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Representações e experiências sobre aborto legal e ilegal

ARTIGO ARTICLE
dos ginecologistas-obstetras trabalhando em dois hospitais
maternidade de Salvador da Bahia

Representations and experiences of obstetrician/gynecologists


with legal and illegal abortion in two maternity-hospitals
in Salvador da Bahia

Silvia De Zordo 1

Abstract The objective of this qualitative study, Resumo O objetivo deste estudo qualitativo, re-
carried out in two maternity-hospitals in Salva- alizado em dois hospitais-maternidade de Salva-
dor da Bahia, was to investigate the experience dor da Bahia, foi investigar a experiência e as
and representations of health professionals, and representações do aborto legal, analisadas em con-
particularly obstetricians-gynecologists, regarding traste com as representações do aborto ilegal, dos
legal abortion in comparison with their represen- profissionais de saúde, em particular dos gineco-
tations and experience with illegal abortion. A logistas-obstetras.Usou-se como instrumentos um
questionnaire was distributed and semi-structured questionário e entrevistas semi-estruturadas com
interviews were conducted with 25 health profes- 25 profissionais de saúde (dos quais 13 ginecolo-
sionals (13 obstetricians-gynecologists) in a hos- gistas-obstetras) num hospital que oferece um ser-
pital providing legal abortion (P) and with 20 viço de aborto legal (P), e 20 profissionais de saú-
health professionals (9 obstetricians-gynecologists) de (dos quais 9 ginecologistas-obstetras) em outro
in another hospital that does not provide this ser- hospital, que não oferece este serviço (F). Os fato-
vice (F). The factors that influence the represen- res que mais influenciam as representações dos
tations and experience of abortion of most obste- ginecologistas-obstetras entrevistados acerca do
tricians-gynecologists and explain the high rate of aborto e que explicam a alta taxa de objeção de
conscientious objection at Hospital P were: 1- the consciencia no hospital P foram: 1- a criminali-
criminalization of abortion and the fear of being zação do aborto e o medo de serem denunciados;
denounced; 2- the stigmatization of abortion by 2- a estigmatização do aborto por certos grupos
certain religious groups and by the physicians religiosos e pelos proprios médicos; 3- o treina-
themselves; 3- training in obstetrics and the lack mento em obstetrícia e a falta de uma formação
of good training in the epidemiology of maternal boa no campo da epidemiologia da morbi-morta-
morbidity-mortality and abortion; 4- represen- lidade materna e do aborto; 4- as representações
tations on gender relations. The main factors as- acerca das relações de gênero. Os fatores princi-
sociated with liberal attitudes were: age – under pais associados à atitudes liberais foram: a idade -
30 and over 45 years of age – experience with high abaixo de 30/acima de 45 anos - a experiência
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Department of maternal mortality rates due to abortion and ex- com altas taxas de mortalidade materna devidas
Anthropology, perience with legal abortion. ao aborto e a experiência com o aborto legal.
Goldsmiths-University of
Key words Abortion, Stigma, Conscientious ob- Palavras-chave Aborto, Estigma, Objeção de cons-
London. 8 Lewisham Way,
SE14 6NW London. jection ciência
ans01sd@gold.ac.uk
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De Zordo S

Introdução bora sua venda ao público seja proibida. A im-


pressão clínica é de que houve uma redução de
O Código penal brasileiro classifica o aborto (auto complicações graves pós-aborto. De fato, os co-
e heteroaborto) como crime contra a vida. Os eficientes de mortalidade materna caíram de 140/
únicos três casos nos quais pode ser praticado 100.000 nascidos vivos em 1990 a 75/100.000 em
legalmente por médicos são: risco de vida da ges- 2007 (-56%) e o aborto passou a ser a quinta
tante, gravidez resultante de estupro e, desde abril causa principal de mortalidade materna no País7.
de 2012, anencefalia. Nas últimas décadas a juris- Porém, alguns autores atribuem sequelas graves
prudência brasileira tem autorizado também a ao uso clandestino do misoprostol (sem acom-
interrupção de gravidez nos casos de malforma- panhamento médico), desde malformações fe-
ção fetal incompatível com a vida, mas até abril tais até a morte materna por rotura uterina8,9.
deste ano era preciso ter a autorização de um juiz. Na única pesquisa de abrangência nacional so-
Embora o Código Penal incrimine o aborto, no bre morbi-mortalidade materna, realizada nas
Brasil ele é amplamente praticado e dificilmente capitais brasileiras e no Distrito Federal em 200210,
punido segundo a Lei, mesmo em caso de morte destacaram-se os casos de Recife e, particular-
da gestante1,2. Porém, nos últimos anos o tema mente, de Salvador, onde, na década de 90, o abor-
do aborto, legal e ilegal, tem sido muito debatido to representava a principal causa de morte ma-
nas cortes brasileiras e também na mídia e na terna11,12. Em Salvador, a curetagem representa o
arena política. Uma clínica de planejamento fami- segundo procedimento cirúrgico mais realizado
liar no Mato Grosso, onde se faziam abortos clan- nos Hospitais maternidades públicos13 e o abor-
destinos, foi fechada pela polícia em 2008 e mais to provocado é a primeira causa da mortalidade
de cem pacientes foram indiciadas por esse cri- materna. Suas vítimas são principalmente ado-
me3. Em 2009, os médicos que realizaram um lescentes e mulheres jovens entre 15 e 24 anos,
aborto legal no Pernambuco numa criança de 9 negras, vivendo nas áreas periféricas de região
anos, estuprada pelo padrasto e grávida de gême- metropolitana14.
