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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS- GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

“Todo mistério tem dono!”


Ritual, política e tradição de conhecimento entre os Pankararu

Claudia Mura

Rio de Janeiro
2012
ii

“Todo mistério tem dono!”


Ritual, política e tradição de conhecimento entre os Pankararu

Claudia Mura

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutora em
Antropologia Social

Orientador: Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira

Rio de Janeiro
Fevereiro 2012
iii

“Todo mistério tem dono!”


Ritual, política e tradição de conhecimento entre os Pankararu

Claudia Mura
Orientador: Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,


Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.

Aprovada por:

____________________________________
Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira (orientador)

____________________________________
Prof. Dr. José Sergio Leite Lopes

____________________________________
Prof. Dr. John Cunha Comerford

____________________________________
Profª. Dra. Maria Rosário Gonçalves de Carvalho

____________________________________
Prof. Dr. Carlos Guilherme Octaviano do Valle

____________________________________
Prof. Dr. Andrey Cordeiro Ferreira (suplente)

____________________________________
Prof. Dr. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto (suplente)

Rio de Janeiro
Fevereiro 2012
iv

Mura, Claudia
“‘Todo mistério tem dono!’: ritual, política e tradição de conhecimento
entre os Pankararu”/ Claudia Mura - Rio de Janeiro, UFRJ, PPGAS, Museu
Nacional, 2012.
xiii, 339 f.
Orientador: Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira
Tese (Doutorado) - UFRJ / Museu Nacional – Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social, 2012.
Referências Bibliográficas: f. 328- 339
1. Pankararu; 2. Ritual; 3. Tradição de conhecimento; 4. Política; 5.
Índios do Nordeste. I. Oliveira, João Pacheco de. II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Museu Nacional, PPGAS. III. Título.
v

RESUMO

“Todo mistério tem dono!”


Ritual, política e tradição de conhecimento entre os Pankararu

Claudia Mura
Orientador: Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.

Esta tese procura descrever e analisar a tradição de conhecimento, os processos rituais e os


aspectos políticos a eles atrelados entre os índios Pankararu, localizados às margens do rio
São Francisco, no estado de Pernambuco. Para este propósito, realizou-se uma etnografia
que, deslocando o foco da experiência vinculada à construção da identidade étnica,
concentrou-se nas experiências individuais e familiares que permitiram compreender a
forma de os índios se organizarem social, ritual e politicamente. Com uma perspectiva
teórica processualista, a etnografia permite mostrar que as unidades sociais e políticas
(famílias extensas e troncos), cuja ênfase no sentimento de pertença é operativa na
cotidianidade dos índios, são as principais protagonistas do forjamento da específica
tradição de conhecimento, que se encontra em contínua mudança em virtude das
circunstâncias de ordem histórica e política e da capacidade dos atores sociais de a elas se
adaptarem. Pretende-se aqui um afastamento das abordagens que reiteram uma visão
holística dos grupos sociais e, para tal propósito, procurou-se relevar as variações entre as
articulações dos fluxos culturais que índios diversamente posicionados realizam dentro de
uma figuração em constante tensão, no esforço de impor concepções cujos princípios
encontram sua matriz antes ou depois do processo de territorialização. Foi necessário,
então, compreender o que viabiliza as variações, analisando-se os circuitos e as
performances rituais, bem como as formas de gerenciar o conhecimento. Constatou-se que
a ausência de exegese e de uma ortodoxia divulgada pelos especialistas rituais, juntamente
com a prática do segredo (elementos que delineiam a especificidade desta tradição de
conhecimento), não apenas possibilitam uma grande variação de interpretações e
performances de tais especialistas, como também se tornam o motor das mesmas
dinâmicas sociais e políticas. A impossibilidade de instauração de uma autoridade política
e religiosa centralizada e a característica segmentária do grupo étnico fazem com que
famílias e troncos mobilizem os próprios recursos (humanos, econômicos e em termos de
“mistérios”) para construir o próprio prestígio e adquirir poder político. Em circunstâncias
favoráveis, unem todos esses recursos e mobilizam os aspectos emocionais vinculados à
etnicidade, deflagrando assim sua força política.
vi

ABSTRACT

“Every mystery has its owner!”


Ritual, politics and tradition of knowledge among the Pankararu

Claudia Mura
Orientador: Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.

This work describes and analyzes the tradition of knowledge, the ritual processes and their
annexed political aspects among the Pankaruru indigenous people in the area of the São
Francisco River, State of Pernambuco. The research is based on ethnography which,
moving away from the experience of ethnic identity-building, focuses on personal and
family experiences, showing how these indigenous groups organize themselves in social,
ritual and political terms. Relying on a processualistic approach, the ethnography illustrates
that the social and political unities (extended families and trunks) that are relevant to
indigenous everyday life, forge traditions of knowledge in a process of constant change,
depending on the way actors adapt to historical and political conditions. Avoiding a
holistic view of social groups, this work analyzes variations in the articulation of cultural
flows which different actors perform in order to affirm conception that relate also to
processes of territorialization. It was necessary to understand the rationale of these
variations, exploring different aspects of the rituals, as well as the way knowledge is
produced and managed. A crucial finding is that the absence of a unified orthodoxy and
truth among the different ritual specialists, along with the practice of the secret (all
characteristics of this kind of knowledge tradition), allow for a wide range of
interpretations and performances that may influence social and political dynamics. The
absence of a central political and religious authority implies that families and trunks use
their own human and economic resources, as well as the “mysteries”, in order to build
prestige and achieve political power. Under favorable conditions, these actors use all the
above-mentioned resources, and mobilize the emotional aspects that relate to ethnicity and
stress its political power.
vii

AGRADECIMENTOS

A realização desta tese não teria sido possível sem a contribuição essencial de
múltiplas instâncias e pessoas. A elas quero expressar aqui meus agradecimentos.
Gostaria de começar agradecendo aos professores do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social-Museu Nacional que ao longo do mestrado e do doutorado
contribuíram para a minha formação, oferecendo-me generosamente seus conhecimentos,
podendo eu usufruir de uma pluralidade de pontos de vista e experiências: Giralda
Seyferth, Moacir Palmeira, José Sergio Leite Lopes, Luis Fernando Diaz Duarte, Federico
Neigburg, John Comerford e à professora visitante Antonádia Borges. Em especial, queria
agradecer a Antonio Carlos de Souza Lima e a Adriana de Resende Vianna cujos estímulos
e críticas foram especialmente enriquecedores. Um agradecimento especial também para
José Sergio Leite Lopes e Renata Menezes que me ofereceram críticas e sugestões valiosas
nos dois Exames de Qualificação.
Sou profundamente grata ao meu orientador, João Pacheco de Oliveira. Pela
liberdade no caminho da pesquisa, pelo estímulo e a confiança que me transmitiu durante
sua realização, pelas críticas e observações pontuais com generosa sensibilidade
intelectual, pela força nos últimos períodos da escrita e ainda pela paciência de ler páginas
e páginas em “portuliano”.
Agradeço também, de maneira especial, a meu irmão Fabio Mura, que contribuiu
para a minha formação desde os anos da universidade italiana, oferecendo-me seus
conhecimentos, experiências e críticas com grande generosidade. Também pelo diálogo e
pelas leituras críticas de parte da tese e por manifestar entusiasmo pelo meu trabalho.
À CAPES e à FAPERJ pelas bolsas que permitiram que eu me dedicasse
integralmente ao doutorado.
Ao PPGAS pelo respaldo institucional, e ao pessoal da Secretaria, que facilitou toda
a burocracia nos anos de mestrado e doutorado: de maneira especial, à Tânia Ferreira e à
Bete. Ao pessoal da Biblioteca, especialmente a Carla, Alessandra e Isabel e à Carmen da
copiadora.
À Malu Resende que com dedicação profissional realizou a revisão do texto nos
mais minuciosos detalhes.
viii

Aos meus colegas do PPGAS pelo diálogo intelectual e pelo afeto: Fernanda
Figurelli, Marta Cioccari, Rogério Azize, Mariana Dantas, Rita Santos e Veloso, Débora
Bronz, Fernando Rabossi, Daniela Fernández Medina, Laura Zapata, Rolando Silla,
Vanessa Andrade Pereira, Maria José Freire e Edmundo Marcelo Pereira. Muito
especialmente à Andrea Lacombe pela alegria de sua companhia; à Aline Magalhães pelo
grande carinho e tempero renovador; à Lara de Melo pela amizade ofertada e a ajuda na
revisão de outros textos; a Gabriel Corrêa pela força em todas as horas, ajuda e dicas; à
Andrea Roca, amiga desde o começo do mestrado que, apesar de continuar pulando
continentes, manteve a proximidade e ofereceu-me apoio e força; e à Carla Susana
Abrantes pela caminhada que juntas percorremos no Museu Nacional, compartilhando
cada passo de nossas dissertações de mestrado e de nossas teses de doutorado, um ciclo
feito de “dias da marmota”, diálogos inesgotáveis, mútuo apoio e tanto carinho.
A Estevão Martins Palitot por oferecer-me tempo e rios de informações.
A Titus Riedl, por me ter aberto as portas de sua casa em Crato, pelos diálogos
enriquecedores e pela ajuda generosa no início da pesquisa de campo.
À Jane e à Aline que me hospedaram em Santa Brígida, oferecendo-me ajuda na
pesquisa e belos momentos no início de nossa amizade.
À Andréa Cadena Giberti, ex-coordenadora da ONG Saúde Sem Limites, um
agradecimento muito especial pela hospedagem em Jatobá, por ter me apresentado a
muitos Pankararu, favorecendo assim a minha inserção nas aldeias. Além disso, pelas
conversas sempre ricas de informações e estimuladoras que se tornaram preciosas para este
trabalho. A Renato Monteiro Athias, professor da UFPE e presidente da mesma ONG, pelo
apoio em campo.
À Paola Andrea Londoño Castañeda e à Tereza Virginia pela companhia durante a
pesquisa de campo e pelas trocas de percepções.
Aos meus queridos amigos em Itália que, apesar da distância, continuam
compartilhando e apoiando meu caminho com afeto inestimável: Stefania Gattodoro,
Nicoletta Ricciardi, Riccardo Pieroni, Fabio Labruzzo, Marcello Grillo, Diego Cutilli,
Paolo De Francesco, Carmela Lovero e Andrea Cicalo. Especialmente à Monica Delogu
pelo encorajamento e o bom humor com que me alegrava através da tela de meu
computador; à Roberta Antonacci e a Gianluca Martini pelo grande carinho e pela presença
na distância em todas as horas.
ix

Aos meus pais, Liana e Giovanni, pela paciência, apoio, esforço, ensino e carinho
incondicionais em toda a minha vida.
A meu companheiro Luca, que acompanhou cada dia e cada hora da escrita, pela
ajuda nos detalhes gráficos, pelo tempero de sua ironia na nossa vida juntos e pelos
caminhos que virão.
Finalmente, agradeço a todos os Pankararu que me receberam na própria terra, por
tudo o que me ensinaram, pela atenção e pela paciência prestadas às minhas perguntas,
especialmente a Dora e Cícero, Amélia Julião e José Oliveira, Agenor Julião, João
Gouveia, Ana Bomba, Verônica Barbosa, Bartolomeu Cícero dos Santos e a toda a família
Oliveira.
Meu agradecimento mais profundo é para tia Lia (Maria Bárbara Filha) e seu filho
Vasco (George de Vasconcelos), por terem me aberto as portas de suas casas e de suas
vidas cotidianas que tanto me enriqueceram. Muito obrigada.
x

Aos meus pais, Liana e Giovanni

A Luca, meu companheiro

Aos Pankararu
xi

SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................................. 1

PARTE I. DE TRONCOS, FAMÍLIAS E CONSELHEIROS: ELEMENTOS


DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA...................................................... 34

Capítulo I. A ARENA................................................................................................................... 35

Capítulo II. TRONCOS, FAMÍLIAS E REPUTAÇÕES.......................................................... 52


2.1 O tronco Binga: a trajetória de uma linhagem......................................................... 65
2.1.1 Vasco: trajetória e narrativas de uma liderança emergente................................ 81
2.2 A reputação envolvendo as relações de gênero......................................................... 86
2.3 Conflitos e resoluções: a legitimidade da mediação................................................. 94

Capítulo III. O CONSELHEIRO E O “GRUPO CARISMÁTICO”...................................... 114


3.1 Pedro Batista: trajetória de um conselheiro............................................................. 115
3.1.1 Madrinha Dodô: conselheira e especialista da boa morte.................................. 120
3.2 Os índios-romeiros e o padrinho: a “communitas normativa”................................. 123
3.4 A representação dos padrinhos................................................................................ 134

PARTE II. FLUXOS CULTURAIS, MÚLTIPLAS ARTICULAÇÕES E


TRADIÇÃO DE CONHECIMENTO..................................................................... 142

Introdução................................................................................................................................... 143

Capítulo IV. O COSMO............................................................................................................ 150


4.1 Os encantados.......................................................................................................... 150
4.1.1 Da origem dos encantados, de encantamentos e levantamentos......................... 154
4.2 De exus, espíritos, santos e padrinhos: as outras entidades do Cosmo................... 160
4.3 Algumas observações............................................................................................... 166

Capítulo V. OS ESPECIALISTAS RITUAIS: DONS, DONOS, HERANÇAS E


MISTÉRIOS.......................................................................................................................................... 168
5.1 As chamadas e a formação..................................................................................... 170
5.2 Posições, reputações e narrativas de alguns especialistas....................................... 176
5.2.1 Zé Auto: um cacique e o caixa espiritual............................................................ 177
5.2.2 João Gouveia: “Todo mistério tem dono!”........................................................ 185
5.2.3 Dora: o dom e as múltiplas atuações.................................................................. 191
5.2.4 Maria Bárbara Filha: da penitência à tradição................................................. 196
5.2.5 Cruzando as narrativas: processos experienciais e as variações...................... 199

Capítulo VI. DOENÇAS E MESAS DE CURA........................................................................ 202


6.1 Pedidos e pagamentos de promessas...................................................................... 213

Considerações gerais................................................................................................................. 218


xii

PARTE III. PROCESSOS RITUAIS...................................................................... 223

Capítulo VII. OS GRUPOS PENITENTES: MISTÉRIOS, DISCIPLINA E


PERFORMANCES.............................................................................................................................. 224
7.1 A irmandade masculina: da preservação da moral e dos sigilos............................. 227
7.2 A irmandade feminina: das regras de inserção e das queixas das chefes................ 233
7.3 A Quaresma: das saídas e do anual encontro........................................................... 241
7.4 A festa de Nossa Senhora da Boa Morte: o culto à santa e às intercessoras............ 249
Algumas considerações.................................................................................................. 256

Capítulo VIII. CIRCUITOS RITUAIS SUPRAÉTNICOS.................................................... 259


8.1 As romarias: memórias, trocas, experiências e conquista de visibilidade... 259
8.1.1 Finados em Juazeiro do Norte............................................................................. 260
8.1.2 A festa de são/padrinho Pedro: a romaria a Santa Brígida................................ 273
8.2 As trocas de visitas: alimentando o prestígio familiar............................................. 278
8.2.1 A festa de São Gonzalo........................................................................................ 278
8.2.2 A festa de Antonio Binga...................................................................................... 283

Capítulo IX. A DOUTRINA DA ALDEIA: RITUAL E IDENTIDADE ÉTNICA............... 288


9.1 Os rituais da tradição.............................................................................................. 291
9.1.1 O menino no rancho: iniciação e consolidação de alianças.............................. 294
9.1.2 A corrida do imbu: a communitas na aldeia....................................................... 306

Considerações finais.................................................................................................. 316

Bibliografia................................................................................................................ 328
xiii

LISTA DE MAPAS

Mapa I – Localização TIs Pankararu....................................................................... 25


Mapa II – TI Pankararú............................................................................................ 26
Mapa III – TI Entre Serras....................................................................................... 27

LISTA DE CROQUIS

Croqui I – Localização das aldeias nas TIs.............................................................. 28


Croqui II – Brejo dos Padres.................................................................................... 29
Croqui III – Localização das famílias do tronco Binga........................................... 41
Croqui IV – Circuito ritual....................................................................................... 259

LISTA DE DIAGRAMAS

Diagrama I – Tronco de Maria Pedro................................................................ 103


Diagrama II – Tronco de Maria Chulé............................................................... 104
Diagrama III – Tronco de Maria Calu................................................................ 105
Diagrama IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI – Famílias do Tronco Binga............ 106-113
Diagrama XII – Famílias Anjo e Bomba........................................................... 232
1

Introdução

Os caminhos que conduziram à construção deste trabalho seguiram os


questionamentos e as inquietações que surgiram no decorrer da minha trajetória. Adentro
então, embora brevemente, nos seus meandros, permitindo ao leitor aproximar-se das
escolhas realizadas, bem como das posições tomadas.
As preocupações que orientaram o começo desta pesquisa traçam uma linha de
continuidade com a tese (Mura, 2002), apresentada no final da graduação no curso de
Letras e Filosofia da Universidade de Roma “La Sapienza”, sob orientação do professor
Antonino Colajanni, que ministrava a disciplina antropologia social. Naquela
oportunidade, havia realizado pesquisa de campo no estado de Chiapas (México), tendo
como foco as relações interétnicas e de gênero dentro do movimento zapatista que, a partir
de 1994, havia chamado a atenção mundial pelas peculiaridades que o caracterizavam: a
composição heterogênea, a linguagem comunicativa empregada e o apoio então
considerável que recebia de organismos não governamentais nacionais e internacionais.
O trabalho apontava mudanças aceleradas na configuração política e social, na qual
índios oriundos de diversos grupos étnicos de Chiapas e de outros estados mexicanos e
guatemaltecos, que manifestavam discordância em relação ao “sistema de cargos” (um tipo
de organização política que é produto do processo histórico colonial), iam ocupando a
Selva Lacandona, território onde o movimento zapatista plantou as suas bases. A
participação no movimento permitia o desaparecimento das fronteiras étnicas entre seus
integrantes, situação peculiar se se considerar que os grupos indígenas que se diferenciam
etnicamente nesse Estado viviam em frequentes conflitos, e as fronteiras eram
constantemente reforçadas por específicos atores sociais (que poderíamos chamar de
“agentes políticos da etnicidade”), índios vinculados às elites locais – os chamados ladinos
– cuja atuação contribuía para a manutenção da dominação da maioria da população
indígena.
Observei, então, que o desmoronamento das fronteiras se tornava viável em virtude
da adesão desses índios à tradição de conhecimento maya, cujos princípios e valores
estavam sendo nesse momento reelaborados com soluções inéditas. A nova “situação
histórica” (Oliveira Filho, 1988) oferecia aos índios múltiplas possibilidades de críticas ao
status quo. A presença na Selva Lacandona de outros grupos indígenas que haviam
2

adotado outras tradições de conhecimento, que não se integravam no movimento e


tampouco mantinham relações com as comunidades que iam se constituindo no lugar
reforçava a ideia do fraco compartilhamento de princípios e elementos da específica
tradição maya que, ao contrário, serviam como fundamentos para a organização social e
política que estava sendo moldada a partir de circunstâncias mais favoráveis à mudança
social.
O paradigma teórico que orientava meu olhar nessa pesquisa – fruto da formação
italiana – baseava-se, por um lado, nos postulados da vertente culturalista americana e, por
outro – graças à orientação do professor Colajanni e ao diálogo frequente com meu irmão
Fabio Mura,1 que então cursava o doutorado no Museu Nacional desenvolvendo pesquisa
com os Guarani (MS) – em um conjunto de autores que se afastavam significativamente
desses postulados, alguns deles (como se explicitará) empregados também neste trabalho,
abrindo-se então um leque de questões que nessa circunstância foram apenas esboçadas.
A vinda ao Brasil e a formação oferecida pelo PPGAS-Museu Nacional durante o
mestrado e o doutorado, sob a orientação do professor João Pacheco de Oliveira, abriram e
enriqueceram consideravelmente o leque de questões e os instrumentos teóricos para
abordar as temáticas acima mencionadas. Mas agora a atenção dirigia-se para a região
Nordeste. O interesse nesta área havia surgido antes da vinda ao Brasil, ao tomar
conhecimento do processo de construção de um movimento indígena e de “emergência
étnica” que, com as poucas informações então à disposição, se apresentava como uma
situação oposta à chiapanense e que desejava aprofundar.
Durante o mestrado, incentivada por meu orientador, a pesquisa que resultou na
dissertação (Mura, 2007) tomou um rumo diferente, dedicando-me à etnografia de um
museu missionário gerenciado pelos frades capuchinhos em Assis (na região da Úmbria,
Itália), cujas exposição – com peças quase exclusivamente dos índios Ticuna – e exercícios
discursivos que ali fluíam continuavam legitimando práticas colonialistas, demonstrando a
impermeabilidade da Ordem às críticas dirigidas aos museus coloniais e aos incentivos
para a revisão de conhecimentos, histórias e memórias até então construídas. Nesse
contexto de pesquisa, também foquei nos processos que concernem à construção e à
perpetuação da tradição (aquela missionária capuchinha), tentando compreender qual era o
elemento que permitia uma determinada distribuição das oportunidades de poder na

1
Atualmente é professor da UFPB.
3

configuração estudada. Considerei que a “experiência” das viagens ao Amazonas, que os


capuchinhos e os leigos a eles vinculados realizavam, criasse o diferencial e o organizasse.
A possibilidade de sustentá-lo mediante as relações de interdependência permitia a
manutenção da “tradição de glória” que os capuchinhos alimentavam.
O doutorado começou com um projeto de pesquisa apenas esboçado e focado nos
circuitos rituais ligados à “emergência étnica” que alguns autores 2 destacavam ao analisar
o fenômeno em pauta, tendo chamado a minha atenção a elevação do ritual toré a sinal
diacrítico a ser encenado perante o Estado e a população regional – ambos resistentes ao
reconhecimento da presença indígena na região, ocultada historicamente por medidas
políticas que impulsionaram a “mistura”. Abria-se à minha frente um mundo totalmente
desconhecido, cujos processos históricos e seus resultados precisavam ser aprofundados.
Perguntava-me sobre os resultados contextuais da elaboração dos fluxos culturais oriundos
de Europa, África e mesmo do Brasil produzidos por estas coletividades indígenas, e se o
toré tinha apenas uma função política para fora ou se desempenhava também um papel
importante para dentro e, em caso positivo, qual seria ele.
O interesse específico nos rituais de cunho mágico-religioso se deve a diversas
questões. Como disse, havia notado o destaque especial que lhe fora atribuído pela
literatura em geral e Oliveira Filho (2004), sobretudo, havia revelado a importância do
papel da esfera religiosa na construção da etnicidade, afastando-se das análises que a
reduziam apenas aos seus aspectos políticos (p. 32-33).
Pensava o estudo desses rituais como canal para penetrar e compreender os valores
que neles eram veiculados, os aspectos políticos a eles atrelados, mas também me
interessava compreender os meios e as técnicas de comunicação que vinham sendo
usadas.3 O aprofundamento nos trabalhos de Barth (1975, 1993, 2000), que dedicavam
especial atenção às formas de gerenciar e transmitir o conhecimento, incentivou-me
ulteriormente a investigar estas temáticas e, no universo de pesquisa aqui focado, os
instrumentos teóricos por ele oferecidos tornaram-se especialmente válidos para abordar as
próprias dinâmicas sociais.
Cursadas parcialmente as disciplinas exigidas no doutorado, e analisada parte da
literatura sobre os índios do Nordeste, decidi realizar uma primeira etapa de pesquisa de
2
Entre estes autores, destacam-se Arruti (1996, 2004), Grunewald (2004, 2005), Valle (1993, 2004, 2005).
3
Este último interesse certamente foi estimulado por minha formação de segundo grau na Itália, em um
colégio de fotografia, e nos estudos realizados sobre técnicas não verbais de comunicação que viabilizavam a
transmissão de conhecimento e afetavam a memória de diversas maneiras.
4

campo, decisão incentivada também pelo meu orientador.4 Esta primeira fase (de dezembro
2007 a fevereiro de 2008) foi fundamental não apenas para tomar “consciência” de uma
realidade tão rica e vasta quanto complexa, e para mim desconhecida, mas também para
coletar os primeiros dados, que me permitiram fazer um recorte e evitar perder-me
totalmente nela.
Tendo “desembarcado” em Juazeiro do Norte, foi fundamental a ajuda inestimável
do professor da URCA Titus Riedl, que meu orientador tinha me incentivado a contatar em
virtude dos meus interesses relativos à presença de índios nos circuitos rituais vinculados
às romarias. Titus ofereceu-me rios de informações cruciais para me orientar nesse vasto
universo e, sobretudo, auxiliou-me a fazer os primeiros contatos com os Pankararu, tendo
ele realizado pesquisa também entre estes índios, especialmente com aqueles ligados à
“comunidade romeira” (Riedl, 2007).
As intenções iniciais não visavam a um específico grupo indígena. Meu interesse
recaía no mapeamento das redes de relações delineadas por esses circuitos rituais e em
compreender quais eram os vínculos que os alimentavam. Apresentava-se, então, um
primeiro dilema de natureza sobretudo metodológica: que caminho seguir para mapear o
circuito ritual delineado pelos índios que periodicamente se concentram em Juazeiro do
Norte? Mas antes de explicitar as escolhas metodológicas feitas é necessário continuar
descrevendo os caminhos que conduziram à construção do objeto da tese.
As informações sobre a presença de diferentes grupos rituais (inclusive de
penitentes) entre os Pankararu chamavam ainda mais a minha atenção em virtude da
literatura sobre os índios do Nordeste deter-se quase exclusivamente no circuito ritual do
toré e, de maneira mais geral, nas práticas rituais vinculadas ao culto dos encantados.
Perguntava-me quais eram as relações entre tais grupos rituais dentro de um mesmo grupo
étnico e se formavam circuitos rituais diferenciados, se eram ou não grupos excludentes e
como articulavam os múltiplos fluxos culturais que circulam na região, isto é, quais eram
os processos que levavam à organização social dos fluxos culturais entre diferentes grupos
étnicos (ou grupos rituais), tanto na construção de tradições de conhecimento quanto na
determinação de identidades, especialmente aquelas que apresentavam fronteiras étnicas e
religiosas.

4
As disciplinas cursadas nos primeiros semestres de doutorado com meu orientador tinham como foco
principalmente o protagonismo indígena nas diversas situações históricas a partir do período colonial, o que
me permitiu obter conhecimentos mais aprofundados desses processos, sobretudo na região Nordeste.
5

Enquanto as questões se tornavam cada vez mais numerosas e complexas, realizei a


primeira viagem à área indígena Pankararu que, como primeira etapa de pesquisa de
campo, foi particularmente rica e incentivadora para delinear melhor o objeto da pesquisa.
A análise dos primeiros dados coletados e a definição do projeto para a primeira
qualificação de doutorado foram madurando, sobretudo no decorrer do curso
“Antropologia dos Modos de Regulação Social”, ministrado pelo professor José Sergio
Leite Lopes, cujas bibliografia e discussões em sala de aula me ofereceram mais tarde
instrumentos teóricos para olhar esses primeiros dados e refletir melhor sobre os caminhos
da futura pesquisa de campo. O trabalho final desse curso transformou-se no projeto em
que explicitava que pretendia focar justamente os circuitos rituais, mas concentrando a
atenção também nos fatores que reconduziam à esfera doméstica, às redes de parentesco e
aos processos que moldavam a tradição de conhecimento.
O ponto de partida, agora, eram os Pankararu. Visava situações não a partir de uma
suposta “distinção”, mas sim compreender como essa “distinção” se construía. Para tal
propósito, decidi me concentrar mais na pesquisa do que na literatura específica sobre os
índios do Nordeste parecia ser o que menos havia de “distintivo”, isto é, a sua participação
nas romarias e nas práticas rituais penitenciais, e tentar entender como se relacionavam
com os grupos rituais que pareciam dar especial ênfase à etnicidade e ao culto aos
encantados.

* * *

Como mencionei, estabeleci os primeiros contatos com os Pankararu graças à ponte


construída com a família Oliveira pelo professor Titus Riedl. Tal canal de entrada me
permitiu desviar do habitual filtro da Funai, o qual, pensava, podia gerar a identificação da
minha presença na área justamente com o órgão indigenista.5 No entanto, no decorrer da
pesquisa, a aproximação com algumas pessoas foi marcada por essa associação e de nada
valeram as tentativas para explicar o motivo da minha presença ali e a falta de vínculos
com a Funai: tanto para recusar o diálogo6 quanto para abri-lo tal associação era difícil de
ser eliminada, pelo menos com os índios cuja rede de relações e localizações residenciais
5
Após alguns dias da entrada na área indígena, apresentei-me ao chefe de Posto para avisá-lo da minha
presença ali. Convidou-me a procurar as lideranças para obter o acordo para desenvolver a pesquisa.
6
Apenas duas vezes recebi uma resposta negativa ao pedir uma entrevista, recusas motivadas pela total
desconfiança em relação à Funai.
6

eram mais afastadas daquela que poderia controlar e observar todos os meus passos
durante as diversas etapas da pesquisa.
Da primeira ida à área indígena até a última, a família extensa Oliveira me abriu as
portas de casa. Sobretudo com alguns de seus membros estreitei relações que me
permitiram penetrar na cotidianidade de suas vidas e compartilhá-las. O mesmo nível de
profundidade de diálogo e de “tempo compartilhado” (Fabian, 2010, p. 24)7 eu o tive com
membros de outras famílias extensas, embora sempre pertencentes à rede de relações de
parentesco ou de aliados da família Oliveira e do tronco familiar ao qual pertence.
Tropeçar no faccionalismo em campo é algo inescapável e determina certa
dificuldade em transitar e ter o mesmo padrão de relações e diálogo com as diversas
facções presentes no universo de pesquisa. Não posso afirmar ter tido problemas ao me
aproximar e entrevistar membros de famílias que pertenciam a facções opostas. Apenas
posso dizer que não pude compartilhar com alguns o mesmo tempo usufruído com outros e
tampouco ter qualidade de observação sequer parecida.
Na primeira ida ao campo apresentei, em reunião com algumas lideranças e com
um dos caciques, Pedro Monteiro da Luz, o projeto de pesquisa apenas esboçado,
explicando que estava interessada em poder contar com a presença de diferentes grupos
rituais e, sobretudo dos penitentes, para poder mapear os circuitos rituais que delineavam.
Havia expressado o interesse em aprofundar a ação da Igreja Católica na área, tanto de um
ponto de vista histórico quanto atual, enfatizando a importância de compreender melhor os
processos de interação entre os índios e ela. Para além da surpresa que tal interesse
despertou nos presentes, acostumados a receber pesquisadores que focalizam a atenção
sobretudo nos rituais da chamada tradição indígena, pude observar uma reação bastante
positiva, e alguns dos jovens que ali estavam fizeram comentários sobre a necessidade de
saber mais sobre a própria história e a ação dos missionários, afirmando ainda que estes
foram os artífices da perda da língua indígena. Obtive assim o acordo para proceder à
pesquisa.
No decorrer do estudo, procurei outras lideranças (entre elas, o outro cacique Zé
Auto) que não estiveram presentes nessa reunião, para tornar claros os meus propósitos de

7
De acordo com Fabian (ibidem, p. 24), há a necessidade de reconhecer a “coetaneidade” do trabalho de
campo e a “contemporaneidade” das coletividades que se tornam objetos de estudo. Tais reconhecimentos,
afirma o autor, permitem a “superação das ideias positivistas sobre a produção de conhecimento [...]”.
7

pesquisa, pedindo ainda que me permitissem entrevistá-las, sem nunca ter encontrado
qualquer impedimento.8
Como disse anteriormente, algumas vezes a minha presença na área foi associada à
Funai, mas outras vezes à ONG SSL (Saúde Sem Limites) que ali atua. Isto se deve ao fato
de que, nas primeiras etapas da pesquisa, eu ia às aldeias com Andrea Cadena Giberti, que
era naquele período coordenadora da ONG. A possibilidade de participar das reuniões que
a SSL realizava nas aldeias permitiu-me conhecer muitos índios, que se tornaram no
decorrer da pesquisa frequentes interlocutores. A observação das reuniões e as diferentes
performances que ali se realizavam tornaram-se também fontes de ricas informações e
estímulos de reflexão sobre as temáticas tratadas neste trabalho.
Ainda que em diferentes circunstâncias a posição que me era atribuída mudasse,
uma sobressaía: “a pesquisadora que estuda as penitentes”. A minha presença frequente
nos rituais e nas romarias e a proximidade adquirida, sobretudo com as líderes do grupo (as
“chefes da penitência”), ganharam aos olhos atentos de Brejo dos Padres a maior
importância em relação às outras circunstâncias de que fazia parte. Sem dúvida, as
mulheres penitentes mostraram-se sempre entusiastas do meu interesse na atuação do
próprio grupo, vendo a possibilidade de conquistar, através do meu trabalho, uma atenção
que atualmente é reservada quase que só às práticas rituais da tradição indígena.
Após a primeira etapa de pesquisa entre novembro de 2007 e fevereiro de 2008,
voltei novamente a campo em fevereiro de 2009. A partir dessa data até novembro de
2010, realizei viagens ao campo com períodos variáveis de dez dias até um mês. Somando
as diversas etapas que, na maioria dos casos, seguiam o calendário ritual, a permanência na
área indígena, as romarias e a estadia nos centros de peregrinação totalizaram, para o
“tempo de campo”, sete meses.
Enquanto estive em campo tive a possibilidade de participar de reuniões, festas,
rituais e outras situações de socialização e/ou de cunho político. Isto permitiu não apenas
me aproximar e conhecer outras redes de relações e compreender melhor a situação de
tensão entre diferentes facções, como também entrar em contato com diferentes esferas da
vida social sem permanecer apenas no âmbito circunscrito à esfera ritual.

8
A formalização do acordo concedido chegou apenas no final da pesquisa, por pedido explícito do chefe do
Posto em uma reunião. O documento oficial assinado por ambos os caciques foi levado para que fosse
também registrado na Funai e assinado pelo coordenador regional em Paulo Afonso.
8

Em várias ocasiões fui hospedada, mas em diversas outras decidi permanecer em


uma pousada no município de Jatobá, localizado aproximadamente a 12 km de Brejo dos
Padres, a aldeia onde fiz a maior parte da pesquisa, pois ali se concentrava a maioria das
atividades rituais e era onde residia a maioria dos índios que as realizavam. Em Jatobá
(onde também moram Pankararu) pude entrar em contato não índios e dialogar com eles,
conhecendo assim as visões de alguns deles sobre a situação fundiária, as relações que
mantêm com os índios e os diversos níveis de conflito.
O deslocamento que cotidianamente fazia nas camionetes (as D20) que de Jatobá
subiam ao Brejo tornavam-se verdadeiras viagens em função das inúmeras paradas e
dificuldades de passar nas estradas que, a cada chuva, se tornavam riachos ou cheias de
buracos.9 Essas viagens eram ocasiões para os passageiros se atualizarem sobre tudo o que
acontecia nas aldeias. Eram também ocasiões para que muitas pessoas pudessem tomar
conhecimento da minha presença na área e perguntarem sobre o motivo: se era parente de
alguém, onde eu estava hospedada e quem eram as pessoas com as quem estava
desenvolvendo a pesquisa. Satisfeitas as curiosidades, voltavam a comentar sobre os vários
acontecimentos e, em alguns casos, perguntavam-me se conhecia os protagonistas das
histórias que estavam sendo contadas, oferecendo-me orientações sobre as redes de
parentesco para que eu pudesse entender de quem se estava falando.
Apenas nas últimas duas idas ao campo levei meu carro para poder agilizar os
deslocamentos entre as aldeias e assim poder terminar a gravação de entrevistas que
estavam faltando. Mas em todas as outras etapas transitava a pé, indo visitar as casas, o que
permitia uma maior familiarização com o lugar.
Uma pesquisadora de gênero feminino, estrangeira,10 “dando voltas pelo mundo”
“sem a família por perto” cuidando dela, casada e sem filhos11 são certamente elementos
que merecem ser tomados em consideração quando se tem a preocupação a respeito dos
limites que podem ser colocados à pesquisa e, em geral, às interações em campo. Mais que
em “limites”, pensei na “possível” pesquisa, isto é, que rumo ela podia tomar, aceitando ter

9
Quando as estradas não permitiam a passagem das camionetes, utilizava os moto-táxis que, em um tempo
bem mais breve, percorriam o mesmo percurso.
10
Ao dizer a minha nacionalidade, em duas ocasiões me perguntaram se eu era uma freira, pois há padres e
freiras italianas atuando na região.
11
Várias vezes me perguntaram, sobretudo as mulheres mais velhas, se eu era casada. Ao responder
afirmativamente, surgia de imediato outra pergunta: “mas cadê teu marido?”. A importância do respaldo
familiar, sobretudo para uma mulher, era especialmente enfatizada e remete aos valores morais que de fato as
mais velhas pretendem que vigorem.
9

acesso a certos dados e não a outros e o fato de que a minha presença influenciava os
eventos que estava observando e estes, por sua vez, me afetavam. Além das alterações dos
eventos e dos diálogos que a minha presença pôde provocar e que precisei levar em
consideração na análise, as verdadeiras interdições foram quanto às esferas de
comunicação masculina e, sobretudo, àquelas relativas aos grupos rituais que se
configuram como sociedades secretas, limites estes que desde o começo da pesquisa
ficaram claros. A distribuição do conhecimento com base no gênero e a importância
atribuída aos segredos relativos à esfera do sagrado limitaram o acesso a diversas
informações. Ademais, como há uma grande variedade de posições no que diz respeito a
estes assuntos, respeitei o desejo de cada interlocutor, ou seja, não usei material que fui
explicitamente impedida de usar: informações que não se consideram essenciais para fins
deste trabalho.12
Foram frequentes as perguntas sobre a minha família e a minha vida em geral,
mostrando claramente quais eram as preocupações e os valores morais a elas atrelados.
Testava-se a minha “respeitabilidade” e não faltaram ocasiões em que tive a desconfortável
sensação de me sentir num total “estranhamento”, bem como em outras em que tive a
felicidade de perceber uma sincera familiaridade. Como bem observou Oliveira Filho
(2004b), o trabalho de campo pode ser analiticamente abordado como uma “comunidade
de comunicação” e o etnógrafo é afetado por ela, os interlocutores influenciando as suas
escolhas, mexendo com as suas emoções e determinando específicas elaborações dos dados
coletados.
Em especial com os interlocutores mais próximos, tanto para mim quanto para eles,
foi importante sentir que havia certo compromisso e engajamento em termos de amizade e
políticos. A confiança foi conquistada com o tempo, sendo que a inserção em campo e as
relações iam mudando e, com elas, a percepção deles sobre mim, bem como ia mudando a
minha percepção sobre eles, sobre essa realidade e as questões a serem abordadas. Como
disse, tive especial proximidade com algumas pessoas e elas marcaram sensivelmente o
caminho da pesquisa. Sem dúvida, a relação com tia Lia (Maria Bárbara Filha) e seu filho
Vasco estimulou questões, orientou hipóteses, e o diálogo frequente foi especialmente

12
Informações que se referem especialmente aos nomes de entidades (os encantados) que algumas famílias
não quiseram divulgar, enquanto outras não se opuseram, pelo contrário, incentivaram-me a mencioná-los no
meu trabalho.
10

enriquecedor de um ponto de vista afetivo e intelectual. Certamente neste trabalho os seus


pontos de vista ganham maior profundidade.

* * *

Esta tese tem o objetivo de descrever e analisar a tradição de conhecimento, os


processos rituais e os aspectos políticos a eles atrelados entre os índios Pankararu. Busquei
compreender os modelos de processos que determinam a moldagem das expressões
culturais, analisando os circuitos e as performances rituais, destacando a importância dos
atores sociais que cultivam o conhecimento, bem como as formas peculiares de gerenciá-
lo. Tomando distância das abordagens holísticas, procurei dar relevo e analisar o que
permite a variação entre diferentes unidades sociais, grupos rituais e indivíduos, os quais,
em uma configuração em contínua tensão, procuram adquirir prestígio e poder político.
Tratei de ressaltar a importância das unidades sociais e políticas (famílias e troncos) que se
destacam ao longo da pesquisa como as principais protagonistas do forjamento da
específica tradição de conhecimento à qual os índios aderem e que se encontra em
constante mudança em virtude das circunstâncias de ordem histórica e política e das
capacidades dos atores sociais de a elas se adaptarem. Assim, de uma perspectiva
processual, foram abordadas as variações entre as sistematizações dos fluxos culturais que
os atores sociais realizam no esforço de impor um específico quadro moral que oriente os
índios nas interações – entre famílias, indivíduos de gênero oposto ou grupos etnicamente
diferenciados – e cujos princípios encontram sua matriz antes ou depois do processo de
territorialização.
Acredito não ter esgotado os significados e a compreensão das dinâmicas sociais
aqui focadas, mas a particularidade que o trabalho tem e na qual penso estar sua
contribuição é que, para os propósitos mencionados, foi realizada uma etnografia que,
deslocando o foco da experiência vinculada à construção da identidade étnica, concentrou-
se nas experiências individuais e familiares que permitiram entender a forma de os índios
se organizarem social, ritual e politicamente. Então, a atenção foi dirigida às redes de
relações que os índios constroem (que podem ir bem além das fronteiras étnicas) e às
elaborações e articulações que fazem dos diferentes fluxos culturais presentes na região.
A análise aqui proposta, com especial destaque para os aspectos processuais da
tradição de conhecimento, deseja também contribuir para a compreensão dos efeitos que o
11

processo de territorialização tem sobre ela. Busquei mostrar que a elaboração cultural
deflagrada a partir da experiência da etnicidade vai muito além da encenação de sinais
diacríticos para fora, mas concerne à própria organização social do Cosmo, abrangendo
então não apenas a esfera política, mas também a religiosa e a moral.
Espero também contribuir para uma abordagem às práticas rituais dos índios
desvinculadas da classificação de “catolicismo popular”, categoria esta que, por exemplo,
no caso dos grupos de penitentes aqui estudados, considero limitadora para que se entenda
a especificidade dos princípios de uma tradição que, tanto pela visão do mundo que os
atores sociais cultivam quanto pela forma de gerenciar o conhecimento, está bem distante
da tradição doutrinária cristã, cujos representantes continuam olhando com suspeita as
práticas desses grupos que não se submetem ao controle das hierarquias eclesiásticas.
Nestes termos, espero também contribuir para a compreensão dos múltiplos papéis que têm
os rituais para as unidades sociais abordadas em suas diversas escalas (familiar e étnica).

* * *

Diversamente da proposta metodológica pós-moderna de uma etnografia


multissituada (Marcus, p. 1995), em que o pesquisador tenta captar e traçar associações
entre locais e fatos através da pesquisa realizada em sítios múltiplos e daí compreender as
formações culturais produzidas em diversos lugares, optei pela proposta de Barth (2000b,
p. 177-183), que expressa “a necessidade de procedimentos de descoberta” (p. 177) que
permitam detectar os processos que moldam as expressões culturais nas contingências de
determinados contextos e os graus de ordem que adquirem dentro de sistemas considerados
por este autor sempre “desordenados”. Para tal propósito, Barth afirma que este tipo de
procedimento não permite recortar a priori unidades sociais ou sistemas culturais, e
explicita:
Para situar-se em uma posição a partir da qual é possível descobrir o que
está em jogo e evitar prejulgar quais são os parâmetros, padrões e focos
significativos nesses sistemas desordenados, é recomendável começar
não a partir de cima, mas a partir dos atores sociais, identificando suas
atividades e redes – seguir os volteios (follow the loop), no dizer de
Bateson (1972, p. 178).
12

Assim, para me aproximar das dinâmicas sociais focadas evitei a reificação do


grupo étnico e observei e analisei as experiências tanto individuais como familiares. Parti,
então, dos indivíduos, das tessituras de suas redes de relações, das dinâmicas de criação de
agrupamentos e de fissão dos mesmos. Segui os atores sociais tanto na área indígena
quanto fora dela em virtude dos frequentes deslocamentos para as romarias e as trocas de
visitas com outras coletividades.
No início da pesquisa a observação de circuitos rituais que perpassavam as
fronteiras étnicas me levou a concentrar a atenção principalmente nas relações tecidas entre
os diversos grupos rituais, nos encontros promovidos e nos valores morais que ali
circulavam. Mas essas dinâmicas e a importância de que eram revestidas ganharam luz
somente a partir da observação no lugar onde os valores morais eram “gastáveis”, isto é,
onde havia intensidade de relações. A observação em campo, então, não se limitou ao
tempo extracotidiano dos rituais e das romarias, mas concentrou-se em diversos contextos
do cotidiano dentro da área indígena. O método de observação participante permitiu uma
aproximação com as interações e os diálogos entre os próprios índios, cuja observação em
diferentes contextos ajudou-me na compreensão das dinâmicas sociais, constituindo-se as
fontes mais importantes da pesquisa. Mantive conversações informais frequentes com
diversos interlocutores, não apenas com os índios – especialmente com alguns – mas
também com quem interagia com eles. E foram realizadas entrevistas livres 13 que
conformam também um importante corpus de dados do material etnográfico coletado.
A pesquisa de material documental foi realizada na Igreja de N. S. da Saúde e na
Casa de Cultura no município de Tacaratu (Pernambuco); na Diocese de Crato (Ceará); na
biblioteca e na videoteca da URCA (Ceará); no Museu de Pedro Batista, em Santa Brígida
(Bahia); e no Museu do Índio, no Rio de Janeiro.

* * *

13
Foram gravadas 58 entrevistas, das quais algumas foram feitas com as mesmas pessoas. As entrevistas
livres seguiam apenas algumas perguntas pontuais, deixando o interlocutor fazer suas associações,
levantando os temas que considerasse importantes. Os principais temas abordados foram: trajetórias
individuais e familiares; conflitos políticos e fundiários; atuação das lideranças; atuação dos líderes
carismáticos; as atividades rituais; os percursos formativos dos especialistas; aspectos cosmológicos.
13

Para a análise do material etnográfico escolhi um conjunto de autores, moldando


um paradigma teórico do qual apresento aqui apenas algumas noções e instrumentos que
perpassam o trabalho. Aviso o leitor que na segunda parte desta tese, bem como no
decorrer dela, são esclarecidos outros instrumentos teóricos que foram necessários para
abordar as temáticas mais salientes do trabalho. Optei por não escrever um capítulo teórico
separado, mas busquei diluir o diálogo com os autores a partir das questões que surgiam da
etnografia.
Assumindo uma abordagem processual que reconduz à dimensão histórica dos
eventos sociais, tomei em consideração que a situação que vivenciam os Pankararu é em
grande parte relacionada ao “processo de territorialização” (Oliveira Filho, 2004). Esta
noção é definida pelo autor nos termos seguintes:

[...] é precisamente o movimento pelo qual um objeto político-


administrativo – nas colônias francesas seria “etnia”, na América
espanhola as “reducciones” e “resguardos”, no Brasil as “comunidades
indígenas” – vem a se transformar em uma coletividade organizada,
formulando uma identidade própria, instituindo mecanismo de tomada de
decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais
(inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com o universo
religioso) (p. 24).

Essa imposição por parte do Estado de regras de gerenciamento e delimitação do


espaço territorial e do acesso a ele e à sua administração é, como Oliveira Filho destaca,
alheia às coletividades que detêm formas próprias de territorialização. Como o autor
evidencia em outro trabalho (2010), esse processo não é apenas o resultado da ação do
Estado, mas concorrem para ele as concepções dos indígenas que serão atualizadas em
específicos contextos e terão múltiplos significados, respondendo a distintas estratégias em
diferentes escalas.14
A definição de “situação histórica”15 do mesmo autor (1988) tornou-se
especialmente válida como instrumento de análise do contato interétnico por devolver a
tais dinâmicas sociais a dimensão processual, ressaltando a relação de dominação que as
caracteriza. O universo de pesquisa aqui focado exigiu considerar a “pluralidade de
referenciais” (Oliveira Filho, 1988, p. 265-267) que determinaram específicas escolhas dos

14
O autor ressalta a escala intrafamiliar, étnica e intra-aldeia, em nível regional, bem como nacional e
internacional.
15
Como definição de situação histórica, o autor entende uma “[...] noção que não se refere a eventos
isolados, mas a modelos ou esquemas de distribuição de poder entre diversos atores sociais (1988, p. 57).
14

índios, isto é, os próprios conhecimentos, a própria memória histórica e o cotejamento


entre as diferentes agências atuantes. Como se verá no Capítulo III, a instalação do órgão
indigenista coincidiu com a presença de um movimento salvacionista encabeçado por um
líder carismático que encontrou muitos seguidores entre os Pankararu. As múltiplas
referências e alternativas delinearam uma situação complexa: as mudanças advindas da
nova presença do órgão indigenista e de um surto de movimento salvacionista colocavam-
se no seio de um processo de adaptações divergentes em face das novas realidades.
Se a experiência da construção de uma identidade étnica produz mudanças na
articulação de fluxos culturais16 e impõe certos arranjos organizacionais, achei necessário
tomar em consideração que antes dela há um substrato de experiências, sobretudo em nível
familiar (resultantes, em parte, das reduções em grupo familiares de anteriores grupos
étnicos), que considerei necessário relevar. Essas experiências inserem-se no que Hannerz
(1992) identifica como “formas de vida”, isto é, as interações cotidianas entre indivíduos,
especialmente aquelas vis-à-vis. Seria uma entre as quatro molduras (frames) que, segundo
este autor, canaliza os fluxos culturais, utiliza mecanismos e move lógicas que tendem a
conservar, evitando quanto possível a inovação.17
Pode-se dizer que o grupo étnico Pankararu, resultado do processo de
territorialização, é a condição atual da elaboração cultural que produzem essas “formas de
vida” no esforço de adaptação à realidade contingente. Interessa-me ressaltar que tal
elaboração se torna possível em virtude de as famílias, cujos antepassados eram oriundos
de diferentes lugares e grupos, compartilharem um mesmo “contexto de experiência”. Com
esta ideia pretende-se expressar o contexto que permite a pessoas e grupos realizarem
experiências comuns e/ou similares que os façam refletir sobre o mundo, atualizar o
conhecimento sobre ele e canalizá-lo a partir dos princípios organizacionais que farão
vigorar. Nestes termos, a ideia dialoga e tenta conjugar a proposta de Hannerz (1997) de se
dirigir atenção aos modelos de significação dos fluxos culturais que acontecem em um
determinado contexto, e dar relevo, como sugere Barth (2000a), à dinâmica da experiência

16
O trabalho de Valle (1993, 2004), que analisa o uso e as significações das categorias relativas à etnicidade
entre os Tremembé em diferentes situações e também entre os regionais que a eles se opunham, tornou-se
significativo para a análise do universo de pesquisa aqui focado. O autor propõe abordar as diferentes formas
discursivas como delineando de um “campo semântico da etnicidade” (2004, p. 308-309), apontando e
ressaltando a importância do processo experiencial, reflexivo e interpretativo dos atores sociais.
17
A outra moldura com a mesma lógica de conservação das “formas de vida” seria o Estado. Por outro lado,
os movimentos sociais e os mercados, afirma Hannerz (ibidem), promovem mudanças e críticas ao status
quo. O autor explica que, através da avaliação do material cultural disponível, cada moldura canalizará, mas
também poderá bloquear o fluxo cultural, este não sendo totalmente livre.
15

“como resultado da interpretação de eventos por indivíduos, bem como de uma visão
dinâmica da criatividade como resultado da luta dos atores para vencerem a resistência do
mundo” (ibidem, p. 129). Este trabalho tem o objetivo justamente de ressaltar que os
interlocutores em campo se interrogam sobre as próprias ações e as alheias e também sobre
o seu destino na terra e no além, e constroem suas próprias respostas, atuando segundo
específicas intencionalidades e experiências em virtude das circunstâncias históricas e
políticas que vivenciam.
De acordo com Weber (1983, 2004a, 2004b), tanto as forças mágicas e religiosas
quanto os ideais éticos do dever que decorrem delas são cruciais elementos formadores da
conduta dos indivíduos. A força dos imperativos morais e as concepções peculiares que
aqui se inscrevem e que se analisarão ao longo do trabalho estão atreladas a outros
incentivos que estimulam os índios a adotarem uma determinada conduta e que considerei
necessário analisar, sendo canais para se compreenderem as modalidades dos grupos se
organizarem social e politicamente. Assim, para este propósito, foi necessário dedicar
atenção aos aspectos da vida cotidiana: ações, narrativas, discursos e classificações que se
utilizam para nomear os grupos sociais em interação, bem como os processos de
construção de alianças e aqueles de segmentação. Essas dinâmicas são marcadas por
conflitos que, como afirmou Simmel (1964), em lugar de serem um indício de anomia
social, têm um papel central na construção de unidades sociais.
A construção e a manutenção da reputação individual, sobretudo da familiar,
ganharam importância ao se perceber que em diálogos, gestos e discursos estavam sendo
veiculados juízos de valor sobre os indivíduos e suas respectivas famílias, visando
estabelecer limites de inclusão em um determinado grupo. A ideia de “comunidade moral”,
nos termos propostos por Bailey (1971),18 pareceu-me profícua para a análise das relações
aqui focadas, em virtude do destaque dado por este autor à forte competitividade que
caracteriza as relações entre atores sociais que se identificam como pertencentes a um
mesmo grupo: o motor que anima a vida social e política. No entanto, por considerá-la
mais apropriada às intenções deste estudo, escolhi tomar em consideração a teoria
figuracional de Elias (2000) que, ao centrar sua atenção na interdependência entre
indivíduos e grupos e nas determinantes processuais dos fenômenos sociais, permite

18
Segundo o autor, em uma comunidade moral, os indivíduos “share an allusive, laconic and economical
system of signaling and they conceive of themselves as an unity, ruled by low and regularities and standard
of morality, and ranged against a non-moral world outside” (ibidem, p. 14).
16

abordar os grupos aqui focados e a legitimidade da própria atuação como fenômenos


ligados às relações que se constituem historicamente. De acordo com este autor, o
problema da distinção entre grupos não pode ser reduzido às características internas que
possuem, sendo preciso descobrir a configuração particular que eles formam, isto é, a
natureza da sua interdependência em que o elemento central é o desequilíbrio de poder.
Se os valores morais que circulam na configuração em pauta – entendidos como
cânones de juízos que as pessoas impõem sobre coisas e ações (Barth, 1969) – apresentam
certa convergência, é porque as interações se apoiam numa matriz de status
preestabelecida, uma distribuição de valores sobre as posições. Como sugerem vários
autores,19 entre estes Bailey (1970, p. 5), o quadro moral mais do que prescrever ações tem
a tarefa de limitá-las, na medida em que os conceitos que as veiculam são vagos, deixando
amplo espaço para diferentes manipulações. Ressaltarei no decorrer do trabalho que os
membros das famílias têm, em termos de orientação, um quadro moral unificado mas,
tendo as famílias e seus membros diversas trajetórias e as normas e os valores sendo
organizados por diferentes índios – os chefes masculinos ou femininos de família –
encontram-se moralidades também diferenciadas que geram conflitos inter e
intrageracionais, intergêneros e interfamiliares.
O trabalho de Andrade (2002-2005), resultado do estudo sobre o grupo indígena
Tumbabalá (Bahia), dedica especial atenção às diferentes moralidades presentes no grupo
em pauta, as quais, como afirma o autor, são o resultado de como famílias e indivíduos
participaram do diálogo interétnico na rede regional (2005, p.100). Pelo destaque atribuído
aos aspectos morais – as moralitas Tumbalalá – entendidos não como transcendentes às
dinâmicas históricas e sociais, mas produtos das mesmas, e o atrelamento destes à
percepção e à vivência que os índios têm das relações interétnicas e das trocas rituais na
rede regional, o presente trabalho dialoga bastante com o autor, com a preocupação de
ressaltar as variações internas que visam construir diacríticos entre as práticas rituais e que
delineiam grupos com específicos e diferentes projetos. Nestes termos, como bem observa
Barth:

19
Refiro-me a Barth (2000a, b, c) e Levi (1992). A proximidade entre as perspectivas destes autores torna-se
especialmente clara na coletânea Jogos de Escalas: a experiência da microanálise, organizada por Jacques
Revel (1996). Nela, o artigo de Rosental (p. 151-173) evidencia os procedimentos de pesquisa e a proposta
teórica do autor de se proceder à construção do macro a partir de uma análise micro, acentuando assim a
proximidade com a perspectiva da micro-história. Ressalta também, na abordagem de Barth, a importância
atribuída ao indivíduo como agente ativo e movido por escolhas, colocando em evidência a fragilidade e a
incoerência dos sistemas normativos, abordagem esta que o aproxima de Levi e em geral da micro-história.
17

Reconhecer os posicionamentos sociais e as múltiplas vozes


simplesmente invalida qualquer apresentação da sociedade como um
conjunto de ideias compartilhadas, postas em ação por uma dada
população. Percebendo que as ideias, considerações e intenções diferem
entre as pessoas que participam das interações, precisamos adotar uma
perspectiva que nos permita estabelecer um modelo dos processos
resultantes das propriedades sistêmicas desordenadas que são geradas e
do fluxo generalizado que daí decorre (2000c, p. 186).

Embora a perspectiva teórica de Barth (1975, 1987, 1993, 2000) seja mais bem
aprofundada na segunda parte desta tese (precisando-se destacar outros instrumentos que
serviram para a análise dos dados ali organizados), cabe aqui adiantar a aproximação à
cultura e à tradição que ele propõe e com a qual aqui se está operando.
O autor (2000a) distancia-se das abordagens que consideram a cultura como algo
abstrato e sistêmico e volta a sua atenção para os princípios de organização social que
geram a variação cultural. Destaca ainda que a moldagem da cultura estaria vinculada a
determinados contextos em que há específicas variações de produção da cultura. O modo
de tratar as propriedades distributivas da cultura (2000a, p. 132-136) proposto pelo autor
permitiria observar a canalização de fluxos de valores, conceitos e ideias, movimento este
que faz com que os indivíduos criem seus “estoques culturais” 20 (Barth, 1993) a partir das
próprias experiências e faz também com que a diferença entre pessoas possa se reproduzir.
Redfield (1955, 1965), pioneiro em tratar a organização social da tradição,
preocupou-se com a circulação dos itens culturais que perpassavam diferentes esferas e
coletividades, mas abordava as tradições – Grande e Pequena – como totalidades pré-
constituídas e reificadas, vendo a Pequena como parte (em seus termos half-society e/ou
half-culture) dependente da Grande, e explicando tal fenômeno social como resultados
“sincréticos”, isto é, como fusões dessas totalidades. Orientado por um paradigma teórico
que se baseava no conceito de aculturação, o autor não se concentrou nos processos de
apropriação e articulação contextual dos fluxos culturais nas comunidades por ele
estudadas, partindo do pressuposto de que a incorporação desses fluxos determinava a
progressiva incorporação à Grande Tradição.
Como já ressaltado por Oliveira Filho (1988) ao definir o conceito de “situação
histórica” acima mencionada, há a necessidade de afastar-se das dualidades como

20
Nos termos de Barth (1993): “[…] ‘cultural stock’ of knowledge, concepts, and values. The task then is to
explore the possible pattern, the degrees of internal coherence and interpersonal sharing, that might obtain
within this, or parts of this, stock. Such patterning must evidence the dynamic result of processes, since the
‘cultural stock’ of every person will be continuously modified and replenished by new experience (ibidem, p. 173).
18

tradicional versus moderno, ou sociedade nacional versus grupo indígena, as quais acabam
substantivando grupos como unidades homogêneas. A visão da tradição em Redfield
(ibidem) contrasta com a visão de Barth (1987) que, ao contrário, aborda o material
cultural como uma correnteza, ou seja, como fluxo livre cuja sistematização é contextual e
em processo constante de elaboração. Em outras palavras, de acordo com Barth (1987), a
tradição de conhecimento não se define por seus conteúdos nem por um conjunto de ideias
abstratas imbricadas em representações coletivas, mas pelas práticas e associações
realizadas por atores sociais em contextos concretos.
Para terminar esta sintética apresentação da perspectiva teórica que orienta o
presente trabalho, preciso ainda explicitar a distância assumida da ideia de “invenção da
tradição” proposta por Hobsbawm & Ranger (1984), cujo uso extensivo, sobretudo nos
trabalhos sobre os índios do Nordeste, veicula e cristaliza uma ideia de “artificialidade” das
tradições. Sem dúvida, a proposta dos autores ajudou a retirar a ênfase essencializadora e
estanque atribuída às tradições que reiterava a ideia de “autenticidade” (perigosa categoria
que encontra suas raízes na tradição ocidental e ganha força no século XIX), impedindo de
serem abordados os processos históricos que lhe dão vida.
Compreendo assim o uso da ideia de “invenção” que vários estudiosos a partir da
década de 8021 adotaram para desmantelar a ideia de “autenticidade”, concentrando-se em
destacar as dinâmicas de construção de identidades entre vários grupos étnicos da região
Nordeste. Todos eles enfatizaram a dimensão política dessas dinâmicas e privilegiaram
uma abordagem processualista e interacionista, trabalhando com a ideia de “sinais
diacríticos” (Barth, 1969). Esses trabalhos têm enorme importância em função das linhas
de pesquisas representadas, uma vez que permitiram focalizar os processos identitários no
Nordeste e dar visibilidade a coletividades que até poucas décadas atrás, eram de escasso
interesse dos antropólogos.
No entanto, penso que a ideia de “invenção” traga encoberto um perigo: a
possibilidade de apagar a percepção que as coletividades (que se tornam nossos objetos de
estudo) têm do processo de elaboração da própria tradição em virtude dos eventos
históricos que a moldam. Como espero que se torne claro no decorrer deste trabalho, a

21
Diversas são as contribuições que neste período de forte incremento das mobilizações étnicas na região
deram-lhe visibilidade a partir do prisma não mais calcado nas teorias sobre a aculturação que haviam
marcado, por exemplo, os trabalhos de Amorim (1970) e Nasser (1975). Muitas delas encontram-se reunidas
no texto organizado por Oliveira Filho: A viagem da volta: Etnicidade, política e reelaboração cultural no
Nordeste indígena (2004).
19

consciência que os índios têm desse processo está muito longe de uma “invenção”. Ao
contrário, domina a ideia da continuidade tanto no que diz respeito à tradição quanto à
identidade étnica, e eles se encontram na posição de descartar a ideia cristalizada no senso
comum de que “não tem mais índios no Nordeste”, e que aqueles que hoje se nomeiam
como tal seriam “impostores” e “inventores” de tradições indígenas. 22
A ideia de “invenção” para abordar a tradição parece-me, então, pouco sugestiva
das dinâmicas de elaboração dos índios dos processos que vivenciam, e também perigosa
no sentido de que as desautorizam. Diversamente, pensar as tradições como “em
processo”, isto é, em constante mudança em virtude das situações históricas e políticas que
os atores sociais vivenciam e a elas as adaptam, afasta a ideia de criação abrupta que a
noção de “invenção” veicula.
Entendo que a descontinuidade dos grupos étnicos que caracterizou a região
Nordeste não apagou unidades sociais (especialmente famílias), com suas identidades e
conformando comunidades políticas em contextos específicos, que tinham práticas mágico-
religiosas (em cultos domésticos) e elaborações dos fluxos culturais que o processo de
territorialização impulsionou diversamente a produzir. Mas esse processo de elaboração é
algo contínuo, assim como é a percepção que dele têm as unidades sociais que o
vivenciam.

* * *

Algumas contribuições ao estudo dos Pankararu que constituem um corpus de


análises sobre diferentes temáticas e com diversas perspectivas precisam ser aqui
destacadas (ainda que de forma muito resumida), sendo referências que perpassam o
presente trabalho.
Os estudos realizados sobre os Pankararu a partir das primeiras décadas do século
XX mostram claramente as orientações teóricas dos autores e as preocupações que
vigoravam em tempos distintos. As primeiras contribuições são de Estevão Pinto (1938) e

22
Reiterar a ideia de “invenção” (apropriada por diferentes grupos sociais) pode se tornar uma âncora para as
argumentações que visam debilitar as reivindicações dos índios. Discussões atuais que ressaltam a autoridade
dos acadêmicos que utilizam a noção de “invenção da tradição” e as críticas dirigidas a ela pelos próprios
“nativos” são exploradas no artigo de Briggs (1996), que discute as implicações teóricas e políticas de tal
uso.
20

o conteúdo do artigo mais importante – “Alguns aspectos da cultura artística dos Pankararu
de Tacaratú” (1938) – que se repete em outras edições (1952, 1958) com apenas algumas
mudanças, é um detalhamento de um conjunto de aspectos materiais e imateriais que
visavam mostrar os vestígios de uma antiga cultura indígena. Realizando um inventário
desses elementos e descrevendo alguns rituais, afirma a possibilidade de os Pankararu
pertencerem ao grupo Gê, embora em outro trabalho (1958) reconsidere tal ideia e
proponha a hipótese de serem remanescente dos índios Cariri. Chama particularmente a
atenção no ensaio deste autor a seguinte afirmação:

Sociologicamente falando, os pankarú estão degenerados, isto é,


perderam o que Gilberto Freyre chama, com o apoio de Pitt-Rivers, o
“potencial, o élan, o ritmo, a capacidade construtora de cultura” (1938, p.
63, itálico original).

A noção de “degeneração” remete às teorias que a partir da metade do século XIX


influenciaram o campo científico e político, orientando estudos sobre antropologia,
criminologia e psiquiatria (como, por exemplo, aqueles de Lombroso), e sustentando
políticas raciais. Diversas são as categorias que serão empregadas tendo em vista as teorias
sobre a aculturação e que podem se encontrar em alguns estudos dos anos 70 sobre os
índios do Nordeste,23 cujas perspectivas se voltam para uma “etnologia das perdas”
(Oliveira Filho, 2004).
Mais destaque que o trabalho de Pinto (1938) sobre os Pankararu teve o texto do
etnólogo e então diretor do Museu Goeldi, Carlos Estevão Oliveira (1942), resultado de
uma conferência em 1937 realizada no Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
Pernambucano e posteriormente – em versão reduzida – no Museu Nacional do Rio de
Janeiro. Como já destacado por Arruti (1996), o etnólogo apresenta de forma bastante
sensacionalista as “surpreendentes descobertas” feitas no sertão pernambucano, tendo
visitado a área correspondente ao atual território indígena Pankararu. Retrata os elementos
culturais e rituais que chamaram a sua atenção, sublinhando a existência de traços
“originários” indígenas que, apesar dos séculos de colonização, os Pankararu teriam
conseguido resguardar. As intenções do autor concentravam-se em oferecer dados para que
o público pudesse admirar os elementos culturais “originários” que teriam “resistido” ao

23
Refiro-me, por exemplo, a Amorim (1970) e Nasser (1975) e sobre os Pankararu, como se verá ao trabalho
de Silva (1978).
21

espólio da colonização e da catequização e fazer com que ele lhe dirigisse a atenção.
Tratava-se de uma necessidade empírica de mobilizar os acadêmicos e para que o SPI
voltasse o seu olhar para os Pankararu, como de fato se concretizou.
Quatro décadas mais tarde, Silva (1978) descreve brevemente alguns aspectos da
vida cultural, social e religiosa dos Pankararu. Num esforço de classificação das atividades
rituais, o autor as divide da seguinte forma:

a- festas e cerimônias indígenas tradicionais (Menino no Rancho, Corrida


do Imbu, festa do Mestre Guia, puxamento do Cipó e o Toré);
b- festas e cerimônias ligadas a um catolicismo popular arcaico (rituais
dos grupos penitentes masculino e feminino);
c- festas e cerimônias vinculadas ao catolicismo popular moderno (festa
de Santo Antônio, novena de São João, novena de São Pedro, Semana
Santa, romarias de culto a santos e líderes espirituais, tais como Cosme e
Damião e Padre Cícero (ibidem, p. 117).

Segundo Silva, as afirmações dos índios – indagados sobre a heterogeneidade das


práticas rituais – manifestavam a procura de unificação das diferentes atividades rituais. O
autor explica esta atitude como resultado de uma “fusão sacral” devida a “[...] uma
confusão sincrético-religiosa pairando ao nível das racionalizações, em um esforço para
eliminar as contradições no plano de sua consciência ética” (ibidem, p. 117). Orientado
pelas teorias da aculturação, Silva destacou que os índios estariam em franco processo de
integração, ainda que “traços indígenas”, como as primeiras atividades rituais
mencionadas, pudessem ainda ser apreciadas.
Uma vez reportados ao contexto em que esses trabalhos foram produzidos e às
preocupações teóricas, políticas e empíricas que os orientaram, os dados registrados por
esses autores podem ser úteis para a compreensão de vários aspectos das expressões
culturais e materiais, divorciando-os do exotismo com que foi voluntariamente rotulado.
Com efeito, embora em um universo de pesquisa diferente, Galvão (1976), em seu estudo
no Baixo Amazonas a partir de uma perspectiva também calcada na ideia de aculturação e
de fusões sincréticas entre diferentes tradições, afasta-se da procura incessante das origens
dos elementos e concentra-se no seu uso atual, entregando-nos informações muito valiosas
para a compreensão de aspectos cosmológicos e das práticas mágico-religiosas não apenas
circunscritas a um determinado grupo, mas que circulam em regiões dificilmente
22

delimitáveis.24 Estas informações foram especialmente válidas também ao abordar o


universo de pesquisa aqui focado.
O trabalho que tem especial destaque e se tornou referência para o estudo dos
Pankararu e das “emergências étnicas” em geral no Nordeste é a dissertação de mestrado
de Arruti (1996). Com uma perspectiva teórica que conjuga antropologia e história, o autor
aborda o processo de territorialização com foco especificamente nos Pankararu, dando
relevo tanto às mudanças ideológicas e políticas que ocorriam e que fizeram com que o
órgão indigenista atuasse na região, quanto os circuitos rituais que conectavam diversas
coletividades que mutuamente se apoiaram para reivindicar seus direitos, e também as
implicações da construção de um território étnico e do próprio grupo étnico. O trabalho
analisa aspectos da organização política e social do grupo e os novos arranjos impostos
pelo órgão indigenista. Aponta e explica a importância que tem o segredo nas práticas
mágico-religiosas e o contínuo investimento de uma carga mágica sobre o mundo, que ele
denomina de “reencantamento”, visto como um modus operandi próprio dos Pankararu
(ibidem, p. 178).
Pela influência que o trabalho de Arruti (1996, 1997, 2001, 2002, 2004) tem em
termos de riqueza de exploração e análise de muitas questões aqui abordadas, no decorrer
da tese se fará referência às suas elaborações.
Com uma postura teórica distante daquela de Arruti, Ribeiro (1992) explorou a
percepção dos Pankararu sobre o próprio território a partir da mitologia dos índios,
buscando destacar as estruturas inconscientes – “o imaginário Pankararu” – que a
orientariam. A autora toma os relatos míticos lendo-os como um “texto” desde uma
perspectiva baseada numa “antropologia do imaginário”, destacando divisões em metades,
oposições binárias que regulariam a organização social e espacial dos índios. Concordo
plenamente com Arruti (ibidem, p. 142) na crítica dirigida à abordagem teórica escolhida
pela autora que, ao focar a organização espacial dos Pankararu como um “texto”, tirou-lhe
a dinâmica processual e tornou símbolos faccionários em símbolos étnicos, não reportando

24
Destaca-se a importância da argumentação de O’Dweyer (2005) construída através do diálogo com o
trabalho de Galvão (1976), comparando seus dados de campo nas chamadas comunidades negras
remanescentes do quilombo de Oriximiná (Pará) com aqueles do mencionado autor no Amazonas,
constatando a semelhança dos dados sobre a vida religiosa em ambos os universos de pesquisa. Tal
argumentação leva a autora a afirmar a impossibilidade de delinear “uma característica diferencial que faz
toda a diferença” (p. 106) a partir do tipo de religiosidade como uma especificidade cultural do grupo por ela
focado. A argumentação da autora aponta os perigos de uma reificação das fronteiras étnicas e de uma
sustentação dos grupos como totalidades (p. 109), preocupações estas que orientam também o presente
trabalho.
23

os diferentes posicionamentos dos atores sociais que foram seus interlocutores. Como
Ribeiro explicita, procurou nos relatos míticos as redundâncias nas quais se encontraria “o
núcleo do texto, as unidades significativas” (ibidem, p. 33) que a levariam à compreensão
do “imaginário Pankararu”. A abordagem aqui escolhida se afasta da autora também por
retirar da cosmologia a sua essência processual, bem como a importância dos agentes que a
moldam a partir de específicas intencionalidades.
O trabalho de Athias (2002, 2006), focado sobretudo em saúde, reprodução e
sexualidade entre os Pankararu, delineia uma linha de pesquisa que aponta para a
importância dos aspectos cosmológicos no “sistema médico” dos índios e das diferenças
que os eles constroem com a biomedicina, oferecendo ainda dados e análises fundamentais
sobre as práticas de cura e seus especialistas, aspectos estes que estão também no vídeo
com sua direção (2006) sobre o ritual menino no rancho. Assim também os trabalhos que
seus orientandos na UFPE desenvolvem com jovens e mulheres pankararu contribuem
significativamente para a compreensão de diversos aspectos das dinâmicas sociais do
grupo.
Pelas temáticas abordadas em sua dissertação de mestrado relativas aos rituais que
realizam no período da quaresma e no que ela denomina de “complexo ritual Pankararu” –
e os aspectos cosmológicos que a ele concernem – o trabalho de Matta (2005), com um
enfoque teórico diferente daquele escolhido por mim e baseado nos postulados
durkheimianos, ofereceu estímulos para a reflexão e, no decorrer da tese, estabelece-se um
diálogo com a autora sobre algumas temáticas de relevante significado para a análise que
proponho. Assim, a perspectiva e a argumentação adotadas e as conclusões às quais a
autora chegou serão aqui tomadas em consideração.
O mais recente trabalho de Albuquerque (2011), resultado de sua tese de doutorado,
é uma contribuição à compreensão da “dança dos praiás” realizada pelos Pankararu
residentes em São Paulo. Ele vê a dança como um sinal diacrítico que os Pankararu usam
para dotar-se do capital simbólico necessário para obter visibilidade e reconhecimento
como grupo etnicamente diferenciado, enfrentando múltiplos preconceitos que dominam a
visão sobre os índios naquela cidade. O autor trabalha com a ideia de “tradução
intercultural” ao abordar o ritual com um ato performático e político que permite a
afirmação dos índios em face das resistências que há em função da cristalização da sua
imagem impregnada de “autenticidade”, em virtude de categorias como “assimilados”,
24

“aculturados” e “desaldeados” persistirem, negando-lhes, assim, o reconhecimento dos


próprios direitos.

* * *

Os Pankararu estão localizados entre os municípios de Petrolândia, Jatobá e


Tacaratu, no contraforte da Serra da Borborema, às margens do rio São Francisco, no
sertão do estado de Pernambuco (mapa I). Há uma grande parcela de Pankararu em São
Paulo, onde ocupam, em sua maioria, a favela do Real Parque, mas se distribuem também
em outras localidades da cidade.25 Os dados da Funasa referentes ao ano de 2010 estimam
uma população de 8.47726 pessoas nas duas TIs e, em Minas Gerais residem 258 pankararu
no município de Coronel Murta.
As duas terras indígenas (mapa II e III) no estado de Pernambuco foram
homologadas em diferentes momentos: a primeira (TI Pankararu) em 1987, com 8.100
hectares; a segunda (TI Entre Serra) obteve a homologação apenas em 2007 somando os
hectares que faltavam à primeira reivindicação dos índios já nos anos 40, perfazendo as
duas um total de 14.290 hectares,27 correspondentes à memória da doação de uma sesmaria
à missão religiosa que teria aldeado28 os próprios antepassados entre os séculos XVIII e
XIX (Arruti, 1996).

25
Para maiores informações sobre os Pankararu em São Paulo, ver Matta (2005) e Albuquerque (2011).
Albuquerque informa que a associação SOS Pankararu tem cadastrados 2.000 índios morando em São Paulo
(p. 21)
26
Segundo o registro da Funai em 1987, a população estimada era de 3.676 índios e, em 2003, era de 5.584
na TI Pankararu. Os dados da mesma Funai relativos à TI Entre Serra no ano de 2001 informavam a presença
de uma população de 1.072 índios.
27
Os dados reportados pelo ISA (Instituto Socioambiental) não estão em plena concordância com os acima
referidos, havendo novos ajustes. Estes dados informam que a TI Pankararu é de 8.376 ha, e a TI Entre Serra
é de 7.550 ha, o total das duas terras sendo então de 15. 926 ha.
28
Informações sobre o aldeamento de Brejo dos Padres serão reportadas no Capítulo I.
25

Mapa I. Localização das TIs Pankararu e Entre Serras. Fonte: Funai/DAF


26

Mapa II. TI Pankararu. Fonte: Funai/DAF


27

Mapa III. TI Entre Serras. Fonte: Funai/DAF


28

O número das aldeias e a divisão entre elas é bastante variável, dependendo dos
interlocutores indagados, e responde – como já argumentado por Arruti (ibidem) – a como
os grupos familiares se distribuem no recorte espacial das áreas indígenas.

Croqui I. Localização das aldeias nas TIs

A aldeia Brejo dos Padres, localizada aproximadamente no centro do quadrado que


compreende ambas as TIs (croqui I e II),29 é o eixo das atividades religiosas,
administrativas e políticas. As diversas fontes de água que irrigam as terras desta aldeia e
seus arredores tornam a paisagem verdejante, destacando-se da caatinga semiárida que
caracteriza o restante da paisagem do sertão. Sendo a terra aqui especialmente fértil, é
possível plantar diversos tipos de feijão, mandioca e milho, entre outros alimentos que se
tornam a base da subsistência das famílias com roças nesta região. Nas outras regiões da

29
No croqui reportam-se as aldeias que, além das que foram conhecidas pessoalmente, diversos
interlocutores me indicaram. Para a localização das aldeias e para a realização do croqui da aldeia Brejo dos
Padres, tive a ajuda valiosa de Bartolomeu Cícero dos Santos, pankararu residente em Brejo dos Padres, e
também serviu de exemplo um croqui editado pela ONG SSL.
29

área indígena, as roças não alcançam o mesmo rendimento, havendo uma falta significativa
de água para a irrigação, agravada pelos períodos de seca que reduzem depois as colheitas.

Croqui II. Brejo dos Padres

1. Complexo do Posto da Funai, Escola, Armazém; 2. Igreja Santo Antônio; 3. Pólo Base Funasa; 4.
Horta comunitária; 5.Cemitério; 6. Casa de farinha; 7. Rua dos Oliveira; 8. Rua dos negros; 9.Terreiro de
João Binga; 10. Terreiro Poente das Calu; 11. Terreiro da Fonte Grande; 12. Terreiro Araticum; 13.
Terreiro Muricizeiro; 14. Terreiro de João Gouveia; 15. Terreiro de Rosinha Preta; 16. Terreiro de
Vicença.

A região de Brejo é também rica em frutas, sobretudo pinhas, cajus, muricis e


mangas, que alguns comercializam nas feiras dos municípios em torno da área. A
agricultura de subsistência é a atividade econômica principal, embora, como disse, não seja
suficiente para suprir as necessidades das famílias. O período do plantio começa
geralmente em março, depois das primeiras chuvas, e termina em setembro. No entanto, o
calendário agrícola é sempre bastante incerto e depende das chuvas, que determinam o
êxito das colheitas. Várias famílias criam galinhas, porcos e cabras e algumas (uma
30

minoria) têm poucas cabeças de gado. Segundo afirmam os mais velhos, a caça era uma
atividade frequente e rendia bastante, mas com o desmatamento de partes da área indígena,
assim como dos arredores, houve uma diminuição das espécies animais, tornando esta
atividade pouco expressiva para satisfazer as exigências alimentares das famílias.
Como será explicitado na primeira parte da tese, novos recursos passaram a ser
fontes de renda, vindo a suplementar a precariedade da colheita, o escasso comércio de
fruta e verdura e as aposentadorias que, em muitas famílias, é a única renda.
Não houve neste trabalho a intenção de reconstruir a história das descontinuidades
étnicas no Nordeste, nem dos processos de territorialização e das dinâmicas relativas à
construção das identidades étnicas que já outros autores abordaram e analisaram 30; remeto
para esta análise especificamente dos Pankararu, ao trabalho de Arruti (1996, 1997, 2002,
2004). No entanto, avisa-se ao leitor que as informações de ordem histórica estão diluídas
nos diversos capítulos da tese, vinculadas a específicos acontecimentos em virtude dos
argumentos tratados e das referências que os atores sociais fizeram deles.
Quero aqui destacar a mobilidade que caracterizou a população da região nas
diversas situações históricas e, como ressalta Arruti (1996, p. 19-20, 57), a importância dos
deslocamentos familiares causados por fugas ou pela procura de terra ou, ainda, por
encontros rituais. Esses grupos familiares que constituíam parcelas de antigos grupos
étnicos foram se deslocando e sendo confinados nos aldeamentos para depois se
dispersarem novamente em virtude das medidas adotadas pela política fundiária após o
Diretório Pombalino, e ainda pela Lei da Terra, em 1850, que acelerou o desmantelamento
dos aldeamentos e o acirramento da política da “mistura” (Oliveira Filho, 2004, p. 25-26).
No contexto da marcante e indiscutível descontinuidade étnica, julgo ser fundamental
realçar a importância das identidades familiares que, diversamente das identidades étnicas,
parecem ser menos frágeis em face das ações violentas e compulsórias do Estado.

* * *

30
Entre os trabalhos que abordam os processos históricos com foco nos povos indígenas do Nordeste,
destacam-se: Dantas, Sampaio e Carvalho (1992), Puntoni (2002), Pompa (2002), Oliveira Filho (2004,
2011).
31

Esta tese estrutura-se em três partes, cada uma contendo três capítulos.31
A primeira parte concentra a atenção nos elementos da organização social e política
dos índios. Para tal propósito, foram inicialmente tomadas em consideração as
classificações que eles utilizam para denominar os grupos sociais em interação,
delineando-se assim a especificidade da arena focada. No segundo capítulo, são abordadas
as principais unidades sociais e políticas (famílias extensas e troncos) e os processos de
agrupamento e fissão que permitem destacar a construção dos grupos em constante
transformação. É analisada a trajetória de um específico tronco, realçando-se a rede de
relações construídas por membros das diferentes famílias extensas que o compõem, as
alianças tecidas e os impulsos autonomistas das mesmas, bem como a hierarquização das
competências dentro das famílias. São ressaltados os valores morais que orientam os atores
sociais para a construção da reputação individual e familiar, com relevo para as tensões de
um quadro moral em mudança. Destacam-se as pressões do órgão indigenista para
centralizar o poder político, bem como a multiplicação dos caciques na área, o que denota
a necessidade de uma representatividade múltipla das diversas comunidades políticas e a
importância que têm as lideranças dentro delas com específicos poderes mágico-religiosos.
No Capítulo III, como já mencionado acima, analisa-se o surto de um movimento
salvacionista ao qual parcelas de Pankararu aderiram, a representação que fazem os índios
do próprio líder carismático e a legitimidade que ele adquiriu em termos de regulação
moral, comparando-se as atitudes dos índios em relação às atuações deste agente e da
agência indigenista, cujas estratégias e projetos baseavam-se em princípios e concepções
diferentes.
Na segunda parte, após ter explicitado alguns lineamentos teóricos que orientam a
abordagem aos dados etnográficos referentes à tradição de conhecimento e aos processos
rituais, são descritas e analisadas as diversas articulações dos fluxos culturais realizadas
por especialistas rituais vinculados a grupos rituais diferentes (penitentes e praiás). As
distintas sistematizações desses fluxos – que se apresentam como diferentes
hierarquizações das entidades cultuadas pelos Pankararu – são abordadas a partir dos
próprios atores que as realizam, ressaltando-se o seu objetivo de repartir competências das

31
Uma advertência ao leitor acerca de alguns grifos empregados: i) As aspas se referem a: citações de textos;
breves trechos de entrevistas; categorias analíticas; expressões e terminologias que querem ser destacadas por
terem importância no contexto social focado, sem, no entanto, pretender desenvolver uma análise
aprofundada de seus significados; ii) O itálico emprega-se para: noções e expressões próprias dos Pankararu
que são foco de análise; termos em língua estrangeira.
32

práticas rituais de cura entre grupos étnicos. Pela importância que têm os especialistas
rituais na construção de um quadro moral que serve como orientação nas interações entre
indivíduos e grupos, e pela autoridade que se lhes atribui em função da capacidade de
comunicação com as entidades e de intervenção nos processos de cura, foi-lhes dedicada
especial atenção. Foram abordados e analisados, sobretudo, os aspectos relativos à
formação dos especialistas e à maneira de gerenciar o conhecimento, assim como foi dada
atenção às classificações das doenças e aos diversos rituais de cura, com destaque para os
pedidos e pagamentos de promessas como modelo mobilizador das relações de
interdependência que se consolidam entre especialistas e pacientes. Reportam-se as
narrativas e as posições tomadas por alguns especialistas com o objetivo de mostrar um
leque de variações, destacando-se a importância tanto dos aspectos experienciais quanto
das orientações das famílias. Nas considerações gerais desta segunda parte, retoma-se o
diálogo teórico à luz dos dados etnográficos, explicitando-se os elementos e a
especificidade da tradição de conhecimento que os índios cultivam.
Na terceira parte são descritos e analisados os processos rituais com o objetivo de
compreender os diferentes papéis existentes na vida social e política dos Pankararu. No
Capítulo VII, são debatidas as especificidades dos grupos rituais penitentes (masculino e
feminino), as atribuições que têm em termos de controle e regulação da moral, as formas
de recrutamento dos adeptos e significado dos mistérios construídos em torno, sobretudo,
do grupo masculino e, finalmente, são descritas e analisadas as performances rituais de
maior destaque que são de sua competência.
No Capítulo VIII são abordados os circuitos rituais delineados pelas romarias e
pelas trocas de visitas entre uma parcela dos Pankararu e outros grupos rituais da região
com quem estabeleceram vínculos há muito tempo. O objetivo é destacar um circuito ritual
de cura que desborda as fronteiras étnicas e que, em virtude da crescente ênfase na
etnicidade, recebe críticas até ásperas de um grupo mais restrito de pankararu. Analisa-se
também o papel que têm as romarias como momentos em que se vivenciam as communitas
– nos termos propostos por Turner (1974), como experiências coletivas, mas igualmente
como reativadoras da memória de grupos de romeiros Pankararu ao percorrerem um
território marcado pela passagem de seus líderes carismáticos.
A etnografia dos rituais – alguns dos quais sem economia de detalhes – tem como
objetivo mostrar as modalidades das performances não verbais que remetem à
especificidade da tradição de conhecimento. Abordados como eventos comunicativos e
33

como atos, no sentido de um agir sobre o mundo, são destacados os múltiplos papéis que
desempenham tanto na construção das reputações das famílias, na performatização da
adesão a um quadro moral, na comunicação do mesmo e – especialmente desenvolvido no
último capítulo – na importância que têm em termos de incentivo à solidariedade entre a
coletividade étnica.
34

Parte I

De troncos, famílias e conselheiros: elementos de organização


social e política
35

Capítulo I. A arena

Ao prestar atenção nos termos empregados para a autoidentificação, estimulando os


interlocutores a me iluminarem sobre as nuances que os diferenciam, pude penetrar
lentamente nas construções discursivas que delimitam espaços de pertencimento, bem
como compreender as dinâmicas inerentes à construção da superioridade de grupos e sua
flexibilidade: as construções que Elias (2000) chamou de “fantasias coletivas”, que
conseguem ser mantidas segundo a posição de poder dos grupos que delas se orgulham. A
inclusão num agrupamento e os vínculos entre seus membros longe de serem determinados
de uma vez por todas, são sensíveis a situações que podem alterar o status quo. Conflitos
de diversas naturezas (desde a esfera mais íntima até a pública e a política) levam a
reconfigurações, quebrando-se alianças até então sólidas e criando-se outras, as rupturas
nas relações podendo ser momentâneas, restabelecendo-se depois de um tempo.
As categorias e as metáforas empregadas pelos atores sociais para se referirem às
complexas redes de relações ganharam sentido ao longo da pesquisa, enquanto se
compreendiam mais profundamente o contexto e os diferentes níveis de vínculos que unem
seus membros. Tronco velho, pontas de rama, família, parente e povo estabelecem níveis
de distância ou proximidade e hierarquias entre grupos, marcando limites de inclusão em
circuitos de lealdades em constante movimento. O sentido de pertencimento a um
agrupamento expressado através de um “nós” genérico assumia também significados
diferentes, dependendo do contexto de enunciação, supondo-se sempre a presença de
“outros-eles”.
De maneira geral, pela designação de tronco velho se entendem os índios residentes
na atual área indígena Pankararu que auxiliaram as pontas de rama32 no processo de
reconhecimento étnico. Estes grupos – as pontas de rama – compõem-se de famílias
vinculadas ao tronco velho por relações de parentesco, sendo seus membros considerados
parentes e seu conjunto como parte de um mesmo povo. O termo povo abrange diferentes
significados: usa-se correntemente para se referir à família de pertença ou às outras
famílias; para indicar um grupo ritual ou uma congregação religiosa; para designar o
próprio grupo étnico ou os outros. As últimas duas acepções podem ser usadas

32
Entre os grupos que se reconhecem como pontas de rama estão os Kantaruré, Kuruazu, Kalankó,
Koiupanká, Katokinn, Jeripancó e Pankaru. Diverso é o caso dos Pankararé, que disputam com os Pankararu
a pertença ao tronco velho.
36

conjuntamente, isto é, a pertença a um grupo ritual ou a uma congregação é associada à


pertença a um grupo étnico. O uso do termo pode simplesmente assinalar diferenças entre
grupos sociais sem uma aparente avaliação moral das qualidades, ainda que na maioria das
vezes os interlocutores o usassem para reiterar a distância a ser mantida para viver sem
discórdias.
O deslocamento dessas famílias que hoje formam as pontas de rama resultou de
um processo compulsório iniciado após a extinção do aldeamento Brejo dos Padres33, em
1875 (Hohenthal, 1960, p. 55; Arruti, 1996), quando a terra foi repartida em lotes
distribuídos entre famílias indígenas, negras e fazendeiros locais. Esse período é lembrado
pelos Pankararu como a “época das linhas”, e os relatos das inúmeras violências sofridas
tornaram-se a base da construção de uma memória comum de sofrimento que ecoa nos
discursos dos mais jovens e politizados das aldeias. O conteúdo desses relatos refere-se às
fugas de famílias para as serras que circundam a área e para lugares mais distantes do
Nordeste, ou mesmo do país, em face das perseguições e das invasões dos linheiros ou
coronéis – latifundiários e oligarcas da região – em seu território e das violências que estes
reservaram aos índios. São inúmeras as histórias contadas sobre o relacionamento entre
coronéis e índios que, além de enfatizarem a violência que eles empregavam para se
apoderarem de qualquer coisa ou pessoa, deixam transparecer também as redes complexas
de vínculos tecidos pelos atores sociais pertencentes a ambos os grupos sociais.
Os índios que trabalhavam nos engenhos de propriedade dos coronéis estabeleciam
com eles relações de compadrio, o que, por um lado, lhes garantia proteção e, por outro, os
tornava seus reféns. No contexto desta relação de dominação, os índios deviam demonstrar
fidelidade ao “patrão”, sob a ameaça de perderem o respaldo e ainda serem perseguidos ou
mortos. Alguns interlocutores dentre os mais velhos, que guardam na memória os relatos
de seus ascendentes, contaram episódios de castigos corporais e humilhações cuja

33
Dados do Peti (1993) revelam a presença de missionários no século XVII que de Santo Antônio da Glória,
na Bahia, se deslocaram até Pernambuco. Às margens do São Francisco reuniram no local hoje chamado
Brejo dos Padres índios pankararu, que teriam descido das ilhas de Surubabel, Acará e Várzea (ibidem, p.
38). Hohental (1960) informa que os Pankararu e os Poru que viviam nessas ilhas eram aldeados por
capuchinhos italianos no século XVIII (ibidem, 55). Mais tarde, informa Arruti (1996, p. 23), os Pankararu e
os Poru foram localizados em dois aldeamentos organizados sempre por capuchinhos italianos já na metade
do século XIX. A respeito do aldeamento Brejo dos Padres, Hohenthal (ibidem) explicita que não há clareza
nas fontes, mas Arruti (ibidem) informa que teria sido criado por oratorianos ou capuchinhos, os quais uniram
ali Poru, Pankararu, Uma, Vouve e Jeritacó (Barbalho, 1988 apud Arruti, 1996, p. 23). As informações
encontradas na Casa de Cultura de Tacaratu, apresentadas como a “história oficial” do município, embora
sem referência às fontes originais, atestam também que uma missão da Ordem de São Felipe Nery teria
aldeado parcelas de diferentes grupos indígenas em Brejo dos Padres e que lá já existia uma concentração de
índios que se denominavam Cana-Brava. A mesma informação é reiterada por Pinto (1938, p. 58).
37

ferocidade intimidava e inibia qualquer impulso de rebelião. Essas narrativas visavam


evidenciar a assimetria entre os grupos sociais em interação que teria se sustentado em
virtude da superioridade militar dos coronéis e da debilidade das famílias indígenas, cuja
dispersão forçada não permitia a consolidação de coalizões capazes de se tornarem
ameaçadoras.
A escassez da terra, as secas que se abatiam sobre a região e as perseguições antes e
depois da extinção do aldeamento foram os principais motivos que determinaram a
mobilidade destas coletividades (Arruti, 1996). Após a instalação do Serviço de Proteção
ao Índio – SPI na área, em 1940, a mobilidade dos Pankararu não parece ter diminuído. A
forte migração para São Paulo a partir da década 50 do século passado mostra a
continuidade dos deslocamentos, com os Pankararu – como outros inúmeros nordestinos –
partindo para as metrópoles.34 Os que lá fixaram a própria moradia são também
considerados pontas de rama, mantendo estritos vínculos com as famílias que
permaneceram na área indígena.
Para sustentar a tese de uma relação paritária entre o tronco velho e as pontas de
rama, Arruti argumenta que estas metáforas se prestam para pensar os efeitos do tempo e
“o jogo entre a imagem de laços naturais e as experiências eminentemente históricas”
(1996, p. 35) que teriam um efeito relativizador sobre essas categorias. De fato, afirma
Arruti (p. 35), os membros do tronco velho das aldeias Pankararu percebem-se como
pontas de rama em face de seus antepassados. Embora as classificações tronco velho e
pontas de rama não respondam a um sistema fixo de relações hierárquicas, o par tampouco
se presta para definir relações simétricas. Nos relatos dos membros do tronco velho sobre
os vínculos com as pontas de rama fica explícita a pretensão de fixar na memória dos
grupos envolvidos a “preservação” da tradição indígena nas mãos de quem a transmitiu,
isto é, o critério de “continuidade” tende a ser exaltado ao ser associado à origem e à
“pureza”, contrapondo-o à heterogeneidade e à “mistura”. De um ponto de vista
sincrônico, os membros do tronco velho reivindicam para si a continuidade da tradição
indígena, as pontas de rama tendo se distanciado dela e precisando agora reaproximar-se.
Essas categorias denotam, então, um duplo uso, tanto em seus aspectos diacrônicos quanto
sincrônicos.

34
Nas narrativas dos anciãos que viajaram para São Paulo e outras capitais do país, destacam-se as
referências aos “gatos”, que procuravam trabalhadores nas áreas pobres do Nordeste e os levavam para outras
regiões onde desenvolviam serviços. Os referidos “gatos” eram também intermediários nos pagamentos e
retinham com eles grande parte do dinheiro.
38

Agenor Julião, membro do conselho tribal,35 ao abordar o assunto das relações com
as pontas de rama, expressava com evidente orgulho: “tem outras tribos novatas que têm
praiás,36 mas eles herdaram daqui, aprenderam aqui. Jeripancó em Pariconha, Pankararé
que era Brejo do Burgo, Kambiwá. O que eles têm foi levado daqui”. Atualmente, Fausto
Monteiro da Silva, um renomado cantador e curador, está fortemente engajado no auxílio
às pontas de rama em Alagoas,37 principalmente com o grupo Karuazu, em Campinhos
(município de Pariconha), viajando frequentemente ao lugar, no entanto, sem deixar de
atender às obrigações que é chamado a desempenhar na área dos Pankararu. Explicou a
necessidade de prestar esse serviço às pontas de rama porque “eles não têm conhecimento
pra fazer o trabalho, eu que faço tudo”, acentuando a “perda” da tradição determinada pelo
distanciamento do tronco velho, embora os reconheça como pertencentes ao mesmo povo.
O auxílio que alguns membros do tronco velho ofereceram a seus parentes consistia
no ensinamento dos rituais requeridos pelo órgão indigenista como condição para o
reconhecimento étnico, sobretudo o toré, principal sinal diacrítico de “indianidade”
(Oliveira Filho, 2004) no Nordeste. Atualmente, o suporte parece ter ampliado o leque dos
objetivos iniciais, procedendo-se ao ensinamento de outros rituais considerados
estritamente pankararu, visando refinar os conhecimentos mágico-rituais e enriquecer os
“itens étnicos”. A posse dos “conhecimentos do tronco” demonstraria uma menor distância
dos antepassados e também um nível mais baixo de “mistura”, elementos estes que
determinam o status mais elevado em relação às pontas de rama. Ainda que se evite
atribuir-lhes estigmas de inferioridade, as pontas de rama são consideradas “dependentes”
do tronco, cujos membros exigem certa submissão pública.
Há de se destacar que a heterogeneidade da composição étnica que formou o atual
grupo Pankararu está ainda bem presente na memória de alguns anciãos. “Umã Geripankó
Pankaru Calancó” é o nome que seu Manezinho, ancião penitente e procurado “contador de
histórias”, empregou para nomear a área indígena, orgulhando-se de ser um dos poucos

35
Como se verá no Capítulo II, o conselho tribal é formado por conselheiros que podem ou não ser
lideranças religiosas, embora a maioria dos interlocutores tenha ressaltado a necessidade de se associar o
trabalho de conselheiro com o trabalho ritual. No caso de Agenor Julião, cujas trajetória e atuação serão
retomadas no Capítulo II, a sua inserção no conselho se deve à aproximação que teve com o órgão
indigenista e por ser uma referência de ordem econômica.
36
Os praiás são as máscaras de caroá que encarnam os encantados (entidades cruciais da cosmologia
pankararu) e os membros do grupo ritual que toma o mesmo nome. Tanto as entidades quanto as categorias
usadas para identificar os especialistas e os grupos rituais serão abordadas na segunda parte deste trabalho.
37
Os grupos localizados no Alto Sertão alagoano são: Kalankó, Karuazu, Koiupanká e Katokinn. Para uma
análise da emergência étnica destes grupos, ver Amorim (2010).
39

que ainda guardam na memória nomes e eventos de épocas remotas, mostrando-se


disponível para contá-los com profusão de detalhes aos mais jovens que demonstrem
interesse.38 Os diversos etnônimos das parcelas de indígenas que confluíram
compulsoriamente para o antigo aldeamento foram encobertos pela identificação Pankaru –
quando o SPI se instalou na área – e sucessivamente Pankararu. No entanto, podem tornar
a emergir na identificação das pontas de rama, como no caso dos Jeripancó.
As famílias que não são reconhecidas como pertencentes aos troncos velhos,
embora manifestem certo incômodo por serem excluídas das chances de poder de que elas
gozam, não recebem um estigma de inferioridade. Se, por um lado, a relação de
interdependência entre esses grupos configura-se como a de radicados/outsiders – nos
termos propostos por Elias (2000), em que um grupo se autoatribui a superioridade em
função da antiguidade das suas tradições e da residência no lugar, tendo reservado para ele
o acesso às fontes de poder e ao carisma – não se pode afirmar que o grupo excluído viva
emocionalmente a inferioridade de poder como um sinal de inferioridade social.
Em virtude da organização segmentar39 e das tendências autonomistas das famílias
extensas, as que chegam a perder sua posição privilegiada podem recorrer a aliados
externos ao próprio tronco familiar e também ao grupo étnico, dinâmicas estas que tornam
a figuração flexível e em constante movimento. É o caso do processo de fissão do tronco
Binga, que será apresentado detalhadamente no Capítulo II, em que uma família extensa
recorreu não apenas a alianças com membros de outros troncos (Calu e Pedro, antagonistas
do tronco Binga), como também investiu em vínculos com coletividades mais além das
fronteiras étnicas, vínculos estes retirados do circuito ritual delineado há muito tempo e
sempre renovado e alimentado.
Se as pontas de rama são consideradas partes do mesmo povo, os outros grupos
étnicos do Nordeste, não apenas os mais próximos e com os quais os Pankararu tiveram
intensas relações,40 são classificados como parentes quando relacionados ao movimento

38
Quando tentei entrevistar Miguel Binga – o pajé – as condições de saúde não lhe permitiam falar;
aconselhou-me a entrevistar em seu lugar Manezinho que, afirmou com ênfase, “lembra ainda muitas coisas,
sabe tudo e era meu parceiro”. Jovens da aldeia se dirigem a ele, que se tornou o mais procurado “contador
de histórias”.
39
No próximo capítulo serão abordados estes elementos da organização social e as dinâmicas processuais
ligadas a agrupamentos e a fissões de troncos familiares.
40
Segundo Arruti (1996), que reconstruiu o circuito de relações entre diversos grupos, os Pankararu tiveram
intensas relações, sobretudo com os Tuxá e os Fulni-ô. Silva (1997), no seu estudo sobre os Tuxá, também
destacou a proximidade com os Pankararu. Nas narrativas de alguns anciãos destacaram-se, sobretudo, os
encontros com os Tuxá.
40

indígena. No entanto, tende-se a enfatizar os níveis elevados de “mistura” destes,


enaltecendo-se o resguardo da tradição do próprio tronco. Sobre tal argumento, em
diversas situações, chamou-me a atenção a necessidade de nomear principalmente os
Fulni-ô, provavelmente por este grupo gozar de particulares reconhecimentos, tendo
guardado o sinal diacrítico mais evidente (a língua iatê), e por disputar com os Pankararu a
primazia entre os indígenas do Nordeste com discursos construídos ao redor da “pureza”,
disputa esta impulsionada mais pelo acesso aos recursos que as instâncias governamentais
e não governamentais oferecem aos índios, e menos por uma real hierarquização em
termos de “mistura”.
Se alguns sobrenomes e apelidos sobressaem ao se falar das famílias envolvidas na
promoção dos rituais da tradição indígena, há também aquelas que se destacam por outras
características: qualidades morais, consistência numérica e/ou união dos componentes,
riqueza econômica e controle político são algumas delas, que fazem com que certas
famílias se diferenciem de outras e adquiram especial destaque. Algumas são associadas a
específicas localidades dentro da área indígena, ocupando espaços que tomaram o próprio
sobrenome. É o caso da aldeia Saco dos Barros, onde residem, em sua maioria, os
membros da família Barros, renomada por ser muito numerosa, pela capacidade de se valer
de vínculos com influentes políticos do município de Petrolândia (município de referência
desta aldeia) e pela antiguidade da sua residência no lugar. Embora hoje participem dos
rituais da tradição indígena, os Barros não são considerados parte dos troncos velhos por
não terem tido participação ativa nas reivindicações fundiárias e apenas recentemente
terem se aproximado do circuito experiencial ligado aos rituais.
Em outros casos, a posição alinhada das casas de um mesmo grupo doméstico faz
com que a estrada que as costeia tome seu nome, por exemplo, Rua dos Oliveira, cujos
membros pertencem ao tronco Binga. Por sua vez, os grupos domésticos que compõem o
tronco Binga concentram-se principalmente em duas áreas, sendo distinguidos como “os
Binga de cima” e “os Binga de baixo”, mantendo entre eles um forte nível de união, ainda
que, como se verá no Capítulo II, não faltem desavenças.
41

Croqui III: Localização das familias do tronco Binga

1- Binga de cima
2- Binga de baixo

Espaços territoriais ocupados por famílias que mantêm vínculos de parentesco ou


de vizinhança receberam apelidos/estigmas que me foram revelados em tom confidencial,
embora eu tenha podido confirmar repetidamente seu uso corrente. É o caso da Rua dos
Negros, uma área que compreende a Fonte Grande e que é considerada por muitos
interlocutores uma das melhores áreas da aldeia em termos de fertilidade da terra e acesso
à água. O estigma atribuído a esta área tem várias explicações, dependendo das posições
dos interlocutores. De acordo com as interpretações diferenciadas sobre acontecimentos
históricos, denota-se a intenção de fixar ou extirpar o estigma que coloca os moradores da
área em uma posição baixa na hierarquização das famílias.41 Os interlocutores que visavam
manter o estigma argumentavam que a área foi ocupada por famílias negras durante a
“época das linhas”, sendo elas respaldadas pelos coronéis. Segundo alguns índios, a razão
dos privilégios concedidos às famílias “negras” por parte dos coronéis repousaria na
demonstração de maior submissão e fidelidade que apresentavam em comparação com os
índios, e de se mostrarem mais prestativos no trabalho braçal. Genésio Oliveira
argumentou:
Meu bisavô tinha um terreno na Fonte Grande e os coronéis tiraram ele, e
na divisão dos lotes botaram a família Cioli no lugar dele. Aí meu bisavô
foi pra serra porque lá não tinha essa divisão, só aqui. Porque aqui era
brejo, terra boa! A terra daqui, menina, era cana que crescia, até dobrava!
Ali na serra ninguém passava. Aí os Pereira pegaram a Fonte Grande
toda. E os Quirino já é da nossa parte, [eles] pegaram a minoria das
coisas. Tem os Barbosa, não tem? Os coronéis botavam quatro não índios

41
O estigma que recaiu sobre esta área recebe várias explicações, dependendo das posições dos interlocutores
que interpretam de forma diferenciada acontecimentos de ordem histórica, alguns com pretensões que visam
cristalizar tal estigma, enquanto outros pretendem liberar-se dele.
42

e um índio no meio. Botavam um pra tapear, pra ninguém achar que eles
estavam expulsando os índios.

