitação é pressuposta porque
pode significar uma regressão primária à escolha do pai como
ideal do ego ou porque os militantes, ao sentirem que comparti-
lham com Prestes o que Freud (1976b) chama de uma qualidade
emocional comum, com ele se identificam, pois desejam estar na
mesma situação dele, ou seja: encarnar civismo e bravura. É essa
qualidade comum compartilhada que está na base, segundo Freud
(1976b, p. 136), da “natureza do laço com o líder”.
De qualquer modo, parece-nos que a figura de Prestes é
posta tanto por ele próprio, como vimos anteriormente, como
pelos militantes do PCB como uma figura paternal, exemplar,
de quem a sociedade infantilizada, a juventude desprotegida, as
massas exploradas esperam filialmente a orientação e proteção.
E a sua ausência colocaria a todos na mais completa orfandade.
Nesse sentido, as denúncias de possível atentado contra ele e,
posteriormente, as suas condições na prisão, mobilizam o PC
em nível nacional e internacional e reforçam a necessidade da
figura do líder, do chefe. Assim é que, num panfleto distribuído
em 1935, denuncia-se que o Serviço de Inteligência inglês teria
sugerido a Vargas, que aceitou prontamente, um plano para o
assassinato de Prestes:

Organiza-se desde já — denunciamos abertamente ao povo bra-


sileiro — o assassinato pelas costas, do glorioso chefe do movimento
de emancipação do Brasil! (...) Em guarda! Que o povo responda
à ameaça criminosa de Getúlio, fortalecendo a Aliança Nacional
Libertadora e centuplicando a luta pela emancipação nacional! Que
o povo responda organizando a sólida autodefesa de seus dirigentes

125
na luta pela libertação e principalmente a proteção de Luiz Carlos
Prestes para quando ele chegar ao Brasil, preparando suas casas com
todas as medidas para impedir cada atentado terrorista de Getúlio e do
Intelligence Service. A vigilância do povo e a luta nacional libertadora
farão fracassar os planos sanguinários do governo inimigo do povo.74

Se em 1935 a defesa de Prestes implica em mobilização para


reforço da ANL e no apelo à vigilância popular contra o inimigo
maléfico, destruidor, enfim, o outro, o de fora, em 1937, a mo-
bilização é para responsabilizar o governo, comprometendo-o
com a vida de Prestes que, na prisão, é mantida sob sua guarda.
O apelo de Romain Rolland, presidente do Comitê Mundial
contra a Guerra e o Fascismo, publicado num boletim da III
Internacional, reveste Prestes de uma aura de sacralidade,
colocando-o como um homem universal que encarna o conjunto
da sociedade brasileira materializado no Brasil. Daí o fato do
apelo de Romain Rolland ser endereçado, como consta de seu
cabeçalho, ao “Universo”.

“Salvemos Luiz Carlos Prestes”. A ameaça de morte que pesa


sobre a cabeça de Luiz Carlos Prestes crispa os nossos corações de
angústia e revolta. Os ditadores do Brasil que acreditam poder, graças
ao dinheiro de seus amos, os capitalistas da Europa e da América,
graças ao silêncio venal da imprensa cúmplice, trucidar na sombra o
jovem herói da libertação nacional do Brasil, enganam-se redonda-
mente sobre a explosão mundial de sua epopeia e sobre o amor que
envolve a figura legendária do “Cavaleiro da Esperança”. Luiz Carlos
Prestes entrou vivo no “Panteão da História”. Os séculos contarão a
canção de “Gesta” dos 1.500 da Coluna Prestes e na marcha de treze
anos através da facasidade [sic] do Brasil, do Paraná ao Maranhão.
A unidade das raças e das almas do Brasil aí se forjou. Insensatos
seriam os senhores do Brasil se não vissem que, ferindo Luiz Carlos
Prestes, ao Brasil mesmo feririam. Mas! Carlos Prestes... é sagrado.
Pertence à toda a humanidade. Quem o fere, a fere! Apelo ao mundo!
“Apelo aos Povos”.75

126
Nesse apelo, é possível perceber com certa clareza um traço
de natureza totalitária, que vem se insinuando ao longo dos
discursos utilizados aqui, numa variada performance: a obsessão
com a representação do social como uma totalidade. Prestes
consubstancia a sociedade e o país, o seu corpo é o corpo do
Brasil, um corpo sem falhas, como atesta a unidade das raças
e das almas forjadas em torno de sua figura legendária. É a ex-
pressão do povo uno. Por isso, aqueles que o seguem, ou seja,
os militantes do Partido, como ele, detêm a posse da verdade,76
da moralidade e da justiça. Prestes é “o impoluto cavaleiro da
esperança, o ídolo, aclamado das multidões”, enquanto Plínio
Salgado é “o gangster da Cruz Vermelha de São Paulo” e não
tem um passado “puro”, enquanto os líderes integralistas são
“moralistas de cabaré”, seus seguidores são ingênuos e bem-
-intencionados, e o integralismo “não é sincero” e é uma ilusão,
uma “mistificação ideológica” verdadeiramente “monstruosa”.77
Nessas representações plenas de certezas, Prestes, os comu-
nistas e os aliancistas são os próprios paladinos do bem e em
seu nome pretende-se decidir o destino dos bons e dos maus. A
decisão desse destino inicia-se com a definição de um conceito
de povo como “a totalidade da população do país, com exclusão
somente dos agentes diretos do imperialismo e da minoria insig-
nificante que os segue”.78 A esse conceito de povo, de natureza
excludente, corresponde a distribuição do “bem”, igualmente em
condições de excludência. Assim, o governo popular nacional e
revolucionário, presidido por Prestes,

(...) acabará com a fome, a miséria, o desemprego, a reação contra


as massas, garantirá para todos a cultura, o pão, a terra e a liberdade
com a condição de não serem especuladores e traidores da pátria e do
povo trabalhador.79

Como portador exemplar do atributo da bondade, o gover-


no a ser dirigido por Prestes se arrogará o direito de regular,
após selecionar e excluir, o acesso ao pão, à terra e à liberdade.

127
Nesse ponto, um boletim do diretório nacional da ANL afirma
claramente que, dentro da maior democracia popular, o gover-
no nacional revolucionário será capaz de exercer a mais dura
ditadura contra os imperialistas e seus agentes.

Democracia sim, mas para o povo, para os brasileiros e para todos


os que com eles trabalham honestamente, sem explorar o Brasil, mas
a mais dura e enérgica ditadura contra o capitalismo estrangeiro e
contra seus agentes no Brasil — os brasileiros que vendem sua pátria
ao imperialismo. Dar liberdade aos agentes do imperialismo seria
negar o conteúdo nacional-revolucionário de tal governo e suicídio
da proposta libertadora.80

Esses sentimentos morais primitivos que aparecem expressos


aqui inspiram-se sem dúvida no que Moore (1987) chama de
conceito de esforço frustrado ou inútil que provoca a indignação
tanto da esquerda quanto da direita diante do benefício sem
trabalho. De acordo com esse autor, a ira dos movimentos de
esquerda

(...) encontra sua expressão em termos de princípios supostamente


aplicáveis a toda a humanidade. Fraternidade, solidariedade, compa-
nheirismo e igualdade são pelo menos potencialmente abertos a todos
os seres na mesma situação de opressão (p. 575).

Nesse ponto, a luta política como luta pelo bem é a luta da


ANL, é a luta pela implantação do governo nacional popular re-
volucionário, é a presença central e decisiva de Prestes na direção
da ANL e do governo popular. O contrário disso é o caminho da
traição e o caminho da liquidação progressiva dos “verdadeiros”
revolucionários, é o caminho da contrarrevolução.81
Ao optarem pela luta política como um combate que imo-
biliza seus antagonistas maniqueisticamente em dois campos
rígidos — a saber, o do bem absoluto e o do mal absoluto —, e

128
ao pretenderem a unificação social, encarnando-a e atando-a a
um desses extremos, os comunistas foram presas de uma arma-
dilha trágica e cruel. Primeiro, porque, como seus antagonistas,
o seu mundo unificado e homogêneo exige a eliminação e a
exclusão do “outro”. Segundo, porque, como nos lembra Arendt
(1988), “a bondade absoluta é quase tão perigosa como o mal
absoluto” (p. 65), porque ambas compartilham da violência
primordial — e a maldade tanto quanto a virtude podem ser
igualmente desumanas. A fúria unificante, presente no discurso
da totalidade social, nega as várias divisões do social que, como
o bem e o mal, estão igualmente presentes na sua pluralidade.
É dessa experiência que nos fala Calvino (1988) em sua sátira
O visconde partido ao meio. Medardo, o visconde, é partido em
dois por uma bala de canhão na guerra entre turcos e cristãos
e sobrevive nas suas metades: uma má e a outra boa. Retorna à
aldeia de Terralba primeiro a parte má que passa a infernizar a
vida de todos. Quando volta a parte boa, que passa a remediar
as maldades da outra metade ou mesmo impedi-la, os habitantes
da aldeia se sentem momentaneamente aliviados. Momentane-
amente porque logo se descobrem imaginando que, das duas
metades, a boa era pior do que a má, porque com a autoridade
de sua bondade, e sua moralidade, passa a regular completamente
a vida de todos, que se torna tanto ou mais insuportável do que
o fora sob o domínio da metade má.
A experiência da divisão, tal como é expressa por Medardo,
num diálogo com seu sobrinho, que reproduziremos a seguir,
é uma manifestação diametralmente oposta às pretensões de
comunistas e anticomunistas, na segunda metade da década de
1930 no Brasil:

Assim, se todas as coisas inteiras pudessem ser partidas ao meio, (...)


todos teriam a possibilidade de sair de sua unidade obtusa e ignorante.
Eu era inteiro e todas as coisas eram, para mim, naturais e confusas,
estúpidas como o ar; acreditava ver tudo, porém era apenas aparência.
Se algum dia se transformar na metade de si mesmo, faço votos que isto

129
lhe aconteça, rapaz, compreenderá coisas que estão além da inteligência
comum dos cérebros inteiros. Terá perdido a metade de si e do mundo,
porém a metade que sobrar será mil vezes mais profunda e preciosa.
E você também desejará que tudo seja partido ao meio e estropiado à
sua semelhança, porque só existe beleza, sabedoria e justiça naquilo
que é feito aos pedaços (p. 56).

Quando Medardo voltou a ser inteiro, junto às duas partes,


agora unidas, uma companhia se fez presente: a experiência de
ambas as metades.
O fantasma da unidade e da homogeneidade do “corpo
social” — e sua presença obstinada na trajetória política do
Brasil — adquire maior visibilidade quando entra em cena a
pátria, enquanto ideal comum e objeto de desejo coletivo para
o qual vão convergir as expectativas de afirmação da unidade e
da identidade na nação. Esse desejo é uma ilusão? Veremos no
próximo capítulo...

NOTAS
1
Quando se trata do mal e da opressão, esse alguém é sempre “o outro”, “o
inimigo”, “o não eu”, aquele ao qual eu não me reverto.
2
Segundo Naquet e Vernant (1976), no universo trágico grego a ambiguidade está
traduzida pelo conflito permanente entre valores e palavras; pela duplicidade e
qualidade dos personagens; pela tensão entre passado e presente; entre os mun-
dos do mito e da cidade; pela ação dos heróis trágicos que são ao mesmo tempo
expressão do caráter (ethos) e manifestação de uma potência divino-religiosa
(daímon), pela polaridade das duas faces, como a de um Édipo, de um lado
semideus (que decifra o enigma da Esfinge), rei, e de outro, criminoso e bode
expiatório cuja expulsão salva e purifica a cidade. No universo da tragédia, as
regras não estão estabelecidas de forma definitiva; a realidade é questionada;
as reviravoltas, permanentes; a interrogação, uma constante. A ambiguidade,
portanto, é simbolizada pelas polaridades que fazem de um personagem, como
Édipo, o paradigma do homem duplo como querem esses autores. Sobre esse
ponto ver Sófocles. Rei Édipo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s.d.].
3
Não é nosso intuito aqui realizar uma discussão acerca da teoria da revolução
brasileira e dos aspectos puramente doutrinários que envolvem a prática dos
comunistas brasileiros, em particular no tocante aos anos de 1930. Tampouco
pretendemos fazer um estudo do Partido Comunista, analisar as suas relações
com a Internacional, as implicações de natureza teórica e tática das deliberações
desta para o conjunto do movimento comunista e para a vida interna do PCB.

130
Os aspectos doutrinários nos interessam aqui enquanto elementos que expres-
sam e circunscrevem uma produção imaginária em torno da ideia de revolução
e enquanto balizas que assinalam a efetuação de relações sociais historicamente
dadas. Os pontos acima mencionados que a nossa abordagem negligencia são
tratados por vários autores, em diferentes ângulos. Entre eles mencionamos
Prado Júnior (1987), em seu clássico estudo sobre a Revolução Brasileira; e
ainda, Basbaum (1976, v. 3); Carone (1974); Pacheco (1984); Zaidan (1980);
De Decca (1981), entre outros.
4
PROGRAMA de cursos para ativistas. Bureau de Agitação e Propaganda
Nacional do PCB, maio 1935. p. 7. In: T.S.N. — Processo n. 1.
5
Idem.
6
Ver Revista Proletária, Rio de Janeiro, n. 5, ago. 1935. In: T.S.N. — Processo
n. 1, v. 3.
7
Ver A Classe Operária. Rio de Janeiro, 20 set. 1935. In: T.S.N. — Processo
n. 422.
8
A ALIANÇA Nacional Libertadora e a reivindicação da População de Madureira
e Adjacências. Panfleto do Núcleo da ANL de Madureira, 1935, Rio de Janeiro.
In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 16.
9
A CAMINHO do Congresso da Juventude Popular no Brasil. A Manhã, Rio de
Janeiro, p. 7, 15 maio 1935. (Órgão da Aliança Nacional Libertadora).
10
Segundo Moore, esta mesma cólera está presente no radicalismo de direita e,
enquanto tal, esteve presente entre os nazistas e, em épocas de exacerbação de
crises políticas, pode alimentar uma cólera primitiva generalizada contra as
autoridades (p. 573).
11
Ver: A Classe Operária, Rio de Janeiro, 20 set. 1935. In: T.S.N. — Processo
n. 422, livro 1, folha 27; União de Ferro, Rio de Janeiro, p. 2, jul. 1935. In:
T.S.N. — Processo n. 1, v. 2; Ao povo, 1935, Panfleto avulso da Aliança Na-
cional Libertadora, 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 2, 1935.
12
ABAIXO o integralismo assassino. União de Ferro, Rio de Janeiro, p. 2, jul.
1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 2.
13
AO POVO. Panfleto avulso da Aliança Nacional Libertadora, 1935. In:
T.S.N. — Processo n. 1, v. 2.
14
O INTEGRALISMO. A Lucta. Belém, p. 3, 9 nov. 1935. In: T.S.N. — Processo
n. 1, v. 1.
15
QUEREM transformar o Brasil numa segunda Espanha. Circular do Bureau
político do C.C. do Partido Comunista Brasileiro. Brasil, mar. 1937. In:
T.S.N. — Processo n. 412.
16
AO PROLETARIADO e ao povo em geral! Comitê Regional de São Paulo do
PCB (S. da I. C.), abr. 1937. In: T.S.N. — Processo n. 412. (Panfleto avulso).
17
T.S.N. — Processo n. 1283. Panfleto avulso, 1937. Ver respectivamente:
PESTE verde. A Lucta. Belém, 16 nov. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 1.
Segundo o articulista desse artigo, o integralismo, entre várias definições que
ele dá para este, “é um matagal verde detrás do qual se esconde o capitalismo e
o imperialismo” (p. 1). In: T.S.N. — Processo n. 691, p. 2.

131
AO POVO do Brasil. Comitê Regional do Rio de Janeiro, do Partido Comunista
Brasileiro, 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 16. (Panfleto avulso).
BRASILEIRO de pé contra o golpe terrorista que os chefes do integralismo estão
preparando. Boletim do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro, p. 1.
In: T.S.N. — Processo n. 691.
Idem.
18
OS DOIS mundos: capitalismo e socialismo. Programa de curso para ativistas.
Bureau de Agitação e Propaganda Nacional do PCB, Rio de Janeiro, maio 1935.
In: T.S.N. — Processo n. 1.
19
Trata-se do francês Henry Barbusse, militante no movimento popular e operário
que morreu na União Soviética, quando firmava-se na França a Frente Popular.
20
Respectivamente em: A Lucta, Belém, p. 3, 15 nov. 1935, In: T.S.N. — Processo
n. 1, v. 1; União de Ferro, Rio de Janeiro, jul. 1935. In: T.S.N. — Processo
n. 1, v. 2; A Classe Operária, Rio de Janeiro, p. 16, 20 set. 1935. In: T.S.N.
— Processo n. 422.
21
Idem.
22
REVISTA PROLETÁRIA, p. 9, ago. 1937, In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 3.
23
INSTRUÇÕES aos comitês estaduais e municipais da ANL. Rio de Janeiro, 21
set. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 2.
24
Ver a respeito a análise de Campello de Souza (1976).
25
CARTA de Luiz Carlos Prestes a Pedro Ernesto — 16 nov. 1935.
26
CARTA de Luiz Carlos Prestes a Pedro Ernesto — Rascunho.
27
Ver: PROGRAMA de cursos para ativistas. Bureau de Agitação e Propaganda
Nacional do PCB. (Quarto tema: Alianças e Frente Única). Rio de Janeiro, maio
1935. In: T.S.N. — Processo n. 1.
28
Conforme o Boletim de Instruções aos Comitês Estaduais e Municipais da ANL.
In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 2.
29
O discurso de “frente única” endereçado aos jovens reitera a ligação pelo sofri-
mento como fundamental. Assim se manifesta a comissão executiva central do
Congresso da Juventude Proletária, Estudantil e Popular: “Não nos interessa
saber da crença religiosa, política ou social de nenhum jovem. (...) A necessida-
de e a exploração não têm partido nem religião — a exploração traz uma cor
especial — é a dos rostos descamados, trucidados, é a dos olhos sofredores e
curiosos das letras — é a cor desoladora do sofrimento universal”. Em marcha a
ideia de organização dos jovens. A Manhã, Rio de Janeiro, p. 2, 28 maio 1935.
30
ARRANQUEMOS do cárcere os bravos libertadores do furor fascista do bando
de Getúlio mancomunado com o Imperialismo! Comitê Regional do PCB (S. da
I. C.). São Paulo, 5 ago. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1283. (Panfleto avulso).
31
CARTA de Luiz Carlos Prestes aos jovens de todo o Brasil, 1935. In: T.S.N. —
Processo n. 1, v. 2.
32
A FORÇA da luta contra o “extremismo” encobre os mais hediondos planos de
reação feudal e imperialista! A Classe Operária, Rio de Janeiro, p. 13, 20 set.
1935. In: T.S.N. — Processo n. 422.

132
33
TODOS de pé na luta contra o integralismo. União de Ferro, Rio de Janeiro,
p. 2, jul. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 2.
34
AOS TRABALHADORES soldados e marinheiros. In: T.S.N. — Processo n. 1,
v. 1. (Panfleto avulso, assinado por um operário).
35
Hobsbawm mostra como a tradição pode ser retrabalhada em contextos específi-
cos da luta operária e ilustra bem esse ponto mostrando como os revolucionários
branquistas utilizam politicamente os cerimoniais da morte e/ou celebração,
através do movimento do enterro civil, para tentarem se aproximar da classe
operária parisiense, mobilizando-a coletivamente pela manutenção da tradição
do ritual de morte.
36
CORREA, Celso. Prefácio ao fascículo n. 1 da História universal do proletariado.
Rio de Janeiro, 10 jul. 1937. In: T.S.N. — Processo n. 1283. Na circular do CR
que acompanha o fascículo, o autor diz que a tradução da obra mencionada é
uma contribuição sua “à formação do edifício social vindouro, isto é, para a
formação da nova sociedade”.
37
Ver: Segal (1975); Freud (1974b).
38
OPERÁRIO brasileiro, escolhe! A Classe Operária, Rio de Janeiro, p. 13, 20
set. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 422, p. 8.
39
Idem.
40
A expressão “Terra sem mal” é utilizada pelos índios tupis-guaranis para designar
o paraíso na terra, segundo Castres (1975), citado por Bazcko (1985b, p. 367).
41
PROGRAMA de cursos para ativistas, op. cit., p. 3.
42
MENSAGEM do camarada Dimitrof aos eleitores soviéticos. Comitê Regional
do Partido Comunista de São Paulo, 1938, p. 4. In: T.S.N. — Processo n. 1283.
43
Ibidem, p. 9.
44
Segundo Bazcko (1985b), “a invenção utópica torna-se cúmplice da invenção
do espaço democrático” (p. 390).
45
Furet (1978) nos adverte que “no fundo, as duas lutas pela democracia e socia-
lismo são duas configurações sucessivas de uma dinâmica de igualdade cujas
raízes mergulhamos nos acontecimentos da Revolução Francesa” (p. 138).
46
A UNIDADE Sindical e a Aliança Nacional Libertadora. A Manhã, Rio de
Janeiro, 2 maio 1935.
47
NÃO houve ainda democracia. A Marcha, Distrito Federal, p. 1-2, 5 jul. 1935.
In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 2.
48
PROGRAMA de cursos para ativistas, op. cit., p. 3.
49
MENSAGEM do camarada Dimitrof aos eleitores soviéticos, op. cit., p. 2.
50
A ALIANÇA Nacional. Ao povo brasileiro. Diretório da ANL (Comissão
Executiva). In: T.S.N. — Processo n. 1283. (Panfleto avulso).
51
Ver: A Manhã, Rio de Janeiro, p. 7, 15 maio 1935.
52
POR um 13 de maio de protesto contra a falsa libertação dos negros no Brasil!
Comitê Regional do Distrito Federal do Partido Comunista do Brasil (S. da I.
C.), 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 16. (Panfleto avulso).

133
53
REVISTA PROLETÁRIA. Rio de Janeiro, n. 5, ago. 1935. In: T.S.N. — Processo
n. 1, v. 3.
54
PROGRAMA de cursos para ativistas, op. cit., p. 4.
55
REVISTA PROLETÁRIA. Rio de Janeiro, p. 9, ago. 1935. In: T.S.N. — Processo
n. 1, v. 3.
56
UM governo do povo na orientação libertadora do Brasil. O Libertador, Rio de
Janeiro, n. 2, p. 1, 1936. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 1.
57
Idem.
58
BRASILEIRO. Bureau Político do Partido Comunista do Brasil (S. da I. C.),
27 nov. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 16.
59
As fases da vida da revolução, segundo esse autor, são marcadas pelas fases
da vida do mito (nascimento, crescimento, declínio e morte) e pelas formas
assumidas pelo mito revolucionário nessas fases. Daí que a vida e a morte da
revolução, que o autor chama de “desenrolar-se do seu destino” (p. 10), sejam
por ele apresentadas como mitogênese, mitopráxis e mitologia.
60
Segundo Arendt (1988), o povo foi deificado na Revolução Francesa por ter-se
tornado a fonte do poder e da lei (p. 145-148). Nessa identificação, estaria posta,
segundo Vaz (1989), a essência do mito que se torna o centro do imaginário
simbólico da revolução, o mito da absolutização do político (p. 9). A nosso ver,
“o povo” é considerado, a partir daí, como o “moderno” herói coletivo do mito.
61
A UNIDADE sindical e a Aliança Nacional Libertadora. A Manhã, Rio de Janeiro,
p. 2, maio 1935.
FASCISMO — última etapa do estado capitalista. A Lucta, Belém, p. 2, 16 nov.
1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 1.
62
PROGRAMA de cursos para ativistas, op. cit., p. 1.
63
Prefácio ao fascículo número 1 da História universal do proletariado. Rio de
Janeiro, 10 jul. 1937. In: T.S.N. — Processo n. 1283.
64
O SR. Getúlio. A Lucta, Belém, 1 nov. 1935. Transcrito de A Manhã. In: T.S.N.
— Processo n. 1, v. 1.
65
AO POVO e às classes armadas. Distrito Federal, outubro de 1936. (II mês da
Insurreição de novembro). In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 17. O documento é
assinado por trinta e sete militares e é encabeçado pelo coronel Felipe Moreira
Lima. À sua assinatura seguem-se a de um major, nove capitães e vinte e seis
tenentes. Entre os signatários estão Apolônio de Carvalho, Agildo Barata Ribeiro
e Dinarco Reis.
66
LIBERTEMOS Harry Berger que sofre com sua companheira as piores torturas
na polícia especial e no pátio da polícia federal. Comitê Regional do PCB do Rio
de Janeiro (S. da I. C.), 1936. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 1. (Panfleto avulso).
67
AO PROLETARIADO e ao povo em geral. Comitê Regional de São Paulo do
PCB, abr. 1937. In: T.S.N. — Processo n. 412. (Panfleto avulso).

134
68
MARAT. A frente única contra o fascismo. A Lucta, Belém, p. 4, 9 nov. 1935.
In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 1.
69
LIMA, Pedro Motta. Jansen e seu glorioso destino. A Manhã, Rio de Janeiro,
p. 3, 2 maio 1935.
70
ARRANQUEMOS do cárcere os bravos libertadores vítimas do furor fascista do
bando de Getúlio mancomunado com o imperialismo! Comitê Regional de São
Paulo do PCB, 5 ago. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1283. (Panfleto avulso).
71
O recrudescimento da repressão policial após novembro de 1935 é sentido
particularmente pelos comunistas que são obrigados a se embrenhar na clan-
destinidade até 1945. Segundo Cavalcante (1986), que analisa o papel do PCB
após 1945, estes anos posteriores à democratização são recordados pelo partido,
na palavra de um militante, “como um tempo de heroísmo e sacrifício sem
limites” (p. 57), o que teria reforçado a noção de um partido forte e o perfil
dos comunistas como capazes de resistência e reconhecida firmeza de caráter.
Mesmo na legalidade, segundo a autora, para reforçar a ideia de resistência, o
partido não se afasta da apologia do martírio.
72
ALIANÇA Nacional Libertadora. Rio Grande do Norte, 1935. In: T.S.N. —
Processo n. 1, v. 16. (Panfleto avulso).
73
O GOVERNO popular, nacional revolucionário e seu programa. Rio de Janeiro,
1935. In: T.S.N. — Processo n. 412. Boletim do Diretório Nacional da ANL.
74
A INTELLIGENCE Service Britânica e o Governo de Vargas organizam o assas-
sinato de Luiz Carlos Prestes. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1283. (Panfleto
avulso).
75
ROLLAND, Romain. Apelo de Romain Rolland ao universo. Paris, 1937. Boletim
da III Internacional.
76
A difusão dessa verdade é realizada, entre outros meios, através, por exemplo,
das páginas da Revista Proletária, órgão do Comitê Central do PCB, que chegou
a ser distribuída com o seguinte adendo: “Este exemplar não é propaganda; é
para ficar circulando. Quem guarda em suas mãos um exemplar deste, está
prejudicando a difusão de uma verdade que precisa ser conhecida pelo maior
número de pessoas.” In: T.S.N. — Processo n. 691.
77
Respectivamente: AO POVO em geral e aos trabalhadores em particular. In:
T.S.N. — Processo n. 422. (Panfleto avulso da ANL).
Idem. (Aqui é feita uma alusão ao episódio de uma tômbola realizada para
beneficiar a Cruz Vermelha e cujos fundos teriam ficado com Plínio Salgado).
VAI-SE a primeira pomba despertada. In: T.S.N. — Processo n. 422. (Panfleto
avulso da ANL sobre deserção nas fileiras integralistas e adesão à ANL).
AO POVO em geral e aos trabalhadores em particular, op. cit.
VAI-SE a primeira pomba despertada, op. cit.
Idem. (Esta afirmação é do presidente da ANL em São Paulo, Caio Prado Júnior,
numa entrevista a um jornal paulista e transcrita nesse panfleto).

135
O INTEGRALISMO, defensor do latifundiário. A Manhã, Rio de Janeiro,
p. 3, 23 maio 1935.
78
O GOVERNO popular nacional revolucionário e seu programa. Rio de Janeiro,
1935. In: T.S.N. — Processo n. 412. Boletim do Diretório Nacional da ANL.
79
A CLASSE OPERÁRIA. Rio de Janeiro, p. 13, 20 set. 1935. In: T.S.N. —
Processo n. 422.
80
O GOVERNO popular nacional revolucionário e seu programa, op. cit.
81
Idem.

136
Parte 2
PÁTRIA AMADA, MÃE GENTIL
A fantasia da proteção onipotente

O desejo é uma pergunta


cuja resposta não existe.
Luís Cernuda
A EXPLOSÃO PATRIÓTICA

Os muros permanecem
Calados e frios
Ao vento
Batem as bandeiras.
Heiner Müller

A ausência de uma noção de liberdade enquanto autonomia


é o que caracteriza, à direita e à esquerda, as manifestações
patrióticas e nacionalistas presentes na cena política brasileira
entre 1935 e 1937.1 Concomitantemente, é a presença da he-
teronomia expressa pela transformação da “pátria” em objeto
de desejo coletivo — portanto, iludindo o desejo de liberdade e
consagrando as amarras da dominação — que se faz presente
nas atitudes patrióticas visíveis nesse período.
A existência de um forte investimento afetivo na ideia de
pátria se presentifica tanto no discurso anticomunista e no
discurso de diferentes segmentos de poder que participam do
engendramento da ordem totalitária em construção, como no
discurso dos comunistas que defendem um projeto de revolução.
A potencialidade estratégica que a noção de pátria possui faz
dela, e das manifestações patrióticas que a acompanham, um
elemento imprescindível dentro do conjunto de valores, práticas
e normas que têm por finalidade a preservação da ordem e da
estabilidade social, a racionalidade do poder, a conquista de
uma identidade nacional e a afirmação de uma unidade social
compacta. É através desses objetivos — manifestos, como vere-
mos, na palavra e na ação de diferentes agentes sociais nos anos
de 1930 — que é tecida a teia de uma nova ordem de pretensão
totalitária, de cujo trançado acabam por participar os fios da
urdidura comunista que pretende se contrapor a essa ordem,
dando ao tecido social uma tessitura alternativa.
Por que a noção de pátria possui uma potencialidade estraté-
gica que faz dela uma das vigas mestras daqueles que pretendem
a construção de um edifício social de estrutura autoritária? Por
que os sentimentos que apelam ao patriotismo e ao nacionalismo
são poderosos?
A nosso ver, prestam-se ambos à diluição das diferenças entre
o público e o privado, enquanto manipulam a insegurança dos
sujeitos individuais, fazendo-os revivenciar temores arcaicos que
são direcionados para o espaço público da nação onde se preten-
de encontrar a proteção e segurança imaginariamente garantidas
junto à mãe, à família e ao lar. Ao se realizar esse prolongamento
da vida privada até a pública e o retorno da experiência pública à
experiência privada, o ideal de uma sociedade una se insinua e os
temores da divisão e a possibilidade de atomização do social são
acalentados, fazendo com que o culto à pátria — à semelhança
caricatural com a concepção nazista de comunidade de povo —
equivalha “a um retorno imaginário à segurança da família, da
infância, senão do próprio útero materno” (Moore, 1987).
Permite-se, dessa forma, a mobilização de sentimentos e dese-
jos oriundos de um mesmo tipo de agenciamento libidinal — no
caso, o desejo de proteção materna — cruzando-o nos campos da
micro e da macropolítica.
O sentimento de insegurança mencionado — não obstante
a sua existência potencial num período conturbado como esse
entre os anos de 1935 e 1937 — é transmitido socialmente bem
como é penetrado e incentivado por pregações de cunho patrió-
tico e nacionalista. Essas pregações, se por um lado estimulam
receios e inseguranças, por outro, os aquietam, através da pro-
moção de jornadas cívicas e campanhas de civismo que ordenam

140
e direcionam as emoções, conjunta e disciplinadamente, para a
pátria que, como a mãe, é a única merecedora da devoção popu-
lar. Em troca dessa devoção, acena-se com a garantia simbólica:
da proteção com a ideia-imagem de pátria/mãe; da integridade
com a ideia-imagem de pátria/una; e da identidade social e/ou
nacional com a ideia-imagem de pátria/moral.
Antes, porém, de passarmos à análise da utilização estratégica
desses três conjuntos de imagens, é necessário que recordemos
ao leitor que esse sentimento de insegurança, ao qual nos refe-
rimos, foi objeto de forte investimento político-ideológico e foi
disseminado igualmente tanto através do discurso anticomunista
quanto através do discurso da revolução. Pelo que foi exposto
no capítulo anterior, é possível concluir que a figura do inimigo
estrangeiro ocupa o lugar central na operação que o realimenta.
Seja ele figurado no comunismo, no fascismo ou no imperialis-
mo, ele é, como vimos, o mal, a peste, a doença, a escuridão, a
morte, a guerra, o demônio, enfim, o responsável sempre por
todas as infelicidades de um presente sombrio e sem segurança.
Ao ameaçar a pátria, ele é a expressão da ruína material e moral,
da instabilidade política e social, do atraso econômico e cultural,
da fragmentação geográfica e da traição à nacionalidade e ao
espírito cívico.
A importância da figura do inimigo estrangeiro nas mani-
festações nacionalistas de todo tipo está em que este, além de
excitar a fé patriótica do povo, cumpre um papel decisivo na
autodefinição do grupo social e/ou nacional, ou ainda, para
sermos mais precisos, na construção da identidade. Daí o na-
cionalismo possuir certas vantagens gerais, enquanto portador
de uma “explicação popular para o sofrimento” (Moore, 1987).
Isso porque o inimigo é um alvo utilizado pelo nacionalismo,
que faz recair sobre ele a culpa das mazelas da sociedade,
constituindo-se, ao mesmo tempo, em objeto fácil para a
“agressão simbólica diária”. Através dele “o nacionalismo
esconde as divisões e fraquezas das ordens — conservadoras ou
radicais — e pode atrair uma coleção heterogênea de aliados”

141
(Moore, 1987, p. 657). Por isso mesmo, como já afirmamos,
ele fornece ao povo a consciência de sua unidade. Por outro
lado, o nacionalismo, ainda segundo esse autor, oferece a
vantagem de integrar o indivíduo numa unidade social mais
ampla e com fronteiras mais largas, retirando-o das tensões
e ansiedade advindas da fluidez e da incerteza das fronteiras
da identidade social em face da ambiguidade e flutuação das
relações sociais, aspectos estes fortemente presentes na cena
política brasileira nos anos de 1930.
É também a figura do inimigo que põe em cena um dos temas
(entre outros, como veremos à frente) que, segundo Marson
(1979), é essencial e frequente na fraseologia nacionalista: a
defesa da soberania da pátria e da grandeza nacional. E a ameaça
que motiva as atitudes de defesa pode ser lida em dois registros
diferentes: o externo e o interno. No externo, está a ameaça da
invasão do inimigo estrangeiro; no interno, a ameaça de como-
ção social. Porém, no caso brasileiro em estudo, essa comoção
é temida por se entender que ela é provocada pelos aliados e
cúmplices do inimigo externo. No caso de o comunismo ser o
inimigo, os aliados de Moscou são os intelectuais comunistas e
os agitadores; no caso do imperialismo e do fascismo, os aliados
são os integralistas, o presidente Vargas e seus colaboradores, a
burguesia nacional e os latifundiários.
À direita e à esquerda, a retórica patriótica e nacionalista,
quando ligada à atitude de defesa, se traduz por palavras e ex-
pressões que contêm apelos à “salvação nacional”, à “libertação
do país”, aos “interesses da nacionalidade”, ao “sentimento de
pátria”, à “sentinela da dignidade brasileira”, à “força invencível
da nacionalidade”, ao “sentimento profundamente nacionalista”,
entre outros.
Getúlio Vargas, numa saudação à nação pela entrada do ano
de 1936, fez da sua fala uma típica manifestação desse naciona-
lismo defensivo diante da ameaça comunista. Após assentar sua
bateria verbal contra o comunismo, Getúlio, com habilidade,
chama a si a condução da defesa da pátria, deixando implícita

142
a sua justificativa pela adoção de medidas duras e antidemo-
cráticas, tais como o Estado de Sítio, o Tribunal de Segurança
Nacional, a censura à imprensa, entre várias outras.

Parece chegado o momento de reunir e solidarizar todos os espíritos


bem formados numa campanha tenaz e vigorosa em prol do levanta-
mento do nível mental e das reservas de patriotismo do povo brasileiro,
colocando as suas aspirações e as suas necessidades no mesmo plano e
direção em que se processa o engrandecimento da nacionalidade. (...)
O poder público posto a serviço de interesses vitais da nacionalidade,
cuja estrutura assenta sobre a família e o sentimento de religião e de
Pátria, poderá refletir salutarmente nossas preocupações orientando-se
no mesmo sentido e concorrendo, na esfera das suas atividades, para
a grande obra de salvação nacional que o momento está a exigir e que
deve ser iniciada sem tardança. (...) Tenho deveres a cumprir — deveres
amargos ou gratos, que desempenharei com alegria ou doloroso pesar
— mas imprescritíveis perante a Nação. Não os sacrificarei jamais aos
imperativos da amizade e do afeto pessoal, porque amigos serão todos
os que seguirem na defesa do Brasil e parentes, todos os que pertencem à
grande família cristã que o comunismo pretende destruir (...).
No limiar do novo ano, quando entre festividades e efusões de ale-
gria, rodeadas pelas criaturas que amais e pelas pessoas que vos dão
o conforto de uma estima leal e dedicada, expandis os vossos afetos e
sentimentos, deveis ter também um pensamento votivo para a nossa
Pátria, que seja penhor de inflexível decisão na sua defesa (...) deveis
levantar a vossa alma, pelo amor do Brasil, numa afirmação de fé,
num impulso de confiança pela sua grandeza e pelo seu destino glo-
rioso, bem compreendendo o momento, colaborando com os poderes
públicos, resistindo à pressão destruidora da violência, da fraude e de
dissimulação do comunismo, realizando, enfim, a união sagrada de
todos pelo ideal supremo de honrar o nosso passado e de acrescer as
glórias dos que nos precederam na obra imortal de construção de uma
Pátria cada vez maior, mais próspera e mais feliz.2

Vargas é explícito sobre a necessidade de medidas enérgicas


para enfrentar com firmeza os perigos que ameaçam a nação e

143
deixa manifesto, nesse discurso, o papel da família e da religião
na estrutura da nacionalidade. Ao fazê-lo, a nosso ver, ele penetra
na intimidade dos lares, traduz o sentimento da família reunida,
para em seguida apelar ao amor pela pátria, enquanto um des-
dobramento natural do sentimento familiar. E a Pátria, assim,
começa a ser revestida de uma devoção amorosa.
Também é possível notar na retórica varguista a insinuação
de outro tema típico das formas de expressão nacionalista: o his-
toricismo. Este implica na valorização de um certo passado, que
Vargas aqui não menciona qual seja, e que se presta à afirmação
da “autonomia da pátria”. A sua presença vai tornar-se mais
visível na utilização da ideia-imagem de pátria-moral que, como
veremos à frente, é veiculada através das campanhas cívicas.
Também Benedicto Valladares,3 quando transcorridos dois
anos da insurreição armada de 1935 — e esta é remorada ofi-
cialmente — irá apelar para a defesa da nacionalidade, “na hora
de apreensões que estamos vivendo”,“nesta fase intranquila que
o país atravessa” assinalando que estão todos, em Minas e no
país, “vigilantes e prontos para defender, do grande perigo que
a ameaça, a nossa estremecida Pátria”. Assim, entre apreensões,
estremecimentos, intranquilidade e diante da “aproximação de
dias duvidosos”,4 a insegurança é socialmente transmitida, a
angústia social que dela decorre é alimentada e a necessidade de
que se defenda a pátria — para que a sua oferta de proteção se
mantenha e permaneça inalterada — é sutilmente reafirmada. É
contra a “invasão vermelha” que a atitude de defesa é mobiliza-
da, no sentido de acionar as reservas de nacionalidade, as únicas
capazes de impedir que a pátria seja tomada e aprisionada pelos
comunistas e que os brasileiros sejam “reduzidos à miserável
condição de escravos da horda vermelha de Moscou”.5 É nesse
sentido, pois, que, nessa manifestação de nacionalismo através
do conteúdo anticomunista, fazem sentido as invocações pela
salvação e pela libertação nacional. Afinal, os comunistas são
considerados “indivíduos sem pátria ou que perderam o senso
cívico do amor à terra natal”.6 O que vale dizer: são impatriotas
e traidores.

144
Também os comunistas, que incorporam o argumento nacio-
nalista à sua retórica, assumem atitudes de defesa nacional e igual-
mente se dispõem à tarefa de mobilizar os cidadãos para salvar e
libertar o Brasil. Da mesma forma, eles afirmam em 1935:

Estamos vivendo o momento mais tormentoso da vida nacional. (...)


E num país como o Brasil, pelo caráter feudal da nossa economia, o que
vemos é o nosso destino entregue aos banqueiros internacionais.7

Com quais conteúdos eles se mobilizam e sustentam sua prega-


ção nacionalista? Com os da emancipação social e econômica do
Brasil. Com esses conteúdos, as suas manifestações nacionalistas
de caráter defensivo se qualificam diferentemente daquelas que
se manifestam através do anticomunismo.
A sua defesa da emancipação social se baseia no postulado
da libertação democrática — o que pressupõe e efetivamente
implica a pregação da participação na política, da igualdade
social e da eliminação das desigualdades de classe, enquanto
prisões que encarceram amplos setores que deveriam — livres
da dominação da burguesia urbana e rural e dos ditames do
governo varguista — participar da construção da nacionalidade.
Além disso, a emancipação econômica, por seu lado, se escuda
no postulado da emancipação nacional do jugo imperialista,
do qual o fascismo, na versão integralista, é uma das facetas. A
ambos os postulados se subordina “a própria existência política
do Brasil”,8 o que remete suas movimentações à aspiração da
conquista da soberania.
É interessante observar que as atitudes de defesa, articuladas
em torno do anticomunismo, insistem na iminência do perigo,
nos riscos de escravização da pátria, caso a ameaça se concretize,
nunca, porém, no fato consumado, nem mesmo quando ocorrem
as insurreições de novembro. Afinal, as autoridades reagem rápi-
da e duramente, dominam a situação e utilizam a eficácia da sua
ação repressiva para manter intacto seu prestígio, para garantir
a sua oferta de proteção e para poder liberar, de acordo com sua

145
conveniência, doses homeopáticas de apreensão. E, ao fazê-lo,
as atitudes defensivas se revestem de um caráter preventivo. Por
outro lado, como vimos anteriormente, o anticomunismo se mo-
biliza fundamentalmente em defesa da ordem, da propriedade, do
regime constitucional, da religião e, nesse sentido, o nacionalismo
defensivo que o toma como seu conteúdo principal, é defensivo
“duplamente”.
Na retórica nacionalista dos comunistas, ao contrário, o
cativeiro, a humilhação, a opressão são considerados dados de
realidade a que a ameaça fascista vem dar o golpe de miseri-
córdia. Nesse sentido, o país já está ocupado por um exército
muito especial: o do capital. E o povo há muito já foi escravizado
nos campos, nas fábricas e nas cidades. Assim, junto e dentro
da Aliança Nacional Libertadora, eles defendem “a entrega do
Brasil a si mesmo, ao povo brasileiro, liberto da opressão do
capitalismo estrangeiro e da escravidão feudal-latifundiária”.9
Põem-se ao lado de

(...) 45 milhões de brasileiros que querem uma vida melhor e mais


digna, que querem um Brasil livre, grande, unido, forte e feliz (...) A
ANL à frente do povo vencerá. E libertará o país das garras das grandes
potências e empresas estrangeiras que nos oprimem ajudadas pelos grandes
fazendeiros latifundiários interessados no atraso, no analfabetismo, na
ignorância do povo para a perpetuação de sua exploração.
Expulsemos os tiranos e construiremos na América uma Nação
livre apoiada fortemente pelo povo emancipado da escravidão feudal
imperialista.10

Aqui, pátria e futuro aparecem simultaneamente valorizados


e a pátria surge — e aqui lembramos Bazcko (1985) — “como
o lugar da própria operação utópica e elemento da mitologia
nacional”. E a pátria almejada

(...) não é apenas a terra dos antepassados; é também uma terra de


acolhimento, senão de asilo, para os sonhos, esperanças e frustrações de

146
um povo oprimido. É o país outro, real e transfigurado ao mesmo tempo
onde se instalaria uma cidade diferente (p. 374).

Essa visão fica clara no seguinte texto: “A ideia de Pátria


corresponde para nós à imagem de uma região tranquila, onde
todos vivem bem, respeitados como sagrados os pensamentos
alheios onde haja paz e abundância para todos.”11 A utopia da
pátria, assim, faz-se presente nas manifestações nacionalistas
dos comunistas. E toda a sua mobilização voltada contra o im-
perialismo externo “considerado constrangedor, seja da ordem
política, econômica ou cultural”, definida essa posição como
uma plataforma fundamental — pode ser considerada outra
variável do nacionalismo.
A nosso ver, essa variável — da plataforma de luta contra
o imperialismo — aparece nas manifestações nacionalistas dos
comunistas colada à atitude de oposição revolucionária, a qual
é característica da temática nacionalista, e que se realiza dentro
do movimento da ANL. O Programa da Aliança é nacionalista,
anti-imperialista, nacionalizador da economia12 e, enquanto
tal, é apoiado — não sem divergências — pelo PCB, que vê no
nacionalismo, em particular na sua capacidade de oposição ao
imperialismo, uma questão estratégica no sentido de viabilizar
seu projeto de revolução. Não é nossa pretensão realizar uma
discussão acerca dos vários aspectos que envolvem o tema da
“questão nacional” dentro do marxismo e da vida do PCB.
Lembramos que, segundo Marson (1979), que fornece suficientes
indicações bibliográficas a respeito — e que nos alimenta em boa
parte de nossa argumentação —, o tratamento dessa questão

(...) vincula-se a dois tipos de problemas essenciais: a teoria do


imperialismo e a teoria da nação socialista (p. 129). Daí, segundo
ele, o reconhecimento do potencial anti-imperialista do nacionalismo
e, portanto, da viabilidade (estratégica e teórica) de um capitalismo
nacional nas áreas periféricas e a delimitação do socialismo, segundo
as condições nacionais (p. 29).

147
Queremos registrar que encontramos no material pesquisado
indicações de discussão acerca desses dois pontos que apontam
divergências a respeito do encaminhamento do tema pelo PCB.
Numa longa carta a Luiz Carlos Prestes (apreendida em po-
der de Harry Berger), o jornalista, sindicalista e aspirante aos
quadros dirigentes do PCB, João Batista Barreto Filho, critica a
“barafunda teórica” e política do PCB, decorrente da proposta
de “revolução nacional libertadora” e de um governo popular
nacional revolucionário, que defendia, segundo ele, a burguesia
“nacional” e o capitalismo “brasileiro”. Embora afirmando
que aceitara a aliança,

concebendo-a como uma frente única de massa dentro da qual os


comunistas falassem sempre como representantes da ideologia específica
do proletariado revolucionário, como defensores do seu interesse e do
seu papel histórico de coveiro da burguesia e fundador de sociedade
socialista,

Barreto denuncia o desaparecimento do partido dentro da


Aliança, a assimilação da sua ideologia e o esvaziamento do con-
teúdo da classe, noção elementar da ideologia marxista. Em seu
lugar, ele aponta, surgem as noções de “povo”, as “aspirações
nacionais”, o “patriotismo”. Eis o que dizia a respeito da Aliança:

Era um movimento pequeno-burguês, nutrido de tão deplorável


ideologia patrioteira e utópica... contendo aspectos francamente reacio-
nários, como aquele do nacionalismo abstrato, do patriotismo vulgar.

Essa “demagogia patrioteira” ele afirma ser incompatível com


o internacionalismo proletário e que o imperialismo foi uma

tentativa de dar-se um conteúdo revolucionário a esse nacionalismo


aliciancista. (...) nada porém mais insuficiente para o proletariado do

148
que o anti-imperialismo assim encarado. O proletariado não combate o
imperialismo nacionalmente, como um mito, como uma ameaça externa
à pátria, mas internacionalmente, como última etapa do capitalismo.

Com a Aliança, o que se viu, no seu entendimento, foi um


“nacionalismo vulgar de bandeira, hinos e sentimentalismo
barato”. Com a ilegalidade, desaparecem as possibilidades
legais que a Aliança dispunha e da qual ele afirma ter pre-
tendido “tirar partido”, ficando reduzida “à ossatura do
Partido, que dessa forma deixou de existir como tal, para dar
vida artificial a um cadáver”, ficando desagregado ideológica,
política e organicamente.
A carta de Barreto é datada de 26 de outubro de 1935.
Já em agosto, o Comitê Central do PCB, em sessão plenária,
levanta o tema da revolução nacional, reafirma a palavra de
ordem do poder popular, do trabalho na Aliança enquanto uma
tarefa da revolução, e chama de direitistas as críticas, como
as de Barreto, feitas por trotskistas, por elementos do Partido
“duvidosos e atemorizados” e por teóricos que “retornam às
posições do astrogildismo”, discutindo num tópico à parte as
objeções à seguinte posição do Partido: “Todo poder à Aliança
Nacional Libertadora.”13
A emancipação nacional do jugo do imperialismo, enquanto
um dos substratos da aspiração à soberania, coloca em cena o
tema de independência do Brasil, o qual reforça os clamores
comunistas pela libertação social e nacional do povo brasileiro.
Sobre a utilização do tema, é exemplar um artigo de Álvaro
Moreyra, no jornal A Manhã:

Foi um príncipe português que soltou o brado (se houve brado).


O sol que brilhou foi o mesmo que está brilhando agora. O príncipe
tomou, logo, o nome de imperador e desandou a governar. Menos de
dois anos depois, autorizou o contrato do primeiro empréstimo com
banqueiros estrangeiros, de três milhões de libras, dando por garantia

149
as rendas de todas as alfândegas do Brasil. Daí em diante os emprés-
timos não pararam, empurrados uns pelos outros, e nenhum ficando
pago, pois os credores aumentaram sempre o valor do que recebemos
e não temos. Nunca mais se soube o que era independência. O estado
colonial continuou...
Você ganha pouco. Do pouco que você ganha, dois terços seguem
viagem... Quase o total do que você precisa para viver chega de fora,
e volta transformado em moedas de ouro... Não porque o Brasil seja
preguiçoso. Mas porque o Brasil só pode trabalhar para conseguir as
prestações do que deve.14

Após listar minuciosamente tudo o que os industriais e


capitalistas da América do Norte e da Europa vendem ao
Brasil, da iluminação à lâmina, do radiograma às conservas e
ao ferro de engomar, o autor conclui: “E o povo há de escutar
e descobrir, afinal, que ‘Independência ou Morte’ não foi um
brado inteiramente errado... O Brasil preferiu a morte...”
A representação de uma independência a conquistar está
ligada à representação mítica de uma pátria a reconquistar, onde
está implícita uma reafirmação das origens: a pátria antes do
advento da injustiça e da exploração de classes. A libertação
da pátria fica associada, dessa forma, à defesa do princípio da
vida. E da vida chegamos à ideia-imagem da pátria/mãe.
Reich (1972), ao estudar a psicologia de massas do fascis-
mo, dedica parte de seu esforço ao estabelecimento de vínculos
entre esta e a ideologia autoritária da família. É dele a seguinte
afirmação:

A base dos vínculos familiares é o vínculo com a mãe. As concepções


de pátria e de nação são, no seu fundo emocional subjetivo, concepções
de mãe e de família. Nas classes médias, a mãe é a pátria da criança,
tal como a família é a sua nação em miniatura (p. 54).

150
À parte a referência à classe média, que ocupa lugar central
na teorização do fascismo empreendida pelo autor e que não
é de nosso interesse discutir aqui, a afirmação de Reich lança
luz sobre o lugar que a associação pátria/mãe ocupa dentro das
mensagens políticas autoritárias e abre uma senda que permite
visualizar a existência do que Guattari (1985) chama de “quí-
mica totalitária”, que atravessa e envolve as diferentes estruturas
políticas institucionais, familiais e individuais.
Que a família é um eficiente e poderoso instrumento do poder,
disso somos todos sabedores. O interessante a observar aqui é
como no Brasil dos anos de 1930 se processava no plano discur-
sivo a vinculação pátria-nação/mãe-família; com que acessórios o
seu fundo emocional, comum e compartilhado, aparece revelado;
e que resultados práticos são buscados com a sua utilização.
Como vimos, pelas palavras do próprio presidente da nação, a
estrutura da nacionalidade está assente sobre o tripé família, pátria
e religião e não seria demais lembrar a presença, nesses anos, do
tema integralista “Deus-Pátria-e-Família”. Por associar a ideia
de pátria com a de família é que Vargas se refere aos brasileiros
enquanto “parentes” que pertencem à “grande família”. Colada
à afirmação da pátria como uma grande família está a concepção
da família — para usarmos uma expressão reichiana — como uma
“nação em miniatura”15 (p. 59).
É possível acompanhar essa ideia na fala do vereador belo-
-horizontino Alberto Deodato, em 1936, quando este, ao se referir
aos perigos que o comunismo representa para a democracia,
afirma que:

(...) a inconsciência fanática, alheia às tradições liberais da Pátria,


que evoluiu da família à nação, em capitanias, províncias e Federação,
sempre à sombra da Cruz, exige a destruição da Cruz e da família —
que é a destruição do próprio Brasil.16

151
Aqui, fica clara não só uma visão da família enquanto núcleo
fundante da nação, como também enquanto um corpo minia-
turizado que se soma a outros, dando origem, sucessivamente,
à capitania, à província e, por fim, à federação, expressão repu-
blicana do conjunto das partes componentes do grande corpo
da nação. A implosão do corpo da pátria, portanto, é sinônimo
da destruição dos milhares de corpos que a compõem, ou seja,
é a destruição da família, é a destruição do Brasil.
Se a família é o suporte do Estado e da nação, a mãe é o su-
porte da família; e se a família é a essência da pátria, esta é, na
sua essência, a mãe, e os brasileiros são todos seus filhos e, entre
si, são irmãos. Assim parece entender, por exemplo, o ministro
Agamenon Magalhães:

Não é possível que o brasileiro seja inimigo de si mesmo, de seus


irmãos e de seus filhos. Não é possível que o brasileiro negue o seu lar e
a sua Pátria. Não é possível que o brasileiro que tem tudo no Brasil —
trabalho, garantia, segurança e ordem — queira trocar tudo isso por um
materialismo de Estado.17

Dessa forma, as relações do povo brasileiro entre si e do povo


brasileiro com a nação, em vez de serem relações de cidadania,
são relações de filiação. O que se sugere aqui é que, como no
âmbito privado da família, a regra de comportamento a ser
seguida no espaço público da nação é informada pelos valores
de respeito e obediência à autoridade e pelo valor de preser-
vação da harmonia e da coesão. A cidadania é, dessa forma,
privatizada e nos ocorre pensar se essas “relações de filiação”
não são também expressão do declínio do homem público e
um reforço às tiranias da intimidade (Sennet, 1988).
Também nesse ponto a farta retórica de Benedicto Valladares
nos vem apoiar. Após afirmar que “Minas, por estar situada no
centro, sempre pulsou como o coração da Pátria”, ele conclui:

152
A constância desse civismo histórico alimenta-se das virtudes pri-
vadas da gente mineira tão elevada no cultivo modesto da cidadania.
A parte perene desse espírito de brasilidade é o lar mineiro, em que os
sentimentos religiosos se entrelaçam com os sentimentos patrióticos,
que evoluem do distrito ao município, do município ao Estado e do
Estado-Federação. (...) Não há solução de continuidade entre a atuação
do chefe de família do homem e do cidadão (...) Una e indivisível é a
trama das emoções que vitaliza a energia construtora de nossa gente,
a tal ponto que a sociedade, tanto em seus aspectos internos como
em seu panorama político, é um grande lar (...).18

E quais são as “virtudes” mineiras? Ele as enumera como


sendo o pundonor, o sentimento de independência, a fidelidade
à palavra dada e principalmente o respeito à ordem e à lei.
Essa mesma visão informa os escritos do escritor mineiro
Oscar Mendes ao ufanisticamente comentar a comemoração do
Sete de Setembro, em 1936:

Os governos vêm procurando dar aos moços o sentido de coesão


em torno da pátria, fazendo penetrar-lhes, no espírito e no coração, o
orgulho sadio e o amor dedicado por uma pátria imensa, promissora
e boa, que confia no valor dos seus filhos para mantê-la liberta das
intervenções estrangeiras e das doutrinas subversivas.19

Como se vê, os brasileiros infantilizados não podem dis-


tanciar-se da mãe, perdão, da pátria, tampouco se dispersar,
diferenciando-se dela, a quem devem obediência e devoção, assim
correspondendo à confiança que, como uma boa e compreensiva
mãe, ela deposita nos filhos. E se o brasileiro não deve, como
aconselha Agamenon Magalhães, negar o seu lar, é porque a
pátria é considerada “nosso lar político”.20 E os brasileiros que
participam das insurreições de 1935, como filhos, ao traírem a
mãe, no dizer de um coronel de infantaria, em 1937:

153
(...) trabalhados serão pelo remorso, que os perseguirá sem pieda-
de. Hão de ter sempre os ouvidos alertados pelo clamor retumbante
da Pátria, que não olvidará jamais tão grande e insensata violência.21

E as autoridades, ao rememorarem oficialmente os aconteci-


mentos de 1935, colocam-se como o superego do povo brasileiro
que, desde então, em todos os anos, no mês de novembro é
chamado a internalizar o passado, a revivenciar a culpa pela sua
rebeldia com a pátria/mãe. Afinal, a pátria, além de mãe, segundo
o mesmo coronel “é para nós, o berço, o lar e o sepulcro”.22
Na sua ligação aos extremos de berço e sepulcro, nascimento e
morte, sobrevoa um vínculo de destino que, a nosso ver, informa
um forte componente do sentimento patriótico e nacionalista que,
levado aos extremos na ideologia nacional-socialista do qual é
suporte vital, não lhe permanece exclusivo: a idolatria do solo.
O solo é “o torrão de pátria para abrir a sepultura”,23 para
uns; é condição de brasilidade, para outros, como Benedicto
Valladares, para quem é um orgulho ser filho de fazendeiro e
haver nascido em fazenda. Numa significativa reflexão, ele assim
se manifesta sobre aqueles que nascem no campo e vivem em
contato com o solo:

Ali se aprende desde cedo o trabalho e a alegria do trabalho. O ho-


mem é simples, desprendido, honesto e patriarcal. Está perto da terra,
vive com ela, impregna-se do seu amor, de confiança na generosidade.
Aprende a querer a pátria, porque esta são os costumes, os hábitos, os
sentimentos, o espírito que nascem dela e de sua gente.
O homem rural é a expressão da mentalidade e do sentimento
brasileiro.
Quem nasceu dentro do seio de nossa Pátria guarda-a sempre no
fundo da alma. Experimenta-lhe melhor o calor de sua maternidade.24

Aqui, a garantia simbólica da proteção e da segurança atra-


vés do corpo da mãe/pátria é admitida sem disfarces. O solo

154
pátrio se traveste no corpo da mãe. É interessante ver como se
cruzam as associações da pátria/mãe — terra/mãe, solo/útero,
berço/sepultura. É impossível que não pensemos na terra como
um avatar do útero materno, e na sugestão de que a ela nosso
destino está indissoluvelmente ligado: de onde viemos e para
onde retornaremos.25
No discurso em questão, constatamos que é da mãe o exemplo
do trabalho e do gosto pelo trabalho; é da família — através da
mãe — o aprendizado da honestidade e a aceitação da hierarquia
através do submetimento à inquestionável autoridade patriar-
cal. Ao se situar num ponto de cruzamento entre a micro e a
macropolítica, a família torna-se, assim, um aliado em potencial
dos projetistas de uma sociedade autoritária, além de ponto de
partida da experiência das potencialidades para o controle e a
dominação social.
Também os comunistas clamam por uma pátria/mãe que os
acolha com carinho e não os rejeite. Também eles buscam um
retorno imaginário à segurança da pátria enquanto uma família.
O interessante é que eles brigam pelo reconhecimento da pátria/
mãe/família, uma vez que são eles os acusados de quererem
destruí-la e atraiçoá-la.

