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Complexidade e motricidade
No filme O Ponto de Mutação, baseado na obra de Fritjof Capra, entre tantas passagens
perturbadoras, há uma em que um político e uma cientista conversam sobre os mistérios da
natureza. Intrigado com o que sua interlocutora falava sobre Física, o político pergunta-lhe qual
deveria ser o tamanho de um átomo para que ele pudesse enxergá-lo a olho nu. Ela responde
dizendo que, para ser percebido por nossa visão, um átomo deveria ter o tamanho do monte Saint
Michel, na França, algo como o Pão-de-Açúcar brasileiro. E se tivéssemos um átomo assim grande,
pergunta aquele personagem à professora, de que tamanho seria seu núcleo? Seria mais ou menos
como uma pedra minúscula, responde ela. E os elétrons, continua o político, de que tamanho
seriam então? Como pequeninos grãos de areia, ela explica. Bem, mas e o restante desse átomo
do tamanho do Monte Saint Michel?, prossegue o atônito personagem. Calmamente a professora
responde que o resto seria apenas vazio. Não haveria quase nada além de vazio. A calma resposta
da professora só deixou mais perplexo seu interlocutor. Sabendo que todas as coisas são feitas de
átomo, como poderiam elas ser feitas quase só de vazio? E, se uma mesa é feita de átomos, como
pode a mesa ser tão sólida, tão estável? Confuso, nosso político fez ainda uma última tentativa
para compreender os mistérios do átomo, pedindo à cientista para lhe mostrar a localização dos
elétrons em torno do núcleo. Para aumentar sua perplexidade, a professora responde que eles
estão em todos os lugares e em nenhum lugar ao mesmo tempo. A extraordinária dinâmica das
partículas torna isso possível. Mesmo havendo quase só vazio em um átomo, de tal magnitude é a
dinâmica de interações entre as partes que o compõem, que a estabilidade passa a ser sua
característica mais típica. E todas essas coisas só serão compreendidas se compreendermos o
conceito de interação.
Podemos ter uma idéia aproximada dessa dinâmica interacional que existe nos átomos que
formam a matéria que conhecemos, se imaginarmos uma explosão nuclear. Quando as ligações
atômicas são rompidas tal qual ocorre numa fissão nuclear, há uma fantástica liberação de energia,
a ponto de provocar horrores como os que aconteceram em Hyroshima e Nagasaki.
Desde o início do Século XX sabemos que todas as coisas do mundo decorrem dessa incrível
atividade sub-atômica. Apesar disso, continuamos a negar essa realidade e a querer explicar os
acontecimentos de maneiraa simplista, como se o fenômeno de constituição da matéria não fosse
tão absurdamente complexo.
Temos medo da complexidade, temos medo do caos e da desordem, apesar de já sabermos,
por mais de um século, que todas os fenômenos do universo e, entre eles, a vida, se constituem a
partir desse caos e dessa desordem que tanto nos assusta.
É difícil aceitar atualmente que qualquer ramo do conhecimento possa chegar à
compreensão de seus fenômenos partindo de idéias simplistas. Como dizia São João da Cruz, se
queremos chegar a um lugar desconhecido, temos que trilhar um caminho desconhecido. Ora, da
mesma forma, se queremos compreender um fenômeno complexo, temos que procurar soluções
complexas. A motricidade, um fenômeno exponencial da vida humana, não poderia ser diferente.
A Gênese da Motricidade
a) O Exercício Corporal
A principal característica do exercício é sua familiaridade com o trabalho, com o
atendimento de uma necessidade localizada temporalmente, o que o distingue fundamentalmente
do jogo. O exercício em Educação Física atende a uma necessidade visível, prepara especificamente
para alguma finalidade. Por exemplo, um exercício de musculação não é uma atividade que se
basta por si só, e sim uma atividade que tem um objetivo externo, ou seja, é praticada para
atender a uma necessidade revelada pelo passado ou projetada no futuro. Uma pessoa pratica
musculação porque se sente fisicamente fraca ou porque pretende tornar-se mais forte. Outro
exemplo é o de um exercício de alongamento, que é feito porque uma pessoa se sente pouco
flexível ou porque pretende tornar-se mais flexível. Ou seja, a motivação do exercício está em
alguma coisa que ocorreu no passado ou que deverá ocorrer no futuro. Há, portanto, um
compromisso claro, que o exercício deve cumprir.
b) O Jogo
No caso do jogo, a atividade não se compromete com alguma coisa fora dele mesmo. Se
uma criança joga um jogo de Amarelinha, por exemplo, ela não o faz para preencher alguma falta
ou para cumprir algum compromisso futuro. O jogo não se localiza no passado ou no futuro; o jogo
é uma atividade de presente. Suas conseqüências futuras, inevitáveis, não são um problema do
jogador. O jogo se basta por si, não preenche faltas ou atende compromissos adiante. Por ser
assim, o jogo é uma atividade que não separa sujeito de objeto, que não separa a pessoa dos
objetos do jogo e cuja maior característica é uma polarização em direção à subjetividade. É a
imaginação, a emoção, o desejo, que torna o jogo possível, isto é, que cria o ambiente favorável à
manifestação do jogo. O jogo, repito, não é uma atividade de passado ou de futuro, mas uma
atividade de presente.
Temos, portanto, de um lado, como conteúdo privilegiado da Educação Física, o exercício,
de outro, o jogo. Esses conteúdos, mesmo sendo distintos, não podem ser praticados no ambiente
da Educação Física sem que se cruzem, de forma a se confundir. Se estou falando de uma idéia de
complexidade, seria incoerente afirmar que no ambiente da Educação Física podem ser descritas
formas puras de exercício e formas puras de jogo, sem que um e outro se interpenetrem. Durante
um treinamento de futebol, diversos exercícios para aperfeiçoar as habilidades possuem também
características de jogos. Assim como muitos jogos praticados durante a preparação esportiva
apresentam características de preparação para outras práticas, isto é, características de exercício.