– Quem eram os não índios?

– Quando estou falando de não índios, estou falando dos negros. Os


coronéis não gostavam dos índios, era muito preconceito.

O apelo à presença de negros e, portanto, à “mistura” pode surgir quando os atritos


existentes entre diferentes famílias – principalmente nas disputas por recursos – ganham
dimensão exacerbada. No entanto, as acusações de impureza raramente emergem, pois
cada família tem membros nascidos de relacionamentos entre famílias indígenas e famílias
de afrodescendentes ou brancas que ali se instalaram no passado, não podendo, assim,
afirmar a própria “pureza”. Alguns índios disseram “aqui está tudo braiado”, entendendo-
se com esta expressão a “mistura” resultante dos casamentos entre famílias índias, negras e
brancas. Como já ressaltado por Arruti (opus cit.), há clara evidência de que tanto a
categoria “negro” como a categoria “índio” são predominantemente políticas e surgem e
são reiteradas em situações em que é preciso marcar distâncias ou pertencimentos no
interior de conflitos faccionais existentes.
Se, por um lado, o processo de mistura é lembrado como mais uma das violências
sofridas, por outro, prevalece o desejo de mantê-lo oculto. A composição diferenciada do
grupo costuma ser invisibilizada pelas frequentes afirmações dos atores sociais: “aqui todo
mundo é parente”, expressão comumente acompanhada por “é uma coisa só”, indicando as
complexas redes de relações de parentesco que interligam as famílias extensas residentes
na área. Alguns interlocutores contaram-me casos em que se surpreenderam quando
informados sobre parentes desconhecidos que moravam em aldeias distantes mesmo dentro
da área indígena, assim como outros em que descobriram, somente depois de um tempo,
estar namorando um primo ou uma prima em primeiro grau.42 Ser parente não equivale a
ser um membro da família, este último termo sendo reservado para identificar o grupo
doméstico, cujos membros entretêm estreitas relações. Usa-se o termo parente também
para se referir aos membros pertencentes a um tronco e com os quais se mantêm diversos
níveis de cooperação e proximidade. Ele é empregado geralmente sem subentender graus
elevados de proximidade, embora se tenda a usá-lo para definir pertenças em comum,

42
Observou-se que casamentos entre primos são freqüentes e, em alguns casos, explicitamente desejados.
43

como a uma comunidade mais ampla da própria família ou do próprio tronco, como no
caso já mencionado da participação no movimento indígena.
O parentesco espiritual, em que vínculos de compadrio são instaurados, é um
aspecto relevante das relações familiares. Laços entre compadres e comadres inaugurados
através dos filhos convidam a aumentar os níveis de recíproca colaboração entre as
famílias, bem como solidificam lealdades políticas e religiosas. Em alguns casos,
observou-se que os vínculos entre compadres e comadres são especialmente íntimos. De
maneira geral, os compadres e as comadres consideram-se parte das respectivas famílias e
há entre eles mútua confiança. Tais relações de interdependência – nas redes de relações
tecidas por uma família – desempenham um papel central na ampliação do círculo de
alianças.
Há de se salientar que relações de compadrio se instauram também com membros
externos ao grupo étnico. Nestes casos, a dinâmica do vínculo pode ser marcada por fortes
assimetrias sociais e econômicas. Embora os índios releguem ao passado as relações de
compadrio com os “patrões”, atualmente não são poucos os casos em que se escolhe um
padrinho ou uma madrinha de quem se foi ou é empregado nas cidades próximas à área.
Espera-se deles ajuda de diversas naturezas: roupa para a criança, financiamento para os
estudos, empréstimos, emprego etc. Pôde-se observar certo orgulho em se ter um patrão-
compadre quando, obviamente, este demonstra a “devida” generosidade. Ter sido capaz de
conquistar o “patrão” ou a “patroa” e poder assim gozar de certos benefícios são também
motivos a serem apreciados. Os comentários ouvidos sobre tais relações deixavam
transparecer que aquilo que estava sendo avaliado era a possibilidade de uma família tirar
vantagens desse vínculo. A mútua fidelidade e intimidade, no entanto, pareceu-me ser
esperada, sobretudo nas relações de compadrio em que são evidenciados os aspectos
igualitários que caracterizam as famílias envolvidas e a adesão a um mesmo conjunto de
valores morais.
Há de se levar em consideração que as relações com os “patrões” mudaram
sensivelmente desde o reconhecimento étnico e a demarcação da terra, enfraquecendo a
relação preeminente e assimétrica que caracterizou o período anterior. Na situação atual, a
mútua desconfiança pode surgir nitidamente, inibindo a instauração de vínculos outrora
mais frequentes. O fato de que atualmente alguns atores sociais manifestam até
publicamente a recíproca hostilidade não nos permite afirmar que antes estivesse ausente e
que os vínculos entre membros pertencentes aos grupos sociais em pauta se
44

desenvolvessem com base em um quadro moral compartilhado por ambos. Durante a


permanência em campo, observei demonstrações de hostilidade recíproca entre os grupos
sociais em conflito, sobretudo em virtude do processo de indenização dos posseiros, tanto
na recentemente homologada TI Entre Serra, quanto nas aldeias da TI Pankararu com uma
forte ocupação de posseiros. Alguns moradores de Jatobá e Tacaratu com quem conversei
baseavam as próprias reivindicações contra a expulsão dos posseiros e contra a
demarcação da TI Entre Serra com argumentos que visavam enfatizar a imoralidade de tais
atos, que teriam quebrado definitivamente as relações com os índios.
A indignação era expressa através de discursos que destacavam a quebra da
fidelidade que os índios lhes “deviam” em virtude dos laços estabelecidos há muito tempo,
incluindo os de parentesco. Um morador de Jatobá, filho de um posseiro, explicava-me que
o pai jamais sairia da terra, mesmo recebendo a indenização. Enfatizava que, embora
tivesse crescido com os índios e estabelecido com eles relações de amizade, nunca se
identificara como tal. Ao queixar-se das pressões que atingiam sua família e as de outros
posseiros, atentei para os preconceitos que demonstrava ao qualificar os índios, já ouvidos
em outras circunstâncias: preguiçosos, bêbados, arrogantes, traiçoeiros, entre outros.
Estes são termos cristalizados e reiterados em cada conversa sobre o tema das relações com
os índios e se contrapõem à ideia generalizada do que seria realmente um “índio”,
desprezando-se os atuais – evidentemente incômodos – percebidos como “degenerados”, e
enaltecendo-se os do passado: “guerreiros” e “dóceis”, os “verdadeiros índios”. A
persistência das ideias e dos valores românticos do século XIX, construídos em torno da
figura do bom selvagem, encontra aqui – como de resto em todo o Nordeste – terreno fértil
para se manter.
Para demarcar as atitudes imorais que caracterizariam os índios quando em face de
um vínculo de compadrio, outro argumento foi colocado para enfatizar a “falta de
consideração” que os índios teriam manifestado em relação àquele que fora “benevolente”
com eles, destacando-se a “ingratidão”. O mesmo morador de Jatobá contou-me que seu
tio – também posseiro – é compadre de um Pankararu a quem havia ajudado com um
empréstimo num momento de dificuldades econômicas. Durante o período da retomada da
terra na década de 90, tal índio teria se posicionado a favor da saída dos posseiros, o que
significou, para meu interlocutor, uma falta de respeito para com o tio, quebrando-se dessa
forma a mútua fidelidade esperada.
45

Situações e argumentações deste tipo são ainda mais demarcadas pelos moradores
de Tacaratu, que atualmente se mobilizam contra a já homologada TI Entre Serra, pedindo
a abertura de um novo processo para que sejam revistos os seus limites. Em nome da
secular convivência e, sobretudo, pelas relações de parentesco estabelecidas há muito
tempo, negam a existência de conflitos com os índios. A maior queixa dos posseiros e dos
moradores dos municípios é dirigida contra as fontes tutelares dos índios, principalmente a
Funai, que não reconheceria os direitos de quem, em nome da “mistura”, também poderia
reivindicar seus direitos como índio. O portal “Tacaratu.com” dá voz aos tacaratuenses que
se mobilizam contra a TI Entre Serra. Antes do ato público de agosto de 2010, Paulo Félix,
membro da prefeitura de Tacaratu, publicou um artigo do qual extraí alguns trechos.

Tacaratu, a história que o Brasil não havia escrito em 1650.


Como se poderia imaginar hoje Tacaratu cidade, quatrocentos anos
depois, retratada nos mesmos moldes dos princípios existenciais da
Maloca "Cana Brava" de origem? Talvez fosse como se pudesse garantir
e documentar que na terra tacaratuense nenhum cidadão mais tenha
ascendência indígena desta mesma etnia Pankararu, apenas porque não
possui o registro/controle e por não estar aldeado. Não seria melhor que
considerassem a real miscigenação decorrente da inserção de portugueses
e negros no aldeamento? Tacaratu, por natureza, é uma terra de origem
indígena e, até que se prove o contrário, todo o seu povo também o é.
Não se pode agir com tanta truculência contra uma comunidade de
quatrocentos anos, apenas pela força de um Decreto Presidencial. [...] é
também surpreendente que quatrocentos anos depois surja a mais caçula
das aldeias, tida como nova ramificação da etnia Pankararu, se
denominando "Entre Serras de Pankararu". E se oficializa garbosa e
muito faminta, quer terras, muitas terras e bens patrimoniais construídos,
enquanto comunidades urbanas inteiras são sacrificadas por um Decreto
Presidencial que determina quem pode permanecer na área e ser índio.
[...]
Se quiser saber qual será a sorte das comunidades Folha Branca,
Gameleira e Cumbre (área urbana), e do Sítio Olho D’água do Julião,
provavelmente os técnicos indigenistas não saibam responder. Porém, se
lhes perguntassem sobre a ampliação do território indígena, claro, com
base em seus estudos, conferidos em relatórios, a resposta seria imediata
e franca. É que os técnicos são pagos para isto, e nada mais justo que
defenderem os seus relatórios, porém precisam tratar melhor essas
famílias que vivem um dia a dia de terror, e ainda são obrigadas a abrir
suas portas para essa gente e cheia de descontroles éticos, baseados no
poder. [...]
Para que houvesse um mínimo de coerência, o Governo Federal, por sua
vez, deveria instalar uma ação para determinar, através de exames de
DNA, quem é e quem não é Pankararu desse lado de Tacaratu, e poderia
se surpreender com o resultado, para não promover as atitudes e os
desmandos que ora confere e pactua ao nosso povo de etnia Pankararu,
para com o nosso povo de etnia Pankararu sem reconhecimento. [...].
46

(Paulo Félix, neto de índio pankararu e de índia tuxá. Em:


http://tacaratu.com/internas/read/?id=1195, acesso em 25/08/2010).

A escolha deste artigo, aqui reproduzidas algumas de suas partes, se deve


principalmente ao fato de ter sido amplamente comentado pelos índios e por se considerar
como um exemplo que conjuga diferentes argumentos de defesa/ataque dos moradores de
Tacaratu. O que se destaca na argumentação é a construção do discurso que visa enfatizar a
discriminação que os tacaratuenses sofreriam em função das resoluções governamentais
sobre a TI Entre Serra, que “destronaria” parte da população de Tacaratu que não se
reconhece como índia, mas que agora estaria reivindicando sua descendência como tal.43
Apesar de alguns índios se posicionarem ao lado dos tacaratuenses por causa dos
laços de parentesco e compadrio, segundo as lideranças indagadas, a maioria dos índios
pretende a expulsão dos posseiros, argumentando que seria a única esperança para que
houvesse a distribuição da terra entre os próprios índios, bem como para que muitos deles
pudessem finalmente voltar a morar ali, e não mais nas redondezas ou nas capitais do país.
Os comentários de algumas lideranças da TI Pankararu denotavam preocupação quanto à
possibilidade de o governo abraçar a causa dos tacaratuenses e se prontificavam a oferecer
apoio às lideranças da TI Entre Serra.44
Entre os comentários ouvidos sobre o artigo acima, destacavam-se alguns que
davam ênfase à ação tutelar do governo, relembrando a mudança de situação desde que o
órgão indigenista começou sua atuação na área.

Nós somos federal. Porque o governo federal é quem cuida de nós.


Abaixo de Deus é o governo federal, porque se ele não tivesse apoiado
nós, nós era igual os africanos quando vieram da África pro Brasil! Eles
eram cativos, nós éramos todos cativos. Depois que entrou o SPI, aqui a
coisa melhorou muito, viu? Porque aqui era cheio de posseiros. Eles aqui
eram quem dominava tudo, eram quem trabalhava e botava a gente pra

43
Os comentários ao artigo, que foram publicados no mesmo portal, não fazem mais que elogiar as palavras
do autor, em alguns casos criticando os antropólogos, apoiando-se nas declarações infamantes da revista
Veja, citada como uma fonte de “verdades atendíveis”.
44
Há certa tensão entre algumas lideranças das duas TI em virtude de acontecimentos passados em 1987,
quando algumas lideranças da TI Pankararu teriam negociado com a Funai a redução dos 14.294 ha para
8.100 ha, em troca da imediata expulsão dos posseiros da zona sul da TI Pankararu – acordo nunca cumprido
– deixando de fora os restantes hectares. As lideranças da TI Entre Serra continuaram a se mobilizar
autonomamente e, hoje, depois de conseguida a homologação em 2007, desejam manter a própria autonomia
em relação à TI Pankararu, embora se considerem o “mesmo povo”. Tal autonomia lhes confere a
possibilidade de ter o controle sobre os recursos, seja no tocante à distribuição da terra entre os índios, seja
quanto aos cargos e ainda sobre os projetos a serem desenvolvidos.
47

trabalhar. Aqui era cheio de criação de gado dos posseiros. Ninguém aqui
podia fazer uma roça, porque não podia cercar o terreno pra trabalhar. A
rocinha era pequenininha pra poder plantar um pé de mandioca, um pé de
milho, alguma coisa, porque nós não podia fazer cercado grande. Só
depois que veio o doutor Carlos e o SPI que o índio foi se ajeitando. Até
hoje tem posseiro que não quer ser indenizado, indenizado, né? Eles não
querem sair! (José Manoel de Oliveira).

Embora não tenham sido publicados no portal, alguns índios mandaram os seus
comentários sobre o artigo. George de Vasconcelos45 – mais conhecido como Vasco –
pertencente à família Oliveira, do tronco Binga, e atual vice-cacique de Pedro Monteiro da
Luz, relatou ter enviado várias vezes seu comentário na esperança de poder mostrar
publicamente a posição tomada pelas lideranças da TI Pankararu, pois os tacaratuenses
insinuavam que obteriam o seu apoio contra a TI Entre Serra. Reporto a seguir o texto.

Tacaratu é terra indígena, o povo que mora lá são invasores!


Primeiro, vocês, cidadãos tacaratuenses, não têm o direito e nem a moral
de dizer o que é ser índio. É bonitinho ver esse texto todo de alguém que
diz ser índio e não conhece a real história e o motivo de tudo isso estar
acontecendo. Tacaratu é uma cidade preconceituosa com nós, indígenas,
nunca nós Pankararu fomos tratados como cidadãos, sempre fomos
desrespeitados e tratados como selvagens, “bebuns”, escravos de seus
coronéis.
Índio não é DNA, ser índio é acima de tudo praticar, valorizar e zelar pela
sua cultura, ou seja, vocês não se incluem em nada disso. Sr. Paulo Felix,
como você diz ser índio pankararu e não apresenta sua família aqui em
Pankararu, vc. é o primeiro a discriminar o nosso povo e agora é que quer
ser índio, é? No seu gabinete e, aliás, na prefeitura toda tem umas fotos
de uns índios do Amazonas... E aqui não tem índio, não é? Precisa
expressar o preconceito com nós Pankararu assim dessa forma? Sabemos
que vocês não gostam dos caboclos do Brejo, como vocês assim nos
chamam, mas Tacaratu é Terra Indígena... Indígenas esses que foram
expulsos da maloca Cana Brava como você bem cita, fomos pro Brejo, e
até lá os coronéis de Tacaratu foram nos perseguir, nos escravizar e
dividir nossa terra.
O processo de Entre Serras é legal, pois estamos retomando o que um dia
tomaram de nosso povo à força. Agora aprenda que Entre Serras não é
um povo indígena, Entre Serras é uma terra indígena do povo Pankararu,
entendeu?
Ninguém se importou com nosso povo quando daí os expulsaram, e
outra, vocês estão no que nos pertence por direito e ainda vão receber
moradia, terra e dinheiro para desocupar o que nos pertence.
Antigamente, nossos ancestrais saíram daí com uma mão na frente e outra
atrás, corridos.
E nós, Pankararu, apoiamos a luta e a Terra Entre Serras, não venham
colocar o que vocês não sabem (George de Vasconcelos).

45
No Capítulo II serão abordadas a trajetória e as narrativas deste ator social.
48

Na argumentação de Vasco há de se salientar a necessidade de se enfatizar a


identidade indígena do autor (nota-se que assina o artigo explicitando ser neto de um
pankararu e de uma tuxá), o que reduziria a pertença ao grupo étnico a uma questão
puramente genética, apelando para o exame do DNA para que seja reconhecida a sua
descendência pankararu e a de outros moradores de Tacaratu e exigindo direitos paritários.
Chama ainda a atenção para a construção de um discurso que se apoia na memória de
sofrimento, que os jovens mais politizados capitalizam, como neste caso, para conseguir
uma coalizão de forças que permita a mobilização para que a expulsão dos posseiros se
realize mais rapidamente. Avivar a memória nesses momentos em que os conflitos tomam
dimensão pública visa conferir novo alento e acender a chama, que pode ficar adormecida
por um tempo. São principalmente alguns jovens que, insatisfeitos com uma generalizada
paralisia das lideranças sobre os assuntos relativos a terra, tentam pressionar para que se
retomem as mobilizações, como nas tentativas da década de 1990.46
Se, por um lado, são os mais jovens a se queixar da atual situação, por outro, não
faltam as reclamações dos mais velhos sobre a mudança de atitude das lideranças,
enaltecendo-se o espírito mais ativo de outros líderes anteriores.

As lideranças agora não são um pessoal que se interesse muito pelo lugar
porque, se eles se interessassem, aí tinham tudo. Agora, uma liderança
que se interessa pelo lugar, quando vê o mal feito, já chega logo e já vai
falar alguma coisa. O pessoal não procura mais essas forças, porque
antigamente os mais velhos corriam atrás desses terrenos aqui. Também,
quando começou aqui, foram eles que tomaram conta né? Aí, quando os
posseiros invadiram esse lugar onde a gente plantava feijão, acharam que
o terreno era deles. Aí foi quando veio a polícia de lá de Brasília, aí que
pegaram conhecimento que ali tinha dono né? Depois eles não vieram
mais, mas agora estão correndo pra ser índio, lembrando dos parentes
deles! Eu sei que quando veio esse aperto é que vieram dizer: “meu pai
era fulano de tal, você não ouviu falar em fulano de tal? pois ele era meu
tio, ele era meu sobrinho, ele era meu pai velho” (risada), e pelejando pra
tirar esse documento, e tiraram, né? Já saiu um bocado, mas estão de
volta! É que vão se amigando, ficando por perto, ficando parente aquele

46
Durante a estadia em campo no mês de outubro de 2010, estavam se desenvolvendo reuniões das
lideranças nas diversas aldeias da TI Pankararu, com a presença do chefe do Posto e do coordenador regional
da Funai, cujo tema principal a ser debatido era o processo de expulsão dos posseiros, seguido das
informações relativas à reestruturação da Funai e da questão inerente à indenização da Chesf pela instalação
dos reprodutores de energia internos à área indígena. Em virtude da necessidade explicitada pela Funai de se
realizar um novo levantamento dos bens dos posseiros para poder se proceder à indenização, pediam-se
tempos ulteriores para a definitiva expulsão. Perante os membros da Funai, pelo menos na reunião a que
compareci na aldeia Caxiado, onde o número de posseiros é considerável, as lideranças e os outros que
participavam se mostraram confiantes e complacentes com as exigências ditadas pelo órgão. As inquietações
relativas ao tempo de espera surgiram nos dias subsequentes.
49

que é primo de não sei quem, a avó da outra diz que foi pega de dente de
cachorro. Eu sei que tanta coisa eles inventa[m] que tem um monte que já
está entrosado. Pelo jeito que vai, tudo vai ser caboclo (Zé Binga).

Zé Binga,47 apesar das queixas sobre a falta de posições mais firmes das lideranças
e dos Pankararu em geral para impedir a “volta” dos posseiros, argumentou que as
“encrencas com os posseiros vêm de longe”, e remontariam à época em que estes não
quiseram se reconhecer como índios, recusando a participação em uma “luta” comum,
destacando ainda que antes da instalação do SPI todos eram “caboclos”. Nota-se que o
termo “caboclo” é usado por Zé Binga como sinônimo de “índio”, estando ausente o
caráter pejorativo que geralmente se lhe atribui. Esta conotação pejorativa do termo só a
encontrei em conversa com posseiros e moradores de Jatobá e Tacaratu que temem o
avanço dos índios. Em todas as outras ocasiões, incluindo-se as conversas com não índios
– por exemplo, com os romeiros48 que entretêm vínculos com os Pankararu – o termo
carregava valor positivo e era usado afetuosamente.
Diversamente do termo “índio”, que designa um grupo restrito com consciência
étnica, “caboclo” indica uma origem comum mais abrangente, permitindo às pessoas se
aproximarem e se identificarem com ela sem pertencerem a um grupo étnico diferenciado,
como no caso dos diversos romeiros que se autodenominam caboclos ou seus
descendentes.49 De acordo com Arruti (1996, p. 45), uma descendência genérica indígena
que responda ao imaginário romântico, bem como o fundamento da nacionalidade que se
construiu a partir do mito das três raças mal se prestavam para a reivindicação ao direito da
tutela de uma parcela de população. A “indianidade” (Oliveira Filho, 1988) decorre da
particular relação entre os grupos indígenas e o órgão tutor que impõe sua construção. A
demonstração dos elementos diacríticos dessa “indianidade” é contextual, podendo ser
ocultados em circunstâncias que favoreçam a falta de diferenciações nítidas, como nos
momentos de encontro com parcelas da população não índia durante as romarias.

47
Zé Binga pertence ao grupo doméstico cujo fundador foi Antonio Binga, uma liderança religiosa
importante que participou ativamente do reconhecimento do grupo Pankararu. Retomaremos as atuações
destes atores sociais no decorrer do trabalho.
48
A categoria romeiro é usada também entre os Pankararu, e identifica todos os índios que participam das
romarias, bem como os seguidores de líderes carismáticos, como se verá no Capítulo III.
49
Há de se salientar ainda que “caboclo”, além de ser o termo mais utilizado entre os mais velhos para se
autodenominarem, é frequentemente empregado também para designar as próprias entidades, isto é, os
encantados.
50

Se em determinados contextos políticos salientar a unidade do grupo étnico é algo


necessário, visando erguer ou reforçar as fronteiras e mostrar para fora que se está numa
fortaleza onde internamente há consenso, em outras circunstâncias os limites de
pertencimento emergem com menos rigidez, e sobressaem os conflitos internos. As
afirmações “aqui todo mundo é parente” e “é uma coisa só”, ouvidas repetidamente ao
longo da pesquisa, costumavam perder força em ocasiões em que não havia a necessidade
de demarcar a identidade étnica, deixando lugar para relatos que denotavam diversos níveis
de conflitos. Com explícitas intenções de denunciar os problemas gerados pelas inúmeras
intrigas, alguns decidiram levantar a voz, como no caso de Josivete, renomada curadora,
que exclamou: “Não vou mentir, aqui na minha aldeia tem força má, a desunião
enfraquece!”, referindo-se enfaticamente à impossibilidade de os Pankararu lutarem unidos
para obter os benefícios básicos para o bem-estar da coletividade, visando ainda
deslegitimar os discursos construídos pelas lideranças que esconderiam interesses
individuais e, sobretudo, familiares.
De forma semelhante, também algumas lideranças manifestaram inquietudes a
respeito dos obstáculos encontrados na reivindicação de direitos devido à presença de
conflitos entre facções, embora este termo nunca tenha aparecido nas conversas.50 Durante
uma reunião da Ong SSL (Saúde Sem Limites),51 uma das lideranças enfatizou que
“Pankararu existe só pra lutar contra os posseiros”, acentuando ainda a necessidade de
dirigir o olhar para os motivos que determinam a desunião, sugerindo como causas
principais a falta de acordo entre pais e mães de praiás – principais especialistas rituais52 –
e o desrespeito à autoridade dos mais velhos do grupo. Esta é uma entre várias tentativas
de alguns atores sociais (não necessariamente lideranças) de devolverem ou reforçarem a
legitimidade de algumas lideranças que procuram estratégias para aglutinar e reforçar a
ação grupal, mas que na maioria dos casos respondem às lógicas faccionárias.

50
Fui censurada em duas ocasiões por ter empregado este termo fazendo referência justamente aos conflitos
que me foram contados, recebendo a explicação de que ali não existiam “facções”. O termo é carregado,
especialmente, de valor negativo e, ao ser usado, chega-se a negar o antagonismo entre grupos, já explicitado.
51
A Ong atua desde 1998 na área indígena Pankararu com projetos sobre saúde reprodutiva. Contou desde o
início de sua atuação com a colaboração do antropólogo e professor da UFPE Renato Athias, que hoje é
também o seu presidente.
52
Como se verá mais detalhadamente no Capítulo V, há uma variedade de classificações para a definição dos
diversos especialistas rituais. Pais e mães de praiás são aqueles que possuem encantados, isto é, os que
trabalham ritualmente com essas entidades.
51

Estas queixas são cotidianas e não estão destinadas apenas à esfera pública das
reuniões, mas fluem também nas conversas familiares sobre as dificuldades dos próprios
chefes internos quando atuam como autoridades morais suprafamiliares, pois não obteriam
resultados satisfatórios em virtude dos constantes conflitos entre diferentes famílias. No
entanto, em circunstâncias específicas, como os conflitos com os posseiros, esses chefes
(na maioria dos casos pais e mães de praiás)53 unem-se e aglutinam as respectivas
comunidades, adquirindo força política perante o Estado, e renovam o projeto comum que
deu vida ao grupo étnico, embora voltem a competir quando as tendências autonomistas
das famílias emergem novamente.

53
Tais lideranças fazem parte do conselho tribal, que será abordado no próximo capítulo.
52

Capítulo II. Troncos, famílias e reputações

Como se destaca em vários estudos realizados em povoados camponeses do


Nordeste,54 também entre os Pankararu as relações de parentesco desempenham um papel
crucial na vida cotidiana dos atores sociais. Desde a mais terna idade, as crianças são
estimuladas a conhecer e a reconhecer a rede de relações da própria família, aprendendo a
quem se deve demonstrar respeito e onde há limites de interação. Precisa-se ter noção
atualizada das redes, habilidade para nelas socializar, a fim de manter ou criar vínculos,
assim como estar informado sobre os cuidados e os códigos para enfrentar determinados
conflitos. Como observa Comerford (2003) ao focalizar os processos de familiarização e
hierarquização das famílias no seu estudo na Zona da Mata em Minas Gerais, o
conhecimento das redes de relações se torna um “saber obrigatório e naturalizado entre os
moradores desses pequenos municípios, absolutamente essencial para a navegação
cotidiana no emaranhado de relações” (p. 34).55
No contexto em que se fazia referência às pontas de rama, a metáfora tronco velho
aparecia no singular. Do contrário, quando a referência eram as famílias que a ele
pertenciam, era usado o plural, indicando-se dessa maneira uma origem múltipla. Como se
verá de forma mais concreta com a descrição da trajetória do tronco Binga, a categoria
tronco perde a acepção puramente metafórica ao se observarem as genealogias das famílias
que se identificam como pertencentes a um desses troncos e ao serem abordados os
processos de agrupamento e fissão que as caracterizam.
Um tronco é formado por um número indefinido de famílias extensas que entretêm
relações de cooperação cotidiana, tanto voltadas para as atividades econômicas quanto para
as rituais. Elas se distribuem espacialmente de forma a terem residências próximas, o que
lhes permite níveis elevados de interação diária. Cada família extensa é formada
geralmente por três (ou quatro) gerações e se configura como a unidade mínima para a
reprodução de um grupo doméstico a partir de um ponto de vista educacional. Por grupo
doméstico se entende aqui o que Wilk (1984, p. 224-227) denominou “household cluster

54
Destaco aqui os trabalhos de Lanna (1995) e Marques (2002).
55
O estudo de Comerford (2003), embora não referente ao Nordeste, foi de grande valia para analisar as
dinâmicas sociais aqui abordadas que apresentam semelhanças com as focadas pelo autor no seu estudo na
Zona da Mata de Minas Gerais. A análise em escala micro por ele conduzida, atribuindo especial atenção à
construção da reputação, permite-lhe ressaltar as características agonísticas das interações entre grupos
sociais como específicas formas de sociabilidade.
53

loose”, isto é, uma unidade residencial de famílias nucleares com vínculos econômicos
livres, na medida em que seus membros desenvolvem não apenas atividades econômicas
em conjunto, mas também diversificadas, embora todas elas tenham o mesmo objetivo:
beneficiar a família extensa como um todo.
Essas três gerações são aquelas que vivem unidas, que trabalham juntas e residem
em espaços próximos. Uma família nuclear pode se afastar por um tempo para trabalhar
fora da área, mas continua cooperando com a família extensa. O seu eixo são os pais e os
avós, pontos de referência e apoio. Quando as gerações chegam a três ou a quatro, os avós
e os bisavós tornam-se referências mais simbólicas do que operativas do ponto de vista da
organização das atividades cotidianas. Transformam-se em autoridades morais que podem
ter influência não apenas sobre a própria família extensa, mas também em nível mais
abrangente, por exemplo, sobre o próprio tronco ou em relação à aliança entre diversos
troncos, isto é, sobre uma comunidade política local. Ao falecerem essas autoridades
morais, é possível que se inicie um processo de fissão, à medida que o antagonismo entre
irmãos venha a prevalecer ao faltarem as figuras que mantêm a unidade.
O tronco não se configura como um clã, pois não existe uma organização que
determine regras de exogamias entre diferentes linhagens,56 como no caso dos Nuer
estudados por Evans-Pritchard (1992). Mas ele pode se definir como uma linhagem.
Pensou-se na definição de linhagem por ela estar em estreita analogia com a noção de
tronco, a partir da qual os índios fazem referência a uma árvore genealógica que visa
ressaltar a profundidade temporal, isto é, a linha genealógica que remete a um ancestral
histórico. Não há um número específico de gerações a compô-lo, estando estas vinculadas
à memória de seus membros. Na reconstrução das genealogias, alguns autores remeteram à

56
É interessante destacar que Oliveira (1942) fez considerações – retomadas posteriormente por Pinto (1952)
– relativas à possibilidade de existir uma organização social baseada em metades exogâmicas, considerações
estas derivadas da observação do ritual da corrida do imbu. O autor afirmou: “Estou muito propenso a
acreditar que a orientação a que obedece a estrada onde se realiza aquela festa tem por base uma organização
sociológica de duas bandas exogâmicas, formadas pelos filhos do “Sol” e da “Lua”, à semelhança do que
acontece com os “fulniôs” e diversas tribos do grupo ‘Gê’” (p. 160). Estas são hipóteses do autor que
provavelmente deveriam despertar a curiosidade do seu público na conferência em que expressou tais ideias,
mas que nenhum outro autor posteriormente confirmou. Silva (1978) chamou a atenção sobre o texto de
Oliveira, salientando que Oliveira “via” (as aspas são do mesmo Silva) na organização ritual da corrida
“reflexos de uma provável antiga estrutura de metades exogâmicas” (p. 113), mas ele afirma a ausência dessa
estrutura. Silva, no entanto, está também preocupado em recuperar vestígios de uma provável organização
passada e coloca: “Admite-se a hipótese de que a mistura de culturas indígenas e não indígenas que ocorreu
na área levou os Pankararu à perplexidade atual ante o problema” (p. 112). Mais adiante, o autor explicita
que os índios têm como referência organizacional a família e o grupo cerimonial, mas que não há a presença
de clãs, metades exogâmicas ou grupos de idade.
54

sexta geração, outros à quinta, outros apenas à quarta e, a partir daí, é possível fazerem
referência a um passado indefinido dos “índios brabos”.
Diversamente do clã, aqui o que determina os processos de agrupamento e de fissão
são as dinâmicas políticas, econômicas e rituais.
A alusão a um ancestral comum é explicitada principalmente nos casos em que os
membros de uma família pretendem marcar uma ligação com especialistas rituais de
renomada fama, ou seja, aqueles que ganharam particular destaque, por exemplo, o sarapó
– única autoridade superior no tocante aos assuntos mágico-religiosos reconhecida antes da
instalação do SPI.
Muitos dos informantes apelaram para as “três Marias” (e, em número menor, para
quatro), que se tornaram símbolos marcantes de diversos troncos pela sabedoria
demonstrada na esfera mágico-ritual. Maria Pedro, Maria Chulé, Maria Calu e Maria
Pastora (chamada também Peba) são não apenas referências de diversos troncos, mas as
próprias fundadoras do tronco Pankararu. Assim, o grupo étnico Pankararu seria o
resultado da aliança desses diferentes troncos cujas figuras principais eram essas mulheres.
Na história, espacialmente, faz-se também alusão ao formato de uma cruz, identificando-se
cada extremidade com os terreiros57 que eram zelados pelas respectivas mulheres. A
“história das Marias” como surgimento do tronco Pankararu é o resultado da elaboração e
da sistematização nativas da fundação do grupo – é, portanto a história do grupo elaborada
e teorizada a partir dos próprios meios de compreensão, seguindo-se a lógica e os termos-
metáforas de parentesco.
As genealogias dos troncos das três Marias (ver diagramas I, II, III no final do
capítulo)58 remetem cronologicamente59 à experiência da etnicidade e, desta forma, ao
segundo processo de territorialização. Mas a história é elaborada pelos Pankararu como se
ela (a identidade étnica) preexistisse, tirando assim a autoria do SPI, isto é, negando e
desvinculando a construção do grupo da ação do órgão indigenista. Esta teorização da

57
Os terreiros são os espaços onde se realizam os rituais do grupo ritual dos praiás. Geralmente estão
localizados em frente ou nas laterais das habitações dos especialistas rituais e podem ter dimensões diversas,
dependendo do espaço de que os grupos domésticos dispõem e da forma como as casas são nele distribuídas.
As informações específicas sobre a pertença e a localização dos respectivos terreiros não foram claras.
Apenas há concordância na identificação de dois terreiros: o do Poente, de Maria Calu, e o do Nascente, de
Maria Pastora (Croqui II).
58
Conseguiu-se reconstruir apenas as genealogias dos troncos de Maria Calu, Maria Pedro e Maria Chulé,
mas as informações sobre Maria Pastora foram escassas e sem concordâncias.
59
Calculou-se uma diferença de 20 anos entre as gerações.
55

própria história (cuja divulgação entre os interlocutores pareceu ser bastante capilar) é um
elemento que reforça o sentimento étnico e dá asas às mobilizações, tendo relevância a
percepção de um processo de continuidade em relação a um passado originário.
Com a definição de troncos velhos, entende-se uma série de qualidades que
permitem alimentar a autoimagem de superioridade e o próprio carisma. Como afirma
Arruti: “O tronco serve então como solução classificatória para a transmissão de um status
diferenciado, mas sem que isso implique regras especiais definidoras de casamentos
preferenciais ou grupos de obediência, ação, ou exercício ritual diferenciado” (1996, p.
104). De acordo com o autor, a exogamia não impõe restrições nem sequer entre primos
cujos matrimônios os índios declaram ser também desejados. Enunciados normativos que
dizem respeito aos casamentos dos índios evidenciam apenas uma branda restrição destes
para os membros do grupo étnico, e denotam que a ênfase na etnicidade ganha importância
nas orientações morais fornecidas, sobretudo pelos especialistas rituais ou os chefes de
família. No entanto, a prática social se distancia sensivelmente, podendo-se observar
numerosos intercasamentos, com as redes de parentesco mostrando-se bem mais abertas
que as delimitadas pelos discursos desses atores sociais.
Mais além dos casamentos entre índios de diversos grupos e entre índios e não
índios em nível regional há também casamentos com não índias originárias de São Paulo
ou de outras cidades onde os índios passaram anos trabalhando. A volta à aldeia com as
respectivas esposas é um processo delicado para a mulher, que deverá se inserir no grupo
doméstico do marido. Das narrativas de algumas mulheres que tiveram esta experiência,
destacam-se as dificuldades em serem aceitas plenamente pelas famílias acolhedoras,
ressaltando a negação – nos primeiros tempos de convivência – em compartilhar
determinados âmbitos de comunicação e, em especial, os rituais restritos aos familiares.60
Apenas depois de muito tempo puderam participar deles, o convite tornando-se o sinal da
conquistada confiança. Mas há outro aspecto a ser destacado sobre a inserção na vida da
família das esposas originárias das capitais. Não se observou uma preocupação relativa à
“mistura” racial ou étnica, mas sim a uma “mistura social” que poderia acontecer se a
educação dos filhos do casal fosse gerenciada pela família da esposa. Mas morando o casal
no grupo doméstico do marido e os filhos sendo educados pelos avós do mesmo grupo

60
Em virtude de os rituais domésticos serem especialmente importantes para o bem-estar da família, apenas
quem é de total confiança pode deles participar, e a não participação marca não apenas a exclusão dos que
não são membros da família, como também as diferenças entre os membros que a compõem.
56

doméstico, os que vêm de fora são assimilados ao sistema educativo da família, como base
fundamental da sua reprodução.
Este aspecto é considerado relevante nas dinâmicas concernentes às tentativas de
inibir casamentos entre membros de famílias de grupos étnicos diferentes, e em geral entre
famílias que compartem apenas o território, mas demonstram ter trajetórias e experiências
sensivelmente diversificadas, com construções morais consequentemente diferentes. É o
caso dos relacionamentos entre jovens de famílias com orientação religiosa diversa
(protestantes, de um lado, e adeptos da tradição indígena e penitentes, de outro), que
correspondem a circuitos experienciais diferenciados. Nos dois casos que me foram
relatados, os jovens casais haviam sido “disciplinados” pelas respectivas famílias, isto é,
passaram por um período de afastamento dos ambientes e das atividades rituais
respectivas, sendo convidados a refletir sobre as dificuldades em levar à frente o
relacionamento e a desistir do mesmo. Ambos os casais decidiram continuar o
relacionamento, mas optaram por soluções diferentes. Um deles escolheu uma posição
neutra, abandonando o envolvimento anterior com as obrigações religiosas. As pressões da
família se atenuaram quando a oportunidade da neolocalidade se apresentou, permitindo à
mulher sair do espaço do grupo doméstico do marido. No caso do outro casal, a residência
ainda não foi definida, morando ela alguns dias na casa da mãe e o restante na casa da
sogra. Ambos estão fortemente envolvidos nas obrigações religiosas das respectivas
famílias, o que os impede de tomar uma posição neutra como o outro casal.
O problema relativo ao processo educativo dos filhos foi evidenciado em diversas
circunstâncias pelos envolvidos, sendo este de competência dos avós. Os filhos em
interação com os avós das respectivas famílias manifestaram a destreza necessária para
passar adiante experiências diferentes, cujos conhecimentos são aprendidos e gerenciados
nos diversos âmbitos, mostrando-os ou ocultando-os a depender do contexto.61
Embora a descendência agnática seja a tendência mais difusa entre as famílias
pankararu, a descendência bilateral é amplamente aplicada. A residência patrilocal é
preeminente, ainda que se observem casos de matrilocalidade e neolocalidade. Pode-se
debater que a descendência agnática ganhou particular importância a partir de uma

61
As perguntas das avós sobre as atividades desenvolvidas com a outra família mostravam a necessidade de
se controlarem os efeitos do processo educativo antagonista. Os netos demonstravam destreza em, por
exemplo, evitar contar determinados acontecimentos, como as visitas do pastor batista em casa e as
atividades na Igreja. Da mesma forma, evitavam relatar para a família evangélica a participação nos cultos
domésticos da tradição indígena.
57

progressiva valoração da paternidade, num contexto que requer a afirmação masculina


segundo uma lógica cristã imposta.62
A divisão de papéis entre gêneros marca âmbitos diferenciados de circulação e
transmissão de conhecimento, podendo este permanecer oculto em determinadas
circunstâncias históricas que não permitem sua visibilidade e valorização. No entanto,
mudando as circunstâncias, eles podem voltar a vigorar. As narrativas dos índios sobre a
saída de numerosos contingentes de homens, a partir da década de 1950, em busca de
trabalho nas capitais do país ou nas cidades próximas – sobretudo em sua primeira fase –
denota uma preeminente mobilidade individual63 que significou uma ameaça ao patrimônio
material e simbólico familiar. Diante disso, se pode constatar que ocorreram mudanças na
organização ou que o papel da mulher adquiriu nova visibilidade. Permanecendo na aldeia,
cuidando da roça e das obrigações religiosas devidas às entidades, elas se tornaram as
principais referências dos familiares. Nesta situação de ameaça ao patrimônio familiar,
uma valorização dos conhecimentos das mulheres lhes devolveu a visibilidade antes
necessariamente ocultada.64
Sustentada pela regra da patrilocalidade, a tendência para reter os homens do grupo
doméstico em seu espaço territorial tem encontrado, desde então, dificuldades para se
manter, fazendo com que seus membros empreguem diversas estratégias para perpetuá-la.
62
Os esforços dos missionários em tal sentido emergem dos relatórios que apresentavam aos superiores das
próprias Ordens religiosas, como é o caso de Martin de Nantes (1979 [1706-1707]), capuchinho francês que
operou entre os Cariri nas últimas décadas do século XVII. O capuchinho faz menção às “assustadoras
desordens” que caracterizavam o “governo” de tais índios, afirmando que “as mulheres costumavam dominar
seus maridos, os filhos não respeitam pai e mãe e nunca eram castigados” (p. 4). Poucas páginas separam tais
palavras de outra afirmação de Nantes: “as mulheres estão agora submissas aos maridos e as crianças aos
pais, que os castigam com chibatas, o que antes não acontecia” (p. 17). Martins (2003) toma as afirmações do
capuchinho como um “testemunho da mudança cultural radical que povos indígenas vivenciaram num
processo histórico através do qual a dominação masculina e a desigualdade de gênero caracterizaram uma
nova ordem sociopolítica enquanto sistema patriarcal” (p. 6). Embora mudanças tenham ocorrido,
certamente, o capuchinho precisava demonstrar aos superiores os avanços de sua obra, enaltecendo e
justificando seus métodos, visando demonstrar a eficácia com resultados que, ele mesmo, ao longo da
relação, considera efêmeros, tendo encontrado tenazes resistências ao impor mudanças nos princípios
organizacionais dos índios.
63
Esta primeira fase foi seguida por um deslocamento de famílias inteiras, o que denota a contínua
mobilidade desta população. Como observou Arruti (1996), a mobilidade que caracterizava as populações
indígenas durante os aldeamentos missionários e após sua extinção tinha escala familiar (p. 20).
64
Nas declarações dos índios sobre os diversos especialistas rituais atuantes em algumas aldeias, as mulheres
seriam atualmente mais numerosas do que os homens, o que não atesta ter sido este papel anteriormente
desempenhado só por homens ou que poucas mulheres o tenham exercido, mas apenas que as circunstâncias
atuais impõem sua maior visibilidade. Já Oliveira (1942) e Pinto (1952), ao descreverem e analisarem os
rituais Pankararu, destacaram a relevância do papel da mulher – a cantadeira – nos rituais, sublinhando ainda
a importância que existe nos assuntos relativos aos conhecimentos mágico-religiosos. Silva (1978) formula a
hipótese de terem existido “padrões matriarcais de lideranças” pelo alto prestígio atribuído a algumas “mães
de terreiros” (p. 110).
58

Há de se salientar que a reputação dos membros masculinos da família é construída através


de um comportamento que demonstre a valorização do trabalho, que é o que possibilita aos
homens “carregarem” suas esposas, ou seja, trazê-las para o interior do lugar do seu grupo
doméstico. A impossibilidade de trabalhar dentro da área indígena leva-os a buscar
emprego além dessas fronteiras. A volta para a área, na posse de maiores recursos,
viabiliza novamente a integração das respectivas mulheres nos espaços dos maridos, o que
evita a desonra – ou a percepção de estranheza – que recairia sobre eles se tivessem que se
deslocar para o local de moradia do grupo doméstico das esposas.
Além de ser a terra indígena escassa, insuficiente para as necessidades de sua
população, sua utilização é dificultada também em virtude da presença de diversas famílias
de posseiros. As disputas pelos escassos recursos tornam cotidianos os atritos entre as
famílias extensas. Antes da instalação do SPI, a população apresentava alto grau de
mobilidade e as famílias migravam para outros lugares, formando posteriormente as já
referidas pontas de rama. Embora não tenham eliminado completamente a mobilidade
anterior, as fronteiras territoriais impostas pelo órgão indigenista criaram fortes tensões
entre as famílias que permaneceram na área delimitada.
O deslocamento de vários membros para as agrovilas que ficam nas proximidades
da área e a forte migração para São Paulo produziram a dispersão dos grupos domésticos.
Esta dispersão, porém, não parece ser definitiva, já que alguns índios voltam à área, seja
periodicamente para o plantio seja para o desempenho de obrigações rituais com a família,
ou também para nela permanecer. Há de se destacar ainda que a partir da década de 1980 a
região ao redor da área indígena se tornou alvo de interesses, e uma série de recursos e
financiamentos foram para ali dirigidos através de programas governamentais (Arruti,
1996). O Estado estava interessado em enfraquecer as mobilizações organizadas contra a
construção da barragem da UHE de Itaparica. Nesse período, a imprensa regional dirigia
sua atenção às paralisações na construção da barragem organizadas pelos sindicatos. Os
Pankararu e os Tuxá adquiriram, então, maior visibilidade, pois foram feitos relatórios de
avaliação dos impactos da construção da barragem (Arruti, 1996, p. 159). Tal situação
alimentou vários interesses na região, inclusive as de órgãos assistencialistas, como a
Legião Brasileira de Assistência – LBA, e não governamentais, como o Lions Club, e os
eclesiásticos como o Conselho Indigenista Missionário – CIMI.
Arruti (1996, p. 159) informa que esta mudança de conjuntura fez com que a Funai
propusesse projetos econômicos e culturais que então eram canalizados para os postos
59

indígenas da região e que anteriormente recebiam os seus recursos provenientes de


programas governamentais mais amplos, como o Programa de Integração Nacional – PIN e
o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor – PAPP. Além disso, durante os primeiros anos
da década de 1980, estava sendo construído o acampamento da CHESF, que se tornou a
atual Itaparica, destinado a hospedar os funcionários da empresa durante os anos de
construção da barragem. Muitos índios viram na CHESF possibilidades de trabalhos e
vários foram ali empregados, tanto que alguns moram já há muito tempo em Itaparica. Em
virtude da mudança de situação e dos interesses e das convergências de financiamento na
região, abriram-se alternativas possíveis para que os índios não continuassem a se deslocar
para as capitais do país, podendo permanecer na área indígena. No entanto, as
possibilidades se restringiram a um número reduzido de índios que se empregaram na
CHESF, sendo que os trabalhos de construção da UHE eram limitados a períodos curtos.
Assim, a mobilidade dos Pankararu perpetuou-se, levando-os a se deslocar para lugares
distantes em busca de trabalho.
A saída de mulheres para se empregarem nas localidades próximas ou longe da
aldeia é exígua se comparada à mobilidade masculina ou familiar. Dos relatos de algumas
mulheres que decidiram procurar emprego além das fronteiras da área indígena emergem
as fortes resistências dos familiares e as consequências drásticas que enfrentaram ao se
deslocarem. Se, afora o deslocamento, a mulher estabelecia uma relação com um não
índio, decidindo casar-se com ele, as respostas dos pais eram ameaçadoras, negando-lhe a
herança da parcela de terra a ela destinada, e também a desconsideração reservada a quem
decide afastar-se do controle familiar.
Embora as famílias extensas precisem manter seus membros próximos para a
gestão do território, tentando-se evitar que eles saiam por longos períodos da aldeia, a sua
mobilidade torna-se vantajosa não somente em termos de maiores recursos econômicos.
Sempre que os parentes que se deslocam mantêm os vínculos e as obrigações para com
aqueles que ficam na aldeia, participando ativamente da vida ali, a fixação em diferentes
lugares, como a metrópole de São Paulo ou Recife, mostra-se oportunamente vantajosa.
Nessas cidades, podem ser hospedados quando precisam fazer consultas médicas com
especialistas, inexistentes nas proximidades da área; jovens em busca de trabalho ou que
decidem cursar a universidade recebem ali apoio; em alguns casos, tornam-se refúgio para
aqueles que fogem de conflitos.
60

A maioria dos interlocutores teve experiências prolongadas nas capitais do país e


todos têm ainda parentes que lá residem. Das narrativas sobressai o desejo de voltar à
aldeia, afirmando-se que este é o desejo de todos os parentes que ainda não o conseguiram.
No entanto, muitos decidiram fixar suas moradias em São Paulo, meta privilegiada entre as
capitais, embora já não ofereça mais as possibilidades de emprego como nas primeiras
décadas de forte migração. Alguns relataram que foram inicialmente sós para a capital e
depois chamaram o restante da família.

Aí, quando casei – casei no dia 4 de outubro – antes do fim do ano eu fui
pra São Paulo e comecei trabalhar de servente na construção civil e passei
um ano e dois meses lá; aí vim embora pra encontrar minha esposa. Não
deixei nem filho atrás. E aí fomos pra lá, os dois. Trabalhei mais um ano
e seis meses e vim embora, mas ela não queria vir, porque sabia que aqui
não era fácil. Aí viemos pra cá, plantei roça, comprei uma vaquinha pra
mim mesmo, que antes eram de meu pai. Depois viajei de novo pra São
Paulo, eu sei que fiz quatro viagens pra lá, e a minha mulher nunca estava
satisfeita quando era pra voltar pra aqui, porque era mais duro viver aqui
que lá em São Paulo (Agenor Julião).

As viagens e a permanência nas capitais são temas frequentes nas conversas:


contam-se anedotas, situações de camaradagem, dificuldades com as empresas e de
inserção no lugar. Com evidente orgulho, declara-se o elevado número de viagens
realizadas, o que evidencia a “coragem” enfrentada e a ética do trabalhador, sem preguiça e
temerário. Quando lhes é impossível mudar por longos períodos, são empregados com
contratos de três meses, renováveis por mais três, voltando à aldeia para o plantio,
trabalhando em fazendas locais ou se empregando em algum serviço temporário. Aguarda-
se com ansiedade a próxima contratação, sendo os salários desejáveis em relação a
qualquer emprego nas vizinhanças.
Não faltam comentários sobre as capitais, quando se enfatizam os perigos que ali se
corre em função dos elevados níveis de violência considerados bem mais altos do que na
aldeia. Os parentes moram, na maioria dos casos, nas favelas, 65 o que desperta forte
preocupação. Os mais velhos descreveram a cidade como um lugar imoral e demonstraram
grande intranquilidade pelo avanço de tal estilo de vida, contando casos acontecidos na
aldeia que demonstram o progressivo enfraquecimento dos valores morais. “Pais não

65
A favela de Real Parque concentra a maioria dos Pankararu. Para uma análise da situação dos Pankararu
em São Paulo, ver Matta (2005) e Albuquerque (2011)
61

reconhecem filhos, filhos não reconhecem pais”, “ninguém respeita ninguém”, afirmaram,
acrescentando ainda que no passado jamais isto teria sido permitido.
Em conversa, alguns jovens fizeram menção aos perigos e às violências frequentes
existentes também na aldeia, visando diminuir o contraste com as cidades, meta desejada
por muitos deles. Um garoto, ao escutar a tia dizer que no passado não existia nenhum tipo
de violência na aldeia, lembrava-lhe ironicamente que ela mesma lhe teria contado que, em
um tempo remoto, brigas entre famílias eram recorrentes, os homens costumando amarrar
as próprias camisas para impedir o distanciamento durante a luta, que se desenvolvia com
facas. A resposta da tia visou minimizar a ênfase que o sobrinho estava dando à crueldade
com que aconteciam as brigas, afirmando que não era possível comparar esses eventos com
a violência nas cidades. A sua argumentação – reforçada pelos outros anciãos que
participavam da conversa – tinha como objetivo acentuar as condutas “sem moral” e “sem
Deus” da cidade e dos não índios em geral.
A coesão entre os membros de uma família, assim como vínculos estáveis de longa
data entre diversos grupos domésticos, merecem comentários especialmente positivos e
denotam a aprovação de atitudes que mantêm a unidade.
Como já disse, os acontecimentos que movimentam a vida nas aldeias e que fluem
nas conversas remetem de modo específico a condutas familiares e, sobretudo, aos
principais responsáveis pelo grupo doméstico. Está em jogo, principalmente, a reputação
do cabeça da família, seja ele homem ou mulher, que deve demonstrar a capacidade de
fazer com que os que ainda estão sob sua responsabilidade obedeçam aos mandos e se
conformem às atitudes requeridas. Comportamentos “desviantes” podem ser atribuídos à
falta de firmeza do chefe ou ao formato da família. Algumas são consideradas
“desestruturadas”, isto é, com escassa integridade moral e falta de união, o que resulta em
baixa reputação. Seriam as famílias cujos chefes demonstram incapacidade em controlar os
próprios membros, faltando-lhes a autoridade necessária. A debilidade de uma família, no
entanto, pode também ser determinada por um número exíguo de componentes, não
obstante haja entre eles uma forte união, mas ela pode mudar esta condição através de
alianças com famílias que nela reconheçam tal valor.66

66
È o caso, por exemplo, da família do cacique Zé Auto (a família Pedro), composta por um número exíguo
de membros. No entanto, gravitam ao seu redor outras famílias que se tornaram aliadas, o que viabilizou a
aquisição de força política.
62

As famílias apresentam certa autonomia e as atividades empreendidas por seus


membros para a gestão do território visam mantê-las ou aumentá-las. Sobretudo os
membros mais jovens do grupo doméstico são incentivados a desenvolver diversas
atividades que possam trazer benefícios ao seu grupo, entre elas a aquisição de
informações úteis para aperfeiçoar as próprias estratégias cotidianas de gestão e de procura
de recursos. Boa parte de tais atividades desenvolvem-se com membros externos ao grupo
étnico, agências e agentes com os quais são estabelecidas relações de trabalho ou amizade
ou parcerias periódicas.
O controle social procede com uma observação constante de todos os movimentos e
empreendimentos dos vizinhos e dos atores sociais que circulam na área, tanto índios
quando não índios.
Em certa ocasião, fluíram nos comentários ponderações sobre a possibilidade ou
menos de denunciar eventuais ações ilícitas, assim como a capacidade de as famílias
encontrarem respaldo. Os agentes que interagem com os Pankararu, sejam eles
funcionários da Funai ou da Funasa, sejam políticos locais, empregados das prefeituras dos
municípios de referência, antropólogos ou outros cientistas que ali realizam as próprias
pesquisas ou projetos com ONGs, são indagados regularmente a fim de se compreenderem
não apenas os objetivos dos projetos a serem realizados, mas (sobretudo) por quem serão
desenvolvidos. Essa informação é crucial para mapear a construção de vínculos por parte
das famílias que se valem do apoio e das informações que os agentes em interação lhes
oferecem, obtendo dessa forma melhores chances de sucesso nos empreendimentos.
Mantendo-se em observação as situações familiares, os atores sociais comentam
eventuais mudanças, por exemplo, quando alguém volta depois de um tempo de trabalho
em São Paulo ou em outra capital. Indaga-se sobre sucessos ou fracassos e, especialmente,
são comentados os efeitos que eles terão sobre a família. Se os conhecimentos e os
recursos adquiridos com tal experiência se tornam vantajosos para a família e mais além
dela, beneficiando os membros do próprio tronco, o sujeito adquire relevante prestígio.
Se o diferencial econômico de uma família supera certos limites, podem ser feitos
comentários negativos. Por exemplo, as famílias consideradas “bem de vida”, cujos
recursos econômicos são sensivelmente superiores às de outras, podem instigar
comentários que demonstram dúvidas sobre a legitimidade das suas fontes, fazendo recair
o descrédito sobre elas. Mas se os recursos obtidos beneficiarem além da própria família,
como outros membros da coletividade que a ela apelam para receber ajuda, ou os meios
63

obtidos forem investidos nas festividades e nos rituais de grande importância


comunitária,67 o sujeito pode desfrutar de elevado prestígio.

O pessoal não quer ver um filho meu, um irmão meu com carro, com
emprego, bem empregado, um filho de nossa família estudando. Eles têm
raiva da gente. A gente não quer dizer, mas eles têm inveja da gente. E a
resposta que a gente dá é com estudo, é a gente crescendo. Aqui na
família já tem F., que é advogado, tem N., que está estudando pra
embaixador, já tem P., que está estudando pra médico, outro que se
formou [em] engenharia. Aí eles sabem disso e diz: “mas esse povo tá
doido!”. Você vê essas casas daqui, nós não somos ricos, somos ricos das
graças de Deus. Mas o povo tem os nossos como os ricos. Acha que a
gente tem dinheiro. Se um da família tem um filho fora, aí vão dizer:
“bota na justiça que é pra eles pagar, eles têm dinheiro”. Meu Deus! Nós
temos pra sobreviver, mas por quê? Porque nós trabalha! Nós não vive na
porta da Funai ou da Funasa pedindo, esperando. Nós vive de nosso
trabalho, é de enxada que nós vive!

Com essas palavras, uma mulher68 se defendia das acusações e das ofensas que
recaíram sobre a sua família, apelando para o valor atribuído ao trabalho – fonte de
respeitabilidade – e denegrindo as famílias que, segundo ela, não seguem essa ética. Ter
membros da família que se destacam por haverem conseguido títulos em função de estudo,
coloca-os na categoria dos “estudados” ou “formados”, que marca outro diferencial a
respeito das famílias que, por terem recursos limitados, não podem respaldar a carreira dos
filhos, ou que nunca atribuíram valor à sua formação.
Há de se salientar que na situação histórica anterior à instalação do SPI os índios
eram obrigados a trabalhar nas fazendas para obter os recursos necessários à própria
subsistência, estando ausentes outras possibilidades. Embora esta situação tenha-se
perpetuado também após a instalação do SPI as mudanças na figuração política, econômica
e social – sobretudo nas últimas décadas – ampliaram esse leque. Atualmente, para se
obterem recursos econômicos (sendo o trabalho agrícola insuficiente para a subsistência),
os membros das famílias extensas dedicam-se a diversas atividades e ocupam cargos
anteriormente ausentes, os quais se tornaram particularmente disputados: professores,
agentes de saúde, funcionários da Funai ou da Funasa, coordenadores, motoristas e
merendeiras das escolas. Apela-se também para as “políticas assistencialistas” das

67
Comentários como “vai pagar uma garapa”, ou “vai ter que matar um boi” eu os ouvi em algumas ocasiões
quando, de volta à aldeia após um longo período de trabalho em São Paulo, o familiar era cobrado (em forma
de brincadeira) para que mostrasse a atitude requerida de generosidade para com a família, redistribuindo a
riqueza supostamente acumulada.
68
Evitou-se a identificação dos envolvidos nos conflitos que ainda estão vivos.
64

instituições governamentais e das ONGs, entre as quais o Bolsa Família é especialmente


anelado, cobrindo apenas um número exíguo de famílias que o requisitam. Outras
oportunidades ainda são os empregos nas cidades próximas, os serviços oferecidos em
empresas como a CHESF ou a Codevasf, ou ainda (recentemente) nas obras em curso para
a transposição do rio São Francisco.
Em alguns casos a aposentadoria dos mais velhos – obtida como trabalhadores
rurais – é a única fonte econômica de todo o grupo doméstico.69
As narrativas dos mais velhos, que tendem a enfatizar o enfraquecimento da própria
autoridade em virtude de uma degeneração dos valores que exigiam “respeito” e submissão
a seus mandos, podem ser abordadas como práticas de discursos que reiteram o valor
dessas posições ainda vigentes em um quadro normativo que tende a idealizar o passado.
Práticas cotidianas que reforçam a estrutura hierárquica dentro da família e o
reconhecimento da autoridade dos mais velhos são impostas às crianças desde muito cedo,
como o pedido da “bênção” dirigido principalmente a avós, tios, compadres e comadres e a
quem se deve o devido “respeito”, tanto pela posição ocupada na genealogia quanto pelas
relações íntimas estabelecidas na própria rede de parentesco.
Observou-se em algumas famílias que, nos encontros pontuais ao final da tarde,
quando os membros do grupo doméstico costumam se reunir (momento essencial de
socialização), os mais jovens informam os(as) chefes de família e, em geral, os mais idosos
sobre os acontecimentos do dia, comentam as próprias intenções e pedem permissão e
orientação para futuros empreendimentos, bem como podem ser severamente repreendidos
quando não seguem os mandos. A autoridade dos mais velhos é consolidada através dessas
práticas, que os jovens pais de família reproduzem. Não se trata apenas do resultado da
reprodução de um habitus (Bourdieu, 1989, 2002,), percebendo-se as estratégias e os
cálculos destes atores sociais e a progressiva construção do próprio self através do
engajamento em diferentes situações.70 Respeitar as relações de autoridade no seio da
família oferece a possibilidade a quem se submete a elas de se beneficiar da tutela
necessária para se proteger dos elementos externos, sempre vistos como potenciais
inimigos ou concorrentes, e também para adquirir um status privilegiado.

69
Há de se considerar que, nestes casos, sendo eles já tradicionalmente os que atuam como chefes e guias da
família, a condição de dependência econômica dos outros membros fortalece os vínculos dentro dela.
70
Como se verá mais adiante, os atores sociais envolvidos e posicionados diversificadamente na figuração
social que estamos delineando fazem escolhas determinadas por percursos experienciais e por estratégias que
possam beneficiar o próprio grupo familiar, sendo este a sua principal referência e do qual recebem apoio.
65

Os jovens encontram na família todo tipo de apoio, tanto econômico quanto afetivo,
e o respaldo em situações de dificuldade, além do reconhecimento e do prestígio pelo
sucesso de seus empreendimentos, quando estes, sobretudo, beneficiam a sua família, o
que contribui para o seu fortalecimento. Há de se considerar, no entanto, que as diversas
possibilidades experienciais dos membros da família, tanto dentro das aldeias ou nos seus
arredores, quanto nas capitais do país, incrementaram sensivelmente a diversificação das
posturas morais, capazes de gerar até ásperos conflitos intergeracionais, bem como
intrageracionais. Se, por um lado, são os mesmos chefes de família que incentivam os seus
membros a empreenderem tais atividades para o bem-estar de toda a família, por outro
lado, estas atividades se tornam problemáticas para a manutenção da desejada “união”. De
fato, a família extensa atua em virtude tanto de seus interesses econômicos quanto em prol
de sua integridade moral. Sendo ela a unidade política e sociológica mais reconhecida, sua
atuação é constantemente submetida à opinião e à avaliação das outras. Por ter um peso na
formação das diversas reputações, as observações e as opiniões tornam-se meios de
controle e obrigam as famílias a manterem certos padrões. Para assegurar a própria
posição, precisa-se controlar essa diversificação de posturas morais internas, estabelecendo
hierarquias entre as diferentes atividades empreendidas pelos seus membros com o intento
de manter o padrão desejado.
Para se ter uma idéia mais concreta do que foi exposto até agora, descrevem-se a
seguir as dinâmicas inerentes aos processos de construção e fissão de um específico tronco
e as estratégias das famílias extensas que o compõem na procura de recursos tanto
econômicos quanto de prestígio.

2.1 O tronco Binga: a trajetória de uma linhagem

O tronco Binga é uma linhagem especialmente numerosa, contando, segundo


estimativas, com mais de 500 membros71 entre consanguíneos e afins. De maneira geral, os
índios se referem ao seu conjunto como a “família Binga”, usando o termo “exército” para
enfatizar o fato de haver um número consistente de membros. Os comentários de diversos
interlocutores que não pertencem a este tronco denotavam o “respeito” que é preciso

71
A reconstrução das genealogias das famílias que se apresentarão nos diagramas é parcial, não contendo
todos os integrantes do tronco e seus nomes.
66

reservar a ele. Enfatizaram a valentia e a esperteza de seus membros e, sobretudo, a


solidariedade interna, a capacidade de coalizão em face das ameaças ao próprio nome, ao
patrimônio ou simplesmente a um dos seus membros.
Os grupos domésticos que o compõem, embora possam se tornar protagonistas de
contendas e terem vínculos mais débeis, em algumas circunstâncias atuam de forma
corporativa. A maioria deles está distribuída em várias aldeias das TIs Pankararu e Entre
Serra, mas alguns de seus membros moram em Jatobá e Tacaratu, outros se estabeleceram
em São Paulo ou em diferentes cidades do país. Como já de destacou, as famílias extensas
residem próximas e as distâncias maiores podem ser alcançadas a pé, o que lhes dá a
possibilidade de terem relações cotidianas, de trocar informações e colaborar no trabalho
das roças, as quais também são em grande parte adjacentes.
Se nos ativermos à memória dos mais velhos dos grupos domésticos, a sua
lembrança chega até o final do século XIX, período que coincide aproximadamente com a
extinção do aldeamento Brejo dos Padres, em 1875. A memória das redes de relações
tecidas ao longo de mais de um século denota o recorte baseado mormente nas relações de
parentesco e nas alianças rituais, as quais atestam o esforço dessas famílias que, visando à
própria reprodução, buscaram estratégias que lhes permitiram adaptar-se às condições
políticas e sociais que se sucederam historicamente. Como se pode observar no diagrama
IV,72 a união de Antonia Maria Rosa da Conceição (conhecida como Antonia Binga – filha
de Serafim Gomes de Sá, o antigo sarapó já mencionado – e José Monteiro (o velho Zé
Binga), filho do primeiro Antonio Binga e Maria Francisca Quirino, inaugura, no final do
século XIX, relações de proximidade e aliança entre as então famílias Binga e Serafim,
aliança esta que marcará profundamente a memória dos membros que hoje pertencem aos
grupos domésticos que brotaram daquela união, e para ela se voltam, nas atuais
desavenças, como forma idealizada de coalizão.

72
Para poder acompanhar a sequência da descrição em que aparecerão os atores sociais dos numerosos
grupos domésticos, optei por apresentar um primeiro diagrama com as primeiras três gerações, e as
sucessivas descendências, em diagramas separados. Ver todos os diagramas no final deste Capítulo.
67

73
Serafim Gomes de Sá (o Sarapó) Antonia Maria Rosa da Conceição74

Genésio Oliveira, neto do velho Zé Binga, relatou que seu avô havia se deslocado
para o estado do Piauí, onde trabalhou numa fazenda. Depois de um tempo, voltou a Brejo
dos Padres, onde formou sua família, conseguindo sustentá-la em função de uma relação
próxima com os coronéis da região que lhe deram respaldo.

Olhe, meu avô só conseguiu este terreno porque ele trabalhava para uma
família de coronéis, os Faceiros, eles eram os que mandavam. Ele
trabalhava na roça deles toda a semana. Meu avô era uma pessoa correta
e honesta e todo mundo considerava muito ele. Ele era muito querido, até
os coronéis tinham a maior confiança nele. Inclusive, meu avô disse:
“Homem, quer ser padrinho de um meu filho que nasceu?”. “Eu sou!”.
Aí, meu tio Manoel Binga é afilhado desse coronel. Aí, quando meu avô
foi fazer um terreno ali no bebedor, teve uma parte que não queria: “Você
não vai fazer! Você não pode fazer isso aí”. Aí, vieram pra empatar. Aí,
meu avô falou pra o patrão dele. Aí o patrão mandou um recado: “Olhe,
se você mexer com Zé Binga, eu não sei o que vai acontecer com você,
viu! Você vai se ver comigo”. Aí, pronto, meu avô fez a roça dele. Foi na
valentia, foi como ele tirou pra plantar. É que ele era muito chegado do
lado dos coronéis. Até hoje é assim, porque se tem um conhecimento, a
gente vai falar com essa pessoa, não é isso?

O velho Zé Binga encontrou o respaldo dos coronéis, diversamente da maioria dos


outros índios que sofriam perseguições. As informações sobre a proveniência dos
fundadores das duas famílias (Binga e Serafim) não são unânimes, mas há certa
73
Foto da Coleção Etnográfica Carlos Estevão do Museu de Estado de Pernambuco.
74
Foto pintura ofertada pela família Oliveira.
68

concordância em afirmar que o velho Serafim teria vindo de Serra Negra e Antonio Binga
teria se deslocado de Santo Antônio da Glória, no estado da Bahia – o antigo aldeamento
Curral dos Bois,75 hoje chamado Glória – para Brejo dos Padres no final do século XIX.
Ambos os fundadores desses troncos fugiram dos respectivos lugares em virtude
das perseguições dos fazendeiros – uma dentre as causas que obrigavam famílias inteiras a
se deslocarem através de um amplo território – tendo encontrado no aldeamento Brejo dos
Padres condições mais favoráveis. Quando o aldeamento foi extinto e houve a repartição
da terra – a “época das linhas” – o velho Serafim foi obrigado a abandonar a Fonte Grande
(ver mapa das aldeias), local da sua moradia em Brejo dos Padres, onde zelava pelo
terreiro da Nascente, para se refugiar na Serra Grande. No entanto, depois de um tempo, o
velho Serafim teria voltado a Brejo dos Padres, ali fixando residência até o seu
falecimento. No texto de Oliveira (1942), pode-se observar que, durante a permanência do
autor em Brejo dos Padres, ele teve como principal interlocutor justamente o velho
Serafim, identificando-o como o “chefe da aldeia” (p. 159).76 Oliveira argumenta que, em
virtude da sua presença, o velho Serafim teria organizado uma “festa da ajucá” para que ele
pudesse assistir, embora a cerimônia fosse interditada à maioria da população, sendo seus
participantes um pequeno grupo de escolhidos. Como muitos anciãos afirmaram, o velho
Serafim ter-se-ia prontificado a mostrar todos os elementos para que o “Dr. Carlos” – isto
é, o mesmo Oliveira – pudesse “provar” a existência e a “autenticidade” dos índios que ali
moravam.
Muitos interlocutores afirmaram que esse período foi caracterizado por extrema
perseguição e violência contra os índios, sendo-lhes proibido desenvolver os próprios
rituais. Como também Arruti (1996) destacou, através de seus dotes mágicos e certa

75
O aldeamento Curral dos Bois teve sua fundação em 1698 e sua extinção remonta a 1843, sendo
gerenciado desde a sua fundação até 1702 por missionários jesuítas e, posteriormente, por franciscanos
(Puntoni, 2002, p. 295). Andrade (2002, p. 120) informa ainda que notícias sobre este aldeamento existem até
1849, dois anos mais tarde tendo sido elevado à matriz Santo Antonio da Glória. Como mencionamos acima,
a poucos quilômetros do atual município da Glória encontra-se a TI Pankararé, em Brejo do Burgo.
76
Se nos ativermos aos jornais de poucos anos depois da estadia do etnólogo, já o nome que aparece nos
artigos como “chefe da aldeia” é o de João Moreno, que ocupava o cargo de capitão. Na edição do Diário da
Amanhã e do O Imparcial de outubro de 1941, o capitão João Moreno é apresentado, respectivamente, como
“chefe da aldeia” e “uma espécie de introdutor diplomático da tribo”. Os artigos são eloquentes em relação à
visão dominante na época sobre os índios, retratando-os de acordo com os aspectos mais exóticos, mas é
interessante destacar a importância que começava a ser dada às práticas rituais como únicos elementos
legítimos de distinção étnica. Também é sublinhado o tipo de comida consumida pelos Pankararu, os
materiais utilizados para a construção das moradias, as atitudes consideradas particularmente “estranhas”,
como dormir no chão e comer de forma “rude”. Todos os elementos visavam, por um lado, ressaltar as
diferenças em relação à população regional e, por outro, reiteravam a imagem dos índios como “selvagens”.
69

reputação moral, o velho Serafim conseguiu recrutar para a sua família um círculo de
lealdade particularmente sólido, embora as desavenças internas tenham criado divisões nas
sucessivas gerações. Apenas uma parcela da população participava desse núcleo e os
eventos rituais desenvolviam-se em segredo. A perseguição sofrida pelos adeptos do culto
dos encantados tinha como um de seus mais significativos fatores os oligarcas da região –
os coronéis. Entretanto, estes encontravam seus aliados entre os membros da Igreja
Católica que, em pleno fervor romanizante, tratava de extirpar e condenar qualquer
manifestação religiosa devocional e mágica. A presença do “Dr. Carlos” na aldeia foi
percebida como a possibilidade de adquirir visibilidade num momento em que chegavam
as primeiras informações sobre o respaldo do órgão indigenista, informações estas que
fluíam através das redes de relações entre diversas coletividades do Nordeste que, do
século passado até hoje, reivindicam os próprios direitos – principalmente a terra.77
Assim, o velho Serafim, além da legitimidade a ele atribuída como autoridade pelas
suas capacidades mágico-religiosas, tornou-se referência também na mediação com o SPI
no momento da sua instalação e após a passagem de Oliveira, que o investiu no cargo de
pajé, cargo antes inexistente. Joaquim Serafim (falecido em 1994), filho do velho Serafim,
sucedeu-o no cargo de pajé. Diversamente do pai que voltou a viver no Brejo, ele ficou na
aldeia Serrinha. Até o seu falecimento foi o zelador do encantado Mestre Guia78 e
organizador da sua festa anual, deixando à sua esposa Emília, mais comumente chamada
“mãe da terra” (falecida em 2010), a responsabilidade do terreiro.
Quando começaram os primeiros boatos sobre a possibilidade de ter o respaldo do
órgão indigenista, Antonio Binga (irmão do velho Zé Binga) – também uma importante
referência mágico-religiosa – movimentou-se para obtê-lo. Seu filho Zé Binga relatou:

Nesse tempo era difícil, porque não tinha alguém deste lado. Aí os índios
foram expulsos daqui, correram pras serras aqui desse lado, também pra
Serra Negra, aí espalhou e aqui ficaram poucos. Porque aqui tudo era
criação de gado, aqui era tudo fazendeiro [que] tinha engenho. Tudo aqui
era deles. Aí que meu pai foi falar ao padre Alfredo. Ele juntou os mais

77
Como destacado por Arruti (1996, 2004), havia circuitos rituais que delineavam deslocamentos
temporários dos índios a fim de realizarem suas atividades religiosas, circuito este que ainda vigora, como
será descrito no Capítulo VIII. Esses encontros promoviam não apenas a circulação de fluxos de informações
e conhecimentos, como também geravam relacionamentos e matrimônios. Para uma reconstrução das
relações e do apoio político e ritual entre as coletividades que gradualmente começavam a reivindicar-se
como diferenciadas etnicamente, ver Arruti (1996).
78
O Mestre Guia é o encantado considerado como o mais importante, como se verá mais detalhadamente no
Capítulo IV.
70

velhos daqui, Anjo Bomba e outros todos já morreram, esses velhos! Aí


foram pra Bom Conselho, sendo que padre Alfredo ‘tava ajudando. Foi
quem descobriu todo esse negócio e ele informava na missa pros índios e
aí deu toda a dica do que fazer. Ele foi quem passou pro pessoal mais
velho, aí esses velhos correram atrás, foram procurar! Ele dizia pros
índios: “vocês têm muita coisa!”. Esse padre sabia de tudo!

As informações sobre o apoio que padre Alfredo Damaso 79 estava fornecendo aos
índios na década de 1920 teriam chegado a Antonio Binga em virtude dos vínculos com
romeiros de diversos lugares, dada a sua frequente participação nas romarias em Juazeiro
do Norte e às relações que ele e outros índios tinham com os Fulni-ô, os quais já haviam
recebido a atenção do mesmo padre.
Dono de um batalhão de encantados, Antonio Binga, embora atuasse
concomitantemente com outros atores sociais na reivindicação dos direitos do grupo, não
desempenhou nenhum cargo oficial implementado pelo órgão indigenista. Nos primeiros
anos da instalação do SPI, ocuparam o cargo de pajé, cacique e capitão, respectivamente,
Joaquim Serafim, Narciso Pedro e João Moreno. Antonio Binga, no entanto, fazia parte do
círculo de lealdades de Joaquim Serafim, construído através de vínculos rituais estreitos.80
O vínculo entre ambos os especialistas rituais foi reforçado ulteriormente em virtude da
união já mencionada entre a irmã de Joaquim Serafim (Antonia Maria da Conceição) e o
irmão de Antonio Binga, o velho Zé Binga.
Antonio Binga, que gozava de uma sólida reputação como pai de praiá e curador,
foi membro do grupo ritual penitente. Em realidade, também seus irmãos integravam este
grupo, tendo sidos inseridos pelo próprio pai (o primeiro Antonio Binga), que havia se
casado com Maria Francisca Quirino, cuja família, afirmou a maioria dos índios,
introduziu as práticas penitenciais na área. A participação na irmandade aumentou a sua
reputação moral, na medida em que a entrada no grupo exigia restrições morais
especialmente rígidas, outrora muito apreciadas e valorizadas. A relação com outras

79
Padre Alfredo Damaso atuou principalmente com os índios Fulni-ô em Águas Belas e orientou o etnólogo
Carlos Estevão Oliveira para que dirigisse a sua atenção aos Pankararu (Arruti, 1996). Escreveu um breve
texto em 1931, no qual toma a defesa do SPI contra os ataques a ele dirigido no jornal A Noite, do Rio de
Janeiro, que o acusava de desperdiçar dinheiro público inutilmente e que, ademais, explorava os índios. O
“capelão militar” defendia a proteção dos índios nordestinos não apenas como ação humanitária e contra a
perpetuação da violência colonial, mas que, conforme afirmou Arruti (1996), “também respeitaria uma
racionalidade política, ao tutelar uma população rural pobre assediada pela ebulição política da época e uma
racionalidade econômica que, diferente da que guiava a elite cafeeira, percebia nesta população
marginalizada os ‘braços’ de que tanto se sentia falta” (p. 50).
80
As famílias envolvidas são protagonistas da festa do encantado Mestre Guia, com a presença dos praiás de
ambas para o bom êxito do ritual.
71

famílias que encabeçavam tradicionalmente este grupo ritual (inicialmente Quirino,


posteriormente Anjo, auxiliados pelos Bomba) solidificou-se em virtude da participação
conjunta nas frequentes peregrinações aos centros de culto em “busca dos conselhos”81
oferecidos pelos padrinhos (padre Cícero e Pedro Batista), pela madrinha Dodô e em
função dos vínculos de parentesco que se instauraram. Há de se destacar que a aliança com
famílias que podiam contar com o apoio de membros da Igreja Católica (como a família
Quirino) era auspiciosa, tendo-se a possibilidade de adquirir o respaldo dos eclesiásticos.
O grupo doméstico de Antonio Binga (diagrama V) teve membros que se
destacaram por seus dotes mágicos, sobretudo a filha Maria José82 e Miguel, que herdaram
o batalhão de praiás do pai. Miguel tornou-se pajé durante a década de 60 e ainda é
reconhecido como tal, mesmo que as condições de saúde não mais lhe permitam praticar
rituais nem desempenhar as outras funções que o cargo lhe impõe. Entre os interlocutores
indagados sobre o processo de sucessão no cargo, há certa concordância em afirmar que
Miguel foi escolhido pelo pajé anterior, Joaquim Serafim, entre outros pretendentes, a
saber: João Tomás (pertencente à família do primeiro cacique Narciso Pedro); João de
Páscoa e Renato Julião, ambos genros de Joaquim e ativas lideranças. Como destaca Arruti
(1996), a passagem do cargo não aparenta seguir um tipo específico de modelo estrutural, a
escolha dos candidatos sendo orientada apenas pelas lealdades rituais. Mas os vínculos de
parentesco e de aliança entre diversos grupos domésticos tinham, e têm ainda hoje, grande
importância. Com efeito, apesar de as circunstâncias terem mobilizado as famílias a se
articularem para reivindicar o reconhecimento étnico e assim obterem o direito a terra, uma
vez alcançado o objetivo, a tendência de atingir maior autonomia por parte dos grupos
domésticos volta a aparecer mais nitidamente.
Embora os meios para adquirir tal autonomia estejam mudados – antes buscavam-
se fazendeiros ou conselheiros para o respaldo do grupo familiar, agora investe-se na

81
É possível afirmar que, embora se possa observar a passagem da “busca de conselhos” à “busca de
direitos”, tendo esta última atualmente preeminência em relação à primeira, até poucas décadas atrás os
conselhos de figuras carismáticas, como os padrinhos e a madrinha Dodô, eram desejáveis. Hoje em dia
recorre-se a especialistas rituais que têm a capacidade de se comunicar com eles para continuar a recebê-los.
No Capítulo III, retomarei este argumento ao abordar o movimento salvacionista encabeçado por um destes
líderes religiosos.
82
Desde o falecimento de Antonio Binga em 1975 e depois de repetidos sonhos da filha Maria José (76 anos)
com ele, vem sendo realizada uma festa em sua homenagem a cada 20 de outubro, cuja dinâmica será
descrita no Capítulo VIII. Destaco aqui que o evento é marcado pela participação de grupos rituais
provenientes de outros lugares da região, principalmente de Bandeira e Santa Brígida, cujos membros são
também seguidores de Pedro Batista e da madrinha Dodô e com os quais Antonio Binga entretinha intensas
relações.
72

ocupação dos cargos de poder implementados pelo órgão indigenista – a meta a ser
atingida não parece ter mudado. Há de se salientar que, sobretudo nas últimas décadas,
ocupar o cargo de cacique ou de pajé significa obter enormes vantagens em termos de
recursos materiais,83 destinados, na maioria dos casos, aos membros da própria família
extensa. Assim, o cargo tornou-se alvo de disputas e foi incorporado à lógica da herança
familiar que hoje é sobremodo enfatizada. Com efeito, as disputas pelo cargo de pajé e de
cacique enfrentam-se, argumentativamente, sobretudo a partir da lógica de herança
familiar. Miguel Binga, que como já mencionei está enfermo, passou o cargo a seu
sobrinho Zé Branco, embora haja dissensos nas aldeias que visam desautorizá-lo. A
investidura passou a um antigo candidato, Renato Julião, genro do antigo pajé Joaquim
Serafim. A destituição de Zé Branco do cargo de pajé encontra seu principal motivo na
gradual perda de força política e ritual da família extensa à qual pertence, o seu circuito de
aliados ficando debilitado em virtude de um processo que determinou tanto o afastamento
da inicial aliança com o tronco Serafim quanto da fissão dentro do próprio tronco Binga,
como se verá a seguir.
A procura da autonomia das outras famílias às quais eram vinculados ritualmente e
politicamente por parte do grupo doméstico fundado por Antonio Binga começou logo
depois da investidura de Miguel Binga como subpajé. Miguel foi se afastando de Joaquim
Serafim e dos outros pais e mães de praiá que convergiam nesse círculo ritual,
desconhecendo a autoridade de que foram investidos e formando o próprio círculo de
alianças e lealdades. A posição de Miguel Binga era particularmente favorável a criar um
afastamento desses aliados. Os grupos domésticos do tronco Binga já haviam adquirido
especial poder político, contando com várias lideranças de grande destaque. No diagrama
VI pode-se observar que Quitéria Maria de Jesus (Quitéria Binga) – uma das lideranças de
mais destaque entre os Pankararu (falecida em 2010 aos 71 anos) – era filha de Joaquim
Binga, que havia sido criado por Antonio Binga. Quitéria, portanto, era sobrinha de Miguel
e participava ativamente do núcleo ritual desse grupo doméstico. Com efeito, embora
Miguel fosse a principal referência ritual depois do falecimento de Antonio Binga, quem
constituía o eixo das atividades rituais do grupo doméstico eram Maria José (sua irmã),

83
O cacique pode dar acesso a diversas vantagens, por exemplo, garantir cargos dentro da escola ou da
Funasa.
73

Quitéria (sua sobrinha) e Dora Lina Barro (única a não ter vínculo de parentesco) como
coadjuvante – trio de mulheres curadoras84 de renomada fama.
Há de se destacar ainda que a intimidade das relações entre os grupos domésticos
formados pelos oito filhos de Antonio Binga era favorecida pela vizinhança. A maioria
mora na aldeia Saco dos Barros, seus membros sendo identificados como os “Binga de
baixo”.85 Valendo-se de seu batalhão de praiás, a família dispensou a presença dos outros
praiás para a realização dos rituais no próprio terreiro e faltou na resposta aos convites
para eventos rituais organizados por outros especialistas. A consolidação da autonomia
demonstrou ser excessiva e ocasionou o isolamento. Hoje dificilmente são chamados para
os eventos rituais, mesmo aqueles organizados por outros grupos domésticos do tronco
Binga. Este segmento do tronco buscou a consolidação de alianças com grupos rituais
externos às aldeias, cuja rede de relações foi tecida por Antonio Binga e, atualmente, como
se verá no decorrer deste trabalho, recebe críticas severas. Além da solidificação destes
vínculos interétnicos através do circuito ritual,86 observou-se também a consolidação de
alianças com os troncos Calu e Pedro, contrabalançando, assim, o reforço das alianças
entre os “Binga de cima” com os Serafim e o seu circuito de lealdades rituais e políticas.
Membros de outros grupos domésticos do tronco Binga que foram gerados a partir
da primeira união entre Zé Binga, irmão de Antonio, e Antonia, filha de Serafim, também
adquiriram especial destaque. Entre eles, João Monteiro da Luz (João Binga), falecido em
2008 (Diagrama VII), que se tornou cacique na década de 1960, atuando como tal até
2005. Diversamente do primo Miguel (o pajé), João Binga nunca se afastou do tio Joaquim
Serafim. A relação com o velho pajé era mediada pela mãe de João, Antonia (irmã de
Joaquim), também ela mãe de praiá e renomada curadora. Antonia deixou a todos os
filhos o zelo dos praiás dos quais era dona, mas João destacou-se por seus dotes mágicos,
tendo alcançado muito prestígio e respeitabilidade como curador. Sua irmã Maria Bárbara
(1917-1993) também alcançou especial respeitabilidade em virtude do carisma que ainda
hoje lhe confere um status diferenciado, sendo nostalgicamente lembrada por todos os
interlocutores interpelados sobre a sua atuação. A autoridade moral que Maria Bárbara
detinha foi madurando no decorrer da sua vida, através do empenho e de uma dedicação

84
As categorias atribuídas aos especialistas rituais serão abordadas no Capítulo V.
85
Durante o período de forte migração para São Paulo, diversos membros da família instalaram-se na capital.
Mas quando acumularam capital suficiente, voltaram à aldeia. Alguns deles moram em Jatobá, mas há
relações cotidianas entre todos os irmãos.
86
Este circuito ritual será descrito e analisado no Capítulo VIII.
74

sem par aos assuntos religiosos. Batizada por padre Cícero, Maria Bárbara acompanhou
por muitos anos madrinha Dodô, tornando-se a sua herdeira espiritual, além de ser fiel
seguidora de Pedro Batista, que costumava hospedar quando passava em Brejo dos Padres.
Incentivada por tais líderes carismáticos, Maria Bárbara fundou, na década de 1940,
o grupo de mulheres penitentes pankararu que leva o nome de Santa Cruz, agregando ao
seu redor um número considerável de mulheres que a ela recorriam para receber conselhos
e ajuda de toda natureza. A atitude “humilde”, “caridosa” e “sem preconceitos” marcou a
memória de todos aqueles que a seguiram e que hoje afirmam não existir alguém tão digno
de respeito como ela. Acolhia em sua casa quem tivesse necessidade, oferecendo ajuda e
conselhos que visavam conciliar grupos e pessoas, bem como consolidar relações de
reciprocidade. Embora nunca descuidasse das obrigações rituais para com os encantados
herdados da mãe, foi assídua promotora de novenas, rezas e romarias, além de instituir na
área indígena a festa de Nossa Senhora da Boa Morte, no mês de agosto, e gerenciar as
atividades da igreja de Santo Antônio, reunindo ali seus seguidores. Nessas ocasiões,
contam os índios, pronunciava poucas palavras moralizadoras, evitava tons autoritários,
agradando e conquistando um público sempre mais vasto. A proximidade com a madrinha
Dodô e seu empenho nas obras de “caridade” levavam-na a viajar frequentemente para
Juazeiro do Norte (Ceará) ou Santa Brígida (Bahia), conseguindo trazer de volta para Brejo
dos Padres bens de todo tipo que distribuía entre os mais necessitados. Entre o coro dos
elogios a Maria Bárbara destaca-se Josivete de Andrade Pereira, renomada curadora que
afirmou:
Ela era boa demais. Ela me ajudava em tudo. Em tudo que ela pudesse
me ajudar, ela me ajudava. Toda vida que ela passou por aqui ela me
chamava. Quando ela era viva, ela me dizia: “vamos lá em Paulo Afonso
pra você rezar na mulher por nome de Carmelita”. Eu andava mais ela.
Ela rezava, mas ela tinha muita vergonha, então botava eu pra rezar mais
ela em quarto oculto. Eu acho que uma pessoa como ela não nasce mais
não! Ela trazia sempre alguma coisa pra mim, de noite mesmo, ela não
deixava o dia amanhecer, ela vinha trazer aqui. Ela passava por aqui e
dizia: “Embora pra rezar na igreja”, e eu ia.

– Não tinha padre nesse período?

Tinha o padre de Tacaratu, padre Henrique, mas só chegava pra fazer


missa, o resto era tudo com ela. E ele aparecia muito pouco aqui, a tia
Bárbara que fazia tudo (Josivete de Andrade Pereira).

A presença dos padres após a extinção do aldeamento teria sido pouco assídua
como em outras comunidades do sertão, aparecendo apenas para as festividades, como a
75

Semana Santa, o Natal e as festas dos padroeiros, que se tornavam ocasiões para ministrar
os sacramentos, especialmente os batizados. Alguns índios se responsabilizavam pelas
funções religiosas, pela catequese e a manutenção da igreja, mantendo vínculos com os
clérigos do santuário de Nossa Senhora da Saúde, em Tacaratu. Mas Maria Bárbara mais
que se ater às obrigações religiosas que os padres recomendavam, respondia às solicitações
de seus guias espirituais, sobretudo da madrinha Dodô e de Pedro Batista que, como
veremos, foram figuras cuja atuação, na maioria dos casos, não recebeu apoio ou favores
da Igreja.
Vários interlocutores reafirmaram a intensa atividade religiosa de Maria Bárbara,
enfatizando o valor de sua atuação. Outros, que se destacaram como lideranças e
curadores, nunca alcançaram sua autoridade moral. O respeito que gozava dentro do
tronco familiar e fora dele, tanto na área indígena como nos lugares por onde costumava
peregrinar, conferiu-lhe um lugar especial entre todas as personalidades de destaque,
embora sua atuação não estivesse diretamente relacionada às reivindicações étnicas. Os
vínculos por ela estabelecidos a incentivavam a promover a adesão a um circuito ritual
bem mais abrangente. No período em que liderou as romarias, a participação nos rituais
que incorporam outros segmentos da população regional era frequente, o que motivou a
troca de visitas entre especialistas rituais de diversos grupos, chegando-se mesmo a fixar
datas anuais para a comemoração de eventos específicos das famílias promotoras, como o
caso do grupo doméstico de Antonio Binga, tio de Maria Bárbara, que organiza, a cada 20
de outubro, o ritual no próprio terreiro, ao qual nunca faltam os romeiros de Santa Brígida.
Em contrapartida, os romeiros pankararu, em todo 9-10 de janeiro, participam da festa de
São Gonçalo, promovida pela família de Santa Brígida.87
Moradores próximos, Maria Bárbara e seu irmão João Binga tiveram uma relação
estreita, alimentando a colaboração entre os grupos domésticos que constituíram. Maria
Bárbara casou-se com Manoel Oliveira88 (filho de Aninha Merensa Pereira e João
Malaquia, fazendeiro local não índio) que se integrou à família de sua esposa (Diagrama
VIII). Na década de 1950, João Binga e seus irmãos viajaram para Mato Grosso para
trabalhar na extração madeireira, levando com eles também Manoel Oliveira. Os filhos
relataram que seu Manoel não quis permanecer em Mato Grosso e voltou ao Brejo, onde
87
As festas mencionadas serão descritas e analisadas no Capítulo VIII.
88
Manoel Oliveira faleceu em 2010, com 99 anos de idade. Durante a permanência em campo, chamava-me
a atenção a incessante reza que acompanhava as horas de vigília de seu Manoel, já doente, que foi membro
do grupo penitente, tendo sido criado por um dos chefes desse grupo ritual.
76

continuou o trabalho na roça junto com sua esposa, vendendo fruta nas feiras ou
empregando-se nos engenhos de mel ao redor da área.

Maria Bárbara Binga e Manoel Oliveira89

O casal teve 12 filhos, dez homens e duas mulheres. Onze moram nas proximidades
da casa dos pais e um faleceu em São Paulo, em um acidente na moradia dentro da
empresa na qual trabalhava. A maioria deles teve experiências prolongadas em São Paulo
ou em outras capitais do país, voltando às vezes para a temporada do plantio, ou por
períodos mais longos. Os recursos obtidos com o trabalho nas capitais lhes possibilitaram
comprar lotes de terra próximos à casa dos pais, ampliando dessa forma o próprio território
e construindo suas casas ao redor dela ou ao longo da estrada que tomou o nome de seu
fundador90. A dispersão dos filhos nas diversas capitais do país foi, portanto, temporária,
tendo eles voltado a morar definitivamente na aldeia. A proximidade das moradias
permite-lhes ter relações cotidianas intensas, alimentar a mútua ajuda tanto no trabalho da
roça quanto nas outras atividades, bem como manter um alto nível de coesão.
Como se pode observar no diagrama VIII, quatro irmãos se casaram com membros
do grupo doméstico de Agenor Julião que, como já dissemos, é uma autoridade na área
econômica, membro do conselho tribal e referência nos assuntos políticos. Em realidade,

89
Foto ofertada pela família Oliveira.
90
Ver localização da Rua Oliveira no croqui II.
77

já a geração anterior havia buscado aproximar-se dos Julião, sendo que o pai de Agenor –
José Julião, casado com uma tacaratuense – possuía importantes recursos econômicos.
Como resultado, dois irmãos de João Binga acercaram-se do grupo doméstico de José
Julião: Jusa Binga casou-se com Rosa Maria Julião (diagrama IX), mas Genésio, contam
os familiares, encontrou a oposição do pai de Bia, e não conseguiram se casar. 91
O mais jovem dos filhos de Maria Bárbara, João Oliveira (53 anos), que casou com
Mariana Julião,92 foi o único a sair do espaço do seu grupo doméstico e fixar moradia no
espaço dos Julião, diversamente dos irmãos mais velhos, que trouxeram as esposas para o
próprio território. Em realidade, também as duas filhas do casal – Maria Bárbara Filha e
Maria Socorro – moram no local doméstico em virtude da posição de prestígio e de bons
recursos alcançada por esta família extensa.93
De todos os filhos de Maria Bárbara e Manoel Oliveira, João foi o único que
conseguiu fazer um curso superior. Serviu no Exército e depois trabalhou por oito anos em
São Paulo na construção civil. Quando voltou à aldeia, começou a acompanhar as
lideranças Quitéria Binga, João Binga e Miguel Binga – seus parentes – nas viagens a
Brasília. Numa daquelas ocasiões, em 1985, foi “indicado” por elas à Funai para se
empregar no órgão como motorista. Trabalhou em outras áreas indígenas (Kiriri,
Kambiwá, Pankará) e ainda hoje é funcionário da Funai. Na década de 90 foi chefe de
Posto, tendo sido o primeiro pankararu a assumir o cargo na própria área indígena,
anteriormente ocupado por não índios ou por índios de outras etnias. Naquele período as
lideranças de destaque eram as anteriormente citadas, portanto, o tronco Binga ocupava os
cargos-chave reconhecidos pelo órgão indigenista, de forma que seus membros podiam ter
influência e poder de decisão sobre variados assuntos relativos à área indígena. Quitéria
Binga, como se verá no caso da sobrinha Dora94 e agora no caso de João Oliveira, era
particularmente ativa na procura de empregos para os membros do seu tronco, sobretudo

91
Contam os familiares que por causa desta oposição ao casamento houve conflitos acirrados entre as partes
e Genésio teria se afastado da área, mudando-se definitivamente para o município de Três Lagoas, em Mato
Grosso do Sul.
92
Mariana Julião (professora) é filha de Agenor Julião.
93
A regra da patrilocalidade é, como todas as regras, bastante flexível. As famílias extensas que conseguem
manter certo nível de prestígio e recursos tendem a manter não apenas os homens no próprio espaço
doméstico, mas também as mulheres. Os homens com origens bem mais modestas e que irão fazer parte
dessa família terão filhos que poderão ter as chances de reproduzir a lógica da patrilocalidade.
94
A atuação de Dora será abordada nos Capítulos V e VIII. É uma figura de destaque por desempenhar
diferentes papéis na esfera mágico-religiosa e como mediadora, tendo o respaldo da ONG SSL, pois atua
como parteira e enfermeira.
78

através das portarias da Funai (Arruti, 1996, p. 122), e também em viabilizar a


possibilidade de estudos profissionalizantes. Os seus objetivos foram alcançados, vendo-se
hoje um número notável de seus sobrinhos formados e/ou empregados no órgão.
No final da década de 90 uma facção que se opunha ao monopólio da gestão do
tronco Binga ganhou especial força, recrutando seus seguidores entre diversas famílias que
anteriormente, pela falta de coalizão, não podiam manifestar o próprio descontentamento.
Alguns membros dos “Binga de baixo” também se posicionaram a favor da outra facção,
criando-se, desta maneira, uma tensão interna ainda hoje presente. A facção opositora –
encabeçada por Jurandir Manoel Freire (mais comumente chamado Zé Índio) e seguido por
lideranças emergentes – teve seu auge quando Zé Auto95 tomou posse no cargo de cacique
em 2005, Jurandir Freire dando-lhe plenos poderes de atuação, embora mais tarde os
retirasse. Com efeito, muitos dos interlocutores que se haviam posicionado a favor de Zé
Índio afirmaram ter se arrependido em virtude das consequências advindas da sua
atuação.96 O auge teria sido alcançado também em virtude do apoio (num primeiro
momento) da Funai que, segundo alguns interlocutores, teria dado crédito aos
representantes da facção opositora aos Binga, agindo no sentido das acusações que lhe
foram dirigidas.97
Durante o período de forte oposição ao monopólio dos cargos, o grupo doméstico
Oliveira foi particularmente atingido pelas diversas acusações que recaíram de maneira
mais abrangente sobre a “família Binga”, em virtude de, naquele momento, o chefe de
Posto ser justamente João Oliveira. Como bem observa Arruti (1996, p. 123), a dupla
posição dos chefes indígenas de Posto – ao mesmo tempo tutores e tutelados – tornou-se
também alvo das lutas entre facções. Se, por um lado, podiam ser excelentes mediadores
para a obtenção dos recursos necessários ao próprio grupo, por outro lado, eram reféns das
lutas internas. Como todos os Pankararu, ele também devia obediência principalmente às

95
Zé Auto, também conhecido como Zé Narciso, é um dos atuais caciques da área indígena Pankararu, e
também é zelador de praiás e curador. A sua posição e narrativas serão abordadas no Capítulo V.
96
O arrependimento de parte dos seguidores de Zé Índio não deve ser entendido como uma mudança a favor
da facção oposta (embora alguns tenham se reaproximado dela), mas sim como expressão da decepção por
não ter sido uma oposição válida. Segundo o relato do cacique Zé Auto, havia sido criado um “clima de
terror”, na medida em que Zé Índio incentivava e realizava ações violentas tanto contra a Funai como contra
a Funasa. Entre elas houve a queima de dois carros da Funasa, o que teria assustado seus funcionários a ponto
de se recusarem a continuar o próprio trabalho.
97
No período do auge, como forma de conseguir sempre mais seguidores e mostrar seu poder, esta facção
teria organizado festas grandiosas, convidando grande parte da coletividade, e teria prometido a rápida saída
dos posseiros e a distribuição de recursos financeiros.
79

autoridades familiares de referência, sendo este o grupo político do qual recebia apoio.
Assim, João Oliveira tornou-se alvo das acusações da facção opositora, sendo obrigado a
desistir do cargo.
Durante as fases mais agudas do conflito entre facções, muitas pessoas que eram
intimamente vinculadas ao grupo doméstico Oliveira posicionaram-se a favor da facção
opositora. Entre estas, as que gravitavam em torno da atuação de Maria Bárbara, que havia
construído o prestígio da família, também se afastaram, suscitando a indignação dos filhos.
O discurso que expressava a “traição” e a “falta de respeito” de que se sentiam vítimas
baseava-se justamente na reputação que gozava a família a partir das ações passadas de
Maria Bárbara, como se ela se estendesse no tempo também a seus filhos. Ao se
posicionarem contra a família, os seguidores de Maria Bárbara demonstraram “ingratidão”
por ela.
Esse período de conflitos intensos reforçou a coesão interna e a já sólida aliança
com alguns membros do grupo doméstico de João Binga, sobretudo com David Monteiro
da Luz e Pedro Monteiro da Luz.98 Como já foi mencionado, Pedro é o cacique que
concorreu com Zé Auto, ambos cuidando dos interesses das facções em oposição. “Pedro é
o nosso cacique”, frase que ouvi várias vezes dita pelos Oliveira que, do momento da
passagem do cargo até hoje, o defendem e não reconhecem a autoridade de Zé Auto.99 A
passagem do cargo de cacique foi bastante controversa. João Binga concordara com a
investidura de Zé Auto incentivado, principalmente, por uma de suas noras, ainda que
outros membros do seu grupo doméstico não concordassem com esta decisão. Além disso,
Zé Auto teria sido estimulado por Miguel Binga, o pajé, a lutar pelo cargo. Tais
discrepâncias de posições para a passagem do cargo alimentaram as tensões no tronco
Binga, o que levou ao fortalecimento da já existente segmentação. Atualmente, a divisão
“Binga de baixo” e “Binga de cima” não só corresponde à posição geográfica ocupada,
mas também à divisão política e ritualística do tronco. Com efeito, o circuito ritual é
diferenciado: os “Binga de baixo” buscaram seus aliados em outros grupos rituais da

98
David é filho de João Binga e Pedro é seu neto, embora este último considere-se filho por ter sido criado
pelo avô.
99
Por causa das disputas acirradas, pois ambas as partes podiam reivindicar o cargo em função do direito à
herança familiar, foi introduzido o método eleitoral, chamando-se para votar os pais e as mães de praiás.
Anteriormente, o candidato era indicado por quem ocupava o cargo. As eleições, no entanto, não acalmaram
as disputas. Pedro Monteiro da Luz e seus apoiadores contestaram as eleições, sustentando a não validade em
virtude da participação de “ilegítimos” pais e mães de praiás. Procedeu-se então a uma segunda eleição, cujo
resultado não é aceito de forma unânime.
80

região, cujos membros não são índios; e os “Binga de cima” solidificaram suas alianças
dentro das fronteiras étnicas em especial com o atual pajé Renato, da aldeia Serrinha,
opondo-se, portanto, ao outro candidato dos “Binga de baixo”: Zé Branco.
Como Maria Bárbara e Manoel Oliveira encorajaram os filhos a empreenderem
atividades que garantissem benefícios ao próprio grupo doméstico, estes também
incentivaram seus filhos a viverem experiências fora das aldeias, sobretudo para adquirir
formação profissional. A maioria dos netos da Maria Bárbara estuda nas capitais e alguns
já estão formados e empregados.100 Há de se destacar que as experiências dos netos de
Maria Bárbara proporcionaram benefícios e prestígio no seio de sua família, mas outras
capacidades vivências que dizem respeito às esferas mais íntimas e discretas do grupo
doméstico – isto é, às práticas mágico-religiosas – ganharam particular destaque. Se, por
um lado, há o incentivo para filhos e netos saírem da aldeia e conhecerem outras
realidades, formando-se profissional e politicamente e adquirindo destreza na mediação
com as agências de contato, por outro, a preparação ritual de alguns jovens é de
importância capital para manter o prestígio da família.
Maria Bárbara Filha,101 uma das duas filhas do casal Oliveira, é uma figura
importante nas dinâmicas rituais do grupo doméstico, além de ser o eixo ao redor do qual
se desenvolvem todas as atividades no seio da família extensa. Tendo se separado do
marido, mora com seus dois filhos, estando ao redor de sua casa as outras casas dos irmãos
com as respectivas famílias. Ambos os filhos casaram-se e trouxeram as respectivas
esposas para a casa da mãe, embora elas mantenham os vínculos com os lares de origem,
também chefiados por mulheres, movimentando-se durante a semana entre a casa da sogra
e a da mãe. A proximidade com as netas permite dedicar-lhes os cuidados necessários na
fase da infância, tendo a avó a responsabilidade da primeira educação, enquanto os filhos e
as noras se dedicam ao trabalho. Possibilita-lhe ainda acompanhar e observar possíveis
sinais que denotem a presença do dom e orientar os pais sobre as medidas e os
comportamentos a serem adotados. Eixo das orientações morais, Maria Bárbara Filha é
consultada pelos filhos em todas as circunstâncias, mesmo depois de ter tomado decisões
que precisaram ser revistas junto com ela.102

100
Destacaram-se, entre outros, os filhos de Cícero Oliveira: Maria das Dores que se doutorou em Letras e
Paulo que se formou em Direito; ambos trabalham na Funai.
101
O processo experiencial e as peculiares escolhas de Maria Bárbara Filha serão abordados no Capítulo V.
102
Durante o período da pesquisa, várias ocasiões se apresentaram em que pude observar os efeitos da
autoridade de Maria Bárbara Filha. Uma delas foi quando uma pesquisadora colombiana de etnobotânica –
81

Nas inúmeras conversas tidas com ela, sobressaiu a especial afeição ao tio João
Binga, que sempre a brindou com apoio e proteção. Elogiou a atuação do cacique,
enfatizando as estratégias políticas adotadas que nunca teriam desembocado em
manifestações violentas, sendo caracterizadas pela procura de acordos e soluções pacíficas.
Os cuidados com os aspectos rituais ligados ao culto dos encantados teriam se
desenvolvido justamente a partir da intensa relação com o tio, o que a levou gradualmente
a se dedicar com maior empenho a eles, afastando-se das obrigações rituais para com o
grupo penitente fundado pela mãe. Como se destacará melhor no Capítulo V, as escolhas
de participação em diferentes grupos rituais e a articulação e a significação de distintas
entidades dependem de trajetórias, posicionamentos e estratégias políticas determinados,
sem que isto implique, no entanto, quadros morais diversificados. Maria Bárbara Filha,
junto com a maioria de seus irmãos, escolheu se dedicar exclusivamente à tradição
indígena, o que a leva à procura de alianças diferenciadas em relação ao circuito ritual do
grupo penitente, este mais vinculado aos “Binga de baixo”.
No coro dos elogios à atuação de João Binga e à adesão à tradição indígena,
destaca-se um dos filhos de Maria Bárbara Filha, George de Vasconcelos (29 anos) que,
como já se mencionou, é atualmente vice-cacique de Pedro Monteiro da Luz. A trajetória
desta jovem liderança que se diferencia dos outros netos de Maria Bárbara permite uma
melhor compreensão das dinâmicas de hierarquização das experiências no âmbito familiar.

