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2018, Cássio P. Octaviani


A reprodução parcial ou total deste livro, por quaisquer meios, é livre e gratuita.

O autor declara que as informações contidas neste livro são corretas e completas tanto
quanto é de seu conhecimento, e não se responsabiliza por eventuais imprecisões e
omissões, cabendo ao leitor buscar suas próprias fontes e tirar suas próprias conclusões,
em qualquer caso de dúvida. Os conceitos e ideias apresentados nesta obra refetem os
pontos de vista do autor. As ideias de design aqui apresentadas são sobretudo sugestões
para fns ilustrativos, e não receitas universais ou infalívveis. Nada substitui o bom senso e
a experiência própria. O autor exime-se de qualquer responsabilidade sobre os resultados
ou consequências da aplicação inadequada das ideias aqui contidas.

Impresso em papel reciclado


Por que este livro?

Tem algo de muito errado neste mundo. A humanidade está com um


grande problema nas mãos. Claro que não é só um problema — problemas há
muitos, tem problema pra todo lado. Mas um em particular, sem dúvida o maior
problema de todos, é o objeto deste livro: estamos galopando de rédeas soltas
rumo à destruição total da vida no Planeta Terra. Sério, sem exagero. A nossa
civilização é totalmente insustentável. Com uma combinação fatal de
superpopulação, hiperconsumo, vívcio por crescimento, uso irracional dos
recursos, descaso pela natureza, etc., estamos destruindo as verdadeiras bases
que sustentam a vida em geral, inclusive a humana, no nosso planeta.

Sabe, quando você olha para as pessoas individualmente, talvez pareça que
não há nada errado, que estão apenas cuidando de suas vidas — trabalhando,
tratando de sobreviver, cuidando de suas casas e suas famívlias, perseguindo seus
sonhos... Mas, quando você olha para a humanidade como um todo, parece que
estamos determinados a destruir até a última mata, a poluir até o último rio e
último mar, levar à extinção até a última forma de vida, exceto aquelas que nos
são diretamente úteis. Certamente, qualquer ser extraterrestre de inteligência
suprema que visitasse nosso planeta não teria de nós outra impressão, senão essa.

Agora, é claro que nós, seres humanos, também somos apenas seres vivos,
e dependemos dos mesmos recursos que as demais espécies para sobreviver.
Assim, ao poluirmos as águas, destruirmos os solos e acabarmos com a
biodiversidade, estamos decretando também nossa própria destruição. Mas o
pior é que a imensa maioria das pessoas nem sequer está ciente deste terrívvel
fato! Este assunto é um imenso tabu e jamais é tratado de forma direta, clara.
Você pode assistir televisão a vida toda, ouvir rádio, ler todos os jornais e
revistas, e jamais vai ouvir alguém falando sobre isso. Tampouco nas escolas, e
mesmo nas universidades, se fala sobre isso! Embora assuntos ligados à
sustentabilidade estejam presentes o tempo todo, são sempre apresentados de
forma vaga, oblívqua, evasiva, jamais sequer aranhando a profundidade e
magnitude do problema e, especialmente, sua urgência.

Claro que há pessoas que estão cientes da gravidade da nossa atual crise
ambiental e civilizacional, e suas terrívveis implicações para o futuro da
humanidade e a vida na Terra. Porém, mesmo essas, talvez por inércia, ou por
não conseguirem enxergar uma alternativa viável, continuam na prática se
comportando exatamente como todas as demais; ou seja, por estarem presas aos
paradigmas vigentes da nossa sociedade atual, a simples consciência não basta

i
para fazer com que as pessoas deixem de fazer parte do problema e passem a
contribuir com qualquer solução.

Este livro tem, portanto, dois objetivos: em primeiro lugar trazer ao


consciente coletivo a gravidade da atual crise ambiental e as terrívveis
implicações da insustentabilidade de nossa civilização, da forma clara e objetiva
que o assunto merece. E em segundo lugar, mas não menos importante, discutir
soluções para esse problema, promover uma pauta de propostas concretas de
alternativas a esse caminho de autodestruição que a humanidade vem trilhando.
Nesse sentido, será apresentada a proposta da permacultura, que acredito ser o
melhor caminho para a preservação da vida na Terra, e a construção de um
mundo não apenas sustentável, mas também mais saudável, equilibrado, justo e
feliz.

Não tenho aqui a pretensão de responder a todas as perguntas, ou oferecer


uma solução simples e defnitiva para todos os problemas. Muito ainda há que se
aprender e desenvolver para a construção de um caminho sustentável para a
humanidade, e ainda estamos apenas no começo dessa jornada. O mais
importante neste momento é tentar fazer com que mais pessoas parem para
pensar, refitam conscientemente sobre o que vimos fazendo de nossas vidas e
nossa casa, percebam o lado negro, predatório e destruidor de nossa civilização,
e unam-se no desafo de repensar, reinventar nossa sociedade, para que essa
deixe de ser uma ameaça ao mundo natural, do qual dependemos. Trata-se de
uma tarefa colossal, mas ao mesmo tempo, certamente o desafo que mais vale a
pena enfrentar, dentre todos os que possam existir. Afnal de contas, está em
jogo a continuidade de nossa própria existência, além de todas as outras formas
de vida que há no nosso planeta.

ii
Dedico este livro ao planeta Terra
Índice

Por que este livro? ................................................................……..................... i


Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional
1. Uma História de Insustentabilidade ….................................................…... 3
2. Retrato do Mundo Hoje …................................................................…........ 7
3. A Crise Ambiental ..................................................................................... 25
4. Projeções para o Futuro .......................................................................... 39
5. Estado de Emergência Planetária .......................................................... 51
Parte II – A Alternativa da Permacultura
6. Tempo de Mudança .....…......................................................................... 55
Mas afinal, o que é a PERMACUTTURA?
Histórico da permacultura
7. Éticas e Princípios da Permacultura ...................................................... 63
Éticas da permacultura
Princípios da permacultura
8. Água em Permacultura ............................................................................ 98
Água na zona rural
Água para a casa
Água nas cidades
9. Permacultura Rural ................................................................................ 127
Solos
Zonas de proximidade e intensidade
Particularidades dos trópicos úmidos
Particularidades dos trópicos semiáridos
Estabelecendo um projeto de permacultura rural
10. A Habitação Permacultural ................................................................. 202
Design da casa permacultural
Bioconstrução
11. Saneamento Ecológico ....................................................................... 229
Técnicas de saneamento ecológico
Soluções ecológicas para o saneamento urbano
12. Energia ..........................…..................................................................... 261
13. Permacultura Urbana .......................................................................... 267
14. Estilo de Vida da Permacultura .......................................................... 285
15. Comunidades em Permacultura ......................................................... 293
16. Aprendizado da Permacultura ............................................................ 306
17. Consultoria e Prestação de Serviços em Permacultura .................. 321
18. Proposta de uma Transição Global ................................................... 329
19. Conclusão ............................................................................................. 339
Parte I
A Crise Ambiental e
Civilizacional
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 1. Uma História de Insustentabilidade

1
UMA HISTÓRIA DE
INSUSTENTABILIDADE

Sustentabilidade é uma palavra que está na moda (na verdade, acho que já
até saiu de moda!). Nos últimos tempos, ela tem sido usada tão abusivamente
que, para muitos, já passou a não signifcar nada em particular. Empresas
afrmam em suas propagandas que estão comprometidas com a sustentabilidade;
polívticos simplesmente enfam a palavra aleatoriamente em seus discursos, como
algum tipo de palavra mágica. Livros escolares e programas de televisão
apresentam o assunto de forma tão superfcial, vaga e desconexa que acabam
dando a impressão de que não há nada com que se preocupar.
Mas, afnal, o que é a sustentabilidade, e por que isso é importante? Uma
consulta ao dicionário é pouco esclarecedora: “sustentabilidade. sf. Qualidade,
característica ou condição de sustentável.” Onde sustentável é algo que pode
permanecer ou sustentar-se.
Agora, o que temos a ver com isso? Qual a importância disso para a
humanidade?
A nossa civilização é totalmente insustentável, pois com uma combinação
fatal de superpopulação, hiperconsumo e uso irracional de recursos, estamos
consumindo vorazmente os recursos naturais necessários à nossa própria vida.
Vivemos em um planeta fnito, de recursos fnitos; por simples lógica
matemática, seu consumo contívnuo levará à sua exaustão. Com o fm dos
recursos que servem de base para a existência de vida, obviamente não poderá

3
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 1. Uma História de Insustentabilidade

haver vida. Isso signifcará o declívnio da humanidade e, possivelmente, sua


extinção, arrastando junto boa parte da vida complexa no planeta. Muitos
cientistas acreditam que, mantido o atual ritmo de consumo de recursos e
destruição ambiental, isso deverá ocorrer num futuro bem próximo.
Agora, pergunte às pessoas o que elas entendem por sustentabilidade, e
provavelmente ouvirá algo do tipo: “signifca preservar os recursos naturais para
garantir que as próximas gerações tenham uma boa qualidade de vida”. Como se
se tratasse de uma questão opcional, quase como um mero capricho estético! Ou
seja, infelizmente, a maioria das pessoas têm grande difculdade de compreender
a exata dimensão do problema da insustentabilidade humana. Isso porque, para
que haja essa compreensão, é necessária uma análise abrangente, global do que
está acontecendo com a humanidade e o planeta, uma análise em escalas de
tempo e espaço adequadas — o que raramente é feito. Portanto, nas próximas
páginas vamos tentar fazer, de forma breve, essa análise.

Breve histórico da insustentabilidade humana

Uma rápida análise histórica revela claramente que o começo da


insustentabilidade humana se confunde com o inívcio da própria civilização, e que
cada evento marcante de nossa história trouxe consigo um agravamento dessa
insustentabilidade, culminando com a atual crise ambiental global.
Nossos ancestrais, há milhões de anos, viviam totalmente sujeitos às forças
da natureza, como qualquer outro ser vivo: fatores climáticos (frio intenso),
obstáculos geográfcos (mares, montanhas e desertos), a disponibilidade de água
e alimento, predadores e doenças mantinham as primeiras populações de
hominívdeos em uma situação de equilívbrio com o meio ambiente, limitando seu
tamanho e distribuição geográfca. Eis, porém, que no processo de evolução
nossos antepassados foram adquirindo a notável engenhosidade que nos é
caracterívstica, levando ao desenvolvimento das primeiras tecnologias. Isso
passou, em grande medida, a defnir o que signifca ser humano — nos
destacamos das outras espécies e literalmente deixamos de viver como os outros
bichos. Por outro lado, foi justamente aív que nossos problemas com a
sustentabilidade começaram a surgir.
Com o desenvolvimento das primeiras ferramentas há cerca de 2 milhões
de anos, os primeiros hominívdeos começaram a sua escalada rumo ao topo da
cadeia alimentar: a caça tornou-se mais fácil, e também a defesa contra
predadores. Por possibilitarem a produção de vestimentas e abrigos, as
ferramentas também favoreceram a expansão do homem primitivo a outros
ambientes, antes inabitáveis.
O domínio do fogo, há mais de 100 mil anos, foi o próximo evento de
importância fundamental para a história da humanidade, permitindo uma

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 1. Uma História de Insustentabilidade

expansão ainda maior para regiões frias, maior proteção contra predadores e um
aumento na disponibilidade de alimentos, pela cocção. O fogo também foi muito
utilizado como parte essencial de estratégias de caça, e na modifcação em larga
escala do ambiente para facilitar deslocamentos, construir assentamentos, etc.
O homem primitivo permaneceu assim, como caçador-coletor, por dezenas
de milhares de anos, até o advento da agricultura, há cerca de 10.000 anos.
Embora tenha permanecido com uma população relativamente constante por
esse perívodo, o homem caçador-coletor foi capaz de se espalhar por todos os
continentes e causar a extinção de diversas espécies de grandes mamívferos,
através da caça.
O próximo grande passo da espécie humana rumo à insustentabilidade — e
talvez o mais notável — foi o desenvolvimento da agricultura, evento que se
confunde com o nascimento da própria civilização, cerca de 10.000 anos atrás.
O desmatamento para ampliar terras agrívcolas e a criação de gado passam a
representar uma pressão sem precedentes no meio ambiente, e inicia-se o
processo de desertifcação antropogênica (i.e. causada pelo homem) do planeta.
De nômades, as sociedades passaram a ser sedentárias, e tecnologias cada vez
mais sofsticadas passaram a ser desenvolvidas, tecnologias essas que conferiam
poder sem precedentes a seus detentores, possibilitando a ascensão de impérios,
que progressivamente conquistaram ou destruívram sociedades mais primitivas,
espalhando-se pelo planeta, praticamente extinguindo sociedades tribais e
impondo a civilização como norma.
A Revolução Industrial, no século XVIII, trouxe o desenvolvimento
acelerado de tecnologias industriais, com crescente mecanização e uso de
combustívveis fósseis dando uma nova dimensão ao impacto das atividades
humanas no ambiente: além de uma aceleração sem precedentes na taxa de
crescimento populacional, esse perívodo trouxe também, pela primeira vez, a
poluição industrial. Inicia-se nesse perívodo o processo do êxodo rural, com
concentração crescente da população mundial em cidades. Houve, portanto, um
enorme agravamento do caráter de insustentabilidade das atividades humanas.

O século XX e a Era do Petróleo

O século XX trouxe eventos marcantes que tiveram impactos profundos


para a humanidade e o meio ambiente. Na medicina, o crescente
desenvolvimento e aplicação dos conceitos de higiene e saneamento, e
posteriormente o desenvolvimento de drogas (especialmente antibióticos) e
vacinas resultaram em uma redução marcante nas taxas de mortalidade infantil e
aumentaram a expectativa de vida mundialmente, contribuindo para o aumento
da taxa de crescimento populacional. A descoberta do petróleo como fonte
barata e abundante de energia altamente concentrada permitiu um
desenvolvimento extraordinário nas tecnologias de produção industrial, agrívcola

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 1. Uma História de Insustentabilidade

e transportes, a partir do fnal do século XIX, intensifcando-se vertiginosamente


ao longo do século XX. Além disso, o petróleo também passou rapidamente a
ser usado como matéria prima para a produção de inúmeros produtos, como
fertilizantes, plásticos, solventes, detergentes, tecidos, tintas, pesticidas, etc.
Surge a agricultura industrial, baseada em fertilizantes quívmicos e agrotóxicos,
trazendo gravívssimas consequências para o meio ambiente. A poluição industrial
e petroquívmica também causam degradação ambiental progressiva. A
mecanização atingiu nívveis extremos, aumentando a produção e reduzindo o uso
da mão de obra humana — o trabalho passou a ser feito pelas máquinas, usando
a energia oferecida pelo petróleo. Acentuou-se o processo êxodo rural e
acumulação urbana, com cidades inchando-se, abrigando milhões de pessoas.
Esse perívodo caracteriza-se também por altívssimos nívveis de mobilidade pessoal
e de produtos, enquanto o imenso poder de realizar trabalho e a fonte versátil de
novos materiais que o petróleo representa contribuívram para uma brutal
revolução tecnológica, a produção excessiva de bens industrializados e o
consumismo. O perívodo também é marcado pelo surgimento e ascensão de
grandes corporações e empresas multinacionais, e a globalização.
A Era do Petróleo é, portanto, marcada pela industrialização, explosão
demográfca, urbanização, ascensão da sociedade industrial corporativa de
consumo e globalização. Esse perívodo também é igualmente marcado por um
extraordinário aumento no consumo de recursos naturais e na geração de
poluição ambiental, que continua se intensifcando até os dias de hoje, resultando
na atual crise ambiental global.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

2
RETRATO DO MUNDO HOJE

Estamos no meio de uma crise ambiental global sem precedentes em sua


magnitude, severidade e natureza — uma crise que se agrava a cada dia. Essa
crise engloba, principalmente, os seguintes problemas:
• Destruição de ecossistemas terrestres (e.g. desmatamento).
• Destruição de solos, erosão e desertifcação.
• Poluição do ar, efeito estufa, chuva ácida e destruição da camada de
ozônio.
• Poluição das águas com destruição de ecossistemas marinhos e de água
doce; acidifcação dos oceanos.
• Perturbação do ciclo das águas e deterioração dos recursos hívdricos.
• Extinção de espécies e declívnio da biodiversidade, globalmente.
Todos esses problemas estão intimamente interligados, e a causa central de
todos eles é uma só: as atividades humanas. Embora tenham manifestações
fívsicas no mundo natural, esses prolemas não podem ser vistos como problemas
meramente fívsicos, a serem resolvidos por “especialistas em problemas
ambientais”. Eles têm raívzes históricas, econômicas, sociais, polívticas e
tecnológicas, e estão basicamente atrelados à forma que vivemos e vemos o
mundo. Além disso, as consequências dessa crise se abaterão sobre nossa própria

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

civilização — colheremos os frutos de nossos atos, de nossas escolhas,


conscientes ou não. Portanto, qualquer análise da crise ambiental não pode ser
desvinculada de uma análise da sociedade como um todo. Ou seja, ao se avaliar
as questões ambientais quanto às suas causas, caracterívsticas e possívveis
soluções, há que se analisar em conjunto com as questões sociais que lhes
servem de origem.

Sociedade

A Era do Petróleo trouxe uma brutal transformação das relações de


consumo, de poder, e até nas relações interpessoais, que moldaram o mundo
como o conhecemos hoje.
As novas tecnologias dessa era levaram a um aumento brutal da produção
de bens de consumo. Agora, produção incessante requer consumo incessante.
Em um mercado regido pela antiga lógica da necessidade, produtos em excesso
fcariam estagnados nas fábricas ou lojas, restringindo o fuxo de capital e o
enriquecimento das grandes empresas. Para remover esse empecilho, o mundo
dos negócios aprendeu a usar técnicas psicanalívticas para ler os desejos
enraizados no subconsciente irracional das pessoas, para fazer seus produtos e
discursos de forma a satisfazê-los. De fato, aprenderam a moldar nossos desejos
de acordo com sua própria conveniência, criando e estimulando necessidades
artifciais através de métodos manipulativos de propaganda, Esse foi o
nascimento do marketing moderno.*
Ao contrário das necessidades, que são fnitas, os desejos são
potencialmente infnitos. Além disso, enquanto a lógica das necessidades é
regida primariamente pela razão, os desejos são regidos por impulsos primitivos
e irracionais, permitindo que as massas sejam literalmente treinadas para
consumir incessantemente. Portanto, ao mudar o foco das técnicas de marketing,
passando das necessidades para os desejos, as empresas conseguiram remover o
empecilho ao escoamento de seus produtos, ao transformar culturas baseadas em
necessidades em culturas baseadas em desejos e imagens, culturas de
consumismo. Isso ocorreu inicialmente nos principais paívses industrializados,
logo expandindo-se à maioria dos paívses do mundo no processo colonizador das
empresas multinacionais, e esse foi o ponto chave que permitiu às grandes
corporações atingir o grau de expansão e domívnio do cenário mundial que
conhecemos hoje.
Também o mundo da polívtica aprendeu a utilizar as mesmas técnicas de
marketing para moldar o comportamento das massas. Da mesma forma que as
empresas em suas propagandas, também os polívticos, assessorados por seus
marqueteiros, passaram a valer-se de conhecimentos e técnicas psicanalívticas
* Para uma análise detalhada deste assunto, veja a série de documentários “The Century
of the Self”, da BBC.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

para satisfazer as massas com seus discursos e suas posturas, apelando para o
subconsciente irracional (emoções, imagens) muito mais que o racional (fatos e
argumentos), e assim alcançar e manter o poder, servindo a seus próprios
interesses, e não os das massas que os elegem, ou o bem comum.
A aplicação disseminada das técnicas de marketing moldaram a sociedade
como um todo, desde o nívvel individual (comportamento, valores), passando
pelo coletivo (comportamento das massas), até a organização social e as
estruturas de poder.
Criou-se um elevado grau de alienação das pessoas: o “ser” foi substituívdo
pelo “ter”; bens materiais passaram a ser endeusados, e as aparências passaram a
prevalecer sobre a essência. Para satisfazer seus vívcios de consumo, os indivívduos
trabalham cada vez mais, e vivem cada vez menos — a norma passa a ser uma
vida caracterizada por sobrecarga de trabalho, endividamento, sensação crônica
de insatisfação, ansiedade e vazio existencial, desperdívcio e depressão.
Paradoxalmente, quanto mais um indivívduo atinge seus objetivos (“sonhos de
consumo” e status social), pior ele se sente, numa sívndrome social que recebeu o
nome de affluenza.
Movida por suas necessidades crescentes de consumo criadas por essa
cultura, a sociedade como um todo passou a ser caracterizada por um vívcio pelo
crescimento econômico; a competitividade entre as pessoas, o individualismo e a
obsessão por status intensifcaram-se. Observa-se um endeusamento de marcas e
criação de “tribos”, que nada mais são que grupos de pessoas que assumem
comportamentos padronizados e estereotipados, de acordo com o nicho de
consumo em que se encontram.
As estruturas de poder da sociedade foram profundamente afetadas pelo
marketing e pela ascensão das grandes corporações. Detentoras da supremacia
econômica e vasto domívnio sobre as massas, as corporações passaram a ser o
elemento central, o poder estabelecido.
O próprio Estado é, hoje, penas um vassalo dos interesses das corporações.
Ao fnanciarem as campanhas polívticas, as corporações garantem que os
governos servirão aos seus interesses, seja na criação ou modifcação de leis que
expandam seus mercados, reduzam seus impostos, ou através de facilitações em
contratos, fraudes em licitações, enfm todo tipo de esquemas de corrupção. Da
mesma forma, grandes bancos fnanciam campanhas ajudando a eleger polívticos,
em troca de polívticas econômicas que os favoreçam, garantindo-lhes lucros
exorbitantes, sempre em detrimento da população em geral.
Vive-se, portanto, uma ilusão de democracia, pois aquela ideia que o povo
escolhe seus representantes para cuidarem de seus interesses e do bem comum
em nada corresponde à realidade. Temos instalada, de fato, uma espécie de
“ditadura das corporações”, ou corporocracia, já que o poder polívtico emana
das corporações, e não do povo — esse é mera massa de manobra.
Na corporocracia, polívticas públicas e leis são feitas visando acima de tudo

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

o lucro das corporações detentoras do poder, enquanto se mantém o discurso de


“para o bem da nação”, “em prol da população”, etc. Assim, obras de
infraestrutura como estradas, portos e usinas hidrelétricas são feitas para dar
lucro a empreiteiras e construtoras; cidades são planejadas de modo a fazer do
carro uma necessidade, gerando lucro para montadoras de veívculos e indústria
petrolívfera, enquanto ferrovias são desmanteladas, pelos mesmos motivos;
subsívdios são dados ao agronegócio para aumentar os lucros das empresas com a
venda de agrotóxicos, por exemplo, em detrimento da saúde do povo e do meio
ambiente. Grandes indústrias de armamentos e petrolívferas, através de seus
“fantoches-polívticos-presidentes-de-paívses-de-primeiro-mundo”, criam guerras a
todo momento, onde morrem milhares de pessoas, apenas para gerar vultuosos
lucros com vendas de armas e munições, facilitar o domívnio sobre recursos
petrolívferos das regiões atacadas, expandir mercados para seus negócios, etc.
Esses grupos poderosos valem-se da mívdia para fazer campanhas permanentes
de terrorismo psicológico, fomentando a xenofobia, preconceitos raciais e
religiosos, e empregam rotineiramente a estratégia de forjar atentados para
“justifcar” e ganhar apoio da população para tais guerras.
Um elemento-chave na manutenção desse status quo é a desinformação,
ou seja, a utilização das técnicas de comunicação e informação de forma
enganosa, para dar uma falsa imagem da realidade, mediante a supressão ou
ocultação de informações, minimização da sua importância ou modifcação do
seu sentido, com o objetivo de infuenciar a opinião pública de maneira a
proteger interesses privados ocultos.

GRANDES BANCOS
E CORPORAÇÕES

CONTROTAM

GOVERNOS E
GRANDE MÍDIA

CONTROTAM SUSTENTA

POVO EM GERAT

DESTROEM

MEIO AMBIENTE

Estrutura de poder na sociedade atual — corporocracia

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

A grande mídia é uma das principais ferramentas utilizadas pelo sistema *


para a alienação do povo. Rádio, jornais, revistas e televisão despejam
continuamente rios de besteiras de toda sorte: propagandas comerciais, flmes
imbeciloides, programas e reportagens os mais esdrúxulos que, embora rotulados
de “culturais”, na verdade apenas promovem o endeusamento do consumo, da
futilidade e uma infnidade de comportamentos bizarros; futebol, novelas,
programas de auditório, fofocas sobre “celebridades” e “reality shows” distraem a
população para que não pense, e assim não questione o status quo. Desta forma,
esses veívculos moldam o comportamento das massas, de forma que seja
favorável aos interesses do sistema, ou seja, das corporações, governos e da
própria mívdia. Esta é a verdadeira essência do que se convencionou chamar
entretenimento.
O jornalismo, como é praticado, é um forte instrumento de alienação das
massas. Embora teoricamente tenha a nobre função de informar as pessoas,
servindo como instrumento essencial para o progresso da humanidade,
infelizmente, na prática, seu maior objetivo é apenas vender notívcias; ou seja, os
jornalistas estão interessados, acima de tudo, em audiência, números. Por isso,
noticiários são sensacionalistas — acidentes e crimes violentos “vendem bem”
— e focam fortemente em assuntos popularescos e irrelevantes como fofocas
sobre a vida de “celebridades”, futebol, etc., enquanto os assuntos mais cruciais
para a humanidade, como a crise ambiental que ameaça nossa própria
sobrevivência, não são sequer mencionados. Vendem desinformação, rotulada de
informação.
Por sua grande penetração e infuência sobre o consciente e inconsciente
das massas e, consequentemente seu comportamento, o jornalismo é também
sistematicamente “comprado” por grupos poderosos, passando a servir de
veívculos de propaganda ideológica velada, defendendo interesses ocultos. Ao ser
bombardeada com aquela imensa carga de informações inúteis, esdrúxulas e
tendenciosas, infelizmente a população ainda acredita estar-se tornando mais
culta e bem informada, enquanto está, de fato, apenas sendo distraívda e
manipulada.
A literatura em geral também é alienante. Visite qualquer livraria e verá,
em todas as vitrines, estandes e prateleiras, livros de todos os tamanhos e
formatos, com capas reluzentes e acetinadas, e ricamente ilustrados, abordando
todo tipo de assuntos — menos qualquer coisa importante para a humanidade. O
mercado de livros ocupa-se primariamente de traduções de “best-sellers”
importados, livros que não trazem qualquer informação útil ou relevante; não
faltam livros sobre contos de fadas, bruxos e monstros, estórias românticas
picantes, mistérios, crimes, detetives… livros de autoajuda, com receitas
“infalívveis” sobre como ser feliz, como fcar milionário, como se tornar um

* A expressão “o sistema” é comumente utilizada para referir-se ao modo organizacional e


estrutura de poder dominante da sociedade atual, regida pela corporocracia.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

lívder… futebol, horóscopo, livros de piadas, biografas de artistas pop, livros de


gatinhos fofos, etc. São tantos livros sobre os mesmos assuntos que faz a gente se
perguntar: por que alguém ainda se dá ao trabalho de escrever de novo sobre a
mesma coisa? Atrás dessa aparência de diversidade, o que se tem é uma extrema
aridez de conteúdo com real relevância à humanidade. São apenas distrações,
passatempos, úteis apenas para manter os leitores anestesiados, imersos em suas
fantasias, enquanto são manipulados para continuar servindo obedientemente ao
sistema.
A educação formal, por sua vez, não visa a formação de indivívduos livres,
muito pelo contrário: a individualidade é praticamente abolida e o senso crívtico,
suprimido; a criatividade, obliterada por uma carga brutal de informações muitas
vezes inúteis e, em alguns casos, simplesmente falsas (por exemplo, a história é
quase sempre ensinada de forma distorcida e glamourizada de modo a fomentar
o patriotismo, que não passa de um tipo de alienação e uma ferramenta útil ao
sistema).
Conhecimentos e habilidades fundamentais a qualquer ser humano, como
saber produzir e preparar seus próprios alimentos, ou mesmo fazer uma
manutenção básica em sua própria casa, simplesmente não fazem parte do
currívculo escolar. Somos forçados a decorar nomes e datas irrelevantes, e
aprender operações matemáticas que jamais serão usadas na vida, etc. — mas
que o ser humano está causando uma tremenda crise ambiental que ameaça a
vida no planeta, isso jamais é mencionado. Na escola, não se admite qualquer
crívtica à sociedade ou nosso modo de vida. O sistema educacional atual é
elaborado de forma a garantir que as massas permaneçam alienadas e
dependentes do sistema; sua função principal é moldar as pessoas em um
formato que atenda às necessidades do mercado, produzindo, distribuindo e,
principalmente, consumindo bens e serviços, e pagando impostos, sem jamais
ameaçar a estrutura do poder estabelecido.
Dizem que estamos na Era da Informação, e realmente, a informação está
aív — informação para todo lado. A internet, por exemplo, é sem dúvida uma
fonte formidável de informação, com enorme potencial para empoderamento das
pessoas. O problema é que, se por um lado ela contém tudo de bom, verdadeiro
e importante, por outro lado também contém tudo de mau, falso e irrelevante.
Infelizmente, quem não sabe o que procurar (lamentavelmente, a imensa maioria
das pessoas) acaba se metendo numa espiral sem fm, um universo paralelo de
bizarrices e inutilidades.
Como resultado da verdadeira campanha de desinformação que temos
instalada em múltiplos nívveis na sociedade e o baixo grau de consciência da
população, a despeito da disponibilidade e acessibilidade à informação, vivemos
hoje de fato em uma verdadeira “Idade das Trevas Moderna”, em que um grau
elevadívssimo de alienação pervade a humanidade. Deve-se ressaltar que essa
alienação atinge todos os nívveis da sociedade, desde as massas até as elites

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

(inclusive a intelectual), e este é um ponto-chave para a perpetuação do sistema.

Estilo de vida

Artifcialização

O estilo de vida do homem moderno é caracterizado por um enorme grau


de artifcialização. ou seja, um distanciamento do que é natural. A maioria das
pessoas no mundo de hoje passam o dia todo, todos os dias, sem jamais ter
contato com a terra. Nem sequer veem a terra — apenas cimento, asfalto,
plástico... Mesmo as que andam sobre terra, geralmente não a tocam, pois usam
calçados que as isolam do contato com a mesma. As populações urbanas muitas
vezes não têm contato algum com plantas, a não ser pelo escasso contato visual
com plantas da arborização urbana, praças e jardins (mesmo esses, raros em
muitas cidades). Não têm contato com a luz natural, tendo pouco tempo ao ar
livre e passando o tempo todo iluminadas por luzes artifciais e insalubres. Aliás,
a aplicação intensa e onipresente de iluminação artifcial signifca uma ruptura
do homem com um dos mais básicos ciclos naturais, que é o ciclo claro-escuro,
do dia e da noite. Com isso, não é surpresa que tantas pessoas necessitem de
remédios para dormir, e despertadores para acordar — o que não é sem
consequências para a saúde do corpo e da mente.
Contato com outros elementos da paisagem natural hoje também é
radicalmente reduzido e deturpado. Uma vista do campo, forestas, montanhas
ou mar é quase sempre substituívda por ruas com suas placas de trânsito e
outdoors, edifívcios, viadutos, etc. Rios também não fazem mais parte da vida
das pessoas, já que estão desfgurados, “urbanizados” e, via de regra,
transformados em esgotões a céu aberto, ou mesmo canalizados, sepultados.
O próprio ar que respiramos é, muitas vezes, artifcializado, provido por
aparelhos de ar condicionado de veívculos e edifívcios — um ar ressecado e
desagradável, com o qual tantas pessoas já se acostumaram, mas que continua
sendo veívculo de afecções alérgicas e infamatórias a milhões de pessoas.
O contato com animais, para muitas pessoas, reduziu-se a uma relação de
servidão sentimental, estranhamente misturada com uma relação dono-objeto,
esta última evidenciada pelo ato corriqueiro de compra e venda, o fetichismo
racista, insensibilidade quanto às necessidades intrívnsecas de cada espécie, e até
modifcações cirúrgicas para melhor conveniência e conformação com padrões
estéticos desejados pelo humano. Enquanto isso, em relação a outras espécies
animais como bovinos, suívnos e galinhas, há uma polarização exagerada no
posicionamento das pessoas: enquanto uma parte da população está totalmente
insensívvel ao valor intrívnseco desses seres vivos e seu direito à vida e bem-estar,
e os consomem de forma exagerada e insensívvel a ponto de desenvolverem
graves problemas de saúde pela ingestão excessiva de carne e laticívnios, por

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

exemplo, outros, de tão desconectados que se tornaram de suas raívzes primitivas,


incorrem em um sentimentalismo exagerado e humanização dos animais.
Também as relações inter-humanas e relações de trabalho modernas são
altamente artifcializadas. O trabalho que a maioria das pessoas faz diariamente
nada tem a ver com o suprimento das necessidades básicas do ser humano. Se
antes as tarefas eram diretamente relacionadas à sobrevivência, como caçar,
pescar, plantar e colher, construir abrigos e fazer vestimentas, hoje vemo-nos
enfados nas mais insignifcantes funções, com o único objetivo de ganhar
dinheiro para, com esse, suprir nossas necessidades. Essa falta de vívnculo direto
entre a atividade trabalho e o suprimento de necessidades reais torna o trabalho
desmotivante, e a vida sem sentido.
Já as relações inter-humanas têm se tornado cada vez mais relações de
competição ou interesse, e cada vez menos de cooperação voluntária e
espontânea. Enquanto isso, os relacionamentos pessoais são gradualmente
substituívdos por pseudo-relacionamentos virtuais: num mundo regido por ilusões
e aparências, cada vez mais pessoas substituem sua vida e relacionamentos reais
por novelas e séries de televisão — muito mais cômodos e práticos, cheios de
“aventura e emoções” (ainda que falsas), e isentos de qualquer tipo exposição ou
riscos. A maioria das pessoas “conhecem” muito mais celebridades de televisão
do que pessoas reais (da mesma forma que conhecem muito mais logotipos de
marcas e empresas do que espécies de animais e plantas). As redes sociais da
internet fzeram com que esse grau de artifcialização de relacionamentos
atingisse novos nívveis: pessoas assumem uma verdadeira “segunda identidade
virtual”, puramente baseada em aparências e com pouca relação com a
realidade, e muitas vezes com muito mais “amigos” que na vida real (sendo que
a maioria desses amigos jamais serão conhecidos verdadeiramente).
Humanos evoluívram como parte integrante da natureza, ao longo de
milhões de anos, e esse distanciamento todo do que é natural foi um fenômeno
extremamente rápido e recente. Isso dito, não é surpresa que esse estilo de vida
artifcial de hoje em dia crie grave confito com nossa própria essência humana
sendo, por si só, fonte de insatisfação, tensão interna, depressão, infelicidade e
má saúde.

O estilo de vida moderno é também um estilo de vida de hiperdependência,


hiperconsumo, e hiperdesperdívcio.
Hiperdependência signifca que a pessoa depende inteiramente de uma
série de fatores não naturais para sua sobrevivência. O indivívduo moderno,
diferentemente dos seus ancestrais primitivos e mesmo dos camponeses de
outrora, não tem a menor condição de suprir nenhuma suas necessidades
diretamente. Ao invés disso, ele depende completamente do seu emprego para
ter dinheiro; do carro para ir ao trabalho; depende do dinheiro para comprar
comida e todo o mais, para o que ele depende do supermercado, o qual depende
da agricultura, indústrias, sistemas de transportes, etc. Depende ainda da

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

companhia de água, senão morre de sede, etc. Essa dependência total de


sistemas humanos complexos reduz a resiliência do indivívduo e da sociedade
como um todo, e de fato tem sido um frequente fator causador do colapso de
civilizações passadas.
Hiperconsumo: o estilo de vida contemporâneo é inextricavelmente
marcado por um consumo muito maior de recursos naturais do que o necessário
à vida humana, comparando, por exemplo, com o homem que viveu antes da
Revolução Industrial. Água encanada, energia elétrica e combustívveis fósseis,
outrora indisponívveis, hoje são usadas indiscriminadamente, a enormes custos
ambientais; alimentos são consumidos em demasia por mais da metade da
população mundial (enquanto outros passam fome, diga-se de passagem),
levando a uma pandemia de obesidade; produtos industrializados como roupas,
acessórios, utensívlios domésticos, eletroeletrônicos, brinquedos e até veívculos
acumulam-se nas casas, abarrotando-as. Nessa cultura do consumismo, tívpica de
nossa sociedade moderna, as pessoas muitas vezes compram um monte de coisas
das quais não precisam e nem sequer vão usar, apenas por não resistirem ao
apelo da propaganda e os desejos por ela criados — são as famosas compras por
impulso. Não raro, isso torna-se um vívcio: a pessoa compra coisas
freneticamente para tentar preencher o vazio existencial de uma vida sem
sentido, o que normalmente resulta em endividamento e, de fato, um
agravamento de seu quadro psicológico.
Já o hiperdesperdício vem de mãos dadas com o hiperconsumo, e também
com o conceito subconsciente que os recursos naturais são infnitos.
Frequentemente justifcado com base na comodidade, ou em um conceito
profundamente torpe de custo-benefício, que leva em consideração
exclusivamente o custo em termos de dinheiro, e benefívcio como algo que se
deseja egoisticamente, sem qualquer consideração pelos efeitos negativos que
podem ser causados às outras pessoas, às gerações futuras, às outras espécies,
enfm à vida na Terra.
O desperdívcio está em todo lugar. Desperdívcio de água, desperdívcio de
energia. Coisas que são jogadas fora sendo que ainda funcionam perfeitamente,
ou poderiam ser consertadas.
Dois pontos merecem menção especial quando o assunto é desperdívcio. O
primeiro é o desperdívcio de comida, que de acordo com a FAO (Organização
das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) corresponde a cerca de um
terço de toda a comida produzida mundialmente — um dado extremamente
alarmante. Perdas ocorrem em todas as etapas, desde a produção no campo,
passando pelo transporte, entrepostos, varejo (alimentos que vencem nas
prateleiras), até casa do consumidor fnal, onde há perdas por compra excessiva e
desorganizada, mau armazenamento (alimentos estragando na geladeira),
chegando ao hábito horroroso presente na maioria das casas de jogar restos de
comida no lixo, seja do prato, seja da panela — por incapacidade de calcular
direito a quantidade de alimento a ser preparada, por desleixo ao decidir a

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

quantidade de comida a pôr no prato, por preguiça de guardar o resto da comida


para comer na refeição seguinte; por desprezo ou mesmo ignorância sobre o
valor intrívnseco do alimento, que deveria ser sagrado, e também ignorância em
relação aos problemas ambientais associados ao lixo. Isso tudo é muitas vezes
agravado por uma cultura imbecil de achar que é normal ou até mesmo “chique”
jogar comida fora (“sinal de fartura”). Dessa forma, diariamente uma
quantidade de alimentos que seriam capazes de acabar com a fome no mundo
com ampla folga são transformados em lixo sem jamais serem consumidos,
tampouco devolvidos ao solo.
O fato de tantos alimentos serem desperdiçados também signifca que
comida sufciente poderia ter sido produzida utilizando uma área muito menor
de terras, quantidades muito menores de água, energia, fertilizantes, enfm, todos
os recursos naturais, ou seja, com custos ambientais bem menores.
O outro ponto de destaque em relação ao hiperdesperdívcio é a estratégia,
amplamente utilizada pela indústria, da obsolescência programada, em que os
produtos são literalmente feitos para durarem pouco, forçando os consumidores
a comprarem os mesmos produtos novamente, e de novo, e de novo. Isso pode
ser conseguido de várias formas diferentes: fazendo produtos com componentes
frágeis que quebram ou se desgastam logo, usando deliberadamente um design
industrial que praticamente impossibilita reparos, não oferecendo peças de
reposição ou oferecendo-as a um custo descabidamente alto, fazendo com que o
reparo ou substituição fque mais caro que o produto novo, etc. Outro tipo de
obsolescência programada é a obsolescência psicológica: variações superfciais
de estilo e grafsmo fazem com que pessoas de cabeça vazia sintam-se mal com
seus produtos “antigos”, por não estarem mais na moda, vendo-se “forçadas” a
comprar novos, ainda que seus antigos estejam cumprindo suas funções
perfeitamente.
Infelizmente, ao invés de se revoltarem contra a obsolescência programada,
a maioria das pessoas se acostumam com ela e passam a achar normal comprar
várias vezes a mesma coisa. Assim, essa estratégia é central para forjar a atual
cultura do consumismo.
Embora a ideia das obsolescência programada seja muito atrativa para as
corporações, indústria e comércio por aumentarem seus lucros, isso tem efeitos
negativos na sociedade, pois gera o endividamento de grande parte da população.
Mais devastadores, porém, são os efeitos no meio ambiente, devido à
exacerbação do consumo de recursos naturais e da produção de poluição
industrial e lixo.

Vício por crescimento

A humanidade está simplesmente viciada em crescimento. Crescimento


populacional, crescimento do PIB, crescimento das cidades… As pessoas
querem casas cada vez maiores, carros cada vez maiores; mais casas, mais

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

carros, mais dinheiro, mais status, etc.


Temos instalada uma cultura dominante de acumulação. Agora, veja o
seguinte: se uma pessoa tem muitos gatos, dizemos que ela tem problemas; se
outro acumula jornais antigos, fazendo pilhas que chegam até o teto, dizemos
que é louco. Mas, qualquer um que conseguir acumular uma quantidade obscena
de dinheiro, milhares de vezes superior ao necessário para suprir suas
necessidades, esse será considerado um modelo de pessoa! A cultura da
acumulação é tão prevalente que as pessoas se sentem moralmente compelidas a
crescer economicamente a qualquer custo, sob o risco de parecer um fracassado
perante a famívlia e amigos, colegas etc., caso não consigam. Na nossa sociedade
moderna, o conceito de suficiente foi simplesmente riscado do dicionário.
Executivos de empresas e polívticos sobrevivem ou não em seus cargos
baseado em sua habilidade de promover crescimento econômico ano após ano.
Isso frequentemente leva a práticas deletérias à sociedade, bem como ao meio
ambiente.
A busca por um crescimento contívnuo e infnito é o elemento central do
paradigma econômico atual. Nesse sistema, acredita-se que o crescimento é
necessário à prosperidade e bem estar social. De fato, a economia, como
atualmente organizada, depende de crescimento contívnuo para gerar empregos e
garantir a estabilidade fnanceira e social. Porém, isso cria um grave dilema: se o
crescimento é necessário para que haja prosperidade e, ao mesmo tempo, leva à
degradação ambiental e depleção de recursos que impedirá a manutenção dessa
prosperidade, o que fazer? O problema é que a hegemonia do modelo econômico
baseado em crescimento infnito impede as pessoas de questionar os conceitos
básicos sobre os quais ele se apoia. O “sacrossanto” crescimento não deve jamais
ser questionado. Questione o crescimento, e sua punição será severa e imediata!
Você será isolado como um leproso, ridicularizado, sua carreira está encerrada,
etc.
Uma das manifestações do vívcio por crescimento é a obsessão pelo PIB
(produto interno bruto), frequentemente utilizado por economistas, polívticos,
jornalistas etc. como indicador de que “está tudo bem”. “Se o PIB está crescendo,
está tudo bem!” assumem. O problema é que o PIB é um indicador grosseiro de
progresso, pois não leva em consideração os custos ambientais e sociais desse
crescimento, e suas implicações para o futuro da sociedade, ou do ambiente do
qual ela depende. Ao explorar de forma excessiva e destrutiva os recursos
naturais e ambientais, como desmatar para extração de madeira, ou explorar o
solo de forma predatória, ou os recursos minerais, ou abusar de recursos
hívdricos, etc., tudo isso leva a uma aumento do PIB, mas leva também à
exaustão desses recursos, signifcando que no futuro a sociedade não poderá
mais contar com eles. Ou seja, você tem uma situação em que a economia está
crescendo, a população está crescendo, e justamente em função disso o ambiente
está sendo degradado e os recursos naturais, depletados. Essa é uma relação

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

inextricável e irreversívvel.* Agora, no momento atual, enquanto estamos


crescendo, todo mundo está feliz, e a maioria das pessoas tem a certeza que está
tudo bem, estamos indo na direção certa. Mas, até quando vai estar todo mundo
feliz? O problema é que enquanto os recursos ainda estiverem disponívveis, as
pessoas se recusarão a aceitar o fato lógico que eles estão se extinguindo e um
dia fatalmente se tornarão criticamente escassos.
Os economistas, polívticos e pessoas em geral não enxergam a gravidade das
consequências desse vívcio por crescimento por ignorância a respeito das reais
necessidades humanas, de como funciona a economia e sua relação com o meio
ambiente e os recursos naturais. Uma das formas dessa ignorância se manifestar
é na forma do chamado otimismo tecnológico, ou seja, a ideia que novas
tecnologias resolverão todos os problemas, removerão os empecilhos,
possibilitando um crescimento infnito. Porém, isso não passa de uma ilusão,
uma aposta suicida. De fato, está provado que o desenvolvimento de tecnologias
está relacionado a um aumento do consumo de recursos, e não o contrário! Por
exemplo, novas tecnologias podem aumentar a efciência na extração do
petróleo, dando a impressão que esse recurso foi aumentado. É verdade que,
com novas tecnologias, reservas antes inalcançáveis podem passar a ser
disponívveis, mas nada pode aumentar a quantidade de petróleo — todo o
petróleo que existe foi produzido há milhões de anos, e nenhum está sendo
produzido agora; trata-se de um recurso fnito e não renovável, portanto sua
extração contívnua inevitavelmente levará à sua exaustão e, na verdade, qualquer
aumento na efciência na extração do petróleo só causará um aumento no
consumo desse recurso. Outro exemplo muito citado é que carros e televisões
modernas consomem menos combustívvel e energia que modelos antigos. Isso
pode ser verdade; porém, ao mesmo tempo, hoje são produzidos e consumidos
muitos mais carros e TVs, de forma que o consumo global é muito maior que no
passado.

Energia

Outra caracterívstica perigosívssima de nossa civilização industrial é nosso


terrívvel vício por energia. Enquanto todas as outras espécies de animais utilizam-
se de apenas do sol e alimentos como fontes de energia, nós, seres humanos
civilizados, em nossas atividades, utilizamos uma quantidade descomunal de
energia, de diversas fontes e formas.
A vida moderna, em todos seus aspectos, requer enormes quantidades de
energia: iluminação, refrigeração, aquecimento, cocção de alimentos, operação
de eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos, locomoção e transportes, construção
civil e obras de infraestrutura, serviços públicos em geral, etc. A agricultura
moderna também é grande consumidora de energia, especialmente devido à

* Para uma discussão aprofundada dessa relação, recomendo a leitura de “A lei da


entropia e o processo econômico”, de Nicholas Georgescu-Roegen.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

mecanização. Por fm, temos a indústria e o setor tecnológico, peças centrais de


nossa civilização atual, que são um dos principais consumidores de energia em
todas as suas formas.
O consumo per capita de energia tem aumentado vertiginosamente, sendo
um refexo do processo civilizatório. Porém, todas essas necessidades artifciais
criadas pela civilização vêm a um enorme custo ambiental, na forma de consumo
de recursos naturais e geração de poluição, redundando na destruição de
ecossistemas. A principal fonte de energia utilizada por nossa civilização
atualmente são os combustívveis fósseis, tanto para transporte como para
indústrias e mesmo para a geração de energia elétrica, nas usinas termelétricas.
Além da poluição do ar causada pela queima desses combustívveis, há ainda o
dano ambiental causado pela extração desses recursos, incluindo os eventuais
(não raros) derramamentos de petróleo que causam enorme estrago
principalmente a ambientes marinhos.
Outras formas de energia também destroem o meio ambiente. O etanol, por
exemplo, é frequentemente visto como uma alternativa sustentável ao petróleo.
De fato, pelo menos em relação à liberação de gases do efeito estufa e outros
poluentes atmosféricos, o etanol é bem menos danoso que o petróleo, já que há
uma reciclagem do carbono. Porém, seu uso como fonte de energia também traz
sérios problemas, entre eles a intensifcação dos problemas ambientais causados
pela agricultura industrial (discutidos mais adiante). Outro problema serívssimo é
que, ao se investir no etanol como substituto ao petróleo, isso signifca desviar os
recursos agrívcolas para a produção do álcool, em detrimento da produção de
alimentos — ou seja, os carros e indústrias passam a competir diretamente com
as pessoas por alimentos, podendo levar a um agravamento da situação de
vulnerabilidade alimentar e fome global, além da intensifcação do
desmatamento para acomodar essa nova demanda agrívcola, caso o etanol
passasse a ser um elemento predominante na matriz energética global.
No Brasil, a principal fonte de energia elétrica são as usinas hidrelétricas.
Consideradas por muitos uma “energia limpa”, por supostamente não consumir
combustívveis ou poluir a atmosfera, as usinas hidrelétricas são, ainda assim,
responsáveis por enorme destruição ambiental, pois inundam vastas áreas, na
ordem de milhares de quilômetros quadrados, destruindo forestas nativas,
alterando o fuxo das águas, descaracterizando e reduzindo enormemente a
biodiversidade pela interrupção dos ciclos biológicos de inúmeras espécies de
fauna e fora locais, etc. Além disso, as usinas hidrelétricas também contribuem
signifcativamente para a poluição da água e geração de gases do efeito estufa: a
inundação de áreas forestais leva à morte e consequente decomposição de toda a
biomassa presente na área inundada. Essa decomposição consome vorazmente o
oxigênio dissolvido na água, levando à hipóxia ou anóxia e acidifcação, matando
milhões de peixes e outras formas de vida. A decomposição de toda essa
biomassa libera imensas quantidades de gases como CO2 e metano, isso sem
contar que as represas são obras gigantescas, que incluem a utilização de milhões

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

de toneladas de cimento e centenas de milhões de litros de óleo diesel para


mover as máquinas para sua construção — tudo isso representando a geração de
quantidades descomunais de gases do efeito estufa, contribuindo para o
aquecimento global. Por fm, é importante ressaltar que a construção das
barragens também causa sérios problemas sociais como o deslocamento forçado
(leia-se expulsão) de ívndios e populações tradicionais, destruindo assim suas
culturas.
Uma das principais fontes de eletricidade no mundo atualmente são as
usinas nucleares. Essas também são extremamente perigosas pois sua operação
gera o chamado “lixo atômico”, subprodutos que se mantêm altamente
radioativos por milhares de anos — um problema sem solução. Além disso,
usinas nucleares são susceptívveis a acidentes e incidentes de todo tipo, incluindo
falhas humanas como ocorrido em Chernobyl em 1986, ou provocadas por
desastres naturais como ocorrido em Fukushima em 2011, e até mesmo
provocados intencionalmente, por exemplo sendo alvos potenciais de
bombardeios em guerras ou atentados terroristas. Acidentes em usinas nucleares
podem ser catastrófcos, com explosões e vazamento de imensas quantidades de
material altamente radioativo, podendo causar muitas mortes a curto, médio e
longo prazo, além de maciça contaminação ambiental que pode perdurar por
séculos.
Fontes de energia alternativas, renováveis, como a solar e eólica, são
consideradas muito menos nocivas ao meio ambiente que as fontes mais comuns
citadas acima. Embora estejam crescendo em popularidade, em 2015 essas
formas de energia renovável juntas ainda representavam apenas cerca de 1,5%
da matriz energética global.*

Transporte

Os nívveis de mobilidade, tanto humana como de cargas, que se tem hoje


são assombrosos e jamais vistos na história da humanidade, graças ao grande
desenvolvimento e consequente barateamento dos transportes movidos a
combustívveis fósseis. Houve de fato uma banalização do transporte. Nos dias de
hoje, usando transporte motorizado individual ou coletivo, tornou-se
extremamente comum às pessoas percorrer dezenas ou mesmo centenas de
quilômetros todos os dias para atividades as mais corriqueiras, como ir ao
trabalho ou estudo, fato apenas tornado possívvel pela utilização indiscriminada
da energia altamente concentrada presente nos combustívveis, especialmente os
derivados do petróleo. O mesmo ocorre com cargas: hoje, a grande maioria dos
produtos consumidos pela população, vendidos no mercado próximo às suas
casas, vem de fato de regiões muito distantes, sendo transportados por centenas
ou milhares de quilômetros, e muitas vezes de outros paívses, literalmente do

* 2017 Key world energy statistics. International Energy Agency. 2017.

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

outro lado do mundo. Isso se aplica tanto a alimentos como produtos


industrializados em geral.
Essa banalização do transporte e o vívcio pela locomoção, caracterívsticos da
nossa Era do Petróleo, representam um gravívssimo problema ambiental, em
múltiplos nívveis. O problema mais óbvio é a poluição do ar pelas emissões
diretas dos veívculos, pela queima de combustívveis: os transportes motorizados
são a principal fonte de poluição do ar na maioria das grandes cidades do
mundo, de forma que as metrópoles são permanentemente envoltas em uma
enorme massa acinzentada de fumaça. Tal baixa qualidade do ar está
diretamente ligada a inúmeros problemas de saúde das populações urbanas,
como doenças respiratórias, cardiovasculares e câncer, além de distúrbios
neurológicos e comportamentais, incluindo a depressão. E o problema só tende a
se agravar, pois a frota mundial de veívculos está aumentando sem parar. Um caso
extremo a ser citado é a cidade de São Paulo, que já tem uma frota de mais de 8
milhões de veívculos, com uma proporção absurda de 2 veívculos para cada 3
habitantes, já tendo superado, em ambos os quesitos (número de veívculos e
proporção em relação ao número de habitantes), a cidade americana de Los
Angeles, historicamente famosa por ser a cidade com maior número de carros do
mundo. Deve-se ressaltar também que os transportes são um dos principais
geradores de gases do efeito estufa, mundialmente.
Além da poluição atmosférica, também devem ser levadas em consideração
toda a degradação ambiental e poluição associadas com a indústria
petroquívmica, a fabricação de veívculos, além da construção e manutenção de
toda a infraestrutura voltada para o transporte motorizado individual, público e
de cargas, como rodovias, ruas, viadutos, linhas férreas, portos, aeroportos, etc.

Água

Sem dúvida, o uso mais essencial da água é para a hidratação do corpo.


Um ser humano adulto necessita, em média, de aproximadamente 2 litros de
água por dia para manter-se adequadamente hidratado. No entanto, o homem
civilizado utiliza em média 150 a 200 litros de água por dia, para as mais
variadas atividades, como lavar louça, lavar roupa, tomar banho, limpar sua casa,
lavar o carro, etc. Ou seja, apenas cerca de 1% do consumo diário de água é
voltado para um uso essencial! Uma única descarga de privada consome três a
quatro vezes mais água que o necessário para manter um adulto hidratado por
um dia inteiro; como cada pessoa dá, em média, umas 10 descargas por dia, isso
signifca o sufciente para matar a sede de umas 35 pessoas pelo mesmo perívodo!
Crescemos tão acostumados a todo esse desperdívcio que nem sequer nos damos
conta do tamanho do absurdo que ele representa.
E o pior é que os 150 a 200 litros de água citados acima referem-se apenas
ao uso direto de cada pessoa, em sua casa. Se forem incluívdos os gastos com
manutenção pública e de ambientes de trabalho, comércio, serviços, indústria,

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

irrigação agrívcola etc, o volume de água consumido por habitante atinge valores
muito mais altos e difívceis de calcular. Essa água toda sendo consumida,
obviamente não está deixando de existir, mas sim sendo transformada em
esgotos, que poluem ambientes aquáticos como rios, lagos e mares, destruindo e
acabando com a vida nesses ecossistemas, e ao mesmo tempo diminuindo a
quantidade de água limpa disponívvel, tanto para a natureza como para uso
humano.

Alimentação

A artifcialização da vida se manifesta também de forma fagrante nos


hábitos alimentares do homem moderno, especialmente nos alimentos
processados e ultraprocessados.
Alimentos ultraprocessados são aqueles produzidos primariamente a partir
de substâncias purifcadas (e.g. açúcar refnado) e substâncias artifciais
(corantes, aromatizantes, conservantes, etc.). Exemplos de alimentos
ultraprocessados incluem salgadinhos, doces, refrigerantes, sucos processados e
bebidas alcoólicas, pães, bolos e pizzas, biscoitos, bebidas lácteas, chocolates e
bombons, massas em geral, margarina, sorvetes e sobremesas prontas, embutidos
como salame e mortadela, entre uma lista infndável de outros produtos.
Esses alimentos fazem mal à saúde porque eles contém quantidades
excessivas de açúcar, carboidratos simples, sal e gorduras não saudáveis, além de
dezenas de aditivos quívmicos sintéticos. Quando é citado na embalagem que
contém aromatizantes, corantes, edulcorantes e conservantes artifciais, isso gera
a impressão errônea que se trata de 4 substâncias (o que já deveria ser motivo de
muita preocupação!). Mas na verdade a coisa é muito pior, pois muitas vezes
cada um desses itens é na verdade uma mistura de inúmeros produtos quívmicos
que entram em cada categoria, e simplesmente não são especifcados na
embalagem! A longo prazo, esses produtos agem como toxinas no organismo.
Por tudo isso, o consumo rotineiro desse tipo de alimento causa uma série de
problemas de saúde, incluindo cáries, distúrbios metabólicos e endócrinos como
diabetes e obesidade, doenças hepáticas, pancreáticas e renais,
hipercolesterolemia, distúrbios oxidativos e infamatórios, arteriosclerose,
infartos cardívacos, derrames cerebrais, câncer, e doenças degenerativas crônicas,
incluindo degeneração cerebral e mal de Alzheimer, etc.
Por outro lado, esses alimentos contém pouca fbra alimentar e quantidades
insufcientes e desbalanceadas de nutrientes importantívssimos como proteívnas,
vitaminas, minerais e ácidos graxos essenciais, levando a problemas digestivos e
desnutrição. Embora pareça paradoxal, é comum pessoas que consomem
alimentos processados serem obesas e desnutridas ao mesmo tempo!
É estarrecedor notar que muitos dos alimentos ultraprocessados são
comumente confundidos pela população em geral com alimentos saudáveis — os
chamados “iogurtes de frutas”, barras de cereais e cereais matinais, por exemplo

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

— quando na verdade são porcarias nocivas à saúde. Isso se deve largamente a


ardilosas táticas de marketing dos fabricantes, que associam esses produtos à
imagem de pessoas jovens, ativas, felizes e saudáveis.
Pior ainda é quando essas propagandas estimulam o consumo por crianças!
Por exemplo, pouca gente sabe, mas os chamados “alimentos achocolatados em
pó” (como Nescau e Toddy, entre outras marcas), são cerca de 90% açúcar, e
apenas 10% de outros ingredientes, dos quais o cacau é um componente quase
insignifcante. Já o conhecido cereal Sucrilhos é 54% açúcar, e cerca de 40%
milho.
Além do impacto na saúde, os alimentos ultraprocessados têm também
maior impacto no meio ambiente, devido ao processo de fabricação industrial e
embalagens excessivas, geralmente feitas com materiais não biodegradáveis
(principalmente plástico).
Deve-se ressaltar, porém, que os alimentos processados e ultraprocessados
não são os únicos problemas da alimentação moderna, já que a imensa maioria
dos alimentos consumidos hoje pela população, processados ou não, são
produzidos pela agricultura industrial. Além da destruição ambiental causada por
esse modelo de agricultura (conforme discutiremos a seguir), os alimentos assim
produzidos também são contaminados por resívduos de agrotóxicos e fertilizantes
quívmicos, além de hormônios, antibióticos e outras drogas, que estão associados
a inúmeros problemas de saúde, como doenças hepáticas, renais e nervosas,
distúrbios hormonais e metabólicos, câncer, etc.

Agricultura

A agricultura é a atividade humana mais destrutiva ao meio ambiente,


desde o seu surgimento há dez mil anos e até os dias de hoje.
É bastante disseminada a noção que a agricultura tradicional, nos moldes
antigos, isto é, antes do surgimento da agricultura industrial no século XX, era
ecológica, inócua ao meio ambiente. Porém, nada poderia estar mais distante da
verdade! É necessário ressaltar que a agricultura, desde seu nascimento, sempre
se caracterizou por ser um sistema antagônico à natureza e altamente
insustentável. Muito antes da era industrial, desmatamento para conversão de
terras ao uso agrívcola, uso indiscriminado do fogo, excessiva pressão de pastejo
por rebanhos bovinos e ovinos, etc. já haviam deixado um rastro considerável de
destruição ambiental em vastas regiões do planeta. Meio milênio atrás, a maior
parte dos paívses europeus já tinham perdido quase todas as suas forestas,
enquanto áreas desérticas no Norte da África e Oriente Médio haviam sido
consideravelmente alargadas devido à agricultura e pecuária. Há séculos,
espécies vêm sendo extintas e biomas inteiros perdidos por causa da agricultura.
Tradicionalmente, o solo sempre foi utilizado de forma descartável pela
agricultura. Florestas são derrubadas e queimadas para dar lugar a plantações;

23
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 2. Retrato do Mundo Hoje

nos primeiros anos de exploração agrívcola, a produtividade é normalmente


ótima, pois se está explorando a fertilidade do solo ali construívda pela natureza
ao longo de milênios. Porém, com a drástica redução na biomassa e
biodiversidade do solo, e agravado por práticas como queimadas rotineiras,
aração e gradagem que destroem a estrutura do solo e expõem suas entranhas à
ação do sol, chuva e vento, observa-se uma perda progressiva na fertilidade.
Após alguns anos ou poucas décadas, a terra que antes produzia de tudo começa
a dar sinais de cansaço, passando então a ser usada para plantações cada vez
menos exigentes. Quando nem essas podem ser produzidas, instituem-se as
pastagens; enfm, quando já nem capim cresce mais, a terra é abandonada, e o
agricultor avança mais uma vez mata a dentro, desmatando e reiniciando mais
um ciclo no processo de destruição da natureza pela agricultura.
Agora, os problemas ambientais foram brutalmente intensifcados com o
surgimento da agricultura industrial, esta caracterizada por um alto grau de
mecanização, uso de fertilizantes quívmicos e agrotóxicos, melhoramento
genético de plantas e animais e, mais recentemente, engenharia genética.
Apoiada por mecanismos polívtico-econômicos tais como regulamentações legais,
subsívdios e incentivos fscais, promoção da abertura de mercados e globalização,
etc., a agricultura industrial escalou rapidamente rumo à hegemonia do setor
agrívcola mundial, trazendo em seu bojo devastadores efeitos colaterais, tanto ao
meio ambiente como à sociedade.
A agricultura moderna é a principal causadora de desmatamento e
degradação de solos, a maior consumidora de água e uma das principais
responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa, mundialmente — daív não
ser nenhum exagero dizer que se trata da atividade humana mais destrutiva ao
meio ambiente. Além dos danos já citados, a aplicação contívnua de fertilizantes
quívmicos e agrotóxicos ainda envenenam o solo, as águas e também os alimentos
que consumimos. Dentre as atividades agrívcolas, a pecuária se destaca por seus
efeitos destrutivos no meio ambiente.*
Do ponto de vista social, a agricultura industrial está associada a
concentração fundiária, expulsão do homem do campo (êxodo rural), destruição
da estrutura social e perda da identidade cultural rural e intensifcação das
desigualdades sociais. Embora muito se diga que a agricultura moderna é uma
fonte de divisas pela exportação de commodities, na verdade esse lucro não
benefcia a sociedade, pois fca somente nas mãos dos grandes latifundiários,
barões do agronegócio, empresas multinacionais e polívticos corruptos. É
importante ressaltar que as regiões onde domina o agronegócio são as de mais
baixo IDH (ívndice de desenvolvimento humano) do Brasil.

* Steinfeld, H. et al. Tivestock’s long shadow: environmental issues and options. Food and
Agriculture Organization of the United Nations. 2006.

24
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

3
A CRISE AMBIENTAL

Superpopulação

Estudos antropológicos indicam que a população humana global


anteriormente ao nascimento da civilização era de cerca de 5 a 10 milhões de
pessoas. Porém, desde o surgimento da agricultura, a população humana passou
a crescer e nunca mais parou.
A análise da curva de crescimento populacional no gráfco abaixo permite
identifcar três perívodos distintos em relação ao crescimento da população
humana. Até cerca de 5000 AC (primeira linha pontilhada), a população é
relativamente estável. A partir daív, observa-se um crescimento exponencial da
população humana (atribuívvel à agricultura), que passa a dobrar de tamanho a
cada 900 anos, em média. A Revolução Industrial (fnal do século XVIII e inívcio
do XIX, indicada pela segunda linha pontilhada) traz uma aceleração aguda
desse crescimento, com a população humana passando a dobrar de tamanho a
cada 73 anos. Na Era do Petróleo, a população passou a dobrar a cada 45 anos
— o perívodo de crescimento populacional mais rápido de toda a história. Em
2012, a população humana chegou a 7 bilhões de indivíduos — esse número
representa um aumento de aproximadamente mil vezes na população mundial,
em relação ao seu nívvel basal. Em 2017, a população superou os 7,5 bilhões, e
todos os dias o número de pessoas que nascem é aproximadamente 2,4 vezes
maior que o número de pessoas que morrem.

25
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

A 8

7
População humana mundial

6
(em bilhões)

Ano
B 10 bilhões
População humana mundial

1 bilhão

100 milhões

10 milhões

1 milhão

Ano
Gráfco: população humana global ao longo da história, em
escala aritmética (painel A), e logarítmica (B).

Sustentabilidade requer populações razoavelmente constantes. Isso deriva


de uma simples lógica matemática: não se pode ter crescimento contínuo em um
espaço finito. Eis que a Terra é um espaço fnito, com recursos fnitos. Crescendo
continuamente, exponencialmente, a exaustão dos recursos necessários à vida
humana é consequência inevitável. Cada um dos problemas ambientais
enfrentados pelo mundo hoje é agravado pelo aumento da população. Por isso
tudo a superpopulação é, sem dúvida, um dos maiores problemas do mundo
atualmente.

26
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

Não resta a menor dúvida que o mundo está superpopuloso — as únicas


pessoas que não entendem isso são aquelas que não sabem o signifcado da
palavra superpopulação. Superpopulação signifca um aumento da população de
determinada espécie de ser vivo além da capacidade de suporte de seu ambiente.
Hoje, a população humana está aumentada em 1000 vezes em relação a seu nívvel
basal, e em função disso os recursos necessários à nossa vida estão em rápido
declívnio. Todos os dias há dezenas de milhares de pessoas a mais no planeta — e
menos árvores, menos forestas, menos solos, menos água limpa, menos espécies
de animais e plantas. Mas, infelizmente, a maioria das pessoas no mundo
parecem não estar sequer cientes desse gravívssimo fato, e o assunto é
considerado tabu, sendo raramente mencionado na mívdia ou nas escolas. Muitas
pessoas ainda se negam a aceitar que a superpopulação seja um problema. Esse
tipo de ignorância é, muitas vezes, reforçado pela religião. “Crescei e multiplicai-
vos, diz na Bívblia. Não fala nada de superpopulação!”
Embora seja um problema extremamente complexo e de difívcil solução, é
imprescindívvel trazê-lo à pauta de discussão, levar essa informação às pessoas,
trabalhar com a conscientização em larga escala sobre o problema. Esse é o
primeiro passo, e o mais importante — e simplesmente não está sendo feito!
Negar o problema ou evitar tocar no assunto é como enfar a cabeça na areia, e
certamente não contribuirá para nenhuma solução.

Desmatamento

Mais da metade das forestas do mundo já foram destruívdas pelo homem,


sendo que a maior parte desse desmatamento ocorreu nos últimos 100 anos. E o
desmatamento continua em ritmo acelerado. Estima-se que até o fnal deste
século as forestas tropicais serão totalmente destruívdas, perdidas para sempre.*
As causas para o desmatamento são muitas, e sua importância variou
bastante de acordo com o perívodo histórico. Desde o ano 2000, conversão de
terras para agricultura industrial de commodities (agronegócio), principalmente
voltada para o mercado externo, tem sido responsável pela metade do
desmatamento ocorrido em regiões tropicais, mas muitas outras causas, como
extração de madeiras, mineração, expansão de cidades, construção de estradas,
indústria de papel e celulose etc. continuam sendo importantes, e em regiões
extremamente pobres e de grande instabilidade social forestas inteiras estão
sendo rapidamente destruívdas para uso como lenha para cocção de alimentos,
por exemplo. Brasil e Indonésia são atualmente os lívderes mundiais em
desmatamento, embora o problema ocorra também em nívveis alarmantes em
outras áreas da América Central e do Sul, África, Sudeste Asiático e Oceania.
* Tewis, S. Will we still have tropical forests in 2100? World Economic Forum: Global
Agenda/Forests. 2015.

27
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

No Brasil, a maior parte do desmatamento ocorrendo atualmente é


motivado pela criação de gado e plantação de soja. O Brasil é hoje o maior
exportador mundial de carne, e boa parte dessa carne vem do desmatamento da
Amazônia (cerca de 90% das áreas de desmatamento recente da Amazônia são
ocupadas pela pecuária). Os biomas mais severamente atacados pelo
desmatamento no Brasil atualmente são a Amazônia e o Cerrado. Cabe lembrar
que a Mata Atlântica, um dos biomas mais ricos e diversos do mundo, já foi
quase totalmente destruívda, restando hoje apenas cerca de 7% de sua cobertura
original.
A extração ilegal de madeiras, uma das causas de desmatamento na maioria
das forestas tropicais do mundo, é resultado primariamente da enorme demanda
por madeiras nos mercados consumidores da Europa, Estados Unidos, Japão e
China (o Japão é o maior consumidor de madeiras tropicais no mundo
atualmente, enquanto a China é o maior consumidor de papel). Os maiores
exportadores de madeiras tropicais são Brasil, Indonésia e Camarões.
Na África, os principais fatores levando ao desmatamento atualmente são a
utilização da madeira como lenha para cocção de alimentos e agricultura de
subsistência. Exacerbada pela explosão populacional associada a precárias
condições econômicas, o desmatamento já destruiu cerca de 80% das forestas
do Oeste Africano e 90% das de Madagascar. Mineração, extração de madeiras
e expansão do agronegócio também são causas importantes de desmatamento
naquele continente, sendo operadas por empresas estrangeiras e voltadas para
exportação.
Já no Sudeste Asiático, produção de papel e celulose e plantações de palma
para extração de óleo, todos visando exportação para mercados como Europa,
Índia, China, Japão e Estados Unidos, são as principais causas de desmatamento
atualmente.
Esses dados deixam claro como a globalização afeta o desmatamento:
paívses economicamente desenvolvidos, mesmo após terem destruívdo suas
forestas totalmente (ou quase), continuam sendo os principais causadores de
desmatamento mundialmente. Só que o verdadeiro impacto ambiental do estilo
de vida da população desses paívses ricos muitas vezes ocorre a milhares de
quilômetros de distância, em paívses menos desenvolvidos literalmente do outro
lado do planeta, bem longe de suas vistas.
O desmatamento é um verdadeiro atentado contra a vida, uma das maiores
manifestações do ecocívdio cometido pela humanidade. As forestas são os
principais berços da biodiversidade terrestre, e o desmatamento é causa de
milhares de extinções de espécies todos os anos.
Porém, a gravidade do problema do desmatamento vai ainda muito além
disso, já que as forestas desempenham outras importantívssimas funções
ambientais. Dentre as consequências do desmatamento, podemos citar:
• Perda de solos. A foresta protege o solo, mantendo-o sempre ao abrigo do

28
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

sol e do impacto da chuva, evitando a erosão e o ressecamento. Além disso, há a


contívnua reciclagem dos nutrientes do solo na foresta: matéria vegetal e animal
morta deposita-se no solo onde se decompõe, fertilizando-o com nutrientes que,
novamente, se transformam em mais matéria viva. Dessa forma, a foresta
mantém o solo fértil indefnidamente, e de fato constrói sua fertilidade. Ao
destruir as forestas, destrói-se também o solo: esse passa a sofrer erosão e
lixiviação, perdendo seus nutrientes e tornando-se seco, compactado e pobre.
Inicia-se assim o processo de desertifcação, consequência fnal do
desmatamento.
• Perturbação do ciclo das águas. As forestas desempenham um papel
fundamental na estabilização do ciclo das águas. A foresta favorece a absorção
de água pelo solo, pois os troncos e raívzes das árvores, galhos e folhas caívdas
oferecem obstáculos que reduzem o escoamento e fazem com que a água da
chuva permaneça mais tempo sobre o solo, possibilitando sua absorção e
abastecendo, assim, o lençol freático. Com o desmatamento, reduz-se a absorção
da água da chuva pelo solo, levando ao abaixamento progressivo do lençol
freático e, consequentemente, o secamento de nascentes e rios.
Pela evapotranspiração, as árvores da foresta mantêm a umidade do ar,
mobilizando continuamente a água dos lençóis freáticos, regulando assim a
incidência e regularidade das chuvas. A perda das forestas causa uma mudança
drástica no clima, que fca mais quente e seco, com chuvas mais escassas e
irregulares.
• Efeito estufa. O desmatamento é o principal responsável pelas emissões de
gases do efeito estufa no Brasil, e um dos principais mundialmente, contribuindo
tremendamente para o aumento da temperatura global e mudanças climáticas,
levando por exemplo à redução nos volumes e regularidade das chuvas e
aumento da ocorrência e intensidade de eventos climáticos extremos (as
mudanças climáticas antropogênicas serão discutidas em mais detalhes no
próximo capívtulo).
• Mais desmatamento. A perda das forestas, com a resultante
desestabilização do clima pelos fatores citados acima, levando a verões mais
quentes e secos, torna as forestas remanescentes muito mais susceptívveis a
incêndios. Tem-se portanto um ciclo vicioso, no qual o desmatamento gera mais
desmatamento.

Além desses gravívssimos problemas ambientais, o desmatamento causa


ainda terrívveis problemas sociais. A foresta é o meio de sustento de povos
indívgenas e comunidades rurais tradicionais e ribeirinhas, entre outras. A
destruição da foresta representa, portanto, a privação de seu modo de vida,
ameaçando sua própria sobrevivência, já que as atividades de agricultura
industrial predatória que se instalam na região desmatada contratam pouquívssima
mão de obra. Consequentemente, essas populações veem-se forçadas a migrar

29
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

para as cidades, em situação de extrema precariedade e vulnerabilidade. Para


piorar, essa expulsão das populações tradicionais muitas vezes se dá através de
violentos confitos de terras, promovidos pelos barões do agronegócio e empresas
multinacionais, com a conivência de governos locais corruptos: ameaças,
assassinatos, destruição e queima de suas casas, enfm, violação brutal dos
direitos humanos dessas populações vulneráveis, resultando na maioria das vezes
em verdadeiro etnocívdio, ou seja a destruição total de suas culturas.

Poluição

Praticamente todas as atividades do homem dito civilizado geram enormes


quantidades de resívduos e subprodutos tóxicos que acumulam-se no meio
ambiente na forma de poluição, trazendo efeitos adversos à saúde e bem-estar
humano, mas principalmente aos ecossistemas.

Poluição do ar

As principais fontes de poluição do ar são as indústrias e setor energético,


veívculos automotores e a agricultura.
As indústrias em geral produzem toda sorte de resívduos gasosos, voláteis,
aerossóis e matéria particulada que contaminam a atmosfera. Em alguns paívses,
o setor energético merece destaque, como é o caso da China, onde a maior causa
de poluição do ar são as usinas termelétricas a carvão. O setor energético e
industrial juntos são responsáveis por 46% das emissões globais de gases do
efeito estufa.
Veículos automotores, especialmente carros, caminhões e ônibus (mas
também incluindo motocicletas, aviões, navios, trens, etc.), que são as principais
fontes de poluição atmosférica na maioria das cidades e uma das principais
fontes globalmente, liberam poluentes como dióxido e monóxido de carbono,
dióxido de enxofre, óxidos de nitrogênio, metano, benzeno, metais pesados
(especialmente chumbo), matéria particulada, etc.
Já a agricultura emite imensas quantidades de dióxido de carbono,
especialmente pelo desmatamento, queimadas e pela degradação do solo (a
redução da biomassa do solo é acompanhada da liberação de carbono para a
atmosfera na forma de CO2, contribuindo signifcativamente para o efeito
estufa). A aplicação de pesticidas causa poluição transitória do ar, dizimando
insetos e aves da área, e a adubação quívmica nitrogenada libera óxido nitroso,
que destrói a camada de ozônio à mesma maneira do CFC. Já a pecuária,
especialmente a bovina, é uma das principais fontes de metano e óxido nitroso,
poluentes atmosféricos que estão entre os principais causadores do efeito estufa,
e também é uma das principais causas de desmatamento, com consequente

30
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

liberação de CO2. Segundo dados da FAO, a pecuária sozinha é responsável por


14,5% das emissões globais de gases do efeito estufa.*
A poluição do ar causa severos danos à saúde humana e redução da
qualidade de vida. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a poluição
do ar causa a morte de 7 milhões de pessoas ao ano, principalmente por doenças
cardiovasculares, pulmonares e câncer. ** Outros problemas de saúde causados
pela poluição são malformações fetais, distúrbios imunológicos e hormonais,
desenvolvimento de autismo, transtornos psiquiátricos incluindo a depressão, etc.
No meio ambiente, a poluição atmosférica leva ao fenômeno de chuva
ácida, que traz terrívveis consequências aos ecossistemas, especialmente forestas,
o solo e ambientes aquáticos. Algumas espécies vegetais não toleram a acidez, e
forestas inteiras já foram dizimadas pela chuva ácida, especialmente no Leste
Europeu e Escandinávia, mas também na América do Norte e partes da Ásia.
A chuva ácida também altera drasticamente a quívmica e microbiologia do
solo. Muitos microrganismos benéfcos do solo morrem devido à acidez,
reduzindo a capacidade do solo de reter nutrientes. Enquanto isso, a queda no
pH aumenta a perda de nutrientes catiônicos, como cálcio, magnésio e potássio
entre muitos outros, por lixiviação, e causa ainda a mobilização do alumívnio no
solo, que passa a ser tóxico para as plantas. O resultado geral é um
empobrecimento progressivo do solo, o que redunda em mais destruição de
forestas, além de prejuívzos para a agricultura.
A chuva ácida também causa impacto nos corpos d'água como rios e lagos,
onde a acidez causa redução da biodiversidade, já que inúmeras espécies de
invertebrados e peixes não sobrevivem em pH baixo.
O aumento na concentração de dióxido de carbono na atmosfera também
causa a acidifcação dos oceanos, pois esse gás se dissolve na água formando o
ácido carbônico. Essa acidifcação causa terrívveis efeitos para os ecossistemas
marinhos, pois altera inúmeros processos fsiológicos dos seres aquáticos,
deprimindo a taxa metabólica e respostas imunes, impedindo a calcifcação,
impedindo o desenvolvimento ou matando inúmeras espécies e desestruturando
toda a cadeia alimentar, assim reduzindo a quantidade, qualidade e diversidade
da vida marinha. A acidifcação dos oceanos é uma das principais causas da
destruição dos corais, juntamente com o aquecimento global e a poluição do
mar por resívduos fertilizantes agrívcolas.
Outro gravívssimo efeito da poluição atmosférica é o efeito estufa: gases
como dióxido de carbono e metano, entre outros, lançados ao ar na forma de

* Gerber et al. Tackling climate change through livestock: a global assessment of emissions
and mitigation opportunities. Food and Agriculture Organization of the United Nations.
2013.
** Burden of disease from the joint efects of household and ambient air pollution for 2012.
World Health Organization. 2014.

31
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

poluentes da nossa civilização, acumulam-se e aprisionam a radiação solar na


atmosfera, causando o aumento da temperatura (aquecimento global) e
mudanças climáticas. Esse problema será discutido no próximo capívtulo.

Poluição dos solos é causada principalmente pela atividade industrial,


agricultura e descarte de lixo.
Quanto à atividade industrial, prospecção de petróleo, mineração,
descargas industriais intencionais e derramamentos acidentais, vazamentos de
canos e tanques de armazenamento subterrâneos devido à corrosão, etc. estão
entre as principais fontes de contaminação do solo. Também a poluição do ar,
acaba se convertendo em poluição do solo, já que os poluentes se depositam na
forma de poeira, ou são trazidos à superfívcie da terra pela chuva. Similarmente,
ao penetrar no solo, carreados pela chuva, esses poluentes contaminam também
os lençóis freáticos, e consequentemente os mananciais de abastecimento de
água. Vê-se portanto que a poluição do ar, da água e dos solos estão
intimamente ligadas.
A agricultura polui os solos principalmente com agrotóxicos e fertilizantes
quívmicos, além de dejetos animais concentrados nas criações intensivas.
Pesticidas contaminam pesadamente o solo e o ar (pela formação de
aerossóis), levando à destruição dos ecossistemas na região, pois quando insetos
e moluscos são aniquilados, toda a cadeia alimentar é afetada. Pequenos
mamívferos, aves, répteis e anfívbios que se alimentam de insetos morrem de fome
devido ao desaparecimento dos mesmos; predadores maiores, como gaviões,
corujas e raposas, estarão portanto também condenados.
Fertilizantes químicos também são gravívssimos poluentes ambientais,
pois matam os micro e macrorganismos do solo e causam sua acidifcação e
salinização progressivas, reduzindo sua biodiversidade e biomassa. Além disso,
adubos quívmicos são comumente contaminados com metais pesados e poluentes
orgânicos persistentes, que sofrem bioacumulação, ou seja, esses componentes
tóxicos vão se acumulando nos organismos, causando intoxicação crônica e
diversos problemas metabólicos, hormonais, imunológicos, reprodutivos e
nervosos, eventualmente levando à morte e culminando com a redução das
populações de animais silvestres. Também causam bioamplificação, que signifca
um aumento da concentração em organismos de camadas mais altas da cadeia
alimentar, ou seja, os predadores, que são particularmente dizimados.

