Sunteți pe pagina 1din 32

DOI: http://dx.doi.org/10.14393/REVEDFIL.issn.0102-6801.

v31n61a2017-p443a474

Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus,


morte de Buda, vazio e vacuidade
Paulo Borges*

Resumo: Procuramos repensar as relações da filosofia de Nietzsche com a filoso-


fia budista a partir dos temas da ilusão da percepção humana do mundo, da morte
de Deus e do matar o Buda e da implícita experiência do vazio ou da vacuidade,
descobrindo convergências impensadas pelo próprio Nietzsche que abrem novos
horizontes para a compreensão do seu pensamento.

Palavras-chave: Nietzsche. Budismo. Ilusão. Morte de Deus. Matar o Buda.


Vazio. Vacuidade.

Nietzsche and Buddhism:


illusion, death of God, killing of the Buddha, void and emptiness

Abstract: We try to rethink the relations between Nietzsche’s philosophy and Bu-
ddhism on the basis of the themes of the illusory nature of human’s perception of
the world, the death of God, the killing of the Buddha and the implicit experience
of the void or emptiness. This way we can discover convergences not realized by
Nietzsche himself that open new horizons for the understanding of his thought.

Keywords: Nietzsche. Buddhism. Illusion. Death of God. Killing of the Buddha.


Void. Emptiness.

Nietzsche et le Bouddhisme:
illusion, mort de Dieu, tuer le Bouddha, vide et vacuité

Résumé: Nous essayons de repenser les rapports entre la philosophie de Nietzs-


che et le bouddhisme à partir des thèmes de l’illusion de la perception humaine

Doutor em Filosofia pela Universidade de Lisboa - Portugal. Professor do


*

Departamento de Filosofia da Universidade de Lisboa. Investigador do Centro


de Filosofia da Universidade de Lisboa. E-mail: pauloaeborges@gmail.com

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 443
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

du monde, de la mort de Dieu et du tuer le Bouddha et de l’expérience du vide


ou de la vacuité. De cette façon on peut trouver des convergences qui ont resté
inaperçues par Nietzsche lui-même et qui ouvrent des horizons nouveaux pour
comprendre sa pensée.

Mots-clés: Nietzsche. Bouddhisme. Mort de Dieu. Tuer le Bouddha. Vide. Vacuité.

1.

Nietzsche escreveu: “Eu podia ser o Buda da Europa, se bem que,


confessadamente, um antípoda do Buda indiano”1. Na verdade, quem
avaliar das relações de Nietzsche com o budismo2 a partir das páginas
que lhe são consagradas em O anticristo, ficará decerto convicto de uma
distância que todavia contrasta com a proximidade que noutras vertentes
da obra nietzschiana – em particular n’A vontade de potência - se ma-
nifesta, mais claramente a respeito da ilusão constitutiva da percepção

1
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. KGW (edição G. COLLI e M. MONTINARI),
VII, I; 4 (2), p. 111.
2
Vejam-se alguns estudos, sem pretensões exaustivas: ABE, Masao. “Zen and
Nietzsche”. In: Zen and Western Thought. Editado por William R. LaFleur,
Honolulu: University of Hawaii Press, 1985, pp. 135-151; MISTRY, Freny.
Nietzsche and Buddhism. Walter De Gruyter, 1987; MARTIN, Glen T.
“Deconstruction and Breakthrough in Nietzsche and Nāgārjuna”. In: AAVV,
Nietzsche and Asian Thought. Editado por Graham PARKES, Chicago/Londres:
The University of Chicago Press, 1991, pp. 91-111; “The Problem of the Body in
Nietzsche and Dōgen”, in Ibid., pp. 214-225; MORRISON, Robert G. Nietzsche
and Buddhism: A Study in Nihilism and Ironic Affinities. Oxford University
Press, 1999; BAZZANO, Manu. Buddha is Dead: Nietzsche and the Dawn of
European Zen. Sussex Academic Press, 2006; CONCHE, Marcel. Nietzsche
et le Bouddhisme. Encre Marine, 2009; ALVES, Derley Menezes. “Nietzsche,
Buda e o problema do niilismo”. In: AAVV. Budismo e Filosofia. Organizado por
Deyve Redyson. São Paulo: Fonte Editorial, 2013, pp. 207-233; BRAAK, Andre
Van Der. Nietzsche and Zen: Self Overcoming Without a Self. Lexington Books,
2013; PANAÏOTI, Antoine. Nietzsche and Buddhist Philosophy. Cambridge
University Press, 2014.

444 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

humana do mundo, mas também, de modo oblíquo e implícito, no tema


da “morte de Deus” e da consequente experiência do vazio na Gaia
ciência. Decerto que esta proximidade escapou ao Nietzsche dos juízos
a nosso ver precipitados de O anticristo, que consideram cristianismo e
budismo como “religiões niilista”3 a partir do pressuposto de ser “bom”
“tudo o que aumenta no homem o sentimento do poder, a vontade de
poder, o próprio poder” e ser “mau” “tudo o que nasce da fraqueza”,
como a “compaixão da ação por todos os falhados e fracos”, que seria o
“mais nocivo de todos os vícios” personificado no cristianismo4.
Apesar de n’O anticristo ser muito mais benévolo para com o
budismo, Nietzsche não deixa de pagar tributo à recepção oitocentista
deste na cultura europeia, a partir das primeiras traduções, como “culto
do nada”, numa leitura em geral niilista que - além de contrastar com a
recusa do niilismo pela filosofia budista como uma das posições extremas
em que, a par do essencialismo ou eternalismo, a mente se pode transviar
da natureza última do real, a interdependência de tudo, reconhecida pela
via do Meio equidistante das teses de que tudo existe em si e por si e
nada existe em absoluto5 - a obra crucial de Roger-Pol Droit mostrou
constituir menos uma interpretação esclarecida e objectiva do fenómeno
budista, a partir de um conhecimento rigoroso dos textos nas suas lín-
guas originais, do que uma projeção nele dos fantasmas, inquietações e
pulsão niilista da própria civilização europeia a debater-se com a cons-
ciência da sua crise e decadência 6. Nietzsche considera cristianismo e
budismo como “religiões niilistas” e de “décadence”, embora a seu ver

3
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições
70, 2015, p. 30.
4
Cf. Ibid., p. 16.
5
Cf. BORGES, Paulo. “Vacuidade e Deus (um estudo comparado entre Nāgārjuna
e Pseudo-Dionísio Areopagita)”. In: Descobrir Buda. Estudos e ensaios sobre a
via do despertar. Lisboa: Âncora Editora, 2010, pp. 107-108.
6
Cf. DROIT, Roger-Pol. Le culte du néant. Les philosophes et le Bouddha. Paris:
Seuil, 1997.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 445
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

o budismo seja superior por ser “mais realista” e filosófico, dispensar o


conceito de “Deus”, ser “a única religião verdadeiramente positivista”,
não lutar contra o “pecado” mas contra o “sofrimento”, transcender “o
autoengano dos conceitos morais” e situar-se “para além do bem e do
mal”7. A subsequente leitura da espiritualidade budista, na qual não nos
deteremos, é no mínimo problemática, à luz do conhecimento avançado
de que hoje dispomos, bastando referir a afirmação: “Na doutrina de Buda,
o egoísmo converte-se em dever: o ‘uma só coisa é necessária’, o ‘como
te libertares do sofrimento’ rege e delimita toda a dieta espiritual”8. Este
juízo parece refletir um conhecimento limitado da grande diversidade
de budismos no interior do assim chamado “budismo”, pois a tónica
posta na busca de libertação individual do sofrimento do samsāra, ou
seja, o nirvāna, caracteriza apenas o praticante do Veículo de Base, o
Hināyāna, enquanto o do Grande Veículo, Mahāyāna, visa transcender
a antinomia conceptual samsāra-nirvāna e aspira ao Despertar para se
colocar ao serviço da libertação de todos os seres, no cultivo do amor-
compaixão universal, e o adepto do Veículo de Diamante, Vajrāyāna
(também designado como Tantrayāna e Mantrayāna), com a mesma
motivação altruísta, experiencia desde já a não-dualidade entre si e o
mundo como sukkha, grande felicidade, beatitude, relativizando a expe-
riência de dukkha, insatisfação, sofrimento, à consciência dual, que não
reconhece a vacuidade ou interdependência e não existência intrínseca do
sujeito e do objecto, de si e do mundo, ficando refém do apego, aversão
e indiferença egocêntricos9.
Partindo dos pressupostos acima referidos, Nietzsche conclui a sua
comparação do cristianismo e do budismo escrevendo que o primeiro
“quer tornar-se senhor de animais predadores”; o seu meio é torná-los
doentes – o enfraquecimento é a receita cristã para a domesticação,

7
Cf. NIETZSCHE, Friedrich, O anticristo, p. 30.
8
Cf. Ibid., p. 31.
9
Cf. BORGES, Paulo, “Budismo”, in: Descobrir Buda. Estudos e ensaios sobre
a via do Despertar, pp. 13-14.