2.1.1 Vasco: trajetória e narrativas de uma liderança emergente

Como todos os seus primos, ele também foi incentivado a estudar fora da aldeia. Do
tempo em que permaneceu longe da aldeia, Vasco diversamente dos coetâneos, não
demonstra orgulho ou desejo de repetir tal experiência.

que cursava o mestrado na UFPE e que pretendia estudar as plantas medicinais pankararu – apresentou seu
projeto de pesquisa às lideranças, encontrando entre os opositores ao desenvolvimento do projeto também o
filho de Maria Bárbara Filha, Vasco. A recusa do projeto era fundamentada nas preocupações que ele
despertava, tendo-se informações sobre as consequências negativas que projetos similares haviam tido em
outras coletividades indígenas e, além disso, na necessidade de manter sob sigilo os conhecimentos relativos
às plantas medicinais, sendo parte dos “segredos da aldeia”. Frustrada com o resultado da reunião, embora
outras lideranças tivessem lhe oferecido apoio para que o projeto fosse desenvolvido, a pesquisadora relatou
o acontecido à Maria Bárbara Filha, que se tornou, como afirmou Vasco, a sua “protetora”. Com efeito,
Maria Bárbara Filha reclamou tanto da posição quanto da atitude autoritária de Vasco, dando ela mesma a
permissão à pesquisadora de desenvolver seu estudo. Embora Vasco continuasse a expressar as suas
divergências, a sua atitude mudou, passando a dar apoio à pesquisadora quando dele necessitasse.
82

Durante esse tempo eu perdi muita coisa aqui. Eu acredito que esse tempo
é um tempo que ia dizer e que ia me fazer uma pessoa mais ligada à
cultura e à tradição. Mas como eu não estava aqui, eu perdi. Mas quando
a gente nasce com aquele dom, ele chama, alguma coisa chama a pessoa
para a cultura, para a tradição. Só que eu não tinha mais contato com a
comunidade, tinha o respeito pelos encantados, mas não tinha aquela fé
que eu tenho hoje. Mas quando voltei aqui, comecei a me acordar.

Ainda criança manifestou alguns sinais que levaram os membros de seu grupo
doméstico a reservar-lhe cuidados especiais. Diversamente do irmão, Vasco era atingido
frequentemente por mal-estares, despertando a suspeita de possíveis chamadas. Essas
perturbações determinaram a necessidade de “botá-lo no rancho”, isto é, teve que passar
pelo ritual do menino no rancho que, como se verá, trata-se de uma importante iniciação ao
grupo ritual dos praiás.103 Um evento dramático o trouxe de volta à aldeia e marcou o seu
futuro.
Por azar, destino, não sei, tive um acidente de trânsito em 2003 e um
rapaz faleceu. Eu bati, eu ia de carro, ele ia na moto, sem querer bati e ele
faleceu. Foi aí que eu vim a dar maior valor à minha tradição, porque eu
fiquei durante esse tempo todinho sendo muito ameaçado de morte e aí
comecei a ter muita fé, mais do que eu tinha. Muita fé nos encantados. Eu
pedia muito a eles e eles me davam avisos pra eu ter paciência, pra eu ter
calma, não ficar nervoso e não ir embora. Porque logo no começo eu
pensava em ir embora daqui, mas aí eu fiquei com a fé neles. O tempo
passou e eu estou aqui com muita fé neles.

A atitude especialmente reservada e a proximidade e o apoio recebidos pelos mais


velhos de seu tronco reforçaram seu sentido de pertença familiar. Como todos os membros
de seu grupo doméstico, Vasco se identifica como pertencente ao tronco Binga, mas
prefere dar ênfase a seus ascendentes Serafim. Tal escolha deve-se tanto ao enaltecimento
do antigo sarapó e do tronco Serafim em geral, aos quais ele atribui a detenção dos
conhecimentos mais profundos e resguardados da tradição indígena (cuja herança ele pode
reivindicar através dos vínculos de parentesco), quanto à aliança sólida que seu grupo
doméstico e os “Binga de cima” mantêm com ele. A reaproximação da esfera mágico-
religiosa e das obrigações rituais da sua formação faz dele hoje um dos jovens mais
envolvidos na defesa e na valorização da tradição indígena. Embora seu envolvimento nas
práticas mágico-religiosas seja público, o que se torna visível nos rituais coletivos
organizados pelos membros de seu tronco, a sua formação permanece em segredo diante

103
Este ritual será abordado no Capítulo IX.
83

da coletividade, isto é, das outras famílias e, às vezes, até da própria família, à qual não
mais informa sobre todos os “avisos” recebidos.
O segredo, como se destacará ao longo deste trabalho, é um elemento crucial dos
grupos rituais atuantes entre os Pankararu e dos atores sociais, que demonstram atitudes
particularmente reservadas e que sabem manter sigilo nos assuntos relativos à esfera
mágico-religiosa, ganhando assim particular prestígio. Nas relações de aliança ritual da
família em pauta e dos “Binga de cima” em geral, Raquel Bomba, mãe de praiá, destaca-se
por demonstrar uma atitude especialmente “fechada”, o que lhe confere um status
privilegiado. Seu “mestre”, como ela mesma o definiu, foi João Binga, com quem teve um
forte vínculo afetivo e no que concerne aos rituais, tendo ele lhe ensinado o “valor e a força
do segredo”. Como exemplos ideais, João Binga e Raquel Bomba tornaram-se referência
para Vasco, que os elogia e enaltece. A especial consideração que reserva à dona Raquel
deve-se também ao vínculo de parentesco espiritual estabelecido no ritual menino no
rancho, sendo ela a sua madrinha.
O processo de formação das capacidades mágico-rituais de Vasco não foi ultimado
e ele precisa ainda cumprir outros estágios da própria existência que lhe garantirão um
acúmulo de experiências e conhecimentos necessários para refinar sua destreza. Com
efeito, além dos cuidados e das obrigações na esfera mágico-religiosa, ele desempenha as
tarefas necessárias para o sustento da sua família: é agente de saúde da Funasa, desenvolve
diversos projetos e é uma ativa liderança, atuando como vice-cacique. Desde 2006, Pedro
Monteiro da Luz, seu “tio-primo”, escolheu-o como seu representante, tornando-o vice-
cacique. Embora já tivesse se destacado como “jovem liderança”, 104 a investidura nesse
cargo envolveu-o definitivamente nas responsabilidades políticas, precisando seguir as
múltiplas tarefas que lhe competem, caminho este que o aproxima de seu primo Marcelo,
neto de Manoel Binga,105 97 anos (diagrama X), que hoje ocupa o mesmo cargo, sendo
vive-cacique da cacique Hilda Bezerra, na TI Entre Serra.
Se, por um lado, Vasco responde às obrigações e às lealdades para com a própria
família, estando envolvido nas clivagens políticas determinadas pelas facções que, como já
foi mencionado, determinam a emergência de diversos caciques, por outro lado, a
estratégia atualmente adotada por este ator social é a de mediação entre as duas principais
104
A categoria “jovem liderança” refere-se a todos os jovens que têm alguma responsabilidade nos assuntos
coletivos.
105
Manoel Binga, muito próximo à irmã Maria Bárbara e a seu esposo Manoel Oliveira, foi membro do
grupo de penitentes. Fiel seguidor dos padrinhos e da madrinha Dodô, participava ativamente nas romarias.
84

chefias: Pedro Monteiro e Zé Auto. A parada nas mobilizações para a expulsão dos
posseiros, cuja responsabilidade recai nos constantes conflitos entre as partes, e a atual
concentração que elas exercem em assuntos que se tornaram prioritários 106 provocam um
descontentamento generalizado, sobretudo nos mais jovens, que anelam pela terra.
Embora a união das facções seja considerada inviável, as estratégias que visam alcançá-la
são particularmente elogiadas, conferindo prestígio a quem as empreende; as atitudes que
propiciam a conciliação de grupos e pessoas em conflito são um caminho para alcançar
uma boa reputação.107
O diálogo constante com agentes das ONGs e de outras instituições que trabalham
na área e também a participação no movimento indígena permitem a Vasco obter
informações para a elaboração de projetos que dão ênfase à especificidade étnica
pankararu. Estas atividades alimentam as disputas com as outras famílias que reivindicam
a pertença aos troncos velhos e a detenção dos “saberes tradicionais” do grupo. Em 2007
Vasco organizou um grupo de dança que recebeu o nome “Pankararu Nação Cultural”,
integrado por jovens dançarinos e tocadores de búzio, instrumento musical usado
antigamente pelos índios. A procura de informações históricas sobre esta dança e a
realização de entrevistas com os mais velhos que a conheciam, e para os quais foram feitas
apresentações para homenageá-los, deu ao grupo visibilidade.108 Recentemente outro grupo
de búzio foi organizado por um membro do tronco Calu que, de forma concorrente,
apresenta-se em outros circuitos. O acréscimo da amostragem de elementos étnicos, 109 que
recebe apoio tanto financeiro quanto em termos de prestígio, torna-se, portanto, um capital
para a luta entre facções.

106
Entre estes, as disputas surgidas nos últimos anos relativas à coordenação das escolas pankararu.
107
Há também que se destacar que o sucesso das mobilizações políticas, bem como de todo o
empreendimento, é algo que não depende unicamente dos atores sociais, mas da intervenção das próprias
divindades. Cada intervenção é precedida de “pedidos” às entidades. Saber ouvi-las e interagir com elas é
prerrogativa de alguns escolhidos, que se tornam mediadores entre elas e os outros atores sociais que não
desenvolveram tais capacidades. As conquistas alcançadas pelas antigas lideranças são rigorosamente
lembradas como resultado das capacidades destes atores sociais de se comunicarem com os encantados, que
os orientaram para o bom êxito da “luta”.
108
Atualmente se apresenta em diversas localidades, tanto dentro da aldeia quanto nas pontas de rama e em
outros grupos indígenas da região, além de ser chamado para “apresentações” em festivais e eventos que
visam à valorização das tradições indígenas do estado de Pernambuco, tendo sido também contemplado com
o prêmio “Microprojetos Mais Cultura Pernambuco”.
109
Da mesma forma que o grupo de búzio, outro projeto – Casa de Memória do Tronco Velho Pankararu –
coordenado por Vasco, suscitou críticas que visavam enfatizar o caráter de facção do projeto, sendo
homenageadas apenas algumas lideranças do tronco ao qual ele pertence. O projeto foi aprovado e financiado
pela Fundarpe e inseria-se nos projetos culturais para a preservação e a manutenção de atividades de
valorização da identidade étnica.
85

O discurso padronizado e com certa ênfase na preocupação da “mistura” está


associado especificamente à restrição dos rituais ao grupo étnico, justificado perante as
instituições pela necessidade de se voltar para o “cuidado da ciência pankararu”, cuja
divulgação estaria enfraquecendo seus detentores e o grupo étnico em geral. Tal discurso é
ativado também para explicar o seu afastamento da Igreja Católica e do grupo de
penitentes, percebidos como demasiadamente vinculados a esta instituição.

Eu não alcancei o tempo dos mais velhos, mas eu sempre escutei os


velhos, eu sempre me interessei em ouvir eles. Antigamente eram poucas
as pessoas que praticavam os rituais indígenas da tradição, eram só os
índios, mesmo. Ficou dividido isso naquele tempo e os negros que
estavam aqui chamavam os índios de feiticeiros. Os negros mesmos
colocaram os índios pra correr nas serras, tomavam as roças ali, as
melhores roças lá na rua dos negros. Esses eram os mais inseridos na
Igreja Católica. Isso aí foi há um século atrás. E, com o tempo, eles
fo[ram] inserindo os indígenas, os puros, né, porque aqui ainda tinha
indígenas puros. Mas eles conseguiam inserir eles na Igreja, os padres
também. A Igreja pensou que ia aniquilar de vez a nossa história e o
nosso futuro. Mas, pelo contrário, a nossa cultura absorveu também os
negros. Aí, hoje, não tem mais divisão, não. Hoje todo mundo é
pankararu. Essas pessoas das famílias negras já estão inseridas, como os
indígenas estão inseridos na católica. Aí, hoje, tem um povo só, mas com
isso também se perdeu muita coisa. Porque hoje todo mundo quer ser
detentor do conhecimento pankararu, mas não é assim.

A argumentação prosseguiu dando ênfase às “confusões” que teriam sido geradas a


partir da atuação da Igreja, havendo hoje diversas interpretações sobre os rituais. Ao pedir-
lhe informações sobre o ritual que se realiza a cada 20 de outubro no terreiro do falecido
Antonio Binga, Vasco afirmou:

Eu respeito, mas eu dou mais valor à nossa tradição. Lá na casa de


Antonio Binga é essa festa, eu nunca fui, não, eu fui uma vez! Só que lá é
que tem a mistura. Eu sei que aí juntam os praiás com a penitência. É
uma homenagem que fazem a ele. Ele foi uma pessoa que ajudou muito,
ele era meu tio, ele era irmão de meu bisavô, então, ele era meu tio-
bisavô. Eu não concordo que venha gente de fora. Ele fez muito benefício
a muita gente, muita caridade, e ele tinha o dom da cura e merece a
homenagem, mas aqui dentro, não pode ter gente de fora.

Se considerarmos os circuitos diferenciados formados pelos diversos grupos


domésticos do tronco Binga e também a diferenciada interação com agências e agentes
com projetos discordantes, a diversificação da sistematização de ideias e valores torna-se
compreensível. Com efeito, o grupo doméstico Oliveira e outros do tronco Binga tiveram
86

acesso a informações e a experiências que os levaram a um gradual distanciamento do


circuito ritual mencionado, relacionando-se, sobretudo, com o órgão indigenista,
antropólogos e ONGs. A ênfase que Vasco e outros membros da família atribuem à
etnicidade leva-o a se unir ao coro dos enunciados normativos relativos à restrição da
participação nos rituais, enunciados estes fornecidos principalmente pelos especialistas
rituais da tradição indígena (categoria à qual ele mesmo pertence). Tal posicionamento é
parte das dinâmicas internas existentes nas tensões entre famílias de um tronco e nas de
diferentes troncos que disputam a legitimidade da própria atuação na concorrência aos
recursos tanto econômicos quanto de prestígio, dinâmicas estas que influem, como se verá,
nos processos de articulação dos fluxos culturais e na relação entre grupos rituais que
representam as variações infraétnicas.
Através da narrativa desta jovem liderança pode-se perceber a construção de um
discurso padronizado que cada mediador usa perante os antropólogos, as ONGs e outras
agências, evidenciando-se não apenas o esforço de capitalizar a valorizada etnicidade, mas
também a construção de si mesmo por meio da elaboração da própria trajetória e do
respaldo que teve das autoridades morais da sua família extensa. Na interação com outras
lideranças que hoje atuam na área indígena, bem como naquelas cotidianas com os
membros da própria família e tronco, Vasco demonstra ter conquistado a legitimidade
necessária para ocupar uma posição de destaque em função de suas capacidades e atitudes,
que são valorizadas não só pela herança do status dentro da família.

2.2 A reputação envolvendo as relações de gênero

As narrativas das mulheres mais velhas que ficavam na aldeia enquanto os maridos
trabalhavam distantes nas capitais tendem a remarcar o sofrimento vivenciado pelas
dificuldades em cuidar dos numerosos filhos, dos afazeres domésticos e da roça. Embora
pudessem contar com o auxílio da família, tendem a ressaltar a solidão desses longos
períodos em que o único conforto era pensar que tão grande sacrifício servia para oferecer
um futuro melhor aos próprios filhos. Os relatos sobre este e outros temas, em que a
mulher precisa mostrar as suas qualidades morais, são expressos através de discursos que
enaltecem o sofrimento, o sacrifício e a paciência como princípios fundamentais da
construção da sua reputação e da alheia. O enaltecimento da própria moralidade através da
87

pública demonstração desses princípios torna-as “mulheres corajosas”, cujo respeito


demanda dos outros sempre altos níveis de “consideração”.
Há um jogo performático e tático da amostra pública desses valores 110, podendo
haver diferentes manipulações e críticas. Conflitos intergeracionais são frequentes, sendo
possível observar critérios de avaliação moral contrastantes. As autoridades morais de
referência dentro da família tendem a orientar as ações dos seus membros, embora estes
tenham experiências e atitudes que fogem do padrão valorizado. A manutenção da união
familiar e da sua integridade moral (fundamental para manter o prestígio perante as outras
famílias) é um objetivo cobiçado pelos(as) chefes de família que usam diferentes
estratégias para consegui-la. Há uma hierarquização de posições de prestígio dentro da
própria família, dependendo da demonstração de adesão dos sujeitos aos valores
preconizados111.
Como propõe Foucault (1986, p. 16), não se trata de pensar uma adesão ideológica,
mas sim de ver como o sujeito se constitui, isto é, como a dimensão da experiência leva a
uma “prática de si”112 capaz de desenvolver o próprio domínio, o que lhe permite
demonstrar um valor moral e estético que se torna um “valor de verdade”. A abordagem de
Foucault é especialmente profícua ao destacar as opções de escolhas de que os atores
sociais dispõem, bem como os processos de construção do próprio self e as estratégias
vinculadas à dimensão pública do domínio de si mesmo. No contexto em questão,

110
Bailey (1970, 1971, 1993) dedica particular atenção à esfera da micro-política dando ênfase à construção
da reputação, às estratégias performáticas e às técnicas de persuasão que os atores sociais adotam para
alcançar seus fins. A demonstração de emoções e sentimentos se torna uma forma de manifestar a própria fé,
a ausência de dúvidas, a demonstração do sacrifício e, sobretudo, uma “[..] peremptory assertion of an
‘indisputable’ truth” (1993, p. 40).
111
De acordo com Elias (1987) a adesão aos valores morais é voluntario. O autor afirma: “Nenhum ser
humano normalmente constituído aceita a opinião que tem de si próprio e dos valores que preza se não a vê
confirmada na forma como é tratado pelos outros. Esta interdependência constitutiva dos juízos de valor
feitos por indivíduos agrupados numa sociedade torna difícil, se não impossível, que cada um em particular
procure a realização das suas ambições através de ações que não tenham qualquer hipótese de lhe dar, no
presente ou no futuro, uma recompensa, sob a forma de estima, de gratidão, de afeito, de admiração, em
suma, a confirmação e o aumento da consideração que merece por parte dos outros. Esta interdependência de
valores torna improvável o desenvolvimento de um individuo que não assimile os valores da sociedade onde
nasceu e cresceu. È altamente improvável que um individuo se possa manter isolado, sem tomar parte, de
uma forma ou outra, na luta por oportunidades que sente ou sabe que os outros também desejam, sem querer
realizar-se de uma forma que lhe traga também a confirmação do seu mérito pela opinião que os outros tem
de si “(ibidem, p. 50)
112
A “arte da existência” é definida por Foucault como: “[...] práticas refletidas e voluntárias, através das
quais os homens não somente fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se
em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a
certos critérios de estilo” (1986, p. 15).
88

considerou-se necessário observar também as dinâmicas relativas às práticas


disciplinadoras que as famílias empregam para a manutenção da própria reputação. Neste
sentido, foram úteis as elaborações de autores como Peristiany (1965a, 1965b) e Campbell
(1964), cujos trabalhos sobre a construção da honra nas sociedades mediterrâneas oferecem
pontos de reflexão úteis para este trabalho. Os valores, sendo fluxos culturais, são
articulados a um determinado contexto sob a vigilância, a sagacidade e a criatividade de
determinadas autoridades morais. Como se verá, valores como a pureza e a valentia, que
podem ser oriundos da tradição de conhecimento cristã, são articulados localmente pelos
índios, por chefes(as) de família e grupos rituais, tendo pouca relevância, por exemplo, a
autoridade dos sacerdotes da Igreja Católica.113
Entre os valores morais que contribuem para a construção de uma boa reputação da
mulher, a pureza sexual tem destaque, ainda que os mais jovens não lhe atribuam a
importância das gerações anteriores, percebendo-se os conflitos intergeracionais quanto a
este aspecto. A vigilância da família sobre as mulheres solteiras, no entanto, parece
bastante generalizada, tentando-se preservá-las castas até pelo menos o começo do
noivado. As garotas, portanto, encontram-se sob constante observação e, caso escolham
enfrentar as interdições que os pais lhes impõem, sabem que receberão castigos.
A respeito deste tema, alguns episódios ocorridos durante a permanência em campo
podem dar uma ideia mais concreta do controle exercido sobre as jovens e das virtudes
morais que as mulheres deveriam ter. Passo então a relatá-los.
Numa das visitas à casa de Dora, encontrei ali três garotas de idades próximas.
Pensei que pudessem ser suas sobrinhas, mas depois fui informada que eram suas
afilhadas. Mal entrei, percebi uma grande agitação e vi que uma das garotas chorava,
parecendo estar muito assustada. Repetia incessantemente “não fiz nada” e pedia ajuda a
todas nós que ali estávamos. Os irmãos e o tio da adolescente chamavam-na, convidando-a
a sair e a voltar com eles para a casa dos pais. Ela de repente sumiu. Os irmãos e o tio
entraram em casa e a procuraram em todo lugar sem sucesso, pois ela tinha saído e se
escondido na casa dos vizinhos. Sentindo-me envolvida na agitação, perguntei às amigas o
motivo do desespero da garota. Disseram-me que na noite anterior haviam saído para se
encontrar com outras amigas, frisando insistentemente que com elas não havia garotos.

113
Como os Sarakatsani na Grécia analisados por Campbell (1964), embora sob pressões da Igreja ortodoxa
cujos sacerdotes pretendiam impor os valores morais do Novo Testamento, orientavam os próprios
comportamentos com base aos valores do Velho Testamento articulados pelas autoridades familiares que
detinham a legitimidade desta tarefa.
89

Estavam preocupadas com a sorte da companheira porque, se o pai a achasse, bateria


novamente nela e eram ainda visíveis as marcas das últimas surras.
A moça voltou após poucos minutos, depois de constatado que os irmãos haviam
saído. Perturbadas, a garota e suas amigas pediram ajuda a Dora, a qual as tranquilizou
prometendo-lhes falar com os pais. Quando a situação se acalmou e as garotas foram
assistir à televisão no quarto, perguntei se isto já havia acontecido outras vezes. Dora
respondeu-me que não era frequente, mas deixou claro que podia acontecer quando não se
obedece aos pais, sobretudo quando está em jogo a preservação do pudor. O envolvimento
dos irmãos e do tio, empenhados na procura da garota, denota que as responsabilidades
sobre o controle das jovens se estendem aos membros masculinos da família, a desonra, em
caso de atentado ao pudor, pudendo recair também sobre eles.
Com o ditado “mulher solteira só tem lepra e coceira”, dona Amélia (71 anos),
chefe do grupo de mulheres penitentes, aludia ao perigo potencial que representam as
mulheres solteiras para as respectivas famílias em caso de não se comportarem segundo os
preceitos morais que salvaguardam o “respeito” aos seus membros. Durante a conversa
com outras mulheres do grupo, em que se comentava o “caso” de uma moça que havia sido
espancada pelo marido, ela afirmou: “A mulher nasceu pro homem mesmo, nasceu pra
sofrer. A mulher é sofredora, tem que ser!”. Dona Amélia, pode-se dizer, tem acumulado
um notável “capital de sofrimento” e não hesita em gastá-lo nos momentos oportunos para
o revigoramento de sua reputação. Orgulha-se dos 13 filhos, dos quais 11 estão vivos, pois
no terceiro parto, de gêmeos, as meninas morreram.
O marido de dona Amélia, José Manoel de Oliveira (75 anos), trabalhou como
carpinteiro em São Paulo dos 18 anos até os 60, com alguns anos de intervalo quando se
empregou no serviço de segurança em Paulo Afonso e Itaparica. Contam os cônjuges que,
enquanto ele ficava em São Paulo (voltava uma vez por ano), ela trabalhava na roça e
cuidava das crianças. José não quis levar a esposa para São Paulo, porque considerava a
cidade um lugar inapropriado para uma mulher criar os filhos, sobretudo na favela. “Nunca
quis me levar! Eu ficava na enxada, plantando mandioca e feijão atrás dessa serra, sofrendo
que só! Com tanto menino...”, exclamava dona Amélia. Mas José lembrava a ela que todo
esse “sacrifício” não foi em vão, já que os recursos obtidos com o trabalho em São Paulo
lhes permitiram comprar a terra e mandar os filhos para escolas particulares, e hoje todos
trabalham, ainda que muitos deles vivam em outros estados do país.
90

Ter muitos filhos é motivo de honra, sobretudo dos homens, fator associado
frequentemente à virilidade e à boa performance nas conquistas amorosas. Nas ocasiões
em que tive a possibilidade de coletar as informações para a reconstrução da genealogia
das famílias, estando reunidos diversos parentes, os comentários visavam criticar eventuais
duplos casamentos de mulheres mas, quando se tratava dos homens, a cumplicidade nos
elogios era evidente. “Vai levantar muita poeira”, disseram uma vez ao nos sentarmos para
começar, prevendo o fluxo de comentários liberados ao lembrarem os “casos” dos homens
com diversas mulheres, e dos quais nasceram muitos filhos.
Embora os comentários sobre os sucessos quanto às conquistas de mulheres fossem
reservados aos ambientes de comunicação masculina, nas ocasiões em que falamos sobre
as famílias foram dadas muitas informações que normalmente ficam contidas nesses
âmbitos. No entanto, também em outros momentos presenciei as performances discursivas
masculinas sobre o tema, sobretudo quanto às freqüentes traições. “É da natureza”, dizia
um senhor depois de ter ouvido o falatório sobre as traições que sofria a mulher que
acabava de descer da D20, a camionete que nos levava a Brejo dos Padres. A cumplicidade
entre os homens propiciou outros comentários sobre os próprios “casos” e os alheios,
lamentado-se somente os que minaram a integridade da família e determinaram o fim dos
casamentos. “Ela não agüentou, mandou-me embora!”, dizia outro rindo do passado,
quando a esposa, depois de diversas traições, decidiu se separar.
Em todas as conversas sobre este tema e sobre a sexualidade em geral ficou
implícita a visão cristalizada segundo a qual o homem iria contra a própria “natureza” se
não seguisse o “instinto” da conquista, afirmando-se que ela “está no sangue”, ainda mais
se não respondesse à “provocação” de uma mulher. Com a intenção de querer fazer um
elogio, um dos motoqueiros que freqüentemente me levava de Jatobá para Brejo dos
Padres, ao lhe explicar a casa aonde eu queria ir, exclamou: “Conheço ele, era meu
camarada. Agora não, mas antes ele era um pegador”. Ignorando o significado do termo, eu
lhe perguntei o que significava. A resposta transformou-se num rio de histórias, contadas
com extrema hilaridade, generosidade de detalhes e evidente orgulho pelo amigo,
companheiro de velhas aventuras. Remetendo essas histórias ao passado, sentiu-se
evidentemente tranquilo em relatá-las, como se não pudessem comprometer o atual
casamento do amigo.
91

Uma vez,114 ao pegar a D20 em Jatobá para ir ao Brejo, todos aqueles que ali
estavam comentavam agitadamente o acontecido na noite anterior: um caso de violência
sexual. Ouvi várias vezes sobre estupros que aconteciam na região, mas este caso, pelo
elevado grau de violência que o caracterizou – deixando a vítima quase morta e por ser ela
uma adolescente – gerou forte indignação. Naquela ocasião, os comentários concentraram-
se na dinâmica do acontecido, enfatizando-se o desprezo pela ação do agressor. Com o
passar dos dias, em diversas conversas, ouvi comentários particularmente diferentes. Em
alguns casos eles diminuíam a ênfase no desprezo direcionado ao agressor, indagando-se
sobre quem era a vítima, lançando-se um véu de suspeita sobre o comportamento da
garota. Estava sendo avaliada a possibilidade de ela ter-se mostrado “disponível”, sendo
tachada de “mulher fácil”, atribuindo-lhe, senão a culpa, a instigação do mal acontecido.
Em especial, como de relevante importância, avaliava-se a “incapacidade” dos familiares
de controlarem as saídas da jovem, bem como de inibir as atitudes “sem-vergonha” que a
tornavam aos olhos dos comentadores uma presa fácil do agressor.
Numa reunião da ONG SSL em que se apresentavam os resultados parciais de um
projeto em andamento e as intenções para o seu avanço, o pudor sexual tornou-se tema de
debate entre os participantes, sobretudo em virtude da intervenção de Agenor Julião, que
levantava dúvidas sobre o seu desenvolvimento. Tratava-se de um projeto sobre saúde
sexual nas escolas, cujo público-alvo eram principalmente as crianças e os adolescentes na
faixa etária de 10 a 19 anos. Para a evolução do projeto, os professores das escolas e os
pais das crianças eram chamados a participar de algumas reuniões, desejando-se envolver
os vários âmbitos de vivências dos alunos. Após escutar atentamente as motivações
necessárias à elaboração do projeto, evidenciando-se uma abordagem que ajudava as
crianças a terem uma aproximação mais serena com o conhecimento do próprio corpo e
dos demais, Agenor argumentou: “Eu não tenho nada contra isso, mas como vai ser com a
nossa tradição, com nossa religião? Muitos pais de família vão pensar que estão ensinando
safadezas aos filhos!”. Nesta primeira intervenção, Agenor tentou dissimular o seu
incômodo ao tratar o argumento, apresentando o quadro moral sustentado pelos membros
dos grupos rituais (da tradição e dos penitentes) e enfatizando o valor atribuído ao pudor.
Sustentou a ideia de que, estando ausentes da reunião os anciãos dos grupos mencionados,
podia-se discorrer sobre o tema, do contrário, o projeto teria encontrado fortes resistências.

114
Optei por não colocar os nomes e a data do acontecido para evitar o reconhecimento dos protagonistas.
92

A intervenção de Agenor visava, por um lado, evidenciar a “falta de consideração”


aos membros que procuram manter as regras morais no interior da coletividade, sentindo
assim a necessidade de defendê-las. Embora não esteja envolvido em nenhum dos grupos
rituais mencionados, Agenor prontificou-se a lembrar às responsáveis pela ONG e aos
presentes (em grande parte professores das escolas) as regras morais exigidas, às quais ele
mesmo se submete. Aproveitou para continuar a sua argumentação desviando o discurso na
direção de outros argumentos que, de forma evidente, lhe interessam mais, isto é, outros
possíveis projetos a serem desenvolvidos na área e com os quais a SSL podia colaborar na
forma de parceria ou diretamente. A presença, naquela ocasião, de uma representante da
ONG, vinda especificamente de São Paulo para escutar propostas a serem posteriormente
avaliadas, deu a possibilidade a Agenor de deslocar a argumentação e colocar ênfase em
outras necessidades, em sua opinião, mais urgentes para a coletividade. Muito clara era a
manifestação de um desconforto em relação a todas as situações em que as crianças e os
jovens não estão sujeitos ao controle social das famílias que, justamente nessa fase, deve
ser mais forte, sobretudo sobre os indivíduos de sexo feminino. A escola e a ONG foram
colocadas como antagonistas tanto dos chefes de família quanto dos grupos rituais, que têm
justamente a tarefa de aglutinar e disciplinar os jovens.
Pelo visto até agora, pode-se concluir que a salvaguarda do pudor sexual da mulher
é um aspecto importante na construção da reputação tanto dela quanto da família à qual
pertence. No entanto, concorrem para a construção de sua reputação múltiplos aspectos,
dos quais alguns são aparentemente identificados como pertencentes à esfera masculina. A
valentia, por exemplo, conferiu grande prestígio a algumas mulheres que participaram
ativamente da luta pela terra. É o caso de Quitéria Binga e da atual cacique da TI Entre
Serra, Hilda Bezerra Barros, mulheres “corajosas”, “valentes”, que se dedicaram audaz e
tenazmente à “luta”. O sentido de “lutadora”, na conotação mais positiva que se dá ao
termo, estende-se às mulheres que estão particularmente engajadas no trabalho ritual. Ele
recebe a classificação de “luta”, em que “responsabilidade” e “força” são precisas para a
ele se dedicar.
Como se verá no Capítulo V, ter o dom de se comunicar com as entidades, o que
representa uma especial capacidade, embora não seja privilégio das mulheres, confere
elevado prestígio, pois o dom é algo que não se aprende, mas se “recebe”, é de autoria
divina, uma “graça” concedida. Poderia se pensar que o dom, sendo de autoria divina,
colocaria seu portador ao resguardo de possíveis ameaças ao prestígio que ele lhe confere.
93

Diversamente, o dom, como cada valor reconhecido, é constantemente testado, colocado à


prova, precisando que seja demonstrado publicamente. A perda do dom tem também
justificativa de ordem divina: a entidade encarrega-se de “tirar a graça” se o portador não
mais tiver o merecimento.
Tornar-se um especialista ritual é algo desejado por ser um dos principais canais de
aquisição de prestígio. No entanto, ser uma pessoa “chegada” à tradição indígena ou à
penitência, que se envolve e participa ativamente dos eventos rituais sem ter cargos
especiais, é suficiente para que seja alvo de comentários elogiosos, uma forma de
reconhecimento por sua adesão a esses rituais e pela contribuição à sua perpetuação.
A brabeza é considerada uma espécie de herança biológica, fazendo-se referência a
traços que teriam caracterizado os ascendentes – os “índios brabos” – atribuindo a ela valor
inestimável. Poucos valentes, ou mesmo só um, dentro de uma família tornam-se o
respaldo para os outros membros. Ao comentar com Agenor Julião alguns fatos ocorridos
em que formas de prevaricação haviam provocado atos vingativos, ele afirmou:

Quando tem uma pessoa valente na família, chega um camarada no bar e


aí abusa, dá um tapa na cara, mas tem um parente dele. Tem uma pessoa
que chega e acaba com a festa, dança, não paga a conta, dança com
mulher casada. Mas por trás dele tem um pique, alguém da família que
respalda, né? Aí se deixa essa pessoa dançar de graça, dançar com quem
ele quer e derramar até a comida na mesa pra não mexer com a família
dele.

Tais situações dão vida a comentários que visam demonstrar o desaponto em


relação às provocações. Porém, a valentia é um valor moral precioso e sua demonstração
diante de situações consideradas “injustas” não é somente justificável, mas esperada. Ao
tornar visíveis a valentia, a brabeza e a coragem, princípios básicos para a construção da
reputação masculina, confia-se em que o descrédito recaia sobre aqueles que aparentam
uma atitude mais voltada para a tolerância. No entanto, chefes de famílias e lideranças que
saibam orientar no sentido da resolução de conflitos, evitando o enfrentamento das
provocações e mostrando habilidade na arte da diplomacia, alcançam peculiar
respeitabilidade. Relatos sobre algumas pessoas que atingiram tal reputação são raros e
trata-se, na maioria dos casos, de indivíduos que desempenharam o papel de conselheiros,
especialistas rituais e também algumas figuras carismáticas que não pertencem às famílias
em conflito e tampouco são índios.
94

2.3 Conflitos e resoluções: a legitimidade da mediação

Tema recorrente nas conversas entre familiares e vizinhos são os eventos que
desembocaram em conflitos. Eles são relatados com profusão de detalhes, expondo-se
publicamente os indivíduos envolvidos, reconstruindo-se performaticamente eventuais
brigas às quais se assistiu. As informações fluem rapidamente nesse universo social, tanto
que todos tomam ciência de qualquer evento, especialmente se envolve desentendimentos.
As conversas sobre casos de conflitos tornam-se ocasiões para refletir sobre situações que
os geraram e servem para avaliar as próprias interpretações e as alheias, bem como
canalizar pressões para orientar as posições dos atores sociais que participam da conversa.
O conflito entre indivíduos de diferentes famílias parece envolver todos os seus
membros, que são chamados a posicionar-se sobre a situação. Ter uma postura favorável à
versão proposta por chefes de família é algo esperado, mesmo quando não há plena
convicção da justeza das razões, evitando-se a possibilidade de ser tachado de “traidor” ou
de ser alguém que quer demonstrar superioridade de valores que não pertencem ao grupo,
como a imparcialidade. Os altos valores morais, impessoais e anônimos podem ser
percebidos como o desejo de ser superior, o que apenas algumas pessoas com peculiar
desenvolvimento espiritual são.
Os conflitos podem ser causados por inúmeras razões, mais frequentemente a
invasão das roças pelo gado, o desvio da água encanada, a ampliação não acordada do
cercado, a briga para os cargos públicos (cacique, pajé, professores nas escolas,
funcionários e agentes de saúde da Funasa), as altercações por ciúmes, as brigas quando
em estado de embriaguês, as traições, os maltratos às mulheres. O enfrentamento das
contendas segue regras, em que a lógica da vingança parece se destacar em relação às
atitudes que se atêm aos valores enaltecidos e promulgados há muito tempo por
missionários e padrinhos, como o “perdão”, a “humildade” e a “tolerância”.115 As
narrativas acerca das medidas tomadas para a resolução de conflitos entre famílias extensas
fizeram menção principalmente a três tipos de intervenções. As disputas podiam – e ainda

115
“Vingança” e “perdão” são valores que orientam as relações de forma contrastante, embora possam ser
aplicados diversamente, dependendo dos âmbitos de relacionamentos. Por exemplo, dentro da família e do
tronco de pertença, o perdão entre os disputantes é valorizado, enquanto entre membros de famílias
diferentes e inimigas, a lógica da vingança pode predominar.
95

podem – ser resolvidas por meio da violência física, da feitiçaria,116 ou recorrendo aos
próprios chefes de família que medeiam entre as partes que divergem. 117
Pode-se dizer que o recurso às autoridades centralizadoras provoca o descrédito.
Alguns dirigentes de família demonstraram evidente orgulho em afirmar que nunca
recorreram ao chefe do Posto, ou ao cacique e pajé, tendo enfrentado pessoalmente os
conflitos. O apelo ao chefe do Posto, no entanto, não é raro se consideramos as afirmação
do mesmo sobre a quantidade de queixas que recebe diariamente. Mas como muitos
afirmaram, sua autoridade seria limitada, não se demonstrando apto a mediar nos conflitos.
Quem se apela ao chefe do Posto pode ser caçoado e receber o apelativo de “covarde”.
Seriam membros das famílias pequenas e privas de “homens valentes”, que não
estabeleceram vínculos com as famílias que poderiam respaldá-las e, por isso precisam
recorrer ao chefe do Posto para fazer respeitar seus direitos.
Arruti (1996) evidenciou que, antes da instalação do órgão tutelar, não existia na
área uma chefia centralizada nem cargos com poderes coercitivos. Havia indivíduos que
gozavam de particular prestígio devido a especiais poderes mágicos e elevada reputação
moral, que desempenhavam o papel de conselheiros sem, no entanto, dispor de poderes
repressores para a resolução de conflitos (p. 108). A instituição dos cargos de pajé e
cacique como únicos mediadores e representantes dos Pankararu apresenta-se como um
problema em virtude da necessidade de expressar as muitas representatividades das
famílias extensas. Com efeito, assiste-se à multiplicação de indivíduos que exercem o
mesmo cargo, o que faz com que a negociação com o órgão indigenista seja
particularmente fatigante. Malgrado a Funai manifeste o seu desagrado através do atual
chefe de Posto,118 que tenta esclarecer os índios sobre as dificuldades de se relacionar com
a multiplicidade de posturas, esta tendência mostra que, embora a instalação do órgão

116
Como se destacará mais detalhadamente no Capítulo IV, há a procura de especialistas rituais que
trabalham com entidades consideradas perigosas, para as quais se apela para atacar os próprios inimigos.
117
Durante a permanência em campo, houve casos de brigas entre homens por ciúme ou por estado de
embriaguês e que terminaram em escaramuças ou em lutas mais violentas. Nessas ocasiões, os chefes de
família procuraram formas de conciliação. Em caso de desavenças entre garotos que pertencem aos grupos
rituais (cuja atuação e diferenças serão extensamente descritas nos próximos capítulos), os especialistas
(penitentes ou pais ou mães de praiás) se encarregam de tomar as medidas para a conciliação dos envolvidos.
118
Clenio Eduardo da Silva, ex-militar, atua desde 2007 como chefe de Posto da área indígena Pankararu.
Há de se salientar que a atitude tomada pela Funai ao reconhecer a multiplicidade de mediadores é devida às
constantes pressões que recebe, e não por se aproximar da lógica organizacional dos índios, tendo como
objetivo a centralização dos cargos. De acordo com Ferreira (2007) que abordou as relações de poder entre o
Estado e o grupo indígena Terena no Mato Grosso do Sul, a imposição de uma organização centralizada por
parte do Estado não leva ao desaparecimento da organização segmentar dos índios, mas à formação ou
reforço do faccionalismo.
96

indigenista tenha surtido efeitos na implantação de cargos centralizadores, não se pode


afirmar que houve uma ruptura com o princípio organizacional político dos índios; cada
comunidade política formada por diferentes famílias extensas tem seus chefes de
referência, não obstante cada família atuar visando à aquisição de maior autonomia, o que
provoca constantes reconfigurações de alianças e mudanças nas chefias de referência.
Segundo Arruti (1996), no rearranjo de autoridades imposto pelo órgão indigenista,
teria ganhado particular importância a figura do chefe de Posto, no papel de autoridade
centralizadora de regulação moral (p. 153). Mesmo que algum chefe de Posto tenha tido
destaque mostrando-se “valente”,119 não há evidência, em minha opinião, de que esta
figura tenha substituído os chefes de família, que continuam sendo as principais referências
tanto nos assuntos relativos a conflitos quanto nas outras esferas da vida social.
O conselho tribal é formado por um número variável de lideranças, dependendo do
interlocutor indagado sobre a composição deste órgão. As lideranças que o compõem –
chamados conselheiros – seriam em sua maioria pais e mães de praiás, isto é, especialistas
rituais (chefes de família) que retiram a legitimidade da pessoa imbuída de autoridade em
função de conciliarem capacidades mágicas e políticas, mantendo-se assim no alto patamar
da hierarquia das lideranças. As reuniões do conselho tribal não têm frequência
determinada, mas são realizadas apenas em situações específicas, quando é preciso discutir
sobre questões comunitárias relevantes.120 Embora as lideranças de cunho mágico-religioso
sejam em número majoritário, há outras dentro do conselho, escolhidas por demonstrar
capacidade de mediação com as agências de contato, sejam elas estatais ou não
governamentais.
Desavenças entre as diferentes lideranças parecem ser frequentes. A multiplicidade
de posturas pode ser percebida também na relação com o órgão em virtude do crescente
descontentamento de algumas lideranças por causa da sua atuação, dependendo também
das menos ou mais aproximações com seus expoentes. O regime tutelar torna-se alvo de
diversos questionamentos. A expressão “A Funai é nossa!”, mais de uma vez ouvida em

119
É o caso do chefe de Posto Orinculo Castelo Branco Bandeiras, sargento do Exército, que atuou na área a
partir de 1941, apenas um ano após a instalação do órgão ali. A firmeza e a brabeza de suas ações contra os
posseiros deixaram uma marca indelével na memória dos mais velhos, que ainda contam suas proezas,
referindo-se a ele como “o melhor chefe de Posto”. No entanto, o mesmo Castelo recebe críticas severas de
uma parcela da população por ter expulsado da área indígena o conselheiro Pedro Batista, como se verá no
Capítulo III.
120
A presença de todas as lideranças foi requisitada, por exemplo, quando houve discórdia na passagem do
cargo de cacique.
97

circunstâncias em que se discutiam os conflitos com os posseiros, podia ter como resposta
“A Funai é do governo”, desejando-se com isto questionar abertamente o órgão que,
embora seja tido como defensor dos índios, é capaz de mascarar outros objetivos,
atrasando o processo de expulsão. Há alguns membros do conselho tribal que apelam às
autoridades tutelares ao sentirem ameaçada a própria legitimidade. É o caso João
Gouveia,121 que fez transcrever um sonho que teve, tornando-o um “documento oficial” a
ser entregue à Funai, assinado pelo então cacique, pajé e chefe do Posto.
Como se pode observar na página seguinte, o documento foi registrado em 1994, no
período em que estavam se manifestando fortes discordâncias quanto ao monopólio dos
cargos de cacique, pajé e chefe do Posto pela família Binga. João Gouveia, em virtude da
aliança com o pajé Miguel Binga e, por extensão, com toda a família deste, tomou uma
posição favorável à manutenção do status quo e posicionou-se em defesa dos cargos,
tornando o “documento-sonho”122 a voz de todos os pais e mães de praiás do conselho
tribal, embora as posições destes fossem diferentes, algumas até opostas àquela de João.

121
As narrativas e as posturas de João Gouveia serão analisadas no Capítulo V. Adianta-se aqui que é um
renomado especialista ritual e foi ativa liderança durante a década de 90, atuando também como subpajé.
122
Para além da real consequência deste documento, é interessante destacar a necessidade de legitimar a
posição tomada por este ator social a partir de um sonho revelador, pois apenas as entidades podem oferecer
conselhos legítimos, usando os especialistas rituais para comunicá-los. A “burocratização” dos aspectos
mágicos concretizou-se, neste caso, com a transcrição de um sonho revelador num papel que posteriormente
foi assinado pelos que ocupavam os cargos reconhecidos pela Funai. A combinação destes dois aspectos
legitimadores (sonho e documento) é uma solução encontrada pelos especialistas rituais na tentativa de
conciliar lógicas diferenciadas de conferência de legitimidade, podendo assim “provar” a própria autoridade
perante o órgão indigenista e os índios. Há de se destacar o especial valor atribuído a alguns documentos, por
exemplo, a carta de ouro ou carta régia, que teria sido escrita pela princesa Isabel e conteria as dimensões
exatas da terra indígena por ela doada e que teria se perdido em algum lugar. O valor dado a esta carta vai
além da possibilidade de atestar realmente as dimensões da terra indígena. É atribuído a ela um valor mágico,
que esconderia outras verdades atrás das evidências. O documento escrito – para a população analfabeta em
pauta – implica um extraordinário poder simbólico, além do seu conteúdo semântico. Arruti (1996) destacou
a atribuição de um poder extraordinário aos documentos que o órgão indigenista distribuía – como, por
exemplo, as carteirinhas que identificam o cacique – e que ultrapassava o valor legal que podiam de fato ter.
O autor argumenta que esses documentos tinham semelhança com outros objetos mágicos, “que retiram sua
força da performatividade de que são capazes, ou do fato de carregarem em si, na forma de uma espécie de
mana, o poder daqueles que o produziram” (ibidem, p. 113). Saliento ainda que alguns textos sagrados
usados pelos missionários durante as pregações – como a Missão Abreviada – carregavam também forte
valor mágico, sendo custodiados secretamente.
98
99

São diversas as lideranças que consideram indispensável a presença da Funai na


área, seja para a resolução dos conflitos com os posseiros, seja para desempenhar o papel
de mediadora entre os índios. Para tais lideranças, nas tratativas, seria preciso manter uma
atitude de submissão, reconhecendo a superioridade do “governo” como um pai-patrão
benevolente, como revela a postura de Agenor Gomes Julião (78 anos). Há muito tempo
Agenor participa do conselho tribal, e esteve presente na maioria das circunstâncias em
que se discutiram temas de ordem comunitária.123 Ciente de que sua atitude provoca
comentários de apreciação e desprezo, Agenor comentou sobre vários acontecimentos,
visando demonstrar a sua posição, sem aparente necessidade de enaltecê-la, mas
simplesmente expressando valores que o distanciam de outras lideranças, os mesmos que
lhe conferem um status diferenciado. Quando foi criado o conselho tribal, João Tomas que
era o “presidente”, o teria chamado a participar.

Aí, meu labor, minha dedicação pela causa indígena, pela terra, [por isso]
foi que ele me chamou pra ser conselheiro. Porque eu entendo muito mais
que outra gente daqui de direitos e deveres daqui. Conheço a jurisdição.

Os conhecimentos dos quais se orgulha Agenor, mais que fruto das experiências de
anos de trabalho fora da aldeia, se devem principalmente a certa proximidade com o órgão
indigenista, do qual é um tenaz defensor. Procurou a assistência do órgão para resolver
diversas situações adversas, disponibilizando-se a procurar a melhor maneira para ter a
presença de seus membros na área.
As narrativas de Agenor sobre as inúmeras interações com os membros do órgão
indigenista visavam ressaltar que, embora houvesse dificuldades em lidar com tais
autoridades, a sua presença e atuação eram necessárias, sendo preciso negociar com elas de
forma a que rendesse algum resultado. Para Agenor, a Funai tem o dever de intervir não
apenas nos assuntos relativos aos conflitos com os posseiros, mas também naqueles que
diziam respeito à “falta de ordem e justiça”. Reclamou diversas vezes sobre a ausência de

123
Como muitos outros pankararu, ele trabalhou em São Paulo como servente na construção civil. Trabalhou
também em Paulo Afonso como empregado na hidroelétrica, na CHESF de Itaparica e, depois, por muitos
anos, como motorista numa empresa de transporte que o levava a percorrer diversos estados do país. Contra o
desejo da esposa que havia manifestado a vontade de permanecer primeiro em São Paulo e depois em Paulo
Afonso, Agenor levou a família de volta para a aldeia, comprando diversos lotes de terra, e um número
considerável de animais para a criação, aos quais diz ser “muito apegado”. Com os recursos obtidos,
sobretudo com o último trabalho de motorista, conseguiu alcançar uma boa e estável situação financeira.
100

intervenções policiais nos crimes cometidos na área e acredita que os chefes de família não
conseguem mais controlar os abusos que, em sua opinião, estavam aumentando
sensivelmente em comparação com o passado, quando a população ainda era pouco
numerosa e os índios os respeitavam. Conta com orgulho que o órgão indigenista depositou
nele muita confiança e o inspetor decidiu nomeá-lo comandante da “polícia indígena”.124

Aí o Geraldo veio com um documento do inspetor pra [eu] ser


comandante da polícia indígena, pra dar segurança ao chefe. Por isso,
fiquei com a polícia indígena. Éramos eu, o comandante, João Binga, Zé
Preto, Jacó e Dalberto. João Binga era valente e todo mundo respeitava e
os outros também. Aí a gente pediu compensação. Mas o chefe falou que
era assim: “quando chegar semente ou ferramentas, vocês são os
primeiros que vão receber e recebem uma quantidade maior, essa é a
compensação, mas dinheiro não tem não”. Aí, trabalho de graça não dá,
né? Aí durou um tempo, mas era difícil. A gente fazia muita inimizade,
sem segurança, porque íamos na casa de famílias a buscar quem tinha
errado, os revoltosos, mas era perigoso. E de graça não dá.

Tendo tido sempre uma postura de defesa da atuação dos membros do órgão,125
Agenor acabou acumulando máculas que mancharam seu prestígio, embora muitos
interlocutores afirmassem que “ele é valente”, outorgando-lhe uma atitude de respeito
também em virtude da disponibilidade oferecida para “aconselhar” e intervir em situações
de conflito, constantemente buscando soluções conciliadoras.
Agenor afirma ter se distanciado das mobilizações políticas e de reivindicação por
terra, manifestando forte decepção diante dos diversos acontecimentos passados que, em
sua opinião, teriam prejudicado irreparavelmente os Pankararu. Entre tais decepções,
Agenor mencionou a forma com que se desenvolveram as tratativas durante a “retomada”
da terra na década de 1990. Quando a cerca que delimitava a roça comunitária foi
derrubada pela segunda vez pelos posseiros, os encarregados da Funai tentaram se reunir
com o pajé Miguel Binga e o cacique João Binga em busca de um acordo que pudesse

124
No final da década de 1960, a Funai cria a Guarda Rural Indígena (GRIN) para o policiamento dos índios
feito pelos próprios índios. Para um aprofundamento da atuação deste órgão, ver Corrêa (2000).
125
Relatou um acontecimento (narrado também por outros índios que queriam enaltecer a valentia de
Agenor) em que o chefe do Posto estava sendo acusado de ter usado o dinheiro indevidamente. Centenas de
índios teriam se concentrado no Posto com a intenção de matar o chefe. Preso dentro do Posto, sem poder
sair pelo medo das ameaças, o chefe mandou chamar Agenor. Este foi para o local e tentou explicar aos
índios que estavam enganados, pois o chefe teria destinado o dinheiro para a reestruturação da igreja, pintar o
Posto e comprar uma camionete, conforme o acordado com outros índios. Como ninguém ficou satisfeito
com as explicações oferecidas por Agenor, ele teria pegado um facão e dito: “quem disser que ele não vai
sair, atravesse na minha frente agora!”. O ato de Agenor teria salvado o chefe de Posto, pois ele conseguiu
sair dão lugar. Segundo os outros índios que relataram este episódio, depois do acontecido, o chefe desistiu
do cargo e nunca mais voltou à área indígena Pankararu.
101

acalmar o conflito. Furiosos com o acontecido, o pajé e o cacique não se apresentaram na


reunião e teriam mandado Agenor para mediar as negociações. O acordo estabelecido,
segundo Agenor, teria garantido aos índios erguer novamente a cerca, a Funai
disponibilizando o material necessário e comprometendo-se a dialogar com o sindicato ao
qual os posseiros estavam vinculados, para que se responsabilizasse no caso de a cerca ser
outra vez derrubada. Mas o acordo previa que os posseiros pudessem ficar nas respectivas
moradias até que o levantamento dos bens para a indenização estivesse ultimado. Na
reunião que aconteceu posteriormente, quando as partes em conflito estavam presentes, o
pajé e o cacique teriam negado a validade das negociações, querendo que os posseiros
saíssem imediatamente das terras.

Aí eu olhei pro encarregado e falei que nunca pensei que ia cair numa
dessas. Mas, resumindo, pra pankararu lavei minhas mãos. Jamais eu vou
dar um passo, uma palavra a favor de pankararu, jamais. Foi um prejuízo
irreparável. Eu que tinha feito o negócio e eu tinha aceitado. Ontem
ninguém queria falar com o homem, mas no outro dia, pronto! Acabou o
acordo! Aí a cerca não foi erguida e a terra esta aí ainda hoje com os
posseiros.

Embora com amargura, Agenor continuou participando das mobilizações,


sobretudo quando a meta era Brasília para os encontros na sede da Presidência da Funai,
onde mais uma vez percebeu que a forma como ele entendia desenvolver as tratativas
distanciava-se daquelas escolhidas pelas outras lideranças. Na narrativa de Agenor,
evidencia-se a frustração de ver negados os termos dos acordos que ele havia conduzido
com a Funai, frustração esta devida ao fato de ser novamente colocado no baixo degrau da
hierarquia política. Queixou-se – com aquele ar de quem pensa que o tempo lhe daria razão
– das estratégias adotadas pelas outras lideranças, que evidenciavam a falta de diplomacia
necessária para o alcance dos resultados esperados. “Eu tenho um bocado de terra, mas
toda comprada, nem de herança da minha família, nem da minha mulher, nem da Funai.
Tudo o que eu tenho é de meus negócios! De meu trabalho!”, afirmou, para reiterar a ideia
de que nada há a perder ou a ganhar e que não houve interesses pessoais que o motivassem
a se envolver nas negociações, dando ênfase ao desejo de atuar em prol da coletividade.
“Com o passar do tempo, a gente vai aprendendo na vida”, suspirou, depois de contar mais
uma decepção. “O pajé pode não ter nenhuma cabra ou uma vaquinha aqui, mas ele tem
destaque! Eu quero ficar com minhas vacas e deixo o pajé ir lá! (risadas). É isso aí! Essas
102

coisas aí. Tem gente que aprecia isso, o destaque! Eu não! Me deixa com minhas
vaquinhas!”.
Agenor adquiriu prestígio por ter se tornado uma referência econômica e pelas
informações às quais outros índios não tinham acesso e que ele podia oferecer. Embora
defenda a atuação dos grupos rituais na área (tanto dos penitentes quanto dos praiás),
nunca se envolveu diretamente com eles e não se ligou a nenhum desses especialistas
rituais. Tal atitude o distancia do modelo de criação de alianças que opera entre os
Pankararu e o impede de atrair recursos humanos suficientes para constituir um grupo de
aliados capaz de contrabalançar as coalizões opostas.

* * *

Se os chefes de família e sobretudo aqueles que cultivam os conhecimentos


mágico-religiosos detêm a autoridade legítima para intervir nos assuntos comunitários e
nos conflitos e também para construir e adaptar o quadro moral, muitos deles fizeram
referência, com evidente nostalgia, ao “tempo do conselho”, indicando com esta expressão
o período em que se podia recorrer a conselheiros. Neste caso, a expressão não se referia
aos membros do conselho tribal, mas às figuras carismáticas, principalmente a Pedro
Batista e à madrinha Dodô. Muitos índios recorriam a eles em caso de conflitos, tanto para
ser orientados sobre as medidas a serem tomadas quanto para pedir uma intervenção na
resolução.
Reconheciam neles a mais alta autoridade moral, diversamente dos inúmeros chefes
de Posto que se sucederam na área desde a instalação do SPI, aos quais se reconhece
unicamente menor ou maior eficácia nas atuações para a retomada da terra, não
demonstrando as virtudes morais requeridas para operarem como legítimos mediadores nas
outras esferas sociais. Assim, torna-se difícil afirmar que a organização política dos índios
tenha sofrido uma mudança radical em que uma autoridade centralizadora imposta pelo
Estado tenha tomado o lugar que ocupam os chefes de família e os conselheiros, embora os
índios afirmem sem hesitação que “o tempo do conselho acabou” e que as consequências
deste fato são irreparáveis, pois com ele está acabando o “tempo do respeito”, isto é, os
valores morais que regulam a vida social.
103

Para visualizar melhor os diagramas, ver a versão impressa da tese.

DIAGRAMA I

Especialista
ritual
João Maria Joana Francisco Maria
Cipriano da Conceiçao Carapina Pedro dos
(Calu) (dos Guerras) (Serra Negra) Santos

Cacique

Maria João Maria Joaquim Jose Martinha Luis Santilina Bernaldina Narciso Joaquim Marinha Henrique Ana Badu Guilherminha
Preta Pedro Beata Cipriano dos Santos Pedro Maria de Pedro dos Pedro dos (irma de Pedro dos irma de Pedro dos (dos
(Narciso) (Calu) (Narciso) Jesus (Calu) santos Santos Guilherminha) Santos Guilherminha Santos jasintos)

1951

Inocencio Maria de Assis de Pedro Maria Antonio Maria Luisa Maria Maria Pedrina José Alexandina
Pedro dos Sousa (Morenos Alves José Nobre dos Santos Jose Polonia Maria de Auto dos Rocha
Santos Manezinhos) (Quirino) (Calu BInga) (Cabocla) Jesus Santos Lobo

Narciso Raulivi Lindomar


Lobo dos Lobo dos Lobo dos
Santos Santos Santos

Falta ùltima geração


104

DIAGRAMA II

Antonio
Clemente Maria
Especialista Ocioli Chulé

ritual

1915 - 2006 1927


[_]
85

Luis Ocioli de Maria Luisa dos


Pajé João Manoel Maricó Dionilia
Oliveira (Luis Santos (Maria
Chulé Ocioli Zé Ocioli de
Caboclo) Cabocla)
Oliveira Mulato Oliveira

Maria Vanilda Dalva Janete Marcelo Bernadete José


José Vandete Brulio dos Maria Vicente Maria Alois Angela Antonio Maria Mario Sebastiana José Teresa Luis Ediane Diva Maria Antonio
Francisco Lusinete
Santos Clemente das dos Luis
Luis Rita
Dores Grandes Ramos
Mariano

Ivandro
Maciel Marcelo Elda Marisol Sandra Debora Angeline 'Gordinho' Quiteria Antonia Mauricio Adeone Zé Ciço Daianire Avane Dalva Domingo Luisa Nissinha Arileide Leila Maria José Emanoele Antonio Galego Eulinas
José Janete Mario Tião Orlando Nora Diu Reginaldo Edinaldo Elisia Erivan Edivan Alessandro Sandro Maria Sandra Jackeline Crislane Erique Antonio Erica Maria Raissa Carlos Maciel Deda José Augusta Ariana Maicol Ariel
Aparecida Luisa Manoel

Descendência não
reportada.
Faltam duas gerações
Faltam duas gerações

Falta última geração


Falta última geração
105

Manoel Maria
Calu Calú

DIAGRAMA III (cantadeira)

João
Binga Paturnia Firmina Miguel
Especialista Velho (Cantadeira)

ritual

Anora Manuel
Erondina Adão José Monteiro Ana Saturnino Bia Anorina
Maria da Monteiro dos Santos Bomba (Cantadeira) Maria de
Conceição dos Santos (José Duo) Jesus

Zé Dida Gerasina Maria João José Fernando Celestina Hilda Doce Lourdes
Paulino (Cantadeira) Vanilde

1976
36
José Regiane Luis De Eliana
Carlos (de Ana Eliene José Nia João Sandro Edileusa Francisco Mazé
Renatinho) (Vau) Ronaldo (Morenos) Paulo de
Assis

Descendência não reportada

Falta última geração


106

DIAGRAMA IV

? Aninha Merensa João


(Bomba, Binga, Malaquia
Serafim ?
Anjo) Antonio Maria
Gomes do
Sa (Sarapó) Binga Francisca
Quirino

[_ ]

Liderança 1887 - 1994 1910 - 2010


D. 1975
Maria Jovina
100 de Jesus
Antonia Rosa Maria José Manoel Antonio
Joaquim Emilia ? Chiquinha Joana Das ? Chiquinha (Vieira)
da Conceição Monteiro Anjo de Binga
Serafim (mãe da Arventino Alvina Luciano Maria Antonio Maria Velho Paturnia Calisto Valentin Neves ? Timota Binga
(Antonia Binga) (Zé Binga) Sousa
(paje) serra) Alexandra Vicente das João (Calú) Binga Binga Binga
+ Quirino Dores Binga

Penitente

1930 1934 1911 - 2010 1917 - 1993 1914 D. 2008


* 78 1935
João Maria João Elsa Cícero Dalva Rosalvo Maria Renato Adalva Gerasina Maria Genoura José Verônica Maria Antonio Manoel Maria Joaninha Manoel Maria José Monteiro Lindaura Lurdes João Monteiro Alexandrina Cida Solange Genésio Rosa Maria Manoel Antonia Maria Ze Ana Adão Maria 77
Saturnina Vadivino Chicocinho Estevão Domingo Ana Anorina Arvelino Domingo Firmino Manoel Beinvino Maria Antonia Pastora Antonio Abilio Zé de Giulia Francisca Giardilina Pedro Joaquim Cecilia Celina
Cacique de Gomes Serafim do Julia Serafim do Rosa do Julião Sampedro do Julião Serafim
(Tuna)
Barbosa Vicença Barbosa Oliveira (Velho Barbara (de Monteiro da Luz Rosa da Luz (Jusa Aleijada da Luz (João da Luz (dos (dos Monteiro de Jesus José da Monteiro Monteiro Dôo Bomba (Bia
de de Timota dos Timota dos Timota dos de de Lino de de de de Binga Tiú dos Miguel Maria Denesio Joaninha Manoel Helena João de Sampedra Mariano Antonio Maria Necio Rosalina Zé Veroquinha
Pascoa da Silva Nascimento Torres Nascimento Nascimento Nascimento de Jesus Manoel) Binga Agustinho) (Manoel Binga) (Julião) Binga) (Calú) Binga) Domingos) Bodes) da Luz (Rosa Binga) Cruz Calú)
Timota Timota Santos Santos Santos Lino Lino Lino Lino Lino Lino Felix dos Barros Antonio Gomes Domingo (Chione) Vicença (Cariri Maria de de Sousa (Boião José dos Barros Maria dos Binga Barbosa
Santos dos Santos (Bomba) dos Santos Juazeiro) Jesus de alagoas) Santos Santos de Jesus

[_]

Pajé

Neta do Sarapó

Diagrama VIII Diagrama X Diagrama IX Diagrama VII Diagrama XI Diagrama XII Diagrama VI
107

DIAGRAMA V D. 1975

Maria Jovina
Antonio de Jesus
Binga (Vieira)

Especialista
ritual

1935
77

Miguel Maria Denesio Joaninha Manoel Helena João de Sampedra Mariano Antonio Maria Necio Rosalina Zé Veroquinha
+ dos Barros Antonio Gomes Domingo (Chione) Vicença (Cariri Maria de de Sousa (Boião José dos Barros Maria dos Binga Barbosa
Santos dos Santos (Bomba) dos Santos Juazeiro) Jesus de alagoas) Santos Santos de Jesus
Penitente

Fernando Francisco Cicero Jovelina Maria Cida José


Nina Marta Vania Betania Francisco José Dilmás Daniel Antonio Ciço Antonio Maria Ze Maria de Maria Maria Luisa Carminha Marieta Augusto José Geronimo Maria das Dionisa Teresa Celma Gracinha Jacilene Ventinha Santinha Orlando Antonio Gilmar Maria Luiz Cicero Maria Aparecida Maria Nazaré
[_]
Maria dos Maria dos Maria dos Maria dos dos dos dos dos dos dos Branco Lurde dos Francisca Aparecida dos dos dos dos Mariano Mariano Dores de de de Barros barros Barros (apelido) Barros Brros Barros Barros Creusa Antonio Antonio de Jesus dos de Jesus
Santos Santos Santos Santos Santos Santos Santos Santos Santos Santos Santos dos Santos dos Santos Santos Santos Santos Santos de Sousa de Sousa Sousa Sousa Sousa de Jesus dos Santos dos Santos Santos dos Santos
Pajé
108

DIAGRAMA VI Manoel
? Chiquinha Anjo de
Binga Antonio
Sousa
Binga

Especialista
ritual

Antonio Abilio Zé de Giulia Francisca Giardilina Pedro


de de Lino de de de de Joaquim Cecilia Celina
Binga Tiú dos Diagrama V
Lino Lino Lino Lino Lino Lino
Felix
[_ ]

Liderança

D. 2010

+
Quiteria Joaquina Renato João Maria José
Binga binga sobrinho Joaquim Ginú dos
Penitente
de Raquel (de Bahia) Felix

Josilene Lipi Jose Rita George Inaldo George Maria Francisco Cicero Cosme Damiao Giulia Maria das Ciço
Renato da Ivaldo Jose da Dores Mutuca
cassia Silva (Dora)

Luciano

Descendência incompleta
109

D. 2008

Alexandrina
DIAGRAMA VII João Monteiro da Luz (dos Cida Solange
da Luz (João Domingos) (dos
Binga) Bodes)

Especialista
ritual
Maria Francisco Everaldo Risalva
? Maria Adauto Helena David Teresa Giulia Luis Irene Cláudio Paulo Luisa Antonio Maria Ronaldo Alexandrina José Teresa José Felicia
Alexandrina Monteiro Monteiro (Bomba) Pereira (dos Alexandrina Monteiro Nilda (Palmeira Alexandrina Monteiro Helena Raimundo Alexandrina Domingo (dos Roberto Jefferson Leticia
Torre de Oliveira da Luz
da Luz da Luz Neto Pereira) da Luz da Luz dos Indios) da Luz da Luz (Calú) (Julião) da Luz Neto Vau) Monteiro (dos
da Luz Bodes)
[_ ]

Liderança

Iara Ivone
Antonio Nissia Junior Claudia Domingos Sandra Beatriz Alessandro Mônica Raiane Amanda Clodualdo Tamiris Natana Welton Pedro Ana Cleonice Márcia Regina Ana Claudiana Claudenice Cleiton Clebe Duda Yon João Susana Clesia Suclesia Clesio Tanauí Assirá Italo Julião Iranildo Teresa Daiane Taruma Leonardo Joana dos
Monteiro Monteiro Monteiro Monteiro Monteiro Monteiro Sousa de Sousa David Sousa Monteiro Lucia de da da da da Coreno Paulo Monteiro da Monteiro Monteiro Monteiro Julião Julião Maria dos dos Santos José dos Santos
da Luz da Luz da Luz da Luz da Luz da Luz Monteiro Monteiro Monteiro da Luz Nascimento Luz Luz Luz Luz da Luz da Luz Luz da Luz daLuz da Luz Santos Neto Neto Santos Neto Neto
*
Cacique

Adrian Kelvin do Clebe do Kerle do


Nascimento Nascimento Nascimento
Luz Luz Luz

Falta ultima geração Falta ultima geração


110

1911 - 2010 1917 - 1993

Manoel Maria
Oliveira (Velho Barbara
Manoel) Binga
DIAGRAMA
VIII

Alicia
Especialista Pereira Amélia José Manoel Gonzalo Maria Teresa Cícero
Antonio Maria Helena
Genésio Maria Sostenia Maria Edimilson Maria
Gonzalo Sueli João Mariana Manoel Maria Pedro Maria
Gomes de Oliveira Gomes Socorro Freire Manoel de Manoel de Barros (Bahia) Ana Maia de Bárbara
ritual Julião (Zé índio) Julião Julião Oliveira Manoel de de Severino Oliveira Oliveira Vasconcelos Filha Manoel de Bispo Manoel de Gomes Carlos Zélia Maria Oliveira Socorro Manoel de Sulede de
Oliveira (dos Nune) Oliveira da Silva Oliveira Julião Manoel de da Silva Filho Ramos Oliveira Nascimento
Oliveira (Barbosa)

[_ ]

Liderança
Maria Maria Rosemar Luis Antonio Cristóvão Sebastião Ana Maria Maria Luisa Maria Juraci Josy Viviane Claudio Jonas Welton Priscila Jéssica George Geise Tatiana Camila Tiago Andréa Diego Tamiris Natana Roberto Maria do João Maria Cosme Damião Luis Marcus Rosa Maria Thalis George Samurai Julierme Pablo Wellington Társio Kiara Pedro João Paulo
Dorivaldo José Maria José Regina Cosme Damião Gomes Gomes Gomes José Cristiano Gomes Gomes Aparecida Almeida Maria Francisco Maria das Maria Maria Paulo Henrique Álvaro Fernando Rogério Francisco Maria Nina Uri dos Maria ? Maria Ronaldo Adriana ? ? Maria João Carlos Severino Ana José Teresa Manoel Barros de da Barros de Vanessa Barros de Andrade Jorge Andrei da Silva Maria Gabriel de De Sousa Dandara Luana Bárbara Naiara João Vitor de Joao Rosário Oliveira Bárbara de Oliveira Oliveira Oliveira Oliveira da Nascimento Nascimento de Nascimento de Nascimento Nascimento Nascimento Nascimento
Alves Valmir José Cosme Oliveira Oliveira Gomes das Ronaldo Dores de Elisabete Cicera de Celso de Ubiratã de Ubirajara Ubirací de Antonio Regis de Bárbara Giboia Alexandre Auxiliadora Regiane José de Roseane da Silva Melo Paula de Carlos Cristina de Oliveira Carlos de Franciele da Gomes de Gomes de Gomes de Erivania Gisele Flavio Erica
Oliveira Oliveira Oliveira Oliveira Oliveira Oliveira Oliveira Gomes Julião Oliveira Silva Oliveira de Oliveira Vasconcelos Cruz da Silva Oliveira da Silva Oliveira Monteiro Binga de Oliveira da Silva de Oliveira Oliveira da Silva da Silva da Silva Silva de Oliveira Oliveira Oliveira de Oliveira de Oliveira de Oliveira de Oliveira
da Silva Oliveira Oliveira Oliveira Neto Neto Oliveira Graças de Oliveira Oliveira de Oliveira Oliveira Oliveira Oliveira de Oliveira Oliveira de Oliveira Oliveira de Oliveira Pereira de Oliveira de Oliveira Oliveira de Oliveira (Licurì) Oliveira da Silva Oliveira Neto Vasconcelos Silva Oliveira Oliveira Oliveira Oliveira da Silva da Silva da Silva da Silva
Oliveira Oliveira Oliveira Oliveira
+

Penitente

[__]
Josilene Joabson Josimeri Joanderson Guttemberg Crislaine Isaia Williane Juraci Caio Kaina Indira Maria Gabriela Karame Isabel Keliane Otavio Vitória Antonio Kauá Laika Jovana Geórgia Maria
sub Gomes de Gomes de Gomes de Gomes de Manoel de Teresa de Oliveira Oliveira da Melo de Melo de Carlos de Lucas Oliveira Andrade de Andrade de Iara Raquel Hiw an Gabriel Edson Flavia Ricardo Magna Edicarlos Dagna
da Silva Monteiro de da Silva da Silva
cacique Almeida Almeida Almeida Almeida Oliveira Oliveira da Silva Silva Oliveira Oliveira Oliveira Vasconcelos Vasconcelos
Vasconcelos Oliveira Oliveira Oliveira

[__]

ex chefe
do Posto
111

DIAGRAMA IX

José Monteiro Lindaura Lurdes


Maria da Luz (Jusa Aleijada
Rosa Binga) (Calú)
Julião

Especialista
ritual

Danares Mauricio Maria José Neta de Pedro Ze Luis José Luis


Eugenio Maria Roberto Cicera José Maria Maria Cícero (dos Antonio Luis (dos Francisca Monteiro Manoel Monteiro Nilda da Silva
[_ ] Monteiro de Lino (de Monteiro (de Monteiro da Monteiro Vermelhos) Monteiro Monteiro Vermelhos) Monteiro Filho Martin (Tiú)
(Binga) Martin) Martin) Saúde

Liderança

Letícia Rivaldo Roseane Rosele Keli José


Monteiro

Falta última geração


112

DIAGRAMA X
1914

Joaninha Manoel
(de Monteiro da Luz
Agustinho) (Manoel Binga)
Especialista
ritual

+
Zé Dida Nalva Noemia Zé Carmelita Manoel Maria Benicio Cristina ? Santa
Penitente Monteiro Monteiro Brais Monteiro Quirino do Monteiro Monteiro
Carmo

Erivania

[__]

sub Antonia Lurde Paulo Cicero Antonio Roseneide Marcus Cristina Luis Joana Marcelo Regiane
cacique Monteiro Monteiro Monteiro Monteiro
da Luz

Falta última geração


113

DIAGRAMA XI
Rosa Maria Manoel
de Jesus José da
(Rosa Binga) Cruz

Especialista
ritual
Fausto Antonio Joana Teresa José Nivaldo
Cícero Maria Delmiro Socorro Severino Lidia Pedro Nega Maria Monteiro Maria das José Nana Manoel Maria Ramos
Manuel Helena Manuel Manoel Manoel José da da Silva Dores da Manoel da Cruz da Cruz Andrade
da Cruz de Jesus da Cruz da Cruz da Cruz Cruz Cruz da Cruz

Flavia Simonica Genison Jessica Talia Geize Tatiana


Cezar Ilane Tales Andrade Andrade
Cruz Cruz Andrade Cruz Cruz Cruz
114

Capítulo III. O conselheiro e o “grupo carismático”

Numerosos estudiosos126 que abordaram os movimentos definidos na maioria dos


casos “messiânicos”, “milenaristas” ou ainda “rústicos” 127 contribuíram com diferentes
abordagens à análise das dinâmicas políticas, sociais e religiosas que os impulsionaram,
distanciando-se das interpretações que os descreviam como expressões desviantes e
patológicas de fanáticos exaltados.
De acordo com Weber (1983), para compreender a instauração de uma relação de
dominação de natureza carismática é preciso investigar interesses, valores e conhecimentos
do “grupo carismático”, não sendo suficiente abordar apenas a atuação de seu líder.
Interessa-me, então, aproximar-me dos múltiplos aspectos que determinaram a
convergência e a mobilização de parcelas de Pankararu a partir da peculiaridade de sua
organização social e política. Não pretendo estabelecer a originalidade deste ou de outros
movimentos, isto é, se foram impulsionados por determinantes endógenos ou exógenos,
numa perspectiva que contemple a contraposição entre “tradicional” e “moderno”,128 mas
recuperar os sentidos que os índios dão a esses processos.
Para tal propósito, valho-me do caminho trilhado por Oliveira Filho (1988, 2000)
que, ao analisar o processo que levou à rápida concretização da reserva indígena Ticuna
em 1942, evidencia a importância de se tomar em consideração não apenas as ações e as
interpretações das agências que interatuam com os índios, mas também as interpretações
destes últimos. O autor destacou que, em momentos de fortes transformações em virtude
da presença de agências como o órgão indigenista ou de missões religiosas, reativava-se
entre os Ticuna uma mensagem salvacionista que se tornava o motor impulsionador da
ação (2000). As atividades disciplinadoras que visavam à integração e à assimilação dos
índios promovidas pelo membro da agência indigenista, chamado pelos índios Manuelão,
foram interpretadas pelos Ticuna como sinais de reaproximação dos “imortais”, entidades
126
Entre tais estudos, ressaltamos os trabalhos de Pereira de Queiroz (1965), Della Cava (1976), Teixeira
Monteiro (1974), Zaluar (1979).
127
A definição de “rústico” é usada por Pereira de Queiroz (1965) como indicador de uma genérica cultura
que teria adaptado elementos portugueses, indígenas e negros.
128
Expoentes da vertente histórico-religiosa italiana (Lanternari, 1977; Mazzoleni, 1993) preocuparam-se
com a classificação dos movimentos “neobrasileiros”, evidenciando os impulsos endógenos ou exógenos que
os teriam caracterizado. Os interesses desses autores concentravam-se nos processos de ocidentalização que,
embora não de forma explícita, inspiravam-se nas teorias sobre aculturação, tomando os movimentos
milenaristas como resposta às ideologias apocalípticas introduzidas pelos ocidentais.
115

da própria cosmologia que, em virtude da decaída das regras morais, decidem ciclicamente
se afastar dos índios. Oliveira Filho (2000) ressalta que há entre os Ticuna uma narrativa
padronizada e tradicional em que se anuncia o iminente fim do mundo, seguido pelas
orientações dos imortais que lhes indicariam o caminho da salvação. O mesmo Manuelão
foi visto pelos índios como um enviado dos imortais, daí a grande autoridade que lhe foi
conferida e a forte adesão às propostas de reforma dos costumes e da organização política
por ele imposta (2000, p. 298).
Embora as circunstâncias aqui focalizadas sejam muito diferentes, aspectos
relativos à concretização desses movimentos envolvendo coletividades que têm uma
organização política acéfala são considerados relevantes, bem como as características
cosmológicas que possam legitimar a ação de figuras carismáticas tidas como entidades
divinas. A tais aspectos somam-se aqueles pragmáticos da situação vivenciada, que serão
também tomados em consideração.

3.1 Pedro Batista: trajetória de um conselheiro

Se hoje entre os Pankararu o culto aos padrinhos (Cícero, Pedro Batista e o Velho
de Inajá) e à madrinha Dodô está sensivelmente vivo entre os grupos de penitentes, isto
não significa que esteja ausente dos outros grupos rituais e da população em geral. Há de
fato uma menor incidência entre os jovens que estão particularmente envolvidos nas
práticas rituais da tradição indígena, empenhados na sua valorização e no seu
enaltecimento, assim como no das próprias entidades. Contudo, os padrinhos continuam
sendo venerados, seus conselhos e curas almejados por uma grande parcela da população,
alcançados hoje através dos sonhos e das visões de especialistas rituais.
O Nordeste foi palco de inúmeros personagens que peregrinavam pela região,
escolhendo uma vida errante, vivendo de esmola e pregando os caminhos para a salvação
das almas ante o iminente fim do mundo. Muitos deles se tornaram figuras de destaque,
chegando a organizar grandes coletividades que viviam sob seus mandos, encontravam-se
estruturados em confrarias e eram perseguidos pela Igreja e pelos oligarcas da região,
como foi o caso de José Lourenço e Antonio Conselheiro, que tiveram um fim trágico
116

junto a seus seguidores. No entanto, alguns desses personagens não alcançaram a mesma
fama, como Pedro Batista, que entre os Pankararu encontrou uma parcela de seguidores.129
Antes de abordar a específica relação que este conselheiro teve com os Pankararu e
analisar as narrativas que iluminam o papel a ele atribuído, é preciso entender quem era
Pedro Batista e, sobretudo, que tipo de atuação e quais estratégias adotou para concretizar
seus objetivos sem sofrer o trágico destino das figuras acima mencionadas.
Pedro Batista da Silva130 (?-1967) nasceu em Água Branca (Alagoas), mas a família
precisou se deslocar para Pernambuco por causa dos conflitos que haviam se formado com
outros grupos familiares na tentativa de conquistar o domínio político local. Ainda jovem,
em torno dos 17 anos, serviu ao Exército, sendo deslocado para Foz do Iguaçu e Ponta
Grossa. Posteriormente, exerceu vários serviços, empregando-se como marinheiro e
estivador no Rio de Janeiro e em Santos, pescador e agricultor em Paraguaná, até decidir
voltar definitivamente ao Nordeste – após ter tido visões que lhe indicaram a “missão” a
ser cumprida (Pereira de Queiroz, 1965, p. 273) – e começar a sua peregrinação.131 Nos

129
Não foi possível fazer uma estimativa numérica da adesão a este movimento. Pelas narrativas dos mais
velhos, quando indagados sobre este assunto, a adesão parece ter sido de grande porte, não em termos de
deslocamentos para Santa Brígida, mas pelo vínculo 3estabelecido com o movimento e a contribuição ao
projeto do padrinho, no papel de seguidores e trabalhadores.
130
As informações sobre a biografia do padrinho são escassas. Algumas são oferecidas na obra de Pereira de
Queiroz (1965), que realizou a sua pesquisa nos anos 55, 56 e 58 em Santa Brígida, quando o padrinho ainda
estava vivo. Outras informações encontram-se nos vídeos O Povo do Velho Pedro (1967), cujo diretor era
Sergio Muñiz, e Pedro Batista: o Conselheiro que deu certo (1998), de Paulo Lafene; e na recente
dissertação de González (2004). Outras informações me foram fornecidas pelos índios e os moradores de
Santa Brígida e pelos romeiros ali instalados, embora, como se verá, ignorem, na sua maioria, as vicissitudes
da vida do padrinho.
131
Segundo Riedl (2007), Pedro Batista teve suas primeiras visões ao observar uma versão ilustrada da
Missão Abreviada, sendo ele analfabeto. Trata-se de um livro exegético que foi muito usado como
instrumento de catequização a partir da segunda metade do século XIX. Ter-se-ia tornado um dos textos mais
lidos nos ambientes rurais de Portugal e Brasil, acompanhando padres e missionários lusitanos em suas
atuações, e adquiriu destaque em Canudos e no Cariri, divulgado pelos padres Ibiapina e Cícero. A autoria é
do padre português Manoel José Gonçalves Couto, que conseguiu a primeira publicação em 1859. Em 1868
alcançava já sua sexta edição e, em 1904, a 16ª (Riedl, 2007). Como o próprio autor do texto adverte em
nota, o livro é repleto de repetições, afirmando “porque assim o quero, para que fiquem mais gravadas na
memória de quem as lê ou ouve ler” (Couto, 1868, p. 8). A redundância, portanto, foi estrategicamente
utilizada ao longo do texto como instrumento mnemônico para auxiliar quem lesse e, sobretudo, quem
ouvisse os seus conteúdos. “Meditações” e, especialmente, “Instruções” compõem o texto com um sem-fim
de reiterações que preconizam o iminente fim do mundo. Destaca Riedl (ibidem) que a obra, a partir do
começo do século XX, perdeu o respaldo das instituições eclesiásticas, começando a ser percebida como um
obstáculo à modernização da Igreja e, sobretudo, uma ameaça à sua hierarquia, tendo-se tornado um
instrumento poderoso nas mãos dos laicos. O conteúdo do texto era transmitido por beatos e pregadores
laicos – investidos de legitimidade que se apoiava na “antiguidade dos mandatos”– de forma confidencial,
através de uma comunicação direta e performática (ibidem). Parece-me significativo que em alguns grupos de
penitentes da região Nordeste, como é o caso das irmandades presentes em Barbalha e Juazeiro do Norte, a
referência ao texto é pública, afirmando-se a validade dos mandamentos ali contidos. Entre os penitentes
Pankararu e em Santa Brígida, segundo Riedl, tende-se a ocultá-lo, o que o torna um símbolo condensador de
segredos poderosos.
117

primeiros anos da década de 1940, Pedro Batista atravessou diversos estados do Nordeste
(Sergipe, Pernambuco, Alagoas e Bahia), peregrinando, pregando e curando, alcançando
assim rapidamente visibilidade e fama. Era procurado para bênçãos, curas, remédios ou
rezas. Segundo Pereira de Queiroz (1965, p. 273), recorriam a ele pessoas de toda classe
social, até chefes políticos das localidades por onde passava.
A fama rapidamente alcançada despertou a desconfiança tanto dos eclesiásticos
como dos médicos, que o acusaram de charlatanice e curandeirismo, pressionando as
autoridades para que interviessem contra o penitente pregador (ibidem, p. 273). Pedro
Batista sofreu perseguições e foi repetidamente expulso de diversos municípios, tendo sido
preso várias vezes.132 As perseguições e a vida errante acabaram quando chegou a Santa
Brígida em 1945, onde encontrou o apoio do coronel João de Sá, que então detinha o
domínio político na região. Após ter sido apurado que Pedro Batista não representava uma
ameaça ao próprio poder e de se ter percebido que, pelo contrário, ele podia ser um aliado
válido para mantê-lo, o coronel deixou-o fixar-se na então pequena localidade, que recebeu
também o fluxo de peregrinos que se deslocaram de diversos lugares do Nordeste para
viver sob a proteção perpétua do padrinho (Pereira de Queiroz, ibidem, p. 303).133
Grato pelo apoio recebido do coronel, Pedro Batista tornou-se seu sustentador
político. Com efeito, os romeiros que se instalaram em Santa Brígida obedeciam a todos os
mandos do padrinho, inclusive aqueles relativos às escolhas dos candidatos políticos,
como no caso do ex-prefeito Lindoaldo Alves de Oliveira, que esteve no cargo entre 1966
e 1970.134
Foi ele que me elegeu. Nesse tempo só ganhava quem ele indicasse. Era
tudo dele. Eu fui candidato único. Me convidou na última hora, pra me
indicar. Ele me botava para acabar com todos esses bandidos que tinha
aqui. Aqui tinha um que era da minha própria família, Pedro Grande, era
o chefe mesmo. Ele fez 52 crimes. Aí o Castelo Branco mandou fazer
volantes, sabe? Aqui se matava por diversão, e desonravam
impiedosamente. Seu Pedro tinha esse poder, mas não queria nada para

132
Segundo Lindoaldo Alves de Oliveira, o ex-prefeito, Pedro Batista teria sido preso em Água Branca
(Alagoas), Águas Belas (Pernambuco) e Canindé de São Francisco (Sergipe).
133
Pereira de Queiroz (1965) argumenta que, durante o primeiro período de permanência em Santa Brígida,
os moradores baianos inicialmente não aceitaram o beato e fizeram repetidas denúncias contra sua pregação.
A perseguição acabou em virtude da intervenção do coronel João de Sá, que se dirigiu pessoalmente a
Salvador para garantir ao governo que o beato era inofensivo e até útil para seus propósitos (p. 303).
134
Segundo Gonzalez (2004), a eleição anterior, realizada em 1962, quando Santa Brígida havia sido
emancipada recentemente, foi ganha por Zenor Pereira, também por indicação de Pedro Batista. Zenor
chegou a Santa Brígida em 1959 e desempenhou o papel de funcionário do Instituto Nacional de Imigração e
Colonização. Em 1958 já havia sido indicado pelo padrinho nas eleições a vereador em Jeremoabo, sendo ali
também eleito (p. 10).
118

ele, tudo era pro povo dele. Os beatos eram dele, o povo era dele [...] O
coronel João de Sá foi quem manteve ele aqui. Porque quando ele chegou
aqui, a polícia não queria, era tempo de ditadura e o chefe da polícia não
queria, mas ele caiu no mesmo ano de 45. O coronel chegou a ser vice-
governador, a maioria das decisões políticas do partido PSB era dele, que
era coligado ao PTB de Getúlio Vargas.135

Os seguidores do padrinho tornaram-se os principais eleitores do coronel, o que


significou a derrota de uma emergente oposição (Queiroz, 1965, p. 303).
Durante o Estado Novo, os líderes religiosos e as coletividades que eles formaram
sofreram perseguições e cruentas matanças, como no caso de Caldeirão e Pau de Colher
(Pompa, 1995). No início da década de 1940, a peregrinação de Pedro Batista despertava o
alerta da segurança policial local que respondia ao governo centralizador de Getúlio
Vargas e que seguia as ordens de extinguir qualquer movimento religioso que tivesse
características parecidas com os mencionados acima, percebidos como subversivos
(González, 2004). A chegada de Pedro Batista em Santa Brígida antecedeu em poucos
meses a queda do Estado Novo, que se concretizou no mesmo ano. O encarregado da
segurança pública do município de Jeremoabo – do qual Santa Brígida era então um
pequeno distrito – durante a época de Vargas, era o capitão Felipe Borja de Castro, que
tentou impedir o estabelecimento do padrinho e de seus romeiros na região sob sua
responsabilidade. Após a queda da ditadura, o capitão foi transferido e Pedro Batista, com
o apoio do coronel João de Sá, pôde permanecer sem temer outras perseguições.
Ele se tornou o principal líder político de Santa Brígida, incrementando seu poder
econômico e o dos oligarcas aliados: arregimentou mão de obra para trabalhar
gratuitamente nos latifúndios; conseguiu recrutar arrendatários de terra, elevando assim a
situação financeira dos proprietários; comprou e conseguiu em doação lotes que foram
distribuídos entre seus adeptos; as esmolas acumuladas possibilitaram-lhe financiar
empreendimentos de cultivos de produtos anteriormente inexistentes na área, como
algodão, melancia e verduras, estimulando também seu comércio (González, 2004). O
desenvolvimento agropecuário da região foi viabilizado pela formação de mutirões –
chamados “batalhões” – que transformaram matas extensas em áreas cultivadas.

135
Lindoaldo participou ativamente do golpe militar de 1964 e, por ter contatos e “amizades” com diversos
políticos, conseguiu manter sua posição de destaque, o que deve ter incentivado Pedro Batista a escolhê-lo
para desempenhar o cargo de prefeito, obtendo assim seus favores. Estabeleceu-se então uma relação de
interdependência entre o padrinho e os políticos locais, estes últimos vendo nele a possibilidade de realização
dos próprios objetivos, e o padrinho tendo finalmente a tranquilidade de cumprir com sua “missão” até então
interditada.
119

Estabeleceu disciplinas rígidas de trabalho coletivo que os índios-romeiros que ali se


estabeleceram não praticavam anteriormente, aportando então mudanças significativas nas
formas organizativas e econômicas dessas coletividades (González, ibidem, p. 87).
Zé Binga contou sobre a participação do pai, Antonio Binga, em diversos
empreendimentos que o padrinho dirigia. Entre estes, a construção da Igreja de São Pedro
que, segundo o relator, teria criado atritos entre os clérigos de Jeremoabo e o padrinho.

Sei que meu pai estava lá todo ano, todo mês, todo ano e todo mês. Aí,
quando chegou um alerta, disse: “Pessoal, vamos fazer uma Igreja!”. E aí
construíram uma Igreja. Aí ele disse: “Agora vou mandar chamar o padre
de lá de Jeremoabo pra vir pra Igreja. Aí, o padre veio para celebrar a
missa dizendo que a Igreja era dele, que a Igreja era patrimônio. Aí ele
disse: “Não! A Igreja vai celebrar missa, mas a Igreja é dos meus
romeiros! Não é patrimônio, não! É dos meus romeiros. Olha, [isso] se
você quiser dizer a missa, se não quiser, eu mesmo celebro a missa,
porque eu tenho meu poder pra celebrar a missa!”. O padre ficou assim.
Aí sei que, quando fizeram a Igreja, juntou os romeiros todinho pra ir no
Juazeiro. Foram lá pro Juazeiro buscar o São Pedro de pé. Todo mundo
naquele tempo tinha muita fé, né? Aí todo mundo foi. [...] Aquele povão
de pé, mas andava um carro na frente. O pessoal caminhava e ia um carro
na frente. As cozinheiras com pé de alho se encostavam, cozinhavam o
feijão e, quando chegava ali, paravam, descansavam e andavam pra
frente. Aí pegaram o santo e levaram pra Santa Brígida. Agora, todo ano,
no dia de São Pedro, nós vira uma festa! Ali tem os guerreiros, o reisado,
tem os bacamateiros, tinha muitas pessoas ali. A Igreja cercava tudo,
faziam biscoitos, faziam tudo! Menina, era demais! E aí chamava gente
de todo lado e era uma festa! Mas depois que meu padrinho se mudou, aí
foi enfraquecendo.

Em pouco tempo Pedro Batista teria conseguido mudar sensivelmente a situação


econômica e demográfica do pequeno povoado de Santa Brígida136 que, à sua chegada,

136
Nos anos 40, Santa Brígida era ainda um pequeno povoado do município de Jeremoabo. São João Batista
de Jeremoabo – freguesia criada em 1718 – era anteriormente um aldeamento indígena, dos Tupinambá, sob
responsabilidade dos franciscanos entre 1702 e 1718 (Puntoni, 2000, p. 295). Segundo o relato do vigário
Januário José de Sousa Pereira (Palacin apud Gonzáles, 2004, p. 18), o território nos arredores da freguesia
contava com 152 fazendas, a maioria delas de propriedade da família D’Avila. Em 1816, o território do atual
município de Santa Brígida era conhecido como Fazenda de Itapicuru de Cima, a sesmaria de Joaquim José
do Bonfim, herdada do português Antonio Manoel de Souza, que havia se casado com a filha deste e cujo
nome era Brígida. Segundo Gonzalez (ibidem), a área de propriedade de Joaquim José do Bonfim foi sendo
tomada gradualmente por famílias que vieram ocupar as terras improdutivas sem a resistência do
proprietário. Somente com a Lei da Terra, em 1850, os pequenos agricultores que não dispunham de recursos
para comprá-las viram-se obrigados a se deslocar (ibidem, p. 20). Após a abolição da escravidão em 1888,
Santa Brígida teve nova afluência de trabalhadores, os libertos que procuravam se instalar em regiões menos
povoadas para viverem de agricultura de subsistência. Contudo, apenas na segunda década do século XX
Santa Brígida se consolidou como povoado, sendo sua população incentivada a se concentrar para defender-
se dos ataques dos cangaceiros e da polícia que atuavam na região. Como afirmou Pereira de Queiroz (1965),
Santa Brígida era particularmente renomada pela passagem de Lampião, além de ser o sítio natal de Maria
Bonita, futura companheira do cangaceiro. A autora (ibidem, p. 275) argumenta que, de 1944 até o período da
120

contava com um núcleo de poucas dezenas de casas. Em 1962 o desenvolvimento


alcançado elevou Santa Brígida a município, desligando-se de Jeremoabo.

