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Mistura enquanto criatividade: restrições e irreduções na encantaria amazônica1

Kauã Vasconcelos2

“Nem tudo que se ajunta se mistura”


Antônio Bispo

1. Introdução
O encontro entre ameríndios e descendentes de povos africanos na região norte do
Brasil mobilizou seus estudiosos a enfrentar questões como a pouca visibilidade dada a
presença negra e sua contribuição para a cultura local. Roger Bastide, sobre esse encontro,
acredita que “não se produziu uma fusão entre a tradição africana importada e a tradição
indígena local e sim uma justaposição” (Bastide, 1971:304). Essas tradições justapostas
(distintas em várias oposições pelo autor), se aproximam por uma afinidade não só de destino
– este que parece pesar sobre a mão de seus algozes colonizadores -, mas também pela “busca
apaixonada pelo êxtase” que parecem compartilhar em suas práticas religiosas. Muito do que
a ideia de “sincretismo” encobre passa por sua parca criatividade em dar conta de buscas
apaixonadas como essa. Encontros singulares, acontecimentos, bifurcações que tangenciam
existências partidas e lhes encaminham novas forças.
Esse trabalho busca criar um terreno menos míope a esse tipo de perspectiva na
tentativa de compreender criativamente as “misturas” operadas por esse encontro. Mistura
aqui está empregada de uma forma diferente do sentido dado por Antônio Bispo (2015), como
um apagamento das diferenças quando juntas. Aqui ela aparece em sua forma associativa de
criação. Aqui as misturas confluem, para dizer como Bispo, em suas intensidades, dando vida
a outros rios de experiência.

1
Trabalho final da disciplina Políticas, Cosmologias e Cosmopolíticas Comparadas ministrada por Márcio
Goldman e Vladimir Moreira no PPGAS/MN, UFRJ, no segundo semestre de 2018.
2
Aluno de mestrado no PPGAS/MN, UFRJ.

1
Recolocam as narrativas da “mestiçagem” e do “sincretismo” na construção da
identidade nacional sob um novo aspecto, onde o encontro entre africanos e seus
descendentes e os ameríndios pode emergir em sua singularidade.
A pergunta é o que se passou? Que desdobramentos esse encontro provocou? Nosso
interesse está muito mais ligado aos efeitos que as causas. É aqui que as religiosidades como
a encantaria nos ajudam a pensar. Nos oferecem uma outra imagem dessa mistura, menos
redutora que a do nation building, mantendo seu valor comparativo não apenas para o campo
dos estudos de religiões de matriz africana ou ameríndia e seu dito “sincretismo”, mas para
o próprio debate acerca da “mestiçagem”.
Assim, não acredito ser possível dar conta ou explicar o que cada associação é capaz,
cristalizar uma prática. Dizer isso é cesar seu processo criativo, é encerrar seu
desenvolvimento evolutivo enquanto ideias intuitivas, especulativas. Como toda ciência, a
dos encantados (talvez mais acentuadamente) precisa de um “desconhecido” fundamental
(Goldman, 2016), de um elemento oculto para precaver seus praticantes, sendo essa
precaução a própria força analítica de seus diagnósticos. Para que possam operar suas
associações dedutivas dos casos, como na jurisprudência do direito ou na experiência de um
clínico, podendo ampliá-las por novas e ainda desconhecidas situações.

2. Sincretismo e mestiçagem na construção nacional


Colocados pelo prisma da construção de uma ideologia nacionalista, o “sincretismo”
e a “mestiçagem” são argumentos mobilizados tanto positivamente quanto negativamente no
decorrer da concepção do Brasil enquanto país de diferentes raças. Em um primeiro momento
a configuração racial mestiça da população brasileira, advinda do contato entre ameríndios,
colonizadores europeus e africanos e seus descendentes, é vista pela vértice do triangulo em
que o branco passa a se degenerar em contato com as outras duas raças, em especial com os
negros. Políticas de imigração de mão de obra européia, unidas e estimuladas por pseudo
ciências eugenistas da virada do século XIX para o XX, proporcionaram um acentuado
discurso racista que via na necessidade de superação da configuração racial da população na
época, de maioria não branca, a única saída para a construção do Estado-nacional aos moldes
da civilização ocidental européia.