446 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

para a “civilização”, enquanto o segundo “é uma religião para o termo


e o cansaço da civilização”10. A nosso ver, no fundo destes juízos radica
uma concepção do poder da “vontade de poder / potência” que é apenas
uma das limitadas possibilidades de manifestação da Wille zur Macht
enquanto impulso fundamental da Vida, que vai além da “vontade de
conservação” e da “luta pela vida”11. Cremos que a compreensão que
Nietzsche tem da sua própria noção de “vontade de poder / potência” é tão
ambivalente como o próprio conceito de Macht (poder, potência, força)
que, nas considerações de O anticristo, se inclina mais para o sentido da
potestas do que para o da potentia, conforme a distinção de Espinosa, ou
seja, na nossa leitura, para o poder como poder sobre algo ou alguém,
centrado no sujeito que o exerce, e não tanto para o poder como potên-
cia de ser, na abertura a outras possibilidades de experiência de si e do
mundo, em que a auto-expansão pode coincidir com a total abertura ao
outro e à alteridade em geral. Neste sentido, a vontade de potência, ou a
potência, pura e simplesmente, pode encontrar-se na experiência religiosa
e espiritual, seja na abertura à plena Presença que nas tradições teístas se
designa como Deus, seja na abertura à plena Ausência de características
e determinações intrínsecas que no budismo se designa como vacuidade,
seja na experiência da sua coincidência e bem assim no amor-compaixão
universal por todos os seres como manifestações desse fundo sem fundo
de tudo e inseparáveis do sujeito que, ao não distinguir o seu bem do bem
de todos, se liberta de todo o medo e se torna eminentemente pujante e
poderoso. Na segunda possibilidade de leitura da “potência”, na linha
do que nos sugere a potentia de Espinosa, haveria que equacionar algo
de aparentemente impensável, como a possibilidade de alguma conver-
gência da “vontade de potência” nietzschiana com o bodhicitta budista,
a aspiração ao pleno Despertar da consciência, ao estado de Buda, um

Cf. NIETZSCHE, Friedrich, O Anticristo, p. 33.


10

Cf. Id. A Gaia Ciência. 349. 2.ª ed. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães
11

Editores, 1977, pp. 242-243.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 447
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

estado livre de todos os condicionamentos cognitivos e afetivos e por


isso de plena expansão e realização de si, para a ele conduzir todos os
seres. Cremos haver que repensar a vontade de potência nietzschiana
para além dos limites que por vezes e problematicamente lhe conferiu
Nietzsche, embora seguindo sugestões e possibilidades abertas pelo seu
pensamento12, como adiante tentaremos mostrar.

2.

Outro domínio no qual Nietzsche e o budismo simultaneamente con-


vergem e divergem é o da teoria e crítica do conhecimento, onde avulta
em ambos o tema central da ilusão da percepção comum e convencional
da realidade. No importante ensaio de 1873, Acerca da verdade e da
mentira no sentido extramoral, Nietzsche denuncia o antropocentrismo
da percepção humana do mundo, considerando que coloca “uma névoa
ofuscante nos olhos e sentidos dos homens” que os engana “sobre o
valor da existência” e que tem por “efeito mais geral (...) a ilusão”13.
“O intelecto, como meio para a conservação do indivíduo”, exerce-se
predominantemente na “dissimulação”, o que faz com que os humanos
estejam “profundamente submergidos em ilusões e visões oníricas”,
num “olhar” que não vai além da “superfície das coisas”, julgando
aperceber aí “formas”14. Todavia, por vontade e necessidade de “existir
socialmente e em rebanho”, a humanidade aspira a uma relativa paz

12
Neste sentido, veja-se um estudo que compara a “vontade de potência” nietzschiana
com a “virtualidade” (De) taoista, no sentido arcaico de “ter a virtude ou o poder
inerente de produzir efeitos”: AMES, Roger T. “Nietzsche’s “Will to Power” and
Chinese “Virtuality” (De): A Comparative Study”, in: AAVV, Nietzsche and Asian
Thought, pp. 130-150.
13
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Acerca da Verdade e da Mentira no Sentido
Extramoral. In: O Nascimento da Tragédia / Acerca da Verdade e da Mentira.
Obras Escolhidas. I. Trad. Teresa R. Cadete e Helga Hoock Quadrado, introdução
geral de António Marques. Lisboa: Relógio d’Água, 1997, pp. 215-216.
14
Cf. Ibid., p. 216.

448 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

que pelo menos exclua “o mais brutal BELLUM OMNIUM CONTRA


OMNES”, o que conduz a uma tentativa de fixação da “verdade” pela
qual se inventa “uma designação das coisas tão válida como vinculati-
va” e se origina um “contraste entre a verdade e a mentira”. Ambas são
convencionais e igualmente mentirosas, mas passa-se a considerar e
rejeitar como mentiroso o que transgride para proveito próprio e prejuízo
alheio as “convenções estabelecidas”15. A verdade nasce sob o signo de
um utilitarismo e pragmatismo antropocêntricos: o humano “aspira às
agradáveis consequências da verdade que conservam a vida, é indiferente
ao puro conhecimento inconsequente e é até avesso às verdades talvez
prejudiciais e destruidoras”16.
Isto supõe o estabelecimento de sentidos e significados para as pa-
lavras, que originariamente apenas são “a representação sonora de um
estímulo nervoso”, originando convenções linguísticas que se esquecem
como tais. O “onomaturgo”, o criador de nomes, é alheio à “coisa em
si” ou “verdade pura sem consequências”, designando “unicamente as
relações das coisas com os homens”, convertidas num processo de me-
taforização constante em que “o enigmático X da coisa em si” primeiro
se considera como estímulo nervoso, depois como imagem e finalmente
como som, o que retira lógica à origem da linguagem e faz com que a
verdade que nela depois se busca não radique na “essência das coisas”.
Nesta perspectiva, “julgamos saber algo das próprias coisas quando
falamos de árvores, cores, neve e flores”, mas não dispomos senão de
metáforas suas 17, o que a nosso ver se estende à própria palavra-conceito
“coisa”. Neste processo, cada palavra converte-se em conceito na medida
em que se generaliza, extrapolando-se da “experiência originária única
e totalmente individualizada” da qual emerge para se aplicar aos inu-
meráveis casos supostamente semelhantes mas afinal “nunca idênticos”
e radicalmente diferentes: “Todo o conceito emerge da igualização do
15
Cf. Ibid., pp. 217-218 e 221-222.
16
Cf. Ibid., p. 218.
17
Cf. Ibid., pp. 219-220.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 449
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

não igual”18. É este conceito geral, por exemplo “folha”, concebido por
abstração de todas as diferenças individuais de cada folha, que depois se
reifica, como se existisse, fora delas, “a folha” em si, a sua suposta “forma
originária”. “O descurar do individual e do real” origina o “conceito” e a
“forma”, o que Nietzsche considera não acontecer na “natureza”, na qual
não haveria “quaisquer formas”, “conceitos” e “gêneros”, “mas apenas
um X para nós inacessível e indefinível”19.
A esta luz, a chamada “verdade” não passa de “um exército móvel
de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos”, “uma soma de
relações humanas que foram poética e retoricamente intensificadas,
transpostas e adornadas e que depois de um longo uso parecem a um
povo fixas, canônicas e vinculativas: as verdades são ilusões que foram
esquecidas enquanto tais, metáforas (...) gastas e (...) esvaziadas do seu
sentido”20. É do esquecimento e inconsciência desses hábitos seculares
e socialmente impostos de mentira gregária, segundo as “metáforas usu-
ais” e a “convenção estabelecida”, “num estilo vinculativo para todos”,
que provém o “sentimento da verdade”21. E é dessa redução a esquemas
conceptuais das “metáforas intuitivas”, individuais, ímpares e furtivas
a toda a classificação, que surge o que jamais é possível no mundo das
primeiras impressões, a construção de uma ordem piramidal com “cas-
tas e graus”, “um novo mundo de leis, privilégios, (...) subordinações,
delimitações”, como sendo o “mais estável, mais geral, mais conhecido,
mais humano e, como tal, (...) regulador e imperativo”22. Na sua origem,
todavia, não está a essência das coisas, mas sim o “conceito”, ou seja, “o
resíduo de uma metáfora” e “a ilusão da transposição artística de uma
estimulação nervosa em imagens” 23.

18
Cf. Ibid., p. 220.
19
Cf. Ibid., pp. 220-221.
20
Cf. Ibid., p. 221.
21
Cf. Ibid., pp. 221-222.
22
Cf. Ibid., p. 222.
23
Cf. Ibid., p. 223.