Fique cada um de nós, com o seu Deus, com a sua Pátria e com a sua
família e, para provarmos que somos dignos desse Deus, dessa Pátria e
dessa família, trabalharemos juntos, fraternalmente, na transformação
radical do Brasil — essa gleba imensa onde habitam escravos e senhores
— numa grande pátria que abrigue amorosamente todos os seus filhos e
não seja como hoje, mãe carinhosa para os ladrões e parasitas que só têm
Direitos, e madrasta desumana para os que trabalham e só têm Deveres!26

A associação da ideia de pátria com a de mãe é extremamente


forte nesse texto que consegue passar através da imagem da
madrasta o sentimento de orfandade e desamparo dos que con-
frontam o poder daqueles que se apropriaram da pátria, fazendo
com que ela se tornasse desumana para com os trabalhadores.

155
Nesse sentido, suas atitudes em defesa da pátria são expres-
sas como as de um filho que quer recuperar a mãe, pois, não
obstante o sentimento de rejeição, eles se referem à Pátria como
mãe e se autodenominam seus filhos. Assim, quando da eclosão
do movimento armado no Nordeste, o bureau político do PCB
apela ao povo brasileiro afirmando: “Está sendo decidida a
causa do Brasil e de todos os seus filhos.”27 Em outro panfleto,
denunciando um complô dos integralistas conclama os soldados
do Exército a prepararem-se

(...) para impedir semelhante crime ou para lutar contra o criminoso


golpe de armas na mão ao lado do povo, ao lado da Nação, de quem
sois filhos, ao lado de quem estiver contra esse movimento subversivo
estrangeiro, integralista, fascista.28

Num documento do comitê regional do PCB de São Paulo,


o Partido admite ser:

(...) pela Pátria democrática, forte pelo seu progresso industrial e


pelo amor de seus filhos, firme na sua defesa intransigente contra a
agressão fascista estrangeira, livre para todos os seus cidadãos, grande
para a felicidade do seu povo.29

Assim, se a pátria é mãe, a luta pela sua proteção é também


uma luta pela proteção da família. E, no caso dos comunistas,
não só é uma luta pela segurança, mas sobretudo pelo conforto
material e moral da mulher e dos filhos. O Partido Comunista é

(...) pela família, amparada solidamente pela justa retribuição do


trabalho de seus chefes com salários compatíveis ao nível atual de
vida, educada dentro dos princípios da harmonia e da solidariedade
que devem estreitar todos os irmãos da grande pátria que é o Brasil.30

156
E a ameaça à pátria também é considerada por eles como
uma ameaça ao lar e essa associação é claramente assumida
pelas mulheres da União Feminina do Brasil ao se mobilizarem
contra o “fascismo nacional” dos integralistas:

Ameaçadas pelos monstros sanguinários que tentam encharcar de


sangue os lares, ameaçadas de fome, de miséria, de desgraças, senti-
mos que era chegada a hora de nossa união. Não consentimos que as
guerras de destruição arrasem nossos lares. Levantemo-nos contra os
inimigos do povo. (...) Mães, esposas, filhas, irmãs, ouvi o apelo que
vos fazemos nesse momento em que os dois inimigos que são nossos
e dos nossos maridos, pais, filhos, tentam cravar em nós suas unhas
sangrentas. Lutai conosco contra o integralismo.31

Do que foi cotejado até aqui, é possível concordarmos com


Reich (1972) quanto ao fato de que no sentimento nacionalista
se prolongam ligações familiares cuja origem está posta na pre-
sença inconsciente da figura da mãe que, a nosso ver, à direita e
à esquerda, é reforçada por mensagens e apelos políticos. Esses
apelos não só investem na identificação pátria/mãe, pátria/famí-
lia, como predispõem os sujeitos sociais a se identificarem com
a pátria. O impulso à identificação com um “coletivo potente”,
como a pátria ou um líder, se faz presente em condições em que
o ego não consegue firmar-se como uma instância autônoma,
livre e autossuficiente (Kühnl, 1982, p. 156). Sem dúvida, essas
condições podem ser encontradas num ambiente de medo e
insegurança, onde se destila a impotência diante de um perigo,
onde há descrença com os governantes e abalo na confiança.
Todos esses componentes, à sua maneira, estão presentes nas
falas aqui utilizadas. Mesmo quando se apela à ação, o impulso
à identificação com a pátria é reforçado pela identificação desta
com a mãe e a família. O apelo à ação, portanto, fica anulado
porque se reforça o desejo de proteção e segurança.

157
A identificação emocional, primária, com a pátria é responsá-
vel pela ideia de que a causa do Brasil é a causa dos seus filhos,
que a destruição do Brasil é a destruição da família e dos lares,
que os inimigos do Brasil são nossos inimigos; enfim, que a
defesa da pátria é a defesa do povo, dos lares e de nós mesmos.
Disso decorre que o sentimento de amor à pátria, a crença na sua
grandeza, o desejo de um país entregue a si mesmo revelam que
a pátria é transformada em ego-ideal e que a libido que movi-
menta esses sentimentos é a libido narcisista. Esse ego-ideal, que
a nosso ver é construído através do modelo da mãe e da família,

(...) é agora o alvo do amor de si mesmo desfrutado na infância


pelo ego-real. O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção
a esse novo ego-ideal, o qual, como o ego infantil, se acha possuído de
toda perfeição e valor (Freud, 1974, p. 111).

A forma de recuperar a perfeição narcísica da infância, pró-


pria da fase autoerótica, quando o sujeito não existe separado do
objeto e a libido objetal não pode ser distinguida da libido do ego,
é realizada, ainda de acordo com Freud, através da entronização
de um ego-ideal. A veneração amorosa da pátria é a veneração
de um ego-ideal no seu aspecto social por se constituir um ideal
comum não de um indivíduo, mas do conjunto dos indivíduos
da nação. Contudo, seja no seu aspecto social ou individual, a
libido que o movimenta é a mesma. O que o sujeito, individual
ou coletivo, projeta “... diante de si mesmo como sendo seu ideal
é o substituto do narcisismo perdido de sua infância — na qual
ele era o seu próprio ideal” (Idem). Isso explica a presença, como
vimos, junto às conclamações de devoção ilimitada à pátria,
da constante reafirmação da expectativa de um Brasil grande,
unido, forte e feliz. A identificação com a pátria, portanto, é
uma identificação narcisista.32 E a sua perfeição e grandeza
anunciadas vão satisfazer o narcisismo nacional e abastecer
de autoconfiança os sujeitos sociais na sua busca de grandeza

158
e perfeição. Essa devoção ilimitada acarreta, nos termos freu-
dianos, um enfraquecimento da “iniciativa própria do sujeito”
que se coloca numa posição de “sujeição humilde”. Essa atitude
diante da pátria, transformada em objeto de desejo, é um auxi-
liar poderoso das pretensões totalitárias, conquanto favorece o
submetimento e vincula o conjunto social à identificação com
um coletivo potente dentro do qual ele se indiferencia.
Quanto à expectativa de “união” do país, parece-nos que ela
é também reveladora da tentativa de recuperação desse aspecto
fundamental do estado narcísico: a indiferenciação. Nesse estado,
o sujeito (ego) e o objeto (mundo externo) se fundem num todo
indistinto onde o sujeito desconhece a experiência do próprio
corpo, mas já vivencia a ansiedade pelo temor do despedaça-
mento. É aqui que entra em cena o ideal da pátria/una que, se,
por um lado, expressa o temor da divisão, por outro, acalma os
sujeitos sociais do seu receio do despedaçamento, com o aceno
da proteção — integridade da pátria —, enquanto amplia o cerco
totalitário. Uma vez que o corpo do sujeito e o corpo da pátria
formam um todo indiferenciado, a ameaça à integridade da pá-
tria é vivenciada enquanto uma ameaça também à integridade
do sujeito. Nesse sentido, a ideia de pátria/una pode ser vista
enquanto um desdobramento lógico da ideia de pátria/mãe.
O forte investimento político-afetivo feito nos anos de 1930
no conceito de pátria-una, na defesa da integridade do país e
no princípio da unidade nacional, muito embora se preste à
defesa da soberania, enquanto típica expressão de manifestações
de tipo nacionalista, de fato acalenta o sonho escondido de
uma sociedade una, indivisa, uniforme, homogênea, concorde
consigo mesma.
O desejo de um social total, é bom lembrar, tem como pres-
suposto o domínio do espaço social, a identificação dos sujeitos
sociais com o poder e com aqueles que o detêm e a eliminação
das diferenças sociais.

159
O princípio da “coesão do grupo nacional” presente no tema
da soberania implica que:

As diferenças e as particularidades (de ordem religiosa, étnica, políti-


ca, linguística etc), a diversidade e a pluralidade de opções e crenças têm
de ser suprimidas ou reduzidas. Essa atitude pode levar a um exclusivismo
por vezes violento, a uma intolerância repressora, em relação a grupos e
ideologias consideradas prejudiciais à “unidade nacional”, tudo aquilo
que represente algo de estranho ou de “estrangeiro à comunidade”, sejam
grupos sociais, étnicos, partidos ou ideologias (Marson, 1979, p. 23).

Dessa forma, a questão da unidade nacional, tal como se faz


presente nesses anos, mesmo quando investida da retórica da
soberania, favorece a pretensão totalitária dos que almejam uma
sociedade una. E os apelos e iniciativas por uma pátria una e
íntegra oferecem-lhes a oportunidade de um ensaio onde, antes
da pretendida encenação final, os atores vão experimentando o
seu papel.
A chave para a apresentação dessa peça é a ideia de que a
pátria “não é divisão: é reunião”.33 A consecução dessa “reunião”
passa por vários caminhos. Um deles é o da defesa intransigente
da abdicação dos interesses privados e da oposição de classes, em
nome do interesse da pátria. A propósito, vale a pena repassar a
utilização feita por um escritor mineiro da frase “é preciso que
tenhamos juízo!”, de Oswaldo Aranha, então embaixador em
Washington, dita em discurso no Rio Grande do Sul, a propósito
da sucessão presidencial de 1937:

Ter “juízo” significa acoimar paixões, humilhar orgulhos, sufocar


ambições, esquecer injúria, recatar-se contra os inimigos, unir-se em
defesa das instituições, conter os ímpetos do próprio eu, pensar no
bem coletivo, amar a Pátria — una e fraterna (...) é não se deixar levar
pelo desejo desenfreado do mando e por causa disso lançar o país nos
sobressaltos das conspirações e dos levantes de quartel. “Ter juízo” é

160
sobrepor o bem-estar da nação, à segurança da pátria, acima de todos
os interesses regionais e de todas as vaidades de hegemonia política.34

A busca da unidade da pátria supõe, portanto, o abandono de


divergências partidárias, de classe, de região; logo, pressupõe a
eliminação do conflito social e a valorização da harmonia impli-
cando, ainda, o fortalecimento do poder e das instituições.
A questão da superação das divergências partidárias e regio-
nais, que é tratada pelo Governo Vargas enquanto um impe-
rativo de unidade nacional, à parte o interesse oligárquico que
a envolve, no fundo, se presta ao fortalecimento de um núcleo
centralizado de poder, ponto irradiador de sentimentos prio-
ritariamente ligados à ordem pública, ao civismo, ao respeito,
à lei e à preservação da integridade territorial. Tal é o caso do
movimento de pacificação das correntes políticas levado a cabo
em Minas Gerais35 pelo governador Benedicto Valladares, sob o
pretexto da ameaça comunista à nação. O discurso do ministro
Odilon Braga, proferido na ocasião, é bastante revelador do
significado dessa iniciativa e do apoio da classe política a ela.
Por um lado, ele afirma:

Em face de tantas ameaças e incertezas, não há espírito de elevada


inspiração, que, em divergência com as diretivas da autoridade, não
abdique das suas forças e das suas aspirações, porventura legítimas
para, guardando silêncio e inércia, apoiá-la tacitamente, a fim de não
ser chamado a responder pelo início de funestos desmoronamentos.36

Por outro, após concluir que no Brasil os verdadeiros partidos


políticos, os dirigidos por ideias e doutrinas e não por prefe-
rências pessoais, “jamais se constituíram e nem se constituirão
jamais”, ele afirma:

Não lamentemos, senhores, esta falta de vocação para as agitações e


fracionamentos da vida partidária, segundo estilos liberais. Felicitemo-
-nos por ele, máxime nos tempos que correm, quando os povos de

161
vanguarda realizam inauditos sacrifícios para atingir a unidade de
orientação de que carecem e que, naturalmente, desfrutamos.

Dessa forma, a direção centralizadora do governo com vis-


tas à integração nacional se sobrepõe não só às divergências
partidárias, mas, principalmente, à vida partidária, que, por
pressupor agitação e fracionamento, é uma ameaça potencial à
unidade da nação. É patente nessas considerações a descrença
com o princípio mesmo da vida partidária e o endosso da solução
autoritária para a vida política do país.
Um exemplo da ressonância em alguns setores da sociedade
da tese de um governo forte e centralizado pode ser aquilatado
pelo editorial de um jornal acadêmico de bacharéis em Direito
em 1935, ao comentar e saudar a instalação das constituintes
estaduais:

(...) a fase por que atravessou a Nação, de 1930 até esta data, foi,
sem dúvida, de grandes vantagens para o País, de vez que o regime de
centralização deu margem ao fortalecimento do sentimento de Pátria
e consequentemente fez revigorar os laços de unidade nacional.37

Os comunistas, por seu turno, também engrossam o caudal


retórico dessa vaga unificante. É preciso ressaltar, no entanto,
que a sua defesa de uma pátria unificada aparece revestida
de uma justificativa teórica que embasa seu diagnóstico da
realidade brasileira centrado em dois pontos fundamentais, a
saber: o feudalismo e o imperialismo. Prestes, por exemplo,
afirma, por um lado: “O Brasil ainda não foi unificado. Os
restos de feudalismo sobrevivem em pleno século XX.”38 Por
outro, sustenta: “Os diversos bandos imperialistas, ingleses,
americanos, japoneses, italianos, alemães, franceses, lutam entre
si pela dominação do Brasil, pela sua completa colonização.”39
É contra a dominação imperialista e a liquidação dos restos
feudais que se torna um imperativo a reunião, numa única força,
de “todos os que desejam a unidade nacional”.40 Ao governo

162
popular revolucionário caberia a tarefa de dar um golpe de morte
nos imperialistas e plutocratas e unificar o Brasil.
É interessante notar que a iniciativa de integração levada a
efeito por Vargas, através de uma política de pacificação das diver-
gências que adentra o Estado Novo, é apoiada pelos comunistas
em nome da união nacional quando, em 1938, Ademar de Barros
é nomeado interventor do Estado de São Paulo. Numa circular
do comitê regional no Estado, o Partido declara que:

(...) é favorável a uma política de congraçamento e unificação de


todos os paulistas em torno de um programa que realmente beneficie
o povo e resolva a situação de crise em que se debate o Estado.41

Pois eles argumentam, isso vem expresso na circular, que um

São Paulo próspero e democrático (...) não poderá coexistir sem


um São Paulo unido e sem um São Paulo seguro. Unido dentro dos
sentimentos do são nacionalismo brasileiro, que não enxerga diferença
de raças ou nacionalidades, que não distingue brasileiros e estrangeiros,
quando estes, de pleno acordo com as nossas leis, mourejam pelo nosso
progresso. Seguro, porque livre da ameaça do fascismo estrangeiro e dos
seus agentes indígenas, os integralistas-vassalos do nazismo hitlerista.
(...) Um São Paulo unido é um São Paulo sem divergência, sem ódios
nem paixões, pacificado, magnânimo, sem presos políticos.

Bem antes, desde 1935, como vimos, o Partido já defendia


a união de todos os brasileiros sem distinção de classes, sem
distinção partidária, religiosa, ideológica ou filosófica e já,
desde essa mesma ocasião, os comunistas, através de Prestes,
manifestam também seu repúdio pela vida partidária-nacional.
Segundo ele: “A política nacional é uma política de camarilhas,
de grupos sem princípios que só caricatamente podem ser cha-
mados de partidos.”42 O resultado dessa política é a tão temida
desagregação nacional.

163
Dessa obsessão por um “todo uno” não escapa nem mesmo
um liberal como Afonso Arinos de Mello Franco e a sua defi-
nição de democracia. Vale a pena acompanhar as linhas do seu
raciocínio:

Contento-me em acentuar que se trata de um governo exercido direta-


mente pelo povo, através dos seus representantes. Pelo povo tomado em
conjunto, sem distinção de nenhuma espécie, sem classes, sem profissões:
a massa e o número. É portanto uma forma ascética de governo, em que
os valores individuais se dissolvem no todo (e chama-se à democracia
um governo individualista!) e em que a verdade está no automatismo
das cifras, que indicam uma soma maior ou menor de opiniões de valor
infinitamente desigual. (...) Acontece porém que o mais terrível dos
movimentos ideológicos a que a humanidade tem assistido pelas conse-
quências de imprevisível gravidade a que chegam os seus raciocínios de
aparente lógica (...), acontece, porém, que este movimento, o materialis-
mo histórico, descobriu que o povo não existe, ou por outra, não existe
como entidade única e orgânica, tal como entendia o conceito clássico
de democracia. Descobriu-se que o povo, isto é, a massa, a reunião de
homens, é praticamente subdividida em duas classes, que são como
duas nações, dois inimigos irreconciliáveis. Que tudo o que favorece a
uma facção desgraça a outra, e que, por consequência, não pode haver
sinceramente um governo único, emanado de duas facções opostas,
que se guerreiam aberta ou surdamente num destino implacável. (...)
É ruim o sonho democrático (...) Nessas condições não há, nem nunca
houve, governo popular. O que há, o que sempre houve, foi uma falsa
representação de uma totalidade inexistente, e um domínio direto de
uma facção, de uma classe mais poderosa.43

Do exposto, podemos concluir que o povo é um organismo


total e a mera constatação em seu seio da existência de classe é
suficiente para abalar a sua organicidade e o clássico significa-
do de democracia. A existência do povo como entidade única e
orgânica é que torna a aventura democrática menos perigosa,

164
conquanto seja escudo da divisão, a qual é expressa pela figura
da classe social. Daí é preciso negá-la, daí ser melhor esquecê-la.
No fundo, a ideia que perpassa essa e outras elaborações do
tipo é a da negação da democracia enquanto âmbito do conflito.
A supressão do conflito, para dar lugar ao consenso, é a negação,
como nos mostram Chaui (1982) e Finley (1988), da própria
essência da democracia:

O conflito não é apenas inevitável, é também uma virtude na política


democrática, porque é o conflito em conjunto com o consentimento, e
não o consentimento sozinho, que evita que a democracia se desgaste
(Finley, 1988, p. 86).

Na esteira do desencanto com as vantagens da vida partidária


e com a eliminação da “competição de interesses”, está posta
a crítica ao regionalismo, como sendo um empecilho à coesão
nacional. Afinal, o regionalismo é a imagem insuportável da
pátria partida e um entrave à construção da imagem de uma
pátria una e da sua consciência enquanto tal. A contrapartida da
negação regional é a afirmação da integridade do corpo pátrio
e, contra ela, o regionalismo é um mal e a política partidária,
considerada sua expressão, também o é. Assim parece entender
o editorialista de um jornal belo-horizontino:

Os males desse espírito regionalista exacerbado são patentes. A


criança cresce nesse ambiente saturado de idolatria pelo estado natal,
em detrimento do espírito nacional. Vai perdendo a noção de que per-
tence à grande pátria, o Brasil, a sua unidade, a sua grandeza, para só
pensar na terra natal, no seu município, na sua casa.
A formação desse espírito nacional, dessa consciência da pátria una,
coesa e indesmembrável, é a grande tarefa dos nossos governos (...)
Porque, sem a consciência da nossa unidade, da nossa necessidade vital
dessa unidade, acabaremos separados em republiquetas anárquicas,

165
sem glórias e sem história, mas cheias de vergonha e de remorso de
terem dilacerado uma pátria imensa para satisfazer as mesquinhezas
do espírito regionalista.44

Esse discurso mantém pontos de contato com o pensamento


contrarrevolucionário, o qual dá guarida a críticas contra as clas-
ses dominantes e suas elites quando são coniventes ou beneficiam
desordem e desagregação social por seus interesses mesquinhos
e ambiciosos. É comum também se juntarem a essa e a outras
críticas ataques contra a política partidária, a igualdade política
e a livre expressão (Cf. Mayer, 1977).
A imagem dolorosa — porque nos sugere corte, sangue e
dor — do dilaceramento da pátria, utilizada acima, reforça
a imagem tranquilizadora e reconfortante da pátria una, co-
esa e indesmembrável. A coesão põe em cena um importante
complemento da unidade: o geográfico. E a perda da unidade
geográfica pode advir da rivalidade regional ou da ameaça do
inimigo externo. No caso deste último, o anticomunismo volta à
cena e é da eficiência do combate ao comunismo que se garante
a preservação da unidade geográfica:

Ninguém se iluda ainda que, num regime de força fundamentado


em teses importadas e inadaptadas ao nosso meio físico e moral,
permaneceria o Brasil com os seus limites geográficos inalterados e
a sua unidade intangível. Quando não fosse retalhado pelas nações
mais poderosas (...) seria, quando nada, dividido pelas lutas intesti-
nas, porque inúmeros aglomerados, compostos de brasileiros menos
submissos e conformados com a sorte, se levantariam numa luta
de extermínio contra os que rasgassem a nossa constituição... Mas
cremos que a junta encarregada de executar o Estado de guerra (...)
conseguirá expulsar de vez do nosso meio o perigo vermelho. (...)
Mas será [a tarefa] bem facilitada pela colaboração sincera, diuturna
e empenhada que encontrarão os executores do Estado de guerra, em
cada brasileiro consciente de seus deveres cívicos.45

166
Aqui, à exaltação nacionalista se junta um temor, como sem-
pre exagerado, do fantasma da revolução, numa típica operação
que Mayer (1977) chama de contrarrevolucionária preventiva.
O Estado de guerra e a colaboração a ele são elementos que se
prestam ao exagero intencional da ameaça revolucionária.
O curioso é que os comunistas também se mobilizam contra
os ditames do regionalismo e pela preservação intacta do corpo
geográfico brasileiro em nome do mesmo princípio dos seus
opositores: o da unidade nacional. E o fazem não enquanto um
instrumento de retórica defensiva que rebate as acusações que se
lhes atribuem de que configuram uma ameaça em potencial à uni-
dade pretendida, mas sim em nome do princípio da organicidade
nacional enquanto tal. Isso porque esse princípio é um eficiente
suporte da sua opção doutrinária e tática. Não esqueçamos que
a sua luta é contra o imperialismo e seus “lacaios nacionais” que
preservam os restos feudais e impedem a união nacional.
Os grupos imperialistas, sob esse ponto de vista, é que são os
beneficiários das disputas regionais, uma vez que ao se unirem aos
fazendeiros e usineiros, no entender de Luiz Carlos Prestes,

(...) aproveitam as suas contradições de interesses, aprofundam a


divisão regionalista, alimentam as campanhas separatistas, financiam a
organização de forças armadas regionais. Daí choques criminosos, como
o de 32. Lutas armadas e compromissos se sucedem, tudo servindo para
um enfraquecimento cada dia maior da união nacional.46

Se a revolução pressupõe a aniquilação dos restos feudais


e a emancipação do imperialismo, ela pressupõe, por via de
consequência, a construção da unidade nacional.
Seria ingenuidade nossa crer que os comunistas ignoravam o
perigo totalitário, presente nas pretensões unificantes existentes
nos diferentes locais do social, nesses anos de 1930. A questão é
que eles se acreditam imunes a esse perigo devido a seu objetivo
político de defesa dos fracos e dos desprovidos de poder em nome

167
de um ideal igualitário, o que recoloca, em outros termos, a sua
defesa da unidade; ou seja, a sua unidade deverá ser alcançada
sobretudo na igualdade, na justiça e na liberdade. Isso pode ser
percebido no seu embate com os integralistas, quando estes, sim,
são apontados como a própria encarnação do perigo totalitário:

Errados eles estão desde o símbolo que adotaram. Dizendo-se in-


tegralistas, com o desejo de querer significar a reunião das partes em
um todo, daí o totalitarismo, erram simbolizando-se em um sigma.
A integral é a expressão de uma soma de elementos infinitamente
pequenos; o sigma, a soma de parcelas finitas. As partes que eles
pretendem somar são finitas e, portanto, não as podem integrar. (...)
Que Pátria defendem eles? A Pátria una, indivisível, da liberdade e
da justiça acolhedora e boa, onde viva um povo soberano e livre?
Por certo que não. Os fatos o comprovam. Sob o pretexto de um
nacionalismo doentio eles levantam a questão de raças. Estigmatizam
o judeu pobre que trabalha para viver (...) Ironizam o negro, igno-
rante da sua contribuição formidável para a formação da raça, não
reparando na pigmentação da própria pele. Estimulam as questões
regionais, aceitam-se nos grandes e criminosos núcleos coloniais (...)
Procuram dissolver o exército criando os bandos armados de choque.
E se dizem brasileiros querendo a grandeza do Brasil.47

Parece-nos, pelo exposto acima, que a unidade da pátria,48


almejada pelos comunistas, não passa pela soma das partes, mas
pela anulação das partes, realizada na igualdade e avalizada
ideologicamente pelas suas pretensões de justiça e de fraterni-
dade, na liberdade.
Assim, sua pátria é a pátria do trabalhador e não a pátria
repartida entre os opressores. A divisão do corpo geográfico do
país é exorcizada pela utopia igualitária, a mesma que envolve
o país, através da ANL, “desde a lendária Amazônia às terras
valorosas dos Pampas”.49 E, dessa forma, vemos a ideologia
revolucionária do comunismo se ordenando em torno de outra

168
de suas “representações-chave”: “a de um povo que encontra
sua unidade na igualdade e sua identidade na nação” (Lefort,
1985, p. 53).
A consciência da pátria una e coesa exige, como vimos, o
sentimento de pertencimento à grande pátria e de integração a
essa vastidão geográfica. Disso se encarregará Getúlio Vargas ao
se dirigir ao povo brasileiro, nomeando-o pela região habitada,
integrando-o, porque lhe convém, em classes, profissões, cidades,
e trazendo-o para dentro da coletividade nacional:

Desde os que vivem a vida das nossas modernas e industriosas ci-


dades, a começar pelas que integram o generoso e bravo povo carioca,
(...) até os que compõem esse admirável povo dos nossos sertões e do
nosso imenso litoral, tenaz e heroico no duro esforço com que trabalha
para conquistar o próprio pão e prover o bem-estar coletivo de todos
nós, brasileiros de todas as classes, de todas as profissões e de todas
as cidades, deveis levantar a vossa alma, pelo amor do Brasil (...).50

Nessa sua tarefa de fazer com que todos os brasileiros co-


mungassem do “sentimento de brasilidade” e compartilhassem
do alívio e da segurança de pertencer a um grupo, no caso, ao
grupo nacional, Vargas vai utilizar-se do rádio. Foi esse instru-
mento, amplamente utilizado pelo Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), durante o Estado Novo, que permitiu “uma
encenação de caráter simbólico e envolvente, estratagemas de
ilusão participativa e de criação de um imaginário homogêneo
de comunidade nacional” (Lenharo, 1985, p. 47). Essa encena-
ção, que se torna uma das principais estratégias do poder no
Estado Novo, já é acionada antes do golpe de 1937, como se
pode notar através da fala do presidente à nação, no primeiro
dia do ano de 1937:

Nestas palavras, que o milagre da ciência [rádio] me permite di-


rigir simultaneamente a cada um de vós em particular, e a todos em

169
geral — brasileiros das férteis plagas do sul, valorosos patrícios dos
longínquos rincões do norte, concidadãos do mundo em marcha que
é o Brasil central51 — nestas palavras quero traduzir, de coração, (...)
o desejo ardente de reavivar também no vosso espírito, com a chama
dos sagrados entusiasmos, a força da fé nos destinos da pátria, cada
vez mais digna do nosso amor, cada vez mais nobre, mais bela e feliz.52

Assim “pelo rádio, o poder vasculha a intimidade de cada um,


atomiza a condição política de cada cidadão para condensá-lo
simbolicamente no coletivo da Nação” (Lenharo, 1985, p. 49). E
também pelo rádio, Vargas, numa ação próxima da mobilização
política contrarrevolucionária, transforma a ocasião da festivi-
dade do Ano Novo em afirmação de unidade e devotamento à
pátria.
Contudo, essa “condensação simbólica” não pode prescindir
do fortalecimento dos vínculos da unidade nacional. Para isso o
poder trabalhou “proficuamente”, segundo palavras do próprio
Vargas,53 no sentido de disseminar a cultura cívica e promover o
“aperfeiçoamento de nossos melhores valores” por entender que
era preciso dar bases sólidas ao sentimento nacional.
Aqui, chegamos à ideia de pátria-moral, onde o amor à pátria
e aos seus símbolos e valores são direcionados de forma a fornecer
uma identidade aos membros da nação. Estimula-se o amor à pá-
tria, mas não a uma pátria dividida pelas dissensões partidárias,
minada pelos “cupins bolchevistas”, devorada pelas rivalidades
regionais, desnacionalizada pela infiltração estrangeira e pelas
ideias internacionalistas. Mas a uma pátria — una, forte, pelo
culto das suas tradições, de seus heróis, de sua língua, de sua
religião, de seus valores e costumes. Uma pátria-una portanto é
uma totalidade composta por “solo e povo, costume e institui-
ções”, o que, no dizer do contra-almirante Álvaro de Vasconcelos,
“fundamenta o nobre orgulho de sermos brasileiros”.54
A ideia-imagem de pátria/moral será um dos pilares sobre os
quais se assentará o imaginário político em torno da segunda

170
metade da década de 1930. E ele se escuda, por sua vez, em
um tripé do qual fazem parte a construção de um sentimento
de nacionalidade, a defesa do passado e da tradição e a preser-
vação de valores morais. E, por se considerarem responsáveis
pelos destinos da nacionalidade, os governantes vão assumir
essa tarefa tripla e se empenhar para estimular um fervor moral
e cívico na população a fim de “conservar bem aceso o lume do
amor à pátria” e “avivar na alma do povo o sentido heroico do
amor ao seu país”.55
A construção de um sentimento de nacionalidade é fruto de
iniciativas governamentais desde o início de 1936, as quais são
incrementadas no segundo semestre de 1937, 56 particularmente
em seu final, após o golpe de novembro, numa clara indicação
dos objetivos ideológicos e estratégicos dos seus protagonistas.
Essas iniciativas são empreendidas através de demonstrações
patrióticas, paradas militares, sessões cívicas, desfiles escolares,
de clubes recreativos e de escoteiros e até mesmo exibições de
cantos orfeônicos, como a realizada por “trinta mil crianças”,
segundo a imprensa, regidas por Villa-Lobos, na comemoração
do Dia da Pátria, em 1937, na capital federal.57
A promoção de um “espírito cívico” no país faz parte da
estratégia de Vargas, sendo deste a decisão de transformar as
comemorações patrióticas do 7 de setembro e do 15 de novembro
em datas de ampla repercussão nacional.
Não esqueçamos que um dos objetivos de Vargas é deter a
penetração e a pregação comunista, a respeito da qual se diz
ser contra a pátria, as instituições, a família etc. A iniciativa de
Vargas é comentada assim pelo escritor mineiro Oscar Mendes:

Um dos meios postos em prática pelo governo para provocar o


sentimento cívico do povo, fortalecendo-o contra a pregação interna-
cionalista dos partidários de Stalin, foi o das comemorações festivas
das grandes datas nacionais. (...) Esse redespertar do sentimento cívico
é o lado positivo da campanha da repressão ao comunismo.58

171
E a nova Carta Política de 1937 institui o culto da bandeira
nacional.59 Segundo Benedicto Valladares, “o culto dos símbo-
los unos e indivisíveis quis fortalecer ainda mais a unidade da
Pátria”.60 Dessa forma, o civismo torna-se objeto de minuciosa
atenção do governo, uma vez que “espírito cívico” é “espírito
nacional”.
É esse espírito cívico que vai dotar a pátria de uma unidade
moral que, por sua vez, só pode ser garantida por uma ideologia
totalitária. Por assim ser é que é necessário o culto a um sím-
bolo que representa a unidade da pátria, enquanto solo e povo,
costumes e instituições. Esse símbolo é a bandeira nacional.
Ela é venerada enquanto representante da pátria una, grande e
soberana; como se evocasse, numa só imagem, toda a história
da nação; como se perpetuasse a nossa continuidade territorial.
Dela se diz que:

Há qualquer coisa de místico e de sentimental na evocação da Ban-


deira em cujo retângulo se espelha, nítida e grandiosa, a perspectiva
colorida da terra em que nascemos e à qual por isso mesmo ficamos
eternamente ligados pelos laços de indestrutível amor e emoção. O
Brasil, esse imenso conjunto geográfico de vales, montanhas, rios,
planícies, tem o seu símbolo que é o Pavilhão Nacional, e é através
dele que se perpetuam os nossos sentimentos patrióticos, manifestados
de maneira diferente e variada, mas que, no fundo, nos exalta ante os
olhos do mundo.61

Verificamos que a ideia da bandeira como um símbolo do


corpo geográfico da nação e símbolo sentimental é recorrente em
outras falas do período e assinala que a referida unidade moral
é também entendida enquanto unidade sentimental:

E a Bandeira Nacional outra coisa não representa senão o nosso


imenso patrimônio geográfico num símbolo sentimental que revigora
a nossa fé patriótica. Diante do Pavilhão Nacional estamos no altar

172
da Pátria, estamos frente ao que temos de mais sagrado para os nossos
sentimentos cívicos e é como se estivéssemos nos domínios das verdades
eternas, diante da imagem do próprio Deus.62

Com esse pensamento sintoniza-se Benedicto Valladares ao


afirmar após solenidade de hasteamento da bandeira:

(...) na Bandeira estão representadas as forças espirituais que alen-


tam o nosso trabalho em benefício da nacionalidade e estão também
delineados os traços do espírito e do coração de todos os brasileiros.
(...) A nossa Bandeira simboliza a nacionalidade e todos os Estados,
que se desenvolveram dentro do espírito de unidade pátria hão de
prosperar debaixo de sua sombra protetora. (...) Os homens passam e
a Pátria permanece. Somente poderemos abrangê-la com os olhos da
alma, da saudade ou da admiração, e senti-la diante de nossos olhos,
na contemplação comovida de nossa bandeira, que a inteligência
criadora discerniu e compõe. E ela é una e indivisível. Panejando por
todo o território, sem contraste e sem competição, acima de todos os
símbolos, porque concretiza e substitui a todos, ela une os corações e
eleva os espíritos.63

Do que foi possível avaliar dos discursos acima, podemos


depreender que esse culto cívico, que dizem exprimir sentimentos
fraternos, é direcionado por forças da dominação, no sentido
de forjar um sentimento de subserviência à autoridade e que se
esconde atrás da veneração ao símbolo. A ideia de se utilizar
de símbolos e mitos tradicionais para regenerar a displicência
cívica, aumentar a disposição psíquica para a prática do civismo
e reforçar as atitudes de obediência, coragem, sacrifício e nacio-
nalismo, nos parece importante lembrar — e aqui mais uma vez
nos reportamos a Mayer (1977) — é característica da pregação
contrarrevolucionária. Por outro lado, cumpre a finalidade es-
tratégica de fazer crer que nesse culto se confundem grandes e
pequenos, poderosos e humildes, irmanados no sentimento de

173
fraternidade, porque a bandeira a todos acolhe, abriga todos os
brasileiros, dos “rincões mais remotos” à metrópole mais movi-
mentada. Ela é símbolo de união e o seu culto poderosamente
reclama o envolvimento de todos pelo coração, pela inteligência,
pelo esforço e pelo sacrifício para fortalecimento do país.
Quanto à insistência na definição da bandeira como símbolo
sentimental, o que introduz o tema da unidade moral/sentimen-
tal, percebemos a insinuação de um discurso caro ao ideário
autoritário e conservador: o do caráter nacional.64 Esse discurso,
que outorga atributos ao homem brasileiro, sustenta-se num
arcabouço explicativo da realidade brasileira que privilegia o
fator “espiritual” através da recusa de categorias historicamente
determinadas. É ele o responsável pelas definições de “espírito
de nação”, “espírito cívico”, “espírito do brasileiro”, “alma da
nação”, “índole brasileira”, “fé patriótica”, “forças espirituais
do brasileiro”, as quais ocultam “as determinações concretas da
totalidade social: os antagonismos se reconciliam na caracteri-
zação psicologizante do homem brasileiro” (Vasconcelos, 1979,
p. 62-63). O discurso do caráter nacional, que possui afinidades
com a ideologia fascista da alma, detém um forte componente
totalitário ao se definir pela “supremacia irreflexiva do nacional”,
a qual destrói o conceito de autonomia individual. Isto facilita
as justificativas de um Estado forte e se adequa ao totalitário
narcisismo coletivo. Uma consequência importante do discurso
do caráter nacional é que ele “dita, de modo autoritário, a única
via pela qual seria possível captar a realidade social do país: a
via da emoção ou da intuição” (Vasconcelos, 1979, p. 64).
Esse é o ponto que está por trás da propalada “unidade senti-
mental” e do “sentimento nacional” ou de “nacionalidade” que
vão ter suas formulações mais acabadas, sem dúvida, na doutrina
integralista que vai sustentar a pregação da “revolução espiritual”
de Plínio Salgado. Aliás, na sua obra Geografia Sentimental,65
Plínio Salgado outra coisa não faz do que delinear os contornos
figurativos da “alma do Brasil”.66 Com essa doutrina, a nosso
ver, outros discursos do período mantiveram enorme afinidade

174
e se encontram numa perfeita convergência.67 Uma exemplar
ilustração desse ponto encontramos num discurso do advogado
mineiro Magalhães Drummond, na condição de paraninfo dos
bacharéis em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais,
em 1937. Nessa solenidade quem aparece como um dos forman-
dos é o então deputado Paulo Pinheiro Chagas:

Reunir, pela cultura e pelo afeto, o Brasil para que, forte na sua
unidade espiritual, possa ele colaborar na recristianização do direito
(...) Reunir, restituir a coesão a elementos que se dissociam, restaurar a
unidade onde a fragmentação se prenuncia, recompor o paralelograma
de forças que desarticuladas se anulam, na dispersão e na indisciplina.
(...) No Império (...) Rio de Janeiro, Recife, São Paulo, a Cidade de
Salvador, a nossa gloriosa Ouro Preto foram outras “universidades bra-
sileiras naturais” — e isso — não só como focos de luz espiritual, mas
principalmente — muito principalmente — como sítios de convivência de
moços, vindos de todas as partes do Brasil, e que, nesses encantadores e
sugestivos cenários históricos, assim aprendiam a conhecer a identidade
espiritual dos brasileiros e a igualdade e a constância da sua bondade.
Dentro de cada uma dessas Cidades — outrora teatro de tanta bravura
e de tanto sofrimento — os regionalismos, com seus preconceitos e
prevenções, desapareciam, incapazes de suportar o contraste do forte
sentimento da Pátria comum haurido da atmosfera espiritual desses
verdadeiros viveiros de brasilidade.
Tenha-se presente que os jovens brasileiros assim cultural e afetiva-
mente formados teriam de ser necessariamente os dirigentes do Brasil,
e ver-se-á logo como havia de refletir no fortalecimento da unidade
nacional a ação daquelas nossas excelentes “universidades brasileiras”.
(...) Com a República e a descentralização federativa, os Estados bem
depressa se emanciparam daquelas nossas metrópoles culturais — mas
com evidente e gravíssimo prejuízo para a nossa unidade: afrouxavam-
-se assim e se desatavam mesmo laços espirituais tão necessários à
existência do Brasil. Hoje, o brasileiro, fora do seu Estado, quase não
conhece, quase “não sente” o Brasil na heterogeneidade das suas etnias,

175
nos antagonismos dos interesses econômicos regionais, na crescente
diferenciação localista. (...) Sob as diversíssimas influências da variada
ambiência física brasileira, parece não se poderá formar o tipo físico
racial uniforme e constante. A pureza vernacular — comprometida
desde o início pelas impuridades africana e aborígine, dia a dia, se
macula com a assimilação de novos elementos e formas importadas.
Sublimação do Cristianismo, a virtude da tolerância cada dia se faz mais
capaz de conciliar homens que creem diversamente, antagonicamente
mesmo. A unidade econômica, precisamente porque econômica e não
espiritual, é, de si mesma, precária, instável, ilusória.
Assim só nos restará a possibilidade de unidade cultural-afetiva.
Aliás, ficando-nos só esta, fica-nos tudo. Porque bem talvez nela
esteja o único verdadeiro fator de unidade política (...) cultural, para
conhecimento mais verdadeiro do Brasil e dos seus problemas; afetiva
para que no afeto do brasileiro pelo brasileiro se firme, se aprimore,
se exalte o amor pelo Brasil, que exija, imponha, force — e só acerte
— soluções brasileiras sempre que interesses regionais ponham em
xeque interesses nacionais.68

A apreensão do real aparece aqui deslocada do plano da di-


nâmica histórico-social para o plano do sentimento. E toda essa
ênfase da unidade posta no sentimento, enfim, no plano emocional,
é insuficiente para disfarçar a adesão a um nacionalismo de tipo
fascista, a sedução pela solução de um Estado forte, o sonho de uma
pureza racial, a fé no papel das elites e na peculiaridade brasileira, o
desconforto com a diversidade de interesses, a oposição de classes,
a pluralidade de pensamento.69
Diante de tal quadro, não nos causa estranheza encontrar,
dentro desse movimento de construção de um sentimento de na-
cionalidade, uma convocação feita na imprensa à comemoração
do Dia da Bandeira, da qual se diz:

(...) empolgante “Parada da Juventude”, que nos moldes das que se


verificam nos grandes centros civilizados do mundo, será uma brilhante

176
demonstração da raça. Todos os educandários e clubes esportivos da
capital farão no “Dia da Bandeira” um deslumbrante desfile em que a
mocidade estará representada pelo que possui de mais selecionado.70

E, para completar, em outro ponto, se diz que a essa solenidade


“não faltará o patriótico concurso do povo”.
Essa manifestação sugere apenas o começo do que se vai de-
finir, a partir do fim da década de 1930, como tão bem mostra
Lenharo (1985), como uma política sistemática de aprimoramen-
to físico, a ser empreendida pelo Estado, com nítida inspiração
fascista, e com vistas à moralização do corpo, à eugenia da raça, à
disciplina do trabalhador e que o autor designa apropriadamente
de “militarização do corpo”. Aqui, vale a pena registrar a impres-
são acerca do escotismo, enquanto uma das práticas inseridas
nessa política, manifestada pelo deputado Daniel de Carvalho,
ligado às hostes governantes na década de 1930 e 1940:

Estudei o sistema desde as origens e matutei sobre as ideias do ge-


neral Baden Powell. (...) Persuadi-me que seria muito útil à sociedade
brasileira o sistema de educação por ele instituído. Desenvolve o físico,
com a vida ao ar livre e os exercícios, fortalece a moral, com a prática
da fidelidade à palavra, cumprimento de dever e companheirismo.
As noções de honra, de patriotismo, de família e Deus estão sempre
presentes, robustecendo o caráter e os valores espirituais.71

Os comunistas participam, a seu modo, da construção de um


sentimento de nacionalidade. Embora não se mobilizem no senti-
do da valorização do símbolo da bandeira nacional, também eles
apelam ao civismo e não se manifestam contrários a que a ANL
tenha um hino e uma bandeira. Em que constitui esse civismo? Em
lutar pela libertação do país do jugo imperialista e da “plutocracia
nacional”. Assim é que Prestes é a “encarnação perfeita de civismo”,
porque orienta as vanguardas da libertação nacional. E o povo “irá,
mais uma vez, dar uma prova de civismo, prestando o seu valioso

177
concurso moral à máxima difusão das ideias libertadoras”.72 A
difusão de um sentimento de amor à pátria é indissociável da
necessidade de libertação democrática e de emancipação nacio-
nal e isso pode ser acompanhado num artigo de Rubem Braga
ao defender a ANL dos ataques de um padre da Ação Católica,
simpatizante dos integralistas:

Nasci aqui, minha gente é daqui e todas as raízes do meu sentimen-


to estão enterradas aqui. Em toda a parte onde vou, só vejo o povo
trabalhando e sofrendo, só vejo o povo explorado, o povo negado, o
povo enganado (...) Isto é miserável, padre! A Pátria está aí mas ela está
nas mãos dos outros (...) A Pátria dos trabalhadores, a Pátria de todo
aquele que se mata, dos que vivem na miséria e morrem, essa Pátria,
reverendo, é a que precisamos defender (...) e ela é diariamente negada
(...) A Pátria que eu amo, reverendo, é a Pátria de João da Silva, é a
Pátria de Severino de tal, é a Pátria dos anônimos, é a dos soldados
que não são lacaios, é a Pátria dos proletários, dos camponeses, dos
que sofrem, é a Pátria de todos os trabalhadores de qualquer raça que
trabalham no Brasil (...) a Pátria dos milhões de criaturas exploradas,
a Pátria de Luiz Carlos Prestes.73

A adesão à ANL e a Prestes, enquanto bastiões da libertação


e da salvação nacional, é, assim, a condição da expressão cívica
para os comunistas.
E Prestes mantém intacta a mística do caráter nacional
brasileiro ao se dirigir em nome desse civismo salvacionista
à juventude brasileira, a qual, segundo ele, reage “instintiva-
mente” contra as agressões à justiça, à liberdade, à exploração
da pátria e dos brasileiros. Porque a juventude é possuidora
de uma tradição de luta, de um “espírito de sacrifício”, de um
“espírito de bravura”, de um “ardor patriótico”. São, ainda,
traços de seu caráter a “generosidade” e o “entusiasmo”.74 E
é a Aliança a responsável, segundo os aliancistas Cascardo,
Sisson, Soares Cabello, Francisco Mangabeira e outros, pelo
“invencível despertar da consciência nacional”.75

178
Se o Dia da Bandeira é transformado pelos governantes em
uma data-chave para a promoção do sentimento nacional, o
mesmo ocorrerá com o “Dia da Pátria”, o 7 de setembro, e o 15
de novembro, data da Proclamação da República. Não esqueça-
mos que, atrás da formação do chamado sentimento nacional,
uma estratégia se oculta, particularmente no que diz respeito ao
“Dia da Pátria”: a de direcionar o desejo gerado na esfera social
em direção à devoção amorosa à pátria. E esse amor é oriundo
de realidades várias, mas expresso num sentimento homogêneo
e unificante, tal como é descrito em editorial do boletim do
Ministério do Trabalho:

Fosse na disciplina da tropa, garbo da juventude escolar, harmonia


do canto orfeônico, brilho e pompa das festividades, fosse no recesso
dos lares, doçura dos campos, dinamismo das usinas e distância dos
rincões, um só sentimento a todos congregou no fervor da celebração
do “Dia da Pátria”: — o amor ao Brasil.76

E será dentro dessas comemorações que vamos encontrar


outro importante sustentáculo da ideia de pátria/moral: a defesa
do passado e da tradição. Não é, porém, qualquer passado que
se quer valorizar. Pretende-se enaltecer somente aquele que possa
ser reconstruído não só no sentido de exaltar a cultura e os valores
nacionais, mas, sobretudo, que se preste a um reforço da ideia de
pátria autônoma e una que se aspira afirmar numa fé patriótica
e nacionalista. As comemorações realizadas em torno do 7 de se-
tembro intentam entrelaçar o passado e o presente na medida em
que são encaradas, por um lado, como a expressão do índice “das
forças vivas da nacionalidade empenhadas em zelar pela grandeza
que o passado lhe transmitiu”,77 e, por outro, como quer Vargas,
“como uma homenagem de reconhecido respeito aos construto-
res da nacionalidade”.78 Assim, o que se atesta é o objetivo de
que o passado seja o fiador do presente, e o presente, o guardião
do passado, numa típica operação de controle da memória e da
reafirmação dos argumentos da memória instituída. O resultado

179
desse controle da memória e da recordação é o culto oficial dos
heróis nacionais e das tradições históricas. E Getúlio Vargas,
discursando em 1937, no Dia da Pátria, o afirma sem disfarces:

Nesta hora histórica, ao reverenciarmos a memória dos grandes


vultos e dos heróis anônimos da Pátria, que por ela lutaram com o
cérebro e o braço, o verbo e a espada, o livro e o arado, alargando-lhe
as fronteiras e consolidando-lhes as instituições, em ambiente assim
aquecido de entusiasmo, sinto convosco a vibração das altas e nobres
emoções.
Falo aos meus concidadãos de todos os quadrantes pátrios — à
mocidade cheia de generosas ambições, aos homens de experiência
amadurecida, afeitos ao trabalho e à luta pela existência — falo a
todos aqueles que compartilham do nosso destino e, nos campos,
nas fábricas, nos laboratórios e gabinetes de estudo, concorrem para
engrandecer a nossa civilização. (...) Evoquemos o Brasil de ontem,
ao incorporar-se, ainda sobrecarregado dos compromissos coloniais,
à sociedade das nações livres, (...) meditemos no milagre de esforço
e tenacidade, de abnegação e heroísmo que os antepassados realiza-
ram para entregar-nos, intacto e enobrecido, tão vasto patrimônio de
riquezas materiais e morais.79

Aqui, é a categoria de “destino compartilhado” que liga todos


os brasileiros à pátria-una e garante na história o lugar de cada
um. Na exaltação dos atributos dos homens do passado, aparece
a revelação das expectativas quanto aos homens do presente e
a pretensão explícita de conservar intacto o que foi construído
no tempo.
A preservação de nosso passado histórico é afirmada como o
elemento culminante e decisivo da existência da nacionalidade,
superior mesmo à identidade das origens étnicas, à conservação
da mesma língua, à unidade geográfica. É através dela que se
pretende realçar a unidade espiritual do povo brasileiro. E, no
sentido de datar de visibilidade essa “comunhão espiritual” e

180
de reforçar a consciência única da nação, é que são relembra-
dos os esforços daqueles que realizaram a primeira conquista
da costa e as incursões no interior; a fundação “com rios de
sangue e de lágrima” das primeiras cidades; a bravura heroica
dos bandeirantes “galgando serra e montanha, atravessando
rios e vales, abrindo estradas e povoando o sertão”; o sangue
derramado na defesa da integridade do solo contra as invasões
holandesas e francesas; os ideais que inspiraram o 13 de maio e
o 15 de novembro e a luta do Exército pela unidade territorial.
Em função de a consciência nacional ser considerada dependente
da veneração do passado, o ensino da História se torna objeto
de preocupação. Dele se diz: “O ensino da História nos cursos
primários e secundários de modo geral não insiste sobre os fatos
mais brilhantes dos anais da nacionalidade, encaminhados no
sentido de despertar na juventude um ardoroso amor à coisa
pública.”80 Lamenta-se o descaso com a tradição, que

começa na ignorância em que vive o nosso povo a respeito de sua


história e de seus grandes homens. O ensino da história do Brasil é dos
mais precários no currículo escolar. Os meninos decoram muitas vezes
as datas dos feriados, mas outros tantos desconhecem o significado
dessas datas festivas. Nos ginásios, o ensino de nossa história não
merece louvores. Pelos programas atuais o ensino dessa matéria é feito
englobadamente com o da história universal no fim dos programas (...).
Acresce que os compêndios não ajudam também. A nossa história tem
vários pontos controversos. (...) E certos figurões são indevidamente
endeusados, enquanto heróis e patriotas autênticos são madrastamente
relegados para a obscuridade. Como querem os nossos políticos desper-
tar a consciência cívica da Nação quando o povo ignora a sua história,
as suas tradições, as suas características de povo diferente dos outros?
O culto das tradições históricas da nossa gente deve ser a preocupação
máxima de todos os governos.81

Assistimos aqui à emergência de um discurso do saber his-


tórico enquanto um dispositivo de poder, tal como nos indica

181
Foucault (1982). Esse saber histórico torna-se poder e se distancia
da genealogia ao reforçar a busca da origem e da identidade e a
manter as “solenidades da origem”. Por isso, pelo conhecimen-
to dos grandes fatos e dos grandes vultos da história do Brasil,
acredita-se possível a apreensão do caráter especial da formação
brasileira e a persuasão dos brasileiros de que o seu verdadeiro
destino é ser presidido sempre pela ordem política nascida de sua
evolução histórica, radicada em sua tradição. Os marcos políticos
e institucionais do ordenamento social da nação, portanto, já
foram criados no passado e como tal devem permanecer.
Na intenção de reforçar essa tradição, o governo federal, já em
1936, decide repatriar os restos mortais dos inconfidentes minei-
ros falecidos na África.82 E a Inconfidência Mineira é relembrada
no sentido de reafirmar um compromisso com os antepassados e
o patrimônio histórico brasileiro, no que representam de reserva
moral contrária, por um lado, às ideias de supressão da liberda-
de, agitadas, de acordo com José Maria Alkmim — discursando
na ocasião do repatriamento — “nesta hora da vida nacional”.
E, por outro, contra a “implantação de regimes contrários à
índole do Brasil, isto é, contrários àquele mesmo sentimento de
liberdade”.83 Segundo Alkmim, então secretário do interior de
Benedicto Valladares:

A medida dos sacrifícios que a vitória desse sentimento exigiu está


nas cinzas que hoje recolhemos com legítimo orgulho, profundamente
convencidos da extensão do compromisso que assumimos para com
elas, de velar pelas severas ideias que empolgaram os que nelas agora
se resumem. Mais do que pelas páginas escritas pelo seu heroísmo e
mais que o apreço da palavra que a ela dispensamos, vale a convicção
irremovível de estarmos conservando intacto o patrimônio que nos
transmitiram as gerações anteriores.84

A repatriação dos despojos é capitaneada politicamente no


sentido não apenas de um controle da memória e da recorda-
ção, mas, sobretudo, da apropriação da ideia (que é usual, por

182
exemplo, nos discursos de Vargas) de que, na formação política
brasileira, o sentimento de liberdade é uma constante e não deve
ser desfigurado por ideologias exaltadas, por sedição e subleva-
ções. A associação desse sentimento de liberdade à ordem é o
que garante no presente a continuidade do que foi considerado
fundante.
Por terem lutado por “esse regime de liberdade” ou por ele
terem padecido é que são glorificados os vultos de Tiradentes,
Felipe dos Santos, Frei Caneca, José Bonifácio, princesa Isabel.
O “ideal de liberdade” é, assim, incorporado ao patrimônio
histórico do país.
Nessa direção, os inconfidentes são exaltados não como
sediciosos, ambiciosos, mas como uma elite de pensadores, sem
interesses materiais, que se sacrificaram pela coletividade em
nome do ideal da Independência. Aqui, o poder refaz a percep-
ção da história. E Tiradentes, reverenciado como o seu líder, é,
naturalmente, comparado a Prestes:

Vivemos na época das inconfidências, das conjurações. Mas que


distância, entre o conjurado de hoje e aquele heroico revolucionário que
chamou a si a responsabilidade de toda a grande aventura de libertação
que foi a Inconfidência Mineira. Comparem Luiz Carlos Prestes diante
da justiça, abatido como quem foi logrado numa ambição pessoal, sem
nada que denotasse o amor ao sacrifício, o desprendimento em face do
martírio, covarde e sibilino, com o Tiradentes altivo, firme, caminhando
para o suplício, para a aniquilação, inocente e puro.85

Também os comunistas defendem o passado e a tradição.