2
Esse discurso só dará lugar a uma outra concepção do processo de mestiçagem nos
anos 1930, onde o Estado Novo irá abandonar parcialmente o conceito de raça para construir,
sob moldes “culturalistas”, uma concepção de povo brasileiro fundado na miscigenação e
não em uma luta contrária a ela. Essa miscigenação seria a resultante do processo de contato
entre raças, que se daria de forma harmônica, apaziguando os conflitos entre as relações
assimétricas dessas populações. Dos intelectuais responsáveis por essa narrativa, nenhum
ficou tão marcado como Gilberto Freyre, sendo lembrado como quem melhor formulou e
defendeu o que ficou conhecido como “democracia racial”. Os efeitos da obliteração do
racismo institucional desse pensamento estão presentes até hoje.
O cenário em que os debates sobre as ações afirmativas para cotas étnico-raciais nas
universidades começou a ser desenhado apenas nos anos 1970, tornando-se mais evidente
apenas nessas duas primeiras décadas do século XXI. Essas conquistas são fruto de uma dura
crítica a essa imagem harmônica das relações raciais no Brasil feita por militantes do
movimento negro e acadêmicos. Se opondo a narrativa “democrática” dessas relações, que
negava o racismo, buscaram colocar em evidência uma agenda antirracista para fazer frente
a ideologia nacionalista e lutar contra o racismo institucional.
Abdias do Nascismento, escritor e ativista dos direitos civis da população negra,
aponta, em seu livro sobre o genocídio do negro brasileiro (2016), para a armadilha presente
no argumento das “contribuições africanas a cultura brasileira”, como se essa cultura fosse
anterior, e para a qual o negro precisaria de uma concessão de direito a existência passando
por uma necessária conversão ao seu modo de existência. Sua aceitação, a posteriori, está
atrelada a sua contribuição à algo que não foi criado por ele, a nação brasileira, mas que pede
dele não só uma parcela de sua “riqueza cultural” (a que melhor servir aos gostos mais
civilizados), mas também sua adoção a esse regime, deixando para trás qualquer resquício de
sua ancestralidade. Abdias, citando Nelson Rodrigues, aponta a diferença sensível do tipo de
racismo aqui operado pelo projeto de embranquecimento da população: “Não caçamos pretos
no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior.
Nós o tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que
fermenta em nós, dia e noite” (Nascimento, 2016:92).

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Cordialidade e desprezo como a face de uma mesma moeda, aproxima-se daquilo que
Isabelle Stengers chamou de “maldição da tolerância”, mostrando como a tão prezada
tolerância do ideário democrático racionalista ocidental é apenas a outra face da intolerância.
São dois aspectos que, unidos a indiferença, negam a legitimidade das práticas dos outros,
aceitando-as apenas enquanto crenças e erros – já superadas por um “nós” moderno que
enuncia a arrogância universalista (Barbosa Neto e Goldman, 2017).
Os argumentos vinculados a perpetração da unidade do poder e a construção
ideológica do Estado-nação buscavam impossibilitar debates sobre afirmações raciais, por
seu perigo subversivo e divisionista da sociedade (ver Nascimento, 2016). A “paz sem voz”
da harmônica “democracia racial” brasileira se sustentava pela neutralização justamente de
um debate sobre questões raciais. O único privilégio permitido aos negros, dizia Abdias, era
o de se tornarem, duplamente, brancos, em seus aspectos internos e externos (Nascimento,
2016:111).
Sobre esse mesmo prisma, o debate sobre o “sincretismo religioso”, se pautou por
uma fundição “natural” das religiões africanas com a religião católica, como se esse encontro
tivesse se dado em um clima fraterno de compreensão recíproca. Bastide demonstrou, ao
contrário, a necessidade dos descendentes de africanos de protegerem suas crenças das
tentativas de destruição dos poderes dominantes (Nascimento, 2016:133). O catolicismo
detinha o monopolólio das práticas religiosas enquanto religião oficial do Estado e o
“sincretismo”, visto como técnica de resistência por muitos praticantes das religiões de matriz
africana, era tido como herético e pagão por diversos setores da Igreja.
Ai se apresentam duas formas distintas de lidar com a diferença, o que a “religiosidade
afro-brasileira”, para colocarmos como José Carlos dos Anjos, nos apresenta é uma lógica
própria de conecção entre as diferenças, e não sua dissolução como na “mestiçagem” ou no
“sincretismo”. Ao apresentar a imagem da encruzilhada, característica da maioria dessas
religiosidades, o autor coloca em evidência uma outra forma de relação, uma que se dá pelas
intensidades em contato. Com isso, o debate do contato entre povos no Brasil se apresentaria
de maneira singular, sem passar pela essencialização nem pela desracialização, ao mesmo
tempo dessencializados mais racializados. “Essa é a equação, paradoxal aos olhos

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demasiadamente ocidentalizados, que não é sequer cogitada nas areanas de reconstrução da
identidade nacional” (Anjos, 2008:83).