450 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

Nietzsche denuncia a gênese das representações tidas como


verdadeiras como intimamente ligada à organização e domínio antro-
pocêntricos do mundo, onde o conhecimento é inseparável do desejo
de posse inerente à insegurança da razão conceptual perante o fluxo
ressentido como caótico do real não domesticado. É o que sugere a
etimologia de conceito, procedente do concipere latino, com o sig-
nificado de “apanhar, abranger, incluir”, do verbo capĕre, derivado
do Proto-Indo-Europeu kap-, “agarrar”. O mesmo sentido se desvela
no germânico Begriff e no verbo begreifen que ecoam o sentido de
captar e capturar do verbo greifen: “segurar, agarrar, apanhar, captu-
rar”. Este verbo vem do Alto-Alemão Médio grifen, do Alto-Alemão
Antigo grīfan, do Proto-Germânico grīpaną e do proto-Indo-European
gʰreyb- (“apoderar-se, conquistar, agarrar”). Note-se desde já a afini-
dade com o upādāna budista, o segurar ou agarrar, a apropriação, o
nono elo da “originação interdependente” ou “coprodução condicio-
nada” (pratītya-samutpāda)24, que preside à constituição da percepção
dualista e por isso ilusória da realidade, sendo essa apropriação que
retém a consciência no samsāra, ou seja, na dualidade sujeito-objeto,
creditados como entidades intrinsecamente existentes, em si e por si,
enquanto a cessação disso, e dos consequentes apego, aversão e in-
diferença egocêntricos, é o nirvāna. O carácter ilusório da percepção
humana do mundo é uma tônica comum ao pensamento nietzschiano
e à visão budista, que todavia se separam, como veremos, porque no
pensador trágico que é Nietzsche essa ilusão é insuperável e inerente
ao perspectivismo da vontade de poder, enquanto no budismo a ilusão
é ela mesma ilusória, jamais se havendo efetivamente constituído na
natureza profunda do real e na sua consciência/experiência primordial,
desde sempre livre de toda a intencionalidade e perspectiva e logo de
toda a representação e conceito (*).

Cf. CORNU, Philippe. “Interdépendence”. Dictionnaire Encyclopédique du


24

Bouddhisme. Paris: Seuil, 2001, pp. 258-261.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 451
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

Com efeito, a reflexão sobre a verdade e a vontade de verdade


acompanha Nietzsche até aos fragmentos da Vontade de potência, onde
afirma que a filosofia não pode deixar de insistir “no caráter relativo de
todo o conhecimento, sobre o seu caráter antropomórfico e sobre a força
por todo o lado presente da ilusão”25. O autor do Zaratustra constata que,
“para tornar possível o mais ínfimo grau de conhecimento”, foi necessário
nascer “um mundo irreal e erróneo”, “um mundo imaginário que fosse
o contrário do eterno escoamento”, com “seres que cressem no durável”
e em “indivíduos”. “Vivemos num mundo de ilusão”, onde tudo é uma
questão de perspectiva: número, tempo, espaço, substância, alma(s) e
suas faculdades, indivíduos, vida, morte, sujeito, objeto, ativo, passivo,
causa, efeito, meio, fim. Contudo, se considera possível discernir “o erro
fundamental sobre o qual tudo repousa”, sustenta que destruir esse erro
é destruir a vida, pois a “verdade última”, a do “fluxo eterno de todas
as coisas”, não poderia ser-nos “incorporada”, dado os “nossos órgãos
(que servem a vida)” estarem “feitos em vista do erro”, dado vivermos
“graças ao erro”26. A ilusão e a vontade de ilusão, a “não-verdade”, fi-
zeram ao longo do devir parte “das condições de existência do homem”
e é possível que a vida careça, “para subsistir, não de verdades inatas,
mas de erros inatos”, como a crença nas “coisas” e na “duração”27.
Nietzsche considera que o “carácter perspectivista e ilusório é inerente
à existência”28, pois carecemos de “um mundo encolhido, reduzido,
simplificado”29, e que “o único mundo que nos importa é completamente
aparente, completamente irreal”, pois tanto mais conferimos realidade a
uma “coisa” ou “ser” quanto mais corresponde aos “nossos interesses”

25
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. La volonté de puissance. II. Texto estabelecido por
Friedrich Würzbach, traduzido por Geneviève Bianquis, Livro III, 559, Paris:
Gallimard, 1995, p. 209.
26
Cf. Ibid., 582, p .216 e 584, pp. 216-217.
27
Cf. Ibid., 588, p. 218, 595, p. 221 e 631, p. 231.
28
Cf. Ibid., 591, p. 219.
29
Cf. Ibid., 627, p. 230.

452 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

e nos faz sentir a nossa existência individual30. Nesse sentido, conhecer


é reconduzir todos os fenômenos ao mundo conhecido, ou seja, “a nós
próprios”31. “A vida é um sonho acordado” e o ser humano que tem o
refinamento de dar por isso “estremece como o sonhador que sente um
instante que ‘sonha’”32. Na verdade não queremos “conhecer”, mas antes
que não nos impeçam “de acreditar que já sabemos”, pois a vontade de
verdade serve a “vontade de potência”, visando no fundo o “triunfo” e
“duração de uma certa forma de não-verdade” e o “tomar por base, em
vista da conservação de uma determinada espécie de viventes, um con-
junto coerente de falsificações”33. É assim que todo este universo que nos
importa e onde “se enraízam as nossas necessidades, os nossos desejos,
as nossas alegrias, as nossas esperanças, as nossas cores, as nossas linhas,
as nossas imaginações, as nossas orações e as nossas maldições, é um
universo que nós mesmos nos criamos”, o que a seguir “esquecemos”, de
tal modo que lhe “inventamos” depois um “Criador” ou “nos torturamos
a mente com o problema das origens”34.
O pensador insiste todavia que naufragaríamos se quiséssemos
sair deste “mundo das perspectivas” e que “abolir as grandes ilusões já
completamente assimiladas, destruiria a humanidade”35. Neste sentido
diz ser necessário “querer mesmo a ilusão”, sendo aí que “reside o
trágico”36. O seu reconhecimento da falsidade de todos os conceitos não
é assim uma objeção contra eles, pois “o critério da verdade reside na
intensificação do sentimento da potência” e os conceitos podem servir
como tentativas de selecionar e pôr à prova certas espécies de humanos,
favorecendo e conservando a vida e a espécie. A esta luz, os conceitos

30
Cf. Ibid., 593, p. 220.
31
Cf. Ibid., 604, p. 223.
32
Cf. Ibid., 602, p. 222.
33
Cf. Ibid., 603, p. 223.
34
Cf. Ibid., 614, p. 226.
35
Cf. Ibid., 594, p. 220.
36
Cf. Ibid., 560, p. 210.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 453
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

seriam erros e ilusões vitais promovidos pelos “instintos criadores” da


própria vida, que seriam a matriz “dos próprios sentimentos de valor”.
Nietzsche diz-se convicto de que “as crenças mais falsas são justamente
as mais necessárias” e de ser necessário “confessar que a não-verdade é
a condição da vida”37. O ilusionismo e perspectivismo criador, embora
seja mais tematizado na espécie e nos indivíduos humanos, abrange tam-
bém os animais38 e radica no coração da própria vida e devir universais.
O filósofo assume mesmo uma visão afim ao ilusionismo ou onirismo
divino-cósmico de matriz indiana: “A subjetividade é uma subjetividade
não-antropomôrfica, mas cósmica: nós somos os personagens que passam
no sonho de um Deus e que adivinham o que ele sonha”39.
Cabe notar que Nietzsche reassume num outro sentido o que Platão
rejeita no mobilismo universal que vê professado por Protágoras, Herá-
clito, Empédocles, Epicarmo, Orfeu, Hesíodo e Homero, os quais diz já
ensinarem (na linha de outros, mais “Antigos” ainda) que “todas as coisas”
descendiam “do escoamento e do movimento”, figurados em Oceano e
Téthys, formas poéticas de dizer que tudo são “correntes” e “nada está
em repouso”40. Com efeito, para estes “nada há que seja individualmente
ele mesmo e em si mesmo”, nada há que de modo algum se possa desig-
nar e qualificar, não havendo “existência individual, existência, nem de
um ser, nem de uma qualquer qualificação desse ser”, sendo antes “da
translação, do movimento, da mistura recíproca que resulta tudo isto do
qual dizemos que «é»”, o que na verdade “é uma designação incorreta,

37
Cf. Ibid., 631, pp. 230-231.
38
Cf. Ibid., 614, p. 226.
39
Cf. Id. La volonté de puissance. I. Texto estabelecido por Friedrich Würzbach,
traduzido por Geneviève Bianqui., Livro II, 15, Paris: Gallimard, 1995, p. 223.
40
Cf. Platão, Teeteto, 152 d, 179 e, 180 c – d; Crátilo, 402 a – c, onde se acrescenta
Hesíodo e Orfeu a Homero, como aqueles que mitopoeticamente “tendem ao
pensamento de Heráclito”. Sobre estas questões, Paulo Borges, “Imaginário
mítico-metafísico do Oceano e do extremo-ocidente atlântico”, in Do Finistérreo
Pensar. Lisboa: Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 2001, pp. 15-56.