Embora a sua defesa caminhe dentro dos marcos consagrados
na memória oficial, que eles pretendem que seja reatualizada, é
visível sua intenção de instaurar uma temporalidade definidora
da história das lutas populares. A defesa da tradição de “liber-
dade” é resgatada por eles no sentido de reafirmar o protesto, a
oposição, a revolta, a força da multidão, a presença do povo nas
ruas. Assim, o 13 de maio é indicador “do caminho da grande

183
abolição. A verdadeira salvação nacional”.86 No caso do Exér-
cito, as tradições a serem recuperadas remontam a Tiradentes,
enquanto alferes, a Benjamin Constant, a Marechal Floriano, a
Prestes, a Siqueira Campos, a Joaquim Távora, que, em nome do
povo, romperam com os princípios da obediência hierárquica.
Em vista dessa tradição, o bureau político do comitê central
do PCB afirma em 1937 que o “glorioso Exército nacional (...)
não se submeterá jamais a servir de verdugo de seu povo”.87
Dentro dessa linha ocorre a transformação do fato — a revolta
tenentista de 5 de julho — em marco:

O 5 de julho é uma data gloriosa para a nacionalidade brasileira


porque nela se comemora o heroísmo dos 18 do Forte de Copacabana
e a marcha homérica da coluna Prestes, através do coração do Brasil.
Esses dois acontecimentos históricos foram levantados em nome da
liberdade e com sangue inscritos nas páginas da História Pátria.88

Aqui, os derrotados lutam por um domínio do tempo e da


memória que preserve os seus valores para a sua pátria moral.
O sacrifício e o heroísmo são valores que assinalam uma indis-
solúvel ligação amorosa com a pátria, vetores de uma conduta
exemplar, a qual pressupõe a preservação de valores morais. E a
moralidade é mais um poderoso elemento do tripé que sustenta
a ideia-imagem da pátria/moral.
Do que pudemos acompanhar até aqui, não é possível dizer
que princípios e valores de ordem moral estivessem ausentes dos
discursos políticos citados. À direita e à esquerda, as várias
postulações e posições analisadas sugerem, ainda, que, algumas
vezes de forma sutil, princípios de conduta coletiva se fazem
presentes através da insistência na integridade moral, revelada
na distinção entre bons e maus; na condenação à mentira, à
desobediência, à traição, ao egoísmo e à paixão; na condenação
à falta de civismo; na sobreposição do interesse coletivo sobre
o particular; e do ideal contra o interesse. Tudo isso agora nos
surge em nome do espírito cívico e da felicidade social. Pelos

184
anseios, tendências e imperativos da coletividade é que devem
ser cultivadas certas virtudes cívicas, tais como:

(...) moderação, que é a saúde da alma e do corpo e a mais própria


virtude para manter a harmonia entre os homens; a tolerância, sem
condescender com os conspiradores contra a República; a energia,
oportuna para reprimir excessos; a prudência; o horror à violência,
que faz desaparecerem os partidos e afundar o prestígio da autoridade
pública.89

Contudo, é preciso ir além, se o que se pretende é uma pátria/


moral. E aí é que entra em cena o objetivo de uniformização das
condutas sociais através da moralidade sexual; da interdição
da paixão e do prazer; da defesa dos padrões familiares e dos
costumes e do princípio da punição; do controle da verdade; da
apologia da virtude.
É com vistas à homogeneidade do social que o moralismo é
integrado às mensagens políticas autoritárias como um dos seus
elementos primordiais. Ao discurso da moral é delegada a tarefa
de edificar um referencial de normas e interdições para garantir a
manutenção da coesão social e a sua integridade dentro da totali-
dade pátria. Esse referencial vai tomar a família como seu suporte
fundamental. E como a família é pátria e a pátria é família, essa
moralidade é um liame a mais a impedir a possibilidade de uma
vida verdadeiramente autônoma dos sujeitos sociais, a qual só é
possível com a separação da mãe, encarada, como afirma Octavio
Paz (1984), ao refletir sobre a figuração da mulher na história
mexicana, como “um ato fatal e necessário” que “se inicia como
ruptura com a família e o passado” (p. 82). Sem ele, a liberdade
é mais uma vez adiada.
Ilustrativo da moralidade familiar, como referência para o
social, é o seguinte texto:

Afigura-se então diante de mim (...) o fantasma daquela mãe bondosa


de que nos fala a experiência de cada dia, que cobre com mão sacrílega
e disfarça com um sorriso de benevolência os crimes e desvarios do filho

185
que às tantas da madrugada volta do cabaré da desgraça, onde estragou
juntamente com o ouro a mocidade e assim, de crime em crime, foi cair
do certo, no abismo da depravação, até que um dia veio depositar nas
mãos da mãe que ao seu encontro veio a fim de lhe abrir a porta, os jatos
quentes de um sangue arruinado pelo gérmen da sífilis. Está tuberculoso.
Foi dessa sorte o “deixar fazer, deixar passar” da mãe maldita e liberal,
que acarretou para o filho a desgraça e angústia de uma morte prematura.
O que sucede na vida particular dos indivíduos sucede igualmente
na vida em comum dos povos. O que faz a ruína na vida das famílias
fará igualmente na vida das sociedades. Porque os princípios gerais que
regem umas e outras são os mesmos e por consequência não pode haver
variação na fatalidade de suas consequências.
O Estado liberal indiferente a tudo criou desta sorte, com sua neutrali-
dade oficial e com uma displicência desmascarada, um tal estado de coisas,
em que se viu a equiparação da verdade ao erro; da virtude ao vício; da
moralidade à imoralidade; do bom ao mal, do justo ao injusto (...). Pode-se
concluir com todo o rigor da boa lógica que foi o laisser-faire, laisser-passer
do liberalismo (...) que cavou e está cavando a ruína, a desordem, a
anarquia, tanto na vida privada dos nossos lares, como na vida pública
das nossas sociedades.90

Aqui, estão privilegiados todos os pontos de sustentação do


discurso da moralidade, revelados dentro de uma crítica ao li-
beralismo expressa numa metáfora familiar. Não só se reafirma
a condição da família enquanto suporte para a edificação das
normas e interdições morais, como exorta-se a ela que assuma o
seu papel de autoridade firme e disciplinadora. E a mãe, esteio,
de acordo com o pensamento reichiano, da família autoritária,
surge aqui reforçada na sua posição autoritária. Se se furtar à
autoridade, sendo benevolente, ela é sacrílega; portanto, dela
se espera sobretudo o controle, com mão firme, da sexualida-
de dos filhos. Nesse ponto, é importante acrescentar que é do
papel dessexualizador que o discurso moral autoritário atribui
à mãe que advém sua autoridade maior. A sua figuração como

186
procriadora e não como ser sexual, a sua idealização e o culto à
maternidade é que a transformam num ser assexuado. Assim, na
ideologia autoritária “o ato sexual por prazer desonra a mulher
e a mãe” (Reich, 1972, p. 101).
Essa teorização é apoiada e justificada teologicamente pela
Igreja, ao colocar a posição da mulher no seio da sociedade pagã
como tendo sido de degradação e objeto de luxo, diferentemente
do que ocorreu no cristianismo que “dignificou a mulher, na
ordem da graça, como virgem-mãe de um Deus-Homem; na
ordem da dignidade, com um sacramento indissolúvel, para unir
em matrimônio os esposos cristãos”.91 O vínculo matrimonial
é, dessa forma, santificado, e sem ele “a família cessa de ser
instituição divina (...) e ver-se-á degradada ao nível de uniões
precárias, joguetes de paixão sem freio”. 92
Reich (1972) já mostrava, nos seus estudos sobre o fascismo,
como a repressão sexual “constitui o elo de ligação à família
autoritária” (p. 53) e como esta auxilia a reprodução da socie-
dade autoritária. O viver livremente o sexo é desvario, é crime
e degradação cujas consequências são fatais: a contaminação do
sangue, a doença estigmatizada, a ruína, a morte prematura.
A preservação do corpo dos excessos da carne é assumida,
por exemplo, pelo discurso integralista. Neste,“o corpo é desva-
lorizado; os sentidos — a parte mais degradante do homem. A
espiritualização do corpo e do amor constitui a contrapartida do
ódio à sexualidade” (Vasconcelos, 1979, p. 29). É no sentido de
confirmação dessa afirmativa que podemos ler o trecho abaixo,
escrito por um católico integralista, em 1935, para defender o
“regime integral” como solução para a crise moral que vinha

solapando as bases de todos os governos: a escola cristã, a família


cristã e a propriedade. As duas primeiras os socialistas radicais ou
modernos e os burgueses que são os anarquistas endemônicos (que
reduzem a moral ao desfrute dos gozos terrestres) vão trabalhando em
destruir. A primeira — a escola cristã — pelo afastamento do Estado

187
ou a proibição do ensino religioso (...) A segunda — a família cristã —
pelo divórcio, pela prática que restringiu a natalidade, pelos cinemas
dissolventes, pelas leituras imorais. (...) Nessa inconsciência incoerente,
indiferente à moral, à família e à religião, levantam-se (...) contra tudo
que possa tolher-lhes a continuação da obra nefasta de materialização
que visa levantar um altar para a carne e para o gozo.93

A Igreja e a religião surgem, aqui, como importantes reforços


à família e à moralidade, elaborando um campo de referência
imaginário onde as pulsões do desejo, a tentação dos sentidos,
a sedução dos corpos, o matrimônio ilícito, os incitamentos ao
sexo são associados ao demônio, reconhecido pela malícia, pela
tentação, pelo desejo animal. E é esse imaginário que é preci-
so ser controlado para a manutenção da família moralizada.
Como? Pelo combate à corrupção da moral e dos costumes nas
formas em que ela se apresentar e onde ela se fizer presente. E
os católicos demarcam minuciosamente todas as suas formas e
locais de atuação:

Na imprensa, ela se opera por meio dos artigos em que procura


ridicularizar a virtude e a vida familiar (...) em que os autores vivem
a proclamar as excelências da imoralidade e o fino sabor artístico da
pornografia.
Na lei, pela introdução do divórcio. Na vida social, pelo nudismo
das modas impudicas, pela exibição despudorada do corpo, nas praias
e nas ruas, pelos excessos sensuais do carnaval, pelas facilidades dos
namoros chamegantes, pelo cinema imoral. Na literatura, pelo livro
fescenino, pelos contos frascários, pelas poesias voluptuosas.
São dadas como modelo às jovens as atrizes de cinema que mais
exibam a carne, que mais se mostrem mestras e sábias em todos os
segredos das excitações instintivas. Os temas mais aproveitados, quer
na literatura, quer na música, quer na arte dramática e cinematográfica,
são os amores pecaminosos, de revolta dos instintos contra a moral,
dos indivíduos contra a sociedade, do crime contra a lei, do pecado
contra a virtude.94

188
Como combater tudo isso? Eles respondem: “Com a censura
rigorosa dessa literatura de cordel, desses sambinhas descarados,
dessas nudezas em exposição, dessas peças teatrais indecentes,
dessas revistecas e jornalecas sujas e nojentas.”95
Frente a esse texto, não podemos evitar — diante do fato
de tanto rancor vir aliado a tal profusão de imagens e a tantas
minúcias descritivas do percurso da sedução — de lembrar das
considerações de Freud sobre o superego e o controle instintual
da moralidade. Aliás, é bastante forte, nos anos de 1920 e 1930,
a oposição à psicanálise e a Freud, a qual se inscreve dentro de
um moralismo sexual.96
Toda essa expressão de repulsa ao sexo, ao corpo e ao prazer
vem delimitar claramente o traçado das normas e interdições
morais e fincar balizas que, pelo referencial de moralidade,
“permitam fixar a diferença entre o social e o subsocial, da or-
dem e da desordem, do mundo e do submundo” (Lefort, 1974,
p. 30). Afinal, o discurso da moral é também um discurso sobre
o social e este precisa dissimular a divisão existente na sociedade,
a fim de identificar e dominar essa divisão, “dispor das fronteiras
para aquilo que é estranho a todo engendramento, aquém da
instituição” (Lefort, 1974, p. 30). Por ele, a família constitui
o “ambiente natural”.97 Assim, o comportamento moralmente
aceitável é o que se define pela adesão aos valores da repressão
à sexualidade, da aceitação do sexo apenas no matrimônio e
para a procriação, da indissolubilidade do vínculo matrimonial,
da união familiar, da atitude pudica, das diversões “sadias”,
da literatura e da arte que alimentem o espírito, da negação do
prazer e do gozo físico, da condenação e recalcamento da paixão
e dos apetites pessoais. Essa adesão circunscreve um lado da
fronteira. No outro lado, ficam os transgressores, os rebotalhos
da vida social, ou seja, os gozadores da vida, os divorciados e
as atrizes, escritores, teatrólogos, músicos e desenhistas, que
cultuam “o fino sabor artístico da pornografia”. Estes precisam
de um “programa sério de regeneração e de salvação”.98

189
E aqui chegamos de novo ao imaginário da doença. Foi Platão
quem primeiro associou paixão e doença:

A doença própria da alma é a demência. Mas há duas espécies de


demência: uma é a loucura, a outra é a ignorância. Segue-se que, como
resultado, todo o afeto que comporta uma ou outra dessas perturbações
deve ser chamado de doença devendo-se admitir que o prazer e a dor
excessivas são para a alma a mais grave das doenças (Platão, citado por
Lebrun, 1987, p. 32).

Daí, os depravados serem tratados como doentes que precisam


ser salvos e libertados. E as paixões serem consideradas vícios
escravizantes, precisando ser freadas ou “substituídas” por afetos
“superiores” como o do amor à pátria.
O “poder” sabe, portanto, que é preciso transformar a pátria
em objeto de desejo e tentar investi-la de uma devoção amorosa.
Por isso, a paixão torna-se alvo da estratégia política que, ao
direcionar afetos e interditar o prazer e o instinto, considerado
escravizante, amplia zonas de dominação. Afinal, o prazer e o
instinto escravizam! Por essa linha, caminha o argumento de um
pensador católico para quem o jovem comunista anulou-se “no
ideal de uma coletividade amorfa e indecisa”, fez-se produto da
animalidade ao derivar o seu pensamento “de uma causa eco-
nômica e material”. O fascista refugiou-se no Estado-Soberano
e consumiu-se “diante da única realidade: a força”. E “o jovem
que se deixou levar no plano inclinado dos instintos e das satis-
fações do corpo não fez mais que procurar outra modalidade de
escravidão, a mais terrível, a mais anuladora do homem”.99 Só
conhece a “liberdade perfeita”, segundo este autor, aquele jovem
que renuncia a si mesmo diante de Deus.
É em nome do propósito de renovação social dos costumes,
da remodelação regeneradora do caráter, da divulgação do que é
“nobre e elevado” para a sociedade e do aperfeiçoamento dos

190
hábitos coletivos, que toda essa cruzada moral se volta contra as
ideias comunistas,100 apontadas como desvio moral. O Mal, as-
sim, é expelido para a figura desse inimigo materialista, ateu que,
num passe de mágica, torna-se o propiciador da desmoralização
da família, já que defende sua extinção ao apoiar o divórcio e,
portanto, atenta contra a essência monogâmica do casamento. E
o divórcio, além da quebra do vínculo santificado do matrimônio,
é apontado como a ruína da autoridade paterna.101
O anticomunismo, assim, procura legitimar-se moralmente, e
o discurso moral, por sua vez, encontra no anticomunismo nova
fonte de reabastecimento. Ao glorificar atitudes tradicionais e
padrões de comportamento como estando sob ameaça de cor-
rupção, subversão e profanação pelos comunistas e suas ideias,
os anticomunistas estão acionando “um elemento essencial e
peculiar à fórmula contrarrevolucionária”, tal como a entende
Mayer (1977, p. 73).
Agora, resta saber como os comunistas se posicionaram frente
à moralidade. Existe algum fundamento que justifique as acu-
sações que lhes são feitas de corrupção, profanação e subversão
dos costumes, da moralidade, da família, enfim, das bases da
civilização cristã?
Como vimos até aqui, é também moralmente que os comu-
nistas se justificam. A sua proposta de revolução se define pelo
bem, pela justiça e pela liberdade igualitária entre os homens,
enquanto valores morais e universais. É pelo engrandecimento
moral que eles se autodenominam patriotas, e é em nome da
moral que também eles se insurgem contra a dissolução, o vício,
o instinto, a corrupção.
Também eles, na efervescência dos anos de 1930, vislumbram
uma crise que abala o mundo. Contudo, essa crise, na sua ótica, é
ocasionada por um profundo desequilíbrio existente nos quadros
da civilização, que “ameaça destruir violentamente a cultura
humana, com o retorno às formas mais odiosas da exploração

191
e da opressão”.102 A miséria, a exploração e a opressão é que
são dissolventes. O que se percebe aqui é que, se o discurso
da moralidade, nas suas vertentes autoritária, conservadora e
contrarrevolucionária, remonta à ameaça da civilização, forti-
ficando o cristianismo e a moral familiar e sexual, o discurso
moral dos comunistas, quando referido à civilização, fortifica
a cultura, a ciência, a liberdade, a justiça, o fim da opressão e
da exploração e a proteção à família.
É com esse pressuposto implícito que Álvaro Moreira, num
irônico artigo publicado no jornal A Manhã, rebate as acusações
dos anticomunistas, afirmando que na Europa, Estados Unidos
e Japão impera o pavor do comunismo, o qual “impedia o sono
dos governos que conservam as tradições de nosso país”.103 Os
comunistas eram bandidos fuziladores de nobres e de padres,
fanáticos sem Deus que destruíam a sagrada instituição da
família e que transformaram o povo russo em trabalhadores
esfomeados. Com a chegada de Hitler e Mussolini ao poder, o
pavor, segundo ele,

(...) ganhou um momento de calma, foi dormir, foi sonhar, porque


agora “aqueles infames iam ver”. E o sonho permaneceu enquanto
Hitler ou bania, ou prendia, ou rugia que decapitassem a machado
judeus e cristãos. Espalhou no exílio grandes cientistas, grandes escri-
tores, grandes artistas. Queimou na praça pública bibliotecas e coleções
de quadros... Enfim, os olhos se abriram (...) porque os bandidos, os
fanáticos, os infames apenas desejam, apenas querem a paz (...). A
civilização diferente, começada por eles, não admite a guerra. Eles não
pretendem desencadear a revolução universal. Então houve engano.
Não são bandidos, não são fanáticos nem infames. Desculpem.104

Ao se mostrarem defensores de valores universais, como as


artes, a ciência, a família, a liberdade de expressão, também os
comunistas sustentam que eles estão sendo corrompidos, subver-
tidos e profanados por agentes do fascismo e do imperialismo e
da camarilha getuliana.

192
Ao se contraporem a esses agentes também eles se deixam
ver como fervorosos adeptos de um moralismo autoritário que
incide na defesa de uma moral sexual e familiar. Detentores de
uma verdade moral sociopolítica, eles investem contra o que
consideram a “equiparação da verdade ao erro, da virtude ao
vício, da moralidade à imoralidade, do bem ao mal, do justo ao
injusto”, enquanto traços do caráter do “outro”.

E para o imperialismo e seus lacaios, a vida dos operários, campo-


neses, soldados e marinheiros não vale nada. Para a grande burguesia
massacrar milhares de pobres, como na Espanha, em 1934, se chama
justiça social. Roubar a terra e matar seus nativos, como faz o fascismo
na Abissínia, se chama patriotismo. O que se chama crime é confiscar
a terra dos latifundiários e das empresas imperialistas em benefício da
coletividade. O que se chama assassinato é exigir de armas na mão o
respeito aos direitos do povo, enfrentando os capangas da reação.105

Assim sendo, são os agentes do fascismo e do integralismo


que prostituem as irmãs e filhas dos pobres; são eles que não
querem a igualdade; são eles pessoas ricas, hipócritas, ganan-
ciosas e invejosas.106 A família que defendem não é a família do
proletário honesto e pobre ou a família

da pequena burguesia, do proletariado de gravata que não possui


recursos, ou os tem escassos, para educar os filhos. É a família dos
cabarets de luxo, dos cassinos onde se joga o supérfluo, cujas mulheres
desfilam seminuas pelos passeios, para que os homens as admirem.107

Nessa linha de ataque, o chefe dos integralistas, Plínio Sal-


gado, é o “solteirão impenitente, gozador da vida em Paris”, e
“o outro é o médico charlatão (...) redator de jornal de baixo
humorismo pornográfico”.108
Os qualificativos morais se sucedem. Vargas é o “miserável
salteador gaúcho, incapaz, traidor e sem nenhum sentimento de
dignidade pessoal”; Adalberto Corrêa é ladrão; Vicente Rao é

193
o “clerical italiano fascista”; a venda do Brasil aos capitalistas
estrangeiros por Vargas é intermediada pelo “invertido sexual
Macedo Pomba. Ele e a repugnante Assembleia Nacional estão
fora da lei e conspirando contra a honra, a liberdade e a exis-
tência nacionais”; a imprensa “é comprada e venal, dirigida
por insaciáveis argentários e ladrões do estofo de Geraldo
Rocha, Chateaubriand, Bittencourt, o judeu H. Morse e outros
patifes”;109 os militares integralistas Pantaleão Pessoa, Meira
Vasconcelos e Newton Braga são galinhas e ladrões, e o general
João Gama, “traidor da Pátria”, e a camisa verde dos integra-
listas é característica de “veados e ladrões”.110
Por detrás desses qualificativos, expelem-se os dejetos de um
mundo que se quer negar e deixar para trás e, simultaneamen-
te, traçam-se as zonas de interdição de um mundo que se quer
construir.
Que dejetos e interditos são esses? A prostituição, a desones-
tidade, a vida mundana, o comportamento sedutor e a falta de
recato feminino, a opção celibatária, o gozo, a pornografia, o
roubo, a corrupção, a homossexualidade, a traição, a incapa-
cidade, a ambição. O cidadão moral é, portanto, aquele que
porta os atributos da honestidade, do ascetismo, do recato, do
desprendimento, do patriotismo, da normalidade sexual, do
companheirismo, da verdade, da honra e da dignidade.
E na sua curta experiência no governo de Natal, o Comitê
Revolucionário, diante de “boatos terroristas espalhados pelos
contrarrevolucionários”, toma as seguintes medidas:

Serão punidos com o máximo rigor todos os que forem pegos es-
palhando boatos de qualquer natureza tendente a difundir o desânimo
e o terror entre as famílias.
Serão presos e punidos com o máximo rigor todos os que forem
pegos na prática de atos atentatórios à moral e ao decoro público.
Será preso todo e qualquer indivíduo que transite em visível estado
de embriaguez.111

194
Se aqui a punição à embriaguez e aos atentados contra os
costumes parece surgir num quadro de controle de possíveis ex-
cessos revolucionários, na comédia teatral intitulada Quando os
animais falavam, escrita por um militante do PCB mineiro112 e
representada por um grupo então reunido no Centro de Cultura
Popular da ANL, o tema da embriaguez, dos costumes e da moral
familiar é abordado de forma a revelar um moralismo que não
pode ser considerado circunstancial. Na comédia/fábula (em três
atos) as personagens, todas animais, possuem referências alusivas
à moral da história e a figurações do imaginário popular. O Zezé
Galinha é intitulado “salvador do país”, numa clara alusão a
Plínio Salgado; o Senador Raposão é o chefe político; o Conde
de Ratoeira, o grande comerciante; o Mestre Coelho é o esperto
professor da roça que vai esclarecer a consciência dos bichos; o
Gambá é designado de “pau d’água e desordeiro”; “o Jabuti, o
operário consciente; o João Carneiro, o trabalhador do coronel”,
entre outras. Num diálogo entre o Gambá, o Jabuti e o Coelho
passa-se o seguinte:

Jabuti:
— Você está errado, amigo Gambá. Erradíssimo. Em vez de reunir
todos os companheiros e melhorar a condição de vida deles todos, trata
de ir esquecer as mágoas na cachaça. Em vez de empregar sua valentia
na defesa de todos os trabalhadores, desperdiça-a nas desordens de
botequim. E, em vez de obrigar os ricos a trabalhar, vive sem trabalhar
como eles!
Gambá (de cabeça baixa):
— Mas eu não sabia...
Mestre Coelho:
— Não fique triste. Você tem tanta culpa disso como o Carneiro, e
até revelou um espírito rebelde, embora desperdiçasse a rebeldia. O que
atrapalha vocês é somente isso que eu ia dizendo: a falta de instrução.

195
Quando os bichos se rebelam e iniciam sua revolução vale
registrar a fala do Gambá:

— Fui pau d’água até hoje porque ninguém havia me explicado as


coisas direito. D’agora em diante, serei um verdadeiro revolucionário!
Fui desordeiro e fregista até ontem, mas de hoje em diante serei um
lutador de fato! Não consentirei que prendam quem defende os pobres!
(...) (p. 56).
— Viva! Nunca tive tanta alegria! Vou regenerar, começar vida nova!
Nunca mais encostarei cachaça na boca! (p. 65-66).

A bebida e o ócio são vícios que enfraquecem a moral re-


volucionária, o espírito de combate. E ambos são expressão da
desordem.
O texto da peça não poupa também a “D. Vaca”, mulher do
Coronel Zebu, mostrando que ela é infiel ao marido e aceita a
corte que lhe é feita pelo Comendador Simão (um filantropo) com
diálogos que insinuam a falsa moral por trás da “honra conjugal”;
é cáustico com o aparente preparo cultural das elites; é demolidor
com o caráter dos integralistas e Mimi, a gata melindrosa e filha
do General Bichinho, é figurada como coquete e dela se diz que é
“sapequíssima, muito falada e que até sai à noite sozinha” (p. 25).
Nesse ponto, a fala é ambígua, pois sugere, por um lado, uma crítica
ao preconceito dos poderosos. No caso, é a Vaca quem fala, com a
liberdade das mulheres, mas por outro, ao caracterizar e definir a
personagem como uma gata melindrosa e coquete, já não se sabe
mais de quem é o preconceito.
Na questão da mulher, é inegável que o discurso dos comu-
nistas se colocou contra a posição que o poder a ela delegou
na sociedade, mostrando-se a favor de que pleiteasse direitos
iguais aos dos homens. A rede de preconceitos que a envolve,
o tratamento de escrava, as humilhações a que é submetida,
o desrespeito pela sua inteligência e capacidade intelectual, a
exploração no salário, recebendo menos que os homens em igual

196
tarefa e igual produtividade, a prisão e a submissão no lar, o
trabalho sem recompensa e a enorme soma de deveres, tudo isso
é objeto de denúncias dos comunistas e das próprias mulheres
da União Feminina do Brasil,113 entidade com fortes laços com
a ANL e o próprio PCB. Chamadas de “companheiras”, têm
reconhecida a sua luta por seus direitos e necessidades e respei-
tado o seu lugar no espaço público, lutando ao lado do marido,
dos filhos, do pai, dos irmãos. A sua condição de mãe, esposa,
filha e irmã ainda é utilizada para lhe dar acesso a um outro
estatuto social. A família permanece sendo o referencial maior
da política moral que a cerca, a qual mantém a expectativa da
fidelidade, do recato, da virtude, atitudes estas independentes
do matrimônio indissolúvel, tal como prega a Igreja.
E como seu líder, Prestes, os militantes têm de ser honestos,
impolutos, dignos, honrados, dedicados lutadores, exemplos
de civismo e bravura, enfim, cidadãos morais exemplares.
Novamente é a pátria/moral que sai fortalecida e com ela são
esboçados os traços de um perfil identitário a fim de que os
sujeitos sociais nele se reconheçam e se sintam dotados de uma
identidade social e/ou nacional.
Conjuntamente às ideias-imagens de pátria/mãe, pátria/una e
pátria/moral, empreende-se a modelagem da sociedade de acor-
do com o princípio da ordem e da obediência, reforçando-se a
autoridade nos vários domínios do campo social.
E a satisfação dos desejos fica cada vez mais sob as con-
dições da moral, da ordem e da lei e, por isso mesmo, as suas
possibilidades “são módicas e reduzidas”, tal como entendia
Mann (1988):

Em toda parte, delimitam-nas proibições e inelutáveis escrúpulos.


Privações, renúncias, compromissos ditados por emergência, eis o
destino dos seres humanos (...) Alguma coisa nos é outorgada; muita
se nos nega e, via de regra, a esperança de que um dia o que nos foi
vedado possa ser concedido permanece em sonho. Sonho paradisíaco,

197
pois as delícias do paraíso devem precisamente provir do fato de que
lá se fundem numa e mesma coisa o que é proibido e o que é lícito, de
modo que o deleitoso proibido possa cingir-se da imaginária coroa da
legalidade, enquanto aquilo que é permitido obtém ainda por cima a
atração do proibido (p. 116).

E os caminhos da pátria, iludindo a vontade, se bifurcam em


direção à ordem, e o seu percurso é o que agora vamos tentar
seguir.

NOTAS
1
O entendimento da ideia de liberdade como autonomia pressupõe a sua inca-
pacidade de tornar-se um objeto de desejo dada a impossibilidade — típica em
circunstância de submissão — de transpor a distância entre o desejo e o desejado,
presente em condições heterônomas onde o desejo não consegue ser realizado e a
vontade segue iludida. Segundo La Boétie o usufruto da liberdade é uma condição
natural dos homens, a qual, contudo, em algum momento, é perdida porque estes
passam voluntariamente a obedecer e, em lugar do desejo de liberdade, surge a
vontade de servir e o seu correlato: a vontade de poder e o poder do “Um”. O
“Um” é o senhor, é a figura da soberania, é o que detém o poder. Dito de outro
modo, a emergência da vontade de servir e da vontade de poder é o que instaura
a divisão, dentro da sociedade, entre inferiores e superiores, entre dominantes
e dominados, entre detentores do poder e subjugados ao poder estabelecendo
igualmente a divisão valorativa das sociedades, entre boa e má. A boa é a que,
conforme a mãe-natureza, assegura o império da liberdade; a má é a expressão
do triunfo da servidão voluntária. Diante dessa “servidão voluntária”, o que
significa a liberdade para La Boétie? É, como destaca Chaui, a autonomia onde
“desejar ser livre e ser livre são uma só e mesma coisa”. Ver Chaui (1982-1986)
e seu comentário sobre o “Discurso da Servidão Voluntária”.
2
BOLETIM DO MINISTÉRIO DO TRABALHO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO,
n. 17, jan. 1936.
3
VALLADARES, Benedicto. O rumo de Minas a bem do Brasil. Folha de Minas,
Belo Horizonte, p. 6, 23 set. 1937.
4
UM por todos, todos por um. Argus: revista policial, Belo Horizonte, p. 23,
set. 1937.
5
OS CATÓLICOS e o comunismo. Argus: revista policial, Belo Horizonte, p. 1,
nov. 1936.
6
LIÇÕES dos fatos. O Diário, Belo Horizonte, p. 2, 4 dez. 1935.
7
GOMES, Bezerra. 1o Congresso Nacional da Juventude Estudantil, Popular e
Proletária. Entrevista ao Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 2, 21 jun. 1935.
8
MOTTA LIMA, Pedro. O povo comanda. A Manhã, Rio de Janeiro, p. 3, 15
maio 1935.

198
9
AO POVO brasileiro. Diretório da Aliança Nacional Libertadora. Comissão
Executiva. Rio de Janeiro, ago. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 16. (Panfleto
avulso).
10
Idem.
11
DISCURSO do Dr. David Rabello, chefe da ANL em Minas Gerais. Estado de
Minas, Belo Horizonte, p. 3, 14 jul. 1935.
12
Ver: Programa da ANL, nas fontes pesquisadas.
13
É desnecessário dizer que prevalece a decisão do Comitê Central, porém não
custa lembrar que, mesmo após a revolta de 1935, o Partido em 1936 e 1937
se organiza ainda em torno do programa da ANL e da política de frente única.
Em agosto de 1937 ocorre a “cisão Sacchetta”, mas o pomo da discórdia foi a
questão da sucessão presidencial e o apoio incondicional aos candidatos.
14
MOREYRA, Álvaro. O brado retumbante. A Manhã, Rio de Janeiro, p. 3, 24
maio 1935.
15
Reich também usa essa expressão ao referir-se à ideologia fascista da organização
hierárquica do Estado que tomou como modelo a organização hierárquica da
família camponesa.
16
DISCURSO do vereador Alberto Deodato pelo município de Belo Horizonte.
In: Minas e seu pensamento político: discursos pronunciados na manifestação
do povo de Minas a S. Excia. o Sr. Governador Benedicto Valladares Ribeiro,
por motivo do congraçamento político mineiro. Belo Horizonte, 1936.
17
DISCURSO do ministro Agamenon Magalhães na União dos Empregados do
Comércio do Rio de Janeiro, 30 out. 1937. Boletim do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, n. 39, nov. 1937.
18
DISCURSO de Benedicto Valladares Ribeiro. In: Minas e seu pensamento político,
op. cit., p. 104.
19
MENDES, Oscar. Paradas escolares. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 4 out.
1936.
20
DISCURSO do deputado Martins Prates pela Assembleia Legislativa. In: Minas
e seu pensamento político, op. cit.
21
DISCURSO do Cel. Herculano Assunção, comandante da 8a Brigada de Infantaria
com sede na capital mineira. In: Nenhum mineiro desertará do seu dever. Folha
de Minas, Belo Horizonte, p. 6, 23 set. 1937.
22
Idem.
23
DISCURSO do vereador Alberto Deodato pelo município de Belo Horizonte.
In: Minas e seu pensamento político, op. cit.
24
DISCURSO de Benedicto Valladares. In: Os ex-deputados estaduais homena-
geiam o governador Benedicto Valladares. O Diário, Belo Horizonte, p. 8, 18
nov. 1937.
25
Eliade mostra essa ligação, ao refletir sobre a sacrilidade da natureza nas religiões
cósmicas, na terra mater, a mãe telúrica, que pariu todos os homens e estes, ao
morrer, reencontram-na ao ser enterrados nela, pois “a geração e o parto são
versões microcósmicas de um ato exemplar realizado pela Terra; todas as mães

199
humanas não fazem mais do que imitar e repetir este ato primordial da aparição
da Vida no seio da terra” (Eliade, [s.d.], p. 151). Para os gregos, a maternidade
e a fertilidade se entrelaçam, e “Gaia” é a deusa-símbolo da terra/mãe.
26
AO POVO em geral e aos trabalhadores em particular. In: T.S.N. — Processo
n. 422. (Panfleto avulso da ANL).
27
POVO Brasileiro! Bureau Político do PCB (S. da I. C.), 27 nov. 1935. In: T.S.N.
— Processo n. 1, v. 16. (Panfleto avulso).
28
SOLDADO! In: T.S.N. — Processo n. 1283. (Panfleto avulso).
29
UNIÃO de todos os paulistas pela prosperidade, a democracia e a paz! Comitê
Regional do PCB de São Paulo. São Paulo, 25 maio 1938. In: T.S.N. — Processo
n. 1283.
30
Idem.
31
ÀS MULHERES do Brasil. União Feminina do Brasil. Rio de Janeiro, 1935. In:
T.S.N. — Processo n. 1, v. 16. (Panfleto avulso).
32
Embora não alinhadas com a perspectiva teórica de Vasconcellos (1979), referida
aos marcos da teoria da dependência, gostaríamos de registrar a interessante
utilização da categoria psicanalítica do narcisismo feita pelo autor em sua análise
do discurso integralista. Por um lado, ele identifica uma utopia narcisista — a
teoria da busca da originalidade brasileira e a defesa da singularidade brasileira,
que tanto marcaram o pensamento integralista. A essa utopia ele atribui, por-
tanto, o desejo de um Brasil voltado para dentro de si mesmo, sem pontos de
penetração, mônada, cuja expressão é o duende curupira que, segundo a tradição
folclórica, é destituído de órgãos sexuais. De outro, ele realça nesse discurso a sua
condição de discurso apaixonado pelo seu amor que é a pátria, com a qual, numa
identificação narcísica, o indivíduo “enlaça-se libidinosamente”, reforçando a
indiferença do Brasil com o exterior e a possibilidade da satisfação dentro de si
mesmo.
33
DISCURSO do Dr. Alberto Deodato. In: Ecos da convenção das forças políti-
cas mineiras e da visita do vr. José Américo a Belo Horizonte. O Diário, Belo
Horizonte, p. 9, 23 jun. 1937.
34
MENDES, Oscar. Tenhamos juízo. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 5 jan. 1937.
35
No plano federal, as iniciativas de apaziguar a disputa do interesse entre partidos
e grupos regionais se expressam pelo movimento das oposições coligadas liderada
pela Frente única do Rio Grande do Sul, tendo à frente o deputado João Neves
da Fontoura.
36
DISCURSO do Ministro Odilon Braga. In: Minas e seu pensamento político,
op. cit., p. 16-18.
37
MINAS dentro dos quadros legais. Gazeta Universitária, Belo Horizonte, p. 2,
25 abr. 1935. (Órgão do Diretório Acadêmico dos Estudantes da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Minas Gerais).
38
PRESTES, Luiz Carlos. O grande exército popular nacional. O Libertador, Rio
de Janeiro, p. 1, 22 nov. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. I.
39
Idem.

200
40
Ibidem, p. 2.
41
UNIÃO de todos os paulistas pela prosperidade, a democracia e a paz. Circular
do Comitê Regional do PCB de São Paulo (S. da I. C.). São Paulo, p. 1-2, 2 maio
1938. In: T.S.N. — Processo n. 1283.
42
PRESTES, Luiz Carlos. O grande exército popular nacional, op. cit.
43
MELLO FRANCO, Afonso Arinos de. Ainda há lugar para a democracia? Estado
de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 7 mar. 1934.
44
O ESPÍRITO regionalista. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 15 maio 1937.
(Editorial).
45
O GRANDE perigo. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 2, 19 mar. 1937.
(Editorial).
46
PRESTES, Luiz Carlos. O grande exército popular nacional, op. cit.
47
DEUS, pátria e família. O Libertador, Rio de Janeiro, p. 3, 22 nov. 1935. In:
T.S.N. — Processo n. 1, v. 1.
48
São vários, nesses anos, os boletins e panfletos de células do PCB, dentro do
Exército que, ao defenderem os direitos políticos dos militares, o fazem apoiados
no argumento de que o Exército é um grande construtor da unidade nacional.
49
ALIANÇA Nacional Libertadora. Natal, set. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1,
v. 16. (Panfleto avulso).
50
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, 1 jan. 1936. Boletim do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 17, jan. 1936.
51
O significado da política de Marcha para Oeste é estudado exemplarmente por
Lenharo (1985), que esmiúça a sua importância na ideologia estadonovista.
52
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, 1 jan. 1937. Boletim do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 30, p. X, jan. 1937.
53
Ibidem, p. VII.
54
ORAÇÃO do contra-almirante Álvaro de Vasconcelos em romaria ao Cemitério
São João Batista. Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,
n. 38, out. 1937.
55
O DIA da Pátria. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 8 set. 1937.
56
Nesse período, a retórica anticomunista é fartamente incrementada, sendo
fundado no Rio de Janeiro um movimento intitulado Defesa Social Brasileira
que, em nome da “Pátria”, se propõe a empreender contra o comunismo uma
cruzada cívica pelo país. Ver: DEFESA Social Brasileira. Estado de Minas, Belo
Horizonte, p. 12, 2 dez. 1937. NA CÂMARA municipal noção de solidariedade
à defesa social brasileira. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 5 nov. 1937.
Em São Paulo, no início de 1937, foi fundado por intelectuais, como Cassiano
Ricardo, Guilherme de Almeida, Afonso de Taunay Alcântara Machado, Menotti
del Picchia, Paulo Prado, Almeida Prado, entre outros, o movimento “Bandei-
ra” contra os “extremismos” e pela ideia de Pátria. Ver: Folha de Minas, Belo
Horizonte, p. 2, 6 mar. 1937.

201
57
O DIA da pátria. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 8 dez. 1936.
58
MENDES, Oscar. Comemorações. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 8 dez. 1936.
59
Gustavo Capanema, então Ministro da Educação, dá demonstração de zelo por
esse culto ao solicitar, entre outras medidas, a elaboração de uma “oração à
Bandeira”, que em 19 de novembro de 1937, é lida em todos os educandários
brasileiros.
60
VALLADARES, Benedicto. Cultuemos a nossa Bandeira, amemos o nosso Brasil.
Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 4, 20 nov. 1937. (Discurso de Benedicto
Valladares na comemoração ao Dia da Bandeira).
61
COMO será comemorado nesta Capital o “Dia da Bandeira”. Estado de Minas,
Belo Horizonte, p. 3, 17 nov. 1937.
62
O “DIA da Bandeira”. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 1, 18 nov. 1937.
63
VALLADARES, Benedicto. Cultuemos a nossa bandeira, amemos o nosso Brasil,
op. cit.
64
Sobre a ideologia do caráter nacional brasileiro ver: Moreira Leite (1969); Marson
(1971); Mota (1977) e Vasconcellos (1979).
65
SALGADO, Plínio. Geografia sentimental. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1937.
66
Uma indicação da repercussão e da utilização da Geografia sentimental de Plínio
Salgado é feita pelo Pe. Ascânio Brandão, num artigo especial para um periódico
católico: BRANDÃO, Ascânio. A alma do Brasil na geografia sentimental. O
Diário, Belo Horizonte, p. 4, 8 abr. 1937.
67
Sobre o Integralismo, ver: Trindade (1974); Chasin (1978); Chaui (1978);
Bezaquin de Araújo (1987).
68
DRUMMOND, Magalhães. Discurso de paraninfo dos bacharéis em Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1937. p. 7-10.
69
O tema da peculiaridade brasileira, complementar à ideologia do caráter nacional,
é presença garantida nos discursos de intelectuais do período.
70
PARADA da juventude. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 17 nov. 1937.
COMO será comemorado nesta Capital o “Dia da Bandeira”. Estado de Minas,
Belo Horizonte, p. 3, 17 nov. 1937.
71
CARVALHO, Daniel de. De outros tempos: Memórias. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1961. p. 178.
72
ALIANÇA Nacional Libertadora. Natal, set. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1,
v. 16. (Panfleto avulso).
73
BRAGA, Rubem. Carta a um padre. 1935. (Transcrição de um artigo publicado
no jornal A Manhã). In: T.S.N. — Processo n. 635.
74
CARTA de Luiz Carlos Prestes aos jovens de todo o Brasil, 1935. In: T.S.N. —
Processo n. 1, v. 2.
75
AO POVO brasileiro. Rio de Janeiro, 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 16.
(Panfleto avulso).

202
76
BOLETIM DO MINISTÉRIO DO TRABALHO, INDÚSTRIA E COMÉRCIO,
n. 37, set. 1937.
77
DIA da Pátria. Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 37,
set. 1937. (Editorial).
78
DISCURSO do presidente Getúlio Vargas aos brasileiros. Boletim do Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio. n. 37, set. 1937.
79
Idem.
80
ESPÍRITO cívico. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 27 jul. 1937.
81
ESQUECIMENTO das tradições históricas. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 16
maio 1937.
82
A solenidade de desembarque das urnas com os restos mortais dos inconfiden-
tes ocorreu no dia 27 de dezembro de 1936. Realizada com todas as pompas
e dentro do protocolo oficial, a ela compareceram o presidente Getúlio, os
ministros Capanema, Odilon Braga, Agamenon Magalhães e Gaspar Dutra,
o presidente da Câmara, Antônio Carlos, o governador Benedicto Valladares
e vários outros políticos e autoridades militares. O destino final das urnas foi
a cidade de Ouro Preto.
83
CHEGARAM ao Rio as cinza dos inconfidentes. Folha de Minas, p. 4, 27 dez.
1936. (Discurso do Secretário do Interior do governo de Minas Gerais, Sr. José
Maria Alkmin).
84
Idem.
85
TIRADENTES. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 21 abr. 1936.
86
MOTTA LIMA, Pedro. O povo comanda. A Manhã, Rio de Janeiro, p. 3, 15
maio 1935.
87
UNIÃO Nacional para esmagar o golpe fascista em marcha. Bureau Político
do Comitê Central do PCB (S. da I. C.), 2 maio 1937. In: T.S.N. — Processo
n. 412.
88
MOCIDADE brasileira. Rio de Janeiro, jul. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1,
v. 16. (Panfleto avulso).
89
DISCURSO do prefeito Washington Dias. In: Minas e seu pensamento político,
op. cit., p. 82. Ver também: DISCURSO do Secretário José Maria Alkmim. Idem,
p. 117-118.
90
FONSECA, Marcos. Laisser-faire, laisser-passer. O Diário, Belo Horizonte,
p. 2, 1 out. 1935.
91
CABRAL, Pe. J. Conquistas sociais do cristianismo. O Diário, Belo Horizonte,
p. 4, 17 nov. 1936.
92
CARTA pastoral do episcopado brasileiro. Boletim do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, n. 38, p. 109, out. 1937.
93
ALVES, João de Rezende. Necessidade de outro regime. O Diário, Belo Hori-
zonte, p. 2, 19 out. 1935.
94
A CORRUPÇÃO dos costumes. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 12 maio 1937.
95
Idem.

203
96
A esse respeito ver Vasconcelos (1979).
Freud (1976c), em O ego e o id, afirma, a propósito da agressão, que “(...)
quanto mais um homem controla a sua agressividade para com o exterior, mais
severo — isto é, mais agressivo — ele se torna em seu ideal do ego. (...) é como
um deslocamento, uma volta contra seu próprio ego. Mas mesmo a moralidade
normal e comum possui uma qualidade severamente restritiva, cruelmente proi-
bidora” (p. 71). Isso significa que se renuncia ao instinto por medo da autoridade
interna: a consciência, o superego. No caso da moralidade, um superego muito
severo faz com que a forte atração ou apelo instintual pela “transgressão sexual”
retorne ao ego sob a forma de um maior rigor moral. O que significa que, quanto
mais moralista se é, mais rancor se tem ao sexo, mais desejado este é e maior
atração provoca e vice-versa. Apesar do rancor manifestado pelo articulista, a
sua atração extravasou-se no detalhe da sua descrição.
97
Ver: CARTA pastoral do episcopado brasileiro, op. cit., p. 110-111.
98
A CORRUPÇÃO dos costumes, op. cit.
99
GODÓI, Edgard de. Mocidade e liberdade. O Diário, Belo Horizonte, p. 5,
5 fev. 1936.
100
O COMUNISMO e a família. O Diário, Belo Horizonte, p. 8, 20 fev. 1936.
(Conferência do Pe. Huberto Rohden).
101
Idem.
102
1o Congresso Nacional da Juventude Estudantil, Popular e Proletária. Estado
de Minas, Belo Horizonte, p. 2, 21 jun. 1935.
103
MOREIRA, Álvaro. Dormir... sonhar... A Manhã, Rio de Janeiro, p. 3, 22 maio
1935.
104
Idem.
105
AOS OPERÁRIOS, soldados e todas as camadas pobres da pequena burguesia.
Comitê Regional do Norte de Minas do PCB (S. da I.C.). In: Tribunal Superior
Militar. Processo n. 4486.
106
AOS TRABALHADORES. Rio de Janeiro, 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1,
v. 1. (Panfleto avulso).
107
DEUS, pátria e família. O Libertador, Rio de Janeiro, p. 3, 22 nov. 1935. In:
T.S.N. — Processo n. 1, v. 1. (Órgão do Comitê Militar da ANL).
108
Idem.
109
AOS OFICIAIS e sargentos do Exército. Rio de Janeiro, 1936. Comitê Militar
da ANL pró-integridade das classes armadas. In: T.S.N. — Processo n. 421,
v. 1.
110
MILITARES! Reajamos contra a fascistização do Exército nacional. Soldados
e Oficiais do Exército Nacional, 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 2.
111
O RIO Grande do Norte sob um governo popular revolucionário. Marítimo e
Portuário, Rio de Janeiro, p. 1, 29 jan. 1936. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 1.
112
JARDIM JÚNIOR, David. Quando os animais falavam... Comédia em três atos.
Belo Horizonte, jul. 1935. (Mimeogr.).

204
113
ÀS MULHERES do Brasil. Rio de Janeiro, 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 16.
(Manifesto da Comissão Organizadora da União Feminina do Brasil). Sobre
a mulher e a família afirma o presidente da ANL de Minas Gerais, Dr. David
Rabello: “Não seremos jamais contra a família: queremo-la organizada na base
do amor, do respeito mútuo, em um lar confortável, com assistência material e
educacional, onde os direitos das mulheres sejam absolutamente iguais aos do
homem. Será uma família uma casa em que (...) as mulheres trabalham como
escravas ou se enfeitam como bibelots caros por puro exibicionismo do mari-
do? Não existe família onde existe um tirano doméstico que desvirtua todas as
iniciativas das filhas e estraga todas as tendências afetivas da mulher. O gasto
evidente desta em desempenhar funções modestas de cozinheira, costureira ou
simplesmente dona de casa não a impede de trabalhar em todos os misteres como
o homem...” Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 1, 14 jul. 1935.

205
A SUPRESSÃO DA DESORDEM

O medo é a coisa de que tenho


mais medo no mundo.
Montaigne

A ordem — jurídica, social, religiosa ou artística — constitui uma


esfera segura e estável. Dentro do seu âmbito, basta ajustar-se aos mode-
los e princípios que regulamentam a vida; ninguém, para se manifestar,
precisa recorrer à invenção contínua que exige uma sociedade livre.

Esta afirmação de Paz (1984, p. 32-33) sintetiza o pensamento


que coroa a explosão patriótica e, ao mesmo tempo, define uma das
principais características do mundo da ordem: a previsibilidade. A in-
venção é criação, portanto, é licença e a licença traz desordem, a qual
é imprevisível. A ordem com suas regras, princípios e regulamentos é
o que garante uma sociedade sob controle, é a garantia do previsível,
na qual elementos contrários não se misturam, não convivem e não
se revertem. É preciso manter delimitados os campos do dia e
da noite, do bem e do mal, da razão e da loucura, do velho e do
novo, do atraso e do progresso. Negá-los ou subvertê-los é viver
a experiência da desordem, e quem vive a desordem transgride,
profana, comete sacrilégio, viola a ordem. E a violação da ordem
é delito passível de punição. O discurso da ordem, nesses termos, é
um discurso que se constrói pela negação da alteridade e que tem
todos os seus pressupostos referidos, portanto, ao imaginário da
desordem. É se contrapondo à desordem que a ordem se define e
se afirma, e é nomeando a desordem que ela se afirma necessária.
O que o discurso da ordem, nos anos de 1930, nomeia como
desordem; que elementos travejam, nesses anos, o imaginário da
ordem e da desordem; como suas representações se situam no
campo dos interesses e dos conflitos sociais; como são utilizadas
estrategicamente em pautas de dominação; como legitimam
relações de força no campo da política — eis alguns pontos da
reflexão que pretendemos empreender aqui.
Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que, entre 1935 e
1937, em diferentes registros do social, assoma, por um lado, a
definição de que o momento vivido pela sociedade é assolado
pela desordem; de outro lado, surge a tradução da ideia de
desordem pela imagem da crise. E a desordem, como a crise, é
aquilo que está fora do lugar. A crise, tal como é pensada por
Chaui (1978), “é imaginada como um movimento da irracio-
nalidade que invade a racionalidade, gera desordem e caos e
precisa ser conjurada para que a racionalidade (anterior ou
outra, nova) seja restaurada” (p. 128). Esse movimento da
irracionalidade é detectado em vários locais e nomeado, para
sua melhor identificação, por um parlamentar que em 1936
avalia o quadro nacional:

(...) é uma hora de emoção e crise. Hora de reivindicações proletárias


e de violentos entrechoques de classe. Hora de agitação nas oficinas
e de perplexidade na gente simples do campo. Hora de tumulto e de
insatisfação no espírito das universidades. Hora de indisciplina e de
emulação nos quartéis. Hora de revolta em que, mercê do desenfrea-
mento da ambição no ânimo dos homens políticos, estão proliferando
os regimes de violência e de força. Hora de grave desentendimento
entre o suor do trabalho e os despotismos do capital. Hora em que a
própria cultura latina, espiritualizadora do mundo cristão, se empenha
em luta de morte com os extremismos ameaçantes.1

207
A crise, nesta avaliação, é localizada nas fábricas, nas oficinas,
no campo, nos quartéis, na política, na cultura. E são expressão
da desordem e da irracionalidade as reivindicações de classe, a
inquietação do homem do campo, a indisciplina, a disputa pelo
poder, a violência, a força, o materialismo. A racionalidade,
abalada pela desordem e que é preciso restaurar, é expressa pela
harmonia entre capital e trabalho, pela labuta nas oficinas, pela
resignação do homem do campo, pela disciplina militar, pela
política harmoniosa, pela conformidade aos valores culturais
e espirituais da civilização cristã, pela obediência e respeito à
autoridade intelectual nas universidades e escolas. Assim o é,
porque a utilização da noção de crise

permite representar a sociedade como invadida por contradições


mas simultaneamente permite tomar as contradições como um acidente,
um desarranjo, pois a harmonia é pressuposta como de direito, de sorte
que a crise é uma desordem factual provocada seja por um engano
(involuntário) dos agentes sociais, seja por um mal funcionamento de
certas partes do todo (...) (Chaui, 1978, p. 128).

E o comunismo, como veremos, é uma dessas desordens fac-


tuais, embora não seja a única.
Na sua análise do discurso integralista, Chaui (1978) recupera
a caracterização da ideia de crise em quatro registros distintos, a
saber: uma crise conjuntural ou de autoridade, ocasionada pelas
revoluções de 1930 e 1932; uma crise estrutural ou orgânica,
representada pelo antagonismo entre o Brasil do litoral e o do
sertão; uma crise da política mundial, representada pela ameaça
do comunismo e pela decadência da solução liberal-democrática;
e uma crise da civilização ocidental, representada pelo avanço do
materialismo e do “maquinismo do século anterior”. É interes-
sante observar que esses mesmos registros presentes no discurso
integralista vão permear, nos anos de 1930, os diferentes discursos
da crise e da desordem, feitos por diferentes agentes sociais ao
tentarem identificar a origem das desordens.

208
Contudo, é preciso que se diga que o comunismo é eleito
pelos vários setores dominantes da sociedade como a principal
expressão da crise e da desordem, e nessa condição lhe será
atribuída a responsabilidade de acionar a maioria dos elementos
capazes de conflagrar os princípios estruturantes da ordem. E
se o comunismo é a “crise”, se a crise é “desordem”, é preciso
conjurá-lo e fugir dele e do que o cardeal D. Sebastião Leme, ao
discursar no encerramento do Segundo Congresso Eucarístico
Nacional em 1936, considera “consequências do materialismo
demolidor, do despenhadeiro, da desordem, da anarquia e do
caos”,2 e para evitar o deslocamento “para um abismo de dis-
solução e desordem”.3
Caos, anarquia, abismo e dissolução são apenas alguns re-
ferentes que incompatibilizam o comunismo com a ordem. A
ele, na verdade, aparecem associados vários outros importantes
componentes do imaginário da desordem, como é o caso das
ideias de abalo e destruição. Para informá-lo, além de figurado
como o mal devastador e fatal, o comunismo é apontado como
o “cupim da tranquilidade e da ordem”.4 Nessa figuração, o
que se sugere é que ele mina lentamente o edifício social que,
ameaçado de desabamento, inspira desassossego e medo. A sua
ação é, no entender de Vargas, “subversiva e demolidora, visan-
do por todos os meios implantar e sistematizar a desordem”;5
por isso, o presidente a considera “falha de qualquer sentido
construtor e orgânico”. A ação construtora, uma vez oposta
à ação demolidora, é indiretamente afirmada pelo presidente
como característica da ordem, a qual pela sua organicidade, é
sutilmente apontada como condição da perfeita saúde do social,
entendido este como um conjunto orgânico de formas, normas
e princípios. Com que argumento o discurso da ordem atribui
ao comunismo sua enorme potencialidade destrutiva do social?
Como se fundamenta a acusação de que os comunistas subvertem
as bases da sociedade?
Um bom começo para chegarmos a esses argumentos e fun-
damentações nos é dado pela definição “orgânica” da ordem.