os, foram publicamente excomungados pelo ar- No que se refere ao aborto legal, poucos hos-
cebispo de Recife e Olinda4. Por fim, no ano pas- pitais oferecem este serviço (em Salvador apenas
sado, o tema da descriminalização e da legaliza- um). Porém, desde os anos 90 a Federação Bra-
ção do aborto foi o centro da última fase da cam- sileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO)
panha eleitoral presidencial, o que demonstra a e o Ministério da Saúde desenvolveram várias
importância política deste tema a nível nacional. ações para garantir o direito à interrupção da
Desde a democratização do País, no final dos gestação dentro do marco legal, em particular a
anos 80, representantes dos partidos de esquer- “Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos
da e do movimento feminista submeteram ao Agravos Resultantes da Violência Sexual contra
Congresso vários projetos de Lei visando descri- Mulheres e Adolescentes”15 e a Norma Técnica
minalizar e legalizar o aborto no Brasil. Porém, a sobre a “Atenção Humanizada ao Abortamen-
Igreja católica e algumas Igrejas evangélicas con- to”16.
seguiram sempre bloquear o debate no Congres- É muito difícil avaliar o impacto destas Nor-
so e na última década tem se multiplicado os pro- mas Técnicas sobre a formação dos profissio-
jetos de Lei visando modificar a Lei sobre aborto nais de saúde e a qualidade dos serviços de abor-
no sentido mais restritivo5. Apesar de ser crimi- to legal, porque poucos pesquisadores têm tra-
nalizado, o aborto induzido é um fenomeno co- tado do assunto no Brasil. A maioria dos estu-
mum. Os resultados da pesquisa nacional mais dos sobre as representações dos profissionais de
recente6, indicam que mais de uma em cada cin- saúde acerca do aborto tem sido realizada no
co mulheres brasileiras já fez aborto. Sendo esta Sul, no Sudeste ou no DF e tem tido como obje-
prática mais comum entre mulheres de menor tivo principal estudar a opinião dos médicos so-
escolaridade, enquanto não se observa uma di- bre a descriminalização e sua legalização.
ferença relevante na prática em função da crença Em 2003, Faundes et al. enviaram 14.320 ques-
religiosa. Na metade dos casos as mulheres usa- tionários para todos os médicos afiliados à Fe-
ram medicamentos para a indução do último brasgo para avaliar o conhecimento e as opiniões
aborto e em cerca de metade destes foi observa- de ginecólogos e de obstetras a respeito da legis-
da a internação pós-aborto. lação brasileira sobre aborto e 30% foram retor-
Desde 1990 vem crescendo no país a autoad- nados completos17. Apesar da taxa de respostas
ministração de misoprostol (conhecido como muito baixa, trata-se de um estudo importante,
Citotec no Brasil) para provocar o aborto, em- porque é o único estudo nacional sobre este tema.
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Dos médicos que participaram do estudo, 83,0% caso de anencefalia ou malformação fetal grave e
demonstraram ter um conhecimento adequado a maioria criticou a burocracia jurídica. Porém,
da Lei, mas só 15,3% tinham um conhecimento nem todos os médicos se declararam disponíveis
adequado dos documentos necessários para re- a realizar estes procedimentos, por causa de suas
alizar um aborto legal. Os jovens médicos de- convicções religiosas ou morais.
monstraram um conhecimento melhor da Lei. No Nordeste, o MUSA, o centro de pesquisa
Porém, os médicos mais velhos tinham um co- sobre mulheres e saúde do ISC (Instituto de Saú-
nhecimento mais adequado sobre documentos de Coletiva) da UFBA (Universidade Federal da
necessários para realizar um aborto legal, o que Bahia) têm recentemente finalizado um estudo
poderia indicar que este conhecimento é adquiri- etnográfico pioneiro sobre “Percepções e experi-
do através da prática clínica. A maioria dos mé- ências de usuárias do Sistema Único de Saúde, de
dicos tinha uma opinião liberal acerca de possí- profissionais e de gestores da saúde sobre o abor-
veis modificações da Lei brasileira. Porém, os to induzido em Salvador” em três Hospitais ma-
médicos do Sul e do Sudeste tinham opiniões ternidade de Salvador, e está atualmente desen-
mais liberais do que os médicos do Norte, os volvendo outro estudo sobre a morbi-mortali-
respondentes homens tinham opiniões levemen- dade e a atenção ao aborto no Nordeste.