3.1.1 Madrinha Dodô: conselheira e especialista da boa morte

Em Santa Brígida, o padrinho, além de contar com o auxílio de comerciantes e


administradores para o desenvolvimento de seu projeto, valia-se da assistência de outra
líder para juntos gerenciarem as diversas esferas do movimento dos romeiros: a madrinha
Dodô.137 Se bem que com menos repercussão que o padrinho, madrinha Dodô parece ter
desempenhado um papel fundamental no controle dos comportamentos morais dos
seguidores do movimento.138 Como já destacamos, ela foi a líder espiritual de Maria
Bárbara Binga e a principal incentivadora da constituição do grupo de mulheres penitentes
pankararu.
Maria das Dores (1902-1998), que os romeiros chamam carinhosamente de
madrinha Dodô, nasceu em Água Branca – como Pedro Batista – onde passou a infância.
Afirma a maioria dos entrevistados que era filha de índios daquele mesmo município e que
a família vivia em condições de pobreza. Ainda criança entrou na irmandade de beatas que
Cícero Joaquim Siqueira Torres (1852-1898) – capelão e um dos herdeiros da maioria das
terras do município – havia fundado, recrutando mulheres solteiras e pobres que pudessem
se dedicar inteiramente à vida religiosa (Riedl, 1996). O falecimento do capelão e a atitude
desconfiada em relação às beatas dos padres que se sucederam teriam deixado Maria das
Dores sem qualquer orientação (Riedl, idem). Esta autonomia conferiu-lhe maior liberdade

sua pesquisa na década de 1950, teriam ali se instalado 2.000 romeiros. Atualmente, residem no município de
Santa Brígida cerca de 17.000 pessoas, das quais um número exíguo mora no centro urbano e a maioria se
encontra espalhada pela área rural (IBGE, censo 2010).
137
Informações sobre a biografia da madrinha Dodô são, como as de Pedro Batista, bastante escassas.
Aquelas que aqui reuni foram oferecidas pelos romeiros e pelos colaboradores mais próximos da beata, como
Zezito e Maria das Virgens (em Santa Brígida) e dona Alzira e Maria Isabel (em Juazeiro do Norte), que
moram ainda na casa da madrinha, bem como através de conversas informais com Titus Riedl (professor do
Departamento de História na URCA), que desenvolveu pesquisa com os romeiros de Santa Brígida e Juazeiro
do Norte a partir de 1992, tendo tido a possibilidade de conhecer pessoalmente a madrinha Dodô e etnografar
as muitas atuações desta líder. Os dados recebidos informalmente estão contidos também numa comunicação
do mesmo autor na XX RBA (1996).
138
Além da madrinha Dodô, Pedro Batista, para desenvolver o rigor das práticas penitenciais, era coadjuvado
por Zé Vigário, outro beato e penitente que morava no povoado de Bandeira, pertencente ao município de
Santa Brígida. A casa de Zé Vigário é ainda meta de peregrinações dos romeiros. Como Pedro Batista,
poucas informações se tem sobre o transcurso da vida deste líder antes de sua chegada ao município.
121

de atuação, seguindo princípios alheios ao dogmatismo católico e diferenciando-se, assim,


das outras religiosas. Rezadoras com capacidade de incorporar espíritos e curar, as beatas
ganharam o reconhecimento do povo, que a elas recorria para sarar doenças. Segundo
Riedl (1996), houve um vigário, José Nicodemus, que atuou na região entre 1916 e 1932,
que lhes dedicou atenção, orientando-as nas atividades religiosas sem, no entanto, reprimir
– como a época exigia – as práticas menos ortodoxas. O vigário e as beatas mais velhas
teriam instruído a madrinha Dodô sobre novenas, rezas, benditos e penitências que ela
posteriormente enriqueceu, recebendo em sonho litanias e rezas. Mas a saída do vigário e a
chegada de um novo clérigo inauguraram o início das perseguições instadas pelo fervor
romanizante da Igreja.139 Nessa época, madrinha Dodô já havia viajado para Juazeiro do
Norte, onde morou na casa de padre Cícero, servindo como copeira e tornando-se sua fiel
romeira e colaboradora.
Após o falecimento de padre Cícero, a parceira de Pedro Batista em Água Branca,
para onde a madrinha voltara para cumprir suas obrigações rituais e fazer “caridade”, viu
nela ser despertado o desejo de ser a substituta de padre Cícero. Seguiu Pedro Batista na
direção de Santa Brígida. Residiu até a morte do padrinho em sua casa sem, no entanto,
deixar de viajar para Juazeiro do Norte. Com efeito, os romeiros afirmaram que madrinha
Dodô, após o falecimento de Pedro Batista, morou metade do ano em Santa Brígida e na
outra metade em Juazeiro do Norte.
Diversamente de Pedro Batista, a madrinha não teria desempenhado um papel
político e, no cotidiano de suas atividades, não lhe cabiam relações com chefes políticos,
limitando-se a mostrar-se complacente quando estes se dirigiam a ela. Suas competências
restringiam-se a oferecer conselhos sobre os comportamentos morais e a encaminhar os
romeiros para as práticas religiosas. Uma das suas colaboradoras mais íntimas afirmou:

Se meu padrinho doutrinava sobre o ponto de caridade, a madrinha Dodô


redobrava. Ela era de lutar muito em roça, trabalhar muito na roça,

139
O processo de romanização encontrou a Igreja concentrada na construção de estratégias contra positivistas
e protestantes na Europa, e tais procedimentos tiveram fortes repercussões no Brasil (Della Cava, 1976; Steil,
1996; Galvão, 2001), neste caso específico, no sertão nordestino. Assim, a ideologia dos bispos romanizados
baseava-se na noção de “purificação” dos “abusos” e “superstições” do “catolicismo popular” (Beozzo, 1977
apud Steil, 1996, p. 229), atuando por meio de uma política centralizadora. Em pleno processo de
romanização e principalmente após a proclamação da República, em 1889, tornou-se necessário controlar a
atuação das irmandades que, como o resto do laicato, dispensava os sacerdotes, na medida em que gozavam
de características autônomas, constituindo uma ulterior ameaça à Igreja já gravemente enfraquecida. As
práticas rituais que fugiam da ortodoxia eram negadas e perseguidas pelas elites católicas, que as
consideravam “supersticiosas” e fruto do “fanatismo”.
122

plantava de tudo, era feijão de arranca, feijão de corda, milho, mandioca,


macaxeira, batata, andu. Aí ela juntava essa turma de moças pra trabalhar
mais ela, eu mesma trabalhei muito com ela. Quando era o tempo de fazer
a farinha, aí ela tirava dois, três sacos de farinha, tirava um, dois de
feijão, de milho, de abóbora e levava pra Juazeiro pra dar na frente da
Igreja Nossa Senhora do Socorro, Nossa Senhora das Dores. E aí era
aquele roção de velho, de criança, tudo necessitado mesmo, sabe? E ela
distribuía para aquele pessoal (Maria das Virgens).

Se o padrinho mobilizava seus seguidores para trabalhar em mutirões, a madrinha


recrutava as mulheres para trabalhar nas plantações, aumentando assim a produção.
Pelos relatos dos seus seguidores, esta figura carismática mantinha uma atitude
humilde e reservada, dedicando-se fervorosamente aos assuntos mágico-religiosos, a fazer
“caridade”, a curar doenças e, sobretudo, a realizar trabalhos rituais para o cuidado com os
mortos e os moribundos. A capacidade especial de lidar com a dimensão da morte levou-a
a fundar, tanto em Água Branca quanto em Santa Brígida, uma irmandade de culto à Nossa
Senhora da Boa Morte, incentivando ainda sua propagação em Brejo dos Padres.140
Por sua capacidade de intermediação da esfera dos vivos com o além, madrinha
Dodô era procurada e auxiliava moribundos e “perturbados” por espíritos, além de se
dedicar à assistência dos mais necessitados e a “aconselhar” os romeiros que a ela e ao
padrinho recorriam. O dom da oração, entre outros mistérios alimentados em torno da
madrinha, suscita ainda comentários sobre a sua proximidade com as divindades. Através
dos sonhos, a madrinha recebia as orações e somente nos últimos anos da sua vida decidiu
escrevê-los com o auxílio de uma colaboradora.141
Pedro Batista delegava a alguns colaboradores – nos quais reconhecia dotes
espirituais – o comando e a organização das atividades rituais. Embora fosse o seu
principal incentivador, os romeiros afirmaram que ele dificilmente assistia a elas. O auxílio
da madrinha Dodô permitia a Pedro Batista dedicar-se mais intensamente aos cuidados de
afazeres econômicos e políticos voltados para garantir, por um lado, as necessidades
básicas dos romeiros e, por outro, a manutenção do coronelismo.

140
O culto à Nossa Senhora da Boa Morte em Brejo dos Padres será descrito no Capítulo VIII.
141
Um pequeno texto que reúne as principais rezas e os benditos compostos pela madrinha Dodô é divulgado
em Santa Brígida e em Juazeiro do Norte.
123

3.2 Os índios-romeiros e o padrinho: a “communitas normativa”

As curas e os conselhos bem-sucedidos de Pedro Batista, disseminados nas suas


peregrinações, foram fortes incentivos para inaugurar o fluxo de migrantes que se
instalaram em Santa Brígida. A maioria dos romeiros que para ali foi origina-se do estado
de Alagoas, onde Pedro Batista mais encontrou seguidores. Ainda hoje, muitos romeiros
daquele estado deslocam-se para Santa Brígida na ocasião das festividades, sobretudo para
as festas de São Pedro, de São Gonzalo e nas datas de celebração da morte do padrinho e
da madrinha Dodô. Muitos desses romeiros são índios pertencentes às pontas de rama
pankararu e com este grupo se encontram nessas ocasiões festivas, bem como nas romarias
com outros destinos: Juazeiro do Norte (Ceará), Inajá (Pernambuco), Bandeira (Bahia).142
Há também romeiros provenientes dos estados de Pernambuco e Sergipe e baianos de
outros municípios.
Diversamente dos romeiros que se transferiram para os locais onde os padrinhos
lhes ofereciam proteção, a maioria dos Pankararu que residia na área indígena ficou na
própria terra. À parte alguns,143 como Nenê de Bela que se deslocou para Santa Brígida
para trabalhar nas plantações de algodão de Pedro Batista, os outros que seguiam seus
conselhos decidiram permanecer na aldeia, mas participavam ativamente dos mutirões e
dos outros empreendimentos promovidos pelo padrinho. Tal escolha foi determinada, por
um lado, pelas possibilidades de ver reconhecido o direito de permanecer nas terras do
antigo aldeamento em virtude da recente intervenção do órgão indigenista. O mesmo Pedro
Batista os teria incentivado a ficar na área indígena, que dizia ser um “lugar abençoado por
Deus”.
Diversamente de padre Cícero, com quem os índios tiveram relações distantes, o
padrinho Pedro Batista foi uma presença concreta entre os Pankararu, e muitos desejavam
tê-la dentro da própria aldeia. Foi justamente nos primeiros anos da instalação do órgão
indigenista, no início da década 1940, que Pedro Batista, nas suas peregrinações pelo

142
Relações de parentesco entre os Pankararu, as pontas de rama e os romeiros que se estabeleceram em
Santa Brígida não foram detectadas durante a pesquisa, embora muitos se identificassem como parentes.
Como se descreverá no Capítulo VIII, há contínuas visitas entre as coletividades que participam desta rede de
relações, a qual pode – ou não – representar a base potencial de novas emergências étnicas.
143
Alguns índios afirmaram que Pedro Batista, após sua passagem por Brejo dos Padres, teria levado consigo
muitos seguidores. Contudo, nenhum dos entrevistados conta com parentes em Santa Brígida. Somente Dona
Verônica, uma das chefes do grupo de mulheres penitentes, tem uma prima, Nenê de Bela (também da
família Serafim), que foi seguidora da madrinha Dodô e colaboradora próxima, tendo escolhido viver em
castidade como a madrinha desejava.
124

Nordeste, passou por Brejo dos Padres, manifestando o desejo de ali permanecer. Como já
mencionamos, sempre que o padrinho passava pela aldeia era recebido e hospedado por
Maria Bárbara Binga – a fundadora do grupo de mulheres penitentes – ou pelo tio dela,
Antonio Binga. Tê-lo como hóspede na própria casa era considerado um privilégio divino,
e sinal de benefícios certos. A notícia da presença do padrinho na aldeia estimulou
espontâneas romarias em que os seguidores se dirigiam à casa do hospedeiro para receber
bênção e conselhos.
No entanto, a permanência na aldeia – desejo que Pedro Batista teria manifestado –
foi contrariado pelo então chefe de Posto, que o expulsou. Amélia Julião – atual chefe do
grupo de mulheres penitentes – ofereceu sua explicação para os fatos ocorridos.

Aí os homens eram muito obedientes, os romeiros eram muito


obedientes. Os índios nesse tempo deixaram o chefe tirar ele daqui [...].
Era o chefe do Posto que não queria ele aqui. E o índio muito tolo! Eu
pensei: agora vem a guerra, e não! Os índios obedeceram a ele, e [o
padrinho] saiu; ele mandou sair, que ele não podia ficar aqui, aí ele saiu.
Ele confiou que meu padrinho não era índio, pensava que era qualquer
um, né? Ele era um homem conselheiro, aí ele passou na Tapera, deixou
até recado que lá não era pra chamar Tapera, Tapera é coisa ruim. Era pra
chamar Boa Vista. E andou [por] aqui, e ele botava bença em todo
mundo, e ele ajudava [com] conselho. Muita gente seguia o conselho
dele, não andar na cachaça, não andar com briga, todo mundo irmão.

A interlocutora sublinha a exagerada obediência e a fraqueza que teriam


manifestado os índios-romeiros (usa estas categorias alternando-as) diante das decisões do
chefe de Posto. Embora esta afirmação seja fruto de uma visão a posteriori expressada
para julgar fatos do passado, demonstrando agora insatisfação pelas escolhas feitas e pelas
consequências que teriam provocado, as palavras de dona Amélia e de outros
interlocutores deixam transparecer que, na época em que o SPI se instalou na área, o apoio
por parte dos índios ao órgão – pelo menos nesta circunstância – não era generalizado,
existindo uma parcela que se opunha à saída do Pedro Batista, que representava um
poderoso conselheiro e curador.
Agenor Julião, ao falar sobre o período em que o mais prestigiado chefe de Posto –
Orínculo Castelo Branco Bandeiras – atuou na área, explicitou a sua versão da postura
deste diante do líder religioso, argumentando sobre a ignorância que os membros do órgão
indigenista demonstraram em relação às crenças dos índios e que fazia com que tomassem
decisões que as desrespeitavam.
125

Nesse período chegou Pedro Batista, mas aqueles que chegavam de lá, do
Rio de Janeiro, entendiam somente de burocracia e nada das outras
coisas, e manda[ram] aquele se retirar como forasteiro, tratando ele como
os outros que chegavam aqui. O chefe pouco entendia de religião, nem
queria saber desse negócio de curar, de rezar, de dar conselho. Pra ele, o
padre da Igreja é suficiente e mais nada. Os índios acataram porque o
chefe tinha Corte Suprema, era época de ditadura, ditadura do chefe do
Posto. Ditadura de ordem: dar e cumprir. Ninguém pôde contestar e ele
teve que se retirar. Mas ele fez muita amizade e levou muita amizade [...].
A maioria concordava, porque [havia] a reivindicação que os índios
fizeram, aquela ansiedade da terra demarcada, e houve motivo de
perseguições, de índios serem desterrados daqui por chefes de fora, por
policiais caçando aqueles que davam respaldo a Lampião. Aí o índio
acatou porque o SPI acabou com as perseguições, mas aí o Castelo não
queria nem saber quem era Pedro Batista. Pra ele, era um forasteiro que
nem os outros que chegavam aqui, e mandou ele se retirar.

Pode-se perceber que o órgão tutelar, no período de sua instalação na área, gozou
de vasto apoio da população indígena, dando-lhe a possibilidade de ver reconhecido o seu
direito a terra e de sair da situação anterior de dominação e perseguição. Embora houvesse
o entusiasmo manifestado pela atuação do chefe do Posto Castelo Branco, cuja valentia é
sobremodo acentuada pelos índios, este carecia – como todos os outros encarregados do
SPI que se seguiram – das características éticas e religiosas fortemente valorizadas pelos
Pankararu. Nenhum deles teria tampouco demonstrado interesse em compreender suas
crenças e valores, tanto que, como afirma Agenor, a presença esporádica de um padre era
considerada suficiente para satisfazer as exigências espirituais dos índios. Mesmo não
tendo sido encontrada menção, na documentação do SPI,144 à passagem de Pedro Batista
(portanto, não tivemos acesso aos motivos claramente explícitos que incentivaram o chefe
do Posto a optar pela expulsão do padrinho), a hipótese de que a decisão foi motivada
unicamente por ele ser um não índio parece-me insuficiente.
Agenor ofereceu outra explicação. Ao perceber o crescimento de seguidores de
Pedro Batista, Castelo Branco teria ficado alarmado e considerado a possibilidade de se
tratar de um movimento messiânico. A hipótese a ser tomada em consideração é que o
chefe do Posto teria ponderado sobre as consequências negativas que tal movimento podia
provocar em relação ao êxito dos objetivos do órgão indigenista. Com efeito, o padrinho
representava uma autoridade ameaçadora à medida que se transformava em um potencial
concorrente do chefe do Posto e levava com ele parcelas de índios para trabalhar nos

144
Nos microfilmes sobre a documentação dos primeiros anos de atuação do SPI – consultados no arquivo do
Museu do Índio, no Rio de Janeiro – não foi encontrada qualquer referência à passagem de Pedro Batista.
126

mutirões em Santa Brígida. Seus fiéis seguidores atribuíam ao padrinho uma autoridade
superior a de qualquer chefe de Posto.145 Percebido como um enviado divino, os conselhos
do padrinho tornavam-se ordens a serem cumpridas.
Segundo os interlocutores que foram indagados sobre a postura de Pedro Batista em
relação às orientações fornecidas pelos chefes do Posto, ele nunca teria se manifestado
contra qualquer atitude tomada por essas autoridades, incentivando ainda seus seguidores a
obedecerem aos seus mandos. A atitude adotada por Pedro Batista nas suas peregrinações
caracterizou-se por uma estratégia de complacência voltada às autoridades (chefes políticos
locais e clero), tentando se salvaguardar das perseguições, embora estas não faltassem.
Suas intenções não se concentravam em promover mudanças radicais no sistema político
vigente, ou tampouco procedeu para deslegitimar de diante seus seguidores a autoridade do
clero. Como se verá mais adiante nas narrativas dos romeiros, o padrinho, embora as
relações tensas com alguns chefes políticos e com a Igreja limitassem o avanço da sua
“missão”, ordenava a seus fiéis obedecerem pacientemente, incentivando-os a ter um
comportamento humilde e resignado e desaprovando qualquer manifestação de violência e
rebelião contra o status quo.
Ele seguiu mantendo essa atitude quando se instalou em Santa Brígida, onde podia
controlar com mais rigor o seu rebanho, orientando-o em todos os aspectos da vida social
pública e da mais privada e íntima. Exigia comportamentos morais rígidos e não admitia
qualquer iniciativa vingativa, disponibilizando-se pessoalmente para solucionar conflitos e
reparar injustiças se alguém se queixasse de tê-las sofrido. Seus conselhos eram cobiçados
e abrangiam não apenas os comportamentos morais, mas qualquer empreendimento,
sobretudo aqueles relativos ao cultivo, e também os aspectos mágico-religiosos.146

145
“O governo” como instância superior e distante, segundo Arruti (1996), teria sido percebido como um
“pai” a partir de uma lógica ético-religiosa em que os tutelados teriam de volta os “direitos” e seriam
isentados do conflito direto com os dominadores (p. 84). Os índios fizeram leituras múltiplas dos fatos que
ocorriam, bem como das agências de contato, comparando suas atuações políticas e morais. O amplo apoio
ao órgão indigenista procedia do reconhecimento de que seus membros e os intelectuais que ajudaram a
consolidar a “tutela” dos índios eram homens “sábios”, “estudados” “os que sabem de tudo” e que, portanto,
podiam auxiliá-los a ter seus direitos. Mas a “tutela” do padrinho procedia de uma ordem divina, e sua
capacidade de organizar, aglutinar e disciplinar era bem sucedida.
146
Em virtude do reconhecimento dos poderes divinos do padrinho, Antonio Binga, que todos consideravam
ser um pai de praiá com especiais poderes mágicos, levou para Pedro Batista a semente mestre (no Capítulo
IV se tornará claro o processo que envolve o reconhecimento de um encantado), para que o padrinho
expressasse a sua opinião e a avaliasse a partir de sua sabedoria divina. Para os Pankararu, tal gesto expressa
a atribuição de poderes extraordinários, na medida em que somente os especialistas rituais indígenas podem
reconhecer as verdadeiras sementes, e Antonio Binga era considerado como tal. O fato de ele ter levado a
semente a Pedro Batista gerou comentários diferenciados entre os interlocutores. Houve quem manifestasse
certo desconforto, afirmando que as sementes não deveriam sair da aldeia e menos ainda cair em mãos não
127

O padrinho não somente exigia uma disciplina moral rigorosa, como a encarnava
na própria conduta. Para perpetuar a legitimidade da autoridade que lhe conferiam, atuava
conforme os valores que pregava.147 Os comportamentos austeros exigidos pelo padrinho e
pela madrinha diziam respeito a proibições de relações promíscuas, aos atos de vingança e
também aos “vícios”. Era proibido beber, fumar, jogar e brigar. O romeiro, para ser
reconhecido com tal e gozar da tutela dos padrinhos, precisava ater-se a tais proibições. Os
Pankararu afirmaram que o padrinho reconhecia o direito de fumar o cachimbo unicamente
aos índios. “Ele sabia que nós não fuma, nós desfuma e vai para o céu. Esse não é vicio, é
outra coisa que só índio sabe”, afirmou Maria Severina, penitente e rezadora.
Pereira de Queiroz (1965) argumentou que fora alguns indivíduos isolados que se
mudaram para Santa Brígida, na maior parte dos casos o fluxo de romeiros era
caracterizado por grupos familiares. Muitos deles traziam todos os seus pertences ou o
dinheiro que resultara da sua venda, doando-o ao padrinho para que ele o administrasse.
Cada grupo familiar trazia também o conhecimento de cultos diferenciados que o
padrinho e a madrinha Dodô incentivavam a desenvolver, reconhecendo-lhes a validade e
contribuindo economicamente para o bom êxito dos eventos rituais. Tal aspecto merece ser
destacado em virtude da possibilidade oferecida às famílias de dar continuidade aos
próprios cultos, dada as perseguições que sofriam provenientes, sobretudo, da Igreja
Católica. Os índios enfatizaram sobremodo esta postura do padrinho e da madrinha,
mostrando-se a favor das próprias práticas rituais. Assim como os Pankararu que se
sentiram acolhidos e incentivados a apresentar seus rituais com os praiás, dançando toré
nas diversas festividades do calendário que se desenvolviam em Santa Brígida, os outros
grupos rituais eram convidados a delas participarem. Em Santa Brígida a conjunção das

índias. Houve também quem, contrariamente, manifestasse admiração pela atitude humilde de Antonio Binga
que, embora tendo grandes poderes de cura, reconheceu os poderes superiores de Pedro Batista. Como em
outras circunstâncias, aqui temos duas versões que espelham as posições divergentes que envolvem as
disputas relativas aos segmentos do tronco Binga e ao relacionamento que estes entretêm com coletividades e
agentes externos ao grupo étnico.
147
Como observado por Weber (2004), quando da instauração de dominações carismáticas em que figuras de
profetas se tornam guias de movimentos religiosos e políticos, estes precisam se apoiar nas virtudes morais
pessoais que devem ser confirmadas em si mesmos e demonstradas a seus adeptos (p. 306-307). Observação
parecida é a de Bourdieu (2002), que explicita que este tipo de dominação vê os dominantes necessariamente
interessados nas virtudes: “eles só podem acumular poder político cumprindo seus deveres e não somente
redistribuindo seu dinheiro e bens; eles devem ter as virtudes de seu poder, já que seu poder só poderá apoiar-
se na virtude” (p. 209).
128

diversas famílias resultou na convergência de diferentes cultos148 naquela localidade, cuja


aparente harmonia foi estrategicamente orquestrada pelos líderes religiosos.
A categoria romeiro permitiu o agrupamento de indivíduos e grupos heterogêneos.
“Os romeiros se reconhecem”, afirma sem hesitação quem nela se identifica, indicando os
atributos necessários para participar do mesmo orgulho. Sob a categoria unificadora de
romeiros, os diferentes grupos obedeciam a seus líderes, que não permitiam que
diferenciações étnicas, de classe ou de pertença familiar se transformassem em motivo de
discrepância ou conflito. Por um lado, acolhiam a diversidade de indivíduos que chegava à
localidade, oferecendo-lhes apoio e o reconhecimento dos serviços religiosos; por outro
lado, precisaram conter os conflitos derivados do objetivo que cada grupo familiar tinha de
aumentar o próprio prestígio, recrutando ao seu redor o maior número de adeptos. As
diferentes manifestações rituais e os cultos levaram os líderes religiosos a promover a ideia
da necessidade de cada uma como uma especialização distinta, em busca do mesmo
objetivo, sem que nenhuma delas tivesse posição privilegiada em relação à outra, criando,
assim, relações horizontais. Tais manifestações veiculavam também interpretações diversas
sobre os símbolos que circulavam na região. O padrinho e a madrinha procuravam
articulá-las de uma forma que permitisse a união de todas, escolhendo os aspectos que
podiam ser transversais a todos os grupos. Zezito149 explicou a articulação dos diversos
trabalhos rituais:
Os homens, esses aí, se chamam Corporais, os penitentes corporais.
Agora vem o outro, que é o Infernal, e meu padrinho trabalha com
espírito, por isso que essa parte de Pankararu, que tem aqueles trabalhos
deles, é unida assim, porque meu padrinho trabalha com espírito mau.
Chegava pessoa louca aqui e ele curava e saía sã. A madrinha Dodô já
trabalhava com Espírito Santo. Eram três trabalhos, entendeu? Os
trabalhos eram ligados. Por exemplo, se tinha uma família brigando, meu
padrinho chamava o decurião, o chefe dos penitentes: “Olha está
acontecendo isso na casa de fulano, vai lá acabar com aquilo” (Zezito).

148
Há em Santa Brígida diversos grupos rituais, todos organizados por grupos familiares. Três grupos
diferentes performatizam distintas versões da Dança de São Gonzalo; há um grupo de penitentes cujos
integrantes originários eram oito irmãos de uma família composta de mais nove mulheres (cujo sobrenome
era Oliveira), romeiros provenientes de Tacaratu – um dos municípios de referência da área indígena
Pankararu. Os Pankararu indagados sobre possíveis ligações entre esta família e os índios penitentes
responderam negativamente, afirmando que se tratava de outra irmandade com as próprias especificidades.
149
Zezito, também originário de Água Branca, estabeleceu-se em Santa Brígida em 1961. Segundo seu relato,
foi chamado diretamente por Pedro Batista, que havia tomado conhecimento de que ele era professor. Uma
vez conquistada a confiança do padrinho, tornou-se seu secretário. Atualmente é dono do cartório do
município e ainda orienta sobre as questões religiosas e nas ocasiões dos rituais.
129

Na entrevista concedida a Pereira de Queiroz, Pedro Batista explicou-lhe a


conjunção de práticas e cultos, o que permite compreender melhor a associação de Zezito:

No mundo só há duas religiões certas, a espiritual e a católica”, disse-me.


A religião católica serve para aqueles que ainda estão encarnados na
matéria; a religião espiritual serve para aqueles que se transformaram já
em espírito: “pois hoje somos católicos enquanto somos matéria; mas
amanhã morreremos e viraremos espírito. Grande parte das doenças [de]
que padecemos é causada pelos espíritos que, não tendo acreditado que
morreram, ficam a atormentar os vivos; Pedro Batista sabe lidar com eles,
de onde o poder terapêutico que possui (Queiroz, 1965, p. 278).

A capacidade de incorporação e harmonização dessa heterogeneidade de cultos por


parte desses líderes religiosos é um aspecto relevante do processo enquanto estratégia
aglutinadora.
A dilatação do tempo sagrado – que na coletividade formada pelos fiéis de Pedro
Batista era promovida por ele, sendo realizados contínuos eventos rituais que abrangiam as
diversas entidades cultuadas pelos diferentes grupos de romeiros – diferencia-se das
“festas permanentes” ou “escatológicas” efetivadas, por exemplo, em Contestado,
analisadas por Teixeira Monteiro (1974), ou em Pau de Colher, analisadas por Pompa
(1995), em que se teria abandonado o plano histórico e estrutural para a permanência na
liminaridade absoluta da communitas (Turner, 1974a, 1974b). Como no caso de Juazeiro
de padre Cícero, o movimento liderado por Pedro Batista demonstra que o projeto
salvacionista é um projeto histórico e concreto. Juazeiro e Santa Brígida transformaram-se
em meta de peregrinos que ali encontraram proteção, refúgio das secas e das perseguições,
trabalho e alimentos para o próprio sustento.
Pode-se alegar que os primórdios do movimento de romeiros seguidores de Pedro
Batista, que apresentava as características da “communitas espontânea”, transformou-se
gradualmente em uma “communitas normativa” – nos termos propostos por Turner
(1974b, p. 161) – em que, para alcançar os objetivos, o grupo precisou construir
mecanismos de controle social que lhe permitiram perdurar no tempo. A organização do
grupo, embora nas narrativas seja sempre enfatizada a simetria entre os diferentes cargos,
valeu-se de relações hierárquicas não somente da coletividade em relação ao padrinho,
mas também no que diz respeito às chefias dos diversos grupos rituais que, como meio de
ascensão social, eram particularmente almejadas. Cada grupo precisava se dedicar a manter
a ordem, evitando o surgimento de conflitos ou acalmando-os. Diante dos conflitos
130

frequentes na área, Pedro Batista se responsabilizava pelo controle de “seus romeiros”,


resolvendo pessoalmente eventuais discórdias com o auxílio dos chefes de família. Assim,
a atuação do beato conseguia construir a coesão necessária para fazer frente aos frequentes
ataques que provinham dos moradores baianos e daqueles que manifestavam certa rebeldia
em relação ao coronelismo.
Alguns moradores de Santa Brígida, entre os quais muitos manifestaram ceticismo
quanto aos poderes extraordinários do padrinho, não hesitaram em atribuir-lhe as
melhorias aportadas ao povoado.150 Destaca-se ainda entre os entrevistados certa
necessidade de marcar diferenças entre os romeiros e os baianos moradores, diferenciação
esta que Pereira de Queiroz (1965) havia já evidenciado em sua pesquisa, embora outrora
as motivações fossem diversas.
Segundo as observações de Pereira de Queiroz (idem), em Santa Brígida havia
frequentes episódios de violência, e as condutas morais exigidas pelo padrinho eram, de
acordo com os relatos dos romeiros atuais, rigorosamente observadas pelos seguidores,
diversamente dos baianos, que mantinham costumes e atitudes distantes das pretendidas. A
autora afirma:
De fato, a família está muito desorganizada entre os baianos de Santa
Brígida: não só numerosas uniões não são legalizadas, como também o
borboleteamento de homens e mulheres é grande, sem falar que mesmo
as mulheres casadas gozam em geral de fama de divertidas. As romeiras
ostentam uma virtuosa indignação contra os costumes das baianas, que
consideram levianas e despudoradas (1965 p. 280).

A diferença de condutas morais teria levado os baianos e romeiros a terem


existências separadas, tanto que em mais de uma década de convivência, Pereira de
Queiroz enfatiza que não houve intercasamentos (1976, p. 103). Hoje as diferenças que
foram destacadas trazem argumentos que dizem respeito aos excessos do culto dos
romeiros, e menos em função das regras morais exigidas.

Muitos dos baianos os detestavam, até hoje ainda há comentários de


romeiros e baianos. Mesmo o romeiro nascido aqui, filho daqui, é
considerado como um romeiro. Esse aqui é o cemitério dos baianos, e
esse aí é o cemitério dos romeiros. Às vezes tem ainda conflitos entre
eles. Porque, você sabe, o fanático é um negócio, o fanático é doente.

150
Embora a maioria dos interlocutores demonstrasse certa satisfação imputando ao padrinho as melhorias
aportadas em Santa Brígida, não faltaram comentários que manifestassem tanto incredulidade em relação a
seus poderes mágicos, quanto denegação em face das suas estratégias políticas. O reforço da oligarquia foi
percebido como ameaças ulteriores a qualquer manifestação de descontentamento e de rebelião.
131

Eles diziam que seu Pedro era um santo, o que não era, e nem fazia
milagre. Ele era um homem bom e tudo mais, mas não fazia milagres [...]
Agora já muita coisa mudou, os romeiros já caíram no forró, não tem
mais a disciplina de antes (Lindoaldo Alves de Oliveira).

Nas décadas seguintes, segundo os interlocutores consultados, houve vários


intercasamentos, embora os romeiros consultados afirmem ter preferência pelos
casamentos entre eles.151
Pode-se dizer que, contrariamente à relação de estabelecidos e outsiders analisada
por Elias (2000), a coesão dos romeiros recentemente instalados no lugar contrastava com
a debilidade organizativa dos baianos que, ademais, depois de um ano de fluxo de
romeiros, eram minoria (Pereira de Queiroz, 1965). Tal coesão se devia à forte influência
do padrinho sobre os romeiros. Nos lugares de origem, estes teriam tido vidas parecidas
com as dos baianos, em que conflitos familiares e ações vingativas faziam parte do
cotidiano. Pereira de Queiroz (ibidem) argumenta que os romeiros atribuíam a Pedro
Batista a possibilidade de “voltar” à “vida tradicional”, isto é, o retorno aos valores morais
antigos, cuja perda teria desmantelado a solidariedade e a organização familiar e
comunitária.
Entre as argumentações colocadas pelos Pankararu, a exaltação de um passado
idealizado, em que teria reinado a paz, a solidariedade e os valores morais que garantiam a
estabilidade organizacional, reflete mais a necessidade de enfatizar a normatividade das
condutas do que uma suposta antiga harmonia. Como se evidenciou anteriormente,
contendas entre famílias, conflitos inter e intrageracionais devido às multiplicidades de
posturas não podem ser abordados como o resultado de uma “anomia” social, sendo eles
partes do mesmo processo organizativo. Contudo, para que algo inovador – como pode ter
sido a proposta do líder carismático – tenha sido aceito, é possível que tenha havido a
necessidade de alocá-lo num ideal passado, como se este já tivesse existido. As
interpretações êmicas dos índios-romeiros sobre um passado harmônico poderiam levar à
conclusão de que estaríamos diante de um afastamento da “tradição”, como deixa entender
Pereira de Queiroz (1965) ao evidenciar o estado generalizado de “anomia” no sertão
nordestino causado, segundo a autora, pelos frequentes conflitos entre cangaço e polícia,
que teriam provocado desequilíbrios no principal elemento organizacional: a família.

151
Entre os grupos domésticos que se instalaram na área rural, a proximidade territorial alimenta relações
mais estreitas, e os casamentos, segundo os interlocutores consultados, aconteceriam sobretudo entre eles.
132

Onde subsistiam as linhagens, tudo se transformava entre elas em motivo


de luta. Onde se tinham esfarelado numa multidão de famílias menores, a
desordem era ainda maior. Ao nível da própria família conjugal, a
estrutura praticamente desaparecia, uma vez que o marido abandonava
facilmente a mulher, ou vice-versa. Os indivíduos quedavam soltos de
seus laços habituais que eram os familiares, os grupos se dissolviam em
franco processo de anomia (1965, p. 295).

Em relação ao processo de desestruturação social, que abarcaria as famílias


privadas dos mecanismos de solidariedade, pode-se atestar que, no caso de muitas famílias
pankararu, tal princípio organizacional tem bases bastante sólidas. Apesar das dispersões
forçadas, seus membros mantiveram a cooperação e a mútua ajuda, podendo, se a situação
lhes permitia, voltar a viver próximos uns dos outros.152 Sem negar a força de determinadas
circunstâncias históricas que provocaram dificuldades enormes à estabilidade das famílias,
a questão é a forma com que a autora aborda o conflito, percebendo-o como o elemento de
desagregação e anomia social. Diversamente, os processos de fissão ou segmentação dos
troncos familiares nos deixam perceber que o próprio conflito gera unidades e se apresenta
como o seu principal mobilizador. Isto não quer dizer que essas unidades tenham uma
única residência, por exemplo, a área indígena, mas sim que dependem de situações
específicas, tomando-se também em consideração a mobilidade desta população.
Às causas acima mencionadas a autora acrescenta a ausência dos clérigos
necessários para legalizar as uniões, enfatizando – como indicador também de anomia – a
forte presença de “uma poligamia tradicionalmente sancionada” (p. 295) em que os
homens despreocupam-se dos filhos nascidos das múltiplas relações deixando-os a cargo
unicamente das mães. Sem dúvida, a poligamia é sancionada em nível normativo,
podendo-se ouvir queixas dos mais velhos sobre as frequentes separações e as novas
uniões dos mais jovens. Contudo, como se pode observar na reconstrução das genealogias
de algumas famílias pankararu, tal fenômeno era bem frequente também nas gerações
passadas, e os mesmos anciãos que hoje o condenam tiveram vários relacionamentos (ver
diagramas VI, VII, IX).
As condutas morais exigidas pelos lideres carismáticos apresentaram-se na visão
dos índios como orientações que precisavam ser seguidas para se garantir a salvação.

152
É o caso dos Pankararu que, por diferentes motivos (trabalho, perseguições e conflitos de distintas
naturezas), precisaram se deslocar por tempos relativamente longos, conseguindo manter os vínculos com a
própria família e voltar a viver com ela quando se apresentou a possibilidade, como no caso dos membros do
tronco Binga.
133

Como afirmaram os índios, as entidades – sejam elas os encantados ou os padrinhos –


ensinam-lhes os caminhos a serem percorridos para evitar sucumbir às forças devastadoras
que se abateriam se estes não fossem seguidos, pouco importando se são os perdidos em
tempos remotos ou os novos a serem aprendidos. No entanto, há sempre uma referência ao
passado que denota a necessária demonstração de lealdade às origens e que reforça a ideia
de uma volta a elas.
Os índios e os romeiros deslocaram-se ou seguiram o padrinho não somente por
acreditarem nas suas características divinas – aspecto que será abordado mais adiante –
mas também porque houve avaliações de ordem empírica, pois Santa Brígida oferecia
possibilidades de melhorar as próprias condições econômicas. Os romeiros mais velhos
explicitaram a ansiedade de encontrar em Santa Brígida um lugar “cheio de fartura”, “paz”
e “caridade”.
Ai, nos primeiros anos, meu Deus, era safra demais! Aí mandava o
pessoal vendé na feira, aí o pessoal que acompanhava ele botava lá pra
trabalhar. Aquele que tinha vontade de trabalhar comprava um terreno, aí
outro aqui. E quando passou o tempo, o pessoal continuava encostando.
Aí ele tirava muito feijão e mandou fazer aquilo pra mandar os sacos de
feijão; tudo era pro pessoal comer, pros romeiros dele. Aí, quando foi
com dois ou três anos, isso estava já sobrando! Aí, na frente da casa dele,
do lado da estátua da madrinha Dodô, ali era uma casa só de armazém
dele. No começo o pessoal de lá falou assim: “Seu Pedro, por que o
senhor não procura outro lugar pra morar? Nós mora aqui porque não
pode sair, não tem condição de sair”. “Esse aqui é um lugar bom, esse
aqui vai ser um lugar tão santo, tão bom! Quem vem pra aqui não tem
vontade de sair, e eu vou construir uma Igreja, de tudo que tiver no
Juazeiro nós vamos deixar aqui também”. Aí os romeiros não eram
daqueles que trabalham só pra eles. Quando o trabalho era muita coisa,
assim dizia meu padrinho: “Esse tudo aqui é seu!”. E ele guardava, por
isso esse armazém enchia, era feijão de corda, era farinha. Quando fazia a
farinha e não existia carro, aí com os cavalos levava pra ele. “Esse aqui é
nosso, tá certo, vamos guardar”. Toda semana tinha gente de todo lugar,
nunca faltava gente lá. Criava porco, criava gado, criava tudo! Quando o
romeiro chegava, mata o porco! Mata o boi, mata tudo pra comer! Era
desse jeito (Zé Binga).

Santa Brígida tornou-se uma meta almejada, como havia acontecido com a presença
de padre Cícero em Juazeiro do Norte, e Pedro Batista incentivou a associação entre as
“cidades santas”. Ambos os lugares passaram por um sensível crescimento econômico
viabilizado por estas figuras carismáticas que sabiam negociar estrategicamente com os
chefes locais e dominar o próprio rebanho, colocando-o a seu serviço e a serviço do alheio.
134

3.3 A representação dos padrinhos

As narrativas sobre os padrinhos evidenciam tanto as características peculiares que


se lhes atribuem, como as histórias e as profecias que circulam e constituem as memórias
sobre estas figuras carismáticas. São histórias repetidas e pormenorizadas em diversos
contextos, que precisam ser reiteradas em cada ocasião que o permita: encontros rituais,
romarias e reuniões familiares.
Os padrinhos são considerados pela maioria dos seguidores seres divinos que não
passaram pela experiência da morte. Diversamente de outras divindades, como os santos,
os padrinhos “não morreram porque não eram de carne e osso”, afirmou Amélia Julião.
Múltiplas são as narrativas que enfatizam as características divinas dos padrinhos,
complementadas por histórias misteriosas em torno das suas vidas.

Ele passou aqui, as mulheres se aproximando, ele vestido de manga


comprida porque era um homem de respeito. Ele era não, ele é, ele não
morreu, ele se mudou. No nosso coração ele não morreu, ele se mudou.
Aí ele foi para Santa Brígida e aí foi morar em Inajá. Aí passou 26 anos
em Inajá. Nunca viram ele tomar banho, mas o cheiro dele era de flor, de
incenso, de mar. Os olhos dele eram azuizinhos (Amélia Julião).

As narrativas de dona Amélia sobre os padrinhos frequentemente não permitiam


separar as três pessoas, pois acontecimentos ou características se sobrepunham. Ao narrar
os episódios, eu lhe perguntava se estava se referindo a padre Cícero, Pedro Batista ou o
Velho de Inajá.153 Ela respondia, mas convidava-me a entender de uma vez por todas que
se tratava da mesma entidade. A minha exigência de distinguir essas três figuras a irritava,
tendo ela a necessidade de me orientar para que eu pudesse compreender o que de mais
importante havia na sua narrativa. Não importava qual deles havia realizado milagres,
enfrentado a polícia ou a Igreja, ou ainda realizado grandes gestos de caridade. As minhas
perguntas eram percebidas como manifestação de ceticismo, colocando-me nas fileiras
daqueles que “não entendem”. Tal irritação deve-se justamente ao fato de que entre os

153
Por ter importância diminuta nos cultos dos Pankararu, ser pouco nomeado em suas rezas e raramente
serem realizadas romarias em sua homenagem, raras são as informações sobre este padrinho. Embora
contemporâneo de Pedro Batista, os romeiros acreditam ser a mesma pessoa. Ao morrer Pedro Batista, alguns
seguidores teriam levado o velho a Santa Brígida anunciando a ressurreição do primeiro. Após ter
peregrinado em diversos estados, o Velho de Inajá, também chamado Zé das Pedrinhas de Carvão, se
estabeleceu em Inajá (Pernambuco), onde morava em uma casa pouco distante do centro do município.
Durante a pesquisa de campo, houve uma pequena romaria a Inajá, mas a participação foi exígua, contando
com poucos homens e mulheres penitentes. Foi uma iniciativa de Amélia Julião, já mencionada, que mantém
um forte vínculo de culto com este padrinho por ele ter curado seu filho.
135

romeiros há certa discrepância de visões em relação à tríade de padrinhos. Zezito, em


Santa Brígida (que é também um fervoroso seguidor de padre Cícero e de Pedro Batista),
nega a possibilidade de que se trate da mesma entidade, bem como exclui qualquer
associação entre o Velho de Inajá e Pedro Batista.

Esse Velho de Inajá não é meu padrinho Pedro Batista. Ele mesmo
avisava que “vão chegar muitos Pedro Batista, mas não se iludam”. Mas a
maioria daqui diz que é Pedro Batista. Por isso que muitos não gostam de
mim, porque eu sou realista. O mesmo Pedro Batista dizia que não era
padre Cícero, “eu sou Pedro Batista, curador!”. Madrinha não é Nossa
Senhora, ela tem seu mistério, mas não é Nossa Senhora!

Não obstante as divergências entre os romeiros serem particularmente quentes,


prevalece a visão que une as três figuras em uma única entidade. Tal visão segue a profecia
que o mesmo padre Cícero teria enunciado aos seus romeiros, afirmando que após a sua
“viagem” ele voltaria a aparecer ainda duas vezes. A profecia complementava-se com
advertências que alertavam os romeiros, convidando-os a prestar atenção aos sinais divinos
que ofereceria para que o reconhecessem em sua nova feição.
“Ele deu todo sinal direitinho” afirmaram os índios romeiros referindo-se ao Velho
de Inajá que, ao passar por Santa Brígida, teve negado o direito de permanecer. Contam os
índios que ele perguntava sobre o bem-estar de romeiros em Santa Brígida, ou ainda sobre
os canários e as plantas na sua antiga residência. Embora com feições pronunciadamente
diferentes, os romeiros identificavam detalhes que os associavam. Um destes detalhes são
os olhos azuis, que em realidade somente tinham padre Cícero e o Velho de Inajá, pois
Pedro Batista tinha os olhos bem escuros. O cabelo e a barba comprida e grisalha que os
últimos dois padrinhos apresentaram durante suas peregrinações são outros detalhes que
permitiam a associação entre os sujeitos, mas que também se prestavam para evidenciar
uma aparência insólita. Tal aparência – embora raramente – foi associada aos antigos
missionários que percorriam a área durante as Santas Missões. A pobreza como ideal de
vida, enfatizado pelos franciscanos, levava-os a adotar uma aparência que se conformasse a
esta regra, o que talvez tenha feito com que os seguidores percebessem paralelismos
diferenciadores entre esta Ordem da Igreja Católica e os sacerdotes que representavam a
suntuosidade da instituição.
Os padres, segundo informaram os índios, apareciam muito raramente na área e o
faziam apenas em ocasiões da festa do padroeiro Santo Antonio ou na Semana Santa.
136

Diferente da pouca lembrança relativa à atuação dos padres, os índios mais velhos
conservam na memória as passagens esporádicas das Santas Missões,154 que eram
acompanhadas de grandes festas. Ressaltaram, sobretudo, as encabeçadas por frei
Damião,155 o capuchinho italiano que foi expoente das Santas Missões no Nordeste de
meados do século XX até o final e cujas performances marcaram suas lembranças. Além
disso, por ter sido próximo a padre Cícero, não faltam os que afirmem que são a mesma
pessoa, ou que o primeiro teria transmitido seus segredos e mistérios ao capuchinho
italiano.
A constante visão negativa sobre o clero provém de experiências concretas que
levaram os índios-romeiros a se manterem desconfiados diante da instituição que, na
maioria das vezes, foi causa das perseguições a seus padrinhos. Os padres cobravam para
administrar os sacramentos, celebrar missas ou realizar cerimônias de quem, na maioria
dos casos, vivia em extrema pobreza. Os romeiros afirmam que o mesmo Pedro Batista
teria manifestado sua indignação em relação à atuação dos membros da Igreja que
contrariava a lógica da “caridade”. “A palavra de Deus não se vende nem se compra”, teria
declarado.156
A Igreja Católica perdeu aos olhos dos índios e romeiros a validade dos
mecanismos que ocultam constantemente a sua “dimensão econômica” (Bourdieu, 1995, p.
183) ao cotejar sua atuação com aquela dos padrinhos. A negação de proveitos para a
realização de curas é sobremodo assinalada, afirmando-se que o padrinho Pedro Batista
nunca teria pedido nada, e que toda a esmola que lhe era oferecida destinava-se aos
romeiros. “Ele não tinha nada dele, tudo dava ao romeiro. É Deus, o povo dava esmola a

154
O método de evangelização das Santas Missões foi implantado no Nordeste desde o período colonial. Os
missionários que podiam ser jesuítas, capuchinhos, oratorianos e franciscanos no século XVII e,
posteriormente, capuchinhos e lazaristas no decorrer do século XVIII e XIX, optaram por esta pastoral capaz
de alcançar uma população dispersa em um amplo território. Hoornaert (1977) observa que às Santas Missões
foi infundido um caráter espetacular e teatral pelos capuchinhos italianos, influenciados pela pastoral barroca
do país de origem, e que as realizavam durante 15 dias por meio de peregrinações (p. 134). As Santas
Missões eram em realidade as “desobrigas”, um tipo de pastoral que se diferencia daquela que promovia a
convivência com o povo, e que foi escolhida pelos missionários nos aldeamentos até o diretório pombalino
que os declarou extintos. As “desobrigas” reduziam-se à ministração dos sacramentos (batismo, confissão e
casamento) e avaliava-se o sucesso pelo número destes (p. 134).
155
No livro de tomo do santuário de Nossa Senhora da Saúde em Tacaratu, entre os relatórios dos padres que
se seguiram a partir de 1942, encontra-se referência a uma única passagem de frei Damião, em 12 de
novembro de 1945. No entanto, os interlocutores informaram-me que o frei voltou outras vezes na década de
50 e de 60.
156
Tal expressão ecoa nas argumentações de todos os especialistas rituais entrevistados sobre os próprios
serviços rituais.
137

ele e ele distribuía pelas pessoas. Ele não pedia não, o povo dava pra ele”, dizia Ana
Bomba (outra chefe do grupo penitente) enquanto reclamava das atitudes dos sacerdotes
que cobravam para “encher os cofres”.
A conduta moral do padrinho apresentava todos os sinais divinos e as virtudes que
os romeiros lhe exigiam. A vida errante e pobre, a realização de curas milagrosas e a
sobrevivência garantida somente pelas esmolas são os elementos que, orquestrados, tornam
o padrinho um ser poderoso. A possibilidade de orientar as condutas dos outros concretiza-
se aparentemente em virtude do que Turner (1974a, p. 133; 1974b, p. 234) chama “o poder
dos fracos”, que existe em quem encarna o papel do liminar, neste caso, com a capacidade
de desempenhar funções políticas relevantes.
Os padrinhos demonstravam estranheza quanto às experiências concretas e
cotidianas dos índios. “Nunca apareceu parente dele, nem mãe, nem pai, nem irmão, só ele
mesmo”, afirmaram, referindo-se a Pedro Batista e ao Velho de Inajá. Há de se destacar
que Pedro Batista mantinha especial cuidado em ocultar sua procedência e qualquer
detalhe sobre a própria vida e a família. Com efeito, poucos interlocutores demonstraram
ter qualquer conhecimento sobre sua vida anterior ao seu retorno ao Nordeste. Sabem
apenas das peregrinações nesta região, informados por outros romeiros que o hospedaram
em suas casas.
João Oliveira (o decurião do grupo penitente em Santa Brígida) sintetizou em
versos as sombras do passado de Pedro Batista.157

De onde veio não se sabe, ninguém pode compreender


O povo lhe perguntava
ele não ia dizer
esses eram os deveres seus
pois os segredos de Deus
não [são] pra ninguém saber.

Ser “sem família” somava-se à não necessidade de constituí-la: “Ele não precisava
de mulher nenhuma, ele chegou sozinho aí em Santa Brígida. Ele, seu burrinho e um
menino que ele criava”, enfatizava Amélia Julião.
A imagem divina dos padrinhos era alimentada ainda pelas palavras sussurradas ao
benzer e curar. “Ele rezava na gente, ele pegava aqui no ombro, era uma dor menina, a

157
Trata-se de um pequeno texto cujo título é “Vida e morte de meu padrinho”, divulgado com o apoio da
Prefeitura Municipal de Santa Brígida.
138

gente gritava com vergonha! e ele benzia, mas ele não deixava ouvir as palavras que dizia,
ele dizia baixinho, as palavras só pra ele!” (Amélia Julião).
Pedro Batista teria pronunciado frases e ditados que soavam como profecias, mas
não eram seguidos por discursos orgânicos, como sermões, por exemplo. A interpretação
desses fragmentos (frases e ditados) cabia aos próprios fiéis que nos encontros em romaria
continuam pronunciando-os de forma a reiterar as “profecias” que existiriam por trás
desses enunciados, incluindo-se as catástrofes e o fim do mundo. Parte das profecias, no
entanto, já se teria cumprido, os índios-romeiros comprovando assim as palavras divinas
dos padrinhos. Nota-se que as frases dos padrinhos são tomadas pelos romeiros como
sinais que levariam a progressivas revelações.158
Os poderes mágico-religiosos de Pedro Batista são ainda enfatizados nos relatos
sobre as curas que realizava. Eles seguem uma narrativa padronizada, um diálogo entre os
romeiros e o padrinho que os interlocutores performatizaram como se fosse uma dessas
histórias que nunca param de ser repetidas.

Se chegava um doente, ele curava. Chegava até amarrado. “Ele tá doido e


a gente amarrou”. “Desata ele!”. “Não, meu padrinho, se desatar não tem
quem aguente!”. “Vai desatar o homem!”. Aí ele botava a mão na cabeça
do homem e ficava bom! (Verônica Barbosa).

A maioria dos relatos sobre as curas milagrosas do padrinho se referia a sujeitos


tomados por espíritos perturbadores que provocavam atitudes agressivas e distúrbios
psicológicos. Há também relatos que visavam intimidar os que demonstravam ceticismo.

Eu vi uma mulher lá em Santa Brígida. “Meu padrinho, me abençoe, me


perdoe!”. Ela chorava, não parava de chorar. Aí meu padrinho falou:
“Que mal foi que eu te fiz? Eu não fiz mal nenhum a você. Como é que
eu posso lhe perdoar?”. “Não, meu padrinho. É porque eu disse que se
você fosse santo, [que] me fizesse virar uma lagartixa”. E ela virou!
Subia nas paredes a mulher, e caía de costas. Essa eu vi. Eu era mocinha
nova, sentada. Ela só acreditava que ele fosse santo se ela virasse uma
lagartixa! E virou! Aí ela foi pedir perdão a ele (Ana Bomba).

Provas irrefutáveis da essência divina do padrinho foram construídas em torno


tanto da doença que o acompanhou durante quatro anos quanto da morte. Por ele ser divino
e ter o poder de afastar qualquer doença, os romeiros afirmavam que ele não queria se
158
Este argumento será aprofundando na segunda parte da tese ao abordar as modalidades de gerenciamento
do conhecimento.
139

curar. Ao falecer, uma sucessão de romeiros se dirigiu a Santa Brígida para se despedir do
padrinho, apoiando os seguidores ali residentes que queriam evitar o enterro. A natureza
humana do padrinho era negada mais uma vez, afirmando-se que três dias após a morte o
corpo emanava “cheiro de flor”, ao contrário dos céticos, que precisavam desmistificar a
figura do conselheiro e que apressavam os preparativos do enterro.159

Guardemos até na terça


o corpo em cima do chão ninguém sentiu cheiro mal, causou admiração
quatro doutores se acharam e todos examinaram
ele dentro do caixão.
O gosto de Dona Dodô
e de toda romaria
era esperar todo o povo
e deixar pro terceiro dia, pois era nosso prazer para dar um conhecer que
o corpo resistiria.
Mostrou um grande mistério, pra nós dá satisfação
tirar dúvida do povo,
deixar pra todos impressão graças ao Criador
que meu padrinho deixou
uma nova inspiração (João Oliveira).

Com o falecimento, no dia 11 de novembro de 1967, Pedro Batista terminou a sua


“missão material”, dizem os índios, “mudando-se” mais uma vez. Os versos de João
Oliveira revelam as esperanças de um retorno.

Não prometi a ninguém de ficar aqui com vocês.


O Padre Cícero Romão deixou lá tudo que fez, assim eu deixo a nação,
inda tenho outra missão, torno voltar outra vez.

Numa tarde, ao acompanhar Dona Amélia à casa de farinha, perguntei-lhe se havia


a possibilidade de uma próxima volta do padrinho, pois ela acredita, como muitos outros,
que o Velho de Inajá fechou o ciclo de aparições profetizado por padre Cícero. Enquanto
raspava a mandioca, argumentava sobre a impossibilidade de um retorno, encerrando seu
discurso com a enunciação “o tempo está findado”. O tom severo da narrativa mudou

159
As mesmas disputas teriam ocorrido quando faleceu madrinha Dodô. A líder morreu em Juazeiro do
Norte enquanto descansava na rede no interior da sua casa. Inicialmente, os romeiros se dividiram quanto à
escolha da cidade onde a madrinha deveria ser enterrada. Seus fiéis colaboradores em Juazeiro queriam
enterrá-la ao lado de padre Cícero, enquanto os romeiros de Santa Brígida a queriam ao lado de Pedro
Batista. Os sobrinhos da madrinha puderam impor a própria vontade, levando-a para Santa Brígida. Ao
chegar, fileiras de romeiros se acotovelavam para se despedir dela e houve quem se recusasse a enterrá-la.
140

imprevistamente. O sorriso apenas anunciava uma risada acompanhada da exclamação “Ó,


Lula! Dizem que é tão bom com os nordestinos!”.
A ironia, no entanto, foi abandonada imediatamente, voltando a contar
acontecimentos da ordem do milagroso envolvendo os três padrinhos e as outras entidades
cultuadas.

* * *

Como se viu, a adesão ao movimento salvacionista que se concretizou em Santa


Brígida a partir da década de 1940 levou a posições múltiplas entre os Pankararu, por um
lado, em razão da concomitância do surto com a instalação do órgão indigenista na área e,
por outro, por causa da heterogeneidade de posturas dentro do grupo. Os índios cotejaram
atitudes políticas e morais dos agentes envolvidos, os posicionamentos e os projetos que
lideravam a partir tanto dos conhecimentos tradicionais quanto de experiências empíricas.
Foram comparadas, então, as atuações de outros líderes carismáticos que haviam marcado
a própria história e a memória do povo com os funcionários do órgão indigenista, os
membros da Igreja Católica e os oligarcas da região.
Arruti (1996) observou que o SPI160 foi entendido pelos Pankararu como uma
instância superior externa, como um “pai” ao qual se podia apelar para o reconhecimento
de direitos. Em torno do regime tutelar – “o governo” – houve também a construção de
uma áurea mística sobre seus poderes de intervenção. Contudo, creio que ele não pode ser
comparado à percepção que se tinha da atuação do líder carismático Pedro Batista que, em
virtude da atribuição a ele dada de mais alta autoridade moral, transformou-se em um
conselheiro com poderes coercitivos e disciplinadores, capaz de aglutinar e de fazer
convergirem objetivos mais abrangentes que iam além daqueles orientados por interesses
particulares, familiares, faccionários ou étnicos, viabilizando a concretização deste tipo de
relação de dominação.
Lopes Ramos (1998), ao analisar o processo de santificação de padre Cícero,
constatou que os romeiros teriam um “imaginário da proteção” (p. 47). Argumenta o autor
que “a ligação entre devoto e protetores do Além guarda íntima semelhança com a relação
senhor-camponês, que geralmente se realiza com os laços de compadrio” (p. 42). A relação

160
Para uma análise crítica do “poder tutelar” exercido pelo SPI, ver Lima (1995).
141

de compadrio seria mantida em virtude de uma “cultura da proteção”, que teria seus
fundamentos na visão de que Deus teria feito os ricos para protegerem os pobres, o que
justificaria o comportamento de obediência do camponês que recebe apoio do “patrão” (p.
42), embora – observa o autor – existam espaços para reivindicações e rebeldias.

Percebe-se que, na cultura do devoto do Pe. Cícero (ou do sertanejo de


modo geral) há um padrão ideal de existência do homem pobre: viver sob
a proteção do rico e de Deus. [...] É nesse território de apadrinhamento
que floresce um grande protetor: o santo de Juazeiro. Nas construções do
imaginário, aparece um padrinho que já existia nos ideais (p. 46, 47).

Embora a identificação das figuras carismáticas como “padrinhos” possa guardar


semelhanças com a procura de proteção de patrões e potentados locais, há de se considerar
também as relevantes diferenças entre as relações, bem como a multiplicidade de
interpretações de grupos sociais que participam da divinização dos “padrinhos”. Reduzindo
a escala de observação ao nível micro, percebe-se que “cultura do devoto” ou “cultura da
proteção” torna-se uma definição que pouco ajuda na compreensão do fenômeno social em
pauta, viabilizado justamente pela convergência de múltiplas interpretações.
Na concepção dos Pankararu, seguidores destas figuras carismáticas, não houve a
construção de uma ordem divina para estabelecer posições diferenciadas às quais os índios
precisariam se subjugar, conformados como pertencentes a uma classe inferior, ou
condenados a viver uma vida de pobreza com o respaldo dos ricos e dos poderosos. O
estado de decadência seria fruto de um desvio coletivo em relação às diretivas morais, e
não uma hierarquia imóvel estabelecida de uma vez por todas. A possibilidade de mudar o
status quo (não no sentido de revertê-lo, os índios ocupando o lugar dos dominadores, mas
recuperando os poderes e as farturas que lhes permitiriam ter relações mais simétricas com
outros grupos sociais) torna-se viável ao contemplar a aparição dessas figuras carismáticas
que, por serem totalmente estranhas ao dia a dia e percebidas como divinas, os orientarão
sobre os comportamentos morais adequados para alcançar a bem-aventurança terrena e no
além.
No entanto, como as outras entidades que povoam o Cosmo, elas estão também
sujeitas a ocupar diferentes colocações em uma hierarquia móvel que os índios, em
diferentes posições, lhes atribuem, como se verá no próximo capítulo.
142

Parte II

Fluxos culturais, múltiplas articulações e tradição de


conhecimento
143

Introdução

A maioria dos estudos realizados sobre as coletividades indígenas do Nordeste


evidenciou a presença de fluxos culturais oriundos de Europa, África e de múltiplas
coletividades indígena. Se tomarmos como postulado básico que os símbolos, assim como
os fluxos, são multivocais, ambivalentes e polissêmicos (Turner, 1975, 1982, p. 16), os
atores sociais não precisariam ter conhecimento prévio do significado original que lhes foi
conferido pela tradição que os originou para incorporá-los aos próprios “estoques
culturais” (Barth, 1993). Em outras palavras, se houver uma apreensão de elementos novos
a partir de conhecimentos e formas de conhecer que são próprios da tradição da
coletividade que os recebe. Ao invés de pensar em processos “sincréticos” como se as
tradições pudessem fundir-se em suas totalidades, de acordo com Barth (2000), as
tradições de conhecimento são mais bem definidas em virtude dos atores sociais – cuja
atuação possibilita uma maior ou menor propagação delas – do que por seus conteúdos.
Como sugere Hannerz (1997), o significado originário dos itens culturais não é
relevante quanto à sua interpretação local, isto é, os padrões locais de significação (ibidem,
p. 19). A sugestão de Barth (2000a) no que diz respeito à necessidade de entender o
“significado como uma relação” (ibidem, p. 128) é aqui abraçada, ligando-se as expressões
culturais aos atores que as promovem com as próprias trajetórias, os conhecimentos e as
experiências.
A coerência e a integração dos conhecimentos entre os atores sociais que aderem a
uma tradição são variáveis não apenas pela potencialidade multivocal e ambivalente dos
símbolos, mas em virtude do modelo de distribuição da cultura. De acordo com Barth
(1987), “It’s self-evident that a particular pattern of social organization will produce and
reproduce a particular pattern of distribution of knowledge and skill” (ibidem, p. 77), o que
determina específicas formas de interação, por exemplo, no caso aqui analisado, entre
troncos, indivíduos de gêneros opostos ou etnicamente diferenciados.
Diversamente dos enfoques que privilegiam apenas a reconstrução do significado
exegético oferecido pelos especialistas rituais ou leigos, ou do significado da posição que
os símbolos ocupam (como proposto nas abordagens estruturalistas que contemplam
oposições binárias, procurando-se a chave da estrutura a eles subjacente), a abordagem
aqui escolhida focaliza o que Victor Turner (1982) definiu como “operational meaning”).
Privilegiou-se, então, como procedimento sugerido pelo autor, a observação dos símbolos
144

rituais em ação, isto é, envolvidos no processo ritual, e o uso que o grupo “faz” deles,
dando-se menos ênfase àquilo que o grupo “diz” deles (ibidem, p. 20). No entanto, deu-se
também atenção às explicações que os atores sociais ofereceram sobre os significados
desses símbolos rituais, encontrando-se uma enorme variação.
De acordo com Turner (ibidem), o “significado operacional” dos símbolos rituais
procede da observação de quem compõe o grupo, dando-se relevância a gênero, status,
idade, e verifica-se se é constituído por membros de uma família ou vizinhos, ou de um
grupo étnico. Com tal abordagem, observa o autor, não se pretende estabelecer
concordâncias com a sociedade e detectar reflexos do ritual sobre ela, mas sim
compreender estas expressões culturais no próprio contexto, na medida em que seu
significado não se encontra apenas nas formas que assumem, mas são reportadas tanto à
organização social quanto aos meios de comunicação de que se valia e aos valores que ali
são produzidos e reiterados.
Em virtude das complexas e variadas dinâmicas que envolvem a escolha e o
vínculo com um especialista ou grupo ritual, seria um desvio reduzir a enorme
heterogeneidade de interpretações a comuns denominadores, reconduzindo-a a um
“sistema de crença” baseado em premissas compartilhadas, dando-se ênfase apenas aos
aspectos semânticos dos rituais e lendo-os como textos ou códigos, com estruturas
subjacentes, a serem desvendados. Os aspectos performáticos não discursivos ou retóricos
dos rituais – como tem sido observado por diversos autores161 – tornam-se especialmente
importantes para se compreender o ritual como um ato ou evento comunicativo e não
apenas como um código. E olhar para o ritual como um evento comunicativo não implica
necessariamente que os indivíduos que o fruem compartilhem as mesmas crenças e ideias,
mas sim que darão a ele significados e o articularão a partir dos referenciais prévios e das
experiências que lhes permitem atualizá-los segundo a lógica da distribuição da cultura.
Com efeito, Barth (1966, 1969, 1978, 2000) está preocupado em analisar a
efetividade social de lógicas e princípios de organização social da cultura, que delineiam
tradições ou subtradições de conhecimento, e em compreender as dinâmicas que geram
variações no seu seio. Nas pesquisas por ele realizadas em Nova Guiné (1975, 1987),
concentrou-se nos rituais de iniciação e observou que as atividades dos xamãs eram
realizadas no seio dos diferentes grupos étnicos da região e baseavam-se na exaltação das

161
Entre tais autores destacamos Turner (1987), Barth (1987, 1993, 2000), Tambiah (1985), Taussig (1993
1987]), Whitehouse (2000).
145

performances, faltando formas de verbalização. Os segredos, portanto, eram os elementos


mais importantes no processo de interação no ritual. Desta forma, os neófitos e o público
atribuíam prestígio e competência na interpretação do mundo não a partir da transmissão
de saberes codificados, mas pelo ar de mistério que a performance podia provocar. Assim,
as variações na articulação dos símbolos rituais entre os diversos grupos da região podiam
ser muito significativas.
Em outro trabalho e com uma perspectiva comparativa, Barth (2000b) coteja as
diferenças entre dois tipos de tradições de conhecimento: as do sudeste da Ásia e as da
Melanésia. O autor centra sua atenção em dois papéis muito distintos que gerenciam,
organizam e transmitem o conhecimento de maneira contrastante: o guru e o iniciador. O
primeiro, para manter e ascender de status, precisa adquirir continuadamente
conhecimentos inéditos, através da leitura ou realizando viagens, para comunicá-los
verbalmente aos seus discípulos, elaborando também estratégias para que nenhum deles
possa superá-lo. O iniciador, por sua vez, comunica-se com os ancestrais e apenas com eles
troca conhecimentos. Seus saberes não são sistematizados e tampouco tendem à coerência,
como precisam fazer os gurus. Para iniciar os neófitos, ele usa performances que visam
criar a sensação de segredo sem transmitir qualquer conhecimento. Estas duas “economias
informacionais” (2000b, p. 146) exercem na base pressões distintas sobre os que gerenciam
o conhecimento, moldando as diferenças entre esses papéis. Esquematizando suas
elaborações, o autor considera que o guru transfere conhecimentos verbalizando-os “para
baixo”. Estes saberes, sendo armazenáveis em suportes, são também descontextualizados e
deslocados, difundindo-se amplamente tanto no espaço quanto no tempo. Diversamente, os
iniciadores obtêm status negando os saberes aos neófitos, transferindo-os apenas “para
cima”. Através da performance ritual, demonstrará a posse dos conhecimentos que os
ancestrais lhe transmitiram.
O autor conclui argumentando que esses dois papéis

[...] tendem a moldar as expressões culturais, respectivamente nas formas


características do sudeste asiático e da Melanésia, não importando de
onde vieram originalmente as imagens e as ideias particulares que
empregam e desenvolvem. Com isso, o contraste entre a Ásia e a
Melanésia é reproduzido, mesmo que haja passagem de itens culturais
através desse divisor. As áreas culturais não são, portanto, apenas um
produto da história passada: em um sentido bastante palpável, elas são
produzidas agora, pelos esforços de diferentes intelectuais, que elaboram
diferentes tipos de conhecimento. Por isso, nossa tarefa de comparar
áreas culturais não pode mais se limitar à construção de um quadro
146

sinóptico do conjunto diversificado de formas particulares existentes em


cada área. Em vez disso, a tarefa principal é a identificação das dinâmicas
contrastantes que geram características convergentes em cada área ou
região (2000b, p. 161).

A análise deste autor é muito profícua ao abordar o contexto focado em função da


reflexão que propõe sobre as formas de gerenciar o conhecimento por diferentes
especialistas e grupos rituais pankararu, cuja peculiaridade será descrita nos próximos
capítulos. É necessário, no entanto, adiantar que, ao lidarmos com os diferentes grupos e as
específicas articulações dos fluxos culturais e também as atuações rituais, nós iremos tratá-
los como variações que remetem a uma específica tradição de conhecimento,162 entendida
como uma determinada visão do mundo, calcada em peculiares formas de gerenciar e
distribuir o conhecimento e, portanto, de adesão a um quadro moral que todos reconhecem
e procuram atuar de acordo com ele e que, embora não limite as experiências, age como
orientador delas.
Como sugere Barth (1987-2000b), a importância atribuída ao segredo é um
aspecto crucial para se compreenderem não apenas os eventos rituais circunscritos a
específicas coletividades, mas também o tipo de conhecimento que é gerado pela tradição à
qual seus membros aderem. Ao comparar os aspectos da tradição de conhecimento entre os
Baktaman e entre as coletividades OK da Nova Guiné, Barth observa:

[...] the sacralizing import of secrecy in these traditions also has a


profound effect on the epistemology of the native. The force of the rites,
as mysteries, depends precisely on how the practice of secrecy moves
every form of absolute truth out of the reach and places the congregation
in a relation to vital and awe-ful category of the unknowable as the
essence of mystery (1987, p.7).

O autor chama também a atenção para a importância das cognições e das emoções
comunicadas nos rituais em função de se tornarem elas mesmas elementos do próprio
significado. Na análise sobre os rituais dos Baktaman em Nova Guiné, Barth explicita as
dinâmicas que concernem à tradição de conhecimento que cultiva e alimenta tabus e
segredos, dando ênfase ao fato de que os rituais realizados por estas coletividades têm
credibilidade e convicção na medida em que “they are ‘good to act’ in their proper setting:

162
Após a descrição etnográfica, retomarei este argumento para um diálogo teórico mais profícuo nas
considerações gerais desta parte da tese.
147

there they are shaped so as to fit, so as to generate a vaguely conceived significance,


confirmed in a mute fellowship of privileged participant” (1975, p. 221).
A última afirmação de Barth remete às significativas e bem anteriores elaborações
de Simmel (1906) sobre o papel sociológico do secreto. Na análise deste autor, destaca-se a
importância da confiança, indispensável entre os membros de uma sociedade secreta, e a
necessária aprendizagem da arte do silêncio para compartilhar a honra de participar dela
(ibidem, p. 272-273), como se verá ao analisar o caso do grupo penitente masculino e o
grupo de praiás.
De maneira complementar às elaborações de Barth, a contribuição teórica de
Whitehouse (2000) é também significativa para analisar o contexto aqui focado. Este autor
coteja duas modalidades de codificação religiosa: uma “doutrinal” e outra “imagística”. Na
primeira, as ideias e os símbolos religiosos seriam codificados em discursos, resultando
numa doutrina com coerência interna que se torna a base para desenvolver os rituais.
Contrariamente, no modo “imagístico”, o saber religioso é aprendido através da
experiência dos atores sociais durante os eventos rituais. Whitehouse argumenta que estes
últimos se tornariam momentos marcados por revelações de mistérios e por fortes
emoções, sendo eles poucos frequentes e às vezes traumatizantes. A experiência direta com
o sagrado, neste último caso, adquire importância inusitada, diversamente dos
conhecimentos que podem ser adquiridos através da transmissão educativa de sacerdotes.
Nos eventos rituais torna-se relevante a percepção do participante da unicidade da
própria experiência e da possibilidade que esta oferece para uma pessoal inspiração ou
revelação. Estes eventos de elevada emotividade – estimulada sensorialmente por imagens,
cheiros, músicas etc. – em que não aparecem mediadores que orientem as inspirações,
deixam ampla margem para a expressão da multivocalidade das imagens e dos símbolos
religiosos que ali circulam. A proposta teórica de Whitehouse (2000) concentra-se em
atribuir especial importância à memória na análise dos rituais e às dinâmicas relativas ao
sentimento de pertencimento a uma mesma identidade. Para tal propósito, o autor propõe
dedicar atenção aos mecanismos através dos quais a memória é ativada (ibidem, p. 4-
11).163
Vários autores dedicaram-se ao estudo das repercussões da introdução da escrita
nas sociedades. Por exemplo, Goody (1986) argumenta que a tradição letrada aportou

163
O autor distingue a memória semântica da episódica, as quais estariam na base das codificações religiosas
acima mencionadas: a primeira sustentaria uma religiosidade doutrinal e a segunda, a imagística.
148

mudanças específicas na organização da sociedade em virtude de viabilizar a separação


entre a enunciação e o próprio contexto, o que leva a uma progressiva despersonalização
das interações (ibidem, p. 109) e permite à massa de informação uma propagação bem mais
eficaz e capilar. A escrita, portanto, descontextualizou o conhecimento e, no caso da
produção de textos sagrados, deu asas às tradições religiosas doutrinais em que o
conhecimento está sujeito a comentários e a críticas, abrindo o caminho para a construção
das ortodoxias (ibidem, p. 98-101). Também Bourdieu (2002) destacou a importância da
escrita como meio de comunicação que separa os recursos culturais de um indivíduo e
ultrapassa os limites da memória individual. Nestes termos, argumenta o autor, a escrita

[...] libera das opressões implicadas nos meios mnemotécnicos, tais como
a poesia, ou seja, a técnica de conservação por excelência das sociedades
desprovidas da escrita: ela permite a acumulação da cultura até então
conservada em estado incorporado e, correlativamente, a acumulação
primitiva do capital cultural como monopolização total ou parcial dos
recursos simbólicos da sociedade [...] (ibidem, p. 198).

Diversamente das comunidades amplas e anônimas construídas pelas tradições


doutrinárias, a tradição imagística impede a formação daquelas. Whitehouse (2000)
enfatiza que o modo imagético é restrito a grupos pequenos que compartem, na maioria das
vezes, conhecimentos ocultos sobre os quais se mantém o sigilo, impedindo, portanto, sua
difusão. Uma tradição imagística, segundo o autor, centra-se em ritos traumatizantes cuja
experiência direta estimula os participantes a desenvolverem sólidos sentimentos
comunitários e laços de solidariedade, o ritual em si sendo o elemento disciplinador.
De acordo com Whitehouse (2000), a razão pela qual alguns rituais são
provocativamente emocionais se deve ao desejo de promover sua memorabilidade. Estes
tipos de performances rituais – entendidas aqui como técnicas de comunicação e persuasão
– solicitariam a constituição de grupos com alto grau de envolvimento. Para a
memorabilidade do evento, considera-se importante tomar também em consideração a
repetibilidade no tempo, sendo necessária uma emotiva reativação da memória, renovando
e fortificando os vínculos que se criaram nos eventos passados. Diversamente dos aspectos
cognitivos aos quais Whitehouse dedica particular atenção, o que me interessa ressaltar da
sua proposta analítica é a distinção entre uma tradição doutrinária e outra imagística, que
considero pertinente para abordar o contexto em pauta na medida em que possibilita
destacar os aspectos ligados às experiências coletivas da construção da memória e do
sentimento de pertença a um grupo.
149

As abordagens até aqui apresentadas são especialmente profícuas para a


compreensão dos princípios que permitem que haja uma grande variação na articulação de
fluxos culturais no contexto focado, bem como oferecem instrumentos para a compreensão
da modalidade e a importância do agir ritual entendido como ação sobre o mundo,
portanto, também como ato moral e político.
Antes de tratar dos grupos e dos processos rituais com suas específicas modalidades
de atuação (cujas descrições etnográficas e análise estão na terceira parte deste trabalho),
apresento a seguir uma série de informações que considero cruciais para se
compreenderem justamente essas dinâmicas. Descreverei os símbolos que circulam na
região e a articulação e a hierarquização diferenciada realizadas por diversos especialistas
no esforço de enaltecer ou rebaixar (dependendo do ponto de vista) a posição das entidades
cultuadas por indivíduos e grupos antagonistas, ou seja, a dinâmica da organização social
do Cosmo.
Considerei necessário abordar a formação e a construção do prestígio dos
especialistas rituais em virtude do papel central que desempenham dentro da tradição de
conhecimento que cultivam, assim permitindo destacar em que repousa a legitimidade da
própria atuação. As narrativas e as posições de alguns especialistas são aqui dadas a
conhecer tanto como meios para penetrar diferentes processos experienciais que revelam
escolhas diferenciadas, quanto para destacar alguns discursos padronizados que distintos
mediadores constroem em determinados contextos de interação. Pretendo abrir um leque
de variações de um microuniverso que a pesquisa de campo permitiu reconstruir, sem ter a
pretensão, no entanto, de que ele seja representativo de todas as posturas dos Pankararu. A
intenção é mostrar que existe uma figuração em tensão permanente em que atores sociais
posicionados constroem discursos e movem ações em virtude de disputas de prestígio e
poder.
Sobre as temáticas tratadas a seguir há uma reduzida produção. Serão apresentados,
principalmente, os dados da minha experiência etnográfica, mas haverá um diálogo com
Matta (2005), que também se dedicou a vários aspectos aqui abordados. Farei, então,
referências pontuais ao seu trabalho quando for necessário ressaltar semelhanças,
complementaridades ou discordâncias. Serão também citadas outras obras, como a de
Arruti (1996) e de Athias (2002), entre outras, que aportaram ricas informações às
temáticas tratadas.
150

Capítulo IV. O Cosmo

O complexo Cosmo Pankararu é composto por múltiplas entidades que ocupam


diversos locais e posições em uma hierarquia, que dependem, como mencionamos, das
específicas articulações dos especialistas rituais, bem como dos atores sociais que têm
posturas diversas em relação aos grupos rituais atuantes. Apresento a seguir o conjunto
dessas entidades que denotam a riqueza de circulação de fluxos de informações e de itens
culturais e o dinamismo que caracteriza a esfera do sagrado, viabilizada de modo especial
pela ausência de uma ortodoxia religiosa e política centralizadora.
A entidade no ápice da hierarquia é Deus, chamado por alguns de pai Tupã. Os
índios localizam sua moradia a uma distância extremamente longe da Terra, no alto
patamar dos céus. Embora considerado o detentor das forças mais poderosas de ação sobre
o mundo, configura-se como um Deus ocioso164 (Brelich, 2003 [1966]), isto é, aquele que
criou todas as criaturas do Cosmo e pode um dia destruí-las sem, no entanto, interferir na
vida cotidiana. Os Pankararu não se dirigem a ele para a resolução das dificuldades que os
afligem (doenças, desgraças ou empreendimentos de diferentes naturezas). Deus
primeiramente é a expressão em geral empregada para salientar a condição de
subordinação a ele das outras entidades cultuadas, às quais são dirigidos os pedidos de
cura, as preces, e o pagamento de promessas. Entre elas, os encantados – como em todos
os grupos indígenas do Nordeste – são especialmente cultuados paralelamente ou em
conflito com muitas outras, em sua maioria presentes em outros grupos indígenas e não
indígenas da região.

4.1 Os encantados

Como as outras entidades, também os encantados são uma criação de Deus. De


maneira geral, são apresentados como índios encantados em vida, isto é, índios que não
passaram pela experiência da morte, mas por um processo de transformação, tornando-se
imortais. São também definidos como defensores, guerreiros, protetores, protetores da
aldeia, espíritos superiores, guias, encantos, mestres, praiás ou homens. Esta última
designação atestaria a ausência de encantadas, todavia, elas existem, ainda que em número

164
A definição de deus otiosus, formulada por Brelich (2003 [1966]), refere-se justamente ao criador que,
depois de ter dado vida ao Cosmo, retira-se e fica distante, não sendo então considerado pelos crentes.
151

menor e, diversamente dos homens, não são levantadas, ou seja, não encarnam em uma
máscara e tampouco participam do grupo exclusivamente masculino de praiás.165 Embora
haja a tendência a ressaltar o maior poder dos encantados masculinos, as encantadas são
particularmente temidas.
Como no caso dos encantados tumbalalá (Andrade, 2002) ou kiriri (Nascimento,
1994), ou de outros grupos indígenas do Nordeste, muitos encantados pankararu foram
lideranças que se destacaram pelas ações que beneficiaram a coletividade e cujos efeitos
são associados aos saberes mágico-religiosos.
Segundo uma classificação militar, os encantados formam batalhões cujo ápice da
hierarquia é ocupado pelo general Mestre Guia, sendo ele considerado o chefe da nação,
os outros lhe devendo obediência, aí incluídos aqueles de alta patente, capitães e mestres.
Em ordem de importância seguem dois encantados, chamados de ordenança, os
encarregados diretos da máxima autoridade (o Mestre Guia) e seus protetores.166 As
classificações militares relativas a alguns encantados não se remetem às lógicas referentes
a conflitos bélicos. Pode-se dizer que respondem mais a uma necessidade de aglutinar,
disciplinar e encontrar consenso. Alguns interlocutores afirmaram que os encantados
formam uma irmandade e que as relações entre eles se desenvolveriam sem disputas. O
conflito caracterizaria unicamente as relações humanas, sendo desaprovado pelos
encantados. No entanto, a maioria chamou a atenção para a natureza competitiva das
relações entre os encantados que, diversamente das afirmações acima mencionadas, os
levam com frequência a enfrentar conflitos da mesma maneira que os humanos.
Embora as opiniões possam parecer discordantes, na realidade, elas correspondem a
posições que os atores sociais entrevistados podem mudar dependendo da situação. Se no
contexto de enunciação era preciso enfatizar a coesão social do grupo étnico, a primeira
opinião prevalecia. A segunda versão predominava quando emergiam claramente os
conflitos entre famílias e a necessidade do uso dos saberes mágicos para a resolução ou a
ativação dos mesmos. Em conversas informais, acentuava-se que os mais velhos mediam
forças, isto é, guerreavam, desafiando-se com os poderes mágicos; assim, através dos
encantados que pertenciam à própria família, atacavam e se defendiam. Não obstante as

165
No capítulo X será abordado o grupo ritual dos praiás e o ritual de iniciação dos rapazes no grupo.
166
Segundo as afirmações de Zé Alto, os encantados que ocupam as altas posições na hierarquia dificilmente
se manifestam nas mesas de cura, deixando para aqueles de grau inferior desenvolverem os trabalhos. Estes
últimos teriam seus poderes de acordo com as limitações dos superiores, que os controlariam e decidiriam
desfazer o trabalho quando percebessem algum descontrole ou abuso de poder.
152

argumentações visassem dissimular os conflitos existentes, relegando ao passado o jogo de


força e as guerras com elementos mágicos, o trabalho ritual para atingir eventuais inimigos
é uma prática atual, amplamente difundida e particularmente temida.
Nem todos os encantados são classificados com cargos militares; alguns levam
nomes de animais, pássaros, flores ou plantas, demonstrando ter características próprias,
preferências de oferendas e capacidades específicas na cura de doenças. Outros levam
nomes de rainhas ou princesas, reis e príncipes por se manifestarem nas aparições com
formas antropomórficas, que são descritas como as de homens e mulheres de beleza
incomparável, trazendo coroas e vestimentas suntuosas,167
Seriam entidades que manifestariam comportamentos ambíguos e temperamentos
variáveis, como aqueles que dominam a mata e a água:168 por um lado, demonstram
disposição para ajudar e proteger os índios, por exemplo, durante a caça ou outras
atividades desenvolvidas no território que eles controlam; por outro, podem exigir algo ou,
como afirmaram vários interlocutores, “eles podem querer pegar as crianças ou os
homens”.
Malgrado portadores de uma qualidade substancialmente diferente dos humanos – a
imortalidade – os encantados não habitam um lugar distante da Terra. As respectivas
moradias são castelos ou palácios localizados nas serras e nas fontes de água que
circundam a aldeia e cujo conjunto é chamado de reino encantado. A moradia depende da
linha do encantado, que pode ser de água, terra ou fogo. Portanto, cada encantado domina
e trabalha com uma dessas linhas, ou consegue dominar várias, sendo então considerado

167
A atribuição de perfis aristocráticos aos encantados pode ser o resultado de um processo de valorização
dos mesmos devido a ações empreendidas por seus membros durante a época imperial. Chama a atenção o
fato de que o imperador Pedro II e a princesa Isabel têm um lugar privilegiado na memória dos interlocutores
mais velhos, atribuindo-lhes valores particularmente positivos. Por exemplo, contam que a princesa Isabel
teria escrito uma carta com tinta de ouro que reportava o verdadeiro número de hectares da terra pankararu.
Acentua-se o seu caráter benevolente, chamando-a de “defensora dos índios” por ter se oposto às conquistas
e às invasões territoriais dos fazendeiros e líderes políticos locais. O valor positivo atribuído também ao
imperador Pedro II pode ser fundamentado historicamente em função da sua passagem pelas margens do rio
São Francisco durante a viagem realizada em 1859 – período em que os últimos aldeamentos foram extintos
e a “tutela” dos missionários começava a faltar, e os índios, vendo suas terras serem invadidas pelos
fazendeiros, teriam procurado o imperador para fazer valerem os seus direitos, obtendo em vários casos
doações de terra (Nascimento, 1994; Andrade, 2002; Silva, 1997; Dantas, Silva & Carvalho, 2006). A
nobreza tornou-se símbolo de um poder distante e positivo, depositório de contos fantásticos em que
predominam imagens de riquezas e ouro em abundância, como é descrito o reino encantado, lugar “cheio de
fartura”.
168
Entre os encantados da mata, foram nomeados a Rainha da Mata Virgem, o Caipora, o Curupira e
diversas Mães d’Água. Em oposição, outros interlocutores disseram que a Mãe d’Água e os Caiporas não
seriam encantados, mas bichos ruins, isto é, outras entidades que dominam esses habitats naturais,
reconduzidos às forças da natureza.
153

mais poderoso. Cada encantado possui seu toante, música e letras que apareceram em
sonho ao seu dono e que poucos sabem reconhecer (Cunha, 1999). Por ser algo que se
recebe divinamente como outros dons, os toantes não podem ser “criados”, mas devem ser
o fruto de uma revelação imprevista. Através dele o encantado é chamado para aparecer
durante os trabalhos de cura domésticos, assim como durante os rituais coletivos.169
Segundo as afirmações de Zé Auto,170 alguns encantados não foram índios,171 como
é o caso do Capitão Dandaruré, um dos encantados zelados na sua família e que pertencia
à sua avó Maria Pedro.

[...] ele é um padre militar, é um capelão, e então ele tem uma igrejinha
que se chama Nazaré e até o toante dele quando termina diz: vamos,
vamos nós embora; vamos, vamos para a aldeia, mestre; vamos, vamos
pra Jerusalém; vamos, vamos para a igrejinha de Nazaré.

Acrescentou que Dandaruré é um encantado “ligado à igreja” e ganha uma festa


anual no sábado de Aleluia, isto é, na vigília da Páscoa. Os mais idosos da sua família
contaram-lhe que durante a noite da vigília havia de se buscar a “aleluia”, que consistia em
“três espinhos de sangue”. Caso não os achassem, “o mundo ia se acabar”. Tal história foi
apresentada por Zé Auto como a “história tradicional de Dandaruré”, o capelão que
ensinava o caminho para a salvação. Esta narração permite considerar a possibilidade de
que personagens – como os missionários – pudessem ser incorporados aos próprios cultos.
Antes do segundo processo de territorialização, grupos de indígenas podiam legitimar uma
dominação tutelar do tipo “particular”, em que figuras carismáticas (religiosas ou
seculares) que demonstravam capacidades organizativas e administrativas, “protegendo”
grupos de perseguições e ameaças, tornaram-se referências. Em alguns casos, eram
atribuídos a essas pessoas especiais poderes xamanísticos, os quais, segundo suas
concepções, permitiram-lhes ascender ao lugar das divindades sem passarem pela

169
Sobre uma análise da música pankararu, ver Cunha (1999).
170
Como já foi mencionado, Zé Auto é, dentre os caciques pankararu, um especialista ritual renomado e dono
de praiás.
171
Zé Auto foi o único interlocutor que afirmou a existência de encantados não índios; todos os outros,
indagados sobre o assunto, enfatizaram o contrário. A necessidade de dar maior ênfase à exclusividade
indígena dos encantados pode ser o resultado da importância atribuída à etnicidade a partir do segundo
processo de territorialização.
154

experiência da morte, ou eram concebidos como seres divinos enviados de Deus e, desta
forma, nunca tiveram existência humana.172

4.1.1 Da origem dos encantados, de encantamentos e levantamentos

Os relatos sobre a origem dos encantados fazem referência a um passado longínquo


que, embora com grandes variações, abrange tópicos sobre as forças que são consideradas
as mais poderosas e que são ligadas à natureza.
Há divergências quanto ao número dos primeiros encantados: alguns fizeram
referência a 25, outros a 13, 12, oito e ainda a três. O relato de Zé Binga173 destaca o
momento do dilúvio, quando os índios (na sua versão, em número de 25) conseguiram se
encantar, escapando do cataclismo provocado por Deus, irado com os comportamentos
imorais dos humanos. Mais que o resultado de atos heroicos, Zé Binga acentuava que os
primeiros índios foram escolhidos para o encantamento por terem conquistado o
merecimento, isto é, haviam conduzido as próprias vidas dentro dos parâmetros morais
ditados por Deus. O desvio dos preceitos morais teria provocado não apenas a mortalidade
dos humanos, mas também determinado a sua transformação em sofredores. Zé Binga
explicitou que os índios escolhidos para o encantamento pertenciam ao grupo étnico
Pankararu, enfatizando que os outros grupos indígenas nordestinos têm diversos
encantados com os respectivos segredos e as próprias histórias. Esses primeiros
encantados, sendo os ancestrais dos Pankararu, embora possam se afastar por causa dos
comportamentos “desviantes”, voltarão sempre a se aproximar de seus parentes em virtude
dos laços de parentesco que os unem. Acentuou ainda que as famílias que pertencem ao
tronco velho e que são zeladoras de praiá podem chegar a levantar os 25 encantados desse
primeiro batalhão a partir da semente mestre que custodiam.

172
Os antigos missionários incentivaram a própria idolatria por parte dos índios, buscando centralizar a
catequese no próprio carisma. Como foi salientado por Pompa (2002, p. 382), tentaram ocupar o lugar dos
xamãs – principais inimigos da catequese – demonstrando ter práticas de cura mais eficazes a partir de
técnicas de enfermagem rudimentares.
173
Zé Binga, lembro aqui, é um membro do tronco Binga e, especificamente, do grupo doméstico fundado
por Antonio Binga, dono de um batalhão de encantados, gozando, portanto, de particular prestígio. É
membro também do grupo ritual penitente.
155

Maria Luísa dos Santos (Maria Cabocla)174 relatou que os índios “surgiram da
terra”, acentuando o pertencimento à natureza. Relata que Deus teria mandado pela
primeira vez São Pedro para controlar os seres humanos na terra. De volta da viagem,
contou-lhe que os índios estavam “trabalhando direitinho”, deixando-o tranquilo. Passado
um tempo, Deus pediu novamente a São Pedro para descer a terra e controlar os
comportamentos dos índios. Desta vez, São Pedro não os encontrou e, assustado, voltou
imediatamente para contar o acontecido. Incrédulo, Deus mandou novamente São Pedro a
terra, pedindo-lhe para prestar mais atenção. Surpreso, desta vez o santo conseguiu ver
somente os olhos dos índios que brilhavam na terra, e depois receber a explicação de que
os índios haviam se encantado. O encantamento, também neste caso, se deve à boa
conduta dos índios avaliada por Deus. O relato de Maria dava ênfase ao pertencimento dos
índios à “natureza”, opondo-os aos não índios que pertenceriam à “civilização”. O discurso
construído a partir desta dicotomia ressaltava que os índios dependem da própria terra para
a sobrevivência, exaltando-se a “brabeza” de seu temperamento.175
Zé Auto apresentou-me uma versão bastante diferente das acima mencionadas.176
Começou a narração acentuando que os primeiros encantamentos se deviam a um
acontecimento pontual, distante bem longe no tempo, e que envolvia o tabaco necessário
para fumar o cachimbo, instrumento ritual principal para a comunicação com as divindades
e para as práticas de cura. Contou que alguns índios haviam se encontrado para dançar em
um terreiro e, durante a dança, o principal dançarino – o capitão mais idoso – que guiava a

174
Maria foi esposa de Luís Ocioli de Oliveira, mais conhecido como Luís Caboclo, falecido em 2006. Ele
foi pajé e dono de praiá e pertencia a uma das famílias do tronco velho. A mãe – Maria Chulé – era a
principal referência nos assuntos relativos às práticas mágicas, uma das quatro Marias. Teriam se conhecido
em Alagoas, onde Maria morava com a família. Sendo ela não índia, conta que, quando se deslocaram para
Brejo dos Padres, teve que enfrentar adversidades no processo de inserção na aldeia, sofrendo com o medo de
ser expulsa pelo chefe do Posto.
175
De forma bastante clara, tal argumentação se presta – juntamente com os sinais diacríticos – à construção
do discurso que marca a diferenciação étnica, embora neste caso eleve-se a identidade indígena sem
especificações do grupo étnico em pauta. A sua argumentação visava enfatizar o pertencimento em comum
dos índios do Nordeste a uma única identidade, sendo os encantados encarregados por Deus para deles
cuidar. Exalta-se aqui uma identidade indígena genérica, com características que remetem às imagens de um
“primitivismo” que se poderia associar aos discursos construídos sobre a simplicidade das formas de vidas
dos índios, que reforçam e renovam permanentemente a ideia do “bom selvagem”, que correspondem às
políticas de identidade do presente e se difundem entre agências de turismo cultural e através delas. Esta
representação da alteridade intensifica a atribuição de essências imutáveis às populações em pauta, contendo
em si a informação da “forma correta” de ser indígena, o que incentiva as imputações de “inautenticidade”
(Thomas, 1994). Pode-se argumentar que houve um processo de apropriação de tais discursos por parte dos
índios, que deles se valiam para reivindicar os próprios direitos, usando-os também estrategicamente como
canal de ascensão social dentro do próprio grupo.
176
Matta (2005, p. 75) apresenta em seu trabalho uma versão editada da narração de Zé Auto que contém
poucas variações.
156

fila, pediu tabaco ao cantador que estava puxando os toantes. Como que era um período de
muita seca, o tabaco estava particularmente escasso e o cantador respondeu ao capitão que
ele não o tinha, mas que iria pedir à sua esposa, se ainda tivesse um pouco. Não obstante o
pedido do marido para o capitão fumar, a mulher decidiu negar o tabaco. Tal negação
provocou a transformação do casal: o homem transformou-se em uma árvore de imbu e sua
esposa, em raposa obrigada a comer os frutos do imbu. Os outros que estavam participando
da dança não receberam qualquer castigo, e se encaminharam para o rio São Francisco. Ao
chegarem à cachoeira de Itaparica, sentiram-se transportar dentro das águas e ali se
encantaram. Com eles havia uma criança que também havia se encantado, mas decidiram
mandá-la de volta à aldeia para que contasse o sucedido e falasse das belezas e das farturas
do reino encantado.177
Como se pode depreender destas últimas versões, diversamente das outras, não há a
presença de um Deus superior que teria determinado o nascimento dos encantados.
Tampouco é explicitado quem teria infringido o castigo ao cantador e à sua esposa. O que
se deduz é que houve o encantamento dos índios que participavam da dança e que,
diferente dos castigados, não quebraram as regras morais do convívio. Como bem observa
Matta (2005, p. 118), o castigo foi reservado aos que demonstraram uma atitude egoísta,
negando o tabaco pedido pelo capitão. A esta observação, sublinhada também por Zé Auto,
há de se acrescentar que, como em outras narrações (como a história de Lianô que será
descrita mais adiante), a mulher é quem infringe as regras, provocando o castigo não
somente para ela, mas também para seu marido.
Estas narrações, que atestam a construção de um quadro moral em termos de
gênero, idade e etnicidade, não se apresentam, no entanto, como o fundamento principal
para legitimá-lo, isto é, não há entre os Pankararu a necessidade de explicar e legitimar
uma ordem moral a partir das histórias das origens.178

177
Também Arruti (2004) reporta uma versão interessante dos primeiros encantamentos relacionada às
cachoeiras. O autor relata que “Algumas narrativas contam que o surgimento dos Encantados e dos próprios
Pankararu deve-se ao encantamento de toda uma população de índios – uma “tropa” – que teria se jogado na
cachoeira de Paulo Afonso. Foram esses encantados que passaram a habitar a cachoeira e que tinham origem
em todas as “nações” antigas, que se comunicavam por meio de estrondo das águas, prevendo desgraças,
mortes ou mesmo novos encantamentos” (p. 271).
178
Em alguns casos, pode-se fazer referência a personagens que forneceram exemplos concretos das virtudes
comportamentais e que, sobretudo, demonstraram especiais conhecimentos mágico-religiosos que lhes
permitiram ter o merecimento de se encantarem. Os troncos ou as famílias extensas que cultuam familiares
que se encantaram, por exemplo, podem tomá-los como referencial de conduta moral.
157

Completamente diversas são as conclusões às quais chega Ribeiro (1992). Como já


se mencionou na introdução desta tese, esta autora, com uma abordagem estritamente
estruturalista, dedicou-se à análise de mitos e mitemas coletados em campo; fragmentos de
enunciações cujas vozes não foram explicitadas. Esses fragmentos foram unificados e lidos
como um “texto” único (como ela mesma afirma) para depois serem delineadas as
dualidades que definiriam o “imaginário pankararu”, o qual orientaria tanto as relações
interétnicas quanto as de gênero. Como bem observa Peirano (2003, p. 35), na perspectiva
levistraussiana, a ênfase nos mitos, que servem para que se compreenda o “pensamento”,
leva a desprezar o papel dos ritos, relegando-os a simples manipulações de símbolos. Ao
contrário e de acordo com Turner (1974a, 1974 b), a posição aqui tomada releva a
importância dos rituais, o interesse sendo dirigido às formas organizacionais da vida social
e não às estruturas mentais.179
Como já foi salientado por Arruti (1996), os encantados não se encontram em
número finito, pois mais índios podem chegar a se encantar, ou antigos podem ser
levantados, o que permite a ampliação das entidades do Cosmo.
O fenômeno do encantamento é apresentado como um segredo a ser descoberto.
Índios que demonstraram especiais poderes de cura e se destacaram por seus
comportamentos morais tiveram o merecimento do encantamento. É o caso, por exemplo,
de Antonio Binga, já várias vezes citado, cuja família extensa lhe dedica um culto especial.
Embora seus filhos nunca o definam como um encantado, afirmaram que ele havia
conseguido o merecimento e alcançado o reino encantado por ter sido um destacado
curador, pai de praiás e uma liderança ativa na luta pela terra. Pelo dom que Antonio
Binga demonstrou ter em vida, pelo seu envolvimento na busca de direitos para a
coletividade, e ainda por uma série de elementos mágicos que marcaram sua existência, os
familiares inseriram-no no próprio batalhão de encantados, já especialmente numeroso em
relação às outras famílias do próprio tronco.180
Em virtude de os levantamentos de encantados sofrerem críticas, as famílias
dificilmente declaram em público o encantamento dos familiares. O culto a ele e os rituais

179
Como se verá na terceira parte deste trabalho, nos rituais é que são produzidos e reiterados os valores
sociais de um quadro moral, em que são mobilizados não apenas os indivíduos, mas também as entidades, no
esforço de construção e comunicação de status diferenciados e de prestígio, e noções morais são veiculadas.
180
As disputas que emergiram a partir do início do culto a Antonio Binga, como já destacado por Arruti
(1996), foram devidas ao fato de ele ter sido um contraponto ao culto do encantado Mestre Guia, em virtude
das desavenças entre as lideranças das respectivas famílias extensas. Este tema será retomado ao ser
analisada a “festa de Antonio Binga” no Capítulo VIII.
158

de cura em que é chamado podem ficar circunscritos por longos períodos ao quadro
familiar. São os chamados encantados de mesa, isto é, aparecem durante os rituais de cura
domésticos e, na maioria dos casos, são chamados pelos próprios familiares para que
ofereçam conselhos, como costumavam fazer em vida.
Se, por um lado, são enfatizados os aspectos mais positivos do encantamento, como
a possibilidade dada a quem alcança o merecimento – homens ou mulheres com
capacidades mágicas e comportamentos morais valorizados – por outro, há processos que
não são voluntários e desejados. Narram-se histórias de encantamentos forçados de pessoas
que, por terem infringido regras morais, teriam provocado a ira dos encantados que, como
forma de punição, decidiram encantá-las. É o caso de Lianô, cuja história ressalta o castigo
infringido a uma garota ainda adolescente por ter desobedecido à mãe.
Conta-se que o pai de Lianô tinha caçado uma juriti181 e levou-a para casa. Lianô
queria comer o pássaro, mas a mãe proibiu-a, porque estava “na fase de lua”. Malgrado a
interdição da mãe e os avisos sobre o perigo que podia correr, a menina, escondida dos
pais, comeu a juriti. Logo depois, começou a se sentir mal, manifestando sinais de loucura
e começando a correr desesperadamente.182 Quando chegou ao alto da serra, não soube
mais voltar atrás. Os familiares a procuraram, mas, embora ouvissem seus gritos, nunca a
encontravam. Por muitos anos continuaram a escutar o eco de seus lamentos e, por isso, a
serra, que antes se chamava Morcego, hoje se chama serra de Lianô. A desobediência aos
pais associada à infração de comer a juriti, que é potencialmente um encantado, e ainda
mais durante o ciclo menstrual, tido como impuro e altamente perigoso, faz da história de
Lianô um condensado de preceitos morais como tantos outros que são geralmente
veiculados através das histórias183 que cada família se encarrega de narrar, mas que não se
pode dizer que tenham níveis elevados de divulgação e de padronização.
Existe uma classificação polarizada que divide os encantados do bem e do mal que,
transposta para o trabalho ritual, associa-se respectivamente à direita e à esquerda.
Indiscutivelmente, os encantados mais antigos, portanto, vinculados às famílias dos

181
Ave da família das Columbidae.
182
Em outra versão, salientava-se que Lianô começou a “criar penas” como a juriti. A mãe, assustada, levou
a filha a vários curadores, que não puderam salvá-la. Foram eles que decidiram levar Lianô para longe da
aldeia a fim de afastar eventuais riscos por causa dos sinais de loucura que manifestava. Nesta versão, não
seria a mesma Lianô que teria fugido para a serra, mas sim os curadores que a levaram e a amarraram lá.
183
A desobediência à mãe, com o consequente castigo, é tema recorrente em várias histórias. Por exemplo, a
história do filho da velha Vicência. Narra-se que o filho teria batido violentamente na mãe e ela, ao maldiçoá-
lo, transformou-o um lobisomem, que toda noite volta ululando espantosamente.
159

troncos velhos, são reconhecidos por todos os índios interpelados como os do bem. Os que
foram levantados recentemente despertam a preocupação justamente – mas não
unicamente – nas famílias dos troncos velhos e nos especialistas rituais mais idosos. Entre
os jovens particularmente engajados nos rituais da tradição indígena é explícita a recusa,
ou pelo menos a preocupação, em relação à multiplicação dos encantados.
Alguns encantados não pedem o próprio levantamento, ou seja, a realização da
máscara de caroá – o praiá – e trabalhará ritualmente com o especialista que zela por ela,
mas será evocado apenas nos trabalhos rituais domésticos. O levantamento de um
encantado acontece, na maioria dos casos, depois de ter achado uma semente que apresenta
características peculiares, tendo consistência, forma e cor que devem ser avaliadas. Não
necessariamente uma semente, podendo ser uma pedra, ou um fóssil, ou ainda uma
cerâmica que os índios em geral levam em seu aiô – bolsa de caroá – junto com os
cachimbos, ou escondida em algum lugar. É importante que ela apareça e seja reconhecida
como sinal de entidades da esfera do invisível, e seu encontro é relatado como
imprevisível.184 Por serem indestrutíveis, essas sementes tornam-se elementos e metáforas
da perpétua regeneração e do potencial construtivo de novas coletividades. Com efeito, os
grupos étnicos definidos como pontas de rama, para se afirmarem, precisam achar a
própria semente, aquele elemento que em circunstâncias favoráveis pode aparecer
inesperadamente e mostrar a própria vitalidade. Como já afirmou Arruti (1996, 2004), o
compósito de metáforas vegetais, como tronco, ramas, galhos e sementes, é também usado
no contexto de emergência étnica.
Se, por um lado, as sementes tornaram-se um dos símbolos de emergência étnica,
seu achado pode transformar-se no canal para reivindicar um direito individual dentro do
grupo, para que seja reconhecido o dom que detêm somente alguns oficiantes. A avaliação
da semente – segundo o quadro normativo – compete aos pais e mães de praiás mais
idosos e, sobretudo, ao pajé. Como qualquer norma, também esta limita, mas não bloqueia
as práticas sociais que dela se afastam. Pelas repetidas queixas ouvidas, parecem ser
poucos os que recorrem aos especialistas rituais legitimados para a avaliação das sementes,
do que resulta uma multiplicação “descontrolada” de praiás. O levantamento de novos
encantados é fruto de uma crítica interna sobre o monopólio do capital simbólico

184
Alguns relataram que foram encontradas depois de um sonho ou de uma visão na própria casa.
160

(Bourdieu, 1989) que demanda uma distribuição mais democrática.185 Uma forma de
controle é o descrédito que fazem recair sobre os encantados recém-levantados, tachando-
os de “falsos” e, sobretudo, de “perigosos”. Seriam “enganadores”, forças diabólicas que
se apresentam como benfeitoras por terem também capacidade de cura.186
A resistência em aceitar a emergência de novos encantados, conotando-os como
seres malignos, é contrabalanceada pelo reconhecimento de um processo de transformação
em seres benéficos vivido por eles, isto é, dependendo da atuação do especialista ritual, o
encantado poderá adquirir fama positiva.
Há de se salientar que o levantamento de novos encantados não chega a ser tão
grave quanto o levantamento daqueles já existentes que ocasionam disputas acirradas. A
duplicação de praiás é um fenômeno em expansão que gera especial indignação. É o caso,
por exemplo, do “segundo ropão” ou “encantados clones”, ou seja, a máscara de um praiá
já existente, cujo pertencimento é reivindicado por uma família.
Nas narrativas dos especialistas relativas a este fenômeno, foram destacadas as
preocupações da expropriação que se cometeria ao “clonar” um praiá, sendo ele uma
pertença do zelador de sua própria família. Zé Auto afirmou com ênfase:

Porque se a minha família de tradição trabalha com esses homens, ela só


faz benefício, não gosta de esquerda. Por que vou deixar outro levantar
pra andar bêbado fazendo maldade? Aí vai desmoralizar o meu também,
né? Só a família sabe qua[is] [são] os pontos! Tem que passar de família
para família. Então, não é porque é um praiá da aldeia que todo mundo
vai querer levantá-lo, né? Tem a família, tem que ter o respeito! Aí eu
acho uma falta de respeito isso. Na aldeia ninguém concorda com que
seja duplicado!