Poluição da água. A humanidade está destruindo sistematicamente a


vida aquática no planeta, principalmente devido à poluição. Isso acontece a olhos
vistos e pode ser constatado por qualquer pessoa, em praticamente qualquer
lugar e a qualquer hora. Visite o rio que corta sua cidade, ou mesmo o ribeirão
mais próximo de sua casa, e dê uma olhada nele. Você teria coragem de beber
aquela água? ou nadar nela? Será que você teria coragem sequer de tocar aquela

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

água com suas mãos? Provavelmente, não. Por que? Simplesmente porque o
pobre rio está tão poluívdo que você tem nojo até de chegar perto dele, ou sentir
seu cheiro. Você se arriscaria a tentar pescar nesse rio? O que será que viria no
anzol?
Agora, você acredita que esse mesmo rio, até algum tempo atrás, era lindo,
lívmpido e cristalino, envolto por uma rica mata ciliar, com água pura e cheio de
peixes e inúmeras outras formas de vida? Mas, o que aconteceu para que ele
fcasse deste jeito, para que ele sofresse essa transformação tão negativa? A
resposta é uma só: a humanidade aconteceu. Somos nós que fazemos isso com o
rio, e com a água, e com o resto do meio ambiente.
São quatro as principais fontes de contaminação da água: esgotos
domésticos, poluição industrial, poluição agrívcola e lixo.
• Esgotos domésticos. Todos os dias, pelos corriqueiros atos de tomar
banho, lavar louça ou roupa, mas especialmente de ir ao banheiro e dar a
descarga, bilhões de pessoas estão poluindo os rios, lagos e mares com seus
esgotos. Esgotos domésticos são a principal fonte de poluição de águas na
maioria das cidades do mundo. Infelizmente, porém, a imensa maioria das
pessoas não se enxergam de modo algum como responsáveis por aquela
poluição. É como se apenas os outros fossem culpados, como se seus próprios
esgotos, da privada de suas próprias casas, também não fossem para o mesmo
rio!
• Poluição industrial. A indústria, incluindo o setor energético, é uma enorme
fonte de poluição de águas, com contaminantes extremamente nocivos à saúde
humana e ao meio ambiente. Poluentes ambientais de toda sorte, resívduos da
atividade industrial e mineração, são comumente descartados em corpos d'água.
Além disso, a maioria das indústrias requer enormes quantidades de água para
suas atividades. Essa água passa por vários processos, sendo contaminada com
compostos quívmicos tóxicos e depois lançada em rios, lagos e mares. Os
poluentes mais comuns incluem metais pesados, hidrocarbonetos policívclicos,
compostos orgânicos voláteis, poluentes orgânicos persistentes como dioxinas e
PCBs, fosfatos, enxofre, resívduos radioativos, solventes como tricloroetileno e
detritos orgânicos entre outros. Petróleo e seus derivados são um dos principais
poluentes dos oceanos, devido a derramamentos de navios petroleiros e
plataformas, vazamentos em poços de petróleo, além de limpeza clandestina de
tanques de navios, derramamentos e vazamentos cotidianos por milhões de
embarcações ao redor do mundo, efuentes de indústrias, descarte ilegal de óleo
velho ao mar, etc., enquanto usinas nucleares vazam material radioativo que
contamina lençóis freáticos, rios, mares e oceanos em várias partes do mundo.
• Poluição agrícola. A agricultura convencional é uma das principais fontes
de poluição das águas, globalmente. Agrotóxicos são carregados pela chuva, indo
acumular-se nos corpos d'água, onde arrasam praticamente toda e qualquer

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Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

forma de vida, desde moluscos, insetos e outros invertebrados, passando pelos


peixes e anfívbios, e até os mamívferos e aves que ali vivem e se alimentam. A
maioria dos pesticidas são poluentes orgânicos persistentes, que acumulam-se no
meio ambiente e especialmente em ambientes aquáticos.
Fertilizantes quívmicos também são gravívssimos poluentes das águas. Ao
serem carreados pela chuva para os cursos d'água, alteram as caracterívsticas
quívmicas da água causando intoxicação nos organismos aquáticos. Além disso,
causam o fenômeno da eutrofização, que é um crescimento explosivo de algas
aquáticas devido ao excesso de nutrientes. Com esse crescimento, as algas
consomem excessivamente o oxigênio dissolvido na água e liberam toxinas,
causando a morte de peixes e outros organismos aquáticos. Dejetos animais
concentrados, provenientes principalmente de criações intensivas, também
atingem cursos d'água poluindo-os e causando eutrofzação.
Vale lembrar que os poluentes orgânicos persistentes, metais pesados e
outras substâncias tóxicas presentes nos agrotóxicos e adubos quívmicos também
contaminam a água dos mananciais, sofrendo bioacumulação e bioamplifcação
nesses ecossistemas.
E a destruição não pára por aív: resívduos dos pesticidas e fertilizantes são
levados pelos rios viajando por longas distâncias até os lagos, mares e oceanos,
que sofrem os mesmos efeitos deletérios. Em muitas partes do mundo, incluindo
o Golfo do México e o Mar Báltico, a eutrofzação causada por fertilizantes
agrívcolas (especialmente adubos fosfatados e nitrogenados) e esgotos domésticos
criou imensas zonas mortas, que são zonas hipóxicas onde não há mais vida
marinha, exceto uma explosão de crescimento de algas, especialmente algas
microscópicas chamadas cianobactérias, que matam peixes e outras formas de
vida. Um estudo cientívfco em 2008 identifcou mais de 400 zonas mortas nos
oceanos, afetando uma área de mais de 245.000 quilômetros quadrados. * Vale
lembrar que fertilizantes quívmicos são uma das principais causas da morte de
corais e destruição de ecossistemas marinhos ao redor do mundo.
A poluição das águas causa também graves impactos na saúde humana. É
interessante (na verdade, ultrajante) notar que o rio em que uma cidade despeja
seus esgotos é o mesmo rio do qual a próxima cidade capta água para
abastecimento público! Essa contaminação causa alguns dos principais
problemas de saúde pública no mundo — doenças como diarreias virais,
bacterianas e parasitárias, hepatites, cólera, febre tifoide e verminoses, que estão
entre as principais causas de mortalidade em regiões subdesenvolvidas que
carecem de sistemas apropriados de tratamento de água. Vale ressaltar que, no
Brasil, apenas um terço da população conta com coleta de esgotos e, do esgoto
coletado, mais de 80% são lançados diretamente nos rios e outros mananciais,
sem qualquer tratamento.

* Diaz, R. J.; Rosenberg, R. Spreading dead zones and consequences for marine
ecosystems. Science. 2008.

34
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

Em regiões mais desenvolvidas, o tratamento da água para abastecimento


doméstico reduz drasticamente a incidência dessas doenças. Porém, isso não
signifca que a poluição não afete a saúde da população! Primeiramente porque
muitos dos poluentes industriais e agrívcolas não são totalmente eliminados da
água, atingindo portanto a população que consome essa água tratada. Além
disso, para tornar aquela água poluívda “segura” para consumo, após vários
procedimentos fívsicos e quívmicos de purifcação (peneiramento, decantação,
aeração, foculação, sedimentação e fltragem) são adicionados produtos
quívmicos, desinfetantes à base de cloro, com o objetivo de eliminar patógenos
como vívrus, bactérias e parasitas ainda presentes. Porém, esse cloro reage com
matéria orgânica presente na água (ácidos húmicos), gerando subprodutos
tóxicos como o bromofórmio, o trialometano e o dibromoclorometano. Inúmeros
estudos toxicológicos e epidemiológicos têm provado que a exposição a essas
substâncias através do consumo de água tratada causa diversos tipos de câncer,
especialmente de bexiga e intestino, além de problemas reprodutivos, abortos e
anomalias fetais, entre outros.

Lixo

O ato corriqueiro de comprar alimentos no supermercado e produtos em


lojas também implica na geração de muito lixo e poluição: sacolas plásticas,
usadas indiscriminadamente pela esmagadora maioria dos consumidores;
embalagens de alimentos e outros produtos, latas, garrafas de bebidas etc. que
signifcam uma enorme quantidade de lixo, principalmente plástico, mas também
vidro, papel e metais. Apenas uma pequena parte desses materiais acabam sendo
reciclados, enquanto a maior parte é lançada ao ambiente, depositada em lixões,
aterros sanitários, ou incinerada, o que também gera poluição.
Os produtos industrializados em geral (roupas, mobívlia, eletrodomésticos,
eletrônicos, utensívlios em geral, brinquedos, pneus etc.), após o fnal de sua vida
útil, também são descartados, geralmente se tornando lixo, muitas vezes
contendo substâncias tóxicas (como metais pesados, retardantes de chama e
poluentes orgânicos persistentes), que se acumulam no ambiente. A cultura do
consumismo e a “cultura do descartável”, tão caracterívsticas dos dias de hoje,
agravam muito essa situação, pois levam a uma geração muito maior de lixo,
além de contribuívrem para o aumento da poluição industrial e consumo de
recursos naturais.
Restos orgânicos como alimentos, cascas etc. são corriqueiramente
lançados de forma concentrada ao meio ambiente em lixões e aterros sanitários,
e até rios, representando poluição que também prejudica os ecossistemas. Essa
situação é ainda agravada pelo escandaloso desperdívcio de alimentos (valendo
lembrar que cerca de um terço dos alimentos produzidos no mundo são
desperdiçados).

35
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

O lixo é um problema ambiental gravívssimo. Sua presença fívsica


praticamente eterna está se alastrando sobre a face da terra na forma de lixões e
aterros sanitários, que não param de crescer em número e tamanho. Geralmente
esses são instalados estrategicamente fora da vista da maioria das pessoas, o que
evita que elas tenham noção da dimensão do problema.
O lixo também se acumula em rios e outros corpos d'água. Visite qualquer
rio dentro de qualquer zona urbana ou próximo a ela, e verá uma imensa
quantidade de lixo boiando ali, sendo levada pela corrente, ou enroscado nas
margens, sem contar os lixos mais pesados que acumulam-se no leito do rio. Boa
parte desse lixo é atirada propositalmente no rio, devido a essa cultura
totalmente inacreditável, disseminada em boa parte da humanidade, de achar
que rios e corpos d'água em geral são algum tipo de lixeira! Que jogou ali,
pronto, sumiu! Além disso, lixo depositado nas ruas e mesmo em lixões também
é carregado pelo vento e principalmente pela chuva, indo parar nos rios, lagos e,
por fm, nos mares, onde se acumulam (estamos falando de milhões de
toneladas). Ali, esse lixo dizima um número incalculável de animais marinhos,
como peixes, golfnhos, tartarugas, aves, etc., que acabam se enroscando ou
cometem o terrívvel erro de ingerir pedaços de plástico e outros materiais, o que
causa obstruções, matando-os.
Além da óbvia contaminação fívsica, os subprodutos da degradação do lixo
também poluem o ar, o solo e as águas. A decomposição anaeróbica do lixo é
grande emissora de gases do efeito estufa, como CO 2 e metano. Além disso, em
muitos lugares, o lixo é incinerado, contribuindo signifcativamente para a
poluição do ar, inclusive com subprodutos da queima incompleta de plástico,
como as dioxinas e PCBs, causadores de problemas endócrinos, imunológicos,
reprodutivos e câncer.
Nos lixões e aterros sanitários, a decomposição anaeróbia da matéria
orgânica do lixo produz o chorume, um lívquido escuro, viscoso, fétido e
altamente poluente, que escorre e contamina o solo. A partir daív, o chorume
percorre dois caminhos: penetrando no solo, atinge os lençóis freáticos poluindo-
os, e também é carreado pelas chuvas, indo contaminar diretamente corpos
d'água como rios e lagos. Além disso, há também a liberação de outras
substâncias quívmicas tóxicas, metais pesados, poluentes orgânicos persistentes,
etc., que se acumulam tanto no solo como nos corpos d'água.
A redução na geração do lixo através de um consumo mais consciente e a
reciclagem adequada de materiais atenuariam enormemente esses problemas,
além de economizar energia e outros recursos naturais (matérias primas); porém,
ainda que tenha-se observado alguns avanços no ramo da reciclagem, a
quantidade de lixo sendo produzida e lançada ao ambiente só vem aumentando
em todo o mundo, tanto pelo aumento da população como pelo aumento do
consumismo e desperdívcio.

36
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

Extinções em massa

Quando se fala em extinções em massa, as pessoas em geral associam esse


termo e episódios extremamente remotos, que ocorreram há milhões de anos,
como aquele que levou à extinção dos dinossauros, por exemplo.
Extinção em massa nada mais é do que um perívodo em que a taxa de
extinções é substancialmente superior ao normal, o que, em um determinado
perívodo de tempo, causa o desaparecimento de um grande número de espécies e
grande redução na biodiversidade da Terra. O que pouca gente está ciente é que
neste exato momento nós estamos bem no meio de um período de extinção em
massa! Mas qual seria a causa desse fenômeno? Um meteoro? Uma nova era
glacial? Nada disso — a causa do atual perívodo de extinção em massa somos
nós, seres humanos.
Extinções de espécies provocadas pelo homem não são novidade.
Migrações do homem primitivo pelo globo há milhares de anos foram
acompanhadas de inúmeras extinções de espécies de animais, devido
principalmente à caça indiscriminada, conforme já citado. Entre as espécies que
desapareceram para sempre nesse perívodo estão incluívdas dezenas de espécies da
megafauna, extintas desde a transição do Pleistoceno para o Holoceno (cerca de
11.000 anos atrás), incluindo mamutes, mastodontes e outros parentes dos
elefantes atuais, diversas espécies de preguiças-gigantes, tatus que pesavam até 2
toneladas, espécies de antas, alces, camelívdeos, equívdeos e ursos, tigres dentes-
de-sabre, leões e guepardos americanos, entre muitos outros. Na Austrália, a
chegada do homem há cerca de 45.000 anos levou rapidamente à extinção
inúmeras espécies de cangurus, muitas delas gigantes, além de aves e répteis; nas
ilhas do Pacívfco incluindo o Havaív, centenas de espécies de aves foram caçadas
até a extinção pelos primeiros habitantes humanos há milhares de anos, enquanto
na Nova Zelândia, várias espécies de moa, aves gigantes da famívlia do avestruz e
das emas, foram caçadas pelos maoris até a extinção, há cerca de seis séculos.
De lá para cá, com o aumento vertiginoso da população humana e o
desenvolvimento de novas tecnologias cada vez mais destrutivas, a situação foi
piorando progressivamente para a biodiversidade. Atualmente, espécies estão
sendo extintas a uma taxa 1000 vezes superior à natural, por consequência das
atividades humanas; milhões de espécies de animais e plantas estão
iminentemente ameaçados de extinção.*
As extinções antropogênicas (causadas pelo homem) devem-se à caça
abusiva, colheita predatória de espécies vegetais como árvores de madeira nobre;
destruição e fragmentação de habitat (e.g. desmatamento), poluição, introdução
de espécies exóticas que, através de predação, competição ou introdução de
doenças levam espécies autóctones à extinção; mudança climática e acidifcação

* Pimm, S. T. et al. The future of biodiversity. Science. 1995.

37
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 3. A Crise Ambiental

dos oceanos, etc.


Quando se fala nos episódios de extinções em massa que ocorreram no
passado, as pessoas tendem a assumir que as espécies desapareceram da noite
para o dia, o que é incorreto — tais eventos geralmente ocorrem ao longo de
centenas ou milhares de anos. Porém, mesmo assim, na escala de tempo da
evolução da vida no planeta Terra isso ainda representa um perívodo curto e,
portanto, um declívnio abrupto da biodiversidade. A maioria das pessoas não
conseguem perceber que estamos no meio de um episódio de extinção em massa
porque ignoram como tais eventos ocorrem, e também porque são incapazes de
entender escalas de tempo adequadas. Por exemplo, para as pessoas 1000 anos
parecem uma eternidade; no entanto, em termos do planeta Terra, ou da história
da vida, ou da evolução de qualquer espécie, 1000 anos é um tempo
extremamente curto (as pessoas em geral têm enorme difculdade de
compreender escalas de tempo superiores à da vida humana, como algumas
décadas, um século no máximo). Porém, certamente o maior entrave à
compreensão da gravívssima crise ambiental global e suas possívveis consequências
é o puro e simples desconhecimento — ignorância mesmo, para ser bem claro
— em relação à escala da destruição ambiental global pelo homem e a
velocidade com que ela avança, ou sobre a importância dos ecossistemas.
E o problema tende a se agravar, já que que tanto a população humana
como os nívveis de consumo de recursos e poluição só estão aumentando, dia
após dia. Como essas mudanças são exponenciais, o cenário mais provável é que
logo atingiremos um ponto crítico, em que o dano acumulado causará um
agravamento abrupto de todos os problemas que compõem a crise ambiental.
levando a um colapso do ambiente natural e da biodiversidade, e
consequentemente da civilização e da própria humanidade.

38
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

4
PROJEÇÕES
PARA O FUTURO

Na sociedade atual, devido à artifcialização da vida e também o alto grau


de alienação, talvez muitas pessoas acreditem que o homem não precisa da
natureza para sobreviver e que, portanto, a preservação do meio ambiente é algo
opcional, não prioritário, quase como um mero detalhe estético. Porém, nada
poderia estar mais longe da verdade! Assim como todas as outras espécies de
seres vivos, a humanidade depende totalmente do equilívbrio da natureza e dos
recursos naturais para sua sobrevivência a longo prazo. Também nossa
civilização é totalmente dependente da abundância de recursos naturais, já que
sem eles, qualquer tecnologia e de fato toda a economia e consequentemente a
estrutura social como um todo tornam-se inviáveis. Sendo assim, logicamente a
destruição do equilívbrio ambiental implicará no colapso da civilização e da
própria humanidade.
Isso não seria algo inédito — nos últimos 10.000 anos o mundo já
testemunhou a ascensão e queda de inúmeras civilizações, em diferentes épocas
e diversas regiões do planeta. Embora diversos fatores possam causar ou
contribuir para a desintegração de sociedades e civilizações, a história mostra
que, na maioria dos casos, tem-se a repetição de um padrão comum: primeiro,
você tem uma fase de ascensão, que é marcada por desenvolvimento
tecnológico, crescimento populacional, melhoria das condições de vida e

39
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

aumento da complexidade das estruturas sociais. Isso causa um aumento da


pressão sobre o meio ambiente, com consumo crescente de recursos naturais
essenciais, como água, solos férteis para agricultura, madeira para construção e
combustívveis (energia), etc. Então, você tem uma combinação de aumento da
população e depleção de recursos naturais, acompanhada de deterioração
ambiental. Porém, na euforia do crescimento, poucos se dão conta desse fato —
o crescimento contívnuo por longos perívodos leva a um clima de otimismo, e a
impressão que a coisa só vai melhorar, e nada pode dar errado. Então, a partir de
determinado momento, essa relação predatória do homem em relação à natureza
causa a uma escassez crívtica dos recursos naturais necessários à própria
civilização, inviabilizando seu crescimento e mesmo sua manutenção, levando à
desestruturação econômica, tecnológica, social e administrativa, resultando na
deterioração das condições de vida e culminando num rápido declívnio da
população por fome, violência e epidemias.

Dinastia Dinastia
Império Tang
Civilização Han
Romano
do Vale do Ocidental
Indo Maias
Império Civilização
Civ. Anasazi
Acádio Cartaginesa
Micênica
Império Khmer
Rapa
Nui
0

0
00

00
00

00
0

50
00

50
00

50

00

-5

20
10

15
-2

-1
-3

-2

-1

Ano
Ascensão e queda de algumas civilizações passadas

Claro que é temerário se aventurar em fazer “profecias”, já que é


impossívvel prever com certeza como e quando eventos futuros ocorrerão. Porém,
com base no exposto até aqui pode-se, sim, afrmar com segurança que os
fatores básicos que levaram à queda de civilizações anteriores já se insinuam
claramente no mundo atual, anunciando a possibilidade de um colapso de nossa
própria civilização em um futuro próximo.*

* Para uma análise aprofundada do tema do colapso de civilizações passadas e


implicações para nossa sociedade atual, recomendo a leitura de “Colapso – como as
sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso”, de Jared Diamond, e “The collapse of
complex societies”, de Joseph Tainter.

40
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

Há, porém, um fator inédito muito importante em relação à situação da


nossa civilização atual. As civilizações passadas eram relativamente pequenas e
geografcamente restritas; sendo assim, mesmo com seu colapso, sempre havia
novas áreas disponívveis, permitindo a migração ou a ascensão de novas
civilizações, etc. Em contraste, hoje temos uma civilização gigantesca e global
da qual nenhuma parte do planeta está a salvo. Ou seja, com seu colapso, não
haverá para onde ir. Justamente por isso o colapso da atual civilização representa
um risco real de destruição total da espécie humana.

Exaustão de recursos naturais

A Terra é um espaço fnito, com recursos fnitos, e por causa das atividades
humanas todos os dias há menos forestas, menos água limpa, menos solos férteis
e menos biodiversidade que no dia anterior. Por outro lado, todos os dias há mais
pessoas, mais carros, mais fábricas... mais rios, lagos e mares poluívdos, mais
lixo, mais gases do efeito estufa, etc. que no dia anterior. Logicamente, o
resultado inevitável desse processo é que chegaremos a um ponto em que o
planeta estará coberto de gente, lixo e poluição, enquanto os recursos mais
básicos necessários à manutenção da vida humana se tornarão tão escassos que
isso forçará a uma redução da população.
Para melhor entender essa situação, vamos focar no que está acontecendo
com dois dos recursos mais essenciais à vida humana: a água e o solo.

Água

O recurso natural mais essencial à vida é também um dos mais ameaçados


pela nossa civilização. Devido a uma combinação de diversos fatores, o risco de
uma crise hívdrica global é considerado por muitos uma das principais ameaças à
humanidade num futuro próximo.
A água é ameaçada por:
• Crescimento populacional, associado a um aumento no consumo per capita
de água.
• Poluição das águas por esgotos domésticos e industriais, poluição agrívcola,
assoreamento de rios devido à erosão do solo, etc., levando a uma redução
na quantidade de água limpa disponívvel.
• Intensifcação de práticas agrívcolas com uso indiscriminado de irrigação,
causando esgotamento de águas superfciais (rios) e subterrâneas (lençóis
freáticos).

41
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

• Desmatamento e agricultura insustentável, compactação do solo pelo gado


e impermeabilização por cidades e estradas, aumentando o escorrimento
superfcial de chuva e reduzindo a penetração de água no solo, levando ao
abaixamento de lençóis freáticos, secando nascentes e reduzindo a vazão de
rios.
• Mudança climática, devido ao aquecimento global e desmatamento,
levando à redução no volume e regularidade de chuvas, contribuindo para
escassez de água em muitas regiões do mundo, enquanto em outras há
eventos climáticos extremos, como tempestades e inundações.

Devido à crescente precariedade dos recursos hívdricos mundialmente, a


FAO estima que, em 2025, dois terços da população mundial estarão sujeitos a
estresse hívdrico severo.* E o cenário mais provável é um agravamento
progressivo dessa situação, devido à nossa trajetória de aumento populacional,
deterioração ambiental e mudança climática.
Isso gera uma perspectiva sombria: em algum ponto, talvez não muito
distante, a falta de água para irrigação passará a comprometer a agricultura em
muitas regiões do mundo, com risco de uma crise alimentar e,
consequentemente, crise humanitária e migratória em escala global. Enquanto
isso, a crise no abastecimento urbano colocará grandes centros econômicos em
cheque. Devido à sua importância e escassez, a água passará a ser uma questão
estratégica, o que poderá motivar confitos internacionais, incluindo guerras para
se apoderar de recursos hívdricos de outros paívses, semelhantemente ao que já
ocorre em relação ao petróleo.**

Solo

Solos são a base da vida terrestre, incluindo a humana — 95% dos nossos
alimentos vêm do solo.
A porção do solo que é capaz de suportar vida (e, portanto, produzir
alimentos) é a camada superfcial, geralmente até cerca de 20 centívmetros de
profundidade. Essa é a porção que contém a maior concentração de matéria
orgânica, microrganismos e nutrientes.
Solos superfciais formam-se ao longo de milênios e são, por isso, para
efeitos práticos, considerados recursos não renováveis. Acontece que os solos
superfciais estão sendo destruívdos rápida e progressivamente devido à marcha
do desmatamento e práticas agrívcolas insustentáveis, conforme já descrito.
Atualmente, cerca de 80% dos solos agrívcolas ao redor do mundo já estão

* Coping with water scarcity – challenge of the twenty-first century. Food and Agriculture
Organization of the United Nations. 2007.
** Crawford, J. What if the world’s soil runs out? Time/World Economic Forum. 2012.

42
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

moderadamente ou severamente degradados*, e cientistas estimam que dentro de


60 anos, a humanidade poderá ter destruívdo praticamente todos os solos férteis
do planeta. Isso signifca que haverá uma redução dramática na capacidade de
produzir alimentos, o que, associado ao crescimento populacional (devemos
chegar a 11 bilhões de pessoas ainda este século, segundo projeções da ONU),
signifcará uma crise alimentar global generalizada e irreversívvel.
Embora a utilização de fertilizantes quívmicos permita a produção de
alimentos em solos degradados, isso não resolverá o problema, podendo apenas
mitigar por um certo perívodo a crise alimentar. Isso porque os fertilizantes
quívmicos também são recursos finitos, não renováveis, que estão sendo extraívdos
e utilizados crescentemente pela agricultura industrial, de forma que também um
dia fatalmente entrarão em declívnio. Dentre eles, vale destacar o caso do fósforo
e nitrogênio.
O fósforo é um elemento totalmente essencial à vida, necessário ao
metabolismo energético celular, à formação das membranas celulares, DNA e
outras moléculas vitais de todo organismo conhecido — e é um macronutriente
do solo (necessário em grandes quantidades para o crescimento vegetal). No
entanto, é um elemento disponívvel em quantidades limitadas na Terra. A fonte
predominante de fósforo agrívcola são as rochas fosfáticas, abundantes apenas em
alguns poucos paívses, especialmente o Marrocos, com 70% das reservas
mundiais. Estima-se que a quantidade disponívvel de rocha fosfática que pode ser
obtida de forma economicamente viável entrará em declívnio terminal e exaustão
globalmente dentro de algumas décadas — o chamado pico do fósforo.**
Outro macronutriente do solo, o nitrogênio, também representa um desafo.
A adubação nitrogenada na forma de ureia agrívcola representa a maior parte dos
fertilizantes consumidos pela agricultura mundialmente. Porém, esse fertilizante
é derivado de combustívveis fósseis (gás natural), um recurso que também está
em declívnio, conforme discutiremos a seguir.
Com a destruição da fertilidade natural dos solos e exaustão dos
fertilizantes minerais e quívmicos, e resultante declívnio na capacidade de
produção de alimentos, associada à superpopulação, isso criará uma pressão
esmagadora para a abertura de novas terras agrívcolas — em outras palavras,
desmamento. Ou seja, as pessoas verão na exploração da fertilidade do solo das
áreas das poucas forestas virgens remanescentes a única saívda para não
morrerem de fome. Nesse cenário, as forestas remanescentes do planeta não
terão a menor chance — estará decretado o fm da biodiversidade terrestre.
Agora, tente adivinhar: o que acontecerá quando também esses últimos solos
forem destruívdos?

* Gomiero, T. Soil degradation, land scarcity and food security: reviewing a complex
challenge. Sustainability. 2016.
** Rhodes, C. J. Peak phosphorus – peak food? The need to close the phosphorus cycle.
Science progress. 2013.

43
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

Pico do petróleo e crise energética

A utilização de combustívveis fósseis em larga escala, ou seja, o carvão


mineral desde a Revolução Industrial e especialmente o petróleo a partir do
século XX, possibilitou o desenvolvimento tecnológico mais rápido da história
da humanidade, e também o perívodo de crescimento populacional mais intenso
jamais visto. A população humana global em 2015 já é seis vezes maior que no
inívcio do século XX, e isso tudo graças ao petróleo, com seu imenso potencial
energético, sua praticidade, versatilidade como matéria prima e, muito
importantemente, sua disponibilidade em grande volume e baixo custo.
Desde 1900, a porcentagem de pessoas vivendo em cidades aumentou de
13% para mais de 54%. Isso signifca que hoje temos 4,1 bilhões de pessoas
vivendo em cidades, enquanto havia apenas 200 mil há 110 anos atrás — um
aumento de mais de 20 vezes em um perívodo extremamente curto. Isso só foi
possívvel graças ao petróleo. Todas nossas tecnologias modernas foram
desenvolvidas graças a ele, de forma que nossa civilização se tornou totalmente
dependente desse recurso.
Agora, pense no seguinte: nos dias de hoje, um professor dando suas aulas,
um arquiteto fazendo projetos, um vendedor trabalhando em uma loja ou um
bancário sentado o dia todo, na sombra e com ar condicionado, atendendo
clientes (só para citar algumas profssões, mas o mesmo vale para a maioria das
profssões hoje em dia), ganham o sufciente para comprar comida, roupas, pagar
uma casa, ter um carro, etc. Até aív, aparentemente tudo bem, não é? Vamos ver.
Agora, compare o esforço que esses profssionais teriam que fazer para plantar
toda a comida que comem, transportá-la, benefciá-la... para construir suas casas
— não apenas assentar os tijolos, mas fazer os tijolos, transportá-los, minerar
para fazer o cimento, serrar toras de árvores para fazer os caibros de seus
telhados... extrair e trabalhar todo o ferro e outros metais, sem contar plásticos,
borrachas, vidros, etc. para fazer seus carros... Compare todo esse esforço com o
que realmente fazem, no dia a dia dos seus trabalhos.
Já parou para pensar na discrepância entre esses dois “esforços”: o que
realmente fazemos e o que seria necessário para fabricar e construir tudo o que
consumimos? O que pode explicar essa discrepância? Muitos dirão: “a
tecnologia”. E está certo, mas isso é apenas metade da resposta. A outra metade
da resposta é que preocupa: a energia. Isso porque a energia que move toda essa
tecnologia, e faz todo esse esforço para nós, é proveniente principalmente dos
combustívveis fósseis, especialmente o petróleo.
É o petróleo que move os tratores agrívcolas para plantar, e os caminhões
para transportar a comida, e as máquinas pesadas para minerar; petróleo e
carvão mineral para os altos-fornos, para calcinar e fundir, e moldar e fabricar e
construir, e transportar, etc. tudo o que é produzido e consumido pela nossa
civilização. Ou seja, são os combustívveis fósseis, através da tecnologia, que

44
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

fazem praticamente todo o serviço pesado, e por isso as pessoas podem fcar
sentadas, fazendo muito pouco esforço fívsico, engordando, e ainda assim terem
casa, carro(s), viagem de avião nas férias, etc.
Aqui é conveniente citar o conceito de “escravos energéticos”, introduzido
por Richard Buckminster Fuller, arquiteto, inventor e flósofo americano. O
conceito é o seguinte: se não fosse pela tecnologia moderna e uso de fontes
artifciais de energia, o padrão de vida, comodidade e conforto de qualquer
homem moderno só poderia ser mantido se ele tivesse à sua disposição dezenas
ou centenas de escravos fazendo para ele todo o serviço pesado (de cultivar os
alimentos, transporte, mineração, fabricação de bens, etc.). O escravo energético
é uma unidade abstrata de energia que representa o trabalho braçal de um ser
humano adulto, mas que é na verdade feito pelas máquinas modernas
(tecnologia), usando fontes de energia como petróleo, eletricidade, etc. O
número de escravos energéticos varia de acordo com a classe social e nívvel de
consumo, mas calcula-se que para que uma pessoa tenha um padrão de vida
normal de classe média, ela deve ter permanentemente à sua disposição cerca de
150 escravos energéticos. Agora, não é só o padrão de vida das pessoas que
depende dos escravos energéticos. Na verdade, eles são as verdadeiras bases que
sustentam toda a nossa civilização industrial.
Claro que todo esse consumo de energia e outros recursos é um fator
central da crise ambiental. Mas o problema não é só esse: combustívveis fósseis
são recursos finitos e não renováveis. Todo o petróleo que existe foi produzido
milhões de anos atrás, e tudo o que estamos fazendo é extrair e consumir esse
petróleo, a uma taxa exorbitante e cada vez maior. A extração contívnua desse
recurso fnito levará inevitavelmente a um desfecho totalmente previsívvel: sua
exaustão.
Tecnicamente falando, o que acontecerá não é exatamente o fm do
petróleo, mas sim um declívnio nas reservas convencionais, de óleo de boa
qualidade e que pode ser extraívdo de forma economicamente viável, levando à
necessidade de investimentos cada vez maiores para obter um retorno cada vez
menor em termos de energia, já que só sobrarão reservas cada vez mais difívceis
(e caras) de acessar, e de qualidade cada vez pior, forçando, a partir de um certo
ponto, a uma redução na produção anual global (declívnio terminal) associada a
uma elevação progressiva dos preços. Esse ponto, em que a extração global de
petróleo atinge seu máximo, é chamado de pico do petróleo.
É consenso entre cientistas que as reservas de petróleo já estão em um
estágio avançado de depleção, e que os efeitos do pico do petróleo poderão ser
sentidos num futuro muito próximo — antes de 2030 e, provavelmente, antes de
2020.*

* Miller, R. G., Sorrell, S. R. The future of oil supply. Philosophical Transactions. Series A,
Mathematical, physical, and engineering sciences. 2016.

45
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

A demanda mundial por petróleo tem aumentado continuamente ao longo


das décadas, e tende a aumentar ainda mais com o crescimento populacional, o
desenvolvimento de novas tecnologias (quase todas dependentes de petróleo) e
desenvolvimento econômico de paívses emergentes grandes e altamente
populosos, como China e Índia. A combinação fatal de aumento na demanda e
redução na oferta do petróleo causará um aumento vertiginoso e irreversívvel no
preço do petróleo, até chegar a um ponto em que o volume extraívdo será tão
pequeno e o preço tão alto, que o petróleo deixará de ser um recurso viável. Do
ponto de vista prático, isso é equivalente a dizer que o petróleo “acabou”.
Embora haja uma ênfase no petróleo por sua particular relevância, deve-se
destacar que o mesmo princívpio se aplica igualmente a todos os outros
combustívveis fósseis, como carvão mineral e gás natural (e até mesmo
combustívveis nucleares como o urânio 235, enfm, todos os recursos não
renováveis). Os combustívveis fósseis correspondem a mais de 80% do consumo
energético global. A escassez (e consequente encarecimento) de uma fonte de
energia naturalmente leva à intensifcação do uso das outras fontes. Por isso,
acredita-se que as principais fontes energéticas do mundo atual atinjam um pico
e declívnio de forma mais ou menos sincronizada, fazendo com que uma crise
energética generalizada seja difívcil de evitar — talvez até fosse possívvel, através
de um esforço colossal de substituição da matriz energética por formas
renováveis e reformulação geral dos modelos econômicos e sociais, mas isso
simplesmente não está sendo feito. Vale lembrar que, embora haja investimentos
nessa área, as energias renováveis como solar e eólica ainda correspondem a
apenas cerca de 1,5% da matriz energética global.*
Guerras por petróleo já são comuns há décadas — de fato, a maioria dos
confitos armados internacionais envolvendo nações industrializadas desde a
Segunda Guerra Mundial foram motivados pelo controle de petróleo e gás
natural.** Se isso já ocorre em tempos de abundância desse recurso, imagine o
que poderá ocorrer quando ele começar a fcar criticamente escasso?
A crise energética decorrente do pico do petróleo acarretará uma crise
econômica global sem precedentes, já que o modelo econômico atual e a própria
organização da sociedade são dependentes de uma abundância absurda de
energia. O mundo como o conhecemos hoje só foi possívvel por causa da
abundância de combustívveis fósseis. O fm desses recursos poderá causar o
colapso da nossa atual civilização industrial.

* 2017 Key world energy statistics. International Energy Agency. 2017.


** Klare, M. T. Twenty-first century energy wars: how oil and gas are fuelling global
conflicts. Energy Post. 2014.

46
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

Aquecimento global/mudança climática

O aquecimento global é a elevação nas temperaturas médias do clima da


Terra quem vem ocorrendo, predominantemente em decorrência das atividades
humanas, devido às emissões dos chamados “gases do efeito estufa”, dos quais os
principais são o dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O).
As emissões antropogênicas (i.e. causadas pelo homem) de gases do efeito
estufa são derivadas principalmente da queima de combustívveis fósseis (carvão
mineral, petróleo e gás natural) para a geração de eletricidade, aquecimento,
realização de trabalho industrial e transportes (95% da energia utilizada no
transporte mundial vem de combustívveis fósseis, especialmente gasolina e
diesel), e pelo (mau) uso da terra, incluindo a agricultura, pecuária,
desmatamento, queimadas e degradação do solo — todas intimamente
relacionadas.

Outros

Indústria
Residencial (32%)
e serviços
(18,5%)

Transportes
(14,5%)
Agricultura
(25%)

Emissões globais de gases do efeito estufa por setor econômico.


Fonte: IPCC*

Esses gases produzidos pelo homem vêm-se acumulando crescentemente


na atmosfera desde a Revolução Industrial, e mais agudamente na nossa Era do
Petróleo, de forma que suas concentrações são hoje muito superiores aos nívveis
naturais.

* IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change). Climate change 2014: mitigation of


climate change. Working Group III contribution to the Fifth Assessment Report of the
Intergovernmental Panel on Climate Change. 2014.

47
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

330
400

Partes por bilhão (ppb)


Partes por milhão (ppm)

325
390 Dióxido de carbono Óxido Nitroso
(CO2) 320 (N2O)
380
315
370

360 310

350 305

340 300

330 295
1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015

1850
Partes por bilhão (ppb)

1800 Metano
(CH4)
1750

1700

1650

1600

1550
1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2010 2015

Gráfco: concentrações atmosféricas dos principais gases do efeito estufa.


Fonte: NOAA – National Oceanic and Atmospheric Administration, EUA.

Os gases do efeito estufa absorvem a radiação indireta, proveniente do sol e


refetida pela Terra, e devolvem essa energia na forma de calor causando um
aquecimento da atmosfera (e, consequentemente, da crosta terrestre e oceanos).
Até recentemente, as consequências do efeito estufa não eram nitidamente
reconhecívveis pelas pessoas, mas hoje já está claro, em qualquer parte do
mundo, que o clima está realmente mudando: o clima em todas as regiões está
fcando mais quente, e em muitos lugares é possívvel perceber uma redução no
regime de chuvas. Regiões antes úmidas hoje são secas, e regiões antes secas,
hoje são verdadeiramente áridas ou semiáridas, etc.
Desde 1900, a temperatura média da superfívcie terrestre aumentou em
cerca de 1 °C, e o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC)
prevê em seu relatório de 2013 a possibilidade de um aumento de até 4,8 °C até
o fnal do século XXI.* A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a
Mudança do Clima (UNFCCC) concluiu que, para evitar um aquecimento
global de consequências desastrosas, é preciso evitar que ocorra um aquecimento
global acima de 1,5 ou 2 °C em relação à média histórica de temperatura, e que
para isso é necessária uma redução dramática e imediata na emissão de gases do
efeito estufa. Embora praticamente todos os paívses tenham se comprometido em

* Stocker, T. F. et al. Technical summary. In: Climate Change 2013: The physical science
basis. Contribution of Working Group I to the Fifth Assessment Report of the
Intergovernmental Panel on Climate Change. 2013.

48
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

acordos internacionais a cumprir essa meta, as emissões de gases do efeito estufa


continuam só aumentando, ano após ano.

1 Cientistas preveem uma


vasta gama de efeitos
Variação da temperatura

0,8
Média Anual negativos do aquecimento
0,6 global no futuro, incluindo
0,4 a elevação dos nívveis dos
0,2
oceanos (devido à expansão
térmica e derretimento de
0
calotas polares), mudanças
-0,2 no padrão de chuvas,
-0,4 expansão dos desertos,
aumento na frequência e
-0,6
intensidade de eventos
1880 1900 1920 1940 1960 1980 2000 2020
Ano climáticos extremos como
Gráfco: variação da temperatura média global da ondas de calor, secas,
superfície terrestre (terra e oceano) de 1880 a 2017, tempestades com
relativa à média de 1951-1980. inundações, tufões, etc. e
Fonte: NASA Goddard Institute for Space Studies, EUA também uma intensifcação
da acidifcação dos oceanos
(com morte de corais) e extinções de muitas espécies por alteração das
temperaturas e perda de habitat.
O aquecimento global trará serívssimas conseqüências para a humanidade: a
elevação do nívvel dos oceanos forçará ao deslocamento de centenas de milhões
de pessoas que vivem nas zonas costeiras, já que grande parte dessas cidades
fcarão submersas. O aumento da temperatura poderá tornar boa parte da zona
tropical simplesmente inabitável. Além disso, devido à perturbação do regime de
chuvas e expansão de desertos, vastas regiões enfrentarão crises hívdricas e de
abastecimento, levando à fome generalizada em diversas regiões tropicais. Isso
tudo forçará à migração de bilhões de pessoas que ali vivem, gerando uma crise
migratória global sem precedentes. Esses fatores adicionarão enorme estresse nas
relações polívticas entre paívses, com fortifcação de fronteiras para conter os
fuxos migratórios de famintos e sedentos, exacerbando a crise humanitária.

Ligando os pontos

A crise energética causada pelo pico do petróleo poderá trazer o fm de


nossa civilização industrial, pois todas as tecnologias atuais, dependentes do
petróleo, se tornarão inviáveis. Sem combustívveis, todas as pessoas que
dependem de carro ou transporte público para ir ao trabalho serão afetadas, ou
seja, não poderão trabalhar. Tampouco terão trabalho, pois sem energia e

49
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 4. Projeções para o Futuro

matéria prima muitas indústrias pararão; sem produtos para vender, o comércio
também vai parar. Com a crise nesses setores, o setor de serviços também
sofrerá, pois sem emprego as pessoas não terão dinheiro para gastar, gerando
uma “bola de neve” de desemprego. Com a paralisação das atividades
econômicas, não haverá arrecadação pelos governos, e assim os serviços públicos
como educação, saúde, infraestrutura, saneamento, segurança pública, etc.
também serão interrompidos.
Desempregadas e sem renda, as pessoas não terão dinheiro para comprar
alimentos. A população vivendo em grandes centros urbanos estará
especialmente vulnerável, pois o transporte dos alimentos a partir das regiões
produtoras fcará extremamente encarecido ou inviabilizado pela escassez de
combustívveis. Pior ainda, tampouco haverá alimentos, pois toda a agricultura
fcará inviabilizada, já que a agricultura moderna depende totalmente de tratores,
fertilizantes quívmicos e pesticidas, todos dependentes do petróleo, que é o
combustívvel para os tratores e a matéria-prima para os fertilizantes e pesticidas.
Com a exaustão desses insumos, cairá por fm a máscara da agricultura
industrial, mostrando que ela destruiu completamente a fertilidade natural dos
solos, tornando-os estéreis, desprovidos de vida e incapazes de produzir
alimentos.
Isso tudo sem contar a crise hívdrica global! A falta de água e escassez de
alimentos levará à fome generalizada, que atingirá primeiramente as classes mais
vulneráveis e as regiões mais pobres, avançando inexoravelmente até que todos
sejam atingidos. E tudo isso será enormemente agravado pelas mudanças
climáticas.
O desespero das pessoas levará à instabilidade e caos social, colapso
econômico de paívses e esfacelamento de instituições, guerras civis e ascensão de
regimes totalitários. Assim como já citado para a água, guerras serão travadas e
paívses subjugados e destruívdos em disputas pelos últimos recursos agrívcolas
como solos e nutrientes (pobre Marrocos, com suas reservas de rochas
fosfáticas!). Viveremos uma crise humanitária global sem precedentes em que
todos os dias morrerão milhões de pessoas, e a população humana será reduzida,
de forma drástica, progressiva e irreversívvel, por fome, sede, violência, guerras e
epidemias, em meio às ruívnas da civilização.
Ou seja, temos um cenário de “tempestade perfeita”, em que um conjunto
de fatores extremamente sombrios, cada um dos quais isoladamente já seria uma
grave ameaça à nossa civilização, vêm se avultando, convergindo para causar
uma crise sem precedentes, ainda este século. Mas a coisa pode fcar ainda pior
do que o já descrito, pois na iminência do colapso, quando paívses travarem
guerras para se apoderar de recursos energéticos, agrívcolas e hívdricos, isso criará
o cenário ideal para uma provável terceira guerra mundial, com um risco
substancial de aniquilação nuclear global.

50
Parte I – A Crise Ambiental e Civilizacional 5. Estado de Emergência Planetária

5
ESTADO DE EMERGÊNCIA
PLANETÁRIA

Diante do exposto até aqui, fca evidente que estamos de fato num estado
de emergência planetária, e que a insustentabilidade humana é o maior problema
do mundo.
Claro que há muitos outros problemas no mundo atual, como pobreza,
fome, violência, desigualdade e injustiça social, corrupção de governos, guerras,
doenças como câncer e AIDS, etc., todos também importantes, tristes realidades
que devemos nos empenhar em mudar. Porém, mesmo em conjunto, todos esses
problemas não se comparam, em gravidade, à insustentabilidade. Se todos esses
outros problemas atuais fossem milagrosamente resolvidos, e de repente
tivéssemos um mundo sem pobreza ou injustiça social, somente governos
honestos, e mesmo que fossem descobertas curas para todas as doenças, etc.,
certamente terívamos um mundo muito mais feliz; porém, mantendo nossos
estilos de vida insustentáveis como são, essa felicidade duraria pouco. Com a
exaustão dos recursos, tudo isso desmoronaria como um castelo de cartas,
descambando para o mesmo cenário apocalívptico descrito acima.
Se quisermos ter uma chance de sobreviver como espécie e deixar um
mundo saudável ou pelo menos habitável para as próximas gerações,
necessitamos urgentemente de uma mudança radical de paradigma. A
preservação do meio ambiente e dos recursos naturais deverão ser prioridade
máxima e a busca da sustentabilidade, o objetivo principal da humanidade. Esta
é justamente a proposta da permacultura, apresentada nas páginas seguintes.

51
Parte II
A Alternativa da
Permacultura
Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

6
TEMPO DE MUDANÇA

Na Parte I, discutimos brevemente a trajetória da espécie humana em sua


escalada rumo à insustentabilidade. Ali, estão condensadas informações de livre
domívnio público, informações a que todos têm acesso. De fato, a maior parte
dessas informações já não são novidade para ninguém — quem nunca ouviu
falar de superpopulação, desmatamento, poluição ou efeito estufa?
No entanto, raramente o indivívduo liga os pontos, ou analisa essas
informações de forma integrada e clara, considerando suas origens e evolução
histórica, ou seja, o agravamento de nossa insustentabilidade com o passar do
tempo, sua extrema exacerbação nos tempos recentes, a magnitude da atual crise
ambiental e civilizacional e as consequências previsívveis da mesma, tanto para o
ambiente como para a humanidade. Quando o indivívduo fnalmente faz essa
análise é que se dá conta da gravidade da situação atual, e isso vem como uma
bomba, um choque.
Mas, como pudemos nos meter nesta situação, chegar a este ponto? Afnal,
de quem é a culpa por essa crise que ameaça a humanidade e a vida na Terra?
Quando confrontados com essa pergunta, muitos se apressam em “atirar para
cima”: “A culpa é dos banqueiros, magnatas donos de grandes corporações
multinacionais, industriais do ramo petrolífero, automobilístico ou redes de fast
food; madeireiros, barões do agronegócio, políticos corruptos, etc.”, dizem.
Tudo bem, está certo. Mas agora, vamos pensar uma coisa: imagine uma
pessoa, um cidadão comum — pode ser seu vizinho, seu amigo ou irmão, seu

55
Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

pai ou sua mãe, pode até ser você mesmo — que tem um emprego qualquer,
numa fábrica, ou loja, um banco... pode ter seu próprio negócio, talvez uma
ofcina ou restaurante, ou talvez seja professor, ou funcionário público, etc. Ou
seja, está envolvido na produção e venda de bens e serviços, seja direta ou
indiretamente, ou de alguma forma dando suporte a essas atividades. Essa pessoa
ganha seu salário, compra coisas para sua casa, comida, roupas para si e sua
famívlia... talvez tenha um carro que usa diariamente para ir trabalhar, fazer
compras, viajar nas férias com a famívlia, etc. Essa pessoa junta dinheiro para
comprar sua casa própria, garantir a faculdade dos flhos, uma segurança para a
velhice, etc. Claro que não há absolutamente nada de errado em nada disso,
certo? Trata-se de uma pessoa perfeitamente normal e comum, que muito
provavelmente ama sua famívlia e preocupa-se com o próximo, procura cumprir
as leis, contribuir para a sociedade; que tem necessidades, expectativas, sonhos,
etc. — uma pessoa como qualquer outra. Agora, e se eu te disser que são
justamente todas essas atividades descritas acima (assim como todas as outras
não citadas, mas que fazem parte do dia a dia de qualquer pessoa normal) que
estão destruindo o planeta? Ora, cada vez que você usa um carro (ou mesmo
transporte público!), está não apenas poluindo a atmosfera e contribuindo para o
efeito estufa, mas também patrocinando toda a destruição ambiental causada
pela indústria petrolívfera, infraestrutura viária, etc. Cada vez que compra
alimentos, está patrocinando a agricultura industrial e toda a destruição
ambiental associada. Toda vez que compra alguma coisa, está patrocinando a
poluição industrial, a mineração, etc., e toda vez que põe o lixo para a coleta,
está entupindo os lixões de materiais que levarão milhares ou milhões de anos
para se decompor (claro que a reciclagem melhora bastante isso, mas quantos %
do seu lixo é realmente reciclado?). Cada vez que acende uma lâmpada ou liga a
televisão, está patrocinando a destruição das forestas pelas usinas hidrelétricas,
ou a liberação de gases do efeito estufa ou produção de lixo nuclear, dependendo
de onde esteja, e toda vez que dá a descarga no banheiro, está poluindo os rios
e/ou lençóis freáticos com seus dejetos, e por aív vai.
Podemos estar sempre todos limpinhos, cheirosos e arrumadinhos, em
vizinhanças decentes e bonitas (se tivermos sorte), mas é necessário alertar para
o fato que cada aspecto de nossa cômoda vida moderna envolve um imenso
consumo de recursos e geração de resívduos, que se traduz em degradação
ambiental — ainda que longe de nossas vistas. Agora, multiplique isso por
alguns bilhões de pessoas, e está explicada a imensa crise ambiental em que
estamos metidos!
Ou seja, a natureza não está sendo destruívda apenas pelos ricos e
poderosos. Claro que eles são grandes culpados, mas o fato é que a natureza
também está sendo destruívda por cada homem e mulher, cada pessoa neste
mundo que leva uma vida “normal”, nos moldes de nossa sociedade atual,
inserida na civilização industrial de consumo. Porém, muitas pessoas não estão
preparadas para aceitar esse fato, inclusive muitos dos fervorosos ativistas de

56
Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

ONGs ambientalistas, que adoram atacar os poderosos, e sentem-se virtuosos


por fazê-lo. Isso é compreensívvel, pois é muito mais cômodo apontar para forças
maiores do que você, coisas que você não pode mudar, do que arregaçar as
mangas e mudar o que você pode mudar — a começar por você mesmo. Agora,
como você pode criticar grandes indústrias, por exemplo, por seus estragos
ambientais, se você mesmo está o tempo todo consumindo e utilizando seus
produtos? Não é muita hipocrisia?
É claro que a sociedade deve sempre fazer pressão para que as elites —
empresas, governos, grupos e indivívduos poderosos — adotem boas práticas
ambientais e sociais. Porém, sem uma profunda mudança de hábitos das pessoas,
isso jamais fará diferença alguma. Toda demanda tende a gerar uma oferta, e as
grandes indústrias só produzem tanta coisa desnecessária porque as pessoas as
consomem vorazmente — a despeito dos custos ambientais. Por isso, qualquer
mudança signifcativa só pode partir de baixo, da base da sociedade, ou seja, das
pessoas. É inútil esperar que a mudança parta do topo, das elites.
Diante da consciência que com nossos estilos de vida estamos causando a
crise planetária, é moralmente injustifcável que continuemos agindo como
sempre fzemos. Para sairmos da nossa atual rota de colisão com o ambiente
natural e evitarmos a destruição total da humanidade e da vida no planeta, o que
é necessário é uma grande mudança de paradigma na nossa sociedade. É
necessário um alvorecer da consciência, que abandonemos essa cultura
predominante, baseada no individualismo, focada no benefívcio próprio, nas
aparências, no consumo e na acumulação, e adotemos uma cultura em que a
preservação e recuperação ambiental sejam prioridade máxima. E cada pessoa
interessada nessa mudança deve começar por si mesma.
Porém, romper com o paradigma atual no qual estamos imersos é um
enorme desafo. Afnal, cada um de nós foi treinado e condicionado a este atual
estilo de vida desde o nascimento; este é o único modo de vida que conhecemos,
e tudo está pronto para você continuar como está. Sem dúvida, trata-se de um
grande desafo, mas ao mesmo tempo, não pode haver desafo que valha mais a
pena encarar. Afnal, é o futuro da humanidade e da vida no planeta Terra que
estão em jogo!
Mas, afinal, o que exatamente podemos, devemos fazer? Por onde começar?
Diante desse impasse, muitas pessoas veem-se paralisadas. Sem saber o que
fazer, a maioria das pessoas prefere simplesmente fngir que não vê e continuar
vivendo como de costume. Talvez se agarrem à esperança que tudo vai acabar
bem, embora não saibam como — talvez se agarrando à fé religiosa, fé na
ciência, ou fé em governantes, enfm, alguém ou alguma força superior que
venha nos salvar.
Algumas passam a adotar pequenas atitudes sustentáveis, como apagar as
luzes ao sair da sala, fechar a torneira enquanto escovam os dentes, ou separar o
lixo seco para reciclagem, e tentam cultivar a ilusão que estão fazendo sua parte

57
Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

para salvar o planeta, quando obviamente apenas essas atitudes pontuais não
farão diferença alguma.
Há também aqueles que, sentindo-se moralmente impedidos de continuar
fazendo parte desta tragédia, passam a rejeitar o modo de vida convencional e
valores da sociedade; porém, sem conseguirem visualizar uma alternativa viável,
passam a viver às margens da sociedade, vivendo “na estrada”, ou em ocupações,
praticando freeganismo, etc. — o que também é uma ilusão, pois permanecem
totalmente dependentes da sociedade que reprovam, não representando,
portanto, nenhuma solução, nenhum caminho para frente.

Ação positiva para a mudança

Felizmente, algumas pessoas abraçaram esse desafo e puseram-se a pensar


de forma racional e positiva, buscando soluções práticas, concretas, que
pudessem ser aplicadas por qualquer pessoa, em qualquer lugar, desde o nívvel
individual até o coletivo e em qualquer escala, para que tanto nós como o resto
do mundo natural possamos prosperar na Terra. Assim nasceu a permacultura!

Mas afnall, o que é a PERMACULTURA?

A permacultura é um modo de organização consciente das atividades


humanas, visando o suprimento das nossas necessidades ao mesmo tempo em
que se preserva e restaura o meio ambiente e os ecossistemas.
Numa defnição mais ampla, pode-se dizer que ela é um conjunto de três
coisas:
• Uma ciência multidisciplinar que engloba um conjunto de técnicas,
habilidades e conhecimentos aplicados para projetar sistemas produtivos
(agrívcolas, de energia, água e outros), habitações, assentamentos humanos,
estruturas sociais, etc. de forma que sejam verdadeiramente sustentáveis,
baseando-se na observação ativa e aplicação de princívpios da natureza e uso
criterioso dos recursos naturais. Agricultura orgânica, agroecologia, design
ambiental e ecológico, bioarquitetura, saneamento ecológico, energias
renováveis, sistemas de água de chuva, economia solidária, etc. são elementos
centrais da permacultura.
• Um estilo de vida simples, natural e sustentável, pautado por uma flosofa
de máximo respeito à natureza e todas as suas criaturas. O estilo de vida da
permacultura é também caracterizado por um foco na cooperação (tanto entre as
pessoas como em relação à natureza), e não na competição.
• Um movimento global de pessoas que compartilham dessas ideias, valores
e visão, e buscam esse estilo de vida, aprendendo, aplicando e transmitindo os

58
Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

conhecimentos, habilidades e técnicas da permacultura, sendo elas mesmas a


mudança que querem ver no mundo e inspirando outros a se unirem na
construção de uma sociedade sustentável. Acreditamos que, se abraçada por um
número sufciente de pessoas, a permacultura tem o potencial de reverter o
processo de colisão de nossa civilização com o meio ambiente natural.
A permacultura é abraçada por aqueles que entendem que as coisas simples
e naturais são aquelas que preenchem a essência da existência humana —
pessoas que sabem dar valor à beleza e o perfume das fores, ao canto dos
pássaros; que sabem apreciar um céu estrelado ou um nascer do sol, que amam o
contato com a terra e o cheiro dos animais; que gostam de trabalhar, viver e
compartilhar com outras pessoas. A permacultura é um caminho natural para
aqueles que já perceberam que a competição humana exacerbada, bem como a
ganância por riquezas materiais, bens de consumo e status social, tão
caracterívsticos de nossa triste era, representam um grave equívvoco, sendo de fato
venenos para a alma e fontes permanentes de insatisfação, vazio existencial, ou
seja, infelicidade, além de destruívrem o que é realmente belo: a natureza.
Dois enganos comuns das pessoas ao entrar em contato pela primeira vez
com as ideias da permacultura são achar que ela representa uma “volta ao
passado”, ou algum tipo de autossacrifívcio.
Não se trata de autossacrifívcio, muito pelo contrário, já que entendemos
que um estilo de vida simples, intimamente conectado à natureza e mais
autossufciente é muito mais prazeroso, saudável, feliz e repleto de sentido que o
estilo de vida totalmente artifcializado, alienado e dependente atualmente
prevalente. É verdade, porém, que se trata de um caminho repleto de desafos,
que para ser trilhado requer que saiamos da zona de conforto, o que exige uma
dose considerável de coragem.
Tampouco representa uma volta ao passado, pois a busca consciente e
intencional por um estilo de vida sustentável é na verdade algo incomum, talvez
inédito na história humana. É importante, aliás, ter a clareza que a vida no
passado era muito mais dura! Muitas pessoas têm uma visão idealizada,
romantizada do passado, e isso é um problema. Na verdade, a precariedade, a
fome, a doença e a morte estavam sempre ali, a expectativa de vida era muito
mais baixa que hoje, e a mortalidade infantil, altívssima, para citar alguns
exemplos. Embora tenham sido criados novos problemas (como a servidão
corporativa moderna, isolamento e falta de sentido na vida, etc.), no geral é claro
que a modernidade facilitou e melhorou a qualidade de vida do homem
tremendamente, e de inúmeras maneiras. O problema é, justamente, que
seguindo o curso em que estamos, todos esses avanços serão perdidos, e da pior
forma possívvel. Sendo assim, a proposta da permacultura é, justamente, manter e
avançar as conquistas na qualidade de vida humana, aliado a uma reversão do
papel da humanidade em relação à natureza — de destruidor para preservador e
regenerador do meio ambiente, dos recursos naturais e ecossistemas.

59
Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

A permacultura representa, sim, uma volta em alguns aspectos, na medida


em que se busca uma vida mais simples e em contato com a natureza, etc., o que
pode ser visto como um resgate da essência humana. Agora, muita gente, quando
pensa no futuro, pensa logo em um mundo de altívssima tecnologia e total
urbanização, e artifcialização do ambiente; talvez colônias espaciais, etc., como
frequentemente visto em flmes de fcção cientívfca. Porém, isso mostra a falta de
visão dessas pessoas, os otimistas tecnológicos que ainda acreditam na falácia do
crescimento infnito, que falham em perceber que, embora esses cenários sejam
teoricamente possívveis, eles esbarram na iminente exaustão dos recursos
necessários a esses avanços; ou seja, que o colapso ambiental e civilizacional
acontecerá muito antes que esses cenários possam se tornar realidade.
Portanto, a permacultura signifca a libertação para as pessoas que a
abraçam e a possívvel salvação para a vida no planeta Terra, representando,
portanto, não uma volta ao passado, mas sim um salto para o futuro — a
verdadeira evolução que a humanidade tanto necessita.
Uma das coisas mais legais sobre a permacultura é que ela é positiva — ela
mostra o que você pode fazer, apresenta soluções, caminhos concretos. Isso
contrasta com o ambientalismo convencional, que se ocupa primariamente de
dizer o que você não pode fazer.

Histórico da permacultura

A origem da permacultura não pode ser dissociada do movimento


ambientalista no século XX.
Até a primeira metade do século XX, praticamente não existia qualquer
consciência quanto ao valor intrívnseco da natureza. O mundo selvagem era visto
de forma negativa, como uma coisa bestial — algo a ser dominado, explorado,
ou mesmo combatido pelo homem.
Isso começou a mudar ao longo do século XX, e especialmente algum
tempo após a Segunda Guerra Mundial, quando problemas relativos à destruição
ambiental e poluição tornaram-se óbvios principalmente em centros urbanos de
paívses economicamente desenvolvidos. Em 1962, houve a publicação do livro
“Primavera Silenciosa” de Rachel Carson (e, antes dele, o menos conhecido mas
igualmente importante “Nosso Ambiente Sintético”, de Murray Bookchin), o
que deu grande impulso à consciência ambiental, com forte adesão pelo
movimento de contracultura que marcou aquela década.
Em 1970, organizou-se o primeiro “Dia da Terra”, nos Estados Unidos, em
que 20 milhões de pessoas participaram de manifestações, protestando contra
derramamentos de petróleos, usinas nucleares, poluição de rios por esgotos,
pesticidas agrívcolas, etc., evento que passou a acontecer anualmente, crescendo
ano a ano, tornando-se um evento mundial.

60
Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

O ambientalismo havia chegado, numa forma que podemos chamar de


ambientalismo “clássico” ou de oposição, pois as pessoas se manifestavam contra
coisas que não gostavam no mundo. Ou seja, todos sabiam o que eles não
queriam, mas havia uma carência de propostas de alternativas concretas, de
soluções. Isso iria mudar com a permacultura.
A permacultura nasceu da colaboração acadêmica entre Bill Mollison e seu
então aluno David Holmgren no curso de Design Ambiental da Faculdade de
Educação Avançada da Tasmânia, trabalhando em um projeto de pesquisa que
consistia do desenvolvimento de sistemas agrívcolas sustentáveis, em oposição aos
métodos destrutivos da agricultura convencional cujos efeitos devastadores já
eram claramente perceptívveis na Tasmânia àquela época.
Mollison havia observado que, na agricultura, o homem estava em
constante guerra contra a natureza — uma guerra na qual não poderia haver
vencedores. Porém, todos os nossos alimentos, sejam animais, vegetais ou
outros, são provenientes da natureza, onde têm existido e produzido, de forma
sustentável e sem interferência humana, por milhões de anos. Pensando nisso,
pôs-se então, juntamente com Holmgren, a elaborar uma metodologia de design
de sistemas produtivos baseados nos mesmos princívpios existentes na natureza,
com a intenção de criar sistemas altamente estáveis e automantenedores, que
benefciariam tanto ao homem (menos necessidade de trabalho) como a natureza
(menos interferência no ambiente, preservação de recursos como solo, água,
energia, biodiversidade, biomassa), sendo portanto altamente sustentáveis.
O termo permacultura é uma palavra-valise resultado da fusão de
agricultura e permanente. Inicialmente, o signifcado da palavra era exatamente
esse, pois os fundadores da permacultura estavam tratando de criar sistemas
agrívcolas sustentáveis, permanentes. Porém, mais tarde a palavra passou a ter seu
signifcado expandido para cultura permanente, uma vez que se observou que
suas éticas e princívpios eram aplicáveis não apenas à agricultura, mas a todos os
ramos da atividade humana, desde o projeto de habitações sustentáveis até
assentamentos humanos e cidades inteiras; desde os hábitos diários até
direcionamentos de vida, polívticas públicas e mesmo dos rumos da sociedade.
Em 1978, foi publicado o primeiro livro sobre permacultura, de autoria de
Holmgren e Mollison, intitulado “Permaculture One” (“Permacultura Um”).
Logo após criarem o conceito de permacultura, Mollison passou a se
dedicar à sua divulgação, escrevendo artigos, dando palestras e entrevistas a
rádio e jornais, inicialmente na Austrália, e mais tarde em outros paívses. Suas
ideias, potencializadas por seu forte carisma, tiveram grande impacto, gerando
uma verdadeira avalanche de interesse. Nessa época, Mollison desenvolveu seus
Cursos de Design em Permacultura, conhecidos pela sigla “PDC” (“Permaculture
Design Certificate”, em inglês). A visão de Mollison era “formar um verdadeiro
exército de permacultores para saívrem pelo mundo ensinando as ideias de
produção sustentável de alimentos”. Mollison propunha que, ao invés de fcarem

61
Parte II – A Alternativa da Permacultura 6. Tempo de Mudança

esperando que governos e outras instituições façam alguma coisa, as pessoas


preocupadas com o futuro do planeta deveriam tomar a causa em suas mãos —
armar-se de conhecimento e fazer elas mesmas o que era necessário.
Enquanto Mollison assumiu o papel de principal disseminador da
permacultura nos anos iniciais, Holmgren permaneceu praticamente anônimo
por quase duas décadas, testando e aprimorando os princívpios da permacultura
em sua propriedade no interior da Austrália.
Em 1995, Holmgren publicou seu livro “Melliodora: ten years of
sustainable living” (“Melliodora: dez anos de viver sustentável”). Desde então,
emergiu à cena mundial, escrevendo importantes livros e promovendo palestras e
cursos de permacultura ao redor do mundo, destacando-se como um dos
principais intelectuais da atualidade, no ramo da sustentabilidade.
Desde seu nascimento, a permacultura se transformou em um movimento
global que não pára de crescer.

62
Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

7
ÉTICAS E PRINCÍPIOS
DA PERMACULTURA

Nossa insustentabilidade resulta do fato de termos sistemas antinaturais que


requerem altas quantidades de trabalho e energia para estabelecer e manter, e
que utilizam recursos de forma irracional, de um lado consumindo-os
excessivamente e levando à sua depleção, e do outro gerando desperdívcios na
forma de resívduos e poluição. Para alcançarmos a sustentabilidade, devemos
reverter cada um desses erros; ou seja, precisamos estabelecer sistemas naturais,
automantenedores, com baixa necessidade energética, aproveitamento máximo
de recursos e minimização de desperdívcios, de forma que possamos suprir
nossas necessidades não apenas a curto prazo, mas sim indefnidamente.
Isso é muito fácil de se dizer. Porém, como vimos na Parte I, nosso estilo
de vida e a própria estrutura de nossa civilização são resultado de um longo
processo histórico, e nossos modos de pensar e agir, tanto no nívvel individual
como coletivo, são baseados em conceitos, conscientes e subconscientes,
extremamente arraigados. Ou seja, nossa civilização é inteiramente alicerçada
em um paradigma de insustentabilidade. Assim sendo, ações e mudanças
pontuais nunca serão capazes de reverter o problema da insustentabilidade
humana, ou evitar suas consequências. Para isso é necessária uma ampla e
profunda mudança de paradigma.
Porém, é claro que não se pode simplesmente jogar fora tudo o que somos
e recomeçar do zero — isso seria impossívvel. O que precisamos é um conjunto

63
Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

de conceitos-chave para nos guiar nessa transição de paradigma. Pensando nisso


foram criados os princívpios da permacultura.
Os princívpios da permacultura se dividem em duas categorias: princívpios
flosófcos, normalmente referidos como éticas da permacultura, e princívpios
práticos, muitas vezes referidos como princípios de design ou, simplesmente,
princípios.

Éticas da permacultura

A sociedade atual é baseada no individualismo e competição — uma


sociedade em que a realização pessoal é confundida com acúmulo de riquezas
materiais e status (onde status implica não apenas “estar bem”, mas também
estar “melhor que os outros”). Assim, pode-se dizer que nossa sociedade é
focada no ego, e não no coletivo, e praticamente não leva em consideração a
preservação da natureza — não reconhece devidamente o valor intrívnseco da
natureza e da vida, considerando-a secundária aos interesses individualistas já
citados. Esse egocentrismo também se refete na forma como encaramos escalas
de tempo, ou seja, o indivívduo quer benefívcio para si, e agora! Qualquer
consequência dos seus atos que escape ao perívodo de vida do próprio indivívduo é
simplesmente desconsiderada; em outras palavras, ninguém deixa de fazer nada
em benefívcio próprio porque isso poderá prejudicar as próximas gerações. Essa
constituição ideológica defeituosa é a base dos maiores problemas atuais da
sociedade, e dentre eles o mais grave, a insustentabilidade. Portanto, na
construção de um mundo melhor, é fundamental iniciar por uma revisão dessa
base ideológica.
A flosofa da permacultura parte de uma visão holívstica do ser humano,
como parte integral e inseparável tanto da humanidade como da natureza em
geral. Dissolve-se, assim, o antropocentrismo e o egocentrismo tão
caracterívsticos de nossa civilização e sociedade atual: a pessoa humana só passa
a ter sentido quando analisada em seu contexto social e ambiental.
As bases flosófcas da permacultura são sumarizadas nas três éticas:
• Cuidar da Terra
• Cuidar das pessoas
• Partilha justa dos recursos

O cuidar da Terra signifca reconhecer o valor intrívnseco da natureza em


seu todo e todas as suas partes: o ar, a água, o solo, e todas as criaturas com as
quais compartilhamos o planeta.
A Terra contém em suas variadas paisagens uma imensa diversidade de

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

formas de vida (a maioria delas ainda desconhecidas pelo homem), desde


mirívades de seres microscópicos até os grandes e óbvios animais e plantas. A
beleza e exuberância de nosso planeta contrasta enormemente com a esterilidade
e aridez ora gélida, ora tórrida de todos os corpos celestes até agora conhecidos
pela ciência. A vida, sob todos os aspectos, é de fato o fenômeno mais
extraordinário, maravilhoso e intrigante que pode existir — um verdadeiro
milagre. Cada organismo vivo é o resultado de bilhões de anos de evolução,
sendo infnitamente complexo e encerrando infndáveis segredos; cada indivívduo
ou espécie existe não em isolamento, mas totalmente integrado na malha da
vida, no delicado equilívbrio dos ecossistemas. Em conjunto, os seres vivos
moldaram as paisagens de nosso planeta — até a própria atmosfera terrestre foi
defnida de forma dinâmica e interativa pela atividade dos seres vivos,
permitindo que a vida atingisse sua expressão máxima.
É necessário lembrar, porém, que no mundo natural até mesmo uma
simples pedra é merecedora de reverência, quando consideramos que se trata de
um ser que, embora inerte, existe há milhões ou mesmo bilhões de anos. Todas
as coisas que existem no mundo natural são, portanto, dotadas de incalculável
valor intrívnseco e merecedoras do mais elevado respeito, pela sua própria
existência, por sua natureza, antiguidade e complexidade, e pelas funções que
desempenham, ainda que nós não as compreendamos, e mesmo que não nos
pareçam úteis às nossas necessidades.
Apesar da aparente vastidão e antiguidade de nosso planeta e da vida que
nele existe, é preciso lembrar que a Terra representa um espaço contido, fnito, e
que embora a vida tenha existido aqui por bilhões de anos, ela ainda assim é
frágil e dependente de um delicado equilívbrio.
A ética do cuidar da Terra nos lembra que devemos nos abster de ações que
danifquem, destruam ou prejudiquem o meio ambiente natural, e trabalhar
ativamente em sua preservação e recuperação. Devemos assumir o compromisso
de preservar o que resta dos ecossistemas naturais a qualquer custo.

O cuidar das pessoas nos lembra que uma sociedade, para ser sustentável,
tem que ser antes de tudo justa para com todos, tanto a natureza como os seres
humanos. Esta ética contrapõe-se ao egocentrismo, individualismo e
competitividade exacerbados da nossa sociedade atual, que resultam em uma
brutalização e insensibilização em relação às necessidades e a essência da pessoa
humana.
A ética do cuidado das pessoas tem também a vital função de combater a
misantropia — sentimento de distanciamento, aversão e desprezo pela
humanidade, comum em pessoas sensívveis às causas ambientais. Na
permacultura, visa-se não apenas um mundo sustentável do ponto de vista
ambiental, mas um mundo melhor, mais saudável e feliz em todos os sentidos.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

Portanto, a flosofa da permacultura é basicamente uma flosofa de amor. Para


que a permacultura atinja seus objetivos de criar uma cultura permanente que
proteja os ecossistemas e favoreça o futuro do planeta, é necessário que ela se
espalhe pelo mundo; para isso, é necessário despertar, mobilizar e inspirar o
maior número de pessoas a fazerem o bem pelo planeta, o que jamais se
conseguirá através do ódio, e sim através da empatia e do amor, disseminando
informações, ajudando às pessoas e inspirando através do exemplo, formando
assim uma corrente para o bem da vida e do planeta.
Esta ética signifca encarar toda a humanidade como uma irmandade, e
como parte indissolúvel da natureza, já que estamos todos juntos nesta nossa
nave, nossa mãe Terra.

A partilha justa signifca reconhecer que vivemos em um planeta fnito,


de recursos fnitos, aos quais todos os seres tem igual direito. Ao consumir mais
recursos que os necessários para uma vida digna, o indivívduo está de fato
usurpando a parte que cabe aos demais — essa desigualdade representando
injustiça, e causando um prejuívzo ao conjunto da sociedade e da vida na Terra.
Esta ética signifca, portanto, estabelecer voluntariamente limites ao consumo
dos recursos, dentro de um ideal de vida frugal e partilha de excedentes, de
forma alinhada com as duas éticas anteriores.

As éticas da permacultura nos lembram que, em tudo o que fazemos,


devemos nos preocupar: como isso afetará as outras pessoas? E como afetará o
meio ambiente? Não apenas no curto prazo e no seu entorno imediato, mas no
longo prazo e globalmente. Ou seja, devemos procurar praticar apenas ações que
benefciem não somente a nós, mas que também benefciem ou pelo menos não
prejudiquem as demais pessoas, tanto do presente como do futuro, e a natureza e
suas criaturas.

Princípios da permacultura

Os princívpios de design permacultural são elaborados a partir de uma dose


maciça de lógica e bom senso, conhecimentos cientívfcos e observação atenta do
funcionamento de sistemas na natureza, já que a natureza em si é o arquétipo da
sustentabilidade. Eles nos ajudam a planejar, construir e executar estruturas
(casas e outros edifívcios, sistemas de água e saneamento), sistemas produtivos
(plantações, criações) e paisagens inteiras, de forma que sejam altamente
produtivos, harmoniosos, resilientes e sustentáveis, através da utilização de
recursos da maneira mais efciente possívvel, extraindo o máximo de benefívcio
funcional com o mívnimo de desperdívcio ou resívduos, através da perfeita
integração entre seus componentes.

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Porém, os princívpios não são úteis apenas no projeto de estruturas e


sistemas, mas também em redesenhar nosso próprio estilo de vida: aplicados na
orientação de hábitos do dia a dia e escolhas de vida, os princívpios da
permacultura levam a um estilo de vida altamente sustentável, tanto do ponto de
vista ambiental como social.
Vale lembrar que, embora tenham caráter de aplicação universal, os
princívpios da permacultura não são fxos, estanques; pelo contrário, estão em
constante evolução, e a forma como são enumerados e descritos varia de acordo
com o autor ou permacultor. Isso em nada tira seu mérito, muito pelo contrário,
pois deixa claro que não são dogmas (quem gosta de dogmas, que procure uma
religião!), e sim conceitos originados de observação cuidadosa, raciocívnio lógico
e experimentação prática, e que estão aív para serem aplicados, testados,
adaptados e aperfeiçoados.

São Princípios da Permacultura:

1. Observe e Imite a Natureza


A natureza é o padrão universal de perfeição.
2. Valorize a diversidade
A diversidade nos proporciona sistemas ricos e resilientes.
3. Promova a integração
A integração resulta em sistemas altamente produtivos e automantenedores.
4. Capte, armazene e utilize os recursos disponíveis
Entenda os fuxos de matéria e energia, e canalize-os de forma produtiva.
5. Não produza lixo, não polua
Abrace o ideal do lixo zero.
6. Princípio da efciência energética
A disposição inteligente de elementos poupa tempo, energia e materiais.
7. Dê preferência às espécies nativas, valorize a biodiversidade local
Contribua para a restauração do ecossistema nativo de sua própria área.
8. Princípio da máxima biomassa e biodiversidade
Uma área deve conter o máximo de biomassa e biodiversidade que ela pode
naturalmente manter.
9. Use soluções pequenas e lentas
Acredite no poder transformador de atitudes pequenas e simples.
10. Projete dos padrões aos detalhes
O uso de padrões possibilita um alto grau de harmonia, funcionalidade e
eficiência energética.
11. Prefra recursos renováveis e utilize-os de forma sustentável
Utilize recursos de forma econômica e eficiente, e promova sua regeneração.

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12. Versatilidade e redundância


Cada elemento performa múltiplas funções, e cada função importante é
suportada por diversos elementos.
13. Use a tecnologia de forma apropriada
Evite a dependência de tecnologias insustentáveis.
14. Obtenha um rendimento
Proteger o meio ambiente sem esquecer da provisão das necessidades
humanas.
15. Pense globalmente, aja localmente (faça sua parte)
Faça da permacultura seu estilo de vida, e mude seu papel na história do
mundo.
16. Cooperação ao invés de competição
Os interesses máximos da permacultura transcendem os interesses
individuais.
17. Autossufciência e empoderamento local
Trabalhar para si e para os seus significa empoderamento, independência,
liberdade e realização.
18. Reavalie-se constantemente
… para adaptação e aperfeiçoamento contínuo.

1. Observe e imite a natureza

A natureza é um laboratório gigantesco que de forma aleatória tem testado


de tudo por bilhões de anos; tudo o que não deu certo foi sendo eliminado, e só o
que deu certo foi mantido, resultando na imensa diversidade e complexidade (e
beleza!) que se tem hoje. Sendo assim, pode-se dizer que a natureza é uma
espécie de padrão universal de perfeição. A maioria dos erros da humanidade,
que acumulados culminaram na atual crise ambiental que ameaça a vida na
Terra, são resultado de uma separação entre o homem e a natureza, no
estabelecimento de hábitos, sistemas e metodologias antinaturais. A reversão
desse quadro só pode ser alcançada através de um retorno ao que é natural, e
para isso temos que aprender a observar a natureza e aprender com ela.
Uma velha máxima da permacultura diz: “Observação prolongada e
cuidadosa, ao invés de ação prolongada e descuidada.” A observação cuidadosa e
interação atenta com a natureza serve de fonte infndável de conhecimento e
inspiração. Mesmo que não consigamos compreender completamente como as
coisas funcionam na natureza, muitas vezes através da observação conseguimos
identifcar padrões de formas, posicionamentos e interações entre elementos e
fenômenos naturais; ao imitar esses padrões em nossos projetos, muitas vezes

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atingimos um elevado grau de funcionalidade, harmonia e efciência.


Observe e imite a natureza é o princívpio máximo da permacultura, e muitos
dos outros princívpios derivam diretamente dele.

2. Valorize a diversidade

Diversidade é chave para a resiliência. Paisagens naturais contêm inúmeras


formas de vida, cada uma desempenhando múltiplas funções na manutenção dos
ecossistemas. Porém, o homem civilizado, com sua obsessão por dominar e
controlar a natureza, desenvolveu uma forte tendência reducionista: quanto
menos elementos houver, mais fácil de entender e controlar. Assim, decide os
poucos elementos que quer que fquem, e busca eliminar todos os outros. Dessa
forma, o homem está sempre em pé de guerra com a natureza, sempre lutando
contra a vida, com graves consequências para a sustentabilidade.
Ao valorizar a diversidade, estamos de fato imitando a natureza (o
Princívpio n.o 1). A diversidade traz vantagens óbvias. Por exemplo, no caso da
agricultura, ao se apostar em uma única espécie cria-se uma situação de grande
vulnerabilidade: um ano ruim, com adversidades climáticas, ou o surgimento de
uma praga ou doença, etc. podem facilmente dizimar uma plantação, se for uma
monocultura. Por outro lado, em um sistema diversifcado, uma policultura, tem-
se praticamente a garantia de alguma produção, pois o clima ruim para uma
espécie é aceitável para outra, e uma praga que afeta uma espécie de planta é
inofensiva para as demais, etc. Além disso, quanto maior a diversidade na
produção, maior será o seu grau de autossufciência.
As monoculturas — que são o oposto da diversidade — são uma das
principais causas da insustentabilidade da agricultura industrial. Ao estabelecer
uma monocultura para a produção de alimentos, o homem está, na prática,
tentando estabelecer um “ecossistema de uma espécie só” — coisa que não
existe na natureza! Parece esquecer-se que aquele alimento que se quer produzir
é uma espécie de ser vivo, e que nenhuma espécie existe isolada das outras, pelo
contrário: todas fazem parte e dependem de um ecossistema; precisam dos
microrganismos do solo que mantém a fertilidade, de insetos e outros
organismos para a polinização, aeração e descompactação da terra, controle de
predadores, etc. Ao optar por monoculturas, o agricultor torna-se
automaticamente dependente de fertilizantes, maquinários e pesticidas, que
acabam com a fertilidade, arrasam os ecossistemas e produzem alimentos
contaminados. Além disso, passam a depender de recursos não renováveis (e.g.
combustívveis fósseis, fertilizantes minerais e quívmicos) que logo acabarão,
criando grave situação de insegurança alimentar a longo prazo.
Na permacultura, procuramos sempre estabelecer sistemas altamente
diversifcados, utilizando grande número de espécies e valorizando variedades

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tradicionais e crioulas, espécies nativas e plantas alimentívcias não convencionais.


Conseguimos assim estabelecer sistemas ricos e resilientes, produzir grande
quantidade de alimentos com riqueza de sabores e alto valor nutritivo, prestando
ainda importantívssimos serviços ambientais, preservando essas espécies e a
biodiversidade.

3. Promova a integração

Tudo na natureza ocorre de forma integrada — são inúmeros fatores,


inúmeras formas de matéria e energia, inúmeras formas de vida, todas
interligadas e dependentes umas das outras.
Diversidade e integração são duas faces da mesma moeda: o equilívbrio da
natureza depende da manutenção da diversidade de ambientes, organismos e
ecossistemas, e de sua integração. Os tipos de conexões ou relacionamentos
entre os diferentes elementos de um ecossistema variam enormemente, indo da
cooperação (simbiose, mutualismo) até a competição e predação, e da
harmoniosa integração entre todos esses fatores resulta a autorregulação e
estabilidade dos sistemas naturais. A autorregulação atua em todos os nívveis: no
clima, nos ecossistemas, nas populações das diversas espécies, e dentro de cada
organismo, onde é uma caracterívstica crucial do controle fsiológico
(homeostasia). Ecossistemas naturais funcionam por si mesmos, com uma
produção altívssima e incrivelmente diversifcada, por milhões de anos, sem
qualquer necessidade de interferência externa na forma de trabalho humano ou
importação artifcial de recursos. Essa imensa estabilidade e produtividade é
resultado da perfeita integração dos múltiplos elementos, fatores bióticos e
abióticos que compõem os ecossistemas e a biosfera.
A torpe óptica reducionista do homem civilizado destrói as bases dessa
estabilidade e produtividade ao reduzir drasticamente o número de elementos e
dispô-los de forma arbitrária e não integrada, na moda totalitária de suas fleiras,
canteiros e piquetes, gerando com isso sistemas pobres, inefcientes, frágeis,
dependentes de insumos externos e intensas doses de trabalho, enfm, totalmente
insustentáveis.
Ao projetarmos nossos sistemas permaculturais, devemos ter sempre em
mente a busca pela perfeita integração dos elementos, em todos os nívveis, ou
seja, entre os elementos de cada sistema, e a integração entre sistemas, conforme
ocorre na natureza.
A correta integração dos elementos em sistemas produtivos possibilita pelo
menos três efeitos vantajosos: concentração, interações positivas e
autorregulação.
• Concentração: esse efeito decorre do fato que plantas e animais de espécies
diferentes e estágios de desenvolvimento diferentes têm necessidades diferentes

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

de nutrientes, exposição solar, umidade, temperatura, etc., podendo portanto


ocupar nichos diferentes dentro do mesmo espaço, permitindo portanto um
melhor aproveitamento do espaço e uma produção total por área maior e mais
diversifcada.
• Interações positivas: a integração perfeita entre os elementos cria uma
proximidade funcional. Por exemplo, em uma foresta, o resívduo de uma espécie
é imediatamente utilizado como recurso pela outra, e tem-se uma alta
reciclagem de matéria e energia; as folhas caívdas de uma árvore servem de
cobertura de solo, benefciando as demais; sombreamento parcial de uma árvore
favorece ervas que não toleram sol pleno; leguminosas fxam nitrogênio do ar no
solo benefciando outras plantas; certas plantas atuam repelindo pragas, ou
servindo de isca para as mesmas, assim poupando outras plantas, ou mesmo
atraindo insetos que são predadores de pragas, etc.; frutas caívdas de uma árvore
servem de alimento a animais, que por sua vez adubam a terra com seus dejetos,
e ainda ajudam na disseminação das sementes, etc. A competição (por espaço,
nutrientes, luz) continua existindo, mas é mais que compensada pelos benefívcios
mútuos, de forma que o sistema é benefciado no seu conjunto, e a produção é
aumentada.
• Autorregulação: diversidade e integração geram sistemas estáveis e
automantenedores, assim como ocorre na natureza, reduzindo a necessidade de
manutenção e insumos externos. Isso signifca economia de trabalho, dinheiro e
tempo, conferindo autonomia e independência, além da preservação do meio
ambiente no local (na verdade uma melhora progressiva do ambiente) e fora dele
(já que o uso contívnuo de insumos externos como adubos causa sua depleção e
destruição ambiental em seu local de origem, como desmatamento e poluição,
custo ambiental do transporte, etc.).
As interações positivas são a base para o conceito das plantas
companheiras, ou seja, plantas que, quando postas em proximidade, ajudam-se
mutuamente por terem interações predominantemente benéfcas. Pelo contrário,
plantas não companheiras são aquelas que competem entre si, não favorecendo
a proximidade, por exemplo por necessitarem dos mesmos recursos, como sol,
ou terem as mesmas necessidades nutricionais, ou por liberarem substâncias
com efeito inibidor (efeito alelopático), etc. Por isso, devemos sempre prestar
muita atenção a essas interações e aprender a posicionar as diferentes espécies
de forma inteligente, explorando ao máximo as interações positivas para maior
produtividade.
O princívpio da integração complementa o princívpio da diversidade, pois de
nada adianta ter um grande número de elementos em um sistema se eles
estiverem sempre em pé de guerra uns com os outros. Por isso, pode-se dizer
que mais importante que a quantidade de elementos presentes em um sistema é a
quantidade e qualidade de relações benéfcas entre esses elementos, contribuindo

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

para a produtividade e autorregulação.