3. Amazônia indígena e a presença do negro no norte


A presença dos descendentes de africanos no norte do Brasil, em estados como
Amazonas e Pará, atraiu o interesse de diversos pesquisadores que buscaram “desmontar a
tese da Amazônia essencialmente indígena” (Veras, 2015:7-8), e assim fazer jus a influência
da cultura afro na região.
Em um artigo clássico de 1976, Napoleão Figueiredo apresenta alguns dados sobre
os contingentes étnicos (raciais) formadores da sociedade brasileira, com especial atenção a
presença dos africanos na Amazônia trazidos pelo empreendimento colonial do tráfico de
escravos. A leitura desse processo, diz o autor, pode ser feita de duas perspectivas. Uma de
visão global, onde os encontros são vistos como parte da fundação de uma sociedade
brasileira de forma geral, ou, uma outra alternativa, é olhar os encontros pelo prisma
etnográfico do problema posto, mantendo a distinção dos diversos grupos em contato e a
própria singularidade desses encontros. Figueiredo vai apresentar ambos os aspectos,
detalhando, por exemplo, locais de encontro como a “fazenda” dentro de um regime de
plantation, como vetor relacional – do qual os processos de “mestiçagem” estão implicados.
E dados historiográficos sobre a diversidade étnica dos descendentes africanos, entre
sudaneses, bantus, e outros grupos.
Diferentes registros da presença africana na região amazônica foram feitos, desde os
mais antigos registros de naturalistas viajantes até periódicos locais que registravam a pressão
policial contra as ditas “casas de feitiçaria” e das reclamações contra “despachos” em
encruzilhadas (Figueiredo, 1976:148-149). Partindo de arquivos coloniais, a orientação
histórica produziu algumas conclusões parciais sobre a presença do negro durante as
movimentações do tráfico escravo na Amazônia. Acredita-se que mais de 53.000 escravos
entraram pelo porto de Belém, sendo usados como mão de obra não apenas na cidade de
Belém e suas cercanias, mas se espairando por toda a Amazônia, colocando Belém como o
principal centro distribuidor de escravos da região. Esse intenso fluxo também foi palco para
diversas fugas de escravos nas adjacências das grandes cidades amazônicas e no interior da

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região – dando origem a diversos quilombos enquanto acontecimentos muito singulares de
resistência dos africanos e seus descendentes, que criariam vias de uma existência outra
contrária a sobrecodificação colonizadora imposta pelo padrão de valores dos brancos
europeus.
Figueiredo, analisando os efeitos dessa sobrecodificação a partir da ideia de “niveis
operacionais” de Ribeiro (1969), afirma terem sido dois dos três níveis completamente
incorporados compulsoriamente: o sistema adaptativo e o associativo dos padrões de cultura
africanos. Restando apenas ao sistema que o autor chama de ideológico de seus cultos
religiosos, que não fora proibido no período do trabalho escravo por amalgamar diversas
práticas que de alguma forma contribuíam para o melhor desempenho nos trabalhos. Assim,
o campo religioso teria essa dimensão privilegiada para os estudos sobre as ditas
“sobrevivências” africanas pela particularidade da permanência de uma intensidade não
encontrada em outros campos.
Autores como Bastide, por exemplo, cartografaram “áreas de culto” onde o
desenvolvimento das práticas religiosas e a intensa troca presente nas mesmas desenham uma
geografia, para colocar como o autor, dessas intensidades. Nas áreas do catimbó e da
pajelança, para ficarmos no recorte aqui proposto, Bastide coloca em evidência as
“contribuições”, ameríndias, africanas e européias, que traçam as religiosidades ao norte do
país e na região amazônica. Sobre a aproximação dos descendentes africanos da mitologia e
dos espíritos ameríndios, escreveu:
“o que tornou possível ao negro a aceitação desta religião foi o fato de
estar centralizada, como a sua, na descida de deus ao corpo humano e
a subsequente transformação da personalidade. Sem dúvida, as
diferenças são grandes: o negro não pode receber mais de um orixá ao
qual está consagrado; o mestre do catimbó, pelo contrário, recebe
todos” (Bastide, 1971:253).
Tais afinidades observadas pelo autor são certamente tão móveis quanto os encontros
decorrentes delas, não necessariamente estando encerradas no tipo de aproximação e
distância apontados por Bastide. Figueiredo chama atenção para a intensa interação cultural
na Amazônia que resulta nessa multiplicidade religiosa, que pode ser observada no centro

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macro-regional de Belém, por exemplo, onde co-habitam a pajelança cabocla, religiões
pentecostais, espíritas, de matriz africana, etc.
Essa amálgama de “traços somáticos e culturais” não apaga, em seu processo de
mistura, as singularidades de cada uma dessas contribuições criativas em contato. É, no
entanto, importante propor aqui uma outra perspectiva dos encontros que busque superar o
processo sobrecodificador operado pelo fator branco europeu que dominou grande parte das
narrativas desses casos. Colocando em evidência o aspecto afro e sua relação com os
ameríndios e as práticas decorrentes desse encontro, uma outra relação pode ser desenhada.