4.2 De exus, espíritos, santos e padrinhos: as outras entidades do Cosmo

Com o objetivo de desacreditar os encantados recentemente levantados, Zé Auto


afirmou: “Tem alguns guias aqui com os quais algumas pessoas trabalham como se fossem
encantados. Só que não é. É exu”. Os exus seriam, segundo Zé Auto, “anjos diabólicos

185
As críticas são dirigidas aos detentores da ciência que, ao limitarem o acesso aos conhecimentos, mantêm
o monopólio das chances de poder, reservando-as a uma pequena minoria.
186
Francisco Calu (curador e zelador de praiás pertencente ao tronco Calu), para reiterar os perigos
existentes nos trabalhos com esses encantados, buscou aportar maior legitimidade à sua argumentação
apoiando-se nas palavras dos mais velhos, os quais lhe teriam contado que, quando encontravam pedras
falsas, portanto, distintas das sementes mestres, eles as embrulhavam, jogavam na terra ou na água e diziam:
“É pra besta que vem atrás!”.
161

jogados lá dos céus para a terra”, mas nem sempre associados aos novos encantados.187
Podem ser classificados como bichos pesados em função das doenças que provocam, mas,
diversamente de outros bichos perigosos, não habitam os arredores da aldeia. Fazem parte
do Cosmo, mas são entidades consideradas externas à aldeia. De forma geral, quem
trabalha ritualmente com eles é considerado não índio, especialistas rituais vinculados aos
cultos da Umbanda e do Candomblé188 que moram nos arredores da aldeia, em cidades ou
povoados. Os ataques de tais entidades seriam o resultado de feitiços mandados por
especialistas rituais consultados pelos índios. Contudo, afirma-se com amargura que dentro
da aldeia existem práticas parecidas.
Enquanto descrevia para mim as múltiplas entidades, Zé Auto dava-me detalhes
sobre como elas são articuladas, desempenhando papéis diferenciados. No caso dos exus,
afirmou que “eles fazem trabalho escravo”, acentuando que se encontram na posição mais
baixa da hierarquia.
Outras entidades que enriquecem o Cosmo Pankararu são os espíritos dos mortos,
também classificados dicotomicamente entre os do bem e os do mal. São pessoas mortas
que aparecem para os familiares ou encostam-se neles ou em outras pessoas. Podem
revelar-se durante as sessões de cura, oferecendo conselhos ou, no caso de espíritos maus,
atrapalham os trabalhos rituais, criando confusão e mal-estares. Alguns têm poderes de
cura, como no caso contado por Orelina e Dora. Uma das três filhas de Orelina, Zenaide,
passou por três noivados que “não deram certo”, pois em nenhum dos casos conseguiu se
casar. Uma doença, que não foi especificada durante a narração, levou-a a viajar para
Recife. Na véspera da viagem, comentou com Dora que não iria voltar. Poucos dias depois
os sinos da igreja de Santo Antônio tocaram para os mortos e Orelina, embora temesse pela
filha, pensou que não poderia ser nada relacionado a ela, pois ninguém a avisara do seu
falecimento. A notícia foi dada a Orelina pela irmã de Zenaide, Leonise.
O relato emocionado de Orelina continuou, acentuando os acontecimentos futuros.
Zenaide chegou “toda envelopada” a Brejo dos Padres quatro dias depois da morte. A

187
Tranca Rua, Pomba Gira, Senhor das Trevas, Zé Pilintra, Preto Velho, Maria Padilha e algumas Mães
d’Água foram em alguns casos classificados como exus e são seres temidos. Diversamente, segundo os dados
reportados por Matta (2005), estas entidades seriam em sua maioria encantados maléficos que habitariam
principalmente as matas e as águas (p. 154-155).
188
Frequentemente se usa o termo macumba para designar todos os rituais que envolvem feitiços.
Macumbeiro é empregado para nomear os oficiantes dos cultos da Umbanda e do Candomblé, como
sinônimo de “feiticeiro”, sendo particularmente ofensivo. A apropriação desta última categoria de acusação
por parte dos índios – usada antigamente pelos missionários para designar os xamãs indígenas – recai agora
sobre os negros e os brancos envolvidos nas práticas rituais acima mencionadas.
162

família queria vesti-la adequadamente antes do enterro, mas alguém se opunha a abrir o
“envelope” pela possibilidade de o corpo se encontrar em estado avançado de
decomposição, com cheiro muito forte causando desagrado aos presentes. A mãe e as
irmãs não quiseram escutar esses comentários e decidiram abrir o “envelope”, o que
causou o estupor de todos porque, em lugar do previsto, o corpo emanou “cheiro de
flor”.189 Este sinal milagroso foi reforçado pelos comentários que acentuavam o fato de que
Zenaide “morreu moça” e, portanto, sua “pureza” havia se mantido imaculada.
Orelina contou que passou muito tempo sem se conformar com a morte da filha,
mas depois aceitou a desgraça, porque afirmou ter entendido qual era a “sua missão”.
Passado um tempo do falecimento, Zenaide começou a baixar em algumas rezadoras, e
atualmente se manifesta somente através das duas irmãs, sobretudo Leonise. Com os olhos
brilhando, Orelina afirmou orgulhosa que sua filha fez já “muito benefício”, tendo
realizados curas e salvado muitas pessoas. A filha, falecida em 1988, morreu virgem para
“cumprir a missão”.190 Segundo a explicação de Dora, Zenaide seria um espírito bom que,
como outros, por ter atuado em vida seguindo rigidamente os valores morais aceitos, após
a morte tem o poder de curar, ou pelo menos de aconselhar. De forma diversa, os espíritos
maus seriam pessoas que “só viviam bagunçando” e, após a morte, continuam tendo e
incentivando comportamentos considerados “desviantes”, provocando doenças ao se
encostarem, atrapalhando nas mesas de cura e na vida em geral.
Os espíritos dos antepassados são os ascendentes familiares mortos há muito
tempo, os ancestrais dos troncos que, com seus conhecimentos mágico-religiosos, ajudam
os próprios familiares, aparecendo-lhes e orientando-os.
Além dos espíritos mencionados, existem os chamados guias de luz. São também
espíritos, mas especificamente de penitentes. Como os espíritos bons, atuaram em vida de
uma forma moralmente aceita e em alguns casos se destacaram por terem sido
particularmente caridosos, agindo em prol da coletividade. Alguns eram em vida rezadores

189
Narrativas como esta foram bastante recorrentes durante a pesquisa de campo. A exalação de “cheiro de
flor” dos corpos de defuntos é considerada sinal de milagre e associada a uma não morte ou a uma
transformação em algo divino.
190
“Cumprir uma missão” ou “cada um tem sua missão” foram expressões que ouvi várias vezes durante a
pesquisa. Trata-se de um caminho predestinado que, em alguns casos, é um dom que desde o nascimento
começa a se mostrar e a se desenvolver. Mais usual dentro do circuito de romeiros e penitentes, a expressão é
empregada para exaltar tanto a ação caridosa em vida quanto a participação ativa e frequente em romarias,
rezas e penitências, além da demonstração de submissão aos padrinhos e às madrinhas, líderes religiosos
com os quais estabeleceram fortes vínculos.
163

e acredita-se que continuem acompanhando os penitentes nas andanças noturnas; também


podem se manifestar nas mesas de cura.
Pode-se observar que os espíritos, embora recebendo diferentes classificações, são
mortos que continuam presentes na vida cotidiana dos índios, acreditando-se que
perambulem entre os vivos. Diversamente dos encantados que habitam em um reino
específico, os mortos têm sua moradia nos cruzeiros no alto das serras ou nos caminhos da
aldeia, ou ainda nos quintais das casas.
Os santos – cujas imagens e estátuas se encontram nos oratórios domésticos, nas
igrejas e também nos salões onde são zelados os praiás e onde se realizam as mesas de
cura – são considerados seres particularmente caridosos e bondosos. É muito difuso seu
culto, sendo considerado algo extremamente antigo. A eles também são dirigidas rezas,
pedidos e pagamento de promessas, embora não sejam consultados nas mesas de cura ou
tampouco apareçam durante as sessões. Diversamente das outras entidades até agora
mencionadas, os santos não baixam durante os trabalhos de cura e nunca são incorporados
nos momentos de transe. São entidades auxiliadoras nomeadas em rezas, novenas e mesas
sem terem, no entanto, ação ativa no ritual. Isto nos leva a considerar que os santos têm
uma participação menos ativa em comparação com a dos encantados e da Santa Cruz
(como se verá mais adiante), sendo estas entidades ativas tanto nos processos de cura
quanto na capacidade de afastar catástrofes naturais e na garantia da fertilidade da terra e
das atividades necessárias para se viver bem.
As imagens dos santos custodiadas nas casas são inúmeras, mas são poucos aqueles
que recebem uma forte atenção. Entre eles, Santo Antônio e São Francisco têm maior
destaque, seguidos por Nossa Senhora da Saúde, Aparecida e da Boa Morte. Sobretudo
Santo Antônio, padroeiro da aldeia Brejo dos Padres, é particularmente reverenciado e
recebe em sua homenagem uma festa anual que se realiza a partir do dia 1º de junho e se
estende até o dia 13 deste mês.191 Alguns pankararu, embora nunca o tenham classificado

191
Cada dia é organizado por uma família diferente cujos membros - os “noiteiros”- se reúnem na ocasião. Os
parentes que moram distantes voltam para a aldeia e contribuem tanto economicamente quanto nos afazeres
organizativos para o bom sucesso da festa. Ao etnografar a festa, em junho de 2009, diversamente do
esperado, ou seja, que os recursos de todas as famílias fossem coletados pelos responsáveis da Igreja de
Santo Antônio para com eles organizar uma festa única para toda a coletividade, a homenagem ao santo se
torna mais um momento em que as famílias disputam o próprio prestígio. Ricos banquetes, desde as
primeiras horas da manhã até a noite, são oferecidos nas casas dos “noiteiros”, cuja preparação precisou da
ajuda de vários componentes das famílias, sendo parte da tradição oferecer carne, matando-se nos dias
anteriores bois, bodes e cordeiros, alimentos particularmente apreciados. Ao chegar a noite, todos se reúnem
na Igreja de Santo Antônio, onde o padre realiza a missa dando um tom sagrado ao evento. Este momento se
torna o prelúdio para a culminância da festa da “família-noiteira”, quando a carga mais pesada de fogos
164

como encantado, afirmam ser um santo “vivo”, presente no dia a dia e possível de ser
visto. “Caminhante” é outra expressão empregada quando se contam as andanças do santo.
Alguns disseram que teria partido de uma aldeia em Portugal para chegar ao Brasil,
instalando-se um tempo no antigo aldeamento já mencionado, localizado no município de
Santo Antônio da Glória, hoje Glória, no estado da Bahia, de onde provinham os
ascendentes de alguns pankararu atuais. Contam que o santo caminhou ao longo do rio São
Francisco ajudando os índios e ensinando a fé. Após um longo período de peregrinação,
teria chegado a Brejo dos Padres, onde decidiu permanecer junto a alguns frades que para
ali o levaram.
Parece significativa a crítica de Andrade (2002) dirigida às afirmações de Souza
(1996) sobre a impossibilidade de se perceberem os santos como pertencentes a um
sistema de crenças associado ao “catolicismo popular”, sem interseções com outras
significações. Ao falar de Santo Antônio, também particularmente cultuado entre os
Tumbalalá, o autor afirma que ele passou por um processo de “indianização”, sendo
considerado um “santo encantado” (ibidem, p. 224). Concordo com Andrade quanto à
existência de um processo de atribuição de significados diferentes aos santos e, no caso dos
Pankararu, a apropriação de Santo Antônio deu múltiplos resultados. O papel a ele
atribuído é diversificado e suscita discórdias: alguns o consideram o “chefe dos
encantados”, outros o colocam em um nível bem mais baixo na hierarquia do Cosmo,
recusando o poder enaltecido que os primeiros lhe conferem.
São Francisco também recebe particular atenção. As estátuas que representam este
santo e que aparecem na igreja de Brejo dos Padres apresentam uma peculiaridade a ser
ressaltada. Em outras igrejas – por exemplo, em Canindé, no Ceará – o santo aparece
rodeado de pombos com lineamentos suaves evocando bondade e humildade. Já na igreja
de Brejo dos Padres, São Francisco aparece com os braços cruzados no peito mostrando os

artificiais é disparada na pracinha em frente à igreja. “Quanto mais fogos tiver, mais bem-sucedida é a festa”,
comentavam entusiasmadas as pessoas que, reunidas e apertadas na entrada da igreja e nas laterais,
esperavam com ansiedade o espetáculo das luzes. A festa em si é concebida em sua dimensão familiar, como
uma oportunidade de reunião, de encontros e atualização dos eventos dos familiares que vivem perto ou
longe. É um momento para se contar o número dos participantes e, sobretudo, para que estes possam ser
colocados à prova, existindo, por exemplo, formas de cobrança implícitas ou explícitas dirigidas aos parentes
que moram em São Paulo, dos quais se pretendem generosas contribuições. Todos, no entanto, são chamados
a contribuir para que as expectativas possam se superaradas perante aqueles que, como eles, estão envolvidos
nas dinâmicas competitivas da festa. Como outros rituais, também a festa de Santo Antônio é um momento
de intensa performatização, em que a efervescência e o diferencial das famílias podem se manifestar
livremente sem a necessidade que há cotidianamente de medi-los, pois o tempo-espaço da festa os legitima.
165

estigmas e com a expressão de sofrimento.192 A pequena estátua é levada em procissão


pelos penitentes e simboliza essencialmente a morte, sendo também associada à imagem de
Jesus Cristo.
Cabe salientar que os santos presentes na igreja de Brejo dos Padres são percebidos
como pertencentes aos índios, que os consideram como parte do próprio Cosmo em virtude
de terem sido trazidos pelos missionários ou pelos índios que se deslocaram para Brejo.
Nos oratórios domésticos, ao lado das imagens dos santos, dificilmente faltam as de
Padre Cícero, Pedro Batista e madrinha Dodô. Com menos frequência aparece a imagem
do Velho de Inajá. Tais figuras carismáticas, como destacamos no Capítulo III, são
especialmente cultuadas e, como bem se sabe, não apenas pelos índios, mas em toda a
região Nordeste, também por outros grupos indígenas. Embora nunca classificados como
encantados, os índios afirmam que os padrinhos “não morreram”, mas “se mudaram”.
Diferente da maioria dos encantados que passa de uma condição humana à outra sem
morrer, e dos santos que morreram para depois serem reconhecidos como tal, os padrinhos
nunca foram humanos. Como se viu, os Pankararu, fervorosos seguidores, afirmam que os
padrinhos eram divinos, enviados de Deus e, ainda que aparecessem em diferentes
momentos e com diversas feições, tratava-se da mesma entidade. Padre Cícero ter-se-ia
transmudado em Pedro Batista que, por sua vez, transmudou-se no Velho de Inajá.
Como as outras entidades do Cosmo, os padrinhos e a madrinha Dodô recebem
pedidos e pagamentos de promessas por uma grande parcela da população, para além do
grupo ritual ao qual se pertença. Como os santos mais reverenciados, os padrinhos ocupam
um lugar de destaque nas rezas e, em virtude da proximidade estabelecida com eles pelos
ascendentes familiares e pelos mais velhos ainda em vida, os índios os consideram
divindades próprias. Mensagens e conselhos dos padrinhos podem ser recebidas durante os
trabalhos de cura através dos guias de luz e dos espíritos dos mortos que tiveram o
merecimento de se aproximar deles.
No Cosmo Pankararu, o Divino Espírito Santo e a Santa Cruz são entidades e
símbolos associados à morte.193 Fala-se desta última como “a dona do mundo”, “a cidade

192
É raro serem encontradas imagens de São Francisco com os estigmas. Provavelmente foi dada ênfase a
outros aspectos que marcaram a sua trajetória, pois somente nos últimos anos de vida surgiram os seus
estigmas após uma aparição de Jesus na cruz. Ressalto aqui que na igreja de Tacaratu e na casa da madrinha
Dodô, em Juazeiro de Norte, existe a estátua de São Francisco da Boa Morte. A imagem, neste caso, leva na
mão esquerda um crânio.
193
Matta (2005) destaca também a relação privilegiada entre o grupo ritual de penitentes e a entidade da
Santa Cruz, bem como com os espíritos dos mortos. Esta autora explicita que os espíritos dos mortos não
166

do Senhor Morto” e a ela também são dirigidos pedidos e pagas promessas. O Divino
Espírito Santo, cujo culto é particularmente vivo entre os penitentes, teria trazido
mudanças significativas ao passar entre os Pankararu, redimindo e transformando os
encantados maldosos, conseguindo subjugá-los e torná-los entidades do bem. A Santa Cruz
é cultuada por um grupo mais restrito de índios, embora não exclusivamente de penitentes,
e dá nome aos grupos rituais (feminino e masculino). Representada com uma cruz azul
ornada de fitas coloridas, é levada em procissão em todos os eventos rituais destes grupos;
considera-se que tem poderes extraordinários, permitindo a comunicação entre mortos e
vivos.

4.3 Algumas observações

Como foi visto até agora, os índios tendem a ressaltar de forma mais marcante a
diferença entre os encantados e os espíritos dos mortos. Os encantados não são forças
desencarnadas – cujas propriedades os índios associam aos cultos de matriz africana – mas
índios que descobriram o segredo de se encantar; portanto, seriam os próprios ancestrais.
Para reforçar a diferença entre as entidades mencionadas, os índios afirmam que os
encantados, por estarem vivos, são quentes, diversamente dos espíritos, que são frios. Esta
distinção a forma em que se desenvolve o trabalho ritual, pois os encantados não podem
ser incorporados. A possessão é um fenômeno que se manifesta apenas com os espíritos e
o especialista se encarrega de dominá-los. Diferentes em poder e natureza, o discurso
construído com base na dicotomia encantado/espírito do morto reforça as fronteiras entre
trabalho de índio/trabalho de negro ou branco. Os encantados tornam-se, assim, as
entidades por excelência para os indígenas quando demarcam a própria identidade, mesmo
que não se excluam a presença e a eficácia das outras até durante os trabalhos de cura.
Embora não se faça direta alusão ao trabalho de negros quando há a referência ao
trabalho ritual dos grupos penitentes, marca-se a diferença entre os cultos em virtude de
estes se desenvolverem com os espíritos dos mortos. No entanto, as fronteiras entre eles
são bastante flexíveis, quando estas classes de entidades são evocadas durante um mesmo
trabalho de cura.

teriam poderes de cura (p. 147). Com efeito, os Pankararu não afirmam que a cura vem dos mortos, mas eles
têm maior proximidade com a Santa Cruz, podendo assim mediar a relação entre ela e os vivos. Portanto, eles
têm uma participação ativa no processo de cura.
167

A acolhida dos espíritos e dos encantados ou ainda de exus numa mesa de cura
pode tornar-se motivo de discursos sobre a “mistura”, isto é, indicadores do afastamento da
“pureza indígena”. Os especialistas pertencentes às famílias dos troncos velhos – que
reivindicam para si a maior “pureza” e se identificam como os detentores da “autêntica”
tradição indígena – excluem a possibilidade de cultuar ou de se comunicarem com outras
entidades que não sejam os encantados, embora na prática as dinâmicas sejam bem mais
flexíveis.
Um aspecto especialmente relevante sobre a diferença entre essas entidades é que
apenas os encantados permitem formar heranças tanto em nível familiar quanto étnico, e se
tornam capazes de conectar e aglutinar grupos. Como se verá mais detalhadamente adiante,
os donos ou as zeladoras de praiás reivindicam a posse dos encantados como elementos
pertencentes a um coletivo que é a própria família ou tronco, tendo sobre eles direitos e
impondo aos outros o dever de respeitá-los. Os encantados não seriam, então, apenas os
símbolos identitários de um grupo, mas um patrimônio a ser salvaguardado. Daí as
disputas acirradas que emergem quando alguém levanta um encantado pertencente a outra
família.
Diversamente, os espíritos dos mortos ou os santos não criam heranças. Estas
entidades podem ter seguidores e até fiéis fervorosos, mas não formam grupos que as
reivindiquem como próprias e estabeleçam direitos sobre elas.
Os direitos sobre este patrimônio familiar ou étnico (contemplando-se as diferentes
escalas) parecem delinear certa rigidez da esfera do sagrado, como se a herança não
permitisse margens de negociações. Todavia, o direito sobre os encantados não é dado
uma vez por todas, pois são contempladas possíveis mudanças. Como se verá a seguir, o
mesmo encantado é quem avalia e escolhe seu dono, podendo desistir de quem foi
escolhido dentro do grupo familiar e chamar quem considere apto para desempenhar esse
papel. Esta particularidade revela um forte dinamismo não apenas da esfera do sagrado,
pois ela se reflete nas modalidades de interação entre grupos e pessoas que se caracterizam
por uma forte competição, impulsionando os atores sociais a mostrarem as próprias
capacidades performáticas no esforço de construir laços e alianças.
168

Capítulo V. Os especialistas rituais: dons, donos, heranças e


mistérios

Da descrição acima se pode depreender a riqueza em diversidade de entidades que


são cultuadas. As múltiplas entidades denotam a grande circulação de fluxos culturais de
diferentes matrizes. Pode-se dizer que indicam também a circulação dos indivíduos que em
suas andanças devem, além de aplicar seus “estoques culturais” (Barth, 1993), adquirir
elementos outros. Como se verá mais detalhadamente na terceira parte da tese, os
especialistas rituais deslocam-se para a realização de rituais em prol dos próprios pacientes
que pertencem a outros grupos étnicos. Além disso, os encontros gerados durante as
romarias – lugares de concentração e irradiação de fluxos culturais – contribuíram
sensivelmente para o acesso a conhecimentos, informações e performances rituais.
O conjunto de saberes que permitem comunicar-se com as entidades é restrito a um
número bastante reduzido de especialistas, e isto caracteriza uma acentuada assimetria na
distribuição desses conhecimentos. Em várias circunstâncias ouvi dizer ironicamente
“agora todo mundo quer ser médium!”. Tal expressão visava ridicularizar – sem acusar
diretamente ninguém – o aumento de interesse em participar de forma ativa da vida ritual,
isto é, fazer jus ao prestígio que ela oferece. Todavia, o descrédito não recai sobre toda a
classe de especialistas rituais que há na área. Na maioria das vezes tende-se a ridicularizar
sujeitos que, por serem demasiadamente jovens, são vistos com desconfiança ao
manifestarem excessiva segurança nos assuntos relativos às práticas mágicas. De fato, essa
segurança, de forma geral, é alcançada somente pelos especialistas mais idosos, tendo eles
no curso da própria vida refinado as capacidades de comunicação com as diversas
entidades, sabendo reconhecê-las e evitando ser enganados por aquelas que – como
explicitei anteriormente – pertencem à esfera maléfica.
A multiplicação de encantados – que desperta críticas e disputas – obviamente
significou um incremento sensível de especialistas. As acusações dirigem-se também a
quem levanta novos praiás e se torna seu/sua zelador/a ou pai/mãe, começando a exercer
práticas de cura e procurando atrair sempre mais pacientes. Obtida uma boa reputação,
participam dos rituais coletivos e promovem e realizam rituais no próprio terreiro. Assim
como os sujeitos mais jovens, também os recentes donos de praiás, além de despertarem
incredulidade por serem facilmente enganados pelas entidades maléficas, tornam-se
temidos.
169

Entre os que desempenham trabalhos rituais existe uma ampla gama de


especialistas rituais que recebem classificações diversificadas, a saber: benzedor, curador,
zelador-dono-pai e mãe de praiás, cantador, rezador, penitente e feiticeiro-macumbeiro.
Embora não exista uma explicação unânime sobre as diferentes competências dos
especialistas mencionados, fronteiras entre eles aparecem, merecendo dedicar-lhes atenção.
As diferenças podem ser relativas ao nível de poder mágico, como no caso do benzedor,
cujos poderes seriam limitados comparados aos daqueles possuídos por curadores ou
rezadores. Ele ou ela se limita a passar o ramo, técnica esta que pode ser usada também
por outros especialistas rituais para curar doenças de fácil resolução ou para fazer o
primeiro diagnóstico.
No caso das categorias de zelador e dono de praiá (tanto homens quanto mulheres),
embora sejam usadas alternadamente sem aparente diferença, os interlocutores consultados
marcaram enfaticamente a distinção. Matta (2005) também já destacou que o zelador seria
quem cuida do praiá, mas não necessariamente por ter recebido as chamadas do próprio
encantado, que foi acolhido como herança da família, tendo o zelador que cumprir com as
obrigações para com ele, homenageando-o, preparando e batizando todo ano a máscara.194
Dono é sinônimo de pai ou mãe do praiá, porque foi o encantado quem os escolheu e
chamou. Cabe aqui fazer uma observação a respeito da designação pai ou mãe da entidade.
Pelas considerações feitas pelos índios em diversas conversas informais, a definição de pai
ou mãe de praiá não significaria que o praiá é o filho. O pai e a mãe exercem estes papéis
em relação à comunidade de referência, pois são aqueles que conseguem comunicar,
agradar e convencer os encantados a agirem a seu favor.
As linhas demarcadoras de pertencimento a uma categoria ou a outra são traçadas
principalmente através de discursos que enfatizam a diferença entre as entidades que cada
especialista cultua e evoca nos rituais. Com já mencionei, ativa-se uma distinção entre
encantado e espírito do morto, associada, respectivamente, a trabalho de índio e trabalho
de negro-branco. No entanto, essa linha demarcatória não é inflexível, pois muitos
especialistas que trabalham com espíritos cultuam também os encantados e realizam curas

194
Os cuidados com as máscaras demandam custos elevados. A família inteira é chamada a participar dos
gastos. A máscara é composta de vários elementos: um saiote que cobre as pernas até os tornozelos (de fibra
de caroá); a máscara que cobre o rosto e que desce até a cintura, na qual são feitas apenas dois furos para
permitir olhar (também ela de fibra de caroá); o “chapéu” feito de plumas de peru; um pano que desce atrás
do chapéu e que os índios chamam “cinta”, cuja cor é distintiva do praiá; um penacho na extremidade do
chapéu, que pode ser extraído e oferecido em circunstâncias em que há a intenção de homenagear a presença
de alguém.
170

com a intervenção dos últimos. Segundo a maioria dos entrevistados, os rezadores seriam
os especialistas que trabalham com espíritos, e curadores, os que trabalham com
encantados.195
Tende-se a ressaltar o domínio dos poderes mágicos mais poderosos nas mãos dos
oficiantes do gênero masculino, pois, como se verá mais adiante, as mulheres são
impedidas de participar dos rituais no poro,196 nos quais se exige a presença somente dos
homens. No entanto, nas mesas de cura a diferença relativa aos poderes mágicos entre
gêneros não é cogitada. Há de se salientar que o número de mulheres especialistas é
bastante elevado, segundo os interlocutores interpelados, alcançando e provavelmente
superando o dos homens.

5.1 As chamadas e a formação

Os especialistas rituais são o eixo dos cultos domésticos, bem como os que
realizam práticas de cura e rituais coletivos, conseguindo atrair para eles um círculo de
seguidores que se tornam seus aliados.197
Como se verá, o prestígio de cada especialista depende de vários fatores: família de
pertença com reconhecidos conhecimentos mágico-religiosos, reputação moral, fonte dos
poderes de cura (se “aprendidos” ou “revelados” ou “de nascença”) e, sobretudo, em
virtude da eficácia de sua performance ritual. Mais altos níveis de prestígio podem ser
notados se esses especialistas estiverem engajados politicamente e se assumiram cargos
como o de pajé ou de cacique e tiveram êxito nas mobilizações para o alcance das
reivindicações da coletividade.

195
Os que se definiram como rezadores, mas que trabalham com os encantados, afirmaram que curador pode
ser chamado somente Deus, sendo ele quem realiza a cura, enquanto o especialista é apenas o médium no
processo ritual. Diversamente, aqueles que se definiram como curadores, além de serem médiuns, participam
diretamente na cura com o auxílio dos encantados. Segundo o relatório da COIMI (2007), tais categorias
foram usadas de forma contrastante pelos especialistas consultados pela equipe, não se podendo afirmar com
segurança a que práticas rituais estão associadas.
196
O poró ou rancho é um lugar reservado onde podem entrar somente os homens, e que se encontra em
geral um pouco afastado do terreiro ou da habitação. É um recinto alto, feito de palha entrelaçada, onde os
praiás e outros especialistas se concentram antes de entrar no terreiro ou descansam durante a execução. Ali
é consumido o tabaco e a garapa e, em casos especiais, a jurema. Há uma elevada discrição dos envolvidos,
sendo proibido divulgar o que ali acontece.
197
Neste capítulo estarei abordando a formação e a atuação dos especialistas individualmente. A atuação e as
formas de recrutamento e iniciação dos grupos rituais (penitentes e praiás) serão tratados, respectivamente,
nos capítulos VII e IX.
171

Outro fator que contribui para o acréscimo de prestígio é a iniciação realizada com
outro especialista de fama reconhecida. Ela acontece quando o indivíduo aceita se tornar
um especialista ritual – assumir o trabalho – depois de ter recebido chamadas das
entidades. A iniciação é realizada pelo especialista depois de este ter testado a aptidão do
indivíduo em se tornar um rezador ou curador. Então, começa o trabalho ritual para a sua
habilitação, desvelando a entidade que realizou as chamadas. Tal processo de preparação é
intitulado “limpeza das correntes”, que definirá, portanto, a entidade que será evocada nos
trabalhos rituais e se tornará a protetora do especialista em troca de um contínuo e
perseverante zelo.198 Cabe salientar que o especialista escolhido para realizar a “limpeza
das correntes” torna-se importante em função dos conhecimentos por ele ativados no
processo, isto é, se for um rezador, é bem provável que a entidade que prevalecerá na
“limpeza” seja um espírito e, no caso de ser um curador, a entidade será um encantado.
Ele também é importante em virtude do pertencimento familiar, pois, na maioria dos casos
em que a família é dona de praiá, o escolhido será preparado pelo especialista que faz
parte do grupo doméstico.
Nem todos os especialistas recorrem à “limpeza das correntes”. Algumas rezadoras
afirmaram que o dom de nascença lhe basta para exercer as curas, tendo-as realizado desde
muito jovem sem o auxílio de outros especialistas. Malgrado não tenha sido explicitado,
trata-se de mulheres que, dentro das próprias famílias, as mães ou as avós já eram
rezadoras ou mantinham fortes vínculos com outras.
O canal preferêncial das chamadas são os sonhos e as visões. A atividade onírica
para a comunicação com as entidades acompanhará a vida do especialista. A sua
interrupção ou o seu enfraquecimento é percebido como sinal de um voluntário
afastamento da entidade. O distanciamento é o resultado de faltas ou falhas nas obrigações
que competem ao especialista e que revelam a quebra das atitudes morais. Nesses casos,
acontece frequentemente que outro indivíduo receba a chamada da mesma entidade,
reivindicando o zelo e começando a realizar os trabalhos rituais com o seu auxílio.199

198
Em alguns casos, a “limpeza das correntes” não determina a entidade que protegerá o futuro especialista e
que será evocada para a realização das curas. Consiste em uma preparação “espiritual” em que o iniciador
prescreve banhos de ervas e outras formas de purificação.
199
É o caso de Raquel Bomba que, como já mencionei, é uma renomada mãe de praiá. Quem recebeu em
herança o encantado foi o tio de Dona Raquel, mas apenas ela recebeu a chamada. Por terem relações
próximas e estando dentro da própria família, tal passagem de herança não comportou qualquer conflito.
172

O período em que o futuro especialista recebe as chamadas pode variar


sensivelmente, chegando a durar até anos. Depende justamente de quando e se o escolhido
decide assumir o trabalho. Trata-se de um período particularmente importante, em que o
sujeito é capaz de manifestar distúrbios de diferentes naturezas, com particular destaque
àqueles ligados à esfera psicológica. Nos relatos sobre esse tempo, alguns especialistas
entrevistados ressaltaram o fato de se passar por fortes sofrimentos em função dos quais o
sujeito perde o controle do próprio corpo sendo governado pela entidade. Esse período de
liminaridade e crise (Turner, 1974a), ao qual é atribuído um caráter místico e
potencialmente perigoso, fará com que os seus familiares busquem um especialista que se
ocupará de iniciar o futuro oficiante. O relatório da COIMI (2007) destaca que o processo
de formação dos especialistas é associado a problemas de saúde mental que seriam
considerados pelos índios como sinais de uma capacidade de lidar com as entidades, mas
que o neófito ainda não estaria preparado para realizar curas porque antes ele precisa
curado (ibidem, p. 26).200 A cura seria então a chamada “limpeza das correntes”, isto é, um
processo de purificação de forças contrárias ou maléficas, algo impuro que não permite a
madura comunicação com as entidades. A metáfora da corrente é usada pelos índios não
apenas para indicar a presença de entidades diferentes, mas a posse do neófito por parte
delas. A corrente, entendida como uma “cadeia” que liga o especialista à entidade, poderia
ser abordada como uma construção nativa de “religião”, no seu sentido de religare.
Josivete de Andrade Pereira,201 rezadora de renomada fama, contou o processo de
descoberta de suas potencialidades:

Comecei a rezar [quando] eu tinha menos de 15 anos, ainda não tinha


filhos. Há 37 anos que eu rezo. De pequena, eu sofria muito, cheguei a ir
até em São Paulo para o hospital. Eu sentia agonia na cabeça, eu sentia
dores no corpo, dor na cabeça, desmaiava, estava fora de mim. Passava
três, quatro dias amarrada ali na igreja, o povo, todo mundo, ia me visitar.
Ficava sem comer, eu fiquei bem magrinha. Aí foi que foi descoberto que
eu era pra ser média, pra cura pra reza. A velha que descobriu era uma
velha que já morreu, que era de Olho d’Água das Flores. O nome dela era
200
Como o processo de iniciação do curador Mazateca, do sul do México, analisado por Taussig (1993
[1987], p. 418), o neófito precisava se curar para desenvolver seus poderes, do contrário, ele poderia
sucumbir, perder seu próprio espírito e até morrer.
201
Josivete tem 52 anos e teve com seu marido, Moisés Alexandre Pereira, 18 filhos, dos quais 11 estão
vivos. Como mencionei, é uma rezadora particularmente conhecida e recebe pacientes de muitos lugares da
região. Na família do marido havia também um renomado rezador, conhecido como o Velho Alexandre, que
desenvolvia rituais particularmente temidos. Josivete afirmou que o Velho Alexandre “trabalhava com a
direita e com a esquerda, e não tinha questão de perdão, ele castigava mesmo!”, acentuando ainda que nas
mesas de cura sempre havia a necessidade de se empregar o sangue como elemento do ritual.
173

Gracinha Moreira, era de Alagoas, era muito conhecida da nossa família.


Aí, quando ela me viu, foi ela que disse que eu tinha corrente e que ela ia
limpar, ia cuidar de mim pra limpar pra [eu] trabalhar. Aí comecei a
trabalhar. Aí que eu aceitei, mas eu não queria e, enquanto dizia que não
queria, eu era mais sofrida ainda, aí aceitei e continuei trabalhando.

O relato de Josivete continuou, acentuando que ela trabalhava apenas com um guia
de luz, mas posteriormente passou por outra preparação, desta vez para “limpar as
correntes de caroá”. Outra especialista,202 portanto, cuidou de seus problemas, descobrindo
que também podia trabalhar com encantados. Da narrativa de Josivete se depreende que a
cura de sua doença determinou a descoberta de seus potenciais, e o ritual de cura tornou-se
a própria iniciação.
Este tipo de iniciação surge também no relato de Francisco Calu, que contou ter
nascido com um problema no pé que o impedia de caminhar. Sua tia-avó Bia, a mesma que
“limpou as correntes” de Josivete na segunda vez, percebeu que a doença de Francisco se
devia ao dom, reservando-lhe os cuidados necessários; uma vez curado, preparou-o para se
tornar o responsável pelo atual terreiro e zelador dos encantados da família.

Quando eu comecei, antes eu não sabia que tinha esse dom. É que eu
nasci paralítico, com esse pé que nasceu enrolado. Aí, com um ano de
idade, a minha mãe de criação, que era Bia, né, ela pediu pra me criar. Aí
ela me criou e ela me curou. Ela passava a saliva do cachimbo no meu pé
e a banha do carneiro capado. E daí, depois vieram me chamar pra eu ir
pra Recife, mas ela não deixou, porque [disse] que ela ia me curar. E ela
me curou. Aí, com 10 anos que eu comecei, porque a gente tem uns
sintomas. Eu tinha bastante febre, aí eu dormia e, quando acordava, vinha
com aqueles toantes, eu acordava cantando. Aí batia bastante febre, dor
de cabeça. Começava o que os brancos chamam epilepsia; já nós, na
nossa tradição, chama o mal de sete dias. Aí foi Bia que me curou
também e me disciplinou. Com 16 anos já comecei a me dedicar ao
terreiro. Daí que eu comecei a receber a força dos encantados, a
trabalhar, a abrir mesa, a fazer cura.

Tanto no relato de Josivete quanto naqueles de outros especialistas que passaram


pela “limpeza de corrente” não há referência a qualquer ensinamento ou revelação de
algum conhecimento oculto. Como os outros rituais, também aqueles de iniciação baseiam-
se nas performances gestuais e na manipulação de símbolos, que têm o poder de

202
A especialista que se ocupou da segunda “limpeza” foi Maria Paturnía, mais conhecida como Bia, dona de
praiás e cantadeira da noite dos passos, fase do ritual da corrida do imbu que se descreverá no Capítulo X.
Falecida há muitos anos, Bia pertencia ao tronco Calu e a maioria dos interlocutores a considera uma
detentora de grandes conhecimentos da tradição indígena.
174

transformar o iniciante. Embora diverso das iniciações masculinas das coletividades OK


em Nova Guiné analisadas por Barth (1993), dada a aparente ausência aqui de múltiplas
etapas que de alguma maneira continuam vinculando por anos os iniciadores a seus
iniciados,203 o processo ritual visa alcançar o mesmo objetivo. Barth afirma que o iniciador

Mais do que simplesmente transmitir conhecimentos para os noviços,


deve ser capaz de encenar uma performance hipnotizante. Mesmo que os
significados dos símbolos não sejam transmitidos para os iniciantes, já é
suficiente que permaneçam enigmáticos, de modo a reforçar a sensação
de que ali existem segredos importantes. Do iniciador espera-se que
consiga produzir um exemplar de performance sagrada, o mais
emocionante e evocativo possível. Quanto aos iniciantes, espera-se deles
que sejam transformados pelos ritos em si, e não pelo que lhes foi
transmitido do conteúdo do rito (Barth, 2000b, p. 147).

Para demarcar a diferença entre seu trabalho ritual e outros, Josivete afirmou:

Porque muita parte disso aí não é bom, é aprendido, é ensinamento! Eu


tenho um dom de nascimento! E tem outros que não têm dom, é aprendiz,
ele aprendeu nos livros, em alguma parte da Umbanda. Aí vamos cutucar
e vamos fazer. É coisa que Deus deu? Não foi! Ninguém vai ter seu corpo
para oferecer seu sangue a quem não presta pra aprender o que não
presta. Porque nós temos uma vida só, e a vida que temos tem que
entregar nas mãos de Deus pra Deus clarear o caminho da gente. Ainda
sacrificar com quem não presta pra aprender pra ter as coisas? Deus me
livre, quero é nunca!

O dom de nascença contribui sensivelmente para o crescimento do prestígio.


Diversamente das capacidades adquiridas por ensinamento ou por aproximação gradual às
práticas de cura, o dom torna-se o sinal por excelência das potencialidades do oficiante.
Com efeito, alguns oficiantes que atuaram por muitos anos e que receberam a denominação
de mestre são os que conheceram profundamente a ciência e que já nasceram com ela,
sendo predestinados a exercê-la.
Como Josivete, também Maria Severina – outra rezadora – ao explicitar os poderes
de sua reza, salientou que estes não foram aprendidos, mas “revelados”. Deus lhe teria
entregado inúmeras e extensas rezas em sonho e grande capacidade de lembrá-las, das

203
Embora os especialistas consultados não tenham se referido à necessidade de se passar por múltiplas
iniciações, há de se considerar que aqueles que desde criança manifestam o dom e são preparados por
específicos especialistas rituais dentro da família têm a necessidade de vencer diversas etapas para alcançar a
maturidade dos poderes. O segredo que rodeia tais práticas não me permitiu indagar mais profundamente.
175

quais brotariam os poderes de cura.204 Em alguns casos, os mesmos especialistas


manifestaram dúvidas quanto ao processo de descoberta das próprias capacidades mágicas.
Tendo recebido chamadas em idade adulta, não podiam afirmar que o dom era de
nascença, mas em virtude de as entidades se aproximarem das pessoas que demonstram
comportamentos moralmente aceitos, usavam tal argumentação para contestar sobre o
menor valor que teriam as suas capacidades. Outro elemento que contribui sensivelmente
para o aumento de prestígio do especialista ou para manifestar a inclinação para
desenvolver poderes mágicos é o abandono ou a falta de “vaidades”. Seja no tocante às
mulheres ou aos homens, a modéstia é uma virtude especial que se considera
particularmente rara, em especial nos jovens. Talvez de forma mais acentuada entre os
rezadores dos grupos masculino e feminino de penitentes, embora importante também para
os outros especialistas, a demonstração do desapego das coisas terrenas torna-se fonte e
caminho para o refinamento dos próprios poderes mágicos, aumentando a possibilidade de
comunicação com as entidades.
Embora nem todos os especialistas passem necessariamente por períodos de
sofrimento como Josivete, alguns sinais ou particulares tendências205 manifestados pelas
crianças podem induzir os pais ou os avós a pensarem nas chamadas. Tais manifestações
os preocupam pelas “obrigações” que a criança deverá cumprir, reservando-lhe, ao mesmo
tempo, particulares cuidados e encaminhando-a para o desenvolvimento das suas
potencialidades. Durante esse período, a criança será observada e orientada pelos
especialistas que fazem parte da família, e o conhecimento do processo de
desenvolvimento de suas capacidades ficará reservado aos seus membros até o futuro
especialista se tornar autônomo em relação a seus mestres. Pode-se dizer que o processo de
formação inclui também o aprendizado de cuidar do próprio segredo. O neófito pode
comunicar as mensagens que recebe das divindades somente a seus mestres ou a alguém da
própria família. Contudo, pode escolher limitar essa comunicação, reservando para si parte
das mensagens recebidas e adquirindo, assim, progressiva autonomia.

204
Este argumento é de extrema importância e será retomado no Capítulo VII, no qual abordarei a
composição e a atuação dos grupos rituais penitentes. Adianto aqui que a importância atribuída a saberes
“revelados”, tanto entre os que aderem ao grupo ritual dos praiás quanto ao dos penitentes, rebaixa aqueles
que foram ensinados ou produzidos a partir de interpretações de textos sagrados.
205
Introversão, pânico em insólitas situações, mudança repentina de humor, choro incontrolável, pesadelos e
distúrbios psicológicos são alguns dos sinais que levam os familiares a suspeitar de eventuais chamadas.
176

Se o neófito pertence a uma família zeladora de praiás, é muito provável que ela
assuma a responsabilidade e o encaminhamento dos rituais, uma vez que seus ascendentes
não estarão mais em condições de realizá-los. A transmissão dos conhecimentos mágico-
religiosos dentro das famílias é exclusiva de quem zela praiá, e o sujeito escolhido cuidará
dos encantados específicos da família ou do seu tronco. Como já salientado por Matta
(2005), a transmissão pode ser consanguínea ou por afinidade, sendo importante manter
esses conhecimentos apenas junto aos familiares mais próximos.
Como já foi mencionado, a herança das entidades cultuadas nas famílias diz
respeito somente aos encantados, enquanto os especialistas que trabalham com espíritos
guias não os receberão. Tal diferença é particularmente significativa e denota a
necessidade de as famílias detentoras de praiás manterem sob controle os próprios
conhecimentos que, em realidade, se tornam um verdadeiro patrimônio. Não obstante o
direito de herança familiar, todos concordam com o fato de que, se o encantado não “se
agradar” de seu zelador, pode procurar outro, obrigando-o a assumir o serviço. Diante
disto, as famílias zeladoras de praiá e, sobretudo, o especialista de referência precisam dar
prova da sua constante comunicação com os encantados, do contrário, perderá seu
prestígio e também abrirá caminho para que outro receba a chamada.
A aproximação e a comunicação com as entidades, como também a capacidade de
reconhecê-las evitando ser enganado por aquelas pertencentes à esfera do maligno, fazem
parte do processo de formação. O especialista adquirirá sagacidade através de uma intensa
atividade onírica, embora tal processo possa não ser contínuo ao longo de sua existência.
De fato, o verdadeiro refinamento das capacidades mágicas culmina na fase adulta,
tornando o indivíduo autônomo e com capacidade de escolher seus auxiliares.

5.2 Posições, reputações e narrativas de alguns especialistas

Como já foi colocado, as narrativas que se apresentam a seguir pretendem mostrar


algumas possíveis variações de posições entre atores sociais que tiveram diversificados
processos experienciais, ressaltando-se a existência de tensões e conflitos entre distintos
grupos. Esclareço que a relação com cada interlocutor aqui apresentado foi sensivelmente
diferente, tendo sido compartilhados tempos variados durante a pesquisa. Assim, as poucas
horas em companhia de Zé Auto – circunscritas à entrevista e a algumas conversas
177

informais – embora possam ter sido especialmente ricas para se compreender o discurso
padronizado de um hábil mediador entre seu povo, antropólogos e outros agentes e
cientistas que circulam na área, e também os valores que ele considera necessários divulgar
conformaram um quadro engessado das dinâmicas sociais que as experiências cotidianas
revelam estar bem afastadas dele.
A frequência de diálogo com João Gouveia foi muito mais rica do que a de Zé
Auto, podendo-se observar a atuação deste ator social em diferentes contextos (doméstico,
de reuniões e de rituais). Todavia, a narrativa extraída da entrevista sempre apresenta um
nível de padronização, muito embora as colocações de João Gouveia sejam, para os fins
desta análise, especialmente relevantes.
Diverso é o caso de Dora e Maria Bárbara Filha, com quem compartilhei muito
tempo em campo em contextos cotidianos e extracotidianos. Neste último caso, refiro-me
às romarias, momentos especialmente carregados de intensidade emotiva. 206
Esclareço também que todos os interlocutores demonstraram sempre muita surpresa
diante das perguntas relativas às trajetórias individuais e familiares, deixando entender que
eram esperadas dos antropólogos unicamente perguntas relativas à “tradição” e aos
“Pankararu”. A surpresa cambiava rapidamente em orgulho de poder contar a própria
história de vida, cujos conteúdos e performances se tornaram ricas fontes de dados sobre
redes de relações, posicionamentos, conflitos e valores. Nas narrativas, referências ao
tempo dos acontecimentos eram sempre muito vagas e dificilmente citavam-se datas. As
histórias contadas transformavam-se não apenas “nas” trajetórias, mas sim em percepções
das próprias vidas através dos recortes e das conexões que se desejava comunicar, num
esforço de construção do próprio self.

5.2.1 Zé Auto: um cacique e o caixa espiritual

José Alto dos Santos – conhecido como Zé Auto ou Zé Narciso – nasceu em


setembro de 1951. Saiu da aldeia em busca de trabalho com apenas 16 anos. Passou poucos
meses em Aracaju com alguns primos, para depois viajar com eles para o Rio de Janeiro,

206
Como se aprofundará no Capítulo VIII, as romarias possibilitam momentos de fortes cargas emotivas,
estimulando os atores sociais ano sentido da coesão. Como foi mencionado na introdução desta tese, os
limites relativos à penetração dos espaços sociais masculinos refletem-se nos limites da própria pesquisa.
Assim, tempos, contextos e profundidade de observações foram sensivelmente mais ricos no espaço
feminino.
178

onde permaneceu muitos anos, com um intervalo em São Paulo trabalhando como
repositor de fruta. De 1971 a 1975 foi militar no núcleo de material bélico da Aeronáutica,
mas, incentivado pela “chefe da casa do índio” Eunice Cariry Sorominé, deixou a carreira
militar e fez concurso para estudar no colégio técnico da Universidade Federal de
Queimados, na área de pecuária. Estudou somente um ano porque “eu não era ligado muito
à coisa de roça, porque eu saí daqui da aldeia, que desde criança era sempre muito difícil
coisa de roça. A gente passava fome, meu pai trabalhando que só!”. Em virtude de a Funai
oferecer emprego na área de educação e saúde, Zé decidiu se formar como técnico de
enfermagem e começou a trabalhar para o órgão indigenista. No início dos anos 1980
conheceu Alexandrina Rocha Lobo, índia Miriti Tapuia do Alto Rio Negro, que morava
em um convento de freiras italianas e com quem tinha viajado para o Rio de Janeiro
deixando suas terras. Com ela se casou e teve três filhos. Obtida a transferência, mudou-se
com a família para Recife, onde ficaram quatro anos. Somente em 1987 voltou para a
aldeia.
Empenhado atualmente nas múltiplas atividades que o cargo de cacique lhe reserva
e nas tarefas que o trabalho como funcionário da FUNASA lhe exige, Zé Auto viaja com
frequência e dificilmente se encontra em casa. Menos por sorte e mais por perseverança,
tive a possibilidade de entrevistá-lo duas vezes. A segunda entrevista foi muito generosa,
dedicando-me cinco horas de seu precioso tempo e convidando-me para o almoço
preparado por Alexandrina, que também participou ativamente da longa conversa.
Como já foi mencionado, a narrativa de Zé Auto seguiu um padrão que é quase
sempre apresentado diante de antropólogos, ONGs e outros agentes sociais vinculados a
projetos que visam à valorização das etnicidades. Há um discurso bastante uniforme que se
pensa necessário em virtude de experiências concretas, tanto que, no decorrer da conversa,
comparava as minhas atitudes em face de determinados relatos com as de outros/as
antropólogos/as que o tinham entrevistado. Embora a narrativa fosse forjada nesse padrão,
portanto, em um discurso para fora, enaltecendo-se aspectos que denotariam a
“indianidade” pankararu e a proteção da tradição indígena, foram abordadas, de forma
bastante clara, as dinâmicas relativas à hierarquização das entidades que, como se verá,
correspondem a processos de hierarquização dos troncos.
Contaram-me que quando voltaram para a aldeia houve muitas pessoas que
preveniram Alexandrina de ter se casado com o “maior feiticeiro, macumbeiro, bruxo” da
aldeia, o relato sendo marcado por tons irônicos. Explicaram-me que até poucas décadas
179

atrás as famílias e as pessoas que cuidavam da “tradição indígena” eram poucas, o resto da
população as evitavam e dirigiam ao casal as acusações acima citadas. A argumentação de
Zé tornou-se mais incisiva ao fazer referência às famílias e às situações históricas que
teriam determinado o afastamento da “tradição indígena”.

Binga vem de negro, é uma família de negro, não é de índio. Essa família
se tornou forte porque o negro casou com Antonia, aí que ela passou a
herdar o nome Binga, mas ela era Serafim, mas o nome Binga já pegou
do negro. Aí essa Antonia gerou João Binga. Ela era índia que casou com
um negro Binga, aí gerou essa família. E essa família tem uma tecla que
eles batem assim: que o dono da aldeia é Santo Antônio. Os seguidores
dos Binga falam, assim, que Santo Antônio é o dono da aldeia. Eles
seguiam a tradição, mas teve um tempo que eles quiseram recuar. Assim,
porque na época de Padre Cícero e outros padres eles condenavam quem
fumava, sabe? E o índio fuma e a igreja queria proibir. Aí chegou essa
febre de Pedro Batista; era quando eu estava ainda aqui na aldeia que
todo mundo ia pra Santa Brígida! Mas aí, depois, Pedro Batista falou: “O
índio é diferente, ele pode fumar”. Porque ele era uma caixa espiritual
bem forte, ele sabia. Aí foi que o pessoal quis se aproximar mais da
tradição. Mas há pouco tempo atrás era condenado. Se você for fazer uma
pesquisa com Zé Branco, com Zé Binga, são todos da igreja, aí eles vão
dizer que o dono é Santo Antônio. Os Binga invertem o quadro, sabe? O
dono da aldeia é o Mestre Guia, mas eles dizem que o dono é Santo
Antônio, já vão dizer que o Mestre Guia trabalha em função de Santo
Antônio. E aí, não é! Mas eles são ligados à igreja, aí diz. O canto deles
é: “Já demos graças a Deus, já benzemos o altar, Santo Antônio dá
licença que nós vamos retirar”. É até linda a reza, mas não é bem a
doutrina da aldeia. É porque misturou com negro, né?

Como outros interlocutores, Zé salienta a necessidade de se rebaixar a posição de


Santo Antônio que os membros do tronco Binga lhe conferiram e que é compartilhada
pelas famílias aliadas, enaltecendo os encantados e, de forma especial, o Mestre Guia.
Mais que as acusações de mistura, é importante ressaltar a tensão entre os troncos
antagonistas em jogo, que faz com que Zé Auto utilize categorias raciais e étnicas de
acusação.
Com muito orgulho, Zé afirma sua pertença à família Pedro (diagrama II). Contou
que sua avó Maria Pedro (uma das quatro Marias) foi “a primeira curadora da aldeia” e que
havia se casado com Francisco Carapina, “índio corrido de Serra Negra”. Ambos eram
donos de praiás e, quando faleceram, deixaram o “zelo da tradição” com todos os filhos,
mas somente Narciso Pedro – o pai de Zé – tinha assumido a responsabilidade do terreiro.
Como visto anteriormente, um entre os encantados zelados por Maria Pedro era “ligado à
igreja”, mas, segundo Zé Auto, tal vínculo não teria determinado o afastamento da tradição
180

indígena. O encantado protegia sua dona. Ele relatou a história da missa em Juazeiro do
Norte, na qual estava presente frei Damião. Durante a missa teria baixado Satanás e todos
os fiéis haviam desmaiado, salvando-se somente frei Damião e Maria Pedro, ambos
protegidos pelas próprias entidades. Zé Auto argumentou que frei Damião teve que
reconhecer os poderes do encantado protetor de Maria Pedro. O relato, que se configura
como uma das “histórias” que cada família se encarrega de repassar, parece ter a intenção
de comunicar um desafio entre diversos poderes e conferir maior legitimidade à autoridade
dentro da própria família e a posse de forças poderosas.
Ele e seus irmãos herdaram do pai o batalhão de praiás. No entanto, ele agora é o
maior responsável pelo zelo dos encantados da família. Perguntei-lhe se entre os irmãos
havia outros curadores:
Dentro da família tem vários curadores, mas eu comparo assim: tem uma
bola de força. Essa bola é o praiá, né? É a força da aldeia. Ela gira até
achar a caixa dela, então encaixa. Eu sou a caixa espiritual, toda a família
cura, mas a caixa principal sou eu. Tudo que passa pela família tem que
passar por mim. Porque se eu não defender a família dos ataques que
vêm, da força que vem estranha, eles podem ficar fracos, porque a caixa
sou eu.

Em outro trecho da entrevista, Zé explica que somente ele e sua irmã – dos Santos,
mais conhecida como Cabocla – estão cuidando do terreiro, e que os outros irmãos
participam esporadicamente, embora tenham as mesmas obrigações no cuidado dos
praiás.207 Além de herdar os encantados da família e ter com eles relações peculiares, Zé
se comunica com muitas outras entidades. Considera-se uma “caixa” e como tal pode
receber entidades “da direita e da esquerda”, de modo que a sua “missão” é reequilibrar as
forças que dominam o universo e que os atingem.
Diversamente de outros especialistas rituais entrevistados, Zé afirma não ter
passado por períodos de sofrimento ou doença durante a fase das chamadas dos
encantados. Ao explicar a razão da diferença, o relato desemboca em histórias, reflexões e
sonhos com forte carga emocional.

Todos ficam doentes porque são teimosos. É até difícil que curador
aceitar de bom coração esse papel. Sempre recusa, então, aí o castigo da
doença; a recusa traz o castigo da doença, a atrapalhação. Ele é que nem
um Deus, se ele é meu defensor, se ele quer encaixar em mim pra me

207
O cuidado refere-se principalmente à renovação todos os anos da máscara do praiá, chamada em geral de
“ropão”, e em oferecer o “prato”, isto é, fazer o batizado.
181

defender, se eu não recusar, eu não vou ficar doente. Se eu o recuso, o


que acontece? O inimigo ataca porque eu estou fraco. Aí o corpo está tão
fraco que qualquer inimigo ataca. E o inimigo pode virar o mesmo
protetor porque eu estou recusando ele. Porque na hora que o inimigo
atacar, ele não vai proteger, vai deixar atacar. E ele pode abusar, pode dar
o castigo pra você ficar doente pra sempre. Então, eu podia receber um
castigo, mas eu aceitei. Porque eu venho de uma família bem tradicional.
Meu pai era o curador, ele depois de Maria Pedro. Aí ele fazia umas curas
que eu assistia ainda criança e não valorizava, não levava muito a sério,
embora nascido naquilo ali, mas não levava a sério. Eu achava uma coisa
tão difícil, chegar uma pessoa morrendo, procurar uma pessoa que nem
estudou nem nada, e a pessoa dá conta. Eu pensava que isso era
brincadeira, né? É tanto que eu não gostava nem de sentar junto, nem
gostava desse cheiro de cachimbo, aquela fumaça que deixava eu bêbado,
sabe? Chegou um dia que eu vi ele curar uma mulher, aí a mulher chegou
endemoniada. Aí ele disse assim: “Quer que abaixe nela ou quer que
abaixe em mim?”. Aí meu pai disse: “Nela, porque eu estou muito
velho”. Aí ela deu porrada em todo canto, cuspia na cara do marido. E eu
assistindo, eu olhando. É que a gente duvida, sabe? Sabe quando foi que
acreditei pra valer mesmo? Aí continuei olhando ela bagunçando, e tinha
mãe também lá com o cachimbo. Aí meu pai fez assim [mostra a
performance ritual] e ele suspendeu e pronto! Tá curada! Depois eu vi as
mãos de meu pai cheias de sangue. É que a mulher estava com coisas que
dava[m] hemorragia, sabe? Aí ele disse pra mim: “Se ela chegasse
poucos minutos depois, ela ia morrer. Estou eliminando a hemorragia
dela”.
[...]
E aí meu pai morreu e ficou o terreiro e todo mundo procurando pra me
doutrinar, mas eu não queria. Aí veio Antonia Vermelha, lá da Serrinha.
Mandou oferecer que devia favor a Maria Pedro e ela queria retribuir esse
favor. Mas eu não quis. Aí veio outra dos Binga, Maria José Binga, que
também mandou oferecer. Eu também não quis. Aí João Tomas mandou
recado: “Está na hora de Zé assumir o terreiro, mas ele não quer e na hora
que ele quiser, eu estou pronto pra preparar. Porque é família e tem que
ficar na família mesmo. E ele não me procura e essas coisas não se
oferecem é a pessoa que vai ter que me pedir”. Aí que eu pensei. Será que
vou ter que assumir mesmo esse terreiro? Aí eu procurei ele. Aí pedi pra
me testar, porque eu não acho bonito enganar e me enganar, chega uma
pessoa doente e eu dizer pra ela que curo e não sei curar. Aí ele mandou
me sentar e disse: “Puxa um toante!”. Aí, quando puxei, êta, meu Deus! É
como quando você pega um avião, a minha cabeça voando. Aí, pronto,
ele disse: “Está aprovado. Você vai ter que se preparar”. Eu tentando
ainda me recusar, mas... Aí, outro dia, eu estava deitado aqui meio dia.
Eu recebi aquela mensagem, era uma mulher, sabe? Ela disse: “Escute o
que vou dizer. A transmissão. No dia 14 você vai ter que dar a sua
palavra final. Você vai assumir a identidade ou não. Ou assume para
sempre ou sai para sempre”. Era uma voz rasgando. Eu pulei da cama e
falei: “Vou!. No dia 14 vou pronunciar que vou assumir”. Foi aí que eu
assumi. Aí [ele] me preparou num salão de caroá com três madrinhas e
três padrinhos. Aí ele disse: “Tá pronto pra curar. Agora vai depender de
você”. Ele disse também que eu tinha que pegar os trabalhos mais
pesados, que não tinha que me cansar com coisas ligeiras que outro
curador ia resolver. Porque geralmente o curador nasce naquele caminho
e os homens [refere-se aos encantados] têm o poder de acompanhar a
182

vida da pessoa, sabe? Então, quando vai chegando aquele tempo de


preparo, eles já vêm olhando você há muito tempo. Então, eles podem
levar você, se você não quiser se preparar, se você não quer cumprir a
missão.
[...]
Então, eu tenho uma coisa que desde criança me acompanha e que eu
ainda não me acostumei e, quando eu vejo, eu tenho medo. Eu tenho um
guia que desde criança me acompanha e eu tenho medo dela. Ela é uma
cobra muito grande, tem um poder forte demais que, se ela quiser acabar
com a aldeia, ela acaba com fogo ou com água. Ela é poderosa demais.
Ela sempre esteve. Ela é a deusa do fogo e da água. Aí eu estou em vários
canais. Tem pessoas que dizem: “Essa pessoa tem personalidade dupla”.
Não é dupla, é que eu vivo sintonizado com vários canais. Geralmente ela
aparece como uma cobra, mas não é uma cobra, ela aparece como uma
princesa, às vezes é um príncipe, mas também um fogo. Me faz medo,
muito medo. A primeira vez que tive contato com ela tive muito medo.
Quando cheguei ao Rio de Janeiro, apareceu um carro que desde criança
eu vejo. Quando entrei nele, chegou uma tempestade d’água. A água
subia tanto que eu pulei de um coqueiro, aí veio uma lancha de três
andares, aí peguei, mas a água destruiu a lancha, aí eu fiquei em cima de
uma tabuinha, sabe? Cansado, cansado, estava me afogando. Aí fiquei
aperreado, fechei os olhos, aí eu vi um grupo dançando, mas não gostei
não, não é dos meus, não. Passei mais na frente e aí encontrei com a
cobra. Era um prédio de 31 andares e eu estava no 31. E quando botei o
pé na escada, eu vi um tanto de gente correndo, eu olhando e a cobra
engolindo eles. A boca dela é bem grandona. Eu olhando tive medo e quis
correr. Aí apareceu o praiá e disse: “Não corra”. Mas se eu não correr a
cobra vai me engolir. “Mas não está me vendo aqui?”. Estou! “Quer dizer
que não confia em mim?”. Bom, confiar. confio. Aí nesse momento a
cobra, pá! Morreu. Aí ele disse: “É sua”. Pra que eu quero essa cobra
morta? “Não sei, desfrute como você quiser, é sua. Tô lhe dando”. Peguei
ela e enterrei ela, botei muita pedra em cima, sabe?

Como se pode depreender destes longos trechos da entrevista, Zé aceitou tornar-se


o curador e o principal zelador dos encantados da família Pedro, sendo ele o escolhido
pelos encantados.
É interessante ressaltar as dúvidas em relação às práticas mágicas de cura que ele
relata que o acompanharam durante a adolescência e a juventude. Ao narrar a sessão de
cura realizada pelo pai, ele ressaltou a hesitação em acreditar na performance ritual,
explicando que a incredulidade se devia à falta de “estudo” dos oficiantes. As reflexões
eram geradas ao cotejar diferentes tradições de conhecimento que organizam, valorizam e
transmitem os saberes de forma contrastante. As experiências vivenciadas lhe permitiram
incrementar seu estoque de saberes ao incorporar fluxos culturais provenientes dessas
distintas tradições de conhecimento. Mas, através da avaliação e do cotejo desses fluxos,
Zé, como outros especialistas, elabora as clivagens étnicas. No seu relato, acentuou as
183

diversas competências que os índios e os não índios têm, por exemplo, no tocante às
práticas de cura, temática que abordarei mais adiante. Elaborou também um quadro moral
aceito pelas entidades com as quais entretém intensa comunicação. Explicitou ainda que
índios e não índios têm “espiritualidades diferentes” e que, embora a maioria dos
Pankararu deseje depois da morte se aproximar de Deus, os índios têm “seu reinado”, um
lugar diferente que somente é alcançado por merecimento, isto é, seguindo os preceitos
morais que os encantados ditam.
Percebe-se no relato a importância de salvaguardar o cuidado do terreiro e dos
praiás reservando-os aos membros da família. Trata-se da herança do capital simbólico
familiar cujos segredos podem ser ameaçados. Malgrado afirme que os praiás são a força
da aldeia, entendendo que pertencem aos Pankararu como povo indígena e que podem ser
chamados por outros especialistas, somente a família que os zela conhece os pontos, isto é,
as técnicas e as fórmulas mágicas para o bom êxito do trabalho ritual com esses
encantados.
Zé recusou a ajuda oferecida por especialistas pertencentes a outras famílias e
aceitou somente João Tomas – seu primo – para receber a preparação necessária e poder,
assim, assumir a responsabilidade plena do terreiro. Acentuou que seu pai repetia
infinitamente que “Isso aí está no sangue. Tem que passar de família para família”. O valor
atribuído a essa herança transmitida pelos ancestrais delineia a continuidade de um passado
e a possibilidade de poder reivindicar a pertença aos troncos velhos, que traz o privilégio
da “distinção”. O “sangue” é um elemento especialmente importante para remarcar essa
herança como uma fonte de poder muito mais forte do que algo que é aprendido.
Ao terminar a narração do sonho com a cobra, Zé interrompeu-se para me perguntar
se eu estava acreditando em seu relato. Surpreendida – pensando no que poderia suscitar
tal preocupação – disse-lhe que eu estava acreditando sim, e perguntei-lhe por que deveria
duvidar. Poucos segundos de silêncio precederam outra pergunta: “Você é média?”. “Não,
não sou”, respondi ainda mais perplexa. Não acreditando na minha resposta, disse
ironicamente: “Sério? Olha que muitas antropólogas são médias!”. A situação provocou
imediatamente uma explosão de risos e Zé explicou os motivos da preocupação. Se eu
fosse uma médium, ele não teria tido necessidade de “provar” os fatos que estava narrando,
184

no entanto, preocupou-se com a demonstração empírica para eu poder “ver” mais além da
sua performance narrativa.208
Segundo Zé, é necessário dar “prova” dos fatos narrados e, para isso, deu o
exemplo de quando, no final dos anos 30, chegou o “doutor Carlos Estevão”, e as famílias
que cuidavam dos rituais “dançaram praiá, dançaram toré, prepararam a jurema, fizeram
curas”, e tais demonstrações convenceram o “doutor” que ali “ainda tinha índios”. Relatou
que o antropólogo William Hohenthal, em 1952, durante a pesquisa na área, pediu à sua
avó a semente mestre de um encantado que ela zelava para levá-la para a Califórnia. Maria
Pedro, conta Zé, teria dito para Hohenthal as seguintes palavras: “Olhe, doutor, eu daria
com todo gosto, só que ela volta, que ela não é de lá. Eu dou, só que ela volta”. Passado
pouco tempo a semente voltou, “está lá no seu lugar”, “prova” da afirmação da avó.
Mostrou-me a dedicatória que o mesmo Hohenthal deixou para Maria Pedro, e a cada
história narrada, apresentava-me um documento que a provasse. Assumiu tal atitude
explicando-me que nos anos em que trabalhou na Funai aprendeu que “conversa voa” e
que se deve acreditar somente no “papel”.
Narciso Pedro foi o primeiro cacique reconhecido pelo órgão indigenista, e o cargo
passou posteriormente a outros membros da sua família, até João Binga começar o seu
longo período como cacique. Como já se mencionou, em 2005, Zé Auto – com o incentivo
da própria família e de outras que se sentiam descontentes com a última fase do cacicado
de João Binga já muito idoso – conseguiu ocupar o cargo. Como visto, Zé morou muitos
anos no Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil, onde trabalhou e se formou como
técnico de enfermagem. Relacionou-se com padres, antropólogos, indigenistas e teve
acesso a muitas informações históricas no tocante aos indígena do Nordeste, além de ter
transformado em tesouro as informações que o pai, como primeiro cacique e um entre os
primeiros que empreenderam as viagens aos centros de autoridade para reivindicar direitos,
lhe repassou. Os conhecimentos adquiridos durante a sua vida lhe dão certa destreza no
convívio com as agências e o agente de contato, o que não quer dizer que os valores destes
sejam os seus. As experiências pelas quais passou em sua trajetória ganharam sentido e

208
Há de se salientar que diferentes cientistas, curiosos, viajantes, tanto brasileiros quanto estrangeiros,
passaram pelas aldeias pankararu nos últimos anos. Pelo que me foi contado, muitos estavam interessados
nos trabalhos rituais como canais experienciais pessoais, o que permite pensar na possibilidade de Zé Auto
precisar cotejar os diversos interlocutores que manifestaram para ele interesse nos assuntos relativos à esfera
mágico-religiosa no sentido de adaptar a sua fala.
185

orientaram suas ações a partir da interação dentro da sua família e, mais especificamente,
com seu pai, principal referência nas práticas mágico-religiosas.

5.2.2 João Gouveia: “Todo mistério tem dono!”

João Gomes da Silva,209 conhecido como João Gouveia, tem 67 anos e se aposentou
há sete anos como trabalhador rural. Casou-se com Teresa Torres da Silva (de 65 anos) em
1964 e com ela teve 14 filhos, dos quais 11 estão vivos e moram, em sua maioria,
próximos à casa dos pais na aldeia Gitó, adjacente a Brejo dos Padres.
Membro da família Julião, João conta que seu avô, João Julião, era “filho natural”
de Olho D’Água dos Julião, cuja localidade afirma ser área indígena, mas nunca teria sido
reconhecida pelo Estado.210 Relatou que o avô teria se deslocado para a aldeia Brejo dos
Padres onde teria contado com os favores de um amigo. Esse amigo, de que João não
lembra o nome, tinha uma irmã de nome Joana Serafim com a qual João Julião se casou,
instalando-se em Brejo dos Padres, precisamente na Fonte Grande, onde estava alojada a
família Serafim, cujo chefe era o antigo sarapó. Acrescentou que a família de Joana
Serafim viera de Serra Negra, fugindo das perseguições dos fazendeiros. Desse casamento
nasceram três filhos: Joana, Chiquinha e Joaquim Julião Velho. Após o falecimento de
Joana Serafim, João Julião deixou os três filhos com o sogro e voltou para Olho D’Água.

209
Conheci-o durante uma reunião da ONG Saúde Sem Limites, para a qual geralmente são convidadas as
lideranças. Durante o encontro chamou-me a atenção a peculiar performance de sua exposição, repleta de
metáforas e citações de sonhos. Nas suas ponderações, manifestou extrema preocupação com a “degeneração”
que estaria sofrendo a “tradição” pankararu. Perguntei-lhe, na mesma ocasião, se aceitava conceder-me uma
entrevista em outro momento. Superado um primeiro impasse, João se mostrou particularmente disponível,
tanto que, ao longo da pesquisa de campo, pude entrevistá-lo várias vezes. O prazer em contar histórias e
anedotas sobre a própria vida e a alheia tornou-se uma rica e generosa fonte de informações. A desconfiança
inicial se devia, por um lado, ao generalizado alerta em relação aos pesquisadores que passam pela área
indígena e, por outro, encontrava sua razão em função da associação que João fez entre a minha presença na
reunião da SSL e o projeto que ali estava sendo divulgado. Tratava-se do projeto Casa de Memória do
Tronco Velho Pankararu, que acabava de ser aprovado e que, para a sua realização, pedia-se a colaboração
das lideranças. No decorrer da pesquisa participei do projeto, mas nesse momento – que era o começo – não
havia qualquer tipo de envolvimento. João me explicou na primeira entrevista as perplexidades que o projeto
lhe suscitava. Diziam respeito aos objetivos do projeto que, a seu ver, tomavam em consideração somente um
dos troncos velhos pankararu, desconsiderando os outros. O fato de ter sido apresentado por Vasco, do tronco
Binga, levou João a pensar que as únicas lideranças a serem homenageadas (uns dos objetivos do projeto)
seriam somente aquelas do tronco Binga, fato que o deixava indignado. Sugeriu ainda que Vasco restringisse
as pretensões do projeto ao nível familiar para homenagear principalmente João Binga, o cacique falecido em
2008, renunciando à ambição de abranger a totalidade das lideranças pankararu.
210
Olho D’Água dos Julião está localizado na TI Entre Serra, e está próximo a Tacaratu. Portanto, já se
tornou parte da área indígena, embora tenha uma presença numerosa de posseiros (ver croqui das áreas
indígenas pankararu).
186

Posteriormente, deslocou-se para o estado do Ceará, casando-se ali com Maria


Gouveia, originária do Cariri, com quem formou uma nova família. Do Cariri voltou com a
família para Brejo dos Padres. João resumiu a história do seu avô da seguinte maneira:
“Então, João Julião tinha formado duas famílias, uma do Cariri e outra de Serra Negra, e
todos se enterraram aqui em Pankararu. Então, essa de Serra Negra trouxe sangue de índio,
aqui dentro da aldeia. Índia de Serra Negra com Julião branco”. Da segunda união de João
Julião nasceu José Gomes da Silva211 – entre outros filhos – que se casou com Ambrosina
Maria da Conceição, pais de João. Acrescentou ainda que todos os tios e tias se casaram
com índios ou índias pankararu, manifestando o direito de afirmar que ele faz parte de
“uma geração de índios”, direito sustentado ainda em função de sua mãe ser “índia
legítima!”. Disse-me que a maioria dos Pankararu mais idosos afirma que os Julião não são
índios, “não têm sangue índio”, acentua ironicamente. No entanto, João encontrou outras
justificativas para se defender de eventuais afirmações que colocariam em dúvida sua
identidade indígena. Sua arma é a ciência do índio, cujos conhecimentos se orgulha de ter
alcançado.
Há dois anos João se afastou das atividades políticas, mas teve uma longa trajetória
como membro do conselho tribal. No período de intensa mobilização política durante a
década de 1990, participou junto com outros 13 membros do conselho, o pajé Miguel
Binga e o cacique João Binga das viagens aos centros políticos do país, principalmente a
Brasília. Lembrando o passado em que “tudo era diferente”, o cargo de conselheiro lhe
atribuía prestígio, mais ainda quando o pajé o chamava para substituí-lo, assumindo assim
o cargo de subpajé. Com orgulho, acentua: “Tudo com documento, tudo documentado com
perfeita qualidade, com segurança e apoio da Justiça. Era chegar e ser respeitado em
qualquer mesa redonda”.
A decisão de se retirar do cargo ele a justifica em parte pelas doenças que
começaram a se manifestar com a idade e pela escolha de “ficar com um único trabalho”,
zelando o praiá que lhe foi “dado de presente”. Sente-se aliviado com a opção feita e
acentua ironicamente que “É melhor, é mais fácil. Só tem trabalho quando tem festa e vou
convidar todo mundo pra comer e beber. Eu não ia pra Brasília? Esse que tem documento

211
José Gomes da Silva teve outros relacionamentos. Com Antonia Maria da Conceição teve muitos outros
filhos, que aparecerão ao longo deste trabalho, entre os quais o já mencionado Agenor Gomes Julião e sua
irmã Amélia, chefe do grupo de mulheres penitentes.
187

no bolso é obrigado a ir pra qualquer encontro ou reunião. E eu, como zelador, não vou
mais pra canto nenhum”.
Conta que houve um período em que o pajé Miguel Binga teria expressado o desejo
de entregar-lhe o cargo, na mesma época em que João Binga queria passar o cargo a seu
filho David. Ambos teriam recusado. Ao perguntar os motivos de tal recusa, João
argumentou:
J.- Eu achava que podia ter mais sonhos. Mais força, mais sangue nas
veias e mais cultura, conhecimento, inteligência. Porque eu acredito que o
pajé e o cacique são os dois homens mais sabidos dentro da aldeia. Eles
têm que ter conhecimento de tudo. Eu não tenho esse conhecimento e,
quando eles quiseram passar pra mim, aí eu pensava que ia pegar uma
tarefa, uma carga muito pesada nas minhas costas que só Deus podia me
ajudar nessa carga. Cacique vive um dia dentro da aldeia e 29 para bater.
Pajé não é pra sair um segundo de dentro da sua tribo, ele tem que estar
junto com seu povo, ele é o chefe curandeiro, ele tem que estar de hora
em hora de olho aberto, um olho aberto e outro fechado. Porque ele é o
pajé. Nós diz “pai-jé”, é o pai! Ele não pode sair de dentro da aldeia pra
canto nenhum! Porque a aldeia está despreparada. Eu alcancei que o pajé
tem que largar a sua família, é o chefe, é o sábio, tem que botar o dedo no
chão, o ouvido no chão e saber o que está acontecendo. E eu ia largar
minha família pra viver 30 dias na natureza? Dentro da selva? Porque
pajé tem que ser desse tipo. Pajé tem que ser sabido, tem que ser cientista,
tem que ter cultura, força, contato com a natureza! É a natureza que dá a
sabedoria ao pajé. Tem palavras invisíveis, tem irradiação que ele tem
que receber. Embaixo da terra tem riqueza, em cima da terra tem mais,
onde tem tudo o que Deus deixou pra nós.

C.- Tem alguém que o senhor considera preparado para assumir esse
cargo?

J.- Tem não. Dentro de Pankararu tem não. A concentração do pajé tem
que ser limpa, perfeita pra não errar. Ele é o cientista. Não existe cientista
na leitura? E também existe o cientista na cultura indígena. Ele fecha os
olhos e diz: está acontecendo isto. Tem que ter ciência, contato. E depois
falar pro povo e esperar que vá acontecer.

Este trecho da entrevista tem alguns aspectos a serem ressaltados: a naturalização


dos cargos de pajé e cacique introduzidos pelo órgão indigenista e as capacidades que
precisam demonstrar ter para desempenhá-los. O cargo de pajé teria, para João, existência
antiga e corresponderia ao maior expert nos assuntos relativos à ciência pankararu. Em
outra circunstância João explicou com mais detalhes a necessidade de o pajé e os
curadores em geral terem estreito contato com a natureza, precisando afastar-se das
contingências da vida cotidiana. A concentração viabilizaria o aumento da intensidade de
viagens, visões e sonhos, necessária para os processos de cura, para que se façam previsões
188

do futuro e se oriente melhor os próprios seguidores. A argumentação visava expressar


críticas sobre a situação atual que, na visão e na posição de João, se caracterizaria por uma
degeneração geral da tradição indígena, que exigiria o respeito a esses cargos superiores.
Ao afirmar que ninguém tem as capacidades requisitadas para desempenhar o cargo de
pajé, deslegitima os potenciais sucessores de Miguel Binga, atualmente muito doente,
assim como manifesta sua desaprovação pela atual presença de dois caciques.

Nós estamos com essa diferença aqui dentro de Pankararu, feia. Pedro
Piruá é cacique no lugar do velho João Binga, Zé Auto é cacique no lugar
do finado Narciso, que foi o primeiro e único cacique pra trás, não teve
outro. Então, é de pai pra filho, no documento que eu vi, no sonho que eu
sonhei é assim que se respeita... Porque os índios dentro de sua panela tão
brigando por um taco melhor de carne. Por isso que está triste Pankararu.

Na narrativa de João, percebe-se como pano de fundo a reiteração dos preceitos


morais cuja perda provocaria o “fim dos Pankararu”. O “respeito”, a “consideração”, o
“trabalho”, a “obrigação”, a “honestidade” e a “união” são as palavras que, com ênfase, se
repetem na narrativa, glorificando um passado ideal em que teria reinado a paz e a
harmonia. Os valores morais seriam ameaçados pelas atitudes e os comportamentos que na
atualidade estariam “desclassificando” os Pankararu, provocando a sua indignação. Esta se
manifestou ainda mais enfática quando, ao perguntar-lhe sobre a divisão entre TI
Pankararu e TI Entre Serra e sobre a atuação da atual cacique dona Hilda, exclamou:

Porque se eu sou um pai de folguedo, sou um pai de folguedo e não meto


mão onde não cabe. Dona Hilda é uma zeladora de folguedo. Agora ela
se faz de cacica! Onde é que uma mulher vai atuar e dirigir uma
comunidade como cacica! Que na hora de entrar no lugar onde só entra
homem, ela, sendo cacica, tem que ir! Não pode! Ela tem que se colocar
no seu lugar. Por que ela não luta como uma conselheira? Aí sim!
Conselheira tribal! Mas cacica? Será que não tem homens na aldeia ali de
Entre Serra? Isso tudo esta desclassificando Pankararu.

O afastamento das atividades políticas – embora seja chamado ainda para participar
das reuniões – confere-lhe a liberdade de expressar qualquer crítica, pois não mais
concorre na disputa pelos cargos mencionados. No entanto, tal afastamento não significa a
renúncia aos recursos que dão prestígio dentro da configuração política e social da qual
participa. Orgulhando-se de ter alcançado uma espécie de neutralidade que o libertaria de
189

qualquer pressão, reivindica o status de pai ou mãe de folguedo212 – categoria à qual


pertence. Como são aqueles que têm contato com as entidades, são requisitados
frequentemente para curas e conselhos e conseguem ter ao redor de si numerosos adeptos,
não obstante, para manter a sua fidelidade, seja preciso demonstrar constantemente a
eficácia da própria performance.
Pai de praiá e reconhecido curador, João se orgulha de ter feito “muito benefício a
muita gente”, chegando a curar pessoas “loucas de se rasgar”.213 Zelador e dono de Capitão
de Evangélica, um encantado entre os “mais antigos, de quando se criou Pankararu”. “Eu
recebi de presente, eu tenho ele há 46 anos”, acentua com orgulho. Pelas informações que
havia coletado anteriormente sobre a família de João, sabia que seus pais não eram
zeladores nem donos de praiás, então lhe perguntei quem lhe havia ofertado o folguedo.
Para responder a esta pergunta, João contou uma longa história, cuja trama se tornou
particularmente interessante pela construção do discurso das diferenças entre zeladores e
donos e das distintas formas de herança. Ele é dono porque o ex-dono lhe deu de presente.
Conta ainda que os filhos do ex-dono tentaram recuperá-lo sem sucesso, tendo o ex-dono
lhe entregado o praiá diante de testemunhas que ainda hoje podem confirmá-lo.
Diversamente das narrativas de outros pais ou mães de praiás, ser dono de um
praiá, no caso de João, foi fruto de doação de uma pessoa que não era da sua família.
Todavia, como ele também afirma, para se tornar dono é preciso ter o merecimento, que só
se obtém através de um comportamento moral exigido pelos encantados, do contrário eles
se afastarão, deixando de se manifestar nos trabalhos de cura, nos sonhos e nas ocasiões
em que são invocados. Ele se afirma dono porque também é conhecedor dos mistérios que
pertencem a esse encantado, captados através de uma intensa comunicação onírica. Ao
perguntar sobre os inúmeros encantados que compõem o Cosmo, João respondeu:

A senhora vê que dentro de Pankararu tem muitos folguedos, né? Mas,


por exemplo, quem é dono da cansação214, só é um! Só é um! E esse um é
quem faz a festa pra todos e pra festa dele. É um o dono do imbu e esse

212
Folguedo é outra categoria usada para se referir ao praiá. Talvez seja empregada para destacar a parte
mais lúdica que lhe diz respeito, sendo que as danças rituais envolvem também este aspecto.
213
Adiante me ocuparei mais detidamente das narrativas sobre as práticas de cura. Especifico aqui que a
maioria dos especialistas rituais vangloria-se de ter curado pessoas que manifestavam claros estados de
alteração psicológica, acompanhados de manifestações violentas. João Gouveia afirmou, no entanto, que não
realiza mais rituais de cura.
214
A cansação, como se verá no último Capítulo deste trabalho, é uma espécie de urtiga com poderes
mágicos peculiares. È usada no ritual chamado de corrida de imbu.
190

faz a festa pra todos os amigos ir pra festa dele. É um que é responsável
que tem o direito de fazer esse trabalho, não [são] todos que faz[em] não!
Quem sabe fazer, quem sabe o mistério dele, só é o zelador. Só sabe o
mistério que tem, o pai de folguedo, a mãe de folguedo. Ele tem a festa
todo ano. Não existe carnaval de ano em ano? Não existe a quaresma de
ano em ano? Então, por que existe a quaresma? Porque existe o Senhor
Morto, que é dono da Quaresma. Então, são sete semanas de religião, tem
aquela penitência pra fazer. A corrida do imbu e a cansação é outro povo
que zela esse trabalho. Tem uma família que zela esse folguedo e esse
folguedo é dono dessa festa.

A argumentação de João é geralmente compartilhada pelas famílias que são


zeladoras dos encantados considerados ‘mais antigos’, cujos segredos são mantidos em
sigilo, ou seja, cada família cultiva seu próprio mistério e zela por ele, que não pode ser
divulgado.
Ao indagar sobre os diversos oficiantes dentro da área indígena e mais
especificadamente sobre a atuação dos penitentes, João acentuou: “Eu não fui criado
dentro do conhecimento da religião, dentro dos beatos nem de penitentes aqui dentro de
Pankararu”. Como outros especialistas entrevistados que não pertencem ao grupo
penitente, João sublinha enfaticamente a diferença entre “religião” e “tradição”, categorias
que são acionadas para se referir, respectivamente, a quem emprega um conjunto de
saberes e elementos considerados exógenos, e a outros que respeitam os trabalhos rituais
da “autêntica tradição”, empregando elementos considerados de matriz exclusivamente
indígena. Na narrativa fica bem evidente a distância voluntariamente marcada em relação
aos penitentes. Pediu-me licença para manifestar sua opinião:

Eu fui criado pelos mais velhos para os terreiros da cultura. Eu não sou
contra os penitentes nem as beatas, eles têm a cultura deles, o mistério
deles e a gente respeita o trabalho deles e, então, não sei que mistério eles
têm, não passam pra gente. E a nossa é que [são] os praiás, os folguedos.
A gente fica com a nossa cultura, zelar a cultura, do tronco dos
antepassados, aí dá muito valor! E até esse povo das beatas e penitentes
dão valor a nós! Do lado deles a gente não acompanha, porque é o povo
deles. A gente trabalha com folguedos com praiás e eles são vivos, os
penitentes não, eles trabalham com a cruz, e o lado de uma cruz e o lado
que eles faz[em] que carregam uma cruz não é vivo, é morto. Eles
trabalham com a cruz, nós trabalha com cachimbo, é maracá, é com
garapa, é criança, é mulher, é tudo. É essa a minha tradição! Tudo é
separado, tudo em seu devido lugar. Quando eles passam, nós fica em
casa com as portas fechadas e, deixa pra lá, o trabalho é deles! O mistério
da gente é outro, esse tipo de mistério aqui, de segredo, de ilusão de
caboclo, né? Mas a penitência não é ilusão de caboclo não. Ilusão de
caboclo é o índio, é o encantado; e a ilusão de penitente e da beata é de
morto, é de outra qualidade de coisa, não é de índio não!
191

Como se pode observar, o discurso de João tende a marcar espaços diferenciados de


atuação, enfatizando que os penitentes pertenceriam a outro povo do qual ele nunca teria se
aproximado. O relato continuou acentuando o nível de elevada “mistura” que o grupo
Pankararu teria alcançado, cotejando-o com outros grupos indígenas. Sem nomear
especificadamente um grupo, apelava para um idealizado em que “não existe penitente,
beata nem igreja!”, e somente um culto seria consentido, o dos encantados.
A argumentação de João torna claro também que os mistérios e os segredos em
torno das práticas mágicas não se restringem aos especialistas que cultuam os encantados,
mas abrangem outros especialistas e grupos rituais Pankararu que cultuam outras
entidades, como é o caso dos penitentes, assim como não se restringem aos encantados
pankararu, pois, ao perguntar-lhe se eles recebiam pacientes de outros grupos indígenas ou
não indígenas, respondeu:

Tem! Tem pessoas que vêm de longe. E pessoa que está doente que vem
atrás dos caboclos aqui. Vem de longe. E a gente vai também pra outros
curá. Meu pai levou a filha pra curá pra lá de Águas Belas, os Fulni-ô, pra
outro velho curá! É troca, né? Cada [um] tem um mistério. Todo mistério
tem dono!

5.2.3 Dora: o dom e as múltiplas atuações

Maria das Dores da Silva215 – mais conhecida como mãe Dora – tem 47 anos e é a
mais prestigiada parteira da área indígena, atuando principalmente nas aldeias Brejo dos
Padres, Gitó e Saco dos Barros. Nas vezes em que a acompanhei em algum lugar da aldeia,
o caminhar era parado frequentemente pelas crianças e adolescentes que se aproximavam
dela para pedir a bênção – no local, “bença” – costume bastante difundido, empregado
como demonstração de respeito e especialmente dirigido a parentes mais idosos. Sobrinha
de Quitéria Binga, liderança que teve particular destaque na luta pela terra nos anos 1990 e
membro do conselho tribal, Dora ganhou os favores da tia que, através de seus contatos,
lhe ofereceu a possibilidade de estudar quando ainda era muito pequena.

215
Fui apresentada à Dora no começo da pesquisa por Andrea Cadena Giberti que então era a coordenadora
da ONG SSL. Tive a possibilidade de compartilhar diversos momentos e situações com ela, que me ofereceu
em várias ocasiões sua grande hospitalidade, podendo assim estar presente na vida familiar e no tempo
extracotidiano das romarias.
192

Quando terminei a quarta série, minha mãe não tinha como me mandar
para estudar em Tacaratu, que eu não tinha roupa nem calçado. Eu
ajudava minha tia a fazer vassoura, aí comprava uma roupinha, um
chinelinho, aí eu não tinha condições de estudar, de fazer o ginásio. Aí
minha tia Quitéria tinha uns conhecidos lá de Paulo Afonso. Porque antes
quem tomava conta da aldeia era o Exército e ela tinha muitos conhecidos
lá em Paulo Afonso. Ela conhecia o capitão Arudo e ele trouxe a mulher
dele, que era de João Pessoa, e a filha pra Paulo Afonso, aí onde tem a
vila militar. Aí ela perguntou pra tia Quitéria se ela não tinha uma filha
ou uma sobrinha pra ir brincar com a filha dela. Minha tia falou que ela
tinha uma sobrinha que tinha vontade de estudar, aí ela me levou pra casa
deles. A mulher dele era professora, mas não trabalhava, e ela sempre me
dava aula. Eu tinha 11 anos. No outro ano me matricularam numa escola
particular lá, pra fazer o reforço e, quando me matricularam, eles tiveram
que ir embora e queriam me levar, mas minha avó não quis me mandar.
Aí eles se foram e minha tia arranjou outra família e aí comecei a estudar
na escola de freiras. Fiz quinta e sexta e vim-me embora e terminei em
Itaparica quando tinha 18 anos. Aí, depois, fiz o curso de atendente de
enfermagem e terminei o primeiro grau e depois fiz o curso de técnico de
enfermagem aqui em Itaparica. Mas depois de eu casada [é] que eu fui
estudar, aí que eu terminei primeiro e segundo grau.

Conta emocionada a gratidão pela tia Quitéria, falecida em 2010 por lhe ter dado a
possibilidade de estudar e de conhecer várias pessoas influentes, abrindo-lhe o caminho
para poder ter seu trabalho como técnica de enfermagem, sendo hoje integrante da EMSI
(Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena). No entanto, seu peculiar prestígio se deve
ao serviço prestado à coletividade como parteira, que Dora considera “a coisa mais sagrada
que Deus me deu, o dom de pegar meninos”. Perguntei-lhe quando havia começado a
“pegar meninos”:

Eu tinha 18 anos quando comecei a fazer parto. Comecei com Chiquinha


Quirino e minha tia Quitéria, que era também parteira. Aí Quitéria, com
os conhecimentos dela, como disse, conseguiu pra eu fazer um curso de
parteira. Mas só pra ter noção, porque a gente continua do mesmo jeito
fazendo o parto tradicional com as ervas, de cócoras, sentada. Ontem fiz
um! De Teresa! Tem um bocado agora pra fazer.

Os dados da COIMI reportados em 2007 mostram que a maioria das mulheres


Pankararu escolhe parir nos hospitais próximos à aldeia, em especial em Tacaratu, onde
Dora também pode acompanhar e assistir os partos. A atuação das parteiras seria bastante
modesta, sobretudo nas aldeias que carecem destas especialistas. O prestígio de Dora se
deve muito provavelmente à combinação dos saberes e das práticas tradicionais com a
biomedicina, que permite às suas pacientes usufruírem das diversas precauções.
193

Há de se salientar que a grande influência de Dora tem a ver também com a atuação
da SSL que, desde 2005, desenvolve projetos objetivando a valorização do sistema de
parto tradicional, oferecendo o pré-natal e organizando oficinas com parteiras já com
experiência e outras em formação. O incentivo de formar um grupo de parteiras, que
periodicamente se encontram para trocar informações e experiências, não teve, no entanto,
o êxito esperado. De fato, desde que os projetos acabaram e a presença das coordenadoras
que organizavam tais eventos veio a faltar, as parteiras deixaram de se reunir. Os princípios
evidentemente associativistas do projeto não deram o resultado esperado, talvez em virtude
de tais conhecimentos serem repassados dentro das próprias famílias, como no caso de
Dora, que acompanhava desde pequena sua tia Quitéria quando realizava os partos. Mas a
participação ativa nas oficinas da SSL incrementou seus conhecimentos, e o prestígio
alcançado tornou-a referência nesses assuntos, sendo chamada por outras ONGs a
participar de reuniões, oficinas e congressos nacionais e internacionais sobre os
conhecimentos das “parteiras indígenas”.216
A atuação de Dora não se limita, entretanto, à realização dos partos, sendo-lhe
reconhecidos outros dons. Ela também realiza trabalhos de cura com o auxílio de alguns
oficiantes, entre os quais seu marido Cícero Antonio do Nascimento – pertencente à
família chamada de Mutuca – e dono de praiá. Ao pergunta-lhe sobre o processo de
descobrimento de seu dom, ela respondeu:

Eu era novinha quando recebi o dom. Quando eu tinha seis meses, já meu
bisavô falou pra minha mãe que, quando eu ficasse com uma idade, ia
acontecer isso. Aí estava todo mundo sabendo.

C- Quem era o bisavô da senhora?

Na verdade, ele era tio, mas como ele criou meu avô, a gente chama ele
de bisavô. Era Antonio Binga e meu avô era Joaquim Binga. Aí, quando
tinha 17 anos, eu vi padre Cícero, vi, assim, eu estava doente, desmaiava.
Aí quem trabalhou pra mim foi tia Raquel e Luís Caboclo, juntos, pra
curar, pra eu trabalhar. Mas eu não gosto muito não, é muito difícil.
Porque o meu serviço de fazer parto pra mim é a coisa mais sagrada que

216
Em vários encontros em que foi solicitada sua presença, Dora participou da “Oficina Internacional sobre o
Conhecimento Ancestral das Parteiras na Manutenção da Vida e na Redução da Mortalidade Materna e
Infantil”, realizada em Quito, em novembro de 2009, e promovida pela Organização Pan-Americana da
Saúde. Dias antes da viagem dizia se sentir muito “agoniada” porque a oficina iria se desenvolver em dias
muito próximos da romaria de finados e ela não queria absolutamente perdê-la. Acalmou-se somente depois
ter conseguido uma maneira de participar dos dois compromissos, partindo diretamente de Juazeiro do Norte
após o final da romaria.
194

Deus me deu e, se eu abrir uma mesa e chegar alguém, eu não posso sair.
Mas se outro abrir a mesa e eu estou só ajudando, eu peço licença e vou
embora pra fazer o parto. Se eu abrir a mesa, eu não posso sair.

O grupo doméstico formado por Antonio Binga, cuja atuação já foi abordada no
Capítulo II, teve uma importância crucial na formação e na trajetória de Dora, e torna
também compreensível a sua inserção no grupo de mulheres penitentes. Embora sem
desempenhar um papel central, Dora participa ativamente de rezas, rituais e romarias
promovidas pelas penitentes. Da mesma forma, está presente nos rituais da tradição
indígena, sendo convidada frequentemente a desempenhar o papel de madrinha nos rituais
do menino do rancho, todo ano participando da corrida do imbu, na qual tem uma posição
de destaque.
A relação cordial e sem disputas que ela mantém com diversas famílias e a recusa
em “se meter em brigas”, demonstrando capacidades conciliadoras, aumentam seu
prestígio e a colocam em uma posição que lhe permite engajar-se em múltiplos grupos
cujos vínculos dão vida a colaborações de diversas naturezas e participar deles. A casa
onde mora com o marido, o único filho, a nora e o netinho Henrique, localizada ao lado do
polo da Funasa e no caminho para o posto indígena, é alvo de contínuas visitas. Sendo
particularmente receptiva, afável e caridosa, as pessoas a procuram para diversas questões
que extrapolam aquelas de ordem médica.
195

Fervorosa seguidora de padre Cícero e dos padrinhos que o sucederam, Dora não
perde uma romaria,217 sobretudo a de finados, em Juazeiro do Norte. Ela afirma que é a sua
“missão”, preparando-se o ano todo para a viagem, pedindo com antecedência a licença
para se ausentar do trabalho durante os dias de romaria, poupando o dinheiro necessário e
juntando bens – principalmente alimentares – para levar à casa de madrinha Dodô em
Juazeiro e, assim, contribuir com o espírito de caridade muito apreciado e parte
fundamental dos rituais que ali se desenvolvem.
A participação nos variados rituais dentro e fora da aldeia permitiu-lhe tecer uma
rede de relações extensa alimentada por constantes visitas aos respectivos lugares de
residências, seja por ocasião das romarias, seja para a realização de rituais de cura com
outros especialistas. Diversamente de outros especialistas já abordados neste estudo, Dora
constrói a sua argumentação sem definir fronteiras entre os diversos grupos rituais que
vivem dentro ou fora da área indígena, embora se orgulhe da pertença ao grupo étnico
Pankararu. Mantendo múltiplas posições, o seu discurso articula, de maneira conciliadora,
os símbolos que outros especialistas usam como sinais diacríticos para construir clivagens.
No entanto, na hierarquização das entidades, não hesita em colocar os padrinhos em um
patamar bem mais alto em relação aos encantados, estando estes últimos subordinados e
aos primeiros e precisando se submeter aos seus mandos. Afirmou:

Deus primeiramente, depois os padrinhos e a Santa Cruz, e depois os


encantados. É que os guias de luz e os encantados pedem a padrinho
Cícero e a Pedro Batista, porque eles estão mais perto de Deus.

No circuito ritual de cura que atravessa as fronteiras étnicas, os vínculos com a


comunidade do quilômetro 40 em Santa Brígida são particularmente estreitos. Dora, dando
continuidade às relações que inicialmente sua família havia estabelecido, consegue ter
acesso aos conhecimentos das práticas rituais que ali se desenvolvem, assim como mostrar
a sua performance. Tais ocasiões permitem dar continuidade à troca de informações,
sobretudo sobre novos ou potenciais curadores que frequentemente aparecem na área. A
preocupação com a “mistura” que tais encontros determinariam – tema particularmente
importante para outros especialistas – não se revestem, para Dora, de qualquer
importância, que enfatiza os aspectos compartilhados com os grupos rituais de Santa
Brígida e acentua o culto comum a Pedro Batista, o padrinho, que os uniu.

217
Retomarei a atuação de Dora no Capítulo VIII.
196

Diferente das mulheres que atualmente desempenham os papéis de chefia do grupo


penitentes, Dora prefere não ter específicas responsabilidades com o grupo, podendo
aparecer nos rituais somente quando não trabalha e, em especial, quando não há partos a
serem feitos. Além disso, sente-se incomodada diante de atitudes que não correspondem a
seu ideal de “chefia da penitência”, tendo como sua única referência a já falecida
fundadora do grupo, Maria Bárbara Binga Oliveira, cujo carisma e prestígio procediam de
um conjunto de comportamentos morais extremamente valorizados, tornando-se aos olhos
de Dora o exemplo a ser seguido. Com tais propósitos, Dora, embora não desempenhe
cargos de chefia, consegue hoje em dia recrutar, aproximar e mobilizar muitas pessoas para
a realização de rituais, capacidade necessária para estabelecer vínculos e manter lealdades.