454 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

pois nada jamais «é», mas devém sempre”41. Segundo a leitura platônica
dos mobilistas, “nada existe em si e por si”, produzindo-se tudo num
dinâmico “entrecruzar de relações”, não havendo agentes e pacientes
senão em correlação, interação e permuta contínuas e não sendo possí-
vel determinar qualidades como sendo estas ou aquelas e pertencentes a
“alguém”. Embora usada por cedência ao “hábito e à imperícia”, a “pa-
lavra «ser» é para eliminar”, bem como todos os termos que estabilizem,
devendo antes optar-se por uma linguagem conforme à “Natureza”, que
indique processos e não entidades: “«o que está em via de se produzir»,
«de se fazer», «de desaparecer», «de se alterar»”. Nisto se dissolveriam
as essências como a do “homem”, da “pedra” e do “animal” 42. Platão
demarca-se desta visão, que veremos ser notavelmente convergente com
a visão budista - o Buda Gautama cita um antigo instrutor, Araka, que já
dizia que a vida humana era semelhante a um “rio de montanha” e ele
próprio afirma que “o mundo é um fluxo contínuo e é impermanente”43
- , com o argumento da impossibilidade de levar a cabo com os seus
defensores um debate ordenado e conclusivo sobre um dado “assunto” e
“questão”, pois eles mantêm-se “em movimento”, sem permitir que nada
seja “estável, nem na sua linguagem, nem nas suas próprias almas”44.
Estamos perante um dos momentos mais decisivos disso que o
mesmo Platão designou como “titanomaquia”, ou combate de titãs acerca
da natureza da realidade45, que prossegue até hoje nas nossas mentes
e cujo desenlace predominante teve (e tem) um impacto milenar nas
nossas vidas. Como aponta Nietzsche, e antes dele o Buda Gautama e o
budismo, aquilo que passa por realidade, aquilo que passa por ser, e cuja

41
Cf. Platão, Teeteto, 152 d.
42
Cf. Ibid., 157 a – c.
43
Cf. RAHULA, Walpola. L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus
anciens. Estudo seguido de uma escolha de textos, prefácio de P. Demiéville.
Paris: Seuil, 1978, p. 46.
44
Cf. PLATÃO, Teeteto, 179 e – 180 b.
45
Cf. PLATÃO, Sofista, 246 a.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 455
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

definição é tão importante para a mente humana46, pode corresponder a


uma instauração linguística e histórico-cultural de significados, sentidos
e valores, ou seja, de um mundo ordenado e estável onde se satisfaça a
vontade de poder humana, o interesse humano na organização e domínio
do não-humano – mediante o conhecimento, a comunicação e a ação - ,
mas cuja construção e convencionalidade – incluindo a suposta distinção
do humano e do não-humano (Nietzsche considera ridícula a pretensão
do “e” que separa e aproxima “homem e mundo” 47) - se esquecem nos
hábitos de representação e prática que essa instauração configura, como
uma ficção e um mito que, pela sua repetida narração e encenação ao
longo de milênios de história coletiva, passasse a considerar-se como a
própria e única verdade. Neste sentido, aquilo que hoje nos surge como
realidade pode ter uma origem mítica esquecida, ao proceder de uma
narrativa doadora de significados, sentidos e valores à fenomenalidade
e ao devir universais que, correspondente à estrutura lógica da língua
grega e das línguas indo-europeias em geral, a de haver sujeitos, objetos
e ações, inconscientemente acabou por predominar na cultura mundial
e padronizar o regime comum de consciência segundo o paradigma e
intencionalidade do logos ocidental, que se afastou do Logos cósmico
de Heráclito para se tornar fundamentalmente uma razão predicativa em
Platão e Aristóteles, na qual “falar” é sempre “dizer”, dizer é sempre di-

46
É curioso notar como a realidade se manifesta na verdade como um apelativo
objeto do desejo possessivo. Realidade vem do latim res (coisa) e este, segundo
alguns, do proto-itálico reis, por sua vez procedente do proto-indo-europeu reh, ís,
com o significado de “riqueza, bens”, afim ao antigo persa rāy- (paraíso, riqueza),
ao avéstico rāy-, com o mesmo sentido (paraíso, riqueza), e ao sânscrito rayí
(propriedade, bens). O que se pensa e deseja como real é o que é rico, pleno, bom,
abundante, o que mostra uma expectativa de fruição e satisfação ao movermo-
nos em sua direção, explicando o desejo de o possuir. A realidade é porventura o
primeiro objeto erótico da mente humana.
47
“(...) basta-nos ver aproximar ‘homem e mundo’ separados pela pretensão sublime
deste ‘e’ para não podermos conter o riso” - NIETZSCHE, Friedrich, A Gaia
Ciência, 346, p. 238.

456 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

zer algo ou alguma coisa e deste modo implicitamente definir, delimitar


e determinar o mundo em sujeitos, objetos, id-entidades, indivíduos,
espécies e gêneros distintos, supostamente existentes em si e por si,
substancialmente, e só externamente relacionados48.
Todavia, perante a diversidade das visões-experiências do mundo e
dos correlatos regimes de consciência, parece evidente que este mundo
construído pelas categorias e interesses da humanidade e da razão oci-
dental – ou os mundos criados pela percepção igualmente autocentrada
de seres não-humanos, como no budismo se considera - não é o único
possível, não sendo tão universal e necessário como se pretende. Por
outro lado, cabe questionar se este mundo histórico-cultural será tão vital
como Nietzsche o presume, que vida é essa da qual é condição e que
outras possibilidades da vida, da consciência e da experiência reprime
e sacrifica, que permanecem todavia latentes e aptas a ser atualizadas e
libertadas. Cabe na verdade questionar se o organismo psicofísico hu-
mano está universalmente constituído “com vista ao erro” ou se, mesmo
que o esteja, não poderá transformar-se a ponto de incorporar a “verdade
última”, seja ela a do “fluxo eterno de todas as coisas”49 ou outra. Será a
extinção das ilusões o fim do humano ou apenas o do seu pretenso reino
que na verdade o está a destruir, no que Rémi Brague chama o “fracasso
do projeto moderno” de descontextualização do divino e da natureza e
de submissão desta última50, pois o que se pretende como humano não
pode existir desintegrado de um contexto mais amplo? Ou será o fim da

48
Cf. JULLIEN, François. Si parler va sans dire. Du logos et d’autres ressources.
Paris: Seuil, 2006, pp. 11-13. Destacamos: “(...) que ‘falar’ seja ‘dizer’ e que dizer,
tornando-se transitivo, seja ‘dizer alguma coisa’, legein ti. O que, com efeito, nos
legaram primeiro os Gregos, de modo tão convincente que nós o tomamos depois
por uma evidência, na qual por isso doravante habitamos, é que, quando eu falo,
eu ‘diga’ necessariamente – logicamente – ‘alguma coisa’; sem o qual a minha
palavra não diz ‘nada’, propriamente falando, não tem objeto e anula-se” (p. 11).
49
Cf. Friedrich NIETZSCHE, La volonté de puissance, II, 582, p. 216.
50
Cf. BRAGUE, Rémi. Le Règne de l’Homme. Genèse et échec du projet moderne.
Paris: Gallimard, 2015, pp. 7 e 14.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 457
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

ilusão efetivamente o fim do humano-que-se-pretende-apenas-humano


numa metamorfose que simultaneamente o supere e reinscreva no corpo
metamórfico do mundo?
Não será isso conforme ao espírito de Zaratustra, que recorda que
“o que é grande no homem é ele ser uma ponte e não um fim”, que o que
nele se pode amar é ser “transição” e “ocaso”? Não terão aqui eco as
tremendas e nobres palavras: “Amo aqueles que não sabem viver senão
perecendo, pois são os que passam para o outro lado”?51 Ou ficaremos,
como a “gente” que rejeita a superação do “humano, demasiado huma-
no”, demasiado ciosos e orgulhosos dessa “formação”, “educação” ou
“cultura” (Bildung)52 que, sem análise crítica, não é mais do que soma e
reprodução das nossas ficções e pré-conceitos gregários, o vínculo que
mantém o rebanho coeso mas escravo?
Cabe aqui, para explicar a referida convergência e divergência
com o pensamento nietzschiano, uma breve apresentação da teoria do
conhecimento budista, que considera dois planos inseparáveis, o da
verdade última e o da verdade relativa ou convencional. No primeiro,
o da consciência desperta designada como Buda, considerado o estado
natural de uma mente livre de obscurecimentos e condicionamentos,
como os da ilusão dual e substancialista pela qual se crê na existência
intrínseca, independente e permanente de sujeitos e objetos, a realidade
e os chamados seres não apresentam as características que aparentam no
segundo, configurado pela percepção dualista, intencional, conceptual e
emocional das mentes não despertas, dominadas pela ignorância (avidyā).
Na verdade última, nenhum ser, ente ou coisa existe em si e por si, com
a identidade, a independência, a permanência e as características que a
percepção convencional lhes confere, configurando o plano da verdade
relativa. Na verdade última, não há sequer “seres”, “entes” ou “coisas”,

51
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Trad. Alfredo Margarido.
Lisboa: Guimarães Editores, 1964, p. 15.
52
Cf. Ibid., p. 17.