4. Variações afroindígenas
Em fala no primeiro Encontro de nações-de-candomblé3, Almiro Miguel Ferreira, ou
Tata Almiro, falando em nome do candomblé-de-caboclo, começa sua fala se opondo aqueles
que não consideram sua prática enquanto constituinte de uma “nação”, “todos nós sabemos
que existe nação-de-caboclo”, ele argumenta, “caboclo tem as suas obrigações, tem seu
fundamento, tem o seu preceito e tem a sua terra”. Não só tem nação como “é o mais velho,
porque os outros vieram de lá pra cá, e ele já estava aqui. Ninguém foi buscar ‘ele’ não. Ele
já estava aqui. Ele é o dono da terra. E por que, agora, se expurga o dono de suas casas?”
Tata Almiro fala por conta do seu conhecimento, sem deixar suas palavras se
sagrarem como a verdade sobre o candomblé-de-caboclo ou sobre as outras práticas que
mobiliza na sua fala. Se outras formas de se apresentar o que o líder religioso está afirmando
existem ele deixa essa possibilidade aberta, “pode ser, eu não conheço”.
Interseções entre práticas religiosas africanas e ameríndias geraram complexas e
criativas novas práticas que mantiveram suas singularidades sem deixar de produzir novas
modalidades. A intensidade dos encontros que vimos anteriormente produziu, e ainda produz,
diferentes agenciamentos das forças presentes no cosmos religioso dos povos engajados em
suas práticas. Aqui vou colocar em evidência mais especificamente dois casos que podem
ajudar a pensar essas práticas, a etnografia feita por Sethe e Ruth Leacock em Belém na

3
Encontro de nações-de-candomblé, Salvador, BA, 1984.

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década de 1960 e o trabalho mais recente de Jerônimo Silva e Silva, na zona Bragantina, no
nordeste do estado paraense 4.
No primeiro caso, o casal Leacock apresenta o Batuque e seus adeptos na cidade de
Belém (1972). O que chamam genericamente de Batuque é um variedade de cultos que
possuem, enquanto semelhança, o trato com os mesmos seres espirituais, com particular
ênfase nos encantados. Napoleão Figueiredo e Anaíza Vergolino e Silva, em artigo publicado
em 1967, apresentam esse cenário religioso de Belém, onde o Batuque e Babassuê aparecem
como os dois grandes modelos, variantes de elementos vindos das casas de Nagô e da Casa
das Minas em São Luiz. Deles provém os subtipos: Nagô, Jurema, Umbanda, Jurema-Nagô,
Mina-Nagô, Umbanda-Nagô, Umbanda-Jurema e Umbanda-Negra. Fora outros cultos que
não possuem filiação nem com a Federação nem com a dissidência da mesma, considerados
cultos familiares (1967:104-105).
Na etnografia dos Leacock a variabilidade do culto aparece e, para além disso, dentro
dos próprios cultos, aquilo que os autores vão tentar apresentar como “panteão” do Batuque,
organizando por famílias, linhas e outras afinidades, acabando por escapar de uma imagem
mais estável de uma organização politeista5. Com isso, não relegam a organização do
Batuque e de seus adeptos à “aparente confusão” que buscam desfazer – acredito que haja
um tipo de disposição entre o caos total e o “panteão” que poderia dar conta do que ocorre
com o universo dos encantados nessas religiões. Para além do já vasto universo de
possibilidades de espíritos presentes, de turcos, reis medievais, botos, cobras grandes, exus,
orixás e santos, há sempre a possibilidade aberta de novos espíritos surgirem enquanto outros,
dependendo da lembrança constante dos seus adeptos, correm o risco de desaparecer.
Os encantados, no trabalho dos Leacock, são seres que possuem uma maior
proximidade dos homens, moram nas “encantarias”, que fazem parte do nosso mundo, e por
isso seu contato com as pessoas é muito mais intenso. Não são poucos os casos que os
encantados aparecem em situações cotidianas, resolvendo querelas familiares e passando dias

4
Meu intuito aqui com esses dois exemplos é palmear um campo de afetos mais próximo daquele que me
encontro inserido e do qual pretendo realizar um trabalho etnográfico de fôlego nos próximos anos, na Ilha de
Marajó, município de Soure, estado do Pará.
5
Poderíamos aproximar aqui do conceito de “politeísmo intensivo” utilizado por Edgar Barbosa Neto em sua
tese (2012).