5.2.4 Maria Bárbara Filha: da penitência à tradição

Maria Bárbara Filha (61 anos) – uma das duas filhas do casal Oliveira, cujo grupo
doméstico foi já abordado na descrição das relações entre as famílias extensas do tronco
Binga – pode-se dizer que seja o eixo das atividades rituais da própria família, 218 sua casa
sendo o lócus dos encontros cotidianos de todos os seus membros que para ali vão ao final
da tarde para o momento rotineiro de socialização. A sua presença é indispensável,
sobretudo nos encontros semanais ou em outras ocasiões em que as obrigações rituais os
levam ao salão no terreiro do falecido João Binga, os irmãos reunindo-se na casa dela para
juntos alcançá-lo.
Como todos os seus irmãos, também ela permaneceu muitos anos em São Paulo
trabalhando como doméstica nas casas de algumas famílias. Morava na casa do irmão
Cícero, que acolheu também outros irmãos. Foi ali que conheceu e se casou com Edimilson
Maia de Vasconcelos, apesar da resistência da família que desejava para ela um
matrimônio com “alguém da aldeia”. O casal se mudou para Brejo dos Padres, tiveram dois
filhos e depois de um tempo se separou, tendo esporádicos contatos. Só e com muitas
dificuldades financeiras, sustentou a família. Embora desejasse sair da aldeia para buscar
melhores condições de vida, quando chegou a São Paulo contou ter tido muitos problemas
de adaptação, ter sofrido humilhações que deixaram nela marcas indeléveis. A viagem de

218
Como outras especialistas rituais, Maria Bárbara Filha atua apenas dentro do próprio grupo doméstico,
sem ter um papel público e visibilidade além desse grupo.
197

volta à aldeia, afirmou, não foi menos dolorosa que a saída, pois a nova mudança também
foi dramática, já que tinha se acostumado a viver na grande cidade.
Boa anfitriã e hospitaleira, Maria Bárbara Filha tem uma atitude humilde que
afirma ter aprendido durante os anos em São Paulo. Nos seus relatos, enfatizou várias
vezes a rebeldia que caracterizou a sua juventude em relação à atuação da mãe, Maria
Bárbara que, lembramos aqui, foi a fundadora do grupo de mulheres penitentes. Embora
sempre com uma atitude de respeito e com a intenção de enaltecer a obra da mãe, disse que
mal suportava as constantes visitas que ela recebia, os inúmeros “santos pendurados em
casa” e a férrea moral que exigia. Ela e sua irmã, Maria do Socorro, não são integrantes do
grupo de mulheres penitentes, como a mãe Maria Bárbara teria desejado que fossem.
Escolheram, junto com os outros irmãos, dedicar-se às obrigações rituais restritas aos
encantados. Como já foi mencionado, todos os filhos e netos de Maria Bárbara (menos
José Oliveira)219 dedicam-se apenas aos rituais da tradição indígena, que atualmente tem o
maior número de adeptos, provocando, consequentemente, a diminuição da participação
nos rituais que contemplam a presença de outros grupos rituais da região.

A cunhada Amélia Julião, que atualmente é uma das chefes do grupo de penitentes,
chama-a frequentemente para cumprir com aquelas que deveriam ser suas obrigações para
com a “penitência”. Com efeito, Maria Bárbara Filha foi desde criança integrada no grupo
pela mãe e as regras exigiam dela a presença constante nas práticas rituais do grupo.
Todavia, a cada convite recebido respondia, sem recusar de maneira ostensiva, que ela
219
Como já mencionei, José Oliveira, casado com Amélia Julião, participa juntamente com a esposa do grupo
de penitentes, bem como das romarias e dos encontros com outros grupos religiosos da região.
198

cumpria apenas com suas obrigações com a tradição indígena, as quais a absorviam
plenamente, e que havia escolhido se dedicar exclusivamente a ela.
Ao falecer Maria Bárbara e seu marido, Manoel Oliveira, tendo adoecido,
desapareceram as duas autoridades morais que mantinham a disciplina dos filhos,
permitindo que eles escolhessem com mais liberdade participar de um ou de outro grupo
ritual, pois ambos eram atuantes dentro do próprio tronco.
A proximidade de Maria Bárbara Filha com o tio João Binga deu-lhe a
possibilidade de se dedicar com mais zelo à tradição, afastando-se gradativamente do
confinamento em que as mulheres do grupo penitente costumavam ficar. Há de se salientar
que a figura de referência e sempre enaltecida por Maria Bárbara Filha nunca foi a própria
mãe, mas sua avó Antonia, a qual pertencia à família Serafim que guardava as sabedorias
da tradição indígena.
Ao contrário dos valores morais rígidos que o grupo penitente continua propondo, a
inserção na tradição indígena permitiu à Maria Bárbara Filha e a outras mulheres que se
afastaram da penitência encontrar um canal de aquisição de prestígio. Na tradição
indígena – embora sem se afastar consideravelmente dos valores morais que vigoram, a
mulher ocupando uma posição pública de menor importância em virtude da interdição a ela
imposta do conhecimento do segredo que apenas os homens podem ter – alcançou a
visibilidade das suas práticas rituais e pôde contribuir para a atualização dos valores
morais.
As reflexões a partir da própria experiência de vida e a comparação da atuação
desses dois grupos rituais impulsionaram a escolha de tia Lia (como é chamada
carinhosamente), provocando um conjunto de críticas a concepções e interpretações de
indivíduos que ocupavam uma posição de autoridade (como a própria mãe), permitindo-lhe
ter um papel protagonista no processo de mudança social que levou à queda das forças e
das regras disciplinadoras do grupo de mulheres penitentes.
Há outro aspecto a ser destacado na escolha de tia Lia: o processo de fissão do
tronco Binga que, como já foi descrito, viu as famílias extensas aliadas dos “Binga de
cima” (à qual ela pertence) afastarem-se daquelas ligadas aos “Binga de baixo”, vinculados
aos grupos penitentes, disseminando-se uma divisão na participação ritual.
199

5.2.5 Cruzando as narrativas: processos experienciais e as variações

Como se pode observar, os processos experienciais dos quatro atores sociais acima
reportados mostram um pequeno leque de variações que poderiam se multiplicar se
escolhêssemos outros atores sociais. A nossa intenção não é destacar todas as possíveis
variações para recompor uma suposta unidade Pankararu, mas sim as diferentes posturas
que nos permitem elaborar algumas considerações.
Como se observou nos relatos de Zé Auto e João Gouveia, é muito clara a posição
que ambos assumem quanto à atuação dos penitentes, com um forte diferencial em relação
à tradição indígena, enquanto o culto e o uso de símbolos considerados exógenos ao
próprio grupo ritual os colocariam como grupos externos demasiadamente vinculados à
Igreja. Este é um discurso bem padronizado que se emprega frequentemente diante das
agências de contato que enaltecem os símbolos diacríticos da “indianidade”, mas é também
um discurso construído para sustentar uma divergência interna e rebaixar a autoridade
moral e política que os penitentes mantiveram durante um longo período e que remete a
um sistema de dominação anterior ao segundo processo de territorialização, quando teriam
sido os mais favorecidos pelos oligarcas da região e pela Igreja. 220 As famílias que apoiam
essa divergência, das quais Zé Auto e João Gouveia fazem parte, ativam tais
argumentações em virtude também da necessidade de uma progressiva “purificação”
desses elementos considerados exógenos, mas que, na realidade, estão totalmente
incorporados às suas práticas rituais.
Embora não participem dos grupos de penitentes, os membros da família de Zé
Auto, como ele mesmo destacou ao relatar a participação da avó Maria Pedro nas romarias,
compartilhavam o circuito experiencial dos penitentes e eram seguidores do padrinho
Cícero. Pode-se dizer, então, que não houve processos experienciais divergentes a ponto de
criar barreiras intransponíveis entre esses atores sociais, famílias e grupos rituais. Ao
contrário, observei uma interpenetração de todos os troncos, o que lhes permite dizer “aqui
é todo mundo parente”, criando um estímulo para a construção de um sentimento de
pertencimento étnico.
Se Zé Auto e João Gouveia, como muitos outros envolvidos nas práticas rituais da
tradição indígena, podem restringir a própria atuação a estas práticas explicitando a

220
Como destacarei melhor no Capítulo VII, a introdução do culto da penitência na área indígena é atribuída
a uma família negra. Segundo a maioria dos interlocutores, as famílias negras teriam sido as favorecidas
durante o período da divisão da terra em lotes após a extinção do aldeamento, a já referida “época das linhas”.
200

postura que adotaram, diverso é o caso de muitos homens penitentes que reiteram nas suas
argumentações a participação em ambos os grupos, como é o caso de muitos membros do
tronco Binga. A necessidade de manifestar a plena adesão a ambas as práticas rituais
demonstra tanto a sua adoção a partir de relações de parentesco entre famílias que eram
portadoras de diversos cultos e que já estão consolidadas há muito tempo, como as
estratégias empregadas para manter diferentes alianças e fortalecer-se perante as
comunidades políticas adversárias. Entre os interlocutores consultados pertencentes ao
grupo penitente, dificilmente há aqueles que tendam a ressaltar a adesão apenas a ele.
No caso das mulheres aqui mencionadas, a posição que adotam é bastante diversa,
embora possam se mostrar de acordo em algumas circunstâncias. Para além das posturas
políticas especialmente contrastantes entre, por exemplo, Maria Bárbara Filha e Zé Alto –
pertencentes a facções opostas221 – as atitudes que dizem respeito ao enaltecimento dos
encantados entre as entidades do Cosmo e às práticas rituais da tradição indígena são
convergentes. Mas o posicionamento de Maria Bárbara Filha não pode ser reportado
unicamente às disputas dentro do próprio tronco, especialmente às desavenças com os
“Binga de baixo”. Há um processo experiencial que envolve as relações de gênero e a
construção da reputação e do self, e também as possibilidades que a tradição indígena lhe
abriu no que diz respeito a estes aspectos. A escolha pela tradição indígena permite-lhe
manifestar, se não publicamente pelo menos em nível doméstico, seu desacordo em relação
ao grupo de mulheres penitentes e à disciplina moral que as atuais chefes do grupo
pretendem perpetuar.
A atitude de Dora é, como se observou, mais conciliadora. Se, por um lado, sua
trajetória coloca-a como mediadora entre as agências de contato, como a ONG SSL, ou os
especialistas da biomedicina que atuam conjuntamente na área, apresentando as práticas
tradicionais das quais ela se orgulha de ter aprendido com sua família e que envolvem
todos os elementos da tradição indígena, por outro, também os conduz para a participação
no grupo de mulheres penitentes e no circuito ritual delineado pelos índios-romeiros.
Talvez, de forma mais clara, Dora represente o posicionamento que vários
Pankararu adotam e que lhes permite transitar entre os diversos grupos rituais, manter
relações amigáveis com eles e construir alianças, para além das fronteiras étnicas, com
outros grupos rituais. A construção da própria reputação como “mulher lutadora” se deu

221
Como se viu anteriormente, o grupo doméstico Oliveira não reconhece Zé Auto como cacique, mas o seu
adversário, Pedro Monteiro da Luz, pertence ao tronco Binga.
201

através de múltiplas atividades rituais que ela abraçou, não precisando, como Maria
Bárbara Filha, escolher uma entre elas para poder se afirmar.
É possível concluir, então, que a adesão aos grupos rituais atuantes na área resulta
de dinâmicas especialmente complexas, não reduzíveis apenas ao pertencimento a uma
família ou a um tronco, ou à pertença a uma facção política, mas a processos experienciais
também individuais que visam à construção da própria reputação através do domínio de
instrumentos que permitam demonstrar a necessária destreza para mobilizar recursos
humanos, isto é, angariar aliados, tanto em nível familiar quanto suprafamiliar e
supraétnico. No entanto, sendo cada especialista vinculado à própria família e fruto de um
processo educativo que se dá em seu interior, todos os atos e todas as escolhas dependerão
das orientações e das pressões internas ou, pelo menos, responderão às necessidades para
que ela – a família – seja beneficiada.
202

Capítulo VI. Doenças e mesas de cura

Como argumenta Athias (2002, p. 190) os Pankararu têm a própria etiologia das
doenças e a partir dela se determina os procedimentos terapêuticos.222 Geralmente o
diagnóstico inicial é realizado por um especialista ritual (benzedor, curador ou rezador)
que, através da técnica de passar o ramo ou abrindo uma mesa, poderá saber se a doença é
de natureza “espiritual” ou não. Com base no resultado do diagnóstico, o especialista
estabelecerá o tratamento terapêutico do paciente, o que permite a distribuição de
competências entre todos os especialistas médicos que trabalham na região. Se a doença
for de natureza “espiritual”, o processo de cura será realizado por um especialista ritual
indígena, que poderá chamar auxiliares dependendo da gravidade e do agente causador da
doença. No entanto, para a cura espiritual pode-se recorrer a especialistas que vivem nas
cidades ou nos vilarejos próximos à área ou, em diversos casos, também bem longe dela.
Na maioria dos casos, são oficiantes de reconhecida fama e cujos sucessos terapêuticos são
divulgados através da rede de relações estabelecidas por laços de amizade ou parentesco.
As doenças que não são “espirituais” não recebem uma clara classificação, mas diz-
se, em alguns casos, que a pessoa está com “sangue fraco”, expressão que se refere às
vezes a problemas de anemia ou diabetes. A distinção entre corpo e espírito, nas narrativas,
diz respeito à captura deste último por parte das entidades, o corpo ficando inerte e sendo
unicamente o seu suporte. Os cuidados com o corpo seriam de competência da
biomedicina. Os especialistas orientam o paciente para que seja tratado através da
biomedicina, cujos especialistas recebem diversas classificações, a saber: homem de
caneta, homem de colarinho ou sapato branco. Delineia-se, portanto, uma distribuição de
competências entre os vários especialistas atuantes na região e estabelece-se uma
hierarquia entre elas, sendo atribuída particular importância às doenças “espirituais”.
A estabilidade da saúde dos índios é percebida como constantemente ameaçada.
Como foi visto, os Pankararu podem ser alvo de ataques de entidades que lhes trazem
doenças ou perturbações. Em determinados momentos, a vulnerabilidade a tais ataques
pode aumentar ou diminuir. Com a dicotomia corpo aberto/corpo fechado, os índios fazem
referência a uma condição oscilante que depende principalmente do tipo de

222
O autor (ibidem, p. 190) destacou a importância da relação com os aspectos cosmológicos dos Pankararu
tanto para o diagnóstico quanto para os procedimentos terapêuticos. Ressaltou, sobretudo, a importância dos
encantados para aquilo que ele define como “sistema médico Pankararu” e para a saúde em geral.
203

comportamento ou da atitude assumida. Um comportamento moralmente aceito e o


cuidado no cumprimento das obrigações e dos resguardos dizem respeito às atividades
rituais e ao empreendimento das atividades cotidianas, como também à manutenção de
relações sociais harmônicas que demonstrem uma boa inserção social – aspectos que
contribuem significativamente para preservar o corpo fechado, isto é, protegido dos
eventuais ataques das entidades. Do contrário, tendo o corpo aberto, o sujeito torna-se
especialmente vulnerável.
Cabe salientar que, embora a infração de preceitos morais seja a principal causa do
corpo aberto, há também condições naturais que o determinam. Por exemplo, durante o
período menstrual, as mulheres têm o corpo aberto, sendo-lhes proibido participar dos
rituais e fumar o cachimbo, entre outras interdições, e devem seguir uma específica dieta
que evita alimentos considerados excessivamente “carregados”, como o feijão de corda e a
manga. O corpo aberto é, neste caso, um estado de impureza que precisa de um tempo
determinado para neutralizá-lo. A abstinência sexual com tempos variáveis (de três a 45
dias) antes da realização de um ritual, ou antes do empreendimento de alguma atividade
que precisa dos favores das entidades, é um entre os resguardos necessários para manter o
corpo fechado. Também a abstinência das bebidas alcoólicas é particularmente solicitada.
Há de se ressaltar que a condição de corpo aberto como estado de impureza é relativa à
população em geral, sendo excluídos os especialistas que, justamente pela necessidade de
incorporar todas as entidades, precisam ficar permanentemente de corpo aberto. Esta
condição vivenciada pelos oficiantes não os leva a padecer dos ataques das entidades, pois
são protegidos, mas é necessária para perpetuar a constante sintonia com as entidades: o
dom.
Segundo os dados da COIMI (2007), recorrer aos remédios da biomedicina é
bastante difundido entre a população, mas cabe salientar que os especialistas pankararu
têm uma rica farmacopeia para a cura das doenças, chamada geralmente de “remédio do
mato”. O conhecimento das plantas medicinais, seu tratamento, indicação e uso, embora se
concentrem nas mãos dos especialistas, são também bastante conhecidos da população. As
famílias possuem nos espaços domésticos uma reserva das principais plantas necessárias à
cura de doenças leves ou passageiras, como dor de barriga ou dor de cabeça. No entanto,
204

os especialistas são os únicos a preparar garrafadas ou lambedouros e outros compostos de


diversas espécies de plantas destinadas à cura das doenças (Castaneda, 2010).223
Foi particularmente acentuado por vários especialistas o fracasso dos remédios da
biomedicina em casos de doenças que eram de sua competência. Em conversa com um
grupo de rezadoras mais idosas, elas afirmaram com evidente orgulho que nunca haviam
recorrido à biomedicina. Por exemplo, Ana Bomba224 argumentou:

Eu estava estiradinha, prontinha pra morrer, e no sonho ele veio e me


ensinou o remédio, aí o povo me deu e na hora eu me levantei e fiquei
boa até hoje! Nunca fui pra Recife, nunca fui pra caminho nenhum,
doutor nenhum me viu, me curei com essa quixabeira que me ensinou. E
era um folguedo mesmo que eu reconheci. Aí no sonho ele falou: “Não
precisa ir pra floresta, raspa quixabeira pra você beber”. Eu gritando com
uma dor, uma dor! Assim que eles me deram, pronto, até hoje tô boa!
Tenho muita fé nele!

Enfatizaram ainda que, além do fracasso da biomedicina para certas doenças, esta
pode se tornar fatal para o paciente, levando-o até a morte. Josivete, rezadora já
mencionada neste trabalho, foi pressionada pela família a levar um dos filhos para o
hospital, pois ele apresentava uma forte infecção no pé que determinou o aumento
assustador da temperatura. Mostrando-me o pé do filho que estava brincando ao nosso lado
durante a entrevista, dizia que ela o tinha levado para o hospital, mas sabia que não era
“negócio de homem de caneta”. Depois de o menino tomar a medicação no hospital e
assustada com os efeitos,225 trouxe de volta a criança para casa afirmando que ela mesma
iria curar o filho e que ainda hoje ele precisa de seus cuidados. Outro caso contado por
Josivete foi o de uma mulher que há muito tempo está internada em Recife com problemas
mentais. Considerada “louca” pela maioria da família e pelos médicos, Josivete afirmou
que a mulher não podia ser tratada como tal, porque apresentava claros sintomas da
mediunidade e precisava, portanto, de uma “limpeza de corrente”. Uma vez curado o filho,
afirmou que ela iria cuidar da paciente.
Sintomas relativos à esfera psicológica, como comportamentos agressivos e
isolamento são geralmente tratados pelos especialistas indígenas, embora em vários casos

223
Para um aprofundamento sobre as plantas medicinais empregadas pelos Pankararu, ver Castaneda (2010).
224
Uma das três atuais chefes do grupo de mulheres penitentes.
225
A criança teria desmaiado e Josivete achou que o remédio havia enfraquecido ainda mais o filho, a tal
ponto que o espírito ruim podia levá-lo consigo.
205

se recorra à psiquiatria e aos remédios por ela empregados. Há de se salientar que a doença
é considerada o resultado de um desequilíbrio que transcende a dimensão puramente
individual, pois envolve a esfera social e cósmica. O especialista pode imputar a causa da
doença à própria vítima, caso ela tenha transgredido os preceitos morais ou quebrado os
resguardos necessários para a realização dos rituais. O diagnóstico do especialista neste
caso pode confirmar que o sujeito recebeu o devido castigo por parte das entidades.
Ressalte-se que a quebra dos resguardos para a realização dos rituais, além de afetar a
saúde do indivíduo que os desrespeitou, coloca em situação de risco também todos aqueles
que dele participaram, inclusive e principalmente o paciente que está sendo curado.
Nos casos em que a doença atinge uma criança, o especialista pode fazer recair a
culpa no comportamento dos familiares da vítima, acusando-os de terem violado
resguardos ou preceitos morais. Caso saiba da ocorrência de dificuldades na integração da
criança por parte dos familiares ou de comportamentos agressivos contra ela, avisa-os e
orienta-os a fim de restabelecer uma relação afetiva harmônica. Uma jovem pankararu
contou-me que a filha de 12 anos teve diversos episódios de desmaios e que o seu
comportamento havia mudado repentinamente, demonstrando sinais de introversão
anteriormente ausentes. Afirmou que a filha era muito vaidosa, mas que nesse período
recusava-se a vestir as roupas que mais lhe agradavam e tampouco queria se pentear. Com
muita amargura, contava que os episódios de desmaio ocorridos na escola onde a filha
estudava provocaram comentários maliciosos que se referiam à possibilidade de a mocinha
estar grávida. Indignada com as acusações e querendo desmentir as fofocas, levou à escola
o resultado negativo do teste de gravidez.
Preocupada com a saúde da filha, encaminhou-a ao médico, mas o tratamento não
resolveu o problema. Como os desmaios continuavam, decidiu finalmente levá-la para
Giulia Machado, uma famosa curadora. Foram necessárias três sessões de cura para
suspender o espírito que se havia apossado da filha, as duas primeiras sendo
particularmente violentas em virtude de o espírito se mostrar muito resistente. A curadora
pediu a presença de vários membros da família da paciente para a realização das sessões,
avisando que o espírito podia também estar atingindo-os, ou iria atingi-los, colocando
novamente em risco a menina. Depois de alguns meses, o tio da garota começou a
manifestar comportamentos estranhos, procurando incessantemente a sobrinha, indício de
que o espírito tinha voltado. Desta vez, a mãe decidiu afastar o irmão da filha,
resguardando-a de eventuais manifestações violentas contra ela.
206

Das afirmações dos especialistas entrevistados se depreende que o corpo é um


suporte que pode hospedar espíritos que guiam negativamente o indivíduo, levando-o a ter
comportamentos autodestrutivos, preguiçosos ou agressivos. No caso em que o indivíduo
perde o autocontrole em função do consumo das bebidas alcoólicas – situação bastante
frequente – os comportamentos manifestados podem ser considerados o resultado da
possessão do espírito cachaceiro. Giulia Machado, segundo alguns interlocutores, é uma
das especialistas mais famosas pela cura da doença provocada por este espírito.
Quando um mal deriva de um espírito, fala-se que este se encostou na vítima,
geralmente atacando os parentes por saudade, ou por rancor, ou porque já em vida agia
malignamente, perseverando na mesma atitude depois da morte. Com frequência, a vítima
do encosto sabe qual é a identidade do espírito, que já lhe apareceu em sonho. Quem se
ocupa principalmente de tirar o encosto são os/as rezadores/as, e o ritual doméstico é
chamado de “mesa branca”.
Durante a entrevista com João Gouveia, percebi que este ator social tendia a
demarcar fronteira entre as práticas rituais desenvolvidas pelos diferentes especialistas
rituais dentro da área indígena, enaltecendo os curadores que trabalham com os
encantados. Enquanto o discurso enfático de João se desdobrava ganhando matizes
acentuadamente fortes, sua esposa Teresa, que escutava com interesse a nossa conversa,
fazia alguns comentários que provocavam o efeito de diminuir ou aumentar a intensidade
da fala do marido. Ela também quis manifestar sua opinião no tocante à atuação dos
penitentes, mas sua argumentação visava principalmente atribuir força ao segredo que
guardam e ao trabalho ritual dos/as rezadores/as. O relato de Teresa foi precedido por um
preâmbulo que objetivava acentuar sua índole desconfiada, descrente, em face de muitas
manifestações rituais. Depois começou a narrar a história.
Contou que um dia ela quis participar de uma reza que as mulheres penitentes
estavam realizando. Com a intenção de apenas observar, tinha se sentado em um canto
afastado das mulheres, quando, imprevistamente sentiu uma dor nas costas. Como a dor
não passava, decidiu voltar para casa. Pediu então ao marido para pegar o cachimbo e
encruzar226 suas costas. Deitou-se, mas passados poucos minutos teve o ímpeto de voltar
ao lugar da reza. E assim fez, sentando-se no mesmo lugar. A dor também voltou. No dia
seguinte, decidiu “mandar uma pessoa rezar”. “Um cochicho no ouvido” levou-a a

226
O encruzo é uma técnica de cura realizada com o cachimbo.
207

procurar Mazé,227 uma rezadora que Teresa nunca tinha visto atuar ritualmente. Durante a
sessão de cura, Mazé incorporou o espírito de uma irmã de Teresa que, através da médium,
pedia-lhe perdão. Incrédula, Teresa começou a fazer várias perguntas à irmã e, somente
depois de estar convencida de que se tratava realmente dela, desabafou o rancor que
guardava e perdoou-a, pedindo-lhe para se afastar e nunca mais voltar a se encostar.
Terminada a sessão de cura, Teresa despediu-se de Mazé e tomou o rumo de casa,
enquanto pensava, ainda com desconfiança, sobre o acontecido, dizendo para si mesma que
iria acreditar na reza se a dor que sentia nas costas desaparecesse. A partir desse momento
a dor nunca mais voltou e Teresa elogiou a eficácia da performance ritual de Mazé.
O relato de Teresa objetivava criticar a atitude de desconfiança que dizia ter. De
fato, fechou a narração afirmando que não se pode descrer daquilo que se desconhece. Ao
terminar a história, João imediatamente tomou a palavra: “Tá vendo, ela foi pedir rezar
nela, o pessoal me procura para eu encruzar. Quem vem pedir a mim é pedir pra encruzar.
Eu pego o cachimbo, encruzo e, pá! Está com espírito! A gente vê, sente se está flechado
com bicho ruim”.
Entre as causas das doenças que podem acometer os índios, os vários interlocutores
forneceram algumas classificações, a saber: pegação, flechamento, mau-olhado, inveja, sol
e sereno, quebrante e feitiço. Os sintomas podem ser os mais variados: dor de cabeça,
vômitos, febre, olho fundo, dor de barriga, desmaio, dor ou zumbido no ouvido, moleza no
corpo, falta de apetite, entre outros.
A distribuição das competências entre os especialistas para a cura dessas doenças
nunca ficou particularmente clara, mas todos concordam que para sol e sereno ou mau-
olhado pode ser suficiente a prática ritual de um benzedor, sendo a cura de fácil resolução.
Casos de mau-olhado podem ser determinados por simples manifestações de inveja:
alguém proferindo palavras lisonjeadoras mas com atitude invejosa pode encontrar o
indivíduo “desprevenido”, isto é, despreparado, afetando sua saúde. No tocante ao
flechamento, ao quebrante, à pegação e ao feitiço, é explícita a necessidade de se recorrer a
um curador, ou seja, a ação dos encantados torna-se essencial para a eficácia da cura. O
flechamento consiste no controle do indivíduo através da dor, que é voluntariamente
provocada pela entidade. Francisco Calu afirmou que o atingido sente o atravessamento da
flecha na altura do umbigo e, a partir desse momento, começam a aparecer os outros

227
Mazé é a mais jovem mulher do grupo penitente; tem 40 anos. Dificilmente acompanha as rezas porque
mora na aldeia Tapera, que fica distante de Brejo dos Padres.
208

sintomas mencionados acima. Sendo esta uma das causas mais perigosas da doença, os
especialistas recomendam ação rápida, pois este tipo de doença pode levar rapidamente à
morte. Ela pode ser provocada por alguns caiporas que, como foi visto, os interlocutores
classificam como bichos ruins, entidades malignas associadas às forças da natureza. O
mesmo acontece com a pegação. Neste caso, a entidade quer se apossar do espírito do
indivíduo levando-o definitivamente com ela, sendo necessária a intervenção do encantado
para retomá-lo.
No caso de um índio ser atingido por um exu, o especialista dirá que existe uma
forte possibilidade de se tratar de um feitiço: “coisa mandada”. É bastante frequente, em
caso de intriga ou briga entre famílias ou entre indivíduos, recorrer-se a especialistas rituais
que trabalham fora da aldeia, em terreiros de umbanda, os quais, a pedido, usam seus
poderes para atingir o inimigo do cliente.
Afirma-se que as entidades mencionadas fazem “trabalho escravo”, colocando-as,
portanto, na mais baixa posição da hierarquia. Zé Auto deu um exemplo:

Pombagira é a mulher de Lúcifer, [que] é o Rei, então, deveria fazer o


papel de rainha, mas ela faz papel de escrava. Porque ela, pra fazer, ela
ganha; se uma pessoa manda incorporar em outra pessoa pra fazer
maldade, ela ganha. Ela ganha cigarro, champanhe, cerveja. Aí o
médium, pra desfazer esse trabalho, vai ter que chamar ela pra saber o
que ela ganhou. E ela diz, sabe? “E tu quer quanto pra desfazer?”. É
assim que trabalham os escravos, ganhando. E é por isso que quem
trabalha com esquerda, com essas coisas, não tem amigos, sabe? Porque o
que manda é o dinheiro, não é a amizade.

Zé Auto assumiu uma posição muito clara diante de elementos considerados


“exógenos”, demonizando-os e desclassificando quem os emprega. A recusa da sua família
em aceitar trabalhos de cura com a presença dessas entidades confere-lhe prestígio por
atestar a falta de “mistura” dentro dos rituais por ela realizados. O ritual que é feito com o
auxílio dessas entidades foi chamado de “mesa de xangô” ou “mesa de macumba” e,
embora com muita cautela e sem indicar nenhum especificamente, foi afirmado que alguns
índios as realizam. Como se pode depreender das palavras de Zé Auto – cujo conteúdo está
de acordo com as argumentações da maioria dos entrevistados sobre o assunto – tais
práticas rituais são associadas principalmente aos negros, embora se saiba que também os
brancos as realizam. As entidades ligadas aos negros e consideradas como os seus
ancestrais são classificados como “escravos”, o dinheiro desempenhando um papel
209

fundamental nos rituais. A presença deste elemento e o fato de um especialista cobrar para
realizar a cura são aspectos bastante controversos e se tornam em mais um elemento de
diferenciação entre os especialistas.228
Embora se recorra com intenções malfazejas a especialistas que atuam com
entidades e elementos rituais considerados exógenos, isto não quer dizer que os
especialistas que se atêm à doutrina da aldeia,229 isto é, que trabalham somente com os
encantados, não possuam capacidade de agir de forma a atacar os próprios inimigos.
Interrogados sobre tal assunto, relegaram ao passado as “guerras” com poderes mágicos
entre diferentes especialistas pertencentes a facções rivais. No entanto, cabe salientar que
aos especialistas são em geral reservados cuidados especiais no relacionamento cotidiano,
sendo particularmente temida a inimizade com eles.230

228
Fausto Monteiro da Silva, cantador, curador e pai de praiá, no tocante à possibilidade de um especialista
cobrar pelo seu trabalho de cura, argumentou: “Se alguém quiser me dar um agrado, eu recebo, mas eu não
peço. Porque, o médico tem que cobrar porque gastou pra estudar, e o rezador, o curador é um dom, ele não
pode cobrar porque é um negócio de Deus. Quem cobra as palavras de Deus está errado. O doutor estudou e
gastou muito pra chegar ali e o rezador não gastou. Esse é um dom que Deus deu a ele”. Fausto acentuou que
vários especialistas cobram para a realização das curas, mas especificou que somente dos não índios. A
maioria dos especialistas consultados reafirmou as argumentações de Fausto, negando qualquer tipo de
compensação para as próprias prestações de ajuda. No entanto, entre os Pankararu que expressaram ceticismo
em relação às práticas rituais e aos poderes mágicos dos especialistas, alguns baseavam as próprias reflexões
nos “ganhos” de se tornar um curador ou rezador. Disseram que muitos cobram grandes quantias e que,
quando não cobram, recebem sempre um “agrado”, que pode ser modesto ou particularmente generoso. A
obrigação moral da retribuição do paciente tem um papel fundamental na relação entre as partes envolvidas.
Embora se enfatize o ato desinteressado, o paciente sente-se com o dever de retribuir, mesmo que se possa
apelar para a expressão “Deus lhe pague”, que explica a impossibilidade momentânea de oferecer algum
“agrado”. O pagamento não necessariamente será em dinheiro ou em outros bens (fruta, verdura, carne, entre
outros). Como se verá mais adiante, uma das formas de pagamento está relacionada às promessas, o paciente
se comprometendo a sustentar economicamente as despesas dos rituais. É interessante marcar um paralelismo
com os adivinhos Azande analisados por Evans-Pritchard (1978), cujas práticas rituais eram vistas por uma
parcela da população como uma forma de lucro. No entanto, o autor explicita que ganhavam muito pouco e
que o incentivo para a escolha de ser um adivinho era a possibilidade de adquirir visibilidade e prestígio
social, bem como em função do desejo de adquirir drogas, elementos importantes para essa população
(ibidem, p. 163).
229
Retomarei a noção de doutrina da aldeia no Capítulo IX. Adianto aqui que não se trata de um conjunto de
ideias, princípios, dogmas e crenças, mas de elementos mágicos e rituais aos quais se atribui uma origem
exclusivamente indígena.
230
Sem identificar os nomes dos envolvidos, um exemplo do temor recíproco dos especialistas pode dar uma
ideia concreta. Enquanto conversava com um casal de anciãos, pai e mãe de praiás e também penitentes,
passou na frente da casa uma mulher bastante velha que já há algum tempo manifestava distúrbios
psicológicos e com uma atitude muito introvertida. Ela é também mãe de praiá e renomada curadora. Ao
passar, o casal com quem estava falando mudou de atitude e ela prendeu rapidamente o cachimbo,
começando a fazer comentários sobre os poderes dessa mulher que, segundo ela, havia provocado danos
irreparáveis na sua vida. Contou sobre um empreendimento que estava dando bons resultados, mas que
repentinamente havia fracassado. Ela consultou os próprios encantados para saber quem lhe havia feito o
feitiço. “No fundo do copo eu vi ela! Era ela mesmo!”, exclamou com ênfase, acrescentando ainda que a
vingança não iria tardar.
210

Zé Auto, enaltecendo os poderes de cura de sua família, protegida por um batalhão


de encantados, relatou a história231 que envolvia Maria Pedro (avó de Zé):

Quem trabalha com água, por exemplo, é F., filha de G. Ela é uma moça
de 12 anos, é uma moça bem bonita. Os olhos dela é verde água, cabelo
loiro que brilha! Bem comprido. Ela pegava as crianças, não só ela como
outras mães d’água que têm outros nomes, só que eu sei só dela. Ela foi
bem famosa. Inclusive, ela pegou um do grupo Pedro, [que] C. buscar no
palácio de G. Aí, Maria Pedro estava com o filho morto. O menino estava
já com as moscas nos olhos e aí por despeito, por crime de força: “E aí,
não disse que é famosa? Bote ela pra ver!”. Foi um despeito, viu? Quando
fizeram esse despeito com ela, C. chegou aí e disse: “Olhe, vou provar
que os Pedros são Pedros, nós prova que nós faz levantar quem tiver
morto! Quer que nós prove? ‘mbora minha mãe [refere-se à Maria Pedro]
buscar!”. Aí minha avó disse: “Embora!”. E quando ela disse assim, ela
desmaiou. E aí passaram no palácio de J.. que é o encantado que mora ali
no sorongo. Eles passaram lá, disse que ele estava almoçando peixe. Aí
ele: “C. que está fazendo por aqui?”. “Não, estou indo na casa de G.”.
“Vai almoçar mais eu?”. “Não, vou almoçar não! Vou almoçar só uma
sobremesa”. Aí seguiram e, quando chegaram lá, aí estava G. no almoço
também, tava comendo peixe. Aí disse: “Oba C., que visita boa, senta aí
pra almoçar!”. “Eu não vim de visita de cortesia não, vim buscar esse
menino que está nos braços de sua filha”. Aí G. disse: “Mas, rapaz, já faz
muito tempo, minha filha já está acostumada. Mas F. dê entregue, você
tem outros meninos pra você se divertir”. Mas ela não queria dar e,
quando se distraiu um pouco, aí C. pegou o menino e se mandou! Aí
quando voltou, o menino veio em si, e Maria Pedro, que era a média que
estava cuidando, foi aí que ela se acordou. Aí pronto, salvou o menino!

Desta narrativa se depreende a ação conjunta da especialista e do encantado: uma


viagem ao reino encantado para recuperar o espírito da criança. A narrativa não é diferente
de outras relatadas por especialistas de povos indígenas cujas viagens xamanísticas lhe
deram a possibilidade de vivenciar e enxergar uma realidade paralela àquela ordinária.
Entre os especialistas pankararu, diversamente dos Tumbalalá analisados por
Andrade (2002),232 as “viagens da alma” são tão importantes para o desenvolvimento dos
poderes mágico-religiosos como para a realização das curas, como o relato de Zé Auto
revela com clareza. Com efeito, Maria Pedro desprendeu-se do corpo, deixando-o inerte,
para acompanhar o encantado. No entanto, as “viagens da alma” são uma prerrogativa de
poucos curadores e estão totalmente ausentes entre os rezadores. No caso dos rezadores,

231
Optei por substituir os nomes dos encantados por letras para não expor as facções em disputa que a
narração revela, pois ainda existem desentendimentos e conflitos entre os atores sociais envolvidos.
232
Este autor postula que as possessões dos Mestres Tumbalalá são o resultado da incorporação, no toré, de
cultos mediúnicos não indígenas (ibidem, p. 221).
211

trata-se de receber ou incorporar o espírito, agindo como médium, enquanto o curador


não pode incorporar o encantado por ele estar “vivo”, embora também opere em algumas
situações como médium usando seu corpo para receber espíritos e controlá-los.
Como os casos de xamanismo em outros grupos indígenas e, no contexto do
Nordeste, aqueles descritos por Mota (1996) e Martins (2000) sobre os Kariri-Xocó, entre
os Pankararu existe uma forte associação entre viagens, sonhos e processos de cura.
Durante as mesas de cura, através do transe, ou em sonho, o especialista se comunica com
os encantados e são eles que prescrevem as plantas e o seu específico preparo para a cura.
Pode-se dizer também que, como no caso dos Kiriri estudados por Nascimento (1994,
2005), existe uma combinação entre “possessão”, relacionada aos cultos mediúnicos, e
“viagens da alma” que confirmariam o xamanismo. Como bem aponta este autor, “nada
impede que os dois fenômenos se deem paralelamente, sobretudo num contexto de
contatos interculturais” (1994, p. 178), salientando ainda não existir contradições entre
eles, a literatura científica se mostrando particularmente rígida ao diferenciá-los. De acordo
com o autor, cabe ressaltar, no entanto, a distinção que alguns especialistas tendem a
destacar, isto é, como eles articulam os elementos com base em um projeto político
vinculado à construção e à manutenção de uma etnicidade diferenciada. Pouco importa a
origem dessas práticas e desses elementos, mas sim o esforço dos atores sociais em
organizá-los em virtude do contexto vivenciado.
No trabalho de índio, segundo Zé Auto, não se podia fazer uso de bebidas
alcoólicas, como a cachaça, “porque bebida de índio é outra, é jurema!”. Sendo o tema
rodeado de mistério e um entre os segredos mais importantes a serem zelados, consegui
poucas informações. Parece ser um grupo extremamente reduzido de especialistas que
usam a planta de renomada fama, aí incluído o pajé e bem poucos pais e mães de praiás.
Para distinguir esse trabalho ritual das outras mesas até agora mencionadas (mesa branca,
mesa de xangô ou mesa de macumba), o ritual doméstico considerado especificamente
indígena é chamado apenas de mesa ou, caso esteja presente a jurema, chamam-na de mesa
de ajucá.233
Para viabilizar as viagens, as visões e os sonhos dos especialistas, não seria
fundamental somente a jurema – ou ajucá, como mais frequentemente os Pankararu
chamam esta planta – mas o dom de se comunicar com os encantados e de ver para além

233
Oliveira (1942, p. 160) oferece uma descrição detalhada deste ritual, realizado a seu pedido durante a sua
permanência em Brejo dos Padres.
212

do visível: passado, futuro e múltiplos presentes. O dom, portanto, pode ser considerado o
elemento necessário para se alcançar o estado de êxtase sem o suporte de plantas
psicoativas.
As mesas de cura se realizam à noite, com duração variável, dependendo da
gravidade da doença, às vezes se prolongando até o amanhecer. Alguns elementos do ritual
são recorrentes, como as velas, os maracás e o tabaco.234 Para que se cumpra o ciclo de
cura, são geralmente necessárias três sessões e, conforme a gravidade da doença ou a
persistência da entidade maléfica, podem chegar a seis ou a nove mesas. A performance
ritual termina no momento da suspensão, isto é, o afastamento definitivo do encosto ou do
flechamento, ou ainda da pegação, de acordo com as causas das doenças acima
mencionadas.
Cabe salientar que cada especialista realiza uma performance diferente, tendo
técnicas gestuais e rezas específicas que constituem o próprio segredo e que lhe conferem a
peculiaridade da sua atuação, distinguindo-o de outros na área indígena, assim como dos
regionais e dos demais grupos indígenas. Os rituais domésticos são reservados e os índios
demonstram relutância em mostrá-los aos não índios ou índios de outros grupos. Todavia,
índios ou não índios recorrem frequentemente aos especialistas pankararu para a cura de
doenças e, como vimos anteriormente, também os Pankararu podem procurar especialistas
de outros grupos indígenas ou não índios, delineando-se assim circuitos rituais de cura.
A variação entre os trabalhos rituais não se refere só àqueles desenvolvidos com
diferentes entidades, mas também entre os que trabalham apenas com os encantados, como
fica claro na argumentação de Francisco Calu:

Eu me envolvo mais com a tradição que a minha família deixou. [...]


Mas, para nós, todos os encantados são iguais, mas cada zelador tem um
dom diferente de trabalhar. Os da Maria Calu têm os “passos” e a
“corrida”, os de Maria Pedro herdaram o “sábado de aleluia” e o

234
O tabaco e as velas são geralmente providenciados pelo paciente. O tabaco é fumado com os campiôs, que
são cachimbos de forma cônica. O uso do campiô não é reservado às mesas de cura, nem somente aos
especialistas. Ao contrário, seu uso é difundido por grande parte da população. Para diferenciar o uso que os
índios fazem do tabaco, comparando-o com o resto da população regional, eles dizem que “não fumam”, mas
que “desfumam”, indicando que o fumo é uma técnica para chamar os encantados. É bastante comum no
final da tarde, quando as famílias se reúnem depois do dia de trabalho, acenderem o cachimbo e fumarem
juntos. Muitos alegam fumar somente à noite, hora indicada para fazer pedidos aos encantados, enquanto
outros fumam a qualquer hora do dia. O campiô pode ser de madeira ou de barro, este último sendo muito
raro hoje em dia. Há famílias que conservam os campiôs de seus antepassados que, pela antiguidade e por
haverem passado pelas mãos de famosos curadores, são carregados de poderes mágicos especiais.
213

“domingo de Páscoa”. Aí tem o terreiro do Mestre Guia que era da Maria


Pastora, dali da Fonte Grande, porque antigamente não era Serrinha. Já aí
é outra forma de trabalho. Tem a família de Maria Chulé, que é aqui em
Luiz Caboclo, e é outra forma de trabalho.

6.1. Pedidos e pagamento de promessas

Os especialistas realizam rituais de cura para um amplo leque de pacientes, seja


dentro ou fora da área indígena. A reputação de um especialista cresce quanto mais
pacientes consegue recrutar, a fama se espalhando pelos arredores da área e por toda a
região. Estabelecem-se vínculos com ele e sua família, sendo estes reforçados através da
relação com a entidade que oferece a graça da cura e ainda por um conjunto de prescrições
que tendem a limitar sua quebra. A manutenção desses vínculos não é dada de uma vez por
todas, mas precisa de constantes cuidados e da eficácia da performance do especialista. De
fato, os pacientes podem optar – em caso de fracasso da cura – por consultar outro
especialista, embora tal escolha possibilite a ruptura das relações. Em uma ocorrência deste
tipo, os especialistas frequentemente afirmam que o paciente “não tem fé” ou que não
seguiu como devia as prescrições da terapia fornecidas pelas entidades.
No caso relatado por Zé Auto, referente a uma sua paciente que apresentava uma
doença particularmente grave, a cura, para ser alcançada, consistia em banhos com ervas,
repouso absoluto e abstinências de variadas naturezas, tanto alimentares quanto de contato
e relações com determinadas pessoas. Ela havia sido avisada sobre os potenciais perigos se
consultasse outro especialista. Nesse período, explicou-me Zé Auto, um rezador que
morava em um povoado próximo a Ibimirim estava ganhando particular fama e muitos
pankararu buscavam aconselhar-se com ele. Para conhecer os reais poderes mágicos desse
rezador, Zé procurara informações com os encantados, que lhe disseram que se tratava de
um charlatão, mas que seus poderes mágicos podiam ser fatais. Como se pode perceber, a
concorrência entre os inúmeros especialistas dentro e fora da área indígena leva-os a
refinar constantemente as próprias performances e também a encontrar estratégias que
limitem a dispersão dos pacientes.
A relação de interdependência que se cria entre o paciente e o especialista é
sustentada por um modelo que se desenvolve através de pedidos e pagamento de
promessas. Como bem observa Matta (2005, p. 49), tal processo não é distintivo dos
214

Pankararu, mas se estende a toda a região. No entanto, debruçando-se sobre a descrição


dos rituais da corrida do imbu e da penitência durante o período pascal e analisando-os a
partir de um paradigma teórico baseado principalmente nas elaborações de Durkheim, a
autora chega à conclusão de que:

O complexo ritual Pankararu pode ser pensado como unificador,


constituinte da própria “sociedade” Pankararu, nos termos propostos por
E. Durkheim ([1996] 2000), sendo uma instituição fundamental para a
compreensão das relações instituídas entre o grupo (ibidem, p. 185).

Com uma abordagem diversa da escolhida neste trabalho, a autora concentrou-se na


análise dos rituais como canal de penetração das concepções específicas dos Pankararu e
sua relação com o Cosmo. Concordo com a necessidade de focalizar os rituais, ou melhor,
os grupos rituais, para a compreensão das relações e das articulações dos elementos da
cosmologia dos Pankararu. No entanto, a falta de uma abordagem processualista para a
análise destes aspectos torna de difícil alcance o entendimento da especificidade dessas
elaborações. Com efeito, a autora, ao definir o “complexo ritual” como “unificador” e
“constituinte” da “sociedade” Pankararu, naturaliza o grupo étnico, não se refere ao
processo histórico que lhe deu vida e, desta forma, não nos oferece dados para analisar
justamente a cosmologia que se encontra em contínua construção (Barth, 1993), sendo esta
o resultado do esforço intelectual de atores sociais concretos e posicionados que participam
ativamente da configuração social e histórica.
O “complexo ritual” abordado como “instituição” à qual todos responderiam
mecanicamente e cuja análise se limita aos aspectos normativos restringe a compreensão
da arena em que os atores sociais disputam, escolhem e/ou ordenam os elementos de seus
“estoques culturais” (Barth, 1993) a partir das próprias experiências.
Os Pankararu fazem pedidos e pagam promessas a entidades diferenciadas. As
dinâmicas que se desenvolvem em tal processo diferem justamente em virtude da escolha
das entidades envolvidas, do tipo de pedido e, sobretudo, das relações que o sujeito travou
com um especialista ou um grupo ritual. No caso de pedidos aos santos, o envolvimento é
limitado ao ator social que realiza o pedido e ao santo escolhido que oferece a graça, a
promessa sendo paga sem o auxilio de intermediários, com exceção dos pedidos à Santa
Cruz, em que a relação é mediada pelos grupos de penitentes masculino e feminino. Em
um instigante artigo de 1966 sobre o sistema de patronagem na Sicília, Boissevan
argumentou que a Igreja Católica contribuiu sensivelmente para a perpetuação desse
215

sistema através do incentivo ao culto pessoal e comunitário aos santos padroeiros. O autor
salienta a similitude entre o papel dos santos como intermediários entre os homens e Deus
e o papel dos padrões como mediadores entre o cliente e os grupos que detêm o poder,
configurando tais relações como tríades. Embora não afirme a existência de uma conexão
entre o sistema político de patronagem e o culto aos santos, enfatiza que os religiosos e o
sistema se reforçam reciprocamente.
Não há dúvida de que o sistema de patronagem na Sicília era reforçado pelos
religiosos, a Igreja tendo interesse em mantê-lo, assim como no Nordeste, durante muito
tempo, os eclesiásticos empregaram as próprias energias para perpetuar o mesmo sistema.
Mas no caso em pauta, a relação dos Pankararu com os santos, observada durante a
pesquisa, nos leva a concluir que se trata de uma relação diádica. Através das imagens
custodiadas no âmbito doméstico ou nas igrejas dentro da área indígena ou durante as
peregrinações, os índios entram em comunicação direta com os santos: falam com eles,
acariciam-nos, contam-lhes fatos e, durante as romarias, até mandam lembranças de outras
pessoas que não puderam se deslocar para visitá-los. A relação é especialmente íntima e a
graça procede exclusivamente da vontade do santo, a intervenção de Deus não sendo
contemplada. Ao perguntar aos romeiros pankararu sobre a forma de pagamento das
promessas aos santos, a maioria das respostas se concentrou em explicar um sacrifício
pessoal e íntimo que lhe seria oferecido sem a intermediação de nenhum especialista.
Nos pedidos dirigidos a outras entidades do Cosmo Pankararu, a dinâmica muda
sensivelmente, envolvendo, além do ator social e a entidade, também um especialista ou
um grupo ritual. Os aspectos sociais e políticos que tal processo ocasiona extrapolam a
relação subjetiva do indivíduo com a entidade e torna-se o canal para penetrar nas
motivações que orientam os atores sociais a cumprirem determinadas escolhas em relação
à entidade, portanto, aos especialistas com as competências vinculadas as entidades.
Os pedidos são – na maioria das vezes – relativos à cura de doenças, embora
possam ser encaminhados para resolver outras questões, como sucesso em
empreendimentos de diferentes naturezas, resolução de conflitos, casamentos, entre outros.
Quando a entidade escolhida é um encantado, as formas de pagamento variam,
dependendo da importância do pedido e da graça a ser alcançada. Alguns especialistas
especificaram que em alguns casos, durante a sessão de cura, é o mesmo encantado que
comunica o tipo de pagamento que deverá ser feito, mas na maioria das vezes é o paciente
ou são os familiares que determinam a forma de retribuição. Pode-se oferecer: uma garapa
216

(caldo de cana-de-açúcar) com pão; um prato (comida para a entidade e todos os que
participaram das mesas de cura); três rodas (ritual em que os praiás dançam e se oferece
comida para todos os participantes). Nestes três casos, o pagamento da promessa se dá
através de rituais que envolvem um grupo restrito de indivíduos pertencentes a uma família
ou que abrangem o círculo de alianças desta mesma família. Desta forma, o nível de
visibilidade desses rituais é bastante reduzido, embora a realização precise se tornar
pública para divulgar a graça recebida da entidade e a eficácia da performance do
especialista.
Diversamente, os pagamentos de promessas através dos rituais denominados
menino no rancho e corrida do imbu envolvem grandes parcelas da coletividade. Trata-se
de rituais que, como se verá no Capítulo IX, são feitos para o pagamento de promessas de
homens e de mulheres e que, em virtude do enorme dispêndio de recursos, as famílias que
deles fazem parte são chamadas a contribuir para a sua realização. Sendo festas de grandes
proporções e inexistindo limites para delas participar, os organizadores se empenham para
seu êxito, que será depois amplamente divulgado. Rituais mais “falados” alcançam um
forte nível de visibilidade e conferem prestígio a quem os realiza.
Quando a promessa é dirigida à Santa Cruz, o pagamento se dá através do
oferecimento de uma mesa, isto é, prepara-se comida suficiente para satisfazer o grupo
ritual de penitentes masculino ou feminino, dependendo de a quem foi dirigido o pedido
para interceder. Como se verá mais adiante, quando se abordará a atuação desses grupos, o
trabalho ritual pode ser feito separadamente ou em conjunto, embora nunca no mesmo
espaço, sendo proibido às mulheres verem os homens. Tendo a penitência masculina um
caráter extremamente discreto, o pagamento das promessas desenvolve-se durante a noite,
a obscuridade favorecendo a manutenção do anonimato de seus membros. As mulheres da
família que os convidam preparam a comida e a colocam em um quarto separado da casa à
espera da sua chegada – elas e os outros familiares que não pertencem ao grupo penitente
ficam em outro quarto ouvindo as rezas. No caso de o pagamento da promessa envolver o
grupo de mulheres, o ritual pode se desenvolver de dia ou de noite, este grupo não
guardando qualquer segredo.
Há de se salientar que a participação nesses rituais é exígua se comparada aos
pagamentos de promessas realizados com os especialistas que trabalham com os
encantados. Ainda mais exígua é a participação no pagamento de promessas através de
grupos rituais não índios com os quais alguns pankararu mantêm relações. Trata-se, por
217

exemplo, das famílias extensas residentes no município de Santa Brígida e que


protagonizam diversas versões da dança de São Gonçalo.235
Como foi visto até agora, o pagamento das promessas através dos rituais acima
mencionados precisa dos especialistas para o seu cumprimento. A relação estabelecida
entre o sujeito e estas entidades é diferente se comparada àquela estabelecida com os
santos. Sendo os especialistas necessários para a intermediação, a relação configura uma
tríade cuja dinâmica extrapola os processos de cura, vinculando os envolvidos e tornando-
os interdependentes.
A dimensão temporal do pagamento da promessa é um elemento importante a ser
salientado. Nunca definido pelo especialista, o tempo que passará até a promessa ser paga
será de responsabilidade do paciente, dependendo dos recursos que conseguirá para a
realização do ritual. A pressão da obrigação moral da retribuição à entidade e ao
especialista é alimentada por comentários suscitados no caso de demora no pagamento e
que visam constranger o “devedor”, tachando-o de “pouca fé” e acusando-o de avareza, o
acúmulo de riqueza sendo especialmente malvisto.
As partes envolvidas sendo interdependentes precisam todas elas dos rituais de
pagamento de promessas para adquirir visibilidade. Por um lado, a eficácia da performance
do especialista é determinante para manter o vínculo com o paciente, por outro, o
pagamento da promessa torna esse vínculo público. Os rituais que conseguem extrema
visibilidade, transformando-se em eventos em que a coletividade que deles participa sai
satisfeita e divulga a distribuição de “fartura” entre todos os presentes, contribuirão
sensivelmente para conferir prestígio aos organizadores.
A análise de Bourdieu (1996) que enfatiza a importância do intervalo temporal
entre o dom e o contradom, em que a incerteza da retribuição é um elemento fundamental
das dinâmicas entre os agentes envolvidos, é particularmente profícua para a situação em
pauta. Embora o trabalho de socialização prepare os agentes para as “disposições
adaptadas à lógica do ‘desinteresse’” (ibidem, p. 11), conferindo honra a quem se conforma
a ela, a dimensão das intenções, dos interesses e dos cálculos não pode ser subestimada.
Estando em jogo o acréscimo de prestígio, a decisão de afiliação a um especialista ou a
outro (ou a diversos conjuntamente) e também o tipo de ritual a ser realizado para o
pagamento da promessa dependem de escolhas que revelam as orientações e as intenções

235
Esses grupos rituais já foram mencionados anteriormente. Retomarei a relação dos Pankararu com um
desses grupos no Capítulo VIII.
218

dos envolvidos, e também de pressões advindas das relações de gênero e da própria


posição nas alianças estabelecidas ou nas inimizades entre famílias – não apenas dentro do
próprio grupo étnico, mas na rede de relações que extravasa essas fronteiras.

Considerações gerais

Como se destacou na primeira parte desta tese, na organização social dos


Pankararu, os troncos e, sobretudo, as famílias extensas que o compõem são as unidades
sociais mais importantes para a orientação das interações. Observou-se também que dentro
dos troncos há autoridades morais que, por concentrarem capacidade políticas e mágicas,
adquirem especial destaque. São elas os especialistas rituais, que performatizam uma
sistematização dos símbolos e a transmitem no seio da própria família extensa ou do tronco
como um todo em circunstâncias favoráveis, isto é, quando há acordos entre os membros
das diferentes famílias. Criam-se, assim, articulações de fluxos culturais em nível familiar
ou da própria comunidade política (um tronco ou diversos troncos aliados).
Em virtude da natureza processual das variações, elas estão sujeitas às
contingências históricas. Assim, em determinadas situações, diferentes famílias ou troncos
podem se unir ativando uma elaboração diferente dos fluxos culturais que previamente
haviam sido articulados nas unidades separadas. É o caso da mobilização e da união de
distintos troncos para a reivindicação dos próprios direitos a partir da entrada do SPI, como
vimos na primeira parte deste trabalho, e que foi o motor para uma ação que permitiu
diferenciar-se dos regionais. O processo de territorialização possibilitou que esses grupos
sociais portadores de variações pudessem ativar uma elaboração diferente dos símbolos
que anteriormente não tinha sido possível realizar.
Como já mencionei, não se considera pertinente abordar tais variações de que são
portadores os grupos rituais – penitente e praiás – como expressões de múltiplas tradições
de conhecimento, enquanto os fluxos culturais que ali circulam, embora possam ter sido
estruturados previamente em outras tradições de conhecimento, aqui voltaram a ser fluidos,
podendo ser novamente organizados no “contexto de experiência” a partir de outra
perspectiva.
219

Os grupos rituais cujas composição e atuação serão descritas nos próximos


capítulos não são excludentes. Não existe uma polarização de facções236 que ordene grupos
e famílias em posições opostas, uma vez que membros de um mesmo tronco ou de uma
única família extensa podem aderir a essas duas práticas rituais e, em algumas
circunstâncias, até os próprios penitentes são capazes de ter papel significativo nas
atividades rituais dos praiás. Interessa-me destacar que os membros desses grupos rituais,
embora apresentem diferenças na articulação dos símbolos, têm a mesma visão de mundo e
fazem parte de um mesmo quadro moral. Todos reconhecem domínios de conhecimentos e
espaços de atuação diferenciados em termos de família, gênero e etnicidade e os valores
que são necessários de serem mostrados publicamente para alcançar uma boa reputação,
impulsionando os atores sociais a exporem a própria destreza para alcançá-la.
Mais além do enaltecimento diversificado das entidades cultuadas, todos
reconhecem a existência e a eficácia do trabalho ritual do outro, porque admitem um
mundo povoado por essas entidades e o papel dos especialistas em lidar com elas,
interferindo para o bem-estar da sua família e da própria comunidade política.
Essas variações tampouco podem ser reportadas a uma “tradição pankararu”,
porque são ligadas à forma com que se dão as alianças entre famílias, projetando-se no
tempo e no espaço e muitas vezes extravasando o nível étnico. Salienta-se então que, em
lugar de um “sistema simbólico e ritual” compartilhado que definiria a “sociedade” ou a
“comunidade” pankararu (Matta, 2005), encontramos manipulações de um conjunto de
símbolos por diferentes especialistas e grupos rituais que, na configuração social e política
que delineia a arena, são potenciais ou conclamados concorrentes e constroem circuitos
rituais diferenciados que, reafirmamos, podem transpor as fronteiras étnicas.
A abordagem aqui escolhida me permite afirmar que se trata de variações em que
os fluxos culturais são articulados por diversos troncos familiares e cuja sistematização
pode ser abordada apenas processualmente. Em virtude das relações de parentesco
instauradas ao longo do tempo, os membros desses troncos podem transitar entre os dois
grupos rituais. E se essa circulação é possível, deve-se ao fato de que ambos os grupos
acatam um mesmo quadro moral. De acordo com essa visão, é crucial a ação de específicos

236
Embora não se tenha uma evidente oposição de facções desses grupos rituais, isto não significa que
estejam ausentes disputas entre aqueles que as representam. Os membros desses grupos são imbricados em
tensões e disputas no recrutamento de recursos humanos para a construção de alianças que lhes permitam
adquirir suficiente prestígio dentro de relações cuja socialização, como já se observou, desenvolve-se com
base em um acentuado agonismo.
220

atores sociais que podem interferir no Cosmo através de práticas mágicas e que são
capazes de mudar, junto com as entidades cultuadas, o destino do mundo. O papel que
desempenham aproxima-se daquele do iniciador melanesiano analisado por Barth (2000b),
em que o conhecimento é transmutado “para cima”, o dom sendo “revelado” e ocultado
“para baixo”, e o segredo tornando-se o elemento crucial das interações rituais, as
performances sendo privadas de qualquer verbalização.
A eficácia da performance ritual é o critério no qual se baseiam as escolhas dos
atores sociais e as disposições dos especialistas no intento de demonstrarem
continuadamente a comunicação com as entidades e a capacidade de lidar com elas.
Como no caso dos Azande analisados por Evans-Pritchard (1978), se as técnicas
mágicas utilizadas pelos bruxos do próprio grupo não se revelarem eficazes, é possível
recorrer a especialistas de povos vizinhos. Com efeito, afirma o autor, muitas das práticas
mágicas dos Azande eram originárias desses outros povos (ibidem, p. 244). De forma
similar é o que acontecia entre os diferentes povos da Nova Guiné estudados por Barth
(1987). A variação de associações de símbolos nos rituais eram muito significativas entre
uma comunidade étnica e a outra, apesar de os itens culturais estarem em fluxo em toda a
região. Assim, para melhorar a própria performance, um xamã podia ter ideias a partir dos
rituais realizados em outros grupos e com os quais estava em comunicação.
O critério de eficácia das práticas é, assim, o que mobiliza também no caso aqui
analisado as dinâmicas sociais entre diferentes grupos sociais, como se verá mais adiante
ao ser descrito o circuito ritual de cura que se conseguiu mapear. Cabe salientar que tal
critério difere substancialmente e se confronta com a oposição verdade/falsidade que
fundamenta a tradição ocidental cristã. O reconhecimento da eficácia de performances de
diferentes entidades marca uma distinção nítida em relação ao cristianismo, que reconhece
apenas um único e “verdadeiro” Deus. Embora os índios hierarquizem as entidades
enaltecendo as próprias, eles reconhecem a existência e a força das outras e, num longo
processo histórico, incorporaram muitas delas.
As variações, assim, não podem ser reportadas à tradição cristã de conhecimento.
A Igreja gerencia o conhecimento dentro de sua estrutura hierárquica e, através dos
sacerdotes, divulga “para abaixo” uma complexa doutrina, propagando-a tanto quanto seja
possível. Como observou Brelich (2003 [1966]), o papel do sacerdote limita-se a
intermediar a relação entre os fiéis e as divindades e não tem qualquer poder de
interferência sobre o destino do mundo. Diversamente dos especialistas rituais aqui
221

focados, o sacerdote pode ser o servente dos deuses, mas não tem poderes para orientar ou
converter as decisões por eles tomadas.
Tampouco se pode dizer que os valores que circulam na configuração destacada
sejam cristãos, enquanto também eles – como outros fluxos – são articulados no “contexto
da experiência”, e quem detém a legitimidade para sistematizá-los não é a Igreja Católica
através de seus membros, e menos ainda os evangélicos que, como se verá, são afastados
tanto pelo grupo dos praiás quanto pelo dos penitentes.
Mura (2006, 2011), ao analisar o papel do xamã na tradição de conhecimento à qual
os Guaranis Kaiowá estão ligados, traz algumas observações teóricas profícuas para o
nosso contexto. Dialogando com o texto de Tuden, Turner e Swartz (1966), destaca que os
autores, ao definirem o ritual, fazem algumas ressalvas em inseri-lo na esfera da política.237
Os autores afirmam que, se o ritual for abordado como forma de conectar o grupo ao
sobrenatural, não se estaria falando de política, mas de religião, dividindo-se dessa forma
as esferas de atuação. Ao destacar que os Guarani se relacionam com as divindades como
se fossem filhos, netos ou irmãos mais novos delas, Mura (2006) afirma que estas são tidas
como parentes e o seu reconhecimento e as alianças feitas com elas seguem as mesmas
lógicas daquelas existentes entre os humanos (ibidem, 472-473). Além disso, o papel do
xamã seria o de proteger seus parentes através do poder que lhe foi conferido de interferir
no curso dos eventos, mantendo um diálogo e até conseguindo, com a sua astúcia,
convencer as divindades a se posicionarem favoravelmente. Desta forma, o autor chega à
conclusão que remeter o campo da política unicamente à esfera do mundo visível torna-se
inadequado para abordar tais dinâmicas (p. 473).
Podemos afirmar que na tradição de conhecimento delineada pelos atores sociais
aqui focalizados tampouco há uma separação das esferas religiosa, mágica e política.
Como descrito anteriormente, os diversos especialistas rituais pankararu, através de
viagens oníricas e visões, bem como durante os rituais, têm o poder de intervenção sobre
as diversas entidades que povoam o Cosmo, tanto para afastar as negativas quanto para se
beneficiar das positivas, agindo sempre em prol de seu círculo de aliados, em especial os
membros da própria família extensa e da sua comunidade política.

237
Os autores explicitam que político “[...] as we have so far defined it, will apply to every thing that is at
once public, goal-oriented, and that involves a differential of power (in the sense of control) among the
individuals of the group in questions” (1966, p. 7).
222

De acordo com Mura (ibidem), e me afastando da dicotomia acima mencionada,


parece-me pertinente abordar os especialistas rituais e os diversos grupos rituais pankararu
como ligados à mesma tradição de conhecimento, isto é, não apenas compartem uma igual
visão de mundo, como também a mesma forma de agir em relação a ele.
Em virtude de uma crescente ênfase na etnicidade, travam-se disputas simbólicas
que, embora não deem vida a debates ou a opostas afirmações públicas, levam os
especialistas rituais vinculados à tradição indígena a construir discursos que tendem a
limitar e a rebaixar a atuação dos grupos rituais que mantêm vínculos estreitos com outras
coletividades étnicas dentro de um circuito ritual mais abrangente e que delineia a
participação e o sentimento de pertença a uma comunidade bem mais abrangente. O viés
étnico inaugurou um processo de reconfiguração dos grupos rituais presentes na área,
impulsionando um processo de enfraquecimento ou de menor visibilidade dos grupos
penitentes e romeiros.
Como foi mostrado nos capítulos anteriores, a posição das entidades cultuadas
pelos Pankararu dentro de uma hierarquia em movimento não estabelece uma estrutura
estanque do Cosmo, mas reflete um jogo de forças entre grupos em disputa. Se os
penitentes e os romeiros tendem a enaltecer os padrinhos como seres divinos, colocando-
os no mais alto patamar da hierarquia, pode-se pensar que tal concepção se fundamenta na
possibilidade de os índios terem avaliado as divindades dos dominantes como se fossem
mais poderosas do que as suas em situações históricas anteriores ao segundo processo de
territorialização (ou como descrevemos amplamente no caso de Pedro Batista, mesmo
quando o SPI já havia se instalado na área), procurando incorporá-las aos próprios cultos,
homenageando-as para receber seus favores.
Com o segundo processo de territorialização e a atribuição de uma forte valorização
dos encantados que se tornaram símbolos étnicos, foi impulsionado um processo de crítica
à concepção dos penitentes que não abrange apenas a esfera do sagrado, mas também um
sistema de dominação que essa concepção tem sustentado e que leva à necessidade de
reverter a posição favorável que nele ocupavam os penitentes.
Embora os especialistas de ambos os grupos rituais sejam reconhecidos como os
legítimos ordenadores e defensores do quadro moral, há disputas que se dão
principalmente nos processos rituais, como descreverei nos próximos capítulos.
223

Parte III

Processos rituais
224

Capítulo VII. Os grupos penitentes: mistérios, disciplina e


performances rituais

A presença difusa na região Nordeste de grupos de penitentes chamou a atenção de


diversos estudiosos que, com diversas abordagens, desenvolveram pesquisas sobre sua
atuação. A maioria dos autores238 associa as práticas das irmandades ou companhias (ou
confrarias) aos cultos medievais de um catolicismo arcaico disseminado pelos
missionários durante a época colonial, bem como pelos leigos portugueses que traziam
com eles conhecimentos pagãos de um “catolicismo popular” lusitano.
A forte carga penitencial e as visões apocalípticas que as irmandade manifestava
seriam o resultado, sobretudo, segundo tais autores, da atuação dos frades capuchinhos239
(no início franceses e mais tarde italianos) durante o período colonial e, depois, até o
século XX, cujas pregações eram caracterizadas justamente pelo apelo emocional e a
extrema valorização do sacrifício penitencial.
Embora destacando-se a pluralidade e as diferenças entre as manifestações
religiosas dessas irmandades, o fato de se reconhecerem nelas os elementos de origem
católica parece impor ao observador a identificação destes com a tradição cristã. Assim, a
classificação de “catolicismo popular” como ato de nomeação da realidade torna-se, em
nossa opinião, propícia a ocultar específicas articulações desses elementos a partir de
outras tradições de conhecimentos e presta-se bem aos propósitos da Igreja no seu esforço
de trazê-las para si.

238
Ver: Paz (2005), Pompa (1995, 2003), Galvão (2001), Pierson (1972), Hoornaert (2006), Della Cava
(1976).
239
A atuação de algumas figuras de destaque no cenário nordestino contribuiu para a propagação e a
consolidação de práticas penitenciais. Entre elas, sobressai-se o capuchinho italiano frei Vitale de Frascarolo
(1780-1820), mais conhecido como frei Vidal da Penha, que atuou em princípios do século XIX. Conhecido
em todo o Nordeste, o capuchinho se distinguia pela tipologia da pregação, com tons apocalípticos e
proféticos, a ele sendo atribuída uma profecia sobre a iminente destruição do mundo por causa da perdição do
homem em função do pecado (Della Cava, 1976). Nas cartas do capuchinho, bem como nas do bispo de
Pernambuco na primeira década do século XIX (que se encontram no tomo XLVI da Revista Trimestral do
Instituto Histórico, Geográfico e Etnológico do Brasil (1883), são relatadas as atuações do frade junto a
vários grupos indígenas (chamadas “nações bárbaras”), principalmente na Serra Negra, terra de refúgio de
diversas coletividades em fuga. Como frei Vidal no século XVIII, padre Ibiapina, no século XIX, tornou-se
uma figura de veneração, foi considerado um profeta, dotado de poderes de cura. Seus poderes milagrosos
espalharam-se pelo Nordeste e erguiam-se capelas onde ele teria realizado tais milagres, transformando-se
em metas de romarias (Della Cava, 1976, p. 32).
225

Cabe perguntar: por quem eram formadas essas irmandades? Embora não haja
registros sobre a participação de famílias ou coletividades indígenas, 240 não se pode
descartar sua presença.241 Tal falta pode ser devida ao fato que, como observa Oliveira
Filho (2009), desde o período colonial os índios que decidiam participar da vida colonial
não deviam ser descritos de maneira a ressaltar marcas distintivas em relação aos outros
súditos do rei e que pudessem estabelecer linhas de continuidade com as próprias
tradições.242
Sem me desviar dos propósitos principais deste trabalho e entrar em reflexões
sobre os resultados de uma forte dominação colonial e das compulsórias ações
catequizadoras por parte da Igreja sobre as coletividades indígenas, considero necessário
ressaltar, todavia, a necessidade de tomar em consideração conhecimentos e práticas de
tradições que, embora se tornem (ou sejam tornadas) invisíveis,243 apresentam
especificidades a serem ressaltadas, sendo resultado de específicos “contextos de
experiências”. Como bem ressaltou Oliveira Filho (1993),

[...] é preciso compreender que os elementos de cultura de grupos


dominados (como indígenas, camponeses ou negros descendentes de
quilombos) podem ter uma outra forma de existência, inteiramente

240
Diversamente, há registro sobre irmandades negras, como destacam os estudos conduzidos por Castro
(2006) e Vieira Costa (2007) sobre a irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte em Cachoeira (Bahia),
desde o início do século XIX, e de outras já a partir do século XVIII. Neste caso, a referência étnica é
particularmente enfatizada, na medida em que a confraria era composta unicamente por escravos africanos.
Dizem os autores que como os oligarcas mantinham a opção de separar os escravos segundo as etnias de
pertença atiçando as rivalidades interétnicas, a mesma estratégia foi adotada pela Igreja, que organizava cada
nação em uma irmandade separada das outras, com o intuito de capitalizar as aversões intergrupos e evitar
possíveis uniões que pudessem resultar em rebeliões. Segundo Castro (ibidem, p. 45), as irmandades negras
teriam viabilizado espaços de autonomia dentro do regime escravocrata, favorecendo assim a preservação e a
divulgação dos valores étnicos. Com efeito, a irmandade em Cachoeira alimentou seu caráter étnico,
tornando-se hoje um dos símbolos de resistência do movimento negro.
241
De fato, não apenas entre os Pankararu e os Tuxá (Silva, 1997) encontram-se tais irmandades, estando
presentes também entre os Jeripankó e os Koyupanká, em Alagoas, e os Tumbalalá, na Bahia (Amorim,
2010), bem como entre os Truká (informação oferecida em conversa pela professora da UFPB Mercia
Regiane Batista, cuja pesquisa de mestrado (1992) e doutorado (2005) foi com este grupo indígena).
242
A negação da presença de grupos indígenas e de outras diferenças étnicas na região Nordeste foi depois
reforçada em diversas situações históricas, como no processo de construção da imagem da nação, como
escolha política que tornou a mesma região exemplo de população “misturada” e homogênea representativa
do Brasil (Seyferth, 2000).
243
Para se pensarem essas dinâmicas, as elaborações de Delumeau (1984) parecem muito profícuas. O autor
ressalta o escasso sucesso da catequese com as populações rurais na Europa ainda no começo do século XVI
e a articulação dos símbolos cristãos com outros das tradições que ali vigoravam através de práticas rituais
calcadas no paganismo (p. 160-161). Também as diversas pesquisas de Ginzburg (1976, 2007 [1966])
ressaltaram práticas e conhecimentos que se tornaram invisíveis durante a Inquisição, mas que eram frutos do
esforço de adaptação e criação de visões do mundo em evidente contraste com a tradição cristã.
226

ignorada ou mesmo clandestina em face das tradições e saberes


dominantes no âmbito da nação ou da região. A simples ausência de
registros históricos sobre uma anterior identidade étnica diferenciada ou
mesmo a atual invisibilidade de uma distintividade cultural pode
responder muitas vezes pela ilusão de um pretenso nascimento de um
povo e mais ainda de uma cultura (ibidem, p. vii).

Os argumentos tratados nas primeiras partes deste trabalho permitem-nos ressaltar a


impossibilidade de abordar as práticas dos diversos grupos rituais pankararu (inclusive das
irmandades penitentes) a partir do rótulo do “catolicismo popular” e como um conjunto de
práticas e símbolos “externos” ao grupo. Como já foi colocado, há um processo de
apropriação de informações e símbolos que são incorporados em práticas rituais dos índios
e articulados a partir de uma tradição de conhecimento que segue uma modalidade
essencialmente “imagística” (Whitehouse, 2000), que é diversa, portanto, da tradição
cristã, cujos aspectos doutrinários são os fundamentos da própria organização.
A incorporação desses conhecimentos e símbolos tem importância crucial tanto
para alimentar e atualizar a própria tradição quanto para promover suas estratégias
cotidianas. Como se verá nos próximos capítulos, eles são manipulados em performances
rituais que, ao manterem altos níveis de ambivalência e ambiguidade (estando ausente uma
ortodoxia vigiada), permitem aos participantes atribuir-lhes múltiplos significados, bem
como atualizar e refinar suas próprias performances.
As irmandades penitentes cumprem seus rituais por ocasião do pagamento de
promessas à Santa Cruz e às outras entidades já mencionadas, e que são da competência
desses grupos rituais.
Durante a Quaresma, e sobretudo na Semana Santa, as saídas244 são
particularmente frequentes, mas o calendário ritual anual é denso de eventos. De fato, há
procissões recorrentes durante o ano, cruzeiros e casas a serem visitados em datas fixas,
alem das saídas para o pagamento das promessas que não seguem o calendário e dependem
do aflorar de pedidos. Há, portanto, um ciclo próprio de rituais marcado pelo calendário.
Dois destes são especialmente importantes: a Semana Santa e a festa de Nossa Senhora da
Boa Morte. A primeira envolve ambos os grupos rituais e a segunda apenas o grupo
feminino.

244
As saídas são os momentos em que se desenvolvem os eventos rituais, sobretudo do grupo penitente
masculino.
227

7.1 A irmandade masculina: da preservação da moral e dos sigilos

Devido ao segredo que rodeiam as práticas rituais dos homens penitentes, ao


anonimato de seus membros e ainda pelas dificuldades que a pesquisadora, sendo mulher,
encontra para se aproximar do grupo,245 as informações sobre ele são poucas,246 mas as
considero suficientes para os fins da análise. Relevante é, sobretudo, a construção
discursiva em torno da sua atuação, os aspectos emocionais ligados às suas práticas rituais
e a importância que lhe é atribuída em termos de regulação moral. É significativo que os
penitentes gozem de especial destaque, tendo-o adquirido em virtude de posicionamentos
morais rígidos que foram resguardados, pelas atitudes defensivas diante de possíveis
penetrações inoportunas, escolhendo seus adeptos rigorosamente, censurando eventuais
olhos indiscretos, preservando assim seus segredos.
De forma geral, exalta-se a origem remota do grupo e da sua atuação, construindo
no que diz respeito às suas práticas uma áurea de mistério, alimentando temores contra
cada ameaça a seu sigilo. Contam-se histórias que narram consequências terrificantes para
quem infringiu as regras internas ou tenha demonstrado excessiva curiosidade, espiando na
obscuridade a passagem de seus membros durante as procissões noturnas. Desmaios,
doenças, distúrbios psíquicos e até mortes teriam sido provocados pela audácia de muitos
que quiseram penetrar seus segredos.
Ao perguntar sobre a separação por gênero dos grupos penitentes, percebi uma
generalizada necessidade de os homens (não apenas dos participantes do grupo) lembrarem
e remarcarem a distância entre as atuações masculinas e femininas, que determinariam
tarefas e status diferenciados. A antiguidade do grupo masculino em relação ao mais novo
grupo de mulheres é especialmente enfatizada e visa desvalorizar a atuação feminina.
Afirma-se que as mulheres não são penitentes, mas beatas. Esta definição as colocaria em
uma posição subordinada diante dos homens e ao lado das inúmeras mulheres que tiveram
destaque no sertão, conduzindo uma vida voltada para a caridade e à abnegação, enquanto
os penitentes teriam tarefas e práticas que nenhuma mulher poderia desempenhar.

245
Matta (2005) reporta também as dificuldades de conseguir obter as informações sobre este grupo.
246
Os dados foram coletados através de conversas informais com alguns integrantes do grupo, mas a maioria
das informações foi fruto de repetidas conversas com um jovem integrante, bem como com outros
interlocutores que, embora não pertençam mais ao grupo, já foram membros ou eram a ele vinculados. Outras
informações vieram das chefes do grupo feminino, sobretudo Verônica Barbosa Quirino, filha de Antonio
Vicente Quirino, considerado um dos mais antigos promotores do grupo.
228

Só os homens que sabem, a mulher não vai lá não! Nós anda toda hora,
de dia e de noite, mas eles não! É outro órgão. Aqui só poucos homens
acompanham a gente, pra ajudar nós, pra fazer guarda pra nós, mas pra lá
nós não sabe! (Ana Bomba, chefe do grupo penitente).

A regra ditaria que nenhuma mulher247 deveria saber quem são os membros que
compõem o grupo masculino e menos ainda assistir a seus rituais, mantendo-se assim
âmbitos de comunicação distintos. No entanto, as respectivas esposas sabem sobre o
envolvimento dos maridos no grupo, mas evitam perguntar-lhes sobre as obrigações e os
rituais, limitando-se a comunicar-lhes as promessas que eventualmente chegam a elas para
serem repassadas ao grupo. Observou-se também, em diferentes ocasiões, manifestações
de orgulho em poder afirmar ser neto/a ou filho/a de um homem penitente.
Diversamente de outros grupos penitentes da região que tornaram pública a própria
atuação, entre os Pankararu esta possibilidade não chega a ser cogitada, recusando-se a
mostrar qualquer ritual, tanto aqueles realizados para pagamentos de promessas quanto as
atuações mais importantes e marcadamente “emocionantes” que se concentram na Semana
Santa. Foi sempre pontuada a distinção entre os penitentes pankararu que atuam em Brejo
dos Padres e os outros da região, sendo ainda salientada a impossibilidade de inserção de
membros externos. Segundo os interlocutores indagados sobre esta restrição, a maioria
afirmou tratar-se de um limite imposto em função da impossibilidade de avaliar a conduta
moral de indivíduos que não participam da rotina diária da coletividade, o que torna
inviável testar a confiabilidade do sujeito, fundamental para a manutenção dos segredos.
É necessário ressaltar que estas observações foram sempre acompanhadas de
comentários que certificavam a pertença étnica do grupo penitente, isto é, todos os
interlocutores, inclusive aqueles que fizeram críticas ao grupo, disseram que se tratava de
“penitentes pankararu”, atribuindo-lhes assim a especificidade étnica, acrescentando ainda
que o mistério que este grupo cultiva era diferente de todos os segredos dos outros grupos
de penitentes existentes na região. Destaca-se que esta peculiaridade era referida apenas
aos penitentes de Brejo dos Padres, com a intenção de distingui-los de outros que existem
nas distintas aldeias da área indígena.248

247
Várias mulheres afirmaram que os homens escondem as próprias vestimentas (mortalhas ou batas e
anáguas) e são eles mesmos que se ocupam dos cuidados com elas (reparo e lavagem), pois nenhuma pessoa,
menos ainda as mulheres, podem tocá-las. Ao falecer, os familiares vestem o corpo com a mortalha e, se
tivesse usado em vida os instrumentos da “disciplina” e não os tivesse passado a um familiar do grupo, eles
os colocariam no caixão junto com ele.
248
Dentro da área indígena existiriam outros grupos nas aldeias Caxeado, Caldeirão e Bem Querer de Baixo.
229

No que concerne à organização da irmandade, ela se dividiria em dois grupos que


atuariam ritualmente em concomitância.249 O grupo de rezadores, que tiram as rezas e
benditos, encabeçaria as procissões, seguido pelo grupo de disciplina.250 Afirma-se que os
rezadores desconhecem os homens de disciplina e que este grupo se mantém protegido de
qualquer olhar indiscreto. Embora se enfatize a simetria de posições através de discursos
que visam alimentar a ideia do nivelamento dentro da irmandade, há internamente
diferenças de posições. Há dois decuriões ou chefes que guiam, respectivamente, os grupos
atuantes, organizam as saídas, acolhem os pedidos para os rituais de pagamento de
promessas e decidem e avaliam a inserção de novos membros ou eventuais expulsões,251
apesar de haver uma avaliação de diversos membros sobre estes assuntos. São os melhores
conhecedores de todas as rezas e benditos, por terem sido inseridos no grupo desde a mais
tenra idade. Ao grupo de flagelantes é conferido o maior valor na hierarquia por
desempenhar o serviço considerado o mais importante, o “mais fino” da irmandade.
Como se pode ver no diagrama XII,252 a sucessão do cargo de decurião, embora
demonstre mudanças no decorrer de aproximadamente um século, realiza-se dentro de
poucas famílias vinculadas por parentesco.253 Segundo Matta (2005), nas famílias
promotoras do grupo, embora seus membros possam participar dos rituais da tradição
indígena, nenhum é pai ou mãe de praiá, priorizando a própria atuação no grupo penitente.
A penitência masculina entre os atuais Pankararu teria sido introduzida pela família
Quirino, que posteriormente entregou a chefia à família Anjo. Dona Verônica Barbosa
Quirino,254 uma das atuais chefes da penitência feminina e casada com Zé Binga, relatou
que o primeiro decurião foi seu avô, que teria sido sucedido por seu pai, Antonio Quirino,

249
Segundo os dados reportados por Matta (2005), os grupos seriam três e teriam vestimentas diferentes (p.
137).
250
Há comentários que destacam uma espécie de imunidade à dor dos flagelantes, e se diz que, no dia
seguinte ao serviço, as feridas desapareceriam ou não provocariam sofrimentos, comentários estes que
alimentam o ar de mistério que rodeia o grupo, bem como enfatizam a coragem de seus membros.
251
Para tais decisões seriam consultados também vários membros do grupo.
252
Ver o diagrama na página 232. Neste diagrama optei colocar não apenas a genealogia da família Anjo,
mas também da família Bomba que, como será destacado mais adiante, mantêm vínculos estreitos.
253
Comparar com o diagrama apresentado por Matta (2005, p. 136).
254
Em conversa com Maria Aparecida, filha de Dona Verônica, ela me explicou que a mãe, embora
participasse dos rituais da família Serafim, de parte de mãe, “era muito chegada à Igreja”, com o incentivo do
pai, Antonio Quirino, e se inseriu na penitência feminina quando Maria Bárbara chamou-a para participar do
grupo da Santa Cruz. O casamento com Zé Binga – ele também penitente e parcialmente responsável pelo
batalhão de praiás de seu grupo doméstico – alimentou a articulação das práticas rituais adentro da família,
embora os grupos continuem atuando separadamente, com tempos, espaços e tarefas diferenciadas.
230

que passou o cargo posteriormente ao irmão Joaquim. Os vínculos estabelecidos com a


família Pereira e Anjo, cuja maioria de membros se envolveu no grupo, determinaram a
investidura de Pedro Anjo, o qual, segundo Dona Verônica, embora “mais afastado”, ou
seja, sem laços próximo de parentesco com os Quirino, ter-se-ia destacado pela “coragem”
e pela retidão moral. O primeiro decurião da família Anjo foi sucedido por dois de seus
irmãos, Manoel e Antonio Anjo que, ao falecerem, deixaram o cargo a Cícero Anjo (filho
de Pedro), que atualmente ocupa o cargo com o auxílio do filho Antoinho, também
decurião.
Ao perguntar sobre o número de membros que atualmente participam do grupo
masculino, recebi respostas discordantes, oscilando entre 30 e 100 índios, sublinhando-se a
queda de participação nas últimas décadas. De maneira geral, a exígua presença e a
diminuição da frequência no ritual do grupo são atribuídas às mudanças que se deram nas
aldeias, com a introdução da energia elétrica que limitaria as saídas, pois a luz desnudaria
o anonimato e, sobretudo, permitiria aos curiosos observarem a “disciplina”.
Antigamente os penitentes ganhavam mais promessas que os praiá, mas
depois, por causa da luz, da claridade, as estradas ficaram claras, hoje em
dia os praiá ganham mais promessas que os penitentes. (Agenor Julião)

A tais explicações somam-se as argumentações que dizem respeito à rigidez de


conduta exigida pelo grupo e que desencorajaria a inserção, promovendo assim uma
seleção anterior àquela que seus membros e chefes realizam. Isto alimenta o carisma do
grupo, cujos poucos membros sentem que compartilham um dom de valor inestimável. As
famílias promotoras incentivam os próprios membros a participarem, embora possam fazer
parte do grupo índios que não pertencem a elas. Entra-se para ele por meio promessas, por
incentivo dos mortos que aparecem em sonho, por desejo dos familiares, ou por convite de
amigos. Em todos os casos – sobretudo em se tratando de jovens – procede-se a uma
avaliação da conduta moral não apenas deles, mas também das respectivas famílias. Se a
família for considerada idônea, será pedido o consentimento dos pais dos jovens. É o caso
Francisco255 que, embora não participe mais assiduamente das saídas, é um dos membros
jovens do grupo. Um amigo incentivou-o a se integrar à irmandade quando ainda era
adolescente. A sua conduta moral lhe garantiu a inserção: evitava festas e bebidas
alcoólicas e qualquer situação que o levasse a “encrencas”, portanto, seu histórico era
“limpo”, sem episódios de brigas.

255
Para manter o anonimato do rapaz, o nome foi trocado por um fictício.
231

Famílias como a de Francisco são favoráveis à inserção do filho no grupo, sabendo


que estará sob constante observação dos membros deste grupo ritual. Os familiares, então,
legitimam a autoridade moral e disciplinadora dos penitentes.
No primeiro período de participação, o sujeito continua sob estreita avaliação,
observando-se se age corretamente durante as saídas e na vida cotidiana e, sobretudo, se é
capaz de guardar os segredos. Se os outros membros perceberem alguma estranheza ou se
forem informados sobre segredos divulgados, o sujeito será imediatamente expulso.
Francisco afirmou que as tarefas que lhe competiam não se diferenciavam das dos
outros (à parte o grupo de disciplina) e que a única responsabilidade de todos é aprender as
rezas e os benditos para tornar os rituais mais eficazes. Sublinhou que a participação
constante nas saídas é fundamental para a apreensão das rezas, faltando textos escritos que
as divulguem. Ademais, é preciso manter viva a memória, que com escassa frequência se
perderia, exigindo-se dos membros assiduidade.
Entre os indivíduos do grupo de disciplina não há jovens, já que para dele participar
são necessários anos de preparação, além do abandono das “vaidades” e levar uma vida
moralmente severa. Mas isto não significa que seja numericamente inferior ao outro grupo.
A disciplina recebe comentários particularmente elogiosos, enfatizando-se a “coragem” e a
“valentia” indispensáveis para desenvolver tal serviço. Como já vimos, estes são os valores
morais que mais pesam para o acréscimo de prestígio dos homens, o que desperta ou
alimenta o desejo de participar desses rituais e compartilhar com um grupo muito restrito a
própria honra.
232

DIAGRAMA XII

Leonardinho Joana
Soares Bomba
Valentim Francisca Isabel Joaquim
Pereira Pereira Quirino

Especialista
ritual

D. 1962

Leonardo Mareciana
Soares Aninha Angelo Martinha Aninha Anjo dos
+ neto Bomba Bomba Vieira Saixa Maria Adilino Vitor Rosa Nicolau Santos
Rosa
Bomba Bomba Bomba Merencia Malaquia Aninha
de Sousa
(gata) Merencia
Penitente

[_]
D. 2010
Decurião
Verselina Maria Firmina Manoel Maria Lino Joana
Manoel Nené de da Cinceição Agdo Manoel José Joana Anjo de Antonio dos Santos José Maria ? Rosa Pedro Julião Antonio Francisca Manoel
José Burgo (Bomba) Bomba Bomba Bomba Bomba Sousa Anjo da (da Loja) Anjo de Julião Merencia Anjo da Feliz de Oliveira
Ilaria
Soares Silva Sousa de Sousa Silva Vieira Sousa

pajé
1944
68
Cicero Anjo Anjo da Maria Telvina
Sabina Maria Tete Pedro Raquel de Antonio Severino Maria Adilino da Silva Juliana Antonio Marisinha Maria Senhorinha Vicente Silva Francisca Feliz Maria Maria João Raimundo Davina Maria do
Leonardo Isaura José Renato Pedro Soares José dos Sousa Santos Ze Maria José Ana Marcelino Luisa Pedro Antonio Neusa Creusa Caribá de de de de Anjo da Joana da Paz Anjo da Francisca Chiquinha Feliz Felix Felix Carmo
Dolores Chico Giulia Galdencio Mereciana Maria do (decurião) Neto Vieira Vieira
Soares Maria da Manoel Manoel Manoel Bomba Antonia Dôo Bomba da Bomba Antonio da Maria Maria
@ neto Conceição Soares Soares Soares
(Bina) Santos (Bomba)
de Jesus Bomba Galega Miranda da dos (Binga) carmo de Silva da Silva Silva da Silva da Silva
Rosa Rosa Rosa Rosa Silva da Silva Silva Silva da Silva da Vieira Vieira Vieira Vieira Felix Vieira
Silva (Barros) Santos Sousa

líder
penitência
feminina

Antoinho
Batista Maria José Maria Maria Manoel Maria Fausto Luisa José Rafael Damião Eliane Erileide Elieite Edilsa Enivaldo Evilasio Edineide (decurião)
José Edna Miguel Tadeus Antonio Maria Maria de Brigida dos Maria Daniel Ze Geralda David Maria do Ubirajara Fernando Manoel Claudia Miranda Maria Soledade Santana da da Monteiro Maria da Monteiro Benedito Monteiro Maria do Monteiro Maria Maria Maria Maria Marcelino Marcelino Maria
Adonel dos Giulião Anjo da Maria Pedro dos Lisboa dos Silvana Dolores Patricia Bomba Branco Bomba Monteiro Teresa Luisa Antoniel Carmo de Anjo de Anjo de de Monteiro Santos
Andrade Santos da Silva da Silva da Silva Silva Paz da Silva Conceição da Silva da Silva da Silva da Silva da Silva da Silva da Silva
Santos Silva Nazaré Santos santos dos Santos dos Santos dos Santos Binga Bomba bomba Bomba Sousa Sousa Sousa Sousa Sousa Monteiro
dos Santos

Artur
gabriel Deborah Tais da Veronica Samira Ivan Ia de Iago
da Silva de andrade Giulio de
Silva Andrade Andrade

Falta última geração


233

7.2 A irmandade feminina: das regras de inserção e das queixas das chefes

Se o grupo de penitentes masculino se configura como uma sociedade secreta, não é


possível afirmar o mesmo em relação ao grupo feminino, que demonstra ser menos
discreto e atua ritualmente à luz do sol.
Segundo os relatos das penitentes, atualmente o número de mulheres que
participam do grupo é bastante exíguo em comparação com o período anterior ao
falecimento de sua fundadora.256 Afirma-se que antes do seu falecimento havia centenas de
mulheres que integravam o grupo, enquanto hoje dificilmente chegam a 50. À parte Dora
que tem 47 anos e Mazé com 40 anos, a maioria delas passa dos 60 anos e as mais
numerosas se encontram na faixa etária entre os 70 e os 80.

As chefes da penitência: Amélia Julião, Verônica Barbosa e Ana Bomba

Duas das três atuais chefes da penitência feminina foram escolhidas diretamente
por Maria Bárbara antes de seu falecimento, embora as informações a respeito nem sempre
coincidam. Ana Bomba (82 anos) desde muito jovem participou do grupo, aproximando-se
bastante da sua fundadora. Há de se considerar que o pai de Ana Bomba, Manoel Anjo,
criou aquele que viria a ser o marido de Maria Bárbara, Manoel Oliveira que, como vimos,
era filho de Aninha Merensa, tia de Manoel Anjo (diagrama XII). Desta forma, as relações
entre estas famílias eram íntimas, o que determinou que Ana Bomba fosse escolhida por
Maria Bárbara.

Eu acompanhava ela pra Juazeiro, Santa Brígida, Inajá. Aí ela foi


adoecendo, aí um dia que ela me disse: “Olha, eu vou fazer uma viagem,
tu vai ficar no meu lugar”. Aí eu disse: Bárbara, eu não quero ficar, eu
sou muito violenta, se di[ss]er uma coisa comigo, eu não gosto. Mas ela

256
Maria Bárbara Binga faleceu em 1993.
234

disse: “É você mesmo que vai ficar”. Aí chegou um dia que vieram me
dizer que Bárbara morreu. Aí um tio meu, Pedro Anjo né, que era o
decurião, ficou insistindo pra eu ficar. Mas eu não queria não. Esse tio
meu me dizia: “Mas você não sabe todas as rezas?”. “Eu sei, mas...”. Até
que um dia ele chegou aqui e falou assim: “Ana, você sabe os benditos de
comadre Bárbara?”. “Sei”. “Então vamos a rezar pra ela, e você vai
receber as mesadas dela”. Aí eu fui porque ia com ele, mas se era pra
ficar só, eu não ia. Mas aí eu fiquei, hoje em dia estou aqui. Tem dia que
eu não vou que estou doente, mas sempre cumprindo com a ordem dela!
A ordem que ela deixou. Aí a gente vai em todo lugar, somos bem
recebidos. Teve uma vez que eu fui pra Salvador que eu recebi tanto
abraço que eu parecia com ela! Eu rezo em lugar dela e faço o que ela
manda. Ela me aparece, eu sonho com ela. Mas eu não gosto de pegar a
voz dela não! Ela vem pra mim, mas ela não desce em mim, eu não gosto
disso não! Eu só cumpro os deveres que ela pede.
Aí ficou Amélia Julião, já tem outra que ajuda também que é Veroquinha.
Aí eu estou aqui, vamos fazer até que Deus quiser. Vamos por esse lugar
todo, todo mundo me considera bem. Dona Ana pra aqui, Dona Ana pra
lá, aí estou aqui, até o dia que Deus quiser.

- Por que a senhora não queria ficar no lugar de Maria Bárbara?

Não! Eu rezo, né? O que ela fazia, os mandamentos que ela fazia eu faço.
Mas todos têm olho grande, não é não? Se uma pessoa faz uma coisa,
“Fulano já quer ser, fulano já quer ser santo”. Oh, meu Deus, não gosto!
Tudo o que ela fazia no serviço eu faço. Aquelas oração que ela sabia,
tudo eu não sei, mas outras sei. Ela passou pra eu fazer aquele serviço. Aí
ficou aquela mulher que é Amélia e Verônica, mas elas se conformam só
se eu ‘tiver.

A inicial recusa de Ana Bomba em aceitar o cargo conferido por Maria Bárbara
devia-se ao medo de que tal tarefa pudesse atrair olhos invejosos, dada a enorme
popularidade e o renomado prestígio de que a mestra gozava. Ana Bomba decidiu,
portanto, aguardar um tempo antes de aceitar, testando o real desejo dos membros do grupo
e da coletividade. Assim, poderia contar com o seu amparo em eventuais acusações que
recaem frequentemente sobre os candidatos ao cargo de chefia de cada grupo ritual. Como
se pode observar neste trecho de entrevista, o tio de Ana Bomba, o então decurião dos
penitentes, pressionou-a para que prosseguisse com o serviço de Maria Bárbara, embora
outros relatos informem que a formação do grupo de mulheres penitentes encontrou no
início de sua atuação a resistência do grupo masculino, mas posteriormente teria sido
incentivada por ele.257

257
A mudança de atitude para com o grupo penitente feminino poderia ter sua explicação na reconfiguração
dos grupos rituais na área, vendo-se um crescente enaltecimento da importância e do prestígio das famílias
promotoras dos rituais da tradição indígena, resultado da entrada do SPI na área e da ênfase nos sinais
diacríticos que este grupo manipulava. Tal mudança pode ter incentivado o grupo penitente masculino –
235

Dona Amélia Julião (71 anos) também reivindica para si a indicação direta de
Maria Bárbara para encabeçar o grupo, embora mais de uma vez repetisse que a própria
mestra lhe teria recomendado criar seus filhos antes de assumir qualquer responsabilidade
no grupo.
Dona Verônica Barbosa, por ter morado muitos anos em São Paulo, havia se
distanciado do grupo e, ao retornar à aldeia, voltou a participar. Dadas as condições débeis
de saúde de Ana Bomba, Verônica a está substituindo. Assim, atualmente, o grupo pode
contar com três chefes.
O principal papel desempenhado por elas é “tirar as rezas”, conhecendo-as melhor
que as outras integrantes, além de organizar as viagens e as romarias, receber os pedidos e
realizar os rituais do pagamento de promessas à Santa Cruz. Diversamente dos outros
membros do grupo, elas cumprem numerosas viagens aos lugares de cultos, principalmente
a Juazeiro do Norte, para onde se dirigem para pagar as promessas de todos os que as
entregam a elas. O deslocamento frequente para as romarias e o pagamento de promessas,
bem como os encontros com outros agentes rituais lhes permitem ter uma elevada
visibilidade.
As preocupações com a diminuição dos membros do grupo surgiram nas diversas
conversas, sobretudo com as três chefes. Dos trechos de entrevistas que se seguem
emergem vários aspectos que serão posteriormente analisados.

A nossa reza daqui começou em 1949, a reza das mulheres e dos homens
não tem idade não. A nossa das penitentes, a de branco, começou com
minha sogra. A disciplina é forte, tem quem não aguenta não! Mas ela
nunca desistiu. Faz muitos anos que ela morreu e nós seguimos, mas
parece que vai acabar. Não tem mulher que queira rezar, muita vai pro
índio, aqui não cai nenhuma não, ela não procura não, procura a do índio.

- Qual é a diferença?