209
A vida orgânica pressupõe hierarquia. E a quebra da hierarquia
agride um dos princípios básicos da ordem. E os comunistas,
ao reivindicarem a igualdade, ferem esse princípio e introduzem
um elemento de irracionalidade na racionalidade da vida social
afirmada, no entender de muitos, na desigualdade:

A igualdade dos homens é um sonho mas que eternamente terá de


ser um sonho. A diversidade da educação, de gênios, de temperamentos,
de inteligência faz os homens desiguais e nessa desigualdade reside o
equilíbrio do mundo, a possibilidade da vida.6

A desigualdade da forma, exposta acima, é o que confirma


a necessidade da hierarquia e as posições de mando que dela
advêm por consequência. É pela educação, inteligência, talento
e competência que se justifica a divisão racional da sociedade
entre patrões e empregados, entre dirigentes e dirigidos, enfim,
entre dominantes e dominados. E, em nome da hierarquia, a
ação política é considerada uma tarefa destinada às elites e isso é
considerado democrático. Vejamos as afirmações de um editorial:

O mundo moderno provou que o bem comum, para ser assegurado,


exige grandes heróis, grandes patriotas e homens educados para a arte
de mandar.7

No Brasil, a destinação do poder às elites se impõe em relação


aos outros países porque, segundo o ministro Macedo Soares,

(...) somos uma espantosa população de analfabetos. A espuma dos


semianalfabetos (...) é particularmente tóxica no Brasil com sua larga
percentagem de mestiços nos quais a esperteza concorre com a falta
de senso moral.8

Dizendo concordar com o parlamentar Adalberto Correa,


para quem a empreitada comunista de Prestes só não se afunda no

210
ridículo porque a população é analfabeta, Macedo Soares critica
a revolução de 1930 por ter no fundo favorecido pretensões tão
absurdas como a de Prestes:

O período revolucionário quebrou alguma louça neste país. Uma


das inevitáveis consequências da subversão da ordem legal foi o arra-
samento das bandeiras da hierarquia, perdendo-se muito do prestígio
hierático dos poderes públicos, nivelando-se na incompetência geral à
acessibilidade aos mais altos cargos, baixando a autoridade do governo
em vez de elevarem-se os que dela se devessem investir.
Não é impunemente que se vê a possibilidade de se distribuírem
altas posições políticas a intrusos, aventureiros, penetras, ignorantes e
sem serviço, totalmente desconhecidos do país. Nem as classes armadas
escaparam do relaxamento.

Após admitir que, apesar dos inconvenientes inevitáveis, a


revolução é um remédio heroico para os grandes males e, como a
evolução, está compreendida na sabedoria da natureza, o Minis-
tro clama pela recuperação da normalidade moral, considerada
“um imperativo das sociedades cultas”, e conclama as “classes
dirigentes esclarecidas” para o restabelecimento da disciplina
social. Conclui afirmando:

O momento não é grave pela emergência da desordem e indisci-


plina neste ou naquele ponto do país. A gravidade da situação está na
desordem dos espíritos e na indisciplina social.

A direção política é reafirmada como tarefa das elites pre-


paradas e tradicionais, e a pretensão de mudar isso, no plano
da ideologia, significa desordem do espírito e, no plano da
emergência da luta política efetiva, representa indisciplina
social. Na organização estatal, portanto, o princípio de autori-
dade e de hierarquia é básico. É um princípio normativo. Mas
é necessário ampliar esse princípio de ordem e de hierarquia,

211
colocando-as como fator de coesão social — porque a coesão
social e a hierarquia que a sustenta não resistem à desordem:

Hierarquia, autoridade, distinção entre o bem e o mal, rebeldia, in-


compreensão, ligeireza de sentimentos, tudo se confundiu, se subverteu,
se alterou, formando um ambiente de desordem e desvario. Esta crise
é profunda e geral. Contagia e perverte.9

Para combatê-la é que entram em cena os princípios da auto-


ridade e da disciplina enquanto estruturantes básicos da ordem.
A disciplina e o método se contrapõem à desordem intelectual,
moral, política, econômica e social. Daí a afirmação de que:

É preciso que a disciplina se estenda aos indivíduos e às classes. O


indivíduo sujeito ao autocontrole da disciplina moral e da disciplina
social, será sempre um elemento útil, ativo, capaz. Da disciplina indi-
vidual derivará a disciplina social. A sociedade viverá um ambiente de
ordem aceita, consentida e compreensiva.10

A disciplina é afirmada como o recurso capaz de evitar a anar-


quia, por um lado, e o irracionalismo, por outro. Qual anarquia?

A anarquia das ideias tumultuárias, dos sentimentos em convulsão,


dos ideais desfigurados, dos regimes em crise permanente; esta anarquia
em que o esforço construtivo é anulado pelo irrequietismo de uns, pela
apatia de outros, pelo egoísmo do maior número; esta anarquia invadiu
a sociedade que se debate no horizonte estreito dos imediatismos, na
insatisfação angustiante, na rebeldia e no descontrole. É imperioso
disciplinar os sentimentos e as vontades, fazendo com que uns e outros
recoloquem seus rumos, se coordenem num objetivo nacional.

Disciplinar sentimentos e vontades é impor a racionalidade,


a ordem, sobre a fragilidade política reconhecida “em meio do

212
desencadeio das paixões de toda a natureza, das ambições de
todo o gênero, em que se mesclam sentimentos e aspirações”.
O embate aqui é entre a razão e a paixão. A paixão é o que
obceca o espírito, faz perder o senso das realidades, conduz até
à injustiça. A razão, ao contrário, implica a união consciente das
vontades que colocam a salvação coletiva acima dos egoísmos,
das vaidades, dos ressentimentos, das ambições; essa união pre-
tende vencer as forças dissolventes, os fatores desintegrantes. A
paixão é expressão do conflito, da contestação, dos interesses
de classe; a razão é defesa do princípio da harmonia. Por isso,
o sentimento de unificação da vontade pressupõe a necessidade
da disciplina individual e coletiva:

Essa necessidade de disciplina mostra-se em todos os domínios da


atividade humana: disciplina moral, disciplina social, disciplina econô-
mica e política. Há necessidade de reforçar essa disciplina, a começar
pelo indivíduo, que não pode, hoje em dia, largar-se romanticamente
ao impulso de sentimentos ou à sedução de ideias que não estejam de
acordo com as exigências da coletividade que precisa ser forte e íntegra.
Essa disciplina dos indivíduos levará à disciplina coletiva, dentro da
qual se agirá em função de imperativos gerais da comunidade e não
em razão de motivos pessoais, particularistas, criando o choque de
interesse que gera a desordem moral e material.11

Essa ideia de necessidade de disciplina, como um imperativo


da ordem nos vários domínios da atividade humana, ganha, ape-
sar dos floreios, uma formulação mais explícita no trecho abaixo:

Na ordem individual e social, o primado do espiritual sobre o


econômico; na ordem familial, mais do que a indissolubilidade, a san-
tificação do vínculo; na ordem legal, o rigor temperado e contido na
fé da perfectibilidade humana, (...) na ordem política, o mandamento:
a César o que é de César.12

213
A disciplina é o que vem, assim, garantir a estabilidade, en-
quanto duração no tempo da ordem organizada em torno da
família, da propriedade, da lei, dos valores da civilização cristã.
Se é preciso disciplina para o indivíduo não se deixar levar
por sentimentos e ideias suscitadas e divulgadas pela propaganda
comunista, é porque a disciplina é atributo da razão, e a ideo-
logia e a ação comunistas são irracionais. Por serem destituídas
de razão, as ideias comunistas são, no dizer de um parlamentar,
“miragens sedutoras e irrealizáveis”.13 O comunismo é “praga
tartárica”, é “fruto de cérebros enfermos pelo ódio”, segundo o
general Newton Cavalcanti;14 retorno à lei da barbárie;15 a sua
igualdade é uma utopia que contraria a lei da natureza;16 e os que
a percebem como um perigo é porque a veem “com os olhos da
razão”;17 e as suas promessas são falazes.18 Enfim, o comunismo é
loucura, é delírio, é paixão, é barbárie, é atraso, é irracionalismo,
traz indisciplina e desordem. Subverte a moral familiar, por ser
contra a normalidade legal do casamento e a favor do divórcio
e da igualdade de direitos entre homens e mulheres; subverte a
hierarquia social, ao pressupor a igualdade entre os homens;
subverte a ordem política, ao pregar a revolução e o fim do poder
das elites; subverte a ordem econômica, ao pretender eliminar a
hierarquia do trabalho, escudada na divisão entre proprietários
e não proprietários, entre patrões e empregados.
Contra essa desordem é que, à defesa do princípio da disci-
plina se soma o reforço da defesa do princípio da autoridade.
Ora, a autoridade, a nosso ver, diferentemente do que pensa
Arendt (1972), pode constituir-se em pessoas, instituições e
organizações, bem como atuar através de normas de conduta,
usos e costumes estabilizados no tempo. Ela está presente na
micro e na macropolítica. São relações de autoridade e relações
de poder, a dos pais sobre os filhos, dos mestres sobre os alunos,
dos empresários sobre os trabalhadores, do chefe militar sobre
seus subordinados e do governo sobre os cidadãos. Daí que a
“autoridade” pressupõe obediência à ordem e, por ela é neces-
sário, no âmbito da família,

214
(...) reforçar a autoridade do pai, no campo do ensino a autorida-
de dos docentes, na administração a autoridade dos superiores e na
economia a autoridade dos industriais. O modelo dessa organização
social vem dado pelo exército com sua rígida hierarquia de superiores
e subalternos (Kühnl, 1982, p. 153).

O reforço da autoridade nesses campos é o que traduz, a nosso


ver, a propalada disciplina moral, social, econômica e política,
o que faz do Exército, sem dúvida, o modelo exemplar, uma vez
que o que se deseja é uma sociedade militarizada. Num editorial
intitulado “O Exército e a Disciplina”, assim se manifesta um
órgão da imprensa em 1935, após a insurreição de novembro:

O exército nacional e as polícias estaduais acabam de dar ao país


inteiro um dos mais belos e eficazes exemplos: o da disciplina, o do
respeito à hierarquia, o de fidelidade aos compromissos assumidos.
Certo é que os continuados movimentos revolucionários dos últimos
anos, a intromissão da política nos quartéis e dos militares na política,
concorreram fortemente para que o fermento da indisciplina e o ardor
da cobiça incitassem certos militares às aventuras das intentonas. (...) E
tivemos, por isso, o espetáculo sangrento de Natal, do Recife e do Rio
em que foram covardemente assassinados aqueles militares que não
quiseram compactuar com os subversores da ordem, com os frauda-
dores da disciplina. Mas justamente esses assassinos vieram mostrar à
Nação estarrecida que o exército de seus defensores não estava todo
contaminado, que a parte sã reagia forte e corajosamente contra os
elementos perniciosos. (...) Mas a obra construtora não está terminada.
Cabe agora ao Exército continuar a sua atuação saneadora, expulsando
do seu seio os que não merecem confiança, os que não sabem honrar
o juramento prestado diante da bandeira sagrada da pátria. E isso ele
o conseguirá com esse exemplo magnífico que já nos deu de disciplina
e de obediência aos seus chefes — e ao governo legal.19

Disciplina, obediência, respeito à hierarquia, honra e dever


são atributos que os próprios militares se autoatribuem quando

215
reforçam eles próprios sua condição de modelo a ser seguido pela
sociedade. Assim é que o general Gaspar Dutra, após o golpe
de 1937, numa proclamação do Exército, no Dia da Bandeira,
afirma que três vocábulos definem o programa da Instituição:

Trabalho que é o exemplo para a sociedade, a saúde para o corpo,


a tranquilidade para o espírito.
Disciplina que é o elo que nos congrega sem humilhações, mas com
a consciência do cumprimento do dever.
Força que é sanção do Direito, o respeito à autoridade, o bem ergui-
do contra o mal, a repressão aos que se deixam arrastar por ideologias
nefastas, aos que tentam perturbar a ordem, aos que sonham trazer a
luta. Cumpre finalmente dizer bem claro, em voz alta, a soma de enor-
mes responsabilidades assumidas pelas forças armadas no momento
histórico que atravessamos. (...) Não a esqueçamos e cumpre que todos
o sintam porque as classes armadas e porque o Exército souberam nesse
gravíssimo momento mostrar-se coesos, obedientes, disciplinados (...).20

É interessante notar que aqui surge o atributo do trabalho,


como componente da ordem, expressa pela saúde e pela tranqui-
lidade do espírito; a disciplina, sendo associada ao cumprimento
do dever e, assim, descaracterizada como imposição humilhante;
e a força, como uma imposição da autoridade, contra o mal e em
defesa do bem e da ordem, encarnada na instituição do Exército.
Como a disciplina, o princípio da autoridade, portanto, é
outro baluarte da ordem e também um complemento da noção
de crise, a qual, no discurso contrarrevolucionário, é expresso
como crise de autoridade. Ou seja, diante do medo da revolução
e da desgraça social que esta pode trazer, a crise, enquanto crise
de autoridade, oferece aos sujeitos sociais “a oportunidade de
restaurar uma ordem não crítica graças à ação de alguns salva-
dores da ordem ameaçada” (Chaui, 1978, p. 129).
Chaui afirma que, apesar de poder ocasionar a figuração
empírica de salvadores ou chefes, como em Vargas, Plínio e até

216
Prestes, a crise de autoridade “desemboca no projeto de restau-
rar a racionalidade (leia-se ordem) através da racionalização da
autoridade (leia-se através da burocracia política e administra-
tiva)” (p. 128).
Por isso, é preciso fortalecer a autoridade do poder central
no combate “à onda de anarquia e desordem que quer dissolver
a Nação”.21 Como fazê-lo? Apoiando as medidas políticas de
caráter legal e administrativo adotadas pelo governo federal
no combate ao comunismo, tais como o estado de sítio, como
é defendido por Macedo Soares,22 o estado de guerra, a criação
do Tribunal de Segurança Nacional, a ampliação da Lei de Segu-
rança Nacional, a mobilização dos efetivos policiais nos estados.
Enfim, pela solidariedade a Getúlio Vargas que é manifestada
pela classe política através de uma retórica deste tipo:

Nesta hora de incertezas e de justificada ansiedade dos espíritos, os


brasileiros, mais do que nunca, sentem a necessidade de cerrar fileiras
em torno daqueles que têm a responsabilidade da ordem pública e que,
com patriotismo, defendem nossas instituições.23

Ou como esta de Benedicto Valladares:

A mesma necessidade de vigilância contra os inimigos do regime, o


mesmo imperativo de ordem dentro da legalidade, leva agora o povo
mineiro a colocar-se ao lado do presidente Getúlio Vargas, cujo governo,
expressão legítima da vontade nacional, representa, neste momento,
a própria vida e a estabilidade da nossa organização democrática.24

O fortalecimento da principal autoridade governamental


é exposto aqui como condição para a unidade do Estado, a
garantia da ordem pública, da legalidade e das instituições. E
o próprio Vargas ao se dirigir à nação, em novembro de 1937,
para justificar o golpe de Estado, afirma:

217
A consciência das nossas responsabilidades indicava imperativa-
mente o dever de restaurar a autoridade nacional, pondo termo a essa
condição anômala da nossa existência política que poderá conduzir-
-nos à desintegração, como resultado final dos choques de tendências
inconciliáveis e do predomínio dos particularismos locais.25

O Estado Novo surge, assim, no discurso governamental,


para pôr termo à crise de autoridade e à dispersão aterrorizante,
provocada pelas disputas sociais, pelos interesses divergentes,
pela oposição de classes. A autoridade nacional pressupõe uma
ordem una e orgânica, e o princípio da autoridade é reforçado
como um pilar em torno do qual se constrói a nacionalidade.
Tancredo Neves, então vereador, defende, em 1936, o forta-
lecimento do “princípio” da autoridade, o qual, segundo ele, “é,
sem dúvida, a pedra angular deste empreendimento de reação e
reconstrução de nossas combalidas instituições”.26 Essa autori-
dade Tancredo admite ser atributo de Benedicto Valladares que
congregou, junto de si, ao pacificar as forças políticas do Estado,
“expressões de real prestígio moral, intelectual e político de
nossas alas partidárias”.27 A ideia de autoridade para esse então
iniciante político mineiro pressupõe condução, liderança de um
poder institucionalizado e prestígio político. O mesmo parece
entender Afonso Arinos de Mello Franco que, ao criticar a falta
de modéstia nos hábitos administrativos dos governantes, as
consequências orçamentárias de gastos suntuários e a existência
de verbas deficitárias no orçamento, que trazem descontenta-
mentos e irritações entre camadas do povo brasileiro, afirma:

Todos os esforços dos governantes e governados hoje no Brasil


devem ser, assim, inteligentemente voltados para o restabelecimento
da confiança pública nos seus dirigentes, que é o elemento primordial
e insubstituível para o sucesso de qualquer trabalho de reconstrução
nacional. Para tal objetivo é, contudo, indispensável que os governos
sejam constituídos de cidadãos capazes de merecer essa confiança, e,

218
também, que eles empreguem na sua atuação, processos de evidente
desinteresse e claramente bem intencionados.28

Nos homens públicos, a falta de autoridade moral e de compe-


tência — o que também confere autoridade — é que traz, segundo
ele, a desilusão e a desconfiança das massas, o que ele considera
como a “pior catástrofe, na organização de um Estado”. Sem
autoridade, portanto,

começa a função da desordem, essa agitação vaga e confusa, essa


indisciplina perigosa, esses golpes diretos do desespero, cujas manifes-
tações objetivas são as greves, os motins, os tumultos a que a Nação
assiste, agora, apreensiva e sobressaltada.29

Nesta reflexão de Afonso Arinos, é manifesto o seu entendi-


mento de que o país, em 1935, atravessa uma situação de crise
de autoridade e de instabilidade política, medida por ele em
termos de um “quantum” de desordem, ou seja, pela frequência
de greves, de manifestações de rua, de choques entre grupos
políticos, choques com a polícia, entre outros fatos.
Entretanto, não só a autoridade moral dos governantes
preocupa Afonso Arinos. Completando a sua concepção da
“desordem”, entendida como “luta política que se processa à
margem da política oficial do Brasil”,30 ele acrescenta um outro
ponto como parte das apreensões com a questão da autoridade:

O empobrecimento progressivo do poder de repressão da autoridade


pública diante da sublevação dos extremismos. Estamos em face de
um panorama tipicamente revolucionário no seu sentido mais grave.
Enquanto se afirmam e se reforçam as tendências à insurreição, se
anula e se enfraquece não só materialmente, mas, também, moralmente,
o aparelho do Estado. E a conclusão disso não será difícil de se prever.
A progressão da luta, já hoje francamente esboçada, será a confusão

219
total e a anarquia do Brasil. Primeiro porque nenhum dos grupos que
se chocam tem ainda organização, orientação e base histórica para
controlar o poder. Segundo porque, embora fracos, serão em breve,
dentro de dois ou três anos, mais fortes que o governo e poderão
arrancar-lhe, em algumas partes do território nacional, a autoridade
vacilante que lhe escapa das mãos.31

Ao negar orientação, direção e base histórica aos grupos em


combate — no caso, ele se refere aos comunistas e aos integralis-
tas —, Afonso Arinos invoca a “autoridade de mando” das elites
tradicionais e a durabilidade e a estabilidade do poder destas no
tempo. É uma defesa da “autoridade” e da “tradição”. É inte-
ressante observar também que Afonso Arinos, que se refere aos
comunistas e integralistas como sendo defensores, segundo ele,
de “concepções radicais e extremas da estrutura política e social
do Estado”, faz essas considerações para denunciar que essas
soluções extremas ganharam espaço diante da inexistência do
poder democrático, da fraqueza irremediável do poder ditatorial,
do apego ao poder dos revolucionários de 1930 — “unidos no
propósito de repartir os despojos da Pátria” —, da covardia da
Assembleia Constituinte que permitiu que o governo instalado
com a revolução substituísse a si mesmo,“invadindo desembara-
çadamente o período constitucional”. A nosso ver, Afonso Arinos
se ressente da posição secundária do princípio da democracia
partidária, na ordem política vigente em 1935, que é o que daria
legitimidade à Constituição e posterior acionamento de um arse-
nal defensivo, legal e eficiente, para manter em funcionamento a
ordem democrática sem a desordem “das greves, tumultos etc.” e
assim proteger o Estado de motins e sublevações. Aqui tocamos
uma outra faceta da ordem: a legalidade. O que Afonso Arinos
parece desconhecer é que, ainda que com suporte legal e com
os partidos em pleno funcionamento, a supressão do conflito
significa por si só a supressão da vida democrática.
Ocorre que, para Vargas e outros, a democracia de partidos
é desordem. E o Presidente não poupa palavras para dizê-lo:

220
Nos períodos de crise, como o que atravessamos, a democracia de
partidos, em lugar de oferecer segura oportunidade de crescimento e
de progresso, subverte a hierarquia, ameaça a unidade pátria e põe em
perigo a existência da Nação, extremando as competições e acendendo
o facho da discórdia civil. (...) O sufrágio nacional, passa, assim, a ser
instrumento dos mais audazes e máscara que mal dissimula o conluio
dos apetites pessoais e de corrilhos.32

Por outro lado, Vargas não se satisfaz com a criação da Lei de


Segurança, com a imposição de emendas à Constituição de 1934
e a instituição do Estado de Guerra e do Tribunal de Segurança
Nacional. Com isso, por ocasião da instalação do Estado Novo,
ele afirma:

Colocada entre as ameaças caudilhescas e o perigo de formações


partidárias sistematicamente agressivas, a Nação (...) não dispõe de
meios defensivos eficazes dentro dos quadros legais, vendo-se obrigada a
lançar mão, de modo normal, de medidas excepcionais que caracterizam
o estado de risco iminente da soberania nacional e da agressão externa.33

Como Afonso Arinos, também Vargas parece acreditar no em-


pobrecimento progressivo do poder de repressão da autoridade
pública. Como não foi o bastante para o poder de repressão do
presidente a instituição da Lei de Segurança Nacional, o resultado
foi a Constituição de 1937. E com ela o presidente — o poder
— se confunde com a sociedade — a nação. E essa identificação
elimina a necessidade de intermediadores entre povo e gover-
nante. Assim sendo, não há necessidade de partidos. A descrença
no princípio da representação partidária é o bastante para que
a ordem se firme como fantasmagoria do uno.
Ainda quanto à questão legal, encontramos Afonso Arinos
criticando o projeto da Lei de Segurança Nacional apenas no
que diz respeito a seus aspectos jurídicos. Quanto à lei em si
mesma, também ela confere “autoridade” ao Estado. A sua
crítica primeira é dirigida às sucessivas transformações pelas

221
quais passava o projeto, ainda em fevereiro de 1935. A alteração
do projeto, segundo ele,

(...) demonstrou que no conceito dos seus próprios autores ou


propugnadores, ele não tinha atingido a sedimentação suficiente que
caracteriza a formação das convicções sinceras. Parece que as medidas
foram tumultuariamente reunidas às pressas, e redigidas em cima das
pernas.34

Elogiando alguns substitutivos de Henrique Bayma, que eli-


minavam disposições antijurídicas de texto legal, Afonso Arinos
manifesta sua preocupação de que o projeto seja adaptado e
enquadrado ao ambiente político brasileiro, afirmando:

Porque essa, parece, é a grande necessidade. Compreende-se que


em determinado momento, quando o Estado se sente visado pela ação
revolucionária e descontrolada das várias ideologias antidemocráticas,
e, em certo sentido, antinacionais, procure ele aumentar o seu apare-
lhamento de resistência contra tais choques.
Mas é indispensável que se receite uma lei, ainda que destinada a
ocupar um lugar especial de lei restritiva da liberdade, condicionada
à tendência geral no sentido histórico e tradicional da formação do
sistema jurídico brasileiro. (...) Uma lei destinada a proteger o Estado
brasileiro deve ser uma lei brasileira, elaborada e constituída de ele-
mentos familiares ao nosso direito, porque vai reger fatos da nossa
vida, nortear atividades do nosso povo.

A concordância de Afonso Arinos com uma medida das


mais extremas adotada por Vargas, tal como a Lei de Segurança
Nacional, um instrumento nítido de contenção das liberdades
e das manifestações das oposições de classe, e os seus pruridos
com o ato de legislar para “atender” ao povo brasileiro na sua
universalidade, nos remete às contradições internas do discurso
ideológico. Enquanto discurso sobre o social, o discurso da ordem

222
vem escorado sob o discurso da lei e, em última instância, sob
o discurso da justiça (Lefort, 1974).
Também D. Sebastião Leme, ao descrever os perigos do co-
munismo, numa operação ideológica, faz a ligação entre ordem
e lei ao afirmar que “no caos, não há lugar para governos nem
para legisladores”.35
O escritor Oscar Mendes é enfático na sua defesa do Tribunal
de Segurança Nacional:

O Tribunal de Segurança Nacional é uma máquina montada para


trucidar os adversários do governo. Não é uma criação do ódio e da
injustiça. Não é um júri de opereta para disfarçar os horrores de uma
tragédia. É um tribunal legal, legalmente constituído e legalmente cum-
prindo o seu dever de julgar réus de traição à pátria, de subversores
das instituições, de assassinos e de saqueadores.36

A punição à transgressão da ordem torna-se, assim, um dever.


Simpatizantes do integralismo argumentam contra os comu-
nistas — que definem como uma de suas plataformas políticas de
maior receptividade a luta contra o integralismo — que o Partido
Integralista é um “partido político de vida legal, garantido pela
Constituição e de princípios doutrinários respeitadores dos ele-
mentos básicos de qualquer sociedade cristã e civilizada”.37 De
novo, juntas, ordem e legalidade. Por isso mesmo, a desordem é
o que justifica a lei, o que é afirmado num editorial sobre a Lei
de Segurança Nacional:

Estes [os extremistas comunistas] têm procurado mesmo, com gre-


ves, comícios, agitações de toda a sorte, lançar o país na mais completa
anarquia, a fim de terem facilitados os seus planos de subversão da
ordem. Esta atitude, porém, vale como o melhor argumento em prol
da oportunidade da lei e da sua urgente promulgação.38

223
O terreno da lei surge, assim, como um espaço privilegiado
para a racionalização da autoridade e para a ocultação do discur-
so da violência, uma vez que este utiliza a linguagem da ordem
e da lei. E será em nome da tranquilidade pública, dos direitos
dos cidadãos, da consciência cívica e moral, das instituições e
do progresso que a repressão se negará enquanto violência e
enquanto censura. Ouçamos Getúlio Vargas:

Em 1935, ao expirar o ano, quando uma nuvem turva de ódios


ameaçava os lares brasileiros, eu vos prometi a garantia de todos os
direitos dentro da ordem legal. Cumpri o prometido. O Estado foi
dotado do aparelho defensivo que o momento impunha, e, atualmente,
funcionando a justiça especial dos delitos políticos, pode fazer frente
aos ataques ostensivos ou disfarçados dos seus inimigos.39

A montagem desse aparelho eufemisticamente chamado de


defensivo vai passar por tenebrosos caminhos. Um deles é, sem
dúvida, o da Lei de Segurança Nacional40 que define os “crimes”
contra a ordem política e social.
O conceito de crime, criado, é vasto o bastante para impedir
e punir rigorosamente todos os direitos de cidadania, desde a
livre expressão do pensamento, a organização associativa, a
liberdade de imprensa, até o direito de informação, o direito
de greve e a desobediência civil. É considerado crime contra a
ordem política, entre outros, por exemplo, os “incitamentos”: de
servidores ou funcionários públicos a paralisar seus serviços (art.
70); à desobediência coletiva a cumprimento de lei pública (art.
90); a que militares e policiais infrinjam códigos de disciplina,
se rebelem ou desertem (art. 10). É proibida a divulgação de
notícias “falsas” (art. 120); a distribuição de impressos, papéis
etc. a soldados e marinheiros; o uso, a compra e a posse de
armas, munições, sem conhecimento das autoridades (art. 130).
São crimes contra a ordem social a promoção e os incita-
mentos de “ódio entre as classes sociais” (art. 14); de luta, com
violência, entre as classes, e por motivos religiosos (art. 15 e

224
16); de paralisação de serviços públicos e de abastecimento da
população (art. 18); de greve de empregados e empregadores (art.
19); é crime, ainda, promover, organizar ou dirigir sociedades de
qualquer tipo que subvertam ou modifiquem a ordem política
e social, sem consentimento da lei (art. 20); e a especulação
fraudulenta e artificiosa dos preços dos gêneros de primeira
necessidade (art. 21). A lei proíbe também a propaganda de
processos violentos para subverter a ordem política (no que
diz respeito à integridade, soberania, independência da nação
e funcionamento das instituições) e a ordem social (no que se
refere: ao regime jurídico da propriedade, da família e do tra-
balho; aos direitos e garantias individuais, tal como previstos
nas leis; à organização e funcionamento dos serviços públicos e
de utilidade pública; aos direitos e deveres entre os indivíduos
e as pessoas de direito público).
Diante de tal interdição do espaço público, pode-se considerar
um desdobramento natural as disposições da lei que vedam a
impressão, a venda, a exposição e a circulação de gravuras, livros,
panfletos, boletins, nacionais ou estrangeiros, considerados aten-
tatórios à ordem política e social (art. 26), bem como a proibição
da existência de partidos outros, agremiações de qualquer tipo
que “visem” à mesma subversão (art. 30).
O cerco aos partidos e associações se completa com uma série
de medidas autorizadas ao governo pela lei: para que feche as
agremiações existentes, mesmo já tendo adquirido personalidade
jurídica, à suspeita de que exerçam atividade subversiva; para
que casse o reconhecimento dos sindicatos pelo mesmo motivo,
bastando a requisição do chefe de polícia; para que afaste ou
exonere dos seus cargos os funcionários públicos e civis que se
filiarem a associações proibidas; bem como para que afaste do
comando os militares e os professores das cátedras. Embora a
classe operária organizada seja um dos alvos principais da lei,
a bem da verdade, é preciso que se diga que esta alcança o con-
junto dos cidadãos. As suas primeiras vítimas de maior impacto
público, no plano das organizações, foram a Aliança Nacional

225
Libertadora, a União Feminina do Brasil e a União de Luz Ope-
rária Russo-Branca-Ukraniana, fechadas, por decreto, entre julho
e agosto de 1935.41 A elas se sucedem os vários fechamentos de
sindicatos e associações.
Após novembro de 1935, já em plena vigência do Estado de
Sítio, o círculo de ferro da lei é reajustado para garantir o recru-
descimento da repressão, sendo definidos novos crimes contra
a ordem política e social42 e ampliadas as penalidades. Assim,
passam também a ser crime o abuso da liberdade de crítica para
injuriar os poderes públicos e os seus agentes, bem como as
manifestações de desprezo, desrespeito ou ódio contra as Forças
Armadas através, em ambos os casos, de palavras, gravuras ou
inscrições. É introduzido,“a bem da disciplina e da segurança das
instituições”, o dispositivo que permite aposentar funcionários
públicos e reformados militares das forças armadas e da polícia
quando incursos na Lei de Segurança.
Outra mudança importante, quanto aos funcionários, é a que
os torna inabilitados pelo prazo de dez anos para cargos públicos
em serviços subvencionados, mantidos, fiscalizados ou de conces-
são do governo. Da mesma forma, essas empresas ou institutos
ficam proibidos de manter em seu quadro trabalhadores filiados
a organizações e partidos proscritos, ou que tenham cometido
há menos de dez anos qualquer infração à Lei de Segurança.
A lei passa, ainda, a obrigar que as empresas de publicidade
registrem nas chefaturas de polícia, com prazo previsto para as
atualizações, o nome, a nacionalidade e a residência de todos os
membros do seu quadro de pessoal — dos diretores e redatores
aos operários.
Por outro lado, o Ministério do Trabalho fica autorizado a
permitir às empresas a dispensa de empregados, sem indenização,
se ficar constatada a filiação de alguns deles a partido ou organi-
zação clandestinos, proibidos pela lei, e o governo é autorizado a
cancelar permissão de funcionamento e fechar estabelecimentos de
ensino que não excluírem os diretores, professores e funcionários
filiados às organizações ilegais.

226
Dentro desse mesmo espírito, o governo consegue alterar a
Constituição, acrescentando-lhe, entre outras emendas, a que o
autoriza a equiparação do Estado de Sítio ao Estado de Guerra.43
A esse respeito, vale a pena registrar a afirmação do chefe de
polícia, Filinto Muller:

As providências que o governo solicitou ao Poder Legislativo se


justificam plenamente, porque o perigo comunista ainda existe. Está
latente, manifesta-se aqui e acolá. Preciso se torna que os responsáveis
pelo regime e pela guarda das instituições estejam munidos de elementos
para repressão e fortalecidos, a fim de aniquilar qualquer manifestação
que surja, garantindo a segurança dos cidadãos, da sociedade e do país.44

Com a lei, alguns milhares de cidadãos foram processados


em todo o país.
Para concluir esse quadro de restrições à convivência demo-
crática, em setembro de 193645 é criado o Tribunal de Segurança
Nacional, o qual, segundo a lei, tem seu funcionamento previsto
somente dentro do Estado de Guerra, conseguindo, contudo,
ampliar o seu período de vigência, em dezembro de 1937, por um
decreto-lei46 que determina sua atividade “até a organização da
justiça de defesa do Estado”, de acordo com o estabelecido pela
Constituição de novembro. O tribunal tem também ampliada
sua competência de julgamento para crimes contra a economia
popular, sua guarda e seu emprego, além dos já tradicionais
crimes contra a subversão das instituições políticas e sociais, tal
como previsto na lei que o instituiu. Afinal, embora não definido
explicitamente como “crime contra a economia popular”, esse
tipo de delito já estava previsto no texto original da Lei de Se-
gurança (art. 21) e não foi contemplado entre as atribuições do
tribunal quando da sua criação. A sua inclusão no texto da Lei
de Segurança, a nosso ver, é um dos grandes ardis da lógica da
dominação que impera nesses anos. Isso se dá porque, por um
lado, a sua introdução permite ao cidadão reconhecer facilmente
uma ameaça presente cotidianamente na sua vida e alimentar a

227
ilusão de que é protegido. De outro, ela permite que o raio de
operação da lei se amplie de tal forma até o cidadão comum,
na pessoa, próxima e constante, do comerciante, do agiota, dos
proprietários de imóvel, que a ação da lei é sentida e acompa-
nhada constantemente por todos e, consequentemente, também
temida por todos. Como esse delito, também o de injúria e o de
calúnia vão permitir grandes vantagens aos principais interes-
sados na ordem. Isso porque, como nem sempre existem provas
materiais concretas, vale a palavra de um contra a dos outros,
o que acarreta o aumento da vigilância de uns sobre outros e os
acertos de contas entre desafetos, como provam certos processos
motivados por denúncias com argumentos absurdos, pueris e
frágeis, que indicam motivos pessoais, atestados, inclusive, em
despachos de juízes que indicam o fato.47 Particularmente durante
o Estado Novo, o maior número de processados pelo tribunal
se encontra nessas categorias de infratores.
Tomando como exemplo o Estado de Minas Gerais, é possível
perceber a amplitude desses dispositivos estratégicos da ordem.
Entre 1936 e 1945, encontramos processados no estado — in-
dependentemente do célebre processo 01 que envolveu somente
os implicados nas insurreições principais de 1935 — algo em
torno de seiscentas e cinquenta pessoas.48 Destas, em torno de
trezentas são denunciadas por crime contra a economia popular;
duzentas e cinquenta e sete são processadas por crime contra
a ordem, a segurança e integridade do Estado; e setenta e três
por injúria, calúnia, desacato. O maior número de processos é
aberto após novembro de 1937 quando os dispositivos estraté-
gicos mencionados são utilizados em toda sua amplitude. O que
queremos ressaltar, pela avaliação dos processos examinados,
é que a condição estratégica desses tipos de delito permitiu
um maior submetimento dos cidadãos. Afirmamos isso por
dois motivos principais: primeiro, porque há a precariedade
e o ridículo das denúncias feitas, as quais, porém, são sempre
acolhidas; segundo, porque existe o dispêndio de tempo e de
pessoal na averiguação das denúncias e a posterior absolvição

228
da maioria dos implicados, ao contrário do que acontece no
caso dos crimes contra a segurança que, mesmo com absolvições
anteriores bem fundamentadas por juízes federais seccionais dos
Estados, são objeto de severas condenações.49 A nossa avaliação
é que, mesmo quando absolvido, o cidadão já sentiu no corpo
o olhar acusatório dos cruzados da ordem e da moralização,
o peso da punição de caráter exemplar e o seu submetimento
à execração pública. Por tudo isso a ordem ganha um enorme
aliado: o medo.
E, enfim, a lei, ao precisar minuciosamente todos os pontos
que necessita resguardar, tendo em vista a “absoluta” manutenção
da ordem, acaba por revestir essa última de uma nova feição que
realimenta o medo: a feição policial. Pois toda essa malha legal
vai propiciar um aumento da máquina policial e do seu poderio.
Poderio este definido assim por um delegado de polícia:

No decorrer daqueles anos que se seguiram à Revolução de 1930,


o poder discricionário e o livre arbítrio dos homens que estavam no
poder foram exercidos de modo desbragado. Era preciso ter uma boa
formação moral e o sentimento de respeito a si mesmo para não ser
envolvido nos desmandos que a todo momento via desfilar diante de
mim.50

A intensa demanda da ação policial para atender aos impe-


rativos da ordem pública e da segurança do Estado, em condi-
ções de excepcionalidade legal, será responsável, por um lado,
por crescente temor à polícia e pelo aparecimento de “figuras”,
como a do nacionalmente “todo-poderoso” Filinto Muller. E, por
outro lado, será também responsável pelo aumento da máquina
policial e dos seus efetivos, o que vai dar lugar a um discurso de
racionalização da atividade policial.
Quanto às solicitações da atuação da polícia,51 reconhecidas
publicamente pelo poder, um bom exemplo são as mensagens de
Benedicto Valladares à Assembleia Legislativa de Minas Gerais
em 193652 e 193753. Em 1936, ele afirma aos deputados:

229
Ainda continua insidiosa a propaganda subversiva, que se exerce
na Capital como no interior, exigindo exaustivo trabalho de vigilân-
cia e repressão. A polícia descobriu focos de propaganda, apreendeu
boletins francamente extremistas, ouviu centenas de pessoas e realizou
prisões de caráter preventivo, instaurando processos, de acordo com
as leis em vigor. (...) O fechamento da Aliança Nacional Libertadora,
cuja ação pertinaz se fazia sentir em Minas, deu causa a que a polícia
realizasse inúmeras diligências com o fim de fechar os núcleos dessa
agremiação aqui existentes, que, em alguns municípios, se achavam
armados e municiados.
Posteriormente, a apreensão de documentos dos arquivos de Luiz
Carlos Prestes e dos de seu secretário deu a conhecer o plano extremista
no setor de Minas. Informada a respeito pela polícia carioca, nossa
polícia procedeu a numerosas pesquisas, realizando busca e prisões
julgadas necessárias para maior esclarecimento (...) A delegacia da
ordem pública (...) não deixou em segundo plano os serviços adminis-
trativos. (...) Iniciou-se, em obediência à Lei de Segurança, o registro
de empresas de publicidade e organizou-se o cadastro das agremiações
de caráter extremista existentes no Estado.

E, em 1937, o governador mineiro reafirma, na sua mensagem,


a constante ação da polícia:

(...) não arrefecer o trabalho demolidor do extremismo, levando-


-nos a manter sempre atentos os órgãos de defesa do governo e da
sociedade, mesmo porque as atividades dos que conspiraram sempre
se exerceram em diferentes partes do Estado, de modo a reclamar um
desdobramento constante do serviço de vigilância. (...) A luta contra
os inimigos do regime impôs que levasse o aparelhamento policial
sua atuação a todos os pontos do Estado e, graças ao devotamento
dos seus servidores, fossem descobertos, processados e punidos todos
quanto se puseram fora da lei.
Na vigência do “estado de guerra” cumprimos fielmente o que pre-
ceitua a letra constitucional, executando-a com serenidade e justiça (...)

230
A polícia civil do Estado, que foi incansável no cumprimento do seu
dever, agiu prontamente na repressão do comunismo acompanhando
a atividade dos seus agentes, processando-os e entregando-os à justiça.

O resultado de tanto zelo e prontidão foi a instalação do


medo, da mentira, das perseguições, das prisões arbitrárias, da
censura à imprensa.
Os jornais divulgam espalhafatosamente a notícia das prisões
de “perigosos extremistas”, de caminhões que transportavam
levas de extremistas, de embarque de armas e munições, da des-
coberta de arquivos e papéis secretíssimos. Muitas dessas notícias
são seguidas, dias depois, de desmentidos, sendo que, nos casos
de prisões, a maioria dos cidadãos já tinha sido submetida a
humilhações, vexames, espancamentos e contratempos de toda
ordem. Algumas ocorrências beiram o ridículo, apesar de trági-
cas.54 É desencadeada uma guerra psicológica, e a propaganda e
o terror aparecem como partes inevitáveis dessa guerra.
O crescente aumento da violência policial — aliado à coni-
vência dos governantes e favorecido pela vigência do estado de
sítio e do posterior estado de guerra — garante impunidade não
só àqueles que fazem parte da máquina policial, mas a todos que,
de alguma forma, estão próximos às hostes governistas.
O caso de Minas, nesse ponto, é exemplar. É assustador o
avanço da violência política, particularmente no interior do
Estado, onde o pretexto para as arbitrariedades contra os opo-
sitores do grupo governista é quase sempre a manutenção da
ordem política e social contra o extremismo. Em muitos casos,
diante da banalização da violência e da certeza de impunidade,
nem pretexto há. A impressionante sucessão da violência ocor-
re de variadas maneiras, entre as quais destacamos: tortura,
assassinatos de juízes de direito, empastelamento de jornais
(como o do Germinal, onde colaborara o poeta Alphonsus de
Guimaraens), sequestros, agressões a tiro, prisões com sevícias
(tal como a ingestão de purgante, no melhor estilo fascista),

231
expulsões das cidades, perseguições a funcionários públicos
(através de demissões, afastamentos, remoções), invasões de
domicílio nas madrugadas, ameaças de morte.55 A situação é
avaliada da seguinte forma por um jornal:

As perseguições de natureza policial que se praticam no interior do


Estado, sob pretexto de repressão ao comunismo, não passam de uma
arma pouco feliz usada pela situação agonizante, para apavorarem
o eleitorado e se garantirem no poder. (...) Prender pobres e pacatos
operários alegando que eles pertencem ao credo de Moscou nada mais
representa do que um plano de pavor e de amedrontamento, para fazer
com que afastem do pleito elementos que não seguem a orientação
política dos homens que desfrutam da situação que se atemorizam
do pronunciamento das urnas. A prova evidente é que só padecem de
perseguições os elementos que não se alistam nas hostes situacionistas
municipais. Os comunistas são todos os adversários.56

Por outro lado, o governo cria um clima de suspense na so-


ciedade, dizendo estar de posse de informações poderosas, de
notícias alarmantes, de planos tenebrosos que não podem ser
trazidos a público para não provocar inquietações, mas que estão
tendo tratamento rigoroso. Aqui, entra em cena o segredo que,
segundo nos mostra Canetti (1983), “está no núcleo do poder”
(p. 323). E o segredo excita a imaginação e mantém a atenção
popular voltada para a cena do poder.
A extensão da truculência policial pode ser avaliada quando
se constata que, apesar da existência da censura que nem sempre
permitia que fossem noticiadas as arbitrariedades, e da adesão
entusiástica e incontida de vários segmentos da população (parti-
cularmente da grande imprensa) à campanha do anticomunismo
e da ordem, uma autoridade como Filinto Muller, num momento
em que se acha particularmente fortalecido, julgue necessário
vir a público para defender a ação da polícia, acusada de cum-
plicidade e excessos.

232
O perigo extremista era iminente, mas o povo não julgava assim,
e apontava a polícia como interessada em manobras políticas. Os
adversários do governo articulavam contra nós da polícia as piores
acusações, dizendo que os assassinatos, atentados e uma série de crimes
praticados pelos extremistas eram de nossa autoria, para justificar
medidas excepcionais. Nunca se praticaram tantas injustiças contra
a polícia civil, não obstante o zelo que ela mantinha, como jamais,
em favor do regime e das instituições. A polícia (...) tem feito tudo
para o bem coletivo: os funcionários estão extenuados, mas sempre
prontos para novas vigias.57

Um dos exemplos mais dolorosos da violência policial é o


caso de Harry Berger, torturado barbaramente pela polícia até
à loucura, durante seis anos e meio, de 1936 até 1942, quando
é transferido para o Manicômio Judiciário. Um dos lances mais
dramáticos nesse caso é a conivência de membros do judiciário
e da medicina psiquiátrica que compactuam, através de seus
pareceres técnico-científicos, com a sua permanência na prisão
e posteriormente no manicômio, ignorando, por um lado, os
seus suplícios e, por outro, os danos que estes causavam à saúde
mental do prisioneiro, descrito como uma “personalidade para-
noide” (Joffily, 1987, p. 96-103).
A violência policial é também admitida dentro do discurso da
modernização e reforma do aparato policial. A violência bruta, o
enfrentamento no corpo a corpo, nesse discurso, cede o primeiro
plano para a defesa das vantagens da ação policial preventiva, da
racionalidade burocrática, da especialização “técnico-científica”.
Dentro de uma visão racional da repressão, a força passa então
a ser encarada como um elemento a mais a fomentar a subver-
são da ordem, os confrontos de classe, as ideologias políticas. A
força é vista enquanto ato de desespero e expressão do instinto,
da paixão, do impensado, do irracional. Só situações extremas,
portanto, podem justificá-la, uma vez que são situações desse
tipo as que interrompem o fluxo da razão.

233
Um projeto de reforma do aparelho policial, elaborado pelo
chefe de polícia do Estado de Minas Gerais, vai motivar o se-
guinte editorial:

O emprego da força — método tão em evidência na polícia minei-


ra — é apenas um meio de conter uma ameaça atual, provocando a
irritação que sucede às grandes repressões. Só uma polícia experimen-
tada pode desenvolver a sua ação no sentido de acalmar os ímpetos
sociais, sem os atos de desespero, infecundos no sentido da ordem e
fonte de novas agitações dos indivíduos espesinhados e espaldeirados,
que reúnem novas forças e incendeiam-se de nova chama de ideais,
caminhando para a praça pública, onde renovam o seu protesto. E
tantas vezes são vítimas dos desatinos policiais que provocam no seio
do povo acentuados movimentos de piedade. Em breve a imaginação
popular encarrega-se de tecer os fios de uma lenda, que cada vez mais
se entrelaçam até criar as figuras dos perseguidos e dos mártires (...)
A polícia desenvolve um princípio preventivo e só reprime quando
as situações chegam a atingir um grau de verdadeiro desespero, não
permitindo mais o emprego dos meios suasórios. (...) O aparelhamento
policial só será realmente beneficiado, se a reforma em projeto penetrar
em suas camadas mais profundas, revolvendo ali os males que deturpam
a vida policial do Estado. (...) É preciso arejar a mentalidade policial,
libertando-a desta espécie de espírito medieval.58

Entretanto, mesmo tentando mostrar-se empenhado na


racionalização da atividade policial — e promovendo-a, efeti-
vamente — o poder tem suas recaídas. Benedicto Valladares, ao
falar à nação, reafirmando o seu apoio ao regime e a confiança
no processo sucessório em marcha, em 1937, “tranquiliza” os
brasileiros, afirmando que a ordem e a paz “serão mantidas com
a força, a unidade e o poder conservador de todas as instituições
da República”.59
Entre as providências consideradas necessárias à racionali-
zação e modernização da atividade policial, está a reforma da
organização burocrática da máquina policial. Nesse sentido,

234
discutem-se variadas medidas, entre as quais destacamos: o
estabelecimento da polícia de carreira; a criação de escolas de
instrução para investigadores; a ampliação do quadro policial,
para evitar o desvio dos delegados especializados do serviço
policial-técnico para outras funções; a instituição de escoltas
volantes aparelhadas e equipadas, chefiadas por um delegado
especial de capturas, para agilizar as prisões.60 Enfim, pleiteia-se
uma polícia bem remunerada, feita por bacharéis, e com bons
auxiliares.
Quanto à modernização, uma das medidas demandadas é a
da criação de um laboratório técnico-policial.61 Essas providên-
cias são objeto de discussão, em nível nacional, no Congresso
dos Chefes de Polícia e Secretários de Segurança dos Estados,
realizado no Rio de Janeiro em 1936,62 liderado por Filinto
Muller, dele participando os ministros da Justiça, Vicente Rao,
da Marinha de Guerra, do Trabalho e das Relações Exteriores.
Na ocasião, foi assinado um convênio entre a Secretaria de
Segurança, as chefias de polícia do Distrito Federal e dos Es-
tados que — além da integração e uniformização da ação das
Secretarias visando a melhor eficácia da repressão, da vigilância
e da informação policial referente à ordem pública e social —
previa a reforma técnico-administrativa do aparato policial. A
partir desse convênio, instituem-se numerosas medidas: inicia-se
a especialização dos serviços de ordem pública e social,63 o que
ocasionou o desmembramento das delegacias de ordem pública;
cria-se um serviço especial destinado a fiscalizar o comércio e
o uso de armas, explosivos e munições; organizam-se os cursos
de investigação criminal e de instrução física e defesa pessoal;
estabelece-se também um serviço especial para o controle dos
estrangeiros.
O convênio prevê ainda um arquivo geral da polícia, para
onde seriam enviadas as fichas de voluntários ao Exército e pre-
tendentes à ocupação de cargos públicos. Além disso, determina
aos postulantes a cargos sindicais a exigência da folha corrida e

235
apresentação prévia ao Ministério do Trabalho para que este ob-
tenha da polícia as informações dos antecedentes dos candidatos.
Aqui, o poder, de forma contraditória, aparece mascarado
duplamente:

(...) enquanto representante da sociedade sem divisão e enquanto


agente da racionalidade da organização, ao mesmo tempo em que apa-
rece, (...) enquanto aparelho de coerção, como portador da violência
una (Lefort, 1974, p. 43).

O espaço ocupado pela polícia, dentro de uma conjuntura


marcada por uma investida da repressão de tal envergadura,
ocasiona alguns desdobramentos na ação policial. Como con-
sequência do investimento na formação profissional de seus
quadros, as autoridades policiais também passam a considerar
como parte de sua ação em defesa da ordem a tarefa de esclare-
cimento do proletariado e da juventude acerca dos “erros” das
doutrinas socialistas e comunistas e de arbitrar pendência entre
patrões e empregados.64
Em meio a esse quadro em que é visível o crescente aumento
do poderio da polícia, outras iniciativas vêm novamente revelar
o poder do discurso da ordem, já facilmente reconhecido como
um discurso do poder. Entre elas, destacam-se: a instalação, pelo
governo federal, da Comissão de Repressão ao Comunismo, em
janeiro de 1936; a criação e coordenação pelo DIP da campanha
de esclarecimento popular contra o comunismo, transmitida
através da Hora do Brasil e do seu serviço de imprensa; a insti-
tuição pelo Ministério da Educação de um ciclo de conferências
também sobre o comunismo, sendo chamada essa iniciativa de
Gustavo Capanema de contrapropaganda de caráter cívico;65 a
solicitação pelo Ministério da Justiça ao ministro da Educação
para que organizem comissões incumbidas de rever os livros
escolares a fim de produzir um saneamento cívico dos seus
conteúdos. Tal determinação é cumprida no Estado de Minas

236
Gerais, com a criação por decreto-lei de duas comissões: uma
para formular sugestões no sentido de maior eficiência do ensino
cívico e do combate ao comunismo nas escolas (decreto n. 1.007);
outra para orientar a propaganda anticomunista, por meio de
jornais, revistas e radiodifusão, e fazer censura a todas as obras
de caráter didático, técnico, político, social ou simplesmente
literário, que tenham por finalidade propagar ideias comunistas
(decreto n. 1.008).66
Agora resta perguntar se os comunistas e os aliancistas con-
frontam esse discurso da ordem do qual são o alvo e as vítimas
preferenciais. Nessas circunstâncias, como não poderia deixar de
ser, eles têm a concreta dimensão do clima gerado pela repres-
são, que é amargamente vivenciado por eles. O coronel Felipe
Moreira Lima, preso a pedido da Comissão de Repressão ao
Comunismo, acusado de participar do levante militar de vinte
e sete de novembro de 1935, no Rio de Janeiro, escreve num
comunicado ao povo e ao Exército:

Qualquer argumento, até mesmo a mais convincente demonstração


de inocência, não encontraria eco num ambiente gelado de medo onde
apenas ressoam livremente as injúrias, as calúnias, as invencionices da
abjeta imprensa do Estado de Guerra pela qual se canalizam o enxurro
de lama dos rancores reacionários.67

Também Coscardo, numa carta reservada a um amigo, na


qual extravasa todo o seu rancor com o Partido Comunista — o
responsável, segundo ele, pelo fechamento da ANL e interessado
na ilegalidade — afirma que

a polícia gerou o pavor e está sendo vítima de autossugestão. A fan-


tasia policial, a maior aliada do Partido Comunista, tornou necessário o
aparecimento dos bodes expiatórios que somos nós. Mas a capacidade
de discernir há de reaparecer e então se poderá verificar a ridicularia
que deu margem a tamanho terremoto no noticiário policial.68

237
O combate ao extremismo é também considerado por um
grupo de oficiais “como uma rendosa indústria”, a qual era ali-
mentada com “repetidas descobertas espetaculares de complôs
e arquivos e delações de todo calibre”.69
Contudo, apesar das denúncias de mentira, da exploração do
perigo comunista, do clima de medo, da prática do terror e da
tortura, das perseguições e prisões arbitrárias, se se observam os
documentos do Partido, percebe-se como ele mantém intocado,
sem discussão das diferenças de tratamento desses temas no
campo dos discursos e das práticas políticas, dois dos principais
sustentáculos da ordem: a disciplina e a autoridade. Com isso, os
comunistas deixam de trabalhar — no sentido da construção da
cidadania e da democracia — um dos eixos básicos das relações
de dominação.
As questões relativas à ordem, à lei e à autoridade sempre
estiveram no centro das reflexões dos pensadores políticos clás-
sicos e contemporâneos ao enfrentarem o enigma da origem do
conhecimento sócio-histórico, além dos desafios da vida social
e da sua permanência, continuidade ou ruptura. Hobbes, Rous-
seau e vários outros, cada qual a seu modo, tentaram responder
a essas questões que envolvem a existência da ordem social. A
existência mesma da sociedade tem sido identificada à emergência
da ordem e da lei seja no plano do contrato social, seja no plano
do pacto edípico, como quer Freud.70 O que queremos ressaltar
é que essas questões ocupam um lugar cativo na política e delas
dependem as chances de construção de um espaço democrático.
A sua presença pura e simplesmente nos vários discursos políticos
oriundos do social por si só não desqualifica nenhum deles nem
os iguala. O que os iguala ou diferencia é o uso ou não da sua
retórica enquanto instrumento de dominação política. Nessa
parte, vejamos como se saem os comunistas.
Numa circular aos camaradas,71 o Partido, já no fim dos anos
de 1920, chama a atenção para alguns artigos de seu estatuto
que se referem à disciplina, os quais definem que “a mais se-
vera disciplina do Partido constitui o primeiro dever de todos

238
os membros e de todas as organizações do Partido” (art. 42), o
que implica a obediência e aplicação imediata das decisões das
instâncias superiores. “Todo ato de indisciplina acarreta sanções
da parte dos órgãos correspondentes do Partido” (art. 43). As
sanções implicam censura, destituição, substituição e dissolução,
quando se tratar da organização; e censura no Partido, censura
pública, destituição das funções e exclusão, no que concerne a
seus membros. A circular insiste na necessidade da disciplina
associando-a ao ato de “apertar os parafusos da máquina. Do
contrário, a máquina arrebentará por frouxidão”. Como a
disciplina implica obediência aos estatutos da organização, a
circular repassa os “deveres elementares” de cada camarada,
os quais incluem o vínculo a uma célula, a participação regular
nas assembleias, o pagamento das mensalidades, o vínculo ao
núcleo sindical da sua corporação e a participação nas reuni-
ões, a execução das tarefas que o partido atribuir e, por fim,
a comunicação à célula das eventuais mudanças de emprego,
endereço etc.
O significado dessas determinações estatutárias para a de-
mocracia interna do Partido coloca a questão da disciplina e
da autoridade dentro do Partido em condições semelhantes às
que elas ocupam dentro do discurso da ordem, emitido pelo
poder. Assim, em agosto de 1935, quando o Partido assume na
ilegalidade a direção integral da ANL, aqueles que se opõem
à fala “una” de “ordem” do Comitê Central do Partido e do
“Governo Popular Nacional e Revolucionário” são acusados,
num documento do Comitê,72 de “elementos podres conhecidos
por suas bagagens contrarrevolucionárias” (p. 7). Também
os trotskistas são execrados como inimigos do Partido, como
aqueles que

reclamam seu posto de honra ao lado da reação e recrudescem sua


luta contra a vanguarda do proletariado e contra a Aliança Nacional
Libertadora. Cães de guarda do governo, a Revolução ajustará contas
com eles, juntamente com os inimigos do povo (p. 7).