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no domicílio de seus ‘aparelhos’. Essa proximidade também os singulariza ainda mais em
relação aos outros espíritos – ganhando contornos mais “humanizados”. Seus adeptos
creditam a essa proximidade a maior compreensão desses espíritos dos problemas mais
mundanos.
Diferente das cerimônias do Batuque, que são públicas e atraem uma grande
quantidade de pessoas, os procedimentos de cura possuem um caráter mais reservado e estão
localizados em áreas mais afastadas. Sua prática é um desdobramento da pajelança indígena
muito presente em Belém e arredores (Figueiredo, 1996). Praticantes de ambas as
modalidades, os moradores da região parecem atribuir sua acepção à elas um princípio
pragmático, aderindo as práticas enquanto essas se mostram operativas.
Fato semelhante ocorre na Amazônia Bragantina, no nordeste do estado. Os mestres
presentes na etnografia de Jerônimo Silva (2014) possuem uma gama diversificada de
atributos, sendo “portadores do “dom” de curar, benzer, exorcizar, “incorporar” ou
“consultar” caboclos, pretos velhos, caruanas, espíritos desencarnados e anjos” (Silva,
2014:74). A utilização de termos como “cordas”, “linhas” ou “contas” por esses mestres
demarca uma singularidade na prática de cada um na utilização de seu “dom”, e também
delimitam ou ampliam as forças conferidas aos mesmos pelas operações que operam como
rezas, remédios, feitiços, contra feitiços, visões, etc. O ato de “virar”, outra categoria nativa
apontada pelo autor, que abarca desde a incorporação de caboclos e pretos velhos, até a de
encantados, sendo também utilizado para a captura pelo “mundo do encante”, aproximando
as áreas de estudo da cosmologia indígena das etnografias sobre as religiões de matriz
africana (Silva, 2014:75-76).
Há casos como o do jovem rezador-exorcista, Cristiano, responsável pelo
“apaziguamento espiritual” da Vila do Socorro, onde crianças e adolescentes estariam
“sofrendo” diversos ataques de “encostos” (Silva e Pacheco, 2012). A história de Cristiano é
semelhante a de muitos outros rezadores, curadores e pajés que exercem seu “dom” e sua
“missão” no trato com espíritos e encantados. Desde cedo “atacado” pelos encantados, o
jovem rezador receberia sua missão do seu guia, Caboclo Flechador, pai da corrente dos
encantados com a qual ele trabalha. Em meio as rezas feitas para as crianças, Cristiano evoca
seu guia que diz estar acompanhado de anjos. O tom marcado pela demonização dos espíritos

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que afligem as jovens parece mais agudo entre os moradores, que procurarm dar um jeito e
livrá-las dessas influências. O autor, contudo, mostra que as pessoas possuem diferentes
análises sobre o fenômeno, sem deixar de descartar a possessão demoníaca. Assim, aquela
situação podia ser vista como uma sina da região, uma maldição, e ao mesmo tempo uma
missão e uma vocação dada por Deus. Causada pelo afastamento dos jovens da religião ou
por uma herança de outros tempos, em que a encataria era parte do cotidiano das famílias.
O autor apresenta diversos outros casos que envolvem desde mães de santo à pajés,
compondo um vasto relato de mestres e conhecimentos da Amazônia Bragantina que
produzem uma imagem dos encontros e relações que permeiam práticas, praticantes,
espíritos, humanos e não humanos.
Ambos os trabalhos explicitam a irredutibilidade dos casos no processo de
composição entre diferentes práticas em contato. Longe de um tipo de operação que faça
subsumir a diferença em um todo homogêneo, tais práticas parecem acentuar as diferenças
como um diagnóstico necessário para lidar com as mesmas. Só estando atentos aos
pormenores implicados nas relações que estabelecem, que os praticantes podem se arriscar
em outros movimentos.

5. Criatividade e restrição cosmopolítica


No primeiro volume dos sete que compõem suas “cosmopolíticas” (1997), Isabelle
Stengers apresenta seu conceito de “restrições” que, longe das ideias de limitação ou de
condição, pode ser visto como a própria condição criativa de uma prática, um corte em um
contínuo que deve considerar, por seu caráter parcial (como parte interessada), uma ideia de
‘comum’ que não seja universal. Meu intuito aqui é retirar algumas intuições dessa
elaboração feita pela filósofa que contribuam para a descrição antropológica da criatividade
dos agenciamentos afroindígenas. Há nessa operação um princípio ético implicado, já que
“se reconhecemos a criatividade do antropólogo na construção de sua compreensão de uma
cultura, certamente não podemos negar a essa cultura e a seus membros o mesmo tipo de
criatividade” (Wagner, 2009:107).