te mais liberais do que as mulheres e os médicos O presente estudo comparativo, realizado
sem filhos ou com dois filhos no máximo tinham entre Setembro e Outubro 2009 em dois hospi-
opiniões mais liberais dos que tinham um maior tais de Salvador, pretende contribuir às pesqui-
número do que dois. sas qualitativas realizadas pelo MUSA sobre o
Poucos estudos qualitativos têm investigado, aborto induzido, visando examinar a experiên-
além da opinião e do conhecimento da Lei, a ex- cia e as representações dos profissionais de saú-
periência e as representações acerca do aborto de, e em particular dos ginecologistas-obstetras
dos profissionais de saúde. Em 1995 a antropó- do aborto previsto em Lei, analisadas em relação
loga Karen Giffin realizou uma pesquisa através e em contraste com as representações do aborto
de entrevistas com 151 médicos trabalhando em ilegal. Neste artigo se analisará, em particular,
quatro hospitais públicos no Rio de Janeiro18. A como elas são influenciadas de um lado pela Lei,
maioria deles considerava que o aborto era um pelo debate político e religioso sobre o aborto e
problema de saúde pública e defendia sua descri- pelas convicções políticas e religiosas individuais
minalização a fim de diminuir a morbi-mortali- dos profíssionais; do outro lado pelo treinamento
dade relacionada com esta prática. Ao mesmo e pela experiência clínica deles. Em linha com a
tempo, o aumento do acesso aos meios contra- literatura contemporânea sobre este tema21,22, se
ceptivos foi sublinhado como importante forma analisará também se e como o estigma do abor-
de prevenção do aborto. to influencia as escolhas profissionais e a prática
No começo dos anos 2000, Gilberta Santos clínica dos profissionais de saúde, em particular
Soares realizou um estudo qualitativo sobre as dos ginecologistas-obstetras.
representações dos profissionais de saúde sobre
o abortamento legal na Paraíba e no Distrito Fe-
deral. A maioria deles viviam um conflito cotidi- Método
ano muito forte entre a carga da influência religi-
osa e o comprometimento com a assistência. A A pesquisa apresentada neste artigo foi realizada
influência das convicçõoes morais e religiosas, através de questionários e entrevistas semiestru-
aponta a pesquisadora, comprometia, às vezes, turadas com 25 profissionais de saúde no Hos-
a qualidade da assistência, porque impedia a so- pital P, que é situado na área central da cidade e
lidariedade com as pacientes. Ao mesmo tempo: oferece um serviço de aborto legal, dos quais 13
“as experiências de atendimento às mulheres em eram ginecologistas-obstetras (7 mulheres/6 ho-
situação de violência sexual provocaram possi- mens; 3: 25-35 anos; 4: 35-45 anos; 6: 45-60 anos).
bilidades de mudança dos valores e a ressignifi- No Hospital F, que é localizado na periferia da
cação da prática dos profissionais de saúde”19. cidade e não oferece este serviço, foram entrevis-
Outro estudo qualitativo sobre as represen- tados 20 profissionais de saúde, dos quais 9 gi-
tações dos profissionais de saúde acerca do aborto necologistas-obstetras, incluindo a Diretora re-
seletivo foi realizado em 2005 num hospital pú- cém eleita que tinha uma longa experiência de
blico de referência em Santa Catarina20. Todos os trabalho no hospital (5 mulheres/4 homens; 4:
profissionais de saúde entrevistados (8) se decla- 25-35 anos; 5: 45-60 anos). Além dos ginecolo-
raram favoráveis à interrupção de gravidez em gistas-obstetras, os outros profissionais de saú-
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de entrevistados foram: anestesistas, enfermei- vai trabalhando com isso... se necessário a gente
ras, auxiliares de enfermagem, assistentes soci- faz outros atendimentos...
ais, psicólogas e as diretoras dos Hospitais. Feita Nas entrevistas, contaram as psicólogas, às
exceção por aqueles que estavam de férias ou de vezes emergiam conflitos entre mães e filhas em
licença prêmio ou maternidade, todos os gineco- torno da gravidez ou da decisão de interrompê-
logistas-obstetras foram convidados a partici- la e acontecia, embora raramente, que uma ado-
par seja pela pesquisadora principal e/ou sua as- lescente decidisse não interromper a gravidez.
sistente de pesquisa, seja através de cartazes pen- Graziella, outra psicóloga, acrescentou: nosso
durados no quarto de descanso deles. Porém, só objetivo não é dizer se é verdade ou mentira, ou
40% aceitou participar. Uma minoria de médicos seja se a mulher solicitando um aborto legal tem
recusou por causa do tema da pesquisa, demasi- sido estuprada, como afirmaram alguns gineco-
ado sensível para eles. A maioria alegou falta de logistas-obstetras, mas é: avaliar se ela tem con-
tempo, mas recusou também ser entrevistado dições psicológicas para passar pelo processo de abor-
fora do hospital em horários mais convenientes, tamento legal [...]. A gente dá informações de como
o que poderia indicar uma resistência a se con- esse abortamento é feito... para que ela tenha con-
frontar com o tema da pesquisa. Vale considerar dições de suportar.