239
Ao se oporem às discordâncias com a sua linha política, os
comunistas e o Comitê Central instituem um discurso interno
da ordem, no qual as transgressões doutrinárias constituem
desordem grave, e os transgressores, objeto de severa punição
pela nova ordem social a ser instalada: a ordem da revolução.
A disciplina, com vistas a esta ordem, é afirmada sem rodeios:

(...) o proletariado revolucionário não vacila em aplicar essas san-


ções mesmo contra os elementos que no passado mais se destacaram
na luta, se tomarem posições contrarrevolucionárias.73

E a nova ordem, a da revolução, é vislumbrada surgindo da


ação do governo nacional popular revolucionário. Assim se diz
após os acontecimentos de Natal que culminaram na instalação
de um governo popular:

São os decretos que emprestam, desde logo, um novo e mais ele-


vado sentido à existência humana. É o espírito da verdadeira ordem,
assentada no propósito do bem-estar coletivo e não na imposição de
privilégios e malsãos interesses. A preocupação e o respeito à mulher e
à criança, da defesa enfim dos lares do povo, até agora expostos, nessa
situação de pobreza e insegurança de todos os riscos.74

A nova ordem social, também como a antiga, aparece ligada


à lei.
Como eliminar essa desordem factual das discordâncias teó-
ricas e restaurar a racionalidade dentro do Partido? O Comitê
responde:

Dentro do próprio Partido, cada organização deve demonstrar a


maior vigilância ideológica e política, persuadindo quem não com-
preenda de boa fé e combatendo impiedosamente os que se fazem
porta-vozes da influência estranha dentro do Partido. Firmeza,

240
vigorosa e serena, na aplicação, sem vacilações, da linha do C.C. e
férrea disciplina bolchevique. Deste modo o PC marcha dono de si
mesmo, objetivando os próximos combates revolucionários (p. 12).

Em 1938, quando o Partido está dividido numa ferrenha luta


interna com os “fracionistas ou trotskistas”, a preocupação com
a disciplina e a autoridade do Comitê Central levam o Comitê
Regional de São Paulo75 à adoção de medidas que deveriam ser
postas em prática com decisão. Assim, proíbe-se aos organismos
e membros do Partido que aceitem ligações com os fracionistas,
através de reunião ou recebimento de material; os membros do
Partido ficam impedidos de atuar fora do organismo a não ser
com autorização superior; as ligações de camaradas do Partido
só podem ser aceitas através dos organismos; os fracionistas
não podem ser aceitos no Partido sem autorização da direção
local ou regional e devem apresentar declaração afirmando
estarem desligados do grupo fracionista, comprometendo-se
com a linha do Partido; o material para distribuição só pode
ser recebido pelos organismos através dos canais competentes;
nenhum material pode ser entregue à distribuição sem que os
membros do Partido conheçam seu conteúdo, para evitar mate-
rial contrarrevolucionário; é obrigatória a leitura do material do
Partido; todo membro deve conhecer a linha política do Partido
e respeitar o modo como é aplicada.
Com essa disciplina férrea e obediência irrestrita às decisões
do Comitê Central, portanto, com absoluto respeito à hierarquia,
o Comitê Regional de São Paulo afirma que o Partido é favorável
à autoridade. É bem verdade que tentam tingir esta autoridade
com “novas cores”, qualificando-a como

(...) não imposta contra a vontade do povo e por cima da sua so-
berania inviolável, mas criada e sustentada pelo próprio povo, pelo
seu voto e aprovação conscientes, submetida aos imperativos das suas
aspirações, guiada pelos seus ditames e desígnios inabaláveis.76

241
Esses ditames e desígnios inabaláveis, ao conferirem ao Co-
mitê Central do Partido a sua condição de infalibilidade para
impor tais exigências disciplinares, colocam no mesmo plano
do discurso das classes dominantes a afirmação da autoridade.
O que mais assombra é ver o Comitê Regional do PCB de
São Paulo, nesse mesmo documento, endossar o discurso da
repressão e da ordem pública:

Aos que querem um São Paulo seguro e tranquilo para um labor


perseverante da sua gente, o Partido Comunista afirma com energia:
torna-se necessário reprimir terminantemente a vergonhosa conspiração
integralista que os chefes do sigma fermentam no coração do nosso
Estado, dentro da nossa própria capital, em comunhão com os reacio-
nários de todas as matizes, eternos inimigos do povo, que não vacilam
em aliar-se aos vendilhões da nossa pátria. Cumpram-se contra os cons-
piradores as leis do próprio governo do Sr. Getúlio Vargas, que entrou
em conflito com o sigma. Prendam-se os chefes sigmoides que conspiram
abertamente. Prendam-se os velhos reacionários carcomidos, que ajudam
a conspiração integralista fascista. Apreendam-se os armamentos de que
São Paulo está cheio (...) Suprima-se a despudorada literatura integra-
lista que infesta as livrarias da capital. Leve-se a efeito o fechamento
do jornal A Ação, que sem nenhuma justificativa continua a circular
livremente. Expulsem-se das Forças Armadas os militares integralistas
até hoje impunes. Aplique-se rigorosamente o decreto-lei do governo
federal, que manda fechar os partidos políticos estrangeiros, porque
até o momento eles continuam a exercer as suas perniciosas atividades,
de que é testemunho o fato de terem sido distribuídos nitidamente nos
sindicatos boletins nazistas editados na própria Alemanha.
O Sr. Ademar de Barros declarou que será implacável contra os per-
turbadores da ordem. (...) O sr. interventor só o que tem a fazer é agir.

Aqui, os comunistas receitam para os integralistas, que sempre


contaram com a conivência do governo e das autoridades poli-
ciais, o mesmo remédio amargo que lhes serviram. Defendendo
a ordem e a lei de exceção contra os integralistas, os comunistas

242
delimitam na cena política pública um espaço de desordem: o
ocupado pelos adversários. A restauração da ordem, portanto,
exige a sua completa eliminação. A repressão aos integralistas é
solicitada no mesmo documento, no qual o apoio ao interventor
Ademar de Barros é manifesto e chamado de “frente comum” e
o Partido incita a população a pleitear

o restabelecimento das liberdades democráticas suprimidas ou se-


jam: a liberdade de reunião, a liberdade de pensamento, a liberdade da
palavra e opinião, a liberdade de crítica, a liberdade de organização para
o proletariado e o povo, a liberdade sindical, a liberdade de imprensa.

Disto se depreende que “o outro”, o “inimigo”, o que con-


figura a “desordem”, a ele se destinam os rigores da lei e as
exigências da ordem.
Quando se adota o princípio da ordem, da disciplina, da auto-
ridade e da hierarquia de forma inquestionável, as contradições
frente aos dilemas da convivência democrática se ampliam. Ao
mesmo tempo, como se pode dar conta da democracia externa
quando o Partido se vê às voltas com os dilemas da sua demo-
cracia interna? Em 1935, João Batista Barreto Filho, em carta a
Prestes77 (na qual ele manifesta dúvidas quanto à chegada desta
até às mãos do líder comunista e roga a Prestes por confirmação
do recebimento da mesma), apela para que o Partido realize
um congresso nacional ou uma conferência. Afirmando estar o
Partido vivendo uma anarquia orgânica e política, sendo um dos
seus traços o completo divórcio entre a direção e a base, Barreto
aponta o isolamento dos militantes — “excluídos os poucos de
confiança imediata do vértice” —; acusa Miranda de mentir sobre
a situação do Partido, sobre a sua influência e a situação das
massas; denuncia os informes exagerados, fantasiosos e falsos:

Você próprio deve ser vítima desse desgraçado regime. É nes-


sa suposição que mando esta carta. Você está isolado e só recebe
provavelmente esses informes mentirosos ou ineptos. Não posso

243
acreditar que conscientemente você aceite o que se está fazendo e se
preste a servir de instrumento a esse delírio.78 (...) O que pretendo
é que você use a sua influência sobre a direção, no sentido de que
se realize essa conferência ou congresso, a fim de que seja ouvida a
opinião da base do Partido. Proponho isso a você diretamente em
carta porque, dada a anarquia orgânica a que já me referi, a mais
completa inexistência de uma verdadeira democracia interna e uma
ativa vida política das organizações do Partido, não se pode ter mui-
tas esperanças na convocação de uma conferência por vias normais.
Para essa conferência ser fecunda, seria, entretanto, necessário que
(...) fosse precedida por uma ampla discussão interna nos órgãos e
na imprensa do Partido, de todos os problemas do momento. Seria
preciso que os documentos e as opiniões de todo o mundo pudessem
circular por todas as células e sofrer um exame cuidadoso, sobre a
base de um debate continuado, de todos os camaradas. As teses que
fossem levantadas seriam publicadas e submetidas às críticas de
todos. Assim, quando chegássemos à conferência todos estariam a
par das opiniões existentes, e poderiam, em perfeito conhecimento
de causa, adotar a posição que lhes parecesse preferível.

Essa carta foi encontrada em poder de Harry Berger, como já


assinalamos anteriormente, e não sabemos se chegou até Prestes.
O certo é que o direito de opinião e a discussão ampla propostos
por Barreto têm sua resposta de certa forma num documento do
Partido no qual se afirma que aqueles que combatem a revolução
agrária e anti-imperialista, como os trotskistas, não querem o
socialismo. Eles “atacam a unidade do Partido e minam a sua
disciplina reivindicando o direito de ‘opinião’ em suas fileiras”.79
Dessa forma, pode-se avaliar como o conteúdo da carta deve ter
sido considerado.
A inexistência da democracia interna no Partido se prestou
à garantia de um poder hierárquico, à eliminação da desordem,
das discordâncias, à manutenção de uma rigorosa disciplina,
ao controle dos acessos à hierarquia superior. Com toda essa
“ordem partidária” não podemos deixar de destacar que aqui

244
também entrou em cena um clássico componente do discurso
da ordem: a vigilância.
O Comitê Central do Partido, como vimos, não só recomen-
dava a vigilância ideológica contra os transgressores teóricos do
Partido, como falava da vigilância revolucionária, ao se referir
aos fracionistas, afirmando:

de nenhum modo, nem nós, nem o proletariado, podemos consi-


derar esses elementos como aliados. Esses elementos são inimigos. E
diante deles, deve ser duplamente aguda a vigilância revolucionária
do proletariado e de todos os elementos nacional-revolucionários.80

O par inimigo/vigilância nos remete à elaboração imaginária


da ideologia revolucionária, tal como desvendada por Lefort
(1985). Segundo esse autor, uma vez que a ideologia revolu-
cionária se constitui na afirmação da unidade na igualdade e
da identidade do povo na nação, o poder, no caso, o Partido, é
visto como o lugar onde se expressa unicamente a vontade da
nação. O testemunho dessa elaboração imaginária é dado pelas
noções de vigilância popular e conspiração. Quem é contra o
Partido é contra o povo e contra a Nação, portanto, é traidor, é
inimigo. A sua presença suscita a vigilância porque é expressão
da possibilidade potencial e permanente de uma conspiração.
Isso significa que, no caso brasileiro, a verdade do Partido pelo
bem do povo e da Nação é a “palavra de ordem” do “Governo
Popular Nacional Revolucionário”. Daí, a afirmação, após a
insurreição de novembro, de que: “Estamos fortes, estamos fir-
mes, estamos vigilantes, porque nossos olhos são os milhões de
olhos do povo desperto e desagravado pela nossa metralha.”81
E, em outro ponto, se diz:

Nós temos o propósito de arrancar a venda aos olhos do gigante


algemado, nós que temos visto por ele, nós estávamos, estamos e esta-
remos alerta contra essa chusma de patriotas invertidos e estrangeiros
gananciosos.

245
De onde o Partido retira o seu poder, revelado em seu dis-
curso de ordem através da exigência de obediência, respeito à
hierarquia, disciplina e necessidade de vigilância? Pensamos que
ele o retira do controle do estatuto da palavra:

O povo, a nação, a igualdade, a justiça, a verdade não têm existência


senão em virtude da palavra, que é tida como aquilo que deles emana
e, simultaneamente, que os nomeia. Nesse sentido, o poder pertence
àquele ou àqueles que são capazes de ser os porta-vozes, ou antes, de
se fazerem ouvir como tais, de falarem em nome do povo e de lhe dar
seu nome (Lefort, 1985, p. 54).

E esse poder, o Partido o obteve após a exclusão dos anar-


quistas tanto do espaço das lutas por alternativas de modificação
da ordem social como do espaço da memória da classe operária.
Talvez, como bem diz Canetti (1983), “obedece-se porque não
seria possível combater com perspectiva de êxito, quem vencesse,
mandaria” (p. 339).
E a certeza desse poder oriundo dessa fonte é manifestada
explicitamente pelo PC:

O Governo Popular será a democracia praticada pela primeira vez


em nosso país, será realmente um governo do povo, em tal governo o
povo intervirá com suas sugestões e exigências, participando também
praticamente na execução das medidas que lhe interessam. À frente
de tal governo poderão ficar os homens de real prestígio popular, os
homens que verdadeiramente interpretem a vontade da grande maioria
popular.82

Essa mesma certeza vai informar a condição de “partido guia”


que o PC se autoatribui:

A importância de um partido para a classe operária decorre da sua


própria função: ele é o coordenador e dirigente de todo o movimento

246
operário e popular antes da Revolução, na luta pelo poder e depois
da instauração do Governo Soviético. Por isso ele é composto dos
melhores elementos da classe operária, os mais combativos, os mais
clarividentes, os mais dedicados. É ele, a sua vanguarda, o seu estado-
-maior organizado, o seu principal instrumento de luta contra o regime
capitalista. (...) O PC não substitui as massas, porém está à frente, é
o seu guia. (...) Tem uma disciplina interna severa e obrigatória para
todos e seus princípios se assentam no socialismo de Marx, Engels,
Lenin e Stalin: — o marxismo leninismo.83

Assim é que “as massas desiludidas, de tanta tapeação, levada a


efeito pelos mais variados partidos, começam já a ver nitidamente
(graças ao trabalho de esclarecimento do PC)”.84 O Partido é
heroico porque vive na ilegalidade e é

(...) caçado brutalmente, caluniado torpemente pelos Raos, Muller,


Getúlio e comparsas, dia a dia cresce no conceito das massas populares,
as organiza, orienta e dirige para a mais ampla Frente democrática
revolucionária.85

Assim, na sequência do raciocínio, os movimentos revolu-


cionários estarão condenados ao fracasso e ao desvio fatal do
seu rumo

(...) se à sua frente não estiver o proletariado e o seu partido — o


Partido Comunista. (...) O fator fundamental, portanto, que nos irá
garantir a nossa hegemonia, nas lutas, não está somente nas palavras
e nos indivíduos isoladamente. Está em que o Partido Comunista se
fortifique orgânica e politicamente, se ligue ao proletariado e o coloque
à cabeça das lutas populares.86

Aqui fica clara a luta do Partido com outras tendências e


organizações pelo poder de representação e condução exclusiva
do proletariado.

247
O Partido assume a missão de guia das massas não só por
se considerar intérprete da sua vontade mas, sobretudo, pela
convicção de que a posse da verdade teórica do marxismo lhe
confere o atributo da razão.
Em virtude de sua capacitação política e teórica, e em virtude
de conhecerem as leis científicas da evolução histórica rumo à
felicidade (socialmente organizada), e à realização, pela igual-
dade, do sentido plenamente humano do homem dentro do
socialismo, os comunistas se consideram as pessoas aptas e ade-
quadas para conduzir a construção de uma nova ordem social.
Em nome da razão, eles se julgam artífices do progresso. Afinal,
se os comunistas detêm um saber sobre a alteridade social, que
lhes permite, através da utopia revolucionária, representar o
futuro, eles não poderiam deixar de lado o progresso, pois a
representação do futuro é a realização do progresso.
A ideia de progresso,87 por estar ligada à de invenção técnica,
industrialização e urbanização implica um

(...) discurso unificado acerca de uma evolução de nossa civilização


sob o modo contínuo, cumulativo e orientado, correspondendo final-
mente a um processo que englobaria todo o passado e se abriria para
um futuro promissor (Bazcko, 1985, p. 372).

Por outro lado, as utopias sociais “apresentam a ciência, a


técnica e o planejamento como instrumentos promissores e se-
guros para um verdadeiro controle da natureza e da sociedade”
(Habermas, 1987, p. 105). E do futuro, diríamos nós.
Surge aqui uma nova desordem que é preciso eliminar a fim
de abrir espaço para a instauração de uma nova racionalidade: o
atraso econômico. É contra o atraso econômico que os comunis-
tas se dizem empenhados em favor da Pátria forte, do progresso
industrial, da prosperidade, do desenvolvimento industrial, da
independência econômica. A essas intenções correspondem certas
construções imaginárias que descrevem e localizam os males do
país, as “desordens” no atraso social e econômico, nas extensões

248
despovoadas, na falta de unidade, na soberania ameaçada, nos
seus habitantes analfabetos, na sua estrutura econômica pecu-
liar por suas origens históricas, nos defeitos da legislação, nas
fontes de riqueza desarticuladas ou inativas, nos chefes políticos
demagógicos.
Como veremos, à frente, também nesse ponto, convergem
comunistas e anticomunistas, revolucionários e contrarrevolu-
cionários.
A força da ideia de progresso, no discurso comunista, aparece
ligada a algumas imagens, em especial. Uma delas é a imagem
da máquina, à qual o Partido é associado, tal como o vimos an-
teriormente com relação ao problema da disciplina. A imagem
da máquina e do ajuste dos parafusos não só sintetiza a ideia de
progresso como sugere a de controle e racionalização da atividade
econômica que lhe é complementar, tal como esteve presente no
imaginário dos homens que fizeram a revolução russa (Marson,
1987a). Outra imagem é a da juventude, da qual se diz “que
nada poderá deter seu ímpeto construtor”,88 porque aparece
aliada à afirmação da reivindicação, por parte dos jovens, de um
Brasil grande, industrializado, independente econômica, moral
e politicamente.
Se a imagem da juventude se presta à ideia de que o crescimen-
to — como o progresso — não pode ser interrompido, a ideia de
senzala e casa-grande vai sugerir escravidão e, ao aparecer aliada
ao imperialismo, associa-o ao passado e portanto ao atraso:

Quer [o imperialismo] reduzir o nosso Brasil numa senzala, onde


os trabalhadores vivem sob o domínio do chicote. Não quer que o
Brasil avance no caminho do progresso, mas retrograde ao tempo das
Casas-Grandes.89

O imperialismo, assim, escraviza e impede o desenvolvi-


mento industrial do Brasil, para nos poder vender os artigos
manufaturados com as nossas matérias-primas. É preciso, pois,

249
independência para se alcançar o progresso porque as nossas
riquezas estão inativas para os próprios brasileiros:

O Brasil é o país mais rico do mundo em matérias-primas. É o


primeiro na produção de ferro, de manganês, de borracha, em fibras
para tecelagem, em algodão, tem petróleo e carvão suficientemente.
No entretanto, nós importamos tudo isso...90

Tudo isso é irracional, como também o é a economia regio-


nalista que, no dizer de Prestes, “impede o livre comércio da
própria produção nacional”.91 Assim, a existência de fronteiras
econômicas interestaduais impede a articulação das riquezas
nacionais.
Como o imperialismo e o regionalismo, também o latifúndio92
é uma desordem que precisa ser combatida por ser “elemento
característico do atraso social e econômico”. Descrito como
“aberração da propriedade” e como “antieconômico”, sua exis-
tência e manutenção são explicadas como defeitos oriundos da
legislação (originada de sua infraestrutura histórica e social),
sendo ele mesmo responsabilizado: pela multidão de infixos,
famintos, analfabetos e perseguidos que representa a maioria
da nossa mão de obra agrícola; pelo estado de precariedade e
miséria em que vivem os habitantes do interior; e pelo noma-
dismo constante das massas camponesas. Além de irracional, é,
portanto, perverso.
O fato de o latifúndio implicar grandes extensões despovoadas
é outra irracionalidade apontada. O racional é visto como sendo
a valorização da terra pelo trabalho do homem, pela fixação
econômica do homem no campo, pelo aproveitamento das terras
inexploradas e pela ampliação da densidade demográfica.
A racionalidade econômica defendida pelos comunistas in-
clui ainda: o auxílio à lavoura, o fornecimento de crédito aos
agricultores, a abertura de novas estradas de rodagem e de ferro
para escoadouro de produtos agrícolas, a redução do preço das
passagens nas estradas de ferro, o desenvolvimento da indústria

250
pesada com a exploração nacionalizada do ferro, do carvão e do
petróleo. No plano social, inclui a liquidação do desemprego, a
assistência aos desamparados, a moradia do pobre — barata e
higiênica —, o rebaixamento do preço dos aluguéis, dos gêneros
de primeira necessidade, o aumento dos salários, a aplicação da
legislação social, o saneamento das áreas insalubres, a criação
de hospitais e escolas primárias em todo o Estado.93
A perspectiva do progresso e da prosperidade se escuda,
portanto, no desenvolvimento das forças produtivas e na efe-
tivação e ampliação de medidas de amparo e assistência social
aos trabalhadores. Contudo, os comunistas sustentam que a sua
luta “é uma luta pela cultura, pela inteligência, pelo trabalho,
pela civilização e pelo progresso”.94
E a escola é o que vai levantar o nível cultural para permitir
que todos gozem da riqueza e da civilização existentes.95 A rique-
za depende, pois, do progresso e o progresso depende sobretudo
do trabalho. Este sim será o valor supremo que vai garantir a
construção de uma nova ordem social. Por isso se fala em “mou-
rejar pelo progresso”, em “labor perseverante” e se pede que o
povo trabalhador brasileiro compreenda que é seu dever “dar ao
Brasil braços mais fortes e inteligências mais esclarecidas”.96 E o
trabalho é o que vai permitir “a alegria dos corpos fartos e dos
espíritos felizes”.97 É ele a ferramenta que vai ser utilizada pelos
comunistas, arquitetos da sociedade do futuro, para manter em
funcionamento a máquina do progresso e da história, que eles
pretendem acelerar pela revolução.
A associação ordem/progresso/desenvolvimento também se
faz presente no discurso de empresários, de parlamentares e de
autoridades governamentais. Vale a pena registrar algumas dessas
associações, principalmente quando elas enriquecem o quadro
de referências do discurso da ordem e facilitam a percepção da
essência orgânica do princípio da ordem. É o caso do discurso
de um membro das empresas de Raul Leite, então presidente da
Federação das Indústrias do Distrito Federal, acerca da trajetória
do grupo empresarial:

251
Hoje é a grande organização vivendo em simbiose com a vida
nacional. Por todo o Brasil estendem-se as filiais desse organismo.
Em cada cidade brasileira vivem e palpitam no movimento contínuo
do intercâmbio comercial, as 27 filiais que repercutem o pulsar do
aparelho central, a produção. E para que todos esses órgãos funcionem
na sinergia da força e na harmonia do ritmo nós, as células desse orga-
nismo, trabalhamos unidos, integrados na mesma ideia, nos mesmos
objetivos. O sincronismo da nossa ação é a expressão da irradiação
central do comando. É a ordem perfeita estabelecida no conjunto. E
como o progresso é o desenvolvimento da ordem, o organismo evolu-
cionará cada vez mais brilhante para os melhores destinos.98

A metáfora do corpo orgânico é utilizada aqui para ilustrar


a ideia da ordem perfeita: hierárquica, disciplinada, harmonio-
sa, laboriosa, orgânica, una. E o resultado da sua evolução e
desenvolvimento é o progresso. A simbiose do organismo dessa
empresa com a vida nacional é afirmada, para que a ordem
social seja mantida em perfeito funcionamento, como condição
do progresso.
Esse é também o pensamento do coronel Caetano Vascon-
cellos, presidente da Associação Comercial de Minas Gerais,
ao afirmar o seu apoio à ação do governo de Getúlio Vargas no
combate à insurreição armada de novembro de 1935:

As classes conservadoras, interpretando os anseios de toda a co-


letividade brasileira têm o dever de congratular-se com a Nação pelo
restabelecimento da ordem, indispensável ao trabalho construtor
e à tranquilidade do seu povo. Minas, cujo espírito conservador é
tradicional, não pactua jamais com as agitações que possam entra-
var os surtos de expansão e os anseios de progresso, em cujo ritmo
precisa desdobrar-se o prestígio crescente de nosso caro Brasil.99

A ordem, assim, é condição de progresso, e a estabilidade é


condição da manutenção do ritmo contínuo e crescente do desen-
volvimento econômico. A desordem e as agitações, ao contrário,

252
são destrutivas e exigem energia para que sejam refreadas. No
fundo, a ideia que é passada é a de que são os pilares da ordem
material que dão à sociedade a garantia da sua existência e a
sua estabilidade, e que é a favor do seu solapamento que as
perturbações da ordem se vêm instalar.
Aqui, o progresso é a bandeira que legitima o poder da re-
pressão:

Neste sentido, temos de aplaudir a ação conjunta com que os poderes


públicos vêm agindo no sentido de impedir a atividade perniciosa dos
que procuram fomentar perturbações em nosso meio, barrando-lhes o
passo por meio de providências que se impõem neste tormentoso perí-
odo que atualmente atravessamos. Funde-se, pois, a ordem material na
existência anterior da ordem moral e teremos a certeza da estabilidade
estrutural de nosso regime, que é o único que nos tem possibilitado o
notável avanço no progresso que tanto nos orgulha e distingue como
povo civilizado.100

A ordem material, ou seja, a ordem capitalista, e a ordem


jurídica, no que assegura o regime de propriedade, são assim
garantia do progresso e da civilização, e a bandeira do progresso
se presta, nesse discurso do poder, à garantia da manutenção da
ordem social, sendo o trabalho o valor que a traduz.
Vejamos como Vargas opera com as ideias de ordem/progres-
so, progresso/trabalho:

As apreensões daquela hora conturbada substituem-se, hoje, por


afirmações confortantes, dentro de um ambiente de segurança propício
ao trabalho fecundo e à livre expansão de todas as atividades.101

A ordem, que é traduzida pelas imagens de conforto e de


segurança, é o que possibilita o progresso traduzido por Vargas
como “trabalho fecundo” e “livre expansão”. É interessante
observar como o Presidente utiliza duas expressões que re-
montam facilmente ao imaginário coletivo do progresso. Nesse

253
imaginário, as invenções técnicas ocupam lugar importante,
que vem bem consignado no simbolismo criado em torno do
“caminho de ferro” e da locomotiva, recentemente estudado por
Hardman (1988) e Marson (1978b). A palavra “fecundo”, além
de significar produtividade, também significa o que dispõe de
artifícios, recursos, inventivo, criador. O “trabalho fecundo” é,
portanto, um trabalho produtivo, inventivo, criador. O vocábulo
produtivo, por sua vez, sugere “abundância”, outra ideia forte
do imaginário do progresso. A “livre expansão”, por sua vez, é
uma expressão que nos remete ao alargamento, à ampliação, à
abertura incontida do caminho do futuro, também indissociável
da imagem de progresso.
Filinto Muller é outro que recorre a esse imaginário, ao
enfatizar a necessidade da ordem para o desaparecimento do
perigo e para “a volta ao país de uma era de tranquilidade,
trabalho construtivo e prosperidade”.102 De novo, construtivo
são o progresso e a abundância.
A palavra perigo, que aparece aqui em vários outros textos
citados, é, segundo Chaui (1978), um nome preciso para desig-
nar a divisão, o conflito e a contradição dentro da esfera social
e, simultanemente, obscurecer-lhes o real significado. Como
a crise “serve para opor uma ordem ideal a uma desordem
empírica” (p. 128), é possível entender a ênfase posta na asso-
ciação entre tranquilidade, trabalho construtivo, prosperidade
e os discursos que reforçam a ideia da unidade de todos para
vencê-la. Essa ênfase encontramos, por exemplo, nas palavras
dos empresários. Estes, ao apoiarem o Estado Novo, afirmam
que as atitudes das classes produtoras das vinte e uma unidades
(“que formam o todo uno e indivisível do Brasil”) sempre se
situaram dentro do sentido da nacionalidade: “(...) os brasileiros
de boa vontade, irmanados num só ideal de fraternidade e de
concórdia, unificarão as reservas de sua energia criadora pela
grandeza e prosperidade da República”.103 E essa “ordem ideal”
pressupõe a ausência do conflito, da diferença e da contradição,
negados pela força, pressupondo igualmente a afirmação do

254
entendimento e da colaboração de todos no reerguimento na-
cional. Afinal, “o fantasma da unidade social sempre termina
por apagar as diferenças no interior da vida pública, à força
do silêncio ou da repressão física, direta sobre os oponentes”
(Romano, 1981, p. 23).
Vejamos como é feito o apelo pela unidade no seguinte edi-
torial:

O momento reclama, pois, confiança e paz propícia ao desenvolvi-


mento do trabalho nacional, a fim de que todos possam contribuir, com
patriotismo e com decisão, tendo apenas como bandeiras o anseio de
edificar uma Pátria maior, para a obra de reerguimento nacional. Esta
se apresenta com todas as possibilidades de triunfo, porque o Brasil
ainda é um país novo e por isso mesmo um organismo pronto a reagir,
uma vez que se lhe aplique uma terapêutica racional. O aproveitamento
das nossas energias, dispersas pela vastidão do território, impõe-se
aos olhos de todos, porque é doloroso contemplar-se tanta riqueza
dispersa, tanta possibilidade abandonada, sem nenhuma tentativa de
coordenação, quando é certo que tudo isso, com a boa vontade dos
governos e com o esforço dos brasileiros está em condições de ser
aproveitado como utilidade, para a construção da grande e definitiva
obra do progresso nacional.104

A solução para a manutenção da ordem social e para a


resolução dos males do país é, pois, o trabalho e o esforço
dos brasileiros que, racionalmente orientados, redundarão na
conquista do progresso. O remédio para a falta de densidade
populacional, para a deficiência da produção, enfim, para os
problemas econômicos e sociais, não está na destruição da
organização política e social e sim no fator homem, através do
trabalho e pelo comando dos mais capazes e mais patriotas.
E o trabalho vai ser a pedra de toque do empreendimento do
progresso e da paz social, por irmanar todos os brasileiros numa
única categoria — a daqueles que se esforçam pelo Brasil. É ele
o valor dominante projetado pelos que almejam uma sociedade

255
una, para lhe dar o arremate final e assim concluir o edifício da
dominação totalitária:

Temos então pronto o mundo imaginário onde a sociedade não


sofre mais contradições, e onde o indivíduo repousa tranquilo no
campo dos universais Trabalho e Segurança: dois imperativos que se
complementam (Romano, 1981, p. 48).

E é do trabalho que vamos tratar na parte final do livro.

NOTAS
1
DISCURSO do deputado Paulo Pinheiro Chagas. In: Minas e seu pensamento
político: discursos pronunciados na manifestação do povo de Minas a S. Excia.
o Sr. Governador Benedicto Valladares Ribeiro, por motivo do congraçamento
político mineiro. Belo Horizonte, 1936. p. 66.
2
DISCURSO de D. Sebastião Leme. In: O Discurso de S. EM. o Cardeal Legado.
O Diário, Belo Horizonte, p. 1, 7 jul. 1936.
3
O BRASIL é por Cristo hoje e por Cristo o será eternamente. Encerramento do
Segundo Congresso Eucarístico Nacional. O Diário, Belo Horizonte, p. 1, 7 jul.
1936.
4
O MONSTRO de mil cabeças. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 25 mar. 1936.
5
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, 1 jan. 1936. Boletim do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 17, jan. 1936.
6
CARVALHAES PAIVA, J. O comunismo e seus perigos. Estado de Minas, Belo
Horizonte, p. 7, 21 mar. 1931.
7
AINDA a democracia. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 15 jan. 1936.
8
MACEDO SOARES, J. E. de. A Situação. Estado de Minas, Belo Horizonte,
p. 2, 27 nov. 1935.
9
PERIGO imenso. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 1 out. 1937.
10
DISCIPLINA individual e coletiva. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 31
out. 1937. (Editorial).
11
NECESSIDADE de disciplina. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 27 out.
1937. (Editorial).
12
DRUMMOND, Magalhães. Discurso de paraninfo dos bacharéis em Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1937. p. 13.
13
DISCURSO do deputado Camillo Alvin. In: Minas Gerais, Anais da Assembleia
Legislativa 1935, Belo Horizonte, 1936, p. 690. v. II.

256
14
DISCURSO pronunciado pelo general Newton Cavalcanti em romaria ao
Cemitério São João Batista. Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio, n. 38, p. VI-VII, out. 1937.
15
TRABALHO de Sapa dos comunistas. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 2, 4
nov. 1937.
16
COMENTÁRIOS. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 30 ago. 1936.
17
OS CATÓLICOS e o comunismo. Argus: revista policial, Belo Horizonte, p. 1,
nov. 1936.
18
PERIGO imenso. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 1 out. 1937.
19
O EXÉRCITO e a disciplina. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 15 dez. 1935.
20
ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte, p. 2, 21 nov. 1937.
21
DISCURSO do vereador Alberto Deodato pelo município de Belo Horizonte.
In: Minas e seu pensamento político, op. cit., p. 94.
22
MACEDO SOARES, J. E. de. A situação. Estado de Minas, Belo Horizonte,
p. 2, 27 nov. 1935.
23
DISCURSO do deputado Abílio Machado. In: A manifestação de solidariedade
feita ontem no Palácio da Liberdade ao Sr. Benedicto Valladares pelas bancadas
progressista e classista. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 10, 27 nov. 1935.
24
DISCURSO do governador Benedicto Valladares. Estado de Minas, Belo
Horizonte, p. 10, 27 nov. 1935.
25
MANIFESTO do presidente Vargas à Nação brasileira. Boletim do Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 39, p. VIII-IX, nov. 1937.
26
DISCURSO do vereador Tancredo de Almeida Neves. In: Minas e seu pensamento
político, op. cit., p. 73.
27
Idem.
28
MELLO FRANCO, Afonso Arinos de. Começo da função. Folha de Minas, Belo
Horizonte, p. 1, 2 jan. 1935.
29
Idem. Os acontecimentos aos quais Afonso Arinos se refere são principalmente
os choques entre integralistas, comunistas e a polícia ocorridos quase simul-
taneamente em comícios em Itajubá (MG) e Petrópolis (RJ) e que resultaram
em mortos e feridos.
30
MELLO FRANCO, Afonso Arinos de. Em marcha para a China. Folha de Minas,
Belo Horizonte, p. 1, 19 jun. 1935.
31
Idem.
32
MANIFESTO do presidente Vargas à Nação brasileira, op. cit., p. VII.
33
Idem.
34
MELLO FRANCO, Afonso Arinos. Lei brasileira. Folha de Minas, Belo Hori-
zonte, p. 1, 14 fev. 1935.
35
DISCURSO de D. Sebastião Leme, op. cit., p. 1.
36
MENDES, Oscar. E agora? O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 13 jan. 1937.

257
37
TOQUE de Despertar. O Diário, Belo Horizonte, p. 2, 13 nov. 1935.
38
A LEI de Segurança Nacional. O Diário, Belo Horizonte, p. 2, 7 fev. 1935.
39
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, 1 jan. 1937. Boletim do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 30, p. IX, jan. 1937.
40
BRASIL. Lei n. 38, de 4 de abril de 1935. Coleção das leis e decretos da República
de 1935. Atos do Poder Legislativo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1936.
p. 36-44.
41
BRASIL. Decretos-leis, respectivamente, n. 229, de 11 de julho de 1935, n. 246,
de 19 de julho de 1935, e n. 309, de 26 de agosto de 1935. Coleção das leis
e decretos da República de 1935. Atos do Poder Executivo. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1936. v. II, p. 206, 298, 413.
42
A Lei n. 136, de 14 de dezembro de 1935, além de definir novos delitos contra
a ordem, modifica alguns dispositivos da lei de 4 de abril. In: Coleção das leis e
decretos da República de 1935. Atos do Poder Legislativo, op. cit., p. 273-277.
43
EMENDA n. 1, do artigo 161, aprovada pela Câmara dos Deputados em
17/12/1935. In: A Câmara dos Deputados aprovou ontem, por 210 votos contra
59, as emendas à Constituição. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 1, 18 dez.
1935.
44
O CAPITÃO Filinto Muller fala sobre o momento brasileiro. Estado de Minas,
Belo Horizonte, p. 1, 22 dez. 1935.
45
BRASIL. Lei n. 244, de 11 de setembro de 1936. In: Coleção de leis e decretos
da República de 1936. Atos do Poder Legislativo, op. cit., p. 156-160.
46
BRASIL. Decreto-lei n. 88, de 20 de dezembro de 1937 In: Coleção das leis
e decretos da República de 1937. Atos do Poder Legislativo. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1938. v. III, p. 414-419.
47
Como, por exemplo, no processo n. 2.405, no qual o juiz denuncia que a acusa-
ção se devia a rixa pessoal. Encontramos também processos de injúria, em que
o acusado é um cidadão com problemas mentais; de injúria ao “patriotismo”
por comentários banais; processo por ultraje à bandeira nacional, por não ter o
cidadão tirado o chapéu diante da mesma; por referência pejorativa a um soldado
da cavalaria do exército nacional; por crime contra a economia popular na qual
o cidadão é acusado de ter guardado o dinheiro relativo a um imposto numa
lata de feijão para se livrar da obrigação do pagamento exigido por decreto-lei
(n. 4.166); por uso de expressões desrespeitosas contra um delegado no recinto
da delegacia (aqui o acusado foi condenado a um ano de prisão e quando foi
anistiado já tinha cumprido integralmente a pena com dezoito dias a mais de
detenção). Como esses, são centenas de casos iguais e espantosos.
48
Acreditamos que tenha existido um número muito maior de processos no Esta-
do. As dificuldades no manuseio da documentação, devidas à sua tramitação,
organização e desmembramentos jurídicos, não nos permitiu maior precisão
quanto à sua localização e número efetivo.
49
Tal é o caso do processo n. 4.486 em que o acusado foi absolvido no seu Estado
e posteriormente condenado pelo TSN a três anos de reclusão. O crime cometido,
a distribuição de boletins subversivos e a colocação de bandeiras vermelhas a
“altas horas da noite”, no alto de um edifício de sua cidade. E a pena foi cum-
prida integralmente. Boletim nas fontes pesquisadas.

258
50
LIMA, Renato Augusto de. Memórias de um delegado de polícia. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1977. p. 1.
51
É importante registrar que os Estados organizaram guardas municipais no
interior, posteriormente dissolvidas, para substituírem os destacamentos re-
colhidos aos batalhões após a insurreição de novembro e, também, que a força
pública dos Estados foi militarizada por lei federal em janeiro de 1936 (lei n.
192, de 17 de janeiro).
52
MINAS GERAIS. Mensagem do governador Benedicto Valladares Ribeiro
apresentada à Assembleia Legislativa em 1936. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1937. p. 11-16.
53
MINAS GERAIS. Mensagem do governador Benedicto Valladares Ribeiro
apresentada à Assembleia Legislativa em 1937. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1937.
54
Como a da emboscada militar preparada, em Minas, para um caminhão que
transportava “extremistas”, quando foi fuzilado um cidadão que passava de
automóvel pelo local, constatando-se depois que o referido caminhão carregava
balas e doces. Em Minas, os estrangeiros e cidadãos de outros estados foram as
vítimas preferenciais das suspeitas policiais. Comerciantes vindos de outras praças
foram presos e espancados e tiveram suas reservas de dinheiro apreendidas; ar-
tistas e dançarinos foram aprisionados ao desembarcarem, muitas vezes a pedido
da polícia do Rio e de São Paulo; as malas suspeitas de carregarem documentos
secretos e munições, quando examinadas, revelavam como conteúdo objetos de
uso pessoal e presentes para parentes e amigos. Ver, por exemplo: Estado de
Minas, Belo Horizonte, p. 4, 14 set. 1935; p. 10, 10 abr. 1936; p. 12, 24 set.
1936; p. 12, 23 fev. 1937; p. 10, 5 maio 1937; Folha de Minas, Belo Horizonte,
p. 12, 26 set. 1936; p. 12, 23 fev. 1937. Em 1935, com a proximidade da vinda
de Getúlio Vargas ao estado, esses casos se multiplicam. A polícia vira alvo de
zombaria pública.
55
Alongaríamos em demasia esta citação se fôssemos dar todas as indicações que
recolhemos acerca desses fatos, nos jornais da época, nos anais da Assembleia
Legislativa de Minas Gerais e nos anais da Associação Comercial de Minas Ge-
rais. A ressonância desses frequentes episódios de violência no meio parlamentar
mineiro pode ser acompanhada nos anais de 1935, 1936 e 1937. (Em 1937,
apesar da sucessão presidencial ocupar a cena política quase que integralmente.)
Naqueles anos, contudo, a situação também é mais grave e a necessidade de
buscar algum apoio nas autoridades é grande, tendo em vista a cumplicidade
dos esforços policiais, o absoluto clima de impunidade reinante no Estado e a
indiferença do governo. No caso da Associação Comercial, os casos registrados
nos anais são de sócios seus que também não escaparam à sombra repressiva do
poder. A título de exemplo, ver: Minas Gerais, Anais da Assembleia Legislativa
1935, Belo Horizonte, 1936, p. 88, 247-250, 386, 801-803, 824-826, 891-892.
v. I. No v. II, p. 902-903; e Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 10, 15 set. 1935;
p. 5, 8 jul. 1937; p. 3, 27 out. 1937; p. 9, 16 jan. 1935; Folha de Minas, p. 12,
16 mar. 1935; p. 1, 25 ago. 1935; p. 12, 17 mar. 1936. Atas da Associação
Comercial, Belo Horizonte, p. 58, 28 maio 1935; e p. 30, 5 dez. 1935.
56
COMUNISTAS ou adversários? Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 7 maio
1936.
57
O CAPITÃO Filinto Muller fala sobre o momento brasileiro, op. cit.

259
58
REFORMAS na polícia. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 18 set. 1935.
59
DISCURSO de Benedicto Valladares. O Diário, Belo Horizonte, 18 maio 1937.
60
Ver: Entrevistas do chefe do serviço de investigações de polícia de Minas Gerais.
Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 8, 17 fev. 1935; e p. 8, 20 set. 1935.
61
É interessante registrar que a adoção dos gases lacrimogênios pela polícia de
Minas Gerais é decidida em dezembro de 1935 e justificada pelo delegado-chefe
da investigação como “meios de vencer a massa, preferíveis a outros”. In: Folha
de Minas, Belo Horizonte, p. 10, 19 dez. 1935.
62
O Congresso foi realizado no período de 20 de outubro a 5 de novembro de
1936, na sede do Instituto da Ordem dos Advogados. Ver: Estado de Minas,
Belo Horizonte, p. 10, 6 nov. 1936; p. 1, 7 nov. 1936; e p. 3, 12 nov. 1936.
63
Ver: MINAS GERAIS. Mensagem do governador Benedicto Valladares Ribeiro
apresentada à Assembleia Legislativa em 1937. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1937. p. 29-30.
64
Ver: MINAS GERAIS. Relatório do Secretário do Interior e Chefia de Polícia de
1935. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1936. p. 66-67. Em Minas, a polícia
elabora comunicados à juventude feitos pelo serviço de divulgação do gabinete
do chefe de polícia e cria a revista Argus (aliás, aqui bastante utilizada por nós)
denominada de policial, doutrinária, literária, noticiosa. Um dado curioso é
que nessa revista é publicado o primeiro trabalho do escritor mineiro Fernando
Sabino.
65
As conferências pronunciadas eram impressas em folhetos e distribuídas nas
faculdades, colégios, associações e quartéis.
66
Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 23 out. 1937. As comissões são formadas
por nomes ilustres do estado, tais como: Guilhermino César, Mário Casassanta,
Francisco Magalhães Gomes, Lincoln Prates, Luiz de Bessa, Alfredo Balena e
outros. No ano anterior, tramitou na câmara municipal da capital mineira um
projeto de queima dos livros subversivos da biblioteca pública municipal. MINAS
GERAIS. Coleção das leis e decretos de 1937. Belo Horizonte: Imprensa Oficial,
1938. p. 395-396.
67
MOREIRA LIMA, Felipe. Ao povo e ao Exército. In: T.S.N. — Processo n. 412,
1936.
68
CARTA de Cascardo a Amaral. Rio de Janeiro, 25 dez. 1935.
69
AO POVO e às classes armadas. Distrito Federal, outubro de 1936. p. 1. In:
T.S.N. — Processo n. 1, v. 17.
70
A superação do Édipo, na literatura psicanalítica, é o que assinala o acesso à
vida social pela integração da autoridade e da lei do pai.
71
CIRCULAR a todos os camaradas. 1928 (Archivio Storico del Movimento
Operário Brasiliano).
72
REVISTA PROLETÁRIA. Rio de Janeiro, n. 5, ago. 1935. In: T.S.N. — Processo
n. 1, v. 3.
73
OS TROTSKISTAS continuam intrigando. A Classe Operária, Rio de Janeiro,
p. 12, 20 set. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 422, livro 1.

260
74
UM GOVERNO do povo, na orientação libertadora de Natal. O Libertador,
Rio de Janeiro, p. 1, 1936. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 1.
75
AVISO circular do Comitê Regional de São Paulo. São Paulo, agosto de 1938.
In: T.S.N. — Processo n. 1283.
76
UNIÃO de todos os paulistas pela propriedade, a democracia e a paz! Comitê
Regional do PCB de São Paulo. São Paulo, 2 maio 1938. In: T.S.N. — Processo
n. 1283.
77
Anteriormente citada.
78
Uma das questões que alarmaram Barreto foi a notícia da preparação do “motim
militar” (tal como ele designou) de novembro de 1935. Ele afirma a Prestes que
“a maioria esmagadora dos membros do Partido não sabe uma palavra sobre
esse golpe e, se soubesse, o condenaria. Será, pois, um simples motim de quartéis,
uma conspiração vulgaríssima, como aquelas que você tanto atacou. Você quer
participar disso? (...) Vamos apoiar, sobre o prestígio e a decisão pessoal de
um homem, a política de classe da vanguarda revolucionária do proletariado!
Isso é que é ‘prestígio’ na mais triste das suas formas”. O autor da carta fala
ainda a Prestes, “das piruetas posteriores de imaginárias transformações dessa
pseudorrevolução ‘nacional-libertadora e não sei se democrático-burguesa, se
agrária e anti-imperialista, se operária e camponesa ou proletário-socialista’”.
79
AOS CAMARADAS do Partido. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 4. (Cir-
cular).
80
REVISTA PROLETÁRIA, op. cit., p. 15.
81
SOBRE a aleluia Nacional da Liberdade. O Libertador, Rio de Janeiro, p. 5,
jan. 1936. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 1.
82
O GOVERNO Nacional Popular Revolucionário e seu programa, ago. 1935.
In: T.S.N. — Processo n. 421, v. 1.
83
PROGRAMA de cursos para ativistas. Bureau de Agitação e Propaganda
Nacional do PCB. (Quarto tema: Alianças e Frente Única). Rio de Janeiro,
maio 1935. p. 15. In: T.S.N. — Processo n. 1.
84
AOS CAMARADAS do Partido, op. cit.
85
A FORÇA da luta contra o extremismo envolve os mais hediondos planos de
reação feudal e imperialista. A Classe Operária, Rio de Janeiro, p. 12, 20 set.
1935. In: T.S.N. — Processo n. 422, v. 1.
86
PROGRAMA de cursos para ativistas, op. cit., p. 8.
87
Sobre esse tema ver o trabalho de Nisbet (1985).
88
A CAMINHO do Congresso da Juventude Popular do Brasil. A Manhã, Rio de
Janeiro, p. 7, 15 maio 1935.
89
CONTRA a lei Monstro. Comitê Regional Fluminense do PCB. 1935. In: T.S.N.
— Processo n. 1, v. 6.
90
MILITARES. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 2. (Panfleto avulso).
91
PRESTES, Luiz Carlos. O grande exército popular nacional. O Libertador, Rio
de Janeiro, p. 1, 22 nov. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. I.

261
92
PALMEIRA, João. Política latifundiária. A Manhã, Rio de Janeiro, p. 3, 29 maio
1935.
93
UNIÃO de todos os paulistas pela prosperidade, a democracia e a paz. Comitê
Regional do PCB de São Paulo, 2 maio 1938. In: T.S.N. — Processo n. 1283.
94
NINGUÉM vencerá a juventude. A Marcha, Rio de Janeiro, p. 6, 5 jul. 1935.
95
TEIXEIRA, Anísio. Civilização e escolas. A Manhã, Rio de Janeiro, p. 3, 25
maio 1935.
96
NINGUÉM vencerá a juventude, op. cit., p. 6.
97
É ASSIM que se conta a história. A Manhã, Rio de Janeiro, p. 3, 25 maio 1935.
98
O 16o aniversário dos Laboratórios Raul Leite. Revista Comercial de Minas
Gerais, Belo Horizonte, n. 2, p. 1-14, 1937.
99
Atas da Associação Comercial de Minas Gerais. Belo Horizonte, p. 128, 28
nov. 1935. Ver também: Discurso do Cel. Caetano Vasconcelos. In: Minas e
seu pensamento político, op. cit., p. 99.
100
NECESSIDADE de ordem. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 12 nov. 1936.
101
DISCURSO de Getúlio Vargas à Nação brasileira, 1 jan. 1937. Boletim do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 30, p. 111, jan. 1937.
102
Estado de Minas, op. cit.
103
REVISTA COMERCIAL DE MINAS GERAIS. Belo Horizonte, v. 1, p. 2, nov./
dez. 1937. (Editorial). O apoio dos empresários ao Estado Novo é afirmado nesse
número da revista pelo presidente da Associação Comercial de MG, na ocasião,
nos seguintes termos: “A impressão dominante no seio das classes conservadoras
sobre a implantação do novo regime é a melhor possível. Observa-se mesmo
que o comércio e a indústria (...) continuam a desenvolver suas atividades num
ambiente de perfeita tranquilidade, detalhe tanto mais digno de registro quanto se
sabe que antes o ritmo dos negócios sofria constantes perturbações, ocasionadas
pelo entrechoque das paixões partidárias tão nefastas à normalidade da nossa
vida econômica e social.” (Dr. Vitório Marçola, p. 8.)
104
TUDO pelo Brasil. Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 7 mar. 1936. (Editorial).

262
Parte 3
TRABALHADORES, AO TRABALHO!
A torpeza do improdutivo

Vede que sofrimento recebe um deus dos deuses!


Vede a que suplício ficarei sujeito
durante milhares de anos!
E que hediondas cadeias o novo senhor dos imortais
mandou forjar para mim!
Oh! eis-me a gemer pelos males presentes
e pelos males futuros!
Quando virá o tempo do meu suplício?
Sófocles
A VIRTUDE DO ESFORÇO

Tirarás da terra com trabalhos penosos


o teu sustento todos os dias de tua vida.
(...) Comerás o pão com o suor do teu rosto.
Gênesis 3:17-19

Na compreensão do trabalho como esforço, renúncia e obri-


gação — assim é no Ocidente em pensadores como Hegel, Marx,
Freud e Hannah Arendt, entre outros — exalta-se o esforço como
virtude.1 Assinala-se, desta forma, a valorização do trabalho
como condição humana; como formador do homem; como
elemento de coesão entres os homens; como elemento mediador
da relação entre homem e sociedade e entre homem e natureza;
como atividade produtiva; como fonte de riqueza, abundância e
progresso; como fonte de conhecimento do bem e do mal.
Foi em torno da aceitação imaginária dessa virtude que a
ordem burguesa construiu seu discurso de enaltecimento do
trabalho como fonte de todos os valores. E em redor dela é que
também se delineia, embora de forma perversa, o contorno de
um dos principais pilares da ordem totalitária em projeto no
Brasil dos anos de 1930: a ordenação do mundo do trabalho.2
A passagem desse ordenamento pela construção de uma
representação positiva do trabalho, pela fixação dos contor-
nos de um perfil operário, pela criação de um discurso social
acerca da armação corporativista e da legislação trabalhista é
o que pretendemos acompanhar aqui, através das palavras dos
protagonistas da cena histórica brasileira na altura da metade
dos anos de 1930.
Comecemos com Francisco Campos e um trecho de um dis-
curso seu, de 1937.

O homem surgiu no dia em que passou da economia paradisíaca


ou da plenitude gratuita dos bens para a economia do esforço e do
trabalho, para o domínio da liberdade, da criação, da história, dos
acontecimentos, da decisão e da vontade.3

Sem sombra de dúvida, esse trecho se coloca dentro da tra-


dição do pensamento burguês clássico. É interessante observar
como Campos toma o trabalho como o referencial genesíaco
do homem. A passagem do homem pelo paraíso é vista como
negatividade. O que se manifesta quanto a ela é a desconfiança
do ócio, o desprezo ao parasitismo e à ausência de produtivida-
de. É o que expressa Adam Smith — citado por Arendt (1983)
— ao se referir aos “criados servis que, como convivas ociosos
(...) nada deixam atrás de si em troca do que consomem” (p.
97). Também aqui a economia do esforço e do trabalho é que
liberta o homem do mundo da natureza, garante-lhe a condição
de ser livre, possibilita-lhe a atividade da criação, alça-o ao
domínio da história, transforma-o em animal político. Também
Agamenon Magalhães traz sua contribuição a essa noção do
trabalho. “Ganharás o pão com o suor do teu rosto, dizem as
escrituras. Foi com essa sentença que o homem deixou o paraíso.
O trabalho é, pois, lei humana e lei divina.”4
Esse “elogio do trabalho como formador do ser humano” —
com a licença de Romano (1981) — em circunstâncias outras,
causaria inveja a Hegel e Marx. Essa antropogênese de Francisco
Campos e Agamenon Magalhães é que estava na raiz, antes até de
1937, de expectativas de uma reorganização social que faça com
que o trabalho seja “o padrão absoluto de todos os valores”.5
No mesmo texto citado afirma-se:

266
Cumpre-nos aplainar os caminhos da reforma social, apressando-
-lhe o processus e suavizando o seu advento. (...) Essa será a verdadeira
Idade do Ouro (...) porque o trabalho em todas as suas faces, material,
intelectual e moral, irradiará pacificamente um sol sobre a face da terra,
que vem beneficiando há anos.6

De novo, a imagem da luz solar, do brilho do ouro, como


um signo a sugerir, na sua associação ao trabalho, o domínio
absoluto deste, a aceitação unânime do seu valor, o acesso aos
caminhos do progresso, da civilização e da convivência pacífica
entre as classes.
A ligação entre trabalho, progresso e civilização reforça a
valoração positiva do trabalho, reafirmando-o como princípio
de riqueza e justificando-o como útil e bom:

O Trabalho é o milagre da nossa civilização. Depois da civilização


militar e conquistadora do mundo romano, o Trabalho dá-nos a civi-
lização industrial e pacífica com os esplendores da técnica. O braço
trabalhador abraça a terra e a sustém, porque dele derivam todas as
atividades.
Após o domínio dos exércitos temos o império das usinas onde
se plasmam as maravilhas da nossa época. O Trabalho vencerá os
preconceitos para impor a paz ao mundo.
A própria religião intransigente que o considerava um castigo para
a espécie abençoa-o hoje como uma alavanca de progresso. Sob o coro
universal das forjas, dos martelos e das máquinas surgem as cidades
ciclópicas dos arranha-céus e as formidáveis esquadrias aéreas. O arrojo
fabril da nova Rússia transformada em uma imensa oficina realiza os
prodígios de uma nação operária.
O braço realizador que semeia os oceanos de palácios flutuantes,
que enche os ares de máquinas portentosas (...) que canaliza os rios,
cria mares, fabrica a força que move as usinas, governa o planeta. (...)
Sem essa estupenda força realizadora as concepções geniais morreriam
na abstração inútil.7

267
Em meio a tantos elogios ao trabalho, surgem aqui as imagens
do exército e da conquista, utilizadas para sugerirem a visão da
ocupação do mundo moderno por um exército de trabalhadores,
cuja figuração é dada pela imagem do “império das usinas”. O
trabalho é fértil, por isso o “braço realizador semeia”; é criativo,
engenhoso, útil e visível nos objetos e máquinas, por isso sem
ele “as concepções geniais morreriam na abstração inútil”; é
fonte e origem da vida na terra, por isso “dele derivam todas as
atividades”. O fato de atribuir-se ao trabalho o significado do
progresso é que põe em cena o fascínio pelos “esplendores da
técnica” e pelas “maravilhas da época”, bem como a definição
da civilização como “industrial” e o erguimento das cidades
imageticamente condensado na figura. Por outro lado, a técnica,
numa típica operação do imaginário burguês, é aqui investida
de um poder sem limites: o da criação inesgotável, da liberta-
ção do atraso e do passado, da transformação do presente e do
controle do futuro.
A figuração imagética do braço trabalhador abraçando a
terra e a sustentando sugere a força e o poder de um Hércules e
a inevitável submissão ao trabalho. A referência à Rússia — cuja
religião intransigente acusava o trabalho e que, no entanto, viu
nascer uma “imensa oficina” onde mais se ouve o som das “forjas,
martelos e máquinas” — vem demonstrar a força impositiva do
princípio do trabalho diante do qual todos cedem e se submetem.
A ideia de oficina de trabalho, tão presente no imaginário do
período, aparece vinculada a experiências como a da Alemanha
nos anos de 1930, utilizada na descrição de um parlamentar —
que lá esteve na condição de enviado do governo Vargas — para
registrar suas impressões entusiásticas com o que se processava
naquele país:

A Alemanha estava em fase de grande progresso. (...) O Terceiro


Reich era uma oficina de trabalho na qual os alemães sob uma chefia
inteligente e audaz demonstravam as qualidades tradicionais de aferro
à labuta, tenacidade e eficiência.8

268
O comentário da “chefia inteligente”, afora o elogio claro ao
Führer, reafirma o elogio ao esforço e introduz a noção de traba-
lho como elemento definidor da ordem social. Essa ordem passa
por mais de um caminho. Um deles é o do reforço da distinção
entre dirigentes e dirigidos:

O cérebro do mundo sem o braço realizador nada vale... O braço


que produz sem o cérebro que o dirige o que valeria? Sem a organiza-
ção, sem a orientação técnica, o Trabalho seria uma atividade estéril.
Eis a razão por que a sociedade só pode sobreviver com a harmonia
entre os seus elementos fundamentais. Sem o acordo entre a ação e o
comando é impossível o progresso.9

Observa-se aí, novamente, a associação progresso/trabalho/


ordem, e por ela chegamos a outro caminho pelo qual passa a
ordem social: o caminho da estabilidade e segurança econômica,
sem o qual, segundo Vargas,“não pode o indivíduo tornar-se útil
à coletividade e compartilhar os benefícios da civilização”.10 De
novo, o trabalho justificado como útil e bom, o que acabará por
se desdobrar em dominação. Dominação esta que o Presidente
oculta, relacionando o trabalho ao bem comum, à ascensão
social, à dignidade, à moralidade, à solidariedade, à alegria e ao
entusiasmo, ao progresso e à ordem, tal como no trecho abaixo:

Donos de um vasto país, onde não faltam campos para semear e


possibilidades de progredir, e cujas leis asseguram a todos os direitos de
viver próspera e dignamente — cultivai o entusiasmo viril e o amor ao
trabalho; praticai as virtudes cívicas e os deveres de cooperação, fatores
poderosos para a elevação do homem e o engrandecimento dos povos;
ampliai os sentimentos de solidariedade além do círculo restrito dos
vossos lares; continuai a trabalhar pelo Brasil unido e forte, prezando
a ordem como supremo bem e amando a paz entre todos os homens.11

269
Assim, o trabalho é também princípio definidor de uma mo-
ralidade pública.12
A representação positiva do trabalho também é expressa no
discurso dos comunistas. Embora essa representação, como vimos
anteriormente, venha associada à defesa do progresso industrial
do país, ao elogio ao “labor perseverante” dos brasileiros, aos
que “mourejam pelo progresso” etc., a sua presença se faz mais
clara através do discurso comunista a respeito do trabalhador.
Os comunistas, ao definirem uma imagem para a classe
trabalhadora, positiva pelo atributo do trabalho, veem a nação
dividida em dois blocos:

De um lado, as forças mais representativas da nacionalidade, as


camadas operosas e úteis, batendo-se ao mesmo tempo pelo seu direito
à subsistência e por um estado de coisas necessariamente novo, ponto
de partida para o soerguimento de uma pátria emancipada, fortalecida
em bases mais humanas, unificada pela bandeira de uma distribui-
ção equânime para todas as regiões, para todos quanto mourejam e
produzem. Do outro lado, a incúria dos gozadores de boa situação, a
cupidez de aventureiros que tudo procuram sacrificar ao seu egoísmo.13

Também aqui o trabalho é o divisor de águas entre o bem e


o mal; o útil e o inútil; entre os que mourejam e produzem e os
aproveitadores que gozam futilmente a vida; entre os que repre-
sentam a nacionalidade e os que a negam; entre os que querem
“o novo” e os que querem preservar egoisticamente situações
que lhes são favoráveis. Os seus benefícios? Estes se destinam aos
que mourejam, produzem. O trabalho é a chave, portanto, para
o engrandecimento da pátria emancipada (sem o imperialismo) e
unificada com a igualdade orgânica, equilibrada entre as regiões.
Não é esse também o discurso do poder? Como questionar
o alcance ideológico da positividade do trabalho quando se
almejam também trabalhadores produtivos, definidos como
“camadas operosas e úteis”?