Por exemplo, uma agroforesta habilidosamente estabelecida, com rica
diversidade em perfeita integração, desempenha todas as funções ambientais de
uma foresta natural (proteção do solo, da água, da biodiversidade), ao mesmo
tempo em que supre as necessidades do homem, como alimentos, fbras,
madeiras, pigmentos e remédios, entre outras, de forma natural e estável. Outros
sistemas produtivos, como lagoas artifciais, também devem ser projetadas para
serem automantenedoras, estabelecendo-se nelas um ecossistema aquático
completo e saudável, com plantas, animais invertebrados, rãs, peixes, patos, etc.
Um ecossistema assim mantém a água sempre razoavelmente limpa, livre de
insetos indesejáveis como mosquitos, gera uma produção diversifcada de
alimentos, fomenta a fauna local e migratória e cumpre ainda várias outras
funções, praticamente sem necessidade de interferência humana. Diferentes
sistemas produtivos (plantações, criações) e não produtivos (construções,
estradas), bióticos (animais, plantas, microrganismos) e abióticos (sol, vento,
água, topografa), também devem ser integrados em nossos projetos, pois isso
traz como resultado alta efciência energética e produtividade.

4. Captel, armazene e utilize os recursos disponíveis

Este princívpio signifca que devemos observar e entender os fuxos de


energia e matéria ao nosso redor e intervir de forma racional e estratégica para
canalizá-los de forma produtiva — enxergar recursos, muitas vezes de forma
não convencional, e utilizá-los.
Captar a água da chuva é tão óbvio, mas ao mesmo tempo tão
revolucionário, porque ninguém está fazendo! Esse é um recurso fabuloso,
tanto em situações urbanas como rurais, podendo facilmente, na maioria dos
casos, suprir totalmente nossas necessidades de água, de forma natural.
Infelizmente, a maioria das pessoas ignoram isso — desperdiçam toda a água
da chuva, e suprem suas necessidades de formas artifciais, como águas
municipais, poços e bombeamento de rios, etc., com altos custos energéticos e
levando a inúmeros problemas ambientais.
Energia solar pode ser usada para aquecimento de água, através de
sistemas simples e de baixa tecnologia que podem ser feitos por você mesmo;
aquecimento e iluminação de ambientes pode ser feito através do design
passivo para energia solar (dimensionamento e posicionamento adequado de
janelas, estufa acoplada à casa, etc.), além, claro de painéis fotovoltaicos.
Energia eólica pode ser vantajosa em muitas situações, e energia hidráulica
também tem inúmeras aplicações em situações rurais, como bombeamento de
água por rodas d'água ou carneiros hidráulicos, moagem de grãos por moinhos
d'água, e às vezes geração de energia elétrica. Energia geotérmica de baixo grau
pode ser usada para aquecimento de ambientes em locais frios, e refrigeração

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

em locais quentes, etc.


A forma mais simples, rudimentar porém bastante funcional de captar a
energia solar é na forma de biomassa, por exemplo na forma de lenha para uso
como combustívvel. Também os nutrientes do solo devem ser captados e
utilizados, e reciclados, por exemplo através da compostagem, e uso do
banheiro seco.
Muitas vezes, temos a oportunidade de captar recursos valiosos de fora de
nossa propriedade, que de outro modo seriam desperdiçados. É o caso de restos
de podas e aparas de grama, serragem de madeireiras (muito úteis para uso
como cobertura de solo ou na compostagem), cinzas de olarias (úteis na
fertilização e neutralização da acidez do solo), materiais de demolição que
podem ser muito úteis em construções, etc.
Outra aplicação deste princívpio é o benefciamento de alimentos para sua
conservação. Frutas geralmente são produzidas em grande quantidade por um
curso perívodo, em uma estação bem defnida, e na maioria das vezes o que
ocorre é um grande desperdívcio nessa época, sendo que no restante do ano
simplesmente não se tem a fruta. Felizmente, há todo um conjunto de técnicas
que podem ser usadas para conservar essa produção, permitindo seu
armazenamento por todo o ano, evitando o desperdívcio e possibilitando o
usufruto máximo desses produtos, além de sua comercialização — por
exemplo, desidratação (uvas e bananas passas, etc., podendo ser usados
secadores solares), compotas, polpas congeladas, doces, etc.

5. Não produza lixol, não polua

Não há lixo na natureza — o lixo é uma criação do homem. Na natureza,


todas as formas de matéria e energia são permanentemente recicladas. Já o
homem moderno, com seu estilo de vida artifcializado, consome uma
quantidade enorme de recursos e os utiliza de forma irresponsável, criando
resívduos que se acumulam na natureza, causando-lhe enormes danos. A maioria
das pessoas não é sensibilizada quanto ao problema do lixo devido ao conforto
e comodidade do serviço de coleta urbana, que leva para longe o lixo todos os
dias, impedindo as pessoas de terem contato prolongado com seu próprio lixo, e
sequer ter noção de quanto lixo elas realmente produzem. Agora, faça o
seguinte experimento: tente acumular em sua casa todo o lixo que produz em
um mês — um mês inteirinho sem colocar lixo para fora nenhuma vez, e
entenderá do que eu estou falando! Aproveite, e faça uma visita ao lixão ou
aterro sanitário de sua cidade, para ter uma noção melhor do que o lixo
representa para a natureza.
Outra coisa que muita gente não pensa, mas o simples fato de usar um
banheiro convencional de descarga signifca que cada pessoa está lançando
diariamente seus excrementos, misturados com água, ao meio ambiente, seja

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

em fossas sépticas que contaminam os lençóis freáticos, seja em rios, lagos e


mares, através dos canos de esgoto. Cursos d'água por todo o mundo estão
poluívdos por esgotos domésticos, e apesar disso a imensa maioria das pessoas
não se consideram culpadas dessa situação, embora sejam elas mesmas dando a
descarga várias vezes ao dia. Isso mostra claramente como as pessoas têm uma
enorme difculdade em assumir a responsabilidade por seus próprios atos.
Para citar um terceiro exemplo de mau uso dos recursos gerando poluição,
podemos nos referir ao uso do automóvel como modo de transporte diário. As
pessoas enchem os tanques de seus carros com 50 litros de gasolina, e a única
preocupação que têm nesse momento é o preço do combustívvel. Raramente
relacionam o problema da poluição do ar nas grandes cidades ou a mudança
climática global ao seu próprio estilo de vida; porém, para cada tanque de 50
litros de combustívvel utilizado, 60.000 litros de gases poluentes são lançados à
atmosfera.
Pela primeira ética da permacultura (cuidar da Terra), temos a obrigação
moral de evitar produzir qualquer tipo de lixo ou poluição. O ideal do lixo zero
deveria ser abraçado por todas as pessoas conscientes do mundo! Isso pode ser
visto como utópico ou inviável no atual modelo da sociedade; afnal, estamos
tão acostumados a nossos estilos de vida desperdiçadores e poluentes, tão
acostumados a “jogar o lixo fora”, que a ideia do lixo zero parece até
revolucionária. Porém, o que temos que entender é que não há fora — o lixo
continua lá, em algum lugar; só foi levado para longe da nossa vista. Vivemos
em um sistema fechado, o planeta Terra, que é nossa casa e do qual devemos
cuidar. Se com nosso atual estilo de vida é impossívvel viver sem gerar lixo e
poluição, então está claro que temos que mudar nosso estilo de vida. E não
adianta fcar esperando que o governo, a prefeitura ou qualquer autoridade
tome providências para resolver este problema — está na hora de assumirmos a
responsabilidade pelo lixo e degradação ambiental que geramos. Cabe a cada
indivívduo dar seus próprios passos rumo à direção certa, para um futuro
sustentável.
A velha regra dos “3 Rs” — reduzir, reutilizar, reciclar — tão conhecida
por todos, e ainda assim tão pouco praticada, continua sendo a melhor receita
para economizar energia, minimizar a exaustão dos recursos e reduzir a
produção de lixo.
Reduzir signifca evitar o consumismo, ou seja, não comprar ou consumir
algo que seja desnecessário, redundante, supérfuo; sempre que possívvel
consertar o que está quebrado, ao invés de comprar um novo. Signifca também
evitar embalagens, por exemplo comprando alimentos a granel, ou pacotes
grandes, e evitando embalagens duplas, etc.
Reutilizar signifca evitar a cultura do descartável. Dar preferência a
utensívlios permanentes, reutilizáveis, ao invés dos descartáveis. Por exemplo,

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

dar preferência a produtos em vasilhames retornáveis, utilizar sacolas de


compras resistentes e duráveis, ou mesmo reutilizar as sacolinhas comuns de
supermercado tantas vezes quanto possívvel, ao invés de jogá-las fora após um
único uso, e pegar novas toda vez que fzer compras (mesmo as sacolas
chamadas de ‘descartáveis’ podem ser reutilizadas dezenas de vezes!).
Por fm, tudo aquilo que não se pode evitar ou reutilizar, deve ser, sempre
que possívvel, reciclado. A imensa maioria do lixo produzido diariamente no
mundo poderia ser reciclado, embora apenas uma pequena fração efetivamente
o seja. O lixo doméstico consiste basicamente de papel, plástico, metais, vidro e
resívduos orgânicos — tudo isso é reciclável. Além de evitar a geração de lixo, a
reciclagem economiza energia, pois reciclar materiais consome muito menos
energia que fabricar novos a partir de matérias primas brutas. Vá além da
maioria, faça um esforço para garantir que seu lixo seja efetivamente reciclado,
separando-o corretamente, mantendo-o limpo e, se necessário, levando-o
diretamente a um centro de reciclagem. Converse com as pessoas lá, veja o que
você pode fazer para aumentar a efciência da reciclagem do seu próprio lixo.
Um conceito-chave que tem que ser compreendido é que o lixo na maioria
das vezes nada mais é que um recurso que não está sendo devidamente
aproveitado. Aqui, fca claro que este princívpio está intimamente ligado ao
anterior (capte, armazene e utilize os recursos disponívveis).

“Transforme problemas em soluções, resíduos em recursos.”

Devemos procurar usar sempre que possívvel materiais naturais, de baixo


impacto e totalmente recicláveis; usá-los de forma efciente e buscar
efetivamente a reciclagem total desses recursos. Devemos projetar nossos
sistemas de forma que o resívduo de um processo seja utilizado como matéria
prima de outro, fazendo com que a matéria e energia sejam permanentemente
recicladas. Ou seja, transformar problemas em soluções, resívduos em recursos.
Ao se utilizar banheiro seco, além de poupar água ainda gera-se adubo
orgânico, evitando o desperdívcio dos nutrientes contidos nos excrementos, que
são retornados de forma segura ao solo e efetivamente reciclados, não havendo
a produção de esgotos ou qualquer tipo de poluição. Da mesma maneira, águas
cinzas (de pias, tanque e banho) devem ser reaproveitadas em sistemas de
irrigação, evitando assim a geração de esgotos e economizando água, e ao
mesmo tempo obtendo uma produção vegetal, seja no jardim, pomar ou horta.
Restos de poda e folhas caívdas devem ser utilizadas como cobertura de solo,
sendo retornadas ao ciclo da vida; no entanto, ainda é comum as pessoas
queimarem esses materiais, desperdiçando essa matéria orgânica e
transformando-a em poluição do ar, além do fato que essa prática é causa
frequente de queimadas forestais e incêndios forestais.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

6. Princípio da efciência energética

Com a farta disponibilidade de energia barata na forma de combustívveis


fósseis, nos acostumamos a “despejar petróleo” sobre todos os problemas que
aparecem — o bom senso foi gradualmente sendo substituívdo por tecnologias
sofsticadas, e as pessoas tornaram-se literalmente viciadas em energia.
Acontece que essa energia toda vem a um altívssimo custo ambiental:
poluição, desmatamento, lixo atômico e aquecimento global, etc. Embora esses
efeitos já sejam evidentes, a real gravidade dessa situação só fcará clara para a
maioria das pessoas quando houver o colapso das fontes não renováveis de
energia e a intensifcação terminal da crise ambiental.
Para reduzirmos a pressão que exercemos sobre o meio ambiente, e
também para sobrevivermos ao fm do petróleo, é fundamental desenvolvermos
um estilo de vida de baixo consumo energético, utilizando a energia de forma
racional e evitando seu desperdívcio ou uso improdutivo. Isso se aplica não
somente à energia, mas aos recursos em geral.
O uso efciente de um recurso signifca extrair o máximo de benefívcio
utilizando a mívnima quantidade do mesmo. Para que tenhamos alta efciência
energética em nossos projetos e atividades, devemos ser econômicos em espaço
e projetar nossos sistemas de modo inteligente para que sejam perfeitamente
integrados, passivos e autorregulados, de forma a economizar recursos como
energia, materiais e tempo.
No projeto de uma casa, por exemplo, o princívpio da efciência energética
signifca dispor elementos e utilizar materiais e estratégias que minimizem tanto
quanto possívvel as necessidades de gasto de energia e tempo. Deve-se preferir
casas pequenas, que atendam às necessidades dos moradores mas não
necessitem trabalho excessivo para manutenção e limpeza. Deve-se ainda
utilizar técnicas de design passivo para energia solar, tanto para fns de
iluminação como aquecimento — por exemplo, maximizando o aproveitamento
de iluminação e ventilação natural pelo dimensionamento e posicionamento
adequado de janelas, utilização adequada de árvores caducifólias ao redor da
casa, que façam sombra no verão e permitam o aquecimento da casa pelo sol no
inverno, utilizando na construção da casa materiais que confram conforto
térmico, como o cob e hiperadobe, utilizando a energia geotérmica, etc.
Diferentes sistemas, produtivos e não produtivos, devem ser integrados
entre si. Por exemplo, a casa dentro de um sívtio deve ser posicionada de forma
que efuentes de águas cinzas possam ser utilizadas passivamente, por
gravidade, em sistemas de ferti-irrigação de jardins, hortas, pomares etc.,
reduzindo a necessidade de irrigação manual, sem porém contaminar fontes de
água potável, como nascentes, córregos ou lagoas. Outro exemplo de integração
entre casa e sistema produtivo, especialmente vantajoso em locais de clima frio,
é uma estufa acoplada à casa (geralmente à cozinha), que oferece no mívnimo
duas vantagens: o aquecimento da casa pela estufa no inverno, e a proximidade

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

(e portanto praticidade) da horta, facilitando seu manejo. Demais sistemas


também devem ser projetados para serem passivos, reduzindo a necessidade de
trabalho e energia: por exemplo, reservatórios de água da chuva devem ser
feitos o mais alto possívvel, para permitir o uso por gravidade, eliminando a
necessidade de bombeamento. Caminhos e estradas devem ser planejados para
serem planos ou terem inclinações suaves, tanto quanto possívvel, pois isso reduz
a tendência à erosão, reduzindo os esforços e gastos com manutenção.

“A disposição inteligente de elementos poupa recursos


como tempo, energia e materiais.”

Um dos aspectos mais importantes da permacultura que é decorrente do


princívpio da efciência energética é o uso das zonas de proximidade e
intensidade, que serão discutidas em detalhes no capívtulo 9, “Permacultura
Rural”. Nesse modo de organização, sistemas produtivos que requerem atenção
constante são posicionados mais próximos à casa, caminhos mais utilizados e
locais de maior permanência, enquanto sistemas mais extensivos e de baixa
manutenção são posicionados progressivamente mais afastados. Com isso,
consegue-se uma grande economia de tempo e energia com deslocamento e
transporte de materiais, além de um maior controle de sistemas mais delicados
e intensivos.

7. Dê preferência às espécies nativasl, valorize a


biodiversidade local

Durante os últimos séculos de expansão da civilização ocidental, houve


supressão progressiva dos ecossistemas na maior parte do mundo e
implementação de sistemas agrívcolas e urbanos com apenas algumas poucas
dezenas de espécies vegetais e animais. Ou seja, se antes a fauna e fora eram
muito ricas e diferentes em cada região do mundo, hoje com a onipresente
antropização você vê praticamente sempre as mesmas espécies em qualquer
lugar: galinhas, cachorros, gatos, vacas, pardais, ratos... trigo, milho, arroz,
mamão, abacate, maçãs… Esse processo se agravou intensamente ao longo do
último século, com a agricultura industrial. Como resultado, temos um grande
empobrecimento da biodiversidade, onde milhares de espécies nativas de cada
região estão sendo extintas, substituívdas por monoculturas de variedades
comerciais altamente homogeneizadas de plantas e animais.
O princívpio da biodiversidade local signifca que devemos:
• Priorizar espécies da fauna e fora nativas do local.
• Resgatar variedades tradicionais e crioulas.
• Evitar a introdução de novas espécies exóticas.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

Ao priorizar espécies nativas da sua área, tanto para reforestamento como


para produção de alimentos, e mesmo em jardins e arborização urbana, você
fortalece o ecossistema local como um todo. Isso porque plantas nativas são as
melhores fontes de alimento e abrigo para animais nativos, que por sua vez são
os melhores polinizadores e disseminadores de sementes de árvores nativas, etc.
Assim, mesmo que se reintroduzam um número limitado de espécies nativas do
local, essas trarão e encorajarão inúmeras outras espécies de animais e plantas
também nativas, muitas vezes sem que você sequer tenha conhecimento.
Aqui é conveniente citarmos as plantas alimentícias não-convencionais, ou
“PANCs”.
Das cerca de 12.000 espécies de plantas comestívveis conhecidas, menos
de 200 são de fato comumente consumidas por humanos, e apenas três —
arroz, milho e trigo — correspondem a 60% de nosso consumo*. E essa situação
está se agravando, com menos espécies ocupando uma fração cada vez maior da
alimentação da população mundial, enquanto a maioria dos alimentos cai no
esquecimento, devido principalmente ao processo de urbanização, desconexão
do campo e natureza e dominação da agricultura industrial moderna, que
ocorrem de forma crescente, globalmente.
PANCs são plantas que são alimento para humanos mas não são
comumente consumidas e, muitas vezes, são desconhecidas da maioria das
pessoas. Pesquise e descubra as plantas nativas de sua área que são alimentívcias
e cultive-as e coma! Assim, estará não apenas contribuindo para o resgate e
preservação dessas espécies e a restauração e enriquecimento do seu
ecossistema local, mas ainda melhorando a qualidade da sua alimentação.
Diversidade é chave para a boa nutrição, e as plantas alimentívcias não-
convencionais fornecem uma rica variedade de cores, sabores, aromas e
formas, e muitas vezes são mais ricas do ponto de vista nutricional, contendo
mais vitaminas, minerais, enzimas, etc. que os alimentos mais comumente
consumidos, especialmente as variedades industriais.
Agora, este princívpio não se restringe a espécies nativas. Espécies de
animais e plantas úteis ao homem têm sido domesticadas há milhares de anos, e
durante todo esse tempo, nas diferentes regiões do globo, foram surgindo
milhares de variedades e raças de animais e plantas úteis, selecionadas de forma
rústica conforme as condições ambientais e as necessidades de cada povo.
Porém, ao longo do último século, essas variedades e raças tradicionais têm
sido crescentemente abandonadas e substituívdas por variedades geneticamente
uniformes da agricultura industrial, muitas vezes fruto de hibridização e
manipulações genéticas. Com a tendência crescente de se produzir apenas
visando o mercado e focando em um número tão reduzido de espécies e
variedades comerciais, estamos de fato virando as costas para um patrimônio
alimentívcio gigantesco, que está sendo extinto, já que as espécies e variedades

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

tradicionais não estão sendo cultivadas e seus ambientes naturais e culturais


estão sendo destruívdos. Segundo dados da FAO, 75% da diversidade genética
agrívcola se perdeu ao longo do último século * — e a tendência é isso se agravar
cada vez mais. Essa erosão da agrobiodiversidade representa um grave risco à
segurança alimentar global, pois as variedades industriais que passaram a
dominar são altamente dependentes de insumos insustentáveis (como irrigação,
fertilizantes quívmicos, pesticidas e mecanização) que poderão não estar
disponívveis no futuro. Por isso, na permacultura devemos também nos dedicar
ao resgate e preservação das variedades e raças tradicionais e crioulas, ao invés
de cultivar variedades industriais. As variedades crioulas são mais rústicas e
adaptadas, sendo em geral mais resistentes a doenças e mais fexívveis quanto às
condições de solo e clima, por exemplo, o que favorece seu cultivo natural,
ecológico e sustentável. Seu cultivo representa a preservação e resgate de um
patrimônio genético, cultural e alimentar ancestral, e uma medida essencial de
proteção da segurança alimentar no futuro.
A introdução de espécies exóticas tem sido praticada extensivamente pela
humanidade. Porém, trata-se de uma prática perigosa que já foi causadora de
desastres ambientais de enormes proporções, levando à extinção de inúmeras
espécies de animais e plantas por predação, competição, introdução de pragas e
doenças, etc. Agora que temos pleno conhecimento desses graves efeitos, é
injustifcável continuar incorrendo nesses riscos, especialmente neste momento
em que os ecossistemas naturais já estão tão fragilizados, e considerando que já
temos tantas opções de espécies nativas e naturalizadas (i.e. introduzidas há
muito tempo) para utilizar em nossos sistemas produtivos.
Em suma, ao seguir o princívpio da valorização da biodiversidade local,
cada permacultor estará contribuindo para a restauração do ecossistema nativo
de sua própria área, protegendo espécies e raças ameaçadas, combatendo a
homogeneização genética global e protegendo a segurança alimentar global.

8. Princípio da máxima biomassa e máxima biodiversidade

A vida ocorre no planeta Terra na forma de ecossistemas, ou seja, um


conjunto de inúmeras espécies de seres vivos que vivem de forma integrada em
seu ambiente. É essa variedade e integração que garante o equilívbrio e,
consequentemente, a estabilidade da vida em qualquer dada área.
Aqui, é importante defnir os conceitos de 'biodiversidade' e 'biomassa'.
Biodiversidade é a diversidade de espécies de seres vivos que há em um
determinado espaço, enquanto biomassa é a quantidade total de matéria contida
na forma de seres vivos, nesse espaço.

* What is happening to agrobiodiversity? In: Building on gender, agrobiodiversity and local


knowledge – a training manual. FAO. 2004.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

Na natureza, todos os seres vivos presentes em um determinado


ecossistema, em sua luta contívnua para sobreviver e se multiplicar, coevoluívram
ao longo de milhões de anos com as condições do ambiente local, para que a
vida se expressasse em sua forma máxima possívvel para aquele local. Portanto,
se uma área tem condições de abrigar uma foresta, ela naturalmente será coberta
de foresta; se só tiver condições de abrigar uma caatinga, ali haverá uma
caatinga; se as condições forem muito restritivas, só haverá algum tipo de
deserto, e assim por diante.
Se uma área abrigava originalmente uma foresta, não é justo manter essa
foresta suprimida para, em seu lugar, plantar hortaliças ou pastagens, ou mesmo
grãos, já que todas essas plantações contém tremendamente menos biomassa e
biodiversidade que uma foresta. A biomassa e biodiversidade são medidas de
vida, quantitativa e qualitativamente. Portanto, substituir uma foresta por
plantações como as supracitadas signifca reduzir e piorar brutalmente a vida
nessa área.

“Uma área deve conter o máximo de biomassa e


biodiversidade que ela pode naturalmente manter.”

Sendo assim, temos que nos perguntar qual o tipo de ecossistema


caracterívstico de nossa área, para planejar nossos sistemas produtivos de acordo.
Em áreas que originalmente abrigavam biomas forestais, devemos instituir
sistemas agroforestais que refitam o ecossistema original e incluam ao máximo
seus elementos, já que uma agroforesta desempenha todas as funções ambientais
de uma foresta, não apenas abrigando biomassa e biodiversidade (animal,
vegetal, microbiológica etc.), mas também protegendo o solo, a água, o clima,
etc. Áreas de campos e prados naturais são mais adequadas a pastagens e
plantações de grãos.
Claro que, em algumas situações, os interesses humanos entrarão em
confito com este princívpio da biomassa e biodiversidade. Por exemplo, para
construir uma casa será necessário suprimir a foresta, e também podemos
necessitar ou desejar plantar hortaliças para nossa alimentação. Nesses casos,
cabe o bom senso de manter essa supressão em um mívnimo possívvel para suprir
nossas necessidades.
Infelizmente, porém, é extremamente comum ver pessoas suprimindo
indiscriminadamente a vida em largas áreas, apenas para satisfazer um senso
“estético” culturalmente arraigado. Um grande exemplo disso, extremamente
comum em regiões rurais, é manter a propriedade toda capinada ou roçada, ou
seja, suprimir a vida natural sistematicamente e a um alto custo energético,
apenas para dizer que está tudo “limpo”. Esse tipo de cultura deve ser abolido,
pois é simplesmente contra a vida. Um outro exemplo semelhante, comum em
áreas residenciais, são os gramados, que ocupam grandes áreas e consomem

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

muitos recursos (água para irrigação, fertilizantes), sem produzir nada. Pense no
tanto de fores, verduras e arbustos frutívferos poderiam ser plantados ali! E as
abelhas, pássaros, etc. que se benefciariam disso, além de nós mesmos,
humanos.
Regiões semi-áridas e desérticas têm abrigado populações humanas há
milhares de anos; portanto, é perfeitamente possívvel viver nessas áreas, mas os
sistemas produtivos e mesmo o estilo de vida devem ser adequados às condições
locais.
É verdade que em muitas situações é possívvel obter um aumento da
biomassa e biodiversidade de uma área, além do que ocorre naturalmente,
através da aplicação habilidosa dos princívpios e técnicas da permacultura.
Porém, deve-se fcar muito atento, pois na maioria das vezes, devido ao uso de
estratégias inadequadas, uma aparente melhoria da vida em uma área no curto
prazo pode vir a um alto custo ambiental, não sendo sustentável e tendo, no
médio e longo prazo, um efeito global negativo ao meio ambiente. Seguem
alguns exemplos:
• Em locais de clima semiárido, o uso indiscriminado da irrigação pode
causar sérios problemas, como excessivo uso de energia e custo ambiental
associado, e redução na vazão e mesmo secamento de rios. O uso de águas
subterrâneas para irrigação causa abaixamento progressivo do lençol freático,
não sendo sustentável a longo prazo. Além disso, via de regra causa a salinização
do solo, tornando-o estéril.
• O uso de fertilizantes quívmicos para melhorar a fertilidade do solo pode
aumentar a biomassa no curto prazo, mas seu uso contívnuo é tóxico ao solo,
reduzindo sua biodiversidade, não sendo, portanto, sustentável. Ainda,
contamina cursos d'água, reduzindo a qualidade da vida nesses ecossistemas, ou
seja, tem um efeito global negativo.
• Mesmo com fertilizantes orgânicos (e.g. esterco animal), é preciso ter
cuidado. Embora criem uma melhora da vida onde são usados, deve-se observar
que, na verdade não houve um aumento da fertilidade, mas sim uma
transferência da mesma: essa fertilidade que aumentou em sua área talvez tenha
passado a faltar no local de onde o adubo foi retirado. Por isso, deve-se ser
crívtico quanto à fonte desse adubo, procurando captá-lo de locais e situações
onde ele de outra forma seria desperdiçado, enfm, obtê-lo de formas que não
causem um dano no local de origem, levando também em consideração o custo
energético relativo ao seu transporte, etc.
Portanto, o único caminho sustentável para se obter um aumento na
quantidade e qualidade da vida em uma área é através do uso dos princívpios da
permacultura: utilizando recursos do próprio local, fxando a água, reciclando
nutrientes, atentando para a efciência energética, valorizando as espécies locais,

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

integrando-as de forma habilidosa para obter o máximo de relações benéfcas,


imitando o funcionamento do ecossistema local, etc.
Como veremos nos capívtulos seguintes, a biomassa e biodiversidade do solo
e do ecossistema terrestre são as responsáveis pela construção e manutenção da
fertilidade do solo, e qualquer redução na biomassa e biodiversidade fatalmente
acarreta redução da fertilidade. Outra importante implicação deste princívpio diz
respeito à fxação de carbono: uma das mais importantes formas de prevenir ou
reverter o efeito estufa é o sequestro de carbono atmosférico na forma de
biomassa. Quanto mais biomassa, maior a quantidade de carbono fxada, ou seja,
sendo retirada da atmosfera.

9. Use soluções pequenas e lentas

Quando uma pessoa toma consciência da gravidade da crise ambiental


atual e decide entrar para o movimento por um mundo melhor, mais justo, mais
sustentável, é muito comum sentir-se perdida e intimidada: “tudo está tão
errado, e eu também tenho feito tudo tão errado... quero mudar isso, fazer a
minha parte, mas por onde começar?”
A resposta para essa pergunta é muito simples: comece com o que é mais
fácil, com o que está ao seu alcance imediato. Acredite no poder transformador
de um conjunto de atitudes pequenas e simples. Lembre-se do velho ditado:
“para fazer uma caminhada de mil quilômetros, o mais importante é dar o
primeiro passo.” Claro que a segunda coisa mais importante é continuar
caminhando!
A primeira coisa a fazer é adotar a permacultura como estilo de vida, o que
signifca aplicar os princívpios da permacultura em seu dia a dia. Usar o mívnimo
de recursos possívvel: tome um banho mais rápido, use o chuveiro na posição
“verão” e abra menos o registro; colete a água do seu banho com uma bacia, e
use-a para dar descarga. Você também não precisa dar descarga cada vez que faz
um mero xixi! Apenas com medidas simples como essas, é possívvel reduzir o
consumo diário de água a menos da metade. Acenda o mívnimo de lâmpadas à
noite, e apague-as quando não estiver usando. De dia, nunca acenda lâmpadas —
abra as janelas! Evite usar o carro, vá de bicicleta. Reduza seu consumo de
carne, leite e derivados, busque uma alimentação mais saudável, compre a
granel, na feira; evite embalagens, valorize os produtores locais, sempre que
possívvel. Reduza seu consumo comprando menos coisas, e separe
criteriosamente seu lixo; descubra formas de garantir que eles sejam reciclados
(em alguns locais, com a coleta urbana muito desorganizada, pode ser necessário
levá-los diretamente a um centro de reciclagem). Faça compostagem em sua
casa, plante algumas verduras e ervas, de acordo com o espaço que tiver
disponívvel. Capte água da chuva, das calhas do seu telhado — inicialmente, pode
ser com bombonas de 200 litros, enquanto elabora planos para uma captação

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

mais efciente. Use essa água para regar seu jardim, lavar roupa, o chão, etc. (o
estilo de vida da permacultura será o assunto do capívtulo 14)
Claro que apenas medidas desse tipo não serão sufcientes para resolver o
problema da insustentabilidade, mas tudo tem que começar com elas! Isso é
essencial para iniciar a jornada da permacultura — é uma transformação que
leva tempo, e o importante é começar, e continuar caminhando.
Um erro que muitas pessoas cometem ao fcarem muito empolgadas e
ansiosas com a permacultura é querer fazer grandes movimentos em um curto
espaço de tempo. Por não terem experiência, acabam gastando muito dinheiro,
causando estragos e na maioria das vezes os sistemas não funcionam a contento.
Arrumam briga com familiares e vizinhos, etc., e isso tudo muitas vezes faz com
que desanimem e desistam, o que é a pior coisa que pode acontecer. Portanto, o
melhor é começar pequeno e ir reavaliando-se constantemente (veja o princívpio
n.o 18), para evoluir gradualmente, alcançando resultados mais profundos.
Enquanto você assimila essas atitudes, deve dedicar-se continuamente à
elaboração de planos para uma vida realmente sustentável, à luz da
permacultura. Este planejamento é muito importante, e deve ser feito com calma
e com a máxima seriedade. Não adianta nada querer fazer uma revolução de
forma precipitada, e acabar não sobrevivendo, morrendo na praia.
O mesmo princívpio se aplica quando a pessoa vai desenvolver seu projeto
de permacultura rural. Um erro muito comum é a pessoa bolar um plano que ela
acredita ser ótimo, e chegar fazendo grandes modifcações na paisagem, usando
maquinários, suprimindo vegetação, mexendo na topografa... consumindo um
monte de petróleo, trazendo um monte de recursos de fora, investindo um monte
de dinheiro, partindo do argumento que os resultados fnais compensarão todo
esse estrago (tendo em mente aquela visão de seu projeto num futuro próximo,
lindo, exuberante e altamente produtivo). Infelizmente, porém, na maioria das
vezes os resultados fnais fcam muito aquém do esperado — os benefívcios não
se concretizam, e fca apenas o estrago. O fato é que quanto maior a escala de
nossas ações, maiores os danos e menor nossa capacidade de prevê-los ou
consertá-los, e isso é agravado pela inexperiência. Começando devagar e
lentamente, com observação e reavaliação constante, podemos evitar esses danos
e aperfeiçoar gradualmente nossos sistemas, podendo, depois, se necessário,
aplicá-los em maior escala, de forma segura.
É preciso sempre lembrar que a natureza também está trabalhando para sua
própria restauração, pois é isso que ela faz. O princívpio das soluções lentas e
pequenas também inclui o conceito da mínima interferência, ou seja, de deixar a
natureza fazer o seu trabalho. Muitas vezes, quando interferimos demais, apesar
de nossas boas intenções acabamos atrapalhando-a e comprometendo a
recuperação ambiental que ocorreria naturalmente.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

10. Projete dos padrões aos detalhes

A observação cuidadosa da natureza e também de sistemas humanos


altamente harmoniosos e funcionais permite a identifcação de padrões que se
repetem — fórmulas consagradas pelo uso. Aprender a reconhecer esses
padrões nos dá um bom ponto de partida na elaboração de nossos projetos.
Começar com padrões gerais para depois tratar dos detalhes é a
abordagem mais usada por artistas plásticos como desenhistas, pintores e
escultores, por arquitetos ao projetarem seus edifívcios, e urbanistas ao
planejarem cidades inteiras, e essa abordagem é a que dá os melhores
resultados, resultando em obras e projetos equilibrados, harmoniosos, bonitos e
funcionais. O mesmo ocorre em projetos de permacultura e por isso essa
abordagem deve ser também empregada em design permacultural — partir de
padrões, acrescentando depois os detalhes, levando em consideração as relações
entre os elementos, de forma a atingir um alto grau de integração dos sistemas,
o que resulta em harmonia, funcionalidade e efciência energética. A
abordagem oposta, ou seja, tratar de cada elemento de forma individual e ir
adicionando-os arbitrariamente, é frequentemente utilizada por pessoas
inexperientes ou não capacitadas, e via de regra resulta em sistemas instáveis,
desarmoniosos e inefcientes.
No design permacultural, já que buscamos uma perfeita integração dos
elementos, devemos começar por conhecer os elementos. Assim, a elaboração
de um projeto deve se iniciar com um levantamento detalhado das condições do
local e da região: aspectos geográfcos (altitude, latitude, tamanho, orientação,
topografa, geologia/edafologia, hidrologia, clima), ecológicos (bioma nativo,
grau de preservação/antropização), elementos humanos (vizinhança, cultura
local etc.), questões de infraestrutura local (situação urbana ou rural, acesso,
disponibilidade de recursos materiais e humanos), etc. Igualmente importantes
são os objetivos do projeto, que podem incluir produção de alimentos para fns
comerciais, produção para autossufciência, recuperação ambiental, moradia,
educação ambiental, etc.
A partir daív, começamos com um esboço do design. Neste ponto, o que
normalmente se observa é que para cada categoria de projeto (por exemplo,
projeto de permacultura rural em pequena propriedade em região tropical, ou
então projeto de permacultura urbana em uma casa com quintal, em região
temperada, etc.), os aspectos gerais do design se repetem. Por exemplo, em um
projeto rural, um processo tívpico de elaboração do design geralmente começa
pelos sistemas de água (área de captação e pontos de armazenamento,
favorecendo uso por gravidade), acessos, e posição da casa (altura intermediária
no terreno, para ter abastecimento de água por gravidade e espaço sufciente
abaixo da casa para lidar com efuentes). Em seguida, trata-se dos sistemas
produtivos. Aqui, aplica-se o método de zonas de proximidade e intensidade

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

(que em si são um importante aspecto da aplicação de padrões em


permacultura, e serão discutidos em detalhes no capívtulo 9, “Permacultura
Rural”). Por fm, trata-se dos sistemas produtivos e não produtivos, e seus
detalhes (espécies a serem usadas e sua disposição, instalações e benfeitorias
como galpões, viveiros, estufas, casas, etc.)
A aplicação deste princívpio — projete dos padrões aos detalhes — se dá
em cada um dos nívveis do projeto, e em todas as escalas. Ou seja, aplica-se
tanto no design de um projeto individual de permacultura, como em uma
ecovila ou mesmo uma cidade inteira; e também se dá no projeto de um
simples galinheiro, uma horta ou uma lagoa artifcial.

11. Prefra recursos renováveis e utilize-oos de forma


sustentável

Utilizar recursos não renováveis pode ser vantajoso em certas situações,


mas ao criarmos uma dependência desses recursos nos metemos em uma
verdadeira arapuca, e o pico do petróleo é, talvez, o melhor exemplo disso.
Porém, não basta usar recursos renováveis — é imprescindívvel que os
utilizemos de forma sustentável, ou seja, devemos utilizá-los de forma
consciente e controlada, de fato permitindo que se renovem, pois mesmo
recursos renováveis podem se extinguir, e isso de fato ocorre a todo tempo em
nosso mundo atual. Muitos dos maiores problemas da humanidade derivam
justamente do uso insustentável de recursos que, em sua natureza, são
renováveis. Por exemplo, animais, plantas, forestas e água são todos recursos
renováveis; porém, seu uso abusivo, descontrolado e irracional tem levado à
extinção de milhares de espécies de animais e plantas, o desaparecimento de
forestas e biomas inteiros, e crises hívdricas em diversas partes do mundo.
Assim, além de se priorizarem os recursos renováveis, há que se
estabelecer limites quanto ao uso de recursos, dentro de uma taxa que permita
sua renovação, e adotar práticas que encorajem sua renovação, evitando seu
declívnio. Por exemplo, a lenha pode ser usada como combustívvel em situações
rurais, já que é um recurso renovável produzido naturalmente dentro da
propriedade, podendo ser considerada mais vantajosa que o gás liquefeito de
petróleo, que tem que ser comprado, implicando portanto em um gasto de
dinheiro e uma dependência de um recurso externo e não renovável. O erro está
em utilizar a lenha a uma taxa superior à de renovação da madeira na
propriedade, levando a uma redução progressiva na disponibilidade desse
recurso e degradação ambiental. Isso acontece em diversas partes do mundo,
onde o corte para lenha é uma importante causa de desmatamento. Um manejo
adequado da lenha permite que se colha quantidade sufciente, continuamente, e
sem jamais entrar em declívnio; isso signifca manter um baixo consumo, e

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

promover sua renovação. Para tanto, deve-se utilizar o recurso de forma


econômica e efciente, obtendo o máximo benefívcio com a mívnima quantidade
de lenha: otimizar o uso do fogo, utilizar fogões de alta efciência, como o
rocket stove, priorizar alimentos consumidos crus; utilizar aquecimento solar de
água, e design adequado da casa que permita abolir ou minimizar o uso de lenha
para aquecimento, através de isolamento e vedação adequada, o uso de
materiais que promovam conforto térmico, design passivo para energia solar,
etc. Do outro lado, para promover sua regeneração, deve-se adotar boas
práticas: não abater as árvores, mas ao invés disso apenas podá-las, permitindo
sua regeneração, e usar os galhos podados como lenha; plantar e cultivar
espécies de árvores bem adaptadas, de crescimento rápido, para suprimento
contívnuo e sustentável de lenha, etc.
Também o uso da água deve obedecer critérios racionais para que este
recurso seja preservado e de fato aumentado. Isso signifca reduzir o consumo
doméstico de água, e o consumo de produtos que demandam muita água para
sua produção (e.g. carne, leite e derivados); captar, armazenar, utilizar e reciclar
ao máximo a água de chuva; evitar usar água de corpos d’água naturais
subterrâneos e superfciais, mas, caso seja necessário, usá-la de forma
criteriosa; jamais poluir quaisquer corpos d'água, tanto superfciais (nascentes,
córregos, rios, lagos e mares) como subterrâneos (lençol freático); proteger as
forestas e dedicar-se ao reforestamento de áreas desmatadas, para preservar e
recuperar os recursos hívdricos, etc.
O princívpio dos recursos renováveis se aplica também aos sistemas
produtivos, pois devemos sempre focar na reciclagem dos nutrientes do solo,
através da adubação orgânica, compostagem, cobertura vegetal morta de solo,
etc., ao invés de fertilizantes quívmicos. Também na construção, devemos dar
preferência a materiais naturais, renováveis e de preferência do próprio local, e
técnicas de bioconstrução.
Este princívpio também nos lembra que devemos preferir sempre que
possívvel formas de energia renováveis e de baixo impacto, como a solar e
eólica.

12. Versatilidade e redundância

Na natureza, não há praticamente nada que tenha apenas uma função —


todos os elementos desempenham múltiplas funções. Uma árvore, por exemplo,
oferece abrigo para inúmeros seres vivos como insetos, aves, morcegos, esquilos,
outras plantas (epívftas), etc., fornece alimento para inúmeros animais (seiva,
pólen, folhas, frutos, sementes), protege o solo, estabiliza o clima e o ciclo das
águas, fornece madeira, sombra, beleza, etc. Já uma minhoca digere matéria
orgânica produzindo húmus, aera o solo e serve de alimento para inúmeras
espécies de aves e mamívferos. Também no corpo humano, a maioria dos órgãos

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

têm diversas funções, com raras exceções de órgãos extremamente


especializados, como por exemplo o olho.
A sociedade moderna, com sua mania reducionista, tem grande tendência
em favorecer a especialização: hoje temos ferramentas e utensívlios cada vez mais
especializados, e pessoas cada vez mais especializadas em suas funções. É fato
que, via de regra, quanto maior o grau de especialização, maior a efciência com
que se performam funções especívfcas; porém, ao mesmo tempo, perde-se em
fexibilidade: quanto mais especializados os utensívlios ou equipamentos, maior
quantidade de diferentes utensívlios tornam-se necessários para que se possam
desempenhar todas as funções. Da mesma forma, indivívduos altamente
especializados muitas vezes tornam-se totalmente dependentes de outros
indivívduos para funções básicas à sua própria sobrevivência.
Sistemas naturais funcionam de forma efciente e estável devido à
diversidade, integração e autorregulação. Porém, para que haja integração, é
preciso que haja um certo grau de fexibilidade nos elementos do sistema. Isso
explica por que não são comuns elementos altamente especializados na natureza:
por sua falta de fexibilidade e alto grau de dependência, tais elementos foram
naturalmente excluívdos no processo natural de seleção.

“Cada elemento performa múltiplas funções;


cada função importante é suportada por diversos elementos.”

Por isso, ao projetarmos nossos sistemas, é importante que cada elemento


desempenhe diversas funções. Por exemplo, se você só tiver espaço para uma
árvore, que seja uma árvore de boa sombra e que produza frutas comestívveis. Ao
se projetar uma agroforesta, faça-o de forma que ela produzirá diversos produtos
úteis, como frutas e outros alimentos, madeiras, fbras, óleos, mel, e ainda sirva
diversas outras funções, como abrigo para fauna, corredor biológico, funcione
como cerca viva, aumentando a privacidade e reduzindo barulho e poeira da
estrada, etc. Ao projetar uma lagoa artifcial, faça-o de forma que sirva a várias
funções, como reservatório de água para consumo e irrigação, produção de
plantas aquáticas, peixes, rãs e pitus, atraia aves e outros animais silvestres, seja
bonita e agradável, e ainda dê para dar uns mergulhos! Estradas e caminhos
podem ser feitos em nívvel e elevados, servindo para reter água da chuva e
controlar a erosão. Cercas vivas devem incluir várias espécies vegetais, para que
além de servirem como cerca, ainda produzam frutas, folhas comestívveis e lindas
fores. Na casa, o fogão a lenha pode servir não apenas para cozinhar, mas
também para aquecer o ambiente (acoplado a um irradiador), e aquecer água
(com um sistema de serpentina). Mesmo que você tenha um aquecedor solar de
água (e deve ter mesmo!), isso poderá te salvar em dias frios e chuvosos de
inverno.
O outro lado da moeda é que funções essenciais devem ser suportadas por

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

diversos elementos, pois isso dá segurança ao sistema, garantindo que, na falha


de um elemento, a função continuará sendo desempenhada. Por exemplo, não se
pode ter apenas um reservatório de água na propriedade, e sim vários
reservatórios, por segurança. Também, se você utiliza um poço com bomba
elétrica, é sempre uma ótima ideia ter também uma bomba manual sempre
disponívvel, em caso de falta de energia, etc.

13. Use a tecnologia de forma apropriada

Na sociedade moderna há uma forte tendência à supervalorização da


tecnologia, enormemente motivada pela indústria e pela mívdia. Criou-se a noção
que para algo ser bom, tem que ser a última tecnologia, e que sem os últimos
avanços tecnológicos não se pode viver; na maioria das vezes as pessoas nem
param para pensar que há apenas alguns anos ou décadas, essas tecnologias nem
sequer existiam, e o mundo funcionava, e todo mundo vivia.
As chamadas “soluções tecnológicas” muitas vezes oferecem pouca ou
nenhuma vantagem sobre métodos tradicionais ou de baixa tecnologia, além de
normalmente terem alto custo de aquisição e manutenção, requererem grande
quantidade de energia elétrica ou combustívveis, gerarem resívduos, etc. O vívcio
por tecnologias avançadas é uma forma de consumismo com alto custo para o
ambiente, e ao mesmo tempo causa um tipo de dependência psicológica
debilitante, onde o indivívduo sente-se totalmente incapaz de fazer qualquer coisa
a não ser que tenha nas suas mãos o que há de mais moderno — por não dispor
deste ou aquele aparato tecnológico, muitas vezes o indivívduo até desiste de fazer
o que queria, por não se sentir “adequadamente equipado”, sendo que a tarefa
poderia muito bem ser feita com aquilo que já se tem à mão. Daív nasce a
diferença entre os que fazem pouco com muito, ou fazem muito com pouco. Na
permacultura, procuramos sempre estar no segundo grupo.
Talvez seja útil citar aqui alguns exemplos de como o princívpio da
tecnologia adequada é totalmente ignorado por muita gente: como o indivívduo
que desce de elevador de seu apartamento e vai de carro até a academia de
ginástica, onde ele gasta dinheiro para fcar em um local com iluminação e
ventilação artifcial, usando aparelhos que muitas vezes consomem energia
elétrica... para fazer o exercívcio que ele poderia muito bem ter feito de graça e
sem nenhum gasto de combustívvel ou energia elétrica, simplesmente usando as
escadas de seu prédio e se locomovendo a pé ou de bicicleta. Ou aquelas pessoas
que compram avidamente eletrodomésticos e utensívlios para a cozinha —
multiprocessadores, centrívfugas, fornos de controle digital, kits disso, kits
daquilo... — e simplesmente nunca cozinham! Compram comida pronta
congelada, e só esquentam no micro-ondas. Malemá cozinham um arroz e feijão,
enquanto outras pessoas, sem nunca terem ou sequer conhecerem aqueles

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

apetrechos, sempre cozinharam de tudo, sem problema algum. Outro exemplo


são os chamados sopradores de folhas: máquinas caras e barulhentas, que
consomem energia elétrica ou gasolina (nesse caso ainda geram fumaça
fedorenta e tóxica), que fazem exatamente o mesmo serviço que sempre foi feito
de forma totalmente satisfatória por simples vassouras e rastelos! E ainda tem a
desvantagem de levantar uma quantidade enorme de poeira, que sempre causa
muito incômodo e, não raro, irritação nos olhos e sistema respiratório.
Muitas pessoas erroneamente assumem que novas tecnologias, cada vez
mais modernas, resolverão os problemas da humanidade. Porém, muitas vezes,
as novas tecnologias trazem soluções para problemas que nunca existiram. Outra
coisa que se pode dizer de novas tecnologias é que, para cada problema que elas
resolvem, criam dez outros novos problemas. Está claro que com o crescimento
da tecnologia estamos fcando cada vez mais insustentáveis.*
A solução para a maioria dos nossos problemas está na verdade em menos
tecnologia — tecnologias mais simples, e uma dose maciça de bom senso e ética.
Por exemplo, na construção de uma casa, devemos utilizar técnicas naturais
(bioconstrução), muitas vezes ancestrais, que corretamente aplicadas resultam
em habitações baratas, de baixo impacto ambiental, alta efciência energética,
além de uma autenticidade ívmpar.
Em sistemas produtivos, devemos focar em sistemas de baixa tecnologia,
focando na diversidade e integração dos elementos de forma que imitem as
relações naturais, sendo automantenedores, e evitar sistemas automatizados e
tecnológicos, pois os primeiros contribuem para nossa autossufciência e
independência, enquanto os últimos nos manteriam eternamente dependentes de
insumos externos, tecnológicos, e consequentemente recursos fnanceiros (o
oposto da autossufciência), além do fato que esses insumos provavelmente
deixarão de estar disponívveis no futuro.

“Tecnologia não é substituto para bom senso”

Claro que há muitas tecnologias modernas que podem trazer reais


benefívcios, e essas podem e devem ser utilizadas. Neste contexto,
provavelmente o exemplo de maior destaque é a internet — ela é hoje a melhor,
mais vasta e mais acessívvel fonte de informação disponívvel à maioria das
pessoas, o que sem dúvida é de um potencial maravilhoso, que deve ser
explorado ao máximo. Também é útil como forma de conectar pessoas e
formação de redes de contatos e trabalho, ou networking, o que ajuda os
indivívduos e fortalece movimentos como a permacultura, por exemplo.

* Para uma análise aprofundada deste tema, recomendo a leitura de “Techno-Fix: why
technology won’t save us or the environment”, de Michael Huesemann e Joyce
Huesemann.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

Outro exemplo é o uso de maquinário pesado, como retroescavadeiras e


carregadeiras, em projetos de permacultura, por exemplo na escavação de
reservatórios de água, como lagoas artifciais. Criticado por uns e defendido por
outros, aqui na verdade deve prevalecer o bom senso, numa avaliação caso a
caso. Sem dúvida é possívvel e preferívvel escavar à mão, desde que se tenha
muitas pessoas para ajudar. Em outros casos, em que mão de obra for escassa ou
cara, enquanto maquinário seja disponívvel a baixo custo, a mesma lagoa pode
levar meses e custar carívssimo para se escavar a mão, ou poucas horas e 50 litros
de óleo diesel para fazer o mesmo serviço com uma máquina — um uso
perfeitamente justifcável da tecnologia disponívvel, especialmente considerando o
benefívcio ambiental a longo prazo.
Ou seja, o princívpio do uso apropriado da tecnologia não preclui o uso das
tecnologias modernas, e sim implica no uso racional e criterioso das mesmas.

14. Obtenha um rendimento

A permacultura visa alcançar dois objetivos: o suprimento das


necessidades humanas e a preservação e restauração do meio ambiente. Embora
diferentes indivívduos possam focar mais em um ou outro aspecto, ambos são
igualmente importantes e devem ser sempre considerados em conjunto.
O que acontece muitas vezes, porém, é que as pessoas que se sentem
atraívdas para a permacultura têm uma história de vida predominantemente
urbana, e estão cansadas e desgostosas por seus estilos de vida artifciais e
estressantes; amam a natureza e ressentem-se do fato que a humanidade a está
destruindo, e querem “mudar de lado”, passando a defendê-la. Sentem uma
necessidade de se reintegrar à natureza, e têm o ideal de produzir alimentos de
forma orgânica e saudável, mas não têm uma história no campo e, assim sendo,
não estão acostumadas a produzir e depender dessa produção.
Consequentemente, muitas vezes, ao iniciarem seus projetos de permacultura,
os novatos tendem a focar muito na preservação e recuperação ambiental, e
desenvolvimento de um estilo de vida que consideram simples e natural,
deixando em segundo plano a produtividade. Cria-se assim um impasse: não faz
sentido tentar recuperar uma área degradada, ou plantar uma foresta, se você
não consegue nem sequer se manter! Pela mais pura lógica, se você não
sobreviver, seu projeto também perecerá.
Então, o que muitas vezes acaba acontecendo é que, sem produção
sufciente para se manterem, essas pessoas acabam exaurindo seus recursos
fnanceiros e tendo que abandonar seus projetos, e retornar à vida de antes, ou
seja, à mesma realidade da qual queriam se afastar. Fracassam, assim, em
deixar de fazer parte do problema, e passar a fazer parte da solução do
problema da insustentabilidade humana, e fracassam também em alcançar o

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

estilo de vida que desejam.


A permacultura parte da premissa que é perfeitamente possívvel ter alta
produtividade sem degradar o meio ambiente. Para cumprir esta promessa,
projetos de permacultura devem produzir alimentos e outros produtos em
quantidade e qualidade sufciente para suprir as necessidades do permacultor e
sua famívlia, e ainda prover um excesso de produção que pode e deve ser
compartilhado, seja pela troca ou venda, benefciando mais pessoas e também o
meio ambiente, tanto diretamente, pela recuperação ambiental, aumento da
biodiversidade e biomassa, proteção do solo, da água etc, como indiretamente,
ao oferecer alimentos orgânicos no mercado, “roubando” espaço do
agronegócio ecocida. Portanto, ao nos dedicarmos à permacultura, não devemos
nunca nos esquecer que devemos buscar essa produtividade, com a máxima
seriedade.

15. Pense globalmentel, aja localmente (faça sua parte)

Um dos mais graves vívcios de atitude das pessoas é aquele pensamento:


“se todo mundo faz o errado, não adianta nada só eu fazer o que é certo, pois
isso fará qualquer diferença”. Claramente, esse tipo de atitude só contribui para
a degradação progressiva, tanto da sociedade como do meio ambiente. É
imperativo que tomemos as rédeas de nossas próprias vidas, e passemos a vivê-
las em consonância com nossos próprios princívpios, e não baseado no
comportamento das demais pessoas.
Agir localmente signifca, acima de tudo, fazer da permacultura o seu
estilo de vida. É melhorar o meio ambiente ao redor de sua própria casa. Mais
do que partir para o ativismo, ou depositar grandes expectativas em outros
grupos de pessoas, governos ou corporações, é fazer, concretamente, o que está
ao seu alcance, porém partindo de uma compreensão global dos problemas
existentes.
Vejamos alguns exemplos práticos de como adotar este princívpio:
• Considerando que automóveis consomem muitos recursos e poluem o
meio ambiente, e não é viável cada pessoa no mundo ter um automóvel,
então procurarei me abster de ter ou utilizar um.
• O desmatamento é um gravívssimo problema da atualidade, então não
comprarei madeiras oriundas do desmatamento, e plantarei eu mesmo
muitas árvores.
• A agricultura industrial está destruindo a natureza, então comprarei
produtos orgânicos, ou melhor ainda, produzirei meus próprios alimentos
de forma orgânica.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

• A pecuária causa graves problemas ambientais, então limitarei meu


consumo de produtos de origem animal.
• O consumismo está destruindo o planeta, então consumirei apenas o
essencial.
• A água está fcando escassa, então captarei água da chuva, economizarei e
reciclarei água.
• Esgotos estão matando os rios e mares, então, usarei banheiro seco.
• Temos um problema de superpopulação, então limitarei meu número de
flhos a no máximo dois, etc.
O pensamento de “não conseguirei mudar o mundo”, ou “isso não fará
diferença nenhuma” é extremamente derrotista e contraproducente. Deve-se ter
em mente que, ao adotar uma postura de positividade e ação o indivívduo cria
um campo de infuência à sua volta, incitando à refexão e infuenciando várias
pessoas a seguirem seu exemplo. E essas, por sua vez, também infuenciarão
outras, e assim por diante. Assim, ao adotar a permacultura como estilo de vida,
o indivívduo torna-se um elo de uma corrente que pode, sim, ter um forte
impacto no mundo. Além disso, mesmo que não se consiga mudar a história do
mundo, certamente é possívvel mudar o seu papel nessa história: deixar de ser
parte do problema, e passar a ser parte da solução. Essa mudança, por ter um
fundo essencialmente moral, representa um resgate da dignidade do indivívduo,
o que é extremamente recompensador — você saberá que está fazendo a coisa
certa, e isso por si só já fará tudo valer a pena.

16. Cooperação ao invés de competição

Na sociedade moderna, há uma grande ênfase em competição. Na maioria


das profssões, você tem que produzir mais, ou vender mais, ou inovar mais,
etc. para sobreviver em seu emprego ou ter uma chance de ascender em sua
carreira. Ou seja, há uma pressão constante para que você se destaque, se
sobressaia, seja melhor que os outros — o que signifca competição. Essa
cultura já fcou tão arraigada, que contaminou até mesmo as mais ívntimas
relações familiares: muitas mães têm como principal preocupação que seus
flhos se mostrem “avançados para sua idade”, estejam acima da média nisso ou
naquilo… muitas vezes o fazem de forma inconsciente; outras vezes, procuram
justifcar esse tipo de atitude com o argumento que querem garantir sucesso de
seus rebentos no mercado de trabalho mais à frente — sem perceber que estão
de certo modo comprometendo, corrompendo a pureza da primeira infância,
que não volta mais. O espívrito de competição se manifesta também nos cívrculos
sociais, onde as pessoas estão sempre se comparando com outras e buscando
parecer melhores, mais bonitas, ricas e felizes — uma competição largamente

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

baseada em aparências falsas, e onde sentimentos inferiores e medívocres como


a inveja têm lugar garantido.
Outro aspecto de nossa sociedade que ilustra essa cultura da
competitividade é a paixão, fxação, obsessão de algumas pessoas por esportes
— não a prática de exercívcios fívsicos, que poucos na verdade fazem, mas
competições desportivas. Claro que é normal e saudável, e mesmo caracterívstico
da natureza humana querer se superar, forçar nossos limites — faz parte da
busca por evolução. Agora, isso no que o esporte se transformou é algo bem
diferente: trata-se uma verdadeira indústria. O conceito de esportista
“profssional” é algo muito recente na história; pessoas que não fazem mais
nada além de correr, pular e chutar bolas, coisas que em si não têm utilidade,
não produzem nada, em nada contribuem para a solução de qualquer dos muitos
problemas do mundo. Do jeito que a coisa virou, nem sequer bom para a saúde
dos atletas é — seus corpos são usados de forma abusiva e descartável,
utilizando drogas para aumentar a performance, acumulando lesões crônicas,
etc. Os que chegam ao topo, os campeões, são vistos pelas massas como heróis.
Mas, heróis do que? Com que isso tudo contribui para a sociedade? Afnal, para
que serve tudo isso? Claro, serve para dar destaque aos seus patrocinadores,
ajudando-os a vender mais seus produtos, ganhando da concorrência — ou seja,
um tipo de competição alimentando outro tipo de competição. Ah sim, também
serve para manter a massa acéfala distraívda, anestesiada.
Claro que não cabe dizer que a competição em si é algo ruim. Ela existe
na natureza, onde é importantívssima, sendo a força motriz da evolução e
manutenção das espécies, conforme postula a famosa teoria de Charles Darwin.
É importante destacar, porém, que também na natureza a competição é apenas
parte da estória! De fato, são muitos os tipos de relacionamentos que ocorrem
entre os seres vivos, podendo eles ser positivos (também chamados
harmônicos), como as colônias, a simbiose e o comensalismo, e negativas (ou
desarmônicas) como a competição, a predação e o parasitismo, etc. Também
nas sociedades humanas, a competição é natural e inevitável, e tem uma função
positiva à medida que é um fator de estívmulo para que as pessoas se superem,
atingindo o máximo de seu potencial. O problema é a supervalorização e
exacerbação da competição na sociedade atual, ou seja, uma falta de equilívbrio.
Aqui, temos que destacar uma diferença da sociedade convencional
(paradigma atual) e a proposta da permacultura: de modo geral, na sociedade,
quando se fala em superação e evolução, o indivívduo está pensando em sua
própria ascensão na carreira, ou sua ascensão econômica, social, etc., Ou seja,
os objetivos dos esforços do indivívduo são focados no ego.
Já na permacultura, os objetivos dos esforços são bens maiores: a
preservação da natureza e o futuro da humanidade (que podem ser vistos como
uma só coisa). Sendo assim, a motivação para a superação é de natureza
totalmente diferente: não o benefívcio próprio ou interesses egocêntricos, mas

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

primariamente uma motivação moral, de valores — pode-se dizer, um


verdadeiro espívrito heroico (bem diferente dos jogadores de futebol!). Por isso,
permacultores não devem competir entre si, e sim cooperar, pois só assim
alcançaremos de forma máxima os objetivos da permacultura.
Exemplos de cooperação comuns na permacultura incluem: a ajuda mútua,
como em mutirões e trabalhos conjuntos, voluntariado, economia solidária (troca
de saberes, serviços e produtos, incluindo excedentes de produção), liberdade de
informação, etc. Além disso, a própria proposta da permacultura representa
essencialmente uma cooperação do homem com a natureza: “Trabalhar com a
natureza, e não contra ela”.

17. Autossufciência e empoderamento local

Nossa sociedade atual é marcada pela compartimentalização de tarefas e


funções, melhor expressa pelo conceito de profissão. Por esse conceito, cada
indivívduo tem praticamente a obrigação de adquirir uma habilidade especívfca,
ou especializar-se em um conjunto restrito de tarefas, que desempenhará todos
os dias em seu trabalho — na maioria das vezes na condição de empregado.
Argumenta-se que, nessa estrutura, a função desempenhada por cada um
contribui de alguma forma para a construção e manutenção da sociedade.
Geralmente, as pessoas são induzidas a escolher uma profssão, dentro de um
leque de opções preestabelecidas, quando ainda bem jovens, dentro das opções
e oportunidades que se lhe são disponívveis, e visando acima de tudo ganhar
dinheiro para suprir suas necessidades, através do consumo de bens e serviços.
Enquanto isso, os conhecimentos e habilidades mais essenciais, como produzir
e preparar seus próprios alimentos, são simplesmente postos de lado, caindo no
esquecimento.
O considerado normal no mundo hoje é o indivívduo trabalhar o dia inteiro
todos os dias em um emprego, desempenhando tarefas que não tem relação
direta alguma com o suprimento de suas necessidades mais primordiais e
básicas como alimentação e habitação, por exemplo. Trabalhar na frente de um
computador em um escritório, atender clientes, vender produtos, falar ao
telefone, dirigir veívculos, apertar botões, dar aulas, etc. são atividades
profssionais comuns, e todas elas suprem as necessidades básicas do indivívduo
de forma indireta, através do dinheiro. Isso é o considerado normal hoje em dia.
Pode parecer que tudo está bem, à medida que, realmente, dentro desse sistema
as pessoas têm suas necessidades supridas, e o mundo está aív, de pé (ainda).
Porém, esse tipo de organização do trabalho traz também pelo menos dois
sérios problemas:
1. A falta de um sentimento de sentido naquilo que o indivívduo faz, pois
dedicar-se a funções muito especívfcas e sem relação direta com o

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

suprimento de necessidades básicas geralmente não é motivante, não gera


uma sensação de importância, e portanto de preenchimento e satisfação.
Daív a maioria das pessoas declararem que não gostam de seu trabalho,
caracterizando uma insatisfação crônica que se traduz em uma baixa
qualidade de vida e baixa autoestima, chegando até à depressão.
2. Uma situação de total dependência do sistema. Enquanto o sistema estiver
funcionando, e o indivívduo tiver emprego, e houver transporte e
infraestruturas em geral, e comida no supermercado, estará “tudo bem”.
Porém, quando essas estruturas fnalmente ruívrem, fcará clara a real
situação de fragilidade, de precariedade que essa dependência no sistema
representa.
Além disso, vale citar que vivemos em uma sociedade doente e
insustentável, portanto praticamente todas as atividades convencionais no
mercado de trabalho contribuem também direta ou indiretamente para a
insustentabilidade humana. Isso sem contar o fato que hoje muitas das
atividades e profssões simplesmente carecem de qualquer propósito ou
signifcado mais profundo, são completamente supérfuas, fúteis,
desnecessárias, e muitas vezes até degradantes. Esses fatores geram um confito
psicológico especialmente insuportável para aqueles que são sensívveis ao grave
problema da crise ambiental, ou que buscam algum sentido na vida.
Trabalhar para si mesmo, para sua famívlia e comunidade, para o
suprimento direto das reais necessidades humanas, signifca empoderamento
pessoal e coletivo, independência, liberdade e realização. Claro que é
impossívvel a um indivívduo ou pequeno grupo ser totalmente autossufciente, a
não ser que se viva como os homens das cavernas. Porém, um certo grau de
autossufciência é totalmente possívvel, e cheio de signifcado — viver da terra,
produzindo seu próprio alimento; construir e manter sua própria casa, seus
sistemas energéticos e de água, etc. Trabalhar para si mesmo e para os seus é
extremamente prazeroso e gratifcante, por ser provido de sentido direto e
imediato, além de apresentar infnitos desafos e oportunidades de aprendizado
e desenvolvimento pessoal.
A autossufciência pode ser vista em vários nívveis, partindo do individual e
passando ao coletivo (famívlia, comunidade, região). No nívvel coletivo, coopere
com seus vizinhos (Princívpio n. o 16), faça trabalhos voluntários, troque
alimentos e serviços, compre produtos locais, pois com isso você estará
fortalecendo a sua comunidade, criando laços, contribuindo para a
autossufciência local e regional.
Deve-se ressaltar que, ao contrário do que alguns possam imaginar, a
autossufciência não signifca necessariamente viver em uma “bolha”, isolado da
sociedade. É perfeitamente possívvel e de fato muito desejável desempenhar
funções também na comunidade maior que nos cerca, seja no exercívcio de uma

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

profssão de forma conciliada, ou através da venda dos seus excedentes de


alimentos orgânicos, por exemplo. Tal integração com a sociedade em geral é
fundamental para uma convivência harmoniosa, fortalecimento de laços sociais
e realização individual, além de auxiliar na expansão do movimento da
permacultura, por alcançar e inspirar mais pessoas.

18. Reavalie-ose constantemente

Uma situação tívpica é a seguinte: o indivívduo está cansado e desiludido com


sua vida e os rumos do mundo. Ele conhece a permacultura e tudo ali faz total
sentido para ele, e ele percebe que aquele é o caminho a ser seguido. Passa então
a estudar sobre o assunto, lê alguns livros, devora artigos, assiste vívdeos, talvez
faça um curso... Então, bola um plano para sua transição, e ele parece infalívvel.
Ele já se imagina, daqui a um ano, talvez, em sua nova vida, autossufciente,
vivendo em contato e harmonia com a natureza… Só que não é bem assim!
Temos que deixar claro uma coisa: o estudo aprofundado da permacultura é
absolutamente essencial ao sucesso de seus projetos, mas nada substitui o
trabalho duro e a experiência.
Você vai ver que, no começo, não importa quanto você tenha estudado e se
preparado, as coisas muitas vezes não saem como planejado, e você não terá o
progresso no ritmo rápido que você havia imaginado. Até porque, muitas das
informações que você encontrará são exageradamente otimistas, representando
um “melhor cenário possívvel”, que não necessariamente se refetirá nas suas
condições particulares.
Na permacultura, como em tudo na vida, persistência é a chave para o
sucesso. Ela é a principal diferença entre os que alcançam seus objetivos, e os
que estão sempre morrendo na praia, ou vivem pulando de galho em galho, de
um modismo para outro. Mas persistência não signifca continuar tentando tudo
do mesmo jeito! Pois, obviamente, não se pode fazer a mesma coisa sempre
igual e esperar resultados diferentes. Persistência signifca, portanto, continuar
tentando tenazmente, mas com reavaliação constante, tentando abordagens
diferentes, buscando corrigir erros, para alcançar cada vez melhores resultados.
Pare, olhe para outro lado, respire fundo. Olhe de novo para o que vem
fazendo, veja o passado, o presente, compare suas expectativas com os resultados
que você vem tendo. Estão de acordo? Procure identifcar possívveis razões para
os insucessos, questione. Tente olhar para sua vida e seu projeto de outro ângulo,
como se pelos olhos de outra pessoa. Aceite criticamente opiniões externas: ouça
as pessoas, experientes ou não. Muitas vezes, mesmo alguém leigo pode ter uma
visão, um conhecimento ou informação, dizer uma simples coisa que pode fazer
uma grande diferença, algo que você ainda não tinha pensado, e que era crucial.
Tente abordagens diferentes, especialmente para o que não vem dando certo.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 7. Éticas e Princípios da Permacultura

Os Princívpios da Permacultura são baseados em lógica e bom senso,


conhecimentos cientívfcos, observação cuidadosa da natureza e décadas de
experiência permacultural. Eles são realmente úteis, fundamentais para
alcançarmos o estilo de vida natural e sustentável que queremos, mas não são
palavras mágicas que, decoradas ou proferidas, farão o trabalho por você, ou
garantirão seu sucesso! Quando as coisas não dão certo, é preciso fazer dar
certo, através da reavaliação constante, adaptação e aperfeiçoamento contívnuo.
Não é que você vai descobrir que este ou aquele princívpio estava errado — na
maioria das vezes você vai perceber que sua interpretação deles, da forma como
eles se traduziam na prática, estava errada. Mas claro que, conforme já
mencionado, os Princívpios não são dogmas. Com a experiência, você pode
adaptá-los à sua realidade; pode modifcá-los, e criar os seus próprios, etc.
Compartilhe com outros. Isso é importante para a evolução e desenvolvimento, e
o aperfeiçoamento da permacultura.
Para que a permacultura alcance seus objetivos na larga escala, é necessário
que ela mesma evolua, desenvolva-se, para que alcance cada vez mais pessoas, e
funcione para cada vez mais pessoas. Só que ela não vai se desenvolver sozinha.
A permacultura é feita por pessoas, então cabe aos permacultores
desenvolverem-na.
Vale lembrar que a evolução, entendida como transformação ao longo do
tempo, não é em si necessariamente boa. Ela pode ser boa (desenvolvimento),
ou ruim (degeneração). A evolução positiva só pode ser resultado de um esforço
intencional, consciente e contívnuo por parte dos atores envolvidos.
Reavaliação constante também signifca estar atento às mudanças que
ocorrem no mundo à nossa volta, e usá-las de forma positiva. A mudança é a
única constante no mundo. Isso se aplica tanto ao ambiente natural como ao
social. As projeções que fazemos, sobre a crise ambiental e civilizacional, por
exemplo, têm que ser constantemente revisadas, pois poderão mostrar-se
inexatas, tanto para mais como para menos; novos fatores e problemas (e
também soluções) podem surgir, etc., e a forma como conduzimos nossos
projetos, e direcionamos a permacultura, deve acompanhar essa evolução do
quadro geral em que estamos inseridos, tanto global como localmente.

Principais referências:
David Holmgren. Permaculture: principles and pathways beyond sustainability. Holmgren
Design Services. 2002.
Bill Mollison; Reny Mia Slay. Introduction to permaculture. Tagari Publications. 1991.
Sepp Holzer. Sepp Holzer’s permaculture: a practical guide to small-scale, integrative
farming and gardening. Chelsea Green Publishing. 2011.

97
Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

8
ÁGUA EM PERMACULTURA

A água é um recurso vital e sagrado. No entanto, tem sido extremamente


maltratada pela humanidade. Na permacultura, tratamos da água sempre com a
máxima reverência e respeito.
O uso racional da água é vital para a sustentabilidade. Já seu uso irracional
e irresponsável cria uma vasta gama de efeitos extremamente negativos ao meio
ambiente e ao próprio homem, como depleção de recursos hívdricos
(abaixamento de lençóis freáticos e secamento de poços, nascentes e rios), alto
consumo energético, degradação do solo (erosão, salinização), poluição e
destruição de ecossistemas aquáticos, etc.

O ciclo das águas

É impossívvel fazer um planejamento racional e efciente do uso da água


sem compreender como funciona o ciclo das águas no nívvel local.
A situação tívpica é a seguinte: numa foresta, você tem o solo
permanentemente protegido por múltiplas camadas de proteção: a copa das
árvores no alto, o sub-bosque numa altura intermediária e, por fm, a
serrapilheira, uma camada de matéria orgânica predominantemente vegetal em
diversos estágios de decomposição que recobre o solo. Assim, o solo nunca está
exposto ao sol, permanecendo sempre úmido, possibilitando intensa atividade

98
Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

biológica e reciclagem de nutrientes. Também está protegido do vento e do


impacto das gotas de chuva.
Quando chove, o impacto da chuva é amortecido pelo choque com as
diversas camadas de folhas e galhos das copas das árvores, arbustos, ervas e
serrapilheira. Ao chegar ao solo, essa água fui muito lentamente, pois encontra
infndáveis obstáculos à sua passagem: troncos e raívzes de plantas, galhos e
folhas caívdos da serrapilheira, etc. Além disso, o solo é extremamente aerado e
poroso, devido à contívnua ação de agentes biológicos como minhocas, insetos e
outros animais que escavam túneis, raívzes que apodrecem, etc. Isso tudo
favorece a penetração da água no solo; portanto, você tem uma enorme
infltração, e muito pouca água escorrendo pela superfívcie da terra.
Essa água que penetra no solo viaja muito lentamente para baixo; ela
mantém o solo úmido por longos perívodos, e ao fnal encontrará uma camada
mais profunda, rochosa ou de outro modo impermeável, onde se acumula,
formando uma zona de saturação, o lençol freático. No lençol freático, a água
migra a uma velocidade extremamente lenta. Onde o plano do lençol freático se
encontra com o nívvel do solo, essa água afora na forma de nascentes. Ou seja, a
água das nascentes é água da chuva que caiu meses ou anos atrás, fltrada de
modo lento e passivo por grandes extensões de solo, coletadas no lençol freático
e trazidas à superfívcie da terra. Por isso, as águas de nascente são tão puras e, ao
mesmo tempo, muitas vezes carregadas de importantes minerais. A água das
nascentes fui, então, formando riachos e córregos, e rios que, enfm, tipicamente
a levam até o mar.
Agora, nem toda a água que penetra no solo vai parar nas nascentes. No
perívodo em que está migrando pelas camadas mais superfciais do solo,
mantendo pois sua umidade, parte dessa água é absorvida pelas raívzes das
plantas, sendo utilizada pelas mesmas para seu crescimento, produção e
manutenção, e também transferida à atmosfera através da evapotranspiração.
Nas camadas da foresta entre o nívvel do solo e a copa das árvores, essa água
mantém um microclima especialmente úmido. Essa umidade também é liberada
para a troposfera acima, contribuindo signifcativamente para a manutenção da
umidade relativa do ar, a formação de nuvens e, fnalmente, chuvas, reiniciando
o ciclo das águas.*
Então, vem o homem e corta as árvores, desmata aquela área para uso na
agricultura, pecuária, desenvolvimento urbano, etc. O solo, antes protegido,
permeável e cheio de obstáculos, agora está desnudo, ressecado, compactado

* Claro que o ciclo das águas é muito mais complexo que isso, incluindo os oceanos,
geleiras, etc. Porém, para maior simplicidade, nos ateremos às partes do ciclo que ocorrem
no nível local, da propriedade, e sobre as quais nos é possível intervir, tendo portanto mais
relevância prática.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

pela ação de máquinas ou pisoteio pelo gado, ou impermeabilizado por casas e


outros edifívcios, pavimentação, etc. Por isso, quando chove, muito pouca água
consegue penetrar no solo, enquanto a maior parte escorre pela superfívcie morro
a baixo, diretamente em direção ao rio. O lençol freático deixa de ser abastecido
adequadamente, e vai abaixando de nívvel, levando à redução na vazão e, enfm,
ao secamento das nascentes. Além disso, a cada chuva, devido às enxurradas que
se formam, você tem uma elevação abrupta e destrutiva do nívvel do rio, as
enchentes; o solo desprotegido passa a sofrer erosão, com perda da sua camada
mais superfcial, rica em matéria orgânica e nutrientes, levando ao seu
empobrecimento progressivo, e surgimento de grandes buracos, as voçorocas.
Essa terra toda vai se acumular nas partes mais baixas e no leito do rio, causando
assoreamento, prejudicando a qualidade da água, o curso do rio e todo o
ecossistema aquático.
Quando o solo está protegido pela foresta, devido ao pequeno escorrimento
superfcial de água, mesmo durante as chuvas o nívvel do rio permanece
praticamente inalterado. Também, em perívodos secos, o rio continua sendo
abastecido pela água das nascentes, de modo que sua vazão é mantida. Em
contraste, na área desmatada, nos perívodos secos você tem uma redução da
quantidade de água fuindo no rio, já que as nascentes estão com sua vazão
reduzida ou secaram de vez. Em casos extremos, o próprio rio pode secar em
perívodos secos, tornando-se intermitente — só tem água quando chove.
Conforme já mencionado, as árvores contribuem para a manutenção da
umidade relativa do ar, formação de nuvens e chuva pela evapotranspiração.
Além disso, absorvem a energia do sol usando-a na fotossívntese, e fazem sombra
no chão, refrescando o clima. Com o desmatamento, você perde essa
evapotranspiração, e passa a ter uma incidência do sol sobre o chão, o asfalto e
concreto, tudo isso levando a um clima muito mais quente e seco.
Observando esse quadro geral, chegamos à seguinte conclusão: em uma
situação natural, de foresta preservada, todos os elementos em conjunto
funcionam como um sistema para retenção, preservação da água no local. Em
contraste, num ambiente ocupado e alterado pela atuação humana, o local se
torna um sistema de drenagem da água — um sistema para mandar a água para
fora da área o mais rápido possívvel. É importante ressaltar que, quando a água da
enxurrada desce rio a baixo, ela já está a caminho do mar e, portanto, na prática
você já perdeu essa água. No dia seguinte, ela não estará mais ali — terá ido
embora sem desempenhar nenhuma de suas vitais funções no ambiente local.
Portanto, o desmatamento causa uma diminuição da água no local e na região.
Aív, o homem precisa de água. E onde ele vai buscar? Claro, vai buscar
onde é mais óbvio, onde ele sabe que tem água: no lençol freático (furando
poços), nas nascentes, rios e lagos. Assim, os recursos hívdricos sofrem

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

duplamente: não bastasse o homem causar o abaixamento do lençol freático,


ainda bombeia sua água, fazendo-o abaixar ainda mais; não bastasse o homem
causar o secamento de nascentes, ainda desvia a água das que restaram para seu
próprio uso; não bastasse o homem causar a redução no fuxo dos rios e nívvel de
lagos, ainda retira sua água para irrigação e abastecimento urbano, etc.

Assim, o homem segue furando poços cada vez mais fundos, em busca da
última gota de água. Nascentes secando por toda parte, rios desaparecendo.
Aquívferos profundos que levaram milhares de anos para se preencherem estão
sendo drenados rapidamente, gerando a crise hívdrica global discutida na Parte I.

Com chuva Sem chuva


Com floresta
Sem floresta

Efeitos do desmatamento sobre o ciclo das águas e o solo: redução


da penetração de água no solo, com abaixamento do lençol freático e
secamento de nascentes; erosão do solo e assoreamento do rio; grande
oscilação no nível do rio (baixo em dias secos, enchente quando chove);
redução da evapotranspiração, levando a redução do regime de chuvas.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

Cultivar a água

A aplicação dos princívpios da permacultura ao assunto água permite a


criação de um conjunto de princívpios especívfcos em relação ao seu manejo e
uso. São eles:
1. A chuva é a fonte primordial de água. Capte, armazene e utilize a água da
chuva.
2. Armazene a água o mais alto possívvel, faça-a percorrer o maior caminho
possívvel na propriedade, desempenhando o maior número de funções
benéfcas.
3. Use a água de forma consciente e econômica.
4. Promova a penetração de água no solo e a restauração do ciclo das águas.
5. Jamais polua qualquer corpo d'água.

Conforme já citado, quando usamos a água de forma irracional e


predatória, causamos a sua redução progressiva. Por isso, é essencial que
utilizemos esse recurso de forma racional e consciente.
A chuva é a fonte primordial de água e, no entanto, é geralmente
negligenciada ou ignorada, o que é um grave erro. A chuva é fonte abundante de
água de boa qualidade, e de fato todas as outras fontes de água doce (nascentes,
rios, lagos, poços) são abastecidas pela chuva. A aparente necessidade de lançar
mão de outras fontes de água que não a chuva normalmente só ocorre quando o
indivívduo não fez seu dever de casa, ou seja, não está captando, armazenando ou
utilizando adequadamente a água da chuva.
Quando captamos e utilizamos a água da chuva, estamos aumentando sua
permanência no local — uma água que seria normalmente perdida, escorrida
para fora da propriedade — e fazendo-a desempenhar funções produtivas,
enquanto preservamos os outros recursos hívdricos e os ecossistemas aquáticos.
Ao reciclarmos a água, damos-lhe múltiplos usos, economizando-a. Por
exemplo, a água com sabão da lavagem de roupas pode ser usada para lavar o
chão; a água do enxágue pode ser guardada e usada para a lavagem das próximas
roupas. A água do banho e da lavagem de louça pode ser coletada em bacias e
usada para regar o jardim e horta, etc. O destino fnal da água deve ser sempre o
solo, na forma de irrigação e ferti-irrigação, cumprindo assim algumas de suas
funções vitais, mantendo a umidade do solo, fomentando a vida e produção.
Ao favorecermos a penetração da água no solo, estamos garantindo o
abastecimento do lençol freático e a permanência das nascentes. Isso pode ser
conseguido, em primeiro lugar, através da preservação de forestas, mas também
fazendo reforestamentos e estabelecimento de agroforestas, etc. Além de
aumentar a penetração da água no solo, isso ainda contribui com a preservação
do clima através do sombreamento e evapotranspiração. Ou seja, ao plantarmos
árvores estamos de fato contribuindo para a restauração do ciclo das águas.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

Também nas cidades, diversas estratégias podem ser usadas nesse sentido,
conforme será discutido mais adiante.
Isso tudo leva não apenas a uma preservação, mas de fato a um aumento da
quantidade e qualidade da água no local. Por isso dizemos que, em
permacultura, nós não apenas utilizamos a água — nós cultivamos a água.*
Para que se consiga um uso racional da água, devemos planejar
cuidadosamente nossos sistemas, visando o aproveitamento máximo desse
recurso, da forma mais efciente possívvel, evitando desperdívcios e gastos
desnecessários de energia. Para isso, é necessário um dimensionamento
adequado dos sistemas; planejá-los de forma que a água fua por gravidade,
reduzindo ou abolindo a necessidade de bombeamento e gasto energético e, por
fm, uma perfeita integração com os outros sistemas, potencializando os
benefívcios e evitando problemas como erosão, enchentes, etc.
A água é um recurso limitado, e a tendência é a situação piorar
progressivamente, devido às mudanças climáticas. Portanto, ao planejar nossos
sistemas, é necessário fazê-lo com um olho no futuro, preparando-se para um
cenário diferente, mais difívcil que o atual. Isso signifca instituir sistemas de
captação e armazenamento maiores do que seria necessário para suprir nossas
necessidades hoje, e também construir sistemas altamente efcientes e
econômicos em seu uso de água.

Água na Zona Rural

É muito comum a noção que uma propriedade rural só terá valor ou


utilidade se nela houver algum curso d'água, como rio, riacho, lago nascente.
Porém, essa visão é errônea e na verdade um tanto absurda. São raros os locais
no planeta onde haja uma grande abundância de nascentes e outros cursos
d'água, em grande proximidade. Assim sendo, insistir nessa ideia é o mesmo que
assumir que praticamente toda a superfívcie terrestre é imprópria para a ocupação
humana, ou para a produção de alimentos, etc.
Todos sabemos que água é essencial. O problema é que as pessoas só
conseguem ver a água olhando para baixo, esquecendo-se completamente da
fonte primordial de água: a chuva. Para ilustrar, tomemos o exemplo de um
terreno com área de um hectare, em um local de ívndice pluviométrico mediano,
de 800 mm/ano. Isso signifca que chovem, por ano, oito milhões de litros de
água limpa, de boa qualidade sobre esse terreno. Em muitos casos, cerca de
metade dessa água deixa o terreno na forma de escorrimento superfcial, ou seja,

* O conceito de cultivar a água, e água em permacultura em geral, é discutido de forma


aprofundada, brilhante e inspiradora no livro “Rainwater harvesting for drylands and
beyond”, de Brad Tancaster.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

é simplesmente perdida, sem cumprir qualquer função, quer para o homem, quer
para a natureza.
Assim, fca claro que o ponto crucial na questão do abastecimento de água
não é se há uma nascente ou rio no terreno ou não, e sim a captação e
armazenamento de água de chuva. Na imensa maioria dos casos, a água da chuva
seria plenamente sufciente para suprir todas as necessidades de uma propriedade
rural, bastando apenas que esse recurso fosse efcientemente captado e
armazenado, e utilizado de forma racional.
Há diversas estratégias possívveis para se captar, armazenar e utilizar a água
de chuva em situações rurais. As principais técnicas serão abordadas a seguir.