também que a pesquisa teve uma duração mais A maioria dos ginecologistas-obstetras en-
curta do que tinha sido planejado (um mês em trevistados no Hospital P consideravam impor-
vez de três), devido ao longo processo de avalia- tante não só que estas pacientes passassem pela
ção e aprovação do projeto de pesquisa pela entrevista com a assistente social e a psicóloga,
CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pes- mas também que cada caso fosse avaliado pelo
quisa). É possível que em 3 meses se tivesse cole- comitê de ética do hospital. O objetivo deste pro-
tado um número maior de entrevistas. cesso era, na opinião deles, verificar: 1- se tinham
as indicações para uma interrupção legal da gra-
videz; 2- se tinha alguma condição clínica que
Resultados impedia o procedimento, e, por fim, 3- se a mu-
lher estava segura, se ela queria abortar. Só uma
A experiência e a opinião dos profissionais minoria de ginecologistas-obstetras, os que ti-
de saúde acerca do aborto legal e da Lei nham uma atitude muito conservadora acerca
do aborto (3), falaram que era preciso confir-
No Hospital P, 89 mulheres vítimas de estu- mar se havia tido um estupro ou não. Como
pro, grávidas, pediram para interromper a gra- explicou um deles, católico praticante e contrário
videz entre 2002 e 2008, mas só 49 conseguiram ao aborto sem nenhuma exceção: Elas podem
um aborto legal (dados fornecidos à pesquisa- mentir... tanto que você não pode fazer [...] tem
dora pela Diretoria do Hospital P em outubro que passar pela comissão de ética... ser avaliado...
2009). Em muitos casos, quando as mulheres julgado... Outra ginecologista, ela também a fa-
solicitavam o aborto ou quando o comitê de éti- vor de uma Lei mais restritiva, contou um caso
ca do hospital aprovava o pedido delas, o prazo no qual ela tinha tentado convencer a paciente a
legal para o abortamento já tinha decorrido. não abortar: Ela tinha tido na verdade já relações
De acordo com as assistentes sociais e as psi- sexuais outras vezes com a pessoa... A mãe insistia,
cólogas, estas mulheres, na maioria dos casos porque não queria. Eu não concordava, tentei con-
adolescentes ou mulheres jovens, são encaminha- vencer a filha e a mãe, não se dava para entender o
das por instituições que se ocupam de mulheres que a filha queria. Neste caso não era bem claro se
vítimas de violência e oferecem assistência psico- tinha sido estupro por uma pessoa conhecida. Era
lógica. Porém, quando chegam ao hospital elas mais uma gravidez indesejada do que estupro. Ela
devem passar por outra entrevista com a assis- foi abortada, com 5 meses: foi quase um parto. Esta
tente social e com a psicóloga. Por quê? ginecologista, espírita, era contrária ao aborto
Uma das psicólogas, Janaina (todos os no- também em caso de estupro. Porém, ela acres-
mes são fictícios), explicou: a gente vê qual o esta- centou: Vendo pelo lado religioso não concordo,
do emocional dela [...] e também os recursos psí- mas se fosse comigo eu gostaria de fazer um aborto.
quicos dela para enfrentar essa situação... e a pos- A maioria dos ginecologistas-obstetras do
sibilidade de interrupção dessa gestação... a gente Hospital P concordava com a Lei atual sobre o
procura saber com elas qual a decisão delas... algu- aborto, e acrescentou que o aborto deveria ser
mas já vem com uma decisão tomada [...] e outras legalizado também em casos de malformações
vem ainda um pouco em dúvida... então a gente fetais graves. Seis dos 13 ginecologistas entrevis-
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tados (2 mulheres e 4 homens) acrescentaram oferece um serviço de aborto legal, tinham pou-
que se a mulher não quer continuar a gravidez co conhecimento sobre estes documentos. Só
ela deveria poder realizar um aborto legal: eram uma minoria, em particular os ginecologistas que
favoráveis, então, à legalização do aborto. A jà tinham assistido ou realizado abortos legais,
maioria deles tinha mais de 45 anos e 4 (3 ho- conhecia as Normas Técnicas que esclarecem que
mens e uma mulher) tinham já realizado um a palavra da mulher estuprada é valida e não são
aborto legal no hospital. Entre os outros, uma precisos outros documentos. Estes médicos sa-
jovem ginecologista, que tinha já realizado abor- biam também que o Ministério da Saúde tinha
tos legais, era favorável à legalização em casos de promovido a humanização não só do parto
graves malformações fetais e problemas psico- (mencionado pela maioria dos profissionais de
lógicos da mulher; 3 (2 mulheres que tinham saúde entrevistados), mas também do aborto.
menos de 35 anos e um homem que tinha mais
de 55 anos) concordavam com a Lei mas não Pacientes legítimas ou clandestinas?