De qualquer maneira, a idéia de jogo é mais coerente com a idéia de complexidade que a
idéia de exercício. Na cultura da Educação Física, ou da atividade física, manifestações de jogo são
o Esporte, a Luta, a Brincadeira, a Ginástica e a Dança, como tradicionalmente é aceito, mas
poderiam ser também quaisquer outras atividades lúdicas, as mais diversas possíveis.
Por ser coerente com o conceito de complexidade, o jogo será, neste trabalho, o conteúdo
que terá a maior porção de privilégio. Em uma organização curricular para a Educação Física, por
exemplo (ou para a aprendizagem esportiva), as práticas seriam, prioritariamente, lúdicas.
Considerando tudo o que foi dito a respeito do desenvolvimento da motricidade, as práticas
de uma pedagogia do movimento não poderiam limitar as possibilidades de interação. É evidente
que os exercícios corporais, por suas características, são limitadores, são determinadores, ao passo
que o jogo é aberto, não é compromissado com estruturas fechadas, não se dirige a um futuro
previsível. Isso não significa que um currículo de Educação Física deve desconsiderar as
possibilidades do exercício, mas não deve privilegiá-las sobre o jogo.
b) Educação da Motricidade
Julgo que a maior parte deste texto, uma vez que se refere à teoria da motricidade humana,
dispensa maiores comentários neste tópico. Restaria, talvez, acrescentar que a motricidade é a
maneira de realização da vida humana. Uma vez que nos situamos, entre os seres vivos, como
seres locomotores, sem dúvida alguma que nossa vida está fortemente presa à ação dinâmica, às
possibilidades de expressão corporal. Se pelo corpo marcamos nossa presença no mundo, pela
motricidade é que nos realizamos como seres vivos. Os recurso de educação da motricidade devem
contemplar, acima de tudo, o que está de acordo com uma idéia complexa de motricidade. Após
bilhões de anos de evolução, adaptamo-nos ao mundo como corpo que se move para se reproduzir,
se abrigar e se alimentar, entre outras coisas. A imobilidade corporal degrada nossas condições
naturais, portanto, mover-se é fator de saúde. Decorre disso que a educação da motricidade, além
de ser fator de saúde, constitui a base de todo o comportamento humano. Se pensarmos, por
exemplo, que, entre os direitos humanos mais fundamentais está o de se expressar, podemos ter
uma idéia da importância que representa a educação das expressões humanas, começando pela
expressão corporal.
c) Educação do Símbolo
Ganha maior dimensão, em uma Pedagogia do Movimento que contemple o jogo, sobre
todos os demais conteúdos possíveis, a educação do símbolo, isto é, de tudo aquilo que constitui o
espírito humano, mais particularmente, nossa imaginação, a habilidade humana por excelência.
Considerando nossa fragilidade corporal, conseqüentemente, nossa inabilidade natural para
interagir com a natureza, somente pela imaginação podemos superar os problemas daí
decorrentes. O aparelho biológico responsável pela produção de imagens em nada garante o
desenvolvimento dessas imagens coordenadas em ações internas, isto é, a imaginação. Resta aos
seres humanos, como conseqüência disso, a tarefa de dar significado a todas as coisas, isto é, de
representá-las mentalmente, incluindo-as na nossa história particular, de tal maneira que elas
passem a ser substituídas por símbolos ou signos, estes sim, constituintes do universo particular e
social de cada um de nós. Apropriar-se do mundo das coisas pela representação simbólica é, assim,
a grande tarefa humana ao longo de toda a nossa vida, e que deve constituir a principal
preocupação de qualquer sistema educacional.
É preciso que fique bem claro que, quando me refiro à educação do sentidos e à educação
da motricidade, faço-o tendo em vista as conexões entre essas dimensões educacionais e a
dimensão simbólica. A sensibilidade humana, bem como a motricidade, somente são fortes se
conectadas com nosso espírito, se interiorizadas, de forma que sejamos capazes de sentir as coisas
dentro de nós, de fazer as coisas dentro de nós. Se nossos movimentos corporais mostram-se
fracos na hora de superarmos distâncias ou pesos, esses movimentos frágeis, combinados com
nossa imaginação tornam-se fortes, como por exemplo, através das tecnologias de treinamento
para corridas ou lançamentos, ou mais, quando somos capazes de estender nossos braços e pernas
a equipamentos, através dos quais nos lançamos em velocidades imensas com nossos carros ou
erguemos pesos enormes com nossos guindastes.
Leituras Recomendadas
Freire, João Batista. Educação de corpo inteiro. São Paulo: Scipione 1989.
Freire, João Batista. De corpo e alma. São Paulo: Summus, 1991.
Freire, João Batista. Investigações preliminares sobre o jogo. Tese de Livre Docência. Faculdade de
Educação Física, Unicamp, Campinas, 2001.
Maturana, Humberto e Verden-Zöller, Gerda. Amor y juego: fundamentos olvidados de lo humano.
Morin, Edgar. O método, vol. I: a natureza da natureza. Lisboa: Europa-América, 1987.
Piaget, Jean. O possível e o necessário, vol. 1: evolução dos possíveis na criança. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1985.
Reeves, Hubert. A hora do deslumbramento. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
Sartre, Jean-Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1999.
Sérgio, Manuel. Um corte epistemológico: da educação física à motricidade humana. Lisboa:
Instituto Piaget, 1999.