458 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

mas antes fenômenos em constante mutação e interdependência, livres de


qualquer característica, predicado ou atributo. Não há “seres”, “entes” ou
“coisas”, mas sim, precisamente como na visão do mobilismo universal
que vimos rejeitada por Platão no Teeteto, fluxos de acontecimentos e
atos em devir, eventos polimórficos e metamórficos, “«encruzilhadas de
relações», entrecruzamentos e interações perpetuamente móveis”53. Se
tudo se revela “um conjunto de relações condicionais”, não há sequer
“seres”, “entes” ou “coisas” em relação54: como diz o Buda no Sutra do
Diamante, o “Despertar” é desprovido de noções de “eu”, “ser anima-
do”, “vida” e “indivíduo”55. É a compreensão-experiência direta e não
meramente intelectual e conceptual disso que se refere como “vacui-
dade” (śunyātā), que designa não uma realidade absoluta, misteriosa e
metafísica, distinta dos fenômenos, mas o seu modo natural de ser ou a
natureza autêntica de todas as coisas, enquanto se experimenta e verifica
desprovida de qualquer categoria da cultura humana, mítica, religiosa,
filosófica, científica ou do senso comum.
A verdade última é por isso mesmo inseparável da verdade relati-
va , ou seja, da experiência pela qual os supostos “seres” sencientes,
56

os fluxos orgânicos psicofisiológicos - com um processo mental condi-


cionado pela ignorância (avidyā, a não-visão) ou não reconhecimento

53
DROIT, Roger-Pol. Le Silence du Bouddha et autres questions indiennes. Paris:
Hermann Éditeurs, 2010, p. 47.
54
Cf. Ibid., p. 55.
55
Cf. Soûtra do Diamant et autres soûtras de la Voie médiane. Trad. do tibetano por
Philippe Cornu, do chinês e do sânscrito por Patrick Carré. Paris: Fayard, 2001,
VI, p. 27 e XXIII, p. 61. Veja-se o comentário de HANH, Thich Nhat. Awakening
the Heart. Essential buddhist sutras and commentaries. Berkeley: Parallax Press,
2012.
56
“Sem tomar apoio no uso comum da vida (vyavahāra), não se pode indicar o
sentido último (paramārtha). Sem haver penetrado o sentido último, não se pode
atingir a extinção (nirvāna)” – NĀGĀRJUNA. Stances du Milieu par Excellence.
24, 10. Trad. do original sânscrito, apresentado e anotado por Guy Bougault. Paris:
Gallimard, 2002, pp. 308-309.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 459
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

da verdade última, isto é, pelo não reconhecimento da sua própria não


substancialidade, interdependência e impermanência, de onde procede
a crença numa identidade separada do meio ambiente e dos outros -,
estabelecem entre si e com o mundo vital todos os tipos de relações
e interações, mediante atos mentais, verbais e físicos dos quais con-
tinuamente resultam – em função da intenção positiva, negativa ou
neutra que lhes preside - toda a espécie de experiências agradáveis,
desagradáveis e neutras, bem como as constantes metamorfoses da
existência e da experiência em várias vidas e mundos, cuja percepção
e qualidade é o resultado atual das ações passadas e da qualidade da
própria percepção presente, ela própria uma ação (karma)57. A palavra
sânscrita para ação, karma (kamma, em pali), deriva da raiz –kr, a
mesma de criação, que indica “fazer”, “agir”, “criar”. Pode designar
a ação presente, volitiva, desiderativa e intencional, ou os efeitos
presentes da ação passada (kamma phala, em pali), sempre em termos
mentais, verbais e físicos58. Não estamos longe da visão nietzschiana,
n’A Vontade de Potência, do universo como uma cocriação contínua
de todos os seres, a cada instante, esquecida como tal na ideia do Deus
criador ou no torturante e a seu ver infundado problema das origens59,
pois a mente conceptual que o coloca é a mesma que a cada instante
origina a percepção do mundo para o qual, inconsciente disso, procura
uma causa externa e anterior.

57
Cf. BORGES, Paulo. “Mente, ética e natureza no budismo. A constituição kármica
da experiência do mundo”, In: Descobrir Buda. Estudos e ensaios sobre a via
do despertar, pp. 33-50. Cf. também Id., “A ética na via do Buda”. In: AAVV,
Ética. Teoria e Prática. Coordenação de Cristina Beckert, Manuel João Pires,
Sara Fernandes e Teresa Antunes. Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa:
Lisboa, 2012, pp. 59-81.
58
Cf. PASQUALOTTO, Giangiorgio. Dez lições sobre o budismo. Trad. Maria das
Mercês Peixoto. Lisboa: Editorial Presença, 2010, p. 23. Cf. também “Karma”.
In: CORNU, Philippe. Dictionnaire Encyclopédique du Bouddhisme. Paris: Seuil,
2001, pp. 286-289.
59
Cf. NIETZSCHE, Friedrich, La volonté de puissance, II, 614, p. 226.

460 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

Uma profunda alternativa à formatação do real pela razão


ocidental globalizada, ou a qualquer outra formatação, denunciada
mas considerada necessária por Nietzsche, é assim a experiência da
vacuidade (śunyātā) ou insustentabilidade de todos os conceitos,
que na tradição budista advém da compreensão da interdependência
e não existência intrínseca ou substancial, em si e por si, de todos
os fenômenos, incluindo a mente que os percepciona e a própria
vacuidade, que se preserva assim de se converter num novo prin-
cípio metafísico. Num comentário ao clássico Sutra da Essência
do Conhecimento Transcendente, onde surge a célebre declaração
“forma é vacuidade e vacuidade é forma”60, Thich Nhat Hanh mostra
que numa simples folha de papel (esta que eu e o leitor seguramos
ou vemos) há a nuvem de onde veio a chuva que irrigou as árvores
de onde se fez o papel, bem como a luz do sol que as fez crescer e
também o lenhador que cortou a árvore e a levou para ser transfor-
mada, assim como o trigo de onde veio o pão que nutriu o lenhador.
Com a mesma visão da sabedoria, prajña, podemos ainda reconhecer
cada um de nós nesta mesma folha de papel, na medida em que ela
integra a nossa percepção e é inseparável do presente estado da nossa
consciência. Nesta perspectiva, e alargando ao infinito o horizonte
desta descoberta, facilmente constatamos que não podemos apontar
nada que não esteja presente nesta simples folha de papel: “Tempo,
espaço, a terra, a chuva, os minerais no solo, a luz do sol, a nuvem,
o rio, o calor”. Daí a inadequação das noções de “ser” e “não-ser”
para designarem a natureza profunda das coisas, que convoca um
neologismo – “entre-ser” (interbeing, Tiep Hien, em vietnamita) –
para ser meramente indicada, tal como o dedo aponta a lua sem ser
a própria lua. Toda a existência é uma coexistência universal, “ser é
entre-ser”, tudo entre-é com tudo: “Esta folha de papel é porque tudo

The Heart Sutra, In: HANH, Thich Nhat, Awakening of the Heart. Essential
60

buddhist sutras and commentaries, p. 412.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 461
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

o mais é”, ela é apenas constituída por “elementos não-papel”, o que


significa que, se dela fosse possível retirá-los, pura e simplesmente
desapareceria61.
O mesmo tipo de análise aplica-se, com as mesmas conclusões,
a tudo o que o Sutra do Diamante designa como “eu”, “pessoa”, “ser
vivo” e “duração de vida” 62, realidades aparentemente evidentes
segundo os nossos hábitos mentais, o que se reforça por serem fa-
tores de auto-identificação em torno dos quais se constelam fortes e
entranhados complexos emocionais, mas que se podem desmontar
como irrefletidos conceitos e convenções recortados pela abstração
separativa e utilitária na íntima trama do real, mediante um exame
racional que revele como as supostas identidades que designam são
apenas constituídas por alteridades, compondo afinal uma rede de
relações nas quais se subsumem os seus supostos termos e deixa de
fazer sentido falar de identidade ou alteridade. Com efeito, o “eu”,
a “pessoa” e os “seres vivos” nada são sem o sol, a água, a terra,
o espaço, o trigo e demais alimentos, os estados mentais que os
percepcionam e nomeiam como tais, etc., tudo elementos não-“eu”,
não-“pessoa” e não-“seres vivos”. Do mesmo modo, uma “duração
de vida”, aparentemente iniciada no momento do nascimento e
extinta no momento da morte, designa na realidade um processo
de contínua metamorfose em que constantemente inúmeras células
morrem e nascem, sendo uma pura abstração distinguir entre vida

61
Cf. HANH, Thich Nhat, Ibid., pp. 413-414. Cf. BORGES, Paulo. “O que há
nesta simples folha de papel?”. CAIS. Lisboa, Janeiro-Fevereiro de 2013, nº180,
pp. 46-47. De notar que já Fernando Pessoa criou o neologismo “entreser-se”
para designar a relação de cada ente com todos os demais entes – cf. PESSOA,
Fernando. Textos Filosóficos. I. Estabelecidos e prefaciados por António de Pina
Coelho. Lisboa: Edições Ática, 1993, p. 38.
62
“Se, Subhuti, um bodhisattva se agarra à ideia de que um eu, uma pessoa, um ser
vivo ou uma duração de vida existe, essa pessoa não é um autêntico bodhisattva”
– The Diamond Sutra, in: HANH, Thich Nhat Awakening of the Heart. Essential
buddhist sutras and commentaries, p. 318.