Lagoas artifciais

A principal forma de armazenamento superfcial de água de chuva em


propriedades rurais para usos diversos é na forma de lagoas artifciais. A ideia é
muito simples: coleta-se a água de escorrimento superfcial (i.e. a água que corre
sobre a superfívcie do solo durante chuvas fortes) através de drenos escavados no
solo, que a conduzem a um reservatório impermeável escavado na terra.
Lagoas artifciais são extremamente versáteis e incrivelmente úteis. Com
elas, pode-se armazenar volumes muito expressivos de água. Elas podem servir a
inúmeros propósitos, tais como abastecimento doméstico, irrigação, aquacultura,
criação de microclimas, paisagismo, recreação, fomento à vida selvagem, etc.

Escolha do local

A situação da lagoa dentro da propriedade e em relação à topografa do


local é de vital importância.
Um engano comum, quando se fala de lagoas artifciais, é a pessoa
imaginar que a lagoa será abastecida pela água da chuva que cai diretamente
sobre a lagoa. Mas não é assim que funciona! Claro que vai chover na lagoa, mas
deve-se ressaltar que a chuva que cai sobre lagoa representa uma fração irrisória
da captação de água, sendo que o importante é a captação da água de
escorrimento superfcial da área do terreno situada em nívveis superiores ao da
lagoa. Essa captação se faz com canais — curvas em desnível que conduzem essa
água até a lagoa. Por esse motivo, a lagoa nunca pode ser construívda no topo do
um morro, devendo ser deixada sempre uma área sufciente acima da lagoa para
permitir captação efetiva de água. Essa área de captação deve ser, sempre que
possívvel, forestada.
Porém, é importante ter uma lagoa alta o sufciente para permitir seu uso
por gravidade na maior área possívvel, permitindo o abastecimento da(s) casa(s),
irrigação e outros usos, sem necessidade de bombeamento. Essa lagoa mais alta
conterá água mais limpa, sendo indicada para os usos mais nobres, como

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

abastecimento de água para a casa. Claro que você pode ter mais lagoas, tantas
quantas quiser ou conseguir construir em seu terreno. As lagoas mais baixas
tendem a ter mais matéria orgânica e nutrientes, devido a contaminação oriunda
das criações de animais e plantações, sendo mais indicadas para produção, tanto
vegetal como de peixes, rãs, patos, etc. e também para irrigação.
Na escolha do local da construção da lagoa, deve-se levar em consideração
também outros fatores. Um deles é a topografa: locais mais ívngremes são
sempre muito mais complicados de se armazenar água. Locais com menos
inclinação são mais fáceis e seguros: com menos interferência na topografa, e a
um custo muito menor, você conseguirá construir lagoas muito maiores, com
muito mais capacidade, evitando também riscos de rupturas e desmoronamentos.
Locais rochosos devem ser sempre que possívvel evitados, por motivos óbvios.
Outro fator a ser considerado é o grau de vegetação arbórea do local: deve-se,
sempre que possívvel, dar preferência a locais que já tenham clareiras, de forma
que você não tenha que cortar árvores para construir a lagoa.

Tamanho da lagoa

A lagoa pode ter praticamente qualquer tamanho, mas tem que comportar
um volume sufciente de água para suprir as suas necessidades. Não adianta ter
uma lagoa muito pequena que a água acabe no meio da estação seca! Também
tem que ser compatívvel com seu potencial de captação — não adianta ter uma
lagoa enorme que não enche nunca. Por isso, o tamanho da lagoa tem que ser
planejado cuidadosamente. Como ponto de partida, para um projeto em pequena
escala, em um terreno com uma área de 5.000 a 25.000 m 2, pode-se pensar em
lagoas com cerca de 10 a 25 metros de largura e 1 a 2 metros de profundidade,
com uma capacidade para 50 a 500 metros cúbicos, aproximadamente.

Construção da lagoa

Teoricamente, qualquer lagoa pode ser escavada à mão, com enxadões, pás
e carrinho de mão, etc. Porém, trata-se de um trabalho árduo e demorado. A não
ser que se trate de uma lagoa bem pequena, ou você tenha à sua disposição um
bom número de pessoas dispostas e motivadas e não tenha pressa, o mais
comum é escavar com maquinário pesado, como retroescavadeiras, pás
carregadeiras ou tratores de esteira.
Em locais bem planos, a escavação de uma lagoa produz grande quantidade
de terra, que pode ser usada para aterramentos, construção, fazer barreiras de
terra, ou simplesmente fazer um morro ao lado da lagoa, que pode criar um
efeito paisagívstico interessante, ou ajudar a criar um microclima, servindo como
barreira contra o vento, aumentando a sombra, retendo calor do sol, etc. Claro
que esses efeitos benéfcos dependem de seu posicionamento adequado, o que
por sua vez depende de planejamento cuidadoso. Já em locais de topografa

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

inclinada, a escavação da lagoa não gera nenhum excedente de terra. Isso porque
a terra escavada deve ser depositada na margem inferior da lagoa e compactada,
formando a barragem que dará forma e capacidade à lagoa.
Lagoas de água de chuva devem ser rigorosamente impermeabilizadas, pois
qualquer perda por penetração da água ou vazamentos pode signifcar uma lagoa
vazia no meio da estação seca.
A forma mais simples e garantida de impermeabilizar uma lagoa é com a
instalação de uma lona plástica. Lonas plásticas são 100% impermeáveis, mas
são fotodegradáveis, o que signifca que, se fcarem expostas à radiação solar,
deterioram-se e rompem-se em questão de poucos anos. Porém, se protegidas do
sol, podem durar virtualmente para sempre. Por isso, a lona plástica deve
receber uma cobertura permanente de terra.
Antes da instalação da lona, o interior da lagoa deve ser adequadamente
preparado. As laterais devem ser feitas em “degraus”, com plataformas planas de
no mívnimo 20 cm de largura, e taludes com inclinação máxima de 45° e altura
de cerca de 45 cm. Esse formato é importante para permitir que a terra
permaneça sobre a lona, ao invés de escorrer toda para o fundo da lagoa na
primeira chuva forte.
O interior da lagoa
deve ser bem compactado
Degraus
45 cm de altura com soquetes ou mesmo
com os pés. Quaisquer
Plataformas tocos ou pedras devem ser
20 cm de largura cuidadosamente removi-
(mín.) dos, e a superfívcie interna
Inclinação dos taludes
45° (máx.) deve fcar bem lisa, para
evitar danos ou ruptura na
lona plástica.
Também, antes de se instalar a lona plástica, é necessário preparar o local
onde será construívdo o canal de entrada de água. Este é uma depressão na lateral
da lagoa em forma de canaleta, com dimensões e capacidade superiores às do
canal de captação. Como o próprio nome já diz, é por ele que a água entrará na
lagoa. O canal de entrada deve ser escavado cuidadosamente, mantendo-se o
padrão de degraus, e suas bordas devem ser elevadas para ajudar a confnar o
fuxo de entrada de água dentro do canal, mesmo em dias de chuva muito forte.
Preparado o interior da lagoa, procede-se à instalação da lona plástica. Há
tipos de lona especívfcos para impermeabilização de lagoas, muitas vezes
comercializados com o nome de “geomanta” que, embora apropriados para esse
fm, infelizmente costumam ser substancialmente caros. Como alternativa, pode-
se usar uma lona plástica de PEAD (polietileno de alta densidade) de 200 μm de
espessura, daquelas normalmente usadas para cobrir silos. Essas lonas custam

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

uma pequena fração do preço das geomantas e podem ser perfeitamente


efcientes, mas são mais frágeis e, por isso, requerem cuidado redobrado para
evitar rupturas, e proteção contra o sol. Além do custo, têm a vantagem de
serem mais fáceis de se obter e instalar, e de representarem um consumo
reduzido de plástico.
A lona deve cobrir todo o interior da lagoa, ultrapassando o limite das
margens e o topo da barragem em cerca de 50 cm. Muitas vezes não é possívvel
cobrir toda a lagoa com uma única lona plástica. Pode-se usar fta adesiva tipo
silver tape para fazer emendas, bem como reparos. Deve-se cuidar para que a
lona fque perfeitamente ajustada ao interior da lagoa.
A lona deve ser coberta com uma camada de terra de, no mívnimo, 10 cm
de espessura. Deve ser usado solo areno-argiloso, misturado com capim picado,
que ajuda a estabilizar a camada de terra, evitando que escorra. Pode ser
necessária a correção de acidez e fertilização da terra antes de usar para cobrir a
lona, pelo menos sua camada mais superfcial, para permitir o crescimento de
plantas dentro e fora da água, estabilizando defnitivamente a camada de terra
que protege a lona. As plantas aquáticas serão também importantes para a
criação e manutenção de um ecossistema aquático equilibrado e saudável,
melhorando a qualidade da água, permitindo a produção de peixes, rãs, etc. Isso
é vital para evitar a proliferação de mosquitos.
O canal de entrada de água na lagoa é um ponto crívtico. Ele deve ser
construívdo com pedras e argamassa de cimento (ou, alternativamente, manilhas,
canaletas de concreto, ferrocimento, etc.), de forma que comporte e conduza de
forma segura a água para dentro da lagoa, sem transbordar, evitando assim
qualquer erosão dentro da lagoa, com exposição da lona plástica.

Fluxo da
água

Canal de entrada

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

O excesso de água deve deixar a lagoa por um canal de saída ou dreno. O


canal de saívda é uma parte crucial de todo armazenamento de água de chuva, e
deve ser planejado, construívdo e mantido cuidadosamente.
Quando armazenamos água da chuva, nós captamos escorrimento
superfcial de uma grande área. Em chuvas fortes, isso pode causar a
concentração de grandes volumes de água, excedendo a capacidade de
armazenamento de nosso sistema, o que signifca que ele irá transbordar. Agora,
nós nunca podemos deixar que essa água “decida” por onde ela vai correr, pois
ela sempre decidirá correr pelo caminho mais curto, ou seja, pelas descidas mais
ívngremes, com imenso potencial de causar danos, especialmente na forma de
erosão, além de danifcar instalações, plantações, etc.
Para evitar esse tipo de problemas, devemos conduzir a água excedente de
forma suave através do terreno, até onde ela deve ir. Algumas pessoas pensam
logo em usar tubos, mas na maioria dos casos a melhor forma de conduzir essa
água é na superfívcie, através de curvas em desnívvel semelhantes às usadas para
captação da água. O posicionamento e construção do canal de saívda devem ser
orientados com uso de um nívvel de mangueira, para garantir que o ponto de
saívda da água seja realmente o ponto mais baixo da margem da lagoa, estando no
mívnimo uns 50 cm mais baixo que a altura da barragem (ou mais, no caso de
lagoas grandes). Isso é crucial para evitar que a água transborde por sobre a
barragem, o que causaria erosão e danos à barragem, e possivelmente até sua
ruptura, com graves consequências.
Os canais de saívda são feitos na forma de uma curva em desnívvel com caívda
de 1 a 2%, zigue-zagueando pelo terreno, conduzindo a água suavemente até a
próxima lagoa do sistema. Por fm, devem conduzir a água até uma “lagoa seca”,
não impermeabilizada, onde a água poderá penetrar, indo abastecer o lençol
freático.

Canais de captação

Conforme já citado, a captação é feita através de canais, na forma de


curvas em desnívvel que direcionam a água de escorrimento superfcial do solo
para dentro do reservatório (lagoa). A construção dos canais é simples:
começando do ponto de entrada de água na lagoa, você traça no terreno, usando
um nívvel de cavalete e estacas, uma linha sobre o solo com uma inclinação de 1 a
2%, com caívda para a lagoa. A linha formada pela união dos pontos (estacas)
marcará o local onde você deve escavar o canal. Você pode ter 2 canais,
formando os braços direito e esquerdo da sua captação, que trarão toda a água
de escorrimento superfcial da seção do morro acima dos canais, conduzindo-a à
lagoa. Os canais podem ser escavados com trator ou à mão, com enxadões.
Muitas vezes, você terá em seu terreno uma grota, uma depressão linear no
terreno escavada pela água da chuva onde se concentra o fuxo das enxurradas e,

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

portanto, sempre que chove passa por ali um enorme volume de água. Isso
representa claramente uma ótima oportunidade de captação de água. Porém, não
se deve nunca tentar represar a água na grota em si. Isso porque o local onde se
forma a grota é sempre a porção mais ívngreme do terreno, devendo ser evitado,
conforme já mencionado. Ao invés disso, você deve construir a lagoa num local
de topografa mais amena, e apenas um fosso de captação na grota (ou seja, uma
pequena escavação e uma parede reforçada com pedras, pneus, sacos de terra,
concreto, etc.), conduzindo essa água através de uma curva em desnívvel até a
lagoa conforme descrito acima.
Escave um pequeno fosso, talvez com 1,5 m de diâmetro por 1 m de
profundidade, ao fnal do canal de captação, logo antes da entrada na lagoa. Esse
fosso não deve ser impermeabilizado. Ele servirá para reter terra, areia, restos
vegetais ou quaisquer materiais carregados com a água, evitando que entrem e se
acumulem na lagoa. O fosso deve ser limpo periodicamente, com remoção dos
materiais retidos.
Canais de
captação

Fosso seco

Canal de entrada

Interior da lagoa

É difívcil determinar previamente com precisão o tamanho ideal dos canais


de captação, mas é bom não exagerar, pois um excesso de água trará problemas,
especialmente em dias de chuva forte. O ideal é que a lagoa se encha lentamente,
ao longo de várias chuvas, talvez levando alguns meses para o enchimento
completo. Por isso, é melhor começar com uma captação modesta e observar,
durante as chuvas, o fuxo da água, acompanhar o enchimento da lagoa, e
ampliar os canais, se necessário.
Terminada a construção da lagoa, plante grama ou de preferência várias
espécies herbáceas nativas do local na camada de terra que recobre a lona
plástica — as raívzes das plantas são a forma mais efetiva de fxar a terra no local,

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

evitando que escorra com as chuvas. Plante também plantas aquáticas, como
aguapés e taboas, etc., no interior da lagoa, uma vez que esteja cheia. Rãs e
pererecas virão espontaneamente habitar a lagoa, mas você também pode
introduzir peixes, pitus, etc. (falaremos um pouco sobre aquacultura no capívtulo
9, “Permacultura Rural”).
Agora, um detalhe muito importante de segurança: você deve cercar bem a
sua lagoa, com uma boa cerca de arame ou alambrado. Isso é vital para a
segurança das pessoas, pois sempre há riscos de afogamento, e também para
proteção da lagoa em si — você não vai querer um animal grande e pesado
como uma vaca ou cavalo entrando na sua lagoa, e danifcando a lona plástica
com seus cascos! Mesmo que você não tenha esses animais, é sempre possívvel
que alguém esqueça uma porteira aberta, ou os animais do seu vizinho
atravessem a cerca e entrem no seu terreno — esse tipo de ocorrência é
extremamente comum na zona rural. Por isso, cerque bem sua lagoa, e você
viverá muito mais tranquilo.
Por fm, plante árvores em volta da lagoa, para fazer sombra na água,
mantendo-a fresca e evitando evaporação excessiva, e dando um efeito
paisagívstico agradável. Em climas frios, plante árvores caducifólias no lado
ensolarado, permitindo que o sol aqueça a água no inverno.

Uma lagoa construída próximo à casa ou no caminho para ela


pode criar um efeito muito agradável

Séries de lagoas

Você pode e deve ter mais de uma lagoa na propriedade. De fato, pelo
princívpio da redundância, é sempre melhor ter duas ou mais lagoas menores do
que uma única lagoa enorme — assim, se você tiver algum problema com uma
lagoa, seu suprimento de água estará garantido.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

Começar construindo uma lagoa pequena para depois construir mais lagoas
traz ainda várias outras vantagens. Você terá água mais rápido, já que uma lagoa
menor é mais rápida de construir e encher. Com essa água, tudo fcará mais fácil:
construir, plantar e até construir as demais lagoas. Além disso, é melhor adquirir
experiência construindo lagoas menores — você irá se aperfeiçoando e tudo
fuirá melhor nas lagoas subsequentes. E o custo também é fracionado, o que é
uma grande vantagem. Por fm, você terá os benefívcios da lagoa espalhados pelo
terreno: a criação de microclimas favoráveis à produção, a possibilidade de
sistemas independentes de irrigação, e múltiplas oportunidades para dar usos
variados, como sistemas de aquacultura. Você também criará muitos pontos de
fomento à vida selvagem, fornecendo água, abrigo e alimento para animais
silvestres, aves migratórias, etc.
As diversas lagoas podem ser de formatos e tamanhos variados, de acordo
com a topografa e outras qualidades do terreno, como potencial de captação de
água, espaço disponívvel, etc.
A captação de água para essas múltiplas lagoas deve ser feita em série,
onde o excesso de água de uma lagoa mais alta fui para a próxima lagoa no
sistema (o canal de saívda de uma lagoa é um canal de captação da próxima lagoa
mais abaixo).

Direção do escorrimento superficial


da água da chuva
Canal de
captação

Canal de saída
Fosso seco

Tagoa artificial

Próxima lagoa

Lagoas em série: o excesso de água de uma lagoa fui para a próxima


lagoa mais abaixo.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

Cisternas subterrâneas

Outra forma possívvel de se armazenar água da chuva de escorrimento


superfcial é na forma de cisternas. Elas são econômicas em espaço e podem ser
especialmente vantajosas em projetos em pequena escala, onde a área talvez não
seja sufciente para uma lagoa. Também têm aplicação especial em locais de
clima muito árido, com estação seca muito prolongada, onde a evaporação
excessiva em uma lagoa poderia te deixar sem água.
Cisternas são reservatórios impermeáveis de água da chuva, normalmente
subterrâneos. Em sua forma mais comum, cisternas são abastecidas por água
coletada de telhados, mas a captação também pode ser feita a partir do
escorrimento superfcial do solo, através de curvas em desnívvel, como descrito
para as lagoas. O fosso seco continua sendo essencial para evitar o acúmulo de
sujidades grossas; a partir do fosso, a água entra em um cano que a leva até a
cisterna. A rota de saívda também deve ser planejada: do cano de escape, a água é
conduzida diretamente até a próxima cisterna, ou pelo terreno através de curvas
em desnívvel. Em caso de sistemas de captação relativamente pequenos, que não
gerem riscos, o excesso de água pode ser direcionado a uma área vegetada e não
muito ívngreme, onde possa ser absorvida ou correr sem causar erosão.
Os canos de entrada e saívda de água da cisterna devem ser guarnecidos
com telas fnas, metálicas ou de nylon, para evitar a proliferação de mosquitos e
também a entrada de pequenos animais, que morreriam na cisterna
contaminando a água.
Cisternas podem ser construívdas em praticamente qualquer tamanho.
Podem ser feitas de alvenaria ou materiais como plástico, fbra de vidro,
ferrocimento, etc. Elas podem ser vistas como grandes caixas d’água
subterrâneas, ou piscinas cobertas com laje.
A construção de uma cisterna grande de alvenaria é uma obra séria, e
requer mão de obra especializada, com experiência na construção de piscinas ou
outros reservatórios profundos. Se não tomadas as devidas medidas durante a
construção, como alicerce, colunas, reforços metálicos nas paredes,
impermeabilização, etc., com a pressão da água e movimentações do solo
surgirão rachaduras e vazamentos, problemas que podem ser de difívcil solução
depois.
Por serem subterrâneas, as cisternas mantêm a água sempre fresca.
Cisternas devem ser protegidas com coberturas rívgidas, preferencialmente de
concreto, como lajes. A água deve ser protegida da incidência de luz solar, para
evitar a proliferação de algas, mas deve haver uma abertura de acesso, com porta
ou tampa para possibilitar a manutenção e limpeza regular.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

Armazenamento de água no solo

Conforme já foi mencionado, é fundamental que façamos tudo o que


estiver ao nosso alcance para restaurar o ciclo das águas. Para isso, talvez o fator
mais essencial seja aumentar a penetração de água no solo.
O solo pode ser visto como o maior reservatório de água que se pode ter.
Claro que, uma vez na terra, a água não está mais visívvel ou disponívvel para
muitos de nossos usos. Porém, ela está lá, desempenhando suas funções de
forma natural, e portanto nos poupando de certos trabalhos. Por exemplo,
quando o solo está bastante úmido, por perívodos prolongados, isso diminui nosso
trabalho e consumo de água com irrigação. Além disso, sabemos que ao
restaurar o ciclo das águas estamos contribuindo ativamente para a manutenção e
aumento na quantidade e qualidade de água disponívvel para humanos e todas as
formas de vida, local e globalmente.
Há várias estratégias e técnicas que podem e devem ser utilizadas para
aumentar a penetração da água no solo. Todas essas técnicas têm, na verdade,
dupla função, pois além de favorecerem a penetração de água também ajudam
na prevenção e controle da erosão hívdrica do solo.

Reflorestamento

Certamente, a melhor forma de armazenar água no solo e preservar e


restaurar o ciclo das águas é protegendo e aumentando a cobertura vegetal
arbórea, ou seja, através da conservação de forestas e reforestamento.
A palavra reforestamento é muito bonita e suscita pensamentos positivos na
maioria das pessoas. É comum ver pessoas, muitas vezes tidas como heróis
populares locais, gabando-se de terem plantado milhares de mudas de árvores.
Porém, aqui é importante desmistifcar uma coisa: plantar mudas é fácil — o
difívcil é cuidar delas e garantir que se transformem em árvores!
Nos extremos, você tem duas situações tívpicas: de um lado, você tem uma
situação difívcil, de solo degradado, geralmente aquele local que foi desmatado há
bastante tempo e sofreu por décadas ou séculos com a agricultura insustentável;
e do outro lado, uma situação fácil, de solo ainda fértil, que foi desmatado
recentemente e ainda não foi completamente massacrado pelo homem.
Na prática, a diferença entre essas situações é a seguinte: no caso mais
fácil, tudo que você plantar, cresce. Também, se não plantar nada, cresce do
mesmo jeito! Pois a natureza tem grande potencial de se regenerar sozinha.
Então, basta deixar a área em paz que, naturalmente, daqui a uns 10 ou 20 anos,
você terá ali uma jovem foresta. No caso oposto, de uma situação difívcil, a
natureza já apanhou tanto do homem que seu potencial de autorregeneração está
seriamente comprometido — a fertilidade foi perdida, e você agora tem um solo
pobre, sem matéria orgânica ou nutrientes, e ressecado, compactado, lençol
freático esgotado, talvez problemas com salinização, etc. Não que essa área não

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

possa se recuperar sozinha, mas isso pode demorar séculos ou milênios. Quando
você tenta intervir nesse processo, por exemplo plantando mudas para acelerar a
recuperação, você vê que é muito difívcil e trabalhoso ter sucesso — suas mudas
têm uma grande difculdade de sobreviver e crescer, e se desenvolver, produzir,
etc. Claro que isso não signifca que essas áreas devam ser abandonadas, muito
pelo contrário, pois é justamente aív que está um dos maiores e mais belos
desafos da permacultura: atuar não apenas na conservação, mas também na
recuperação da natureza, e ao mesmo tempo suprir as necessidades humanas.
Técnicas e estratégias para estabelecer forestas e agroforestas serão
discutidas no capívtulo 9, “Permacultura Rural”.

Bacias em meia-olua

A bacia é uma concavidade escavada/construívda no solo ao redor de uma


planta, com capacidade para reter um certo volume de água. Esta técnica é
muito útil, e de fato essencial nas fases iniciais de vida das árvores (mudas),
sendo portanto vital para o sucesso em reforestamentos e estabelecimento de
agroforestas. A principal fnalidade das bacias é facilitar a rega e favorecer a
hidratação das plantas, pois elas retêm a água, possibilitando que penetre no solo
próximo à planta, atingindo assim as raívzes com máxima efciência. Em
contraste, se você não faz uma bacia ao redor da planta, quando você rega
geralmente a maior parte da água escorre para longe da sua planta, sem
benefciá-la — você gasta a água e o seu tempo, mas sua planta continua “com
sede”. Esse é um erro muito comum.
Sem bacia Com bacia

Água escorre Água fica

Agora, quando se faz uma bacia relativamente grande e em formato de


meia-lua, com braços de captação, ou seja, pequenas “lombadas” em desnívvel
que conduzem a água de escorrimento superfcial para o centro da bacia, ela
passa a funcionar também para concentrar ao redor da muda água da chuva. Se
usadas em larga escala, ou seja, em grande número, bacias em meia-lua podem

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

aumentar signifcativamente a penetração de água no solo, evitando que escorra


para fora do terreno, servindo portanto como estratégia de fxação de água no
local.
As bacias também
são muito benéfcas a
árvores adultas, podendo
ser mantidas em pomares
e agroforestas maduras.
Isso porque elas não
apenas aumentam a
hidratação do solo e das
plantas, mas também
favorecem a fxação e
penetração de nutrientes,
como os provenientes da
adubação, evitando que
sejam carreados pela
chuva e favorecendo sua
máxima disponibilidade
e utilização pelas plantas.
O tamanho da bacia
varia principalmente de acordo com o tamanho da planta. Para mudas de
árvores, uma bacia de cerca de 60 cm de largura e 10cm de profundidade, com
capacidade para cerca de 30 litros da água, pode ser sufciente. Para plantas
maiores, aumenta-se também o tamanho da bacia, para comportar até 100 ou
150 litros de água. O modo de construção das bacias será descrito no capívtulo 9,
“Permacultura Rural”.

Barreiras em curva de nível

Barreiras em curva de nívvel, também chamadas simplesmente de “curvas


de nívvel”, são uma técnica muito empregada para aumentar a penetração de água
da chuva no solo e prevenção da erosão. Elas podem ser aplicadas em qualquer
escala, desde um pequeno jardim no seu quintal até fazendas inteiras.
As curvas de nívvel são barreiras lineares que, como o nome já diz, são
construívdas em nívvel, ou seja, em uma dada barreira, todos os seus pontos estão
no mesmo nívvel. Essas barreiras retêm a água de escorrimento superfcial do
trecho do terreno acima, impedindo-a de continuar escorrendo e permitindo que
seja absorvida. Elas podem ser construívdas com ferramentas de mão como
enxadões e pás, especialmente em pequena escala, ou com maquinário pesado no
caso de grande escala, mas devem sempre ser planejadas e traçadas
cuidadosamente, utilizando instrumentos para garantir que sejam feitas
rigorosamente em nívvel (nunca “a olho”). Para pequenas escalas, pode-se usar

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

um nívvel de cavalete, pêndulo ou mangueira, enquanto em grandes escalas


prefere-se o uso de teodolitos.

Água retida

Penetração

A barreira em curva de nívvel é composta de duas partes: o corte (canal) e o


aterro, sendo que a terra proveniente da escavação do corte é usada para a
construção do aterro, imediatamente abaixo.

corte aterro

As dimensões das curvas de nívvel variam em função de diversos fatores:


• Escala. Por exemplo, em um jardim, você fará pequenas lombadas de um
palmo de largura e 10 cm de altura, enquanto em uma área grande as
curvas de nívvel poderão ter mais de 1 metro de altura e 3 metros de
largura).
• Tipo de solo. Solos argilosos drenam lentamente, e portanto requerem
barreiras maiores e mais frequentes, enquanto solos bem drenados
(arenosos) podem ter barreiras menores e mais espaçadas.
• Topografa. Quanto mais ívngreme o terreno, maior a altura e maior a
frequência das barreiras (ou seja, menor a distância entre elas).

É importante ressaltar que, embora úteis, as curvas de nívvel não substituem


a cobertura vegetal permanente para a estabilização do solo. Não há motivo para
pensar em destruir árvores por causa das curvas de nívvel — você pode construív-
las preservando todas as árvores, sem qualquer problema. Já a vegetação rasteira
será inevitavelmente destruívda no local onde será construívda a barreira, tanto o
canal como o aterro. Porém, com o tempo nova vegetação tende a se desenvolver

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

sobre as curvas de nívvel, o que é útil para a estabilização do aterro. A vegetação


e estrutura do solo no restante do terreno (fora das curvas de nívvel) devem ser
preservadas tanto quanto possívvel.

Terraços

Esta é uma técnica milenar, utilizada por povos em diversas regiões


montanhosas do mundo, especialmente no Sudeste Asiático e também pelos
Incas na América do Sul.
A técnica do terraceamento consiste em se construir séries de plataformas
em nívvel em um terreno inclinado. As plataformas causam uma redução da
velocidade da água de escorrimento superfcial da chuva, favorecendo sua
penetração no solo e atuando também na prevenção da erosão.
Esta é uma técnica que tem grande impacto ambiental inicial, por mover
grandes quantidades de terra e interferir com a estrutura do solo e a topografa.
Por isso, só deve ser utilizada em locais que não tenham uma cobertura vegetal
arbórea substancial (árvores isoladas podem ser contornadas, permitindo a
construção dos terraços). O solo fca muito susceptívvel à erosão no primeiro
momento, após a construção dos terraços. Sendo assim, para evitar problemas,
devem ser tomadas as medidas adequadas. Deve-se corrigir a acidez e adubar o
solo como um todo na área sendo terraceada, tanto os platôs como taludes, no
momento da construção dos terraços, para possibilitar o crescimento vegetal
rápido. Uma vez construívdos os terraços, deve-se plantar imediatamente espécies
vegetais rústicas e de rápido crescimento nos taludes para a estabilização dos
mesmos, evitando a erosão hívdrica. Nos platôs, pode-se iniciar o cultivo
imediatamente.
Assim como citado para as curvas de nívvel, também os terraços têm maior
efetividade quando associados a uma cobertura vegetal permanente, de
preferência arbórea. Isso é muito importante, especialmente na estabilização dos
taludes.

Inflitração

Terraços

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

Manejo de águas pluviais para controle da erosão

Como temos visto, ao promover a penetração da água no solo estamos


também prevenindo a erosão, e a maneira mais natural e efetiva de conseguir
isso é através da manutenção de uma cobertura vegetal permanente no solo.
Porém, há situações em que isso não é possívvel, e o caso mais tívpico são os
caminhos, carreadores e estradas de terra. Nesses locais, a pavimentação
utilizando materiais e técnicas permeáveis, que possibilitam a penetração da
água e ao mesmo tempo impedem a erosão, são a solução ideal. Porém, nem
sempre são viáveis economicamente.
Estradas de terra são extremamente susceptívveis à erosão, e tanto mais
quanto maior for a inclinação do terreno. De fato, algum grau de erosão em
estradas de terra é inevitável, e em locais de topografa acidentada, isso causa
sérios problemas. O problema mais óbvio do ponto de vista do usuário da
estrada é que, a cada chuva forte, criam-se fendas que comprometem a
trafegabilidade e segurança, enquanto do ponto de vista do gestor da via, o
problema mais óbvio são os custos de manutenção da estrada. Porém, do ponto
de vista ambiental, o problema são as enormes quantidades de terra que estão
sendo carreadas com a chuva e indo parar nas baixadas e rios, causando
assoreamento.
Para minimizar todos esses problemas, devem-se aplicar técnicas
adequadas de prevenção de erosão.

Bacias de infltração

As bacias de infltração, também chamadas de bacias de acumulação, são


covas escavadas ao lado das estradas, a intervalos variáveis conforme a
necessidade, para receber e reter a água de escorrimento superfcial da chuva.
Estradas são construívdas em perfl convexo para que a água escorra para
suas laterais. Isso reduz a erosão na área de rodagem da estrada, mas exacerba o
potencial de erosão nas laterais onde corre a enxurrada. Para minimizar a
erosão, deve-se impedir que essa água ganhe volume e velocidade, o que se
consegue escavando drenos que conduzem essa água para fora da estrada, para
dentro das bacias de infltração. As bacias então retêm a água, possibilitando sua
penetração no solo.
As bacias de infltração transformam problemas em soluções: a erosão na
estrada é reduzida e o assoreamento dos rios prevenido, e você tem um aumento
da penetração da água no lençol freático. A terra (areia e argila) proveniente da
erosão acumula-se nas bacias, o que implica na necessidade de manutenção
regular, ou seja, remoção dessa terra. Porém, mesmo isso tem um lado positivo:
essa terra pode ser usada para reparar a própria estrada, ou outros fns como
aterramento e bioconstrução.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

Por seu porte, as bacias devem ser vistas como reservatórios temporários
de água da chuva, e por isso devem contar com uma rota planejada de
transbordamento. O melhor é que essa água excedente seja conduzida para longe
da estrada, através de drenos em suave desnívvel (com uma caívda de cerca de 2%)
até uma área de topografa mais plana e bem vegetada, que possa absorver ou
lidar com essa água sem sofrer danos. Essa água também pode ser vista como
um recurso, pois ao trazê-la para dentro do seu terreno você tem um aumento da
água disponívvel, que pode ser usada para fns produtivos.

Lombadas

Dentro da propriedade, os caminhos mais ívngremes, que ligam as partes


altas às baixas, também são muito propensos à erosão, tornando-se canais de
enxurrada. Portanto, aqui também é necessário tomar medidas de prevenção da
erosão. Para isso, deve-se fazer obstáculos à passagem da água na forma de
lombadas — ao encontrar o obstáculo, a água é forçada a deixar o caminho,
passando à área vegetada ao lado, onde será absorvida ou escorrerá sem causar
erosão. Essa água desviada do caminho pode ser canalizada para fns produtivos:
pode-se, por exemplo, ligar a lombada a um dreno em suave desnívvel, levando
até a bacia de uma planta, seja uma muda, arbusto ou árvore, plantada próximo
ao caminho. Assim, você
previne a erosão e rega a
planta ao mesmo tempo!
As lombadas são
construívdas a intervalos
variáveis, talvez a cada 5 a
10 metros, de acordo com
o grau de inclinação do
terreno e propensão à
erosão, devendo o
tamanho e espaçamento
ser ajustado de acordo
com a necessidade
observada.

Água para a casa

Toda casa vem equipada com um ótimo sistema de captação de água de


chuva — o telhado. Telhados são sempre ótimas oportunidades de captar
grandes volumes de água de boa qualidade, e isso vale tanto para situações rurais
como urbanas. Se toda a chuva que cai sobre o telhado de uma casa ao longo do

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

ano fosse coletada e armazenada, essa água sozinha seria sufciente para suprir
todas as necessidades da casa e seus moradores, na maioria dos casos. Mesmo
que você tenha ótimas lagoas que possam fornecer água para a casa por
gravidade, ou que você confe na companhia de abastecimento de água da sua
cidade, não há desculpa para desperdiçar toda essa água que você ganha de
presente, literalmente do céu, todo ano.
Para captar água da chuva do telhado, você vai precisar instalar calhas, que
levarão a uma caixa d'água ou cisterna. Para começar, você pode simplesmente
colocar bombonas plásticas de 200 litros recebendo a água das calhas, ou mesmo
uma caixa d’água convencional, se tiver espaço na sua casa. Isso pode ser feito
sem complicação ou muitos custos, e você fcará surpreso com a facilidade com
que esses reservatórios se enchem, e com a qualidade da água — limpinha!
Provavelmente fcará perplexo: “como eu pude desperdiçar toda essa água a vida
toda?” Você descobrirá o prazer de usar essa água para molhar suas plantas,
lavar suas roupas e outros usos menos exigentes.
Porém, isso é só um começo mesmo, pois esses reservatórios improvisados
são muito pequenos perante o potencial de captação dos seus telhados. O que
normalmente acontece nessa situação é que, durante a estação chuvosa, seus
reservatórios se enchem muito rapidamente, a partir do que passam a
transbordar a cada chuva, ou seja, você estará perdendo a maior parte da água.
Com o fm das chuvas, você rapidamente acaba com aquele volume armazenado,
e seus reservatórios passarão todo o perívodo das secas vazios. Isso não é muito
racional ou efciente. Além disso, reservatórios instalados sobre o chão não são
muito convenientes para uso — você não vai querer fcar tirando a água com
baldes a vida toda.
Pelos princívpios da utilização da água, ela deve ser captada e armazenada o
mais alto possívvel, permitindo seu uso por gravidade. Porém, no caso da
captação de água da chuva do telhado de uma casa, para uso na própria casa,
isso geralmente não dá muito certo, pois os telhados muitas vezes não são altos o
sufciente, e além disso, fazer um reservatório de grande capacidade a mais de
dois metros de altura do solo apresenta inúmeros inconvenientes, como
difculdade de construção, alto custo, o grande espaço que ocupa, impacto
estético, etc.; portanto, temos que lançar mão de outras estratégias.
Em situações rurais, muitas vezes você tem um galpão ou garagem em um
nívvel acima do da casa — uma estrutura que tem um telhado grande, com boa
capacidade de captação de água de chuva, mas que consome pouca água. Nesses
casos, você pode armazenar essa água em uma cisterna no local, e usá-la por
gravidade para abastecimento da casa abaixo. E a água do telhado da casa, por
sua vez, pode ser usada por outra casa mais abaixo, talvez por um vizinho, ou
usada para irrigação, etc.
Em situações urbanas, devido principalmente à limitação de espaço,

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

normalmente a melhor estratégia é construir uma cisterna subterrânea, que pode


ser feita no quintal, ou mesmo debaixo da garagem. Uma cisterna com
capacidade para até uns 25 mil litros pode ser construívda, e permanecerá
invisívvel, e sem ocupar qualquer espaço! Instale uma bomba na cisterna, ligada a
um pequeno painel fotovoltaico e acionada por uma boia elétrica, para mandar a
água da cisterna até uma caixa d’água instalada no telhado. A cisterna deve ser
coberta com uma laje bem reforçada. Assim, você poderá guardar seu carro, ou
ter o seu jardim em cima da cisterna, sem qualquer problema.
Agora, há uma série de cuidados que devem ser observados para que a
água da chuva possa ser aproveitada sem causar problemas.
A cisterna deve ser bem construívda, como já mencionado, para ser
impermeável e resistente, para que suporte a pressão da água sem causar
rachaduras e vazamentos. Também deve ser muito bem fechada e protegida
contra a entrada de mosquitos.
A água da chuva pode apresentar variados graus de contaminação por
poeira e poluição do ar, mas principalmente sujidades acumuladas no telhado e
calhas. Por isso, a primeira água deve sempre ser separada, pois é a mais
carregada de contaminantes. Para tanto, deve-se instalar um sistema de
separação da primeira água. Esse sistema deve conter um elemento fltrante para
separar impurezas grossas, como folhas de árvores, penas e insetos; um
reservatório com tampa que vede bem, um respiro para permitir a saívda de ar,
uma torneira para retirar a
água, além das tubulações que Calha para caixa
d’água
conectam à calha e à cisterna.
O volume do reservatório
do sistema de separação da
primeira água deve ser
proporcional ao tamanho da
área do telhado, sendo Respiro
recomendada uma relação de
um litro para cada metro
quadrado de telhado. A água
acumulada no reservatório deve
ser escoada após a chuva,
permitindo o esvaziamento do
reservatório, deixando-o pronto
para funcionar na próxima
chuva. Mas isso não signifca Reservatório
que você tem que desperdiçar
Cisterna
essa água! Você também pode subterrânea
usá-la para os mais diversos
fns. Após um perívodo longo de
Bomba
estiagem, você perceberá que a

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

água da primeira chuva estará realmente suja, e ela só servirá mesmo para
irrigação. Mas, na estação chuvosa, com chuvas regulares, mesmo essa primeira
água será limpa o sufciente para outros usos, como limpeza geral e até lavagem
de roupas, bastando o bom senso na avaliação da qualidade da água (aspecto
lívmpido).
Devido ao fato da água no interior da cisterna ser totalmente protegida da
luz solar, ela normalmente não terá a tendência de desenvolver problemas como
crescimento de algas ou mau cheiro. Assim mesmo, como todo reservatório de
água, a cisterna deve ser limpa regularmente.
A água da chuva, desde que adequadamente captada e armazenada, pode
ser usada para todos os fns domésticos, inclusive para beber e cozinhar. Porém,
antes de ser usada para consumo humano, ela deve ser devidamente sanitizada
(e.g. fltragem, cloração).*

Água nas cidades

Nas cidades, a perturbação do ciclo das águas pela ação humana ocorre
com a máxima intensidade. Geralmente, mais de 90% da superfívcie do solo nos
centros urbanos é impermeabilizada, com casas, edifívcios e pavimentação
(asfalto e concreto), e hoje em dia não é difívcil encontrar locais com uma taxa de
impermeabilização próxima de 99%.
Os problemas decorrentes dessa impermeabilização são muitos. Nesse tipo
de cenário, obviamente pouquívssima água da chuva consegue penetrar no solo.
Desse jeito, como o lençol freático vai sobreviver? Dentro das cidades, em locais
onde há nascentes, elas são consideradas um problema (!!), empecilhos ao
desenvolvimento urbano, e por isso essas áreas são comumente aterradas,
drenadas, etc., enfm, destruívdas. As poucas nascentes que sobrevivem já vêm
com água poluívda, contaminada pesadamente pelos esgotos das milhares de
fossas sépticas e vazamentos de redes de esgotos, que penetram no solo até
atingirem o lençol freático. Os rios são transformados em canais de enxurrada e
esgotos. Por fm, são muitas vezes canalizados, estando portanto mortos e
sepultados.
A impermeabilização também signifca que praticamente toda a água da
chuva escorrerá pela superfívcie, o que em chuvas fortes causa enxurradas
violentas que causam enchentes, danos a propriedades, perdas de vidas e
transmissão de doenças de veiculação hívdrica, como leptospirose e cólera, além
das doenças transmitidas por mosquitos, como a dengue.
Além de todos esses problemas, a impermeabilização das cidades ainda as

* Rahman, S. et al. Sustainability of rainwater harvesting system in terms of water quality.


The Scientific World Journal. 2014.

122
Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

transforma em verdadeiras panelas de pressão, nas chamadas ilhas de calor. O


concreto, asfalto e metal da cidade absorvem a radiação solar, devolvendo-a na
forma de calor tanto para o ambiente interno como externo. Por isso, a
temperatura no centro das cidades pode ser até 10 °C mais alta que na periferia.
No verão, isso causa sérios problemas de desconforto térmico e aumento no
consumo de energia com ar condicionado, além de contribuir para o
aquecimento global.
Agora, todos esses problemas podem ser resolvidos ou minimizados,
através de um planejamento adequado do espaço urbano — um planejamento
que leve em consideração o solo, a água, as árvores e animais, enfm, a natureza,
e não apenas o crescimento e o lucro.

Aumento da permeabilidade

Reverter a impermeabilização do solo nas cidades é essencial para a


preservação dos recursos hívdricos. Isso pode ser alcançado através da adoção de
um conjunto de estratégias:
• Aumento da área de parques, praças e áreas verdes na cidade.
Obviamente, quanto maior a área não pavimentada, maior o potencial de
absorção de água da chuva. Nessas áreas, deve-se empregar as mesmas técnicas
de retenção de água de chuva apresentadas para a zona rural, como cobertura
vegetal arbórea permanente, ou seja, reforestamento urbano e, por que não,
agroforestas urbanas; curvas de nívvel, bacias de infltração, etc. Todas essas
técnicas são compatívveis com um paisagismo urbano belívssimo, harmonioso,
servindo de refúgio à vida selvagem e também à população urbana, para práticas
de recreação, esporte, relaxamento, etc. Além de preservar a água, o aumento do
verde nas cidades ainda as deixa mais bonitas e agradáveis, e ajuda enormemente
na melhoria da qualidade do ar e redução do calor.
Todos sabemos a diferença entre a sensação de caminhar dentro de um
bosque ou em um estacionamento descoberto, ou a diferença entre andar
descalço no verão ao meio-dia pisando no asfalto ou em um gramado. As plantas
reduzem a temperatura através de diversos mecanismos: fazem sombra, evitando
o aquecimento do solo, pavimento, etc.; absorvem a radiação solar para uso na
fotossívntese, e consomem calor no processo de evapotranspiração, causando uma
redução da temperatura.
A arborização urbana é ainda uma excelente oportunidade de preservação
de espécies nativas ameaçadas, que devem ser utilizadas preferencialmente.
• Aumento da permeabilidade dentro de cada lote, pelo aumento de áreas
ajardinadas nas casas e o resgate das hortas urbanas.
• Pavimentação permeável, pelos chamados pisos drenantes, como
elementos vazado de concreto, ou feitos a partir da reciclagem de pneus, etc.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

Pavimentos permeáveis são totalmente viáveis tanto em áreas privadas como nas
vias públicas, podendo ser usados não apenas em passeios e calçadas como
também na pavimentação das ruas.
• Aplicação de perfl coletor de água na arborização urbana, canteiros,
rotatórias etc. O perfl coletor de água signifca fazer as áreas permeáveis e
vegetadas em um nívvel mais baixo que o da rua, e com aberturas
estrategicamente planejadas na sarjeta, permitindo que a água de escorrimento
superfcial da chuva fua a partir da rua para dentro desses espaços. Isso funciona
de forma semelhante às bacias de infltração: a água acumulada nessas estruturas
será absorvida pelo solo, melhorando a hidratação das plantas, contribuindo para
o lenços freático, e ao mesmo tempo reduzindo o volume da enxurrada.

Rua com perfil coletor de água

Captar e utilizar água da chuva

Os sistemas descritos nas páginas anteriores, em “água para a casa”, são


totalmente aplicáveis em zonas urbanas, assim como na zona rural. E não
somente para casas, mas também, com as devidas adaptações, a prédios,
galpões, escolas, indústrias, etc. Quanto maior o telhado, maior seu potencial de
captação de água.
Estima-se que, em média, cerca de 25% da área das cidades seja ocupada
por telhados (podendo chegar a mais de 1/3 da área, em alguns locais). Se a água
da chuva fosse efcientemente coletada e armazenada de todos esses telhados, já
se teria uma redução signifcativa no volume das enxurradas nas vias públicas,
galerias de águas pluviais, rios, etc., o sufciente para prevenir muitas enchentes.
Além disso, pense em toda a economia de águas municipais! Isso signifcaria não
apenas grande economia, mas também menos impacto nos mananciais usados
para abastecimento urbano.

124
Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

Telhados verdes

Telhados verdes são coberturas em casas, prédios e outros edifívcios que


contém uma camada de terra e vegetação. Eles têm uma capacidade signifcativa
de retenção de água da chuva e devolução para a atmosfera por
evapotranspiração. Também ajudam a diminuir a poluição, reduzir as ilhas de
calor, favorecem a biodiversidade (especialmente avifauna, abelhas, etc.), além
de deixarem a cidade muito mais bonita. Eles também podem ser usados para
produzir alimentos (horta sobre o telhado!). Telhados verdes serão abordados em
mais detalhe no capívtulo 10, “A Habitação Permacultural”.

Proteção de cursos d’água

Nascentes são valiosívssimas, milagrosas fontes eternas de água pura, e


devem ser tratadas com o máximo respeito e reverência, inclusive e
especialmente nas cidades! Qualquer ser extraterrestre de inteligência altamente
desenvolvida fcaria chocado com o descaso, o desprezo com que tratamos as
nascentes na zona urbana, aterrando-as, canalizando-as, poluindo-as. Toda área
de nascente deveria ser tombada como patrimônio natural e, no local,
estabelecido um parque ou praça, devidamente arborizada para refetir o bioma
local — um verdadeiro santuário da água e da vida selvagem. Essa área de
preservação permanente deve ocupar um raio de pelo menos 50 metros ao redor
da nascente.*
Não apenas nascentes, mas também outros cursos d’água, como córregos,
rios e lagos, devem receber o mesmo tratamento. Séries de praças devem ser
construívdas ao longo do curso dos riachos e córregos, e parques lineares devem
ser instituívdos ao longo dos rios e ao redor de lagos. Esses parques lineares
passarão a funcionar como corredores ecológicos**, permitindo o fuxo de animais
(e, com eles, sementes, microrganismos, etc., ou seja, a biodiversidade em geral)
entre os parques, praças, rios e lagos em todas as partes da cidade e além,
conectando-se também com a zona rural, outras cidades, reservas naturais, etc.,
tendo portanto um signifcado profundo de preservação ambiental que vai muito
além da proteção da água.
Por fm, a pureza dos corpos d’água, subterrâneos e superfciais, deve ser
restaurada e mantida a qualquer custo. Esgotos devem ser totalmente segregados
de corpos d’água — coletados em tubulações rigorosamente impermeáveis, sem
vazamentos, e conduzidos até estações de tratamento. Mesmo após o tratamento,
os efuentes resultantes não devem ser lançados a corpos d’água, pois continuam

* Área de preservação permanente (APP) é definida como uma área com a função
ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a
biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das
populações humanas.
** Corredores ecológicos serão discutidos no capítulo 9, “Permacultura Rural”.

125
Parte II – A Alternativa da Permacultura 8. Água em Permacultura

substancialmente poluentes e, portanto, nocivos aos ecossistemas aquáticos. Ao


invés disso, devem ser bombeados e utilizados de forma segura para irrigação de
forestas plantadas, áreas de recuperação ambiental, produção madeireira ou
agroforestal (este assunto será discutido no capívtulo 11, “Saneamento
Ecológico”).
É preciso parar de achar normal que rios na cidade sejam poluívdos, sujos,
fétidos. Eles devem ser lívmpidos e cristalinos, envoltos por matas ciliares; cheios
de vida, peixes, aves aquáticas — locais para se apreciar, nadar, etc.

126
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

9
PERMACULTURA RURAL

A missão da permacultura é a provisão das necessidades humanas aliada à


preservação e restauração dos ambientes naturais e ecossistemas. Neste capívtulo,
discutiremos técnicas para a provisão de uma das necessidades mais essenciais à
vida humana: os alimentos.
Embora a permacultura se aplique a qualquer ambiente, é na zona rural que
a ela pode expressar seu potencial ao máximo, no desenvolvimento de um estilo
de vida saudável, autossufciente e realmente integrado de forma benigna à
natureza. É na zona rural que você terá espaço para captar milhares ou milhões
de litros de água da chuva, fazer reforestamentos em larga escala, recuperar
nascentes e produzir toneladas de alimentos, etc. Até mesmo coisas essenciais à
permacultura como saneamento ecológico são muitas vezes inviáveis em um
contexto urbano, por dependerem da adesão de toda a sociedade, enquanto
soluções individuais (e.g. banheiro seco) são limitadas pela simples falta de
espaço.
Vale lembrar que, em seus primórdios, a permacultura signifcava
agricultura permanente, e a produção de alimentos de forma sustentável e
ecologicamente equilibrada continua sendo seu principal aspecto, tanto pelo fato
de a alimentação ser essencial à vida humana, como por ser a agricultura
convencional a atividade humana mais impactante ao meio ambiente.
Aqui, a ideia é criar um oásis de fertilidade e abundância, onde alimentos,
água e outros recursos indispensáveis (como madeira, fbras, plantas medicinais

127
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

etc.) sejam produzidos e estejam disponívveis contívnua e permanentemente, tanto


para nós, humanos, como para as demais criaturas. Esse ideal pode ser atingido
através do uso racional dos recursos e disposição inteligente dos elementos, de
acordo com os princívpios da permacultura. Assim, os recursos naturais são
poupados e de fato aumentados, e alta produtividade vem acompanhada de uma
melhora progressiva da qualidade do solo, quantidade e qualidade da água,
biomassa e biodiversidade. Sabe aquela imagem do Jardim do Éden, onde você
estica um braço e colhe uma fruta aqui, estica o outro e colhe outra fruta, dá dois
passos e tropeça em algum legume... Pois é de algo mais ou menos assim que
estamos falando — de sistemas ricos, harmoniosos e automantenedores que,
uma vez estabelecidos, mantêm alta produtividade com muito pouco trabalho.
Essa visão contrasta gritantemente com a agricultura convencional, caracterizada
pela necessidade contívnua de trabalho intenso, pelos efeitos nocivos ao meio
ambiente, com redução da qualidade do solo e água, redução da biomassa e
biodiversidade (ou seja, supressão da vida em geral), alto consumo de recursos e
geração de poluição, etc. Por isso dizemos que em permacultura nós
trabalhamos com a natureza, e não contra ela.
Quando tratamos de sistemas produtivos em permacultura rural, é comum
nos depararmos com a pergunta: “qual a diferença entre agricultura orgânica e
permacultura?” A agricultura orgânica pode ser defnida como uma forma de
agricultura que não utiliza fertilizantes quívmicos, pesticidas, hormônios e outros
aditivos sintéticos, apoiando-se em técnicas como rotação de culturas, adubação
verde, compostagem e controle biológico de pragas para obter produtividade de
forma natural, minimizando impactos negativos à saúde humana e ao meio
ambiente. Ou seja, a agricultura orgânica é uma abordagem conservativa, ética,
naturalista à agricultura; já a permacultura é algo muito mais amplo, pois se
estende a todas as atividades humanas — habitação, saneamento, manejo de
resívduos, estilo de vida, relações sociais, etc.
Pode-se dizer que, no tocante à produção de alimentos, a permacultura
emprega basicamente as mesmas técnicas da agricultura orgânica. Porém,
mesmo aív há algumas diferenças. Por exemplo, muitos agricultores orgânicos não
estão preocupados se utilizam uma fonte de água para irrigação de forma
sustentável ou não, ou seja, talvez não captem a água da chuva e, ao invés disso,
abusem de recursos hívdricos como rios ou águas subterrâneas, ou consumam
muita energia para bombeamento, etc., sem ver nisso um problema. Ou talvez
importem recursos, como adubos orgânicos, a longas distâncias e a altos custos
energéticos e ambientais, ou exportem sua produção para regiões distantes, ou
empreguem embalagens excessivas, etc. Todas essas práticas são comuns no
universo da agricultura orgânica em geral, mas são consideradas reprováveis na
permacultura.
Por outro lado, há práticas que não são aceitas pela maioria das associações
certifcadoras de orgânicos, mas são consideradas importantes na permacultura,
como por exemplo o emprego de lodo de esgoto tratado como fertilizante, o que

128
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

é necessário para fechar o ciclo dos nutrientes, sem o que não pode haver
sustentabilidade.

Solos

Solos são a principal matriz produtora de alimentos para humanos,


portanto é essencial que tenhamos uma boa compreensão do que eles são e como
funcionam.
O solo é uma mistura complexa de elementos: uma matriz mineral
predominante, matéria orgânica, ar, água, microrganismos, etc. Ele representa o
substrato para a vida nos ecossistemas terrestres por fornecerem suporte (um
local para as raívzes se agarrarem, e as criaturas caminharem, etc.) e nutrientes.
Também são importantes reservatórios de água e um componente vital do ciclo
das águas, conforme discutido no capívtulo anterior.
Grosseiramente, o solo pode ser dividido em duas camadas: o solo
superfcial e o solo profundo. O solo superfcial é a camada mais externa do solo,
normalmente com uma espessura de 5 a 20 cm. Esta é a camada que contém a
maior concentração de matéria orgânica, micro e macrorganismos e nutrientes
— é a porção do solo que mais fornece condições para o desenvolvimento de
vida, e portanto a de maior atividade biológica. Dessa forma, é essa a parte mais
vital do solo para a produção de alimentos. Devido à imensa variedade de
formas de vida que existem de forma inter-relacionada e interdependente, e por
suas caracterívsticas especiais, o solo superfcial deve ser visto como um
ecossistema à parte, e ainda assim indivisívvel do ecossistema terrestre “visívvel”,
acima da linha do solo.
Além de ser a fração do solo mais importante para a produção de
alimentos, a camada superfcial é também a mais delicada e susceptívvel à
destruição pela ação do homem, especialmente por práticas agrívcolas
insustentáveis.
Nossa discussão daqui para frente será focada no solo superfcial, ao qual
por simplicidade nos referiremos simplesmente por “solo”.

Como solos são formados

Posto de forma simples, solos formam-se a partir de um material original


rochoso, através da ação combinada de dois processos: intemperismo
(desintegração e decomposição através de processos fívsicos, quívmicos e
biológicos) e acumulação biológica de nutrientes.
Nutrientes minerais são substâncias quívmicas necessárias aos processos
biológicos em geral e, portanto, ao crescimento e funcionamento de todas as

129
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

formas de vida. Em geral, são contidos em concentrações pequenas em rochas e


outros materiais inorgânicos, e às vezes altamente concentrados em certos tipos
de minérios. Com a desintegração e decomposição das rochas por processos
fívsicos e quívmicos, como desgaste, erosão eólica, choque térmico, oxidação,
redução, hidrólise, etc., esses nutrientes são liberados, passando a alguma forma
solúvel ou de outro modo disponívvel para microrganismos, plantas e animais,
que os absorvem e utilizam em seu metabolismo. Desta forma, os nutrientes que
passaram uma eternidade aprisionados em rochas são “liberados” e
subsequentemente capturados pela “malha da vida”. A partir daív, esses nutrientes
passam a ser permanentemente reciclados na biosfera: animais herbívvoros se
alimentam de plantas; carnívvoros se alimentam dos herbívvoros; detritívvoros e
microrganismos se alimentam de excrementos e partes mortas em decomposição
de outros organismos, devolvendo os nutrientes ao solo, de onde passam a ser
absorvidos novamente pelas plantas, reiniciando o ciclo.
Enquanto os elementos necessários (nutrientes) são fxados na malha da
vida, outras substâncias também originárias do material original rochoso mas
desnecessárias ou excessivas para os organismos vivos vão sendo lentamente
dispersados para fora dessa zona mais ativa da biosfera terrestre, carreados pelo
vento, lavados pela chuva, ou lixiviados através do solo, etc. Com esse processo
ocorrendo de forma contívnua ao longo das eras, as substâncias essenciais
(nutrientes) vão sendo acumuladas na biosfera terrestre, permitindo a expressão
máxima da vida no local. É através desse processo que o solo superfcial de uma
foresta, por exemplo, acumula enorme fertilidade, que sustenta e é sustentada
pela foresta e todos os organismos ali presentes, de forma contívnua, por milhões
ou mesmo bilhões de anos.

Como os solos são destruídos pela agricultura

Pelo que discutimos acima, sobre como os solos são formados, deve ter
fcado clara uma coisa: a fertilidade não está no solo, e sim na biomassa do solo.
Claro que a biomassa também faz parte do solo, mas o que isso quer dizer é que
os nutrientes não estão simplesmente presentes ali, soltos, de forma solúvel na
matriz mineral do solo. Se você separar a biomassa (matéria orgânica) da matriz
mineral do solo de uma foresta, os nutrientes estarão na primeira, e não na
última.
A construção da fertilidade do solo pelo processo de acumulação biológica
de nutrientes ocorre de maneira tão mais efciente quanto maior for a densidade
e diversidade das formas de vida no local. Isso porque diferentes espécies têm
diferentes necessidades nutricionais e, portanto, diferentes habilidades de
absorção e utilização, resultando em fxação de nutrientes. Deste modo, estando
inúmeras espécies diferentes todas juntas e em alta densidade, todos os
nutrientes serão efcientemente fxados e acumulados no ecossistema terrestre.
Em outras palavras, a fertilidade do solo depende da manutenção de alta

130
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

atividade biológica, ou seja, de vida no solo e no ecossistema terrestre.


O homem destrói a fertilidade dos solos justamente por interferir
negativamente com todos os fatores essenciais à manutenção da vida e
fertilidade, especialmente através das práticas agrívcolas.
Cobertura
Ao derrubar forestas e instituir plantações e pastagens, estamos eliminando
a proteção que as árvores e a vegetação perene em geral ofereciam ao solo.
Conforme já discutido, na foresta o solo está totalmente protegido da ação
direta do sol, do impacto da chuva, do efeito ressecante e erosivo do vento, etc.,
além do fato da foresta favorecer a máxima penetração da água da chuva. Com a
retirada da densa e permanente cobertura vegetal da foresta, o solo passa a
absorver bem menos água, e perdê-la bem mais, por escorrimento superfcial e
evaporação direta da superfívcie, levando a uma redução dramática no nívvel de
hidratação do solo que impacta todas as formas de vida. A ação direta do vento,
o impacto das gotas de chuva e especialmente o escorrimento superfcial também
passam a causar erosão, processo onde o solo superfcial rico em nutrientes é
literalmente arrancado da área, sobrando apenas o solo mais profundo, estéril.
Estrutura
O solo não é apenas um amontoado de terra e matéria orgânica — pelo
contrário, ele tem uma estrutura especívfca, saudável, que possibilita sua máxima
fertilidade e vida. Essa estrutura inclui principalmente dois fatores: o
emaranhado de raívzes de plantas, vivas e mortas, que dão enorme sustentação e
estabilidade à terra e às formas de vida ali presentes (agregação), e a adequada
porosidade, que permite a aeração e, portanto, respiração e penetração de água
da chuva. Agora, na agricultura convencional, as práticas da aração e gradagem
destroem totalmente essa estrutura. Com isso, expõem-se as verdadeiras
entranhas da terra à ação impiedosa do sol, do vento e da chuva, levando
invariavelmente a uma mortandade em massa dos organismos do solo, com uma
redução brutal e quase instantânea da sua biomassa e biodiversidade a cada
tratamento, além de um enorme aumento na susceptibilidade à erosão
Outro fator que afeta a estrutura do solo é a compactação, que ocorre
devido à aração e gradagem, tráfego de maquinário agrívcola e particularmente
pelo pisoteio pelo gado. A compactação reduz a porosidade da interface entre o
solo e o ar, reduzindo as trocas gasosas e asfxiando o solo, reduzindo também a
penetração de água, comprometendo portanto a hidratação e aumentando a
tendência a erosão.
Vida
A perda de solo superfcial e, portanto, da fertilidade devida à erosão
dispensa maiores explicações. Esse fator isoladamente é um dos principais

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

causadores da perda de nutrientes e desertifcação ao redor do mundo. Agora,


cada um dos outros eventos que causam morte de macro e microrganismos do
solo também contribui para a perda progressiva da fertilidade. Cada vez que
você resseca o solo, ou o revolve, ou aplica pesticidas, etc. você tem uma
mortandade em massa dos organismos do solo — plantas, animais, fungos,
microrganismos. Como sabemos, num ecossistema equilibrado e estável, há
muito poucos nutrientes disponívveis de forma solta, solúvel no solo — os
nutrientes estão aprisionados dentro dos “corpos” dos organismos ali presentes, e
há uma competição intensa por esses nutrientes. Cada vez que um nutriente é
liberado, por exemplo quando uma célula morre e se rompe, há sempre outros
organismos ali presentes, seja uma bactéria ou fungo, ou a raiz de uma planta,
etc. para absorver esse nutriente o mais rápido possívvel antes que outro
organismo o faça. Protegidos dentro da biomassa, os nutrientes do solo estão de
fato fxados no local — a chuva passa, penetra e segue pura rumo ao lençol
freático, e os nutrientes permanecem ali.
Agora, quando você tem uma abrupta redução na biomassa, com
mortalidade dos organismos do solo e ruptura de suas células, o que acontece é a
liberação repentina dos nutrientes ali presentes, sem que haja organismos vivos
sufcientes para absorverem esses nutrientes que fcam, portanto, soltos no solo
de forma solúvel. Ora, o que acontecerá com esses nutrientes? A tendência é eles
serem absorvidos novamente com a multiplicação dos organismos do solo, no
processo de reparação natural, ou na produção agrívcola. Porém, nesse intervalo
de tempo em que eles estão solúveis, fcam totalmente susceptívveis a serem
lavados a cada chuva, perdendo-se por escorrimento superfcial ou por lixiviação,
ou seja, penetrando no solo junto com a água da chuva e indo parar no lençol
freático, e depois nos rios através das nascentes, deixando, portanto, o solo e a
área, sendo levados para longe, de forma defnitiva.
E é assim, pela combinação desses fatores, que a agricultura vem
destruindo a fertilidade dos solos e causando a desertifcação do planeta! Agora,
todos esses nutrientes vão sendo carregados pelos rios e levados até os mares e
oceanos, onde se acumulam, causando também enormes danos aos ecossistemas.
A poluição dos ecossistemas aquáticos por nutrientes do solo causa seu
desbalanço quívmico e eutrofzação, ou seja, crescimento explosivo de algas
aquáticas, que consomem excessivamente o oxigênio dissolvido na água e
liberam toxinas, causando a morte de peixes e outros organismos aquáticos,
fenômeno que vem causando a erosão da biodiversidade aquática, extinção de
inúmeras espécies, colapso de reservas pesqueiras, morte dos corais ao redor do
mundo, etc. A redução na biomassa do solo também implica na liberação do
carbono do solo à atmosfera, sendo a degradação dos solos um das principais
fontes de emissão de gases do efeito estufa na atmosfera, conforme já citado.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Preservação dos solos

Para a sustentabilidade é imprescindívvel que adotemos práticas que


preservem a fertilidade dos solos, e para isso é fundamental que não
continuemos cometendo os erros da agricultura convencional descritos acima.
Sendo assim, manter a cobertura vegetal permanente, preservar a estrutura do
solo e, assim, sua umidade, biomassa e biodiversidade são os elementos centrais
de nossa estratégia de conservação do solo.
As principais técnicas de preservação do solo serão descritas a seguir.

Agroflorestas
Agroforestas podem ser vistas como ecossistemas forestais altamente
diversifcados, projetados por humanos em maior ou menor grau, em que além
de elementos (espécies) nativos da área em questão, são incluívdos, em
proporções relativamente elevadas, espécies particularmente úteis aos humanos,
como alimentos, madeiras, fbras, etc. Elas são sistemas altamente integrados
que imitam forestas naturais, cumprindo todas as funções e serviços ecológicos
de uma foresta natural, como preservação do solo, do ciclo das águas, do clima e
da biodiversidade, enquanto suprindo também as necessidades humanas.
Agroforestas têm enorme potencial para produzir diversos tipos de
alimentos para humanos, especialmente frutas, nozes, castanhas, raívzes, produtos
animais, etc. Porém, a maior parte da alimentação humana atualmente consiste
de grãos, especialmente cereais, realidade que nasceu juntamente com a
agricultura, há cerca de 10 mil anos. O problema é que grãos em geral são
culturas anuais, não perenes, e não são efcientemente produzidos em sistemas
agroforestais. Este impasse sugere que a transição para um estilo de vida
sustentável deve contemplar uma mudança nos hábitos alimentares, afastando-se
dos cereais e aumentando a importância de alimentos de espécies perenes, de
fácil produção agroforestal. Porém, isso talvez não seja possívvel ou viável em
todas as partes do mundo onde há humanos. Além disso, há que se considerar o
fato que mudanças grandes de paradigma, inclusive relacionado a hábitos
alimentares, levam tempo e requerem todo um processo de transição. Isso tudo
signifca que temos que ter também opções de práticas agrívcolas tão sustentáveis
quanto possívvel para a produção de grãos, e também hortaliças. Essas técnicas,
amplamente empregadas na agricultura orgânica e também na permacultura,
serão descritas a seguir.
Plantio direto
Chama-se de plantio direto a prática de plantio que dispensa o
revolvimento sistemático do solo (aração e gradagem) caracterívstico da
agricultura convencional. Com isso, evita-se a destruição da estrutura do solo,
evitando-se portanto a erosão, perda de matéria orgânica, preservando-se sua

133
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

aeração e capacidade de absorção de água, e sua fertilidade. A supressão vegetal


necessária ao plantio e para minimizar problemas de competição é feita de
forma mecânica (corte), acima do nívvel do solo, sem interferir com sua
estrutura. A aplicação de adubos também é feita sobre a superfívcie,
acompanhada de medidas para evitar perdas por escorrimento, favorecendo sua
penetração (por exemplo, construção de curvas de nívvel e aplicação de cobertura
vegetal morta).

Cobertura vegetal morta


Conforme já discutido, para que haja proteção da fertilidade do solo é
imprescindívvel que o mesmo esteja permanentemente protegido da ação
agressiva das intempéries. Em outras palavras, o solo nunca deve permanecer nu.
Porém, sempre que trabalhamos a terra, para plantar, por exemplo, algum grau
de supressão de vegetação é inevitável, até para evitar a competição feroz das
ervas espontâneas e permitir o crescimento de nossas plantas. Mas isso não
signifca que tenhamos que deixar o solo descoberto — pelo contrário, devemos
deixá-lo sempre protegido, e nesses casos o fazemos pela aplicação de matéria
vegetal (entre outras), como cobertura do solo.
Na agricultura convencional, restos culturais e plantas daninhas, após
arrancados, são geralmente desprezados, amontoados em algum canto ou mesmo
queimados, por serem considerados estorvos ao (mau) manejo do solo e das
plantações, à mecanização, etc. Porém, em qualquer agricultura sustentável,
esses restos vegetais devem ser aplicados ao solo para lhe servirem de cobertura.
Isso traz vários benefívcios:
• Proteção do solo contra as intempéries, prevenindo a erosão e protegendo a
biomassa e fertilidade.
• Aumento da absorção e redução da perda de água por evaporação,
ajudando a manter o solo mais úmido.
• Inibição da germinação de sementes e crescimento de plantas indesejáveis
(“ervas daninhas”) que poderiam comprometer o crescimento e produção
de suas plantas.
• Reciclagem de nutrientes, pois à medida que essa cobertura vegetal se
decompõe, os nutrientes são devolvidos ao solo de forma natural.
Uma coisa legal sobre a cobertura vegetal morta é que ela permite que você
transforme um problema em uma solução: o crescimento de plantas espontâneas
e ervas daninhas em geral signifca que você terá trabalho em cortá-las, mas
também signifca um suprimento contívnuo de cobertura vegetal morta de solo
para suas plantações.
Aparas de grama, restos de poda, restos culturais (e.g. palha de milho),
ervas daninhas, etc. são as principais fontes de cobertura do solo produzidas no

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

próprio terreno. Serragem e restos de madeira, provenientes de madeireiras,


marcenarias e construções, palha de arroz, etc. também são comumente
empregados.
Além de material vegetal, outros tipos de material podem ser usados para
cobertura do solo, cumprindo, se não todas, pelo menos algumas das funções
acima. Esses materiais incluem pedras, papelão, tecidos (cobertores, estofados e
roupas velhas), tapetes e carpetes, lonas e encerados de caminhão, toldos, etc.,
couros sintéticos (corino, courvin, napa), restos de plástico de cobertura de
silos, sacarias, etc., entulhos de construção, enfm, quaisquer materiais que
estejam disponívveis ou possam ser captados em sua área.
Os materiais sintéticos devem ser preferencialmente reciclados, mas em
alguns casos, onde não haja possibilidade de reciclagem e materiais mais
naturais não estejam disponívveis em quantidade sufciente, eles também podem
e devem ser usados como cobertura de solo, por cumprirem funções benéfcas
ao solo e plantas. Deve-se, porém, ter o cuidado de não usar produtos contendo
substâncias tóxicas e perigosas, como venenos, solventes, substâncias corrosivas
e metais pesados, além de objetos cortantes (e.g. cacos de vidro), materiais que
ofereçam risco de contaminação biológica, etc.

Rotação de culturas
Rotação de culturas signifca a alternação de culturas diferentes em um
dado local, ao invés de plantar sempre as mesmas coisas nos mesmos lugares. O
cultivo rotacionado traz duas vantagens principais:
• Preservação da fertilidade. Cada espécie vegetal utiliza com mais
intensidade um certo conjunto de nutrientes. Se você ocupa uma certa área
repetidamente com a mesma espécie vegetal (monocultura), acontecem
duas coisas: os nutrientes mais intensamente utilizados são depletados por
sua extração, e os demais nutrientes vão se perdendo por lixiviação, por
não estarem sendo utilizados e, portanto, retidos na biomassa. Ao alternar
culturas diferentes, evitam-se parcialmente esses efeitos. levando a uma
maior conservação dos nutrientes no solo.
• Redução na ocorrência de doenças e pragas. Nas monoculturas, a grande
densidade e repetitividade das mesmas espécies criam condições ideais
para a proliferação, propagação e perpetuação de agentes patogênicos
(fungos, vívrus, bactérias) e pragas (insetos, moluscos, etc.), que terão um
suprimento farto e contívnuo de seus alvos preferidos. Com a alternação de
culturas, quebra-se essa continuidade e, consequentemente, esses ciclos de
transmissão, e portanto você terá plantações mais saudáveis.

Plantio consorciado
O plantio consorciado consiste em cultivar duas ou mais espécies juntas, ou
seja, em grande proximidade, na mesma área e ao mesmo tempo. Um exemplo

135
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

clássico é o plantio de cereais ou gramívneas junto com leguminosas: por


exemplo, milho com feijão-guandu, pastagens com leucena, etc.
Esta técnica pode apresentar várias vantagens, sendo que a mais óbvia é
que você terá uma produção diversifcada. Muitas vezes, você terá uma
vantagem adicional, pelo princívpio das plantas companheiras, levando a um
aumento na produção. Por exemplo, uma leguminosa (feijão-guandu)
benefciando outra planta por fxar nitrogênio no solo. No caso de uma pastagem
consorciada de gramívnea com leguminosa, além da fxação de nitrogênio
aumentar a produtividade geral da pastagem, ela ainda fornece uma
suplementação proteica aos animais de pasto.
Outro benefívcio do plantio consorciado é que ele favorece a preservação da
fertilidade do solo, de forma semelhante ao que acontece na rotação de culturas:
plantas de espécies diferentes utilizam nutrientes de forma diferente, fxando
portanto esses nutrientes no ambiente de formas diferentes. Por isso, duas
espécies fxam nutrientes melhor do que apenas uma.

Adubação orgânica
Adubação orgânica signifca adicionar restos orgânicos ao solo para lhe
fornecer nutrientes. Na verdade, isso signifca fechar o ciclo dos nutrientes — o
que veio do solo deve voltar ao solo. Com isso, estamos não apenas adicionando
nutrientes, mas o estamos fazendo da forma mais estável possívvel, na forma de
matéria orgânica, ou seja, biomassa, encorajando sua atividade biológica, o que
garante que os nutrientes sejam fxados e continuamente reciclados no local, de
forma natural.
Os principais adubos orgânicos são resívduos de origem animal,
especialmente estrume, mas também outros produtos como penas, cascas de
ovos, conchas de moluscos, guano, etc., e composto orgânico, proveniente da
compostagem de lixo orgânico. Na verdade, alguns desses adubos, especialmente
estrumes animais, são universalmente utilizados, tanto pela agricultura orgânica
como pela industrial, já que seu valor como fertilizante é amplamente
reconhecido. Isso faz com que eles raramente sejam desperdiçados, e em muitas
situações são comercializados, adquirindo o status de commodities.
Os adubos orgânicos incluem ainda os excrementos humanos, seja na forma
de lodo de esgoto tratado, seja na forma de composto orgânico proveniente de
banheiros secos. Esse assunto será discutido em detalhes no capívtulo 11,
“Saneamento Ecológico”.

Adubação verde
Chama-se de adubação verde a prática de plantio consorciado de suas
plantações com diversas espécies de leguminosas, para que essas enriqueçam
nutricionalmente o solo com nitrogênio.
O nitrogênio é um dos principais macronutrientes necessários ao

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

desenvolvimento das plantas, e um nutriente limitante em muitos solos ao redor


do mundo. Embora seja o elemento mais abundante na atmosfera e no ar que
respiramos, as plantas em geral não conseguem absorvê-lo e utilizá-lo
diretamente por essa fonte, devendo estar presente em outras formas quívmicas
orgânicas e inorgânicas no solo para efetiva utilização pelas plantas como
nutriente.
Plantas da famívlia Fabaceae (leguminosas) têm em suas raívzes nódulos
contendo bactérias diazotrófcas (fxadoras de nitrogênio), especialmente do
gênero Rhizobium, que são capazes de fxar o nitrogênio atmosférico
transformando-o em formas quívmicas úteis às plantas, como amônia e
aminoácidos. A adubação verde consiste de plantarem-se espécies de plantas
leguminosas (por exemplo, crotalárias, guandu, mucuna, etc.) com o objetivo
especívfco de aumentar o teor de nitrogênio do solo, benefciando assim as
demais plantas que se deseja produzir. É uma forma natural, sustentável e
totalmente ecológica de fornecer nitrogênio às plantas, evitando os custos
econômicos e ambientais da adubação quívmica nitrogenada, a qual é feita
normalmente com ureia agrívcola, produzida a partir de combustívveis fósseis,
portanto de fontes insustentáveis, sendo ainda uma das principais causas de
poluição agrívcola das águas.
Para se obterem os melhores resultados, a prática mais comum consiste no
plantio sistemático das leguminosas que, após atingirem bom desenvolvimento,
são ceifadas — suas raívzes se decompõem, liberando o nitrogênio ali acumulado
que benefciará então as demais plantas, enquanto a parte aérea é usada como
cobertura vegetal morta. Assim, além de fornecer especifcamente o nitrogênio,
a adubação verde também traz todos os outros benefívcios da cobertura vegetal
morta, descritos acima.

Recuperação de solos degradados

Muito dano já foi feito, pois, conforme visto na Parte I, cerca de 80% dos
solos agrívcolas do mundo já estão degradados, e a cada dia a situação fca pior.
Portanto, faz parte da missão da permacultura atuar na restauração dos solos
degradados, ajudando na recuperação dos ecossistemas e garantindo que haverá
comida no futuro.
Para tanto, adotar as práticas descritas acima é imprescindívvel; porém, isso
só não será sufciente, pois trata-se de medidas preventivas, sendo necessárias
também medidas complementares de caráter curativo.
A recuperação da fertilidade do solo e dos ecossistemas em geral ocorre
naturalmente, mas ao longo de enormes perívodos de tempo, que vão de séculos a
milênios. Por isso, temos que empregar todas as técnicas disponívveis para
favorecer esse processo, para que ocorra no menor tempo possívvel. Além disso,
num cenário de exaustão de nutrientes do solo, quer in situ, quer nas reservas de

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

fertilizantes minerais e sintéticos, associado ao aumento da população que se


projeta ainda para este século, faz-se necessário buscar a produção sustentável de
alimentos também em solos degradados, de forma que eles produzam, ao mesmo
tempo que são recuperados.

Sequência natural
Dá se o nome de agricultura de sequência natural a práticas agrívcolas e de
manejo do solo, águas e meio ambiente em geral em que se imitam as sequências
de eventos que ocorrem no processo de regeneração natural de ecossistemas e
paisagens, tomando-se medidas para preservar e estimular esses processos para
que a regeneração ocorra no menor tempo possívvel, e que ao mesmo tempo se
consiga extrair a maior produtividade possívvel da área, de forma natural.
A agricultura de sequência natural emprega todas as técnicas e práticas
descritas até agora: fxação da água no terreno e favorecimento de sua penetração
para evitar erosão e perda de nutrientes, aumentar a hidratação do solo
favorecendo desenvolvimento de biomassa e preenchimento do lençol freático,
revertendo ainda problemas como a salinização do solo (que será discutida mais
adiante), e demais técnicas de preservação da fertilidade, como plantio direto,
cobertura vegetal morta do solo, adubação verde, etc.
Agora, em relação à produção vegetal, as áreas degradadas representam um
enorme desafo, pois os nutrientes não estão lá — foram perdidos, destruívdos,
removidos por anos de práticas agrívcolas insustentáveis. Muitas vezes, adubos
orgânicos não são disponívveis em quantidade sufciente na área, nem podem ser
trazidos de fora de forma economicamente viável ou ambientalmente
responsável. Mesmo a adubação verde nesses casos fca inviabilizada, por dois
motivos: primeiro porque as leguminosas fornecem nitrogênio apenas — elas
não produzem outros nutrientes e, portanto, poderiam resolver apenas parte do
problema. Além disso, elas também são plantas, que requerem nutrientes e um
ambiente propívcio para se desenvolverem. Em um solo severamente degradado,
sem nutrientes, ressecado, salinizado, etc., as espécies de leguminosas
comumente utilizadas em adubação verde também não crescerão, e portanto elas
sozinhas não poderão ajudar em nada.
A agricultura de sequência natural parte da observação de como a
regeneração ocorre na natureza. Geralmente, mesmo em áreas severamente
degradadas, alguma vegetação ainda consegue sobreviver e se desenvolver. São
as espécies pioneiras, que são extremamente rústicas e adaptadas a adversidades
como falta d’água, insolação intensa, solos pobres e ácidos ou salinos, etc. Se
uma área degradada é abandonada, essas espécies são as primeiras a se instalar,
e começam o longo trabalho de melhorar as condições do local, fxando os
nutrientes do solo, favorecendo a penetração de água, fornecendo sombreamento
parcial, fomentando a fauna, etc., tornando-o mais propívcio para outras espécies

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

— as secundárias — que são um pouco mais exigentes e sensívveis, mas uma vez
instaladas passarão também a agir, favorecendo outras espécies, e assim
progressivamente até a restauração da área a um nívvel semelhante ao original.
Na agricultura de sequência natural, procuramos focar sempre nessas
espécies que são adaptadas e portanto conseguem sobreviver e produzir no local.
As espécies espontâneas são valorizadas e encorajadas, e outras espécies com
potencial de serem úteis também são tentativamente introduzidas, visando obter
o máximo de cobertura vegetal e atividade biológica possívvel na área, atuando na
sua restauração.
Agora, pelos princívpios da permacultura, devemos obter um rendimento.
Por isso, sempre que possívvel, temos que introduzir espécies pioneiras que
produzam algo de interesse para nós, humanos, sejam alimentos, fbras,
madeiras, etc. que possamos utilizar ou vender para obter alguma renda tão logo
quanto possívvel, viabilizando assim nossa própria sobrevivência e o trabalho de
restauração da área. Conforme o processo de restauração evolui, podemos
passar a utilizar espécies cada vez mais produtivas e exigentes.
Uma questão importante é que, em uma área degradada, os recursos são
poucos e estão diluívdos, espalhados em uma larga área. Quando não for possívvel
aumentar esses recursos rapidamente através de sua importação (discutida a
seguir), é imprescindívvel que se concentrem os recursos para que se tenha
sucesso. Ou seja, ao invés de plantar coisas espalhadas por todo o terreno, você
deve criar focos, núcleos onde os recursos serão concentrados, possibilitando o
crescimento vegetal, a atividade biológica e a produção. O primeiro recurso a ser
concentrado é a água, com o uso das técnicas já descritas, como barreiras em
curvas de nívvel ou, principalmente, as bacias em meia-lua. Ao concentrar a água
da chuva na bacia, você terá ali uma umidade acima da média no terreno,
favorecendo o desenvolvimento vegetal. Além de água, essas estruturas
acumularão também matéria orgânica, nutrientes, sementes, detritos que servirão
de cobertura de solo, etc., dando as melhores condições possívveis para a
produção.
O melhor é fazer bacias amplas e rasas, com braços de captação longos que
captem chuva de uma grande seção do relevo e a infltrem em uma área que
comporte não apenas uma, mas algumas árvores — uma pequena moita. Isso
porque as plantas, ervas, arbustos e árvores, também se benefciam mutuamente
da proximidade umas com as outras — elas fornecem alguma sombra, evitando
o calor e evapotranspiração excessiva; mais plantas também mantêm o solo
melhor coberto, preservando melhor a umidade. Uma moita de plantas fornece
uma barreira contra o vento, etc., ou seja, também as plantas, unidas são mais
fortes!
A partir do estabelecimento consolidado da vegetação em um certo núcleo,
ele passa a ser capaz de se manter e tende a ir naturalmente se expandindo — as

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

condições do solo, como fertilidade, estrutura e umidade, vão melhorando


gradualmente, e ali forma-se um microclima mais favorável a plantas e animais,
etc. À medida que o núcleo se estabelece e cresce, você deve adaptar o sistema
de captação de água da chuva, favorecendo essa expansão. Quando tiver certeza
que o núcleo está estabelecido frmemente e já não precisa mais de ajuda, refaça
os sistemas de captação de água de chuva, direcionando-a para novos núcleos.
No longo prazo, conforme os núcleos crescem e outros são criados, eles tendem
a se aproximar e se fundir, e você terá enfm uma restauração da área por
completo.