Aqui está fraco. A dos folguedos dos índios está assim, criança e tudo. Só
procuram eles. Sabe por quê? Porque senão ia acabar a aldeia, mas não é
não! É a mesma coisa, porque eles têm a penitência além dos penitentes
[...]. Tudo é penitência, né?! Eu a considero como a penitência. A Santa
Cruz, nós está com fé, eles também estão com fé nos encantos deles,
porque a aldeia é encantada. (Amélia Julião)

No tempo da nossa mestra, comadre Bárbara, era difícil você ver uma
mulher de manga curta. Roupa comprida, roupa composta como ela

debilitado pela crescente afirmação dos outros grupos – a apoiar o grupo feminino que, embora diferenciado,
era aliado.
236

pedia. Mas agora tá fraco. Não tem mulher nova que queira, toda é de
idade. As novas dançam toré, cantam toré, elas vão pra lá! É que moça
nova não pode! Nem dança, nem fuma, nem roupa de moda. Entrou aqui
e tem que respeitar! Só as idosas com roupa direita! De short, de bermuda
não vai! Não entra! (Ana Bomba)

É que Deus deu a todo povo o seu. Que nem aqui, né?! Tem a penitência
e tem os praiá, tem a penitência dos homens e aquela das mulheres. Pra
penitência é difícil, é que a roupa não quer, mulher nova não quer, todas
vão pros praiás! [...] Tem pessoas que têm medo da penitência. Mas nós
não tem medo não. Quem nunca quis rezar, eles têm medo. Meu padrinho
Cícero dizia que o mundo é um mundo grande, sem fim, e quem
acompanhasse o trabalho era amparado, todos nós. E se todo mundo
acompanhasse, todo mundo seria feliz, mas não querem! (Verônica
Barbosa Quirino)

O primeiro aspecto a ser ressaltado é a ênfase na necessidade de seguir uma


conduta moral rígida para poder integrar-se ao grupo, inexistindo mulheres jovens que
desejem a ela se submeter. O vestuário – elemento sempre colocado como relevante – deve
ser “composto”: uma blusa de manga comprida em cima de outra que melhor esconda o
corpo; uma saia que cubra os joelhos; um lenço para cobrir a cabeça, escondendo os
cabelos recolhidos (pois que se proíbe cortá-los). A cor de todas as indumentárias é branca,
embora seja permitido usar o azul claro. Branca é a cor que simboliza a morte. Não se trata
de uma simples manifestação do luto, mas de uma marca distintiva do grupo ritual que
opera com os mortos, como também, por exemplo, o grupo de dança de São Gonzalo em
Santa Brígida, eles também vestindo rigorosamente a mesma cor. 258
Tais indumentárias são de uso cotidiano e não restritas apenas aos momentos
rituais. É um sinal estético e diacrítico que permite a constante distinção não apenas como
grupo, como também condensa os valores morais que as penitentes são chamadas a
representar perante a coletividade, individualmente, em cada contexto e momento da
própria existência. A austeridade das penitentes mostra claramente a necessária falta de
“vaidade” para poderem cumprir a missão fina que lhes compete. As jovens, desta forma,
não estão aptas a desempenhar tal tarefa.
A argumentação de que anteriormente havia jovens mulheres no grupo pode ser
devida a diversos fatores. Um deles seria possivelmente o prestígio do grupo de penitentes
durante a atuação de Maria Bárbara – quando teve seu auge – decaindo depois de seu
falecimento e, com isto, enfraquecendo o incentivo para que elas se inserissem nele. Outro
258
Completando a indumentária, há um terço branco e azul que todos os penitentes costumam levar como
colar, comprado, na maioria das vezes, em Juazeiro do Norte. Algum enfeite, como brincos discretos, pode
ser tolerado, ao contrário da maquiagem, que é totalmente vedada.
237

fator poderia se basear em um maior incentivo por parte das famílias para que as jovens
participassem do grupo, enquanto garantia de um rígido controle sobre as suas atitudes
morais. Por último, havia reduzidas alternativas, que hoje estão ampliadas pela
possibilidade de alcançar prestígio através dos rituais da tradição indígena.
Ha de se considerar também que as afirmações relativas a uma época em que o
grupo podia contar com a participação de inúmeras mulheres de todas as faixas etárias, até
crianças – levadas desde a mais tenra idade para as romarias e para todos os outros eventos
rituais – digam respeito a um passado glorioso, que é exaltado. Com efeito, foi
repetidamente enfatizado que a mestra Maria Bárbara recomendava a inserção somente de
quem tivesse cumprido com os deveres familiares, isto é, depois de terem crescido os
filhos, podendo, então, se dedicar com zelo às obrigações religiosas.259 Tais declarações
levam a pensar que, apesar das queixas sobre a falta atual de mulheres jovens no grupo, é
provável que antes também elas faltassem, o grupo ficando restrito a mulheres adultas e
idosas. Assim, o problema do número exíguo de participantes se deve à escassa inserção de
mulheres adultas, o que gera um real enfraquecimento.
Embora não haja maior integração ao grupo das mulheres penitentes e poucas sejam
as famílias que desejem hoje que suas filhas participem do grupo, o papel de seus membros
parece continuar o mesmo. As chefes da penitência contam que as crianças desde pequenas
eram se levadas para que acompanhassem as rezas e fizessem os serviços de auxílio às
penitentes, entrando na sua esfera de observação até um dia poderem usar a veste que as
caracteriza, sinal de aceitação e integração no grupo.
Retomando a necessária falta de “vaidade” para a entrada no grupo, ela tem
importância também para refinar a capacidade de comunicação com as entidades
sobrenaturais dos rezadores. Mesmo que seja uma característica particularmente enfatizada
pelos grupos penitentes, não está ausente entre os especialistas rituais vinculados à
tradição indígena.260

259
Maria Bárbara fazia as mesmas recomendações de madrinha Dodô, que foram destacadas no Capítulo III.
260
Um exemplo pode ajudar a compreender de maneira mais concreta a importância deste aspecto. Ao
comentar com alguns interlocutores a competência ritual do cacique Zé Auto, ninguém hesitou em atribuir-
lhe conhecimentos profundos dos elementos mágico-religiosos e todos fizeram referência ao desprendimento
que o cacique manifestava, em especial no que diz respeito à moradia particularmente humilde, sem
demonstrar desejo algum de aumentar seus recursos para melhorá-la. No entanto, outros afirmaram que,
embora aparente certo desapego, ainda teria “suas vaidades”, notadas principalmente nas atitudes que
deixavam transparecer excessivo orgulho e presunção.
238

Um segundo aspecto a ser ressaltado dos trechos de entrevistas acima citadas,


colocado em coro pelas chefes da penitência, é o fato de atribuírem o afastamento das
mulheres do próprio grupo para se dedicarem aos praiás e para “dançar toré”. Ana Bomba
e Verônica salientaram a maior liberdade nas vestimentas (sinônimo de “libertinagem”,
“indisciplina” e “irreverência”) que os rituais da tradição indígena permitem às
participantes, ficando elas mais inclinadas a segui-los em detrimento do universo de
austeridade das penitentes.261 As afirmações de Dona Verônica referem-se também à
distribuição de competências que Deus teria feito entre diferentes povos e que se refletiria
nas divisões de competências entre os diferentes grupos rituais pankararu. Este dado é
muito significativo se nos reportamos às argumentações de outros atores sociais (por
exemplo, as de João Gouveia) que salientavam a mesma separação de competências. Neste
caso, Dona Verônica atribui esta divisão a uma ordem construída por Deus, e assim a
legitima.
Dona Amélia Julião, sobre o progressivo enfraquecimento do grupo de mulheres,
levanta questões de ordem política. Com tom irônico, ela afirmou que as mulheres “vão
pro índio”, destacando de tal maneira a diferença que se estabeleceria entre os grupos
atuantes. Em sucessivas conversas, tal aspecto se tornou ainda mais evidente, já que as
argumentações visavam enfatizar as similitudes de ambas as práticas rituais e a concepção
comum do valor da penitência. Perguntei-lhe se ela participava dos rituais da tradição
indígena:

Ah! Eles me procuram, mas eu não posso! Eu estou de lado, eu gosto e


creio neles, adoro eles, e sinto a força deles, mas não posso deixar a Santa
Cruz até ela amorrecer262.

- Por que procuram a senhora?

Porque... deve ser porque meu corpo é limpo! Tenho fé neles. Eles
gostam de limpeza, eles não gostam de gente suja, não, que beba cachaça!
Eles querem homem direito, mulher direita. E a reza chega muito perto
deles. Eu creio muito neles, tenho muita fé neles, nos dois, mas
primeiramente na Santa Cruz, mas eles também são da Santa Cruz! Mas
agora eles querem dividir, mas é uma coisa só! Nós não podemos dividir

261
Entre as jovens pankararu indagadas sobre tal assunto, há uma atitude crítica a respeito da disciplina das
penitentes. Enfatizam a rigidez das posturas e enaltecem a possibilidade de participar dos rituais da tradição
indígena, que não imporia limites à expressão individual. Afirmaram que, embora devam ser respeitados os
eventos rituais das penitentes, elas “gostam dos praiás” e de “dançar toré”, e sentem mais atração por esses
eventos rituais.
262
Com o termo “amorrecer”, inexistente na língua portuguesa, Dona Amélia reforçava a idéia do
progressivo enfraquecimento do próprio grupo.
239

não, porque aqui a força do lugar é os encantos! E pra nós também é a


Santa Cruz, que é a Dona do mundo. Mas se a aldeia não tiver encanto,
não tem aldeia.

Estas declarações evidenciam a possível aproximação dos penitentes dos cultos dos
encantados, embora continuem priorizando e enaltecendo o culto à Santa Cruz. A
expressão “é uma coisa só” – repetida inúmeras vezes nas conversas – denota o esforço de
conjugação e articulação de ambas as práticas rituais que outros tentam diferenciar,
estabelecendo, desta forma, a disputa entre os grupos.
Como ressaltamos acima, as práticas penitenciais eram geralmente associadas às
expressões culturais do “catolicismo popular” e, portanto, não se prestavam a ser elevadas
a elementos diacríticos para a reivindicação da diferenciada identidade étnica. Dona
Amélia, ao afirmar ironicamente que as mulheres “vão pro índio”, está justamente
identificando as práticas rituais da tradição indígena como elementos demarcadores da
identidade étnica pankararu, sabendo que os elementos simbólicos da sua prática ritual não
servem para este propósito.
Se, por um lado, há a necessidade de mostrar a plena adesão ao culto e à fé nos
encantados, que lhes permite reivindicar a própria identidade étnica, por outro, a atitude
geralmente adotada pelos grupos de penitentes é a de uma participação marginal, embora
alguns tenham tido mais destaque.263 De fato, Dona Amélia afirma ficar “de lado”,
respondendo em primeiro lugar às suas obrigações com a Santa Cruz. Com um tom mais
forte, Ana Bomba enfatizou a prioridade atribuída ao trabalho ritual da penitência, e
declarou com evidente orgulho:

Eu tenho 80 anos, mas nunca dancei pegada no braço de um praiá! Já


você vê, comadre Raquel e as meninas todinhas sim, eu não.

- Por quê?

Porque parece que meu caso não é esse! E essa irmã minha, tanto canta
como dança, e eu não! Eu rezo! Eu nasci e me criei aqui, mas nunca
peguei um braço de um praiá pra dançar nem daqui pra lá! E eu sou
daqui da aldeia, viu?

263
Entre os vários que se destacaram pela participação ativa em ambas as correntes estava João Binga, o
cacique falecido em 2008, bem como seu tio Antonio Binga, que era dono de um batalhão de praiás.
240

Ana Bomba comparou as suas atitude e escolha com aquelas da irmã Raquel, já
diversas vezes mencionada neste trabalho. A argumentação torna as distintas escolhas
determinadas por “natureza”, pois elas pertencem à mesma família e receberam a mesma
formação, mas tomaram diferentes caminhos.264 Ana Bomba declarou não “pegar a voz” da
mestra e, em conversa com as outras chefes, elas afirmaram a mesma coisa. Elas não se
prestariam a receber os espíritos dos mortos, pois a incorporação caberia apenas às
mulheres mais novas. As mais idosas teriam alcançado níveis mais reservados de
comunicação com os espíritos e o canal preferencial com eles seria o sonho.
As chefes do grupo estão presentes em todos os eventos rituais, diversamente das
outras mulheres, que aparecem alternadamente, algumas de forma mais assídua que outras.
Esperam as chamadas das próprias chefes para cumprir com suas obrigações, participando
dos diversos rituais tanto dentro da aldeia quanto fora dela.
Em virtude de o grupo ter a competência de lidar com os espíritos dos mortos, os
rituais visam afastar os espíritos malignos que podem se apossar do corpo provocando
doenças, e também ajudar os mortos a terem existência serena, evitando a sua interferência
negativa sobre os vivos. Este grupo ritual é chamado especialmente nas horas que
precedem o falecimento de um indivíduo ou depois que a morte ocorreu. O ritual visa
purificar o corpo e libertá-lo de eventuais espíritos malignos que não permitiriam ao
espírito desprender-se do corpo e fazer sua “viagem” serenamente. A passagem da vida
para a morte, geralmente referida como uma “viagem”, precisa, portanto, do auxílio deste
grupo ritual que, além de liberar o espírito do corpo do morto, também inaugura uma nova
relação com o parente falecido,265 elas se tornando então as médias para tal comunicação.

264
Em realidade, embora pertencentes à mesma família, as trajetórias das irmãs foram diferentes, vinculando-
se a atores sociais que determinaram escolhas diferenciadas: Dona Ana aproximou-se especialmente de
Maria Bárbara, e Dona Raquel, de João Binga – estes também irmãos e com trajetórias diversas: uma
priorizou a dedicação aos cultos penitenciais e o outro, aos cultos tradicionais, mas sem deixar de participar
de ambos.
265
Há famílias que pedem a ambos os grupos de penitentes para comparecerem anualmente a fim de se
renovar e reforçar o vínculo com o morto. Se a família assim o desejar, pode pedir também aos pais e mães
de praiás para dançarem as três rodas, encontrando-se no mesmo dia todos os grupos rituais para
homenagear aquele que morreu. Em junho de 2009, na casa do falecido Abílio Binga, sua esposa Júlia, que
promove todo ano o ritual para homenagear o marido, juntou para a ocasião os três grupos rituais. Da tarde
até a noite, os praiás se intercalaram nas rezas das mulheres penitentes, enquanto Dona Júlia e outras
mulheres da família preparavam a comida para oferecer a todos os oficiantes dos rituais. Numa sala
destacada da casa, colocaram a cama do defunto e, em cima dela, uma foto sua, uma pequena imagem de
padre Cícero e a foto da madrinha Dodô. Ali entraram os diversos oficiantes, sob as orientações de Dona
Quitéria Binga que, embora ficasse sentada, indicava todos os passos a serem executados, enquanto outros
membros da família “puxavam” os toantes. Como outros eventos rituais que se desenvolvem na área indígena
para o pagamento de promessas às entidades, estes também, que são realizados especificamente para
homenagear um morto, cuidar da sua memória e restabelecer com ele a comunicação (que pode acontecer no
241

7.3 A Quaresma: das saídas e do anual encontro

O período da Quaresma266 é de forte efervescência ritual na área indígena,


sobretudo na aldeia Brejo dos Padres, onde há uma maior concentração de eventos. Em
diferentes contextos e momentos realizam-se os rituais considerados os mais relevantes do
ano: a corrida do imbu e as saídas mais frequentes dos penitentes, sobretudo na Semana
Santa. Nessa época, não há encontros entre tais práticas rituais, que se desenvolvem à
distância, exigindo-se respeito recíproco. Talvez seja o período em que a distinção entre os
grupos rituais fica mais evidenciada, em que a diversidade de divindades a serem
homenageadas e os motivos que determinam a realização dos rituais se acentuam.
A Semana Santa, sobretudo, é considerada o momento por excelência do serviço
dos penitentes, não só pelas irmandades, mas também pela população em geral. São tema
de conversa as saídas das irmandades, e todos contribuem para reiterar o clima de mistério
que as rodeia. Aqueles que não integram as irmandades e a quem perguntei se haviam
participado dos rituais responderam que à parte os que são diurnos (visitas aos cruzeiros),
em que é possível participar, os outros (referindo-se às procissões noturnas) são bem mais
reservados, as irmandades restringindo o acesso a eles. Todos mostraram certa curiosidade,
mas na maioria dos casos os indagados se limitaram a manifestar tanto o próprio respeito
em relação ao serviço quanto o medo que ele lhes suscita. A não ser em relação à
capacidade de lidar com a esfera da morte, a maioria dos índios não falou a respeito do
significado dos rituais penitenciais, reiterando apenas a ideia de que tudo o que concerne à
penitência é “segredo” e que, portanto, ninguém – fora os seus adeptos – pode saber. Meus
interlocutores reconheceram a importância da ação ritualística, não apenas pela restauração
do equilíbrio entre as diferentes esferas – a dos vivos e a dos mortos – como também pelo
respeito que as irmandades impõem à população, em função do serviço que prestam, que
não é só o ritual, e principalmente pela sua ação educadora e de controle social e moral.
Como já foi evidenciado por Matta (2005),267 as irmandades penitentes iniciam a
sua atuação ritual na Quarta-feira de Cinzas e a estendem até o Sábado de Aleluia. Durante

mesmo ritual com os parentes ou as penitentes ou em sonhos), visam reforçar os laços e as alianças entre os
membros de um mesmo tronco ou com os aliados de famílias de outros troncos. Organizados de acordo com
o calendário, repetem-se todos os anos e cada oficiante se prepara com antecedência, obedecendo aos devidos
resguardos e se mostrando dispostos a reafirmar o vínculo com a família promotora.
266
O registro etnográfico da Quaresma foi realizado entre março e abril de 2009.
267
Comparar com a etnografia realizada por Matta (ibidem) dos rituais durante a Quaresma, que reporta
outros detalhes e informações.
242

as primeiras seis semanas realizam os rituais em todas as quartas e sextas e, na última – a


Semana Santa – desempenham suas funções no Domingo de Ramos, na terça-feira, na
quarta-feira, na Quinta Maior e na Sexta-feira Santa.268 No Sábado de Aleluia o grupo
feminino se dirige em romaria à Santa Brígida para a entrega da penitência,269 necessária
demonstração simbólica do cumprimento das próprias obrigações perante o padrinho
Pedro Batista e a madrinha Dodô, que os incentivaram a manter o rigor dessa prática ritual.
Juntam-se ali com os romeiros que cumpriram com as mesmas obrigações, reiterando o
pertencimento ao mesmo movimento.
Diversamente das romarias e dos encontros rituais que se subsedem durante o ano,
os atos rituais durante a Quaresma são imbuídos de uma sacralidade extraordinária,
exigindo-se posturas que demonstrem o respeito para com a Santa Cruz, pois é ela a
divindade que nesse período é homenageada pelas irmandades.
Alem das saídas do calendário com o roteiro de cruzeiros a serem visitados,
também em outros dias da semana as irmandades penitentes percorrem as casas onde há
pedidos, pois nessa época concentram-se os pagamentos de promessas à Santa Cruz. No
entanto, as procissões diurnas e noturnas270 em direção aos cruzeiros nas quartas e nas
sextas-feiras são os eventos mais esperados, tentando-se recrutar para ela numerosos
adeptos.
As irmandades – feminina e masculina – dividem os destinos a cada noite, e o
caminho das procissões (a ser cumprido obrigatoriamente até a meta final) desenha uma
cruz.
Os cruzeiros são as principais metas para se cumprirem as próprias penitências. Na
sua maioria longe das habitações e situados em locais altos e de difícil acesso, os cruzeiros
são o locus privilegiado para a entrega do próprio sacrifício, pagando as próprias
promessas e as alheias (incluídas aquelas dos mortos que não foram pagas em vida).
Acredita-se que os mortos que pertenciam às irmandades os acompanham pelo caminho

268
Realizam principalmente procissões cujas metas finais são cruzeiros e igrejas. Na terça-feira, a meta é o
cruzeiro na aldeia Tapera; na quarta-feira, a Igreja de Santa Lúcia, na aldeia Saco dos Barros; na Quinta
Maior é a volta ao cruzeiro Cardoso, na aldeia Serrinha; e na sexta-feira, é o morro do Cruzeiro, na aldeia
Brejo dos Padres.
269
No Sábado de Aleluia de 2009, quando foi realizado o registro da Quaresma, não foi possível fazer a
entrega da penitência, pois as chuvas que caíram nos dias anteriores tinham deixado as estradas das aldeias
intransitáveis, não havendo qualquer possibilidade de sair da área indígena.
270
As procissões diurnas são realizadas apenas pelas mulheres, dada a necessidade de o grupo masculino
manter o anonimato.
243

durante as procissões, podendo aparecer ou manifestar-se através da possessão de alguém


que esteja participando.
Sendo a Quaresma o período mais importante do culto à Santa Cruz, os resguardos
necessários antes de começar o ciclo de rituais se tornam mais rígidos. Um mês antes as
mulheres começam as abstinências, recusando bebidas alcoólicas, fumo e dormir com seus
maridos. Tais observâncias, junto com o aumento da própria concentração e das rezas,
serão mantidas até a Páscoa, quando se voltará à vida rotineira, abrandando as restrições.
Preparam-se com especial cuidado para cada saída, tanto no que diz respeito à
concentração espiritual, rezando em seus oratórios domésticos, como no cuidado do corpo
(no sentido de torná-lo o mais possível invisível), escolhendo as roupas mais decentes,
apresentando-se impecáveis para as divindades e para as outras mulheres.271
Por este evento ser considerado extraordinário, dá-se certo destaque às
performances, tendo sido observada, paralelamente, uma acentuação das tensões. As chefes
da penitência precisam organizar as saídas, ser pontuais, demonstrar concordância nas
decisões e saber como coordenar e tirar as rezas, os benditos e as ladainhas. As mulheres
do grupo exigem das próprias chefes posturas coincidentes, a falta delas gera
descontentamento, como foi observado em alguns casos.
As saídas seguem um mesmo padrão de atuação em todas as quartas e sextas-feiras,
bem como nos dias de maior destaque. Encontram-se na Igreja de Santo Antônio em torno
das 20 horas, e o badalar do sino anuncia o início das rezas. Rezam o terço, o bendito
oferecido à Santa Cruz e à Nossa Senhora da Boa Morte, e fecham as rezas homenageando
a cada verso as divindades protetoras: Santo Antônio, São Francisco, Padre Cícero, Pedro
Batista, todos os santos presentes e também a “força encantada”. Terminada a reza, deixam
a igreja e iniciam a procissão até o cruzeiro, deixando os homens entrarem para realizar o
próprio serviço.
Na Quinta Maior se dá o encontro anual entre as irmandades, um ato ritual
carregado de forte emotividade, que estimula visões, alimenta mistérios e reitera a eficácia
ritual de cura da “venerada Santa Cruz”.
Em abril de 2009, houve uma série de acontecimentos que redobraram a tensão que
acompanha o evento.

271
Cabe precisar que o descuido com o vestuário pode suscitar a irritação dos mortos e de outros espíritos,
que decidem possuir o desventurado.
244

Na hora marcada, algumas penitentes estavam sentadas na escada da Igreja de


Santo Antônio. Dona Amélia ainda não havia chegado e tampouco Dona Verônica. Apenas
a chefe Ana Bomba estava presente, acompanhada por 16 mulheres. Padre Alberto
Reani,272 que durante a Quaresma se encontra na aldeia para as liturgias habituais do
período, iniciou a missa, já que a hora avançava e ele devia depois ceder o espaço às
penitentes. As mulheres continuaram sentadas do lado de fora da igreja, sem darem
qualquer sinal de quererem participar da missa. Quando Dona Amélia chegou e percebeu
que a missa estava sendo rezada, com tom de reclamação convidou todas que ali estavam a
entrar para assisti-la. Ana Bomba, olhando para a outra chefe, exclamou: “Eu não entrei
porque não quis entrar! Cada quem faça a sua Igreja!”, expressando de tal forma a sua
posição firme e mostrando que ela estava aguardando para cumprir com suas obrigações,
entre as quais não constava a participação na missa. Poucas mulheres seguiram Dona
Amélia; a maioria continuou esperando a missa terminar para depois entrar e dar
andamento ao próprio serviço. O clima de harmonia que é exigido para o bom êxito dos
rituais havia se desestabilizado, alimentando o generalizado descontentamento das
mulheres que com frequência lamentam a fragilidade do grupo, enaltecendo os “tempos de
Maria Bárbara” e os comportamentos dóceis que favoreciam o consenso e dissolviam os
conflitos.

272
O padre italiano vinculado à diocese de Floresta atua entre os Pankararu há mais de quatro anos e reside na
aldeia Brejo dos Padres, embora sua presença seja ali esporádica, precisando se deslocar para visitas a outros
grupos indígenas da região Nordeste sob sua responsabilidade. Atualmente, ainda que não seja uma presença
constante nas aldeias dos Pankararu, com a ajuda de Luísa Binga desenvolve as liturgias e a catequese de
grupos jovens, especialmente na aldeia Brejo dos Padres. Luísa Binga, membro do grupo doméstico de
Antonio Binga, há muitos anos mora em Jatobá, onde foi gradualmente se aproximando da igreja a partir de
convites recebidos por outro padre italiano. Ocupa-se hoje em dia da catequese em diversas aldeias da área
indígena. Durante a entrevista afirmou que as mulheres penitentes são refratárias aos ensinamentos da Igreja,
acolhendo apenas os convites para participar das missas ou rezas sem, no entanto, se mostrarem disponíveis
para seguir a doutrina. O padre, que obedece aos paradigmas do Concílio Vaticano II, afirma estar cumprindo
com suas obrigações com a “presença” na área, realizando uma “catequese inculturada”, sem a
“institucionalização da igreja”, isto é, sem implantar a sua estrutura institucional. Tanto Luísa Binga como
padre Alberto explicaram a necessidade de praticar uma catequese dentro dos parâmetros que denominam de
“pastoral renovada”. A opção de maior interesse parece ser a sensibilização dos jovens aos problemas
comunitários, preparando-os para se envolverem nas dinâmicas políticas e para se engajarem como ativas
lideranças. Pelas conversas com alguns jovens que participaram do grupo criado pela igreja, percebi que a
presença no grupo era considerada por eles como um canal para conseguir certa agregação e para obter algum
benefício em termos tanto materiais quanto de prestígio. O grupo teria se enfraquecido até se dissolver em
virtude do escasso apoio ou incentivo por parte das famílias, que têm seus mecanismos internos para a
preparação dos jovens na direção das dinâmicas políticas. Há de se observar também que qualquer forma de
associação que atue paralelamente com as lideranças reconhecidas, inclusive as que ocupam os cargos de
pajé e cacique, e que avance reivindicações diretamente para as diversas prefeituras, a Funai ou a Funasa, cria
tensões em virtude do controle que as lideranças pretendem ter sobre cada empreendimento.
245

As primeiras gotas de chuva obrigaram as poucas penitentes que tinham ficado fora
a entrar na igreja e preanunciaram o caminho difícil a ser percorrido para alcançar, à noite,
a meta final: o cruzeiro Cardoso, na aldeia Serrinha. Terminada a missa, as penitentes, com
a ajuda habitual de alguns homens273 que sempre acompanham as saídas do grupo
feminino, dispuseram os elementos simbólicos mais importantes de seus rituais no altar: as
duas grandes cruzes azuis ornadas de fitas coloridas,274 que serão depois levadas em
procissão (uma para cada irmandade).
Nesse dia, diversamente dos outros eventos que requeriam repetidas rezas e
benditos, a permanência na igreja foi breve devido à necessidade de caminhar até o
cruzeiro e poder voltar no horário marcado para o encontro com os homens. Depois de
uma rápida conversa entre as chefes ficou decidido tomar um caminho diferente do
habitual, pois as chuvas dos dias anteriores haviam criado inúmeros riachos em todas as
aldeias. O caminho escolhido, no entanto, não se mostrou menos intransitável do que o que
fora descartado e a chuva que continuava caindo com força piorou a situação. Relâmpagos
e trovões anunciaram o temporal que nos surpreendeu no meio do trajeto, obrigando-nos a
procurar abrigo na casa de Dina Penca (também penitente), que ali estava preparando o
beiju. Enquanto aguardávamos que a chuva desse sinal de diminuir a sua fúria, as
penitentes se dividiram: havia aquelas que queriam continuar enfrentando a tormenta e
outras que queriam permanecer abrigadas. Estavam inquietas e preocupadas, sobretudo
quanto ao “que dirão os homens” se não for cumprida a penitência até o cruzeiro. Dona
Verônica, demonstrando sua coragem, decidiu forçar as mulheres a prosseguirem. Demos
alguns passos fora da habitação, mas desistimos novamente e voltamos para trás. A chuva
havia criado mais riachos, dificultando o retorno para a Igreja.
Ressalve-se que a maioria das mulheres é velha e a travessia se tornava perigosa.
Pelos comentários que faziam parecia, no entanto, que quanto mais obstáculos
aparecessem no caminho, mais aumentaria o valor da penitência que se estava cumprindo.
Impávidas e corajosas – como elas precisam mostrar que são – enfrentaram o retorno entre
escorregadelas e quedas (sem nenhuma gravidade), chegando preocupadas com o atraso à
Igreja de Santo Antônio, onde os homens as esperavam.

273
Geralmente Zé Binga, Zé Oliveira e Zé Negão (este último filho de um casal de penitentes e pais de
praiás) são os que acompanham as mulheres, sendo eles também membros do grupo penitente masculino.
274
As fitas penduradas representam o pagamento das promessas à Santa Cruz e à Nossa Senhora da Boa
Morte.
246

Rapidamente entraram na igreja e, sempre com a ajuda dos três homens, carregaram
as estátuas do Senhor Morto e de Nossa Senhora da Boa Morte e as levaram para fora da
Igreja. Entretanto, o grupo masculino havia aumentado o tom da reza e o barulho
provocado pelo roçar das lâminas usadas na flagelação tornava a atmosfera macabra – no
sentido literal da palavra – acreditando-se que ali estavam também os mortos. A escuridão
protegia o anonimato dos membros do grupo masculino, bem como propiciava o clima
tenebroso.
Enquanto as mulheres se dispunham em duas fileiras carregando a imagem de
Nossa Senhora da Boa Morte, alguns homens vieram buscar a do Senhor Morto, formando-
se dois grupos dispostos frente a frente. Por causa da proibição de olhá-los, Zé Oliveira
teve a tarefa de acompanhar cada uma das mulheres (que mantinham o olhar baixo) para
beijar a Cruz, a imagem de Jesus Cristo e a outra menor de São Francisco que os homens
carregavam, levando-as de volta para seus lugares.275 Mantendo o olhar no chão, as
mulheres aguardaram que os homens viessem beijar a Cruz e a imagem de Nossa Senhora.
A reza das mulheres e dos homens, entretanto, tornava-se um coro único. O corpo trêmulo
de algumas mulheres manifestava os sinais de incorporação, acalmado somente após o
término das rezas, quando os dois grupos se desfizeram.
Repostas as imagens na igreja, cada um se encaminhou para a própria casa. “O
serviço está feito, agora só no ano que vem”, comentaram as penitentes satisfeitas. O culto
à Santa Cruz foi assim reiterado, permitindo a continuidade da comunicação entre vivos e
mortos, especialmente com aqueles de suas famílias ou pertencentes à irmandade,
viabilizando assim o recebimento de conselhos e a intercessão para as curas.
Em plena escuridão, o encontro anual se desenvolveu através de uma aproximação
sonora e física, sem diálogos nem olhares, marcando um ciclo e uma performance peculiar
do próprio contexto social que o criou e a cada ano o alimenta.
Há um aspecto ainda a ser ressaltado da Semana Santa. O dia da Páscoa não tem
qualquer relevância para as irmandades, e não se destinam saídas ou rituais para o
momento considerado crucial na tradição cristã, isto é, a ressurreição de Cristo. O Senhor

275
Antes de formar as fileiras, Dona Verônica se aproximou de mim, que havia ficado para trás para não
perturbar o desenvolvimento do ritual. Levou-me pelo braço para ocupar um lugar na fileira, fazendo-me as
devidas recomendações de manter o olhar baixo e de não tentar ver em momento algum os homens. Se em
todos os eventos rituais meu lugar de “pesquisadora” podia ser mantido, essa ocasião não permitia olhares
curiosos e, portanto, minha presença devia tornar-se algo diferente do que costumava ser em outras ocasiões.
Embora homens e mulheres ali presentes soubessem quem eu era, decidiram que para eu ali ficar precisava
participar do ritual.
247

Morto, para os Pankararu, morreu, não ressuscitou. A Santa Cruz (símbolo da morte) é a
Dona da morte. O encontro anual não reúne apenas a irmandade feminina e masculina,
mas também os espíritos dos mortos e todas as entidades da esfera da morte cujos símbolos
são ali manipulados.
O ato penitencial e a atmosfera criada em todo o ritual estimulavam a intensidade
emotiva, cuja experiência promovia a solidariedade entre todos os envolvidos, bem como
se reiterava a divisão de competências entre gêneros.
248

Visita ao cruzeiro. (Brejo dos Padres, Domingo de ramos 2009)


249

7.4 A festa de Nossa Senhora da Boa Morte: o culto à santa e às


intercessoras

Como foi explicado, a Quaresma mobiliza as duas irmandades de penitentes que,


nesse período, têm intensa atuação ritual. Diversamente, na festa de Nossa Senhora da Boa
Morte,276 as protagonistas dos eventos rituais que se sucedem durante todo o mês de agosto
são apenas as mulheres. Mencionei neste trabalho que a festa foi introduzida em Brejo dos
Padres por Maria Bárbara com o incentivo da madrinha Dodô, inexistindo antes disso na
área. Ela acontece há aproximadamente 60 anos e, se bem existam queixas sobre seu
enfraquecimento, ela ainda vigora e demanda um empenho significativo das penitentes, as
quais se dedicam em todas as noites do mês ao ritual.
Há de se considerar que a festa de Nossa Senhora da Boa Morte está presente em
vários estados do Nordeste, e em Cachoeira (no Recôncavo Baiano) tem grandes
proporções. Nesta localidade, a irmandade que dá vida à festa é também composta por
mulheres, mas com uma organização interna sensivelmente diferente daquela das
irmandades fundadas pela madrinha Dodô, existindo uma hierarquia de posições – seus
membros são todas iniciadas e praticantes do candomblé. Em Cachoeira, a irmandade é
considerada uma elite representante das lutas dos negros contra a escravidão no Brasil, e
seus membros são mulheres idosas que praticam em culto secreto – paralelamente aos
rituais públicos associados ao “catolicismo popular” – o candomblé (Marques, 2008).
Segundo este autor, a irmandade cumpriria a promessa que as ancestrais277 teriam feito à
Nossa Senhora – considerada a artífice da libertação de todos os escravos – de cultuá-la em
vida e morte pela graça oferecida (ibidem, p. 21).278 Chama particularmente a atenção à
ênfase dada aos aspectos étnicos, alimentados ainda por agências de turismo.
Diversamente, as irmandades fundadas por madrinha Dodô em Água Branca, Santa
Brígida e, através de Maria Bárbara, em Brejo dos Padres, não se prestam a manipulações

276
O registro etnográfico da festa foi feito em agosto de 2009.
277
Segundo Marques (ibidem), as ancestrais eram matriarcas de diferentes nações, organizadas em sacerdócio
e consideradas durante o período colonial como “mulheres do partido alto”, que cultuavam os próprios
antepassados femininos (ibidem, p. 22).
278
De acordo com Castro (2008), esta irmandade, que conta com pouco mais de duas dezenas de mulheres,
contou, para a realização da festa, com o apoio governamental em níveis municipal, estadual e federal para a
sua revitalização, inserindo-a nos programas do Plano de Turismo do Recôncavo, possibilitando de tal
maneira uma intensificação das visitas ao município por parte dos turistas, o que a tornou especialmente
renomada se comparada às outras festas que se desenvolvem em devoção a esta santa em municípios de
outros estados do Nordeste.
250

que visam enfatizar o viés étnico das práticas religiosas. Como observei anteriormente ao
abordar a modalidade de atuação do padrinho Pedro Batista e da madrinha Dodô, a
indistinção étnica dos seguidores e membros das irmandades foi um aspecto marcante das
estratégias adotadas por esses líderes, reunindo-os sob a categoria unificadora de romeiros.
Embora haja aspectos de distinção entre as irmandades que cultuam Nossa Senhora
da Boa Morte, outros assinalam certas semelhanças no significado dado a ritual, na forma
de realizá-lo e na restrição da composição do grupo. Como já foi dito, apenas mulheres
idosas e que preservam o pudor podem participar da irmandade em Brejo dos Padres e
Santa Brígida, despidas das “vaidades” e manifestando o necessário desprendimento dos
desejos materiais e carnais, tendo assim o corpo suficientemente limpo para trabalhar nos
rituais.
Os segredos do culto à Nossa Senhora da Boa Morte poderiam ter se perdido com a
morte de Maria Bárbara, herdeira espiritual de madrinha Dodô. Através de seu culto,
evoca-se e busca-se a presentificação dos mortos entre os vivos, restaurando-se a
comunicação. Se, por um lado, os vivos podem ajudar os mortos, estes últimos podem
oferecer seu apoio aos primeiros inaugurando, assim, uma relação de reciprocidade.
Em Brejo dos Padres esta festa se desenvolve durante as 31 noites de agosto, em
homenagem às primeiras integrantes da irmandade, na maioria já falecidas.279 Cada noite,
portanto, é reservada a uma específica mulher, cujos familiares se apresentam e oferecem
suco, pão e biscoitos às penitentes que desempenham o ritual, bem como a todos os que
são convidados pelos familiares.
Em torno das 21 horas, as chefes da irmandade já se encontram na igreja junto com
as outras penitentes que participarão do ritual. Diante do altar é colocada a imagem da
santa deitada sobre uma mesa coberta de flores. Aos seus pés, uma cruz e as velas sempre
acesas. O culto é carregado de aspectos penitenciais como madrinha Dodô havia instruído.
Exceto as mais idosas, a regra dita que a todas as penitentes é proibido sentar ou deitar e
que precisam ficar a noite inteira, até o amanhecer, rezando e cantando de pé. 280 As chefes
do grupo tiram as rezas, os cantos e as ladainhas acompanhadas do coro das outras
penitentes que lhes respondem. Reza-se o terço ajoelhando-se cem vezes. Levantam o terço
diante ao altar e, em tom alto e desafiador, pronunciam:
279
Há um quadro na Igreja de Santo Antônio com os nomes de todas as penitentes e os respectivos dias em
que receberão a homenagem. Também aparecem os nomes dos respectivos familiares responsáveis pela
noite.
280
Embora se exija tal postura, terminadas as rezas, todas se sentam e esperam o amanhecer em silêncio.
251

Nos campos de Josafá com o demônio encontrará, então dirá,


sai daqui Satanás que comigo tu não podes, nem comigo nem com a
família minha, que eu fiz a penitência de Nossa Senhora de agosto,
cem vezes me ajoelhei, cem vezes me aproximei, cem Ave-Marias rezei,
cem na véspera e cem no dia, valei-me a Virgem Maria, amém.

Apesar de cada noite ser dedicada a homenagear uma penitente falecida, os


presentes tomam o evento como ocasião para concentrar-se nos próprios familiares mortos,
pedindo à santa para acolhê-los. Comprometem-se com Nossa Senhora a pagar as
promessas e fazer penitência para auxiliar seus parentes falecidos. Reza-se ainda para que
a santa afaste os espíritos que continuam atormentando-os, bem como para que ofereça
uma “boa morte” para todos.
Embora a irmandade observe as obrigações que visam promover espaços de
agregação e união entre diversas famílias, o evento que homenageia a cada noite uma
penitente se torna um espaço particular da família que, nessa ocasião, se vale das
especialistas rituais para cultuar seus mortos.
Como mencionei acima, as famílias que se responsabilizam pelo zelo do próprio
parente que morreu convidam amigos e vizinhos para que estejam presentes à noite, e
oferecem geralmente pães, biscoitos e sucos para todos. É uma ocasião como outros
eventos rituais, em que há a possibilidade de “contar com” ou colocar à prova a lealdade, a
“consideração” da qual se goza. Nas noites que foram etnografadas, as diferenças em
número de pessoas eram evidentes e não faltaram comentários lamentando a exígua
presença dos convidados, ou aqueles que demonstravam o próprio orgulho por contar com
uma acentuada “consideração”. Ao amanhecer, os membros da família despedem-se dos
convidados e das penitentes com o habitual “Deus lhe pague”, agradecendo o
comparecimento, o silêncio observado e o respeito demonstrado.
As chefes da irmandade precisam estar presentes todas as noites para tirar as rezas,
embora não fiquem até o amanhecer. As outras penitentes não têm a obrigação de se
apresentar todas as noites, então, há rodízios para manter sempre um número apreciável de
pessoas no local. Dependendo da proximidade com a família daquela que é cultuada no
dia, decidem se ficam ou não até o amanhecer.
Como outras festas de devoção a um santo, o principal foco não é o santo em si,
mas o grupo ritual ou um único especialista ritual que a organiza e que se torna o dono da
festa. Neste caso o mês de agosto é chamado o mês “das mulheres da penitência”, que se
tornam protagonistas do evento concentrando na Igreja de Santo Antônio as famílias que
252

contam com membros da irmandade. É um tributo e um culto às falecidas da irmandade e,


portanto, à mesma irmandade. As obrigações das famílias e das demais pessoas envolvidas
não são com a santa, mas com as parentas mortas e, sobretudo, com as penitentes que,
embora com resultados diminutos nos outros eventos rituais que se desenvolvem na área
indígena, tentam concentrar o maior número possível de participantes.
Como na Quaresma, no final dos eventos rituais há a entrega da penitência em
Santa Brígida. Antes do falecimento de madrinha Dodô, realizava-se no dia 31 do mês de
agosto, mas como a líder faleceu no dia 28, em 1998, a partir desta data a entrega foi
antecipada.
De manhã encontram-se diante da Igreja de Santo Antônio e aguardam o ônibus
que vai levá-las para Santa Brígida. A viagem, de aproximadamente duas horas e meia para
percorrer uma distância de 80 km, realizou-se entre rezas e ladainhas. Em Santa Brígida já
estavam aguardando-as as penitentes da irmandade, formada pela madrinha Dodô com as
quais se uniram para realizar o roteiro de procissões e rezas.
Cada visita à Santa Brígida segue o mesmo itinerário. Ao chegarem à praça que fica
em frente da igreja, dirigem-se à imagem da madrinha Dodô que foi recentemente
instalada ali, cumprimentando-a e pedindo-lhe o amparo. Logo depois se vão para a casa
de Pedro Batista e da madrinha Dodô (cuja parede externa exibe um busto de gesso do
conselheiro), onde são recebidas pelas zeladoras da casa e por outras penitentes. No
primeiro quartinho da casa, com paredes repletas de retratos, 281 dá-se o reencontro
comovido das penitentes que, entre abraços e lembranças, deixam o lugar disponível para
as rezas. Diante das fotos dos líderes religiosos, da imagem de padre Cícero e da Santa
Cruz colocadas juntas, algumas enaltecem a madrinha e entregam-lhe o próprio serviço.

281
Entre os retratos pendurados nas paredes do quarto, além de santos e chefes políticos locais (que também
estão presentes na casa da madrinha Dodô em Juazeiro do Norte, como se verá mais adiante), aparece um
velho retrato do imperador D. Pedro II. De acordo com Riedl (1996), a associação entre o nome do imperador
e o padrinho, bem como a semelhança fisionômica – ambos com a barba comprida e grisalha – levou os
romeiros a ligar os personagens, remetendo-os a um mesmo tronco. Tanto em Santa Brígida quanto em Brejo
dos Padres, entre os mais velhos há certa propensão em alimentar um imaginário positivo em torno da época
imperial, em contraste com a proclamação da República, que sucedeu ao Império, e a separação entre Estado
e Igreja, vistas como essencialmente negativas. A visão da encarnação do poder divino na figura do monarca,
como representante de Deus na terra, era estimulada por beatos e beatas, como Nobre (2010) afirma em seu
estudo sobre as beatas de Juazeiro do Norte no final do século XIX, destacando ainda a mesma visão em
Antônio Conselheiro, o renomado líder do movimento religioso de Canudos, que pregava a volta do regime
monárquico (p. 66). Da mesma forma, Texeira Monteiro (1974), em seu estudo sobre o comportamento dos
membros da coletividade protagonista da Guerra de Contestado, ressaltou que se atribuía um “tempo melhor”
à monarquia, tempo esse da “lei de Deus” (p. 109). Passado mais de meio século, Pedro Batista, afirmam
seus devotos, enaltecia a época imperial como o período em que vigoraram os valores morais tradicionais
derrotados pela instauração da era republicana.
253

Maria das Virgens,282 já mencionada no Capítulo III, tomou a frente da reza e, enquanto
pronunciava palavras de louvor à madrinha, incorporou-a. Com o corpo trêmulo,
expressou conselhos e lembrou obrigações.
Outras mulheres manifestaram os sinais da possessão, que cessaram após o final da
incorporação de Maria das Virgens, voltando a si e tornando a cumprimentar as
companheiras, dirigindo-se então para a sala onde são oferecidas as refeições. “Chegaram
as caboclinhas!”, anunciaram com alegria. Compartindo a mesa e as conversas, as
penitentes formavam uma única irmandade em função de alguns eventos anuais que
reforçavam o próprio compromisso e o sentido de pertencimento a uma comunidade
romeira. Retomando o tom sagrado do evento, dirigiram-se à Igreja de São Pedro para
juntas louvarem Nossa Senhora da Boa morte. Última meta do habitual itinerário é o
cemitério. Diante dos túmulos do padrinho e da madrinha, ajoelhadas no chão, fizeram as
últimas rezas.
Entre os diversos momentos de communitas que estas irmandades compartilham, a
entrega da penitência em agosto é reservada ao espaço feminino. As duas líderes religiosas
(madrinha Dodô e Maria Bárbara), que agregaram as mulheres nos recíprocos lugares de
residência, romperam tempo e espaço para o protagonismo feminino. Apesar de o mistério
da madrinha Dodô não ter tido herdeiras (tendo falecido também Maria Bárbara), e
faltando agora uma figura carismática que consiga atrair e conduzir seguidoras, os cultos
por elas instituídos ainda conseguem a necessária coesão para que todo ano se repitam os
mesmos encontros, gestos, rezas e cantos e para que a memória de uma história
experiencial comum seja revivida emocionalmente a cada encontro.

282
Filha de romeiros originários de Água Branca, Maria das Virgens deslocou-se junto com a família para
Santa Brígida. Dona Dorfina, sua mãe, era uma renomada rezadora e muito próxima de Maria Bárbara.
Maria das Virgens também é rezadora e orgulha-se de ter acompanhado de forma muito íntima sua
madrinha. Embora Maria das Virgens tenha seu lugar de destaque, não parece ter seguidores, e muitos dos
entrevistados reduziram o mérito de suas potencialidades. Afirmam os índios e outros romeiros entrevistados
que, após a morte da madrinha, houve muitas mulheres – “moças velhas” – que quiseram tomar o lugar da
líder, mas ninguém até agora manifestou o imprescindível carisma.
254

Festa de N.S. da Boa Morte. (Brejo dos Padres, agosto 2009)


255

“Entrega da penitência”. (Santa Brígida, agosto 2010)


256

Algumas considerações

Os rituais penitenciais que geralmente são associados aos rituais de expiação


coletiva – sobretudo aqueles que se concentram na Semana Santa quando há uma
identificação ou uma comemoração da Paixão de Cristo, no caso em pauta, os múltiplos
rituais dos penitentes – encontram seu sentido na proximidade com o além, isto é, com os
mortos, especialmente com os próprios ancestrais, e com as entidades donas da esfera da
morte.
Tanto os membros do grupo penitente masculino quanto os do feminino cumprem a
própria missão numa posição liminar, enquanto aptos a transitar entre a vida e a morte. O
trabalho ritual se desenvolve sempre para os mortos, sejam eles familiares ou não, e em
particular para os falecidos penitentes que, segundo a própria concepção, continuam
“acompanhando” os vivos, aparecendo durante os rituais, as procissões e as romarias.
Poder-se-ia afirmar que se trata de “devoção às almas”, como se pode observar em
outros grupos de penitentes na região, mas não há uma especial preocupação com as almas
do purgatório, tema privilegiado das pregações capuchinhas que promulgavam os cuidados
para com elas. Há uma generalizada preocupação com os mortos em virtude da sua
presença entre os vivos, precisando-se interceder junto a eles, ajudá-los, caso necessitem,
acalmá-los, consolá-los, alimentá-los com oferendas, pagar suas antigas promessas. O culto
aos mortos procede em virtude da proximidade destes com as principais entidades
cultuadas pelos grupos, isto é, a Santa Cruz, o Divino Espírito Santo, São Francisco e, no
caso das mulheres penitentes, Nossa Senhora da Boa Morte, que se tornaram os símbolos
identitários destas irmandades. Portanto, os mortos intercedem junto aos penitentes através
de tais entidades.
Como foi mencionado, os espíritos dos mortos estão entre os vivos, podendo se
manifestar benignamente ou provocar doenças. Os penitentes controlam ritualmente a
dimensão da morte e restabelecem o contato entre eles e a coletividade. O temor que
incutem (sobretudo os homens) se deve à posição liminar e ambígua que ocupam, em
função de lidarem com essa esfera considerada altamente perigosa. O contato com ela os
torna também perigosos e poderosos aos olhos da coletividade, precisando manter-se
respeito para com eles e distância. O anonimato, o fato de se movimentarem na
obscuridade, os coros em voz alta e disfarçada, o sibilar imprevisto das lâminas cortantes
suscitam medo, emoções e imagens do além na população, que demonstra sentimentos
257

incertos em relação a eles: por um lado, exaltam a sua coragem e, por outro, os consideram
perigosos.
Como foi ressaltado nas narrativas de alguns especialistas que rebaixaram a atuação
dos penitentes, eles o fazem geralmente identificando-os com a Igreja Católica para
relacioná-los a elementos exógenos à tradição indígena. Sem dúvida, os elementos
manipulados pelos penitentes são fruto da ação propagadora da Igreja, mas a observação
em campo tornou tal identificação bastante débil. A atuação dos penitentes (tanto do grupo
masculino quanto feminino) demonstra haver uma evidente autonomia em face desta
instituição, sendo seus membros pouco receptivos às novas pregações, aos conselhos e às
doutrinas. Para o desenvolvimento de suas práticas rituais não precisam de sacerdotes e
não respondem a tais autoridades no que concerne à sua organização interna e às práticas
rituais.
Durante o período da Quaresma, padre Alberto Reani pode ser chamado para
“acompanhar” as saídas tanto do grupo feminino quanto do masculino sem ter, contudo,
qualquer papel nos rituais. As mulheres da penitência convidam-no para participar, mas
afirmam que “ele não sabe acompanhar a reza”, sublinhando assim a distância das próprias
práticas daquelas do padre e da Igreja em geral.283
A resposta dos penitentes ao esforço de clérigos ou evangélicos de extirpar a prática
da penitência se caracteriza por uma recusa não apenas dirigida às afirmações de tais
agentes, mas de todos os que se valem da Bíblia para reforçar tal argumentação. Assim,
tanto os padres católicos como os pastores protestantes e aqueles que fundamentam a

283
A generalizada desconfiança na região – neste caso, dos índios – em relação aos clérigos, embora ainda
viva e perceptível nos comentários que fluem nas fofocas é, todavia, atenuada pelas atitudes dos novos padres
que, sob os mais recentes ditames do Concílio Vaticano II, demonstram maior respeito pelas expressões
religiosas que anteriormente estavam no caldeirão das “superstições” a serem eliminadas. Em conversa com
padre Alberto, ele expressou sua perplexidade quanto ao tipo de catequese que teria marcado a atuação dos
missionários. Referindo-se às peculiaridades das práticas rituais penitentes entre os Pankararu, interrogava-se
sobre a possibilidade de os índios as terem acolhido apenas como “fachada” para acalmar os frades que as
quiseram impor. Após quase 15 anos de experiência no Nordeste, padre Alberto afirmou reconhecer nas
práticas rituais dos índios um “espiritualismo pankararu” negado por outros padres (como os de Tacaratu),
“que não queriam saber dos índios”. Acrescentou que por muitas décadas não houve presença alguma de
clérigos entre os Pankararu, evidenciando o abandono após a extinção do aldeamento. No livro de tomo da
igreja que contém os relatórios apenas a partir de 1942 até os primeiros anos da década de 50, destaca-se a
visão dos padres que se sucederam na paróquia, sobretudo a de padre Frederico Bezerra Maciel, que tinha
sob sua responsabilidade, além de Tacaratu, Petrolândia e Inajá (Pernambuco), bem como Santo Antônio da
Glória (Bahia). Ao descrever a “fisionomia do povo”, afirma: “Em vez da fé, encontra-se sentimentalismo,
fanatismo e superstições ridículas [...] Costumes inveterados: infidelidade conjugal, multiplicação de
bastardos, sedução de toda espécie, escândalos, indecoros nos trajes, danças, bebedeiras, jogos. Além disso, é
incrível a indiferença religiosa!” (1942, p. 1).
258

própria argumentação a partir da leitura do texto bíblico são recebidos com desconfiança e,
no caso dos evangélicos, negam-lhes a possibilidade de qualquer diálogo.
Seja nos oratórios domésticos, seja em ocasiões rituais, a Bíblia pode estar presente,
mas seu uso é apenas performático e não se realizam consultas a ela nem se fazem leituras
de seus textos. Apoiada em algum tipo de suporte e geralmente aberta, a Bíblia se torna um
dos símbolos que compõem o palco das performances rituais, privado de qualquer papel
exegético. As penitentes jamais fizeram referência ao texto para valorizar ou explicar suas
práticas e crenças e, quando indagadas sobre o assunto, mostram-se resistentes em
enfrentá-lo. Algumas afirmaram não ter necessidade de conhecer a Bíblia, a “verdade” não
estando nela contida. Como mencionamos anteriormente, Maria Severina – rezadora e
penitente – ao explicar a origem dos seus poderes de cura, afirmou que estes não teriam
sido “aprendidos”, mas “revelados”. Ela afirmou ainda não ter necessidade de “ler” as
rezas – sublinhando que assim costumam fazer os sacerdotes – pois os poderes que brotam
delas não se encontram nos textos.
259

Capítulo VIII. Circuitos rituais supraétnicos

Croqui IV. Circuito ritual

8.1 As romarias: memórias, trocas, experiências e conquista da visibilidade

Vários estudos analisaram as romarias nos seus variados aspectos, abrindo o leque
das motivações que impulsionam os peregrinos a deslocar-se para os centros de culto. Sem
dúvida, todos os autores contribuíram para a emergência da complexidade do fenômeno
social, analisando o contexto histórico e político que o possibilita, bem como a
heterogeneidade dos grupos de peregrinos que dele participam e as consequentes
construções e reiterações diversificadas dos espaços sagrados. Longe de se assistir a um
gradual empalidecer do fenômeno da romaria – por exemplo, em Juazeiro do Norte – o
tempo, visto como corrosivo, não fez mais do que fortalecer os múltiplos sentidos e
incentivos que continuam a alimentá-lo.
Não é nossa intenção abordar as romarias num sentido abrangente e os diversos
grupos e significados que estes lhes atribuem, mas apenas aproximar-nos do papel que
desempenha em nível experiencial para os romeiros pankararu.
260

Nas descrições etnográficas a seguir, a intenção é destacar as múltiplas dinâmicas


que a romaria permite. Além de vivenciar a communitas, com as emoções que tal
experiência aporta a cada individuo, a romaria colabora para que os atores sociais
manifestem seus valores morais. A participação na romaria é, por assim dizer, o ato
performático por excelência. Torna-se, então, uma asserção moral que encontra nela sua
maior demonstração pública. Através desta performance e da dramatização, comunica-se e
afirma-se a distinção dos “verdadeiros romeiros”, à qual se atribui grande importância na
construção da própria reputação e da alheia.
Mas a romaria para os oficiantes rituais pankararu torna-se também um meio de
alcançar visibilidade e fama num território bem mais vasto do que aquele delineado pelas
fronteiras étnicas. Como se verá, a participação dos índios nas romarias, por um lado, visa
expressar a adesão a uma comunidade maior determinada pela categoria identitária de
romeiros, e que eles afirmam não ser excludente em relação à identidade indígena,
evidenciando-se o desejo de inclusão em limites que desbordam as fronteiras étnicas. Por
outro lado, há a necessidade de afirmar a diferenciada identidade étnica em âmbitos
específicos de interação e trazendo para dentro dessas fronteiras não apenas valores
morais, mas também aliados que os apoiem e lhes confiram prestígio e legitimidade.

8.1.1 Finados em Juazeiro do Norte

A romaria de Finados em Juazeiro do Norte284 é um evento anual que os romeiros


pankararu esperam com ansiedade, economizando o ano inteiro para poderem estar
presentes especialmente nessa ocasião na “cidade da Mãe de Deus”. Embora durante o ano
outras romarias com o mesmo destino tenham a participação dos Pankararu, o dia de
finados concentra o maior número de participantes, sendo-lhe atribuído importância
extraordinária.

284
Os registros das romarias a Juazeiro do Norte foram realizados entre final de outubro e novembro de 2009
e de 2010.
261

Romaria de Finados. (Juazeiro do Norte, outubro-novembro 2010)


262

Além da irmandade de mulheres penitentes que dificilmente faltam à romaria, há


entre os romeiros famílias inteiras, avós que levam os próprios netos, turmas de rapazes e
mulheres e homens que escolhem enfrentar a viagem solitariamente.
O pagamento de promessas é a motivação principal explicitada pelos romeiros que
enfrentam a viagem, seguida por razões diversas como, por exemplo, conhecer a cidade tão
falada, acompanhar um parente ou vivenciar uma viagem com amigos. As peregrinações,
em geral, são relatadas como momentos de enorme alegria, durante as quais “ninguém liga
para o luxo e todo mundo é igual” (Amélia Julião), destacando-se as particulares emoções
liberadas tanto na experiência coletiva como na individual.

Quando a gente vai a Juazeiro, tem uma casa que chamam o salão dos
caboclos, aí a gente fica à vontade. Aí vai os pais de folguedo, as mães e
nós, da penitência. A gente vai junto com aquela irmandade toda! Todo
num coro só! Não tem um melhor que outro, tudo é igual! A gente pega
um troquinho e vai! (Ana Bomba)

Cada ano, no dia 29 de outubro, os romeiros pankararu se encontram em frente à


Igreja de Santo Antônio ao torno das 6 horas da manhã. Ali aguardam os ônibus que os
levarão para Juazeiro. Mas os preparativos para a viagem começam bem antes para os
romeiros mais engajados com os rituais que se desenvolverão na cidade e com aqueles que
se realizam durante a viagem, sendo estes já parte da romaria enquanto percurso sagrado.
No dia anterior, Dora – muitas vezes mencionada neste trabalho – havia matado e
depenado várias galinhas e preparado os sacos de feijão, arroz e abóbora. Às 3 da manhã
tinha se levantado para cozinhar para a turma que viajava com ela, colocando os sacos de
alimentos num canto da cocinha para levá-los à casa da madrinha Dodô, como habitual
doação anual. Assim, às 5h30, quando estávamos nos levantando, Dora já se encontrava
pronta, incentivando todos a se apressarem para a saída.
Os dias anteriores à partida, em outubro de 2010, foram marcados pelo clima do
segundo turno das eleições à Presidência da República, que se realizou no dia 31,
provocando boatos que davam conta de ações policiais que teriam impedido a passagem
dos ônibus e dos paus de arara em romaria. Muitos romeiros haviam decidido viajar logo
depois das eleições, reduzindo o tempo costumeiro da romaria, preferindo votar antes para
não terem que justificar a ausência. Dora, como muitos outros, afirmava que nada teria
feito com que desistisse da própria missão em Juazeiro, embora os comentários sobre os
bloqueios da polícia provocassem alarme e ansiedade. Havia quem insistisse na
263

importância do voto para que a candidata Dilma pudesse assumir a Presidência, mas tais
argumentações, que visavam segurar os romeiros, pareciam pouco válidas para convencer
quem, como Dora, sente ser a missão da romaria mais sagrada e significativa que qualquer
programa político.285
Apesar dos alarmes e da desistência de alguns romeiros, os cinco ônibus que
partiram de Brejo dos Padres estavam repletos, bem como aqueles que saíram das outras
aldeias, de Jatobá e Tacaratu. Os romeiros levam o necessário para a estadia, carregando
redes, esteiras, travesseiros e alimentos para os cinco dias da romaria 286e para doar à casa
da madrinha.
Embora 6 horas fosse a hora marcada para a saída, os ônibus não partiram antes das
8h30 e os comentários se concentravam nas lembranças do ano anterior, quando dois
ônibus se atrasaram por causa da dificuldade de sair das aldeias, dadas as condições
precárias tanto das estradas quanto dos próprios ônibus. Tais comentários provocaram
hilaridade e juntaram-se a outras anedotas sobre as romarias que, durante a viagem, foram
lembradas e contadas. Os mais velhos rememoravam as antigas romarias a pé, orgulhando-
se dos 15 dias que levavam na caminhada, entre paradas para comer e dormir na beira de
uma estrada, unindo-se a outros romeiros que iam encontrando pelo caminho,
estabelecendo-se entre eles um clima de irmandade, unidos com o único objetivo de
cumprir as ordens divinas do “padim Ciço”.
Há uma elevada valorização das antigas peregrinações que não se serviam dos mais
modernos meios de transporte, realizando-se a pé. A demonstração de maiores
“sacrifícios” durante a romaria lhes teria concedido graças “mais merecidas”. Embora nas
narrações dessas antigas romarias prevaleça o desejo de se destacarem os aspectos mais
ligados a experiências positivas da communitas, não faltaram relatos que informavam sobre
os perigos que podiam ser enfrentados, como os bandos de cangaceiros que percorriam os
mesmos caminhos. As histórias referiam-se tanto às próprias experiências quanto àquelas
de seus ascendentes, e são as que não podem cessar de ser contadas, porque fazem parte da

285
Comentários sobre as eleições continuaram durante toda a romaria, seguidos pelo entusiasmo contagioso
de alguns romeiros ao saberem dos resultados das eleições, infundindo aos momentos sagrados dos rituais
uma especial efervescência. Mesmo durante as rezas podia-se ouvir o ti-ti-ti que confirmava o resultado,
“Dilma ganhou!”, seguido de abraços e apertos de mãos. Fora esses momentos em que se compartilhava a
euforia, o clima da romaria não perdia o eixo sagrado e as temáticas dos romeiros nesse lugar, como se verá,
eram bem diferentes das eleições.
286
Alguns levam até recipientes com água para todo o percurso da romaria, por não conseguirem beber a
água de Juazeiro, que acham salgada.
264

memória de famílias e grupos. As narrativas intercalavam-se às rezas e aos benditos,


marcando as passagens por povoados e cidades e suscitando a curiosidade dos moradores
que se aproximavam dos ônibus para cumprimentar os romeiros.287
Enquanto isso, Dora distribuía fruta, bolos e queijos para todos. E se alguém
recusasse, não faltava quem comentasse “quer virar santo?”, provocando o riso de todos os
presentes.288 Ao chegar a hora do almoço, os ônibus pararam perto de um restaurante. Mas
os romeiros escolheram a beira da estrada para a refeição preparada por Dora na
madrugada.289 É interessante destacar que toda a argumentação, inclusive aquela sobre a
escolha do lugar para comer, transformava-se em símbolos de distinção dos “verdadeiros
romeiros”, como uma categoria que conjuga atitudes que denotam não somente o culto ao
mesmo padrinho, mas também a pertença a uma determinada classe social. Os
“verdadeiros” seriam os pobres e dispostos – mesmo na pobreza – a fazer “caridade”.
Assim, cada ato caridoso adquire especial valor. A atitude de Dora, por exemplo, é
particularmente valorizada, por ela demonstrar prazer em preparar e oferecer comida para
todos os romeiros que viajam no mesmo ônibus, e também para os rapazes que ela, seu
marido Cícero e sua cunhada Maria de Lurdes levavam para Juazeiro para realizar os
rituais com os praiás.
Há alguns anos a apresentação dos praiás na casa da madrinha Dodô e nos outros
pontos da romaria na cidade se alterna com os praiás do grupo doméstico do falecido
Antonio Binga. Todos os interlocutores afirmaram que anteriormente quem levava os
praiás para Juazeiro eram apenas os membros do grupo doméstico de Antonio Binga, os
rapazes sendo escolhidos no círculo de alianças desta família. Embora Dora pertença a este
grupo doméstico, os praiás que se apresentam em Juazeiro são da família do marido, mais
conhecida como Mutuca do que pelo sobrenome Nascimento.

287
Mais curiosidade foi despertada entre os moradores ao se chegar a Juazeiro. Os rapazes que estavam no
ônibus abaixaram-se para não serem vistos e começaram a entoar um toré com os maracás. Tal iniciativa foi
mal vista por alguns dos índios mais velhos, reclamando que o serviço devia ser mantido em segredo e
reservado aos específicos rituais nos lugares apropriados.
288
Entre os comentários sobre a vida cotidiana dos padrinhos e da madrinha Dodô, houve várias vezes
referências ao fato de que nunca os viram comer. A não necessidade de alimentos era um sinal da
procedência divina dos líderes religiosos. Daí a expressão “vai virar santo”, utilizada quando alguém se
recusa a comer.
289
Para a felicidade de todos, Dora havia preparado rubacão (o mesmo que baião de dois, prato feito com
feijão e arroz cozidos juntos, geralmente acompanhado de carnes), galinha capoeira e farofa pratos
tradicionais oferecidos durante as romarias. Preocupada com os detalhes de cada etapa, Dora prestava
atenção ao bem-estar de todos os índios que estavam junto com ela. Diversamente das outras penitentes que
se dispersam durante o curso da romaria, Dora consegue manter ao redor dela um grupo de romeiros,
seguindo o exemplo da Maria Bárbara, sua mestra.
265

Tal mudança se deve à impossibilidade atual do grupo doméstico Binga de


continuar realizando anualmente a romaria com todos os rapazes, faltando-lhe hoje os
principais oficiantes – o pajé Miguel Binga e a irmã Maria José, ambos doentes – para o
desenvolvimento dos rituais, e também porque Zé Binga não consegue todos os anos juntar
e levar o batalhão.290 O tempo-espaço da romaria que reservava, no passado, apenas à
família Binga a possibilidade de obter grande visibilidade neste contexto, tendo ela tecido e
alimentado durante décadas uma trama de relações sólidas com outras coletividades e
líderes carismáticos, abre-se hoje para outra família que, embora enfrentando resistências,
tenta se apropriar desse prestígio.
Ao etnografar duas romarias a Juazeiro do Norte seguindo grupos diferentes, pude
observar diversos níveis de engajamento e atuação, bem como de dispersão dos índios.
Mesmo que haja quem tente manter todos os romeiros pankararu unidos para uma
“apresentação” coesa nos itinerários da romaria, o propósito não consegue ter um resultado
satisfatório, ouvindo-se frequentemente reclamações pela evidente dispersão.291
O ponto de convergência de todos os romeiros pankararu, bem como dos romeiros
provenientes de Água Branca (incluindo-se índios das pontas de rama) e de Santa Brígida,
é a casa da madrinha Dodô. Nela e nas casas ao longo da mesma estrada292 é onde se
hospedam e ao final do dia se reúnem.293 Os mais velhos, que mal conseguem fazer o
itinerário da romaria, ficam ali o dia todo, aguardando os outros voltarem.

290
Certo descontentamento pela entrada de novos praiás foi expresso por diversos interlocutores, que
enfatizavam a sua falta de disciplina. Em realidade, as reclamações se estendiam e abrangiam suposições
sobre a falta de pulso dos atuais líderes para manter os Pankararu unidos na romaria.
291
Os mais velhos lembravam os tempos em que Maria Bárbara conseguia manter “todos unidos”, e a
capacidade da líder de fazer com que fossem respeitadas as regras de vestimentas e comportamentos.
Mulheres que à época de Maria Bárbara eram pouco mais que crianças relataram que, ao participar, não havia
mulher com calça, “só de saia bem comprida e toda de branco”. A participação de outros especialistas, como
o falecido Antonio Binga, seus filhos (o pajé Miguel, Genésio, Zé, e Maria José) e membros da irmandade de
penitentes, além de formarem um séquito numeroso, agiam como catalisadores da atenção e promoviam a
coesão durante toda a romaria. A irmandade de mulheres penitentes atualmente não se apresenta compacta,
cada uma seguindo um itinerário diferente. A mesma chefe da penitência, Amélia Julião, escolheu cumprir
com suas obrigações rituais em horários diversos e segundo um roteiro diferente de todas as outras, visitando
sozinha os lugares sagrados.
292
A casa da madrinha Dodô encontra-se na ladeira que leva à colina do Horto, onde ergueram a imponente
estátua-monumento de Padre Cícero. A ladeira em que são representadas as estações da Via Crucis é
percorrida por todos os romeiros, sendo uma etapa fundamental da romaria. A casa da madrinha Dodô,
portanto, goza de grande visibilidade, sendo visitada tanto pelos romeiros que já a conhecem quanto pelos
curiosos que por ali passam e são convidados a entrar.
293
Os moradores alugam os pequenos quartos aos romeiros, cobrando para a estadia completa em torno de R$
15. Embora não seja mais utilizado, a madrinha havia construído um rancho destinado a hospedar os
“caboclos do Brejo” em romaria, como Pedro Batista fez em Santa Brígida, reservando tal espaço para as
visitas dos índios.
266

As etapas seguem datas e percursos específicos. No dia 30, o dia seguinte à


chegada, a primeira etapa é a visita à colina do Horto, chegando-se até o Santo Sepulcro.
Embora as outras visitas da romaria sejam consideradas importantes, a esta se atribuem
maiores significados, estando esses lugares carregados de elementos especialmente
sagrados. Subindo a ladeira que leva ao Horto nas primeiras horas da manhã, evitando
assim as horas de sol mais forte, chega-se à estatua imponente do padrinho. Ali
aguardamos a chegada dos praiás, para juntos nos dirigirmos ao Santo Sepulcro.294
Diante dos olhos dos observadores que, surpreendidos com a presença dos índios,
faziam comentários sobre eles – alguns mais desconfiados, outros mais interessados em
segui-los – os praiás e os índios percorreram o caminho até o Santo Sepulcro, fazendo as
paradas nos diversos pontos onde se encontram formações rochosas imponentes e
pequenas capelas. Ali realizaram os próprios rituais, afirmando que nesses espaços a
presença do padrinho era mais próxima. Buscam para isso lugares mais afastados ou
momentos em que há poucos romeiros, enquanto os outros índios impedem que alguém se
aproxime. O ritual que ali desenvolvem, segundo os vários interlocutores, renovaria
anualmente o pedido ao padrinho de “proteção da aldeia”.
Nos dias que se seguiram, os praiás se apresentaram imprevistamente nas diversas
igrejas de Juazeiro, onde se concentra uma grande quantidade de romeiros. Eles suscitam
estranhamento entre os presentes, sobretudo entre os sacerdotes que ali realizam as
liturgias. Tomam o lugar de repente, apresentam a sua performance ritual e logo saem em
busca de algum lugar escondido que lhes permita tirar as máscaras e se misturar aos muitos
romeiros, guardando nas mochilas as marcas distintivas de sua identidade étnica. Nos
espaços que repentinamente são apropriados, é possível perceber que os índios afirmam a
presença que historicamente lhes foi negada, sob os olhos curiosos, medrosos ou
simplesmente desconfiados dos romeiros e dos clérigos, e alcançam alta visibilidade,
impondo o reconhecimento de um saber marginalizado que tem sua essência e vigência.
Assim, os romeiros pankararu afirmam que ser pankararu inclui ser também romeiro,
aspecto constituinte da própria identidade étnica.

294
A espera foi demorada, tanto que Dora, como todos os outros que aguardavam, começou a se preocupar,
pensando que algo havia acontecido, pois afirmaram que os praiás deveriam ser os primeiros a chegar ao
Santo Sepulcro, precisando desempenhar os rituais com o menor número possível de observadores. No
entanto, nessa ocasião, os praiás chegaram tarde, permitindo aos muitos romeiros assistirem à passagem e
aos rituais.
267

Entre aparecimentos e desaparecimentos, os índios percorrem todo o itinerário


prefixado, voltando, enfim, para a casa da madrinha Dodô.
O itinerário e as datas das visitas a cada um dos locus foram estabelecidos pela
madrinha Dodô ainda em vida. Era ela quem orientava os índios e muitos outros romeiros.
Através de seu empenho nas atividades caritativas em Juazeiro e pela proximidade com
padre Cícero quando era ainda muito jovem, a madrinha recebia apoio de alguns padres
que, diversamente da maioria dos clérigos que seguiam as atuações romanizantes,
aproximavam-se dos romeiros, das beatas e dos beatos que, na maioria das vezes,
praticavam cultos distantes da ortodoxia eclesiástica. Os índios mais velhos lembram
sobretudo de padre Murilo de Sá Barreto,295 e nos comentários sobre ele demonstram a
elevada estima que por ele sentiam em função do incentivo que lhes foi oferecido por sua
luta.
Lá no Ceará, nós fomos assistir a uma missa que o padre foi nos procurar.
Aí, quando nós chegava lá no Juazeiro, madrinha Dodô mandava a gente
assistir à missa, aí a gente plantava os praiá e saía para a matriz. Quando
chegava lá, o padre já estava celebrando a missa. O padre gostava muito
de nós, então mandava chamar e, quando já estava acabando a missa, ele
falava: “Olhe, pessoal, se vocês não sabem quem era o dono do Brasil,
fiquem sabendo que era o índio. Quem descobriu o Brasil?”. Outro
respondia: Cabral. E ele: “Não! Foi o índio, vocês batam no peito porque
quem descobriu o Brasil foi nós! De voz grossa! Falem alto mesmo! É
nós! Vocês mesmo!” (Zé Binga).

Certamente pouco sentido têm essas figuras para os índios mais jovens que hoje
cumprem as romarias, mas os mais velhos continuam contando os efeitos benéficos das
antigas acolhidas que lhes reservavam.

295
Murilo de Sá Barreto atuou desde fins da década de 1950 na paróquia de Nossa Senhora das Dores, um
dos locais de maior afluência de romeiros em Juazeiro. Trabalhou para o acolhimento dos romeiros, diferente
da maioria dos clérigos da sua própria Diocese, que era contrária a essa atividade e considerava a atitude do
padre mais um estímulo ao fanatismo (Paz, 2005). Os índios reconhecem-lhe o incentivo para que seguissem
com as próprias tradições; junto com a madrinha Dodô e os padrinhos tornou-se mais uma figura a quem se
podia recorrer em caso de necessidade. Os poucos clérigos que davam apoio aos índios na primeira metade
do século XX ficaram na memória dos mais velhos. As mudanças ocorridas dentro da Igreja a partir do
Concílio Vaticano II e as perspectiva atuais de possibilidade de santificação do padre Cícero, através da
posição favorável do bispo de Crato – Dom Fernando Panico – determinaram também mudanças na pastoral,
que hoje se mobiliza para uma melhor acolhida aos romeiros (Paz, 2005). Pode-se deduzir que, passado o
período de romanização que previa uma intensa atuação repressiva das peregrinações vinculadas às práticas
que fugiam da ortodoxia, a Igreja torne a estimulá-las para viabilizar a concentração dos fiéis, que vivem o
seu dia a dia em localidades que muitas vezes ainda não contam com a presença de membros desta
instituição. Provavelmente no passado, os missionários e os outros clérigos que participavam das Santas
Missões, tenham incentivado essas práticas com as mesmas intenções, isto é, concentrar e controlar uma
população que vivia dispersa em lugares de difícil acesso.
268

Embora os esforços da Igreja em canalizar e orientar os romeiros na direção dos


rituais mais ortodoxos do catolicismo, os diversos grupos demonstram ter margens amplas
de autonomia. No caso dos romeiros pankararu, tal autonomia é sensivelmente acentuada,
dada a total ausência de membros da instituição eclesiástica para conduzir suas atuações
durante a romaria. Mesmo na casa da madrinha Dodô, onde um sacerdote é chamado para
abençoar a casa, os índios mostram-se indiferentes a tal presença. Respeitam quando o
espaço – naquele momento ocupado pelo clérigo – volta a ser liberado para retomá-lo e
desenvolver seus rituais.
Os gestos repetidos diante dos inúmeros símbolos, as carícias em cada objeto ou
símbolo que evoque o padrinho restabelecem a cada ano a intimidade desejada e reiteram a
necessidade da sua proteção. Sem dúvida, a experiência de cada um na romaria –
emocionalmente tão intensa – é um aspecto importante que, como muitos afirmaram, lhes
permite voltar à aldeia “em paz”.
Nas conversas ouvidas entre os Pankararu e conhecidos romeiros que ali se
encontraram, observei certa propensão a contar as próprias desgraças, dando ênfase ao
sofrimento e ao sacrifício necessário para poder participar da romaria. Numa dessas
conversas, a mãe de Dora, depois ter ouvido o lamento comovido de uma mulher, com tom
de quem queria consolar, exclamou: “É assim mesmo, romeiro tem que sofrer!”.
Logo depois de a mulher ter se afastado, perguntei a Dora, que também tinha
ouvido, se ela concordava com as palavras da mãe. “É nada!”, respondeu rindo. “Romeiro
tem que gostar daquilo que faz”, enfatizando ainda todos os aspectos prazerosos da
romaria. Destacava na sua argumentação o potencial da experiência individual na romaria,
sobretudo de quem, como ela, a realiza todo ano e, quando possível, mais de uma vez por
ano. Diversamente das elaboradas retóricas sobre o sofrimento da missão, Dora refletia
sobre os prazeres dessa experiência tão esperada e preparada durante o ano e à qual, dizia,
nunca renunciaria. Se, por um lado, Dora se afasta da generalizada retórica do sofrimento,
por outro, ela acentua o valor do prazer da “caridade” que ela cumpre todo ano. A
possibilidade de enunciar um número elevado de participações nas romarias torna-se um
capital de prestígio que poucos alcançaram, a não ser as mais velhas penitentes, que nunca
faltaram.
Ao lado da experiência percebida como estritamente individual, outros aspectos da
romaria desempenham, em nossa opinião, o papel do verdadeiro aguilhão para os índios e,
sobretudo, para aqueles que ali realizam específicos rituais.
269

Se durante a romaria os índios podem passar despercebidos, com o evidente desejo


de ocultar a própria identidade amalgamando-se aos outros romeiros, ocultando os sinais
diacríticos de sua identidade étnica, há momentos em que tais elementos precisam ser
apresentados com mais intensidade. A casa da madrinha Dodô, além de ser o lugar de
convergência para descansar e viver a comensalidade adequada ao espírito da
communitas,296 é o fulcro para o desenvolvimento de rituais de cura. A partir das primeiras
horas da tarde, diversos especialistas rituais ali se concentram e apresentam as próprias
performances. É então que os índios se tornam protagonistas, ao alcançarem uma posição
de destaque em relação a todos os especialistas rituais que ali se concentram. Na segunda
sala, logo na entrada da casa, estão permanentemente dispostas cadeiras encostadas às
paredes, diante de um altar repleto de símbolos que, no curso dos anos, os romeiros têm
oferecido à madrinha e às suas colaboradoras. Destacam-se a imagem de padre Cícero,
uma de São Francisco, bem como uma recentemente colocada da madrinha Dodô. As
paredes da sala são quase totalmente cobertas de retratos de santos, padrinhos, padres e
freis, e também de figuras do cenário político de Juazeiro.
A sala fica aberta o dia inteiro até a noite e todo passante que deseje entrar e
participar dos rituais é bem-vindo. As zeladoras da casa – dona Alzira e Maria Isabel297 –
os recebem e os convidam a visitar o quartinho da madrinha Dodô e, se os desejarem, a
permanecer para as sessões dos rituais que acontecem durante o dia. Para a ocasião, são
convidados também moradores de Juazeiro portadores de algumas doenças, que podem
aproveitar a presença desses numerosos especialistas rituais de diversos estados do
Nordeste. À tarde, quando todos já cumpriram as habituais visitas aos pontos principais da
cidade, começam a concentrar-se na casa tanto os especialistas rituais como as pessoas que
querem assistir ou se submeter à cura.
No final da tarde do dia 31, a pequena sala havia se enchido a tal ponto que o ar
começou a faltar, não havendo janelas que ajudassem a fazê-lo circular. Dona Maria Isabel,
depois de ter oferecido sua reza, havia avisado que os Pankararu iam aparecer a qualquer
momento. Sob a orientação de Cícero e Maria de Lurdes, os praiás começaram o ritual.

296
Nos momentos em que todos se reúnem, narram-se diversos fatos ocorridos durante antigas romarias, bem
como se pergunta sobre o bem-estar dos romeiros que não mais aparecem em Juazeiro por estarem por
demais velhos para enfrentar a viagem. Repetem-se as histórias sobre os padrinhos e a madrinha e se contam
as graças recebidas. Os alimentos trazidos pelos mesmos romeiros são preparados por todos que se
disponibilizam a ajudar; se faltar qualquer coisa, coleta-se o dinheiro entre todos.
297
Colaboradoras próximas da madrinha Dodô, dona Alzira e Maria Isabel são também rezadoras e
oferecem o próprio serviço ritual a quem os pede.
270

Várias pessoas entraram no círculo que haviam formado para que pudessem suspender os
espíritos que as atormentavam. Algumas foram encorajadas pelos próprios parentes, como
uma mulher de aproximadamente 50 anos que estava sentada manifestando evidentes
sinais de possessão. Em função da rigidez que dominava seu corpo, mal conseguia ficar de
pé e os filhos a ajudaram a entrar para o centro do ritual. Este teve momentos de forte
intensidade e longa duração. Utilizaram-se todos os elementos necessários para suspender
o espírito que possuía a mulher, enquanto o público que assistia – impressionado com a
persistência deste espírito – gritava, auxiliando os especialistas para que a mulher fosse
finalmente liberada.
O conjunto de elementos ativados durante o ritual, que poderíamos definir como
“corêutico-musical” (De Martino, 1961),298 complementado com o uso do cachimbo para
encruzar o paciente, apresenta evidentes dessemelhanças com os elementos rituais
utilizados por outros especialistas que ali realizam suas performances, baseadas
principalmente em rezas e benditos. Os meios terapêuticos que se servem também de um
contato físico especialmente intenso provocaram no público certa emotividade que resultou
em um forte envolvimento. Após os rituais de cura, começaram a ser entoados os toré e
todos os presentes participaram da dança, que se prolongou até altas horas da noite.
A visibilidade alcançada através dos rituais de cura na casa da madrinha Dodô,
diante de um público oriundo de diferentes lugares do Nordeste, promove a divulgação das
habilidades desses especialistas rituais e impulsiona posteriormente a procura por eles em
seus locais de residência. Proporciona, portanto, uma fama particularmente ampla no que
diz respeito a espaço e incentiva os romeiros a deslocarem-se para se submeterem às curas.

298
A definição “corêutico-musical” empregada por De Martino (1961) na análise do fenômeno do tarantismo
no sul da Itália, especificamente em Salento, na região de Puglia, é aqui utilizada para sintetizar a ordem
ritual que se serve da música, da dança e do canto como instrumentos para o exorcismo. Não é nossa intenção
comparar as práticas rituais do fenômeno social vinculado ao tarantismo com os aqui descritos, marcados por
contextos sociais e determinantes históricas diferentes. Apenas estamos ressaltando os meios terapêuticos que
apresentam dessemelhanças com outras práticas rituais ali performatizadas.
271

Casa da madrinha Dodô. (Juazeiro do Norte, outubro-novembro 2010)


272

Na mesma estrada, aproximadamente a 50 metros da casa da madrinha, encontra-se


a casa do falecido Joaquim Pedro, que era o mestre da dança de São Gonçalo. Ali os
romeiros de Santa Brígida e, sobretudo, “o povo de São Gonçalo” desenvolvem os
próprios rituais para o pagamento de promessas, apresentando-se também nos lugares de
mais destaque da romaria.299
Assim, Juazeiro do Norte, além de ser o epicentro de irradiação de múltiplos
símbolos – apropriados diversificadamente pelos romeiros – torna-se também o espaço de
convergência de vários especialistas rituais que, a partir dali, constroem suas próprias redes
de contatos.
Se a preparação para a viagem, a própria viagem e a estadia em Juazeiro são
momentos importantes da romaria, parece-me sobremodo relevante a importância que esta
experiência tem no universo de vida cotidiana. Há de se considerar que a fama alcançada
nos lugares onde prestaram o próprio serviço e as frequentes visitas que recebem em suas
residências alimentam o prestígio desses especialistas, sobretudo onde eles vivem, onde os
valores morais são transmudados cotidianamente.
Terminada a romaria no dia 2 de novembro, os índios voltam para as aldeias.
Levam com eles tudo o que pode testemunhar a própria participação na romaria: imagens e
quadros de todos os tamanhos representando santos ou o padrinho, terços e rosários,
“rapadura tradicional de Juazeiro”, panelas, baldes e todo objeto que o comércio da cidade
disponibiliza para os romeiros. Esses objetos-símbolos dispostos em casa ou oferecidos aos
parentes e amigos estendem o tempo da romaria, sendo muitas vezes mostrados para relatar
a última experiência vivida ou para contar em qual das inúmeras participações eles foram
adquiridos. Tornam-se, assim, objetos que possibilitam reativar a memória e contar as
próprias experiências. Como “símbolos concretos” (Barth, 1975), transformam-se em
representações de emoções e conferem realidade às lembranças e aos sentimentos.
Como destaca Barth (ibidem, p. 230), a falta de uma tradição letrada torna
especialmente importantes os “símbolos concretos”, tendo eles o poder de reter mensagens
duráveis no tempo.

299
O grupo de dança de São Gonzalo encabeçado por alguns membros da família Lucas, são também muito
conhecidos na região e são frequentemente chamados para desempenhar seus rituais de cura. As mulheres
penitentes Pankararú, após ter cumprido com suas obrigações saem em procissão com eles acompanhando as
rezas e benditos. Ambos os grupos trabalham especificamente com o pagamento de promessas de pessoas
defuntas e se encontram em várias ocasiões para a realização dos rituais, como se verá mais adiante.
273

8.1.2 A festa de São/padrinho Pedro: a romaria a Santa Brígida

A romaria de finados em Juazeiro do Norte é certamente a mais importante para os


Pankararu. No entanto, para muitos desses romeiros que acreditam na reencarnação do
padre em Pedro Batista, Santa Brígida é outro centro sagrado para onde se deslocam em
romaria. Além do evento ritual anteriormente descrito dedicado à entrega da penitência
por ocasião da festa de Nossa Senhora da Boa Morte e no dia correspondente ao do
falecimento de Pedro Batista (11 de novembro), a romaria que os índios consideram
imperdível é a festa de São Pedro, que se realiza no dia 29 de junho. Nessa ocasião, os
Pankararu permanecem dois dias no pequeno município, hospedados no “rancho dos
caboclos” ou em casa de romeiros ali instalados, recebendo uma calorosa acolhida.
Participam desta festa os distintos grupos rituais oriundos de outros municípios da
Bahia, de Pernambuco e Alagoas, que apresentam as próprias performances no decurso de
dois dias: as penitentes, os praiás, os grupos de São Gonçalo, os Bacarmateiros, os
Guerreiros e a irmandade de homens penitentes do lugar, que somente à noite homenageia
o padrinho. Fora esses grupos, romeiros dos diversos estados aparecem para pagar as
próprias promessas. Entre eles, os índios de Alagoas –Karuazu, Katokinn, Kalankó,
Koiupanká – que, como já se destacou, são as pontas de rama Pankararu, participam da
festa.300
A prefeitura organiza um calendário de eventos musicais a partir, geralmente, do
dia 27 de junho, uma semana antes da festa já atraindo numerosas pessoas para assistirem
às folias e às bandas de forró. O pequeno município de Santa Brígida, para a ocasião, é
dividido em duas partes: uma área é destinada a acolher os romeiros para que realizem
seus rituais e cerimônias religiosas; a outra parte é estritamente reservada à diversão, onde
acontecem os shows, lançam-se os foguetes e são dispostos os bancos da feira dos
vendedores ambulantes e dos comerciantes locais. A divisão territorial se efetua com a
intenção de oferecer aos respectivos eventos um espaço próprio, sem que um interfira no
outro, embora os romeiros se lamentem da agitação e do barulho dos festejos mundanos. A
divisão também existia na área sob controle de Pedro Batista antes de seu falecimento, que
avisava aos próprios romeiros para não ultrapassarem a linha divisória, pois além dela
poderiam ocorrer problemas devido às inimizades existentes com os baianos.

300
Durante a etnografia da festa, os índios de Alagoas não apresentaram os sinais diacríticos de sua
identidade étnica, mas se uniram aos Pankararu no toré. Para uma descrição etnográfica da participação
destes grupos na festa, ver Amorim (2010).
274

A praça onde se situa a Igreja de São Pedro é a mesma onde está a estátua da
madrinha Dodô, uma grande estátua do beato Pedro Batista e a casa dos líderes religiosos,
concentrando assim todos os símbolos cultuados e demarcando as fronteiras com o resto do
município, que nos dias da romaria dedica-se aos festejos não religiosos.
Como Juazeiro, em Santa Brígida os romeiros visitam vários lugares, seguindo um
determinado itinerário: o pequeno museu instalado nos fundos da casa de Pedro Batista
onde são expostos fotos e objetos que o retratam; os pequenos quartos com a cama e as
indumentárias do padrinho e da madrinha Dodô; as igrejas do município; o cemitério onde
estão os túmulos da duas figuras cultuadas; os cruzeiros nas serras que circundam o
povoado.
Os Pankararu, que em número reduzido em relação à romaria a Juazeiro se
deslocam para Santa Brígida, são especificamente os membros da irmandade de mulheres
penitentes, alguns homens penitentes e os praiás do grupo doméstico fundado por Antonio
Binga. Pelas informações coletadas em campo com diversos membros do tronco Binga, há
quase unanimidade em afirmar que até décadas atrás participavam os praiás de diversos
grupos domésticos do mesmo tronco, incluindo-se aqueles cujo dono era João Binga, o
cacique falecido. Diversamente da romaria em Juazeiro, em que outro grupo doméstico
está abrindo caminho para se tornar protagonista dos rituais que envolvem os praiás, em
Santa Brígida até agora somente os Binga mantêm o domínio deste espaço ritual.301
O círculo de relações nesta romaria apresenta-se bem mais restrito, devido aos
fortes vínculos que se criaram entre os romeiros durante a presença do conselheiro e da
beata, dando vida a ligações de amizade e de compadrio. Embora atualmente não haja mais
continuidade na construção de relações de parentesco e de parentesco espiritual em Santa
Brígida, até poucas décadas atrás elas eram frequentes, incentivadas especialmente pelos
líderes religiosos. O incremento de tais laços facilitava a colaboração de membros de
coletividades distantes nos empreendimentos realizados em Santa Brígida e dirigidos por
Pedro Batista, bem como na mútua ajuda nos períodos de coleta quando se formavam os já
referidos mutirões, temática lembrada com evidente nostalgia pelos romeiros.
301
Em junho de 2010, os especialistas rituais do grupo doméstico Binga que guiavam os rituais dos praiás
eram os mesmos que, como se verá, incentivam a constante renovação de visitas aos grupos de São Gonçalo
e de Bandeira. Além de Zé Binga e do sobrinho Zé Branco, havia Dona Dora Lina Barros que, como já
mencionamos, era coadjuvante nos trabalhos rituais do mesmo grupo doméstico junto com Maria José e
Quitéria. Havia também Fausto Monteiro como principal puxador de toantes. A falta de Maria José e
Quitéria em Santa Brígida, naquela ocasião, devia-se às condições precárias de saúde de ambas. Os índios
relataram a importância da presença delas nas romarias como principais figuras de referência junto ao pajé
Miguel Binga.
275

Hoje em dia, afirmam os índios, esses laços ainda são mantidos, assim como a
relação com Santa Brígida em virtude do culto ao padrinho e à madrinha, e eles acreditam
que as obrigações rituais são necessárias para a desejada proteção destas entidades.
Preocupados com o progressivo enfraquecimento da participação, os romeiros
pankararu continuam incentivando os mais jovens a se dedicarem de forma mais profunda
aos rituais que ali se realizam. Fazem isto levando em romaria os rapazes que
protagonizam os praiás, convencendo-os de que tal atuação faz parte das obrigações que
lhes competem. De fato, certa resistência dos rapazes deve existir dadas as constantes
reclamações dos mais velhos sobre os comportamentos indisciplinados que alguns
apresentam. O respeito à autoridade dos zeladores de praiás permite, no entanto, que haja
quase sempre a presença dos rapazes.
Como em Juazeiro, os grupos rituais que realizam as suas performances
alternadamente, o fazem de forma autônoma, tendo a própria organização e especialização
ritual, bem como os respectivos símbolos que os distinguem.
Os clérigos que organizam as liturgias 302 concentram as suas energias em celebrar a
missa, narrando a vida do apóstolo, elogiando seus postulados e glorificando a fundação da
Igreja em Roma pelo santo, e convidam os devotos a respeitarem sua hierarquia. Os
oficiantes da Igreja Católica tentavam infundir ao símbolo mais venerado nessa ocasião um
significado unificador. Mas para os romeiros ali presentes, o santo diante do qual
manifestavam e renovavam o próprio culto não era o primeiro papa da Igreja, mas sim o
padrinho Pedro Batista, a quem a Igreja Católica dirigiu críticas, dificultando a sua atuação
e jamais reconhecendo a sua santidade.
Enquanto se desenvolvia a missa, como parte do roteiro da festa, a maioria dos
romeiros se encontrava na casa do padrinho e já havia dado início aos rituais. Poucos
circulavam na praça onde acontecia a missa, aguardando a saída dos praiás para
homenagear o padrinho em frente à sua estatua, para depois terminarem o itinerário com o
habitual toré na mesma praça. Na realidade, os toré acabaram somente altas horas da noite,
pois continuaram a dançar no interior da casa, deixando que todos os romeiros que para ali
tinham ido participassem.

302
A festa teve a participação do bispo de Paulo Afonso, recentemente nomeado, de padre Guido Zendron,
que proferiu o seu sermão demonstrando principalmente a sua preocupação em relação às poucas vocações à
falta de contribuições dos fiéis para a manutenção do seminário. Terminou incentivando os católicos ali
presentes a participarem da rifa e assim poderem dar a sua contribuição, o que estimulou comentários sobre a
cobrança de dinheiro dos clérigos.
276

Entretanto, o show de forró havia começado e os mais jovens, mesmo recebendo


ordens de permanecer na casa, começaram a dirigir-se para o outro lado do cercado. As
penitentes enfurecidas incitavam os pais dos jovens a obrigá-los a ficar na casa respeitando
os rituais, mas poucos conseguiram freá-los. Os mais permissivos tentavam acalmar as
mulheres, que continuavam reclamando, persuadindo-as de que os jovens iam voltar cedo e
que haviam prometido não beber, acrescentando que mereciam um pouco de diversão. Os
comentários demonstravam a preocupação porque no dia seguinte, dia 29, os romeiros
levantam-se muito cedo para ir ao cemitério, onde também os praiás têm a obrigação de
aparecer e homenagear o padrinho diante do túmulo. Como já se destacou, o resguardo
(sobretudo da bebida e das relações sexuais) não deve ser quebrado, do contrário o ritual
pode gerar efeitos negativos e suscitar a ira das entidades.
A participação nesse movimento encabeçado pelos líderes religiosos e as repetidas
romarias deram vida a relações sociais que, como se pode observar, vinculam uma parcela
de índios pankararu com outras coletividades que atualmente não se consideram
etnicamente diferenciadas. No entanto, não se pode afirmar que seja um círculo de relações
e de rituais separado daquele da emergência étnica. Com efeito, como mencionei, Fausto
Monteiro da Luz, que se apresenta como puxador de toantes em festas e romarias, mantém
forte relação com as pontas de rama, sendo ele quem orienta e ensina os rituais da tradição
indígena a tais coletividades. Os encontros em Santa Brígida e em Juazeiro do Norte entre
os Pankararu e as pontas de rama mostram que o circuito ritual que estamos mapeando
está vinculado àquele da emergência étnica.
Nessas ocasiões, no entanto, as “apresentações” dos sinais diacríticos não têm o
objetivo político de marcar a identidade diferenciada. Trata-se de rituais em homenagem às
próprias entidades, bem como de rituais de cura que se desenvolvem durante a noite.
Romeiros de diversas famílias pankararu participam dessas romarias, mas há uma
peculiar e forte relação entre o segmento do tronco Binga (o grupo doméstico fundado por
Antonio) e o grupo de dança São Gonçalo, promovido pela família Lucas, que atua tanto
em Juazeiro do Norte quanto em Santa Brígida. Estas famílias extensas estabeleceram
trocas de visitas em datas fixas, incrementando o já denso calendário ritual.
277

Festa de São Pedro. (Santa Brígida, junho 2010)


278

8.2 As trocas de visitas: alimentando o prestígio familiar

As romarias foram e ainda são impulsionadoras por encontros que a cada ano ou
várias vezes durante o ano se renovam, possibilitando a consolidação de relações entre
grupos que, além de cultuarem os mesmo símbolos, compartilham valores que ali são
performatizados. No caso aqui focalizado, a rede de relações tecidas pelos Pankararu a
partir desses encontros, bem como a participação no movimento liderado por Pedro Batista
e madrinha Dodô deram vida a um circuito ritual de cura que anualmente se consolida e se
renova através de trocas de visitas.
Se as romarias ocasionam um deslocamento no espaço e no tempo viabilizando a
experiência da communitas junto com outros romeiros, eliminando fronteiras e status e
permitindo aos atores sociais se perceberem como parte de um todo mais amplo e
abrangente, as trocas de visitas que delas se originam provocam um movimento inverso
que tenta trazer para o dia a dia uma parte desse todo mais envolvente. A conquista de
aliados situados fora do mundo cotidiano e as festas organizadas pelos romeiros nos
lugares de residência dão-lhes também alta visibilidade e prestígio, especialmente quando a
contribuição dos que são de fora torna a festa bem-sucedida.

8.2.1 A festa de São Gonçalo

Há muitos anos os Pankararu participam da festa de São Gonçalo303 no povoado


denominado Km 42, na área rural do município de Santa Brígida, que se realiza nos dias 9
e 10 de janeiro. Na realidade, a novena dedicada ao santo começa no primeiro dia desse
mês e os festejos culminam no dia 10. Como já mencionamos, a família Lucas é a
principal promotora dos festejos e o dono da festa, Zé Dôo, é um dos filhos de uma
curadora de renomada fama na região, a quem todos chamam de Pastora. A família é
originária de Alagoas e se instalou em Santa Brígida na década de 1950, seguindo o
conselheiro Pedro Batista.
Destacando-se dos outros grupos que realizam a mesma dança na região, esta
família adquiriu elevado prestígio e visibilidade, tanto que é frequentemente chamada para
pagar as promessas daqueles que as fizeram a São Gonçalo.

303
O registro etnográfico deste evento ritual foi realizado em janeiro de 2008 e de 2010.
279

Diversamente dos outros grupos rituais cujos participantes, em sua maioria, já estão
velhos, na dança de São Gonçalo há a presença de mulheres e homens jovens, bem como
de crianças. Os membros desta família, que moram em casas próximas ao longo da estrada
que conduz ao centro urbano, são particularmente numerosos, tendo estabelecido relações
de parentesco com outras famílias ali instaladas e que também dançam no grupo. 304
A família Lucas, particularmente unida, conseguiu incrementar as fileiras da dança
e torná-la sempre mais prestigiada. A coesão desta família gera comentários elogiosos
entre os romeiros que a conhecem e, no núcleo urbano, ela é especialmente renomada pelo
serviço que oferece no pagamento de promessas. Comenta-se o fato de que ela é chamada
em toda a região e para além de suas fronteiras, sendo requisitada até por prefeitos de
diversos municípios que promovem o financiamento das despesas para ter a sua presença
em comemorações ou em cerimônias oficiais. Nessas ocasiões, a presença do grupo é
solicitada por razões diversas do pagamento de promessas. O espetáculo da dança, cuja
beleza coreográfica a torna uma peça “folclórica” especialmente valorizada, chama a
atenção dos apreciadores das múltiplas manifestações culturais da região, o que motiva
apresentações públicas e às vezes a competição com outras. O prestígio alcançado por este
grupo num vasto território e as viagens frequentes que realiza tornam-se um incentivo para
os jovens nele se integrarem, independente dos aspectos sagrados que são próprios da
dança.
Diferente da resistência das jovens mulheres pankararu em fazerem parte da
irmandade das penitentes, no grupo de São Gonçalo as adolescentes demonstram evidente
orgulho de o integrarem, comentando as diversas viagens realizadas. Uma dançarina já
bem idosa, que havia entrado no grupo quando ainda era muito nova, comentou comigo
que havia escolhido se dedicar inteiramente à dança, renunciando ao matrimônio e a
formar uma família, considerando-os obstáculos para a sua integral dedicação ao grupo.
Orgulhosa da escolha, contou-me os inúmeros lugares visitados e a grande consideração e
o respeito que eram reservados a ela e ao grupo em geral. 305 Aprender a dança e integrar-se

304
Segundo Pereira de Queiroz (1976), que desenvolveu pesquisa com o grupo, a participação na dança
tornou-se um símbolo de integração dos romeiros recém-chegados à comunidade (p. 153). Nas primeiras
décadas do fluxo de romeiros, cada família buscava atrair à sua volta o maior número de aliados, unindo-os
nas cerimônias dedicadas a uma entidade anteriormente cultuada.
305
Em conversa com membros do grupo, alguns argumentaram sobre a origem da festa, enaltecendo a obra
caridosa de São Gonçalo que costumava recrutar mulheres com a intenção de afastá-las da prostituição. Mas
reforçaram que o papel do ritual é pagar as promessas dos mortos e realizar a cura através deles, que
intercedem junto a São Gonçalo.
280

ao grupo são meios de ascensão no contexto social em pauta, o que é cobiçado por jovens e
adultos.
Para o evento ritual em janeiro, a família prepara a pequena capela de São Gonçalo,
que se encontra na serra, distante aproximadamente 200 metros da BR. Dentro dela e no
pátio em frente acontecerão as apresentações de diversos grupos. Além dos Pankararu, são
convidados a participar também o grupo de Bacamarteiros e uma banda de zabumba,
provenientes, respectivamente, do sítio Bandeira (no mesmo município) e de Água Branca
(Alagoas).
Contudo, os Pankararu – aqui chamados carinhosamente “os caboclinhos” – são os
hóspedes mais esperados, os que trazem para a festa elementos evidentemente apreciados,
como atestam os comentários que visam ressaltar que sem eles “a festa não tem graça”.
Chegaram em torno das 4 horas da tarde, no dia 9, quando o grupo de São Gonçalo já havia
começado a dança.306 Ao descerem dos ônibus, foram imediatamente acompanhados pelos
anfitriões, Dona Pastora e o filho, na direção do interior da capela para homenagear São
Gonçalo, entre gritos exultantes de “viva os caboclos!”, “viva os Pankararu de Brejo!”.
Trouxeram com eles a pequena imagem de São Francisco que, como se destacou, é
geralmente levada em procissão pelos homens penitentes, e também a Santa Cruz e um
retrato da madrinha Dodô. Enquanto o grupo de São Gonçalo continuava a dança, os
rapazes pankararu preparavam-se no rancho atrás da capela.
O ritual dos praiás começou quando já havia escurecido e terminou somente na
madrugada, interrompido apenas para a refeição oferecida aos oficiantes e ao público como
momento-chave de confraternização em cada um desses eventos. Os puxadores dos toantes
(naquela ocasião, Fausto, Zé Branco e o irmão deste, Genésio) revezaram-se durante toda a
noite, enquanto os praiás dançavam e muitas pessoas entravam no círculo para receber a
cura. Dona Pastora teve um papel de relevância, alternando com os oficiantes Pankararu no
processo de cura, bem como no fechamento, quando lhe passaram o maracá para que
puxasse um toré.
Durante a sua performance, uma das mulheres que assistiam ao ritual entrou em
estado de transe; sua voz havia mudado de tom e seu corpo movia-se em diferentes
direções, entrando e saindo freneticamente da capela. Os comentários das mulheres
destacavam o poder peculiar da performance da Pastora. Em sucessivas conversas com as

306
Eu me refiro ao registro etnográfico realizado em janeiro de 2008.
281

mulheres pankararu, os poderes mágicos da Pastora foram novamente discutidos,


enfatizando-se a peculiaridade de seu trabalho ritual que devia se desenvolver com várias
correntes, embora sempre destacando que ela incorpora apenas os espíritos dos mortos.
Terminadas as sequências rituais, a capela e as duas pequenas casas que se
encontram nas laterais serviram de abrigo do frio para um breve tempo de descanso, até se
levantarem nas primeiras horas da manhã. Depois de servido o café e de terem se
despedido de todos, os Pankararu tomaram o caminho de volta à aldeia, deixando nas mãos
do grupo de São Gonçalo o encerramento do festejo com uma procissão e um esperado
grande leilão.
Em janeiro 2010, os Pankararu não puderam participar da festa, mas o grupo de São
Gonçalo aguardou-os até tarde, esperando que aparecessem. Ao final do evento, quando
todos estavam se preparando para descansar na capela, alguém improvisou alguns toré para
homenagear os Pankararu, certos de que no próximo ano não faltarão ao habitual encontro.
Muitos dos presentes sabiam entoar os toré em virtude das sempre renovadas trocas de
visitas e das romarias que marcam o calendário ritual, reforçando assim o recíproco
compromisso.
282

Festa de São Gonçalo. (Santa Brígida, janeiro 2010)


283

8.2.2 A festa de Antonio Binga

Como se mencionou, desde o falecimento de Antonio Binga em 1975, a família


organiza em cada 20 de outubro uma festa307 em sua homenagem. Embora a festa culmine
no dia 20 de outubro ou no domingo anterior a esta data, ela começa no dia 1º do mês, mas
se trata de um culto quase exclusivamente familiar, que acontece em todas as quartas e
sextas-feiras à noite. Prevê a presença somente das mulheres e dos homens penitentes que,
em locais separados,308 realizam seus rituais.309
A decisão de investir nesta festa de enormes proporções, com grandes gastos de
recursos, se deve, segundo afirmaram seus familiares, aos repetidos sonhos da filha de
Antonio, Maria José, principal zeladora do batalhão de praiás deste grupo doméstico. Os
familiares argumentaram que Antonio Binga, além de ser um estimado curador e pai do
batalhão de praiás, teria tido o merecimento de alcançar o reino encantado.310 Como foi
argumentado por Arruti (1996, p. 176), esse grupo familiar teria investido na realização
desta festa como contraponto ao ritual do Mestre Guia na aldeia Serrinha, tornando
Antonio Binga um novo encantado (ibidem, p. 176). Certamente o investimento neste
ritual teve a intenção de contrabalançar a centralização no terreiro da Serrinha, visando
atrair aliados em torno do próprio grupo familiar. Contudo, a centralidade do encantado
Mestre Guia – ocupando o ápice da hierarquia dos encantados – parece ser indiscutível
para seu grupo familiar que, em conversa com alguns de seus membros, reiteraram sua
importância e superioridade.
Por ter tecido uma ampla trama de relações durante décadas a partir da atuação do
seu fundador e por sempre ser particularmente coeso, este grupo doméstico conseguiu um
número considerável de aliados que gravitavam ao seu redor. Segundo as argumentações
de diversos interlocutores, tanto do tronco Binga, do mesmo grupo doméstico de Antonio
Binga, quanto de membros de outras famílias, houve perda de prestígio deste grupo

307
O registro da festa foi realizado em outubro de 2010.
308
Os homens rezam o poró atrás da casa do falecido e as mulheres, no salão dos praiás ao lado da mesma
casa.
309
Durante a etnografia feita à noite, nunca aconteceu de o falecido Antonio Binga se manifestar. No entanto,
as mulheres comentaram os episódios em que havia ocorrido e expressaram o desejo de que voltasse a
acontecer.
310
Um conjunto de episódios acontecidos na mesma data – justamente no dia 20 de outubro – tornou a figura
de Antonio Binga ainda mais mistificada. Ele teria nascido, passado pelo ritual do menino no rancho, casado
e falecido na mesma data.
284

familiar. No entanto, a festa continua se realizando, embora os participantes sejam


principalmente de grupos rituais externos ao grupo étnico, especialmente o “povo de São
Gonçalo”.
Cerca das 7 horas da manhã do domingo 17 de outubro em 2010, 311 começaram a
chegar os ônibus provenientes de Santa Brígida e Bandeira312 ao terreiro do falecido
Antonio Binga, ao redor do qual estão algumas casas de seus filhos. Em número
consistente, chegaram o grupo de São Gonçalo, os Bacamarteiros e os romeiros das duas
localidades. Na casa do homenageado, os convidados foram recebidos pelos membros da
família, os “donos da festa”,313 que se aproximaram para cumprimentá-los.
O evento ritual teve diversas etapas e, em virtude da repetição anual, todos sabiam a
sequência. Ao descerem dos ônibus, entraram no salão, onde foi colocada, para a ocasião,
uma cama coberta de flores, com um quadro com a imagem do morto e de sua esposa
também falecida, bem como uma pequena imagem de padre Cícero. Após reverenciarem o
homenageado, os convidados descansaram da viagem tomando o café da manhã, momento
em que todos puderam se cumprimentar. Especial atenção foi dedicada ao pajé Miguel
Binga que, apesar muito doente, quis estar presente, assistindo ao evento deitado numa
rede que foi posta ao lado da casa, sob a sombra das árvores.314
Os grupos rituais dos praiás e de São Gonçalo começaram as respectivas
perfomances, até o sinal que indicava a hora de se deslocarem para a Igreja de Santo
Antonio, para onde todos se dirigiram. Uma procissão encabeçada pelas cruzes, a pequena
imagem de São Francisco315 e outra de São Gonçalo e também uma imagem da madrinha
Dodô encaminhou-se para Brejo dos Padres até a praça onde fica a Igreja. Os grupos rituais
se concentraram, então, na parte central da Igreja e cruzaram as respectivas performances,
formando um círculo cada vez mais fechado onde alguns entraram para receber a cura.