tinham realizado abortos legais, e os outros 3 (2 O estigma da ilegalidade
mulheres e um homem cuja idade variava entre e o preconceito dos médicos
37 e 40 anos) eram favoráveis a uma Lei mais
restritiva por suas convicções religiosas. A maioria dos profissionais de saúde do Hos-
No Hospital F, que não oferece um serviço de pital P considerava essencial o suporte psicológi-
aborto legal, só 3 dos 9 ginecologistas entrevista- co oferecido às mulheres que solicitavam um
dos (2 mulheres e um homem, todos com mais aborto legal, não só porque elas tinham sido es-
de 45 anos de idade) declararam que o aborto tupradas, mas porque o procedimento utilizado
deveria ser legalizado se a mulher não quer con- era, tratando-se, na maioria dos casos, de gravi-
tinuar a gravidez, mas um deles acrescentou que dez de mais de 12 semanas, uma indução de tra-
cada caso deveria ser avaliado e justificado. Entre balho de parto (misoprostol para expelir o feto
os outros, uma ginecologista de 57 anos falou e, depois, curetagem em anestesia geral), o que
que o aborto deveria ser legalizado também em pode causar muito sofrimento. Ninguém menci-
caso de mulher HIV positiva e 2 ginecologistas onou a técnica alternativa a indução – dilatação
(um homem e uma mulher de 28 e 29 anos) de- & evacuação cirúrgica em anestesia geral – que
clararam que o aborto deveria ser legalizado, o reduz muito o sofrimento da mulher. Em con-
primeiro em caso de anencefalia, e a segunda se trapartida, em casos de abortos induzidos in-
uma mulher não quer continuar aquela gravi- completos, o suporte das psicólogas não era
dez. Porém, esta jovem ginecologista acrescentou considerado essencial (a técnica utilizada era, nes-
que não deveria ser permitido em caso de falên- tes casos, curetagem em anestesia geral). As psi-
cia contraceptiva ou de problemas financeiros, cólogas do Hospital P eram chamadas para aten-
porque o aborto seria utilizado como método der as mulheres que tinham induzido o aborto
contraceptivo. Por fim, 2 ginecologistas (um ho- só se ela (a mulher) está desesperada, explicou
mem e uma mulher de 32 e 33 anos), declararam Graziella, se recusa a ser tocada... se nega a fazer
concordar com a Lei atual, e outro, de 50 anos, se exame... quando é muito jovem e a equipe acha
declarou contrário a legalização mas afirmou que pode ser um caso de violência...
entender as mulheres que decidem interromper Casos de violência contra as mulheres grávi-
a gravidez em caso de estupro e de graves mal- das foram relatados nos dois hospitais em parti-
formações fetais incompatíveis com a vida. cular pelas assistentes sociais. No Hospital F
Nos dois hospitais a idade – acima de 45 anos morreu uma mulher grávida que tinha sido es-
– e a experiência com o aborto legal emergeram pancada pelo parceiro. Foram relatados também
como os fatores mais fortemente associados com vários casos de mulheres grávidas por estupro
uma atitude favorável à legalização do aborto que chegavam ao hospital só na hora do parto
entre os ginecologistas-obstetras, enquanto o ou depois de ter induzido um aborto em casa. A
sexo dos respondentes ou o estado civil e o nu- maioria dos profissionais de saúde achavam que
mero de filhos não emergeram como fatores de- estas mulheres não tinham solicitado um aborto
terminantes. No que se refere ao conhecimento legal por vergonha ou medo. Como relatou uma
dos documentos necessários para poder realizar ginecologista-obstetra: muitas vezes esse homem
abortos legais, 50% dos ginecologistas entrevis- que estuprou ela é o pai... é um parente... é um
tados nos dois hospitais achavam que uma or- primo... é um padrasto... eu fiz parto de uma de
dem judicial devia ser sempre exigida. Em parti- doze anos [...] ela foi seduzida pelo padrasto... ti-
cular, os ginecologistas do Hospital F, que não nha relações com ele desde nove anos de idade... O
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final dessa história eu não sei... o fato é que ela não As mulheres que chegavam com abortos in-
reconhecia o filho... ela não teve uma relação mãe completos no hospital eram consideradas clan-
e filho... ela não queria nem ver a criança. Outra destinas por duas razões principais, citadas pelos
ginecologista relatou o caso de uma mulher lés- ginecologistas: 1- porque ocupavam os leitos que
bica que tinha sofrido violência por um grupo de deveriam ser reservados às mulheres grávidas, e
homens da rua onde morava e tinha ficado grá- 2- porque a missão da obstetrícia é salvar a vida,
vida. Depois de solicitar um aborto legal ela ti- ou, como falou um ginecologista: cuidar dos fetos
nha desistido porque tinha sofrido ameaças pelo vivos. Porém, a maioria dos médicos descreveu as
grupo. mulheres que induziam o aborto como vítimas
A maioria dos profissionais de saúde entre- de difíceis condições econômicas, sociais e famili-
vistados considerava moralmente justificável a ares, o que justificava parcialmente a decisão de-
decisão de abortar das mulheres “vítimas” da vi- las, e nenhum ginecologista tinha recusado ou
olência masculina, ou seja, em caso de estupro, recusaria atender uma paciente com sintomas
mas nem sempre em caso de gravidez indeseja- graves. As assistentes sociais e algumas auxiliares
da. Ainda existe um preconceito, falou uma jo- de enfermagem mostraram ter mais empatia com
vem ginecologista do Hospital P, aquela questão estas pacientes. Uma auxiliar de enfermagem fa-
de julgar... de ver de forma... superficial aquilo ali... lou: eu passei por uma gravidez não planejada e
eu confesso que ás vezes eu também penso como meu marido foi embora: foi difícil mesmo.