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Os processos criativos, ao contrário da imagem criada pelo ocidente, não se dão ex
nihilo. É preciso dispor de meios e estratégias, mecanismos mesmo, que possibilitem o ato
de criação, para que ele não seja tragado pelos clichês.
Deleuze, em seu livro sobre Francis Bacon (1981), ao falar do processo criativo do
pintor, chama atenção para esse tipo de problema imposto pelos clichês: “De fato, será um
erro acreditar que o pintor trabalha sobre uma superfície branca e virgem. A superfície já está
toda investida virtualmente por todo tipo de clichês com os quais é necessário romper”
(Deleuze, 1981:6). Para isso é preciso superar a tela enquanto um espaço de “equivalentes”
e “prováveis”, a própria ideia do pintor já é um fator que torna as probabilidades desiguais,
mas para escapar do clichê é preciso mais, “é necessário rapidamente fazer “marcas livres”
no interior da imagem pintada, para destruir nela a figuração nascente, e por dar uma chance
à Figura, que é o próprio improvável” (Deleuze, 1981:48). As “marcas livres” podem ser
vistas como uma restrição, uma forma de retirar da tela os clichês. Dessa forma, toda prática,
enquanto prática criativa, desenvolve-se elaborando mecanismos anti-clichês, que são não
apenas um artifício da prática, mas são a própria prática, são indissociáveis.
As restrições colocam, para além da possibilidade criativa, a dimensão das práticas
que se pensam em conjunto, a partir de um meio, e ao mesmo tempo em conexão com outros
meios. Esse tipo de vinculo não retira, contudo, as divergências que práticas em relação
apresentam, isso por que Stengers procurar frisar que as práticas precisam manter as
particularidades que as constituem, suas exigências e obrigações das quais as atividades
dependem para existir e que qualificam o comportamento de seus praticantes, pelos riscos e
desafios que implicam e que criam o valor de suas atividades (Stengers, 2010:55).
Quando insere seu conceito de cosmopolítica, sempre atrelado a algo enquanto um
adjetivo, Stengers está operando uma meta-restrição, da qual todas as práticas (e seus
praticantes), de uma perspectiva política ecológica das mesmas, devem estar implicados. Se
as restrições mais abstratas de exigência e obrigação tem como desdobramento uma
particularização dos riscos e desafios que valorizam cada prática, a meta-restrição
cosmopolítica leva essas abstrações a um nível de riscos e desafios que vinculam de alguma
forma todas as práticas em um tipo de conexão que poderíamos chamar de rizomática. A
figura anarco-ecológica do rizoma, colocou Stengers, citando Deleuze e Guattari, não só

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possibilita as conexões como exige que elas sejam feitas (Stengers, 2017:5). A imagem da
insistência do cosmos, ou da intrusão de Gaia, como a própria ideia de cosmopolítica, exige
das práticas e de seus praticantes um tipo restrição que considere essas conexões enquanto
dimensões possíveis e desconhecidas.
O que se impõe a partir disso é a produção, por essas práticas e praticantes, de um
novo tipo de “fato”, diferente daquele empirico e neutro, próprio dos herdeiros de Platão e
seus conceitos “deslocalizados” e universais que visam redescobrir o mesmo em toda parte
(Stengers, 2010:61). Um “fato experimental”, que reflete a singularidade da história onde foi
produzido, tendo seu valor posto a prova pela capacidade de obrigação que ele consegue
colocar para seus praticantes em concordarem sobre sua interpretação. Assim, não é possível
isolar e purificar o fenômeno, ele, enquanto “fato experimental”, passa a fazer a diferença
entre seus interpretes. O saber é indissociável da prática (Stengers, 2010:50).
Pensar pelo meio, ato etoecológico que não apresenta o oikos e o ethos por
determinações, mas sim por disposições. Entre essas disposições e meios não há uma relação
causal, somente relações complexas e polimórficas, que não podem ser determinadas a priori.
Essa etocologia pode ser compreendida enquanto uma ecologia das práticas (Stengers,
2010:56).
Uma ecologia das práticas afirma a existência, legitimidade e interesse de outras
práticas com exigências e obrigações divergentes. Ela implica que uma prática seja capaz de
se apresentar a outra prática, nos termos do risco em que está engajada, sem necessitar
desqualificar essa outra prática, que está apoiada em seus próprios direitos (Stengers,
2010:59). Resistir assim aos herdeiros de Platão e portadores da verdade, não seguí-los,
buscando ver o conhecimento como um “encontro” e um “aprendizado”, por se dirigir a um
ser que pressupõe e exige um meio (Stengers, 2010:68).
A relação afroindígena parece conter essa característica do conhecimento enquanto
uma arte dos encontros e das misturas, como contra discurso da mistura que não pressupõe a
homogeneização. Uma modulação da diversidade em variação contínua, mantendo níveis
que se combinam e e níveis que permanecem distintos, fazendo da mestiçagem e do
sincretismo dimensões não redutíveis dessa modalidade de relação heterogenética (Goldman
e Barbosa Neto, 2017).

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Enquanto diferentes práticas em contato, sustentando divergências e experimentando
trocas e desenvolvimentos intuitivos, poderíamos ver o princípio etoecológico dessa relação
afroindígena como um tipo de restrição que conecta outras restrições. Uma conexão que
exige de seus praticantes uma precaução fundamental, na qual está implicado uma abertura
arriscada para a força criativa e destruidora do caos. Sua pragmática envolve seus praticantes
no trato com espíritos, nas procedimentos de cura e rezas, nos cuidados necessários para
cruzar técnicas, respeitar espaços, manusear forças. Para além da certeza de que não estamos
sozinhos no mundo, a restrição presente na relação afroindígena aponta para o perigo
decorrente dessa afirmação, explicitando nossa vulnerabilidade. Vulnerabilidade essa que
não pode ser vista enquanto fraqueza, mas sim como o próprio princípio de precaução. Afinal,
tais procedimentos criativos implicados na relação afroindígena devém de procedimentos de
precaução, combinando diagnósticos e associações dedutivas de um acumulo de casos que
cartografam tais experiências. É salutar que uma prática antropológica que procure entrar em
consonância com tal criatividade não reduza a singularidade de seus procedimentos.