311
Costuma-se adiantar a data da festa para fazê-la cair no final de semana, caso o dia 20 venha a cair, como
nesse ano, no meio da semana.
312
O povoado de Bandeira pertence a Santa Brígida. Ali morou e faleceu outro beato – Zé Vigário –
contemporâneo de Pedro Batista. O lugar também se tornou meta de pequenas romarias.
313
Para receber os convidados vieram sobretudo os homens da família, especialmente Zé Branco, Zé Binga e
Denésio, enquanto Maria José, Sampedra e a outra curadora, Dora, estavam empenhadas na cozinha junto
com as outras mulheres. Maria José fica hoje em dia distante da celebração em virtude dos problemas de
saúde que a atingiram.
314
Dona Pastora (do grupo de São Gonçalo) dedicou-lhe especial atenção, reservando-lhe uma reza de cura
sob os olhos atentes de todos. Ela teve um lugar de destaque no decorrer da festa; enquanto o grupo de São
Gonçalo dançava intercalando com os praiás no terreiro, ela realizava sua performance de cura no interior do
salão e para ali se dirigiam os que participavam da festa para aproveitar a sua presença anual na área.
315
Lembramos que estes símbolos são cultuados principalmente pelas irmandades penitentes.
285

Esse conjunto de performances eclodiu no cemitério, onde, diante o túmulo de


Antonio Binga, houve o momento mais importante do ritual: rezas, benditos e toré
intercalaram-se sob o sol quente, obrigando muitos participantes a buscar uma sombra para
poderem se refrescar e voltar depois ao seu lugar.
A procissão, terminadas as performances no cemitério, retornou ao terreiro.
O momento esperado da confraternização havia chegado. Como em todo ritual que
etnografei na área indígena, os primeiros a serem servidos foram os praiás, que entraram
no salão com o prato nas mãos como oferenda simbólica ao homenageado da festa. Depois
foram servidos os convidados. A distribuição da farta comida não pode faltar e, como
afirmou Zé Branco, “A gente junta, junta o ano todo para a festa acontecer! É nossa festa, é
nossa obrigação!”. Pelas condições econômicas das famílias na área indígena, dificilmente
se pode ver tal abundância, e os comentários destacavam a plena satisfação de cada um.
Entre as conversas ouvidas durante a festa, no momento do almoço, um dos
romeiros do grupo que se encontrava no salão comentou haver conhecido um curador que
há pouco tempo tinha se instalado em Inajá. Os elogios aos poderes de cura do recém-
chegado despertaram a curiosidade de todos, que começaram a fazer diversas perguntas:
como era o trabalho ritual, se usava ervas e quais delas, se incorporava espíritos e se,
enfim, ele estava seguro de que não era um dos muitos charlatães existentes. Os
comentários dirigiram-se, então, a outros grupos rituais, como aqueles das diversas danças
de São Gonçalo,316 que trabalham ritualmente de forma diversificada, lembrando também
os curadores já falecidos. Falou-se sobre a gestualidade, o tom da voz e todos os detalhes
das performances dos especialistas rituais já falecidos, citando-se Antonio Binga, Maria
Bárbara, madrinha Dodô e Pedro Batista, associando-se alguns desses detalhes aos atuais
oficiantes.
As mulheres penitentes e os membros do grupo de São Gonçalo enumeraram os
lugares para onde haviam sido chamados para pagar as promessas no decorrer daquele ano,
comentando a respeitosa acolhida das famílias que faziam os pedidos. Diziam que, se as
festas realizadas fossem bastante generosas, isto é, se houvesse abundância de comida,
foguetes e outras diversões, elas se tornavam inesquecíveis.
As conversas terminaram ao serem todos chamados para retomar os rituais. O
grupo de São Gonçalo, abrigando-se do sol, dançou sob um telão colocado na frente do

316
Dona Pastora argumentou que apenas o seu grupo de dança de São Gonçalo trabalha com as promessas
dos mortos, mas que os outros grupos presentes em Santa Brígida trabalhariam com “os vivos”.
286

salão, enquanto os praiás dançaram no terreiro e os Bacamarteiros dispararam tiros com


seus fuzis.
Ao findarem os ciclos de performances, todos participaram do toré, anunciando
com a “brincadeira” o encerramento da festa. Após um breve momento de dispersão, em
que cada um buscou uma sombra para descansar, os membros da família chamaram todos
novamente para a frente do salão para assistirem à missa que padre Alberto, auxiliado por
Luísa Binga, havia preparado para a ocasião.
Havia já escurecido quando os convidados tomaram o caminho de volta para as
suas casas, mas sempre convidados a ficar mais um tempo com a habitual exclamação “tá
cedo!”, pronunciada por todos os que recebem hóspedes antes de estes irem embora. Entre
abraços de despedida, os anfitriões agradeciam aos participantes a presença, lembrando as
datas dos próximos encontros.
A festa, no entanto, não havia chegado ao fim. O ciclo de rituais foi concluído
somente à noite, quando os homens penitentes realizaram, longe dos olhares indiscretos, os
seus rituais.
Nos dias que se seguiram, conversando com diversos pankararu que haviam
assistido à festa e com outros que não compareceram, ouvi diversos comentários. Como
mencionei anteriormente, este evento recebe críticas que visam ressaltar a negatividade dos
encontros com outros grupos rituais da região. Assim, quem se opôs a este circuito ritual,
de forma a sentenciá-lo, afirmou: “Eu não gosto! Aqui a gente tem o próprio trabalho, e o
nosso trabalho é com praiá, é com folguedo e mais nada!”. O grupo de São Gonçalo, tido
como adepto do “espiritismo”, se oporia à doutrina da aldeia, e os mais ligados à sua
tutela, como se verá no próximo capítulo, têm como objetivo colocar limites a tais
encontros.
287

Festa de Antonio Binga. (Saco dos Barros e Brejo dos Padres, outubro 2010)
288

Capítulo IX. A doutrina da aldeia: ritual e identidade étnica

A constante reiteração de um espaço sagrado bem mais abrangente vem sendo


marcado pelo circuito ritual dos índios-romeiros, assim como o delineamento de um
território étnico sagrado a partir do enaltecimento dos encantados que se tornaram os
símbolos étnicos por excelência.
Pela importância que as fronteiras étnicas assumiram em termos de reivindicação
dos direitos do grupo e pela necessidade de algumas lideranças aglutinarem seus membros,
há um movimento que visa recortar espaços exclusivos nos quais essas fronteiras ganham
gradual importância, inibindo-se certa “mistura” com outros grupos rituais da região, como
se destacou no caso do circuito ritual antes mapeado. Isto não significa que os promotores
desse movimento não participem de encontros rituais com outras coletividades da região.
Com efeito, diversos circuitos rituais existem e o motor que os impulsiona não é sempre o
mesmo. Podem ser movidos pelo interesse em auxiliar as já referidas pontas de rama ou
para “apresentações” em reuniões com membros de outros grupos étnicos pertencentes ao
movimento indígena. Nessas circunstâncias, o valor atribuído à etnicidade é especialmente
enfatizado e os Pankararu apresentam os elementos rituais da tradição indígena do tronco
velho, visando demonstrar sua proteção e vitalidade.
Mudanças nos usos da “cultura” foram se afirmando a partir das décadas de 1970 e
1980, como vários autores317 têm enfatizado ao analisar o processo de “emergência étnica”
no Nordeste que nesse período cresceu sensivelmente, destacando-se a importância que
nele tiveram as pastorais e as Comunidades Eclesiais de Base. A mudança de orientação
teológica dentro da Igreja, decorrente da realização do Concílio Vaticano II318 (1962-
1965), inaugurou novas posturas em relação às múltiplas expressões religiosas, e tornou

317
Ver: Arruti (2002), Valle (1993), Palitot (2010).
318
O período do Concílio Vaticano II coincide com o surgimento da teologia da libertação, que colocava em
evidência os valores da emancipação social e política presentes na mensagem cristã. O nascimento do
movimento remonta à Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM), que ocorreu em 1968 em
Medellín, na Colômbia, na qual os representantes da hierarquia eclesiástica se posicionaram a favor dos
grupos mais desfavorecidos da sociedade latino-americana e de sua luta, posicionando-se a favor de uma
Igreja popular e socialmente ativa (Steil, 1996, p. 250). Durante os anos 70, a propagação em quase todo o
continente das ditaduras militares ou regimes pesadamente repressivos causou frequentemente atritos entre os
setores da Igreja Católica e incentivou o empenho dos teólogos da libertação em elaborar propostas em face
do agravamento da crise política e social latino-americana. Difundiram-se em tal período as Comunidades
Eclesiais de Base (CEB), núcleos ecumênicos empenhados na participação dos problemas dos mais
desfavorecidos (Boff, 1982).
289

imperativo em nível normativo o seu reconhecimento. A ênfase na “cultura” passou a ser


do interesse da instituição. A postura da Igreja – que se propôs a não mais perceber os
índios como progressivamente inseridos na “civilização” para se aproximar das “culturas”
indígenas – orientou a atuação do CIMI (Conselho Indigenista Missionário).319 No caso
específico dos Pankararu, os membros do CIMI deram apoio à luta pela TI Entre Serra, que
começou justamente na década de 1980, e conquistaram a estima dos maiores expoentes
das reivindicações, como a atual cacique Dona Hilda Bezerra.320
De acordo com Arruti (2002), as equipes pastorais, a partir da década de 1970,
passaram a valorizar a “religiosidade popular”, dando-lhe um sentido inverso ao dos
trabalhos anteriormente realizados pela Igreja, enfatizando as origens indígenas dessas
expressões religiosas (ibidem, p. 22-24). Assim, se antes a “cultura” e o “folklore” eram
uma forma de linguagem “popular” utilizada pelos missionários para se comunicarem com
as amplas parcelas da população, a partir da ênfase na “cultura” tornou-se um conteúdo a
ser articulado para convertê-lo em uma identidade especificamente indígena. Não apenas
as equipes pastorais adotaram um uso “etnificado” da “cultura”, como os efeitos desta
tendência foram percebidos nos projetos promovidos pelas agências governamentais e não
governamentais.
É bastante comum ouvir dos mais envolvidos nas práticas rituais da tradição
indígena expressões que denotam certa preocupação com a possibilidade de ela
enfraquecer e chegar a se perder. Tais comentários, no entanto, são dirigidos, sobretudo,
aos agentes sociais – pesquisadores, membros das ONGs, equipes de filmagem – que
demonstram vivo interesse em registrar e compreender tais práticas.
No cotidiano, as preocupações de alguns índios voltam-se para o aumento
desmesurado do interesse da população indígena em participar ativamente da tradição,
pois já há um número excessivo de praiás e muitos mais expressam o desejo de alcançar o
prestígio que ela oferece. Desta forma, depreende-se que há uma disputa entre os diversos
troncos e famílias para concorrer às chances de se chegar lá. Essas disputas geram
discursos sobre a “autenticidade” das práticas rituais.
A preocupação com a “perda da tradição” e os inúmeros discursos sobre a
importância do seu “resgate” são aspectos que tanto os especialistas mais velhos quanto os

319
O CIMI, criado em 1972, tem o objetivo de construir uma “Igreja indígena inculturada”, seguindo,
portanto, os ditames do Concílio II.
320
Hoje a presença do CIMI é esporádica e os índios queixam-se da sua ausência.
290

jovens mais envolvidos podem usar estrategicamente na interação com os agentes acima
mencionados. No entanto, nas diversas conversas sobre as formas de transmissão do
conhecimento revela-se um quadro bastante distante daquele apresentado nas outras
situações, por exemplo, nas afirmações de Vasco que, como se viu anteriormente, está
também envolvido em projetos com esse perfil.

Tem a corrida do imbu e no sábado à noite tem os passos e apenas uma


mulher sabe cantar todos os toantes, sempre foi assim, 25 toantes. Se essa
pessoa falecer, se perde? Não. A pessoa ia ensinando pra outra,
repassando pra outra. Já aconteceu que enquanto uma pessoa estava
ensinando, ela faleceu, mas não ensinou tudo. Mas não perdeu não,
porque ela voltou pra ensinar. Por isso que a gente tem essa fé nos
encantados, porque a gente não vai perder. Mas a gente tem que fazer por
onde também. Porque a gente tem que seguir uma doutrina pra gente
poder ter o merecimento.

É necessário destacar que as agências promotoras dos encontros dos diversos


grupos indígenas em que cada um deles se “apresenta” são geralmente a Funai e a Funasa
ou ONGs empenhadas na valorização dos aspectos culturais desses grupos e que acabam
promovendo “tradições etnificadas”. Quem tem a possibilidade de participar desses
eventos é particularmente honrado e sente-se responsável pela representatividade do
próprio grupo. Por exemplo, Dona Teresa (já mencionada antes, esposa de João Gouveia)
orgulhava-se de ter participado de vários eventos, um dos quais na área indígena Potiguara,
na Baía da Traição (Paraíba). Relatou que cada índia que estivesse presente era convidada
a cantar um toante ou uma cantiga que fosse representativa do próprio grupo.

Todas tinham que apresentar. E quando uma fulni-ô entoou o toante


Santa Maria, não aguentou. Aí falei; “você não aguentou, hem colega!”,
porque esse toante não é seu, é de Pankararu. Eu vou cantar pra vocês
todos ver: “Santa Maria, Mãe de Deus, mãe do Ajucá, Santa Maria ela é
Mãe de Deus, Mãe do Ajucá”. Porque meus pais diziam que, quando
botavam uma mesa, o primeiro que cantavam era aquela, que é pra abrir a
mesa, uma cantiga muito forte, nem todos os médiuns aguentavam
quando puxava[m] a Santa Maria, porque caía, n’era? Aí era pros outros
cantar pra levantar. Aí, depois, ela não quis testar mais comigo porque eu
cantava um toante e ela ia chorar. Só quem ficou de meu lado foi a
sobrinha de Zé Narciso, que eu nem conhecia, mas era de Pankararu. Ela
falou pra mim: “Sou de Pankararu, Dona Teresa! A senhora puxa e eu
sustento”. Aí tinha mulheres de Águas Belas, Palmeira dos Índios, todas
de cocar, enfeitadas. Mas é bom lembrar que Pankararu é o tronco e
Águas Belas é o galho!
291

Como esta narrativa de Dona Teresa, outras também destacaram o maior valor dos
seus itens culturais e o vigor da própria tradição indígena, enaltecendo-a perante as
outras.321
Como se observou, os Pankararu envolvidos na esfera mágico-religiosa da tradição
indígena fazem referência à “doutrina da aldeia” como forma de remarcar uma identidade
étnica singular e enaltecer os seus segredos. No entanto, esta expressão não diz respeito a
um conjunto de preceitos, ideias, dogmas e conhecimentos divulgados, mas sim à adesão a
determinados rituais e obrigações para com os encantados, únicas entidades que se
tornaram símbolos da própria etnicidade e às quais se deve devotar o culto. A “doutrina”,
portanto, é a ação ritual disciplinadora que demanda uma necessária submissão e o
reconhecimento das autoridades religiosas e políticas: os pais e mães de praiás.
Há o esforço de alguns especialistas que visam criar um quadro sobre os elementos
legítimos das práticas rituais a fim de que se torne referência para os índios, já que se
pretenderia “expurgar” aqueles que começaram a ser considerados a causa da perda da
própria “originalidade” e “pureza”; ou “desviantes”, resultado de imposições de agentes e
de situações históricas de dominação – esforço este que nos remete à ideia destacada por
Oliveira Filho (2004) de uma “viagem da volta” em nome de uma lealdade às origens.
No entanto, tal esforço se insere sempre nas disputas entre grupos que reivindicam
para si a melhor proteção da tradição indígena, e que também tem como objetivo se
distanciar dos outros grupos indígenas.

9.1 Os rituais da tradição

Como todos os grupos indígenas do Nordeste, os Pankararu realizam o toré, que se


tornou o principal sinal diacrítico de “indianidade”. No entanto, como já destacaram outros

321
Diverso é o caso das agências que chamam o grupo de mulheres penitentes para as próprias festas ou
ocorrências. Neste último caso, trata-se de famílias ou de pessoas que procuram o grupo ritual para que
“pague uma promessa” e, na ocasião, “apresente” também suas danças, cantos e rezas. Foram-me referidos
vários casos de prefeitos de diferentes municípios, tanto do estado de Pernambuco quanto da Bahia, que
chamaram as mulheres penitentes para circunstâncias pontuais, especialmente durante a campanha eleitoral,
ou para comemorar a própria vitória nas eleições. Em ambos os casos, considera-se que não ser possível
excluir da análise os aspectos ligados à “folclorização” dessas manifestações culturais, estas ficando
reduzidas a “apresentações étnico-folclóricas”.
292

autores,322 cada grupo confere a este ritual significados peculiares e realizam-no também
com específicas modalidades para torná-lo o mais representativo da própria singularidade.
No caso dos Pankararu, existe uma grande preocupação com a manutenção da
própria distinção. O toré é apenas uma parte dos rituais, mais especificamente aquela que
fecha as sequências dos rituais e que abre a dança ao público que ficou assistindo. Por isso,
fala-se do toré também como uma brincadeira, em que homens e mulheres podem se
juntar aos praiás e dançar no terreiro as últimas rodas do ritual ou as rodas que fecham a
sequência dos toantes de cada praiá.
O toré, portanto, parece estar despido da carga sagrada infundida ao resto do ritual,
o que permite que seja “apresentado” em diversos contextos. Fora do terreiro ou até da
própria aldeia, os Pankararu podem decidir levar os praiás para dançar toré em
circunstâncias e lugares em que é preciso mostrar a própria identidade étnica diante de um
público que assim o solicite ou para afirmar a sua presença em um contexto como forma de
reivindicação. É o caso, por exemplo, da “noite do índio” no santuário de Nossa Senhora
da Saúde, em Tacaratu, no dia 24 de janeiro, quando os praiás se apresentam dançando o
toré no local, lembrando aos tacaratuenses a doação da terra para a construção do santuário
feita pelos próprios índios. Mas o toré se dança também por ocasião de encontros com
outros grupos indígenas da região ou, como vimos anteriormente, em encontros com outros
grupos rituais não índios, como nas romarias.
Há outros contextos em que os praiás se “apresentam”. Como evidencia
Albuquerque (2011), que aborda as danças dos praiás em São Paulo como apresentações
públicas, isto é, atos performáticos e políticos, os índios as realizam como forma de
afirmação e reivindicação em um contexto que requer o enfrentamento de diversos
preconceitos em relação à imagem do “índio”.323
Os rituais que os praiás realizam receberam particular atenção de pesquisadores324
que se dedicaram ao estudo tanto dos Pankararu quanto dos Pankararé e das pontas de
rama, pois todos eles (diversamente dos outros grupos étnicos do Nordeste) usam máscaras

322
Destacam-se os trabalhos de Grunewald (2005), Valle (2005), Batista (2005), Andrade (2005) e Pereira
(2005) que ressaltam a importância e os vários aspectos deste ritual a partir de múltiplas perspectivas.
323
O autor argumenta que a dança se tornou um ato performático e um meio de “[...] tradução intercultural
contra-hegemônica, cujo ato político de gênese permite caracterizá-la como constituindo uma versão
heterodoxa da dança ritual dos praiás. E cuja intenção do ato político dessa e nessa tradução é dotar os
Pankararu de capital simbólico nas arenas da cidade de São Paulo” (ibidem, p. 38).
324
Entre os autores destacamos: Matta (2005), Barreto (2009), Amorim (2010), Albuquerque (2011).
293

rituais que representam os encantados.325 Alguns desses autores destacaram os múltiplos


aspectos ligados à dança e compartilham a visão da necessidade desses grupos de construir,
através dos rituais que envolvem os praiás, uma imagem de si mesmos para mostrar a sua
diferenciada identidade étnica. Este é um esforço em que tanto alguns membros dos
troncos velhos quanto outros das pontas de rama investem para alimentar a construção da
própria etnicidade e poderem assim reivindicar seus direitos.
Alem do toré abordado aqui como “apresentações” para fora e dos rituais mais
íntimos realizados nos grupos domésticos e nas já destacadas mesas de cura, há dois rituais
que no decorrer do trabalho já foram mencionados, mas que aqui descreverei em virtude do
papel crucial que desempenham como símbolos étnicos com poder aglutinador: o menino
no rancho e, sobretudo, a corrida do imbu. Nestes eventos, a participação é reduzida no
caso do primeiro e eliminada no caso do segundo. Trata-se de rituais com finalidades
diferentes, mas que estão próximos quanto à sua visibilidade, aos gastos necessários para a
realização e à importância que têm tanto para as famílias organizadoras quanto para toda a
coletividade como reforço do sentimento étnico.
Ambos os rituais se tornaram os símbolos principais da tradição indígena e
mobilizam grandes parcelas de índios para a sua realização. Se, por um lado, como foi
destacado ao longo do trabalho, há as dinâmicas que continuam alimentando o
faccionalismo e a tendência de cada tronco familiar em reforçar o próprio círculo de
alianças e prestígio, por outro, há também um esforço desses indivíduos em atribuir aos
rituais destacados um valor e um peso suprafaccionário, tornando-os símbolos
condensadores da coletividade étnica.
O resultado desse esforço não é apenas o de ser “apresentado” aos não índios, mas
sim o de constituir um processo de construção de um progressivo sentido de pertencimento
ao grupo, e também a necessidade de reforçar os limites como parte da produção da
normatividade moral capaz de conter a dispersão de seus membros.

325
Pelas informações etnográficas oferecidas por Pinto (1958), as máscaras rituais dos Fulni-ô seriam
bastante diferentes das dos praiás pankararu. Embora estes grupos étnicos tenham tido intensas relações e os
resultados dessa comunicação apareçam em aspectos culturais e em elementos similares nos rituais, tende-se
a assinalar as diferenças entre eles. Os mesmos autores que se dedicaram ao estudo da circulação dos
elementos culturais entre os diversos grupos indígenas do Nordeste – como Nascimento (1994) – reiteram a
diferença entre as máscaras dos Fulni-ô e dos Pankararu, bem como entre os rituais que estes grupos
realizam.
294

9.1.1 O menino no rancho: iniciação e consolidação de alianças

Antes de descrever as dinâmicas deste ritual326 é necessário abordar as


argumentações construídas em torno dele e também alguns aspectos do grupo ritual dos
praiás.
Como irmandade penitente masculina, o grupo de praiás se configura como uma
sociedade secreta formada unicamente por homens. Sabe-se que os praiás são todos
rapazes iniciados no grupo e não podem ser identificados, e que durante os rituais vestem
as máscaras personificando os encantados. A iniciação no grupo, através do ritual que se
descreverá mais adiante, não é coletiva, isto é, não há a participação conjunta de diversos
rapazes que passarão pelo mesmo ritual. Considero este aspecto importante porque nos
oferece um elemento de compreensão do papel que tem o ritual. Não serão diversos
meninos de diferentes famílias que passarão por esse ritual de iniciação, mas apenas um,
aquele que, na maioria dos casos, os próprios pais decidiram doar a um específico
encantado que curou a criança de alguma doença. A iniciação, então, depende, na maioria
dos casos, da escolha dos pais do garoto de pagar uma promessa ao encantado que curou o
próprio filho.
É também interessante destacar que os praiás são orientados em vários casos por
uma mãe de praiá que não pode sequer entrar no poró, lócus restrito aos homens e onde se
cultivam os mistérios do grupo. A separação de competências e de esferas de atuação entre
gêneros não exclui a participação das mulheres, embora elas estejam (no dizer dos homens)
impedidas de ter acesso aos segredos mais profundos, isto é, à essência das revelações
derradeiras, dando a entender que existiriam etapas sequenciais para se chegar a elas. Em
função do acúmulo ou da exclusão de revelações anteriores, os homens teriam canais
abertos para alcançar tais verdades.
As esferas de comunicação diferenciadas por gênero dão resultados bastante
diversos em relação às interpretações das dinâmicas de comunicação com os encantados e
das possibilidades de se receberem revelações que permitam a compreensão da realidade
visível e invisível. Embora as mulheres concordem com o fato de que os homens têm
espaços separados e que elas não podem penetrar nos segredos que eles escondem, negam

326
Foram feitos registros etnográficos de três rituais do menino do rancho. Por ter mais proximidade com a
família Oliveira do tronco Binga, e podendo obter mais informações a respeito da organização e dos
protagonistas do ritual, escolhi descrever aqui a etnografia de um ritual organizado por membros deste
tronco.
295

a existência de uma relação privilegiada entre estes e os encantados. Pelo contrário,


afirmam que quem “guia” os praiás nos rituais são justamente as mulheres, sublinhando o
papel de maior responsabilidade que lhes compete e que demonstraria a posição de
comunicação privilegiada com eles.
Já amplamente descrito e destacado por Athias (2006), também com um vídeo
realizado por este mesmo autor em 2006, o menino no rancho é um evento ritual que tem
enorme importância para os seus organizadores e para todos os seus protagonistas.
A preparação do evento inclui a construção de uma atmosfera de expectativa tanto
dos participantes quanto do público que irá assisti-lo. Portanto, antes de o evento
acontecer, já se falava dele e divulgava-se a notícia.
O êxito do ritual parece depender de um conjunto de fatores que não se limitam ao
dispêndio de energias e recursos dos organizadores, mas exige também um investimento na
criação dessas expectativas, que fazem com que os comentários alimentem a convicção de
que o ritual será especial, uma festa inesquecível mesmo antes de ela ter acontecido. Os
comentários ouvidos em circunstâncias diversas que anunciavam a iminência do ritual
preparavam todos aqueles que queriam assisti-lo para um evento extraordinário. “Quem vai
pro rancho?”, era a pergunta inicial que abria as conversas relativas à família organizadora,
às motivações que estavam por trás da promessa feita, à doença do menino, ao tempo que
se passou desde a promessa até o pagamento. Faziam-se também previsões sobre o número
de participantes.
Entre os comentários, alguns se concentravam em ressaltar as mudanças ocorridas
na tradição e que conferiam novos sentidos ao ritual, bem como outros motivos que
impulsionavam a própria realização. Por exemplo, Francisco Calu salientou as diferenças
das motivações que teriam levado “antigamente” os índios a realizarem o ritual.

Quando o menino é flechado, aí sim o menino vai pro rancho. De


primeiro era assim, só quando o menino era flechado que ele ia pro
rancho, porque ele ficava entre a vida e a morte. Aí o encantado dizia que
pra [eu] trazer ele, tinha que ir pro rancho. Porque o menino vai ser dele,
daquele encantado, entendeu? Mas agora, pra não fazer morrer a tradição,
o pessoal diz: “se meu filho for homem, eu boto ele no rancho pra mestre
fulano”. Aí outro diz: “Se meu filho nascer vivo e bom, eu entrego ele a
mestre fulano”. Aí, pronto! Entrega a vida a ele e ele toma de conta. Mas
antigamente não, ele tinha que estar entre a vida e a morte pra ter aquele
menino.
296

A ideia de que “antigamente” apenas os meninos que sofriam doenças muito graves
e que se encontravam em perigo de vida passavam pelo ritual é amplamente compartilhada.
Mas pode-se pensar que também no passado havia outras motivações, até as mesmas de
hoje, de existirem iniciados que pudessem cumprir com o papel que lhes compete.
Ao relatar casos acontecidos em que a criança estava no fim da vida vítima de um
flechamento, os índios salientaram que a volta do menino para a vida se deve à vitória do
encantado na luta contra outra entidade que tentou raptá-lo e levá-lo embora com ele. Essa
vitória determina a pertença do menino ao encantado que lhe devolveu a vida, ou seja, que
o livrou do flechamento. Os pais do menino o “entregam” àquele praiá, inaugurando-se
uma relação perpétua de mútuos deveres: o menino deverá desempenhar suas obrigações
para com o encantado e este também deverá cuidar dele e servi-lo para o resto da vida.
Ter um filho homem e integrá-lo no grupo dos praiás é motivo de muito orgulho
para os pais da criança. Um filho salvo por um encantado e forte o suficiente para um dia
ser ele mesmo um praiá e carregar a máscara pesada de caroá sob o sol e a chuva por horas
é razão de distinção honrosa tanto para os pais quanto para o rapaz, que compartilhará o
próprio orgulho com um grupo restrito.
Integrar os jovens no grupo dos praiás certamente é considerado necessário para
dar continuidade às práticas rituais que ajudam a manter viva a tradição diante dos olhos
dos de fora. Mas a participação e a integração no grupo dos praiás são sinais de distinção
principalmente dentro da coletividade, pois através dos rituais são amplamente divulgados
os membros que compartilham o carisma desse grupo que impõe um elevado respeito.
Como é ressaltado nas entrevistas do vídeo realizado por Athias (2006), bem como
nas conversas com os organizadores do ritual que serão descritas mais adiante, há uma
forte manifestação de orgulho em poder oferecer uma festa de grandes proporções para que
todos os que irão a ela assistir possam sair satisfeitos e não se esqueçam desse dia.
É uma forma de prestigiar o encantado e colaborar para a manutenção ou o
acréscimo do prestígio familiar. Embora não seja uma regra, na maioria das vezes os pais
fazem promessas aos praiás da própria família ou tronco, e apenas aqueles cuja família
não possui praiás precisam se encaminhar para as outras. Neste último caso, entra-se no
circuito de aliança da família dona de praiás e afilia-se ao especialista que zela por ele.
Para as famílias que não são donas de praiás, a afiliação lhes possibilita demonstrar
a plena adesão à tradição e contribuir para a sua constante vitalidade, como os zeladores
pedem que seja. Assim, se um afiliado promete pagar uma promessa por meio de um ritual
297

de grandes proporções como o menino no rancho, contribuirá para o acréscimo de prestígio


desse zelador e de toda a família e, ao mesmo tempo, dará início à aliança entre eles.
Como já se destacou no Capítulo VI, o tempo que decorre da promessa até a
realização do ritual é um fator importante e variável. Se a pessoa declarou publicamente ou
manifestou diretamente ao especialista ritual que fez essa promessa, pode haver pressões
morais caso o tempo da realização do ritual se torne demorado. No entanto, há situações
em que o pagamento é realizado depois de anos ou décadas, como o caso de um menino
cuja promessa da mãe não foi paga até ela morrer. Ela teria “voltado” em sonho à sua irmã
para dizer que era o momento de pagá-la. Neste caso, o menino que devia passar pelo ritual
não era mais uma criança, mas um homem adulto.
Os índios aos quais se perguntou sobre esses casos afirmaram que é muito difícil
acontecer e demonstraram também certo desconforto em falar sobre o assunto.327
Ressalta-se desta situação a necessidade de colocar apenas meninos no rancho,
sobretudo os que manifestam sinais do dom e que passaram por doenças, e fazê-lo o mais
cedo possível. Uma vez iniciado no grupo de praiás, o neófito ficará sob observação dos já
iniciados e dos pais ou mães de praiás.
Antes de descrever a dinâmica do ritual, os diversos papéis dos participantes e a
articulação de suas diversas fases, é interessante tomar em consideração uma parte da
descrição que Oliveira (1942) nos deixou deste evento ritual e o significado que lhe
atribuiu.
Além das festas que resumidamente descrevi, há no “Brejo-dos-Padres”
uma outra, também tradicional e muito interessante. É a do “Menino do
Rancho”. Essa festa representa a iniciação dos rapazes na comunidade
dos “Praiás”! Sendo estes, pode-se dizer, a encarnação dos espíritos
protetores da aldeia, formam uma espécie de sociedade secreta, a qual
evita, quanto possível, o contato direto de seus membros com outras
pessoas, quando se encontram no “Poro”, que é o “Rancho” em que se
reúnem por ocasião das festas. Nessas condições, mister se faz que
tenham intermediários a fim de lhes fornecer, quando preciso, água, fogo,
fumo e outras coisas, para cuja aquisição, muitas vezes, é necessário
entrar em contato com pessoas estranhas à sociedade.
Como bem se compreende, esses intermediários são obrigados a guardar
inteiro segredo a respeito de tudo quanto ocorre no “Poro”.

327
Quando se tentou fazer o registro do ritual cujo protagonista era um homem adulto, houve certa reticência
ao falar das dinâmicas do ritual e não faltaram comentários que visavam caçoar com o protagonista e com a
família que o quis realizar. Os comentários que ridicularizavam o protagonista ressaltavam a aproximação
tardia da tradição não apenas do sujeito, mas de toda a família, tanto que detalhes eram tomados como sinais
da total ignorância dos elementos da tradição.
298

Para exercer uma coação psicológica capaz de determinar tão absoluto


mutismo, os “Praiás” ameaçaram punir os infratores daquele dever com
diversos castigos, entre os quais a “dormida” em camas feitas de “Urtiga”
ou “Quipá”.
É a aquisição daqueles intermediários em tempos antigos o que a festa do
“Menino do Rancho” simboliza. Na verdade, o que nela se passa é,
simplesmente, a representação do rapto dos meninos que, no passado,
faziam os “Praiás”, para ter, a princípio, servidores e, depois, futuros
“irmãos”. [...]
Desde o momento em que os “Praiás” se apossam do menino, este passa a
lhes pertencer, frequentando o “Poró”, para servi-los por ocasião das
festas, e passando, por fim, quando já homem, a fazer parte do “grêmio”.
De modo que aquela festa, como já disse, é, nem mais nem menos, a
iniciação do neófito na sociedade dos “Praiás” ou dos “Encantados”,
como são, também, conhecidos aqueles (Oliveira, 1942, p. 163-165).

O autor está mais preocupado em recuperar o significado que o ritual devia ter no
passado do que o significado que os índios lhe conferiam à época da sua pesquisa, em
1937. No entanto, coloca questões interessantes a serem ressaltadas, sobretudo o “rapto dos
meninos” que hoje afirmam os índios é a tentativa de um encantado ou de outra entidade
de pegar o menino para torná-lo seu servo. A integração do menino no grupo torna-o, nos
primeiros anos, um desses intermediários de que fala Oliveira, já que será um daqueles que
poderão entrar no poró, assistir ao que ali acontece e prestar auxílio aos praiás em tudo o
de que precisarem, até ele crescer e se tornar também um praiá.
Parece haver concordância entre os especialistas consultados no que concerne ao
modelo de processo do ritual, tanto em relação aos papéis dos participantes quanto às
etapas a serem performatizadas.
***

Um domingo de sol e vento em Brejo dos Padres, dia 16 de agosto de 2009.


Pouco antes das 7 horas da manhã os praiás já estavam dançando no pátio da casa
do principal protagonista do evento. O menino, Adrian, de 5 anos, que pertence ao tronco
Binga, filho de Antonio da Luz, neto de Maria da Luz, e bisneto do falecido cacique João
Binga. A promessa dos pais do menino foi dirigida ao principal encantado do batalhão de
João Binga, cujo zelo ficou principalmente nas mãos do filho David, mais conhecido como
Deda.
A casa fica bem perto da Igreja de Santo Antônio e podiam se ouvir dali os toantes
e a gaita dos praiás. Caminhando para alcançar a casa, outras pessoas se dirigiam na
mesma direção. Todos sabiam o que estava acontecendo e aqueles que ainda não sabiam e
299

que se encontravam na praça central do Brejo estavam sendo informados naquele


momento, pois curiosamente se aproximavam e perguntavam.
Ao chegar à frente da casa, já havia bastante gente ao redor do pátio e muitas
pessoas ficaram na entrada da cerca ocupando grande parte do estreito caminho. À medida
que chegava mais gente, o espaço começou a ficar apertado e todos aguardavam o
momento em que os praiás dessem o sinal de ir para outro lugar.
Enquanto os praiás dançavam no pátio, o menino estava na porta da casa junto aos
familiares, pronto para começar o ritual. Tinha todos os elementos e os ornamentos para o
evento: um capacete de ouricuri; uma corda de tabaco a tiracolo; o short vermelho da cor
do encantado ao qual foi feita a promessa; uma flecha forrada de papel de várias cores de
cuja extremidade pendiam também fitas coloridas; no corpo símbolos (principalmente
cruzes) pintados com um barro especial branco.
Conforme foi relatado durante o evento por alguns dos familiares do menino,
embora o ritual aberto ao público tenha se iniciado na manhã do domingo, na realidade os
praiás e todos os principais protagonistas do ritual encontraram-se na noite anterior. No
encontro noturno – que neste caso se realizou no terreiro da Fonte Grande por ele pertencer
ao encantado principal da festa – os maiores responsáveis pelo ritual, isto é, os
especialistas rituais e os puxadores dos toantes, orientaram todos os participantes sobre as
etapas do evento.
Antes de alcançar o terreiro onde se desenvolveu a maior parte do ritual e as fases
de mais destaque, os praiás foram para a casa dos principais protagonistas do evento. Na
frente da fila vai o praiá dono do menino – chamado o cabeceiro – reconhecido por levar
uma flecha forrada de fitas coloridas, igual àquela do menino, mas de tamanho maior. A
primeira etapa é a casa do menino. Depois de várias rodas de dança, os praiás dirigiram-se
em fila para a casa da noiva ao som dos maracás e dos toantes. Ao passarem pelas estradas
da aldeia, muitos saíram da própria casa para assistir e alguns decidiram seguir os praiás.
A noiva Vitória Oliveira é prima do menino, embora em grau distante. Filha de Ana
Paula Oliveira e criada pelo tio Francisco Regis Oliveira, Vitória foi escolhida pelos pais
do menino, honrando-a e tornando-a a princesa daquele dia. Como ficou evidenciado, os
Oliveira e o grupo doméstico Monteiro da Luz são do mesmo tronco Binga e mantêm
vínculos sólidos.
A noiva – com o corpo pintado, um adorno de fitas coloridas na cabeça e uma
pequena coroa – foi a cabeceira que guiou os praiás nas diversas rodas em frente à sua
300

casa até se fechar com o habitual toré. Terminadas as rodas de toré, todos se dirigiram para
a casa da primeira madrinha, Tamiris Monteiro, prima do pai do menino, portanto, sua tia-
prima, como costumam classificar esse grau de parentesco. Ali também aconteceram
diversas rodas, orientadas, desta vez, pela madrinha que usava, além dos enfeites, uma
blusa com a foto de seu avô, o falecido cacique João Binga. A mesma sequência de toré
fechou esta etapa e todos foram então para a casa da segunda madrinha. Também a
segunda madrinha, Ivone Tereza Julião, é tia-prima do menino, sendo filha de José
Raimundo Julião e Tereza Alexandrina da Luz.328
Depois de os praiás terem passado na casa da segunda madrinha, todos seguiram
para o terreiro do praiá dono do menino que, neste caso, era o terreiro do falecido cacique
João Binga. Ali se sucederam diversas rodas de dança, seguindo a ordem estabelecida
pelos cantadores que se alternavam para puxar os toantes.329
Tudo acontecia sob os olhos atentos dos especialistas rituais – zeladores, pais e
mães de praiá e cantadores – que controlam as sequências. No caso do ritual em pauta, ao
chegarem ao terreiro, as rodas são inicialmente encabeçadas pelos puxadores dos toantes –
nesta ocasião, foram Fausto e Krico330 – e por parentes do menino e da noiva.331
Após essas rodas, a noiva é levada aos pais do menino. Este ato ritual foi nomeado
como entrega da noiva, marcando o começo das rodas lideradas por ela e seguidas por
aquelas encabeçadas pelas madrinhas. Em ordem de importância foram se apresentando
todos os protagonistas do esperado evento, enquanto os padrinhos começam a aparecer
sempre em maior número. Estes são os únicos que não precisam de um “convite” para
participar do ritual, mas os organizadores expressaram o desejo de eles virem em grande
número.

328
Para uma visualização das relações de parentesco entre os diversos envolvidos, ver os diagramas VII e VIII.
329
Nos eventos rituais em que os praiás são protagonistas, as rodas são compostas por uma fileira de praiás e
por um praiá que segue em direção oposta a ela e que tem o papel de controlar e cuidar para que nada de
negativo entre no terreiro. Este, antes de qualquer ritual, precisa ser aberto e encruzado, isto é, limpo de
qualquer impureza. É necessário também fechá-lo quando o ritual chegar ao fim, do contrário, algo negativo
poderá acontecer.
330
Fausto, como já mencionamos, pertence ao tronco Binga. Krigo também é um cantador particularmente
famoso, mas pertence à outra família reconhecida como tronco velho.
331
No caso do ritual aqui apresentado, o tio da noiva, Regis Oliveira, e Vasco, seu tio-primo, lideraram a
fileira, junto com David Monteiro, pai de uma das madrinhas e zelador do praiá dono do menino, que herdou
o batalhão de seu pai, o falecido cacique João Binga.
301

Menino no Rancho. (Brejo dos Padres, agosto 2009)

A noiva As madrinhas
302

Como em todo ritual etnografado durante a pesquisa de campo, o momento da


oferenda da comida é especialmente importante. Foram servidos primeiramente os praiás e
os especialistas. Posteriormente, todos os que estavam presentes receberam o um prato e a
garapa. Para tornar “inesquecível” o evento, há de fato a preocupação em mostrar muita
fartura e distribuí-la entre os convidados e também entre os que se apresentam para
homenagear a família. Nas conversas sobre o ritual, podiam ser percebidas as
preocupações relativas às obrigações para com os membros das famílias envolvidas e não
apenas com a coletividade em geral. O público que assiste ao evento segue-o com
interesse, conhece as etapas, sente-se envolvido nele, e comenta algum detalhe. Em outras
palavras, o público é parte fundamental do ritual. Ele desempenha também um papel
importante enquanto vigilante e estimulador das performances. As proporções que a festa
apresenta se tornam a medida do quanto ela será “falada”, o público tendo então relevância
na divulgação do êxito alcançado.332
Quando a pausa da confraternização terminou, os praiás com as madrinhas e a
noiva tornaram a dançar as rodas. O menino dançava ao lado do praiá ao qual pertencia e
junto deles os padrinhos começaram a fechar as fileiras para não deixar os outros praiás se
aproximarem. Várias rodas foram realizadas antes da luta ter início e ia aumentando o
clima de expectativas em relação ao momento que não se avisa, apenas acontece. De
repente, o praiá dono do menino soltou-o, dando-lhe o sinal de escapar para não ser preso
pelos outros praiás. A luta tinha começado. Correndo em várias direções, os praiás
tentaram uma série de assaltos ao menino, enquanto os padrinhos o defendiam com força.
Durante as performances, os praiás se aproximaram do poró onde se refugiara o menino e
que acabou sendo quase totalmente destruído. No caso de Adrian, sendo ele muito
pequeno, um dos padrinhos o pegava no colo para defendê-lo dos ataques.
A atenção do público redobrou neste momento, o que se repetiu com intervalos em
outras rodas. Por diversas vezes o praiá soltou o menino e a luta voltou a acontecer.

332
Comentários sobre a abundância das oferendas são costumeiras e a generosidade nesta ocasião parece se
tornar um dever moral. Há gastos muito altos, pois se oferece carne e outros alimentos para um número
considerável de pessoas. Nos dias anteriores ao evento, a preparação dessa oferenda prevê a participação de
homens e mulheres com tarefas diferenciadas: os homens se encarregam de matar e cortar os animais,
enquanto as mulheres os preparam e cozinham. São momentos de socialização importante e se prestam para
que a família promotora do evento possa testar os níveis de solidariedade tanto dos parentes quanto dos mais
íntimos vizinhos e amigos que os ajudarão nessas tarefas.
303

A luta entre padrinhos e praiás.


304

Em virtude de a luta não ser confinada ao terreiro, houve uma dispersão ao seu
redor e parte do público seguiu a corrida dos praiás e dos padrinhos e a luta que era
travada entre eles, o que tornou muito dinâmico o desenvolvimento do ritual. Comentários
sobre a “bravura” dos moços, a agressividade e a destreza na luta fluíram como elogios. A
luta entre padrinhos e praiás, momento de performances de combate físico, é um
espetáculo que provoca grande envolvimento emocional do público. Houve uma torcida
geral para que o menino não fosse pego pelos praiás, mas tampouco se vê de forma
negativa o contrário.333
Neste caso, o menino não foi pego por outros praiás e, em consequência, houve o triunfo
dos padrinhos, especialmente do praiá ao qual a criança já pertencia por promessa e
entrega dos próprios pais.
Com o término das sequências que deram chances aos praiás de pegarem o menino,
o ritual chega à sua conclusão perante o público.
Pelas entrevistas reportadas no vídeo realizado por Athias (2006), o ritual se
estende quando os praiás, o menin e os especialistas rituais se dirigem a um lugar
reservado, onde devem acontecer os últimos atos rituais da iniciação: o tabaco de rolo será
repartido entre todos os presentes como ato simbólico da consolidação do vínculo e da
entrada do neófito no grupo. Os pais do menino junto com ele se dirigirão depois para a
casa do zelador do praiá dono do menino, onde se realizará o ritual para o fechamento do
corpo da criança, o que o protegerá de outros eventuais ataques, ato este que marca o
encerramento do evento.
Desta breve descrição etnográfica queremos ressaltar alguns aspectos que podem
nos ajudar a compreender os múltiplos papéis do evento. Contrariamente aos rituais
particulares que congregam unicamente familiares e os mais íntimos aliados, neste do
menino no rancho o leque de participações se abre consideravelmente, embora não de
maneira total como se verá no caso da corrida do imbu: sua dimensão pública e as enormes
proporções que toma nos informam que as performances ali realizadas precisam adquirir a
maior visibilidade possível a fim de que sejam confirmados diversos valores e status.
A escolha das três mulheres que participaram da realização do ritual evidencia a
união entre os Oliveira, os Monteiro da Luz e os Julião, como foi destacado anteriormente.

333
Os especialistas rituais consultados sobre o que aconteceria se o menino fosse pego por outro praiá
responderam que a criança passaria a pertencer a este. Haveria também uma espécie de formalização dessa
passagem de pertença ao final do ritual, quando o zelador do praiá que “ganhou” o menino entoa o toante
desse encantado para o menino dançar três rodas no terreiro para ele.
305

O ritual reforça tal aliança e a transmite ao resto da coletividade. A escolha das duas
madrinhas e da noiva do menino atestam a proximidade entre os diversos grupos
domésticos e o desejo de saldar esta aliança.
As madrinhas (não apenas aquelas deste caso), ao serem escolhidas pelos pais do
menino, sentem-se honradas, o “convite” sendo percebido como um sinal de grande
“consideração”. Ao perguntar se seria possível recusar um “convite”, foi respondido que se
isso acontecesse seria uma grande ofensa e as relações poderiam sofrer uma ruptura. A
demonstração do sentimento de honra pelo recebimento do “convite” e a sua aceitação são
explicitas declarações do acréscimo de “consideração” entre as partes envolvidas. É
interessante remarcar também que se afirmou que as madrinhas, embora se tornem
responsáveis pelo menino, são principalmente responsáveis pela noiva, ou seja, precisam
cuidar da sua acolhida e de todos os passos que ela dará durante o ritual. Durante o
desenvolvimento do ritual, de fato as madrinhas se movimentam ao redor da noiva,
estando sempre ao lado dela (fora o momento inicial, quando guiam as fileiras dos praiás).
Reafirma-se dessa forma a divisão dos espaços de gênero e o auxílio que as madrinhas
precisam dar à noiva dentro de uma relação tutelar.
Ser madrinha do menino no rancho significa adquirir prestígio tanto dentro quanto
fora da família. Ser repetidamente madrinha, isto é, receber muitos “convites”, significa
ser uma mulher altamente “respeitada”. É o caso de Raquel Bomba –já mencionada neste
trabalho – que acumulou um número considerável de participações (mais de 100) e pelas
quais demonstra ter muito orgulho. Há de se destacar que ela é particularmente requisitada
para este ritual em virtude de seus conhecimentos mágico-religiosos. Essas participações
mantêm e reforçam seu já conclamado prestígio.
Segundo as afirmações de todos os consultados, o ritual não é o casamento entre
crianças e não existe qualquer tipo de pressão para que os envolvidos estabeleçam no
futuro tal relação. O evento ritual é, no entanto, um momento que marcará tanto o menino
quanto a noiva, sobretudo os respectivos familiares, dando início as mais íntimas e
favoráveis relações.
A serem escolhidos não são apenas as madrinhas e a noiva, mas também os praiás
que participarão do evento. Os pais do menino e o zelador do praiá dono do menino pedem
a outros zeladores para levarem para o evento um número específico de praiás do próprio
batalhão. O convite dirigido ao zelador também se torna uma forma de manifestar a
“consideração” que se tem por ele. Ele é o avaliador do comportamento moral dos outros
306

homens e, neste caso, é o responsável por seus praiás, demonstrando a sua capacidade de
manter os rapazes “disciplinados”, tendo cumprido com os resguardos necessários para o
bom êxito do ritual. Ele também deve garantir que não haja brigas ou confusões durante a
sua execução.
Como se observou, os únicos a não serem convidados pelos pais do menino são os
padrinhos, que podem aparecer em número variável, sendo desejável um número igual ou
maior do que o dos praiás para se ter uma luta equilibrada. Quem quiser ser padrinho do
menino pode entrar no ritual e participar da luta sem prévio consentimento dos pais dele.
De certa forma, são os próprios padrinhos que manifestam a “consideração” pela família
que organiza a festa, o que dá a dimensão do prestígio do qual ela goza.
A família afirma a sua total adesão à tradição, mostrando a iniciação da criança,
integrando-a aos mistérios e aos poderes do grupo.
Expõem-se publicamente os que são considerados os legítimos integrantes do grupo
dos praiás, embora a identidade dos moços precise manter-se oculta. São os zeladores que
se expõem e todos sabem por quais encantados eles zelam; ali se reitera a própria
autoridade moral.
Comunicam-se a repartição de espaços, as competências e o status dos
participantes.
As diversas performances deste evento têm graus de envolvimento diferenciados,
mas ele apresenta um forte dinamismo. Há uma mobilização não apenas de parentes e
aliados, mas também das entidades cultuadas no esforço de testar as recíprocas
considerações, consolidar alianças e aumentar tanto quanto possível o prestígio familiar.

9.1.2 A corrida do imbu: a communitas na aldeia

A corrida do imbu é considerada o evento ritual mais importante do ano.


Diversamente dos outros rituais que se realizam no decorrer do ano e que têm um caráter
particular, estando sempre vinculados a algum pagamento de promessa individual ou
familiar, a corrida do imbu configura-se como um ritual coletivo num sentido mais
abrangente, na medida em que toda a coletividade é chamada a participar.
307

Matta (2005) realizou uma rica etnografia deste ritual,334 apresentando dados das
suas diferentes fases, bem como das dinâmicas coreográficas das danças, trazendo-nos
diversas informações sobre os principais protagonistas e promotores. Assim, faremos
referência ao trabalho desta autora que nos ajuda a complementar os nossos dados, que
foram retirados tanto da observação de algumas fases do ritual quanto das narrativas e das
argumentações dos mais envolvidos nele e de outros interlocutores que, embora não
participem diretamente do ritual, sentem que pertencem a ele e o consideram seu. A
intenção não é reportar cada detalhe do ritual, mas mostrar o seu dinamismo e os aspectos
mais salientes, bem como as intenções de comunicação e os estímulos emocionais que
produz.
Como mencionei anteriormente, o período de realização deste ritual coincide com a
Quaresma, pois começa no primeiro final de semana chamado de “entrudo”, isto é, o
último dia do período carnavalesco que anuncia a entrada na Quaresma. Embora as fases
mais relevantes do ritual aconteçam nesses finais de semana, os índios enfatizam que seu
início se dá antes, quando se encontra o primeiro imbu maduro. Este fruto é
particularmente apreciado e tornou-se o símbolo de grande fartura, pois é a própria
natureza que se encarrega de oferecê-lo com grande abundância, sem precisar do cuidado
humano para o seu florescer. O primeiro imbu maduro pode ser encontrado já em
novembro ou dezembro e anuncia as primeiras chuvas da estação, que são essenciais para a
preparação da terra para o futuro plantio, que geralmente acontece no mês de março.
Quando o primeiro imbu maduro for encontrado, serão realizadas as primeiras fases
do ritual, que culminará com a corrida. Quem encontra o primeiro imbu deve levá-lo aos
responsáveis pelo terreiro de Poente, que são Francisco Calu, sua mãe Dida e seu tio
Fernando. Portanto, os membros do tronco Calu são os responsáveis pela corrida que se
realiza em Brejo dos Padres. Cabe destacar que a corrida acontece também na aldeia
Serrinha e as argumentações em torno desta separação evidenciam as disputas existentes
entre os realizadores. Mas, diversamente de outras disputas, estas não chegam a
comprometer o clima de communitas que todos se comprometem a criar visando
justamente suspender os conflitos que fazem parte da vida rotineira.
Os discursos fazem referência a diversos aspectos que concernem, por exemplo, a
uma modalidade de atuação ritual que reivindica para si a posse da “correta” forma de

334
Há uma breve descrição da corrida do imbu também em Oliveira (1942, p. 160-163).
308

realização, equiparando o que é “mais antigo” com o que é “mais verdadeiro”. Francisco
Calu, ao explicar o processo que teria levado à realização de duas corridas, afirmou:

No começo a corrida era feita na frente da casa de Antonio Moreno,


naquela estrada que era uma mata e tinha um pé de quixabeira. Depois
passaram aí na casa da finada Firmina, aí no pé de imbuzeiro. Aí de lá,
quando foi uma época, puxaram o terreiro pra cá. Quando faleceu, agora
não lembro quem delas, pra não parar com a tradição, aí o velho João
Binga tirou pro terreiro dele. Aí ele disse que no ano que vem ele ia tirar
pra cá. Aí, quando passou esse ano, ele não quis devolver mais. Mas Bia,
que era a filha mais velha de Paturnia, ela trouxe de volta pra cá. Aí ficou
a corrida pra cá e pra lá. Mas a de lá não era válida, sabe por quê? A
corrida só é valida quando tem os passos. E eles não sabem. Tentaram
gravar, gravador quebrou. Tem mandado alguém para aprender, não
aprenderam. Aí tiraram para a Serrinha e esse foi um acordo com os mais
velhos. Primeiro todos os praiás desciam para cá e aí, quando terminava
na derradeira da corrida, aí nós subia pra lá. A derradeira que é o
domingo do mocó, quando sai o Mestre Guia. Aí, depois, foi o acordo
entre o João Binga e o velho Serafim, porque eles estavam velhos e não
podiam descer mais. Então, eles iam dançar só o domingo, para os mais
velhos poder assistir e lembrar dos tempos que eles desciam para cá. Aí
combinaram, né? Mas quando o tempo passou, disseram que iam dançar
também os sábados, que lá também ia ter as corridas. Mas eu digo o que
os antepassados disseram: que a corrida só é corrida quando tem passos.

Não tendo tido a possibilidade de etnografar a corrida na Serrinha,335 não tenho


dados sobre as modalidades de realização do ritual. No entanto, é significativo assinalar
que alguns atores sociais envolvidos na participação destacaram algumas comparações
entre as duas modalidades. Foi ressaltado o grau elevado de ordem no desenvolvimento
deste ritual em relação ao de Brejo dos Padres e, sobretudo, a pouca abertura ao público
externo, impondo a necessária discrição que permite que ele alcance os efeitos
esperados.336
A noite dos passos – à qual se refere Francisco como elemento essencial para a
corrida – é o ritual que se desenvolve todos os sábados à noite e se prolonga até o
amanhecer. Maria Calu, uma das quatro Marias, reconhecida mãe de praiás e dona do
terreiro de Poente era a cantadeira dos passos. Estes são os toantes dos encantados que
são entoados e dançados durante as noites. Como se pode observar no diagrama III (p.

335
Tampouco Matta (2005) reporta dados sobre a realização nesta outra aldeia.
336
Em 2008, na primeira ida ao campo, fui com Andrea Cadena Giberti, da SSL, a um dos domingos da
corrida na Serrinha. Diversamente do ritual realizado no terreiro dos Calu, aqui não era consentido tirar fotos
e a atmosfera construída em torno do ritual era marcada por uma forte carga de sacralização dos atos,
favorecida pelo silêncio e pela menor participação em comparação com Brejo dos Padres.
309

105), o papel de cantadeira dos passos foi transmitido dentro do próprio tronco familiar e
apenas entre mulheres. Hoje, quem canta os passos é Dida, com o auxílio de uma mulher
de nome Bárbara, que está aprendendo os toantes e que gradualmente substituirá Dida.
É interessante destacar que, apesar de os organizadores principais da corrida serem
os membros da família Calu e de os interlocutores consultados manifestarem que estão de
acordo que eles gerenciem o ritual por conhecerem os passos e pela antiguidade desse
mandato, todos eles sentem a corrida como própria, isto é, como evento pelo qual são
responsáveis e em que são também protagonistas; afirmaram que a festa lhes pertencia, o
que lhes dá a possibilidade de convidar quem quiserem. Os Pankararu que moram longe da
área indígena e nas capitais do país e que voltam para assistir à corrida e participar dela
trazem com eles amigos para que possam conhecer o ritual.
Fernando Calu, que é uma figura de destaque entre os Pankararu e que participa de
projetos que valorizam a própria tradição, viaja frequentemente para São Paulo, onde
estabeleceu relações com agentes que se dedicam a filmagens. Todos os anos uma pequena
equipe337 volta para Brejo dos Padres para filmar e gravar a corrida, menos na noite dos
passos, durante a qual é proibida qualquer gravação.
Os índios convidam tanto os “brancos” como outros índios para participar da
própria “brincadeira”, como muito deles chamam o ritual. Em Juazeiro do Norte e em
Santa Brígida, por ocasião das romarias, há o costume de convidar quem demonstra ter
proximidade com eles ou curiosidade em relação a estas expressões culturais. 338 Durante as
quatro semanas da corrida há, portanto, uma convergência de pessoas vindas de todos os
lugares.
Francisco Calu, que explicou as fases que precedem os quatro finais de semana da
corrida, afirmou que uma vez encontrado o primeiro imbu maduro, ele e os outros
responsáveis comunicam a toda a coletividade o dia em que acontecerá o flechamento do
fruto sagrado. Da descrição detalhada desta fase feita por Francisco e Matta (2005),
deduzimos que o flechamento consiste em contínuas tentativas de flechar o fruto, o qual,
após ter sido embrulhado em folhas, é pendurado em um ramo para ser atingido.
Conseguido o flechamento, explicou Francisco, passa-se à outra fase do ritual, o

337
A equipe desenvolve o projeto Selo Mundo Melhor, financiado pelo governo do estado de São Paulo,
através do Programa de Ação Cultural, da Secretaria do Estado da Cultura.
338
Em Juazeiro do Norte Zé Binga e outros Pankararú convidaram um dos padres que se encontraram na casa
da madrinha Dodô, bem como outros romeiros a viajar para Brejo na época da corrida para eles poder
conhecer melhor os índios.
310

puxamento do cipó. Este momento seria especialmente esperado, porque o resultado final
de sua execução definirá se o ano vai ser “bom de chuva ou ruim”. Se ganharem os que
puxam o cipó do lado de Poente (Oeste), o ano será bom, ou seja, a safra será boa, do
contrário, o ano será difícil. Pode-se dizer que se trata de um ritual agrícola em que todos
os interessados se sentem participantes do momento em que será estabelecido o êxito do
ciclo agrícola.
Entre os comentários sobre este evento, um pareceu-me especialmente significativo
quanto aos múltiplos aspectos que lhe são atribuídos. Em 2010, durante a realização do
ritual, duas antigas zeladoras de praiás teriam comentado que durante o ritual houve um
sinal que anunciava uma desgraça para toda a coletividade e teriam afirmado que alguém ia
morrer. Poucos dias depois, Quitéria Binga (a já mencionada liderança) faleceu, o que
reforçou tanto o prestígio das zeladoras quanto os mistérios em torno do ritual e dos
elementos que ali são manipulados, tornando-se um momento especial para receber avisos
ou outras comunicações dos encantados.
As diversas fases da corrida do imbu podem estender-se por vários meses, isto é,
desde o encontro do primeiro imbu até os quatro finais de semanas a partir do dia do
entrudo. Francisco comentou que, nos intervalos entre um evento ritual e outro, os mais
envolvidos – tanto pais e mães de praiá, os praiás, os cantadores e as cantadeiras –
continuam observando os devidos resguardos que, diversamente dos outros rituais que
exigem de três dias a uma semana para purificar seus corpos, o tempo aqui exigido é bem
mais extenso.339
Segundo o relato de Francisco sobre as distintas fases da corrida, num sábado antes
do entrudo se realiza o tiramento das moças, que consiste na escolha das mulheres que
poderão participar do ritual. Elas são reunidas no terreiro para que os praiás possam
escolhê-las. Essas mulheres serão as que nos domingos levarão os cestos para serem
oferecidos aos respectivos praiás. Não apenas Francisco, mas também outros especialistas
ressaltaram que a corrida (diferente da do menino no rancho) é um ritual no qual as
principais protagonistas são as mulheres: são elas que renovam pedidos e pagam suas
promessas aos encantados.340 Atualmente as mulheres que fazem as oferendas aos praiás e

339
Francisco explicou que um grupo mais restrito de homens tem uma preparação longe dos espaços da vida
cotidiana, reunindo-se e permanecendo até por um mês em um lugar afastado, o que lhes permitiria uma
maior concentração e a obtenção de uma comunicação mais intensa com os encantados.
340
Há relatos sobre as práticas das mulheres durante a corrida em tempos distantes, em que iam buscar o
imbu nas serras e em lugares afastados.
311

dançam nos rituais enchem cestos de frutas, ovos, refrigerantes, bolos, biscoitos e mais
raramente imbu, como teria sido no passado, segundo os relatos de alguns anciãos. Fora
duas mulheres que por herança familiar todo ano dançam na corrida, as outras passam por
essa seleção.341
Matta (2005, p. 105) explica que as mulheres convidam um homem para dançar nos
rituais. Se o escolhido não quiser dançar, deve procurar outro rapaz e pagar a ele para que
dance em seu lugar. Os interlocutores indagados sobre a participação na queima da
cansação manifestaram evidente orgulho, sentindo-se privilegiados por terem a chance de
nesse ano poderem se beneficiar dos efeitos da planta e do ritual como um todo.
No sábado, 13 de fevereiro de 2010, o ritual da noite dos passos342 começou em
torno das 20 horas. Dida – a cantadeira – e Bárbara343 entoaram as cantigas dos passos
relacionadas a determinados encantados que adquiriram formas animais.344 Os praiás e as
moças dão procedimento às coreografias performatizando os passos dos animais. O público
fica ao redor do terreiro atento a cada sequência.345
Durante os passos, os responsáveis principais pelo evento criam uma atmosfera de
especial concentração, convidando todos os presentes a terem respeito pelas obrigações
que ali estão sendo realizadas. No decorrer da execução, uma das mulheres que estava
dançando queixou-se de um comportamento que a estava incomodando. O ritual teve que
ser momentaneamente suspenso e alguém que se encontrava do lado contrário em que
estava a cantadeira (em plena obscuridade não consegui identificá-lo) repreendeu a todos

341
Darinha, filha da falecida Maria do Carmo do tronco Calu, dançava em frente à fila que se formou durante
o ritual, por ser ela “a moça do capitão dono do terreiro”; Dora, do tronco Binga, herdou da mãe Maria Ginu
a posição “trazeira”, sendo a “moça” de outro praiá de “alta patente”. São duas posições prestigiadas em
virtude de esses praiás serem os principais responsáveis pelo ritual. Todas as outras mulheres, portanto, são
escolhidas pelos praiás. A escolha depende das promessas e das curas realizadas por aqueles específicos
praiás, envolvendo, portanto as dinâmicas relacionadas aos vínculos entre pacientes e zeladores. Há também
mulheres que, por terem sido curadas de doenças graves, participam há vários anos seguidos da corrida, o
pagamento sendo renovado a cada ano.
342
Nos quatro sábados em que se realiza o ritual a noite dos passos, há uma diversa afluência do público.
Muitos dos interlocutores (do público) afirmaram que “gostam” ir à terceira noite por ser mais animada do
que as outras e com um maior número de participantes. Não fiz o registro de todas as noites, mas na terceira
havia muito mais pessoas que na primeira. Havia também um número bem maior de praiás e mulheres
dançando.
343
Bárbara, conforme informou Francisco Calu, seria apenas uma auxiliar que estaria aprendendo os toantes.
344
Em conversa, Dida afirmou só conhecer 16 passos que lhe foram ensinados pela avó Paturnia, mas que no
total seriam 25. Os que faltam estariam voltando em sonho, a avó aparecendo para ela e transmitindo-os.
345
Há alguns passos que são particularmente esperados, como o do cachorro, o da abelha e o do sapo, por
terem coreografias especialmente movimentadas.
312

os presentes pelo mal acontecido, exigindo respeito pela “penitência” que ali estava sendo
cumprida e que envolvia toda a comunidade.
Terminada a sequência dos passos, Dida se colocou no centro do terreiro e,
alternando-se com seu irmão Fernando e seu filho Francisco, começou a entoar os toré,
durante os quais se juntaram todos os participantes e parte do público para dançar. Fechou-
se assim a noite dos passos quando as primeiras luzes do amanhecer já estavam iluminando
o terreiro.
No dia seguinte, às 9 horas da manhã, os praiás estavam novamente dançando no
terreiro. Como se pode imaginar, o desenvolvimento do ritual demanda muitas energias e
especial concentração, seguindo todas as etapas rigorosamente orientadas pelos
responsáveis. O domingo é o dia da queima da cansação, isto é, a parte do ritual em que se
dança e se luta com galhos desta especial urtiga que dizem ter especiais poderes curativos.
O galho da cansação que os parceiros levam apoiado nas costas é chamado “manto
divino”, em virtude desses efeitos poderosos.346
Alguns cantadores se alternaram (Fernando, Francisco e Fausto) e puxaram os
toantes. Depois de muitas rodas de dança e da costumeira distribuição de comida e garapa,
os praiás e as mulheres (que já haviam trazidos os cestos e os tinham colocado dentro do
salão) se deslocaram para outro terreiro, e depois ainda para outro, todos muito
próximos.347 Tanto as mulheres quanto os homens haviam sido pintados com o barro
especial branco e, alternando-se com os praiás, entraram na fileira da dança, cada um com
seu galho de cansação. Na ida para os outros terreiros apareceram ali não apenas todos os
cantadores e zeladores de praiás, mas também as lideranças e os que têm os cargos de
cacique e pajé.
Tudo estava pronto para começar a queima da cansação: os praiás saíram do
terreiro e se colocaram ao seu redor, enquanto os parceiros entravam no seu centro.
Pegaram-se pelos braços, mantendo sempre os galhos da cansação apoiados nas costas e
começaram a circular numa dança bastante irregular, não mais disciplinada e ordenada
como aquela vista até esse momento. Os parceiros tentavam atingir-se – um contra o outro

346
Ao falar dos efeitos desta urtiga, Francisco afirmou “[...] a gente se queima porque é uma disciplina muito
fina que alivia toda dor. Se você estiver com alguma dor, com algum problema, faz uma promessa e vai
dançar cansação que vai ficar boa! Mas a planta é perigosa, tem que ter coragem pra encarar! O galho afasta
todo mal!”.
347
Nos domingo há uma movimentação entre três terreiros muito próximos uns dos outros. O mais
importante é o de Poente e os outros são Aratikum e Muriciceiro, todos zelados por aliados dos Calu e seus
parentes.
313

– tornando a dança uma verdadeira luta, o que elevou os níveis de emoção do ritual. A luta
e o autoflagelo contribuem para a criação desta atmosfera que, justamente pela sua alta
emotividade torna esses momentos memoráveis. Embora os corpos estivessem
avermelhados pelas queimaduras, ninguém lamentou qualquer dor. Pelo contrário,
registrou-se o bem-estar de todos e criou-se um clima de harmonia, havendo espaço para
risadas e abraços.
Após a queima, os galhos de cansasão foram jogados nas laterais do terreiro para
que alguns toré fossem dançados por todos os que quisessem participar. Os toré fecharam
o ritual, que só recomeçará no próximo final de semana. No último domingo não se realiza
a queima da cansação por ser o dia em que se aguarda a saída do Mestre Guia na aldeia
Serrinha348 e que fechará a corrida.
Como se mencionou anteriormente, na corrida não há limites de participação e toda
a coletividade é chamada para o evento.
Como se pode imaginar, as despesas com o ritual são enormes em virtude da alta
afluência de pessoas nos quatro finais de semana, sobretudo durante os domingos, quando
é servido para todos os presentes um prato de comida. Perguntei a Francisco se a Funai
ajudava na realização da festa e ele respondeu:

A Funai ela ajuda, mas é muita gente pra você abastecer. Vamos supor: a
Funai gasta R$ 10.0000. Ela dá o quê? 100 kg de carne para cada
domingo e na derradeira dá 160 kg de carne. Mas a gente gasta 300 kg de
carne para cada domingo, porque é muita gente. Ela dá quatro saquinhos
de farinha, oito ou dez fardos de arroz, feijão não quer dar. Dá aquele
café e bolacha e essa rapadurinha. Aí a gente faz o quê? Tem muitas
pessoas que chega a mim, pede aquela bença, eu rezo, ficam bom e vão se
embora. Pra eu curar, pedem quanto é, e eu digo: não é nada. Aí, quando
chega esse tempo, agora é a hora de vocês contribuir pra corrida. Aí um
dá um fardo de arroz, outro dá um fardo de rapadura, outro de farinha. Eu
tenho muitas pessoas que também dão ajuda. Minha irmã vem de São
Paulo e compra cinco ou seis carneiros e dá, e assim a gente vai levando, né?

O aspecto econômico é importante, pois para este evento ritual não apenas o círculo
de lealdade dos Calu é solicitado para dar ajuda, mas toda a coletividade é chamada a
contribuir. A manifestação de adesão aos princípios que ali estão sendo passados e
reiterados a cada ano se faz também através da própria contribuição financeira.

348
Não etnografei a saída do Mestre Guia por ela ter sido adiada em virtude de problemas pouco claros. Os
comentários sobre a saída do principal encantado dão ênfase ao mistério de seu culto.
314

Corrida do imbu. (Brejo dos Padres, fevereiro 2010)


315

O ritual tem – como já destacado para os outros aqui descritos – múltiplas


interpretações. Alguns o associam com o sofrimento de Jesus Cristo na cruz e se
identificam com ele, e outros alegam que o culto é dedicado ao Mestre Guia como símbolo
étnico principal, remetendo o significado do ritual a uma homenagem a este encantado, ao
qual se confia a proteção das aldeias e a união entre os Pankararu, bem como a fertilidade
da terra.
Zé Auto quis enfatizar que a corrida é um ritual especialmente para as mulheres,
sendo elas, portanto, as suas protagonistas, associando o pagamento das promessas que
elas fazem ao ritual de fertilidade da terra vinculada ao ciclo agrícola. As mulheres
indagadas sobre o significado do ritual do qual acabavam de participar também falaram
sobre o cumprimento das próprias obrigações, sentindo-se aliviadas tanto das
responsabilidades que recaem sobre elas e que podem afetar toda a coletividade, quanto do
cumprimento do pagamento da promessa que as livra das eventuais doenças que as tenham
atingido ou que podem chegar a atingi-las e as suas famílias.
Pode-se dizer que na corrida do imbu se cumprem as responsabilidades em comum
e se estabelecem padrões de comportamento que deverão beneficiar toda a coletividade. É
um ato ritual para o benefício de todos os Pankararu. Embora diferente das romarias que
são especialmente estimuladoras da elevação dos ideais e dos valores comuns e que
predispõem os atores sociais a vivenciarem a communitas, a corrida que é realizada dentro
da área indígena eleva-se a culto étnico com a intenção de suspender os conflitos e as
desavenças entre facções durante o tempo de sua realização.
É o momento da reflexão. Apesar de o tempo da corrida poder se desenrolar
durante vários meses, pelo menos os quatro finais de semana das atividades rituais mais
intensas marcam a suspensão do “drama social” (Turner, 1974). Todos os praiás podem
participar, isto é, todos os pais e mães de praiás se responsabilizam em levar seus
batalhões para que dancem durante esse período. Neste evento ritual, portanto,
performatizam-se os aspectos horizontais entre todos os participantes, visando reforçar o
sentimento de pertença a uma comunidade cujas entidades se propõem a protegê-la se seus
membros continuarem seguindo as disciplinas e as práticas rituais aqui legitimadas, ou
seja, a doutrina da aldeia.
316

Considerações finais

No decorrer deste trabalho foram exploradas diversas temáticas e analisadas


experiências individuais e coletivas com o objetivo de compreender quais são os elementos
que os Pankararu mobilizam para se organizar social e politicamente, destacando o papel
que têm os rituais religiosos nesses processos, bem como compreender as modalidades da
tradição de conhecimento à qual os índios estão ligados e cultivam. Das temáticas tratadas
desejo aqui elaborar algumas considerações finais que são pensadas como pontos de
partida para futuros caminhos de pesquisa.
Ao abordar os processos experienciais familiares e individuais e as dinâmicas
relacionadas à construção da reputação na cotidianidade dos índios, observei a importância
que a família extensa e o tronco têm nas interações entre grupos sociais e políticos que
estão em constante movimento, não havendo agrupamentos e hierarquias estanques, mas
constantes reconfigurações de alianças e fissões.
A família extensa, constituída como um grupo doméstico, é a principal unidade
sociológica de referência dos índios, sendo também a mais importante articuladora das
relações e a orientadora das condutas de seus membros. Ela tem seu sistema educativo e os
próprios mecanismos de hierarquização de competências dos indivíduos que a compõem,
visando manter a desejada união e a integridade moral e obter benefícios econômicos e de
prestígio. Oferece a seus membros o necessário apoio para o desenvolvimento de qualquer
empreendimento e estes atuam em prol da sua reprodução. Em virtude da relativa
autonomia que caracteriza cada família e seus componentes, há processos experienciais
diferenciados, o que gera variações de posturas e conflitos que impulsionam a dinamização
das reconfigurações de alianças. Como se observou, o conflito nestas dinâmicas, em vez de
ser causa de desagregação, tem o papel de impulsionador da construção e do ordenamento
de unidades sociais e políticas.
Embora o grupo étnico como comunidade política emerja em determinadas
circunstâncias em que é preciso mostrar força política diante do Estado ou de grupos
sociais que impedem o reconhecimento dos direitos dos índios, o tronco se configura como
a principal comunidade política local, cujos membros reconhecem as próprias autoridades.
Dependendo das condições históricas e políticas, os troncos podem se aliar, formando
comunidades maiores, adquirindo força perante as outras e estabelecendo relações
317

assimétricas entre elas. Cabe salientar que, embora as famílias extensas que compõem um
determinado tronco possam ter desavenças importantes a ponto de provocar fissões no seu
seio, o sentimento de pertença a ele não é alterado. Isto denota a importância da identidade
do próprio tronco, que permite o compartilhamento de um determinado carisma e do qual
decorre sua força política em face de eventuais ameaças.
A etnografia com foco na tessitura das relações, no mapeamento da construção de
redes que, como se viu, podem ultrapassar as fronteiras étnicas, permite afirmar que essas
unidades sociais e políticas (famílias e troncos), cuja ênfase no sentimento de pertença é
operativa no dia a dia dos índios, são as principais protagonistas do forjamento de visões
do mundo e quadros morais específicos que se encontram em contínua mudança em
virtude dos acontecimentos de ordem histórica e política e da capacidade de atores sociais
concretos adaptá-las a eles.
Como foi ressaltado, o grupo étnico Pankararu é o resultado do segundo processo
de territorialização. Um processo em que não houve apenas a ação do órgão indigenista
organizando as comunidades locais, mas também que impôs a ele um etnônimo e uma
determinada “indianidade”. Existia ali um substrato de coletividades que contribuiu a lhe
dar vida. Havia ali anteriores identidades familiares ou de troncos oriundos de diferentes
lugares.
Como o primeiro processo de territorialização em que o confluir de parcelas de
coletividades indígenas nos aldeamentos deve ter impulsionado experiências a partir das
quais se elaboraram conhecimentos comuns e coesões entre diversas famílias, assim o
segundo processo de territorialização permitiu que famílias e troncos pudessem unir-se,
criar alianças, sistematizar conhecimentos para reivindicar a própria e diferenciada
etnicidade. Considero importante destacar que essas unidades sociais (famílias ou troncos)
uniram-se e adquiriram força política no momento em que o órgão indigenista agiu, mas
elas preexistiam, isto é, havia já identidades e formas organizativas que não foram
apagadas pela construção do grupo étnico e pela imposição de um arranjo organizativo
político imposto pelo órgão indigenista.
A construção do grupo étnico aportou, certamente, mudanças na configuração
social e política, permitindo que grupos familiares pudessem se aliar e proceder à
elaboração de um conjunto de conhecimentos que a situação histórica precedente não havia
possibilitado. A “história das Marias” é particularmente significativa da maneira com que
os índios construíram a própria história remetendo a identidade étnica a um passado
318

anterior à ação do SPI. Ela é fruto de uma teorização dos índios realizada com os próprios
termos de parentesco – o “tronco” Pankararu – e que alimenta a percepção de um processo
de continuidade de um passado originário. Se, por um lado, a identidade étnica está
vinculada à esfera pública e à encenação da “diversidade”, por outro, a experiência da
etnicidade assim teorizada é percebida como algo enraizado nas origens, longe, portanto,
de qualquer “invenção”. Com efeito, não há invenção alguma na percepção dos índios
sobre a própria identidade étnica, identidade esta que a partir do processo de
territorialização era (e é ainda hoje) o resultado de uma elaboração que é contínua e levada
a feito por essas unidades sociais. Como ressaltou Oliveira Filho (2004),

O que seria próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização


histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até mesmo o
reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que
decorre a força política e emocional da etnicidade (p. 32-33, grifo meu).

Cabe salientar que, embora a produção de histórias sobre o próprio grupo étnico
possa contribuir para a construção do sentimento de pertença a ele, a força emocional da
identidade étnica não decorre delas, mas dos últimos rituais descritos neste trabalho
(sobretudo a corrida do imbu). Mas antes de destacar o papel e as específicas modalidades
dos rituais, é preciso fazer ainda algumas considerações sobre a organização segmentar e
descentralizada dos Pankararu.
Como foi ressaltado, não há uma figura política centralizadora com autoridade
reconhecida para intervir na regulação moral e nos conflitos. Há lideranças que adquirem
especial poder por conjugarem capacidades políticas e conhecimentos mágico-religiosos e
que, em circunstâncias específicas, reúnem-se em conselho com os diversos caciques e o
pajé para resolver questões de ordem comunitária. São eles que moldam e renovam um
quadro moral que orienta os membros das famílias e os troncos aos quais pertencem, mas
não se tornam figuras centralizadoras com poderes coercitivos sobre os membros do grupo
étnico como um todo.
Embora o regime tutelar tenha conseguido mobilizar e unir as unidades sociais que
vieram a compor o grupo étnico nos primeiros anos da sua instalação na área, os chefes de
Posto que se sucederam não se transformaram em autoridades legítimas para a regulação
moral do grupo e para intervir nos conflitos interfamiliares. Diversamente, o líder
carismático Pedro Batista teve a capacidade não apenas de aglutinar e converter interesses
de facções e de famílias em interesses coletivos mais abrangentes, como também era dono
319

de uma autoridade moral máxima e estava investido de poderes disciplinadores e


coercitivos, gozando da aprovação geral de seus seguidores.
Como foi destacado, este líder carismático, juntamente com a madrinha Dodô, não
promovia a criação ou a manifestação de diferenças étnicas entre os grupos que aderiram
ao movimento. A concepção que os guiava tinha suas bases na já secular política da
“mistura” que fora implantada, diversa daquela promovida pelo SPI e em oposição a ela. O
SPI, naquela época, procurava os sinais diacríticos necessários para reconhecer uma
diferenciada identidade étnica e assim poder cumprir a sua tarefa de “tutor dos índios”.
Desta situação é necessário dar relevo a duas questões importantes: A primeira: a
instauração da relação de dominação não se concretiza apenas pela imposição externa de
novas formas organizativas por uma agência secular ou religiosa, mas a percepção que as
coletividades têm desse processo e as fontes internas para a sua legitimação concorrem
para que ela aconteça. Os especialistas rituais mais velhos, vinculados tanto ao grupo dos
penitentes quanto ao dos praiás, fizeram referência aos desequilíbrios que existem nas
diferentes esferas do Cosmo e que acarretam o risco sempre presente do fim do mundo. O
conselheiro Pedro Batista, tido como um enviado divino, ao “restabelecer” os valores
morais dos quais os índios se teriam afastado, lhe teria indicado e oferecido o caminho da
salvação e o afastamento do apocalipse. Esse risco está presente nas argumentações dos
mais velhos e a partir dele constroem o quadro moral de referência para orientar seus
parentes e os membros da própria comunidade política.
A segunda (atrelada à primeira): os Pankararu, no embate com duas agências que de
certa forma concorriam para obter seguidores e concretizar seus respectivos projetos,
tiveram posturas que mais que divergentes foram oportunas no sentido de procurar os
possíveis benefícios que ambas podiam oferecer. Com efeito, os seguidores de Pedro
Batista apoiaram o processo de reivindicação étnica e as ações do órgão indigenista e deles
participaram ativamente, o lado pragmático sendo também contemplado na determinação
das próprias escolhas. Há de se considerar que o SPI não garantia aos índios territórios
étnicos, isto é, uma plena solução fundiária, e deixava a sua economia na mesma relação de
dependência dos patrões (plantando nas terras destes), perpetuando assim a condição de
campesinato sem terra. Por outro lado, Pedro Batista garantia terras coletivas para o
cultivo, embora para tal propósito obrigasse seus seguidores a trabalharem nas terras dos
oligarcas dos quais ele recebia apoio, tendo-se estabelecido uma relação de
interdependência que garantia a perpetuação do coronelismo. Nesse período, para os
320

líderes políticos e religiosos pankararu, diante dessas circunstâncias e segundo as


estratégias possíveis na procura de terra para o cultivo, uma “indianidade” e uma
moralidade “penitente” eram associadas e até complementares no decurso da
reivindicação. Neste caso, então, ser “penitente” e ser “índio” não constituíam alternativas
excludentes.
As mudanças advindas a partir da década de 70 e, sobretudo, nos anos 80 (como
mencionei no último capítulo) dos novos usos políticos da “cultura”, que impulsionaram
um processo de “etnificação” das expressões culturais, tornaram sensivelmente visíveis as
disputas entre os índios no decorrer da elaboração cultural.
As divergências emergem nitidamente das disputas simbólicas e políticas entre
atores sociais e grupos familiares que se reconhecem como pertencentes ao grupo étnico e
que enfatizam as diversas elaborações dos fluxos culturais que circulam na região,
atribuindo ênfase e valor diversos aos vínculos com outros grupos sociais e étnicos.
Pode-se dizer que há um processo de construção da diferença que não se baseia
apenas na demonstração de parcos sinais diacríticos, mas concerne à própria organização
social do Cosmo, ou seja, a articulação diferenciada das entidades e a repartição de
competências das práticas rituais a elas vinculadas entre grupos étnicos, bem como entre
grupos rituais do mesmo grupo étnico. Nestes termos, como já ressaltado por Oliveira
Filho (2004, p. 32-34), a etnicidade não pode ser abordada somente nos seus aspectos
políticos,349 pois ela abrange as esferas social e religiosa na medida em que o processo de
elaboração cultural deflagrado quando da constituição de um grupo étnico “[...] é também
aquele da comunhão de sentidos e valores, do batismo de cada um de seus membros, da
obediência a uma autoridade simultaneamente religiosa e política” (ibidem, p. 34).
No circuito ritual de cura mapeado através da etnografia das romarias e das trocas
de visitas, destacaram-se as mútuas apropriações dos grupos rituais em interação. Este
circuito e outros destacados por Arruti (1996, p. 57-59) são anteriores ao segundo processo
de territorialização e impulsionaram trocas recíprocas em que símbolos e performances
rituais fluíram, e continuam fluindo, na rede de relações que se construiu e se alimentou da
mobilidade dos grupos, especialmente dos grupos familiares.

349
Como a abordagem de Cohen (1974), que enfatiza apenas os aspectos político-instrumentalistas
da etnicidade e que orientou, e ainda orienta, a forma com que vêm sendo analisadas as dinâmicas de
surgimento de coletividades étnicas.
321

Diversamente do recorte territorial que as fronteiras étnicas impõem e que gera um


movimento de recorte espacial das práticas rituais, o circuito ritual de cura delineado pelos
índios-romeiros transborda tais limites, não apenas construindo e alimentando relações
com outros grupos rituais, mas também num contínuo alento da relação com um território
muito mais vasto.
De relevante importância acredito ser a guarda da memória do grupo de romeiros
pankararu a partir do locus que delineia esse vasto espaço sagrado. Esse locus (cidades,
túmulos, serras, pedras etc.), disseminado por uma vasta região, é marcado tanto pela
passagem desses líderes carismáticos como evoca histórias familiares de deslocamentos. A
relação afetiva e emocional com esse locus é revivida a cada romaria. Em cada uma delas
são importantes não apenas os itinerários que se realizam em todos os centros de
peregrinação, isto é, seu roteiro ritual fixo, mas também os lugares carregados de histórias,
cuja memória é reativada ao se percorrer uma estrada, ao se visitar um morador, ao se
reencontrarem pontualmente outros romeiros. A romaria provoca uma revisitação dessa
memória, que é reativada e atualizada, mas principalmente socializada com aqueles que
compartilham a viagem. Sem dúvida, as frequentes romarias realizadas pelos Pankararu
são os principais motores dessas memórias zeladas por atores específicos, sobretudo
especialistas rituais. Reitera-se assim periodicamente o vínculo entre esse espaço que se
tornou sagrado e as coletividades que se mobilizam para percorrê-lo, estabelecendo-se
entre elas recíproca solidariedade, sentindo-se partícipes de uma comunidade maior do que
o próprio universo local. Nestes termos, aqui o território toma conotações totalmente
diferentes do recorte espacial estabelecido pelo processo de territorialização, ou seja, pela
constituição da Terra Indígena Pankararu.
O grupo mais restrito de especialistas rituais, que pertencem aos troncos velhos e
que carregam de ênfase e de valor enaltecido a etnicidade, tende a denegrir esses circuitos
de romarias que se configuram como “dispersões”. No esforço de aglutinar e encontrar
consenso para reforçar o sentimento de pertença ao grupo étnico, bem como de impor o
reconhecimento de certos membros como autoridades morais e políticas principais desse
grupo mais restrito, o qual cultiva os saberes e os segredos da tradição indígena, essas
“dispersões” tornam-se forças antagônicas.
Embora não sejam apenas os grupos de penitentes a empreenderem as romarias,
sobre eles recaem as responsabilidades de tais “dispersões” e as da alimentação das trocas
rituais entre diferentes coletividades étnicas. A “dispersão” não seria uma ameaça enquanto
322

apego à outra comunidade política étnica, mas, como se viu, as romarias e as trocas de
visitas permitem trazer para dentro das fronteiras étnicas elementos simbólicos e recursos
humanos capazes de aumentar o prestígio familiar.
As disputas entre os grupos rituais aqui focados procedem da concorrência pelas
chances de poder que ali circulam e que estão sujeitas às configurações históricas e
políticas, tendo peso as agências que interatuam com eles e que apoiaram
diferenciadamente as atuações de cada grupo. Pode-se dizer que houve e há uma condição
de perpétuo conflito entre comunidades políticas locais que, em cada “situação histórica”
(Oliveira Filho, 1988), tentam capitalizar as relações com agências ou agentes para
deslegitimar ou reforçar um determinado status quo.
Observou-se que, a partir do segundo processo de territorialização, o culto aos
encantados teve mais incidência e se atribuiu mais prestígio a quem o seguisse, em
detrimento dos outros cultos realizados pelos penitentes, os quais perderam prestígio e
força política. No entanto, como se viu, tal tendência não eliminou os grupos de penitentes
e os circuitos rituais ligados às romarias. Destaca-se, ao contrário, a existência de um
processo de “etnificação da penitência”, os membros destes grupos rituais sendo obrigados
a inserir-se no quadro político e moral que concorrem para fazer vigorar. Ademais, à parte
os que ressaltam os elementos “exógenos” do culto dos penitentes em meio às disputas
amplamente descritas, de forma geral, há a tendência a atribuir aos membros do grupo
masculino um “mistério” que seria peculiar dos “penitentes pankararu”, distinto, portanto,
dos outros grupos presentes na região.
Os fluxos culturais oriundos de diferentes tradições de conhecimento, embora antes
sistematizados, voltam à própria fluidez e são articulados no “contexto de experiência”.
Propus esta ideia em virtude de ela condensar aspectos que se tornaram especialmente
importantes para a análise, que partiu de uma etnografia em um “contexto”, o qual me
levou a seguir as “experiências” dos atores sociais que desbordaram o “étnico” e as
fronteiras territoriais por ele impostas. Percebem-se, assim, os limites de uma etnografia
atomizada, pois as unidades sociais e os atores sociais precisam nutrir-se de contínuas
trocas com outras coletividades da região para a atualização da própria tradição de
conhecimento, bem como para refinar as estratégias para a sua reprodução.
Mas a noção de “contexto de experiência” permitiu-me, sobretudo, veicular o
objetivo que cruza a tese transversalmente: a compreensão da elaboração cultural realizada
pelos atores sociais e pelas unidades sociais que compartilham experiências comuns e que
323

se interrogam e constroem parâmetros para entender o próprio destino, o futuro post-


mortem e quais são os conhecimentos necessários para se utilizarem os recursos que o
próprio universo de referência lhes oferece. Estas elaborações são feitas por famílias e
troncos e precisaram ser abordadas processualmente relevando-se as variações existentes,
evitando-se tanto a construção de uma visão holística de uma “sociedade Pankararu”
quanto uma construção estanque da própria cosmologia. De acordo com Barth (1987), a
cosmologia deve ser abordada
[...] as a living tradition of knowledge – not as a set of abstract ideas
enshrined in collective representations. This allows us to see the events
taking place in a tradition as incidents of the very process that shape the
tradition (ibidem, p. 87).

Viu-se que a tradição de conhecimento da qual os Pankararu são adeptos é hoje o


resultado de um processo histórico em um contexto específico e que demonstra seu
dinamismo particular.
Diversamente da tradição de conhecimento cristã empenhada na propagação quanto
maior possível da própria doutrina, com suas exclusivas sistematizações de símbolos e
significados a eles atribuídos, a tradição dos índios é calcada em especialistas rituais que
manipulam os símbolos, carregando-os de mistérios e transacionando seus conhecimentos
“para cima”, ocultando-os “para baixo”. A prática do segredo, a falta de uma doutrina
vigiada e a formação particularizada em nível familiar dos que cultivam os conhecimentos
mágico-religiosos e que detêm a legitimidade da construção do quadro moral fazem com
que este seja muito flexível e viabilize múltiplas variações de interpretações e liberdade
nas escolhas experienciais.
Parece-me importante ressaltar que esta tradição de conhecimento é fruto do
esforço intelectual de atores sociais concretos que têm o objetivo de dar sentido e organizar
socialmente o conhecimento, e que permitiu, e ainda permite, expressões culturais
antagônicas àquela imposta secularmente pela Igreja Católica, portanto, constrangidas à
clandestinidade por muito tempo. Nestes termos, voltando às advertências de Barth (2000)
relativas aos dois papéis do guru e do iniciador como contrastantes nas formas de gerenciar
o conhecimento e transpostas ao nosso universo de pesquisa, pode-se afirmar que os
sacerdotes cristãos e os especialistas rituais aqui focados cultivam tradições opostas. E o
contraste entre estas tradições não se remete apenas a parcos elementos elevados a sinais
diacríticos dos grupos étnicos, mas às diferentes “economias informacionais” (Barth,
324

2000b, p. 146) que moldam diversamente as expressões culturais, embora os itens culturais
em fluxo livre circulem em vastas regiões.
Como espero que tenha ficado claro, nas práticas rituais dos Pankararu (tanto do
grupo de praiás quanto dos penitentes), a ênfase é dada aos atos, à práxis, que em si
mesma é capaz de “revelar” elementos da realidade que os circunda. A importância do
compartilhamento das experiências rituais, isto é, da participação conjunta nesses eventos
comunicativos, torna sólida a dimensão de um coletivo. Exige-se a participação nos
momentos performáticos, sendo que neles os símbolos são manipulados, embora poucas ou
inexistentes sejam as verbalizações. Neste sentido, a realidade não é pensada da forma
como aparece, ela é aprendida através da alimentação dos mistérios. O segredo, então,
como prática em si, é uma forma de dramatizar e incentivar experiências emocionais e,
mais do que falar sobre o mundo, os rituais desejam agir sobre ele (Barth, 1975, p. 220): a
realidade do conhecimento é demonstrada pelo seu poder no ato ritual e não na sua
interpretação. O cultivo dos mistérios pankararu implica um modelo de distribuição que
exclui do conhecimento a maior parte da população. É essa exclusão que incide nos
processos pelos quais a realidade é socialmente construída.
Como no caso dos Baktaman abordados por Barth (1975), os rituais entre os
Pankararu e no circuito ritual mapeado usam um “código analógico” (p. 227), ou seja, um
tipo de comunicação baseada em metáforas, portanto, em analogias entre símbolos e seus
múltiplos significados. Diversamente do código digital das tradições de conhecimento
exegéticas e doutrinárias, o código analógico não permite explicações paradigmáticas e
classificações dicotômicas entre símbolos cujos significados podem ser extraídos do
próprio contexto e verbalizados em outros. A compreensão dos rituais brota aqui do
próprio contexto e da organização social, da prática do segredo, dos significados “não
dizíveis”, mas apenas “revelados”, o que permite a enorme variação de interpretações que,
acredito, foi o que permitiu manter e alimentar a criatividade dos atores sociais que
cultivam o conhecimento e, nas diversas situações históricas de dominação, elaborar e
incorporar saberes, articulando-os para construir as próprias estratégias cotidianas.
Os atos rituais tornam-se os principais instrumentos disciplinadores nas mãos de
poucos especialistas, cuja autoridade lhes é conferida por terem a capacidade de lidar com
as múltiplas esferas do Cosmo e de restabelecer equilíbrios constantemente ameaçados.
Eles não criam nem verbalizam ou divulgam teorias sobre o significado ou a necessidade
325

dos cultos (sejam eles relativos aos espíritos, ou aos encantados, ou às outras entidades do
Cosmo), mas os carregam de mistérios.
Foi possível observar que todos os rituais realizados pelos Pankararu, tanto dentro
da aldeia quanto fora dela, caracterizam-se por uma modalidade “imagística”, nos termos
propostos por Whitehouse (2000), faltando uma sistematização codificada e verbalizada do
saber mágico-religioso, por exemplo, através de sermões. Cada um dos rituais é marcado
por performances, que têm o objetivo de suscitar uma elevada emotividade. Assim, o
autoflagelo dos penitentes e dos parceiros durante a corrida do imbu, ou ainda o anual
“encontro” na Quinta-feira Santa entre os grupos de penitentes, apresentam-se todos como
atos performáticos que estimulam sensorialmente os participantes: imagens, sons, contatos
físicos (às vezes violentos, como na performance da luta no menino no rancho),
penitências corporais e as romarias são rituais estimuladores de emoções, cujo
compartilhamento desperta e anima a solidariedade entre os participantes. Mas também se
tornam – como sugere Whitehouse (ibidem) – especialmente importantes para cada sujeito
que percebe a experiência do ritual na sua específica unicidade, podendo alcançar, durante
a sua realização, “revelações” ou receber “comunicações” ou “avisos” das entidades que se
acredita estarem ali interagindo com os outros participantes.
Esses processos rituais são particularmente significativos para se compreender
(como mencionei no final da segunda parte deste trabalho) a relação direta que os
especialistas rituais têm com as divindades, sem o controle de qualquer hierarquia
sacerdotal, pois não a reconhecem. Nestes termos, tanto os penitentes quanto os praiás são
vistos pela hierarquia eclesiástica com suspeição, na medida em que os processos
religiosos não podem ser submetidos ao seu controle. A ausência de uma exegese protege
assim a integridade e o poder da revelação “imagística”.
Como foi destacado, as atividades rituais entre os Pankararu são frequentes,
havendo um fermento contínuo de performances – aspecto este que nos levou a dedicar-lhe
atenção, fazendo com que a sua análise tenha se tornado um objetivo essencial desta tese.
Os rituais de calendário, que marcam o ciclo de eventos, creio serem os mais estimuladores
emocionalmente pelas características acima mencionadas e descritas na terceira parte deste
trabalho. A repetição desses eventos é um aspecto crucial para os efeitos esperados do
próprio ritual: impulsionar a solidariedade grupal e disciplinar. A reiteração cíclica é
esperada e desejada como meio de reativação da memória, de transmissão da tradição, de
comunicação de mudanças, de novas “revelações” ou “sinais” das entidades nas
326

experiências subjetivas em virtude das circunstâncias que o grupo vivencia quando o ritual
é realizado.
Como se observou, os rituais não apenas agem no mundo – o conhecimento tendo
eficácia no próprio ato ritual – e comunica status e valores diferenciados entre os
participantes. Eles são também eventos em que é possível mostrar publicamente a adesão
ao quadro moral, adesão esta que confere ao sujeito “respeitabilidade”. É o ritual – como
evento público por excelência – que viabiliza a própria “dramatização moral”, o
engajamento na performance permitindo a identificação e a demonstração pública do
próprio self.
O deslocamento da atenção do grupo étnico para as identidades familiares, que na
cotidianidade eram senão definidoras, pelo menos orientadoras das relações, permitiu
mostrar processos experienciais diferenciados de indivíduos e famílias, evidenciando-se
posturas diversas. Embora o microuniverso abordado não seja nem representativo nem
completo em relação à complexidade da realidade social em pauta, acredito que tenha
mostrado uma configuração de variações em tensão e tenha possibilitado compreender os
princípios que as viabilizam.
Aproximando-me da conclusão deste trabalho, gostaria de retomar a expressão de
João Gouveia: “Tudo é separado, tudo em seu devido lugar [...] Todo mistério tem dono!”,
que ao se referir às diferenças entre as práticas rituais dos penitentes e dos praiás, entre
aquelas relativas aos troncos velhos, e ainda às trocas dos rituais de cura entre especialistas
de diversos grupos indígenas, foi especialmente eloquente ao apontar o motor que anima a
tradição de conhecimento que os índios cultivam.
Ele – o mistério – é o elemento que permite a “distinção” e a organiza, o sentimento
de “pertença”, tanto em escala familiar quanto étnica, e que impulsiona as trocas rituais e a
repartição das competências entre especialistas vinculados a unidades sociais diferentes.
Assim, se há relações entre grupos que se reconhecem por terem uma visão em
comum do mundo, em cada contexto específico criam-se variações e se repartem
competências entre os grupos rituais locais, sobretudo, entre aqueles que agora reivindicam
sua etnicidade. Constroem-se, então, especializações diferenciadas e se consolida uma
organização social das práticas rituais delimitadas pelas fronteiras étnicas. Na experiência
cotidiana dos índios, os mistérios, especialmente aqueles relativos aos encantados, voltam
às principais unidades sociais de referência, as famílias e os troncos que os reivindicam
como pertenças herdadas e que por eles zelam. Mas em determinadas circunstâncias esses
327

mistérios unem-se para se tornar “o mistério do tronco”, impulsionando a carga emocional


da etnicidade, que permite aos índios a identificação com o grupo e da qual brota o que
eles chamam de “a força pankararu”.
328

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