462 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

e morte num processo onde todos os organismos a cada instante se


transformam de modo interdependente63.
Cortar ou cristalizar a tessitura dinâmica, metamórfica e entrela-
çada do real em id-entidades supostamente permanentes, distintas e
isoladas é nesta perspectiva o fruto de avidyā, a ignorância, geradora das
duas emoções básicas, o apego e a aversão, que estão na origem de todas
as formas de sofrimento e conflito. Em termos histórico-civilizacionais,
como sustenta o mesmo Thich Nhat Hanh, discriminar e erigir uma
falsa barreira entre a “ideia de pessoa” e a de “não-pessoa” teve como
consequência o antropocentrismo, o considerar-se que os animais, as
plantas e o mundo natural existem para servir a espécie humana, com
o consequente paradigma do crescimento económico ilimitado e o in-
vestimento massivo numa tecnologia que permite explorar os demais
seres vivos e a natureza em prol do mero bem-estar de uma espécie,
o que todavia, devido à natureza interdependente de todas as coisas e
à inerente lei de causa-efeito ou ação-reação, conhecida como lei do
karma, não pode deixar de afetar gravemente e cada vez mais a vida
humana por via das alterações climáticas, da poluição, da destruição
da biodiversidade e do surgimento de novas doenças, entre outros
aspectos das mutações antropogênicas em curso no mundo natural do
qual somos inseparáveis e responsáveis64. É como alternativa a isto que
o sábio vietnamita propõe a sabedoria da não discriminação, advaya
jñana, pela qual se transforme a percepção da Terra como separada do
humano e do cosmos. Reconhecendo a não-separação entre a mente

63
Cf. HANH, Thich Nhat, Ibid., pp. 343-344; The World We Have. A buddhist
approach to peace and ecology. Introdução de Alan Weisman. Berkeley: Parallax
Press, 2008, pp. 71-74.
64
Cf. Id., Awakening of the Heart. Essential buddhist sutras and commentaries,
p. 343. Cf. também Id., The World We Have. A buddhist approach to peace and
ecology, p. 72. Cf. RIECHMANN, Jorge. Interdependientes y Ecodependientes.
Ensayos desde la ética ecológica (y hacia ella). Cànoves i Samalús, Editorial
Proteus, 2012.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 463
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

e os objetos que concebe e percepciona, pode-se experimentar que


somos a Terra e o próprio cosmos: “O cosmos radiante e elegante que
podemos observar é na verdade a nossa própria consciência e não algo
exterior a ela”65.
As considerações de Thich Nhat Hanh sobre a atual crise
ecológico-social, sobretudo se lidas em conjunto com os relatórios
científicos que mostram estar em curso a sexta extinção massiva da
biodiversidade do Holoceno, a primeira por causas antropogênicas,
conduzem a colocar radicalmente em causa a tese nietzschiana de
que as ilusões dominantes são vitais, pois não só revelam não estar
ao serviço da promoção da vida humana, nem da vida de nenhuma
outra espécie, incluindo a dos ecossistemas, como ainda se manifes-
tam letais para todas elas. À luz da visão budista, é como se a crítica
nietzschiana das ficções da representação humana constituísse uma
denúncia bastante pertinente da ilusão subjacente à experiência do
samsāra, a percepção ignorante, confusa e por isso insatisfatória do
mundo, mas ficasse aquém do seu próprio projeto de desconstrução ao
considerar essa ilusão afinal necessária e susceptível de ser orientada,
por uma transvaloração de todos os valores, para uma afirmação mais
plena da vida e da sua inerente vontade de potência, ainda assente no
perspectivismo, por natureza redutor do real aos limites e interesses
de uma dada perspectiva. Em termos budistas, isto é permanecer no
samsāra, impedindo-se a possibilidade de desobscurecer e libertar a
consciência, despertando do “sonho acordado”66 da vida condicionada
precisamente pelo abandono de todo o autocentramento perspectivista
e de toda a vontade de poder, o qual, se entendido como potestas, na
verdade conduz à perda da potentia, segundo a distinção que fizemos
a partir de Espinosa.

65
Cf. HANH, Thich Nhat. Love Letter to the Earth. Berkeley: Parallax Press, 2013,
p. 12.
66
Cf. NIETZSCHE, Friedrich, La volonté de puissance, II, 602, p. 222.

464 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

3.

Terminamos explorando uma relação mais especulativa entre Niet-


zsche e o budismo, agora em estreito diálogo com a mística cristã, no
que respeita ao tema da morte de Deus e da experiência do vazio que aí
se abre. Note-se que, como temos apontado, cremos que a proclamação
nietzschiana da morte de Deus deve ser lida num contexto que a antecipa
e que é a espiritualidade apofática e mística de matriz neoplatônicaque
vislumbram e experienciam Deus como um não-Deus, um nada ou va-
zio por eminência, livre de todas as determinações que o intelecto lhe
confere. Isso explica que a transcensão de Deus – recorde-se Eckhart:
“(...) rogamos a Deus ser livres de Deus” ((...) bitten wir Gott, daβ wir
Gottes ledig werden) - , por reassunção do “abismo eterno” alheio ao
conceito de haver Deus, humano e mundo67, “a grande Vacância, essa
Liberdade ‘além’ mesmo de Deus”68, seja o ousado programa da mística
da (supra-)essência que se estende do movimento do Livre Espírito, dos
begardos e das beguinas, com Marguerite Porete69, a Eckhart e a Angelus
Silesius70. Encontramos aí uma mais radical e prévia “morte de Deus”

67
Cf. ECKHART, Mestre. Predigten. 52. In: Werke I. Textos e versões de Josef
Quint. Editados e comentados por Niklaus Largier. Frankfurt: Deutscher Klassiker
Verlag, 2008, pp. 555 e 561.
68
Cf. LELOUP, Jean-Yves. De Nietzsche à Maître Eckhart. Paris: Éditions Almora,
2014, p. 91. Comentando a súplica eckhartiana de ser livre de Deus, Leloup escreve
que “o homem livre é sem ideias, sem ideal, sem ídolo, sem Deus” – Ibid., p. 98.
69
Cf. BORGES, Paulo. “Do Bem de nada ser. Supra-existência, aniquilamento e
deificação em Margarida Porete”. In: AAVV. Razão e Liberdade. Homenagem
a Manuel José do Carmo Ferreira. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade
de Lisboa / Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, 2010, pp. 349-371.
70
Veja-se de Silesius o poema com o título “Deve-se ir ainda além de Deus”: “Onde
é a minha morada? Onde eu e tu não estamos. / Onde é o meu fim último, para
o qual devo ir? / Aí onde nenhum se encontra. Para onde irei então? / Devo ir
ainda além de Deus, para um deserto” (“Man muβ noch über Gott – Wo ist mein
Aufenthalt? Wo ich und du nicht stehen. / Wo ist mein letztes End, in welches

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 465
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

que permite repensar a sua proclamação por Nietzsche surpreendendo


o impensado que encobre o seu sentido e implicações mais profundos.
Tal como o cínico Diógenes no passado procurou um homem, o “lou-
co” nietzschiano corre pela praça pública com uma lanterna acesa em pleno
dia procurando Deus e anunciando a sua morte às mãos da humanidade71.
Nietzsche dramatiza neste episódio o soçobro da fé na representação cristã
de Deus, que teria sido “despojada da sua plausibilidade”, como “o maior
dos acontecimentos recentes”72. Isto suscita um sentimento ambíguo: por
um lado, traz aos “filósofos” e “livres espíritos” um sentimento de ilumi-
nação “como por uma nova aurora”, que reabre um horizonte marítimo
vasto e livre onde se pode viajar sem limites pré-estabelecidos ao conhe-
cimento e à experiência73; por outro, mal se adivinha ainda tudo o que se
vai afundar como consequência desse fim da fé no Deus cristão, a “longa
sequência” e “abundância de demolições, de destruições, de ruínas e de
subversões”, entre as quais a de “toda a moral europeia”74; por outro ainda,
apesar de Deus haver morrido, Nietzsche adverte que os humanos são tais
que a “sua sombra” perdurará ainda “durante milênios”, sendo necessário
que a vençam aqueles mesmos que já vêem e anunciam a sua morte75.
Na verdade, o “louco” que proclama a morte de Deus espanta-se
perante ter sido possível “esvaziar o mar”, “apagar o horizonte inteiro”
e desprender a “terra” do “Sol”: são imagens de dissolução das ante-

ich soll gehen? / Da, wo man keines findt. Wo soll ich denn nun hin? / Ich muβ
noch über Gott in eine Wüste ziehn”) –SILESIUS, Angelus. Cherubinischer
Wandersmann. I, 289. In: Sämtliche Poetische Werke, III, pp. 7-8 e 219. Numa
nota ao último verso esclarece que se trata de ir “além de tudo o que se conhece de
Deus ou dele se pode pensar / segundo a via negativa”, acrescentando: “acerca de
tal, procurar nos Místicos”. Cf. BORGES, Paulo. “Transcender Deus: de Eckhart
a Silesius”. Philosophica. N.º 34. Lisboa, 2009, pp. 439-457.
71
Cf. NIETZSCHE, Friedrich, A Gaia Ciência, 125, p. 143.
72
Cf. Ibid., 343, p. 230.
73
Cf. Ibid., pp. 231-232.
74
Cf. Ibid., pp. 230-231.
75
Cf. Ibid., p. 129.