6. A mistura remisturada: novos sabores em tempos amargos


A ideia de mistura aponta, acredito, para um tipo de agenciamento criativo dentro
dessa concepção de uma ecologia das práticas como colocada por Stengers. Ela pode ser vista
como a própria experiência, o próprio “fato experimental”, que resulta dos processos
heterogêneos de contato. Enquanto uma arte dos encontros, a mistura, longe de resultar em
fusão ou integração dos quais os pares “mestiçagem” e “sincretismo” são, no discurso da
identidade nacional, vetores, mantém as diferenças enquanto modulações que combinam-se
e distinguem-se em variação contínua.
É interessante observar como o discurso da “mestiçagem” e do “sincretismo” são
afetados por essa perspectiva. No caso da encantaria amazônica aqui apresentado percebemos
que ambos os termos acabam eclipsando toda uma complexa teia de agenciamentos que
experimentam de forma complexa a mistura. Seja nas modulações entre povos de diferentes
línguas, origens étnicas, culturais, etc; seja nas operações de suas práticas, nas relações com
diferentes espíritos, seres e cosmologias. Nos relatos de seus praticantes, é possível observar
os riscos implicados nos tipos de experiência que estão engajados. A mistura – longe de ser

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um ato banal – acarreta uma responsabilidade para com esses riscos, já que estão vulneráveis
aos efeitos das consequências de tal experimento, que tem na homogeneização e na
destruição seu limiar de abolição.
Uma ideia sobre mistura que se aproxima dessa é apresenta por Eduardo Soares Nunes
em sua tese sobre os Karajás (2016). A mistura, explica Nunes, é a forma como os Karajá
lidam com o contato entre eles e os brancos. Contrários a narrativa da “aculturação”, os
Karajá de Buridina não acreditam que o “tornar-se branco” é um processo inexorável de uma
perda identitária e uma descaracterização – é possível, assinala o autor, “ser as duas coisas
ao mesmo tempo, desde que se produzam, concomitantemente, como uma coisa e outra”
(Nunes, 2016:62). Assim, a mistura aparece como a forma indígena da relação entre esses
dois pontos de vista, dos Karajás (inỹ) e dos brancos (tori).
Nesse mesmo sentido, a permanência de Jacinto Ma(k)urehi e sua família na
reconstrução da aldeia de Burdina, depois de seu abandono pela maioria da vasta população
que ali se encontrava, na década de 1950, pode ser vista como uma “experimentação do
mundo dos brancos” pela proximidade que mantinham com a cidade, “criados ‘no meio do
povão’” - “um empenho em aprender a ser branco” (Nunes, 2016:72). Ao se engajarem nesse
conhecimento, dos brancos, que só pode se dar pela via da experiência, ou seja, tornar-se um
tori, os Karajá de Buridina buscavam “afastar-se de certos aspectos do mundo inỹ”, por uma
vontade própria (Nunes, 2016:73).
Nunes utiliza-se da figura do caboclo, pela proximidade que ela aparesenta com a
figura do mestiço e da pessoa misturada, para apontar a perspectiva dos Karajás de Buridina
da “coexistência de pontos de vista em uma unidade repartida”, uma consciência dupla e não
ambígua. O mestiço não pode ser visto como um meio intermediário entre indígenas e
brancos, o meio não é um entre dois, “o meio não é um, é um dois sem intervalo, no qual, a
casa momento, só se pode estar em um dos lados. O meio é ambos os lados, sem nunca sê-
los ao mesmo tempo. Não há um ponto de vista mestiço, pois o meio é a possibilidade de ser
ambos” (Nunes, 2016:76).

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A mestiçagem não pode ser, dessa forma, um correlato da mistura, já que ao contrário
da primeira, que “não tem volta”6, a segunda parece ir e vir, virar e desvirar, misturar,
remisturar. A mistura é um processo mais amplo que a mestiçagem, ela envolve essa
duplicidade da vida que os Karajás de Buridina explicitam no caso relatado pro Nunes,
devolvendo-nos uma imgem da relação com a alteridade que não apenas se distingue de uma
fusão homogeneizante, como aponta seus riscos: o fim da aldeia, o fim do “pessoal de
Buridina”, a formação de uma nova etnia, atravessando um limiar para um outro
agenciamento (Nunes, 2016:98). É preciso “mudar a memória”, “trocar o chip”, para evitar
que a mistura se converta em confusão e loucura.
Em uma nota de rodapé, Nunes apresenta uma tradução que ilustra essa dimensão
mais ampla da mistura. Ao analisar a frase “Peixe frito com farinha”, o autor mostra como o
“com” da frase, wana em inỹrybè, está próximo da palavra i(k)uri, que é “mistura”, e que
ambas sinalizam para a junção de dois elementos que se mantém distintos, mesmo que juntos.
Na frase em questão, o peixe frito e a farinha (Nunes, 2016:80). Essa imagem da culinária
poderia ser mais explorada, ainda mais em contextos em que a comida constitui-se por uma
multiplicidade de sentidos. Ela fornece, pela conjução de sabores, uma rica perspectiva da
mistura. Já que dela depende, para além de uma receita, uma aguda minúcia e atenção ao
preparo, correndo o risco dessa composição desandar e resultar em uma “gororoba”, ou seja,
a indistinção dos sabores em uma maça homogênea de difícil degustação.
Na história da construção da identidade nacional, ontem como hoje, amargos
remédios são constantemente acionados para cesar o tipo de relação instável operada pela
mistura enquanto criatividade, buscando operar mecanismos de equivalência generalizada
(todos iguais perante a lei) que visam a redução dos desconhecidos como uma forma de
tecnologia do poder7. A unidade nacional como uma formula de redução da multiplicidade.