270
À ideia de operosidade, produtividade e utilidade se contra-
põe a de fraqueza, da preguiça e de acomodação, tal como neste
trecho:

Dissemo-nos país colonizado pelos degradados da metrópole


misturados a camitas perseguidos e indesejados. Resta provar se esses
exilados da metrópole não seriam elementos de elite, pela rebeldia das
ideias, pela resistência às imposições prepotentes. O mesmo se poderá
dizer dos imigrados de todos os tempos; a simples circunstância da
mudança para país alheio e desconhecido, onde faltam família e ajuda
de qualquer espécie significa superioridade entre os acomodativos,
fracos, complacentes, que se deixam ficar preguiçosamente em casa.14

O elogio ao trabalho e ao trabalhador — e a expectativa de


que este seja produtivo — passa, todavia, por estranhos caminhos
no discurso dos comunistas. Ao descrever a vida das camadas
populares pobres do interior do país, dentro dos latifúndios, e
o problema dramático da alimentação do trabalhador rural,
Valério Konder faz o seguinte comentário:

O que se pode esperar do homem do campo assim explorado? É a


esse homem vencido pelo impaludismo, pela miséria e pela ignorância,
maltrapilho e imundo, e que é consumido lentamente pela fome, que
os literatos pedantes da capital se lembram de atribuir todos os males
da “nossa raça”.15

Ora, os propósitos de aperfeiçoamento da raça e as intenções


civilizadoras estão presentes, nos anos de 1930, no discurso e nas
estratégias de diferentes segmentos do poder e são peças vitais na
engrenagem totalitária. Contudo, não são percebidos enquanto
tais pelos comunistas, e sim como retórica de “literatos pedantes
das capitais”. Além de este argumento não ser contestado pela
essência do seu significado e pela ameaça potencial que ele traz,
a ele é contraposta, em nome da defesa do trabalhador por não

271
estar sendo produtivo, a alegação de que o homem do campo é
vencido pela verminose, ignorância, sujeira etc. Dessa forma, é
revelada uma imagem negativa do trabalhador rural, justificada
pela exploração, mas que reforça a ideia da operosidade e pro-
dutividade como sendo a “ordem das coisas”. Nessa ordem não
deve existir indolência e alcoolismo, porém, em um mundo em
que vigora a exploração do homem simples, o trabalhador busca
na bebida “um atenuante para o seu sofrimento e a sua miséria”
e é indolente porque “morre progressivamente de fome”.16
Por outro lado, admite-se que a má alimentação se relaciona
diretamente às condições da raça. Assim é que se diz, ao se referir
à Companhia Ferroviária Leopoldina:

Rouba em salários de fome o trabalho de milhares e milhares de


brasileiros que não podem dar conforto à família, nem educar os filhos,
e sentem na prole mal alimentada a sua contribuição para a degene-
rescência de uma raça.17

Mesmo quando tentam se contrapor ao preconceito vigente


nesses anos, que atribui o mal do país ao fato de sua origem
étnica advir de três raças inferiores, os comunistas não rompem
com o argumento racial e continuam de olho no trabalhador
produtivo. Já tendo afirmado, como vimos, a superioridade do
imigrante e reabilitado os exilados da metrópole, o discurso
comunista volta-se para os negros e índios:

Dos negros e índios poderemos dizer que sem eles não se teria feito
esse prodígio — que é o Brasil de hoje. (...) São também ancestral-
mente adaptados ao meio tropical; e é vantagem considerável termos
em nosso sangue doses imunizadas e imunizantes contra o inimigo
natural. Não devemos nos envergonhar de nossa origem; ao contrário
façamos dela o nosso maior orgulho, estamos criando um espécime
humano selecionado pela sua resistência física, pela beleza, pela graça,

272
pela sobriedade e pela sua capacidade de assimilar todas as descobertas
da ciência do ponto de vista material, moral e social.18

É bem verdade que o pensamento dos comunistas não é todo


ele homogêneo. Assim, encontramos espaço no jornal A Manhã
para críticas ao conceito de raça e a Gobineau e Laponge, chama-
dos de “fósseis da ciência”. Entretanto é curioso que, na mesma
operação que descaracteriza o conceito de raça, afirma-se que
tal conceito é confundido com o de cultura, donde a seguinte
afirmação:

(...) o negro pode em relação ao branco apresentar uma “cultura


inferior”, que seja mesmo degradada. (...) Mas nunca ele será uma
raça inferior. (...) Deixemos o arianismo aos hitleristas. (...) Somos
brasileiros e devemos procurar soluções brasileiras para nossos proble-
mas. Levantemos pela escola, pela educação e pela cultura o nível do
elemento mestiço e africano e teremos um Brasil isento de superstições
e preconceitos.19

Dessa forma, “a inferioridade” permanece afirmada e, como


ela é cultural, é necessário, para superá-la, apenas o “esclareci-
mento”.
Essa ideia não é incompatível com a visão que o PC tem do
trabalhador do campo. A avaliação do Partido, mesmo consi-
derando que a massa camponesa constitui, numericamente, a
maior força da revolução e o principal aliado do proletariado,
é de que é analfabeta, por isso,

é facilmente enganada pelo integralismo e pode ser relativamente


fácil mobilizá-la contra os libertadores do Brasil no momento de
lutas decisivas. (...) O sucesso da revolução libertadora, da vitória
do povo sobre o fascismo depende em grande parte da capacidade
dos aliancistas de se aproximarem do nosso homem do campo, de
esclarecê-lo, de organizá-lo para a luta. 20

273
Por outro lado, afirma-se que os camponeses “ainda têm
confusões (sic) e pouca formação política”.21 Essas “confusões”
são designadas de forma mais clara e direta por um ativista do
bureau de agitação e propaganda do PC22 como “mentalidade
simplista do camponês”, que, segundo o ativista, não se adaptará
e não compreenderá os complicados “aparelhos burocráticos”
que se organizam no campo. Daí que, na agitação e propaganda
no campo, se propõe, além da luta pela elevação do “nível cultu-
ral, político e ideológico do camponês”, a utilização de “meios e
formas mais fáceis de serem compreendidos. Manifestos curtos,
com letras grandes e com figuras. O acompanhamento de feiras,
velórios, festas, vaquejadas etc., para a propaganda oral”.
O conceito do PC a respeito do trabalhador do campo só é
alterado quando se admite que em determinados lugares o cam-
ponês mantém relações mais estreitas com o proletariado. Nessa
situação considera-se que “em tais casos o seu nível cultural,
político etc. é mais elevado”. A melhor sorte do proletariado,
dentro do conceito do PC, deve-se, a nosso ver, a duas questões:
primeiro, à afirmação da presença organizadora do Partido, já
consolidada nos centros industriais urbanos; e, por último, aos
elementos de doutrina que atribuem à classe operária a vocação
revolucionária e o papel de vanguarda através do seu partido, o
PC, na liderança da revolução, cabendo-lhe a missão histórica de
suprimir as classes e iniciar a construção da sociedade comunista.
A visão do Partido sobre as lutas dos camponeses não difere
muito: “são lutas espontâneas, formas primitivas, desorientadas
e mesmo, às vezes, contraproducentes”.23 E as lutas armadas de
Lampião e diversos grupos cangaceiros do Nordeste, os assaltos
dos índios no Tocantins e os atos isolados contra os fazendeiros
são considerados manifestações do crescente descontentamento
da massa pobre do interior e, como tal, o PC afirma, particular-
mente em relação ao cangaço:

(...) devemos tomar parte em suas lutas e, com eles lutando, ganha-
remos a confiança necessária para que aceitem as nossas explicações

274
sobre a causa da opressão de que são vítimas e comecem a dar às suas
lutas a consciência de classe, (...) devemos fazer os maiores esforços para
ganhar para a revolução o maior número possível de “cangaceiros”,
transformando as suas lutas em lutas conscientes contra a opressão
feudal e escravagista.24

Será outra a maneira como o discurso governamental e de


diferentes segmentos do poder veem o trabalhador?
O imaginário social sobre o trabalhador, na segunda metade
dos anos de 1930, na realidade, sustentava estratégias de en-
quadramento do proletariado na cena política. É como instru-
mento da ação dos grupos sociais que o repertório de imagens
é elaborado.
Assim é que, na dimensão imaginária na qual a polícia25
confina os trabalhadores, estes são representados como “desas-
sistidos e incultos”, “indivíduos inofensivos, sem expressão no
campo da realidade prática”, que vivem “cobertos de dificuldades
financeiras” e, por isso, encontram-se “em permanente estado de
rebeldia contra o atual regime”. Essas representações se prestam
à confirmação da tese policial da exploração das massas ope-
rárias pelos propagandistas comunistas que se aproveitam da
ignorância e das dificuldades e da consequente rebeldia operária
para divulgarem suas doutrinas extremistas e falsas. Isso, por um
lado, justifica o trabalho policial de luta contra os agitadores
sempre perigosos; justifica a “proteção” policial ao proletariado
e a sua tarefa de esclarecimento. Por outro, ignora a participação
social e política do operariado e os seus combates, uma vez que
é tido como nada mais que um “patriota humilde” que pleiteia
direitos legítimos e é explorado na sua fraqueza e boa fé. Com
isso, nega-se a existência de um espaço efetivo da luta operária.
Nessa perspectiva, a adesão dos operários ao comunismo,
ao socialismo ou ao anarquismo é ridicularizada porque revela
que os operários se fiam na palavra alheia. Assim, afirma-se a
inexistência de uma mentalidade operária.

275
(...) todos os movimentos feitos, e que se fazem, os operários são
meros instrumentos, meros braços, nada mais que isso. Eles constituem
o corpo do movimento e não a cabeça (...) Os outros pensam para
eles e eles executam, cumprem fielmente o que os outros pensaram,
idealizaram.26

Inculto, atrasado, sem instrução, em estado bárbaro de civi-


lização; esses são apenas alguns qualificativos que aprisionam o
operário dentro de uma representação imaginária que o degrada
e o infantiliza. E, a ela, o discurso dos católicos, que têm um
projeto próprio para a solução dos problemas sociais — centrado
no princípio de colaboração das classes e da humanização do
capitalismo, nos moldes de Leão XIII —, acrescenta a figuração
do operário como fraco e desamparado, presa fácil da sedução
e da corrupção comunista. Humilde e ingênuo,

o operário é fraco porque é pobre e mal instruído e está sozinho,


entregue ao bel-prazer dos patrões. Na sua aflição ou no seu desespero,
ele se entregará ao primeiro que se lhe chegar com uma esperança de
salvação.27

Diante da fraqueza e desamparo é que a Igreja, através da


Ação Católica, se coloca como mediadora entre operários e pa-
trões e decide, no dizer de um de seus ativistas, ir ao encontro dos
operários, “ajudá-los, instruí-los, melhorar-lhes as condições de
vida, para que eles sintam que a Igreja é que é realmente a grande
amiga e benfeitora dos pobres”.28 É como “benfeitora” que ela
disputa com os comunistas a ocupação de um espaço junto ao
operariado, e como “benfeitora” reforça um imaginário em que
o trabalhador é visível na sua inequívoca e necessária submissão.
E outra não é a postura integralista. Esta, na palavra de um
dos membros da sua chefia nacional, afirma a existência de uma
questão social, solicitando sua solução, que eles alcançarão:

276
Reabilitando o operário, não lhe prometendo pão apenas como faz
o comunismo, mas erguendo-o das condições de inferioridade a que o
capitalismo o força a viver. Faremos com que o trabalhador se integre
na vida da nacionalidade, como fator de sua grandeza (...)29

A reabilitação operária e a sua libertação da inferioridade não


se referem apenas à exploração do capitalismo, mas à condição
“rude” dos operários, definidos como “homens simples”, mas
que “possuem uma noção de dignidade muito elevada” e que
“amam sua prole, temem a Deus”. Essa visão mostra o operário
compatível com o lema integralista de Deus, Pátria e Família.
E o integralismo é que vai alçá-lo à dignidade da vida nacional
como trabalhador, daí sua integração ser considerada fator da
grandeza nacional. É interessante observar que a ênfase dada à
condição de “trabalhador” é necessária para definir o lugar do
operariado na sociedade e no projeto político integralista. Assim
é que se afirma que a “ilusão do proletário” é que “meteram-lhe
na cabeça que ele deve governar”. Aqui, a rudeza, a incultura,
a simplicidade é que confinam o trabalhador ao lugar do “tra-
balho” e lhe interditam o acesso ao espaço público da política.
E o pensamento do governo é bem expresso pelo ex-ministro
Salgado Filho, ao enaltecer em 1936 o fato de o governo ter dado,
através da criação do Direito Trabalhista, “proteção às classes
trabalhadoras, libertando-as do domínio absoluto dos patrões”.30
Observamos, novamente, a ideia de fraqueza e desamparo e a
necessidade de proteção contra o abuso do poder dos patrões,
garantindo ao Estado o papel de mediador.
É interessante observar como vários segmentos da sociedade
se apropriam da representação — elaborada pelos setores orga-
nizados da classe operária, pelo PC e por simpatizantes da causa
dos trabalhadores — que figura o proletariado como explorado
e oprimido pelo capital.
Numa nota enviada ao operariado contra a influência inte-
gralista no meio operário-sindical, elaborada pela Federação do

277
Trabalho de Minas,31 entidade pró-unidade sindical e assinada
por dez sindicatos de classe, afirma-se:

Combatamos o fascismo em todas as suas modalidades, sem tréguas,


sem descanso. (...) E depois disto consigamos a nossa emancipação
econômica — o primeiro passo para a nossa libertação integral que se
dará quando destruirmos para sempre os exploradores, os parasitas,
esmagando todas as classes, fundindo-as numa só — a classe que tra-
balha, a classe que tem sido explorada sempre — a classe proletária.32

Aqui, numa mesma operação, os representantes operários


se autodefinem como “trabalhadores” e “explorados”. Noutra
circunstância, quando da comemoração do Dia do Trabalho, os
operários de Chicago são relembrados como “párias oprimidos”
e “sacrificados” pelos “covardes à serviço da tirania”, e o dia
Primeiro de Maio é apontado como

(...) a continuação de um mesmo drama: o drama eterno e simbó-


lico de Prometeu acorrentado lutando contra as algemas de ferro das
tiranias e dos preconceitos e devorado pelos abutres insaciáveis, do
capitalismo e das Internacionais Armamentistas.33

Essa ideia de exploração e opressão constantes é apropria-


da e reelaborada pelo discurso de vários segmentos do poder,
ou reelaborada em afinidade com o poder, orientada para o
reforço da dominação operária. Contudo, é com vistas a essa
dominação que, paralelamente à reafirmação da imagem de
submissão e inferioridade operária, tem início a construção de
outra imagem operária, à qual é atribuída um perfil ideal. Em
primeiro lugar, é necessário distinguir o “operário verdadeiro”
daquele que é grevista, agitador, desordeiro e comunista. O ver-
dadeiro operário é aquele que “trabalha e gosta de trabalhar”.34
Segundo o catolicismo, esse operário é trabalhador, é católico,
é nacionalista, e mais:

278
É por demais sabido que o operário brasileiro é o mais anticomu-
nista de todos os operários, porque ele é ordeiro, é católico, respeitador
e amante de sua família, quer possuir uma propriedadezinha que lhe
assegure o futuro dos seus filhos.35

Aqui é traçado o perfil do operário que se quer trabalhador,


obediente, patriota, católico e a favor da propriedade. Agame-
non Magalhães, como Ministro do Trabalho, vai mais além na
tentativa de criar uma imagem operária positiva, na esperança
de que os operários se identifiquem com ela:

O operário é disciplinado, ama a sua pátria e defende sua família,


as instituições e tradições do nosso povo. Estes fatores constituem, por
si mesmos, uma grande resistência contra a ação nefasta dos inimigos
da pátria.36

A ordem e a disciplina são, pois, atributos indissociáveis da


imagem do operário que se deseja enquadrar. E a ação do Mi-
nistério é definida de forma a garantir esse perfil ideal:

O Ministério do Trabalho somente se ocupa e se interessa pela


atividade profissional dos homens de bem, de ordem e de trabalho,
que com o seu nobre esforço concorrem para o desenvolvimento da
produção nacional.37

O tema racial não escapa a Agamenon Magalhães, cuja re-


flexão é construída quase que de forma idêntica à feita por um
membro do PC:

O negro, com suas qualidades excepcionais de resistência e traba-


lho; o índio, altivo, independente, ríspido como a natureza tropical;
este e aquele francamente adaptados às condições físicas do meio; o
português destemeroso, alma forrada de imprevistos do desconhecido;

279
todos esses fatores étnicos, em amálgama, hão de produzir um tipo
selecionado, que será o brasileiro.38

A imagem negativa do trabalho, que precedeu essa constru-


ção de uma imagem ideal, deveu-se à necessidade de demarcar
uma diferença com o “outro”, o operário. A impessoalidade do
discurso que definiu como “natural”, e como “regra”, o lugar
inferior do operário não prescindiu, numa típica operação do
discurso ideológico, de

(...) tornar visível a distinção, em todos os níveis, entre o sujeito que


se erige por sua articulação com a regra, que se enuncia a si mesmo
enunciando-a, e o outro, que não tem dignidade de sujeito por não ter
acesso à regra (Lefort, 1971, p. 29).

E essa oposição se manifesta “no operário figurado face ao


burguês, o inculto face ao homem cultivado, o selvagem face
ao civilizado, o louco face ao normal, a criança face ao adulto”
(Lefort, 1971, p. 29).
Já a construção de um perfil ideal se presta simultaneamente
à negação da divisão no social — já que todos se irmanam no
valor do trabalho — e à normatização e enquadramento do
outro. Vejamos a manifestação deste parlamentar ao descrever
sua visita a uma fábrica alemã:

Autorizaram-me a fazer perguntas aos operários. Unânime a con-


denação ao princípio comunista de igual salário para todos. Impedia
que se premiasse o mérito e se criasse estímulo à produtividade. Natu-
ralmente, aos preguiçosos e incapazes convinha muito essa nivelação,
mas a indústria e a nação sofriam com ela e com a luta de classes,
separando patrões e empregados. A reforma consistiu principalmente
em uni-los na comunhão da empresa.39

280
Comodismo e incompetência são caracteres observados na-
queles que recusam a produtividade e o mérito. E as diferenças
de salário e posição declinam sob a figura da empresa que,
como o social, é una. A normatização do outro exige que se
precise tudo o que se quer negar nos “homens que não podem
e não sabem conduzir dignamente os seus caracteres”.40 E isso
é feito por um especialista em geografia humana no boletim do
Ministério do Trabalho:

Compreendam, portanto, os governos a necessidade de educar os


homens, abrir-lhe ensanchas ao trabalho, ligar a fonte de seus produtos
aos meios consumidores; tirem-no do analfabetismo, eduquem-lhe a
energia, preparem-lhe o tipo, purifiquem-lhe a raça; deem-lhe a pre-
cisa higiene, folguedos para o espírito, trabalho para os braços, luzes
para a inteligência — que esse homem deixará de ser um elemento de
justaposição, relativamente ao seu semelhante, enfraquecido, para ser
uma unidade, sadia, alegre, trabalhadora, em uma palavra — educada.
Queremos o tipo que não seja humilhado, sofredor por desânimo,
dócil por ignorância, indolente por falta de iniciativa, pobre porque
não saiba trabalhar.
Queremos o tipo que não seja sensualizado, corrompido, afeito
a vícios; que não seja impatriota; que não seja covarde; que não seja
doente, verminado, anêmico, contaminado de moléstias discrásicas.
Queremos o tipo sadio, forte, alevantado...
Queremos um povo que compreenda que o trabalho é o estímulo
da energia e que o homem nasceu para lutar e vencer.41

No mundo idealizado do trabalho, aqueles que o recusam


têm em si projetados todo o mal que a sociedade laboriosa e
disciplinada quer expurgar: o desânimo, a ignorância, o desleixo,
a indolência, a sensualidade, o vício, a corrupção, a doença, a
indisciplina, a fraqueza. Assim se configura um avanço estraté-
gico da ordenação do mundo do trabalho para a construção de
um trabalhador ideal, produtivo, ordeiro, patriota, higienizado,
moralizado. Esse avanço implica medidas de saneamento social e

281
moral, como a iniciativa de repressão à mendicância e o amparo
à infância desvalida, realizadas em Minas Gerais pelo chefe de
polícia com a colaboração do inspetor regional do Ministério do
Trabalho. A intenção em relação aos menores abandonados é a
de “proporcionar-lhes uma educação integral e cristã incutindo
na criança uma sólida formação moral e preparando homens
fortes e necessários para os embates da vida”.42 Na mesma ini-
ciativa, cria-se um albergue público noturno, varrendo, assim,
das ruas — e da vista — os sinais desagradáveis do ócio e da
vagabundagem, fato recebido com entusiasmo neste comentário
feito, na ocasião, por um jornal mineiro: “uma nota palpitante é
a de que os mendigos desaparecerão.”43 Os planos de fundação
de uma delegacia especializada para a realização do programa
de combate à mendicância são aplaudidos pelo mesmo jornal
em editorial:

Nas bases dessa organização todo mendigo ou indigente, bem


como todo menor vagabundo, será recolhido, identificado e fichado,
investigando-se o seu passado, as suas condições presentes e as suas
“aspirações”. Os doentes serão encaminhados para hospitais e asilos
— os desempregados ficarão de quarentena sob as vistas cuidadosas
da autoridade, que se esforçará para obter-lhes um ganha-pão. (...)
Quanto aos menores, serão remetidos para os institutos próprios que
naturalmente serão ampliados.44

Ao lado da negação do “não trabalho” e da projeção de uma


sociedade laboriosa, o que de fato assoma é uma nova política
de organização do trabalho cuja condução é empreendida pelo
Ministério do Trabalho regido pelo princípio do corporativismo.
A feição institucionalizada dessa sociedade unificada pelo valor
do trabalho é dada pela legislação trabalhista.
Das marchas e contramarchas dessa legislação, em particular
da sindical, e do confronto político do qual ela é o palco, muitos
autores já disseram o suficiente e o mesmo pode ser dito acerca
da orientação corporativista do Ministério do Trabalho.45 O que

282
nos interessa acompanhar aqui é a maneira como o Ministério
do Trabalho constrói um discurso social, um discurso do poder,
que cria uma ordem no “mundo” do trabalho. A nosso ver, o
discurso do Ministério é um discurso totalitário e, enquanto
tal, ele “requer sua identificação com o poder e com aqueles
que o detêm no topo do Estado” (Lefort, 1974, p. 42). Um bom
exemplo desse tipo de discurso é este do ministro do trabalho,
Agamenon Magalhães:

Falo-vos com ufania porque o faço em nome do governo, em


nome do Presidente Getúlio, o preclaro brasileiro que vos deu a lei
de 8 horas, a lei de férias remuneradas, a estabilidade no emprego e
o grande Instituto de Aposentadorias e Pensões.
Feliz a Nação em que os trabalhadores se unem para festejar as
suas conquistas pacíficas, alcançadas sem lutas, nem choques, sem
amarguras, nem ódios, partidas as grandes reformas sociais do alto,
do poder, do governo que tem a compreensão dos seus deveres e a
sensibilidade dos sofrimentos e necessidades dos seus governados.46

Esse discurso se apresenta impresso na realidade “da compre-


ensão dos seus deveres” e na dos “sofrimentos e necessidades do
povo”, encarnando o poder que “doa” leis sociais, para realizar
as reformas do alto do poder. Nesse sentido, é um discurso po-
lítico, mas que se nega a si, porque dissolve o valor político na
generalidade do valor social. E, na direção da dissolução do valor
político, o discurso do Ministério vai tentar diluir a oposição exis-
tente entre o Estado e a sociedade civil e vai enfatizar a presença
do Estado em todos os espaços da vida social. Nesse sentido,
ele reafirma o princípio da autoridade e, consequentemente, do
poder, e enfatiza a necessidade da aceitação deste. A presença
onisciente do Estado é defendida por Agamenon Magalhães:

O Estado, em face da realidade da vida contemporânea, é um poder


em luta para integrar na ordem social os fatores novos, criados pelas

283
transformações econômicas. (...) O Estado é força criadora, dinamismo,
ação que acompanha a vida social em todos os seus movimentos. (...)
a intervenção do Estado arrepia ainda os nervos de muita gente que
confunde liberdade com individualismo, cujos excessos geraram um
sistema de opressão econômica mais extenso e iníquo do que o trabalho
escravo. A liberdade não é do indivíduo e sim da personalidade, isto é,
do homem como ser social, com direito de trabalhar e produzir, den-
tro de certas condições econômicas. (...) Só o Estado, como força de
coordenação e comando, pode dirigir e orientar os povos, na solução
dos problemas de ordem coletiva.47

Ao reafirmar a presença do Estado em todos os “movimentos”


da vida social e a necessidade da sua “coordenação e comando”,
Agamenon Magalhães utiliza elementos da teoria corporativista.
Que elementos são esses? A necessidade de organização da vida
econômica e política do país e a definição da liberdade como
coletiva. Esses são dois pontos básicos do esquema corporativista
que vai instrumentalizar o discurso autoritário do Ministério do
Trabalho. Com o primeiro, propõe-se a intervenção do Estado
nas relações de trabalho; com o segundo, afirma-se a noção
de corporação como princípio da organização social e, nesse
ponto, ocorre a publicização do privado. A efetivação de ambos
pressupõe um Estado racional, neutro, que atenda igualmente a
patrões e empregados, e que seja dotado de um aparato técnico-
-burocrático especializado e objetivo. Para tornar tal Estado uma
realidade, utiliza-se um recurso poderoso, a legislação trabalhista
sindical, e de um organismo auxiliar de execução, o Ministério do
Trabalho. Este, ao assumir a gerência do aparato legal e a difusão
do ideal corporativista, torna-se um “núcleo central de socializa-
ção”, segundo a designação de Lefort (1974), e enquanto tal, a
nosso ver, ele dá forma às relações sociais, dissolvendo, tal como
sugere o autor citado, “as linhas de clivagem entre dominantes e
dominados na imagem de uma hierarquia puramente funcional”,
à qual estão todos ligados: empregados e empregadores.

284
A própria organização interna do Ministério já é reveladora
do significado da adesão aos princípios corporativistas da racio-
nalidade técnico-científica. Dividido em órgãos, departamentos
e seções, o Ministério implantou um amplo quadro de funcio-
nários especializados, os quais dão suporte teórico e técnico às
decisões a serem implementadas, revestindo-as de uma aura de
cientificidade e neutralidade. Tais órgãos, como, por exemplo,
o Departamento Nacional do Trabalho (DNT) e o Conselho
Nacional do Trabalho (CNT), são por sua vez subdivididos, em
decorrência de suas funções específicas, em vários outros órgãos,
como é o caso das Caixas e dos Institutos de Aposentadoria e
Pensões, dos Departamentos Estaduais do Trabalho e das Juntas
de Conciliação e Julgamento.
A partir de sua organização interna, o Ministério vai submeter
também o conjunto da sociedade, no que se refere às relações
de trabalho, ao imperativo da organização e da racionalidade.
E quem melhor vai expressar esse ideal da organização e da ra-
cionalidade serão os técnicos do Ministério, que, neste lugar, a
partir de onde as relações sociais vão se organizar, detêm poder
e saber. A exteriorização desse saber anônimo e desse poder não
se dá apenas no discurso teórico da organização, mas sobretudo
na prática dos seus agentes, revelada nos pareceres técnicos, nos
anteprojetos de lei, nos estudos estatísticos, nas regulamentações
das leis, nos estudos técnicos especializados — que efetivamente
suportam e implementam uma política de trabalho.
O boletim do Ministério vai ser um veículo privilegiado na
divulgação desse saber e desse poder e por ele nos defrontamos
com os discursos do Presidente e do seu ministro do Trabalho e
com os do arsenal de técnicos do Ministério, composto de pro-
fissionais de diversas áreas, como: direito, sociologia, economia,
estatística, planejamento, nutrição, psicologia social, entre tantas
outras, cujo saber especializado vai informar e efetivar a regu-
lação do mundo do trabalho. Nos Estados, os Departamentos
Estaduais do Trabalho também mantêm publicações periódicas.

285
Os artigos publicados são de natureza teórico-doutrinária
e técnica. Os teórico-doutrinários versam sobre direito corpo-
rativo, teoria corporativa, intervenção do Estado, organização
sindical, justiça trabalhista, organização científica do trabalho.
Os técnicos abordam temas mais específicos, como a remunera-
ção do repouso obrigatório, a lei de nacionalização do trabalho,
a situação dos operários não sindicalizados, a obrigatoriedade
da carteira de trabalho, o direito à aposentadoria, os acidentes
de trabalho, a alimentação operária, as condições higiênicas
do trabalho, a utilização das máquinas, o problema da fadiga,
entre outros.
Num caso como no outro, como veremos a seguir, o poder
e a autoridade são afirmados com uma ênfase toda especial; a
perspectiva organicista da esfera social é confirmada; o saber
técnico é valorizado; os conflitos de classe permanecem negados.
A afirmação do poder é feita através da indicação reiterativa
das ações do Estado. Ela aparece vinculada à ideia de que o
Estado é quem cria as instâncias da vida pública. Assim, por
exemplo, é que se manifesta Agamenon Magalhães:

No Brasil, o Estado criando o sindicato, dando-lhe função públi-


ca e representação no parlamento, junta de conciliação e Conselhos
Administrativos dos Institutos de Previdência, lançou as bases para o
movimento corporativo, que poderá desabrochar com modalidades
características da economia brasileira.48

A insistência em reconhecer publicamente a ação do Estado,


além de tornar visível o seu poder, é uma forma de o discurso da
organização do Ministério do Trabalho se sustentar, uma vez que
se escuda politicamente numa “referência constante à autoridade
que concentra a decisão” (Lefort, 1974, p. 41). E essa operação
aparece associada à afirmação de 1930 como ponto de origem
da legislação social criada por Vargas, que caracteriza a ação
do Estado sob sua direção. Assim, Salgado Filho, num discurso

286
proferido na Ordem dos Advogados Brasileiros sobre a legislação
trabalhista, vai enfatizar as decisões do Governo Provisório:

Teve o Governo Provisório em mente, ao elaborar a sua Legislação


Social Trabalhista, estabelecer uma situação de estabilidade para as
instituições basilares do nosso organismo social e de segurança pública.
(...) O Governo Provisório, honrando palavra dada, empreendeu a reali-
zação da grande obra de justiça social e de humanização do trabalho.49

Também a Revista Social-Trabalhista, da Inspetoria Regional


do Trabalho de Minas Gerais, vez por outra se refere ao ano de
1930 como um marco de referência que se situa entre o novo e o
velho; entre as decisões políticas tomadas com base nos interesses
egoísticos e as tomadas de forma objetiva e com bases técnicas;
entre o governo das oligarquias e a realidade corporativista. Daí,
as seguintes afirmações:

A legislação social, legislação social-trabalhista, ou simplesmente,


legislação operária — como geralmente a denominam — é, não há
dúvida, uma das realizações do governo do Sr. Getúlio Vargas que
maiores benefícios trouxe à Nação. (...) Felizmente podemos afirmar
com satisfação e orgulho que o Brasil, do movimento de trinta para
cá, construiu um verdadeiro monumento em matéria de leis protetoras
das classes proletárias.50

E meses mais tarde, em outro número:

Uma das primeiras medidas, pois, postas em prática pelo governo


provisório, no sentido de dar ao trabalhador nacional alguns direitos
que o governo deposto não lhe reconhecera, consubstanciou-se mag-
nificamente na lei de nacionalização do trabalho. (...) Firmas havia, no
Rio e em São Paulo, que só davam trabalho aos estrangeiros, deixando,
consequentemente, ao desamparo milhares de operários nacionais.

287
O governo de então, tratando mais de política, não teve tempo para
estudar a situação aflitiva dos nossos irmãos.
O governo revolucionário que, antes de tudo, teve a seu favor o
apoio moral da opinião pública, logo que se instalou cuidou de regene-
rar os costumes políticos, decretando leis sábias e justas, notadamente
no que diz respeito às classes trabalhadoras. (...) O que se fez entretanto
foi apenas reivindicar para o trabalhador nacional certos direitos que
ele ainda não possuía (...).51

Assim, o Estado é quem cria as leis, regenera os costumes,


reivindica direitos para os operários. E Vargas é o dirigente be-
nemérito de todas as ações. Observamos em todos esses textos
que a outorga — como parte da memória do vencedor — aparece
sendo construída no momento da constituição desse passado.

O marco, 30, retoma a visão do tempo e a generalidade ao acentuar


o adversário (o liberalismo, as “confusões” pós 30, as sobrevivências
ao anterior, 34), permite indicar certa época confusa onde o espírito
de 30 desencaminhou-se. Sua correção e a retomada das aspirações
gerais ocorrem com o Estado Novo (Vesentini, 1986, p. 115).

A referência a 1930 e a afirmação do poder também surgem


na palavra de um técnico do Ministério. Ao se referir à decretação
da legislação social-trabalhista, que inicia, a seu ver, a organi-
zação de um movimento social solidário e humano, ele afirma:

A diretriz do que está se formando tem por principal instrumento


o sindicalismo, em torno do qual gira todo o sistema da complexa
legislação; em todos os atos concernentes ao campo desse direito es-
pecial, emanada do poder competente, no lapso do tempo que vai de
1930 até o momento presente, descobrimos, como traço característico,
o regime associativo.52

288
Aqui, é introduzida a questão do poder competente que torna
inquestionável o saber e o poder dos técnicos do Ministério no
campo do Direito. Em outro boletim,53 esse saber e esse poder
aparecem afirmados na “autoridade” das Comissões Mistas de
Conciliação e Julgamento. Essa “autoridade” é que dá à presi-
dência da comissão “um papel saliente” e decisivo na solução
dos conflitos. Uma demonstração desse “saber competente”
são os vários e longos pareceres de Oliveira Vianna no Boletim
do Ministério, acerca da interpretação, aplicabilidade e regula-
mentação das leis. O saber jurídico é sobremaneira valorizado,
e num artigo teórico sobre o projeto da Justiça do Trabalho
se afirma ser inadmissível “aquela absurda presunção de que
todos conhecem as leis”.54 Advogando a criação de um tribunal
especial para as questões trabalhistas, o articulista assevera: “E,
diferente o processo, deve ser diverso o tribunal. É necessário
levar aos litígios do trabalho a voz da consciência profissional,
a experiência prática do ofício.”
Nessa mesma linha de ênfase do saber técnico-profissional é
que a autoridade das Juntas de Conciliação e Julgamento é ga-
rantida, reiterando-se que ela “tem amplos poderes para decidir
os casos da sua competência, conciliatória ou coercitivamente”.55
Assim é que um funcionário da Inspetoria Regional de Minas
afirma que a Justiça do Trabalho a ser instalada no estado terá
“na sua presidência um bacharel em Direito, nomeado pelo
Presidente da República, de reconhecida idoneidade moral e
notáveis conhecimentos do moderno Direito social”.56
Dessa forma, o saber competente e específico é o que confere
poder às juntas e, enquanto tal, os contratos coletivos de traba-
lho, ou melhor, a convenção é deslocada da arena político-social
privada, de operários e patrões, para o âmbito público, enquan-
to uma questão meramente técnica e legal e, nessas condições
eminentemente jurídicas, são assentadas condições de trabalho,
salários, jornadas de trabalho, folgas e outras cláusulas — que
de políticas passam a ser consideradas “econômicas”.57 Esse

289
saber, enquanto elemento do poder que realiza o movimento de
socialização empreendido pelo Ministério do Trabalho, numa
característica do discurso totalitário, de acordo com Lefort (1974,
p. 41), “torna manifesta a origem da norma” que se localiza,
como quer esse autor, no “coração do aparelho do Estado”.
A autoridade atribuída ao saber competente é, por sua vez,
informada pela perspectiva organicista que ocupa posição de
destaque no pensamento dos teóricos e técnicos do Ministério
do Trabalho. Essa perspectiva, como já afirmamos, se apoia na
representação da sociedade como um organismo vivo e estru-
turado hierarquicamente, cabendo, portanto, a algumas partes
uma função mais nobre, como no caso do cérebro. Portanto, no
corpo social brasileiro, é “natural” que os técnicos ocupem uma
posição de destaque. E como a lógica que sustenta o pensamento
organicista é autoritária e binária, o saber sugere a sua oposição,
o “não saber”, o qual é condição do “outro”, ou seja, da massa
dos sem-poder.
Por outro lado, como o orgânico pressupõe a redução ao uno
e ao princípio da sociedade harmoniosa, o Estado e o Direito,
na mecânica social organicista, são definidos como organismos.
Assim,“o direito é um organismo, cuja finalidade é sustentar em
equilíbrio as forças da sociedade”.58 E é na pressuposição desse
mesmo equilíbrio orgânico que Oliveira Vianna vai sustentar a
sua argumentação contra a pluralidade sindical, em resposta a
uma consulta de Alceu de Amoroso Lima:

Se a classe é uma unidade coletiva, se é uma realidade social, ou


mais incisivamente, se é uma formação natural da sociedade, como
aliás, reconhece o ilustre Sr. Amoroso Lima (“Política”, 1930, p. 90)
como permitir-lhe a multiplicidade de representação? (...) Nesse ponto,
a organização fascista como a organização comunista são lógicas e,
estabelecendo o sindicato único, não fazem mais do que subordinar
coerentemente a estruturação política das classes aos imperativos da
realidade social.59

290
O “organismo social”, como o organismo natural, é uma
totalidade harmoniosa que tem de ser preservada da ação desa-
gregadora das classes e dos interesses individuais, como o corpo
humano deve ser preservado das enfermidades. A legislação
trabalhista, dentro dessa visão, possui um caráter preventivo.
Se a higiene médica é o que previne o contágio das doenças, é a
“higiene jurídica”, através das leis preventivas, que vai manter
a sociedade livre e afastada das epidemias sociais. O legislador
e o jurista são considerados médicos desse gigantesco corpo
humano, a sociedade. Ambos vão prevenir as doenças e curar
esse corpo com a lei.
Dessa comparação com a natureza é que a legislação social
aparece considerada como “solar”, por um técnico do Ministério:

O legislador patrício compreendeu, fitando a própria natureza, que


o sol ilumina a todos — seres e coisas — sem indagar a origem dos seus
elementos, por isso os seus raios benéficos e salutares não distinguem
a choupana do pobre do palácio do argentário...60

O Direito Corporativo surge, assim, como a garantia da saúde


do corpo social e da integridade do poder, afirmada na união
do Estado com a sociedade civil, através das corporações. “O
Direito Corporativo exige a unidade de autoridade na diversida-
de administrativa. Eis porque o Estado, sem organicidade, não
pode ser corporativo em virtude da fragmentação do poder”.61
A proposta aqui é a de um centro irradiador de poder e de
autoridade, e da consequente dissolução das diferenças sob a
unidade da autoridade. Parece-nos que talvez aqui esteja o esbo-
ço de uma resposta às objeções teóricas, tais como as de Arendt
(1988) e Araújo (1987), que incompatibilizam corporativismo
e totalitarismo. Parece-nos que também no corporativismo “o
poder multiplica seus núcleos sem risco de divisão, porque é
sempre o mesmo poder que é exercido em todos eles” (Chaui,
1978, p. 130). E o Estado é o corpo indiviso que abriga todas
as instâncias coletivas da sociedade.

291
A consecução da totalidade social, da organicidade do Estado,
demanda a negação das classes e da luta de classes, sendo esta a
tarefa do sindicato, entendido dentro do preceito corporativista
como uma agência do Estado:

A tendência corporativista acentua-se cada vez mais na luta contra


a depressão econômica. O seu fundamento é a integração do capital e
do trabalho, que se disciplinam por si mesmos ou pela intervenção do
Estado. Enquanto o marxismo prega a luta de classes e a supressão de
uma delas pela violência ou ditadura proletária, o corporativismo subs-
titui o conceito de luta pelo de integração em unidades econômicas.62

A partir dessa integração, defendida por Agamenon Maga-


lhães, trabalho e capital deixam de ser forças antagônicas para
se tornarem forças de conciliação e equilíbrio. Dessa forma,
liquida-se com o “individualismo mal orientado”,63 no dizer
de um técnico do Ministério, cuja expressão é a luta de classes.
Com a eliminação desta se almeja a “completa unidade das
forças econômicas”.64 Com vistas a essa unidade, a organização
sindical é considerada “fator forte como elemento de coesão da
nossa nacionalidade”. O operário, através do novo sindicalismo,
“assim, ascende, passando da ínfima vida de verdadeiro anoni-
mato e pária ao lugar que lhe cabe exercer na sociedade, papel
que o reabilita porque lhe outorga os privilégios da missão so-
cial que desempenha”.65 Dessa forma, pela legislação sindical, o
trabalhador adquire o estatuto de cidadão, cidadão trabalhador.
A sua missão é trabalhar. E sua cidadania é, no dizer de Santos
(1979), “regulada”66 por se apoiar não em um código de valores
políticos, mas na estratificação ocupacional, definida pela lei.
Dessa forma, a regulamentação das profissões pela Constituição
de 1937 (antecedida pelo reconhecimento das profissões, em
vigor desde 1932) somada à exigência da carteira profissional e
do sindicato público seriam

292
(...) os três parâmetros no interior dos quais passa a definir-se a
cidadania. (...) O instrumento jurídico comprovante do contrato entre
o Estado e a cidadania regulada é a carteira profissional, que se torna,
em realidade, mais do que uma evidência trabalhista, uma certidão de
nascimento cívico (Santos, 1979, p. 76).

A participação do trabalhador na construção e “coesão” da


nacionalidade se dá através da sua identidade profissional. E o
sindicato passa a ser o organismo que vai “englobar em si todos
os elementos laboriosos e trabalhadores”.67
De novo, voltamos à representação de uma imagem operária.
Agora resta perguntar: e o Ministério? Os seus agentes criam
a respeito da nova política de organização do trabalho e de si
mesmos alguma representação? A nossa avaliação é a de que eles
se autorrepresentam (enquanto gerentes da legislação trabalhista
e artífices da armação corporativista) como repositórios da igual-
dade, da liberdade, do interesse coletivo, da paz entre as classes,
outorgantes de regalias e vantagens aos trabalhadores, protetores
da integridade física, moral e financeira do operariado infantili-
zado, atrasado e degradado etnicamente (porque miscigenado).
As páginas do Boletim do Ministério e da Revista Social
Trabalhista de Minas Gerais estão repletas de qualificativos e
designações que avalizam, simultaneamente, os propósitos do
Ministério e a competência de seus agentes, cujos estudos, pare-
ceres e análises constituem um poder de intervenção e construção
da realidade. Assim é que se garante que nos anteprojetos da
Justiça do Trabalho nenhum interesse particular ou de classe vai
“prevalecer contra o interesse público”;68 que a finalidade dos
Tribunais é “solucionar os conflitos coletivos, restabelecendo
a paz social”;69 que a lei “criadora” dos sindicatos pertence “à
ordem das leis que têm por objetivo a humanização do traba-
lho”;70 que a aposentadoria é “uma solidariedade dos fortes e
dos sadios, aos doentes, aos inválidos e impossibilitados de con-
tinuar as suas lutas diárias”;71 que a legislação trabalhista tomou
tal vulto que é possível afirmar “que o Brasil pode se ufanar de

293
ser — como de fato é — uma das nações mais socializadas do
mundo”;72 que os trabalhadores cumprindo “as disposições legais
que regem a legislação do trabalho se encontram felizes, num
verdadeiro ambiente de paz e harmonia”;73 que o trabalhador
se sindicalizando “conseguirá sem dúvida — a melhoria de sua
situação, gozando ainda de outras vantagens e regalias que a lei
só aos sindicalizados oferece”.74
Ao elaborar essas representações, o discurso do Ministério —
discurso do poder — passa a enunciar uma ordem no mundo e
a denominar coisas como a paz social, a igualdade, a liberdade,
o trabalho. Ao fazê-lo, ele tenta fundir-se ao discurso social não
identificado com o poder. Veicula um saber tal como fosse origi-
nado da ordem natural das coisas, apagando a exterioridade da
regra. Sob essa perspectiva, o discurso do Ministério arriscou-se
a aparecer “como mentira generalizada, como discurso a serviço
do poder, simples máscara da oposição” (Lefort, 1974, p. 45).
Enquanto discurso do poder, a sua realidade em relação ao
trabalhador, através do instrumento da legislação trabalhista,
apoiada na armação corporativista, é a de torná-lo apto a viver
e trabalhar em empresas modernas, hierarquizadas e organizadas
racionalmente, sob o mito da eficiência, da competência, com as
vistas voltadas para o progresso. As estratégias implementadas
com vistas a esse objetivo nos vão permitir, no tópico seguinte,
visualizar o ponto de chegada desse ordenamento do mundo do
trabalho e recolher as reações dos comunistas e trabalhadores
perante esse projeto de socialização.

NOTAS
1
Hannah Arendt, em suas considerações sobre o trabalho, destaca-o enquanto
um atributo da condição humana, espaço da existência individual e coletiva e
fronteira entre homem e natureza. E o que torna o trabalho, segundo ela, parte
da condição humana é o fato de ser trazido para dentro do mundo dos homens
pelo esforço humano.
A ideia de trabalho em Hegel também envolve a ideia de esforço, embora
Hegel vá além de Hannah Arendt, se considerarmos que, para ele, de acordo
com reflexões de Romano (1981), o trabalho é acesso à consciência e, por
conseguinte, é comunhão com o Espírito universal, meio para o homem se

294
tornar livre. Isto se dá, todavia, através do esforço e da dor. O trabalho surge,
assim, como elemento formador do ser humano. Essa ideia, segundo Arendt e
Romano, é reafirmada por Marx na Ideologia alemã — com as noções de que
o trabalho criou o homem e de que é ele que o distingue dos animais. Arendt
considera que a afirmação de Marx expressa de forma radical a glorificação
do trabalho, empreendida na era moderna “como fonte de todos os valores”,
e Romano aventa a possibilidade de que a herança desse pensamento tenha
informado, pelo marxismo, a “propaganda religiosa do trabalho” nos regimes
comunistas.
Ambas as sugestões confirmam a presença do elogio do esforço na visão do
trabalho de Marx seja pela produtividade e pelo advento da abundância, de
um lado, seja pela construção da revolução e pela superação do reino da ne-
cessidade, de outro. Na superação do reino da necessidade e no advento do
reino da liberdade — apontada por Arendt (1983) como uma contradição do
pensamento de Marx, que vê o trabalho como criador do homem, necessidade
eterna, imposta pela natureza que, entretanto, será abolido do reino da liberdade
— talvez esteja a insinuação do esforço como algo penoso, portanto, eliminável
quando superada a necessidade.
Também Freud (1978a) vai realçar a condição do trabalho como elemento
de socialização do homem, uma vez que o submete ao princípio da realidade,
fornecendo-lhe “um lugar seguro (...) na comunidade humana” (p. 144), além
de possibilitar que para ele convirjam, de forma sublimada, impulsos libidinais
agressivos e eróticos, cuja contenção é exigência da civilização.
Na literatura psicanalítica, o pacto edípico, o pacto com o pai no momento da
resolução do complexo de Édipo, implica a aceitação da lei da cultura, ou a lei
do Pai, através da qual a criança se integra na sociedade familiar. Esse pacto
prepararia o caminho para o pacto da idade adulta, estruturado em torno do
trabalho (Pellegrino, 1983).
A afirmação de Freud de que “a atividade profissional constitui fonte de satisfação
especial” (p. 144) não o impede de afirmar que o trabalho, enquanto caminho
para a felicidade, não é bem aceito pelos homens, que trabalham apenas pela
imposição das necessidades, sentindo natural aversão ao trabalho.
Parece-nos que, embora Freud afirme que o trabalho proporciona prazer, o
fato de submeter os homens ao princípio de realidade significa essencialmente
renúncia ao princípio do prazer, implicando, portanto, a aceitação da disciplina
e a “dolorosa e laboriosa aquisição da competência enquanto trabalhador”
(Pellegrino, 1983, p. 08). Talvez esteja aqui a explicação para a existência da
“aversão natural” por ele apontada.
2
Aqui aproveitamos para chamar a atenção para o fato de que, ao admitirmos
que o Estado Novo se apropria da visão política que o Ocidente elaborou sobre
o trabalho, para impor sua visão corporativa, não estamos igualando, com os to-
talitarismos de direita e esquerda, os humanismos cristão, liberal e socialista aqui
representados pelos autores citados, enquanto fonte ilustrativa e emblemática
daquela visão. Tampouco pretendemos atribuir a esses pensadores a genealogia
de uma ideologia totalitária. Nosso intuito é o de destacar que a visão elaborada
culturalmente em diferentes registros é o que permite — em nome, portanto, de
um valor universal e de uma ética do trabalho difundida no Ocidente — que a
ideologia trabalhista dos anos de 1930 recorra à positividade do trabalho para

295
se legitimar e ao seu projeto de poder. Isto é feito sobretudo através do apelo
imaginário do trabalho como virtude, o qual, na realidade, vai suportar uma
estratégia pouco afeita às virtudes democráticas da res publica.
3
DISCURSO de Francisco Campos em romaria ao Cemitério São João Batista.
Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, n.38, p. XVI, out.
1937.
4
MAGALHÃES, Agamenon. A intervenção do Estado. Boletim do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, n. 13, p. 118, set. 1935.
5
NA data do Trabalho. Correio Mineiro, Belo Horizonte, p. 1, 1 maio 1934.
6
Idem.
7
Idem.
8
CARVALHO, Daniel de. De outros tempos. (Memória). Rio de Janeiro, José
Olympio, 1961. p. 100-102. (O parlamentar foi o chefe da delegação brasi-
leira no congresso internacional da Cruz Vermelha, realizado em 1938 em
Londres, tendo antes cumprido programa de estudos de economia e finanças
e, principalmente, legislação social, em Berlim).
9
NA data do Trabalho, op. cit. p. 1.
10
MANIFESTO do presidente Vargas à Nação brasileira. Boletim do Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio, n.39, p. VI, nov. 1937.
11
DISCURSO do presidente Getúlio Vargas aos brasileiros. Boletim do Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 37, p. VII, set. 1937.
12
A noção de utilidade do trabalho, a nosso ver, se faz presente no imaginário
ocidental desde o mito trágico de Sísifo que, segundo Homero, viu-se condenado
a rolar uma enorme rocha até o cume de uma montanha, de onde, devido ao
seu peso, ela caía sempre que lá chegava, tornando seu trabalho ininterrupto.
O suplício estaria, segundo Camus ([s/d], p. 147-152), “em que o seu ser se
emprega em nada terminar”, daí reconhecê-lo como “o trabalhador inútil dos
infernos”. Todo o seu enorme esforço, “medido pelo espaço sem céu e pelo
tempo sem profundidade”, é improdutivo, nada cria e, portanto, é desesperado.
A leitura desse mito, feita às avessas, nos sugere que o trabalho é esforço penoso
recompensado pela sua utilidade.
13
MOTTA LIMA, Pedro. Livres, para opinar e decidir. A Manhã, Rio de Janeiro,
p. 3, 25 maio 1935.
14
DISCURSO do Dr. David Rabello (Chefe da ANL em MG). Folha de Minas,
Belo Horizonte, p. 2, 14 jul. 1935.
15
KONDER, Valério. Rumo ao campo, rumo à fome. A Manhã, Rio de Janeiro,
p. 6, 22 maio 1935.
16
Idem.
17
MOTTA LIMA, Pedro. A Leopoldina, coitadinha... A Manhã, Rio de Janeiro,
p. 3, 24 maio 1935.
18
DISCURSO do Dr. David Rabello. Folha de Minas, op. cit., p. 2.
19
A INFLUÊNCIA do africano na língua brasileira. A Manhã, Rio de Janeiro, 2
maio 1935.