Importação de recursos
Nos casos de defciência leve a moderada de nutrientes no solo, pode ser
possívvel ter uma produção substancial apenas utilizando as estratégias acima
descritas. Porém, em casos de degradação mais severa do solo, essas técnicas,
mesmo em conjunto, podem ser insufcientes para se ter qualquer produção em
um prazo razoável, inviabilizando seu projeto.
Uma das formas de saber a condição do seu solo é fazendo uma análise
laboratorial para determinar o teor de matéria orgânica, acidez e nívveis dos
principais nutrientes. Mas você não precisa fazer uma análise de solo de cara. O
problema de se partir logo de inívcio para uma análise do solo é que, tipicamente,
essas análises, sua interpretação e recomendações são feitas ou coordenadas por
agrônomos e outros técnicos que estão inseridos no paradigma da agricultura
industrial. Quando você faz uma análise, quase invariavelmente eles
recomendarão a aplicação em larga escala de adubos quívmicos, pois isso é o que
eles fazem. Porém, em muitas situações, isso pode não ser necessário, e você
poderia perfeitamente alcançar uma boa produção e recuperação da área
utilizando apenas técnicas naturais e orgânicas. Portanto, o mais indicado é
seguir os princívpios da permacultura: usar soluções pequenas e lentas, captar e
utilizar recursos naturais disponívveis e, enfm, utilizar tecnologias
apropriadamente, o que pode, sim, em muitos casos, incluir o emprego de
fertilizantes minerais.
Comece observando o que já está crescendo no seu local, pois isso dará
uma indicação da qualidade do solo. Pergunte aos vizinhos, antigos donos ou
moradores, pessoas que conheçam bem o terreno e a região, para obter
informações sobre o histórico de produção do terreno: o que era produzido, e
com que difculdade? O que não se conseguia produzir? Essas informações te
darão um bom ponto de partida na tomada de decisões.
Agora, será essencial você fazer seus próprios experimentos. Plante de tudo
que você quer, e veja o que acontece. Será que vai crescer bem? Se crescer bem,
ótimo. Caso o desempenho de suas plantas esteja abaixo do esperado, você terá
que ir tentando coisas diferentes, mudar isso ou aquilo: plantar em locais

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

diferentes no terreno, ou em épocas diferentes; plantar na sombra parcial, plantar


no sol pleno, regar mais, tentar um tipo diferente de cobertura de solo, focar
mais a adubação nesta ou naquela planta, etc. Porém, em alguns casos acabará
chegando à conclusão que não cresce praticamente nada, tipicamente num
terreno que já foi muito maltratado, cortado, queimado, arado, etc. por décadas,
às vezes séculos. Nesses casos, será necessário trazer recursos como nutrientes
de fontes externas.
Você deve lançar mão de todas as fontes de matéria orgânica e outras
fontes de nutrientes disponívveis na sua área: estrumes animais, restos da indústria
alimentívcia e agroindústria (farinha de ossos, cascas de ovo, torta de mamona,
etc.), restos de podas e aparas de grama trituradas, serragem de madeireiras e
marcenarias, palha de arroz, cinzas de origem vegetal, provenientes de olarias,
carvoarias, usinas de álcool, etc., composto municipal (da compostagem do lixo
orgânico urbano), lodo de esgoto tratado, etc., quando disponívveis. Porém, esses
recursos devem ser obtidos de forma consciente. O ideal é focar em recursos que
de outra forma seriam desperdiçados. Uma boa maneira de saber se eles seriam
desperdiçados é pelo preço: se for de graça, é sinal que não seria utilizado por
outros! Cinzas, serragem e restos de poda são recursos que são na maioria das
vezes obtidos sem custos — se você não os usar, eles serão simplesmente
jogados fora e acumulados como resívduos em algum lugar, se tornando um
problema ambiental. Por isso, seu uso traz um benefívcio duplo: baixo custo e
efeito ambiental positivo.
Em relação ao estrume, as situações variam bastante. Há locais em que ele
é vendido, alcançando altos preços; porém, em outros casos, você pode obter
grandes quantidades de graça, bastando você se oferecer para fazer a limpeza de
currais e estábulos em fazendas de gado, haras, hívpicas, granjas, etc.
Evite trazer materiais de locais longívnquos, evitando assim os custos
econômicos e ambientais relativos ao transporte.
Um recurso vital que geralmente é possívvel você trazer para o seu terreno
de graça é a água de enxurrada das estradas locais. Traga-a por curvas em
desnívvel, passando por uma ou mais bacias de infltração para separar o
sedimento (areia e argila), conduzindo então para dentro do seu terreno.
Tente resolver seu problema de fertilidade apenas com adubos orgânicos.
Porém, em alguns casos, dependendo do tipo e grau de degradação do seu solo e
da disponibilidade de adubos, pode ser que isso não seja sufciente e você tenha
que utilizar também fertilizantes minerais. Nesses casos, ao fazer suas escolhas,
procure sempre fazer uma análise global dos fatores envolvidos — não apenas os
requerimentos do seu solo e a questão de custos, mas também procure escolher
opções que tenham o melhor custo/benefívcio ambiental, ou seja, que além de
resolverem seu problema ainda tragam o maior benefívcio ambiental com o
menor dano associado possívvel.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Adubos quívmicos se dividem grosseiramente entre minerais e sintéticos. Os


minerais são geralmente oriundos de certos tipos de rochas ricas em
determinados nutrientes, que são trituradas e submetidas a um tratamento
quívmico (por exemplo, digestão por ácido) para liberação desses nutrientes.
Exemplos disso são o calcário agrívcola e o superfosfato simples. Já adubos
sintéticos são, como o próprio nome diz, sintetizados de forma artifcial em
indústrias quívmicas. O principal exemplo é a ureia agrívcola, usada como fonte de
nitrogênio, que é sintetizada a partir do gás natural.
O grande problema dos fertilizantes quívmicos é que, da forma
indiscriminada como são usados na agricultura industrial, associados à total
destruição da vegetação nativa, desnudamento e desestruturação do solo, etc.,
eles são rapidamente “lavados” do solo, especialmente por escorrimento
superfcial mas também por lixiviação, atingindo os cursos d’água onde causam
grande destruição nos ecossistemas, conforme já discutido. Sendo assim, eles
têm que ser reaplicados frequentemente, ou seja, são usados de forma
descartável, o que agrava ainda mais seus efeitos negativos.
Porém, não tem que ser assim! Quando os utilizamos em permacultura, o
fazemos de forma limitada e contida, associado a todas as práticas já descritas
de preservação do solo e da vegetação, e em conjunto com suplementação de
matéria orgânica. Dessa forma, os nutrientes são efetivamente fixados no local
na forma de biomassa, sendo a partir daív permanentemente reciclados. Ou seja,
você tem um benefívcio máximo de sua aplicação, associado a uma minimização
dos efeitos negativos. Os nutrientes trazidos e assim empregados são
incorporados de forma estável e permanente no solo e no agroecossistema.
Os adubos quívmicos nitrogenados são os de pior impacto ambiental, e os
mais dispensáveis, já que o nitrogênio pode ser efetivamente suplementado
através da adubação verde; portanto, esses jamais são usados em permacultura.
Já os adubos minerais podem ser utilizados, quando não for possívvel ou viável
alcançar produção apenas com alternativas orgânicas. Há que se ter em mente
que os fertilizantes minerais são oriundos de mineração e que sua extração causa
grande impacto ambiental no seu local de origem, e além disso são comumente
transportados por longas distâncias, ou seja, são produtos que têm um elevado
custo ambiental. Portanto, devem ser usados de forma criteriosa, e apenas nas
situações em que o benefívcio ambiental, na recuperação da sua área, vão
compensar esses custos.
Os nutrientes se dividem grosseiramente em macro e micronutrientes,
dependendo de seus requerimentos pelas plantas. Macronutrientes são o
nitrogênio, sódio, potássio, cálcio, magnésio e enxofre, enquanto micronutrientes
incluem boro, cobre, ferro, manganês, zinco, etc. Idealmente, o uso de
fertilizantes deve ser orientado de acordo com as necessidades do solo, conforme
resultado de análise laboratorial, evitando seu uso excessivo ou desbalanceado.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Particularidades dos trópicos úmidos

Em regiões tropicais úmidas, a abundância de sol, calor e umidade cria


uma situação ideal para alta produção. Porém, devido à pluviosidade elevada,
há a tendência de “lavagem” dos nutrientes (perda por lixiviação) do solo e seu
empobrecimento, geralmente levando também à acidifcação do solo, o que
prejudica enormemente as plantas, impedindo que se desenvolvam e produzam.
Muitas vezes, um terreno tem uma cobertura vegetal substancial, mas
quando você tenta plantar coisas ou estabelecer uma agroforesta, por exemplo,
toda muda que você planta morre ou, se não morre, tampouco se desenvolve.
Você faz uma análise do solo, e ela indica acidez elevada, e que os principais
nutrientes estão muito baixos, talvez 1/10 dos nívveis normais indicados para
produção agrívcola. Bom, isso explica porque suas plantas não crescem. Mas, por
que então há tantas outras plantas no terreno? A explicação é a seguinte: as
espécies de plantas variam quanto à sua tolerância à acidez, e exigência em
relação à concentração de nutrientes. Mesmo num solo degradado, ácido e
pobre, algumas espécies de plantas rústicas, altamente adaptadas a essas
condições, ali se desenvolvem formando toda uma comunidade vegetal. É o
inívcio do processo de regeneração do solo, que ocorrerá naturalmente, como já
discutido. Só que nessa fase inicial, somente aquelas espécies altamente
adaptadas e rústicas conseguem sobreviver e se desenvolver — o que
infelizmente não inclui seus abacateiros, mangueiras, mamoeiros e a maioria das
principais espécies produtoras de alimentos, madeiras, etc. Daív a necessidade de
tratamento ou correção do solo, para permitir que se tenha uma produção a
curto e médio prazo.
Em regiões úmidas, é comum encontrar solos ácidos e pobres em cálcio,
magnésio, potássio, etc. Isso porque os elementos catiônicos tendem a ser mais
solúveis, sendo lavados mais facilmente pela chuva, restando os elementos
aniônicos, o que leva a uma redução no pH do solo.
A acidez é um sério problema para o solo, o ecossistema e a produção. Ela
inibe o crescimento das plantas de diversas formas: interfere com a solubilidade
e disponibilidade dos nutrientes às plantas, fazendo com que eles não possam ser
utilizados. Também aumenta a solubilidade de elementos tóxicos, como o
alumívnio, que inibe o desenvolvimento das raívzes, impedindo o crescimento da
planta e comprometendo ainda mais a absorção de nutrientes.
A agricultura desencadeia o processo de acidifcação do solo por reduzir a
biomassa. Numa situação natural, conforme já discutido, os nutrientes estão
presos dentro da biomassa. Quando os organismos do ecossistema terrestre são
destruívdos pela agricultura e se decompõem, os nutrientes passam a ser expostos,
em forma solúvel no solo, permitindo então a perda dos nutrientes catiônicos por
lixiviação. Então, você tem um ciclo vicioso em que a destruição da biomassa
leva à perda de nutrientes e acidifcação, o que que por sua vez leva a mais perda
de biomassa, e assim por diante.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

A maioria das plantas prefere solos com um pH entre 6 e 7, embora haja


variações importantes em função da espécie e região. Abaixo dessa faixa, você já
começa a ter uma acidez tóxica para as plantas. Solos ácidos geralmente são
corrigidos com calcário dolomívtico, composto predominantemente por óxido de
cálcio e óxido de magnésio, que além de corrigirem a acidez do solo ainda são
fontes de cálcio e magnésio, dois importantes nutrientes, normalmente escassos
em solos degradados. Pode-se dizer que, em solos ácidos, a calagem é a
adubação mais importante, pois num pH ácido, não adianta nada adicionar
outros nutrientes, já que devido à acidez as plantas continuarão incapazes de
utilizá-los. Corrigindo-se a acidez do solo, elimina-se o alumívnio livre, ou seja, o
alumívnio continua lá, mas em forma insolúvel, inócua para as plantas. A
quantidade de calcário a ser utilizada deve ser orientada por análise de solo, mas
valores comuns giram em torno de 200 g por metro quadrado de solo, ou por
muda plantada.
O calcário agrívcola é oriundo de mineração e portanto traz um grande
custo ambiental embutido. Felizmente, há uma excelente alternativa, disponívvel
em muitos locais: cinzas de madeira. Cinzas de madeira são muito ricas em
cálcio, predominantemente nas formas de óxido e carbonato, tendo portanto
utilidade semelhante à do calcário na correção da acidez do solo. São ainda
ricas em magnésio e potássio, contém quantidades menores porém importantes
de fósforo, e praticamente todos os nutrientes necessários às plantas, com
exceção do nitrogênio e enxofre, que são vaporizados na combustão. Não é
surpresa que as cinzas contenham nutrientes de plantas, já que a madeira nada
mais é que material vegetal, portanto os nutrientes necessários ao crescimento
das árvores têm que estar lá! Cinzas podem ser obtidas em grande quantidade e
geralmente de graça em olarias e cerâmicas, carvoarias, indústrias de gesso,
indústrias de papel e celulose, usinas de álcool, etc. Nas cidades, pizzarias de
forno a lenha podem ser fontes de cinzas úteis à permacultura urbana. Como
regra geral, você usa uma quantidade de cinzas equivalente ao dobro da
quantidade que usaria de calcário, ou seja, cerca de meio quilo por metro
quadrado de solo ou por muda de árvore.

Particularidades dos trópicos semiáridos

Regiões áridas e semiáridas têm sido transformadas em grandes centros


produtores de alimentos e dado lugar ao crescimento de grandes e modernas
cidades, em muitas partes do mundo. Porém, esse aparente milagre operado
pela nossa civilização têm sido conseguido usando estratégias insustentáveis,
que incluem o desvio de cursos d’água por centenas de quilômetros e a
exploração intensa e irresponsável de aquívferos profundos. Isso traz graves
consequências ambientais: desviar água signifca que essa água passará a faltar
em outro lugar — por exemplo, o Lago Tulare e muitos outros lagos e pântanos

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

foram secos e seus ecossistemas totalmente destruívdos quando os cursos d’água


que os alimentavam foram desviados para uso na irrigação agrívcola e
abastecimento de cidades no Vale Central da Califórnia, nos Estados Unidos.
Além disso, causa enormes perdas de água por evaporação e penetração em
fraturas e outros defeitos do sistema de condução. A exploração de aquívferos
profundos, que levam milhares de anos para se preencher, está levando à sua
rápida exaustão, e o uso dessa água, geralmente com alto teor salino, para
irrigação está causando a salinização dos solos, tornando-os estéreis. Num
contexto de mudança climática, antecipa-se que os mananciais e aquedutos que
abastecem esses oásis artifciais estarão entre os primeiros a secar, enquanto os
aquívferos profundos já dão sinais claros de depleção, podendo suprir água por
apenas algumas décadas mais. A consequência inevitável disso é que toda essa
água suprida artifcialmente está com os dias contados, e quando esses recursos
faltarem num futuro próximo, isso trará o colapso de todas essas estruturas —
os desertos voltarão a ser desertos, as cidades terão que ser abandonadas, e
todos esses “avanços” serão perdidos, restando apenas os danos ambientais.
O principal erro está em trazer esse monte de água de forma artifcial e
insustentável, e fcar super empolgado com essa súbita abundância; as pessoas
perdem a noção e começam a abusar da água, por exemplo plantando coisas
que dependem de irrigação pesada, em um local de clima desértico. Isso logo
traz prosperidade econômica e crescimento populacional na área, o que causa
uma depleção progressiva e cada vez mais rápida desses recursos hívdricos,
levando ao seu colapso.
Nada disso signifca que seja impossívvel às pessoas viver e prosperar em
ambientes áridos. De fato, sociedades têm vivido em desertos por milhares de
anos, e ambientes áridos e semiáridos têm sido o berço de inúmeras
civilizações. São justamente essas sociedades que nos dão dois tipos de
exemplos: aquelas que usaram os recursos hívdricos de forma sustentável
persistiram e prosperaram por longas eras; em contraste, as que não o fzeram
acabaram por perecer, muitas vezes de forma abrupta, com o colapso de seus
sistemas de abastecimento de água. Esses velhos erros vêm sendo cometidos
atualmente em inúmeras partes do mundo, como o já citado Vale Central na
Califórnia, Israel e o Semiárido Nordestino, com consequências nefastas
previsívveis.*
Ambientes áridos e semiáridos são defnidos pela sua escassez de água, e é
preciso ter em mente que essa situação tende a piorar progressivamente num
contexto de mudança climática. Portanto, temos que instituir sistemas
altamente efcientes e econômicos no uso da água, a começar pela efetiva
captação, armazenamento e utilização da água da chuva, e escolha de espécies
adequadas ao clima.

* Este assunto é discutido de forma aprofundada e brilhante no livro “Colapso – como as


sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso”, de Jared Diamond.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Também aqui, assim como na zona tropical úmida, você tem uma grande
diferença entre terrenos férteis e degradados, e da mesma maneira, os férteis
devem ser preservados, e os degradados, recuperados. O desmatamento é, via
de regra, o fator desencadeador do processo de degradação, então a solução
passa necessariamente pelo reforestamento ou, de um ponto de vista mais
prático, o estabelecimento de agroforestas, para restaurar o equilívbrio da área.
Porém, como fazer para que as suas mudas sobrevivam, e cresçam e se
tornem árvores em condições tão adversas, de escassez hívdrica e um ambiente
particularmente hostil? Aqui, mais que em qualquer outro lugar, é necessário
empregar uma estratégia de concentração de recursos.
Focos
Conforme já discutimos acima, na agricultura de sequência natural, em
uma área difívcil ou severamente degradada não devemos tentar restaurar uma
grande extensão de uma vez, mas sim estabelecer núcleos ou focos com várias
plantas dispostas em proximidade, onde concentraremos nossas atenções e
esforços, e também os recursos. Isso é particularmente importante no caso de
climas áridos e semiáridos. É importante ressaltar que uma árvore sozinha não
será capaz de recuperar a pequena área que ocupa; mas, ao se criar um foco
mais amplo, com uma área maior, talvez de uns 10 metros de diâmetro, essa
área passa a ser gradualmente recuperada. A disposição das plantas em
proximidade nos focos ainda é importante para que elas se ajudem
mutuamente, aumentando a taxa de sobrevivência das plantas e a velocidade do
estabelecimento da vegetação naquele foco.
Água
Como aqui você tem uma estação chuvosa muito curta, com um volume
anual pequeno, e uma estação seca muito prolongada, é imprescindívvel que
você não meça esforços para captar e armazenar toda a água da chuva que for
possívvel. Isso poderá signifcar um custo substancial, mas valerá muito a pena.
Faça sistemas interligados de lagoas artifciais e grandes cisternas. Cisternas são
mais caras e geralmente têm menor capacidade, mas têm a vantagem que você
não terá perdas de água por evaporação. Um grande volume de água será muito
importante para manter suas plantas hidratadas e saudáveis através da irrigação
durante a estação seca, permitindo um estabelecimento dos núcleos muito mais
rapidamente.
Claro que você não contará apenas com a rega para hidratar o seu solo:
nos núcleos, você terá que usar a técnica da bacia em meia-lua — isso é
essencial. Em um terreno com pouca declividade, você pode fazer o núcleo
todo em apenas uma grande bacia, plana e rasa, e dentro dessa grande bacia,
cada muda de árvore terá também sua pequena bacia particular, para
possibilitar uma rega efciente na estação seca. Agora, em terrenos mais
inclinados, você deverá fazer várias bacias próximas umas das outras,

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

acompanhando o declive, ou seja, evitando grandes interferências na topografa.


Faça braços de captação de água da chuva longos, para concentrar bastante água
nos seus núcleos.
Você não terá que se preocupar com irrigação durante a estação chuvosa.
Porém, na longa estação seca, você terá que manter suas plantas regadas para
acelerar seu estabelecimento e o desenvolvimento de cobertura vegetal
permanente. Deve-se focar no uso de espécies arbóreas adaptadas às condições
climáticas locais e resistentes à falta de água, para que elas se desenvolvam o
mais rápido possívvel, passando a desempenhar o seu papel regenerador do
ambiente. Para aumentar a efciência no uso da água, você pode usar outras
estratégias como irrigação por gotejamento (nunca por aspersão!), mas o mais
vital mesmo é o uso de bacias para reter a água, e farta cobertura de solo para
evitar perdas por evaporação.
Cobertura do solo
É essencial prevenir a perda de umidade por evaporação a partir da
superfívcie do solo. Agora, aqui, você provavelmente não terá recursos para
manter toda a sua área coberta por matéria vegetal morta, pedras ou outros
materiais. Portanto, você terá que concentrar esses recursos nas bacias das suas
plantas, dentro dos focos.
Para manter o solo coberto, você deverá lançar mão de todos os recursos
que tiver disponívveis. Tipicamente, você terá uma escassez de matéria vegetal
no seu terreno, então terá que usar outros recursos. Se houver pedras no terreno,
essas devem ser ajuntadas e usadas para cobertura do solo nos seus focos, mas
elas raramente serão sufcientes. Então, geralmente você terá também que
importar recursos. As beiras de estradas geralmente são largamente poupadas
da degradação do solo e salinização excessiva, já que ali não é praticada
agricultura ou irrigação, e portanto geralmente têm crescimento vegetal
exuberante no perívodo das chuvas, passando a criar problemas de visibilidade
na estrada, escondendo a sinalização, curvas, etc. Isso gera a necessidade de
corte regular dessa vegetação, o que gera uma grande quantidade de matéria
vegetal morta, que você pode trazer para o seu terreno, normalmente sem
problemas. Outros materiais descartados, como madeiras, papelão, plásticos,
entulhos, etc., podem e devem ser empregados para garantir a mais efetiva
cobertura de solo possívvel, pelo menos até que se tenha uma produção sufciente
de matéria vegetal no próprio terreno para usar como cobertura vegetal morta
de solo, que é o natural e ideal. Com o estabelecimento dos seus focos, você
poderá começar a alargá-los e criar novos, expandindo a recuperação do solo
progressivamente, até cobrir toda a sua área.
Além da estratégia descrita acima, o uso de aditivos condicionadores do
solo pode ser útil ou mesmo necessário para o sucesso das suas árvores e,
consequentemente, de seu trabalho de recuperação do solo. Também aqui, a
adubação orgânica com esterco animal ou composto orgânico será muito

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

benéfca. Porém, diferentemente dos solos ácidos tívpicos de regiões chuvosas,


em solos alcalinos e salinizados (tívpicos de climas áridos) em geral não se indica
a aplicação de calcário agrívcola, e sim gesso agrívcola, composto essencialmente
de sulfato de cálcio. Além de fornecer cálcio e enxofre, o gesso aumenta a
capacidade de troca de cátions, reduzindo a toxicidade do sal e e alcalinidade, e
aumentando a efciência de absorção de nutrientes pela planta. O gesso agrívcola
é mais solúvel e penetra mais no solo que o calcário, e por isso se distribui bem
no perfl do solo, favorecendo o crescimento das raívzes e a absorção de água
pela planta. O gesso e adubo orgânico podem ser misturados à terra de
preenchimento das covas, no plantio das mudas. Técnicas de plantio serão
discutidas em mais detalhes mais adiante, neste capívtulo.

Salinização

Áreas semiáridas e áridas são muitas vezes caracterizadas por uma elevada
salinidade, ou seja, alta concentração de sais no solo e águas subterrâneas. Você
pode furar um poço e encontrar água, mas essa água muitas vezes será salobra.
A diferença é que nas áreas de alta pluviosidade o sal é continuamente “lavado”
do solo, sendo levado para fora da área através das nascentes e pelos rios até o
mar, já que não é um nutriente essencial para as plantas e, portanto, não é
especifcamente retido na malha da vida. Já nas regiões com baixo ívndice de
chuvas, esse processo não ocorre com a mesma intensidade, resultando em
nívveis mais elevados de sal no ambiente.
O problema da salinidade é muito mais comum em planívcies baixas.
Nessas áreas, a topografa plana não favorece a drenagem de água através de
nascentes e rios, como ocorre nas topografas acidentadas, ou seja, você tem
uma certa estagnação da água no local. Sendo assim, aquele processo de
lavagem contívnua dos sais para fora da área não ocorre de forma efciente,
resultando em sua acumulação no solo e lençol freático. Além disso,
diferentemente das áreas de topografa acidentada, onde o declive favorece o
escorrimento superfcial da água da chuva, em locais com topografa plana a
água naturalmente penetra no solo com grande efciência, com ou sem
vegetação. Portanto, aqui o lençol freático é preenchido, inevitavelmente.
Então, nessas áreas tipicamente você tem uma combinação de lençol freático
alto e salinidade.
O excesso de sal é tóxico às plantas, mas mesmo assim a zona semiárida
muitas vezes consegue desenvolver uma cobertura vegetal substancial. Isso
porque a própria vegetação atua na regulação da distribuição dos sais no perfl
do solo, impedindo que se concentrem nas camadas mais superfciais onde se
encontram a maior parte das raívzes. Agora, as atividades humanas,
especialmente o desmatamento e agricultura, causam um aumento progressivo
da concentração de sais na camada superfcial do solo, num processo chamado
de salinização, que então começa a comprometer a saúde e potencial produtivo

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

do solo, tornando-o estéril.


A vegetação atua de diversas formas para evitar a salinização. Ela aumenta
a penetração da água e ao mesmo tempo reduz a evaporação a partir da
superfívcie do solo, por mantê-lo coberto e sombreado. Esses dois fatores juntos
fazem com que que haja um fuxo predominante da água para baixo, movido
pela penetração e migração da água, e esse fuxo mantém os sais nas camadas
mais profundas do solo e lençol freático. Agora, as árvores atuam na
dessalinização do solo por outros importantes mecanismos: árvores nativas de
ambientes secos são caracterizadas por terem raívzes particularmente profundas,
especializadas na absorção de água. As árvores perdem umidade por
evapotranspiração a partir das folhas. Ou seja, elas “puxam” a umidade das
camadas profundas do solo para lançá-la na atmosfera a partir de suas copas.
Com isso, elas intensifcam o fuxo da umidade no solo para baixo, já que a
água entra por cima (penetração na superfívcie) e sai por baixo (absorção pelas
raívzes), sendo conduzida internamente pelo xilema das árvores até a copa, onde
haverá a evapotranspiração. Assim, pode-se dizer que as árvores funcionam
como verdadeiras “bombas dessalinizadoras” do solo. Não que elas removam ou
eliminem o sal, mas ajudam a mantê-lo nas camadas mais profundas do solo,
evitando portanto que se concentre na
camada mais superfcial onde causaria
maiores problemas. Por fm, árvores têm
uma taxa de evapotranspiração muito
mais elevada que vegetações rasteiras.
Por isso, são importantes para lançar para
a atmosfera o excesso de umidade
contido no lençol freático. Em áreas
baixas e bacias fechadas que carecem de
drenagem por escoamento, é comum o
acúmulo excessivo de água no solo,
fazendo com que o lençol freático fque
muito alto, ou seja, com o nívvel de
saturação de água muito próximo à
superfívcie. Trata-se de um paradoxo
interessante: o clima é árido ou
semiárido, mas você tem o solo cheio de
água! Isso pode parecer ótimo, e
realmente seria, se não fosse pelo fato
dessa água ser salobra. Um lençol freático
muito alto faz com que os sais migrem
por capilaridade, junto com a água,
acumulando-se na superfívcie do solo com Árvore como “bomba dessalinizadora”
muito mais intensidade, causando O equilíbrio do fluxo da água mantém os
problemas de salinização. As árvores, sais distribuídos no perfil do solo

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

através da evapotranspiração, consomem esse excesso de água, mantendo o


nívvel do lençol freático a uma distância segura da superfívcie do solo,
prevenindo a salinização.
Agora, a partir do momento que você desmata a área, você perde esse
importantívssimo serviço de dessalinização prestado pelas árvores e pela
vegetação em geral, causando uma elevação do nívvel do lençol freático e a
subida por capilaridade dos sais para as camadas mais superfciais da terra, até
que literalmente aforem na superfívcie, que em casos mais extremos fca coberta
com uma camada visívvel de sal. Esse processo é ainda agravado de forma aguda
pela irrigação com águas subterrâneas salobras, prática comum da agricultura
convencional, em que o sal, junto com a água, é lançado diretamente sobre o
solo superfcial — a água então evapora, sobrando só o sal. Devido a esse
processo, o sal passa a prejudicar as
plantas, primeiro as mais sensívveis à
salinidade, que vão morrendo, deixando
apenas as mais resistentes. No fnal, nem
mesmo as mais resistentes sobrevivem.
Vastas áreas do planeta estão sendo
desertifcadas desse modo.
Observe que, nesse tipo de situação, o
desmatamento interfere de maneira
diferente, porém ainda assim negativa, no
ciclo hidrológico e qualidade do solo. Se
nas topografas acidentadas as árvores
contribuem principalmente por
favorecerem a absorção de água pelo solo e
preenchimento do lençol freático, aqui, em Salinização
condições naturais, as árvores atuam na remoção por evapotranspiração do
excesso de água, prevenindo a elevação excessiva do nívvel do lençol freático e
favorecendo a distribuição dos sais no perfl do solo. Ou seja, a interação entre
a topografa, a pluviosidade e cobertura vegetal determina a altura do lençol
freático e a distribuição dos sais no solo através de um equilívbrio de forças
entre a quantidade de água que penetra e a quantidade que sai do solo, seja na
forma de nascentes ou por evapotranspiração.
Também neste caso, a restauração da vegetação arbórea é a melhor
solução para restaurar o potencial produtivo da área. Os objetivos são a
manutenção do nívvel do lençol freático a uma profundidade segura, restaurar o
equilívbrio hidrodinâmico no solo e prevenir a evaporação da superfívcie
(usando-se para isso técnicas de cobertura de solo). Inicialmente, deve-se
utilizar espécies adaptadas a condições de salinidade e alta umidade do solo, de
crescimento rápido e alta taxa de evapotranspiração, para fazer a biodrenagem

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

da área. Variedades selecionadas de eucaliptos estão entre as espécies mais


empregadas para esse fm. Gramívneas adaptadas a alta salinidade e alcalinidade
podem ser plantadas concomitantemente ao estabelecimento das árvores da
biodrenagem, possibilitando a criação de animais e retorno econômico.
Algumas espécies de árvores frutívferas (e.g. goiabeiras) também têm se
mostrado úteis já em fazes iniciais desse processo de recuperação, por
apresentarem boa tolerância às condições de alta salinidade, alcalinidade e
saturação do solo. Ou seja, mesmo o plantio para recuperação da área através
da biodrenagem pode e deve ser feito de forma diversifcada e integrada, na
forma de agroforestas. Uma vez conseguida a dessalinização, e feitas as
devidas correções e adubações, terá sido restaurado o potencial produtivo do
solo, possibilitando culturas mais exigentes.
A biodrenagem é a forma mais natural e efciente de resolver problemas
de salinidade e encharcamento do solo. Suas principais vantagens em relação
aos sistemas de drenagem artifciais (drenos subterrâneos e emissários) são:
baixo custo de implantação e manutenção; perenidade do sistema, e sua
consequente valorização ao invés de depreciação ao longo do tempo;
inexistência de emissários e de geração de efuentes; contribuição no sequestro
de carbono atmosférico na forma de biomassa, ajudando a combater o efeito
estufa; aumento da cobertura vegetal, fomentando a fauna; atua como quebra
vento em sistemas agroforestais, além de proporcionar renda adicional devido à
produção de madeira, lenha, carvão, frutos, etc. * Os sistemas de biodrenagem
atuam ainda na restauração do ciclo das águas: a evapotranspiração contribui
para uma melhora no clima, especialmente em locais semiáridos e áridos,
contribuindo para um aumento da umidade do ar, redução da amplitude térmica
(ou seja, melhora do conforto térmico tanto para humanos como para os
sistemas produtivos e ecossistema) e aumento do regime de chuvas — todos
importantívssimos serviços que sistemas artifciais de drenagem não prestam.
Agora, o estabelecimento das mudas para seu sistema de biodrenagem
encontrará um importante obstáculo inicial, que é o alto nívvel de salinidade no
solo que pode comprometer o estabelecimento de suas mudas. Para lidar com
esse problema, deve-se usar a abordagem de concentração de recursos,
especialmente água, adubos e cobertura de solo, conforme descrito acima.
Comece fazendo as bacias, em focos, com concentração da água da chuva e
cobertura morta de solo, para “lavar” o solo nas covas, por pelo menos uma
estação chuvosa, a partir do que você pode passar ao plantio das mudas. O
tratamento nas covas de plantio com gesso agrívcola e matéria orgânica (esterco
ou composto) conforme descrito acima também pode ser útil ou necessário para
o estabelecimento das mudas e árvores.

* Gheyi, H. R. et al. (eds.). Manejo da salinidade na agricultura: estudos básicos e


aplicados. 2010.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Zonas de proximidade e intensidade

Ao estabelecer um projeto de permacultura, nossos objetivos são


estabelecer um assentamento humano altamente sustentável e harmônico, muito
produtivo e que preserva e recupera a natureza e os ecossistemas, com
recuperação da fertilidade do solo, incremento da biodiversidade local e
biomassa. Devemos fazê-lo com alta efciência no uso de recursos, ou seja, sem
desperdívcio e sem gerar resívduos poluentes. Buscamos um alto grau de
independência e autossufciência. Além disso tudo, queremos criar um ambiente
que possibilite uma vida humana digna e prazerosa, com abundância e cheia de
signifcado. Para que tudo isso seja conseguido, é necessário um cuidadoso
planejamento, onde todos os princívpios da permacultura são habilidosamente
empregados.
Uma das técnicas centrais da permacultura que tem uma aplicação
particularmente importante em assentamentos rurais é o planejamento por zonas
de proximidade e intensidade, que chamamos abreviadamente de ‘zonas’.
O planejamento por zonas é um modo de organização racional das
atividades no espaço em que elementos e sistemas produtivos que requerem
atenção constante são posicionados mais próximos à casa, ao longo dos
caminhos mais utilizados e em locais de maior permanência do permacultor,
enquanto sistemas mais extensivos e de baixa manutenção são posicionados
progressivamente mais afastados. O planejamento por zonas decorre da
aplicação do princívpio da efciência energética. Com ele, consegue-se uma
grande economia de tempo e energia com dessocamento e transporte de
materiais, além de um maior controle de sistemas mais delicados e intensivos.
Podemos dividir uma propriedade rural em até cinco zonas:
• Zona 0: a casa (habitação permacultural).
• Zona 1: o entorno imediato — horta, jardim e caminhos mais utilizados.
• Zona 2: pomar e plantações anuais.
• Zona 3: agroforesta manejada e criações de animais.
• Zona 4: agroforesta extensiva.
• Zona 5: preservação permanente (santuário ecológico).

Zona 0

A casa pode ser considerada o epicentro de um projeto permacultural,


pois é normalmente o local de maior permanência e intensidade de atividade
humana em qualquer propriedade. Além de sua função primordial (abrigo), ela
também pode ser um ambiente de produção de alimentos, não importando se
você mora na zona rural ou urbana. A casa é a nossa zona zero.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Há várias razões para se produzirem alimentos dentro da casa. A grande


proximidade (distância virtualmente zero, daív o nome desta zona) torna o
manejo extremamente efciente, quase passivo. Por isso, aqui podemos
empregar sistemas altamente intensivos. Além disso, a casa também é um local
onde um elemento vital se encontra de modo altamente concentrado: a água,
especialmente água fertilizada (águas cinzas), que invariavelmente são
produzidas diariamente, fazendo desta uma zona com especial potencial
produtivo. As paredes, varandas e beirais de telhados também oferecem
enormes vantagens às plantas, por fornecerem abrigo contra o vento e sol
excessivo. As construções também ajudam as plantas por manterem o solo ao
seu redor sempre um pouco mais úmido, já que na área que elas ocupam a
perda de umidade por evaporação é impedida. Pode-se fazer um paralelo com o
que acontece num ambiente natural, onde o local ao redor de uma grande rocha
é sempre mais propívcio para o crescimento de plantas, justamente por esses
motivos.
Claro que na zona rural, devido à grande disponibilidade de espaço, o
maior potencial para produção de alimentos fca fora da casa, e isso faz com
que muitas pessoas achem estranha a ideia de produzir alimentos dentro da
própria casa, na zona rural. Porém, há vários motivos para isso! Por exemplo,
pelo simples gosto de ter sempre lindas plantas produzindo alimentos dentro de
sua própria casa, e nos canteiros de suas janelas, criando um ambiente interno
bonito, rico e agradável. Isso tem tudo a ver com o estio de vida da
permacultura! Além disso, talvez você ou alguém na casa tenha alguma
limitação fívsica que difculte o trabalho ou mesmo o acesso ao exterior da casa e
as outras zonas. Pessoas nessas condições podem fazer da zona zero seu
domívnio, e se surpreenderão com quanta coisa se pode produzir, tanto em
termos de alimentos como remédios naturais, aromas e beleza, dentro da
própria casa, ao alcance de suas mãos, e com mívnimo esforço.
Ainda assim, é justo reconhecer que o conceito de zona zero é mais
essencial no contexto da permacultura urbana, devido à limitação de espaço
externo caracterívstica de situações urbanas. Por isso, deixaremos para discutir a
zona zero em mais detalhes no capívtulo 13, “Permacultura Urbana”.

Zona 1

Depois da casa, a zona um é aquela mais próxima de você: aquela parte do


seu terreno por onde você passa todos os dias, o tempo todo — a área com a
qual você tem máxima intimidade. Ela começa bem na porta da sua casa.
É bom esclarecer que as zonas não são espaços circulares concêntricos, ou
de outro modo geometricamente regulares ou fsicamente delimitados — pelo
contrário, são conceitos bastante abstratos e com formas e tamanhos
indefnidos, a não ser pelos critérios já citados, que são a proximidade e

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

intensidade da presença humana, que deve se refetir também na intensidade da


utilização e cuidado. Assim, não apenas a área ao redor da casa, mas também ao
longo dos caminhos mais utilizados, constituem a zona um. Por exemplo, o
caminho de acesso entre a casa e a estrada, ou entre a casa e o galpão de
ordenha, ou aquela torneira no jardim, podem ser todos tratados como zona um.
Por outro lado, talvez haja um ponto atrás da sua casa, bem embaixo daquela
janela, um local onde você raramente vai, embora seja muito próximo. Esse
local não será zona um.
Devido à grande proximidade e sua presença constante, esta zona é ideal
para a produção de alimentos que exigem maior atenção e cuidado, e também
aquelas coisas que necessitamos o tempo todo. Por isso a zona um é o local
ideal para a sua horta.
Hortaliças exigem cuidados diários, muito frequentes. Elas têm que ser
regadas todos os dias, às vezes duas vezes por dia, dependendo do sol, calor e
umidade do ar. Também têm que ser replantadas a cada ciclo (no caso das
espécies anuais), e receber cuidados de manejo, como controle de espécies
indesejáveis, adubação, cobertura de solo, etc. Além do mais, hortas propiciam
colheitas diárias, para as suas saladas, sopas, temperos, etc.
Por isso tudo, é uma escolha extremamente irracional (e que muitas
pessoas fazem o tempo todo) querer fazer uma horta a dezenas ou mesmo
centenas de metros de distância da casa! Isso implica em várias coisas: um
enorme desperdívcio de tempo e energia para ir e voltar da horta toda vez, e
levar e trazer materiais, como composto, palha, sua colheita, etc. Além disso,
faz com que sua horta não receba a devida atenção, simplesmente por não estar
na sua vista. Num dia muito quente e seco, suas verduras podem murchar e
secar antes que você se dê conta; ou então, quando houver um ataque de pragas
como formigas cortadeiras, por exemplo, talvez você só perceba depois que um
grande estrago já foi feito. Outra coisa que geralmente acaba acontecendo é
que você muitas vezes simplesmente deixará de saborear uma deliciosa verdura
fresquinha, ou de adicionar um tempero ao seu prato, como limão ou salsinha
ou alecrim, simplesmente porque a horta está muito longe, e você está com
pressa, ou com preguiça de ir até lá porque o sol está muito quente, ou está
chovendo, etc. Por isso tudo, fazer a horta bem próximo à casa, na zona um,
não apenas aumenta sua produção como ainda facilita e melhora a sua vida.
Outra grande vantagem de se fazer a horta bem próximo à casa é que a
casa é um local de consumo contívnuo de água — e produção contívnua de água
cinza. Água em abundância é um fator crucial para a produção de hortaliças, e a
água cinza é carregada de matéria orgânica e nutrientes, portanto ela pode e
deve ser utilizada na ferti-irrigação da horta na zona um. Isso signifca alta
produtividade aliada a economia de água, sem geração de resívduos.
Infelizmente, em muitas propriedades rurais as pessoas consomem enorme
quantidade de água limpa para a horta, enquanto lançam sua água servida no

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

córrego ou ribeirão próximo, ou em um sumidouro, desperdiçando assim a água


e os nutrientes e, ao mesmo tempo, causando poluição nos cursos d’água e
lençol freático — tudo errado! Conforme discutiremos no capívtulo 11
(“Saneamento Ecológico”), a água cinza de pias, banho e lavagem de roupa e
louça é segura para o solo e ecossistemas terrestres, onde funciona ao mesmo
tempo como água e adubo, mas essa mesma água cinza é terrivelmente nociva
para os ecossistemas aquáticos, onde representa poluição. Por isso, águas cinzas
devem ser usadas em sistemas de ferti-irrigação superfcial ou subsuperfcial,
garantindo máxima produtividade com segurança tanto do ponto de vista de
saúde humana como ambiental, sem jamais ser lançada a corpos d'água.
A zona um deve preferencialmente ser mantida livre de árvores grandes,
pois além do risco de queda sobre a casa também fazem muita sobra que
impede a produção efciente de hortaliças. Porém, é um ótimo local para
pequenas árvores a arbustos, seja por sua beleza (valor ornamental, fores), ou
por produzir alimentos. Limoeiros, mamoeiros, macieiras e parreiras, por
exemplo, são bem-vindas na zona um. Plante também fores próximas ou
misturadas às suas verduras, que darão beleza e ajudarão a confundir e afastar
algumas pragas. Ao longo de seus caminhos diários, plante verduras, cercas
vivas e arbustos de espécies comestívveis ou frutívferas, e que deem lindas fores
— hibiscos e ora-pro-nobis, por exemplo. Não há nada mais agradável que
colher a verdura do almoço sem sequer ter que sair do caminho, ou chegar em
casa com a sacola cheia de frutas que você colheu enquanto caminhava!
Há uma grande variedade de técnicas que podem ser empregadas em uma
horta em pequena escala com alta efciência. Muitas pessoas gostam do sistema
de canteiros elevados, que podem ser construívdos com troncos, pedras ou
blocos, ou mesmo com paredes de cob, e preenchidos com terra adubada para
plantio. Os canteiros devem ser feitos em nívvel, e as paredes do canteiro devem
ser mais altas que a terra de plantio, pois isso facilita a irrigação, permitindo
que a água se espalhe homogeneamente e penetre na terra sem escorrer para
fora. Além disso, devem ser sempre cobertos com matéria vegetal morta, que
preserva a umidade do solo, isso tudo resultando em maior efciência no uso de
água.
Outra opção são os canteiros rebaixados — trincheiras rasas, de cerca de
10 cm de profundidade e 60 cm de largura, onde são plantadas as verduras. Por
serem mais baixas, mantêm-se úmidas por muito mais tempo, enquanto os
caminhos, por serem elevados, estão sempre secos, mesmo após a irrigação ou
chuvas.
Porções do terreno relativamente ívngremes devem preferencialmente ser
deixadas com uma cobertura vegetal permanente para prevenção da erosão.
Porém, mesmo essas áreas podem ser usadas para produção, desde que
empregadas técnicas adequadas, como o terraceamento. O terraceamento

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

consiste em se construir plataformas em nívvel, que podem ser reforçadas com


paredes de pedras, se necessário.

Miniterraços
permitem o cultivo
em porções íngremes do terreno

Adaptado de: Bill Mollison. Permaculture in humid landscapes. In: Dan Hemenway
(ed.). Permaculture design course series (3. a ed.). Yankee Permaculture. 2001.

Há várias formas de se utilizar a água cinza para irrigação, que podem ser
aplicadas isoladamente ou em conjunto. Um sistema simples de ferti-irrigação
passiva consiste em se fazer um dreno em desnívvel, com uma caívda de cerca de
2%, percorrendo o terreno abaixo da casa em zigue-zague. Você pode
simplesmente plantar suas hortaliças em ambas as margens desse dreno — elas
se manterão sempre irrigadas e fertilizadas pela água cinza, sem encharcar. O
dreno deve ser limpo regularmente para remoção de excesso de matéria
orgânica, e esse material pode ser compostado, retornando depois como adubo
para a própria horta.
Outra técnica é passar a água cinza por um fltro simples — um tambor
cheio de serragem, por exemplo — e depois armazená-la em um tanque para
uso em irrigação no momento desejado. O tanque deve ser esvaziado todos os
dias (toda a água sendo usada na irrigação) e lavado regularmente, pois o
acúmulo prolongado pode causar mau cheiro. A serragem do fltro, quando
saturada de matéria orgânica, deve ser compostada e substituívda por serragem
nova. Para evitar a proliferação de moscas, cubra a boca do fltro com uma tela
de nylon (tipo “sombrite”).
Informações sobre técnicas de produção de hortaliças são facilmente
encontradas em livros de agricultura e horticultura orgânica. Porém, esses livros
costumam ser “contaminados” com o paradigma da agricultura convencional,
em que “um canteiro de alface é um canteiro de alface” e “um canteiro de
tomates é um canteiro de tomates”. Esse tipo de abordagem, embora
consagrado pela prática, signifca que você terá várias pequenas monoculturas,
lado a lado, e que a cada ciclo o canteiro terá que ser totalmente reformado. Em

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

permacultura, mesmo nas hortas, é comum aplicarmos uma abordagem


semelhante à agroforesta, em que diversas espécies são plantadas juntas,
formando um pequeno porém rico agroecossistema. Isso permite uma maior
perenidade dos seus canteiros, já que os ciclos de crescimento entre diferentes
espécies serão dessincronizados. Flores, verduras, legumes e temperos se
misturam nos canteiros, formando verdadeiras miniforestas cheias de cores,
sabores e aromas! Algumas ervas nativas também podem fazer parte do seu
jardim-horta agroforestal, que certamente atrairá visitantes como abelhas e
pássaros, etc. Aqui, pelos princívpios da valorização das espécies nativas e
máxima biodiversidade, você deve sempre procurar incluir plantas alimentívcias
não-convencionais (PANCs). Exemplos de PANCs úteis na horta incluem a
taioba, ora-pro-nóbis, serralha, beldroega, capuchinha, fsális, entre outros.
Procure explorar o conceito de plantas companheiras. Com o tempo e a
experiência, você descobrirá quais espécies funcionam bem juntas e quais não,
possibilitando a disposição mais efciente e harmoniosa de espécies, tanto em
termos de espaço como ao longo do ano.

Zona 2

A zona dois é aquela que não está debaixo do seu nariz e ao alcance da sua
mão o tempo todo — talvez você tenha que desviar do seu caminho algumas
dezenas de passos para alcançá-la. Aqui, você terá basicamente o seu pomar,
algumas plantações anuais mais exigentes e seus animais. Normalmente, a zona
dois também estará próxima o sufciente para permitir o uso de água cinza para
irrigação. Claro que o tamanho da zona um e da zona dois, e de fato todas as
zonas, vai variar de acordo com as prioridades de cada permacultor, além de
outros fatores, como o tamanho da área total, número de pessoas, objetivo
principal, etc. Se seu foco for a produção de verduras, talvez não sobre água
cinza para o pomar, pois ela será toda usada na zona um.
O pomar, assim como a horta, deve ser feito em uma abordagem de
“agroforesta”, ou seja, várias espécies misturadas, de forma integrada,
potencializando as interações positivas entre as plantas, aumentando a
densidade vegetal, aumentando portanto a biomassa e a biodiversidade.
Posicione as espécies de forma que elas não se atrapalhem — não plante um
arbusto que precisa de sol, como um pé de acerola, muito próximo e na sombra
de uma árvore frondosa, como uma mangueira. Você deve conhecer as
caracterívsticas e necessidades de cada espécie para ser capaz de posicioná-las de
forma habilidosa e efciente, levando em consideração também a topografa do
local, direção do sol, etc. Um pomar assim estabelecido tem alta produtividade
devido ao adensamento, que se traduz em alta efciência no uso do espaço, e por
sua diversidade e harmonia é algo lindo de se ver. Também é muito agradável
de se trabalhar, pois sempre haverá uma sombra.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Há ainda outras vantagens: pela maior densidade vegetal, as próprias


árvores e arbustos dão conta de manter o solo bem protegido por uma camada
de matéria vegetal morta (folhas caívdas); por haver bastante sombra no nívvel do
solo, quase não há crescimento de plantas indesejáveis uma vez que o pomar
esteja estabelecido. E a proximidade faz com que a irrigação seja muito mais
fácil e efciente.
Isso tudo contrasta enormemente com os pomares convencionais: chatos e
monótonos com suas fleiras e espaçamento uniforme, e geralmente apenas uma
ou poucas espécies; plantas distantes umas das outras, com aquele grande
espaço no meio, onde se você não cuidar vira um matagal. E cuidar signifca
fcar infndáveis horas capinando ou roçando, debaixo do sol quente, ou o que é
pior, aplicação de herbicidas — um horror!
Você pode irrigar seu pomar com água cinza ou, caso não tenha o
sufciente, água de sua lagoa artifcial. Nesse caso, pode ser vantajoso fazer
irrigação por gotejamento. Para uma rega efciente, mantenha sempre uma boa
bacia ao redor de cada planta, com capacidade para uns 20 ou 30 litros pelo
menos, sempre com uma boa camada de cobertura vegetal morta.
Na fase de estabelecimento do pomar, quando suas plantas ainda forem
apenas mudas, você terá muito espaço entre elas, com bastante sol. Aproveite
para plantar verduras e legumes na bacia, ao redor de cada muda, aproveitando
a terra adubada, a irrigação e cobertura de solo, e você terá uma produção de
curto prazo, sem qualquer esforço adicional.
A zona dois também é o local indicado para plantações anuais como
milho, abóbora, mandioca, feijão, arroz, etc. Não se esqueça de valorizar as
variedades tradicionais e crioulas mais adaptadas à sua região. No começo, você
poderá ter alguma difculdade em encontrar sementes crioulas, mas
conversando com as pessoas, especialmente moradores locais mais antigos,
você conseguirá encontrar pessoas que ainda cultivam essas variedades.
Adquira o hábito de cultivá-las, tornando-se não apenas um produtor, mas
também um guardião dessas sementes, desse repositório genético, ajudando a
preservá-lo e disseminá-lo, compartilhando-o com outros.
Então, aqui você tem vários cenários possívveis, dependendo de seus
interesses. Se você não tiver interesse na produção de anuais, pode fazer o
pomar bem adensado, como descrito acima. Mas se quiser também plantar
espécies anuais, então vai ter que plantar seu pomar de forma mais espaçada,
para dar lugar para as anuais.
Agora, se você quiser uma produção em maior escala das anuais, então
deve plantar seu pomar em faixas densas, intercaladas por corredores, sempre
em nível, amplos o sufciente para você usar um trator, onde você plantará suas
anuais. As faixas de pomar servirão para espalhar e infltrar o escorrimento de
água, e prevenir a erosão. Caso sua ideia seja focar mesmo na plantação de
anuais nessa área, você pode abrir mão do pomar e deixar nas faixas apenas
vegetação nativa.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Se o terreno for bastante inclinado, você pode empregar a técnica do


terraceamento. Nos taludes, você plantará seu pomar, da forma mais densa
possívvel, o que contribuirá para a estabilização permanente dos terraços. Na
verdade, a inclinação dos taludes favorece o adensamento, pois permite um
melhor “encaixe” das copas das árvores, e isso se reverte em aumento na
produtividade. Nos platôs, você plantará as anuais. Por serem planos, isso
facilitará demais seus trabalhos, possibilitando inclusive a tratoragem, além de
favorecer a penetração de água no solo e prevenir efetivamente a erosão.

“Encaixe” das copas


permite maior densidade

Arbustivas e arbóreas
pequenas no talude

Anuais no platô

A criação de alguns animais também se dá na zona dois. Suas aves


(galinhas, patos, gansos, codornas, etc.) devem fcar aqui. Também outras
espécies animais, especialmente em fases crívticas como fnal de gestação e
lactação, quando necessitam maior atenção e cuidados, benefciam-se dessa
proximidade, devendo ser trazidos à zona dois. Outras fases, como recria e
engorda, requerem menos atenção e podem ser feitas de forma mais extensiva,
nas zonas 3 e 4. Além da facilidade e efciência de manejo, a proximidade dos
animais do pomar e da zona um também é vantajosa pois o esterco produzido
pode ser facilmente trazido para adubação da horta e pomar.
Pequenas propriedades rurais, de talvez até uns 5.000 m 2, provavelmente
não terão espaço para acomodar mais do que até uma modesta zona 3, o que
não é necessariamente um problema, já que as zonas 1 e 2 são as de uso mais
intensivo e consequentemente as de maior produtividade por área, sendo que
delas provavelmente virá a maior parte dos seus alimentos. Se você tiver uma
área pequena e quiser o máximo de produção possívvel, então você deve focar
em produção intensiva, o que signifca expandir as suas zonas 1 e 2, em
detrimento de zonas mais extensivas (zonas 3 em diante).

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Zona 3

Aqui vai a sua verdadeira agroforesta! Mas, o que exatamente é uma


agroforesta? A melhor forma de entender o que isso signifca é a seguinte: olhe
para uma foresta natural, uma área de mata atlântica, por exemplo. Ela está lá
há milhares, milhões de anos, se for mata virgem, ou talvez algumas décadas a
poucos séculos, se for uma mata secundária. E lá está ela, verde, exuberante,
maravilhosa. Quem a adubou? Ninguém. Tem alguém ali, regando? Não. Ela
não precisa de nenhuma interferência humana, e ainda assim se mantém com
uma altívssima produção de biomassa, eternamente. Em contraste, pomares e
plantações em geral requerem cuidados e manutenção constante: adubação,
irrigação, controle de pragas, etc.
Mas, como isso é possívvel? A resposta está na máxima biomassa e máxima
biodiversidade, e na perfeita integração. Numa foresta, você tem milhares de
espécies de vegetais, animais, fungos e microrganismos trabalhando em
conjunto. Você tem a reciclagem máxima de nutrientes — o resívduo de um é o
alimento do outro, e nada é perdido. A fertilidade do solo é mantida e
aumentada, e assim também a água no local. Nos diferentes extratos da foresta,
formam-se microclimas ideais para o desenvolvimento de todas as formas de
vida daquele ecossistema.
O único problema é que em uma foresta natural normalmente tem muito
pouca comida para gente. Basta você fcar perdido em uma mata para ver como
é fácil morrer de fome lá dentro! Agora, imagine uma foresta semelhante a
uma mata natural, mas onde boa parte das árvores sejam frutívferas —
abacateiros, mangueiras, goiabeiras, jabuticabeiras, jambeiros, mamoeiros,
jaqueiras... ingá, cacau, jenipapo, enfm, tudo que você puder imaginar. E não
apenas comida, mas também outros materiais úteis para o homem, como
madeiras, fbras, remédios, etc. Problema resolvido! Ou seja, é possívvel aplicar
a sabedoria da natureza para obter sistemas produtivos altamente efcientes e
harmoniosos para suprir nossas necessidades, ao invés dos sistemas artifciais e
disfuncionais da agricultura convencional.
Uma coisa que chama a atenção é que enquanto num pomar convencional é
mantida uma densidade vegetal relativamente baixa, respeitando um
espaçamento entre as árvores, em uma foresta natural você observa uma
altívssima densidade de plantas de inúmeras espécies. A justifcativa para o
espaçamento das árvores em um pomar é evitar a superlotação e competição por
nutrientes e sol, o que comprometeria a produtividade. Mas então, por que isso
não é um problema na foresta? Um dos motivos para isso é que, por terem
necessidades diferentes, inclusive em relação a nutrientes mas também em
relação a exposição ao sol, umidade, temperatura, etc., plantas de espécies
diferentes (e fases de desenvolvimento diferentes) ocupam nichos diferentes
dentro do mesmo espaço, podendo, portanto, várias plantas ocupar “o mesmo”
espaço (concentração), muitas vezes até mesmo se benefciando dessa

160
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

proximidade e interação com outras plantas. Aqui, vale lembrar o conceito das
plantas companheiras — plantas que, quando postas em proximidade, ajudam-
se mutuamente, ou seja, têm uma interação benéfca, seja por fornecerem
sombreamento parcial, ou por fxarem nitrogênio no solo (caso das
leguminosas), ou por repelirem insetos ou atraívrem predadores de pragas, etc.
Esses são mecanismos simples e conhecidos de interações positivas entre
plantas, mas pode haver outras formas de interações benéfcas, como por
exemplo interações hormonais ou através de substâncias do metabolismo
secundário. Essas interações harmônicas são chave para a máxima biomassa e
biodiversidade, e a perfeita integração observada em uma foresta. Portanto,
para o estabelecimento de uma agroforesta, é fundamental aplicarmos os
princívpios da permacultura, levando em consideração os tipos de relações entre
os diversos elementos, favorecendo as relações benéfcas e evitando as relações
negativas para obter o máximo de integração e autorregulação do sistema como
um todo.
Na zona 3 você terá sua agroforesta manejada — podas, adubação e
talvez até irrigação para máxima produtividade. Aqui também fcarão alguns
dos seus animais.

Estabelecendo uma agrofloresta

Há muitas formas de se plantar uma agroforesta, e a escolha da técnica


ideal dependerá de vários fatores, especialmente o clima (regularidade de
chuvas, duração da estação seca), condição do solo (fértil ou degradado), estado
de regeneração natural/espontânea da vegetação na área, etc.
No estabelecimento de uma agroforesta ou reforestamento, você
normalmente tem que lidar com três empecilhos principais: defciências do solo,
estresse hívdrico e ataque de pragas.

Solo
Quanto às condições do solo, particularmente em relação à fertilidade,
você tem basicamente dois cenários possívveis: área degradada e área fértil
(claro que esse são os dois extremos, e seu caso pode estar em qualquer ponto
intermediário). No caso de solo degradado, maltratado pela agricultura e sem
fertilidade, ressecado e compactado, com baixívssima matéria orgânica, você
terá que aplicar todas as técnicas já discutidas, e terá que trabalhar duro para
que suas árvores cresçam. Já no caso de um terreno fértil, é praticamente só
plantar que cresce, mas você terá que controlar a vegetação espontânea para que
ela não abafe suas mudas. Portanto, procurar um terreno mais fértil pode ser
muito tentador. Porém, o ideal é justamente o contrário: focar em terrenos
degradados, de forma que você possa usar a permacultura para recuperá-los,
efetivamente prestando uma relevante contribuição para o meio ambiente.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Existe um nívtido contraste entre as duas situações: uma pessoa trabalhando em


um terreno fértil investe boa parte de seu tempo e energias combatendo a
natureza, seja a vegetação espontânea que ameaça seus pomares, ou mesmo
animais silvestres que vêm atacar sua produção. Por outro lado, uma pessoa
trabalhando em um terreno degradado investe seu tempo, esforço e recursos em
recuperar aquela área, trazendo de volta a vida, aumentando a biomassa e a
diversidade. Qual delas está trabalhando para a natureza? Terrenos férteis
devem idealmente ser deixados em paz, para que se regenerem natural e
espontaneamente, o que de fato ocorre rapidamente, desde que não haja
humanos atrapalhando.
Estresse hídrico
O estresse hívdrico decorre principalmente de dois fatores: as mudas de
árvores são muito sensívveis à falta de umidade e morte por ressecamento, por
terem raívzes pequenas que atingem apenas a camada mais superfcial do solo
(diferentemente de árvores crescidas, que com suas grandes raívzes conseguem
buscar água em nívveis profundos do solo). Além disso, o solo desmatado e
compactado é naturalmente mais ressecado que o solo da foresta, pois você tem
uma combinação de reduzida penetração de água e exacerbação das perdas de
umidade por evaporação, já que o solo está exposto ao sol e vento.
Quando sua foresta ou agroforesta estiver estabelecida, esses problemas
estarão naturalmente resolvidos, mas para romper com essa barreira inicial,
permitindo que suas mudas sobrevivam e se transformem em árvores, você terá
que lançar mão de uma estratégia adequada, com a combinação de quatro
técnicas: plantio na época certa (discutido mais adiante), construção de bacias,
uso de cobertura do solo e irrigação.
Pragas
É normalmente aceito o conceito que pragas são animais e plantas, nativos
ou não, que, por um desequilívbrio ambiental, assumem um comportamento
agressivo ou predatório sobre as nossas plantações. Esse é o caso tívpico das
plantações convencionais ou monoculturas, onde você tem uma absurda
concentração de plantas da mesma espécie em largas áreas (ou seja, um
desequilívbrio ambiental); obviamente, qualquer inseto que goste de comer essa
planta vai adorar, e se instalar e se reproduzir, e devorar tudo!
Portanto, o primeiro e mais importante passo na prevenção de pragas é
restaurar o equilívbrio ambiental, e a única forma de se fazer isso e ao mesmo
tempo ter uma produção agrívcola é através de policulturas integradas, na forma
de agroforestas. Assim, aquela planta preferida daquele inseto estará intercalada
por várias outras espécies de plantas que o inseto não gosta e terá que atravessar,
e talvez abriguem predadores, etc., ou seja, difcultando a vida do inseto — ele
continuará lá, mas em uma situação de equilívbrio, não sendo tão destrutivo à sua
plantação.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Quando se fala de controle orgânico de pragas agrívcolas, muitas pessoas


pensam logo em controle biológico: introduzir um predador “X” para controlar
uma praga “Y”. Essa é uma ideia comum na cabeça de estudantes de biologia e
agronomia, e mesmo permacultores. Porém, essa ideia é resultado de uma visão
extremamente reducionista e não realista de como as interações funcionam na
natureza, e por isso não funciona na prática, sendo ainda extremamente perigosa,
tendo já causado desastres ambientais de sérias proporções.
Um caso tívpico é o do caramujo predador Euglandina rosea, introduzido no
Havaív na esperança de que ele controlaria a proliferação do também exótico
caramujo gigante africano (Achatina fulica). No Havaív, assim como em muitos
outros lugares incluindo o Brasil, foi introduzido o caramujo gigante africano
que, ao encontrar condições favoráveis (clima, abundância de alimento, ausência
de predador efetivo, etc.), proliferou-se assustadoramente. Numa tentativa de
controlar o Achatina através do controle biológico, as autoridades havaianas,
orientadas por técnicos, introduziram o caramujo predador. Porém, como em
tantas outros programas fracassados de controle biológico, o predador
introduzido simplesmente ignorou a espécie-alvo e, ao invés dela, passou a
devorar as espécies de caracóis nativos, causando dezenas de extinções em pouco
tempo. Situação semelhante ocorreu também nas Ilhas Maurívcio, na Polinésia
Francesa e outras ilhas e arquipélagos.
O controle biológico existe e acontece, sim, em sua melhor forma, na
forma de sistemas bem diversos e integrados, refetindo ecossistemas naturais.
“Pragas”, ou seja, animais que comem nossas plantas, sempre existirão e
causarão perdas, mas geralmente serão perdas aceitáveis. Essas perdas podem
ser reduzidas pela aplicação de diversas técnicas orgânicas, como repelentes e
venenos naturais (e.g. plantar tagetes na horta, ou aplicar infusão de folhas de
fumo, ou polvilhar cinzas, etc. para certas pragas), prevenção do acesso das
pragas através de barreiras fívsicas, etc.

Plantio por sementes ou mudas?

Se você fzer uma pesquisa sobre técnicas para plantar uma agroforesta,
fcará surpreso com a quantidade de informações diferentes e confitantes que
encontrará. Há quem recomende o plantio direto por sementes, enquanto outros
recomendam o plantio por mudas; mesmo assim, há divergências entre o que é
melhor: mudas pequenas em tubetes, ou mudas maiores, em sacos de 600 ml,
por exemplo. Também as recomendações em relação ao preparo do solo, ou o
número e disposição das espécies, varia enormemente entre diferentes autores.
A única conclusão que podemos tirar disso é que há várias abordagens
possívveis, e que a melhor abordagem dependerá das suas condições especívfcas,
devendo ser determinada, em cada caso particular, baseado em experimentação,
ou seja, tentativa e erro com as diversas opções possívveis.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

O plantio direto por sementes teoricamente tem as vantagens de ser mais


fácil e barato. Essa estratégia pode funcionar bem em algumas situações
particularmente favoráveis, ou seja, quando o solo ainda não está tão degradado
e você tem uma boa distribuição de chuvas ao longo do ano, e não tem muitos
problemas com pragas em sua área. Porém, muitas vezes essa abordagem não
traz bons resultados, sendo mais indicado o plantio por mudas. Isso porque
quando você planta por sementes, mesmo que tenha uma boa germinação (o
que nem sempre é o caso), ao fnal da estação chuvosa suas mudas ainda são
muito jovens e pequenas, com mívnima reserva de energia e raívzes muito
superfciais, ou seja, são frágeis demais para sobreviver à primeira estação seca
(exceto espécies extremamente rústicas e adaptadas). Outro problema é que as
mudinhas jovens são extremamente susceptívveis ao ataque por pragas,
especialmente as formigas cortadeiras, as quais discutiremos em mais detalhes
a seguir.
Algumas técnicas alternativas têm sido propostas, como as “bolas de
sementes” (seed balls), em que sementes são envoltas em um substrato nutritivo
composto de terra, fertilizantes e às vezes outros aditivos (como repelentes de
predadores, por exemplo), e lançadas com objetivos de reforestamento. A ideia
é aumentar a taxa de germinação e sobrevivência dessas sementes, por fornecer
condições mais favoráveis. Essa técnica ganhou muitos fãs, porque um grupo
pequeno de pessoas pode facilmente em um fnal de semana lançar milhares de
bolas, e o indivívduo volta para casa com aquela sensação que acabou de salvar o
mundo. Porém, volte à área dali a alguns anos e procure alguma das árvores que
você “plantou” naquele dia, e terá uma triste surpresa: elas simplesmente não
estarão lá. Claro que você pode experimentar, não custa nada, mas
provavelmente chegará à conclusão que trata-se de uma grande ilusão.
Embora mais trabalhosa, em minha experiência a abordagem que traz
melhores resultados é o plantio por mudas, e não mudinhas pequenas, mas sim
mudas grandes, de 50 cm a um metro de altura. Aqui, temos um paradoxo, pois
o Princívpio n.o 1 da permacultura nos ensina a imitar a natureza, e na natureza
as árvores se reproduzem lançando sementes. Porém, há que se considerar que a
taxa de sobrevivência das sementes na natureza, ou seja, a proporção das
sementes produzidas que efetivamente germinam, crescem e atingem a idade
adulta, é muito baixa, e para alimentarmos a população e reconstruirmos
ecossistemas precisamos de mais que isso, em termos de efciência. Plantar uma
semente, ou mesmo uma muda, é muito fácil, mas na maioria dos casos isso só
não é sufciente. É preciso estar lá para defendê-la, cuidar dela para garantir que
se torne árvore. É preciso abandonar a ilusão de soluções fáceis. Curar a Terra
requer fxar o homem na terra — é preciso estar na terra, trabalhando com a
terra, e pela Terra.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Coletando sementes
Para estabelecer uma agroforesta, você precisará de muitas sementes e/ou
mudas. Isso pode representar um custo substancial, mas também pode ter custo
virtualmente zero. Para isso, basta você incorporar ao seu estilo de vida o lindo
hábito de plantar as sementes das frutas que você consome, produzindo suas
próprias mudas! Também para as espécies forestais, você pode coletar suas
próprias sementes e produzir suas próprias mudas. Para isso, você precisa saber
quais são as espécies de árvores da sua região, ser capaz de identifcá-las, e sair
à caça de sementes. Pode parecer uma tarefa muito difívcil, mas há uma maneira
de torná-la bem mais fácil. Siga os seguintes passos:
1. Faça uma boa pesquisa e elabore uma lista de espécies de árvores da sua
região. Você deve consultar a internet, livros especializados (a série
“Árvores Brasileiras”, de Harri Lorenzi, é um recurso excelente), e
perguntar para moradores antigos da área. Pessoas mais antigas,
especialmente as da zona rural, muitas vezes têm um conhecimento
considerável sobre a fora e fauna locais.
2. Elabore um calendário com as épocas de foração e frutifcação das
espécies da sua lista.
3. Cultive o hábito de andar sempre prestando atenção nas árvores, focando
naquelas que estão com fores ou frutos. Procure identifcá-las, tomando
por base o mês do ano em que elas estão foridas ou com frutos. Por
exemplo, você encontrou uma árvore que está dando sementes, e você está
no mês de outubro. Portanto, para identifcá-la, você não terá que
consultar toda a sua lista de espécies, mas sim apenas aquelas que,
conforme seu calendário, frutifcam em outubro. Isso facilita
enormemente a identifcação, e favorece a construção de um bom
conhecimento das espécies e seus ciclos — um aprendizado lindo e muito
importante! Use esse conhecimento para atualizar sua lista de época de
foração e frutifcação, pois pode haver variações regionais.
Você não deve sair coletando sementes e plantando-as indistintamente em
seu terreno, ou produzindo mudas adoidado. O mais recomendado é você
estabelecer critérios de seleção das espécies a serem utilizadas, para maximizar
a efciência do seu trabalho na consecução dos seus objetivos. Trataremos
desses critérios mais adiante. Claro que você também pode reservar parte do
seu esforço e tempo para um plantio aleatório, pois o fator acaso muitas vezes
traz surpresas maravilhosas.
Produzir suas próprias mudas a partir de sementes das frutas que você
comeu, ou sementes que você mesmo coletou em suas expedições a matas ou
bosques, ou mesmo nas praças, parques e ruas da cidade — isso representa
muito mais do que economia de dinheiro. Trata-se de um aprendizado
importantívssimo, e seu relacionamento com suas plantas terá um signifcado
muito mais profundo.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Produzindo mudas
Produzir mudas é a coisa mais simples do mundo: junte todas as caixinhas
de leite e sacos plásticos resistentes, como os de feijão, arroz, açúcar, etc., que
tenham capacidade entre 0,5 e 5 kg. Peça para amigos e parentes guardarem
para você, também, pois você vai precisar de bastante. Com uma tesoura faça
dois buracos de cerca de 1 cm no fundo dos sacos, encha-os de terra e plante as
sementes próximo à superfívcie. Quanto à profundidade de plantio, como regra
geral, plante a semente a uma profundidade de aproximadamente 1,5 vezes o
tamanho da semente (por exemplo, uma semente de 1 cm deve ser plantada a
cerca de 1,5 cm de profundidade). Mantenha os blocos (ou seja, seus sacos com
terra e semente ou muda) em local parcialmente sombreado, e regue conforme
necessário, para que permaneçam sempre úmidos, mas não encharcados. Logo,
suas sementes germinarão, e você terá suas mudas!
A taxa de germinação e o tempo para que ocorra variam muito entre as
espécies e as condições do seu local, mas é preciso ter paciência, pois algumas
sementes podem levar meses para germinar.
Outra abordagem útil é fazer uma sementeira: um canto no seu jardim, ou
uma caixa baixa feita de madeira e cheia de terra, onde você planta todas as
sementes que quer, e vai regando e esperando germinarem. Então, você as retira
cuidadosamente e transplanta para os saquinhos. Esta abordagem é mais
indicada para espécies com taxa de germinação baixa, muito lenta ou
desconhecida.
Agora, a terra a ser usada para fazer seus blocos ou sementeiras pode ser
preparada com solo superfcial do seu terreno, misturada a composto orgânico
na proporção de 2:1, ou seja, duas partes de terra para uma de composto.
Mudas requerem atenção diária, especialmente em locais e épocas de
clima quente e seco, quando elas tem que ser regadas diariamente. Por isso, o
viveiro deve ser feito na zona um, bem próximo à casa. Se você ainda mora na
cidade, é melhor ter o viveiro lá, no quintal, garagem ou varanda, onde for
melhor, desde que receba sol sufciente.
Agora, há uma consideração a ser feita quando você prepara suas próprias
mudas. Algumas espécies apresentam grande variabilidade da qualidade dos
frutos, como laranjas e uvas, por exemplo: você planta a semente de uma fruta
que gostou, mas a árvore que você obtém pode ter frutos de qualidade muito
diferente. Isso é normalmente evitado pelo cultivo de plantas enxertadas. A
técnica da enxertia consiste de se unir um galho (enxerto) de uma planta no
tronco de outra planta (o porta-enxerto). Os tecidos do enxerto e porta-enxerto
fundem-se, e o enxerto passa a crescer usando o porta-enxerto como base,
suporte e fonte de nutrição. O galho usado para enxerto é proveniente de uma
planta conhecida, e selecionada devido às qualidades desejáveis de seus frutos,
enquanto o porta-enxerto é uma muda compatívvel (geralmente da mesma
espécie ou gênero) que seja de fácil produção e alta rusticidade. A planta
enxertada produzirá frutos semelhantes aos da árvore-mãe do enxerto. As

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

mudas enxertadas apresentam ainda a vantagem da precocidade — começam a


produzir muito mais rápido que mudas naturais, produzidas a partir de
sementes. As desvantagens são seus custos ou o trabalho em prepará-las, e o
fato de elas terem uma vida produtiva bem mais curta que a de uma planta
natural, não enxertada.
Outra desvantagem das plantas enxertadas, especialmente as variedades
comerciais, é que elas apresentam uma grande uniformidade genética, enquanto
mudas naturais têm maior variabilidade, o que confere maior rusticidade e
preservação do patrimônio genético.
Agora, você não tem que escolher apenas uma opção! Pode muito bem
plantar das duas formas, mudas naturais e enxertadas, reunindo assim todas as
vantagens: uma produção mais precoce e uniforme, e também plantas mais
duradouras e produção mais variada.
Mudas enxertadas podem ser obtidas em viveiros comerciais. Você
também pode produzi-las você mesmo, devendo primeiro pesquisar as melhores
técnicas para cada espécie de seu interesse. Também terá que encontrar boas
plantas doadoras de enxertos (plantas cuja produção tenha qualidade
reconhecida), o que nem sempre é fácil.
Há ainda outras formas de propagação de mudas, como a estaquia, ou
seja, a propagação por estacas. As diferentes espécies vegetais variam muito
quanto às técnicas mais efcazes de propagação: a maioria se propaga mais
facilmente ou exclusivamente por sementes; há as que podem ser propagadas
efcientemente tanto por sementes como estacas (e.g. amoreira), enquanto
outras se podem propagar quase exclusivamente por estacas (e.g. ciriguela,
fgueira). Dentre as plantas que são mais comumente propagadas por estacas
podemos citar os hibiscos, roseiras, amoreiras, primaveras, fgueiras, etc. A
reprodução por estacas traz benefívcios semelhantes aos da enxertia, já que a
planta flha terá as mesmas caracterívsticas da planta mãe, sendo na verdade um
clone desta, ou seja, portando exatamente a mesma constituição genética. Você
tanto pode produzir mudas em viveiros, usando sacos plásticos, como plantar as
estacas diretamente no terreno, sendo que as taxas de sucesso variarão
conforme o caso.

Técnicas de plantio

O plantio pode ser feito de inúmeras formas diferentes, desde um plantio


à mão, bastante conservativo e econômico porém mais lento, até um preparo
mecanizado do solo e plantio em larga escala, mais rápido mas também mais
impactante ao ambiente.
Aqui, devemos fazer uma consideração importante: pelos princívpios da
permacultura, devemos preservar ao máximo as caracterívsticas da área em seu
atual estágio de regeneração, ou seja, as espécies que já conseguiram ali se
instalar e estão cumprindo seu papel regenerador do ecossistema, a

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

biodiversidade e biomassa que já se desenvolveram, a estrutura do solo, etc., e


atuar de forma a ajudar nesse processo de regeneração, ao introduzir mais
espécies de plantas que crescerão enriquecendo o ambiente, protegendo o solo e
a água, trazendo recursos para acelerar essa recuperação, além de alcançar uma
produção que desejamos.
Então, no começo de seu projeto, você tem dois cenários possívveis: se o
terreno estava sendo usado até muito recentemente pela agricultura industrial,
sendo tratorado continuamente, além de outras práticas destrutivas como
adubação quívmica e aplicação de agrotóxicos, etc., então neste caso não há nada
de biomassa e biodiversidade a ser preservado. Neste terreno, você pode fazer
um preparo mecanizado do solo, com calagem, adubação e preparo das covas,
por exemplo, uma última vez, para o estabelecimento de uma agroforesta, o
que pode compensar pela facilidade, agilidade e custo-benefívcio. Ou seja, neste
caso trata-se de uma opção que pode ser considerada uso apropriado de
tecnologia.
Porém, em outros casos em que a área está abandonada há alguns anos, e a
natureza já vem fazendo seu dedicado trabalho de recuperação, pode ser
considerado injustifcável causar destruição em larga escala a esse ecossistema
que está se recuperando, sendo preferívvel uma abordagem conservativa, de
preparo por covas e plantio manual.
Algumas pessoas impacientes podem sentir-se tentadas a empregar
preparo do solo e plantio mecanizado mesmo assim, por julgarem que os
benefívcios ambientais a longo prazo compensarão esse impacto negativo inicial.
Porém, isso é uma estratégia bastante arriscada. Para explicar isso, vou contar
aqui um “causo”:
Certa vez, um conhecido meu, que por sinal é agrônomo, resolveu fazer
um reforestamento em um terreno que ganhou de sua famívlia. Ansioso por
aplicar os conhecimentos adquiridos na faculdade, e impaciente em ver logo
sua foresta formada, optou por uma abordagem “industrial” — tratamento
mecanizado do terreno e plantio de sementes e mudas compradas de viveiros
certifcados, tudo conforme havia aprendido na faculdade. Ele fez essa escolha
apesar de o terreno já estar abandonado havia algum tempo e, portanto, já
apresentar certo grau de recuperação espontânea, com fora e fauna lentamente
se desenvolvendo, que seriam destruívdas no processo. Mas o impaciente
agrônomo julgou que os benefívcios a longo prazo compensariam essa
destruição, do ponto de vista ambiental.
E pôs-se a tratorar todo o terreno, arar e gradear, e calar e adubar, e
semear e plantar mudas. Mas ele não tinha dinheiro sufciente para trabalhar
todo o terreno; por isso, resolveu cobrir apenas metade do terreno, deixando a
outra metade para algum momento no futuro.
Eis, porém, que tudo que podia dar errado, deu: veio a chuva forte e
erodiu seu solo desprotegido; veio a estiagem, e secou muitas de suas mudas.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Daív, vieram as formigas, deixadas sem opção de alimento devido à destruição


da vegetação na área, e comeram as mudas que restaram.
O rapaz, que tinha gasto todo seu dinheiro, teve que abandonar seu projeto
e ir fazer outra coisa. Alguns anos mais tarde, quando segundo seus planos e
cálculos iniciais ele já deveria ter ali uma linda foresta, a situação era a
seguinte: na metade do terreno que ele não tocou, por falta de dinheiro, havia
uma linda capoeira, uma matinha em estágio já bem mais avançado de
regeneração, enquanto a metade em que ele trabalhou e gastou seu dinheiro
ainda estava com um aspecto bem pior do que quando ele começou.
Claro que nem sempre isso irá acontecer, certamente há pessoas que
tentam esse tipo de abordagem e têm melhores resultados que os desta história
que acabei de contar. Mas mesmo assim, trata-se de uma escolha arriscada,
tanto para seu bolso como para o ambiente, sendo, portanto, geralmente uma
má ideia. Portanto, nesses casos o melhor é usar uma abordagem conservativa,
preservando a integridade do solo e a vegetação em seu estágio atual de
regeneração, o que nos dá um ponto de vantagem.
Agora, para plantar as sementes e mudas, você tem muitas opções de
abordagens possívveis. Vamos discutir algumas delas
• Simplesmente plantar. Isso é o que a maioria das pessoas fazem, quando
são iniciantes e pensam em plantar uma muda ou semente. Abrem um buraco
no chão, metem a semente ou muda, cobrem com terra, jogam um pouco de
água, e pronto. Se o seu solo for bom e adequado à sua planta, e observados os
cuidados posteriores (que discutiremos mais adiante), isso pode dar certo.
Porém, em muitos casos isso não funcionará, pois seu solo necessitará de algum
tratamento, como correção de acidez e adubação, para poder garantir o sucesso
de sua planta. De qualquer forma, você sempre terá algumas sementes
excedentes, ou mudas que você não sabe o que fazer com elas. Você deve
experimentar simplesmente plantá-las, e ver o que acontece. Você tem que
fazer esse tipo de coisa para conhecer as reais condições do seu terreno, seu
potencial, suas necessidades.
• Tratamento por covas. Esta é a técnica mais comumente recomendada
por técnicos para plantio de mudas de árvores em pequena e média escala.
Embora idealmente as quantidades dos insumos deva ser orientada por análise
de solo, citarei valores médios que comumente são indicados:
1. Primeiramente, capine a área e comece a preparar a bacia, com um
diâmetro de cerca de 70 cm, raspando uma camada de cerca de 5 cm do
solo superfcial com um enxadão. Reserve esse solo, pois será usado no
plantio.
2. Com uma cavadeira ou pá, cave um buraco de 50 cm de largura e 30 cm
de profundidade (ou mais, dependendo da altura do seu bloco), sendo que

169
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

a terra proveniente dos 20 cm mais superfciais é adicionada àquele solo


superfcial raspado no passo no 1 acima, enquanto os últimos 10 cm do
fundo do buraco são usados para elevar a parede da bacia, no lado mais
baixo da mesma (conforme a declividade do terreno).
3. Agora é hora de tratar o solo para plantio. Pegue a terra proveniente das
camadas mais superfciais da bacia e da cova e adicione 100 a 150 g de
calcário dolomívtico. Misture bem com uma enxada. Em seguida, adicione
200 g de superfosfato simples e 15 litros de esterco bovino de curral
curtido, misturando novamente.
4. Devolva a terra, agora adubada, à cova, compactando-a com os pés para
que não fque excessivamente fofa.
5. Plante sua muda no centro da cova tratada. O ideal é que a parte superior
do bloco da muda fque uns 3 cm acima do nívvel da terra da cova, evitando
o encharcamento do caule quando das chuvas e regas.
6. Por fm, cubra toda a área da cova e bacia com uma camada generosa de
matéria vegetal morta (e.g. palha ou serragem), e regue com 20 litros de
água. Uma observação importante é que a terra, logo após preparada, tem
a capacidade de reter umidade por perívodos mais longos. Portanto, você
deve ter o cuidado de não regar excessivamente durante o primeiro mês,
evitando o encharcamento e apodrecimento das raívzes da muda. Observe a
muda e a umidade da terra do plantio, e regue só quando necessário.
Como o plantio deve ser feito no perívodo das chuvas (conforme
discutiremos abaixo), na verdade você provavelmente não terá que regar
essa muda por meses, até a chegada da estação seca.
• Tratamento por covas simplifcado. Esta é uma técnica que é preferida
por muitos permacultores, por frequentemente dar ótimos resultados além de
ser mais simples, rápida e natural:
1. O primeiro passo é idêntico ao tratamento por covas descrito acima.
2. Agora, cave uma cova bem menor, uma cova circular com talvez uns 25
cm de diâmetro e 25 de profundidade, sufciente para caber o bloco da
muda, com uma folga de uns 4 ou 5 cm em cada direção.
3. Encha o buraco (a cova e a bacia) com água (cerca de 20 litros), e molhe
também aquele solo superfcial da escavação da bacia, que você reservou.
Espere a água ser toda absorvida, o que pode levar algumas horas.
4. Agora, você pode plantar sua muda. Aplique uma camada do solo
superfcial no fundo da cova, sufciente para que o bloco, uma vez ali
posto, atinja a altura desejada de cerca de 3 cm acima do nívvel do solo no
interior da bacia. Retire o saco plástico, deposite o bloco no centro da
cova e preencha as laterais com a terra, compactando bem com os dedos
ou um bastão de madeira (por exemplo, um pedaço de cabo de vassoura).