466 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

riores referências, negativas mas libertadoras, que, como vimos, dão


lugar ao imaginário positivo e esperançoso de um novo e promissor
horizonte marítimo aberto e livre. Não deixa todavia de ser ambígua a
caracterização que o profeta da morte divina faz do presente momento
da consciência humana, imediatamente emergente do seu descrédito no
fundamento divino de tudo:

“Que fizemos quando desprendemos a corrente que ligava esta terra


ao Sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios?
Longe de todos os sóis? Não estaremos incessantemente a cair? Para
diante, para trás, para o lado, para os lados? Haverá ainda um acima,
um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não
sentiremos na face o sopro do vazio?”76.

Com efeito, mais do que o soçobro do Deus cristão, a morte de Deus


aqui anunciada e vivida é a do apagamento de todo o princípio metafísico
que seja fundamento da ordem do mundo e da sua representação, a disso-
lução do Sujeito absoluto milenarmente pensado como a causa suprema
e incausada de um mundo composto de sujeitos, objetos e suas relações,
o fim do grande suposto de todas as gramáticas, a do sujeito-agente por
detrás de cada pensamento, palavra e ação, o “fetichismo” da “crença
na substância-eu” que se “projeta sobre todas as coisas” e assim “cria o
conceito “coisa” (é neste contexto que Nietzsche afirma: “Temo que não
nos desembaracemos de Deus porque continuamos a crer na gramática”77),
a dissipação do sustento estável de todas as categorias e coordenadas que
tornam possível, determinam e orientam a experiência gregária, social e
convencional do real, que assim colapsa irreversivelmente (note-se uma
vez mais a grande proximidade desta visão com a visão budista).

Cf. Ibid., pp. 143-144.


76

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo de los ídolos o Cómo se filosofa con el


77

martillo. Introdução, tradução e notas de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza


Editorial, 1973, p. 49.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 467
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

É neste sentido que nos interrogamos se não assistimos aqui à experi-


ência involuntária e súbita do mesmo que Mestre Eckhart assume, voluntária
e programaticamente, no sermão 52, como o libertar-se de Deus, ou seja,
de todas as ideias a seu respeito, incluindo a de ser “Deus”, libertando-se
simultaneamente da condição de criatura e regressando nisso à abissalidade
da infinidade e indeterminação primordial e eterna. Não há neste sentimento
de ausência de fins, orientação, coordenadas e referências, nesta sensação de
“cair” em todas as direções e para “todos os lados” ao mesmo tempo, nesta
errância “através de um vazio infinito”, a experiência daquela “pobreza em
espírito” inerente ao nada querer, nada saber e nada ter que é simultaneamente
a transcensão do ser criado e a reintegração no abismo eterno de um fundo
sem fundo – Abgrund78 – que na linguagem eckhartiana não deixa de convocar
as imagens do “deserto”79, do “nada”80 e do “vazio”81? Não há nesta morte
de Deus – que é primeiro que tudo uma morte do sujeito que o pensa como

78
Cf. ECKHART, Mestre, Predigten, 52, In: Werke I, pp. 550-563.
79
O “fundo simples” (“einfaltigen Grund”) é simultaneamente o “deserto silencioso
onde jamais a distinção lançou um olhar, nem Pai, nem Filho, nem Espírito Santo”
(“die stille Wüste, in die nie Unterschiedenheit hineinlugte, weder Vater noch Sohn
noch Heiliger Geist”) – ECKHART, Mestre. Deutsche Predigten und Traktate.
Edição e tradução de Josef Quint. Zurique: Diogenes, 1979, p. 316.
80
Veja-se entre outros o sermão onde Eckhart comenta o passo dos Atos dos
Apóstolos, 9, 3-9, que narra a aparição de Jesus ao futuro São Paulo, subitamente
envolvido por “uma luz vinda do céu” que o faz cair por terra. Quando se ergue,
diz o texto que, “embora tivesse os olhos abertos, não via nada”. Eckhart encontra
aqui quatro sentidos: “Um desses sentidos é: quando se levantou da terra, de olhos
abertos nada viu e esse nada era Deus; pois, ao ver Deus, chama-o um nada.
O segundo sentido: quando se levantou, nada viu senão Deus. O terceiro: em
todas as coisas, nada viu senão Deus. O quarto: ao ver Deus, viu todas as coisas
como um nada” - ECKHART, Mestre. Predigten, Traktate. Werke II. 71. Textos
e versões de Josef Quint, editados e comentados por Niklaus Largier. Frankfurt:
Deutscher Klassiker Verlag, 2008, p. 65. Cf. BORGES, Paulo. “Mestre Eckhart e
Longchenpa: do fundo sem fundo primordial como nada e vacuidade”. In: AAVV.
A Questão de Deus na História da Filosofia. I. Coordenação de Maria Leonor L.
O. Xavier. Sintra: Zéfiro, 2008, pp. 567-579.
81
Cf. ECKHART, Mestre, Predigten, 1, In: Werke I, pp. 13 e 15.

468 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

criador de si e do mundo - uma abertura à experiência plena do vazio no e


a partir do qual se pensa/cria o mundo a cada instante, como o Nietzsche de
A vontade de potência o sugere e a experiência budista o aponta? E não há
também aqui uma abertura ao que, já na tradição apofática e mística, se aponta
como isso que na ideia de Deus se encobre, ou seja, Deus tal como é, o puro
infinito, livre de ser Deus para o ser humano e o mundo, ou seja, livre de todas
as representações antropocêntricas, das metafísicas às morais? Não há nesta
morte de Deus o desocultamento de um nada-tudo ser, nessa imanência e
liberdade radical e primordial alheia a toda a determinação e autoreferência
intelectual, nessa superabundância do vazio pleno de todos os possíveis? Não
há nesta morte de Deus a experiência mística da coincidência com o fundo
sem fundo de tudo, com a desnuda infinidade, sem predicados, atributos ou
características, com a liberdade radical isenta das categorias e modalidades
do divino, do humano e do cósmico, além-aquém de todas as orientações,
caminhos, sentidos e finalidades, numa perdição que é encontro e salvação?
Não será isto conforme ao ensinamento evangélico de só se salvarem os que se
perderem82, ao ensinamento eckhartiano de abandonar todo o “modo” (Weise)
de buscar Deus, pois assim se tomam os “modos” e se perde Deus, que neles
fica “oculto”, apenas sendo experimentado por quem o busca “sem modos”,
convertendo-se na “própria vida”, “sem porquê”83, ou ainda ao ensinamento
de São João da Cruz de chegar à mesma experiência de Deus perdendo-se
de todos os “caminhos” e “formas” criaturais de o procurar84? E não será isto
enfim conforme à experiência búdica da vacuidade como o reconhecimento

82
“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.
Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida
por causa de mim, vai encontrá-la” – Mateus, 16, 24-25.
83
Cf. ECKHART, Mestre, Predigten, 5B, Werke I, pp. 71 e 73.
84
“[…] cuando una alma en el camino espiritual a llegado a tanto que se ha perdido
a todos los caminos y vías naturales de proceder en el trato com Dios, que ya no
le busca por consideraciones ni formas ni sentimientos ni otros modos algunos de
criaturas ni sentido, […]” – CRUZ, São João da. “Cantico Espiritual (B)”. Canção
29, 11. In: Obras Completas. Edição crítica, notas e apêndices de Lucinio Ruano
de la Iglesia. Madrid: BAC, 2002, p. 858.

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 469
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

da impertinência de todas as representações, pelo qual a mente abandona


as três esferas da conceptualidade – sujeito, objeto e ação – e a consciência
desperta na experiência do fundo sem fundo, vazio e luminoso, que “jamais
existiu como o quer que seja e todavia emerge como absolutamente tudo”85,
no budismo Vajrayāna? Não é neste sentido a nietzschiana morte de Deus o
equivalente da célebre exortação iconoclasta do mestre Lin-tsi do budismo
Ch’an: “Tudo o que encontrardes, fora e (mesmo) dentro de vós mesmos,
matai-o. Se encontrardes um Buda, matai o Buda!”86? Esta exortação equivale
por sua vez ao eckhartiano “(...) rogamos a Deus ser livres de Deus” e implica
um não menos radical e iconoclasta abandono de todas as mais veneráveis
referências, precisamente por serem aquelas que mais tendem a prender o
espírito no domínio das representações – palavras, conceitos e imagens - e a
dificultar-lhe o reconhecimento da natureza não-dual do real e a experiência