296
20
INSTRUÇÕES aos comitês estaduais e municipais da ANL. Rio de Janeiro, 21
set. 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 2.
21
CONCENTREMOS todas as nossas forças na preparação e desencadeamento
das greves das Lutas Camponesa e Popular. Revista Proletária, Rio de Janeiro,
n. 5, p. 1-2, ago. 1935. Comitê Central do PCB. In: T.S.N. — Processo n. 1,
v. 3.
22
Idem.
23
Idem.
24
Idem.
25
Ver: MINAS GERAIS. Relatório da Secretaria do Interior. Chefia de Polícia.
1935. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1936. p. 16-17, 66-67.
26
VEIGA, José Borges da. Mentalidade operária. O Debate, Belo Horizonte, p. 6,
21 abr. 1934.
27
NEGROMONTE, Pe. Álvaro. É preciso agir. O Diário, Belo Horizonte, p. 4,
19 set. 1936.
28
NEGROMONTE, Pe. Álvaro. Numa posição dos operários. O Diário, Belo
Horizonte, p. 5, 12 fev. 1936.
29
MONTEIRO DE MELLO. A miragem do proletariado. O Debate, Belo Hori-
zonte, p. 2, 18 maio 1934. (Chefe da seção de imprensa da chefia nacional da
AIB).
30
SALGADO FILHO, Joaquim Pedro. A legislação social brasileira. Boletim do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 23, p. 72, jul. 1936.
31
Ver: O Debate, Belo Horizonte, p. 6-7, 23 mar. 1934.
32
Ver: Correio Mineiro, Belo Horizonte, p. 1, 1 maio 1934.
33
Idem.
34
O COMUNISMO e o operariado. Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 4, 24
jan. 1931. (extraído de O Estado de S. Paulo).
35
O EXÉRCITO e a disciplina. O Diário, Belo Horizonte, p. 4, 15 dez. 1935.
36
ESTADO DE MINAS. p. 1, 29 out. 1937.
37
BANDEIRA DE MELLO, Afonso. Identificação profissional. Revista Social-
-Trabalhista, Belo Horizonte, v. II, n. IX, p. 12, 1937.
38
DISCURSO de Agamenon Magalhães. Boletim do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, n. 33, p. 283, maio 1937.
39
DE CARVALHO, op. cit., p. 97.
40
MAGARINOS, José. O homem e a terra. Boletim do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, n. 15, p. 288, nov. 1935.
41
Idem.
42
REPRESSÃO à mendicância e encaminhamento de menores. O Diário, Belo
Horizonte, p. 3, 8 jun. 1937.

297
43
VÃO desaparecer os mendigos. O Diário, Belo Horizonte, p. 3, 4 jun. 1937.
44
MUITO bem! O Diário, Belo Horizonte, p. 2, 4 jun. 1937.
45
Ver: Munakata (1981), Vianna (1976), Gomes (1979).
46
DISCURSO do ministro Agamenon Magalhães na União dos Empregados do
Comércio do Rio de Janeiro, 30 out. 1937. Boletim do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, n. 39, p. 1, nov. 1937.
47
MAGALHÃES, Agamenon. A intervenção do Estado. Boletim do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, n. 13, p. 115-117, set. 1935.
48
MAGALHÃES, Agamenon. A tendência corporativa. Boletim do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, n. 25, set. 1936.
49
SALGADO FILHO, op. cit., p. 74-78.
50
AS EXIGÊNCIAS do Decreto n. 23.768. Revista Social-Trabalhista, Belo
Horizonte, v. 1, n. 11, p. 3-5, 1937.
51
LEI de Nacionalização do Trabalho. Revista Social-Trabalhista, Belo Horizonte,
v. 1, n.V, p. 3-5, 1937.
52
GALVÃO, Enéas. Juntas de conciliação e julgamento. Boletim do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, n. 84, p. 104, abr. 1935.
53
VASCONCELLOS, Nilo. Comissões mistas de conciliação. Boletim do Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 14, p. 68, out. 1935.
54
LOPES, Helvécio Xavier. O projeto de justiça do trabalho. Boletim do Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 29, p. 103, jan. 1937.
55
Idem.
56
FLEURY, Leopoldo. Justiça do trabalho. Revista Social-Trabalhista, Belo
Horizonte, v. I, n. III, p. 6-7, 1937.
57
Ver: CONVENÇÃO coletiva do trabalho. Revista Social-Trabalhista, Belo
Horizonte, v. II, n. VIII, p. 3-4, 1937. É interessante a entrevista publicada,
nesta revista, do parlamentar Daniel de Carvalho sobre a Justiça do Trabalho.
A entrevista, que é cheia de detalhes técnicos e jurídicos sobre o funcionamento
dessa justiça, é precedida de uma apresentação na qual se diz que o entrevistado
é perfeito conhecedor de legislação social brasileira e que possui “conhecimentos
sociológicos, jurídicos e financeiros”. Portanto, pode opinar. Ver também v. VI,
n. 5, p. 30-32, 1937.
58
FLEURY, op. cit.
59
VIANNA, Oliveira. Organização sindical. Boletim do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, n. 8, p. 115-116, abr. 1935.
60
FLEURY, op. cit.
61
DA CUNHA, Ovídio. Em torno do Direito Corporativo. Revista Social-
-Trabalhista, v. 2, n. VIII, p. 32-35, 1937.
62
MAGALHÃES, op. cit.
63
POPPE, Paulo. Sindicalismo. Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio, n. 35, p. 104, jul. 1937.

298
64
Ibidem, p. 106.
65
Idem.
66
O conceito de “cidadania regulada” em Santos (1979) é o que lhe permite, na
análise da política econômico-social dos anos de 1930, fazer a passagem da
esfera da acumulação para a esfera da equidade. Muito embora não estejamos
sintonizados com a inserção teórica do seu conceito, acreditamos que ele traduz
muito bem as condições do advento da cidadania do trabalhador nesses anos.
67
SINDICATO de classe. Revista Social-Trabalhista, Belo Horizonte, v. I, n. III,
p. 3-4, 1937.
68
LOPES, op. cit., p. 105.
69
Ibidem, p. 104.
70
SALGADO FILHO, Joaquim Pedro. A legislação do trabalho. Boletim do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 26, p. 113, [s.d.].
71
Ibidem, p. 117.
72
CAIXAS de aposentadorias e pensões. Revista Social-Trabalhista, Belo Horizonte,
p. 3, jun. 1937. Número especial.
73
Idem.
74
SINDICALIZAÇÃO das classes operárias e patronais. Revista Social-Trabalhista,
Belo Horizonte, v. II, n. VII, p. 3-4, 1937.

299
A REGULAÇÃO DO TEMPO

Aprendi que sem tempo


não há movimento.
Jorge Luis Borges

A estratégia do controle disciplinar do tempo vem consumar


na nossa sociedade, sobretudo no que se refere ao campo do
trabalho, uma exigência de vigilância sobre os corpos que refe-
renda a ideia de uma sociedade disciplinar, tal como pensada por
Foucault (1983).
E é sobre a pretensão de um domínio do corpo e do tempo
que se vai basear o projeto final de ordenamento do mundo do
trabalho, acionado no Brasil dos anos de 1930. Esse projeto vai
revelar-se através de uma feição toda especial: a da organização
científica do trabalho. Por ela, as táticas de dominação do tra-
balho, e dos trabalhadores, transformam-se num procedimento
científico, e as relações de trabalho convertem-se numa área de
administração burocrática privilegiada para os exercícios da
engenharia política. O espaço da fábrica é o local escolhido para
dotar o trabalhador de uma aptidão racional para o trabalho e
de um código moral de signo militarizado, fazendo-o introjetar
a obediência, a disciplina e a operosidade, e vivenciar no micro-
cosmo da fábrica e da oficina a emergência da sociedade como
uma grande fábrica humana.
O discurso social do Ministério do Trabalho vai envolver um
a um os alvos estratégicos da organização científica do trabalho,
sob o conceito de “economia social”. Joaquim Pimenta, num
artigo teórico sobre esse tema, tenta apresentar esse conceito em
oposição ao de economia política. Enquanto esta é definida como
o estudo da origem e evolução do fato econômico, à economia
social se reservou o entendimento dos aspectos da vida econô-
mica “(...) encarada de um ponto de vista técnico da finalidade
humana”.1 Ora, a finalidade humana, pelo que apreendemos
até aqui do malabarismo verbal dos técnicos do Ministério, é o
trabalho, voltado para a aquisição do progresso e da civilização.
Isso posto, é possível entender a lógica do raciocínio de Pimenta,
o qual vai afirmar que a economia social

(...) compreende as instituições ligadas aos elementos vitais da


sociedade e aos elementos que representam uma considerável soma
ou reservatório de energia humana — as massas trabalhadoras, razão
por que o grande aspecto da vida moderna é sobretudo o social no
campo jurídico e cujo surgimento se deve à influência dos interesses
econômicos encarados em função daquelas energias humanas.2

As energias humanas, consideradas tecnicamente, se consti-


tuem em objeto nuclear da organização científica do trabalho, o
qual vai assinalar os vários alvos estratégicos do Ministério. Estes,
por sua vez, se situam nos campos: da educação profissional de
trabalhadores; da medicina e da higiene do trabalho; da moral
e dos costumes dos trabalhadores; da psicologia do trabalho e
da estatística social.
A educação profissional do trabalhador diz respeito dire-
tamente à própria racionalização das profissões, uma vez que
significa, nos termos da organização científica do trabalho, a
adaptação progressiva do trabalhador à sua atividade, a sua
eficiência na produção e a valorização técnica do trabalho hu-
mano. Dito de outro modo, a pretendida educação profissional
implica a aceitação da organização científica do trabalho.

301
O Ministério se encarrega de mostrar as vantagens dessa
organização, considerada

(...) excelente meio de defesa dos interesses econômicos daqueles


que labutam no dia a dia. É o método de bem fazer, colocando as coisas
nos seus devidos lugares. É de certo modo a economia sobre as coisas
e sobre as pessoas.3

É enquanto método que define um “lugar” para as coisas e a


economia sobre estas e as pessoas que a organização científica do
trabalho põe em cena o controle da atividade do trabalhador e a
disciplina sobre o seu corpo. Toda a defesa da organização cien-
tífica do trabalho e de uma moderna pedagogia do trabalho feita
pelos técnicos do Ministério são explícitas quanto à importância
de se colocar em ação o que Foucault (1983) tão bem designou
como uma política das coerções, a qual implica “(...) um trabalho
sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos,
de seus gestos, de seus comportamentos” (p. 127). Essa política
é sempre envolta no pretexto da aparente redução da fadiga do
operário, da monotonia, do alívio ao desconfortante trabalho
desorganizado, do exercício da cooperação, da possibilidade
de melhor remuneração, da defesa da saúde do operário e de
uma melhor higiene nos locais de trabalho. Na essência, o que
se vê é um insidioso avanço da disciplinarização do trabalho e
a preconização da ordem fabril e social:

(...) basta lembrar que a racionalização científica do trabalho


metodiza os esforços dos trabalhadores e, até certo ponto, corrige os
defeitos da má organização que gera deficientes salários, regulamentos
incoerentes, perigos latentes tais como intoxicações, envenenamentos,
violentos ou lentos, moléstias profissionais agudas ou crônicas, toda a
gama de acidentes evitáveis e males sanáveis, inclusive horários mor-
tíferos com diretrizes que depauperam o corpo humano. Quando o
operário se interessar vivamente pelas suas próprias questões e puser

302
mais inteligência e coesão nas suas atividades, dentro e fora dos locais
de trabalho, (...) concluirá conscientemente que a organização científica
do trabalho (...) não é panaceia mas medicamento enérgico que sana,
em parte, muitos dos males de que habitualmente nos queixamos. Se
tolhe aparentemente a liberdade, só aparentemente, também dá a quem
a pratica a oportunidade de defesa e melhoria nos organismos. Ela
não proíbe, não força, não dogmatiza, contraindica apenas e recorre à
cooperação e à colaboração, aproveitando as circunstâncias.4

A afirmação do caráter enérgico da organização científica do


trabalho e a admissão de que a adoção de seu método implica
restrições “aparentes” à liberdade vêm confirmar que a organi-
zação científica pressupõe restrições ao tempo, à atividade, ao
corpo, à maneira de ser, aos gestos, aos discursos, áreas essas
que se transformam em alvo de “sanções normalizadoras” em
oficinas, escolas etc. e objeto, de acordo com Foucault (1983),
de micropenalidades. As restrições são admitidas pelo mesmo
técnico do Ministério que fez a defesa acima, o qual afirma que
a organização científica do trabalho

contraindica, nos locais de trabalho, a algazarra, as demasias de


conversações inúteis e banais, as brincadeiras frívolas, sempre de tão
funestos resultados, os desperdícios de energia, tempo e dinheiro que
não revertem nunca em paga ou lucro do trabalho; preconiza, antes, a
ordem oficinal ou fabril, o acordo entre os que trabalham, o perfeito e
contínuo entendimento para a boa marcha das tarefas. Aceita o critério
de seleção e caminha com a orientação da melhor maneira de executar
o trabalho, preconizando para isso a educação profissional. É, em suma,
a ciência intervindo eficazmente, nas atividades dispersivas do homem
com o fim de as colocar na eficiência.5

A ordem na fábrica e na oficina expressa pelo aproveitamento


do tempo, pelo acatamento da disciplina, pela economia das
energias, pelo bom ritmo das tarefas, pela execução atenta das
atividades e pela eficiência do trabalho tem sua validade atestada

303
pelas teorias “científicas” de Taylor, Ford e Fayol. Os dois
primeiros voltados para a produtividade operária e o último,
para a administração empresarial. A autoridade científica,
tida como inquestionável, do fordismo e do taylorismo, é cor-
roborada por vários outros estudos — de psicologia social e
fisiologia — sobre a fadiga profissional, a duração do trabalho,
a monotonia, os fatores de aumento do rendimento operário
— de autores como Claparède, Abbe, Otto Lippmann, Hebert
Winkler, Yovanovitch, Dill Scott e outros. Entre os brasileiros, é
dado destaque a Afrânio Peixoto, que, com seu livro Ensinar a
ensinar, estudou a organização científica do trabalho no plano
pedagógico, designando-a como “taylorismo educativo”.
De onde vêm toda a reverência e o fascínio dos técnicos do
Ministério diante das teorias de Ford e Taylor? Como veremos,
através de suas próprias palavras, eles advêm da possibilidade
concreta, em termos de métodos e recursos, que essas teorias
oferecem para a disciplinarização e o adestramento dos traba-
lhadores. O fordismo e o taylorismo são a expressão mais bem
acabada, no plano fabril, do conceito de disciplina enquanto “um
tipo de poder” e uma modalidade do seu exercício que “comporta
todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimen-
tos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma “física” ou uma
“anatomia” do poder, uma tecnologia” (Foucault, 1983, p. 189).
Tanto em Taylor quanto em Ford,6 a questão da economia da
velocidade do movimento bem como da adaptação entre o movi-
mento e a máquina e o controle da qualidade do tempo ocupam
papel fundamental na racionalização do trabalho industrial, tal
como pensada por ambos. A cronometragem, medida do tempo,
introduzida por Taylor — e por ele dividida em quatro ações, a
saber: a análise dos movimentos elementares de um operário, a
eliminação dos movimentos supérfluos, a determinação do tempo
necessário para realizar cada um dos elementos considerados
necessários e o acordo de certa tolerância — é objeto de reflexão
dos técnicos do Ministério ao discutirem a organização racional
da atividade operária.

304
Relacionada com o estudo dos movimentos profissionais está a
cronometragem (estudo do tempo). Para tirar dela proveito real, na
organização do trabalho, será preciso reduzi-la a seus justos limites.
Antes de tudo selecionar os operários, para dar a cada um deles o
lugar que melhor corresponda à suas aptidões psicofísicas. Depois
da seleção estudar a ambiência material do operário, estudar o lugar
do trabalhador, as mesas, os bancos, as ferramentas. Só depois de
estudados sob esses diferentes aspectos é que o trabalho das fábricas
pode receber com proveito a cronometragem. Colocado nesses limites
o estudo do tempo prestará à organização do trabalho operário um
serviço indiscutível. Nossa experiência de alguns anos nos demonstra
que o estudo do tempo, assim concebido, isto é, precedido pelo estu-
do dos movimentos, da seleção, do estudo do lugar do trabalho etc.,
apresenta grande valor na organização do trabalho.7

A questão da cronometragem é pensada aqui juntamente com


a adaptação ao processo de trabalho e a adaptação ao instru-
mental. A nosso ver, esses são processos típicos da “repartição
disciplinar” que coloca o corpo dentro de uma “maquinaria de
poder”, no melhor sentido foucaultiano.
A adaptação ao processo de trabalho implica uma “mecânica
do poder” na qual se estudam os movimentos do corpo no traba-
lho, a sua velocidade e o seu ritmo, no sentido de dominá-lo, de
adestrá-lo, de dotá-lo de capacidade e aptidão para o manuseio
da técnica de forma rápida e eficaz. Nada disso escapa ao nosso
articulista:

(...) num longo capítulo detalhado, preciso, elucidador, diz o referido


cientista [Dr. Walter] que fisiologistas e engenheiros são unânimes em
declarar que um terço das energias humanas, em média, é desperdiçado
em trabalho inútil, desajeitado e inábil. Se analisarmos os movimentos,
se normalizarmos os que realmente podem ser tidos como úteis e pro-
dutivos, se enfim determinarmos a velocidade ótima com a qual eles
devem ser executados, para mais perfeita obediência às condições de

305
higiene profissional, chegaremos a economizar uma grande parte das
forças hoje inutilmente perdidas.8

Aqui, trata-se acima de tudo de um controle do tempo gasto


nas atividades, o qual, dentro da organização científica do tra-
balho e do princípio disciplinar, deve ser um tempo útil, hábil,
aplicado à atividade de forma ininterrupta, daí as restrições
anteriormente mencionadas à algazarra, às brincadeiras frívolas,
às conversações inúteis, que perturbam a utilidade do tempo.
A construção de um tempo útil e a apologia do seu correlato, a
disciplina, são condição da existência mesma do capitalismo e
do sistema de fábrica, precedendo a organização científica do
trabalho que vai realizá-las na sua plenitude. E a velocidade é
um componente desse tempo útil, apontada como essencial na
organização científica do trabalho:

Não há dúvida, pois, que a velocidade é fator de economia extrema-


mente importante. Trabalhando mais depressa o operário dispenderá
menos energia. (...) Existe um esforço e uma velocidade ótimos, para
realizar o máximo de trabalho com o mínimo de fadiga. Para o estabele-
cimento desse ótimo de velocidade é que deve tender toda a organização
científica do trabalho humano, para o que a fisiologia experimental já
nos fornece índices que podem servir como ponto de partida.9

Se um bom uso do tempo, concretizado numa velocidade


ótima, é característico da prática disciplinar, a prescrição dos
movimentos e do seu ritmo também o é e, como tal, é perscru-
tada, propondo-se uma elaboração temporal do movimento e a
correlação entre este e o corpo:

A forma mais simples dos movimentos permite trabalho mais


rápido e mais econômico. Contudo não se confunda simplicidade do
movimento com a brevidade do seu percurso no espaço. O caminho
mais curto pode não ser mais vantajoso para determinado movimento;

306
pode exigir mesmo esforço psíquico maior, mais considerável. (...) Outro
princípio relativo aos movimentos é o do trabalho ritmado, do trabalho
que se efetua segundo certo ritmo, apropriado ao gênero da tarefa que
o operário executa. O trabalho ritmado (...) pede menor dispêndio de
energia que o trabalho não ritmado. É de grande importância que os
movimentos não sejam interrompidos a cada instante. Ao contrário,
será preciso escolher movimentos que tenham seguimento, e que se en-
cadeiem com facilidade. Importa em criar, assim, uma espécie de cadeia
de movimentos, que não façam apelo à vontade, senão uma única vez,
no começo, e que funcione em seguida sem esforço, por assim dizer,
instintivamente ou inconscientemente.10

Aqui já se faz presente a ideia da automação, a sugestão de


um programa para a elaboração do movimento e a definição de
um ritmo que garanta o controle do dispêndio do tempo gasto na
atividade. Tudo isso exige uma disciplina do corpo, a definição
das melhores posições no trabalho, a rotina do gesto, a direção
do movimento, sua ordem de sucessão e o estabelecimento de
sua duração. O que se quer do corpo operário é a sua aplicação
no trabalho de forma rápida e eficiente. E é para completar a
circunscrição das áreas de adaptação ao processo de trabalho e
garantir o controle da atividade que é pensada a adequação do
corpo operário ao instrumental:

No problema da melhor adaptação do instrumental ao operário, o


primeiro estudo é o das posições ou atitudes mais adequadas ao apa-
relho psicofísico do homem. Os cientistas têm chegado a conclusões de
que a posição sentada é mais econômica que a posição de pé, e que a
posição deitada é mais econômica ainda que a do homem sentado. O
que acabamos de dizer demonstra de modo indiscutível todo o interesse
que há de estudar, do ponto de vista energético, as diversas posições
do operário. É tão importante como a dos movimentos profissionais.11

Assim, pelo estudo dos movimentos profissionais e da


adaptação do instrumento ao operário, o que se pretende é o

307
afastamento de “todo gesto nervoso e inútil”12 e o aumento do
rendimento máximo do trabalho.
A questão da maior produtividade operária ocupa um bom
espaço dentro dos artigos que tratam da organização científica
do trabalho publicados no boletim. A ela vêm associados a
divulgação de estudos sobre a fadiga (ergografia), as vantagens
do estabelecimento de limites psicológicos e fisiológicos do
trabalho e os tropeços da monotonia. As longas explicações
psicológicas e conceituais sobre a fadiga e a monotonia vêm
respaldar a tese de que a divisão científica das horas de trabalho
e de repouso aumenta em “proporções consideráveis” o rendi-
mento operário, e a conclusão de que esse rendimento “é mais
elevado com o dia de 8 horas do que com o dia de nove”.13 A
questão fundamental é a de o organismo trabalhar de modo
econômico, daí, por exemplo, a condenação das horas extras:

As horas suplementares, repetidas dias seguidos, são tão nocivas


aos operários como aos interesses da empresa. (...) elas são prejudiciais
à produção global. (...) As horas suplementares não atendem, assim,
ao seu objetivo, desperdiçando energia e diminuindo a possibilidade
de recuperação.14

Dessa forma, é sugerido aos empresários o investimento no


treino para adaptar o organismo a certas condições particulares
de funcionamento, o que, além de conduzir ao automatismo
psíquico, “permite a utilização econômica eficaz da energia
disponível e a realização do rendimento crescente”.15 Sugere-
-se, ainda, a aplicação de experimentações científicas nas suas
empresas para não obrigar os trabalhadores a uma disciplina
uniforme e, sim, de acordo com o tipo de trabalho industrial e
para estudar o comportamento operário diante da fadiga e da
monotonia, a fim de definir e controlar os “tipos” de trabalhado-
res. Recomenda-se a leitura da Filosofia da indústria, de Henry
Ford, a partir da qual o leitor atento deve retirar as bases que
se conciliam com os vários ofícios, adequando as adaptações

308
especializadas do fordismo a outras modalidades de atividades
produtivas.16
O estudo, do ponto de vista energético, das diversas posições e
movimentos do operário no trabalho não dispensam argumentos
técnicos sobre a instalação do lugar adequado ao trabalho do
operário. Afinal, trata-se de facilitar o esforço para se obter maior
rendimento. Assim é que se reclama de um esforço de atenção
dos empresários no sentido da melhor disposição dos utensílios
do trabalho, da adaptação do local de trabalho — de forma a
evitar as distrações — do cuidado com os barulhos inúteis na
oficina, do isolamento destas quanto às influências dispersivas do
exterior, do cuidado com a iluminação, temperatura, ventilação.17
Toda essa política de coerção do corpo, sustentada por
argumentos técnicos e científicos, acaba por esquadrinhá-lo e
enquadrá-lo do ponto de vista disciplinar. Contudo, esse enqua-
dramento não se realiza tão somente com a prescrição dos gestos,
a minúcia dos movimentos, o detalhe do ritmo, a precisão da
velocidade, a adaptação à ferramenta e com as várias lições do
fordismo e do taylorismo. Ele necessita também da disseminação
de um padrão de higiene sanitária e moral.
Não raro a questão da higiene sanitária vem associada, nos
discursos dos especialistas do Ministério do Trabalho, à produ-
tividade e à eugenia da raça.18 Nessas questões, salientam-se, por
exemplo, os temas da alimentação do trabalhador e da limitação
das horas de trabalho.
Colocada dentro de um contexto em que é realçado o fato de
que o homem operário no Brasil sofre as consequências da falta
de racionalização da indústria nacional — o que faz com que o
operário, por exemplo, disperse energias ao gastar horas para se
deslocar de sua casa até o trabalho —, a alimentação é apontada
como a questão que mais afeta o operário. Insuficiente, feita em
péssimas condições de higiene, preparada na véspera, estragando
nos dias quentes, digerida fria, ela é a causa da baixa produti-
vidade e deve ser atacada não por um princípio humanístico ou
político, mas por um princípio racional.

309
Como se poderá ter uma raça forte e com capacidade de produção
se, no presente, a vemos claramente se comprometer? Como se poderá
obter um manufaturado por um preço mais baixo se, à sua confecção,
que poderia ser feita por um homem, forem necessários três? Quando
formos mais aptos, na certa seremos mais prósperos. (...) Ora, é intui-
tivamente compreensível que pessoas assim alimentadas não podem
produzir o que de direito lhes competia realizar.19

Esse argumento da racionalidade, que coloca o operário


como fator de custo e torna imprescindível uma “raça forte”
para produzir, é utilizado para pedir a cooperação dos “homens
que dirigem as atividades particulares” do país, porque, afinal,
o Estado já cuidou, com a legislação social, de amparar os tra-
balhadores em outros campos. Para esse convencimento, nada
melhor do que o recurso à mecânica organicista para se chegar
aos empresários:

O operário é na fábrica a célula viva que age em colaboração com


a máquina para a obtenção de resultados proveitosos. Ora, a máqui-
na não estando tecnicamente bem localizada em relação ao conjunto
de máquinas que compõem o todo e não sendo regularmente bem
lubrificada, produzirá menos e, logicamente, ela se estragará; pois o
homem está nas mesmas condições, isto é, não sendo ajustado ao seu
mister e não tendo a sua alimentação conveniente, não poderá dar uma
produção compensadora, e tende a ser tragado pela primeira infecção
que contrair.20

A solução recomendada, com vistas a essa racionalidade, é a


criação, pelos patrões, de cooperativas alimentares que vende-
riam a preços mais acessíveis o necessário para a alimentação
operária. A prova da eficácia racional da solução é dada pelo
próprio especialista que, à frente da direção de uma indústria,
aplicou a medida proposta e obteve, segundo informa, “um
aumento na capacidade de trabalho superior a 30%”. Aqui, o
corpo do trabalhador, como uma máquina, exige a manutenção

310
adequada para um perfeito funcionamento, a qual, ao beneficiar
a raça, garante o futuro da sociedade do trabalho. Essa mesma
racionalidade acompanha a justificativa de Salgado Filho quanto
ao estabelecimento da jornada diária de oito horas de trabalho:

A limitação das horas de trabalho interessa às condições fisioló-


gicas de conservação de classes inteiras, cuja higiene, robustez e vida
se entendem com a preservação geral da coletividade, com a defesa
nacional, com a existência da nacionalidade brasileira.21

A reprodução da força de trabalho é alçada pelo ex-ministro


à condição de responsável pela sobrevivência da nação e do
homem brasileiro, enquanto, simultaneamente, um imperativo
racional e afetivo do trabalho.
A relação entre higiene e produtividade e a vantagem do uso
de métodos de organização científica do trabalho, apontados
por especialistas, encontra ressonância em setores da sociedade,
uma vez que, desde os anos de 1910, ela se encontra na mira das
estratégias da burguesia em relação à classe operária, como bem
mostra Rago (1985).
No início dos anos de 1930, a questão da higiene e da euge-
nia é defendida com entusiasmo por sanitaristas que acreditam
nos propósitos sociais da Nova República.22 Algumas vozes
empresariais também a defendem, como é o caso do conhecido
industrial mineiro da área de fiação e tecelagem, José Carlos de
Morais Sarmento, presidente em 1931 da Associação Comercial
de Juiz de Fora. Esse industrial, defensor do que Rago (1985) tão
bem designou de “fábrica higiênica” e adepto da organização
científica do trabalho, exalta o alto grau de produtividade de
suas tecelãs que chegam a operar até três teares atingindo 90%
da capacidade total da máquina. Além de utilizar critérios para
apurar o rendimento operário e verificar a aptidão adequada
dos operários para um rendimento alto, ele diz incentivá-los e
dedicar a eles atenção especial, particularmente, quanto à saúde
desses, observando as regras de higiene:

311
É por isso que, nas horas de trabalho, as torneiras de água comum
se acham fechadas, forçando o operário a beber exclusivamente água
filtrada; a limpeza da fábrica (...) é conservada com todo o asseio possí-
vel; as instalações sanitárias, mantidas perfeitamente limpas. A ordem, o
método, a disciplina fazem parte desse regime, porque evitam acidentes,
esforços inúteis e escusado esfalfamento. Considero também o regime de
oito horas de trabalho como o mais próprio. O rendimento do operário
nas horas suplementares é sensivelmente inferior ao rendimento médio
por hora, no horário de oito horas. Isto indica indisfarçavelmente que
o operário deve trabalhar apenas oito horas por dia a fim de que não
sobrevenha a estafa, a surmenage, com evidente prejuízo da saúde do
operário e do rendimento industrial.23

O entendimento da importância da higiene, tal como propos-


to pelos especialistas do Ministério, além de ir ao encontro do
pensamento de sanitaristas e alguns industriais, vai convergir
também com o pensamento dos católicos que têm, desde os anos
de 1920, a sua própria proposta de ordenamento do mundo do
trabalho. Defensores da intervenção dos poderes públicos em
favor dos operários e da interposição do Estado entre patrões e
operários para evitar choques e perturbações da ordem social,
eles entendem que o Estado deve intervir para impedir que o
trabalho em más condições de higiene ocasione a aquisição e
a propagação de moléstias ou o definhamento da raça. Em-
bora discordando da organização pelo Estado das classes em
sindicatos e em federações, eles insistem que é dever do Estado
fixar pela legislação o máximo de horas de trabalho, cabendo
aos operários e aos chefes de indústria o acordo para fixação e
regulamentação do número de horas, de acordo com a natureza
do serviço. Recomendam que o horário deve variar também de
acordo com o sexo e a idade do operário e argumentam, “com
a higiene”, que a mulher não deve trabalhar o mesmo número
de horas dos homens,

312
(...) não só por sua natural fraqueza e debilidade, como ainda
porque os trabalhos excessivos da mulher diminuem a natalidade e
enfraquecem a raça. Para as crianças, enfim, de um e outro sexo, até
certa idade, todo o trabalho industrial deve ser interdito e passada essa
idade deve o máximo crescer lentamente.24

Também aqui a eugenia é um referencial para a adoção do


princípio da higiene. Outras medidas higiênicas — tal como o
repouso dominical, a fixação do cubo mínimo de ar por operá-
rio nas oficinas, de penetração ali do ar e da luz, a exigência de
condições higiênicas nas habitações destinadas a operários —
são defendidas pelos católicos e consideradas como da alçada
dos poderes públicos que devem exigir dos industriais, em troca
das licenças de funcionamento, a construção de “habitações
higiênicas” para o operariado.
A higiene como fator de condição eugênica é afirmada, por
um especialista em geografia humana do Ministério, como um
elemento imprescindível para o homem brasileiro evoluir social-
mente nas gradações do progresso, rumo ao aperfeiçoamento do
tipo racial, e como meio de evitar a degradação física e moral:

A questão higiênica ressalta-nos elevadíssima para a estabilidade


das raças; e o estudo acurado da eugenia, ampliando as relações que
se coordenam para o aperfeiçoamento racial do homem, infere, con-
sequência direta no habitat, que vem desde a gestação à sociedade
(...) este [o homem] não poderá deixar de empreender esforços para
o aperfeiçoamento do tipo humano, que deverá ser essencialmente
bom, numericamente grande e durador. A higiene fala-nos no sentido
geral de saneamento — do que devemos compreender purificação,
e purificação em todas as modalidades de viver dos homens e dos
vários estados sociais que se lhe prestam à vida.25

À parte o ideal do tipo fascista da purificação da raça e da


família numerosa, importa-nos registrar a ênfase na higiene

313
enquanto saneamento e, neste, enquanto purificação sanitária
e moral.
A higiene sanitária e profilática visa, sobretudo nessa pers-
pectiva, à preservação da saúde do corpo do trabalhador, e para
tal devem ser combatidas as doenças que mais comumente, por
decorrência de condições insalubres, o atacam, tais como o
paludismo, o bócio endêmico, a morfeia, as úlceras, as vermi-
noses, o beribéri etc., que “são afiados cutelos que nos caem à
cabeça e nos abatem o coeficiente do progresso humano”. 26 A
higiene é entendida como fator do coeficiente de progresso, e a
doença e a sujeira são referenciais da sua medida e indicadores
de atraso, insuportáveis, para o especialista.

Vimos, e não foi em longíquos sertões, tipos condutores de várias


verminoses, infiltrados, nos transes de martirizantes polinefrites de
caráter palúdico, que mal se arrastavam na estrada longa e alagadiça,
à procura de água potável que não existia, sujeitando-se a saciar nas
águas dos poços sem nenhum asseio, verdadeiras fontes de estagnação,
onde fermentações pútridas hão de, com certeza, contribuir para o
morticínio que naqueles lugares é constante.

Tudo isso é produto de uma imperfeita educação higiênica e


da ignorância da massa considerada “ignara”. A correta educação
higiênica é, portanto, aquela que modifica os “maus costumes” e
os “hábitos aberrantes” e corrige o homem “na sua alimentação,
no seu modo de vestir, de acordo com o clima, na sua habitação,
no modo de se colocar nas profissões, nos hábitos escolares, na
higiene das moléstias, no asseio, na educação sexual”.27
Freud (1978, p. 153) considera que, entre as nossas exigências
quanto à civilização, está que esperamos “ver sinais de asseio e de
ordem”. Esse desejo de asseio e ordem, tão fortemente instalado
no código higiênico da burguesia, é o que faz com que a sujeira
nos pareça incompatível com a civilização. Dentro desse quadro
de significantes, aquele que precisa ser educado do ponto de vista
higiênico é quem simboliza o atraso e a desordem; e a higiene

314
e a ordem do trabalhador são sinais da ordem e do progresso
do corpo social.
Entretanto, a ideia do saneamento em todas as modalidades
de viver do homem e dos seus vários estados sociais ultrapassa
a adoção de medidas de natureza médica, higiênica e de profi-
laxia sanitária e passa a demandar uma profilaxia social e um
saneamento, do tipo moral, da sociedade. Assim é que o mesmo
especialista mencionado considera tarefa do educador higiênico
a correção dos vícios, das toxicomanias, das “acelerações impul-
sivas do caráter”. O que se pretende com o saneamento social
é o completo desenvolvimento físico e moral do homem com o
fim de torná-lo “forte, sadio, inteligente e honesto”. Aqui, vão
inserir-se os apelos do articulista contra a origem dos vícios,
contra a busca de “sensações novas de prazeres extravagantes,
que se prendem às falsas delícias da euforística, tais como o ópio,
ou às alucinantes excitações da cocaína e do álcool”.28 As drogas
aparecem, assim, como uma ameaça à higiene e à civilização e
são figuradas como um “monstro sinistro” que leva à degradação
e à morte e como a “poeira da morte”, o “líquido da loucura” e
a “essência do entorpecimento”:

Necessitamos, pois, de medidas coercivas (sic) que venham, com


o máximo de urgência, reprimir o campeamento do vício, se é que
queremos o tipo dentro da estética normal, na melhor euforia e com
as mais pronunciadas tendências ao trabalho. (...) Não se esqueçam
os governos do saneamento social, porque só com ele poderão per-
petuar o tipo num modelo eugênico, digno de todas os encômios e,
consequentemente, apropriado para as resistências e para um tempo
naturalmente longo de viver.29

O saneamento dos vícios, imperativo da saúde, longevidade


e moralidade do trabalhador, coloca em cena a preocupação
com a demarcação de certos fatores considerados “atrofiantes
da vida” e alguns tipicamente representantes das transgressões
morais. Entre eles, a tuberculose, a sífilis, a lepra, a loucura e

315
o meretrício. Nesse ponto, o especialista, como um “cruzado
moral”, investe com uma fúria santa contra aqueles que ferem
as regras do perfeito saneamento sanitário e moral, clamando
por providência das autoridades:

(...) não se descuidem, os governantes, as autoridades do nosso país,


e patrioticamente, não olvidem a necessidade do cumprimento das leis
repressivas dos vícios; criem outras repressoras de certos elementos
de perdição; olhem seriamente a profilaxia das moléstias venéreas;
ampliem e auxiliem a criação de hospitais, de creches, de asilos, de
internatos aos desamparados; cogitem da organização do trabalho
bem remunerado; da higiene das fábricas, do trabalho dos menores
e das mulheres, propaguem pela vida dos campos: o trabalho rural,
a agricultura etc.; amparem, pelo estudo nosográfico e sociológico, o
casamento; criem assistência severa aos tuberculosos, aos morféticos
e afastem, por qualquer maneira, os epiléticos, os parafrênicos, os
paranoicos etc., do convívio social, que o homem são e perfeito em
todos os sentidos será a unidade animal mais isenta dos males que o
agastam e lhe atrofiam o número, a resistência, e a duração. Desta
maneira, para a ampliação de garantias em prol da eugenia e, portanto,
da felicidade da raça e da sua durabilidade, mister seria, outrossim,
propugnar com absoluta veemência “pela incapacidade matrimonial
dos degenerados, dos oligofrênicos, depois de certo grau, dos doentes
mentais, mesmo daqueles que percorrem período remissivo, (...) mas
nos quais uma nova crise de doença é previsível, e sobretudo dos que
manifestam doenças cuja herança é conhecida e conduz à formação de
família desequilibrada. Assim, teremos a educação em paralelo com a
civilização e, na economia social, o homem encarado como a verdadei-
ra unidade perfeitamente hígida, capaz de produzir e de muito viver.

Aqui, a face totalitária do discurso especializado do Ministério


se deixa ver em toda a extensão de sua desumanidade e cruelda-
de. O doente, o viciado, o doente mental ameaçam a pretendida
homogeneidade do social, figuram uma divisão no seu interior,
por isso são considerados antissociais e devem ser excluídos desse

316
social que ameaçam destruir. Isso porque, na sociedade una, o
homem uno é aquele que é sadio; a doença, portanto, é o que o
ameaça de divisão e, como a ele, à sociedade. O impedimento à
sua reprodução, pela proibição do casamento, é o que garante o
seu desaparecimento em definitivo da cena social. Nesta, ficam
apenas os sadios, os normais, os trabalhadores. Com estes, a
sociedade mantém a integridade e a saúde do seu corpo, porque
os dejetos devem ser eliminados.
A ideia da homogeneização do espaço social, seja pela eugenia,
pela moral, pela produtividade, pela devoção amorosa à pátria,
pela obediência à autoridade ou pela eliminação das classes,
implica necessariamente a contrapartida da exclusão, e a recusa
da “variedade de modos de vida, de comportamentos, de crença,
de opinião” (Lefort, 1983, p. 82). Por pretender uma asfixiante
uniformização do social é que o discurso totalitário circunscreve
com tanta certeza, e de forma fixa, as fronteiras entre o legal e
o ilegal, o normal e o patológico, o útil e o inútil, a saúde e a
doença, o moral e o imoral, a limpeza e a sujeira, o civilizado
e o incivilizado, o trabalho e o ócio. E são essas fronteiras que
delimitam o ordenamento do mundo do trabalho, tal como
vimos acompanhando até aqui. Dentro dessa ordem, é preciso
enquadrar, regenerar, afastar, punir os ociosos, os indisciplina-
dos, os subversivos, os fracos, os improdutivos, os indolentes, os
inexperientes e os incompetentes. Dentro desse contexto, insere-
-se sempre o argumento da organização científica do trabalho.
O tema da prevenção dos acidentes do trabalho, nesse ponto,
nos permite perceber como, dentro dessa política de coerção
adotada como modelo pelo Ministério do Trabalho, se avança
na direção da definição de um padrão de seleção do trabalhador.
Aliás, a seleção do trabalhador é considerada, por Agamenon Ma-
galhães, o principal fator do rendimento operário. Segundo ele,

de nada adiantarão as tentativas para aumentar o rendimento


operário, pela divisão racional do trabalho, por sua normalização ou

317
por outros métodos, se a seleção do operário não for anteriormente
preenchida.30

Assim é que a discussão feita em torno do problema dos aci-


dentes do trabalho acaba por reforçar essa estratégia seletiva,
que, a nosso ver, é o desembocadouro natural das discussões
eugênicas. Como nos lembra Arendt (1982), a eugenia tem raízes
na teoria da seleção das espécies. E a sua aplicação visa a uma
seleção dos mais aptos e melhores.
Num artigo da Revista Social-Trabalhista, o inspetor-médico
do Departamento Nacional do Trabalho, Dr. Zei Bueno, após
ressaltar a importância do papel da “prevenção” no estudo
dos acidentes de trabalho, passa a enumerar as “causas” dos
acidentes, dividindo-as em externas e individuais. Entretanto,
toda a ênfase é colocada nos “fatores individuais”, ou seja, no
operário, apontado como responsável por 80% dos acidentes,
contra apenas 20% de acidentes provocados pelas condições de
trabalho. Nesse ponto, é dado destaque, com o apoio de estudos
de vários especialistas ingleses, à existência de uma “predisposi-
ção individual” aos acidentes, com afirmações como:

(...) em certas pessoas, eles incidem com uma forma extraordinária.


Esses indivíduos parecem que atraem perigo. Assim, cerca de 75% dos
acidentes sucedem ao redor de um grupo de 25% dos operários, apenas
devido à constituição individual, ao seu equilíbrio físico-psíquico e
até endócrino, conforme aqueles autores demonstraram pelas provas
de laboratório e pelos exames fisio-psíquicos a que os submeteram.31

Nesse ponto, até a “fadiga” por efeito do trabalho é intima-


mente ligada ao fator predisposição individual. Além dessa pre-
disposição são apontados como fatores causadores dos acidentes
a raça, o sexo, a idade, falta de experiência, local de residência,
pobreza e alcoolismo. Por aqui é que tem início a seleção.
No caso do sexo, a mulher é apontada como mais propensa
aos acidentes, devido à sua inferioridade física.32 Já no fator raça,

318
as questões apontadas são a da inadaptabilidade do estrangeiro
e o fato de que este trabalha por necessidade econômica fora da
sua profissão, portanto, sem habilitação. Isso faz com que ele seja
mais atingido pelos acidentes do que os trabalhadores nacionais.
Por isso, torna-se candidato em potencial a entrar para o índex
dos que devem ser excluídos, juntamente com os velhos e os
menores — ambos pela sua reduzida capacidade física, a qual
os torna presas mais fáceis do cansaço e, consequentemente,
dos acidentes. No que se refere aos menores, é considerado um
agravante dos índices de acidente a sua indisciplina, a coorde-
nação imperfeita dos seus movimentos e o seu fraco poder de
atenção. A esses se juntam todos aqueles que não tiveram uma
proveitosa aprendizagem que os dotasse de certa experiência.
Com que critérios a mais deve-se empreender a seleção do
trabalhador? O inspetor responde:

Os fracos, os lerdos, os inexperientes monopolizam os infortúnios.


É a seleção natural. Conseguem vencer apenas os robustos e os treina-
dos. E, assim mesmo, os acidentes os espreitam a cada passo. Os fracos
eliminam-se por si mesmos.33

Mesmo admitindo que os “acidentes espreitam a cada passo”,


o autor insiste que, na debelação e profilaxia dos acidentes, é
necessário olhar mais o homem e não as condições do trabalho.
Se estas são minimizadas, o que dizer das condições de vida dos
trabalhadores submetidos aos ditames da implacável dominação
de classe? Também a moradia distante do local de trabalho,
a pobreza e o alcoolismo são considerados condições “que
se prendem também estritamente ao indivíduo”. A habitação
insalubre, a fadiga, a alimentação escassa são apontadas como
fatores ponderáveis “na gênese dos infortúnios” dos acidentes
de trabalho, porém, enquanto “condição individual”, como se
os operários fossem os responsáveis por elas. A educação sani-
tária e a propaganda higiênica surgem como remédios técnicos
eficazes para esses males individuais.

319
Como em todos os artigos técnico-científicos do Ministério,
os aspectos referentes ao trabalho e aos trabalhadores são aqui
abordados como se não se inserissem no interior das relações
de dominação. A culpa dos acidentes de trabalho é, portanto,
atribuída aos operários e isso é afirmado sem rodeios, mesmo
quando se acrescenta uma longa descrição das “causas externas”
dos acidentes, que são as que dizem respeito às condições de
trabalho, o que é suficiente para qualquer um perceber a real
participação das “causas externas” no conjunto dos acidentes
de trabalho. Nesse ponto, sucede-se uma profusão de imagens
descritivas que apontam a ronda constante da ameaça de aciden-
tes em torno dos operários: umidade, falta de ventilação, calor,
buraco, pregos, manchas de óleo e graxa no chão, peso excessivo
nas costas, escadas sem corrimão, plataformas sem grade, pés
descalços, ausência de iluminação, serviços monótonos, horas
excessivas de trabalho, poeiras químicas e tóxicas, mercadorias
infestadas e infectadas, entre outras.
Ainda assim, afirma-se que esses fatores correspondem a
apenas 20% das causas dos acidentes. Essa contradição se
mantém mesmo quando o inspetor conclui o seu diagnóstico
sobre a ocorrência dos acidentes, sugerindo medidas protetoras
para afastar as ameaças à vida dos trabalhadores. Da lista de
doze tópicos, dez dizem respeito às providências que deveriam
ser tomadas pelos patrões. As duas providências relativas aos
trabalhadores se referem à exclusão dos considerados fisica-
mente inaptos e com menor força produtiva. São elas: “limitar
a idade do trabalhador entre 20 anos no mínimo e 50 anos, no
máximo”, e

tornar obrigatório o exame médico de admissão, e que será perio-


dicamente renovado, a fim de não se admitirem ao trabalho pessoas
predispostas à hérnia, surpreender nas mesmas doenças em início,
promovendo o afastamento e também o tratamento dos trabalhadores
atingidos, eliminando definitivamente, se preciso for, os completamente
incapazes.34

320
O exame do operário é reafirmado, em outro texto do mesmo
inspetor, como instrumento para “pesquisar as aptidões do ope-
rário para adaptá-lo convenientemente ao ofício mais racional”.35
Aqui, a força bruta para o trabalho duro e estafante aparece
designada com a respeitabilidade científica da palavra “racional”.
O objetivo de lidar com as relações de trabalho de forma
técnica — negando, dessa forma, as relações de dominação e a
divisão existente na sociedade — revela-se, a nosso ver, nesse tipo
de argumentação falaciosa de técnicos do Ministério do Trabalho,
presente em vários de seus artigos e pareceres.36
Um bom exemplo desse tipo de argumentação nos é fornecido
pelo relatório de um funcionário da Diretoria de Fomento da
Produção Mineral do Ministério da Agricultura, após inspeção
na Mina do Morro Velho em Minas Gerais, quanto às condições
higiênicas do trabalho ali existentes. O relatório contém erros
estatísticos grosseiros, omite dados, endossa os argumentos da
empresa e conclui que os acidentes ali ocorridos se devem “à
imprudência individual” dos operários; que as condições de
higiene da mina são boas; que a existência de núcleos de ope-
rários instalados em más condições se deve a que eles estão em
terrenos onde a Companhia não pode ter ação direta. O relator
afirma que a Companhia tomou as medidas necessárias para
facilitar aos operários a medida higiênica “tão salutar” do ba-
nho de arsênico, na seção onde este é manipulado, sendo que os
operários se recusam a aceitar a medida. Os dados estatísticos
apresentados não relacionam os acidentes aos locais de trabalho
(superfície e subsolo), só computam, ao final, os vitimados com
internação, omitindo os percentuais e o total de acidentes por
ano. Quanto às mortes por causas naturais, fazem um enorme
malabarismo para concluir que a ocorrência da tuberculose e
da pneumonia está ali reduzida ao mínimo. O parcialismo desse
relatório técnico e as inverdades acerca das reais condições de
trabalho dentro da mina são facilmente constatados com a leitura
do livro de Grossi (1981).

321
Com esses argumentos técnicos, tentam legitimar a ordem
da propriedade da forma como ela está estabelecida. Em nome
da racionalidade, criam uma estrutura de relações estabilizadas,
com o auxílio da organização e da divisão técnica e científica
do trabalho e, com ela, negam as oposições de classe, enquanto
reforçam as condições da dominação.
Diante da envergadura desse projeto de ordenamento do
mundo do trabalho levado a efeito pelo Ministério, através da
sua minuciosa política de organização do trabalho, resta saber
se a prática política operária confronta esse projeto — e se ex-
plicita as vivências dos operários sob a égide dessa nova política
de controle da classe.
Em primeiro lugar, é preciso que se diga que, desde a nova lei
de sindicalização, imposta pelo famoso Decreto-lei n. 19.770,
de 1931, os setores organizados da classe operária se indispõem
contra o Ministério do Trabalho pela sua ingerência na vida sin-
dical. Contra o controle sindical e a subordinação ao Ministério,
como bem mostra Munakata (1981), se manifestam as várias
correntes do movimento operário: anarquistas, comunistas,
trotskistas. A resistência à nova lei de sindicalização, empreen-
dida pelas lideranças do movimento operário, faz recrudescer a
ofensiva do Ministério, através da concessão de férias somente
aos trabalhadores sindicalizados e de obrigatoriedade da carteira
profissional para o gozo das férias, para a sindicalização e para a
apresentação de queixas às Juntas de Conciliação e Julgamento.
Essa indisposição com o Ministério é fator de incentivo a que
os trabalhadores continuem a lutar pela autonomia de suas
organizações e pelo cumprimento da legislação trabalhista. O
clima de desconfiança, entretanto, permanece e a descrença com
os propósitos da justiça social, manifestos pelo Estado e pelo
Ministério do Trabalho, também.
A questão social, tal como formulada pelo Estado nesses anos,

incorpora as reivindicações operárias, mas tira-lhes a dimensão da


conquista e o espaço da luta; incorpora as reivindicações patronais

322
de limite às ações operárias, mas tira-lhes o poder de discipliná-las;
incorpora as discussões dos parlamentares, tirando-lhes a iniciativa de
propô-las (Paoli, 1989, p. 14).

Dentro desse quadro é que o Ministério do Trabalho vai fazer


a classe operária sentir de perto a força da mão do Estado, que se
torna mais pesada ainda a partir de 1935, com a transformação
da questão operária em “caso de segurança nacional”. Nesse
período, o Ministério do Trabalho, tendo à frente a figura de Aga-
menon Magalhães, liderará a liquidação da ação independente
da classe operária com a intervenção nos sindicatos, a cassação
de suas lideranças, a prisão de operários.
Antes mesmo da aprovação da Lei de Segurança Nacional, o
Ministério do Trabalho já determina às chefias de polícia dos Es-
tados a prisão de operários37 e a intervenção nos sindicatos. Esta,
na maioria das vezes, consistia de “invasão policial e destruição
virtual das sedes dos sindicatos com abundantes espancamentos
e prisões” (Gomes, 1988, p. 190). Após 1935, agora com o apoio
da Lei de Segurança Nacional, o Ministério do Trabalho, entre
outras ações, autoriza exonerações de professores, ferroviários,
bancários e empregados da Light; autoriza o afastamento de fun-
cionários postais; proíbe reuniões de sindicatos; ordena prisões
de sindicalistas e grevistas; elimina das associações de classe os
sindicalizados acusados de extremismos; reúne representantes
patronais e sindicais, ligados ao Ministério, para pedir apoio,
traçar diretrizes e centralizar a campanha anticomunista.38
Paralelamente à ação do Ministério, os trabalhadores e sindi-
calistas sofrem ainda pressões dos integralistas encastelados em
postos da administração pública, tal como ocorre com operários
e funcionários da Rede Mineira de Viação das cidades de Passa
Quatro e Cruzeiro.39 Nessas cidades, a direção dessa empresa
exonera operários, faz transferências arbitrárias, descumpre as
leis trabalhistas, retém os descontos das Caixas de Aposentado-
rias e Pensões e pressiona os operários a aderirem ao integralismo.

323
Uma boa ilustração da ação do Ministério está no episódio da
demissão de 17 mineiros da Mina de Morro Velho,40 em Minas
Gerais, em 1936, relatado por Grossi (1981). Por ocasião da elei-
ção de representantes operários para o conselho administrativo
da Caixa de Aposentadoria e Pensões (CAP), os associados do
sindicato independente dos trabalhadores da Morro Velho (Sin-
dicato de Baixo) derrotam a chapa organizada pela Companhia
por uma margem expressiva de votos. No dia seguinte, a empresa
denuncia como extremistas, sem a apresentação de uma prova
sequer, toda a diretoria do sindicato (13 membros e mais quatro
sócios fundadores) ao Ministério do Trabalho, e este acolhe a
denúncia patronal, autoriza a dispensa de todos e intervém no
sindicato. A mobilização da opinião pública, os apoios recebidos,
as provas levantadas sobre a inverdade das denúncias, a ação
legal impetrada contra o Ministério, enfim, toda a movimenta-
ção empreendida (por iniciativa do PCB) não foi suficiente para
conseguir a reintegração dos operários. A ação impetrada só é
resolvida em 1938, com uma solução de compromisso entre a
Companhia e os mineiros, pela qual estes foram indenizados
legalmente. Conforme afirma Grossi (1981), apenas um entre
os 17 operários demitidos pertencia aos quadros do PC. “Os 17
fundadores constituíam a liderança incipiente de uma classe que
se organizava em oposição à Morro Velho” (p. 118).
Episódios como esse só vieram reforçar a percepção do Mi-
nistério como interessado apenas no controle da classe operária
e insensível ao drama operário, tal como manifesta o texto
abaixo referente às condições de trabalho e vida dos mineiros
da Morro Velho:

É um drama à parte no drama operário. É uma situação diferente


dentro da própria diferença da sorte. É a maior miséria dentro do
quadro das misérias operárias. É um covil onde se desce a buscar
ouro, e quanto mais se desce também se aprofunda a realidade de uma

324
nova inquisição! É onde os seres humanos apenas vivem um ano. É
onde a deslocação de ar desmorona enormes pedras e estas amassam
centenas de operários que, se não morrem todos, se inutilizam para
o trabalho. É na terra do ouro e da miséria onde os homens se des-
pedem diariamente de suas famílias, porque diariamente a morte está
a rondar os ex-cavadores da terra, como se fossem suas as barras de
ouro arrancadas à terra. É onde o ordenado não passa de 6$ para os
braços em cujas veias corre o sangue brasileiro — e onde predomina
o braço estrangeiro que se encarrega das ocupações menos perigosas,
e recebe ordenado mais compensador. É no domínio estrangeiro, é na
mina, onde os fortes se tornam fracos pelos esforços despendidos; é
onde os suplícios diários aqui se contam como lendas, onde os corpos
humanos, disformes, desfalecidos, fazem ronda ao cemitério, não sa-
bendo se entram nele ou se na mina, se preferem as galerias longas e
escaldantes ao morno dormir na terra!
É lá, é ali pertinho onde os viajantes vão admirar a mina, a sua po-
tência, a sua exuberância, que encerra muito ouro, mas que nós sabemos
que encerra muita miséria, deposita muitos corpos que sucumbiram
em suas entranhas, como se fossem vermes!
É Morro Velho — a atração dos viajantes, a citação do Estrangeiro
— é lá que morre o Ministério do Trabalho!41

Nesse texto, a mina é colocada como um limite à credibili-


dade do Ministério. Este, dois anos depois, se manifesta contra
a organização autônoma desses operários vivenciadores de
condições de trabalho cruéis e desumanas. Por outro lado, a
morosidade estratégica da ação do Departamento Nacional do
Trabalho (DNT), regulamentando as leis para cada profissão, a
sua complacência com a demora dos industriais em aplicá-las,
a existência de irregularidades na tramitação de processos no
Ministério, tudo isso fortalece o descrédito deste junto a alguns
setores operários e reforça sua mobilização pela aplicação da
lei, o que vai ao encontro da tese da necessidade da luta pela
autonomia sindical.