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Aplique uma fna camada de cinzas de madeira sobre o solo dentro e ao


redor da bacia (cerca de 1 litro de cinzas é sufciente) e cubra com uma
camada generosa de cobertura vegetal morta. Assim como descrito acima,
evite regar excessivamente a muda no primeiro mês após o plantio.
5. Aguarde até que a muda dê sinais claros de que “pegou”, ou seja, comece
a crescer. Agora, você deve adicionar os adubos que quiser ou achar
necessários sobre o solo, dentro da bacia. Na maioria das vezes, apenas
adubos orgânicos, como cinzas, esterco animal, composto orgânico, urina
diluívda e ferti-irrigação com águas cinzas, são sufcientes para sua muda
crescer feliz e saudável.
6. Observação: em locais onde o solo tem acidez elevada, é recomendável
adicionar um outro passo: após encher a cova de água e esperar a água
abaixar, ou seja, logo antes de plantar a muda, polvilhe cinzas de madeira
dentro da cova, especialmente nas laterais, até que fquem cobertas por
uma fna camada de cinza (alguma quantidade inevitavelmente cairá no
fundo da cova, portanto não é necessário adicionar mais lá). Prossiga com
o plantio conforme descrito. Isso geralmente é sufciente para neutralizar a
acidez do solo ao redor do bloco, garantindo a pega e crescimento da
muda, para que então você possa prosseguir com a adubação e demais
cuidados.
Então, você tem várias abordagens possívveis. O ideal é você tentar todas
elas, para descobrir qual ou quais são mais úteis ou mais viáveis em sua
situação particular. Você provavelmente descobrirá que a técnica ideal depende
da espécie de planta. Talvez algumas espécies aceitem o plantio direto, outras se
deem bem com o tratamento por covas simplifcado, enquanto outras ainda
necessitem do tratamento completo. Com a experiência, você descobrirá essas
coisas e poderá se ater à técnica mais simples que funciona para cada espécie
em sua situação particular.
• Tratamento mecanizado. Caso você opte por fazer um tratamento
mecanizado, há uma forma de se fazer isso minimizando os danos causados.
Essa forma consiste em se fazer o tratamento em faixas em nível. Ou seja, você
não irá tratorar o terreno todo, e sim tratar faixas do terreno, seguindo curvas
de nívvel, intercaladas com faixas que serão preservadas, mantidas intactas. Essa
abordagem apresenta várias vantagens em relação ao tratamento mecanizado
convencional, no estabelecimento de uma agroforesta: as faixas preservadas
atuam como barreiras contra a erosão, espalhando e infltrando o fuxo de
escorrimento superfcial da chuva; além disso, a vegetação nessa faixa atua
como barreira contra o vento e fornece sombreamento parcial, criando um
microclima mais ameno e um ambiente mais favorável ao desenvolvimento das
suas mudas. Além disso, permanecem como refúgio da fora e fauna da área: os
pássaros, insetos e outros animais não serão destruívdos, apenas migrarão para

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

esses locais pois são extremamente próximos, e as plantas preservadas


continuarão contribuindo com sementes para a recuperação da área tratorada,
além de fornecerem biomassa, através de podas, que pode ser usada como
cobertura vegetal morta para suas mudas. Uma vez restabelecido o processo de
regeneração na área que você tratou (ou seja, uma vez que o solo esteja
reestruturado e novamente coberto por uma camada efetiva de vegetação), você
pode tratar as faixas que haviam sido poupadas no tratamento anterior. Ou
então, para tentar duas abordagens diferentes ao mesmo tempo, você pode fazer
um tratamento conservativo (por covas) nas faixas de preservação.
Tratamento mecanizado do terreno, com correção, condicionamento e
adubação do solo, deve ser feito sempre sob orientação técnica adequada.

Época de plantio

Sementes resistentes (ortodoxas) podem ser plantadas durante a estação


seca para germinarem nas primeiras chuvas, mas sementes mais sensívveis ou
recalcitrantes e mudas devem ser plantadas sempre no inívcio da estação
chuvosa. Agora, para adiantar o serviço, você pode já ir começando a preparar
as covas na estação seca, embora o solo duro e ressecado seja bem mais difívcil
de trabalhar.
Comece o plantio das suas mudas no começo da estação chuvosa, assim
que o chão estiver bem molhado, e dependendo da espécie e do seu clima,
talvez você nunca mais tenha que molhar essas mudas: elas darão uma
arrancada de desenvolvimento nos meses chuvosos, ganhando porte e
desenvolvendo suas raívzes, tornando-se capazes de obter umidade de camadas
mais profundas do solo, garantindo sua sobrevivência até a próxima estação
chuvosa. Normalmente, sofrerão estresse hívdrico em algum grau, mas
geralmente não morrerão, e estarão lá, prontas para continuar seu
desenvolvimento a partir do inívcio da próxima estação chuvosa. Porém, nem
sempre isso funciona: para espécies mais sensívveis, ou em locais com estação
seca particularmente longa e severa, pode ser necessário regar as mudas, pelo
menos no primeiro ano, para garantir que sobrevivam em boa forma até a
próxima estação chuvosa.

Cuidados

Uma ilusão comum na cabeça de muitas pessoas é pensar que se pode


mudar o mundo apenas plantando algumas sementes, ou que plantar uma muda
e plantar uma árvore são a mesma coisa. Pois são coisas bem diferentes —
plantar uma árvore signifca plantar a muda e cuidar dela até que se torne
árvore. Nesse processo, o plantio da muda é sem dúvida a parte mais rápida e
fácil.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Após o plantio, os principais cuidados com as mudas de sua agroforesta


serão:
• Manutenção das bacias e cobertura vegetal morta, para que elas continuem
recebendo hidratação adequada.
• Rega, sendo que, conforme já citado, ela pode ser dispensável em alguns
casos, e essencial em outros. Agora, há espécies que necessitarão rega no
primeiro, talvez até no segundo ano para se estabelecerem, a partir do que
não necessitarão mais. Porém, talvez haja algumas espécies de árvores que
necessitarão de irrigação por toda a vida, ou seja, mesmo depois de
crescidas, não sobreviverão ou serão incapazes de produzir sem irrigação.
Isso signifca que essas espécies não são adequadas ao seu ambiente. Pode
parecer duro demais, mas o mais recomendado é você desistir delas, e
focar nas espécies melhor adaptadas.
• Adubação. A fase mais crívtica, em relação a nutrientes, é a fase de muda,
onde a planta tem os maiores desafos de sobreviver e se desenvolver.
Uma vez crescidas, as plantas têm uma capacidade muito maior de extrair
nutrientes do solo, mesmo que degradado. Porém, adubação continua
sendo benéfca para maior produtividade, até que a agroforesta já esteja
bem estabelecida, a partir do que ela passa a ser autossufciente em
nutrientes, pela sua reciclagem natural. Todas as fontes de nutrientes
orgânicos de sua propriedade deverão ser utilizadas da forma mais
racional possívvel, divididas entre os diferentes sistemas produtivos, nas
diferentes zonas, e a importação de recursos deve ser feita de forma
criteriosa, conforme já discutido.
• Podas de formação. Muitas vezes, suas mudas começam a se ramifcar
demasiadamente, a uma altura muito baixa, inferior a 1 metro. Nesses
casos é conveniente fazer podas, limitando o número de galhos e dando à
muda uma arquitetura desejável. Ao eliminarmos o excesso de galhos, a
planta também direciona mais energia para o crescimento dos brotos
vegetativos principais, ganhando altura mais rápido, o que torna mais fácil
sua proteção contra as formigas cortadeiras.
• Controle de pragas. Em qualquer lugar que você esteja, se quiser plantar
alguma coisa, especialmente em situações rurais, provavelmente terá
problemas com pragas. As pragas variam enormemente de acordo com o
local e a espécie de planta, e também o sistema de manejo, etc. Você deve
estar atento ao ataque de pragas, e adotar medidas adequadas de acordo
com o caso.
• Roçagem. Em muitos casos, a vegetação espontânea, altamente rústica e
adaptada às condições locais, cresce muito mais vigorosamente que suas
mudas, e acaba por inibir sua plantação, podendo fazê-lo de diversas

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

formas: crescendo por sobre suas plantas, abafando-as e roubando-lhes a


luz do sol; liberando substâncias inibidoras que interferem negativamente
no crescimento de suas plantas (efeito alelopático); competindo
diretamente por nutrientes, ou seja, consumindo-os mais efcientemente e
fxando-os em sua própria biomassa, impedindo que suas plantas os
utilizem, etc. Por isso, uma parte importante do trabalho de manutenção
nas fases iniciais de estabelecimento de sua agroforesta é suprimir —
cortar ou arrancar — as plantas espontâneas que estejam ameaçando suas
mudas, e usar essa matéria vegetal morta como cobertura de solo.

Quantas e quais espécies usar?

Em relação a agroforestas, uma questão que frequentemente causa


confusão é a respeito da escolha das espécies, e da proporção ideal entre
árvores frutívferas e forestais ou nativas. Na verdade, isso não é importante —
qualquer proporção serve, desde que os objetivos de suprir as necessidades
humanas e prestar serviços ambientais sejam cumpridas. Se você tiver pouco
espaço, pode plantar só frutívferas, sem problemas. Plante o maior número de
espécies possívvel, e você terá sua agroforesta. Agora, se você tiver bastante
espaço, é importante plantar espécies forestais também, especialmente as
nativas e ameaçadas, contribuindo também para a restauração do ecossistema
local e a preservação dessas espécies.
Você pode optar, por exemplo, por fazer uma agroforesta só de frutívferas
na zona 3, uma agroforesta mista na zona 4, e plantar só espécies forestais na
zona 5. Ou pode fazer as três zonas mistas, variando apenas a intensidade do
manejo. Todas essas abordagens são válidas.
Na escolha das espécies frutívferas, um bom ponto de partida é ir
plantando o que você mais come e mais gosta, e aquelas espécies que se dão
bem em sua área, coisa que você pode facilmente se informar com seus
vizinhos, moradores mais antigos do local. Agora, é claro que você não deve se
limitar a isso. Pelo princívpio da máxima biodiversidade, quanto mais espécies,
melhor. Isso não signifca que você deve ser paranoico quanto ao número de
espécies, mas apenas buscar incorporar um grande número para ter um sistema
bem diversifcado. A biodiversidade natural da sua área pode ser uma boa fonte
de inspiração para responder a essa pergunta. Áreas com condições mais
restritivas naturalmente têm um número menor de espécies, altamente
adaptadas. Seu sistema deve imitar isso; caso contrário, se tentar incorporar ali
um número muito maior de espécies, provavelmente vai falhar, ou vai
conseguir a um custo energético, e de trabalho e de importação de recursos
demasiadamente alto, o que pode ser insustentável.
Já no que diz respeito a que espécies utilizar, é conveniente ter uma lista de
critérios para guiar suas escolhas, e sua busca por sementes. Tendo em mente os

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

objetivos e os princívpios da permacultura, podemos estabelecer os seguintes


critérios:
• Utilidade. Claro que todas as plantas têm alguma utilidade, mas
indubitavelmente algumas têm mais utilidade prática que outras. Ao
considerar uma espécie a ser incorporada ao seu projeto, pergunte-se: essa
planta vai ser particularmente útil para você? Vai produzir alimentos que
você possa consumir ou vender? Será uma boa fonte de madeira ou lenha,
ou útil para adubação verde? Será particularmente útil ao ecossistema
local, por exemplo, fomentando a fauna, trazendo pássaros, abelhas etc.?
Ou, caso você tenha como foco a produção para venda, terá que
considerar também, além da adaptabilidade às suas condições locais,
questões mercadológicas, etc.
• É espécie nativa? Você não deve ser extremista e excluir todas as espécies
que não forem nativas da sua área, mas é sempre importante valorizar as
nativas, ajudando a preservar e restaurar o ecossistema nativo da sua área.
• É espécie ameaçada? Procure incluir o maior número de espécies
ameaçadas em se projeto, atuando assim de forma efetiva na preservação
dessas espécies.
• Rusticidade/adaptabilidade. Principalmente nas fases iniciais de
desenvolvimento de um projeto de permacultura, é importante focar em
espécies mais rústicas ou altamente adaptadas às suas condições locais
(agricultura de sequência natural), e de preferência de desenvolvimento
rápido. Não adianta levar em consideração todos os critérios anteriores,
mas acabar escolhendo apenas espécies sensívveis e que difcilmente
sobreviverão às suas condições particulares — você pode acabar se
desgastando muito, esgotando seus recursos, e morrer de velho sem ver
seu projeto avançar! As plantas mais adaptadas cumprirão o papel de
pioneiras, melhorando as condições para o estabelecimento de espécies
cada vez mais sensívveis.
Qualquer espécie que preencher algum desses critérios pode ser
considerada em seu projeto, e quanto mais critérios ela satisfzer, maior sua
prioridade. Por outro lado, você não deve desperdiçar seu tempo, energia e
outros recursos com espécies que não preencham esses critérios.
Algumas espécies preenchem vários ou mesmo todos esses critérios, e
dentre essas, algumas são PANCs. Exemplos de PANCs frutívferas, arbustivas e
arbóreas, incluem o cambuci, cambucá, grumixama, pitomba, guariroba, araçá,
entre outras. Essas espécies devem ser sempre valorizadas, pois além de
alimentívcias são também grandes fomentadoras da fauna silvestre.
Agora, é impossívvel saber antecipadamente quais espécies terão sucesso
em seu terreno, com as suas condições particulares. É comum as pessoas
assumirem que espécies nativas da área terão grande vantagem, mas muitas

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

vezes isso não ocorre na prática, e os motivos para essa aparente contradição
são geralmente desconhecidos. Muitas vezes, espécies originárias de outros
ecossistemas substancialmente longívnquos e diversos têm maior sucesso que as
nativas da própria área. Por isso, o ideal é começar de forma bastante ampla,
usando a maior variedade possívvel de espécies, e ir vendo quais dão mais certo,
para depois focar nessas espécies. As espécies que não derem bom resultado,
você pode abandonar, ou insistir de novo mais tarde, tentando abordagens
diferentes, a seu critério. Mas, quanto maior a sua base (número de espécies
tentadas), mais opções você terá, e maiores suas chances de sucesso.

Fases de estabelecimento da agrofloresta

Podemos dividir o estabelecimento da agroforesta grosseiramente em três


fases: a inicial, a de crescimento e a de produção.
A fase inicial é a fase de tratamento do solo e plantio de mudas, conforme
descrito acima. Nessa fase, você concentrará seus esforços no plantio e
manutenção inicial de suas plantas. Aqui, você terá que decidir que espécies
usará, e como será sua disposição. Alguns técnicos orientam a plantação das
diferentes espécies na forma de padrões geometricamente regulares, por
exemplo, fleiras intercaladas; outros, recomendam a plantação de oligoculturas,
ou seja, o emprego de apenas duas ou três espécies consorciadas, e chamam
isso de agroforesta. Essas estratégias são, a meu ver, inapropriadas, e mostram
claramente que seus propositores estão ainda em certa medida presos ao
paradigma da agricultura convencional.
Claro que cada um terá sua própria abordagem, na escolha de onde plantar
suas mudas. O importante é ter sempre em mente o objetivo fnal, de se ter uma
foresta semelhante a uma foresta natural, mas com uma proporção elevada de
espécies úteis ao homem. Para isso, é fundamental conhecer as caracterívsticas e
necessidades de cada espécie vegetal em relação a umidade, solo, espaço,
exposição ao sol e interações com outras plantas e aspectos da topografa. Para
obter esse conhecimento, é preciso estudar sobre cada espécie do seu sistema,
mas também observá-las em seu contexto natural e em situações práticas reais.
Conversar com pessoas antigas do meio rural sobre este assunto também pode
ajudar bastante, pois eles têm uma enorme experiência, acumulada ao longo de
gerações. De posse dessas informações e observações, você deverá ser capaz de
olhar para o seu terreno, andar por ele, e visualizar locais que parecem
adequados para cada uma das suas espécies. Agindo assim, você terá um
resultado fnal que parecerá aleatório aos olhos dos outros, mas que na verdade
foi cuidadosamente arquitetado. Claro que você cometerá erros, mas continuará
aprendendo, pela observação dos seus resultados, por tentativa e erro, e por
novas informações e conhecimentos que adquirir pelo caminho.
Nesta fase de plantio, você pode colocar as plantas relativamente
próximas, num plantio denso, sem pensar tanto em um espaçamento fnal, pois

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

sempre haverá algumas perdas, ocorrendo então um certo raleamento.


Conforme o seu sistema amadurece e as árvores fcam muito grandes, se
necessário você pode fazer um desbaste, eliminando árvores improdutivas ou
desnecessárias em função de outras, mais interessantes, julgando caso a caso.
Na fase de crescimento, seu principal trabalho será de cuidado das mudas,
conforme descrito acima. A manutenção das bacias, bem como da cobertura
morta do solo, e especialmente a proteção contra formigas, são essenciais nessa
fase, e a irrigação pode ser importante para garantir que suas árvores cresçam e
entrem em produção o mais rápido possívvel. Nesta fase, você também poderá
ter que repor mudas que por algum motivo morreram.
A fase de produção é aquela por que tanto esperamos! Suas árvores
começarão a produzir, e você terá seu Jardim do Éden. Agora, você começará a
ter trabalho com colheita, além é claro de outros trabalhos de manutenção.
Conforme o sistema amadurece (estamos falando de várias décadas), pode
ocorrer uma queda na produtividade. Algumas árvores podem envelhecer e
parar de produzir, enquanto outras podem crescer demasiadamente, inibindo
espécies menores, etc. Portanto, para manutenção de uma alta produtividade,
pode ser necessário imprimir uma certa taxa de renovação de sua agroforesta,
com abate criterioso de algumas árvores e plantio de novas mudas.

Formigas cortadeiras

Quando você for fazer uma agroforesta, você terá que fazer algo a
respeito das formigas cortadeiras — saúvas e quenquéns. Acredito que isso vale
para qualquer parte do Brasil, e possivelmente qualquer parte da América
tropical, exceto talvez em grandes altitudes.
As formigas cortadeiras formam colônias imensas, com milhões de
indivívduos. Seus ninhos são gigantescos, com até 200 m 2 de área, e atingindo
profundidades de até 8 metros. Elas têm um apetite insaciável por plantas. Na
verdade, elas não comem as plantas, e sim levam para a colônia, onde usam essa
matéria vegetal para cultivar um fungo especívfco, do qual se alimentam.
Quando saem para forragear, saem aos milhares. Por onde passam,
formam caminhos que são verdadeiras estradas de formigas! Elas escolhem
uma planta, e cobrem essa planta de formigas enormes e vorazes. Vão cortando
e carregando os pedaços das folhas, e só param depois de desfolhar
completamente a pobre vívtima. Você chega, e encontra só o talinho, todo roívdo.
Seu efeito sobre hortaliças e mudas de árvores é simplesmente devastador. Em
um viveiro, podem destruir dezenas de mudas da noite para o dia.
Se você fzer uma pesquisa, encontrará várias propostas de técnicas para o
controle natural das formigas cortadeiras. Porém, infelizmente, na prática todas
deixam muito a deseja, em termos de efciência. Por isso, ao invés de tentar

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

combater as formigas, o melhor é proteger suas mudas e árvores jovens do


ataque através do uso de barreiras fívsicas que impeçam as formigas de
atingirem as folhas.
Uma técnica bastante simples, barata e efetiva para proteger suas mudas é
a do cone protetor, também chamado sainha anti-formiga ou técnica do
“chapéu chinês”. Trata-se de um cone que pode ser feito recortando-se
caixinhas de leite longa vida ou garrafas plásticas e grampeado ao redor do
caule da muda; na parte inferior, aplica-se vaselina sólida, que é totalmente
atóxica e atua como um repelente efetivo contra as formigas. Devido ao
formato e posição, o repelente fca protegido da chuva, garantindo sua
permanência e efcácia por mais tempo. Porém, é necessária atenção, com
vistorias regulares para verifcar a necessidade de reaplicação do repelente, ou
substituição do cone devido ao crescimento da planta. É necessário também que
se mantenha uma boa camada de cobertura vegetal morta sobre o solo ao redor
da planta, pois caso contrário as gotas de chuva, ao atingirem o solo, respingam
na parte inferior do cone, retirando o repelente ou impregnando-o com terra,
fazendo com que perca a efcácia.

1 2
Recorte

Aplique vaselina

4
3

Grampeie Pronto!

Cone protetor contra formigas cortadeiras

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Animais na agrofloresta

Animais desempenham papéis vitais em qualquer foresta, como


polinização, disseminação de sementes, reciclagem de matéria orgânica, etc.
Não existem forestas sem animais, por isso é incorreto dizer que os animais
estão na foresta — na verdade, eles são a foresta, são parte integrante e
inseparável dela. Os animais são a parte móvel da foresta. Por isso, eles
também devem estar presentes em qualquer agroforesta.
Claro que a existência de uma foresta luxuriante com abundância de
alimentos, abrigo e água naturalmente atrairá animais de todas as espécies
locais, que visitarão e provavelmente se instalarão ali, sendo portanto
benefciados, e assim a agroforesta desempenha um importantívssimo papel de
preservação da fauna silvestre local e fomento da biodiversidade. Também a
agroforesta é benefciada pelos serviços ambientais prestados pelos animais,
especialmente pelo vital serviço de polinização e por trazerem em suas fezes
sementes de espécies vegetais silvestres que enriquecem ainda mais a
diversidade do sistema.
A abundância de alimentos na agroforesta também signifca que você
pode introduzir animais domésticos de várias espécies como parte do sistema
agroforestal. Esses animais ocuparão nichos diferenciados dentro do sistema, e
além de produzirem alimentos, também atuarão na reciclagem da matéria
orgânica pela produção de esterco animal. Galinhas, vacas, cabras, porcos,
patos, abelhas... praticamente qualquer espécie de animal doméstico de
produção pode ser incorporado em um sistema agroforestal, sendo que as
espécies e raças mais indicadas variam de acordo com cada caso, fazendo
necessárias experimentações e ajustes.
Agora, não basta apenas criar animais — na permacultura, devemos
buscar sempre uma criação eficiente de animais. Uma criação efciente é aquela
em que mais recursos são produzidos do que consumidos pelos animais. A
imensa maioria das criações de animais pelo mundo são terrivelmente
inefcientes do ponto de vista de uso dos recursos, pois a quantidade de recursos
consumidos é muito maior que os produzidos. Por exemplo, a quantidade de
grãos consumida pelos animais daria para alimentar muito mais gente do que a
carne, leite e ovos produzidos, ou seja, os animais criados na verdade estão
competindo por alimentos com os humanos, e isso é um problema muito sério.
Você muitas vezes vai encontrar um pecuarista gabando-se que suas vacas
produzem 30 litros de leite por dia, por exemplo, mas isso não muda o fato que
ele está de fato importando muito mais recursos (ração, energia) do que
exportando na forma de leite, ou seja, sua fazenda é muito mais consumidora
de alimentos do que produtora de alimentos. É justamente isso que devemos
evitar.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Na criação efciente, os animais utilizam predominantemente recursos que


de outra forma seriam desperdiçados, como capim e outras ervas do sub-
bosque, frutas caívdas, folhas de árvores, insetos, vermes, lesmas (para aves,
suívnos e peixes), etc., convertendo efcientemente esses recursos em alimentos
de alta qualidade para humanos.
Observe que, na criação efciente de animais, eles são parte integrante do
sistema agroforestal (por isso também chamado sistema agrossilvipastoril),
habitando o espaço entre as árvores. Sendo assim, a criação de animais não
ocupa espaço ela própria — ela ocupa o mesmo espaço da agroforesta,
intercalando-se de forma móvel aos elementos vegetais (árvores). Agora, para
que essa criação integrada tenha sucesso, é fundamental que a escala de sua
criação de animais seja compatívvel com a capacidade de suporte de sua
agroforesta.
Claro que a criação de animais domésticos exige instalações adequadas
(abrigo, piquetes, bebedouros), manejo adequado para evitar sofrimento,
doenças e também danos ao sistema agrossilvipastoril e ao ambiente. Animais
podem ter um potencial destrutivo considerável, se invadirem uma horta, por
exemplo. Já animais grandes como porcos e vacas podem causar problemas de
erosão, se não forem manejados adequadamente.
A criação de animais em permacultura é um assunto que ainda necessita
ser muito aprimorado e desenvolvido. Por isso mesmo, é difívcil obter
informações detalhadas e especívfcas sobre o assunto, já que praticamente não
há literatura disponívvel. Sendo assim, neste atual estágio, para projetar e
estabelecer os seus sistemas de criação de animais, o melhor que você pode
fazer é estudar aprofundadamente a literatura especializada na criação das
espécies de seu interesse e fazer as adaptações necessárias à luz dos princívpios
da permacultura, para que suas criações sejam efcientes, produtivas, saudáveis
e sustentáveis, perfeitamente integradas com os seus demais sistemas
produtivos e o meio ambiente em geral.

Abelhas

Abelhas merecem uma menção especial, pois além de produzirem


produtos de alto valor, como mel e cera, ainda prestam um importantívssimo
serviço ambiental na forma de polinização. As abelhas produzem seus produtos
utilizando apenas recursos que de outra forma jamais seriam aproveitados para
uso humano: o néctar e pólen das fores. E o melhor, fazem isso sem consumir as
fores, e pelo contrário, ajudando-as, fazendo com que funcionem ainda melhor
em sua função reprodutiva. Além do mel e cera, a apicultura pode render ainda
outros produtos úteis a humanos e com bom valor comercial: geleia real, pólen
(ambos usados como suplementos nutricionais) e própolis (usado com fns
medicinais).

180
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Além das abelhas da espécie Apis mellifera, que são as mais comumente
criadas ao redor do mundo, deve-se olhar também com carinho para a criação
das inúmeras espécies de abelhas nativas do continente americano (e também
África e Oceania), especialmente as da tribo Meliponini, conhecidas
vulgarmente como abelhas sem ferrão, grupo que inclui as jataívs, mandaçaias,
uruçus, jandaívras e manduris, entre outras.
Embora a produção de mel seja substancialmente menor que das abelhas
do gênero Apis, a criação dessas espécies de abelhas é revestida de um
signifcado muito especial, pois representa um esforço de preservação dessas
espécies tão lindas e tão ameaçadas pela destruição de seu habitat natural e
poluição agrívcola por agrotóxicos. A preservação dessas espécies também
representa a preservação de inúmeras espécies de plantas que são polinizadas
efcientemente somente por elas, e portanto de todos os organismos que delas
dependem, ou seja, uma enorme parte dos ecossistemas. Além disso, a criação
de abelhas sem ferrão (ou meliponicultura) tem profundas raívzes históricas e
culturais, sendo praticada há milênios pelos maias, por exemplo. Trata-se ainda
de uma atividade extremamente recompensadora e prazerosa, que felizmente
ganha adeptos apaixonados a cada dia. A criação de abelhas sem ferrão é
considerada simples (o fato de elas não picarem também ajuda bastante) e
acessívvel, e pode ser realizada praticamente em qualquer lugar, desde uma mata
fechada até mesmo na varanda de sua casa, e mesmo nas cidades. E para
melhorar ainda mais, há uma boa fartura de literatura e materiais didáticos e
técnicos sobre o assunto disponívveis gratuitamente na internet.

Aquacultura

Em um projeto de permacultura, geralmente você terá grande quantidade


de água armazenada na forma de lagoas artifciais. Além da função óbvia de
suprimento de água para sua casa e sistemas produtivos entre outros, suas lagoas
ainda desempenharão outras funções, como encorajar a fauna silvestre local,
criar microclimas favoráveis ao ecossistema, paisagismo, etc.
As lagoas têm ainda grande potencial na produção de alimentos, através da
aquacultura. Pelos princívpios da permacultura, quanto mais funções um
elemento do seu sistema desempenhar, melhor. Por isso, devemos sempre
considerar a lagoa como local para abastecimento de água e produção ao
mesmo tempo, ou seja, seu uso na aquacultura.
A aquacultura na permacultura é radicalmente diferente da aquacultura
comercial convencional. Isso porque na aquacultura convencional, de forma
semelhante à agricultura e pecuária, você tem sistemas de altívssimo consumo de
recursos, como água e rações, além de grande geração de poluição das águas
por nutrientes, hormônios, drogas, etc. com grave impacto ambiental. Em
contraste, na permacultura imitamos os sistemas naturais, ou seja, como a

181
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

produção ocorre em ecossistemas aquáticos, especifcamente lagos e lagoas. Ou


seja, a aquacultura na permacultura funciona como uma “agroforesta aquática”.
Você terá que ter uma vegetação aquática variada, crescendo naturalmente na
sua lagoa, para servir de alimento e abrigo aos peixes, ou seja, criando ali um
habitat adequado. Também pode incluir diversas espécies em uma criação
integrada. A escolha dessas espécies deverá ser orientada por técnicos das
diversas áreas da aquacultura, mas também será necessário fazer experimentos
para aprender por tentativa e erro as espécies e combinações que darão certo na
sua situação particular.
Você pode criar peixes, rãs, pitus (camarões de água doce), entre outros.
Uma vez que suas lagoas estejam estabelecidas e cheias, com vegetação já
instalada e estabilizada, e depois de passado pelo menos um ou dois anos, para
você se certifcar que um bom nívvel de água é mantido o ano todo, entre em
contato com empresas e laboratórios especializados em aquacultura
(piscicultura, ranicultura, carcinicultura, etc.), bem como departamentos de
universidades nessas áreas, para obter orientações especívfcas em relação a que
espécies usar, e técnicas de criações integradas.
Você terá que fazer análises da água de suas lagoas, o que orientará na
escolha das espécies e correções necessárias às condições da lagoa para
propiciar a criação. Explique aos técnicos e fornecedores de alevinos, girinos e
larvas os seus objetivos. Muitos não entenderão ou aceitarão, por estarem
presos ao paradigma dominante da monocultura. Porém, alguns se interessarão
pela ideia, e aceitarão com prazer o desafo de fazer diferente. O conhecimento
das combinações possívveis de espécies e ambientes deverá ser construívdo caso a
caso, pois variam enormemente de acordo com as condições do ambiente local.
Você pode focar em animais que vivem naturalmente em águas paradas,
já que essencialmente é isso que você terá nas suas lagoas. Ou então, pode
pensar em sistemas de agitação e aeração da água que tenham alta efciência
energética, aumentando suas opções de espécies.
Escolha espécies que possam ser alimentadas com produtos naturalmente
disponívveis no seu terreno: espécies de peixes frugívvoros que possam ser
alimentados com restos de frutas caívdas, e espécies herbívvoras que se
alimentem de plantas aquáticas que crescem na própria lagoa, por exemplo.
Você pode usar minhocas ou larvas de mosca soldado negra, criadas em suas
composteiras, para alimentar peixes e rãs. Também pode alimentar seus peixes
com larvas de insetos, especialmente moscas, produzidas em larvários.
Larvários são equipamentos destinados à produção de larvas, consistindo de
uma bandeja de bordas elevadas (15 a 25 cm de altura), uma cobertura e um
recipiente coletor de chorume, no fundo. Na bandeja, depositam-se restos
animais e vegetais (restos de açougue e carcaças de animais mortos, vívsceras,
etc., e também restos de frutas, comida estragada e, talvez, estrumes animais).

182
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Os restos orgânicos atrairão moscas, que ali depositarão seus ovos. Em poucos
dias, você terá uma infnidade de larvas, que podem ser lançadas à lagoa para
alimentar os peixes (podendo ser fornecidas também a galinhas e outras aves).
Após a colheita das larvas, os restos orgânicos e chorume devem ser
adicionados à composteira, e o larvário lavado para ser novamente utilizado. Os
larvários devem sempre contar com uma cobertura, para evitar entrada de água
da chuva ou calor excessivo e desidratação pela ação do sol. A manutenção de
umidade adequada é importante, pois permitirá o desenvolvimento máximo das
larvas que consumirão a matéria orgânica rapidamente. A colheita de larvas
normalmente se dá quatro dias após adição do material orgânico.

Zona 4

A zona quatro já é uma área onde você raramente vai. Ela pode ser uma
agroforesta mais extensiva, sem podas, adubação ou irrigação, sendo mais
viável portanto para espécies menos exigentes, mais rústicas ou adaptadas, além
é claro das nativas espontâneas. É uma zona ideal também para plantar espécies
madeireiras para uso no futuro.
Por ser mais distante, menos manejada, o estabelecimento da zona quatro
tende a ser mais demorado. Aqui, você pode focar nas técnicas de plantio mais
simplifcadas; aplicará as técnicas adequadas de retenção de umidade, ou seja,
bacia e cobertura vegetal, somente nas fases iniciais de estabelecimento.
Geralmente, irrigação não é viável na zona quatro. Por isso, deve-se
procurar plantar somente na primeira metade da estação chuvosa. Assim, você
terá uma boa taxa de germinação de suas sementes, e com sorte a maioria de
suas mudas conseguirão se desenvolver e enraizar sufcientemente para
sobreviver ao perívodo seco subsequente.
Devido ao fato de ser um sistema bastante extensivo, de baixo manejo,
você pode esperar por uma taxa de perdas considerável. Por isso, não tenha
medo de plantar em excesso, especialmente sementes, que têm baixo custo
(sempre lembrando que sementes e mudas podem ter custo virtualmente zero,
se você coletar suas próprias sementes e produzir suas próprias mudas).
Na fase de estabelecimento de sua agroforesta, que levará alguns anos,
você vai ter que fazer manutenção periódica: controle de plantas indesejáveis,
especialmente capins, para que não abafem suas mudas; refazer as bacias e
reaplicar cobertura vegetal conforme necessário, replantar para substituir as
mudas que morreram e, muito importante, proteger suas mudas do ataque de
formigas cortadeiras com o cone protetor. Depois que a muda atinge uns 3
metros de altura, geralmente já pode ser considerada fora de perigo, e você
pode concentrar seus esforços somente nas menores.

183
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Após estabelecida sua agroforesta da zona quatro, você irá lá muito


raramente — somente mesmo para colher as frutas da estação, colher lenha,
colher sementes de suas espécies forestais para ajudar na recuperação de outras
áreas (você pode doar e/ou vender sementes e mudas) e, no longo prazo, abater
alguma árvore para utilização de sua madeira.
Aliás, por falar em madeira, é importante tocar em um assunto: a
humanidade se meteu em uma grave crise de abastecimento de madeira. A
madeira é um material essencial à humanidade, e após milênios de exploração
predatória, conseguimos praticamente acabar com esse recurso, sendo que as
árvores de madeira nobre remanescentes devem ser preservadas a todo custo,
pois correm sério risco de extinção. Por isso, quando planejamos e plantamos
agroforestas, devemos sempre incluir árvores madeireiras de alta qualidade,
especialmente as ameaçadas, visando ao mesmo tempo sua preservação e seu
uso futuro. É importante não confundir isso com aquele discurso mentiroso dos
madeireiros e grandes desmatadores, empreiteiras e corporações poluentes em
geral, que prometem que “para cada árvore cortada, plantarão cem novas
árvores”. Isso não passa de uma jogada de greenwashing*, ou seja, uma mentira
contada por empresas para conseguirem destruir o quanto quiserem, e ainda
posar de defensoras da natureza. Agora, vá você lá, peça para eles te mostrarem
a foresta que estão plantando. Será que existe mesmo? Será que as mudinhas
que plantaram realmente compensam pelas árvores destruívdas?
O que devemos fazer é plantar muitas árvores, para que no futuro
possamos, nós ou nossos flhos e netos, colher parte dessas árvores, e que nossos
descendentes também plantem, para que os seus flhos e netos também possam
consumir, e que isso se torne uma tradição em que todas as gerações plantem
árvores, de modo que sempre haverá madeira de qualidade para ser colhida, e
que a quantidade de árvores e madeiras disponívveis só aumente com o passar do
tempo — exatamente o oposto do que a humanidade vem fazendo.

Corredores ecológicos

As zonas 3, 4 e 5, por serem mantidas cobertas por agroforestas e


forestas, podem ser consideradas áreas de preservação ambiental permanente.
No nosso planejamento por zonas de proximidade e intensidade, essas
zonas mais extensivas são, naturalmente, dispostas de forma periférica no
terreno, ou seja, mais afastadas da casa e cobrindo a área das margens,
estendendo-se até os limites com as propriedades vizinhas, e isso traz um efeito
benéfco de particular importância, pois essas zonas passam a cumprir o papel

* Greenwashing ou “lavagem verde” é uma técnica ardilosa de marketing usada por


empresas causadoras de grande impacto ambiental para iludir seus consumidores que
seus produtos ou práticas são ecológicas, visando aumentar a aceitabilidade pública e,
consequentemente, vender mais.

184
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

de corredores ecológicos.
Os ecossistemas ao redor do mundo estão sofrendo não apenas por sua
destruição, mas também por sua fragmentação. Não basta que haja áreas com o
ambiente preservado, sendo também de vital importância que essas áreas sejam
conectadas, e não isoladas. Essa conexão é essencial para que haja o fuxo de
animais e plantas (sementes), microrganismos, etc. de uma área para outra.
Quando você tem áreas de natureza preservada mas essas estão isoladas umas
das outras, por exemplo por áreas de pastagens ou estradas largas, ou grandes
cidades, etc., isso traz vários problemas, pois a maioria dos animais são
incapazes de atravessar esses obstáculos, fcando presos, “ilhados” em um
desses bolsões de natureza. Animais que necessitam de vastas áreas, como
grandes felinos, por exemplo, veem-se extremamente prejudicados nessa
situação, pois a “ilha” de natureza onde se encontram talvez não contenha
recursos (e.g. presas) sufcientes, mas teriam sua sobrevivência garantida se
pudessem transitar entre as áreas preservadas, ou seja, se fossem conectadas.
Assim, elas passariam a representar uma grande área que seria, sim, capaz de
sustentar aquela espécie em questão.
Outra questão vital é a do fuxo genético entre as diferentes áreas. Sabe-se
que a diversidade genética é vital para a saúde das populações de animais e
plantas. Quando poucos indivívduos são mantidos isolados dos demais da sua
espécie, o que acaba ocorrendo é o endocruzamento, o que leva a uma alta taxa
de homozigose, trazendo efeitos deletérios à saúde, que em casos extremos
pode levar ao colapso populacional e extinções de espécies. É isso que
comumente ocorre quando você tem áreas naturais isoladas umas das outras,
impedindo o fuxo genético entre elas.
Corredores ecológicos, também chamados corredores de biodiversidade,
são faixas de vegetação preservada que ligam fragmentos forestais (ou de
outros ecossistemas) remanescentes separados pelas atividades humanas
(desmatamento, pastagens, agricultura, cidades, etc.), possibilitando o
deslocamento da fauna entre esses fragmentos e, consequentemente, a dispersão
de sementes, contribuindo portanto para a preservação da diversidade genética
e do ecossistema como um todo.
Perceba que não estamos falando de aumentar a área de preservação
(embora isso também seja muito importante!), mas sim de conectar as
diferentes áreas. Por exemplo, você pode ter 20% de natureza preservada em
uma região, e ter uma redução progressiva na saúde genética desse ecossistema,
e espécies irem desaparecendo ao longo do tempo, porque essas áreas de
natureza preservada estão desconectadas, formando “ilhas”. Se esses mesmos
20% fossem conectados através de corredores ecológicos, você teria uma
estabilidade muito maior do ecossistema, ou seja, um desempenho bem melhor
da função de preservação ambiental.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

“A disposição de áreas de preservação nas margens das


propriedades cria corredores de biodiversidade.”

Isso vale para qualquer região do mundo. Todas as áreas rurais deveriam
contar com áreas de proteção ambiental, conectadas formando corredores
ecológicos. Agora, isso é simples de se fazer: basta que todas as propriedades
rurais disponham suas áreas de preservação nas margens do terreno, mantendo a
vegetação preservada numa faixa ao longo das divisas com outras propriedades.
Assim, essas áreas de preservação das diferentes propriedades se fundem,
formando uma malha que permite o livre fuxo dos animais e da biodiversidade
em geral. Isso acontece automaticamente na permacultura, pelo planejamento
por zonas.

Zona 5

Este é o seu santuário natural, seu maior tributo à natureza. Aqui, faça um
reforestamento com espécies nativas, visando a reconstituição do ecossistema
local. Plante espécies ameaçadas do bioma da sua região. Também plante
espécies frutívferas nativas, para nutrir e encorajar a fauna local.
Quanto ao estabelecimento, é semelhante ao da zona quatro. Após
estabelecida sua zona cinco, esse será um local onde você quase nunca vai —
exceto para meditar quietamente, ou verifcar se não há algum problema. É
importante não perturbar essa área, para não afugentar aquelas espécies muito
sensívveis que simplesmente não toleram a presença humana. Não entre lá para
apanhar lenha — deixe-a apodrecer ali mesmo, como sempre foi na natureza.
Pense na sua zona 5 como uma espécie de “mata virgem do futuro”, que,
com algum otimismo, daqui a alguns séculos ainda estará lá, com algumas das
árvores que você mesmo plantou ainda vivendo lá, assim como descendentes de
outras árvores que você plantou, e outras que vieram sozinhas, em meio a um
ecossistema completo e perfeito, servindo de refúgio e expansão de vida natural
para toda a área ao seu redor.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Estabelecendo um projeto de permacultura rural

Começar um projeto de permacultura rural é um grande empreendimento,


que exige planejamento extenso e cuidadoso, recursos fnanceiros e muita
determinação e paciência. Viver da terra e em harmonia com a natureza é o
estilo de vida mais digno que pode existir; porém, para quem está acostumado a
um estilo de vida urbano, isso representa uma mudança radical. Sem dúvida,
trata-se de uma mudança que vale a pena, e de fato uma mudança necessária,
mas ilude-se quem pensa que é uma mudança fácil.
Muitas pessoas imaginam que a principal barreira a essa mudança de vida é
a aquisição de um pedaço de terra onde possam desenvolver seus projetos.
Porém, esse é na verdade apenas um de muitos obstáculos nessa corrida. Pode-se
dizer que as coisas mais importantes são em primeiro lugar ter conhecimento da
permacultura, e em segundo lugar ter um plano sólido, uma estratégia bem
bolada para viabilizar a transição, a mudança do estilo de vida que se tem para o
que se deseja alcançar. Só então se pode pensar em adquirir o terreno, passando
necessariamente pelo obstáculo fnanceiro. E por último, mas não menos
importante (de fato, absolutamente essencial), é necessário ter a coragem, a
garra e a determinação para fazer seu projeto dar certo.
A aquisição de conhecimentos sobre a permacultura será discutida em um
capívtulo especívfco (capívtulo 16, “Aprendizado da Permacultura”).

Estratégia de transição

São muitos os pontos a considerar quando da elaboração do plano de


transição para um projeto de permacultura rural. Entre eles, podemos destacar:
• Objetivos
• Atividades a serem desenvolvidas
• Modelo de assentamento
• Escala
• Escolha da região
• Escolha do terreno
• Aquisição do terreno
• Estratégia de implementação do projeto em si

Os objetivos especívfcos de um projeto de permacultura podem variar


enormemente de pessoa para pessoa. Claro que os objetivos gerais da
permacultura, de prover as necessidades humanas enquanto preservando e
restaurando o meio ambiente, devem ocupar uma posição central em qualquer
projeto, mas isso ainda dá margem a uma imensa variação de objetivos
especívfcos.

187
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

O foco pode ser apenas uma moradia ecológica, feita com materiais e
técnicas naturais, alta efciência energética, captação de água de chuva e
tratamento sanitário de efuentes, com um limitado esforço em produção de
alimentos; pode ser voltado para produção de alimentos para consumo próprio,
em pequena escala, ou uma produção comercial de alimentos e outros produtos
orgânicos. Um projeto de permacultura pode visar alcançar um estilo de vida
altamente natural, integrado aos ciclos da natureza, autossufciente, ou mesmo
primitivo! Pode ainda ser voltado para a pesquisa, promoção e divulgação da
permacultura, ou seja, um centro de permacultura, etc. É bom que esses
objetivos já estejam estipulados desde o inívcio do planejamento do projeto, para
melhor guiar as estratégias e esforços em seu estabelecimento. Mas claro que
nada impede uma mudança de foco no decorrer do desenvolvimento do projeto.

Atividades a serem desenvolvidas no projeto. Aqui, as opções são


inúmeras, sendo limitadas apenas pelas éticas da permacultura (ou seja,
atividades que fram essas éticas não devem ser consideradas). Cultivo orgânico
de alimentos, sejam hortaliças, grãos, frutas, etc., aliado a atividades de
preservação e recuperação ambiental são essenciais a qualquer projeto de
permacultura rural. Agora, você tem inúmeras outras opções de atividades que
podem ser desenvolvidas, seja para suprir suas necessidades ou uma satisfação
pessoal, ou para contribuir para a sociedade e o meio ambiente de diferentes
formas, ou com a fnalidade de obter uma renda, etc. Por exemplo, a produção
de outros produtos vegetais úteis, como madeiras, fbras, ervas medicinais;
reforestamento e estabelecimento de agroforestas; criação de animais para fns
alimentívcios e/ou conservação de espécies nativas e fomento da fauna;
aquacultura, tanto para produtos animais como vegetais; apicultura e
meliponicultura; produção de cogumelos comestívveis; reciclagem de materiais,
hospedagem, educação ambiental, terapias holívsticas, atividades artívsticas e
recreativas, etc. Essas atividades podem ser desenvolvidas de forma individual
ou coletiva, de modo informal ou através de uma empresa privada, algum tipo de
associação ou mesmo organização não governamental (ONG), etc.
A escolha das atividades a serem desenvolvidas depende essencialmente
dos interesses e aptidões do permacultor, mas sempre levando em consideração
também os potenciais do terreno e da região (e.g. demandas do mercado). É
preciso ter uma mente aberta e uma postura fexívvel, pois esses fatores
infuenciam-se mutuamente, moldando o que será o projeto. Por exemplo, os
interesses do permacultor infuirão na escolha do terreno e da região, de forma a
possibilitar suas atividades; porém, o terreno em si também infuirá na decisão
de que atividades serão desenvolvidas. Por exemplo, o permacultor poderia não
estar pensando inicialmente em focar em aquacultura, mas caso o terreno
escolhido seja muito favorável, isso pode e deve despertar tal interesse. Da
mesma forma, uma demanda regional por turismo rural ou ecoturismo, ou seja,
um turismo mesclado com educação ambiental, poderá estimular o permacultor
a investir nessas atividades. Há que se ter em mente que não existem terrenos

188
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

feitos sob medida, ou seja, na procura de um pedaço de terra, você jamais


encontrará algum que se encaixe perfeitamente nas suas expectativas, e o mesmo
pode ser dito da região em que se encontra. Então, você terá que escolher entre
as opções reais disponívveis. Mas isso deve ser encarado de forma positiva, pois
trará desafos interessantes, e oportunidades que você nem tinha imaginado.

Modelo de assentamento. Um projeto de permacultura rural pode ser


individual ou coletivo. Projetos individuais têm a vantagem de permitir ao
permacultor maior liberdade em todas as escolhas envolvidas na elaboração do
projeto, desde a escolha do local, do terreno, das atividades desenvolvidas, etc.
Um assentamento permacultural coletivo é o que chamamos de ecovila. Isso
oferece a grande vantagem de não se estar sozinho: claro que todos os trabalhos
tendem a render mais se feitos a muitas mãos; muitas cabeças também pensam
melhor que uma, então ao menos teoricamente a participação de várias pessoas
ajudaria na elaboração de projetos mais efcientes. Além do mais, um
assentamento coletivo possibilita um contexto social muito mais favorável,
levando a uma qualidade de vida melhor. Porém, a opção de um assentamento
coletivo também traz importantes desafos: formar um grupo é geralmente muito
difívcil, pois embora sempre haja pessoas interessadas em formar uma ecovila,
poucos estão de fato preparados para fazer essa mudança em seu estilo de vida,
ou dispostos a deixar sua zona de conforto, seus empregos, etc. e se mudar para
a zona rural, trabalhar a terra, etc. Além disso, quando todas as decisões devem
ser tomadas por consenso, isso implica no tolhimento da liberdade de cada um
tentar o que quer, experimentar coisas diferentes, etc., o que costuma levar a
frustrações. Do mesmo modo, a obrigação de se fazer o que foi determinado pela
maioria, mesmo que não se concorde com o que foi decidido, é muitas vezes
desmotivante. Outro problema é que, geralmente, há membros que se
empenham muito no estabelecimento e manutenção da ecovila, enquanto outros
não, o que gera confitos e todo tipo de problemas de relacionamento. Ecovilas
serão discutidas em maior detalhe no capívtulo 15, “Comunidades em
Permacultura”.

Escala. A permacultura é aplicável em qualquer escala, pois os princívpios e


técnicas da permacultura funcionam tanto em um pequeno quintal como em
centenas de hectares de terra. Nada impede o estabelecimento de uma
agroforesta altamente produtiva e ambientalmente benéfca em uma grande
fazenda, por exemplo. Porém, em relação à escala de projetos de permacultura,
há alguns pontos que merecem consideração.
Pela terceira ética da permacultura (partilha justa), não devemos possuir
mais bens ou utilizar mais recursos que o necessário para a nossa vida. Sendo
assim, pode-se dizer que a acumulação de terras fere essa ética, de modo que
seria paradoxal pensar em um latifúndio permacultural. Por outro lado, a
conversão de terras da agricultura convencional para a permacultura é
extremamente benéfca para a natureza, e também para a sociedade, quer pelos

189
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

serviços ambientais prestados, ou pelos alimentos naturais e saudáveis


produzidos, etc.
Porém, outro ponto importante é que a permacultura representa um estilo
de vida simples e em contato e integração com a natureza e todos os seus
elementos — uma vida de intimidade com a terra e todas as coisas que vivem
nela. Agora, é impossívvel a qualquer pessoa ter intimidade com uma vasta área
de terra. Um contato próximo, ívntimo com a natureza, no pleno e verdadeiro
sentido de cuidar da terra limita o tamanho da área que cada um pode
efetivamente ocupar, utilizar e cuidar a um pedaço relativamente pequeno.
De qualquer forma, a despeito dessas que são considerações flosófcas,
resta o fato que a grande maioria dos projetos de permacultura rural são
desenvolvidos em áreas pequenas, chácaras de 1000 m 2 a até uns 10 hectares.
Por esse motivo, focaremos nossa discussão sobre permacultura rural em
projetos de pequena escala.

Escolha da região. Na maioria das vezes, pessoas interessadas em iniciar


um projeto de permacultura rural vêm de um contexto urbano, muitas vezes de
grandes cidades. Isso implica na necessidade de se mudar para uma outra região,
e diversos fatores devem ser considerados na escolha desse novo local.
Se o permacultor já tiver um local conhecido com o qual sente grande
afnidade, isso pode ser um bom ponto de partida. Já conhecer o local e gostar
dele é uma grande vantagem, pois mudar-se para um local desconhecido traz
sempre riscos muito maiores de não adaptação.
Outro fator importante a ser levado em consideração é o contexto humano
do local. Deve-se ter em mente que o estilo de vida da permacultura é muito
diferente do da maioria das pessoas, tanto do meio urbano como rural. Você
estará buscando recuperação ambiental e reintegração com os ciclos naturais,
etc., enquanto a maioria das pessoas, inclusive na zona rural, buscam coisas bem
diferentes. Inserir-se num meio qualquer pode signifcar isolamento e a não
aceitação do permacultor pela comunidade local, pelas pessoas que já estão lá.
Acontece que integração e bom relacionamento com a sociedade maior ao seu
redor são essenciais para que um projeto de permacultura atinja o máximo de
seu potencial transformador, sendo fundamental também para o bem-estar,
felicidade e realização do permacultor, já que nenhum homem é uma ilha, e
ninguém é feliz isolado. E não se trata apenas de bem-estar — uma situação
dessas de isolamento e confito com a sociedade ao redor pode representar um
empecilho imenso, reduzindo substancialmente as suas chances de sucesso no
local, ou seja, a sobrevivência do seu projeto. E não espere que você vai ser
capaz de mudar a cabeça das outras pessoas. Embora isso não seja impossívvel, é
um processo demorado, e em muitos casos simplesmente não acontece; portanto,
não se deve jamais contar com isso.
Sendo assim, é muito importante que, ao se escolher o local para um
projeto de permacultura, procure-se um lugar com uma certa pegada alternativa,

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

onde estilos de vida não convencionais sejam comuns e bem aceitos, e de


preferência onde já haja pessoas desenvolvendo alguma atividade afm, como
agricultura orgânica, biodinâmica ou permacultura mesmo, pedagogias
alternativas, onde haja alguma ONG ambientalista ativa, etc. Trazer um novo
projeto de permacultura a uma região onde já haja iniciativas semelhantes
fortalecerá a todos. Deve-se ter em mente que o isolamento enfraquece à mesma
medida que a união fortalece, e estabelecer com sucesso um projeto de
permacultura normalmente já é um desafo grande o sufciente — não se deve
procurar por empecilhos extras!
Claro que isso não quer dizer que jamais haverá projetos de permacultura
em novos lugares. Porém, novos projetos de permacultura em locais onde ainda
não há uma mentalidade alternativa devem ser iniciados preferencialmente por
pessoas já estabelecidas na região, moradores já conhecidos por todos, por
exemplo, ou por permacultores experientes, que terão o respaldo de sua
reputação para conquistar o respeito e até despertar a curiosidade e interesse da
comunidade local.
A escolha da região também deve levar em consideração a estratégia de
implementação (discutida mais adiante) do projeto, ou seja, o plano de transição.
Por exemplo, no caso de um profssional de determinada área que planeje
trabalhar meio perívodo em sua profssão enquanto investe na construção de seu
projeto, a região escolhida deve possibilitar esse trabalho, ou seja, deve haver
demanda e oportunidade para que esse plano dê certo.

A escolha do terreno é outro ponto crívtico óbvio no estabelecimento de


um novo projeto de permacultura rural. Na escolha do terreno, vários são os
fatores a serem considerados:
• Tamanho, a ser defnido de acordo com as atividades a serem desenvolvidas
no projeto.
• Preço. Tem que ser compatívvel com as condições fnanceiras do
permacultor ou grupo.
• Acesso e distância da cidade. Às vezes, a pessoa encontra um “terreno dos
sonhos”, com muito verde, natureza, nascentes ou mesmo cachoeiras, etc.,
mas... a 30 km da cidade mais próxima, com acesso precário. É receita
infalívvel para o sonho virar pesadelo! Aqui, é preciso ser realista:
implementar um projeto de permacultura rural não é brincadeira, e uma
distância excessiva da cidade mais próxima pode ser o fator fatal para
tornar o sonho inviável. A implementação do projeto invariavelmente
levará anos, e por todo esse perívodo você precisará conciliar a construção
do projeto com um emprego ou fonte de renda, o que signifcará idas e
vindas frequentes, provavelmente diárias à cidade, e uma grande distância
signifcará altos custos de tempo e dinheiro, além de impacto ambiental
(poluição do seu veívculo). Mesmo quando o projeto estiver maduro, quanto

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

maior a distância, maior a difculdade de vender sua produção, por


exemplo. E se o terreno não for servido por transporte escolar? Isso
signifcará que jamais poderá haver crianças no projeto — detalhe muitas
vezes esquecido na hora da escolha do terreno. Claro que sempre se pode
criar uma escola dentro do próprio projeto ou ecovila; porém, isso levará
anos para ser possívvel ou viável, e um projeto iniciado em um terreno
muito remoto provavelmente não durará tanto, ou não atrairá um número
sufciente de pessoas, justamente pela difculdade de se romperem todas as
barreiras adicionais impostas pela distância e isolamento.
Muitas vezes, de tão desgostosas com a sociedade e as cidades, os
aspirantes a permacultores escolhem deliberadamente um terreno o mais
isolado possívvel “da civilização”. Cometem assim um erro fatal, que via de
regra leva ao fracasso de sua iniciativa, lançando-as de volta àquela mesma
realidade da qual queriam se distanciar.
• Vizinhança. O mesmo já exposto em relação à escolha da região vale
também para a escolha do terreno em si, em relação ao contexto humano
da vizinhança. A vizinhança imediata é como um “microclima” — serão as
pessoas com quem você mais terá contato. É importante evitar terrenos
com vizinhos indesejáveis, como aqueles que praticam uma agricultura
predatória (desmatamento, pesticidas, queimadas), terrenos cortados por
rios poluívdos, vizinhanças violentas, com altos ívndices de criminalidade,
etc.
• O terreno em si, deve ser um local agradável, atrativo, um local onde o
permacultor deseje se instalar. Isso é muito subjetivo, mas muito
importante. Você deve se sentir bem no local, e enxergar nele o potencial
de criar ali o paraívso que deseja. Isso signifca uma afnidade, uma sensação
de pertencimento — não que o local pertença ao homem, mas sim que o
homem pertença ao local. Esse vívnculo é essencial para a motivação, o
amor e o empenho que serão necessários na construção do projeto.
• As condições do terreno. Muitas pessoas, sonhando em viver “em harmonia
com a natureza”, procuram um terreno coberto de matas nativas e
ecossistemas intactos. Mas isso na verdade é um grande erro, pois assim,
normalmente o que essa pessoa estará fazendo na prática é justamente levar
degradação e poluição a esse local, onde esses problemas não existiam.
Claro que é sempre bom ter um pedaço de mata no seu terreno, para você
usufruir e, acima de tudo, proteger; porém, é muito importante que o
terreno escolhido para um projeto de permacultura rural possa ser de fato
ele mesmo benefciado pelo projeto, ou seja, é na verdade preferívvel
escolher um terreno degradado, para que o permacultor possa empenhar-se
na recuperação do solo, da água e dos ecossistemas nesse pedaço de chão,
de forma que seu papel em relação ao mundo natural seja um papel
positivo. Porém, é preciso tomar cuidado com terrenos muito desafadores,

192
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

que trarão difculdades excessivas para a implementação do projeto, pois


isso signifcará que serão necessários muito mais tempo e recursos até que
se consiga torná-lo habitável e obter algum retorno, o que pode, na prática,
inviabilizar o projeto.

É importante ressaltar que os critérios aplicados à escolha de um terreno


para iniciar um projeto de permacultura rural são diferentes dos utilizados por
agricultores convencionais. Isso porque os objetivos são radicalmente diferentes:
o permacultor busca uma vida natural e sustentável, em harmonia com a
natureza, enquanto o agricultor busca apenas sucesso fnanceiro para seu
empreendimento rural, ou seja, está preocupado apenas com lucro. Assim,
quando você estiver procurando terrenos para iniciar um projeto de
permacultura, ouvirá muitas pessoas aconselhando a comprar terrenos com
terras férteis e abundância de água. Para o permacultor, esses não são critérios
prioritários, já que o permacultor está interessado em construir a fertilidade do
solo e cultivar a água, ao invés de apenas explorá-los.

Aquisição do terreno. Você pode ser a favor ou contra a ideia da


propriedade privada de terra; porém, o fato é que essa é a situação vigente na
nossa sociedade, e portanto a realidade a ser encontrada por praticamente todas
as pessoas interessadas em iniciar um projeto de permacultura rural. Por mais
esdrúxulo que possa ser considerado o conceito de propriedade privada de um
pedaço do planeta que existe ali desde sempre sem que isso seja mérito de
qualquer pessoa, especialmente nos casos tão comuns em que esse pedaço de
terra está abandonado, mantido como propriedade ou posse de alguém apenas
como forma de manutenção e acumulação de riqueza, e mesmo que você
considere que esse sistema tem que ser revisto, é inútil ou pelo menos
contraproducente tentar modifcar isso justo no momento de iniciar um projeto
de permacultura, quando já se terá que enfrentar inúmeros desafos, sendo
portanto um momento delicado. Portanto, é importante ser realista: para se
iniciar um projeto de permacultura rural, você precisará de capital para comprar
terras (a não ser, claro, que você já possua terra).
Um projeto de permacultura é um projeto de longo prazo: construir a
fertilidade do solo, plantar água e recuperar ecossistemas, tudo isso leva um
certo tempo para se estabelecer e colher os benefívcios, que serão permanentes.
Portanto, geralmente não é recomendável iniciar um projeto de permacultura em
terrenos dos outros, alugados ou arrendados, etc. Certamente não é
recomendável tentar iniciar o seu projeto de vida nessas condições! Talvez você
encontre um parente, amigo ou vizinho que tenha terras ociosas e esteja disposto
a emprestá-las para você, ao ouvir suas ideias. Não há nada de errado em aceitar,
e começar a fazer algumas coisas nesse terreno, especialmente se você for um
permacultor iniciante e não tiver condições de iniciar um projeto defnitivo, seja
por não ter condições fnanceiras de comprar terras, ou por ainda estar preso a

193
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

situações como estudo, trabalho etc. Esse tipo de oportunidade pode ser útil para
pôr em prática os princívpios da permacultura, adquirir experiência, etc. Mas é
importante ter em mente que se trata de um projeto provisório, e não fazer
grandes investimentos ou criar expectativas de longo prazo, pois a qualquer
momento o dono tomará o terreno de volta e destruirá tudo o que você estava
fazendo ali. Isso é muito comum. Portanto, aceite a oportunidade, se quiser, mas
não se apegue ao terreno que não é seu! Essa mesma recomendação se aplica
também a projetos de permacultura urbana, como veremos mais adiante no
capívtulo 13.
Infelizmente, fnanciamentos ou empréstimos geralmente não são
disponívveis a pessoas interessadas em iniciar projetos de permacultura.
Financiamentos para comprar terras agrívcolas em geral são bastante restritos e
não acessívveis a pessoas que ainda não tem terras nem são agricultores. Além
disso, tais fnanciamentos, quando existentes, obrigam o contratante a seguir
recomendações técnicas impostas pelo banco, que na prática impedem a
aplicação dos princívpios da permacultura, pois são ditadas pela agricultura
convencional.
Além do mais, não é uma boa ideia se endividar para iniciar um projeto de
permacultura. Não que a permacultura não possa dar lucro, mas por se tratar de
um empreendimento de longo prazo e largamente experimental, especialmente
no caso de permacultores iniciantes, não se deve contar com lucros a curto e
médio prazo. A pressão de uma dívvida, e especialmente dos juros, pode
signifcar um fm triste para um projeto que quer nascer.
Por tudo isso, a forma mais segura e mais indicada de se aquirir terra para
iniciar um projeto de permacultura é com recursos próprios. Eu sei que pode
soar desanimador, mas caso ainda não se disponha dos recursos, vale a pena se
segurar no emprego por mais um tempo, ou arrumar um emprego caso já não
tenha um, e economizar ao máximo para poder juntar o dinheiro necessário, no
mais curto prazo possívvel. Essa “espera” não é necessariamente uma coisa ruim:
esse perívodo deve ser utilizado para que o aspirante a permacultor obtenha o
máximo de informações possívvel sobre a permacultura, leia livros, veja vívdeos,
participe de fóruns... adquira experiência prática realizando trabalhos voluntários
aos fnais de semana e férias, procure cuidadosamente por um local, conhecendo
todas as opções de regiões e terrenos, etc. Enquanto faz isso tudo, o permacultor
deverá planejar cuidadosamente seu projeto, agregando os conceitos que são
aprendidos, e as caracterívsticas dos terrenos visitados, etc. Tudo isso leva tempo
para amadurecer! Sendo assim, não há qualquer lugar para imediatismo.
Inclusive, caso o aspirante julgue que não tem condições de ter uma renda
sufciente para levantar os recursos para aquisição de um terreno, por exemplo
por não ter uma profssão, então ele deve focar inicialmente em adquirir uma
qualifcação que o habilite a tal. Até porque, como veremos a seguir, a
necessidade de recursos fnanceiros não cessa com a compra do terreno! É
necessário ter paciência, o que é muito diferente de acomodação; toda conquista

194
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

requer sacrifívcio. Essa é a receita para se alcançar qualquer coisa, e com um


projeto de permacultura não é diferente.

Estratégia de implementação do projeto.


Conforme já citado, a aquisição do terreno é apenas um dos pontos que
necessitará de recursos fnanceiros. Suponha que você ganhe um terreno, de
graça, com escritura e tudo. E daív? você acha que simplesmente se mudará para
o terreno, e viverá “em harmonia com a natureza”, feliz para sempre? Comendo
capim e dormindo ao relento, no sol, no vento e na chuva?
O estabelecimento de um projeto de permacultura inevitavelmente requer,
além de preparo (conhecimento teórico e prático da permacultura) e doses
consideráveis de dedicação e esforço, também recursos fnanceiros e um tempo
considerável (alguns anos). Portanto, provavelmente o ponto mais importante no
estabelecimento de um projeto de permacultura é a sua estratégia de
implementação. É preciso elaborar um plano sólido que viabilize a transição, a
passagem da situação em que se está, para a que se deseja alcançar.
Essencialmente, é necessário encontrar uma forma de emprego ou renda que
permita sua sobrevivência, morando no local (terreno) ou próximo o sufciente
(por exemplo, a cidade mais próxima), e ainda permita tempo livre sufciente
para você poder se dedicar à construção do projeto.
Por exemplo, pode-se pensar em um emprego de meio perívodo, seja no
setor público ou privado, ou mesmo no terceiro setor (ONGs); atuar como
profssional autônomo em qualquer área; iniciar um empreendimento, na área de
comércio ou hospedagem, etc. Uma opção excelente são trabalhos que possam
ser feitos pela internet, como tradução, edição, design gráfco e web design, etc.,
pois permitem que se trabalhe praticamente de qualquer lugar, desde que tenha
eletricidade e acesso à internet, com a vantagem adicional de uma grande
fexibilidade de horários. Enfm, as opções são inúmeras, praticamente
ilimitadas, dependendo basicamente das aptidões do permacultor, das demandas
locais, mas especialmente da criatividade e capacidade de enxergar
oportunidades, fexibilidade e determinação por parte do permacultor. Talvez
seja necessário ou vantajoso investir na aquisição de uma nova aptidão
profssional que seja mais viável como parte da estratégia de transição.
Claro que é chato você ter que se manter preso a um tipo de emprego do
qual você quer se ver livre para poder viabilizar sua transição para um estilo de
vida que você deseja, ou seja, um estilo de vida mais natural, livre e
independente através da permacultura. Assim, o ideal seria ter como fonte de
renda um trabalho com permacultura para viabilizar essa transição. Isso é
possívvel, como será apresentado no capívtulo 17, “Consultoria e Prestação de
Serviços em Permacultura”. Porém, isso não é tão simples, pois a demanda por
esse tipo de trabalho remunerado nem sempre é sufciente, e o permacultor
iniciante via de regra tampouco tem experiência sufciente para prestar esse tipo
de serviço de forma profssional.

195
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Na maioria dos casos, especialmente se você vai se mudar para outra área
ou mudar de atividade econômica, é impossívvel ter certeza que seu plano
funcionará. Talvez não haja demanda para o produto que você deseja vender ou
serviço que pretende prestar, ou talvez os custos e difculdades sejam maiores
que o esperado, etc. Por isso, é importante ter não apenas um plano, mas
considerar várias opções, ou seja, uma opção principal ou plano A, e opções
alternativas, planos B, C, etc., para te dar mais chances de sucesso. É vital que
você tenha tudo isso pensado, planejado e preparado com antecedência, e não
deixar para “se virar na hora”, caso seu plano dê errado! Isso é muito
importante.
Outra coisa que vale menção é que nem sempre você desejará abandonar
defnitivamente sua profssão ou ocupação econômica e substituív-la totalmente
pela produção de alimentos, por exemplo. Na maioria dos casos, é possívvel
conciliar as duas coisas, ou seja, continuar desempenhando uma atividade que
gosta e faz bem, paralelamente às atividades permaculturais, mesmo depois que
seu projeto estiver pronto e maduro.

Fases da implementação de um projeto de permacultura rural

Pode-se dizer que o primeiro passo para alguém iniciar um projeto de


permacultura inicia-se antes mesmo de conhecer a permacultura: trata-se de
desejar intimamente uma mudança para um estilo de vida simples, natural e
saudável, longe da artifcialização, competitividade exacerbada e falta de sentido
da vida caracterívsticos do estilo de vida convencional na sociedade atual. Isso
depende apenas de cada um (algumas pessoas parecem bem adaptadas a esse
estilo de vida moderno convencional, o que é assustador!).
O segundo passo é, sem dúvida, aprender sobre a permacultura, tanto na
teoria como na prática, com o máximo de profundidade possívvel. Aqui, não se
iluda: não vai ser um curso de duas semanas, ou a leitura de um único livro, que
o deixarão preparado para essa mudança! Isso é apenas um começo. Esse
assunto será discutido em detalhes no capívtulo 16, “Aprendizado da
Permacultura”.
Então, você decide, com conhecimento de causa, que está pronto para se
lançar ao desafo de abraçar esse estilo de vida, para deixar de ser somente parte
do problema da insustentabilidade de nossa civilização e passar a ser parte da
solução, através da permacultura. E você passa a elaborar o seu projeto e um
plano para sua transição. Determinará os objetivos, as atividades a serem
desenvolvidas, o modelo de assentamento que você quer; determinará a escala do
seu projeto, escolherá a região, procurará por terrenos onde iniciará o projeto de
seus sonhos (que poderá ser o projeto de sua vida!) e traçará uma estratégia
sólida para a implementação do projeto.

196
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

Na elaboração do seu projeto você vai aplicar todos os princívpios da


permacultura e levará em conta todas as informações e conhecimentos contidos
neste livro, bem como em outros materiais que tenha estudado, incluindo outros
livros sobre permacultura e assuntos relacionados, apostilas, vívdeos… discussões
em fóruns, cursos que tenha participado, vivências e trabalhos voluntários em
projetos de permacultura, conversas e exemplos práticos de outros permacultores
que te inspirem, etc. Na verdade, a elaboração de um projeto normalmente se
inicia naturalmente no começo da jornada: conforme você começa a aprender
sobre a permacultura, ideias vão inevitavelmente se formando em sua cabeça, de
como será seu projeto! Mas, claro que muitas dessas ideias mudarão ao longo do
caminho, conforme você adquire mais conhecimentos e passa a ter a capacidade
de julgar melhor.
Agora, você já ticou todos os itens nesta lista, e está pronto para dar o
“grande salto”. Então, você adquirirá o terreno escolhido, se mudará para o
local, seja o próprio terreno ou local próximo, que permita deslocamento diário,
e iniciará sua atividade (ou atividades) econômica de transição.
Neste momento inicial, o mais importante é estabilizar-se fnanceiramente,
certifcar-se que sua atividade econômica está funcionando, ou fazer os ajustes
necessários para que ela passe a funcionar, o que signifca garantir uma renda
média sufciente para sua manutenção, com sobra sufciente para investir no seu
projeto. É essencial que essa estabilidade seja atingida antes de se iniciarem
investimentos signifcativos no projeto em si. Muitas vezes as pessoas, na ânsia
de ver o projeto andando logo, não dão a devida atenção a esse ponto. Não raro,
têm que abandonar seu projeto logo nos primeiros meses ou anos, porque não
conseguem sobreviver.
Essa fase de estabilização leva vários meses, ou mesmo alguns anos. Nesse
perívodo, paralelamente à sua atividade econômica de transição, você deve
vivenciar o seu terreno o máximo que puder. Passe todo o seu tempo livre ali,
vivenciando o local e os elementos. Observe e absorva-se nesse processo, sinta o
passar das horas do dia e da noite, experimente o sol e a chuva, e o orvalho e até
a geada. Acompanhe o passar das estações. Há uma velha regra da permacultura,
que manda aguardar um ano, antes de se lançar a fazer grandes investimentos
em seu projeto e grandes modifcações no terreno, seja na vegetação ou
topografa, ou construções, etc. Claro que esse um ano é relativo, pode ser mais,
pode ser menos. Mas o aspecto mais importante é que esse perívodo não deve ser
um perívodo passivo, ou seja, não se trata apenas de esperar. Pelo contrário, deve
ser ativo, de observação ativa, e também de experimentações. Plante várias
coisas, plante mudas e sementes, veja o que acontece. Faça pequenas
construções, um pequeno galpão para guardar suas ferramentas e se abrigar da
chuva, faça uma pequena lagoa artifcial experimental, para você pegar prática e
ter alguma água. Tudo isso servirá não apenas de treino e de “aquecimento”
(muito importante!), mas também para você amadurecer suas ideias, o que ajuda

197
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

a evitar erros grandes que poderiam ter consequências permanentes.


Agora, você já decidiu onde será construívda sua casa, suas lagoas, seus
sistemas produtivos em geral. Tem uma ideia de onde serão suas zonas, etc. Mas,
por onde começar? Isso realmente vai depender de cada caso. Se você decidiu
morar direto no local, então, caso ainda não haja uma casa no terreno, construir
a casa será prioridade — você pode começar morando em uma barraca, ou
construir um cômodo simples para ir morando enquanto constrói sua casa. Mas
isso (começar pela casa) só será viável se você já tiver um suprimento de água
fácil (por exemplo, uma nascente ou córrego no local). Caso contrário, você terá
que começar pelos sistemas de água de chuva. Você pode começar com uma
lagoa pequena, que fque pronta rápido e encha rápido, para você ter água logo, o
que irá facilitar todo o mais que você vai fazer nessa fase inicial. Essa lagoa pode
ser temporária ou permanente. Então, pode construir sua casa, e em seguida,
passe para a construção de lagoas maiores, que serão permanentes. Em geral,
começar pelos sistemas de água traz várias vantagens, pois eles facilitam e guiam
a implementação de todos os outros sistemas (casa e construções, plantações e
outros sistemas produtivos).
Por último, neste caso (em que você começou pela casa), você deverá focar
seus esforços nas plantações. Claro que, nesse momento, você já deverá ter
muitas mudas, pois as terá cultivado desde o começo (veja o “Estilo de Vida da
Permacultura”, no capívtulo 14), e elas já estarão prontas para ir para a terra!
Num cenário diferente, em que você não se mudará de cara para o projeto,
mas ao invés disso morará em uma casa na cidade enquanto trabalha na
construção do mesmo, então a casa será a última a ser construívda. O que
determina essa escolha, de se mudar para o projeto no começo ou mais tarde, na
verdade é a sua estratégia de transição, ou seja, a atividade econômica escolhida
para viabilizar a implementação do seu projeto. Se você é um aposentado, fará
mais sentido pensar em se mudar logo para o projeto. Também, se você trabalha
pela internet, desde que haja conectividade no seu terreno, não fará sentido fcar
na cidade, sendo melhor mudar-se o mais rápido possívvel para o projeto,
apressando assim a construção da casa. Agora, se você trabalhará na cidade,
então talvez faça mais sentido você continuar morando lá enquanto constrói seu
projeto. Comece então pelos seus sistemas de água, e em seguida sistemas
produtivos. Quando sua agroforesta já estiver produzindo, e você sentir que
poderá viver dessa produção, então construa sua casa e mude-se defnitivamente
para o projeto.
Quanto aos sistemas produtivos, é importante dividir os esforços de forma
equilibrada entre estabelecer seu pomar e agroforesta, e trabalhar com plantas
anuais, ou seja, de ciclo curto, como mandioca, milho, arroz, feijão, hortaliças,
etc. Isso signifca buscar um retorno a curto prazo, sem descuidar do médio e
longo prazo.

198
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

A importância do planejamento

Uma das principais falhas no estabelecimento de um projeto de


permacultura é a falta de planejamento. A falta de seriedade a esse respeito é um
dos principais fatores que garantem o fracasso de muitos projetos, antes mesmo
de começarem.
Um cenário tívpico é o seguinte: a pessoa toma contato com a permacultura
e fca toda empolgada com a coisa toda, e decide que irá abraçar esse ideal e
esse modo de vida. Porém, não se dá ao trabalho de planejar cuidadosamente,
exatamente como viabilizará essa mudança. Para começar (mal), por preguiça ou
excesso de ousadia, não se dá ao trabalho de estudar aprofundadamente a
permacultura e obter o máximo de informações e conhecimento possívvel, tanto
na teoria, estudando, como na prática, através de voluntariado, por exemplo.
Então, quando da escolha da terra, não se preocupa em avaliar cuidadosamente
as opções de local, de terreno, pensando em opções de atividades a serem
desenvolvidas, quais serão mais viáveis, considerando o tipo de solo e clima,
distâncias, condições de mercado, etc. Não estabelece um cronograma ou uma
sequência racional de eventos na construção de seu projeto; tampouco se
preocupa em manter uma fonte de renda confável que supra suas necessidades e
ainda permita tempo livre sufciente para se dedicar ao desenvolvimento das
atividades de construção do projeto; não se preocupa em prever múltiplos
cenários possívveis, entender as variáveis, elaborar planos alternativos (plano B,
C, D…) caso as coisas não saiam conforme previsto. Enfm, muitos acham
muito cômodo simplesmente assumir que “o universo conspirará a seu favor”, e
atiram-se à permacultura de forma aventureira, sem o devido preparo, fazendo
conforme lhes dá na telha. Consequentemente, o indivívduo inicia seu processo de
transição de forma desordenada, e logo no inívcio já vai dando tudo errado: as
plantas não crescem, falta água, as formigas atacam… a construção demora
muito mais, dá muito mais trabalho e custa muito mais dinheiro do que se
esperava; acaba o dinheiro, começam confitos entre as pessoas... enfm, a pessoa
quebra a cara e logo vê-se forçada a voltar para o estilo de vida anterior, com o
rabo entre as pernas, falida e desmoralizada.
Portanto, planejamento é essencial. O problema é que muitas pessoas não
sabem disso, e talvez achem que a permacultura é fácil, o que é uma ilusão.
Planejar dá trabalho! Exige um esforço intelectual grande, contívnuo e
prolongado, mas é necessário para o sucesso em qualquer empreitada, e
especialmente numa mudança radical de modo de vida, como é o caso da
permacultura.

Trabalho durol, paciêncial, persistência

Conforme já citado, o estabelecimento de um projeto de permacultura


invariavelmente leva anos até que alcance sua maturidade e o auge de sua

199
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

produção. E não são anos de espera, mas sim anos de trabalho duro, esforço
contívnuo. Portanto, para que você alcance esses resultados, serão necessários,
além do planejamento e dedicação, também doses maciças de paciência e
perseverança.
Aqui, creio que vale a pena abrir um parênteses para elaborar um pouco
sobre a diferença entre paciência e acomodação, pois muitas pessoas se
confundem a esse respeito.
Paciência e acomodação são coisas completamente diferentes. Na
paciência, o indivívduo está se preparando, está caminhando ou construindo seu
caminho para chegar à realidade que deseja, sem imediatismo e sem agir com
precipitação. Já na acomodação, o indivívduo deixa de lutar ou se dedicar àquele
fm, e fca apenas esperando que as coisas aconteçam sozinhas;
consequentemente, acaba estagnado na realidade atual, sem transitar, sem
progredir. Ou seja, paciência é bom e acomodação é ruim. Na verdade,
paciência é essencial para qualquer transformação profunda e sólida, real.
Pessoas que não entendem a importância disso tendem a agir de forma atirada,
precipitada, e achar que isso é atitude. Porém, enganam-se. O indivívduo que age
de forma precipitada, no começo vai parecer que está progredindo mais
rapidamente — enquanto o amigo ainda está estudando, planejando ou
levantando recursos, ele já vendeu seu carro, comprou um terreninho e já está
até bioconstruindo! Porém, esse é o que morrerá na praia, como discutido acima.
O amigo “devagar”, que não teve pressa, se preparou adequadamente e elaborou
uma estratégia sólida, teve resiliência para lidar com imprevistos e coisas que
deram errado, e tenacidade, frmeza em seguir tentando, reavaliando-se,
adaptando-se, aperfeiçoando-se — esse é o que vai ter sucesso em sua mudança
de vida, e colherá os frutos de sua paciência e perseverança.

Prepare-ose para tempos difíceis

Quando planejamos nosso projeto de permacultura, é importante não ter


uma visão estática da realidade do mundo, achando que as coisas continuarão
como estão hoje. É preciso ter sempre em mente o discutido na Parte I, e
planejar de acordo com os possívveis cenários futuros que se insinuam.
Especialmente, é importante levar em consideração os seguintes fatores:
• Mudança climática. Considerando a perspectiva de um clima cada vez
mais quente e seco na maioria das regiões do mundo, a prudência manda que
projetemos sistemas de captação e armazenamento de água com capacidade de
sobra, pois anos secos podem se tornar cada vez mais frequentes e prolongados.
Outra implicação importante da mudança climática diz respeito à escolha das
espécies a serem utilizadas em seu projeto. Certifque-se de incluir espécies
rústicas e adaptadas a condições de falta de água, mesmo que você viva em uma
área úmida, pois não se sabe como será o futuro. Pesquise espécies úteis nativas
de desertos e regiões semiáridas, como cactos, tamareiras, etc., e inclua-as em

200
Parte II – A Alternativa da Permacultura 9. Permacultura Rural

seus projetos. Elas poderão ser a sua salvação no futuro, dependendo de como
se derem as mudanças no clima.
• Pico do petróleo. Devemos evitar o uso excessivo de tecnologias
dependentes do petróleo hoje por questões de sustentabilidade ambiental, mas
enquanto esse recurso ainda está ao nosso alcance, quase inevitavelmente
acabamos por usá-lo em diversas situações, pensando no uso apropriado de
tecnologias disponívveis. Porém, é necessário ter sempre em mente que o fm da
era do petróleo deverá trazer grandes mudanças, e devemos estar preparados
para elas. Talvez surjam novas tecnologias que substituam o petróleo, talvez
não. Por isso, é vital que ao projetarmos nossos sistemas e fazer planos para
nossas vidas no futuro, não contemos com o petróleo, e acima de tudo, não
dependamos dele. Valorize e use todas as estratégias possívveis que não
dependam de mecanização e transporte motorizado.
• Crise econômica e colapso das estruturas sociais. Não quero soar
apocalívptico aqui, mas conforme vimos na Parte I, é necessário estar preparado
para o pior. No caso de um colapso da sociedade, quanto menos você depender
da economia, do Estado, das instituições, das tecnologias, etc., melhor. Você
pode estar super bem em seu emprego, ou sua situação de renda no momento,
mas com o colapso econômico, isso poderá simplesmente desaparecer. Por isso,
é sempre muito importante visar um alto grau de autossufciência em seu
projeto. Aproveite a situação atual para fazer sua transição de forma sólida e
segura, use os recursos sociais disponívveis. Mas procure estabelecer sistemas
automantenedores e estáveis, que não necessitarão da importação de recursos e
especialmente recursos tecnológicos no futuro, pois eles poderão não estar mais
disponívveis.

201
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

10
A HABITAÇÃO
PERMACULTURAL

Sob muitos aspectos, as casas convencionais modernas podem ser


consideradas ótimas — confortáveis, seguras e duráveis, todas virtudes
essenciais que as edifcações modernas, desde que adequadamente construívdas,
inegavelmente possuem. Porém, elas também têm seus defeitos. Dentre eles,
podemos destacar:
• Alto impacto ambiental para sua construção e manutenção. Materiais
convencionais, como cimento, tijolos e telhas, dependem para sua
fabricação de alto consumo de energia, mineração com grande impacto
ambiental, e geram poluição do ar na forma de gases do efeito estufa e
matéria particulada, entre outros. Madeiras usadas em construção são
geralmente provenientes de desmatamento.
• Baixa efciência no uso de recursos. A imensa maioria das casas
convencionais não captam água da chuva e não têm em seu design sistemas
para reutilização de água. Têm baixa efciência energética, levando a
consumo excessivo de energia para iluminação e aquecimento ou
refrigeração.
• São poluentes. Utilizam sistemas convencionais de saneamento, ou seja,
produzem esgotos que contaminam o meio ambiente (lençóis freáticos e/ou
cursos d’água).

202
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

• Improdutividade. As casas atuais são concebidas totalmente dentro de um


paradigma de total dependência (ou seja, o oposto de autossufciência). São
para morar, e pronto. Áreas ajardinadas são cada vez mais raras, e quando
existentes, cada vez menores. Por isso, não são particularmente favoráveis à
produção de alimentos.
• Alto preço. As maioria das pessoas comprometem uma grande parte de
sua vida para conquistarem o chamado sonho da casa própria. Na maioria
das vezes, passam 20 anos ou mais pagando por suas casas, sendo que
muitas, especialmente entre a população de renda mais baixa, passam a
vida toda sem chegar a conquistar esse sonho.

O desafo da permacultura em relação às habitações é resolver ou


minimizar esses defeitos, sem comprometer as conquistas das construções
modernas, ou seja, seu conforto, segurança e durabilidade.

Design da casa permacultural

A habitação permacultural tem alta efciência energética. Ela é feita de


materiais e técnicas naturais (bioconstrução) que além de terem baixo impacto
ambiental conferem alto conforto térmico naturalmente, reduzindo ou
eliminando a necessidade de aquecimento e refrigeração. Também utiliza design
passivo para energia solar e inclui sistemas para captar, armazenar, utilizar e
reciclar água da chuva. Além disso, na permacultura a casa não é vista apenas
como um lugar para você se esconder à noite e dormir, e guardar suas coisas,
mas sim um lugar para você viver e também produzir alimentos, ao redor e até
mesmo dentro da casa.
Por empregarmos sistemas de saneamento ecológico (assunto discutido em
detalhes no capívtulo 11), a casa permacultural não é fonte de poluição ambiental
com esgotos. Por fm, o emprego de materiais e técnicas naturais em sua
construção favorece que o permacultor construa a própria casa (autoconstrução),
o que cria uma conexão, intimidade e familiaridade muito maior com a casa,
possibilitando ainda que ela seja construívda a um preço reduzido.*

Tamanho

A casa permacultural não deve ser muito grande. Deve ser grande apenas o
sufciente. Casas maiores que o necessário ocupam espaço demais — roubando-
o das demais criaturas da Terra. Também consomem mais recursos para sua

* O “Manual do Arquiteto Descalço”, de Johan Van Tengen, contém uma grande


quantidade de informações, ideias de design e técnicas de construção úteis em
permacultura.