elas são capazes disso... mas eu paro... porque eu Kumar et al.21 afirmaram que a mulher que
não tenho que fazer isso... mas eu acho que grande induz o aborto muitas vezes é estigmatizada, na
parte dos médicos julgam as pacientes... inclusive família, na comunidade ou no hospital/clínica
eu [...] tento não fazer para não prejudicar a mi- onde ela é atendida, porque transgride toda uma
nha relação com elas... mas eu acho que ainda são série de normas de gênero: ela é a demonstração
vistas desta forma clandestina. Os médicos mais concreta que nem todas as mulheres tem aquele
jovens acusavam em particular os mais velhos “instinto maternal” que as levaria a cuidar dos
de serem preconceituosos e questionavam seus seres sociais mais vulneráveis – a criança, e, por
próprios preconceitos. Porém, a maioria dos extensão, o feto, mas também os doentes e os
médicos, incluindo os jovens, fazia uma clara dis- velhos – que a maternidade não é sempre central
tinção moral entre as candidatas ao abortamen- na vida de uma mulher e que a sexualidade femi-
to legal – pacientes “legítimas” -– e as mulheres nina não é sempre finalizada à reprodução.
que chegavam ao hospital com um abortamento A maioria dos profissionais de saúde entre-
incompleto, “clandestinas”. vistados, embora considerasse a experiência da
Alguns médicos denunciaram a atitude puni- maternidade muito importante na vida das mu-
tiva que alguns colegas ou auxiliares de enferma- lheres, considerava as mulheres pobres que ti-
gem tinham com as pacientes que tinham indu- nham muitos filhos e as mulheres jovens e as ado-
zido o aborto, o que fazia com que elas fossem lescentes que ficavam grávidas irresponsáveis. A
esquecidas e deixadas sangrando durante horas. prioridade, para as mulheres jovens, pobres, de-
Vários médicos relataram o caso de uma mulher via ser o estudo, finalizado à procura de um bom
que foi “esquecida” e morreu em outra unidade trabalho. Elas deviam, então, usar métodos con-
de saúde. A ginecologista que atendeu esta paci- traceptivos eficazes e assumir a responsabilidade
ente contou: eu presenciei aqui nesta maternida- da contracepção sozinhas porque, como falaram
de... uma situação de uma moça... me parece... de muitos, os homens são machistas e não cuidam
vinte e três anos... ela já estava gestante de umas da contracepção. Sendo vários métodos anticon-
vinte semanas... usou vinte e cinco comprimidos ceptivos oferecidos de graça pelos centros públi-
de cytotec... por uma orientação da amiga... e pro- cos de saúde, uma gravidez não desejada não era,
vavelmente ela rompeu a bolsa... e ficou em casa então, considerada totalmente justificável.
[...] dois... três dias... veio pra cá... uma hora da
tarde... isso foi uma falha muito grande do siste- A objeção de consciência
ma... só foi atendida umas seis horas [...] e ela já
estava em pré-choque séptico... ela desmaiou... bai- Ao contrário do aborto induzido, o aborto
xou a tensão [...] quando eu cheguei no plantão... por estupro era moralmente justificável na opi-
encontrei essa paciente em choque séptico [...] ela nião da maioria dos profissionais de saúde en-
foi transferida daqui... uma hora da manhã [...] trevistados. Porém, muitos médicos se pergun-
chegou na maternidade referência... e morreu cin- tavam: e se elas mentirem? Embora a maioria deles
co horas da manhã... não se definisse religiosa praticante e não consi-
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derasse o aborto um crime ou um pecado, esta porque ela vai atingir o objetivo dela... ela não vai
incerteza e o medo de transgredir a Lei levava levar isso adiante.
muitos médicos a se recusarem a realizar abor- O Dr. Arthur, que realizava aborto legais, fa-
tos legais. lou, com relação à objeção de consciência: Exis-
A necessidade de proteção legal era percepida tem dois discursos aí... o discurso hipócrita da soci-
de maneira mais forte pelos poucos médicos do edade... que todos têm [...] o aborto provocado é
Hospital P que realizavam os abortos legais ou uma situação que não deve acontecer [...] mas não
tinham fornecido assistência aos colegas durante poderia acontecer para o outro... quando isso acon-
o procedimento (5). Alguns meses antes do início tece para mim... aí poderia [...] se for para minha
desta pesquisa, este hospital tinha sido invadido mulher... se for para minha filha... Além da dupla
por um grupo de políticos e ativistas espíritas e moral, na opinião do Dr. Arthur, que dava aula
católicos que tentaram convencer uma adolescente aos residentes, outros fatores influenciavam as
grávida por estupro a não abortar e impedir que escolhas profissionais dos ginecologistas. A escola
os médicos realizassem a cirurgia. A Diretora do baiana de medicina, explicou, é uma escola conser-
hospital chamou os representantes da justiça e da vadora [...] Na UFBA você tem uma diversidade
administração local para acalmar o grupo e pro- maior de cursos... e o contato de pessoas de cursos
teger a adolescente e os médicos. Entretanto uma diferentes [...] como aulas optativas [...] favorece
ecografia mostrou que o feto jà estava morto, uma troca... uma mudança de pensamento... uma
então o abortamento tinha que ser praticado com ampliação do pensamento. A importância do de-
urgência. Este incidente tinha provocado muita bate na Universidade e durante o treinamento na
ansiedade e estresse entre os médicos e os outros residência emergiu claramente no relato de alguns
profissionais de saúde envolvidos. jovens ginecologistas. Há preceptores da gente, ex-
O resultado do medo de possíveis denúncias plicou uma jovem ginecologista, que falam que
era que todos os pedidos de aborto legal em caso não fazem aborto legal... e dizem que só faz se for
de estupro fossem analisados pelo comitê de éti- caso de risco de vida. Porém, acrescentou ela: se a
ca do hospital, o que implicava uma espera de paciente tem uma indicação de aborto legal... por-
uma semana ou mais. Como observaram alguns que foi estuprada... ou se o bebê oferece algum risco
ginecologistas-obstetras, o tempo de espera às de vida para ela... eu faria... não me recusaria não.