6
A ideia está na citação feita por Nunes do trabalho de José Kelly entre os Yanomami do Ocamo. O autor pontua
que, ao contrário de um processo de mestiçagem, o “virar branco (napë)” dos Yanomami é um processo mais
próximo de uma anti-mestiçagem. A operação é mais de uma adição de alteridade que de fusão a uma nova
identidade (Nunes, XXXX:77-78).
7
Tecnologias essas próprias do que Félix Guattari chamou de sociedades de integração e, mais particularmente,
capitalismo mundial integrado (CMI). O capitalismo é o único empreendimento verdadeiramente tolerante e
relativista que existe (Stengers, 2010:74), enrredando-nos em seu sedutivo discurso da diversidade com o único
porém dele poder “dar as cartas”, ou seja, de que a diferença só possa se manter enquanto tal operando dentro
de sua própria lógica.

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Que essa tenha assumido a tosca transparência dos altos cargos do governo nacional, não
deve nos sugerir sua súbita aparição (como o exemplo do processo das ações afirmativas para
cotas étnico-raciais nas universidades não deixa negar). O que não diminui em nada a carga
destrutiva que a situação propicía. Em pouco menos de um mês, esse caráter tosco e
destrutivo tem sido a tônica do atual governo.
Esvaziamento e ataque a diversas pautas minoritárias, perseguição a grupos de luta
por moradia e luta pela terra (MTST e MST) e aos territórios quilombolas e indígenas,
colocando novamente em funcionamento o discurso da integração. Nesse cenário, não é de
se espantar a declaração dada pelo hoje vice-presidente da república,
“Ao justificar ter dito durante a campanha que o país herdou a
“indolência” dos indígenas e a “malandragem” dos negros, o general
resgatou sua mestiçagem e a colocou a serviço do apagamento do
racismo estrutural do Brasil: “Em nenhum momento eu quis
estigmatizar qualquer um dos grupos, até porque nós somos um
amálgama de raças. É só olharem para mim. Eu sou filho de
amazonense, minha vó é cabocla”” (Eliane Brum, jornal El País em 16
de janeiro de 20188).
O amálgama de raças do general, remetendo a velha máxima da “democracia racial”,
me soa a mestiçagem como assimilação. Mais que isso, ao colocar sua mestiçagem “a serviço
do apagamento do racismo estrutural do Brasil”, faz do racismo a sua métrica da relação entre
as raças “amálgamadas”.
O racismo, como escreveram Deleuze e Guattari, procede não por uma exclusão do
outro, mas por um processo de variações de desvianças de um mesmo, o Estado brasileiro na
figura do rosto do Homem branco, que procura integrar esse outro disforme, ora tolerando-
o, ora apagando-o.
“Do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as
pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo
o crime é não o serem (…) O racismo jamais detecta as partículas do

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https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/16/opinion/1547664512_125565.html

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outro, ele propaga as ondas do mesmo até a extinção daquilo que não
se deixa identificar (ou que só se deixa identificar a partir de tal ou
qual desvio). Sua crueldade só se iguala a sua incompetência ou a sua
ingenuidade”(Deleuze & Guattari, 1996:51).
A tolerância e o apagamento do racismo à brasileira passam pelas formas com que se
buscou consolidar uma unificação da diferença, onde o genocídio e o etnocídio sempre
andaram juntos. A arte dos encontros praticada pelo pensamento dos povos aqui apresentados
parecem costurar um outro tipo de destino para a mistura. Uma que respeite essas diferenças
e que viva com elas. A confluência, como diria Antônio Bispo, a arte de juntar sem misturar,
e também a mistura dos Karajá de Buridina, a arte de misturar sem confundir. Muitos mais
são esses mecanismos de heterogenese que se multiplicam, contrariando os discursos
amargos que procuram destruí-los. A antropologia pode daí tirar uma valiosa lição de respeito
ao desacelerar pretenções explicativas e reducionistas do conhecimento, operando por um
“não sei”, um “desconhecido” fundamental (Goldman, 2016), que torne possível responder,
seguindo o exemplo de Tata Almiro: “pode ser, eu não conheço”.

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