203
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

construção e manutenção, mais água, mais energia do que o necessário, etc — e


isso é para sempre! Impermeabiliza um pedaço maior do solo. Também, dá mais
trabalho para manter limpa, consumindo um recurso valiosívssimo: o tempo de
nossas vidas! Ainda por cima, uma casa muito grande leva à tendência de
acumular coisas inúteis.
Uma casa grande é um sonho de consumo comum nos dias de hoje, um
sívmbolo de status, um vívcio caracterívstico de nossa sociedade doente,
megalomanívaca. Em resposta a essa tendência, há hoje um movimento pelas
casas pequeninas (“tiny house movement”). Alguns entusiastas desse movimento
advogam casas realmente minúsculas, algo como 20 m 2. Mas você não precisa
ser extremista — basta usar o bom-senso.

Posição

Vários fatores devem ser levados em consideração na escolha do local para


se construir uma casa, especialmente em uma situação rural. Dentre eles,
podemos destacar questões práticas como a facilidade de acesso e fuxo de água
e energia pelo terreno, questões de bem estar, como privacidade e harmonia
estética, e questões éticas em relação ao impacto que essa casa terá sobre o meio
ambiente e a paisagem.
O posicionamento da casa em uma propriedade rural deve sempre ser feito
aproximadamente à meia altura no terreno — nunca no topo, nem na parte mais
baixa do terreno. Isso possibilita uma área sufciente acima do nívvel da casa para
captação de água da chuva para uso doméstico e da zona um, conforme
discutimos no capívtulo 8 (“Água em Permacultura”), e uma área sufciente
abaixo do nívvel da casa para lidar com os efuentes da casa (águas cinzas),
através de ferti-irrigação, evitando que esses efuentes saiam do terreno, podendo
contaminar cursos d'água ou incomodar vizinhos, por exemplo (falaremos mais
sobre as águas cinzas no próximo capívtulo, “Saneamento Ecológico”).
Outro aspecto importante é o posicionamento da casa em relação ao sol.

Área de captação de
água de chuva

Tagoa
art.
Casa Horta
Pomar

204
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

Posicione a casa de modo a amplifcar os benefívcios da luz solar (veja o item


“design passivo para energia solar”, mais adiante).
Um erro comum é construir a casa no meio de uma foresta, ou próximo a
grandes árvores, onde incêndios forestais e quedas de árvores podem ter
consequências catastrófcas. Construa casas a uma distância segura de forestas e
árvores altas.

Impacto paisagístico

Deve-se sempre levar em consideração a vista e o efeito que a casa terá na


paisagem. Construa uma casa bonita e que se integre de forma harmoniosa com
a paisagem na qual ela está inserida. A falta dessa preocupação é causa frequente
de verdadeiros desastres paisagívsticos. Seja responsável pelo seu papel em
relação à paisagem!

Impacto na topografa

Ao projetar e construir uma casa, deve-se ter a preocupação de interferir o


mívnimo possívvel na topografa do local. Para isso, em um local de topografa
inclinada, ao invés de se fazer uma grande operação de terraplanagem criando
um platô grande o sufciente para acomodar toda a casa e suas imediações, é
mais recomendável fazer um recorte mais sutil, em “degraus”, distribuindo os
cômodos da casa nesses degraus, ligando-os por pequenos lances de escadas. O
mesmo vale para a área externa, onde os “degraus” se estendem em pequenos
terraços, onde serão feitos os canteiros para seus jardins e hortas. Com esse tipo
de técnica, consegue-se uma enorme redução no consumo de energia utilizada na
terraplanagem; reduzem-se também os impactos negativos na topografa do local
(menos agressão ao ambiente), e tem-se como resultado fnal uma casa graciosa
e interessante, de aspecto orgânico e harmonioso, integrada de forma charmosa e
elegante com a paisagem ao seu redor.

Escadas

Aterro
Muro de
arrimo

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

Forma

Vivemos em uma era de construções retangulares, ou formadas pela


combinação de diversos retângulos, de tamanhos diferentes. Cada cômodo é
sempre um retângulo. Agora, olhe para um prédio, e verá um retângulo; veja de
outro ângulo — outro retângulo. Olhe de cima... retângulo! Porém, muitos
permacultores e bioconstrutores têm uma preferência por formatos
arredondados.
A tendência a construir formatos retangulares não é uma moda recente.
Veja as construções medievais da Europa, as ruívnas do Império Romano e as
construções da China Antiga (e.g. Cidade Proibida), e verá que mostram quase
sempre padrões retangulares. Até mesmo as pirâmides do Egito, Sudão e dos
Maias e Astecas têm, em sua base, um quadrado, que nada mais é do que um
tipo particular de retângulo!
Por outro lado, praticamente todas as sociedades tribais, primitivas e
nômades sempre construívram suas habitações em formatos circulares ou
arredondados. Veja as ocas tradicionais dos ívndios brasileiros, os tipis dos nativos
norte-americanos, os yurts dos mongóis, os iglus dos esquimós... O mesmo se
aplica aos povos tribais da África e Oceania e até mesmo no continente europeu,
as habitações da maioria dos povos “bárbaros” eram redondas.
Não é intrigante que os bioconstrutores, mesmo sem sequer pensar nisso,
tenham a tendência de rejeitar os formatos quadrados, caracterívsticos das
civilizações megalomanívacas e insustentáveis (das quais a atual é o exemplo mais
extremo), em favor de formatos arredondados, tívpicos das construções de
sociedades mais primitivas, simples e sustentáveis? Coincidência ou não, quem
dirá?
A milenar tradição do feng shui ( 風水 ) pode trazer uma teoria diferente
para favorecer formatos arredondados. Segundo essa “ciência”, formatos
angulares causariam a estagnação do qi (氣), levando a ambientes carregados e
insalubres, enquanto formas arredondadas favoreceriam o fuxo do qi, tornando o
ambiente leve…
Mas você não tem que concordar ou se preocupar com nada disso! Agora,
tratando de considerações mais práticas: paredes curvas, por seu caráter
tridimensional, são sempre muito mais fortes estruturalmente do que paredes
planas, “bidimensionais”. Por isso, possibilitam estruturas mais frmes e seguras
e/ou a economia de material. Por outro lado, é inegavelmente mais fácil
acomodar a mobívlia em cômodos retangulares, e também mais fácil colocar um
telhado.
Claro que é perfeitamente possívvel construir casas bonitas, seguras e
duráveis, tanto retangulares como arredondadas, ou outros formatos — desde
que respeitadas as leis da fívsica e utilizados materiais e técnicas adequados na
construção. No fnal das contas, em relação ao formato o que conta é a

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

preferência de cada um, o bom gosto no design e capricho na construção.


Uma casa bem caprichada com forma, tamanho e localização ideais,
rodeada de jardins, paisagens naturais e caminhos graciosos e em plena
harmonia — tudo isso depende de fazer as escolhas certas, e saber fazer,
resultando em uma casa onde você vai realmente querer viver, um lugar para
chamar de lar, e ser feliz.

Efciência energética e design passivo para energia solar

Há todo um conjunto de estratégias de design que podem ser usadas para


potencializar os efeitos positivos da irradiação solar e ao mesmo tempo
minimizar eventuais efeitos negativos, levando naturalmente a um bom conforto
térmico na casa, reduzindo ou eliminando a necessidade de gasto de energia para
aquecimento ou refrigeração.
O item mais básico do design passivo para energia solar é o
dimensionamento e disposição adequada de janelas favorecendo a iluminação e
ventilação natural, pois não há nada pior que uma casa sem janelas, com
lâmpadas acesas o dia todo! Isso se aplica praticamente a todas as casas, em
qualquer parte do mundo.
Em climas frios, há diversas técnicas que podem ser usadas para captar e
armazenar a energia do sol, aumentando a temperatura média no interior da casa
em vários graus, sem qualquer gasto de energia. Por exemplo:
• Estufa acoplada à casa, no lado do sol predominante do inverno (ou seja, o
lado voltado para o norte no caso do hemisfério sul, e vice-versa). Uma
estufa nada mais é do que um cômodo ou “casinha” fechada, feita
inteiramente de vidro em uma armação metálica. Estufas funcionam assim:
a radiação solar penetra nelas através do vidro e boa parte fca ali retida na
forma de calor, elevando a temperatura interna. Por isso elas são tão usadas
para cultivar vegetais em regiões frias! Ao se fazer uma estufa acoplada à
casa, esse calor pode ser aproveitado para aquecer a casa, bastando para
isso abrir a porta ou janelas que dão acesso à estufa. Janelas grandes ou
mesmo paredes de vidro voltadas para o lado do sol predominante do
inverno também ajudam a captar e reter dentro da casa a energia solar, pelo
mesmo princívpio.
• Coletor-irradiador de energia solar. Uma estrutura de alta massa térmica e
cor escura, por exemplo uma parede de pedra pintada de preto, um piso
escuro, etc., posicionada próximo às janelas mencionadas acima, recebendo
o sol durante o dia, capta a radiação solar convertendo-a em calor, que é
liberado lentamente para o ar ambiente, aumentando a temperatura local
signifcativamente, mesmo várias horas noite a dentro.
• Isolamento é uma necessidade óbvia em climas frios, para evitar a fuga de
calor da casa. Portas e janelas devem ser perfeitamente herméticas, e

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

vidraças devem ser de vidro duplo, para minimizar a transferência de calor.


• Plantar árvores caducifólias (que perdem as folhas no inverno) ao redor da
casa, nas direções do sol predominante, também é uma técnica importante.
No verão, essas árvores fornecem sombra, mantendo a casa fresca; e no
inverno, perderão as folhas, permitindo a entrada do sol, que aquecerá a
casa.

Verão Inverno
(sombra) (sol = aquecimento)

Já em climas quentes, a preocupação é o inverso: evitar o acúmulo de calor.


Para isso, são úteis as seguintes técnicas:
• Construir com pé-direito alto garante ambientes internos mais frescos.
• Usar telhado verde (discutido mais adiante).
• Pequenas janelas basculantes, posicionadas bem alto na parede, próximo ao
teto, são úteis para deixar o ar quente sair (pois o ar quente é menos denso
e, portanto, sobe).
• Plantar árvores de boa sombra ao redor de toda a casa, evitando a
incidência de sol nas paredes e no chão, ajuda a refrescar bastante o
ambiente interno. Varandas amplas também ajudam, pelo mesmo motivo.
Há certas regras gerais que são universais para o conforto térmico. Por
exemplo, em relação a quando abrir ou fechar as janelas e portas, vale sempre a
seguinte regra: se o ar externo estiver mais agradável que o interno, abra as
janelas; agora, se o ar interno estiver melhor que o externo, feche as janelas. Isso
vale tanto para o calor como para o frio.
Certos materiais e técnicas de construção também conferem naturalmente
conforto térmico. É o caso de paredes grossas de barro, como nas técnicas do
cob, hiperadobe e terra pilada, que discutiremos mais adiante. O barro, quando
sêco, contem quantidade substancial de ar preso entre as partívculas de areia e
argila, fazendo com que seja um mau condutor de calor (ou em outras palavras,
um bom isolante térmico). Além disso, as paredes grossas e pesadas têm uma
massa térmica considerável. Em conjunto, esses fatores fazem com que as casas

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

construívdas com essas técnicas sejam frescas no verão e quentinhas no inverno,


sendo ótimas para todos os climas, sejam tropicais, temperados, áridos, etc.

Explorando a inércia térmica do solo

Durante o dia o sol aquece o solo e, à noite, o solo dissipa essa energia
térmica transferindo-a para a atmosfera, enquanto se esfria. Essa futuação
cívclica na temperatura do solo é máxima na superfívcie e vai diminuindo
exponencialmente em sua amplitude de acordo com a profundidade, devido à
grande inércia térmica do solo. A partir de uma certa profundidade,
normalmente cerca de 2 metros abaixo da superfívcie, a temperatura torna-se
praticamente estável, variando senão poucos graus em relação à temperatura
média anual do local em questão.
Por ser um ambiente protegido, a temperatura do ar dentro da casa
normalmente varia menos que a temperatura externa, mas ainda assim futua
substancialmente ao longo do dia. Agora, a constância da temperatura dos nívveis
mais profundos (porém acessívveis) do solo cria uma ótima oportunidade, tanto
para colher calor (aquecimento em momentos de frio intenso) como para
dissipar calor (refrigeração em momentos de calor intenso).

30
Temperatura (°C)

25

20 Externa
Interna
15 A 2m de profundidade

10

5
0 2 4 6 8 10 12 14 16 18 20 22 24
Hora
Gráfco: exemplo ilustrativo de variações na temperatura externa, interna
(dentro da casa), e a 2 metros de profundidade no solo, ao longo do dia.

Para isso, diversos mecanismos e estratégias já foram desenvolvidos e estão


sendo usados crescentemente ao redor do mundo, especialmente em locais de
clima frio, incluindo bombas de calor que utilizam água e outros fuidos como
condutores de energia térmica, tubos subterrâneos com ventilação forçada, entre
outros. Porém, modos simples de uso da inércia térmica do solo já vêm sendo
utilizados pela humanidade há milhares de anos. Um ótimo exemplo são as

209
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

habitações de povos do deserto, escavadas em rochas — todos sabemos que nos


desertos as variações de temperatura ao longo do dia são extremas, fazendo
muito frio à noite e muito calor durante o dia. Ao fazerem suas casas escavadas
em morros rochosos, povos antigos de desertos em várias partes do mundo na
verdade valiam-se da inércia térmica do solo para terem em suas casas uma
temperatura estável e agradável o tempo todo.
Outra forma clássica de se benefciar da inércia térmica do solo é na forma
dos tradicionais porões. Um porão é um cômodo situado abaixo de uma casa,
sendo parcial ou totalmente subterrâneo. Por serem construívdos 2 a 3 metros
abaixo do nívvel do solo, porões mantêm suas temperaturas praticamente
constantes e sempre frescas. Tradicionalmente, porões têm sido usados para
guardar alimentos como raívzes, tubérculos, abóboras, etc., permitindo seu
armazenamento por meses a fo, mesmo antes de existir refrigeração elétrica.
Também fornecem condições ideais para a produção e armazenamento de
vinhos, por exemplo.
Para maior efciência, deve-se construir o porão de forma adequada: suas
paredes e piso devem ser feitos preferencialmente de pedra para permitir boa
condução de calor entre o ar interno e o solo profundo ao redor. Devem contar
com janelas ou escotilhas para permitir alguma iluminação natural e ventilação
quando desejado, mas as mesmas devem permitir bom isolamento térmico,
usando vidro duplo e permitindo boa vedação. Outro ponto importante é adotar
medidas adequadas de drenagem e impermeabilização do piso e paredes quando
da construção, para evitar problemas de infltração de umidade.
Podemos usar esse mesmo princívpio para benefciar também outros
cômodos da casa; para isso, você deve construív-los parcialmente subterrâneos,
talvez até construir todo o andar térreo parcialmente enterrado. Isso é
particularmente fácil quando se constrói em uma topografa bastante inclinada,
bastando construir a casa em um recorte no terreno que avança morro a dentro,
de forma que o muro de arrimo seja a própria parede da casa. Os cômodos que
forem construívdos dentro desse recorte, portanto abaixo do nívvel original do
terreno, se benefciarão da inércia térmica do solo ao redor, levando a uma
grande estabilização de sua temperatura interna. Esses serão os cômodos mais
frescos no verão e os mais quentinhos no inverno, naturalmente e sem qualquer
gasto de energia. Seja seu quarto, sala ou escritório, nos dias de temperatura
extrema você não vai querer sair de lá!

Aquecimento solar de água

Há uma grande variedade de aquecedores solares de água para residências


disponívveis no mercado, mas há também uma variedade maior ainda de sistemas
simples e altamente efcientes que podem ser feitos por você mesmo, a um
baixívssimo custo. Por exemplo, um tubo de polietileno de alta densidade
(mangueira preta) instalado formando uma espiral sobre o telhado da casa, no

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

lado que pega o sol da tarde. A água vem da caixa d’água, passa pela espiral
onde é aquecida pelo sol, indo então até o chuveiro e torneiras onde se queira
água quente. Para maior efciência e durabilidade, instala-se uma caixa baixa,
feita de chapa metálica e pintada de preto, cobrindo a espiral e ajustada
perfeitamente às ondulações do telhado. Essa caixa ajudará a aquecer a água e a
manterá aquecida por mais tempo noite a dentro. Além disso, evitará a
deterioração da mangueira pela radiação solar.

Sistema simples de aquecimento solar de água

Bioconstrução

Hoje, na construção civil, vivemos na era do concreto. O cimento está em


todo lugar e, na cabeça das pessoas, engenheiros e construtores, é impossívvel
construir qualquer coisa sem sua utilização. Porém, o cimento que usamos hoje
só se popularizou a partir do inívcio do século XX, ou seja, até pouco mais de um
século atrás a humanidade se virava muito bem sem ele.
Como sabemos, a construção civil é uma indústria de imenso impacto
ambiental, com toda a mineração, fabricação e transportes envolvidos, além da
geração de enorme quantidade de resívduos e entulhos. Por isso, em
permacultura, damos preferência a técnicas de construção natural, também
chamadas de bioconstrução, de baixívssimo impacto ambiental e, portanto, muito
mais sustentáveis.
Em bioconstrução, utilizamos materiais naturais (terra, pedra, bambu,
palha, etc.), muitas vezes presentes no próprio terreno ou nas imediações. Isso

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

signifca que podem ser obtidos a custo reduzido ou virtualmente zero. Também
são materiais ecológicos pois não são oriundos de mineração, dispensam a
queima ou calcinação em altos-fornos, ou mesmo combustívvel para transportes a
longas distâncias, etc. Muitas vezes também são utilizados resívduos da nossa
civilização — materiais como pneus velhos, garrafas usadas, restos da
construção civil convencional, etc., retirando esses materiais do ambiente,
dando-lhes um destino útil.
A bioconstrução utiliza técnicas de construção naturais e fexívveis, que
podem ser realizadas praticamente por qualquer pessoa, dispensando
maquinários ou mão de obra especializada. Isso permite ao permacultor
construir sua própria casa, dando liberdade no design, um enorme senso de
realização e conexão com a casa, além de economia de dinheiro.
A maioria das técnicas utilizadas em bioconstrução são técnicas
tradicionais, muitas vezes étnicas e até primitivas, usadas pela humanidade há
séculos ou milênios. A bioconstrução representa assim um movimento de resgate
desses conhecimentos de diferentes povos de toda parte do mundo. Também são
comuns a fusão ou mesclagem de diferentes técnicas, adaptações e mesmo o
desenvolvimento de técnicas inéditas em bioconstrução.
Outra grande vantagem da bioconstrução é que ela praticamente não gera
entulhos, e seus materiais são recicláveis. Tomemos como exemplo uma velha
casa de pau-a-pique com telhado de sapé que se decide demolir. O sapé do
telhado pode ser usado como cobertura morta de solo, ou como material de
cobertura na composteira; as madeiras ainda boas podem ser reaproveitadas em
novas construções; as defeituosas podem ser usadas como lenha, e as meio
podres como cobertura de solo, ou para fazer composteiras, barreiras contra
erosão, etc. Já o barro das paredes e pedras da base podem ser aproveitados para
fazer novas bioconstruções. Ou seja, nenhum resívduo é produzido! E, mesmo
que você não faça nada, simplesmente deixe a casa desmanchar naturalmente
com o tempo, seus materiais se reintegrarão lentamente com o ambiente, sem
causar qualquer impacto negativo.
Resumidamente, os objetivos e vantagens da bioconstrução são:
• Construir com mívnimo impacto ambiental, poupando recursos naturais e
não produzindo resívduos.
• Alcançar um resultado estético agradável, de simplicidade e rusticidade, em
harmonia com o ambiente natural em volta.
• Favorecer a autoconstrução, ou a possibilidade de construir você mesmo,
com mívnima necessidade de insumos externos ou mão de obra
especializada.
• A possibilidade de construir a um custo muito reduzido, ou em situações
onde materiais de construção convencionais modernos simplesmente não
estejam disponívveis.

212
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

• Coerência com o estilo de vida da permacultura, tanto em princívpios como


em estética, reforçando a identidade do movimento da permacultura.
• Resgate de conhecimentos tradicionais e ancestrais, levando a uma conexão
com essas culturas, etc.

As técnicas de bioconstrução e os materiais utilizados são inúmeros, e sua


escolha depende de fatores como clima, a disponibilidade de materiais no local,
gosto e habilidades do permacultor, cultura e história local, etc. É importante
ressaltar que o uso de materiais abundantes no local deve ser priorizado, pois
representa economia e redução do impacto ambiental decorrente da importação
de outros materiais, resultando ainda em uma maior harmonia e identidade com
o local. A valorização e resgate de técnicas de construção tradicionais da região
também ajuda a reforçar essa identidade.
Embora haja uma variedade imensa de materiais usados em bioconstrução,
incluindo pedra, fardos de palha, couro animal (tipi), e até gelo (iglu), merecem
destaque as construções de terra crua. São diversas as técnicas que utilizam a
terra crua como seu principal material de construção. Segue uma discussão
resumida sobre as principais dessas técnicas.

Considerações preliminares sobre construção com terra

O barro cru não é tão rívgido como o concreto ou tijolos cerâmicos — o que
não é necessariamente uma desvantagem. Para lidar com isso, normalmente
deve-se fazer paredes mais grossas do que se faria normalmente com técnicas de
alvenaria convencional. Assim, o resultado que se tem em bioconstrução são
paredes mais espessas e porosas. Essas paredes apresentam maior massa térmica
e maior isolamento térmico, resultando em melhor conforto térmico — as
temperaturas internas são mais estáveis, variando menos em função das
oscilações externas, comparativamente às casas de alvenaria convencional.
Também apresentam maior respirabilidade. Isso mesmo, paredes que
“respiram”! Por isso, possibilitam mais trocas gasosas, não são propensas à
condensação e não retêm umidade como o concreto. Por tudo isso, essas paredes
não têm a tendência de criar mofo ou ácaros, produzindo ambientes internos
muito mais confortáveis e saudáveis.

Proteção contra umidade

Construções de terra crua necessitam de cuidados redobrados quanto a


proteção contra umidade. Isso porque o barro, se molhar demais, perderá sua
rigidez, podendo comprometer a segurança da construção.
Há uma série de medidas que devem ser tomadas para prevenir problemas

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

com excesso de umidade. Uma delas refere-se à escolha do local para a


construção — deve-se escolher locais altos, ou seja, evitar baixadas e locais que
acumulam água da chuva ou canalizam enxurradas. Um detalhe estrutural
importantívssimo para evitar contato com a umidade do solo é fazer sempre uma
boa base de pedra sobre a qual serão construívdas as paredes — nunca construir
direto sobre o solo. Deve-se também construir um telhado com um bom beiral,
de no mívnimo 80 cm, evitando a incidência excessiva de chuva nas paredes.
Convém ainda instalar calhas em todos os telhados (o que será necessário
também para a captação de água de chuva) para evitar o respingamento
excessivo de água da chuva nas paredes, e fazer um revestimento
impermeabilizante, que pode ser de pedra, ladrilhos ou mesmo um bom reboco
na parte inferior das paredes para evitar seu desgaste com a chuva.
Para se conseguir ainda mais proteção contra umidade, é recomendável na
maioria das situações fazer um pequeno aterro no local onde será construívda a
casa, elevando em alguns centívmetros sua altura.

Fundação

A fundação deve ser feita de algum material muito denso e resistente para
suportar e distribuir o peso da casa, evitando rachaduras. Pedras, quando
disponívveis, são o material mais indicado para a fundação, pois, além de
preencherem os requisitos acima, são boas isolantes de umidade, ajudando a
proteger as paredes de infltrações por capilaridade. Outra boa opção às vezes
disponívvel é o reaproveitamento de grandes blocos de concreto provenientes de
demolição (colunas e vigas, por exemplo), que podem ser utilizados como se
fossem pedras. Ou então, pode-se fazer uma fundação de concreto convencional,
mas nesse caso é importante utilizar uma barreira de umidade, caso contrário o
concreto transmitirá umidade às paredes.

A importância do acabamento

Como em qualquer construção, é sempre importante dar um bom


acabamento a construções de terra e bioconstruções em geral. Muitas vezes, por
gostarem de bioconstrução e quererem mostrar, “ostentar” que suas casas foram
feitas de barro, as pessoas deixam de fazer um acabamento adequado. Isso não é
uma boa ideia, pois além de comprometer a estética, a falta de acabamento
também compromete a durabilidade da construção, além de poder criar
problemas, como fornecer frestas e espaços para a proliferação de criaturas
indesejáveis, como escorpiões e barbeiros. Assim como a construção em si,
também o acabamento pode e deve ser feito com materiais naturais e de baixo
impacto ambiental.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

Técnicas de Bioconstrução

Cob*

O cob é provavelmente a mais rústica, primitiva, simples e natural técnica


de bioconstrução — daív sua beleza! É também uma técnica incrivelmente
fexívvel, e ao mesmo tempo robusta e segura, desde que bem feita. A técnica do
cob consiste essencialmente em se esculpir a sua casa, ou pelo menos suas
paredes, com barro, no melhor estilo joão-de-barro!
Uma das vantagens do cob é sua extrema plasticidade, ou seja, a liberdade
que ele oferece de construir em estilos e formatos variados. Você pode construir
desde uma casa “normal”, quadradinha, retinha e lisinha que ninguém suspeitaria
ser feita de barro (exceto talvez pela espessura das paredes), até habitações com
os formatos mais alternativos e não convencionais (desde que respeitados os
limites da fívsica, claro).
Apesar de sua desconcertante simplicidade e primitividade, o cob é uma
técnica extremamente segura e durável. Casas de cob podem durar muitos
séculos, sem problema algum.

Construindo com cob

O barro
Uma das coisas legais sobre as construções de terra é poder fazer a casa
usando a terra do próprio local onde ela será construívda. Devem ser usados solos
areno-argilosos livres de matéria orgânica (ou seja, excluindo-se a camada de
solo superfcial). A proporção ideal de areia:argila é algo em torno de 2:1 (duas
partes de areia para uma de argila). Porém, essa proporção é bastante fexívvel, e
solos com teor de argila entre 15 e 50% podem ser usados sem problemas. Na
prática, isso signifca que a grande maioria dos solos areno-argilosos são
adequados para construir com cob (assim como as outras técnicas descritas a
seguir).
Deve-se ter o cuidado de obter o barro de forma que não cause impacto
ambiental ou paisagívstico, por exemplo por implicar em desmatamento, ou
propiciar erosão, ou desfgurar a topografa ou a paisagem, etc. A fonte do barro
também deve ser o mais próxima possívvel do local da construção, diminuindo
assim os custos e impactos relativos ao transporte, já que a quantidade de
material para qualquer construção é substancial. Uma opção inteligente é, ao
escavar reservatórios de água, como lagoas, açudes e cisternas, utilizar a terra

* O livro “The Cob Builders Handbook”, de Becky Bee, é leitura obrigatória para quem
deseja se aprofundar nesta técnica de bioconstrução.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

removida para a construção. Outra fonte extremamente inteligente de barro para


construção são as bacias de infltração de águas pluviais (aquelas que coletam o
escorrimento superfcial de estradas de terra). Com a inevitável erosão da
estrada, essas bacias coletam, além da água, terra. Assim, para que continuem
funcionando, essas bacias têm que ser periodicamente “limpas”, o que signifca
um suprimento de barro que pode perfeitamente ser utilizado para
bioconstrução.

Preparo do barro
Deve-se preparar um local plano e limpo para misturar e amassar o barro,
o mais próximo possívvel do local da construção. Você traz o barro para esse
local, quebra os torrões (se houver) usando uma enxada, adiciona a palha e
outros aditivos (se for o caso) e água, e vai “virando” esse barro com a enxada.
Em seguida, deve-se “amassar” bem o barro com os pés — para muitos, esta é a
parte mais divertida da construção com barro! Pode-se amassar em grupos, e às
vezes se mistura esta tarefa com música e danças improvisadas, tornando-se uma
verdadeira festa!
Misture e amasse o barro, ajustando o teor de água até fcar com uma
consistência relativamente frme, porém plástica. Se estiver muito duro e
esfarelando, é indicativo de falta de água; mas, se estiver muito mole,
escorrendo, é sinal de excesso de água. Acertar no teor de umidade é muito
importante, pois uma massa muito seca não dará boa aderência, e a parede fcará
muito porosa e fraca. Por outro lado, excesso de umidade (consistência de lama)
fará com que a parede, ao secar, rache excessivamente.

Aditivos
Construções perfeitamente boas podem ser feitas apenas com a terra,
conforme descrito acima. Porém, embora não seja estritamente necessário, a
maioria dos bioconstrutores do presente e do passado, em todas as épocas e
regiões do mundo, têm incluívdo aditivos à massa de barro para melhorar suas
caracterívsticas e a qualidade da construção. Os principais aditivos são a palha e
estrume bovino fresco.
• Palha. A adição de palha pode aumentar a resistência da construção e
reduzir sua tendência a rachaduras. Para isso, pode-se ceivar, roçar ou
mesmo arrancar capim, deixá-lo secar ao sol por alguns dias, e depois picá-
lo em pedaços de 3 a 5 cm, usando para isso um facão afado e um bloco
de madeira (ou um triturado de capim, claro, se disponívvel). Adicione essa
palha à massa de barro; você perceberá que a adição de palha deixa a
massa mais seca, fazendo necessária também a adição de mais água para
atingir a consistência ideal para construção. O ideal é usar capins de folhas
fnas, e podem ser usados restos de culturas como arroz e trigo. Evite

216
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

capins de folhas largas ou talo muito grosso (capim-elefante, por exemplo).


A quantidade a ser usada varia, mas como ponto de partida pode-se usar
uma proporção de aproximadamente 1:10, em volume (uma parte de palha
para dez de barro).
• Estrume bovino fresco pode ser adicionado, a uma proporção de 2 a 5%
da massa de barro, para aumentar sua resistência mecânica e à erosão.
Estrume é um aditivo extremamente tradicional em construções de terra.
Acredita-se que o muco e fbras vegetais contidas nas fezes sejam os
responsáveis por melhorar as caracterívsticas do barro. Embora o estrume de
vaca seja o mais comum, por ser normalmente o mais abundante, você
pode também usar estrume de outros grandes herbívvoros, o que estiver à
sua disposição.

Construindo a parede
Tome porções da massa de barro com ambas as mãos e aplique com um
golpe ágil sobre a base de pedra, formando uma camada de cerca de 10 cm de
altura, e da largura que se pretende dar à parede, por todo o contorno da casa e
também as paredes internas. Estruturas acessórias como sofás, prateleiras,
lareiras, etc. também podem ser construívdas de cob concomitantemente, em uma
estrutura inteiriça com as paredes! Mas isso não é necessário, você também
pode deixar para construir essas coisas depois que a casa estiver pronta.
Ao se aplicar cada “mãozada” de barro, deve-se massagear ligeiramente,
dando tapas, pancadas e pressionando com os dedos para moldar e obter uma
melhor fusão entre os bolos de barro. Terminada a primeira camada, você pode
iniciar uma nova camada sobre ela. Você pode fazer até umas 2 ou 3 camadas
em um dia. Então, é necessário esperar que o cob seque e endureça o sufciente
antes de aplicar mais camadas — geralmente 2 a 3 dias, dependendo da
temperatura e umidade, ocorrência de chuvas, etc. É bom proteger o topo das
paredes de com com uma lona plástica ou fardos de palha, etc. ao fnal do dia de
trabalho, em caso de chuvas. No inívcio de um novo dia de trabalho, enquanto se
prepara a masseira, deve-se molhar o topo da parede de cob algumas vezes, até
que fque bem úmida para possibilitar melhor adesão com a nova camada de
barro.
Os batentes de portas e janelas devem ser instalados preferencialmente
conforme a construção das paredes prossegue. Instalações para fações elétricas e
tubulações de água também devem ser planejadas com antecedência e feitas
concomitantemente à construção das paredes, para maior praticidade.
A grossura da parede varia bastante, em função principalmente do peso a
ser suportado, ou seja, a altura da construção, se terá um ou mais andares, peso
do telhado, etc. Normalmente usa-se uma largura de no mívnimo 25 cm para
construções bem simples e baixas; 40 cm para uma casa térrea, e mais larga para
construções de mais de um andar. Geralmente constroem-se paredes mais

217
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

grossas na base, afnando progressivamente conforme a parede vai subindo,


diminuindo cerca de 2 a 3 cm de grossura a cada metro de altura.
Vigas para o telhado repousam diretamente sobre o cob. Caso se julgue
necessário, dependendo do tamanho e peso das estruturas do telhado, pode-se
fazer as paredes mais grossas nos pontos de sustentação das vigas, formando
uma estrutura de reforço (coluna de cob).

Na técnica do cob, as paredes de barro são literalmente esculpidas à mão.

Acabamento
As paredes esculpidas à mão invariavelmente fcam com uma superfívcie
bastante irregular e rugosa. Algumas pessoas podem gostar desse aspecto
rústico, mas você pode deixá-las bem mais lisas e regulares desbastando-as com
uma lâmina metálica, que pode ser um facão, por exemplo. Aív, ela estará pronta
para receber o reboco e pintura.
Existe um princívpio que diz que materiais semelhantes têm afnidade entre
si. Por isso, não se deve nunca utilizar massa de cimento para rebocar
construções de terra. Além de não aderir direito, as diferenças de rigidez e
respirabilidade fazem com que rebocos de cimento rachem e descasquem das
bioconstruções em pouco tempo. Por isso, deve-se sempre usar materiais
naturais também para o acabamento.
O reboco natural pode ser feito com uma massa de barro muito
semelhante à do cob em si, mas com ingredientes mais fnos, peneirados.
Inúmeras variações são possívveis, mas uma receita básica para reboco seria um
barro com proporção areia fna:argila de cerca de 2:1, e estrume fresco de vaca
peneirado numa proporção de 10 a 20% do total da massa. Além da função

218
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

estética, o reboco reduz a poeira no interior da casa e protege as paredes


externas da erosão. Variações na proporção de areia e argila, na granulometria da
areia e aditivos como fbras vegetais e outras, assim como a técnica de aplicação
com pincel, mãos, espátulas etc., podem ser usadas para dar texturas diferentes
ao reboco.
Para pintura, pode-se utilizar a cal para pintura, pois adere muito bem às
paredes de barro e oferece ótima proteção contra as intempéries. Aplique várias
demãos, formando uma camada grossa de cal.
Outra ótima opção são as tintas de terra. Fazer tinta de terra é muito fácil:
basta peneirar bem a terra e adicionar uma mistura de cola branca e água até dar
uma consistência pastosa fna, e aplicar às paredes com brochas ou rolos, como
qualquer outra tinta. Você pode usar praticamente qualquer tipo de terra, não
importando muito o teor de areia e argila, desde que não seja areia pura. Existem
terras de inúmeras cores diferentes: amarelas, vermelhas, pretas, brancas,
cinzas... além é claro de todos os tons de marrom, o que te dá várias
possibilidades na confecção da tinta. Você ainda pode adicionar pigmentos
naturais, como urucum, ou corantes artifciais para atingir outras cores e
tonalidades. A proporção de cola e água é bastante fexívvel, indo de 1:2 até 1:10,
de acordo com o tipo de solo e a resistência que se quer dar à tinta.
O acabamento com reboco e tinta de terra descrito acima serve não apenas
para cob, podendo ser usado igualmente para todas as outras técnicas de
construção com terra.

Adobe

O adobe é uma das mais antigas e largamente distribuívdas técnicas de


bioconstrução do mundo. Há inúmeras edifcações de adobe com séculos ou
milênios de idade, ainda em excelente estado de conservação e ainda em uso! A
própria palavra adobe tem cerca de 4.000 anos, vindo do egívpcio médio,
passando para o árabe, sendo assimilado pelo espanhol quando da invasão moura
da penívnsula ibérica, e daív espalhando-se para as demais lívnguas europeias.
A técnica do adobe consiste essencialmente na confecção de blocos ou
tijolos de barro crus, secos à sombra ou ao sol, que são usados na construção,
assentados com uma massa de barro fresca.

Fazendo blocos de adobe

Os blocos de adobe podem ser feitos exatamente com a mesma “receita” de


barro usada na técnica do cob, inclusive no que se refere aos aditivos. O barro é
enformado em formas de madeira, formando os blocos que são então

219
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

desenformados e deixados para secar ao sol. * Os blocos devem ser virados


diariamente e mantidos protegidos da chuva até a secagem completa, quando
estarão prontos para uso. O tamanho dos blocos pode variar bastante, mas uma
medida comum é 10 × 20 × 40 cm.

Fazendo blocos de adobe

Assentando os blocos

A massa de barro fresca para assentar os blocos de adobe tem a mesma


composição do próprio bloco, exceto pelo fato de normalmente não se adicionar
a palha. Já a técnica de construção das paredes é idêntica à da construção de
alvenaria convencional de blocos de concreto ou tijolos cerâmicos e argamassa
de cimento.

Pau-oa-opique

O pau-a-pique foi, por muitos séculos e até recentemente, a técnica de


construção mais comum em todo o Brasil rural. Porém, na maioria das vezes
essas habitações eram construívdas de forma precária, o que lamentavelmente fez
com que essa técnica fosse comumente associada à imagem de casebres e
pobreza. Além disso, o pau-a-pique também é frequentemente associado à
doença de Chagas. Isso porque casas mal construívdas, sem acabamento e
manutenção adequada criam rachaduras que acabam servindo de abrigo e
criadouro para os barbeiros, insetos transmissores da doença, além de outras
criaturas indesejáveis. Porém, é preciso deixar claro que esses problemas não são
decorrentes da técnica do pau-a-pique em si, mas de construções feitas de forma
inadequada em geral.
A técnica do pau-a-pique consiste basicamente em se fazer uma armação

* Muitos bioconstrutores preferem pré-secar os blocos à sombra por alguns dias, antes de
levá-los ao sol. Isso pode ser importante para evitar deformações ou rachaduras
excessivas, dependendo das características do barro, tamanho dos blocos, clima local, etc.

220
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

de madeira, paus ou bambus semelhante a uma treliça, que serve de estrutura


interna sobre a qual se aplica o barro, formando as paredes.

Construindo com pau-oa-opique

Após o preparo do terreno no local da construção (aterramento,


terraplanagem, compactação), instalam-se os esteios que darão sustentação à
casa. Esses devem ser troncos de madeira resistente ao apodrecimento. No caso
de eucalipto, esse deve ser tratado. Pode-se também evitar o apodrecimento
pintando a base da tora que fcará enterrada com piche, ou protegendo-a com
uma “bota” impermeável feita de saco plástico resistente. Em seguida, constrói-
se uma boa base de pedra para as paredes. Nos esteios, prendem-se com pregos,
arame ou cipós os paus horizontais da armação. Os paus verticais são presos aos
horizontais, também com arame ou cipó, e repousam sobre a base de pedra.
Agora, é hora de barrear! A massa de barro é idêntica à das outras técnicas
descritas acima, e deve ser aplicada por duas pessoas simultaneamente, uma do
lado de dentro e outra do lado de fora da parede. As mãozadas de barro são
aplicadas em cada posição de forma sincronizada, como um “bofete” (daív essa
técnica ser chamada também de “taipa-de-bofete”), de forma que o barro
penetre na armação e a preencha sem deixar espaços, aderindo perfeitamente aos
paus. E assim vai-se construindo a parede.

O “certo e errado” do pau-oa-opique


Certo Errado
• Base de pedra ou concreto • Paus enfiados na terra,
apodrecem precocemente;
infiltração de umidade na parede
• Paus ou bambus bem maduros e • Paus e bambus usados ainda
secos verdes, ao secarem perdem
aderência com o barro
• Teor adequado de areia, argila e • Excesso de argila, excesso de
umidade; aditivos (palha e esterco), água (barro muito mole), resultando
se necessário ou desejado em rachaduras ao secar
• Espessura adequada das • Paredes muito finas, paus
paredes, protegendo totalmente os expostos
paus
• Acabamento adequado (reboco, • Falta de acabamento e
pintura); manutenção adequada manutenção, frestas abrigam
pragas; deterioração precoce

221
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

Vantagens e desvantagens do pau-oa-opique

O pau-a-pique é uma técnica de construção mais rápida que as demais


construções de barro. Isso se deve ao fato de as paredes serem mais fnas, e
portanto necessitarem menos barro. Pelo mesmo motivo, são também mais leves.
Por isso, tendem a ser menos resistentes que paredes mais grossas, como as de
cob, adobe e taipa de pilão. Também oferecem menos isolamento térmico e
acústico.
Porém, por serem mais leves, são mais indicadas para pisos superiores de
sobrados, por exemplo. Também, por serem mais delgadas, são ideais para
paredes e divisórias internas, roubando menos espaço interno dos cômodos.
Esteio
Treliça

Barro

Base

Construindo com pau-a-pique

Taipa de pilão

Nesta técnica, utilizam-se duas pranchas de madeira bem resistentes, que


são presas por suportes externos ou longos parafusos, formando uma fôrma
móvel, desmontável. Coloca-se a terra dentro dessa fôrma, em camadas de 10 a
20 cm, e soca-se com um soquete de madeira, compactando bem; a fôrma é
então desmontada e movida mais adiante, repetindo-se o processo,
prosseguindo-se assim com a construção da parede.
As paredes devem ser grossas, 40 cm ou mais, dependendo da altura da
casa. A mistura de terra pode ser essencialmente a mesma das outras técnicas de
construção com terra, com um teor de argila entre 15 e 50%, e areia entre 50 e
85%. Porém, para uso na taipa de pilão, a mistura de terra tem que estar um
pouco mais seca que nas técnicas descritas anteriormente. Além disso, aditivos

222
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

como palha e estrume são menos importantes na taipa de pilão, sendo


geralmente dispensados.

Terra ensacada

Nesta técnica, muito popular entre bioconstrutores atualmente, sacos são


enchidos com terra, empilhados e compactados com um soquete de madeira,
formando assim as paredes.
A preparação da terra é idêntica à da taipa de pilão. Tratam-se, na verdade,
de técnicas muito semelhantes, exceto que na terra ensacada, ao invés de se usar
uma fôrma de madeira, a terra é contida pelos sacos.
Os sacos utilizados podem ser de fbras naturais, como a juta e algodão;
porém, os mais comumente utilizados são de materiais sintéticos como o
polipropileno (sacos de ráfa). Podem ser reaproveitados sacos usados de
produtos como cebolas, laranjas, batatas, farinha, calcário agrívcola, etc. Porém,
na prática esses sacos raramente estão disponívveis em quantidade sufciente, e
por isso o mais comum é usar sacos novos. A opção mais popular são bobinas de
malha tubular de ráfa, com largura entre 30 e 40 cm e comprimento de 500 ou
1000 metros. Esse material obviamente tem que ser comprado, e pode
representar um custo substancial, o que representa uma desvantagem dessa
técnica.
Os sacos podem ser divididos grosseiramente em dois tipos: os de malha
fechada, como os de farinha de trigo para uso industrial, calcário agrívcola, etc., e
os de malha aberta, como os de cebola, batata e laranja. Por algum motivo, a
construção com sacos de malha fechada foi batizada de superadobe, e a com
malha aberta foi chamada de hiperadobe. Os sacos de malha aberta são mais
vantajosos para construção, pois permitem boa aderência entre as camadas da
parede, e também desta com o reboco, além de geralmente serem mais baratos e
representarem menor quantidade de plástico.
Utiliza-se um balde sem fundo como funil para encher os sacos de terra.
Os sacos (ou a malha tubular) vão sendo enchidos de terra e deitados sobre o
alicerce (ou as camadas já construívdas da parede), formando uma nova fada, que
em seguida é compactada com o soquete. Antes que o barro seque, deve-se
compactar também lateralmente, usando uma marreta de borracha ou madeira.
O acabamento se faz de maneira idêntica à descrita para a técnica do cob.
Porém, no caso de se usarem sacos de malha fechada (superadobe), é necessário
queimar ou pelo menos chamuscar o plástico com um lança-chamas (tipo
“vassoura de fogo”) após terminada a construção da parede, para permitir a
aderência do reboco à parede de terra.

223
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

Telhado

O telhado é uma parte crívtica de qualquer construção, já que, se não for


bem feito, pode levar a goteiras, infltrações e até risco de desabamento. Por
isso, mesmo em bioconstruções, muitas pessoas acabam optando por construir
telhados convencionais, como os de telhas de barro ou fbrocimento, pois além
de serem consagrados pelo uso, são familiares a todos, sendo portanto
geralmente muito fácil encontrar os materiais necessários e mão de obra
devidamente capacitada para sua construção.
Porém, as técnicas de bioconstrução oferecem opções de telhados e
coberturas naturais, efetivas e seguras. Dentre elas, podemos destacar os
telhados de palha, telhados verdes e domos.

Telhados de palha

Palha tem sido usada como material para cobertura de casas há milhares de
anos, por povos desde os mais primitivos até os civilizados, em todos os
continentes. Diversas espécies vegetais fornecem folhas adequadas à confecção
de telhados, incluindo algumas gramívneas como o sapé, santa fé e o trigo;
palmeiras (piaçava, carnaúba, coqueiro, etc.), plantas aquáticas como juncos,
taboas, etc.
Telhados de palha são bastante charmosos e podem ser bastante efetivos,
desde que bem feitos. Com manutenção adequada, que deve ser feita a cada 3 a
5 anos em média, podem durar décadas. Além disso, por serem leves e fexívveis,
permitem a utilização de materiais alternativos de baixo impacto ambiental para
a estrutura do telhado, como o bambu, por exemplo, desde que devidamente
tratado para maior durabilidade.
Um detalhe técnico importantívssimo em telhados de palha diz respeito à
caívda, que deve ser bem ívngreme, com pelo menos 45° (ideal entre 50 e 60°),
para permitir que a água da chuva efetivamente escorra. Caso contrário, ou seja,
se você não der ao telhado uma caívda adequada, a água penetrará na palha,
fazendo com que você tenha problemas com goteiras. Além disso, a umidade
acaba fcando retida na palha, fazendo com que ela apodreça rapidamente.
Fazer um simples telhado de palha não é difívcil; porém, fazer um bom
telhado de palha pode ser bastante complicado, dependendo de mão de obra
especializada e experiente, que nem sempre é fácil de encontrar. Bioconstrutores
amadores e iniciantes, quando se aventuram a fazer telhados de palha,
normalmente têm problemas com goteiras. Portanto, se quiser experimentar, é
aconselhável usar essa técnica em construções menos crívticas, como galpões,
galinheiros, etc., antes de usá-la para cobrir a sua casa.
Outra limitação dos telhados de palha é que na maioria dos locais, não há
disponibilidade de palha adequada à construção de telhados em quantidade

224
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

sufciente, na prática impedindo que se use essa técnica.


Deve-se ter em mente, ainda, que a palha é infamável, devendo-se portanto
ter cuidado redobrado contra incêndios.

Telhado verde

Telhados verdes chamam atenção por seu aspecto inusitado, pitoresco e


extraordinariamente natural. Além disso, dão excelente conforto acústico e
térmico à casa. E não pára por aív — conforme mencionado no capívtulo 8 (“Água
em Permacultura”), telhados verdes ajudam a reter água da chuva e melhorar a
qualidade do ar nas cidades, além de possibilitarem a produção de lindas fores,
ervas e até comida. Por isso, não é surpreendente que despertem o interesse de
tantos bioconstrutores.
Telhados verdes podem ser construívdos de diversas maneiras, com técnicas
diferentes. A técnica mais convencional consiste de uma laje de concreto com
declividade de pelo menos 2%, fortemente impermeabilizada por manta asfáltica
ou manta plástica grossa, sobre a qual se adiciona uma camada de argila
expandida para propiciar drenagem, uma manta permeável e, por cima desta,
uma camada de solo onde vão as plantas.
Porém, telhados verdes também podem ser feitos de forma mais simples e
barata, sem a necessidade de se ter uma laje. Em cima de um madeiramento
convencional de telhado, ao invés das telhas você instala um “telhado” de chapas
de compensado de obra tipo “madeirite” (existem hoje no mercado placas
semelhantes feitas a partir de caixas de leite longa vida recicladas, que podem
ser uma excelente alternativa). Sobre as chapas, você prega sarrafos de 5 cm de
altura, em posição horizontal, em linhas espaçadas a cada 60 a 75 cm, por todo o
telhado — esses sarrafos criarão barreiras que ajudarão a manter a terra no
lugar. Deve-se instalar também uma tábua de madeira na posição vertical, que
suba 10 cm acima do nívvel do compensado ao redor de todo o telhado, para
conter a terra. Por sobre isso tudo, você instala uma camada de carpete de
forração (de preferência carpetes velhos, que podem ser obtidos de graça em
reformas de prédios), uma lona plástica impermeável e resistente, e mais uma
camada de carpete — assim, a lona estará protegida do contato direto com a
madeira ou a terra, evitando perfurações ou roturas. Por fm, cubra com uma
camada de 10 cm de terra misturada com composto orgânico, e plante placas de
grama. Está pronto!
A grama deve ser plantada em dias chuvosos, para que pegue. Uma vez que
a grama estiver estabelecida e a terra estabilizada sobre o telhado, você poderá
plantar outras coisas, como fores, ervas e hortaliças, etc., diretamente sobre a
grama. Agora, se você não quiser plantar grama, pode simplesmente cobrir a
terra com uma boa camada de palha (cobertura vegetal morta), que evitará que a
terra escorra em dias de chuva. Conforme a palha se degradar, haverá o

225
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

crescimento natural e espontâneo de plantas que, com suas raívzes, estabilizarão a


terra permanentemente.
Alguns cuidados são necessários em relação ao telhado verde, e os
principais pontos são estrutura, impermeabilização e manutenção.
Deve-se ter em mente desde o inívcio que telhados verdes são
substancialmente mais pesados que outros tipos de telhados, fcando ainda mais
pesados em dias de chuva. Por isso, toda a casa, desde a fundação, paredes até a
própria estrutura do telhado, deve ser feita com resistência sufciente para
comportar esse peso.
Além disso, ninguém quer um telhado que vaze! Além do incômodo das
goteiras, vazamentos também levam ao apodrecimento do madeiramento,
trazendo sérios riscos ao telhado e à construção. Por isso, as medidas citadas
acima, ou outras equivalentes, devem ser observadas com a máxima seriedade, e
quaisquer infltrações que venham a ocorrer devem ser prontamente sanadas.
Deve-se ter em mente que telhados verdes são relativamente sazonais: na
época das secas, as plantas secarão (e o telhado não parecerá tão verde), para na
próxima estação chuvosa voltarem a forescer. Lembre-se: todas as lindas fotos
que vemos de telhados verdes são tiradas na época das chuvas! Não espere que
seu telhado se pareça com aquilo o ano todo. Teoricamente, você poderia manter
seu telhado irrigado, mas na prática isso raramente é feito, até mesmo por
representar um gasto excessivo e desnecessário de água, que pode anular ao
menos em parte os benefívcios ambientais desse tipo de telhado. Então, creio que
o melhor mesmo é aceitar a sazonalidade do telhado verde.
Outro ponto que merece atenção é a manutenção, especialmente em
relação ao crescimento de árvores. Deve-se fcar de olho, e cortar árvores que
inventem de crescer no telhado, pois elas têm o potencial de perfurar a camada
de impermeabilização e literalmente destruir o telhado. Mas não arranque as
árvores, pois com isso você arrancará também uma grande porção de terra do
telhado — ao invés disso, é melhor apenas cortá-las rente à camada de solo,
deixando suas raívzes lá, que continuarão atuando na fxação do solo, sendo
portanto até úteis.

Domos

Domos são cúpulas arredondadas, caracterívsticas de muitas culturas e


antigas civilizações. O uso de domos como cobertura para casas é bastante raro
no mundo ocidental moderno e, por isso, casas com domos têm um aspecto
bastante exótico.
Domos podem ser construívdos de adobe, cob ou terra ensacada, e mesmo
construções de pedra — além de alvenaria convencional, claro. Podem ter um
formato hemisférico ou de ogiva (mais “pontudos”), sendo que os mais pontudos
são mais fáceis de construir. Também são mais estáveis e resistentes à ação da
chuva.

226
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

Coberturas feitas de barro necessitam de impermeabilização, por motivos


óbvios. Técnicas tradicionais incluem o uso de estrume bovino fresco, e cal com
sumo de cactos. Essas técnicas funcionam muito bem em climas desérticos, onde
domos são tradicionalmente comuns. Porém, em locais mais úmidos, devido à
grande incidência das chuvas, esses revestimentos naturais têm durabilidade
muito limitada, necessitando manutenção e reaplicações constantes, o que os
torna inviáveis na prática. Nesses casos, pode-se usar revestimentos cerâmicos
(ladrilhos) ou de pedra, assentados com argamassa. Há também no mercado
atualmente uma resina de poliuretano vegetal (“PUV”), produzida a partir da
mamona, que pode ser usada para impermeabilizar domos de barro, sem a
necessidade de usar cimento.

Construção com domos. Técnica usada: superadobe

Telhados convencionais

Telhados comuns podem ser feitos com impacto ambiental reduzido,


confuindo com a proposta geral da bioconstrução e da permacultura. Podem-se
utilizar telhas de segunda mão, provenientes de reformas e demolições. Mesmo
telhas de diferentes modelos, formatos e tamanhos podem ser habilmente
combinadas em um telhado, em camadas diferentes, dando um aspecto inusitado
e estiloso! Pode-se ainda utilizar madeiras de demolição, embora sua
disponibilidade seja normalmente limitada, e o preço muitas vezes proibitivo.
Outra boa opção são as madeiras roliças para a estrutura do telhado, como
pontaletes de eucalipto tratado.* Embora eucalipto tenha lá seus problemas, por
ser geralmente oriundo de monoculturas e tratados com venenos, ainda assim são
alternativas mais sustentáveis que madeiras convencionais, já que essas são quase
invariavelmente oriundas de desmatamento de forestas primárias, como a

* Não é recomendado o uso de eucalipto bruto (não tratado) em bioconstrução, a não ser
talvez em estruturas acessórias (andaimes, escoras, escadas, etc.) e temporárias (galpão
temporário para ferramentas), pois tem durabilidade natural extremamente baixa.

227
Parte II – A Alternativa da Permacultura 10. A Habitação Permacultural

amazônica, e transportadas por milhares de quilômetros, devendo portanto ser


evitadas a todo custo.

Considerações em relação ao custo

Na bioconstrução, damos preferência a materiais presentes no local ou


imediações, sempre que possívvel. Assim, o custo com materiais tende a ser bem
mais baixo. Porém, o processo é geralmente mais demorado e trabalhoso, pois
você terá que colher esses materiais e transportá-los por sua conta; terá que
fabricar seus próprios blocos (no caso da técnica do adobe), ao invés de comprá-
los prontos. Além disso, madeiras brutas e bambus são tortos, e portanto mais
difívceis de trabalhar, ou seja, nada é tão conveniente como comprar materiais
todos retinhos e regulares, e que o caminhão já descarrega prontos no seu
terreno no mesmo dia que você comprou, como ocorre no caso das construções
convencionais modernas. Por isso, é comum dizer que em bioconstrução o
material é mais barato, mas o custo com mão de obra é maior, de modo que o
custo fnal da construção pode ser equivalente ou mesmo mais caro que
construções convencionais equivalentes.
Isso é verdade, especialmente quando se contrata mão de obra para
construir. A boa notívcia é que você pode optar por construir você mesmo, e com
a ajuda de voluntários, amigos e parentes. Neste caso, a bioconstrução pode, sim,
ter um custo bastante reduzido em relação a construções convencionais.

228
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

11
SANEAMENTO ECOLÓGICO

Para entendermos o que é saneamento ecológico, é necessário primeiro


sabermos o que é saneamento.
Saneamento pode ser defnido como o conjunto de infraestrutura e serviços
operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário e limpeza urbana,
visando a manutenção de condições higiênicas e a prevenção de doenças na
população. Porém, focaremos esta nossa discussão na questão do esgotamento
sanitário.

Importância do saneamento

Fezes são um veívculo potencial para a transmissão de inúmeras e graves


doenças, incluindo doenças infecciosas bacterianas como a shigelose, cólera e
febre tifoide; virais como hepatites, rotavirose e enteroviroses (incluindo a
poliomielite), e parasitárias causadas por protozoários, como giardívase, amebívase
e criptosporidiose, além de inúmeras verminoses (e.g. ascaridívase). As diarreias
causadas por essas doenças foram uma das principais causas de mortalidade,
especialmente mortalidade infantil, por toda a história da humanidade, e ainda
continua sendo até hoje nos paívses menos desenvolvidos social e
economicamente do mundo, como na maior parte da África subsaariana. Todas
essas doenças (além de outras, como a leptospirose e doenças transmitidas por

229
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

mosquitos) só podem ser efetivamente prevenidas através do saneamento. É por


isso que nos paívses mais desenvolvidos, a incidência dessas doenças é
praticamente zero.

Histórico do saneamento

Na pré-história, obviamente não havia qualquer tipo de saneamento, e o


relacionamento do homem com seus excrementos provavelmente se assemelhava
ao das demais espécies animais. A rota fecal-oral é uma via de transmissão de
doenças que ocorre em populações de todas as espécies animais, podendo estar
associada a morbidade e mortalidade signifcativas. Porém, em condições
naturais, o impacto dessa via de transmissão na saúde das populações muitas
vezes é minimizado pelas densidades populacionais relativamente baixas, ou
comportamento migratório, etc. E provavelmente essa também foi a situação da
espécie humana ao longo das centenas de milhares de anos em que vagávamos
pela Terra como caçadores-coletores.
Porém, com o surgimento das primeiras civilizações, as populações
humanas passaram a ser sedentárias e criar adensamentos, como grandes
assentamentos e, posteriormente, cidades, que favoreceram enormemente a
transmissão de doenças feco-orais.
Na Antiguidade Clássica, a associação entre limpeza e bem-estar e saúde
foi notada, e medidas especívfcas começaram a ser tomadas para a promoção da
higiene pública. Merecem destaque a Civilização do Vale do Indo, Grécia e
Roma Antiga, que já contavam com elaboradas redes de esgotos há até 4000
anos atrás. Essas tubulações e galerias levavam os esgotos domésticos para fora
das cidades, onde eram despejados em corpos d’água — rios, lagos ou mares —
enquanto suprimentos de água limpa eram trazidos de áreas remotas, através de
aquedutos.
Todavia, com a queda do Império Romano Ocidental, desapareceu também
a ideia do saneamento em toda a Europa. Por isso, na Idade Média, a norma
passou a ser… defecar em qualquer lugar. Defecar nas ruas, ou dentro de casa e
depois jogar na rua. Quem morava perto de algum córrego ou rio, claro, não
perdia a oportunidade de descarregar seus excrementos diretamente ali. Também
o abastecimento de água passou a ser na base do “cada um por si”, buscando de
rios poluívdos, ou escavando poços domésticos que se contaminavam facilmente.
Isso levou a um recrudescimento das doenças de transmissão fecal-oral e hívdrica
como cólera e febre tifoide, entre outras.
Em muitos lugares onde esgotos eram coletados, descobriu-se o potencial
de seu uso como fertilizante agrívcola. Esgotos brutos (não tratados) foram
usados na agricultura em grande parte da Ásia por séculos, e o mesmo uso
também foi registrado em locais como Escócia, França, Alemanha e Estados

230
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Unidos no Perívodo Moderno. Na Ásia, essa prática continuou sendo comum até
a metade do século XX.
Essa situação geral só iria começar a mudar após a Revolução Industrial, e
especialmente durante o século XIX, com as descobertas cientívfcas de Louis
Pasteur e outros sobre a microbiologia, ou seja, a existência de microrganismos
como agentes causadores de doenças, e as implicações disso para a higiene e
saúde pública.
Ao longo do século XX, sistemas de saneamento passaram a ser instituívdos
em cidades por todo o mundo, mas de forma gritantemente desigual, de modo
que ainda hoje têm-se exemplos de todos os estágios de saneamento acima
citados, nas diferentes partes do mundo, indo desde a defecação ao ar livre,
amplamente praticada na África, Índia, etc., passando por sistemas precários de
saneamento como valas e canais de esgoto a céu aberto, fossas negras, coleta e
disposição de esgotos brutos em corpos d’água, até estações de tratamento de
esgotos, que são a norma em paívses economicamente desenvolvidos. O Brasil é
um caso à parte, já que aqui você tem exemplos de todos esses estágios do
saneamento dentro de um mesmo paívs! Muitas vezes, dentro de uma mesma
cidade você tem uma área atendida por uma estação de tratamento de esgoto,
outras áreas onde há coleta, mas não há tratamento (o esgoto é simplesmente
lançado nos rios ou mar), e bairros na periferia onde não há qualquer
saneamento, e os esgotos são lançados a canais a céu aberto que correm entre as
casas, com crianças brincando ao redor, expostas a todo tipo de doenças… uma
verdadeira tragédia.

Saneamento convencional

O modelo de saneamento convencional na atualidade consiste basicamente


de sistemas de captação, tratamento e distribuição de água potável, e sistemas de
coleta, tratamento e destinação fnal de esgotos sanitários. Com isso, consegue-se
a segregação entre os seres humanos e seus excrementos, cortando assim o ciclo
de transmissão das doenças de rota fecal-oral.
Porém, esse óbvio benefívcio à saúde pública vem acompanhado de terrívveis
efeitos ambientais, dos quais o mais óbvio é a poluição dos rios e mares. Para
uma verifcação prática contundente e irrefutável desse fato, basta visitar os rios
Tietê ou Pinheiros, ou de fato qualquer rio na cidade de São Paulo, ou a Lagoa
Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro, por exemplo, ou mesmo praticamente
qualquer rio que corta qualquer cidade do Brasil, ou a água do mar nas grandes
cidades costeiras.
Claro que pode-se argumentar que esse dano ambiental todo é na verdade
fruto não do modelo convencional de saneamento em si, mas sim da falta ou
inadequação do tratamento do esgoto nas nossas cidades. Porém, isso é apenas
parcialmente verdade, pois mesmo quando há tratamento do esgoto, o efuente

231
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

lançado aos corpos d’água também não é livre de poluentes! Claro que os teores
de matéria orgânica e poluentes em geral são bem menores que no esgoto bruto.
Porém, esses efluentes de estações de tratamento de esgoto ainda contêm uma
carga bacteriana muito elevada, além de serem contaminados com produtos
quívmicos de diversas fontes, inclusive do próprio processo de tratamento.
Portanto, embora menos nocivos aos ambientes aquáticos que os esgotos brutos,
os esgotos tratados continuam sendo fonte de poluição das águas. Você não ia
querer nadar ali.
Além da poluição ambiental, esse modelo de saneamento também traz dois
outros grandes problemas: o uso excessivo de água e o desperdício dos
nutrientes do solo.
A composição básica dos esgotos domésticos é a seguinte:
aproximadamente 1% são excrementos humanos, e 99% água, sendo que dessa
água cerca de 30% foi usada para dar descarga na privada (pense nisso: água
limpa, tratada, sendo misturada a fezes e urina), enquanto o restante foi usado
para diversos fns, como banho, lavagem de roupas e louça, limpeza geral, etc.
Agora, com relação aos excrementos, eles são obviamente resultado do
processamento dos alimentos pelo nosso corpo. Então, o que acontece é o
seguinte: os nutrientes do solo são utilizados pelas plantas, e assim são
produzidos os alimentos, os quais consumimos e processamos biologicamente, e
o resultado disso são os excrementos — fezes e urina. Quando esses excrementos
são lançados na forma de esgotos aos rios e mares, isso signifca que os
nutrientes neles contidos jamais retornarão ao solo, de onde vieram. Portanto,
nesse sistema, você tem uma contívnua transferência dos nutrientes do solo, onde
eles teriam a capacidade de criar vida e produzir alimentos, para os mares, onde
se acumulam na forma de poluição. Com isso você tem de um lado o
empobrecimento progressivo da fertilidade do solo, com redução na capacidade
de produção de alimentos, e a destruição progressiva dos ecossistemas marinhos,
também reduzindo a produção de alimentos ali. Agora, projete essa situação para
o futuro, num mundo com cada vez mais pessoas, e cada vez menos capacidade
para produzir comida, e você vai entender por que a sustentabilidade é
importante, e por que o modelo de saneamento atual é um grave problema.

Saneamento ecológico

Chamamos de saneamento ecológico a um conjunto de técnicas,


infraestruturas e práticas higiênicas que permitem a interrupção do ciclo de
transmissão de doenças de transmissão fecal-oral e veiculação hívdrica,
cumprindo portanto a missão do saneamento, sem contudo consumir água em
demasia, poluir o ambiente, desperdiçar nutrientes ou causar qualquer outro

232
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

dano aos ecossistemas, sendo portanto sustentáveis.


Há técnicas de saneamento ecológico adequadas a todas as escalas, desde a
individual até grandes sistemas coletivos, para cidades inteiras, por exemplo.
Porém, como a implementação de sistemas em larga escala depende da
administração pública, e portanto vontade polívtica, e como aparentemente a
sociedade em geral está satisfeita com o modelo atual de “jogar a merda toda no
rio e deixar que a natureza se vire”, na prática os sistemas em pequena escala são
a única opção viável para a maioria dos permacultores, pelo menos no curto e
médio prazo.

Técnicas de saneamento ecológico

Banheiro seco de compostagem*

Pode-se dizer que o banheiro seco de compostagem, também chamado


simplifcadamente apenas de banheiro seco, é o sistema de saneamento mais
ecológico e sustentável que existe, sendo por isso mesmo o preferido na
permacultura. Nesse sistema, os excrementos (fezes e urina) são depositados em
um local devidamente contido, sem contaminar o meio ambiente, e cobertos
com uma variedade de materiais naturais, chamados “materiais de cobertura”,
formando camadas. Essa mistura é então mantida intocada por perívodos que
podem ser de 6 meses em regiões de clima tropical, a 1 ano em regiões de clima
temperado, chegando até a 2 anos nos climas muito frios. Nesse perívodo, que é
crívtico, ocorre o fenômeno da compostagem, em que microrganismos
naturalmente presentes nesses materiais se proliferam, digerindo essa matéria
orgânica e transformando-a em húmus, um fertilizante agrívcola orgânico
riquívssimo em nutrientes do solo.
Durante o processo de compostagem, a intensa competição microbiana
assegura a destruição total de quaisquer patógenos eventualmente presentes nos
excrementos, garantindo a segurança do uso desse húmus na adubação do solo
para a produção de alimentos, sem gerar riscos à saúde humana. A elevação da
temperatura no processo de compostagem termofívlica ** e a presença de amônia,
decorrente da degradação da ureia†, também contribuem para a destruição de
eventuais patógenos. Além de microrganismos patogênicos, também resívduos de

* O livro “Manual Humanure”, de Joe Jenkins, é a referência mais completa sobre este
assunto, sendo geralmente considerado uma espécie de “bíblia do banheiro seco”.
** Germer, J. et al. Temperature and deactivation of microbial faecal indicators during small
scale co-composting of faecal matter. Waste Management. 2010.
† Jensen, P. K. et al. Survival of Ascaris eggs and hygienic quality of human excreta in
Vietnamese composting latrines. Environmental Health. 2009.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

produtos quívmicos e farmacêuticos são degradados pelas condições biológicas e


quívmicas que ocorrem no processo de compostagem.*
O banheiro seco de compostagem traz enormes vantagens:
• Não utiliza água. Pense só, utilizar um banheiro por toda a sua vida sem
jamais utilizar um litro de água sequer!
• Não gera esgotos ou qualquer outro tipo de poluição.
• Resulta em fertilizante de alta qualidade, permitindo a devolução dos
nutrientes ao solo para a produção de mais alimentos, recuperação
ambiental, etc. Ou seja, não há desperdívcio de nutrientes, e sim sua
reciclagem completa.

Tipos de banheiro seco

Existem basicamente dois tipos principais de banheiro seco: o tipo vertical


e o horizontal. Se você pesquisar, encontrará uma infnidade de variações, e
inclusive modelos comerciais disponívveis em muitos paívses, sendo que muitos
são até bem caros, às vezes dependem de energia elétrica para funcionar, etc.
mas que na verdade não oferecem qualquer vantagem efetiva sobre os modelos
simples do tipo “faça você mesmo”. Por esse motivo, focaremos nossa discussão
sobre banheiro seco nos modelos mais básicos, que também são os mais
populares.

Banheiro seco vertical

O banheiro seco vertical, ou de composteira acoplada, consiste de uma


estrutura onde o banheiro propriamente dito é construívdo diretamente acima de
uma câmara de compostagem (composteira), que é bem vedada. Não se usa uma
bacia sanitária comum (daquelas de descarga) — ao invés disso, o vaso sanitário
consiste basicamente de uma caixa ou bancada que dê altura adequada para que
o usuário possa sentar-se, com uma abertura guarnecida de assento e tampa, que
podem ser aproveitados de privadas convencionais. Alternativamente, pode-se
fazer a abertura no assoalho do banheiro, caso queira-se uma privada daquelas
que se usa agachado (opção tradicional e bastante popular na Ásia, e que muitos
afrmam ser mais natural e saudável).
A câmara de compostagem deve ter um tubo para exaustão de gases
gerados no processo da compostagem, e uma abertura independente, com porta,
para esvaziamento periódico.

* Kakimoto, T.; Funamizu, N. Factors afecting the degradation of amoxicillin in composting


toilet. Chemosphere. 2007.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Ao usar o banheiro, os dejetos caem dentro da composteira. Após cada


uso, ao invés de se “dar a descarga”, lança-se uma certa quantidade de material
de cobertura dentro do vaso sanitário, sufciente para cobrir os dejetos. E pronto!
o banheiro está pronto para uso novamente.
Por material de cobertura entende-se uma variedade de materiais naturais,
como serragem, palha de arroz, folhas mortas de árvores, capim, aparas de
grama e outros restos vegetais (e.g. galhos e restos de podas) triturados, etc.
Eventualmente outros materiais podem ser adicionados, como cinzas e terra,
desde que não constituam uma porção principal do material de cobertura. Outros
materiais orgânicos, como restos de cozinha, também podem ser adicionados.
A principal e mais óbvia função do material de cobertura é bloquear odores
provenientes dos dejetos e restos orgânicos durante a compostagem. Outras
funções incluem: absorver o excesso de umidade do composto, manter a aeração
proporcionando a decomposição aeróbica e termofívlica da matéria orgânica,
proporcionar um substrato poroso ideal para a atividade microbiana, prover
nutrientes ao composto pela decomposição do material de cobertura, etc.
Quando a câmara de compostagem se enche, esse banheiro deve ser
interditado por todo o perívodo de compostagem (6 meses a um ano, dependendo
do clima local). Nesse perívodo, deve-se usar outro banheiro. Por isso, geralmente
banheiros secos verticais são construívdos em módulos duplos: dois banheiros
idênticos, lado a lado, com suas respectivas câmaras de compostagem, que são
usadas alternadamente: seis meses uma, seis meses a outra.
Ao fnal do perívodo de compostagem, abre-se a câmara por uma porta
lateral ou traseira (acesso externo) para remoção do composto, que estará pronto
para uso como adubo. O tamanho da câmara de compostagem varia conforme a
intensidade de uso, mas em geral tem em torno de 1 a 2 metros cúbicos. Devido
ao uso alternado, deve-se necessariamente construir no mívnimo dois banheiros
(para uso individual ou uma famívlia pequena). Deve-se construir um número
sufciente de unidades para sempre permitir o descanso por todo o perívodo de
compostagem.
A vantagem deste modelo de banheiro seco é sua praticidade de uso, já que
é só usar e usar, por seis meses, sem ter que se preocupar com manutenção da
composteira — esta é feita apenas uma vez ao fnal de cada ciclo.
Porém, esse sistema também tem algumas desvantagens e limitações.
Como o material fecal cai lá em baixo, mesmo que você capriche ao jogar o
material de cobertura, difcilmente “acertará em cheio”. Portanto, a cobertura é
menos efciente, comumente gerando algum problema com odores. Esse
problema pode ser amenizado com boa ventilação do banheiro, boa ventilação
da composteira (respiro adequado), e adição de mais material de cobertura.
Ainda, a unidade toda deve ser bem vedada, tanto o assento como a tampa da

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

câmara de compostagem e o respiro (com tela), para evitar o acesso de moscas,


evitando sua proliferação na câmara.
Outra desvantagem diz respeito à falta de fexibilidade desse sistema.
Digamos que você constrói um banheiro para uma casa de 3 pessoas. Porém, por
algum motivo você recebe um morador extra, ou talvez você tenha uma vida
social bem ativa, e o banheiro é usado além do esperado. Pode acontecer da
câmara de compostagem se encher antes de ter dado o tempo necessário para a
compostagem completa da outra unidade do banheiro, gerando portanto um
problema logívstico!

Respiro

Porta
Assento

Acesso Câmara de
externo compostagem

Esquema de banheiro seco vertical (módulo duplo, externo)

Uma limitação deste sistema é que geralmente não é possívvel fazer uma
adaptação em um banheiro já existente. Às vezes é possívvel projetar e construir
um banheiro seco vertical contívguo à casa, especialmente quando a topografa do
terreno for favorável, já que o banheiro tem que fcar a uma altura no mívnimo
cerca de 1,5 m acima do nívvel do solo do lado externo à casa, para permitir
espaço vertical para a construção da câmara de compostagem, sendo necessário
também uma área de circulação do lado de fora para permitir a retirada
periódica do composto. Porém, na prática a grande maioria das pessoas que
utilizam este sistema optam por construir o banheiro como uma estrutura
independente e externa à casa, o que pode representar um custo substancial,
além de requerer um espaço considerável, podendo ainda ser considerado
bastante inconveniente (imagine ter que sair da sua casa para ir ao banheiro num
dia de chuva!).
Por fm, cabe ressaltar que há muitas pessoas que utilizam esse modelo de
banheiro seco, e estão satisfeitas.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Banheiro seco horizontal

Já o banheiro seco horizontal, ou de composteira separada, é


desconcertantemente simples: consiste basicamente de um balde plástico com
tampa e capacidade para 15 a 25 litros, um assento de vaso sanitário comum e
uma composteira que fca fora da casa. Para se usar o banheiro, basta abrir a
tampa do balde, instalar o assento de privada e usar como se fosse uma privada
comum. Após o uso, cobre-se com uma camada de material de cobertura. Antes
que o balde se encha completamente, esse deve ser esvaziado: leve até a
composteira, deposite lá o conteúdo do balde e cubra o material recém-
adicionado com uma nova camada de material de cobertura. O balde deve ser
limpo internamente a cada esvaziamento — você pode lavá-lo com água e uma
escova comum de vaso sanitário, e jogar a água na composteira, mesmo.
Alternativamente, você pode apenas limpar o interior do balde com o próprio
material de cobertura: ainda ao lado da composteira, adicione uma certa
quantidade de serragem dentro do balde e mexa com uma espátula de madeira
(feita com uma ripa ou bambu) de uso exclusivo para esse fm. Jogue essa
serragem dentro da composteira. Cubra o fundo do balde com uma camada de
material de cobertura, e ele já estará pronto para ser levado novamente ao
banheiro para uso. Ou seja, nem mesmo para limpar o balde é necessário usar
qualquer água! Caso deseje, você pode sanitizar o interior do balde aplicando
uma fna camada de cinzas, mas isso não é necessário.
Quando a composteira se enche, ela deve ser coberta com uma generosa
camada de material de cobertura, ter a data marcada em local visívvel, e deixada
intacta pelo perívodo adequado para compostagem (mívnimo de 6 meses,
conforme já discutido), após o que ela pode ser esvaziada; então, o composto
estará pronto para uso como adubo. Durante esse perívodo, usa-se outra
composteira. Deve-se ter um número sufciente de composteiras para sempre
permitir o descanso por todo o perívodo de compostagem — isso é vital.
A cobertura fnal de palha ou serragem deve ser relativamente grossa, pois
isso ajuda no isolamento térmico do composto, facilitando que esse atinja
temperaturas altas (composto termofívlico).
A maioria das pessoas prefere construir um pequeno gabinete, que pode ser
madeira reaproveitada (de pallets usados, por exemplo), e instalar o balde dentro
deste gabinete no banheiro, com o assento de privada sendo fxado ao gabinete.
Isso pode dar um aspecto mais “civilizado” do que simplesmente defecar no
balde, mas certamente não é necessário.
Você não precisa esvaziar o balde assim que ele se enche. Pode ter alguns
baldes a postos, para substituir conforme necessário, planejando para esvaziá-los
uma vez por semana, por exemplo. Basta deixar os baldes cheios devidamente
tampados, e não haverá problema algum — nem cheiro, nem moscas, nada.

237
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

O tamanho da
composteira pode
variar, mas um tamanho
de 1 metro cúbico é
geralmente adequado.
Elas podem ser
construívdas de tábuas de
reuso, como tábuas de
construção ou de pallets.
Banheiro seco horizontal As composteiras devem
ser bem feitas, para que
resistam por todo o perívodo de enchimento e compostagem (cerca de um ano, ao
todo). Como geralmente usamos madeiras reaproveitadas, na maioria das vezes
de pinus, que apodrecem facilmente, geralmente as tábuas não podem ser usadas
mais do que uma ou duas vezes, tendo que ser substituívdas. Se você usar
madeiras mais resistentes ou tratadas, talvez possam ser usadas por vários anos.
As composteiras devem ser construívdas fora da casa, mas não muito longe,
para facilitar o manejo. Convém provê-las com uma cobertura, para evitar o
ressecamento excessivo na estação seca, e encharcamento na estação chuvosa.
Você pode construir composteiras isoladas, ou um módulo duplo com
compartimento para armazenar serragem no centro (veja ilustração abaixo). O
telhado é provido de calhas e tanque para armazenamento de água de chuva, que
pode ser usada na lavagem dos baldes. As composteiras são usadas
alternadamente: enquanto você vai enchendo uma, a outra, já cheia, permanece
intocada, repousando por todo o perívodo necessário para a compostagem. Caso a
composteira em uso se encha antes do perívodo mívnimo para abertura da outra,
devem ser construívdas composteiras adicionais.

Serragem

Modelo de composteira em módulo duplo


Adaptado de: Joseph Jenkins. The Humanure Handbook (3. a ed.). 2005.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Ao contrário do banheiro seco vertical, o sistema horizontal é


extremamente fácil de adaptar em sua casa — basta tirar a privada do banheiro e
colocar um balde no lugar, e construir uma composteira no quintal, trazer alguns
sacos de serragem da madeireira ou marcenaria mais próxima, e pronto, já pode
começar a usar o seu banheiro seco!
Uma das coisas que fazem este sistema muito interessante e atrativo é o seu
baixívssimo custo, já que pode ser feito inteiramente com materiais
reaproveitados. Você não precisa e nem deve comprar um balde novo. Há
diversos produtos que são comercializados em baldes de tamanho adequado (15
a 25 litros), como margarina para uso industrial, impermeabilizante para
concreto, cloro para tratamento de água, graxa, etc. Em geral, são produtos de
uso industrial ou para construção, então você vai ter que ir aos lugares certos
para obtê-los, como construções em andamento, indústrias, grandes postos de
serviços, etc. Muitas vezes, esses baldes podem ser encontrados em depósitos de
sucatas e materiais recicláveis. Em minha cidade, a opção mais fácil são os
baldes de margarina (15 kg), usados pelas padarias.
Esses baldes costumam ser de excelente qualidade, muito fortes e duráveis,
e com tampas realmente herméticas, e em geral podem ser obtidos a custos
muito baixos — com sorte, até de graça! O mesmo pode-se dizer dos demais
materiais necessários ao uso deste modelo de banheiro seco: as madeiras para
construir as composteiras podem ser obtidas a custo virtualmente zero, se você
usar tábuas de construção descartadas, ou madeiras de pallets quebrados, e a
serragem também, geralmente, você pode obter de graça (ou quase) em
madeireiras e marcenarias.

QUESTÕES FREQUENTES EM RELAÇÃO AO BANHEIRO SECO

O que fazer com o papel higiênico?


O papel higiênico deve ir para a composteira. Papel higiênico é constituívdo
de celulose, que nada mais é que matéria vegetal. Ele se decompõe de forma
assustadoramente rápida, contribuindo para o teor de matéria orgânica do seu
composto. Ainda presta uma contribuição modesta na absorção de umidade e
aeração da pilha de composto. Portanto, papel higiênico deve ser adicionado
junto com as fezes, no banheiro seco. Pode jogar sem medo, não vai entupir
nada!
Urina junto ou separado?
Este é um assunto que divide opiniões, mas a verdade é que as duas opções
existem e são válidas, cada uma com suas vantagens e desvantagens. Por ser um
assunto que merece uma discussão mais detalhada, trataremos dele num tópico à
parte, mais adiante.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Virar ou não virar?