vezes era tão longo que a gravidez vencia o prazo Na opinião do Dr. Arthur, a maioria dos jo-
estabelecido pela Lei. Outro problema era que vens ginecologistas são tendencialmente conser-
estas mulheres tinham que esperar, depois de se- vadores porque eles mantêm uma resistência a tudo
rem internadas, por um médico que não se recu- que for novo e são influenciados pelos médicos e
sasse a praticar o aborto. Ás vezes o plantão in- preceptores mais velhos, a maioria dos quais são
teiro recusava realizar o procedimento. É como o conservadores também. Os resultados desta pes-
jogo da peteca explicou uma obstetra espírita: a quisa indicam algo parcialmente diferente: cerca
paciente subia para o centro cirúrgico e descia 40% dos ginecologistas com menos de 35 anos
para a enfermaria porque ninguém queria reali- eram favoráveis a uma Lei mais liberal, em parti-
zar o aborto. Esta obstetra era contrária ao aborto cular a legalização do aborto em casos de malfor-
também em caso de estupro. Porém, quando se mações fetais, ou de problemas psicológicos da
deu conta da longa espera que as mulheres estu- mulher; e 60% concordavam com a Lei atual. A
pradas, grávidas, tinham que enfrentar, ela deci- maioria deles não se declarou contrária à legaliza-
diu fazer abortos legais. Eu já tive muita polêmi- ção do aborto por suas convicções religiosas ou
ca na minha cabeça, explicou, eu sou espírita... morais, mas porque achava que haveria uma epi-
mas hoje eu faço [...] eu só estou sendo um instru- demia do aborto, caso fosse legalizado. Os jovens
mento... é uma decisão dela... não é uma decisão médicos tinham um melhor conhecimento da
minha... eu procuro não julgar [...] porque o que é epidemiologia do aborto, o que poderia sugerir
que acontece... a paciente vem... aqui é uma refe- que o ensino neste campo melhorou, ou que estes
rência... eu trabalho aqui... a paciente já vem toda dados circulam mais na mídia. Ao mesmo tempo
orientada... como essa daí... a minha colega não eles, como também a maioria dos outros profis-
faz... então se eu não fizesse ela ia descer para en- sionais de saúde entrevistados, não sabiam que
fermaria... aí no outro dia ela subia... e aí se o nos países onde o aborto foi legalizado a taxa de
médico faz... tudo bem... começa a indução... se o morbi-mortalidade materna e de abortos tinha
médico não faz... desce.... a paciente já está passan- diminuido. Isso poderia ser uma consequência
do por uma situação extremamente desconfortá- da falta de um debate aberto sobre aborto nas
vel... e aí a gente faz piorar a coisa... faz prolongar... Faculdades de Medicina.
1752
De Zordo S

A maioria dos obstetras entrevistados nos da paciente este deve ser real e iminente. Ao mes-
dois hospitais, incluindo os jovens, tinha visto mo tempo, muitos médicos, incluindo aqueles
pelo menos uma mulher morrer de aborto indu- contrários à legalização do aborto, se queixaram
zido através de manipulação ou, mais raramen- da falta de debate sobre este tema e afirmaram
te, de autoadministração de citotec. Porém, ape- que um treinamento e uma discussão interna
nas 1/4 deles sabiam que o aborto é a primeira aberta sobre o aborto legal seria útil para evitar o
causa de mortalidade materna em Salvador. Os sofrimento e o constrangimento dos médicos que
médicos acima de 45 anos tinham presenciado são contra e para oferecer um serviço melhor a
mais de uma morte por aborto clandestino, em nossas pacientes, não só às estupradas, mas tam-
particular antes que o citotec se tornasse o meto- bém às que induziram abortos clandestinos.