325
Segundo Munakata (1981, p. 71), o exame das especificidades
de cada corporação está de acordo com o princípio corporativis-
ta e visa dissolver a unidade da classe operária como um todo
e evitar a emergência de conflitos particulares decorrentes das
especificidades de cada profissão.
Sobre a ação do Ministério, é revelador o episódio em que
a Associação Comercial de Minas Gerais solicita-lhe a prorro-
gação de prazo para execução da lei de acidentes no trabalho
e é informada pelo presidente da Federação das Indústrias de
Minas Gerais, procurando por um emissário do Ministro do
Trabalho, que, embora o governo não pretenda conceder a
prorrogação pleiteada, permite que a sua execução seja feita
sem os atropelos e rigores do seu regulamento, o que, segundo
o entendimento e as palavras da Associação Comercial, “(...)
equivale a uma prorrogação tácita”.42 Por isso, são comuns,
na cena política desses anos, movimentações — como a dos
operários em panificação da Capital mineira — com o objetivo
de pressionar o Ministério pela ampliação das leis trabalhistas,
ainda não estendidas até a sua corporação, apesar dos vários
encaminhamentos feitos nesse sentido. O presidente da “União
dos Operários Panificadores” afirma, em meio à movimentação
de sua categoria, já terem os trabalhadores recorrido à greve
geral, para satisfazer necessidades mais imediatas, e que o
acordo firmado perante a Justiça do Trabalho permanecia um
mês depois sem ser cumprido. O descumprimento do acordo
firmado estaria implicando em jornada de trabalho de 14 a 16
horas; no não pagamento do aumento de salários; em dispensas
sem causa previamente provada; no não pagamento de horas
extras; na não regulamentação das pensões; no rebaixamento
dos ordenados.43
Também parece-nos importante registrar o episódio envol-
vendo o Sindicato dos Garçons de Belo Horizonte, ocorrido
em 1936. Diante da irregularidade do contrato de locação dos
garçons, que os priva de todos os direitos trabalhistas (por uma
cláusula, falsa, que os considera “interessados nos negócios do

326
patrão”), o sindicato recorre ao Ministério do Trabalho. O que
se sucede, após a entrada do recurso, é ilustrativo do que se passa
nesses anos: prisão do presidente do sindicato e o desapareci-
mento do processo no Ministério, depois de protocolado, o que
adia sobremaneira a decisão do caso, que, ao final, acaba sendo
favorável aos garçons.44
Todas essas questões fazem do Ministério um alvo da amar-
ga ironia operária. Vejamos a carta deste operário a um jornal
belo-horizontino:

Talvez vos pareça que isto seja absurdo, mas eu vos explico:
nós, os operários, já temos tudo que precisamos. Já temos diárias
de oito horas de trabalho. Senão vejamos os nossos irmãos da roça
que trabalham de sol a sol. Temos a lei de acidentes no trabalho: o
operário que não puder pagar um advogado não recebe a respectiva
indenização; temos leis que mandam observar a mais rigorosa higiene
nas fábricas: existem aqui mesmo em nossa linda capital fábricas que
possuem capacidade para quarenta operários e lá trabalham cem às
vezes mais. Sem ventilação, sem luz natural nem artificial, sem instala-
ções sanitárias e que nem ao menos são varridas uma vez por semana.
Temos leis que regulam o trabalho dos menores nas indústrias, senão
haja vista algumas fábricas nas quais o maior número de operários são
menores e estes são obrigados a produzir tanto quanto um adulto e
perceber como menores; está em cogitação a lei de um ordenado mínimo
que julgamos será um presente de grego; temos hospitais confortáveis
onde nos recolhemos quando enfermos; estabelecimentos apropria-
dos para nos recolhermos na velhice ou na invalidez; temos vilas em
que cada um de nós pode morar com a família em uma casinha com
algum conforto, por um aluguel mínimo, temos medicamentos para
nós e nossas famílias por preços mínimos; víveres, vestuários, que vos
digo: acho que é vosso trabalho. Senão vejamos os salários e tudo mais
que seja de primeira necessidade, tudo por um preço mínimo, porque
mesmo, não se podia compreender que estando às vésperas do salário
mínimo não pudéssemos adquirir o que estivermos precisando por

327
preços que também não fossem mínimos; portanto já viu o meu caro
amigo que o operário tem direitos e regalias tais, que está se banhando
num “Mar de Rosas”.45

O que foi exposto acima parece dar razão a Paoli (1989,


p. 14) quando afirma que a experiência cotidiana da proletariza-
ção sobrevive à intervenção do Estado nas relações de trabalho
e repõe de forma contínua para o operariado as questões do
direito ao trabalho, de luta pelas condições coletivas do traba-
lho, pela remuneração digna do trabalho e pela apropriação do
tempo de trabalho:

O novo Estado apropriando-se da relação estabelecida pelo movi-


mento operário entre fábrica, direitos sociais e sociedade, esvaziaria a
reivindicação de representação autônoma que nela existia. A lembrança,
no entanto, seria cultivada porque a fábrica a repunha todo o tempo,
embora recoberta pelo brilhante discurso dos novos dispositivos legais
sobre o direito trabalhista (Paoli, 1989, p. 15).

Até 1934, a resposta dos trabalhadores à tutela do Estado


sobre o movimento operário e sindical é a luta pela autonomia
sindical e pelos direitos operários, através do que Paoli chama
de “linguagem grevista”. A luta pela autonomia sindical oferece,
segundo essa autora, a possibilidade de que os sindicatos e os
trabalhadores se organizem, pela base, próximos ao cotidiano
das experiências operárias e à organização da produção.
Entretanto, a partir de 1935, ao lado da luta pela autonomia
sindical, boa parte da cena operária e sindical vai ser ocupada não
por reivindicações calcadas nas vivências coletivas do cotidiano
operário, mas na luta pelo princípio da unidade sindical, bandeira
dos militantes do PCB de grande penetração nos meios sindicais.
A questão da unidade sindical é um princípio doutrinário
para o PCB desde a sua fundação em 1922, o qual é reafirmado

328
no Sétimo Congresso da Internacional Comunista de 1935, re-
alizado em Moscou, com esta recomendação de Dimitrov, então
secretário da Internacional:

Nos países onde os sindicatos vermelhos e os sindicatos reformistas


têm força igual, recomendamos a convocação de um Congresso de
unificação sob a base de uma plataforma contra a ofensiva do capital
e pela democracia sindical.46

No início de 1935, o PCB através da sua Frente Única Sindical


(FUS), criada em 1934, após o retorno do pluralismo sindical
e com o objetivo de centralizar a luta operário-sindical, realiza
um congresso nacional para a criação da Confederação Sindical
Unitária do Brasil (CSUB). No correr do ano, são realizados, por
iniciativa do Partido em quase todos os estados da federação,
congressos sindicais para a criação de federações unitárias que
se filiariam à CSUB.47
A importância atribuída à unidade sindical pelos sindicatos
liderados pelo PCB pode ser visualizada neste manifesto da União
de Trabalhadores do Livro e do Jornal de Belo Horizonte, por
ocasião do Congresso da Unidade Sindical no Estado:

Sem a unidade sindical nenhum trabalhador poderá pleitear a menor


reivindicação, a mais insignificante melhoria no seu padrão de vida.
Fora da unidade sindical todos trabalhadores serão esmagados pela
prepotência patronal e jamais verão cumpridas as leis que os amparam.
Fora da unidade sindical todos os trabalhadores só terão fome, prisão
e doenças, sem meios para se curar. Enfim, fora da unidade sindical só
existirá a miséria para todos os trabalhadores.48

Também na arena sindical, os comunistas reduzem as opções


entre o bom e o mau caminho e se colocam como a única opção
possível, reduzindo o espaço para a variedade de opiniões, em
nome da eliminação das diferenças internas e do fortalecimento
da classe, tal como é afirmado por um congressista:

329
Nos sindicatos não deveria de maneira alguma persistir o criminoso
hábito das cisões internas, com prejuízo para a massa sindicalizada. O
Sindicato (...) é a casa do trabalhador, onde deve haver harmonia de
qualquer maneira, onde deve haver união de qualquer maneira, porque
é da desunião interna dos sindicalizados de que se aproveitam os seus
exploradores. (...) O sindicato é de todos, é a única arma do trabalhador
para a sua defesa. Quando o sindicato se acha enfraquecido por lutas
internas não pode defender eficientemente o trabalhador.49

De novo, a associação com o lar e a família unida, cujo re-


gistro autoritário, sabemos, traz impedimentos ao exercício da
democracia.
Num documento do PCB, avaliou-se desta maneira a iniciativa
de unidade sindical:

Durante muito tempo o PC adotou uma linha falsa no movimento


sindical. Cooperava-se para a divisão da massa, criando um movimento
sindical “vermelho” e outro “amarelo”, desfazendo-se ou subestiman-
do-se o trabalho dentro dos sindicatos dirigidos pelo Ministério do
Trabalho. Na conferência do PC, ainda com confusões, já se planteou
o problema da unidade sindical. O Congresso da Unidade Sindical,
convocado sob essa linha, realizou-se, porém, embora constituindo um
grande passo no terreno da unidade, ainda não representa a verdadeira
expressão da unidade sindical, pois muitos Estados não se fizeram
representar. A fundamental importância da unidade sindical está em
que esta unidade seja orientada no sentido da luta de classes, com a
mobilização das massas operárias (em ligação com as camponesas) em
uma frente única permanente para a conquista de suas reivindicações
do momento e consequentemente para a conquista de objetivos mais
elevados para a classe operária. A segurança de que a unidade sindical
siga este caminho das lutas revolucionárias depende, fundamentalmente,
do trabalho de fração e oposição que fizermos nos sindicatos, insisten-
temente e bem orientado.50

330
Aqui, já se faz presente a associação da luta pela unidade sin-
dical com as lutas revolucionárias. Seu resultado é a vinculação
da luta operária sindical à Aliança Nacional Libertadora e ao
projeto de um governo nacional-popular, o qual faz parte dos
planos da CSBU. Isso significa a inserção do movimento operá-
rio, sob a liderança comunista, numa luta mais ampla contra o
imperialismo, o latifúndio e o fascismo e o seu distanciamento
de lutas que expressem as vivências da classe em função do seu
cotidiano de miséria, das estratégias disciplinares acionadas na
fábrica, do seu enquadramento higiênico e das interdições morais
que lhe são reservadas. As questões ligadas à exploração operária
no dia a dia e à organização da produção são diluídas nessa luta
maior. Isso talvez tenha ocasionado uma menor visibilidade das
várias estratégias de dominação acionadas pelo Ministério do
Trabalho, impedindo a sua percepção, uma vez que se tornam
secundárias diante da premência da unificação e do objetivo de
instalação de um governo nacional-popular. Um documento do
bureau de uma fração sindical regional do PCB traz, em 1935,
a recomendação de que se deve “mostrar às massas como a luta
pelas reivindicações imediatas está intimamente ligada à luta
pelos direitos políticos, pelas liberdades democráticas e contra
o imperialismo”.51
A constituição de núcleos profissionais dentro da ANL só
reforça essa tendência de integração. A ANL, dessa forma, torna-
-se um escoadouro de reivindicações pelo estabelecimento de
um salário mínimo, pela instalação de caixas de aposentadoria
e pensões, pelo cumprimento da lei de férias e de acidentes no
trabalho, pela jornada de oito horas.52
Através da Aliança, o Partido sugere que os núcleos desta

(...) estudem atentamente as condições de vida dos moradores dos


seus respectivos bairros a fim de desencadear a luta pela sua melhoria
de vida e condições. Ex: há bairros onde falta água, ruas sem calça-
mento e sem esgotos, outras que não são servidas por bondes; bairros
inteiros onde a iluminação é escassa, enfim uma série de coisas que só

331
os moradores conhecem. Portanto os núcleos da ANL devem encabeçar
estas lutas ganhando assim a simpatia desses moradores e trazendo-os
para a luta comum contra o imperialismo, o latifúndio e o integralismo
e em favor das liberdades democráticas para todos os brasileiros (...).53

Questões como o aumento do preço do pão, do leite (e outros


gêneros alimentícios), da gasolina, das passagens de bonde e de
trem, das barcas e das tarifas de energia elétrica são direciona-
das para a luta contra o imperialismo e o governo Vargas, nas
figuras da Leopoldina, da Cantareira, da Light, da Bonds, da
Central do Brasil.54
A possibilidade de avançar até as organizações populares
fora da arena sindical, tais como clubes de futebol, sociedades
recreativas, espíritas, protestantes, carnavalescas e as relações de
vizinhança, não passa despercebida ao Partido. Contudo, isso é
pensado não em termos de uma mobilização dos trabalhadores,
a partir do esforço das suas experiências culturais e de lazer, mas
como um reforço à frente única contra o imperialismo a partir
de vivências comuns e incômodas a todos — como, por exemplo,
o aumento dos preços das passagens dos trens de subúrbio —, o
que afeta o deslocamento dos trabalhadores nas horas de lazer.
Essa vivência em si não é utilizada como forma de ampliar a
mobilização em espaços alternativos de organização ou como
ponto de partida para mobilizações próximas ao cotidiano
operário enquanto tal. Mas enquanto possibilidade estratégica
para sensibilizar os trabalhadores a engrossarem a luta contra
o imperialismo e a ela incorporarem o seu protesto.55
Com essa estratégia de luta e com o investimento em mo-
bilizações que respondem mais aos objetivos programáticos
da ANL e aos princípios doutrinários e táticos do PCB e da
Internacional, os comunistas se distanciam da possibilidade de
colaborar no que Paoli (1978) designa como construção de um
discurso de interpretação da condição operária e de, por ele, se
contrapor aos ardis de um projeto de dominação totalitária em
curso nos anos de 1930.

332
Por outro lado, parece-nos, por tudo que acompanhamos da
atuação do PCB até aqui, que sua dificuldade de se contrapor
às sutilezas da ordem em construção está em que os comunistas
acabam por participar do seu vigamento. E isso acontece não
por uma percepção cognitiva deformada da realidade, mas por
várias razões. No que diz respeito à nova política de organiza-
ção do trabalho, acionada pelo Ministério, particularmente no
que ela implica — a eficiência da racionalização, o aumento
da produtividade e a organização científica do trabalho —,
torna-se difícil ao PC articular alguma resistência a esses
aspectos do projeto, quando na Rússia revolucionária o que
havia dado força aos bolcheviques na luta pela hegemonia da
condução da revolução

(...) vinha de sua tenacidade em aplicar métodos de disciplinar


a força criadora das massas e montar as estruturas normais de uma
economia planificada pelo alto, trilhando as linhas dos princípios ba-
nhados na concepção mecânica, que acionavam a produção capitalista
baseada em concentração, automatismo, alta produtividade e tecnologia
(Marson, 1990, p. 139).

De acordo com Marson, a necessidade dessa racionalização


eficiente é que estava na base da materialização, empreendida
pelos bolcheviques, da locomotiva como a imagem da revolu-
ção, “espelho de um novo padrão de organização que se exigia
da comunidade laboriosa”. Esse novo padrão de organização
implicou a elaboração pelo Estado e pelo Partido bolchevique
de estratégias de controle operário. E o fascínio com as leis de
produtividade e disciplina do capitalismo e com o padrão de
excelência da produção garantido por técnicos, especialistas de
posse da “ciência da burguesia”, vai levar à criação de lugares
privilegiados nas fábricas para técnicos e especialistas que diri-
giriam a produção. Isso é esclarecido por Lenin em As tarefas
imediatas do poder soviético, de abril de 1918, como:

333
(...) o povo russo, mau trabalhador ou desacostumado a trabalhar,
passaria a ter disciplina e controle (tarefa dos sindicatos) e a garantia
das técnicas mais avançadas do capitalismo dirigindo suas aspirações
(Marson, 1987, p. B9).

Marson aponta nas lições de Lenin a “continuidade dos


pressupostos materiais e ideológicos da burguesia como uma
herança da social-democracia alemã, a qual é substituída, depois
da derrota da Alemanha na Guerra, pela atração com a eficiência
tecnológica, a prosperidade e o trabalho aguerrido e intenso dos
Estados Unidos. A penetração da euforia americana na política
industrial do trabalho dos dirigentes soviéticos nas décadas de
1920 e 1930 pode ser avaliada, segundo Marson, não apenas
pelos contatos comerciais e diplomáticos, mas, sobretudo, pelo
fato de que os dirigentes, quando postos diante da

(...) meta irreversível de elevação da produtividade com o máximo


de eficiência e rapidez, apelaram insistentemente à importação de
instrumentos americanos de desenvolvimento: máquinas e produtos,
engenheiros e consultores, técnicas e formas de produção e direção
empresarial, entre essas o taylorismo e o fordismo (só em 1924, nada
menos que quatro edições em russo de My Life and Work de Henry
Ford).

De tudo isso pode se apreender que a modernização econô-


mica e a eficiência na produtividade são controladas pelo Estado
Soviético e por ambas se coloca a necessidade da ordem e da
disciplina para alcançar “produção socializada”.
Com esse referencial, como poderia o PC questionar as es-
tratégias de disciplinarização e racionalização do trabalho em
curso no Brasil dos anos de 1930?
Uma outra razão para a menor eficácia da oposição dos co-
munistas é que estes — como os corporativistas, os integralistas
e os anticomunistas — se socializaram todos num ambiente

334
histórico-social, onde os signos do pensar autoritário e conser-
vador marcam fortemente a sua tradição política, do positivismo
ao liberalismo republicano. Esse quadro é agravado, nos anos
de 1930, pela ascensão mundial de um ideário contrarrevolu-
cionário e pelo surgimento de lideranças e soluções políticas
totalitárias.
No caso específico do Partido Comunista, a “acepção míti-
ca” — para usarmos uma designação de Castoriadis (1982) —
presente na doutrina comunista, com a garantia de uma terra
prometida e de redenção radical, reforça a fé dos seus militantes
que se consideram portadores da verdade e, enquanto tais, atri-
buem ao seu líder, Prestes, o dom da “infinita infalibilidade” a
que se refere Arendt (1982, p. 468). Nesse sentido, a obediência
do Partido à revelação doutrinária e às diretrizes traçadas pela
Internacional Comunista faz com que ele se una a esta e forme,
no dizer de Astrogildo Pereira (1980), “um só corpo orgânico,
sólido e homogêneo, a vanguarda do proletariado nacional”.
Reforçava-se, assim, sobremaneira, os traços totalitários presen-
tes na face da sociedade brasileira dos anos de 1930.

NOTAS
1
PIMENTA, Joaquim. Conceito de economia social. Revista Social-Trabalhista,
Belo Horizonte, v. II, n. IX, p. 14-16, 1937.
2
Idem.
3
DIAS, Carlos. Organização científica do trabalho. Boletim do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, n. 30, p. 146, fev. 1937.
4
Ibidem, p. 145-146.
5
Idem.
6
Sobre o taylorismo e o fordismo, ver: Taylor (1970) e Palloix (1982).
7
DIAS, Carlos. Organização científica do trabalho. Boletim do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, n. 29, p. 138-139, jan. 1937.
8
Ibidem, p. 136-137.
9
Idem.
10
Ibidem, p. 137-138.

335
11
Ibidem, p. 139-140.
12
DIAS, Carlos. Organização científica do trabalho. Boletim do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, n. 30, p. 136, fev. 1937.
13
Ibidem, p. 137.
14
Idem.
15
Ibidem, p. 139.
16
Ibidem, p. 144-145.
17
Ver também: BUENO, Zei. O homem e a máquina. Boletim do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, n. 18, p. 117-125, fev. 1936.
18
A presença do tema da eugenia no contexto de fascistização dos anos de 1930
é magnificamente analisada por Lenharo (1985).
19
CARVALHO, Ladário de. A alimentação do operário. Boletim do Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 15, p. 88, nov. 1935.
20
Ibidem, p. 89.
21
SALGADO FILHO, Joaquim Pedro. A legislação do trabalho. Boletim do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, n. 6, p. 115, fev. 1935.
22
Um bom exemplo da defesa da questão higiênica feita por médicos sanitaristas
no início da década está no Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 7, 6 fev. 1931;
e p. 5, 10 nov. 1931.
23
Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 1, 24 jan. 1931.
24
Os problemas trabalhistas na apreciação de um sociólogo católico. Estado de
Minas, Belo Horizonte, p. 3, 27 maio 1931.
25
MAGARINOS, José. O homem. Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria
e Comércio, n. 12, p. 288-289, ago. 1935.
26
Ibidem, p. 290.
27
Ibidem, p. 291-292.
28
Ibidem, p. 294.
29
Ibidem, p. 295.
30
MAGALHÃES, Agamenon. Boletim do Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio, n. 33, p. 111, maio 1937.
31
BUENO, Zei. Prevenção dos acidentes do trabalho. Revista Social-Trabalhista,
Belo Horizonte, p. 25-29, dez. 1937. Número especial.
32
BUENO, Zei. O homem e a máquina. Boletim do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, n. 18, p. 119, fev. 1936. Da mulher se afirma que a sua
constituição física corresponde a 4/5 da do homem, e que a sua força muscular
é 50% menor.
33
BUENO, Zei. Revista Social-Trabalhista, Belo Horizonte, p. 26-29, dez. 1937.
Número especial.
34
Ibidem, p. 29.

336
35
BUENO, Zei. O homem e a máquina, p. 125.
36
Ver: TEIXEIRA, Carlos Martins. Mineração aurífera. Boletim do Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio, n. 18, p. 151-160, fev. 1936.
37
Exemplo desse fato são as prisões de líderes operários, ocorridas em Juiz de Fora
em março de 1934, atendendo a ordens expressas do Ministério do Trabalho.
Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 7 mar. 1934.
38
A ação do Ministério atinge os vários estados da federação e pode ser confirmada
através dos jornais da época. A título de exemplo indicamos: Estado de Minas,
Belo Horizonte, p. 4, 10 jan. 1936; p. 8, 3 abr. 1936; p. 1, 26 abr. 1936; p. 4,
9 abr. 1936; p. 1, 25 jun. 1936; p. 1, 27 out. 1937; p. 1, 29 out. 1937; p. 4, 7
jul. 1936; O Diário, Belo Horizonte, p. 8, 3 abr. 1936.
39
PERSEGUIÇÕES e violências na Rede Mineira de Viação. Estado de Minas,
Belo Horizonte, p. 4, 11 jul. 1937.
40
Ver: Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 4, 16 ago. 1936; p. 5, 29 jan. 1937;
p. 4, 10 ago. 1937; e Folha de Minas, Belo Horizonte, p. 12, 12 maio 1936.
41
SÓ acreditamos na eficiência do Ministério do Trabalho, quando ele conseguir
libertar os escravos da mina do Morro Velho! O Debate, Belo Horizonte, p. 6,
22 mar. 1934.
42
Ver: Atas da Associação Comercial de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 58, 28
maio 1935. (verso).
43
Ver: Estado de Minas, Belo Horizonte, p. 3, 26 set. 1935.
44
Ver: Diário da Tarde, Belo Horizonte, 21 out. 1936. In: T.S.N. — Processo n.
412.
45
QUINTÃO, Henrique Barreiras. Um “mar de rosas...” O Debate, Belo Horizonte,
p. 6, 31 mar. 1934. (Carta do vice-presidente do Sindicato dos Sapateiros de
Belo Horizonte).
46
A CLASSE OPERÁRIA. Rio de Janeiro, p. 4, 20 set. 1935. In: T.S.N. — Processo
n. 422.
47
O Congresso da Unidade Sindical de Minas Gerais, por exemplo, é realizado
em Belo Horizonte nos primeiros dias de novembro de 1935. A ele comparecem
sessenta organizações sindicais urbanas e rurais, representando duzentos mil
trabalhadores sindicalizados no estado. As teses apresentadas privilegiam os
temas referentes à luta por melhores salários, à organização sindical, ao cum-
primento das leis trabalhistas, ao seguro social.
48
INSTALOU-SE o Congresso da Unidade Sindical. Estado de Minas, Belo
Horizonte, p. 4, 5 nov. 1935.
49
A 2a Reunião do Congresso da Unidade Sindical. Folha de Minas, Belo Horizonte,
p. 9, 6 nov. 1935.
50
PROGRAMA de cursos para ativistas. Bureau de Agitação e Propaganda
Nacional do PCB, maio 1935. p. 10-11. In: T.S.N. — Processo n. 1.
51
A TODAS as frações sindicais. Bureau de fração sindical regional, 1935. In:
T.S.N. — Processo n. 1, v. 16. (Boletim).

337
52
De acordo com volantes endereçados às categorias profissionais, como: AOS
trabalhadores em Transporte. Rio de Janeiro, 1935. In: T.S.N. — Processo n.
1, v. 10; ALIANÇA Nacional Libertadora, Rio de Janeiro, 1935. In: T.S.N. —
Processo n. 1, v. 10. (Núcleo dos Serventuários da Justiça).
53
INSTRUÇÃO aos núcleos do Distrito Federal. Distrito Federal, 1935. In: T.S.N.
— Processo n. 1, v. 16. (Panfleto avulso).
54
CONFORME panfletos avulsos de núcleos suburbanos da ANL do Rio de
Janeiro, 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 1 e 16; Marítimo e portuário, Rio
de Janeiro, 29 jan. 1936. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 1; e A Manhã, Rio de
Janeiro, 15 maio 1935.
55
AO povo leopoldinense em particular e à população carioca em geral. Comissão
Suburbana da AL/Rio, 1935. In: T.S.N. — Processo n. 1, v. 1. (Panfleto avulso).

338
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pretensão inicial deste trabalho era a de acompanhar o


movimento da Aliança Nacional Libertadora — não em sua
duração, mas em suas direções e em seu relacionamento com
outras forças sociais. Contudo, no decorrer de nossa pesquisa,
fomos levados à percepção de um embate político travado
entre forças rivais, com significativo investimento no campo
do imaginário.
Ao longo destas páginas, procuramos desvendar alguns aspec-
tos do imaginário político nos anos de 1930, enquanto território
privilegiado dos conflitos sociais que ocorrem no período.
Admitimos ter recontado algumas intrigas trágicas da cultura
política brasileira. Num cenário político tão polarizado, como
o dos anos de 1935-1937, as posições políticas adotadas não se
constituem, necessariamente, como exemplos edificantes.
Findo o trabalho, parece-nos que algumas questões seguem
instigando: por que existe, entre os contendores principais —
no caso, comunistas e anticomunistas —, antagonismos em um
ponto e não em outro? Por que o imaginário não se expressa de
variadas formas?
Acreditamos que, embora falando de lugares diferentes —
como é o caso dos comunistas, munidos de uma doutrina re-
velada em sua dimensão teórica e prática na Aliança Nacional
Libertadora —, as forças políticas rivais se entrelaçam na epis-
teme contrarrevolucionária da década de 1930, centrada no que
Romano (1985) designa como uma “fantasmagoria orgânica”.
As indicações que o exame da documentação do PCB nos
forneceram levam-nos a concluir que os comunistas reproduzem
os princípios orgânicos norteadores, entre outros, por exemplo,
do corporativismo; que a fundamentação do seu imaginário é a
mesma do imaginário anticomunista e redunda do mesmo prin-
cípio e da mesma lógica binária e totalitária; e que a proposta
totalitária, cujo desenvolvimento vimos examinando, está em
germe nos dois polos, o comunista e o anticomunista.
Esse imaginário, que é bastante polarizado, uniformiza os
opositores. Os mesmos temas que sustentam e informam a pre-
gação contrarrevolucionária do período — e o mesmo conteúdo
— se apresentam no discurso comunista, que nega essa pregação.
A realidade é percebida da mesma maneira e coincide com o
“diagnóstico” acerca de seus males. Nesse sentido, pretendendo
ser “alternativos”, os comunistas só conseguem se firmar como
“contraposição”.
É dessa forma que convergem os discursos da direita e da
esquerda na defesa de padrões familiares e morais, na defesa da
pátria soberana e da unidade nacional, pela almejada constru-
ção de um trabalhador sadio e contente que erguerá uma “nova
Pátria”.
Comunistas e anticomunistas se apresentam como a encarna-
ção autêntica dos valores positivos, como portadores do eterno,
como fundadores do mundo. Um seria a inversão do outro, o seu
contrário. No entanto, aqui não é possível pensar, como fazem
Freitag e Rouanet (1975), na sua leitura “frankfurtiana” da obra
A montanha mágica de Thomas Mann, numa dialética da inver-
são, onde a montanha seria a inversão da inversão da planície. O
mundo da montanha seria, assim, o mundo da planície invertido.
Concordamos que os atributos existam sob a forma do
imaginário e que, portanto, sua forma de existência seja pura-
mente ideológica. No caso dos anticomunistas, um olhar menos
atento concluiria, nos termos da “dialética da negação”, que sua
ideologia (sociedade una, indivisa, homogênea) é a inversão da
realidade (dividida, conflituada, heterogênea), e que a ideologia

340
comunista seria não o contrário da realidade anticomunista
(sua simples inversão), mas o contrário do que esta aparenta
ser, ou seja, seria o desvendamento da mentira anticomunista,
a desmistificação.
Contudo, o que se verifica é que, ainda que os comunistas des-
vendem a mentira da sociedade indivisa, homogênea, harmônica,
é em cima do aceno do indiviso, do homogêneo, do harmônico
que eles contrapõem a nova realidade a ser construída. Nesse
sentido, parece-nos que ambos representam a inversão de si
mesmos, e a ideologia de cada um é a tentativa desesperada da
simulação da divisão.
Quanto a uma possível contrapartida vivencial e emocional
do cidadão comum — que viveu esses anos — a essa sedução do
todo, uno, homogêneo e indivisível, talvez seja necessário sair
do imaginário para responder.
Fica aqui uma possibilidade aberta aos leitores.

341
REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. La personalidad autoritaria. Buenos Aires:


Editorial Proyección, 1965.
ADORNO, Theodor W.; HOCKHEIMER, Max. Conceito de ilumi-
nismo. In: Textos escolhidos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
(Os Pensadores)
ARAÚJO, Ricardo B. Totalitarismo e revolução. Rio de Janeiro: Zahar,
1988.
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Moraes, 1979.
ARENDT, Hannah. Los origenes del totalitarismo. Madrid: Alianza
Universidad, 1982. v. 1-3.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1983.
ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo: Ática; Brasília: UnB, 1988.
BASBAUM, Leôncio. História sincera da república. São Paulo: Alfa-Omega,
1976. v. 3.
BAZCKO, Bronislaw. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi.
Lisboa: Imprensa Nacional — Casa da Moeda, 1985a. v. 5.
BAZCKO, Bronislaw. Utopia. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa
Nacional — Casa da Moeda, 1985b. v. 5.
BRESCIANI, Maria Stella M. Metrópoles: as faces do monstro urbano
(as cidades do século XIX). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 5,
n. 8-9, p. 35-68, 1984-1985.
CALVINO, Italo. O visconde partido ao meio. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1988.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Lisboa: Livros do Brasil, [s.d.].
CANETTI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Melhoramentos; Brasília:
UnB, 1983.
CARONE, Edgard. A segunda república. São Paulo: DIFEL, 1973.
CARONE, Edgard. A república nova (1930-1937). São Paulo: DIFEL, 1974.
CARONE, Edgard. O PCB (1922-1943). São Paulo: DIFEL, 1982.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982.
CAVALCANTE, Berenice. Certezas e ilusões: os comunistas e a rede-
mocratização da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/
EDUFF, 1986.
CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado. São Paulo: Livraria
Editora de Ciências Humanas, 1979.
CHAUI, Marilena de S. Apontamentos para uma crítica da ação inte-
gralista brasileira. In: CHAUI, Marilena de S.; FRANCO, Maria Sylvia
de Carvalho. (Org.). Ideologia e mobilização popular. Rio de Janeiro:
CEDEC/Paz e Terra, 1978. p. 17-149.
CHAUI, Marilena de S. Cultura e democracia: discurso competente e outras
falas. São Paulo: Moderna, 1982.
CHAUI, Marilena de S. O poder político da amizade. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 13 jul. 1982. Caderno Folhetim, p. 6-7.
CHAUI, Marilena de S. Medo e servidão. Folha de S. Paulo, São Paulo,
26 jun. 1983. Caderno Folhetim, p. 6-8.
CHAUI, Marilena de S. Amizade, recusa do servir. In: DE LA BOÈTIE,
Etienne. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1986.
CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estado. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1978.
DE DECCA, Edgar. O silêncio dos vencidos. São Paulo: Brasiliense, 1981.
DE DECCA, Edgar; VESENTINI, Carlos A. A revolução do vencedor.
Contraponto, Rio de Janeiro, n. 1, p. 60-71, nov. 1976.
DE LA BOÈTIE, Etienne. Discurso da servidão voluntária. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
DETIENNE, Marcel. Los maestros de verdad en la Grécia arcaica.
Madrid: Taurus, 1986.
DETIENNE, Marcel. Demônios. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa:
Imprensa Nacional — Casa da Moeda, 1987. v. 12.
DIMITROV, George. Obras escolhidas. Lisboa: Estampa, 1976. v. 3.

344
DOS SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça. Rio de
Janeiro: Campus, 1979.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1986.
FINLEY, Moses I. Democracia antiga e moderna. Rio de Janeiro: Graal,
1988.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das
ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1983.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense,
1986.
FREITAG, Bárbara; ROUANET, Sérgio. “A montanha mágica” e a dialé-
tica da inversão. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 41, p. 33-58, 1975.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974a. v. XIII.
FREUD, Sigmund. O instinto e suas vicissitudes. In: Edição standard brasi-
leira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974b. v. XIV.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974c. v. XIV.
FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974d. v. XIV.
FREUD, Sigmund. O estranho. In: Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976a. v. XVII.
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. In: Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago,
1976b. v. XVII, v. XVIII.
FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do ego. In: Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1976b. v. XVII, v. XVIII.
FREUD, Sigmund. O ego e o id. In: Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976c. v. XIX.
FREUD, Sigmund. Uma neurose demoníaca do século XVII. In: Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1976c.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1978a.

345
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. In: Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1978b.
FROMM, Erich. O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
FURET, François. Ensaios sobre a Revolução Francesa. Lisboa: A Regra
do Jogo, 1978.
GAY, Peter. A educação dos sentidos. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
GAY, Peter. Freud para historiadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
GIRARD, René. La violence et le sacré. Paris: Pluriel/Hachette, [s.d.].
GOMES, Ângela M. C. Burguesia e trabalho. Política e Legislação Social
no Brasil. 1917-1937. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
GOMES, Ângela M. C. A invenção do trabalhismo. São Paulo: Vértice/
Editora Revista dos Tribunais; Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988.
GROSSI, Yonne de Souza. Mina de Morro Velho: a extração do homem.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
HABERMAS, Jürgen. A nova intransparência. A crise do Estado de
bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas. Novos Estudos
Cebrap, São Paulo, n. 18, p. 103-114, 1987.
HARDMAN, Francisco F. O trem fantasma. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.
HEGEL, G. W. F. Ciencia de la lógica. Buenos Aires: Ed. Solar, 1976.
HELLER, Agnes. A filosofia radical. São Paulo: Brasiliense, 1983.
HENRIQUEZ, Eugène. Imaginário social, recalcamento e repressão nas
organizações. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 36-37, p. 53-94, 1974.
HERNANDEZ, Leila Maria G. L. Movimentos político-ideológicos no
Brasil: ANL/AIB, 1978. (Mimeogr.).
HILTON, Stanley. A rebelião vermelha. Rio de Janeiro: Record, 1986.
HOBSBAWM, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984.
HOBSBAWM, Eric. Mundos do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
JOFFILY, José. Harry Berger. Rio de Janeiro: Paz e Terra/UFP, 1987.
KANTOROWICZ, Ernest H. Los dos cuerpos del rey. Madrid: Alianza
Universidad, 1985.

346
KOCHAKOWICZ, Leszek. O diabo. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa:
Imprensa Nacional — Casa da Moeda, 1987. v. 12.
KORMAN, Victor. Teoría de la identificación y psicosis. Buenos Aires:
Nueva Visión, 1977.
KÜHNL, Reinhard. Liberalismo e fascismo. Barcelona: Editorial Fon-
tanella, 1982.
LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 1966.
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Bertrand. Vocabulário de psica-
nálise. Lisboa: Martins Fontes, 1975.
LEBRUN, Gerard. O conceito de paixão. In: CARDOSO, Sérgio (Org.). Os
sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras/FUNARTE, 1987.
LEFORT, Claude. Esboço de uma gênese da ideologia nas sociedades
modernas. Estudos Cebrap, São Paulo, n. 10, p. 07-56, 1974.
LEFORT, Claude. A invenção democrática. São Paulo: Brasiliense, 1983.
LEFORT, Claude. Pensar a revolução na Revolução Francesa. História.
Questões & Debates, Curitiba, v. 10, n. 6, p. 25-60, 1985.
LE GOFF, Jacques. Pecado. In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa
Nacional — Casa da Moeda, 1987. v. 12.
LEITE, Dante M. O caráter nacional brasileiro. São Paulo: Pioneira, 1969.
LENHARO, Alcir. Corpo e alma: mutações sombrias do poder no Brasil
dos anos 30 e 40. São Paulo: [s.n.], 1985. (Mimeogr.).
LENHARO, Alcir. O triunfo da vontade. São Paulo: Ática, 1986.
LEVINE, Robert M. O regime de Vargas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1980.
MAFFESOLI, Michel. A violência totalitária. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
MANNHEIM, Karl F. Ideologia e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
MARSON, Adalberto. Sobre a ideologia do caráter nacional: uma revisão.
Separata de: Revista de História, São Paulo, n. 86, 1971.
MARSON, Adalberto. A ideologia nacionalista em Alberto Torres. São
Paulo: Duas Cidades, 1979.
MARSON, Adalberto. O éter da comunidade: política e legislação do
trabalho sob o nazismo. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 7,
p. 135-140, 1984.
MARSON, Adalberto. Vontade e eficiência na Rússia revolucionária. Folha
de S.Paulo, São Paulo, 30 out. 1987. Caderno Folhetim, p. 8-10.

347
MARSON, Adalberto. A locomotiva e a célula: imagens opostas da
mesma revolução (Rússia, 1918). Revista Brasileira de História, São
Paulo, ANPUH/Marco Zero, v. 10, n. 20, p. 129-146, mar.-ago. 1990.
MAYER, Arno. Dinâmica da contrarrevolução na Europa – 1870-1956.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
MAYER, Arno. A força da tradição. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MEZAN, Renato. Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1986.
MOORE Jr., Barrington. Injustiça: as bases sociais da obediência e da
revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MORAIS, Fernando. Olga. São Paulo: Alfa-Omega, 1985.
MOTA, Carlos G. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). São Paulo:
Ática, 1977.
MUNAKATA, Kazumi. A legislação trabalhista no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1981.
MUNAKATA, Kazumi. Algumas cenas brasileiras. Campinas: [s.n.],
1982. (Mimeogr.).
NAQUET, Vidal; VERNANT, Jean P. Mito e tragédia na Grécia antiga.
São Paulo: Duas Cidades, 1976.
NISBET, Robert. História da ideia de progresso. Brasília: Ed. UnB/INL,
1985.
PACHECO, Eliezer. O partido comunista brasileiro (1922-1964). São
Paulo: Alfa-Omega, 1984.
PALLOIX, Christian. O processo de trabalho: do fordismo ao neofordismo.
In: Processo de trabalho e estratégias de classe. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
PALMIER, Jean Michela. Lacan. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1977.
PAOLI, Maria Célia. Os trabalhadores urbanos na fala dos outros: tempo,
espaço e classe na história operária brasileira. In: LOPES, José Sérgio
Leite (Org.). Cultura e identidade operária. São Paulo: Marco Zero; Rio
de Janeiro: UFRJ, 1987.
PAOLI, Maria Célia. Trabalhadores e cidadania. A experiência do mundo
público na história do Brasil moderno. São Paulo: USP, 1989. (Mimeogr.).
PAZ, Octavio. O labirinto da solidão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
PELLEGRINO, Hélio. Pacto edípico e pacto social. Folha de S.Paulo, São
Paulo, 11 set. 1983. Folhetim. (Mimeogr.).
PEREIRA, Astrogildo. O partido comunista. In: ZAIDAN, Michel (Org.).
Construindo o PCB: (1922-1924). São Paulo: Ciências Humanas, 1980.

348
PONTY, Merleau. Humanismo e terror. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1968.
PRADO Jr., Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1987.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. São Paulo: Martins
Fontes, 1972.
ROMANO, Roberto. Conservadorismo romântico. São Paulo: Brasiliense,
1981.
ROMANO, Roberto. Corpo e cristal: Marx romântico. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1985.
SEGAL, Hanna. Introdução à obra de Melaine Klein. Rio de Janeiro:
Imago, 1975.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988.
SILVA, Hélio. 1935 — A revolta vermelha. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1969.
SOUZA, Maria do Carmo C. de. Estado e partidos políticos no Brasil
(1930-1964). São Paulo: Alfa-Omega, 1976.
TAYLOR, Frederick W. Princípios da administração científica. São Paulo:
Ed. Atlas, 1970.
TRINDADE, Hélgio. O integralismo: o fascismo brasileiro na década de
30. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1974.
VASCONCELLOS, Gilberto. Ideologia curupira. São Paulo: Brasiliense,
1979.
VAZ, Henrique C. L. Destino da revolução. Revista Síntese, Belo Horizonte,
v. XVII, n. 45, p. 5-13, 1989.
VERNANT, Jean P. Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo:
Difusão Europeia do Livro, 1973.
VESENTINI, Carlos A. A teia do fato. São Paulo: USP, 1982. (Mimeogr.).
VESENTINI, Carlos A. A instauração da temporalidade e a (re)funda-
ção na história: 1937 e 1930. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 87,
p. 104-121, 1986.
VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1976.
ZAIDAN, Michel (Org.). Construindo o PCB: (1922-1924). São Paulo:
Ciências Humanas, 1980.
FONTES PESQUISADAS

IMPRESSAS

OFICIAIS
ANAIS
ANAIS da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1936.
ANAIS da Assembleia Nacional Constituinte. Rio de Janeiro: Imprensa
Oficial, 1934.
ANAIS da Câmara dos Deputados Federais. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1935.
ANAIS da Assembleia Constituinte do Estado de Minas Gerais de 1934.
Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1936.
ANAIS da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais de 1935 a
1937. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1935-1937.

ANUÁRIOS
ANUÁRIO Estatístico Policial e Criminal, anos IX-X, 1936-1937. Chefia de
Polícia, Serviço de Investigações. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1938.

LEIS E DECRETOS
COLEÇÃO das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1936-1938.
COLEÇÃO das Leis e Decretos do Estado de Minas Gerais de 1936. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1938.
DOCUMENTO do Decreto-lei n. 88, de 20 de dezembro de 1937. Presi-
dência da República: Rio de Janeiro, 20 dez. 1937, 116o da Independência
e 49o da República.

350
MENSAGENS GOVERNAMENTAIS
MENSAGENS do Governador Benedicto Valladares Ribeiro apresentadas
à Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial, 1935-1937.

PROCESSOS DO TRIBUNAL
DE SEGURANÇA NACIONAL
PROCESSOS crimes números 1 (v. 1 a 70); 1.233; 384; 691; 1.283; 635;
639; 788; 412; 410. Justiça Especial, Tribunal de Segurança Nacional, Rio
de Janeiro: D.F.

RELATÓRIOS
RELATÓRIOS da Chefia de Polícia de 1935 e 1936. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1936.
RELATÓRIO do Delegado Eurico Bellens Porto. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1936.
RELATÓRIO e documentos referentes à dissidência verificada na direção
do Partido Comunista Brasileiro. São Paulo, 18 de fevereiro de 1938.
Superintendência de Ordem Política e Social.
RELATÓRIO apresentado ao Sr. Chefe de Polícia, Major Dr. Felinto Muller,
pelo Delegado Especial de Segurança Política e Social, Capitão Felisberto
Baptista Ilinheira. Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Polícia Civil
do Distrito Federal. Rio de Janeiro, set. 1940.
RELATÓRIO da Força Pública do Estado de Minas Gerais ao Exmo. Sr.
Dr. Benedicto Valladares Ribeiro, Governador do Estado de Minas Gerais
pelo Cel. Alvino Alvim de Menezes, comandante geral da Força Pública.
Belo Horizonte, 1937.
RELATÓRIO do Serviço de Investigação da Chefia de Polícia do Estado
de Minas Gerais, 1942. Belo Horizonte, mar. 1943.

BOLETINS
BOLETIM do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Rio de
Janeiro: Departamento de Estatística e Publicidade, 1935-1937.

REVISTAS
REVISTA SOCIAL-Trabalhista. Órgão da Delegacia Regional do Trabalho
de Minas Gerais. Belo Horizonte, abr./dez. 1937.

351
ESTATUTOS
ESTATUTOS da Aliança Nacional Libertadora.
ESTATUTOS do Partido Comunista do Brasil. Rio de Janeiro: Edição da
Comissão Central Executiva, 1922.
ESTATUTOS e Programa do Partido Social Nacionalista. Belo Horizonte,
1933.

DISCURSOS
MINAS e seu pensamento político: discursos pronunciados na manifestação
do povo de Minas a S. Excia. o Sr. Governador Benedicto Valladares Ribei-
ro, por motivo do congraçamento político mineiro. Belo Horizonte, 1936.
DRUMMOND, Magalhães — Discurso de Paraninfo — Bacharéis em
Direito da UFMG. Belo Horizonte: Gráfica Queiroz Breyner, 1937.
CAMPOS, Francisco — 10 de novembro de 1938. Resultado de 50 anos
de experiência política — DNP — 1938.

PUBLICAÇÕES EPISCOPAIS
CONFERÊNCIAS Episcopais da Província Eclesiástica de Belo Horizonte.
Belo Horizonte: Imprensa Diocesana, 1935.
PASTORAL Coletiva do Episcopado da Província Eclesiástica de Belo
Horizonte. Belo Horizonte: Imprensa Diocesana, 1943.

PERIÓDICOS

REVISTAS
REVISTA Comercial de Minas Gerais. Belo Horizonte, v. I, n. 2, nov./
dez. 1937.
REVISTA Proletária. Rio de Janeiro, ago. 1935 e jan. 1938.
PROBLEMAS. n. 49, set. 1953.
ISTO É. São Paulo, 6 set. 1978 e 10 jan. 1979.
ARGUS: revista policial (doutrinária, ilustrada, literária e noticiosa). Belo
Horizonte, dez. 1935-dez. 1937.

352
JORNAIS
A MANHÃ. Rio de Janeiro, jan./nov. 1935.
ANAUÊ. Belo Horizonte, set. 1935-jan. 1936.
A CATEDRAL. Diamantina, 1935.
O DEBATE. Belo Horizonte, 1934-1936.
O DIÁRIO. Belo Horizonte, 1935-1937.
ESTADO DE MINAS. Belo Horizonte, 1931-1937.
CORREIO MINEIRO. Belo Horizonte, 1934-1935.
FOLHA DE MINAS. Belo Horizonte, 1935-1937.
GAZETA UNIVERSITÁRIA. Belo Horizonte, 1932-1937.
SENHOR BOM JESUS. Barbacena, 1935.
A CLASSE OPERÁRIA. Rio de Janeiro, 1930-1931, 1934-1935, 1937-
1938.
MARCHA. Órgão do Diretório Municipal da ANL do Distrito Federal,
5 jul. 1935.
UNIÃO DE FERRO. Órgão Central do Partido Comunista nas Forças
Armadas. Rio de Janeiro, jul. 1935.
A LUCTA. Belém, 9-16 nov. 1935.
O LIBERTADOR. Rio de Janeiro, 22 nov. 1935 e jan. 1936.
MARÍTIMO E PORTUÁRIO. Rio de Janeiro, 29 jan. 1936.
O PROGRESSO. Belo Horizonte, 1 maio 1937.
O DIÁRIO DA REVOLUÇÃO. Uberlândia, 7 nov. 1930.
VOZ DA UNIDADE. São Paulo, abr. 1983.

DOCUMENTOS DO PCB
CIRCULAÇÃO INTERNA
(circulares, planos de ação, manifestos, teses-instruções etc.)
CADERNOS do Comunista. Material de educação política traduzido e
editado pelo SN do PCB. Rio de Janeiro, abr. 1937.
CIRCULAR de Luiz Carlos Prestes, 1936.

353
CIRCULARES relativas à carta de Joaquim Barbosa.

CIRCULAR a todos os camaradas.

CIRCULAR do Comitê Regional do Rio de Janeiro: lutando pela unidade


do nosso partido, lutamos pela unidade do povo brasileiro, pela sua liber-
tação nacional e social, dez. 1937.

CIRCULAR a todos os membros, organismos e simpatizantes do Partido.


Belo Horizonte, mar. 1938.

CIRCULAR do C.R. Provisório de São Paulo, 22 out. 1937.

CIRCULAR enviada pelo grupo fracionista a alguns locais com que tinham
ligação e entregues por estes ao C.R. de São Paulo, 1 nov. 1937.

COMÉDIA em 3 atos. Quando os animais falavam... David Jardim Júnior.


Belo Horizonte, 1935. (Mimeogr.).

CIRCULAR. Campanha Nacional pró-classe operária. Região de Minas


Gerais.

CIRCULAR. O que a ex-“oposição” queria: desertar.

CIRCULAR. As manobras indecorosas da oposição barbosista.

CIRCULAR do CC do PCB: começou a Revolução.

CIRCULAR. União Nacional pela Democracia, contra a ameaça de invasão


fascista estrangeira e contra os traidores da Pátria que a preparam, jan. 1939.

CIRCULAR. Brasileiros de pé contra o golpe terrorista que os chefes do


Integralismo estão preparando.

CIRCULAR. A mensagem do camarada Dimitrof aos eleitores soviéticos.


São Paulo, 1938.

CIRCULAR da SAD — Sociedade dos Amigos da Democracia.

CIRCULAR do Diretório da ANL: Governo Popular Nacional Revolucio-


nário e seu programa.

CIRCULAR do Bureau Político do Comitê Central do Partido Comunista


do Brasil: União Nacional para esmagar o golpe fascista em marcha, 2
maio 1937.

CIRCULAR. Sob a bandeira da IC.

CIRCULAR. Congresso dos revolucionários brasileiros.

354
CIRCULAR do CR de São Paulo a todos os membros do partido. São
Paulo, ago. 1938.
CIRCULAR de Roberto Sisson. A Aliança Nacional Libertadora, que
brevemente vai instalar o seu núcleo em Diamantina, expõe ao povo os
pontos básicos de seu programa.
CIRCULAR a todas as frações sindicais.
CIRCULAR. Lenine e a disciplina do Partido. A obra do Fracionismo
oportunista nas nossas fileiras.
DEPOIMENTO através de apontamentos e de experiência pessoal. A luta
contra a direita e a “esquerda” no Partido Comunista do Brasil.
MANIFESTO de Romain Rolland — Presidente do Comitê Mundial contra
a Guerra e o Fascismo. Paris, fev. 1937.
DECLARAÇÃO de Camargo ao Comitê Central do PCB, 7 nov. 1937.
DECLARAÇÕES ao Comitê Regional de São Paulo de Iara e Noé, nov.
1937.
O DOCUMENTO dos 15 out. 1937.
MANIFESTO dirigido ao povo e ao Exército pelo Cel. Felipe Moreira Lima.
TESE para ser discutida no plenário do presente Congresso de Unidade
Sindical, realizado sob a direção da Confederação Sindical Unitária do
Brasil. Belo Horizonte, 6 nov. 1935.
TESE apresentada por Gentil Noronha no Congresso de Unidade Sindical
de Minas Gerais, realizado de 4 a 7 de nov. 1935, Organização Sindical.
INSTRUÇÕES do Partido Comunista do Brasil.
INSTRUÇÕES para o trabalho sindical e preparação de greves na atual
situação de estado de sítio. Rio de Janeiro, 7 dez. 1935.
INSTRUÇÕES de Newton Freitas aos núcleos do Distrito Federal.
INSTRUÇÕES de Roberto Sisson para a organização de núcleos da ANL.
INSTRUÇÕES aos comitês estaduais e municipais da ANL. Rio de Janeiro.
BOLETIM interno. Região de Minas Gerais do Partido Comunista do
Brasil. Juiz de Fora, set. 1938.
TESES políticas. Conferência Regional de São Paulo do PCB.
TESES de organização. Conferências entre a Direção Central e a Regional.

355
CIRCULAÇÃO EXTERNA
(panfletos e boletins de propaganda da ANL)
AOS OPERÁRIOS, soldados e todas as camadas pobres da pequena bur-
guesia. CR do Norte de Minas do Partido Comunista do Brasil.
AO PROLETARIADO e ao povo em geral. Comitê Regional de São Paulo
do Partido Comunista do Brasil.
ARRANQUEMOS do cárcere os bravos libertadores vítimas do furor fas-
cista do bando de Getúlio mancomunado com o imperialismo, 5 ago. 1935.
A ALIANÇA Nacional ao povo brasileiro. Diretório da Aliança Nacional
Libertadora.
A INTELLIGENCE Service Britânica e o Governo de Vargas organizam o
assassinato de Luiz Carlos Prestes.
POVO do Brasil: alerta!
AO POVO de Paracatu.
MANIFESTO aos trabalhadores de Paracatu. 1 maio 1943.
QUEREM transformar o Brasil numa segunda Espanha. Bureau político
do CC do Partido Comunista do Brasil, mar. 1937.
AO CLERO, católicos, intelectuais, classes conservadoras e operários do
Brasil.
AS CAUSAS das coceiras anti-imperialistas do Integralismo, mar. 1937.
AOS CATÓLICOS e a-católicos de Uberlândia. Carta aberta a um sacer-
dote.
FORÇA Getúlio!
VAI-SE a primeira pomba despertada.
AO POVO em geral e aos trabalhadores em particular.
AOS OFICIAIS e sargentos do Exército. Comitê Militar da ANL pró-
-integridade das classes armadas.
AOS JURISTAS, professores de Direito, advogados, magistrados, escrivães,
solicitadores, escreventes, oficiais de justiça etc., etc.. Núcleo dos Serven-
tuários da Justiça da ANL.
LIBERTEMOS Harry Berger que sofre com sua companheira as piores
torturas na polícia central e no pátio da polícia especial. CR do Rio do PCB.
COMPANHEIROS e companheiras têxteis! Operários Aliancistas Têxteis.
AO POVO leopoldinense em particular e à população carioca em geral.

356
MILITARES! Reajamos contra as ordens absurdas de João Gomes.
MILITARES! Reajamos contra a fascistização do Exército Nacional.
AO EXÉRCITO e ao povo brasileiro. Um grupo de oficiais.
ENGAJAMENTO para todos. Comissão de Sargentos e Cabos.
ALIANÇA Nacional Libertadora ao povo.
ÀS MULHERES do Brasil. União Feminina do Brasil.
AOS TRABALHADORES em transportes.
CONTRA a lei monstro! Comitê Regional Fluminense do PCB.
TRABALHADORES em transportes (...) Chauffeurs em geral (...).
PROTESTEMOS! Comitê de Frente Única Popular contra o Imperialismo
e o Integralismo.
COMPANHEIRO ferroviário. Direção do Núcleo Nacional Ferroviário
da Central do Brasil.
TRABALHADORES em geral! Intelectuais pobres, pequenos comerciantes!
MOCIDADE brasileira! Comissão do D. Federal.
POR um 13 de maio de protesto contra a falsa libertação dos negros no
Brasil! Comitê Regional do D. Federal do PCB.
AO POVO do Brasil! Trabalhadores manuais e intelectuais! Massas popu-
lares do Brasil! Comitê Regional do Rio do PCB.
ALIANÇA Nacional Libertadora. Grande Comício popular no Estádio
Brasil.
A ALIANÇA Nacional Libertadora expõe ao povo os pontos básicos do
seu programa. Roberto Sisson.
ALIANÇA Nacional Libertadora. Núcleo dos Gráficos.
A ALIANÇA Nacional Libertadora ao povo brasileiro. Pela salvação
nacional! Rio de Janeiro, mar. 1935.
A ALIANÇA Nacional Libertadora ao povo brasileiro.
A ALIANÇA Nacional Libertadora e as reivindicações da população de
Madureira e adjacências.
POVO brasileiro. Bureau Político do Partido Comunista do Brasil.
AO POVO brasileiro e às classes armadas. Distrito Federal, out. 1936.
HARRY Berger, um grande lutador antifascista e antiguerreiro.

357
A TODOS os sindicatos ferroviários! Diretoria da Confederação Sindical
Unitária do Brasil.
AOS TRABALHADORES, trabalhadores soldados e marinheiros!
AO POVO de Pernambuco.
UNIÃO de todos os paulistas pela prosperidade, a democracia e a paz!
São Paulo, 2 maio 1938.
A ALIANÇA Nacional Libertadora expõe ao povo, mais uma vez, os pontos
básicos de seu programa. Diretório Provisório Regional de Minas Gerais.
MANIFESTO Programa da União Feminina do Brasil.
CARTA de Joaquim Barbosa à CCE do Partido seguida dos comentários
de José Oiticica. Rio de Janeiro: Publicações do Grupo Braço e Cérebro,
1928 (Cisão do Partido Comunista).
CARTA dirigida à Zona do triângulo e Nordeste pelo grupo fracionista,
12 out. 1937.
CARTA de Luiz Carlos Prestes aos jovens de todo o Brasil.

DOCUMENTOS DA AIB
BRASIL ameaçado.
LITERATURA integralista.
BRASILEIRO, leia e medite. Rio de Janeiro, 5 dez. 1937.

MANUSCRITOS

ATA
ATAS da Associação Comercial de Minas Gerais. 1935-1937.

DOCUMENTOS DO PCB
CIRCULAÇÃO INTERNA (cartas — bilhetes)
CARTA de Camargo a seu irmão, rompendo com o grupo fracionista e
desmascarando-o. Rio de Janeiro, 7 nov. 1937.

CARTA de Cascudo a Amaral, 25 dez. 1935.

CARTA de Luiz Carlos Prestes a Pedro Ernesto, 16 nov. 1935.

358
CARTA de João Batista Barreto Leite Filho a Luiz Carlos Prestes, 26 out.
1935.

CARTA de Hercolino Cascardo, dez. 1935.

CARTA de Leôncio Basbaum a Astrogildo Pereira. São Paulo, 4 maio 1962.

BILHETE dirigido por Luiz Carlos Prestes a André Trifino Corrêa, 25


nov. 1935.
Lasar Segall, 1891 Vilna – 1957 São Paulo, Eternos caminhantes (1919, pintura
a óleo sobre tela, 138 x 184 cm), acervo do Museu Lasar Segall – IBRAM/MinC

A presente edição foi composta pela Editora


UFMG e impressa pela Imprensa Universitária
UFMG, em sistema offset, papel pólen soft
80g (miolo) e cartão supremo 250g (capa),
em julho de 2012.

S-ar putea să vă placă și