85
Cf. RABJAM (LONGCHENPA), Longchen. The Precious Treasury of the Basic
Space of Phenomena. Traduzido sob a direção de Sua Eminência Chagdud Tulku
Rinpoche por Richard Barron (Lama Chökyi Nyima), editado por membros da
Comissão de Tradução Padma: Susanne Fairclough, Jeff Miller, Mary Racine e
Robert Racine. Junction City: Padma Publishing, 2001, p. 3.
86
LIN-TSI. Instructions Collectives. 20 b. In: Entretiens de Lin-tsi. Traduzidos do
chinês e comentados por Paul Demiéville. Paris: Fayard, 2010, p. 117. Veja-se
também a fecunda correspondência que o reputado mestre budista contemporâneo
Thich Nhat Hanh estabelece entre este “matar o Buda” e o tema da “morte de
Deus”: “Nirvana não pode ser descrito com conceitos e palavras como ser ou não-
ser. Quando se fala de Deus, da morte de Deus, isso quer dizer que é necessário
que a noção de Deus seja morta para que Deus toque a vida. A mesma coisa é
verdadeira com o nirvana. Os teólogos eruditos que não se servem senão de noções,
de conceitos e de palavras, e não da experiência direta, não são muito úteis. É
necessário matar a noção de Buda para que o verdadeiro Buda possa revelar-se.
O nirvana é para tocar, para viver e não para descrever. As noções, os conceitos
deformam a realidade do que é último… O Buda é uma coisa, a noção de Buda é
uma outra. Um mestre Zen disse isto: ‘Se encontrarem o Buda no vosso caminho,
devem matá-lo…’” – HANH, Thich Nhat. “Respire, tu es vivant”. Dharma.
Arvillard, n. º 26, Mai-Septembre 1996, p. 19. Cf. BORGES, Paulo. “’Se vires o
Buda, mata-o!’. Ensaio sobre a essência do budismo”. In: Descobrir Buda. Estudos
e ensaios sobre a via do Despertar. Lisboa: Âncora Editora, 2010, pp. 79-101.

470 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

da verdade última que é a da sua própria natureza de Buda? Tal como um


Deus pensado como algo de transcendente e exterior dificulta em Eckhart a
experiência da primordial natureza divina de si e de tudo, assim a visão de
um Buda externo impede o reconhecimento de que desde sempre se é Buda, o
que pode ser compreendido à luz dos ensinamentos budistas que consideram
o mestre exterior como aquele que ensina, o seu ensinamento como o mestre
interior, a prática desse ensinamento como o mestre secreto e o despertar da
consciência, por esta via, como o mestre absoluto, a natureza última de si
e de tudo, vazia no sentido de livre de todos os conceitos e representações.
Daí a necessidade espiritual de matar/transcender Deus e matar o Buda.
O “louco” nietzschiano expressa o vislumbre de que a morte de Deus
é a ação mais grandiosa da humanidade e da história, dividindo esta num
antes e num depois que faz deste “uma história mais elevada do que, até
aqui, nunca o foi qualquer história!”. Mas constata que tal grandeza é
excessiva para a humanidade, de onde resulta a interrogação a nosso ver
crucial: “Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para,
simplesmente, parecermos dignos dela?”87. O que significa isto? Há, a
nosso ver, duas possibilidades de interpretação. A primeira, mais fácil e
predominante, é a que se converteu no programa geral da modernidade
e do humanismo ateu e antropocêntrico, mesmo sem consciência disso
ou negando-o: substituir o lugar vazio do “Deus” cristão pela humani-
dade autodivinizada, que se autoinstitui como o novo centro do mundo,
que doravante não ofereceria mais limites ao domínio do humano, tal
como este se representa e celebra na civilização tecnocientífica de matriz
europeia-ocidental, hoje globalizada. Reconhecendo a representação
teológica do divino como projeção psicológica humana (Feuerbach), a
consciência humana preencheria consigo mesma o vazio aberto pela morte
de Deus. Já a segunda leitura - bem mais exigente, em termos teóricos e
práticos, espirituais, intelectuais e éticos, e por isso mesmo minoritária - é
a que entende a necessidade de se tornar deus para ser digno da morte de

Cf. NIETZSCHE, Friedrich, A Gaia Ciência, p. 144.


87

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 471
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

Deus como a exigência de uma plena e infinita transcensão do próprio


humano, que se deve esvaziar radicalmente de todas as determinações,
referências e apoios, a começar pelo autocentramento, para ser capaz de
habitar o vazio, ou antes, ser o vazio aberto pelo Deus que nele deixou
de colocar, o que poderia corresponder ao despertar ou à iluminação na
perspectiva e linguagem budistas. A “grandeza” do deicídio88 seria assim
inseparável dessa suma “grandeza” humana que como vimos Nietzsche,
no Assim Falava Zaratustra, proclama consistir em o humano “ser uma
ponte e não uma meta”, residindo precisamente o que nele há de amável
em ser “transição e perdição” e “uma corda estendida entre o animal e
o Super-Homem – uma corda sobre um abismo”: “Amo os que só sa-
bem viver com a condição de perecer, porque perecendo se superam”89.
Esta grandeza seria a da superação do humanismo, quer na sua anterior
versão teocêntrica, quer na sua moderna versão antropocêntrica, para
esse coalescer com o vazio abissal na assunção da plenitude em ato de
todo o possível que nos parece ser o programa intemporal da mística
mais radical, porventura obscuramente vislumbrado por Nietzsche na
figura equívoca do Supra-homem. É esta superação do humanismo e
do próprio humano que Eudoro de Sousa lucidamente viu como o im-
pensado imperativo do “Homem” que quiser ocupar o esvaziado lugar
da divindade: “O Homem sofrerá pior destino se quiser ocupar o lugar
que Deus deixou vazio: terá de morrer vezes sem conta, excedendo-se
de cada vez que morre, porque Deus é Excessividade caótica, o Excesso
que vem subindo do abismo sem fundo”90.
Seja como for, é porventura para ambas as interpretações e con-
sequências da morte de Deus que o “louco” reconhece haver chegado
“cedo demais”, pois o que ele vê já consumado ainda vem a caminho

88
Cf. Ibid.
89
Cf. Id., Assim Falava Zaratustra, p. 15.
90
Cf. SOUSA, Eudoro de. Mitologia. In: Mitologia / História e Mito. Apresentação
de Constança Marcondes César. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
2002, p. 52.

472 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801
Paulo Borges

para a consciência da maioria dos humanos, embora tenham sido eles


os seus agentes91.
Na confluência da visão-experiência budista, eckhartiana e nietzs-
chiana, perguntamo-nos se não se entreabre aqui a via de uma espiritu-
alidade nova – ou o regresso de uma espiritualidade antiquíssima – que
consiste precisamente na assunção do vazio desvelado pela morte de
Deus, na sua proclamação nietzschiana, sem o pretender ocupar por
uma substitutiva determinação da consciência, a do humano ou outra,
mas antes desvelando que a natureza primordial da consciência coincide
com esse silêncio sem nome do incriado abissal. Mas perguntamo-nos
também se esta via não está desde sempre presente no mais fundo das
múltiplas tradições espirituais, sempre que nestas se aprofundou a ico-
noclasta intuição de que a ideia de “Deus”/”Buda” é o supremo ídolo
a abater, pois o abismo infinito que se designa como “Deus”/”Buda” é
sem ideia e em última instância não é Deus/Buda para si mesmo, não
havendo Deus/Buda em “Deus”/”Buda”, mas antes uma liberdade e um
silêncio sem contornos.
A esta luz pode-se pensar que a primeira morte de Deus/Buda,
agora num sentido negativo, é aquela pela qual Deus/Buda se consti-
tui como uma determinação, entificação e objetivação da consciência
representativa. Na verdade, na dupla perspectiva pela qual a questão
pode ser considerada, Deus/Buda é a morte de Deus/Buda, no duplo
sentido de “Deus”/”Buda” ser a conceptualização do inconceptualizável
e de a experiência não-conceptual da liberdade infinita que se designa e
encobre como “Deus”/”Buda” ser o fim desse conceito e a abertura da
consciência/experiência à sua nudez primeira e última. A morte de todas
as representações de Deus/Buda, metafísicas ou morais, mas sempre
antropocêntricas, pois movidas pelo desejo ávido (tanha em pali, trishna
em sânscrito, segundo o primeiro discurso do Buda) ou vontade de poder
(Wille zur Macht, no sentido de potestas e não de potentia) inerente à

Cf. NIETZSCHE, Friedrich, A Gaia Ciência, pp. 144-145.


91

Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801 473
Nietzsche e o budismo: ilusão, morte de Deus, morte de Buda, vazio e vacuidade

insegurança do intelecto conceptual, pode ser assim vivida, consoante as


distintas linguagens culturais e religiosas, como o despertar/iluminação
ou o apocalipse (desvelamento)/ressurreição da natureza a-budológica e
a-teológica de Buda/Deus como puro vazio abissal, mas por esse mesmo
motivo igualmente superabundante, sem hierarquia, em todos os seres
e manifestações disso a que Mestre Eckhart chamou a “Vida”, “sem
porquê”92. E aqui se poderá reconhecer a dupla vertente de uma nova e
antiquíssima espiritualidade contemplativa e meditativa, que prefira o
silêncio à palavra e funde uma ética não antropocêntrica, que reconhe-
ça, respeite e proteja a presença da maravilha do sem nome em toda a
comunidade cósmica.

Data de registro: 04/10/2015


Data de aceite: 01/09/2016

Cf. ECKHART, Mestre, Predigten, 5B, In: Werke I, pp. 71 e 73.


92

474 Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 443-474, jan./abr. 2017. issn 0102-6801

S-ar putea să vă placă și