do abortivo por excelência, e eram a favor da
legalização do aborto para salvar a vida das
mulheres pobres, que os realizam de forma inse- Conclusões
gura. Porém, nem todos estariam dispostos a re-
alizar procedimentos abortivos caso fossem lega- Esta pesquisa indica que os fatores que mais in-
lizados, em particular os médicos homens. Ne- fluenciam a prática clínica e as representações dos
nhum deles se definiu religioso praticante. Porém, ginecologistas-obstetras entrevistados acerca do
um deles, que praticava abortos só em casos de aborto são: 1- a criminalização do aborto e o
risco de morte materna, falou: Deus ainda manda medo de serem denunciados; 2- a estigmatização
em mim [...] eu sinto que tenho que reformar de do aborto por certos grupos religiosos, interna-
acordo com essa questão... mas ainda não me sinto lizada pelos proprios médicos; 3- o treinamento
a vontade para fazer essa reforma. Outro, que fazia em obstetrícia e a falta de uma formação boa no
abortos também em caso de estupro, explicou campo da epidemiologia da morbi-mortalidade
que faria abortos legais, caso mudasse a Lei, mas materna e do aborto; 4- as representações dos
só se não tivesse outro médico para fazer: isso não médicos acerca das relações de gênero e do com-
é uma situação tranquila para mim [...] não é uma portamento sexual, contraceptivo e reprodutivo
questão religiosa... não é um temor a Deus... não é de suas pacientes. Estes fatores, e em particular
uma questão filosófica... eu nunca consegui definir os primeiros três, levam muitos ginecologistas a
isso com clareza.... Por fim, um colega dele, que se recusarem a realizar abortos legais.
não tinha realizado ainda abortos legais porque Porém, apesar da alta taxa de objeção de cons-
trabalhava em outro serviço do hospital, mas era ciência, a maioria dos médicos do Hospital P se
favorável a legalização do aborto, explicou: posso declarou favorável à Lei atual e acrescentou ser
dizer... que eu me sinto mal... interrompendo uma favorável à legalização do aborto em casos de
vida... assim se eu tivesse que matar um animal anencefalia e malformações fetais graves. Quase
para me alimentar... eu poderia até fazer... mas não a metade dos ginecologistas entrevistados neste
me sentiria bem [...] agora... se você me perguntar hospital e 1/3 dos ginecologistas que trabalha-
quando eu considero vida... um embrião [...] se é vam no outro hospital afirmaram ser favoráveis
até dez semanas [...] até doze... se tem consciência à legalização do aborto. A idade – abaixo de 30/
ou não tem consciência... essa é uma discussão que acima de 45 anos – a experiência com altas taxas
não acaba nunca... e eu não quero entrar nela... de mortalidade materna devidas ao aborto e à
porque na verdade é uma questão de como eu me experiência com o aborto legal foram os fatores
sinto... mas eu não julgo essas mulheres... e nem as principais associados às atitudes liberais acerca
considero como pecadoras. dessa prática. Na opinião dos médicos favorá-
A partir da 12ª semana se formam os ossos e o veis à legalização, deveria ser legalizado para não
feto começa a ter a aparência de uma criança, discriminar as mulheres pobres que não têm aces-
apontaram vários médicos. Por esta razão eles so a todos os métodos anticonceptivos, não con-
tinham dificuldade a realizar abortos legais e a seguem sustentar muitos filhos e não podem
não julgar as mulheres que induziam abortos em pagar por abortos seguros em clínicas clandesti-
idade gestacional avançada. Só uma minoria dos nas. Estes argumentos são utilizados também
ginecologistas entrevistados sabia que, de acor- pelo movimento feminista e pelos políticos de
do com as Normas Técnicas e com o Código de esquerda para defender sua legalização. Isso de-
Ética médica, os médicos podem se recusar a re- monstra que as campanhas a favor da legaliza-
alizar um aborto previsto em Lei só se tiverem ção tem influenciado a opinião dos médicos so-
um colega disponível a fazer o procedimento, e bre o assunto, como apontei também em outro
muitos apontaram que em caso de risco de vida artigo23. Porém, nem todos estariam disponíveis
1753

Ciência & Saúde Coletiva, 17(7):1745-1754, 2012


a realizar abortos legais caso o este fosse legaliza- expressaram mais dúvidas com relação às con-
do. Além da religiosidade, os principais fatores sequências da sua legalização para os serviços e
associados com a indisponibilidade para os rea- para eles mesmos. Tudo isso indica que seria pre-
lizar e com atitudes conservadoras em relação ciso um debate mais aberto sobre este tema nas
sua legalização foram, respectivamente: 1- o mal faculdades e nos hospitais.
estar, desconforto provocado por um ato finali-
zado a interromper uma vida, considerado em
contradição com a missão da obstetrícia, que seria:
cuidar dos fetos vivos; 2- o medo de uma epide-
mia de aborto e da banalização do aborto, caso o
este seja legalizado.
Os médicos mais jovens tinham uma atitude
liberal, em geral, com relação ao aborto, e se ques- Agradecimentos
tionavam acerca da atitude estigmatizante dos
colegas e deles mesmo com relação às mulheres A autora agradece o ISC (Instituto de Saúde
que induziam abortos ilegalmente. Eles mostra- Coletiva) da UFBA - Salvador da Bahia, e em
ram também ter um melhor conhecimento da particular as professoras Estela Aquino e Greice
epidemiologia do aborto do que os médicos com Menezes, que deram suporte a esta pesquisa, e
mais anos de experiência. Ao mesmo tempo, eles Fábia Silva de Santana, assistente de pesquisa.

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Artigo apresentado em 31/12/2011


Aprovado em 10/02/2012
Versão final apresentada em 19/02/2012

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