Existe um costume bastante arraigado entre as pessoas que praticam a
compostagem, especialmente agricultores orgânicos, de virar (ou seja,
remisturar) o composto periodicamente, durante o perívodo da compostagem.
Essa prática traria as seguintes vantagens: aerar a massa sendo compostada,
favorecendo a decomposição aeróbica; fragmentação e homogeneização do
composto, e também a redistribuição da umidade, permitindo uma
decomposição mais completa e rápida, rendendo ainda um produto fnal com
melhor aspecto.
Porém, embora tudo isso seja verdade, a prática tem comprovado que a
viragem do composto não é necessária — talvez o processo leve um pouco mais
de tempo, e você tenha um produto fnal menos homogêneo, mas ainda assim
terá o seu composto, bom e seguro.
O processo de viragem traz duas desvantagens. A primeira e mais óbvia é o
trabalho que dá virar o composto, especialmente se for um volume grande.
Outro problema diz respeito a um risco à saúde: durante o processo de
decomposição, há uma intensa proliferação de fungos no composto, e a viragem
põe em suspensão no ar uma grande quantidade de esporos, o que pode
representar um risco de alergias e mesmo infecções respiratórias.
Considerando tudo isso, e ainda o risco de contaminação ambiental com
fezes (ou seja, material fecal antes da completa degradação), conclui-se que não
se deve virar o composto contendo material do banheiro seco. Deixe-o ali,
intocado por todo o perívodo de compostagem recomendado, e você terá o seu
composto. Vale ressaltar que os trabalhos cientívfcos que comprovaram a efcácia
da compostagem na eliminação de patógenos foram realizados sem viragem do
composto, o que confrma que ela é desnecessária.
Não vai feder?
A resposta curta para essa pergunta é: não. Um banheiro seco não deve
cheirar mal, tampouco a composteira deve ter qualquer cheiro desagradável.
Agora, há apenas dois breves momentos em que você inevitavelmente sentirá
maus odores. Um deles, obviamente, na hora de usar o banheiro, especifcamente
no caso da defecação. Não apenas porque isso fede em qualquer banheiro, mas
há também outro pequeno fator: em privadas convencionais, as fezes, uma vez
liberadas, são imediatamente submersas em água, o que ajuda a minimizar a
liberação de odores. No banheiro seco, por outro lado, as fezes cairão… no seco.
Portanto, até que você termine o serviço e cubra com o material de cobertura,
haverá uma liberação de odores fecais superior ao que ocorreria em um banheiro
convencional. Mas, na verdade, a diferença não é muito grande.
O outro momento em que haverá liberação de odores é na hora de esvaziar
o balde na composteira, no caso do banheiro seco horizontal. Esse momento
durará cerca de cinco minutos, entre você esvaziar o balde, limpá-lo e adicionar

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

material de cobertura à pilha de composto. Cinco minutos, uma vez por semana
— não é pedir muito, é? Certamente um pequeno sacrifívcio que vale a pena,
considerando os enormes benefívcios oferecidos pelo banheiro seco. Se, ainda
assim, você se deixar desencorajar por isso, ainda tem a opção do banheiro seco
vertical.
Exceto nos momentos acima citados, um banheiro seco e uma composteira
bem manejada não devem jamais emitir qualquer odor. O único motivo para
maus odores é aplicação insufciente ou inadequada de material de cobertura.
Alguns materiais de cobertura são menos efcientes em bloquear odores; por
exemplo, serragem muito grossa, ou palha. Prefra serragem média, ou uma
mistura de serragem de diferentes granulometrias, para melhores resultados.
Palha, folhas mortas e outros restos vegetais devem ser, preferencialmente,
triturados para uso como material de cobertura. Cinzas de fogão e forno a lenha,
churrasqueiras, fogueiras, etc., que usualmente contêm algum resto de carvão,
também podem ser adicionadas como material de cobertura e são úteis na
eliminação de odores.
Uso de aditivos
Muitos manuais de compostagem citam ou recomendam a aplicação de
calcário agrívcola às pilhas de composto, para neutralizar acidez, desinfetar o
composto, fornecer nutrientes (cálcio e magnésio), etc. O mesmo pode-se dizer
das cinzas de madeira, que têm constituição semelhante e os mesmos efeitos.
Você pode aplicar cinzas ou calcário em pequenas quantidades no
composto, seja no balde, misturado ao material de cobertura, ou sobre a pilha de
composto na composteira, mas isso não é necessário. A adição de grandes
quantidades não é recomendada, pois interferirá negativamente na degradação
microbiana da matéria orgânica e desbalanceará demasiadamente a composição
quívmica e de nutrientes do composto.
Conforme já citado, a adição de cinzas de fogão a lenha ao composto pode
ajudar a bloquear odores (embora geralmente não seja necessário).
Problemas com pragas
Esta é uma preocupação que atinge muitas pessoas interessadas em
começar a usar um banheiro seco, ou fazer compostagem em geral: “não vai
atrair bichos? moscas? ratos? baratas?”
Trata-se de uma questão pertinente, já que você terá ali concentrada uma
grande quantidade e variedade de materiais orgânicos que são sabidamente
atrativos a essas pragas. Porém, o fato é que, assim como em relação aos odores,
na prática nada disso deve constituir problema, devido à “magia” do material de
cobertura. Basta você aplicar material de cobertura adequado, em quantidades
adequadas, e estará livre de odores e pragas.
É conveniente ressaltarmos uma coisa: nem só de microrganismos é feita
uma compostagem — macrorganismos, sejam eles fungos, insetos, larvas,

241
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

vermes, anelívdeos, etc., também são parte importante da compostagem. Todos


sabemos que as minhocas são comuns e benéfcas em qualquer processo de
compostagem, não é? Muitas vezes, são adicionadas intencionalmente
(vermicompostagem), embora isso não seja necessário. Minhocas nativas
também costumam colonizar pilhas de composto.
Outros animais que costumam aparecer no composto são besouros
(depositam seus ovos na matéria orgânica, onde se desenvolvem em larvas que
podem ser até bem grandes!), e larvas de moscas.
Aqui, devemos fazer uma distinção. Existem inúmeras espécies de moscas,
e nem todas elas são pragas. Claro que ninguém quer moscas domésticas ou
varejeiras crescendo em sua composteira. Caso isso ocorra, você pode adicionar
alguma quantidade de cinzas, fazendo uma camada sobre a composteira, pois
isso inibe essas larvas.
Por outro lado, é comum aparecerem em composteiras larvas da mosca
soldado negra (Hermetia illucens). Essas moscas não são pragas — não atacam
nossa comida, nem transmitem doenças. Nem sequer gostam de chegar perto de
humanos. Suas larvas são extremamente benéfcas na composteira, auxiliando na
decomposição da matéria orgânica. Além disso, elas trazem ainda outras grandes
vantagens: inibem totalmente o desenvolvimento de larvas de outras espécies de
moscas (essas sim, pragas); foi demonstrado que elas reduzem microrganismos
patogênicos (Escherichia coli 0157:H7 e Salmonella enterica) e várias
substâncias tóxicas, e também atuam na redução
ou eliminação de odores.* Também são ótimas
fontes de alimento com alto teor proteico para
peixes, aves, répteis, anfívbios, etc., sendo
comumente criadas e comercializadas para esse
fm.
Larvas da mosca soldado negra são mais
comuns em composteiras mais úmidas e alcalinas,
Tarva, pupa e adulto da e a adição de cinzas parece favorecê-las (ao
mosca soldado negra contrário do que ocorre com larvas de outras
espécies de moscas).
É realmente seguro?
A compostagem de excrementos humanos e seu uso como fertilizante
agrívcola, embora desconhecidas de muitas pessoas, são práticas estabelecidas e
consolidadas mundialmente, e sua segurança e efcácia têm sido comprovadas
por inúmeros trabalhos cientívfcos. Essas práticas são particularmente
disseminadas em paívses asiáticos, sendo inclusive encorajadas por governos. Um

* Newton, G. T. et al. Research Briefs: Black soldier fly prepupae – a compelling alternative to
fish meal and fish oil. Annual meeting of the regional research committee, S-1032 “Animal
Manure and Waste Utilization, Treatment and Nuisance Avoidance for a Sustainable
Agriculture”. 2008.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

caso exemplar é o Vietnã, onde mais de 90% dos agricultores usam banheiro
seco de compostagem e empregam esses nutrientes rotineiramente em suas
lavouras, orientados por normas técnicas do governo daquele paívs, as quais são
devidamente embasadas em pesquisas cientívfcas.*
Claro que essa segurança depende do cumprimento das recomendações
descritas acima, respeitando sobretudo o tempo de compostagem. Também é
necessário ressaltar que nada substitui as boas práticas de higiene alimentar,
especialmente a prática de lavar bem as frutas e verduras, enfm alimentos
consumidos crus, antes de comê-los.
Pode-ose compostar também fezes de cães e gatos?
Esta é uma dúvida que muitos compostadores têm e, por falta de
conhecimento, muitas pessoas acabam incluindo excrementos de animais de
estimação em uma lista de itens proibidos da compostagem.
É fato que, assim como as fezes humanas, fezes de cães e gatos também
têm o potencial de nos transmitir doenças (zoonoses), especifcamente a larva
migrans visceral, causada pelo Toxocara canis, e a toxoplasmose, causada pelo
Toxoplasma gondii — o primeiro, um verme nematoide que parasita o intestino
de cães, e o segundo, um protozoário coccívdeo que tem como hospedeiro
defnitivo os gatos. Porém, já foi demonstrado cientifcamente que o processo de
compostagem é efcaz na eliminação de ovos e oocistos de vermes e protozoários
parasitas.** Portanto, para efeitos de compostagem, fezes de cães e gatos podem
e devem ser compostadas, da mesma forma e com o mesmo rigor que fezes
humanas, podendo o composto resultante ser usado como fertilizante,
igualmente.

Considerações adicionais sobre a compostagem

Todo tipo de material orgânico, ou seja, tudo que veio da terra, deve voltar
à terra, e isso pode ser feito de diversas maneiras. Uma delas é a compostagem.
Outras são depositar diretamente sobre o solo (e.g. usar restos vegetais como
cobertura morta do solo) e enterrar, por exemplo. Você pode escolher. A
maioria das coisas orgânicas pode ir para a composteira, sem qualquer problema.
Agora, muitas vezes você verá pessoas dizendo que não se deve adicionar restos
de comida como carnes, peixes e laticívnios à composteira, pois isso atrairá
animais como ratos e cães, que causarão problemas. De fato, restos de comida
— arroz, feijão, macarrão, carnes, peixes, queijos, pães, bolos, pizzas, etc.,
adicionados sistematicamente e em altas quantidades à sua composteira,
provavelmente atrairão mesmo não apenas ratos e cães, mas também gatos,
* Jensen, P. K. et al. Hygiene versus fertiliser: the use of human excreta in agriculture – a
Vietnamese example. International Journal of Hygiene and Environmental Health. 2008.
** Amorós, I. et al. Prevalence of Cryptosporidium oocysts and Giardia cysts in raw and
treated sewage sludges. Environmental Technology. 2016.

243
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

urubus, carcarás, corvos, guaxinins, ursos, etc. (dependendo de onde você mora).
Mas isso não é um problema da compostagem, e sim um sintoma de um
problema anterior e muito mais grave, que é o seu péssimo hábito de desperdiçar
comida! Alimentos devem ser consumidos, e não jogados fora ou compostados.
Então, por restos de cozinha entendemos apenas cascas e restos não
comestívveis. Esses devem ir para a composteira, e não se preocupe, pois
geralmente não atrairão visitantes indesejáveis. Agora, algum pequeno
desperdívcio de comida que eventualmente, acidentalmente aconteça, por
exemplo quando por descuido você deixou estragar alguma coisa, também pode
ir para a composteira, que não causará problemas. O problema surge, conforme
já explicado, do hábito de jogar comida fora, que infelizmente muita gente acha
normal.
É importante ressaltar que, para que haja uma compostagem efciente e
perfeita, deve haver um equilíbrio nos materiais compostados — devem ser
adicionados materiais variados e em proporções balanceadas. Quanto maior a
variedade de ingredientes, melhor será o seu composto, pois terá todos os
nutrientes, o que é importante tanto para a qualidade do composto fnal, em
termos de nutrientes para as plantas, como para o processo de compostagem em
si (os organismos responsáveis pela compostagem também precisam dos
nutrientes). Por isso, se você compostar o material do banheiro seco juntamente
com restos da cozinha, aparas de grama e podas, mais outros materiais de
cobertura (dos quais o mais comum é a serragem), cinzas do fogão a lenha, etc.
sua compostagem certamente será um sucesso. Lembrando também que deve-se
tratar de manter um teor de umidade adequado no material durante a
compostagem, ou seja, sempre úmido, mas não encharcado, além de respeitar o
perívodo mívnimo para que ocorra a compostagem completa, especialmente
quando são adicionados excrementos humanos e animais.

Desafos do banheiro seco

Conforme já citado, o banheiro seco é a técnica mais perfeita de


saneamento que existe, com total preservação da saúde humana, dos recursos
naturais (e.g. água, nutrientes do solo) e dos ecossistemas. Porém, sua adoção
em larga escala enfrenta dois problemas culturais: preguiça e fecofobia.
• Preguiça. O fato é que estamos acostumados a dar descarga, e esquecer. É
sem dúvida muito mais cômodo. Porém, esse hábito está causando todos os
problemas que já discutimos. Portanto, temos que mudar. Infelizmente,
mudanças no estilo de vida, em práticas arraigadas, são sempre um desafo.
• Fecofobia. A fecofobia pode ser defnida como uma aversão exagerada,
um medo irracional das fezes. Criou-se uma cultura em que as pessoas se acham
boas demais para lidar com seus próprios excrementos. Até falar em fezes é
tabu!

244
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

A fecofobia não é uma coisa tão antiga — conforme já mencionado, até


menos de 200 anos atrás, ninguém estava nem aív para fezes e higiene. Foi o
conhecimento cientívfco da natureza e forma de transmissão de doenças,
passando também pelas polívticas de saneamento, ou seja, de combate às
condições de transmissão de doenças que mudou isso. Então, foi incutido no
consciente e inconsciente coletivo a noção verdadeira que fezes são perigosas,
veívculos potenciais de transmissão de doenças graves.
O fato é que as tecnologias de saneamento que surgiram e se estabeleceram
(e que temos até hoje) têm dado certo para a saúde pública, mas não para o meio
ambiente. Felizmente foi criada a tecnologia do banheiro seco de compostagem,
que promete conciliar o melhor dos dois mundos. Embora desconcertantemente
simples, essa tecnologia é muito recente — a compostagem só foi desenvolvida a
partir dos anos 1940, com o surgimento do movimento de agricultura orgânica, e
a compostagem de excrementos humanos somente a partir da década de 1970,
sendo que o banheiro seco de compostagem só começou a se popularizar com a
publicação dos primeiros livros sobre o assunto nos anos 90 — meros 20 anos
atrás!

Constipação de fundo moral:


“Quando percebi que estava literalmente cagando em água limpa,
tratada, potável, fiquei constipado por anos. Felizmente, conheci a tecnologia
do banheiro seco, e agora meus intestinos funcionam regularmente.”
— Brad Lancaster, autor de “Rainwater
Harvesting for Drylands and Beyond”

Agora, ninguém quer voltar a uma situação em que cólera, amebívase,


giardívase, verminoses, febre tifoide, etc. são parte do dia a dia, matando pessoas,
especialmente nossas crianças. Portanto, é importante, sim, combatermos a
fecofobia através de informação baseada em ciência, e através de nossos
exemplos, mostrando que é uma alternativa viável, ética, segura e saudável, tanto
em relação à saúde humana como do meio ambiente. Mas, acima de tudo, é
imprescindívvel que adotemos o banheiro seco com a máxima seriedade em
relação às boas práticas de compostagem descritas acima, especialmente no que
se refere a contenção (evitar contaminação ambiental por excrementos ainda não
totalmente compostados) e tempo de compostagem que, vale sempre lembrar,
deve ser de no mívnimo 6 meses em climas tropicais e um ano em climas
temperados, para garantir o saneamento total do composto. Caso contrário,
corremos o risco de trazer de volta doenças há muito controladas, causando
ainda um descrédito em relação a essa tecnologia maravilhosa do banheiro seco
de compostagem — um retrocesso terrívvel na nossa luta pela sustentabilidade.

245
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Urina

Conforme já citado, uma questão que frequentemente causa confusão


quando o assunto é banheiro seco diz respeito à urina: ela deve ir junto ou
separada das fezes?
Você descobrirá que há pessoas que recomendam a prática de separar a
urina, enquanto outros defendem a ideia que a urina deve ser sempre adicionada
junto com as fezes, no banheiro seco. Para entendermos melhor esse assunto,
vamos discutir as vantagens e desvantagens de cada abordagem.
A grande vantagem de adicionar a urina juntamente com as fezes é a
suposta praticidade — você usará o banheiro seco da mesma forma que usa a
privada de descarga convencional, ou seja, tanto para defecar como para urinar.
Os defensores dessa abordagem afrmam ainda que a urina ajudará a manter a
umidade da pilha de composto, além de adicionar importantes nutrientes,
especialmente o nitrogênio (nutriente do solo mais abundante na urina), gerando
portanto um composto fnal mais rico em seu valor como fertilizante. Outra
vantagem é o fato que a ureia presente na urina se converte em amônia,
contribuindo para a destruição de patógenos durante a compostagem,
aumentando a segurança do composto, conforme já citado.
Porém, adicionar toda a urina junto com as fezes no banheiro seco traz
também importantes desvantagens. Uma delas diz respeito ao volume: a urina é
produzida diariamente em um volume muito maior (10 vezes maior, em média)
que o volume de fezes produzido no mesmo perívodo. Por isso, adicionar toda a
urina juntamente com as fezes faz com que os baldes (no caso do sistema
horizontal) e as composteiras se encham muito mais rapidamente, o que se
refete em uma carga de trabalho muito maior com manutenção do seu sistema,
ou seja, você terá que esvaziar os baldes, e manejar composteiras com mais
frequência, o que lhe tomará mais tempo de sua vida. Além disso, mais volume
signifca mais composteiras, ou composteiras maiores, que consequentemente
ocuparão mais espaço. Você também precisará coletar material de cobertura
com mais frequência, pois será usado em maior quantidade, especialmente para
absorver todo aquele excesso de umidade representado pela urina.
Outra grande desvantagem desse sistema (toda a urina junto com as fezes
na composteira) diz respeito à perda de nutrientes, especialmente o nitrogênio.
Conforme já mencionado, o nitrogênio está presenta na urina
predominantemente na forma de ureia; porém, durante a compostagem essa
uréia se converte em amônia, a qual se perde por volatilização — uma perda que
pode ser superior a 90% desse que é um dos mais vitais nutrientes para as
plantas.*

* Zavala, M. A. et al. Biological activity in the composting reactor of the bio-toilet system.
Bioresource Technology. 2005.

246
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

A abordagem alternativa é separar a urina das fezes — as fezes são tratadas


conforme descrito acima, enquanto a urina é coletada em um recipiente à parte.
Com isso, reduz-se enormemente o volume a ser compostado, reduzindo
portanto o trabalho de manutenção do sistema, a necessidade de material de
cobertura e o espaço ocupado pelas composteiras.
Deve-se ressaltar que quem precisa ser compostado são as fezes, pois
conforme discutido acima, elas têm um grande potencial de transmitir doenças.
Em contraste, a urina é, em condições normais, praticamente estéril (na verdade,
hoje sabe-se que a urina e o sistema urinário não são estéreis, e sim contêm uma
microbiota especívfca que pode desempenhar papéis importantes na manutenção
da saúde*).
A urina é mais rica em nutrientes do solo que as fezes: das nossas
excreções diárias, 90% do nitrogênio, 50 a 65% do fósforo e 50 a 80% do
potássio estão contidos na urina. A fração sólida da urina é composta em média
de 16% de N, 3,7% de P e 3,7% de K. ** Essa informação torna óbvio seu
potencial como fertilizante.
Separar a urina das fezes signifca que você terá recipientes separados, ou
seja, baldes ou galões para urina (modelos de privadas que fazem a separação da
urina têm sido criados, mas não são necessários). Isso pode ser visto como
menos prático, mas as vantagens compensam. Agora, aqui temos que deixar uma
coisa bem clara. Muitas pessoas, quando se fala em separar a urina, fcam
paranoicas por causa daquele xixizinho que normalmente sai na hora do
“número dois”. Mas isso é besteira! Não é para se preocupar com isso. Urina
separada não signifca que qualquer quantidade de urina será prejudicial ao
processo de compostagem; signifca apenas que não é para usar aquele banheiro
ou balde para fazer xixi. Então, aquele xixizinho eventual, não precisa se
preocupar, pode fazer sem medo!
Na verdade, uma certa quantidade de urina é sempre benéfca à
compostagem de material do banheiro seco, mesmo quando se opta por um
sistema de urina separada, pois, como já discutimos, ela auxilia na manutenção
da umidade na composteira e na destruição de eventuais patógenos.
Então, embora as duas abordagens (urina junto vs. separada) sejam válidas
e tenham adeptos, creio que o melhor é: separar a maior parte da urina e usar
diretamente como fertilizante (conforme discutiremos a seguir), mas adicionar
também um pouco de urina junto com as fezes — aquela da hora do “número

* Whiteside, S. A. et al. The microbiome of the urinary tract – a role beyond infection. Nature
reviews. Urology. 2015.
** Rose, C. et al. The characterization of feces and urine: a review of the literature to inform
advanced treatment technology. Critical Reviews in Environmental Science and Technology.
2015.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

dois”, mais umas urinadas ocasionais, quantidade sufciente para manter a


umidade da pilha de composto. Assim, você combina todas as vantagens das
duas abordagens.

Utilização da urina como fertilizante*

A urina pode ser usada imediatamente ou após armazenamento por


qualquer perívodo de tempo, na forma lívquida, como fertilizante. Seu uso direto
permite a utilização imediata dos nutrientes ali contidos, ao invés de ter que
esperar por vários meses pelo processo de compostagem, além de prevenir as
perdas de nitrogênio, conforme já discutido. Além disso, o uso lívquido permite
que esses nutrientes atinjam as partes absortivas da planta muito mais
rapidamente do que quando se aplica um composto orgânico à superfívcie do
solo. Isso é particularmente útil no caso de tratamento de plantas com
defciências de nutrientes. Você verá que aquelas suas plantas que andam meio
amareladas, tristes, voltam a fcar verdinhas e lindas, e retomam o crescimento
rapidamente — uma diferença perceptívvel em poucos dias a algumas semanas.
O emprego da urina como fertilizante lívquido pode se dar basicamente de
duas formas: pela aplicação no solo ou aplicação foliar. Em ambos os casos é
necessário que se dilua a urina, pois da forma como deixa o nosso corpo, ela tem
uma concentração elevada de sais que pode danifcar a maioria das plantas.

Aplicação no solo
Urina humana diluívda pode ser aplicada no solo como uma forma de
fertilização ou ferti-irrigação. A diluição mívnima deve ser de 1:10, ou seja, uma
parte de urina para dez partes de água. Essas preparações relativamente “fortes”
(concentradas) podem ser usadas principalmente na estação chuvosa, com uma
frequência de uma a duas vezes por semana, a um volume de 5 a 10 litros por
muda, podendo aumentar proporcionalmente conforme a planta cresce, e
conforme a necessidade de suplementação. Aplique a preparação de urina
diretamente dentro da bacia, por cima ou debaixo da cobertura vegetal morta. A
mesma preparação de urina pode ser usada para fertilização de hortas, podendo
ser aplicada na razão de 5 a 10 litros por metro quadrado de solo (porém, para
aplicação em hortaliças, é preferívvel a aplicação subsuperfcial, que será
discutida mais adiante).
Agora, na estação seca, a urina deve ser usada mais diluívda, algo entre 1:40
até 1:100. Desta forma, sua aplicação passa a ter uma função dupla: de fornecer
umidade e nutrientes ao mesmo tempo, ou seja, ferti-irrigação. Nessa época, é
essencial que o solo ao redor das plantas esteja sempre muito bem protegido com

* Este assunto é discutido em profundidade no livro “Liquid gold: the lore and logic of using
urine to grow plants”, de Carol Steinfeld.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

uma generosa camada de matéria vegetal morta, para evitar o excesso de perda
de umidade por evaporação. Essas duas medidas (maior diluição e cobertura do
solo) são muito importantes também para prevenir o acúmulo de sais da urina no
solo superfcial, o que poderia causar problemas de toxicidade às plantas.
Adubação foliar
As plantas são capazes de absorver nutrientes não apenas pelas das raívzes,
mas também através da superfívcie das folhas (e mesmo do caule). Isso permite a
suplementação de nutrientes às plantas por essa via, na chamada adubação foliar.
A adubação foliar é uma prática disseminada tanto na agricultura convencional
como orgânica, e praticada tanto por agricultores profssionais como amadores.
Sua principal vantagem diz respeito à velocidade de absorção, que é
praticamente imediata, ao contrário da adubação do solo, já que nesse caso leva
um tempo até que os nutrientes se difundam e/ou as raívzes cresçam, permitindo
o contato e portanto a utilização pela planta. Outra coisa legal sobre a adubação
foliar é que ela também é, ao mesmo tempo, uma adubação do solo, pois o
excesso de adubo foliar inevitavelmente escorre indo parar no solo.
A urina é um excelente adubo foliar, pois contém quantidades balanceadas
dos principais nutrientes requeridos pelas plantas, tanto macro como
micronutrientes. A maioria das espécies de plantas podem se benefciar da
adubação foliar com urina diluívda a 1:10. Porém, há algumas espécies que têm
folhas particularmente sensívveis a queimaduras pela urina. Isso na verdade não é
tão comum, e também, mesmo que aconteça, não signifca que sua planta irá
morrer — poderá fcar com um aspecto um pouco prejudicado, mas basta parar
a aplicação que ela se recuperará rapidamente, então você não precisa ter receio
de fazer experimentações para saber como a adubação foliar com urina
funcionará com as suas plantas. Claro que você pode pesquisar sobre quais
plantas podem e quais não devem receber adubação foliar com urina, mas as
informações obtidas não necessariamente corresponderão à sua realidade. Vou
citar o meu exemplo pessoal: encontrei em um artigo a informação que
tomateiros são sensívveis e não devem receber adubação foliar com urina; porém,
em minha experiência prática, tomateiros benefciam-se dessa adubação sem
exibir qualquer efeito negativo. De todas as espécies que tenho testado (dezenas
delas), a única que foi prejudicada foram as jabuticabeiras, que exibem
queimaduras nas folhas após aplicação de urina diluívda a 1:20, que é a diluição
que normalmente uso. Porém, se benefciam da aplicação no solo, sem qualquer
problema. Portanto, o mais recomendado é que você faça seus próprios
experimentos, pois essa é a única forma confável de saber como suas plantas
reagirão à adubação foliar. Caso alguma espécie de planta apresente
queimaduras pela urina, você pode testar preparações mais diluívdas, ou optar
pela aplicação somente no solo.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Cheiro de urina
Uma preocupação comum e totalmente pertinente em relação ao uso de
urina como fertilizante diz respeito ao cheiro. Afnal, ninguém quer seu jardim
ou horta fedendo!
Infelizmente, existe, sim, a questão do cheiro. Todos sabemos que urina
não é inodora, e sua aplicação no ambiente tende a produzir… cheiro de mijo
velho. Esse cheiro pode ser maior ou menor, dependendo de vários fatores.
Quanto mais diluívda a urina, menor a tendência a problemas com odores.
Também, a aplicação direta no solo tende a feder menos que a aplicação foliar.
Se você adicionar a urina cuidadosamente dentro da bacia ao redor de sua
planta, sob uma boa camada de cobertura de solo, o odor será praticamente
imperceptívvel. De qualquer forma, o cheiro de urina tende a desaparecer dentro
de algumas horas, então muitas pessoas julgam que este é um inconveniente
tolerável. Porém, isso pode não ser aceitável em todas as situações. Nesses casos,
é melhor desistir da adubação foliar, e você pode optar pela aplicação na forma
de ferti-irrigação subsuperfcial (logo chegaremos lá).

Cinzas + urina
Uma combinação que tem ganhado destaque na agricultura orgânica e
permacultura é o uso de cinzas de madeira associado à urina na correção e
fertilização do solo. Conforme já mencionado no capívtulo 9 (“Permacultura
Rural”), cinzas de madeira têm grande valor na correção da acidez do solo e
fornecimento de importantes nutrientes. Sua associação com a urina tem-se
mostrado muito efetiva no incremento da produção vegetal. * Agora, o ideal é
você usar aquele velho princívpio: “tudo que veio da terra deve voltar à terra”, e
aplicar em conjunto seu composto orgânico, estrumes animais, se disponívveis,
cinzas e urina — aív sim suas plantas terão uma nutrição completa e perfeita!
Agora, a combinação de cinzas e urina tem ainda outra grande utilidade:
aplicadas nas folhas ou no solo tem a propriedade de combater pulgões, larvas,
lesmas e caracóis, entre outras pragas e doenças. Você pode usá-las de diversas
formas: só urina diluívda; só a cinza, polvilhando; ou as duas em conjunto. Você
pode molhar as plantas com urina diluívda, e polvilhar com cinzas em seguida,
fazendo com que adiram às folhas, ou você pode optar por fazer uma calda de
cinzas em água ou em urina diluívda, e aplicar sobre as plantas, etc.
A combinação de urina e cinzas atua por diversos mecanismos no combate
e prevenção de pragas e doenças: alteram o pH e condições quívmicas em geral na
superfívcie da planta, tornando-as desfavoráveis ao desenvolvimento da praga; a

* Pradhan, S. K. et al. Stored human urine supplemented with wood ash as fertilizer in tomato
(Solanum lycopersicum) cultivation and its impacts on fruit yield and quality. Journal of
Agricultural and Food Chemistry. 2009.

250
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

amônia resultante da degradação da ureia é tóxica para muitas pragas e


microrganismos patogênicos, combatendo-os; os nutrientes concentrados na
urina e cinza fortalecem a planta e atuam como fertiprotetores, etc. E, o melhor
de tudo: são 100% naturais, seguros e duplamente benéfcos às plantas, pois
além do controle de pragas você estará fazendo uma adubação foliar.

Águas cinzas

Águas cinzas são todas as águas residuais de uma casa que não contêm
fezes (ou seja, excluindo-se apenas o esgoto proveniente de vasos sanitários).
Portanto, águas cinzas são aquelas originadas no banho, pias, lavagem de roupa e
louça, limpeza da casa, etc.
Cada pessoa produz em média cerca de 100 litros de água cinza por dia,
correspondendo à maior parte das águas residuais produzidas. Águas cinzas são
muito diferentes de esgotos, tendo valores de sólidos totais, matéria orgânica e
bactérias muito inferiores. Ainda assim, podem ter teores signifcativos de
matéria orgânica e nutrientes do solo. Trata-se, portanto, de um recurso valioso
que não deve ser desperdiçado.
O destino fnal mais apropriado das águas cinzas é o solo superfcial, na
forma de irrigação. Sua composição é quase totalmente água (> 99,9%); além
disso, a matéria orgânica e nutrientes ali presentes são benéfcos ao ecossistema
do solo e às plantas. Ainda, seu pH geralmente alcalino auxilia na correção da
acidez do solo, problema extremamente comum na maior parte do Brasil.
Embora exista o risco de contaminação da água cinza com patógenos, seu uso
em irrigação não constitui uma via signifcativa de contaminação ambiental ou
transmissão de doenças, sendo portanto considerada uma prática segura do ponto
de vista sanitário.*’ **
Uma preocupação frequente que as pessoas têm em relação ao uso de água
cinza na irrigação diz respeito à contaminação quívmica pelos diversos produtos
usados na higiene pessoal e doméstica. Trata-se de uma preocupação pertinente,
especialmente considerando o caráter desconhecido da composição quívmica de
muitos produtos de uso doméstico. Porém, pesquisas cientívfcas têm comprovado
que mesmo o uso intenso e prolongado da água cinza para irrigação não causa
qualquer problema à saúde e produção das plantas, sendo seguro para o meio
ambiente.† Sendo assim, a preocupação com contaminação quívmica deve se
reverter de forma positiva, ou seja, não desestimulando o reuso de água cinza na

* Busgang, A. et al. Epidemiological study for the assessment of health risks associated with
greywater reuse for irrigation in arid regions. Science of the Total Environment. 2015.
** Water Research Australia fact sheet – health risks of greywater use. 2013.
† Alfiya, Y. et al. Potential impacts of on-site greywater reuse in landscape irrigation. Water
Science and Technology. 2012.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

irrigação, mas ao invés disso estimulando o permacultor a optar por produtos de


higiene mais naturais (por exemplo, sabões feitos em casa), evitando o uso
excessivo de produtos quívmicos — ainda mais considerando que a maioria deles
são simplesmente desnecessários!
Em contraste, a água cinza quando lançada a corpos d’água naturais causa
problemas ambientais e sanitários. Os danos aos ecossistemas aquáticos se dão
principalmente de duas formas: pela alteração da composição quívmica da água, e
poluição por nutrientes, que leva à eutrofzação (proliferação explosiva de algas)
que consome o oxigênio, matando a maioria das formas de vida por anóxia.
Também quando depositadas de forma concentrada no solo profundo, por
exemplo em sumidouros, a água cinza penetra profundamente indo contaminar o
lençol freático com nitratos e nitritos, entre outros poluentes (que no solo
superfcial poderiam ter sido prontamente utilizados pelas plantas, aumentando a
produção vegetal). Além disso, o aumento da carga microbiana pela descarga de
águas cinzas em corpos d’água como rios, lagos e mares pode aumentar o risco
de doenças gastroentéricas, respiratórias, oftálmicas e dermatológicas em
banhistas e outras pessoas que entrem em contato com essa água.
Águas cinzas podem ser usadas com segurança para irrigação superfcial
(métodos para essa aplicação foram discutidos no capívtulo 9, “Permacultura
Rural”). Essa forma de aplicação tem como vantagens sua simplicidade,
efetividade e facilidade de controle e manutenção. Porém, não é a única opção
— outra abordagem possívvel é a irrigação subsuperfcial.

Irrigação subsuperfcial

Aqui, a água cinza será aplicada ao solo superfcial através de tubos


perfurados, enterrados a uma profundidade pequena, talvez 10 ou 15 cm abaixo
do nívvel do solo, ao longo dos canteiros de sua horta, ou dentro da bacia ao redor
de suas árvores. Você pode usar tubos de polietileno de 1,5 ou 2 polegadas, e
fazer furos de 5 a 8 mm de diâmetro com uma furadeira. Em sua horta, escave
trincheiras rasas, de 15 cm de profundidade, no local onde irá construir seus
canteiros. Umedeça e compacte bem o solo dentro da trincheira, para reduzir a
penetração de água. Construa as paredes de seus canteiros, usando blocos, toras,
cob, etc. Então, comece a preencher o canteiro com terra preparada para plantio,
instalando a mangueira perfurada bem no centro do canteiro, envolta por uma
camada de alguns centívmetros de cascalho grosso. Termine de encher o canteiro
com terra adubada, e já estará pronto para plantio.
A entrada do tubo pode ser conectada diretamente à sua tubulação de
esgotamento das águas cinzas provenientes da casa, ou você pode passar essa
água primeiramente por um fltro de serragem e um tanque de distribuição. Já a
extremidade fnal do tubo perfurado deve ser tampada, forçando a saívda da água
somente pelas perfurações, e através do cascalho, passando então à terra.

252
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

É conveniente fazer uma renovação periódica de sua horta, mudando a


localização dos canteiros para evitar a saturação do solo naqueles locais com
umidade e matéria orgânica. Essa precaução é sufciente, evitando a necessidade
de se impermeabilizar o solo sob o sistema de drenagem de água cinza para
prevenir penetração a camadas profundas. Quando da reforma de seus canteiros,
você poderá reaproveitar todos os materiais — blocos, tubos e cascalho — e
perceberá que a terra estará riquívssima em matéria orgânica, cheia de minhocas.

Dissecção de um canteiro com irrigação subsuperficial

Você pode fazer um esquema semelhante, enterrando um tubo perfurado,


envolvido por uma camada de cascalho, ao redor de suas árvores ou mudas, mas
isso não é necessário — basta colocar o tubo perfurado dentro da bacia e cobri-
lo com uma camada generosa de matéria vegetal morta. Esses mesmos sistemas
podem ser utilizados para ferti-irrigação subsuperfcial com urina, conforme
citado anteriormente.

Soluções ecológicas para o saneamento urbano

Há que se reconhecer que as técnicas de saneamento ecológico descritas


acima, embora perfeitamente viáveis para situações rurais, são quase sempre
impraticáveis em um contexto urbano, devido principalmente à limitação de
espaço. Isso é especialmente verdadeiro para pessoas que moram em
apartamentos, ou casas sem quintal.
A impossibilidade de ter um sistema individual de saneamento ecológico é
apenas uma das limitações impostas pela vida urbana, no tocante a um estilo de
vida sustentável. Outras limitações incluem a impraticabilidade de produzir
alimentos em quantidade substancial e realizar atividades de recuperação
ambiental em larga escala (e.g. reforestamentos). Ainda assim, é impossívvel
negligenciar o fato que a maioria das pessoas atualmente vivem em cidades
(54% no mundo, e 85% no Brasil, dados de 2016).

253
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Conforme já citado, os sistemas atuais de saneamento urbano são apenas


parcialmente efetivos, já que de fato protegem a saúde humana, mas o fazem às
custas de graves danos ambientais. Porém, é perfeitamente possívvel empregar as
éticas e princívpios da permacultura no aperfeiçoamento das técnicas de
saneamento urbano, criando metodologias e sistemas mais ecológicos. Além
disso, qualidade do saneamento depende não somente da infraestrutura, mas
também dos hábitos e atitudes diárias das pessoas. Portanto, nossa discussão
aqui abordará esses dois nívveis: as atitudes individuais e sistemas de saneamento
ecológico em escala municipal.

Atitudes individuais para o saneamento ecológico urbano

Economize água

Este é o ponto mais elementar de nossos hábitos diários que deve ser
mudado, visando a sustentabilidade. A água é um recurso valiosívssimo que está
em declívnio devido a um conjunto de fatores que inclui desperdívcio, destruição
ambiental (de forestas, mananciais), mudanças climáticas, etc. Águas
municipais, tratadas e seguras, são muito baratas para o consumidor e isso,
embora seja bom por torná-las acessívveis, infelizmente não estimula as pessoas a
economizarem, o que leva a uma enorme taxa de desperdívcio. Porém, embora
não pese no bolso, essa água vem a enormes custos ambientais, no represamento
e desvio de cursos d’água, custos de tratamento e distribuição, e também no
custo do tratamento dos esgotos, cujo volume gerado é proporcional ao consumo
de água. O consumo médio de água doméstica é de cerca de 150 litros por
pessoa por dia. Porém, é perfeitamente possívvel viver com uma pequena fração
desse volume diário, sem prejudicar o conforto ou higiene — apenas cortando os
desperdívcios!
Reduzir o consumo signifca reduzir o volume de esgotos gerados, e quanto
menor o volume de esgotos, mais fácil, barato e efciente será o seu tratamento,
com benefívcios portanto à economia e ao meio ambiente. Reuse, recicle as suas
águas cinzas: colete água do chuveiro para dar descarga, e diminua o número de
descargas por dia. Reuse sua água cinza também na limpeza da casa e rega de
suas plantas, reduzindo ainda mais o volume de esgoto gerado.

Instalações sanitárias domésticas

Um problema muito grave e extremamente comum em todo o mundo são


instalações sanitárias que misturam esgotos com água da chuva — os chamados
esgotos combinados (um nome “chique” para instalações inadequadas). Água de
chuva e esgotos são duas coisas completamente diferentes, e misturá-las é um

254
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

tremendo absurdo, que causa um grande aumento no volume de esgoto e


também futuações brutais nesse volume (pense num dia de chuva forte), fazendo
com que o tratamento se torne muito mais caro, difívcil e inefciente, levando a
consequências nefastas para o ambiente, e não raro também para a saúde
pública. Esse problema ocorre em todos os nívveis, desde o individual (instalações
domiciliares) até o coletivo (redes de esgotos municipais). No nívvel individual,
cabe a cada um adequar as instalações sanitárias de sua casa para impedir que
água da chuva entre nas tubulações de esgotos.

Evite produtos tóxicos

As prateleiras dos supermercados estão sempre abarrotadas com uma


infnidade de produtos para higiene e cuidado pessoal e limpeza doméstica. Isso
pode dar às pessoas a impressão que esses produtos são úteis, importantes ou
mesmo necessários à vida contemporânea. Porém, na maioria dos casos, isso não
é verdade — a maior parte desses produtos poderia simplesmente desaparecer,
que o mundo não sentiria a menor falta. São soluções para problemas que não
existem, consumidas compulsivamente devido a uma paranoia criada na cabeça
das pessoas pela própria indústria quívmica, através da propaganda. O problema é
que esses produtos normalmente contêm substâncias quívmicas sintéticas com
efeitos negativos no meio ambiente, como triclosan, surfactantes, etc. Portanto,
restrinja seu consumo de produtos de higiene e cuidado pessoal e limpeza
doméstica ao básico. Sempre que possívvel, substitua mesmo esses produtos
básicos por alternativas naturais (sabões caseiros, dentifrívcio natural, etc.)

Reduza o consumo de produtos industrializados

A água de uso doméstico representa apenas uma parte do total de água que
de fato consumimos, e esgotos que geramos. Não podemos nos esquecer que
todos os produtos industrializados têm um consumo de água embutido, que pode
ser muito grande, e que os esgotos industriais também são nossa
responsabilidade, à medida que consumimos esses produtos. Portanto, abandonar
o consumismo é chave para a melhoria da sustentabilidade também no que diz
respeito ao saneamento.

Saneamento ecológico em escala municipal — tratamento


de esgoto e destinação fnal de seus subprodutos

Sistemas de tratamento de esgotos vêm sendo desenvolvidos há cerca de


um século, e melhorias nos sistemas de saneamento para alcançar um alto grau
de sustentabilidade nas cidades devem ser feitas com base nos sistemas
existentes e em operação.

255
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Um sistema tívpico de tratamento de esgotos se divide em duas fases, a


lívquida e a sólida, compreendendo resumidamente as seguintes etapas:
Fase líquida:
• Remoção fívsica de detritos (lixo) por gradagem, e de areia por
sedimentação.
• Decantação primária, em que o esgoto passa por tanques onde é retido por
um perívodo de tempo, permitindo a sedimentação de sólidos, formando
assim o lodo de esgoto primário.
• Aeração em tanques onde o esgoto é retido e agitado por um certo tempo.
Isso causa a proliferação de bactérias aeróbicas, que consomem a matéria
orgânica do esgoto, transformando-a em biomassa bacteriana.
• Decantação secundária, onde matéria sólida constituívda primariamente de
biomassa bacteriana e outros resívduos orgânicos se sedimenta, formando o
lodo de esgoto secundário, com separação do efuente.
• Destinação do efuente — geralmente lançamento a corpos d’água (rios,
lagos, mar), às vezes após tratamento quívmico com cloro.
Fase sólida:
• Digestão: após remoção parcial de umidade (adensamento), o lodo de
esgoto total (ou seja, lodo primário e secundário juntos) passa para os
digestores, onde sofre ação de bactérias anaeróbias, com destruição parcial
de patógenos e produção de gás metano (que deve ser reaproveitado para
produção de energia na própria estação de tratamento).
• Prensagem, para remoção de mais umidade.
• Agora, o lodo de esgoto pode seguir um de diversos caminhos:
━ Destinação a aterro sanitário.
━ Desidratação por calor e incineração para produção de energia
termelétrica.
━ Tratamento térmico, quívmico ou compostagem para sua sanitização,
possibilitando seu uso como fertilizante agrívcola.

A análise do processo geral de tratamento de esgotos permite facilmente


identifcar os pontos principais em que o meio ambiente é agredido, ou seja, a
destinação dos produtos fnais das fases lívquida e sólida.
Tratemos primeiro da fase sólida. No Brasil, a maior parte do lodo de
esgoto é destinado a aterros sanitários, prática comum também em outros paívses,
infelizmente. Essa é a solução tívpica de quem não quer lidar com seus problemas
e prefere, então, simplesmente escondê-los, tirá-los da vista. É como varrer a
sujeira para debaixo do tapete.

256
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Sepultar esse material rico em nutrientes do solo em aterros sanitários é


uma afronta, uma indignidade. É de causar assombro pensar que no futuro,
populações empobrecidas e desesperadas — nossos descendentes — talvez
tenham que escavar esses antigos aterros, num tipo miserável de mineração para
recuperar os nutrientes que nós hoje desperdiçamos, para conseguirem produzir
alguma comida, em uma luta atroz pela sobrevivência.
Em muitos lugares, o lodo de esgoto é totalmente desidratado e então usado
como combustívvel em usinas termelétricas, para produzir energia. Essa já é uma
forma bem mais racional de lidar com esse resívduo, já que há um
aproveitamento da energia ali contida, e também de muitos nutrientes, que
permanecem na forma de cinzas, podendo ser usados na agricultura. Porém, essa
prática também tem seus problemas, pois gera poluição do ar e agravamento do
efeito estufa, além da perda de alguns nutrientes importantes e destruição da
matéria orgânica do lodo de esgoto.
O uso do lodo de esgoto tratado, também chamado biossólidos, como
fertilizante agrívcola é a forma mais racional e ecológica de destinação desse
resívduo. Trata-se da aplicação daquele velho princívpio: “o que veio da terra, deve
retornar à terra”. Felizmente, essa prática já é comum em várias partes do
mundo — mais da metade dos biossólidos produzidos nos Estados Unidos, e
cerca de 70% dos produzidos na França e Reino Unido são devolvidos ao solo,
seja na agricultura ou em projetos de recuperação ambiental.*
Os biossólidos são riquívssimos em matéria orgânica e contêm quantidades
expressivas de todos os nutrientes do solo necessários às plantas.
Sustentabilidade requer que esse material seja visto como um recurso valioso a
ser utilizado, e não um inconveniente a ser descartado ou escondido. Para que
possa ser utilizado com segurança, é preciso que se tomem precauções
adequadas, incluindo a monitoração e controle de contaminantes quívmicos e
biológicos. O controle de contaminantes quívmicos se dá através da ação
combinada de prevenção de contaminação na fonte (por exemplo,
regulamentações legais e monitoramento das fontes poluidoras, especialmente
indústrias) e aplicação de técnicas de descontaminação durante o tratamento do
esgoto. Já a descontaminação microbiológica pode ser obtida através de diversos
métodos, dentre os quais se destaca a compostagem. A co-compostagem
termofívlica de lodo de esgoto com outros resívduos orgânicos municipais, ou seja,
lixo orgânico doméstico e industrial, usando ainda restos de poda triturados
como material estruturante (equivalente ao nosso velho conhecido material de
cobertura) é uma forma reconhecida de produzir composto de excelente

* Tyberatos, G. et al. Sewage biosolids management in EU countries: challenges and


prospective. Fresenius Environmental Bulletin. 2011.

257
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

qualidade, com efetiva eliminação de patógenos *’ ** e também a neutralização de


outros contaminantes como metais pesados.†
Agora, quanto à fase lívquida, lançá-la a corpos d’água é claramente uma
destinação inadequada. Isso porque o efuente de esgoto ainda retém uma carga
substancial de matéria orgânica, nutrientes e bactérias, inclusive patógenos. ‡
Quando, na tentativa de eliminar os patógenos, empregam-se métodos mais
agressivos de desinfecção, isso gera outro problema, que é a poluição quívmica
das águas por desinfetantes.
Para que um sistema de saneamento possa ser considerado ecológico, é
fundamental que em todas as suas fases ele jamais entre em contato com cursos
d’água naturais. Portanto, o destino fnal dos efuentes de esgotos deve ser o
mesmo que o dos biossólidos: o solo. Isso porque o solo tem as melhores
condições para eliminar os contaminantes do efuente e seus possívveis riscos, e o
faz através de diversos mecanismos: adsorção, degradação microbiana,
fotodegradação pela radiação solar, etc. Esse efuente deve ser levado, por
gravidade se possívvel, ou bombeado se necessário, a locais onde possa ser usado
na irrigação de plantações arbóreas, como pomares, agroforestas, plantações de
madeiras e projetos de recuperação ambiental (reforestamentos), etc.
Assim, mantendo toda a cadeia do saneamento segregada dos cursos d’água
naturais e ecossistemas aquáticos, tratando de forma adequada e devolvendo ao
solo os produtos das fases lívquida e sólida do tratamento de esgotos de maneira a
fomentar a produção agrívcola e recuperação ambiental, poder-se-á dizer que
temos um verdadeiro saneamento ecológico em grande escala. Claro que isso
envolve também a expansão e adequação da rede coletora de esgotos, para que
sirva toda a cidade, e a resolução de problemas como os já citados esgotos
combinados, e vazamentos nos sistemas coletores, que são causa comum de
contaminação ambiental.
O impacto da aplicação dos conceitos e técnicas descritas acima será
profundo, especialmente se adotadas em conjunto com as medidas descritas no
capívtulo 8 (“Água em Permacultura”), levando a uma grande transformação do
ambiente urbano. Pense numa cidade com nascentes, riachos, córregos e rios
cristalinos, com peixes, aves, todo tipo de fauna, matas ciliares (na forma de
parques lineares), etc. Pois é disso que estamos falando.

* Teite, T. A. Compostagem termofílica de lodo de esgoto: higienização e produção de


biossólido para uso agrícola. Dissertação (mestrado). Faculdade de Saúde Pública da
Universidade de São Paulo. 2015.
** Water Environment Federation. Tand application and composting of biosolids – Q&A/fact
sheet. 2010.
† Smith, S. R. A critical review of the bioavailability and impacts of heavy metals in municipal
solid waste composts compared to sewage sludge. Environment International. 2009.
‡ Silva, M. C. de A. et al. Avaliação da qualidade microbiológica de efluentes sanitários
tratados por sistemas de lodos ativados. Revista Caderno Pedagógico, Tajeado. 2017.

258
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

Pesando os riscos

Muitas pessoas, organizações e governos são relutantes em aceitar a


aplicação de biossólidos e efuentes de estações de tratamento de esgoto no solo,
considerando os potenciais riscos ao meio ambiente e saúde humana associados
aos inúmeros contaminantes biológicos e quívmicos comumente presentes nos
esgotos, tais como patógenos, resívduos de produtos farmacêuticos, produtos
quívmicos domésticos e poluentes industriais como metais pesados, poluentes
orgânicos persistentes, etc.
Sem dúvida, trata-se de uma preocupação pertinente. Porém, será que o
banimento da reciclagem dos resívduos de nossas próprias casas, e de nossa
civilização em geral, é o melhor caminho?
Em qualquer paívs ou região razoavelmente desenvolvida, há
regulamentações legais e mecanismos de controle sufcientes que mantêm os
nívveis desses contaminantes presentes nos biossólidos e efuentes dentro de
limites aceitáveis, seguros tanto para o meio ambiente como para a saúde
humana, de acordo com instruções técnicas guiadas por pesquisas cientívfcas
especívfcas, sendo que também o modo, a quantidade e frequência de aplicação
desses produtos no solo são alvo de regulamentações técnicas, visando garantir
tanto a efcácia quanto a segurança dessa aplicação. Já em paívses e regiões
atrasadas econômica e socialmente, esse controle inexiste; porém, tampouco há
tratamento de esgoto! Portanto, nesses casos, a erradicação da pobreza seria a
prioridade.
Claro que não se pode confar totalmente nas regulamentações, controle e
pesquisas citadas acima. Mas, por outro lado, histeria em relação aos riscos
ambientais e sanitários do uso de resívduos como recursos é contraproducente em
múltiplos nívveis. Ao deixar de usar efuentes e biossólidos em um projeto de
recuperação ambiental, você perde a chance de recuperar a fertilidade daquele
local e aumentar a biomassa e biodiversidade, ou seja, você está deixando de
recuperar e ao invés disso mantendo degradado justamente o ambiente que você
tinha intenção de proteger. Da mesma forma, ao deixar de usar esses recursos de
forma responsável e segura na agricultura, você força a um aumento no uso de
fertilizantes quívmicos, que além de também terem suas contaminações quívmicas,
ainda são insustentáveis e não renováveis, causando, pois, danos ambientais
muito maiores, além de sua exaustão, comprometendo a segurança alimentar das
gerações futuras.
As preocupações existem e são válidas, mas elas não devem nos levar à
vilanização e banimento dos subprodutos do tratamento de esgotos, e sim a boas
práticas que os tornem seguros. Os riscos devem ser cuidadosamente
monitorados. Pesquisas cientívfcas devem investigar as caracterívsticas e riscos de
compostos novos e antigos, para orientar medidas de controle e segurança
adequadas (leis, fscalização, etc.), e isso deve ser acompanhado de perto pela

259
Parte II – A Alternativa da Permacultura 11. Saneamento Ecológico

sociedade civil, já que o controle de substâncias vai contra interesses de grupos


infuentes, como a indústria quívmica e corporações em geral. Tecnologias
adequadas devem ser aplicadas e desenvolvidas para evitar a poluição na sua
fonte (por exemplo, recuperação de metais pesados nos esgotos industriais
dentro da própria indústria, permitindo sua reciclagem efetiva e reduzindo seus
nívveis no esgoto). Onde não for possívvel um processo não poluidor, a atividade
em questão deve ser banida ou restringida até que se desenvolva um processo
ecologicamente correto. O mesmo tipo de controle deve ser feito em relação a
produtos de uso doméstico: se contiverem poluentes que sejam motivo de
preocupação, eles devem ter seu teor restringido por lei e/ou taxados de forma
que eles próprios fnanciem os custos de remoção dos seus resívduos no
tratamento de esgotos, desencorajando ainda tanto a indústria como os
consumidores, devido à elevação do custo, etc.
Há que se ter a clareza que resívduos de tratamento de esgoto são uma
realidade inevitável de nossa civilização, e nós não podemos mandar os
poluentes para o espaço sideral, assim como não podemos trazer do espaço
nutrientes do solo para produzir alimentos. Nós vivemos em um sistema fechado
— a Terra — e é aqui que temos que resolver nossos problemas. E a melhor
solução para os subprodutos do tratamento de esgotos é, sem dúvida, a
devolução ao solo de forma produtiva, fechando o ciclo dos nutrientes.

Comentário fnal sobre o saneamento ecológico

É um verdadeiro escândalo que deveria ser causa de grande indignação e


perplexidade geral que nossa sociedade atual, com tamanha modernidade e altas
tecnologias, ainda adote o “jogar a merda no rio e deixar que a natureza se vire”
como estratégia de “saneamento”. A transformação desse quadro, com a
substituição generalizada desse modelo arcaico por sistemas ecológicos e
sustentáveis é necessária e urgente, e é a missão dos permacultores liderar essa
luta, dando o exemplo, empregando as técnicas de saneamento ecológico, e
também através da disseminação de informações, trabalhos de conscientização e
mobilização pública, pressão polívtica, etc., e até contribuindo com consultoria
técnica para viabilizar essa transformação em grandes escalas.

260
Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

12
ENERGIA

O vívcio por energia é uma das principais caracterívsticas de nossa


civilização. Conforme discutimos na Parte I, a total dependência de enormes
quantidades de energias para cada um dos aspectos do estilo de vida moderno
traz terrívveis consequências para o meio ambiente e a sustentabilidade. Por isso,
na permacultura devemos buscar com máxima seriedade uma redução tanto no
consumo de energia como na dependência de recursos energéticos,
especialmente os não renováveis, ou seja, a permacultura deve pôr-se na
vanguarda de um movimento para um estilo de vida de baixa energia, e de
preparação para um cenário futuro de escassez de recursos energéticos.
Muitas pessoas, preocupadas com a crise energética que se insinua no
futuro próximo, bem como as consequências ambientais de curto, médio e longo
prazo das tecnologias e fontes de energia dominantes no cenário atual (e.g.
mudança climática pelo uso de combustívveis fósseis), focam suas esperanças na
adoção de fontes alternativas de energia, de menor impacto ambiental, tais como
solar e eólica, e também no desenvolvimento de novas tecnologias, como a
geotérmica, maremotriz, etc., para substituir as matrizes energéticas atuais,
como forma de resolver ou minimizar esses problemas. Mas, embora essas
abordagens sejam sem dúvida úteis, nada conhecido pela humanidade até hoje,
nem mesmo todas as tecnologias alternativas combinadas chegam sequer perto
de substituir a utilidade do petróleo, tanto como fonte de energia como matéria-
prima para a indústria, para a manutenção dos nossos estilos de vida atuais.

261
Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

Dentre seus principais atributos exclusivos, podemos citar a altívssima densidade


energética, facilidade de armazenamento e transporte, versatilidade (produção de
diversos tipos diferentes de combustívveis, com mívnimas perdas de energia, como
gasolina, diesel, GLP, etc.; matéria-prima para milhares de produtos essenciais
para o estilo de vida moderno). Portanto, não será possívvel, mesmo com o
desenvolvimento de energias renováveis e novas tecnologias, manter o estilo de
vida atual — isso é uma ilusão. Nossa civilização, como a conhecemos hoje, só
passou a existir por causa do petróleo, e sua manutenção depende
inexoravelmente de um suprimento abundante e contívnuo de petróleo barato —
o que sabemos que não vai continuar por muito tempo. A não ser, é claro, que
surja um novo e totalmente revolucionário recurso que seja capaz de subsituir o
petróleo, o que teoricamente talvez seja possívvel, mas certamente extremamente
improvável. Contar com isso é o mesmo que se agarrar à esperança de um
milagre, por pura preguiça de fazer o que realmente deve ser feito, o que está ao
nosso alcance.
Claro que a adoção de fontes energéticas renováveis e desenvolvimento de
novas tecnologias são passos na direção certa. Porém, o que é necessário, acima
de tudo, é uma mudança radical da forma como vivemos, ou seja, adotar um
estilo de vida de baixa energia, para alcançar alguma sustentabilidade. Para isso,
todas as estratégias disponívveis devem ser empregadas: “localização” (em
oposição à “globalização”), ou seja, focar na produção e circulação local de bens
e serviços, reduzindo o gasto de energia para transporte e locomoção; um
empenho para a conservação de recursos em geral, através da adoção de uma
cultura do permanente, em oposição à atual cultura do descartável, ou seja,
abandonar o consumismo e eliminar os desperdívcios; “desartifcialização” da
vida, ou seja, o resgate de um estilo de vida mais simples e natural; autoprodução
(autossufciência em vários nívveis), etc.
Além da redução no uso de energia, devemos também tomar todos os
cuidados para evitar as perdas de energia, através da aplicação do princívpio da
efciência energética (nosso Princívpio n.o 6), e todas as técnicas relacionadas,
conforme vimos discutindo.
Outra forma extremamente importante de reduzirmos nosso consumo e
dependência de recursos energéticos é através da aplicação do princívpio da
tecnologia apropriada ( Princívpio n.o 13), que nos ajuda a deixar de usar formas
mais impactantes e insustentáveis de energia (geralmente associadas a altas
tecnologias) e usar formas mais naturais, sustentáveis, e por vezes até primitivas
de energia. Seguem alguns exemplos:
• Geralmente não se deve usar eletricidade para aquecimento, e sim energia
solar — não painéis fotovoltaicos, mas sim aquecedores solares de água,
podendo inclusive ser fabricados por você mesmo, a baixo custo econômico
e ambiental, como já discutimos no capívtulo 10.

262
Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

• Em situações rurais, pode-se evitar a dependência do uso de combustívvel


fóssil (GLP) para cozinhar, dando-se preferência à lenha, produzida no
próprio local de forma sustentável (plantio com essa fnalidade, podas),
como já discutido. Deve-se dar preferência a modelos de fogão de alta
efciência (baixo consumo de lenha e baixa produção de fumaça). Também
pode-se usar o fogão a lenha para aquecer água, através de um sistema de
serpentina.
• Evitar o transporte motorizado, usando energia humana (bicicleta), o que
signifca converter “arroz e feijão” em energia cinética e locomoção, sem
gerar poluentes, e ainda fazendo um bem danado para a saúde.
O uso de tecnologia apropriada requer atenção e bom senso, pois caso
contrário corre-se o risco de causar ainda mais impacto ambiental que no uso
das fontes convencionais de energia. Por exemplo, o uso de lenha para
aquecimento de casas e cocção de alimentos, embora útil em situações rurais,
nas cidades é totalmente desvantajoso, pois o recurso não pode ser produzido
localmente, tendo que ser importado; você não terá como saber se a origem da
lenha é sustentável (provavelmente não será); lenha é volumosa (baixa densidade
energética), trazendo grandes custos econômicos e ambientais pelo transporte; se
todos usassem lenha nas cidades, isso certamente agravaria enormemente o
problema de poluição do ar, devido à alta concentração demográfca, etc.

Eletricidade

Muitas pessoas sonham em viver totalmente desconectadas de serviços


públicos como abastecimento de água e energia (sistemas “of-grid”). Há várias
razões para isso: talvez desejem reduzir seu impacto ambiental, ou creiam que
economizarão dinheiro; em muitos casos, o desejo de se desconectar de serviços
públicos é refexo de uma rejeição à sociedade em geral, representando uma
intenção de afastamento da cultura dominante, etc.
Viver desconectado da rede pública é geralmente viável para água, usando
a água da chuva, como já discutido no capívtulo 8 (“Água em Permacultura”). Já
em relação a energia elétrica, a estória é bem diferente, e a situação deve ser
analisada caso a caso. Isso porque, no caso da água, pode-se dizer que a
construção e operação de sistemas de água de chuva têm impactos negativos
mívnimos (pode-se citar o uso de materiais para sua construção como tendo
impacto negativo inicial), facilmente compensados pelos benefívcios ambientais
da fxação da água no local e evitamento do uso de fontes menos sustentáveis de
água. Já no caso da energia elétrica, inevitavelmente há maiores custos
ambientais envolvidos, já que se requer quantidades expressivas de materiais e
tecnologias, e geralmente não há impactos positivos ao ambiente. O ambiente
não se benefcia de lâmpadas acesas e eletrodomésticos em geral. Esses são

263
Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

apenas para nosso conforto e conveniência. Há, porém, exceções, como


maquinários úteis aos trabalhos que benefciarão a natureza (por exemplo, se
você usa um triturador elétrico para produzir material de cobertura de qualidade
para sua composteira), podendo, em alguns casos, levar a um efeito global
positivo, embora isso seja muito difívcil de avaliar com exatidão.
Porém, o fato mais relevante é que, ao contrário do que muitos pensam, e
diferentemente dos sistemas de água, sistemas individuais de energia elétrica na
verdade tendem a ter tanto custos econômicos como impactos ambientais mais
elevados que sistemas coletivos, em larga escala. Isso é um ponto que causa
confusão; a pessoa pensa: “como meu gerador eólico, ou minhas placas solares,
ou minha pequena turbina de hidroeletricidade pode causar mais dano ao
ambiente que uma grande usina?” Para entender isso, temos que olhar para todos
os elementos do sistema, e projetar em escalas adequadas. Por exemplo, quando
se fala em energia fotovoltaica, pensa-se logo no uso da fonte “infnita” e
sustentável de energia solar sendo convertida em eletricidade, o que sem dúvida
é ótimo. Porém, raramente as pessoas levam em consideração o custo ambiental
da produção dos painéis, que envolvem operações industriais e altívssimas
tecnologias, mineração de elementos raros, etc. que ocorrem em partes remotas
do globo como China e África, envolvendo custos ambientais e sociais
desconhecidos por nós (sendo que a maioria das pessoas nem sequer pensa
nessas consequências). Também de grande importância é a questão das baterias,
que são indispensáveis, afnal, sem elas você não poderia acender lâmpadas à
noite, independentemente de quanta energia solar tenha convertido durante o
dia. Essas baterias não são coisa que você compra uma vez, e usa a vida toda —
elas são caras, e contêm substâncias quívmicas tóxicas, sendo que ainda não existe
tecnologia para sua reciclagem completa, levando a contaminações ambientais.
Além disso, as futuações tanto na produção como no consumo de eletricidade
no nívvel individual são bem maiores que no nívvel coletivo, e portanto para que
você tenha um suprimento garantido, isso requer que você tenha um sistema
relativamente superdimensionado, implicando em impactos proporcionalmente
maiores.
O mesmo se aplica a outras formas de energia renováveis em escala
individual. Por exemplo, você pode instalar um sistema hidrelétrico se tiver uma
queda d’água no seu terreno, mas isso terá impacto nesse curso d’água. Claro
que o impacto por uma usina hidrelétrica é muito maior, mas a responsabilidade
por esse impacto é dividida por milhões de pessoas. Além disso, ao usar um
sistema individual, o dano da usina continuará igual, mas a cachoeira próxima à
sua casa, não.
Outra forma de olhar para essa situação é a seguinte: se todas as pessoas
inventassem de fazer sistemas individuais e independentes de energia, a
quantidade de materiais usados, de resívduos gerados e impactos em geral seriam

264
Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

muito maiores do que nos sistemas atuais, centralizados e coletivos.


Coisa semelhante pode-se dizer a respeito da suposta economia de
dinheiro. Quando você investe em um sistema individual de energia elétrica com
capacidade para manter o consumo normal de sua casa, o montante é sempre
muito substancial. Normalmente, a pessoa faz as contas, e chega à conclusão que
o investimento será pago em cerca de 10 anos, por exemplo. Conclui que valerá
a pena. Porém, essa decisão é baseada na ilusão que bastará comprar e instalar o
sistema, uma única vez, e depois disso será só usar, para sempre, energia “de
graça”. Só que não é bem assim: daív vem o custo com manutenção, reparos,
adequações, substituição de baterias… e o indivívduo refaz as contas, e conclui
que o investimento só será pago em 20 anos. Só que antes disso, seu sistema já
fcou obsoleto, ou chegou ao fm de sua vida útil, tendo que ser substituívdo! Ou
seja, no fnal das contas, geralmente conclui-se que não houve economia alguma.
Outro engano comum é a pessoa achar que vai conseguir construir seu
próprio sistema alternativo de eletricidade, utilizando materiais reaproveitados de
sucatas, como um alternador ou bateria velha de automóvel conseguido em um
ferro velho qualquer, ou um dívnamo, ou motor elétrico, fazendo adaptações, etc.
Invariavelmente, o que se consegue é produzir geringonças totalmente
disfuncionais, francamente inúteis. Você pode até conseguir fazer uma pequena
lâmpada acender precariamente, ou algum eletrodoméstico funcionar por alguns
minutos, e sentir nisso como uma espécie de vitória; mas entre isso e ter um
sistema efetivo, que substitua na prática em qualquer grau a eletricidade da rede
para realização de trabalho útil, há uma diferença muito grande.
Portanto, sistemas individuais de energia desconectados da rede pública em
geral são uma ilusão, tanto no que diz respeito à independência, pois são
produtos tecnológicos, que não se pode desenvolver, construir e manter sem
depender de indústrias, como no que diz respeito à economia de dinheiro ou
proteção ao ambiente.
Claro que há casos em que sistemas individuais são os mais atrativos, por
exemplo em localidades remotas, não servidas pelos sistemas convencionais, ou
quando justamente pela distância e difculdade de acesso a conexão à rede
pública seja particularmente cara, ou consuma recursos em demasia (e.g. linhas
de transmissão excessivamente longas), sendo que uma coisa geralmente
acompanha a outra. Agora, na maioria dos outros casos, geralmente é mais
vantajoso usar a energia da rede, ou seja, geralmente não vale a pena, nem do
ponto de vista econômico, nem do ambiental, deixar de usar uma eletricidade
que já está instalada no seu terreno ou sua casa para passar para um sistema
individual.
Agora, em todos os casos, seja qual for sua fonte de energia elétrica, uma
regra é sempre válida: economizar energia, pois com isso, sim, inevitavelmente
você estará poupando a natureza (e dinheiro, é claro).

265
Parte II – A Alternativa da Permacultura 12. Energia

Soll, Lual, estrelas


A discussão acima é válida especialmente tendo como referência um
consumo de eletricidade nos nívveis comumente observados, de acordo com o
estilo de vida moderno. Porém, essa não é a única opção! Em algumas situações,
especialmente situações rurais, pode ser também uma boa ideia deixar de lado
totalmente o uso de eletricidade, e viver de forma mais natural, simples e rústica,
como o homem viveu por praticamente a totalidade de sua história. Isso pode ser
uma ótima forma de se reintegrar com os ciclos naturais, e também desenvolver
um estilo de vida menos dependente de insumos tecnológicos, resgatando formas
tradicionais de fazer coisas e resolver problemas, à moda antiga. Ou então, pode-
se optar por um consumo extremamente minimalista de eletricidade, e neste
caso, o uso de sistemas individuais, especialmente energia fotovoltaica, pode
passar a ser uma opção válida. Essa é uma forma de unir o melhor dos dois
mundos. Se sua necessidade de eletricidade é muito baixa, como por exemplo
apenas para poder usar um computador, acender uma lâmpada à noite ou
carregar uma lanterna, basta um pequeno sistema de energia solar, e você terá
uma ótima relação custo/benefívcio, tanto do ponto de vista econômico como
ambiental.

266
Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

13
PERMACULTURA URBANA

Conforme já citado, é na zona rural que a permacultura pode alcançar ao


máximo seu potencial, devido ao espaço que você terá, que lhe possibilitará
captar e fxar grandes volumes de água, plantar milhares de árvores e recuperar
ecossistemas em larga escala, produzir alimentos orgânicos em grande
quantidade, além de permitir um grau de reintegração e conexão muito maior
com a terra e os demais elementos, e os ciclos naturais, etc.
No entanto, a maioria das pessoas hoje vivem em cidades. Especialmente
as pessoas interessadas em permacultura, quase sempre vêm de um contexto
urbano. Não é difívcil de entender o porquê disso, já que são os moradores da
cidade quem mais sofrem com o distanciamento do que é natural, e também
tendem a ter uma consciência mais aguda da gravidade da crise ambiental global.
Para que possam alcançar o objetivo de uma vida mais natural e saudável,
em contato e harmonia com a natureza, com uma reintegração com os ciclos
naturais, contribuindo efetivamente na preservação e restauração do meio
ambiente, produção natural de alimentos, etc., o ideal é, sem dúvida, que essas
pessoas mudem-se para a zona rural. Há que se reconhecer que essa mudança
não é simples, como temos visto ao longo dos capívtulos anteriores, exigindo
grande preparo, planejamento, seriedade e coragem. Mas o ideal seria que, com
o avanço e a propagação da permacultura, nós observássemos um verdadeiro
êxodo urbano, ou seja, um grande número de pessoas abandonando as cidades e
indo fxar-se na terra, para trabalhar ativamente na sua recuperação e
preservação.

267
Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

Porém, muitos dos apaixonados pela permacultura que vivem hoje em


cidades, por uma infnidade de motivos possívveis, talvez não possam ou desejem
abandonar a cidade e começar uma nova vida no campo, pelo menos num futuro
próximo. Mas ainda assim, desejam fazer tudo que estiver ao seu alcance para
ter uma vida mais natural e sustentável, dentro de suas possibilidades. E claro
que sempre é possívvel fazer alguma coisa. É aív que entra a permacultura urbana.
A incorporação e aplicação das éticas e princívpios da permacultura nas
nossas escolhas diárias, desde as atitudes mais corriqueiras do dia a dia até as
grandes opções de vida e planos para o futuro, inevitavelmente levam ao
desenvolvimento de um estilo de vida consciente e muito mais sustentável. Esse
estilo de vida está ao alcance de todos que despertam para a gravidade do
momento atual da humanidade, e uma vez adquirido conhecimento sobre as
éticas e princívpios, sendo um elemento central da permacultura. Isso será
discutido em detalhes no próximo capívtulo (“Estilo de Vida da Permacultura”).
Outras questões importantes à permacultura urbana, relativas ao design da casa e
sistemas de água, já foram discutidos em capívtulos anteriores. No presente
capívtulo, focaremos nossa discussão nos sistemas produtivos aplicáveis à
permacultura urbana.

Recursos

Em situações urbanas, os recursos mais limitantes são espaço e terra. Terra


pode ser muito escassa, especialmente em áreas altamente urbanizadas, onde,
para todo lado que você olha, só há construções e pavimentação. As poucas
áreas com terra são parques, praças e jardins, de onde você não pode tirar terra.
Portanto, muitas vezes as pessoas que querem plantar alguma coisa se veem
forçadas a comprar terra (!!). Já nas áreas mais periféricas e suburbanas, é
geralmente possívvel obter terra de áreas ainda não construívdas, Porém, talvez o
recurso mais limitante seja mesmo o espaço. Ele será discutido em detalhes mais
adiante.
Por outro lado, a maioria dos outros recursos são mais fáceis e abundantes
na zona urbana, por vezes mais fáceis até que na zona rural. Serragem pode ser
obtida com facilidade em madeireiras e marcenarias; outros materiais de
cobertura de solo, como folhas caívdas, restos de poda, etc. são encontrados com
facilidade em praças e parques. Muitas vezes, o serviço de manutenção da
prefeitura varre ou rastela essas áreas, juntando as folhas e ensacando-as para
enviar para o aterro sanitário (uma prática lamentável). Geralmente, basta você
pedir, que poderá levar esse material, já ensacado, para sua casa ou outro local
onde esteja desenvolvendo suas atividades (compostagem, plantio). Cinzas
podem ser obtidas em pizzarias de forno a lenha, por exemplo.
A compostagem é prática obrigatória a permacultores urbanos. Você
deverá compostar todos os seus resívduos orgânicos domésticos, tanto como
modo de destinação ecológica desses resívduos como para obtenção de

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

fertilizante, que será necessário para sua produção de alimentos. Caso possa,
queira ou necessite, pode também pedir aos seus vizinhos que separem e doem
seus resívduos orgânicos, de forma que você possa contar com uma quantidade
maior de composto orgânico para suas atividades. Agora, se você tiver bastante
espaço, uma boa adesão da sua vizinhança e facilidade de obtenção dos demais
recursos necessários, também pode pensar em fazer compostagem em mais larga
escala, para venda do composto orgânico como forma de atividade econômica,
além do cunho ambiental. Essa ideia será discutida no capívtulo 17 (“Consultoria
e Prestação de Serviços em Permacultura”).
Em geral, água não deverá ser um problema na zona urbana, pois você tem
uma relação de área de telhado/área de plantio enorme. Deve-se enfatizar que
devemos sempre focar no uso de água de chuva para irrigação (e águas cinzas,
também), e evitar o uso de águas tratadas municipais para esse fm, pois isso
caracteriza uma prática insustentável.

Espaço

A principal e mais óbvia limitação imposta ao permacultor urbano diz


respeito ao espaço, já que muitas pessoas moram em apartamentos, e mesmo as
que moram em casas muitas vezes não têm um quintal onde possam plantar
coisas, ou os têm muito reduzidos. Também os espaços públicos são geralmente
altamente restritos em relação à produção vegetal ou recuperação ambiental, já
que encontram-se predominantemente ocupados por edifcações e pavimentação.
Por isso, a permacultura urbana é marcada por uma busca incessante por
espaços disponívveis e formas de ocupação altamente racionais e produtivas
desses espaços, muitas vezes requerendo altas doses de criatividade em técnicas
de utilização não convencionais.
Vamos explorar esses espaços, começando com o que está mais próximo: o
interior da casa, nossa zona zero.

Zona zero

Conforme já citado no capívtulo 9 (“Permacultura Rural”), o interior da


casa é um espaço com potencial para produção de alimentos. No caso de quem
mora em apartamento, muitas vezes esse será o único espaço disponívvel para
plantar qualquer coisa. Por sorte, o interior da casa tem vários fatores que
favorecem a produção vegetal, de forma que uma produção intensiva é possívvel.
Esses fatores são a proximidade, que possibilita um alto grau de controle;
temperatura e umidade relativamente controladas, já que as futuações são bem
menores que no ambiente externo, minimizando problemas como estresse
hívdrico e congelamento (em locais onde há geadas), ou seja, para a planta, a casa
funciona mais ou menos como se fosse uma estufa. Outra grande vantagem da
zona zero é a abundância de água, já que a água captada pelo telhado será

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

armazenada logo ali, do lado de fora; também é no interior da casa que se


produz quase toda a água cinza, que deve ser recolhida e usada para irrigação.
Algumas pessoas pensam em elaborar sistemas sofsticados de reciclagem de
água cinza e uso automatizado em irrigação, mas nada disso é necessário —
basta colocar uma bacia dentro da pia da cozinha, outra no box do banheiro, e
baldes grandes (60 litros) na lavanderia, coletando a água da máquina de lavar.
Lembrando que a água da máquina de lavar e banho pode ser usada também
para limpeza da casa e dar descarga no vaso sanitário, além de irrigação.
Claro que todas as plantas necessitam de luz solar, então janelas e o lado
interno de portas de vidro são os locais ideais para se colocarem vasos dentro da
casa.
Os conceitos de design sustentável da casa discutidos no capívtulo 10 (“A
Habitação Permacultural”) também devem ser empregados na situação urbana.
Para um design passivo para energia solar e alta efciência energética, também na
cidade você deverá ter janelas amplas, exceto em locais de clima muito quente e
árido, onde janelas menores conferem maior efciência energética e conforto
térmico. Janelas amplas oferecem também a vantagem de mais espaço para
cultivo de plantas, seja do lado de dentro, no peitoril da janela, ou em foreiras
suspensas no lado externo.
Varandas também são locais com alto potencial produtivo, desde que
tenham exposição solar sufciente. Varandas que pegam bastante sol tendem a ter
uma temperatura mais elevada que outros locais, pois acumulam a energia solar
enquanto evitam a ação dissipadora do vento. Isso pode aumentar o potencial
produtivo, mas também faz com que seja necessário mais cuidado com o estresse
hívdrico, ou seja, deve-se manter uma vigilância constante e regas mais frequentes
para evitar que a terra dos vasos e foreiras seque. Por outro lado, varandas que
fcam voltadas para o lado sombreado (face sul no hemisfério sul, e norte no
hemisfério norte), ou estão sempre na sombra de outros edifívcios, terão um
potencial produtivo bem menor, mas ainda assim deve-se tentar plantar diversas
coisas, pois muitas vezes o rendimento pode superar suas expectativas.
Estufas acopladas à casa também têm grande aplicação em situações
urbanas, em regiões de clima frio. Elas são difívceis de categorizar: são dentro ou
fora da casa? Zona zero ou zona um? Você decide. Essas estufas são uma ideia
maravilhosa, pois servem não apenas para produzir fores, ervas, hortaliças e
mudas de árvores, mas também para você ler um livro ou receber visitas para
uma gostosa xívcara de chá ou café, aproveitando o calorzinho do sol numa fria
tarde de inverno.

Zona 1

Passemos agora ao lado externo da casa, ou seja, o quintal, corredores,


garagem, jardim da frente, etc.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

Quintal
Suponhamos que você tenha um quintal com tamanho razoável em sua
casa, o que infelizmente pode ser considerado um luxo, quase uma extravagância
para a maioria das pessoas que moram em cidades hoje em dia. Esse quintal tem
um óbvio potencial para produção de comida, exceto nos casos (infelizmente não
raros) em que você tem seu quintal na sombra o dia inteiro, devido ao fato de sua
casa ser cercada por prédios. Agora, num cenário mais favorável, em que você
tem um bom quintal em sua casa, e ele recebe uma quantidade razoável de sol,
certamente você deverá usar esse quintal para plantar comida e outras coisas,
como fores, ervas, temperos, remédios, etc. O quintal será sua zona um, e tudo o
que discutimos a respeito disso no capívtulo 9 (“Permacultura Rural”) pode e
deve também ser aplicado na zona urbana. Curvas de nívvel, terraços, cobertura
vegetal morta, irrigação com água cinza… tudo. Também, no seu quintal,
arbustos e pequenas árvores frutívferas são muito bem-vindos.
Agora, muitos permacultores costumam discorrer apaixonadamente por
ideias mirabolantes de design de jardins e hortas urbanas, com termos modernos
que soam sofsticados, e podem impressionar amadores e novatos na
permacultura. Porém, o fato é que nada disso é essencial ou sequer importante,
pois na prática quase sempre não se refete em uma maior produtividade. Como
em praticamente tudo na vida, o importante está na simplicidade. Minhas avós, e
acredito que as avós da maioria das pessoas, especialmente as mais antigas e
com raívzes no interior ou no campo, morreriam de rir se vissem as hortas
urbanas da maioria dos permacultores atuais, com suas espirais de ervas,
mandalas e outras ideias recorrentes nos cívrculos da permacultura. Isso porque as
hortas que elas sempre tiveram em seus quintais, nos moldes simples de
antigamente, sempre tiveram uma produção muito maior e muito diversifcada, e
ninguém fcava dando palestras ou cursos, ou se gabando por causa disso! Por
este motivo, costumo dar uma dica que considero muito importante: sempre que
possívvel, procure em sua área pessoas antigas que cultivam hortas e jardins em
seus quintais, e procure aprender algo com elas. Converse sobre a terra, as
plantas, espécies e variedades, sua utilidade, como cultivar, épocas de plantio,
enfm, tudo. Geralmente, elas se sentem valorizadas e contribuem de muito bom
grado, e daív podem nascer relacionamentos bastante enriquecedores. As pessoas
antigas, especialmente as do interior, muitas vezes têm um conhecimento prático
profundo sobre como ter uma zona um linda, rica, altamente produtiva (claro
que elas não chamam de zona um!) — um conhecimento tradicional, passado de
geração a geração, e que infelizmente está se extinguindo rapidamente, à medida
que as novas gerações se mudam para apartamentos e cidades grandes, ou
simplesmente cimentam seus quintais, pois não sabem como cultivar, nem têm
tal interesse.
É bom ressaltar que o cultivo não deve se restringir ao quintal dos fundos.
Sempre que houver um jardim na frente da casa, esse também deve ser um

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

espaço aproveitado para a produção de alimentos. Mas atenção, prepare-se para


ser admirado por toda a vizinhança! Esta é uma ótima forma de despertar a
curiosidade, fazer com que as pessoas, interessadas, puxem assunto com você
sobre o cultivo de alimentos, dando ensejo para que você abra-lhes as portas
para o universo da permacultura, o que fatalmente inspirará outros a seguirem
seu exemplo e potencialmente transformará a vida de muitas pessoas.
Além do plantio de espécies de porte herbáceo, como fores e hortaliças em
geral, é sempre interessante plantar espécies de porte arbustivo ou pequenas
árvores de forma estratégica ao redor da casa. Isso pode trazer inúmeros
benefívcios, incluindo a produção de alimentos, beleza, privacidade, conforto
solar (sombra), térmico (frescor) e acústico, etc. Também tendem a atrair
pássaros, tornando sua vida muito mais alegre.

Jardins verticais
Há muitas maneiras de se fazer um jardim vertical. Ele pode ser feito em
qualquer muro ou parede externa, e às vezes também interna, desde que haja
sufciente exposição solar. Você pode fazê-los com potes de qualquer formato,
pendurando-os em série com correntes ou cordas; pode fazer suas próprias
foreiras de parede usando tábuas de pallets usados, ou mesmo usar garrafas
plásticas cortadas, pendurando-as em cascata, umas sobre as outras, suspensas
por cordas ou arame galvanizado. Pode-se construir um muro verde em uma
única tarde, utilizando blocos de construção, bastando fazer furos no fundo para
permitir que a água escoe, enchê-los de terra e empilhá-los, canto com canto,
deixando vãos entre eles onde as plantas crescerão. Em várias situações, você
também pode substituir cortinas por “cortinas de vasos”, pendurados em série
com correntes ou cordas, etc. As opções de materiais e design são praticamente
ilimitadas!
Paredes de corredores, muros e divisórias entre terrenos, as paredes
externas da sua casa, todos são ótimos locais para se fazer um jardim vertical.
As vantagens desse tipo de jardim são inúmeras: eles praticamente não ocupam
espaço, e transformam os muros e paredes em locais de produção vegetal.
Conferem conforto acústico, pois absorvem ruívdos, e também conforto solar e
térmico: sabe aquele refexo desagradável do sol em paredes e pisos claros?
imagine isso sendo absorvido por plantas, transformado em fotossívntese e
produção! São também muito práticos de regar e econômicos em água: você
rega as plantas de cima, e o excesso de água vai drenando, e regando as de baixo
automaticamente. Instale reservatórios, que podem ser feitos de chapa metálica
(daquelas usadas para fazer calhas) ou travessas de plástico, em baixo do jardim
vertical para coletar o excesso de água, e use essa água novamente para regar as
plantas no dia seguinte. Assim, você não terá nenhum desperdívcio de água, e
nenhuma molhaceira no chão.
Voltando um pouco agora à nossa zona zero, também dentro da casa,

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

paredes de banheiros, cozinha e sala também podem ser cobertas com vasos,
pendurados individualmente ou em “colunas”, sustentados por cordas ou
correntes, além da já citada ideia das “cortinas de vasos”. Claro que, ainda que
os jardins verticais não ocupem muito espaço, em locais realmente apertados
isso pode se tornar inviável.
Horta no telhado
No capívtulo 8, “Água em Permacultura”, já falamos sobre o telhado verde,
e como essa técnica pode ajudar a resolver ou amenizar muitos dos problemas
das cidades. Os telhados verdes também são uma excelente forma de produzir
comida nas cidades! Esta é sem dúvida a forma mais inteligente de usar esse
espaço, geralmente abandonado, para um fm extremamente produtivo. E aqui
você difcilmente terá problemas com falta de sol!
Porém, quando a fnalidade é produção, não dá muito certo aquele esquema
de telhado verde por cima das telhas, ou chapa de compensado, e sim em cima
de lajes. Isso porque para uma produção substancial e perene, você precisará de
uma boa quantidade de terra, e uma boa profundidade, o que só é viável sobre as
lajes, já que são muito mais fortes e quase planas. Você pode fazer canteiros de
horta diretamente por sobre a laje, mas é recomendável fazê-lo por sobre uma
camada de material impermeabilizante (e.g. lona plástica), para garantir que isso
não causará infltração de umidade na casa. Ou então, pode fazer canteiros
suspensos, ou seja, grandes foreiras, que podem ser feitas de tábuas, ou tonéis ou
bombonas plásticas cortadas (transversal ou longitudinalmente) e instaladas
sobre blocos de construção. Desta forma, você pode plantar qualquer tipo de
fores, ervas, verduras, etc., e até mesmo arbustos e pequenas árvores em grandes
vasos. Pode manter árvores frutívferas em tamanho pequeno usando a técnica do
bonsai, possibilitando uma produção no seu telhado, assim como em outros
locais onde normalmente não caberia uma árvore.
Mesmo com a horta no telhado, sua laje continuará sendo um local de
captação de água. Você pode usar a estratégia descrita no capívtulo 8, de construir
seu reservatório de água de chuva no nívvel do solo ou subterrâneo, e usar uma
bomba elétrica acionada por um painel solar para mandar essa água para uma
caixa instalada sobre a laje, possibilitando o uso na casa e também na sua horta
do telhado, para irrigação.

Áreas públicas e outros espaços

Quando você começa a praticar a permacultura urbana, isso


invariavelmente transforma o modo como você olha para as coisas e para os
lugares. Você passa a enxergar espaços subaproveitados com potenciais de
produção em todo lado — espaço para aumento da arborização das ruas,
também com árvores frutívferas (por que não?), praças, parques e canteiros
maltratados, abandonados... terrenos baldios, gramados inúteis e até aquele

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

jardim da frente da casa do seu vizinho, que não produz nada, etc.
Inevitavelmente, você passa a “cobiçar” esses espaços, não no sentido de
propriedade ou posse, mas no sentido de ter a oportunidade de aplicar os
conceitos da permacultura e seus esforços naqueles locais, prestando serviços à
natureza e às pessoas (pela melhoria estética e potencial de inspiração), além, é
claro, de benefciar a si mesmo e a outros, pela produção de alimentos e outros
produtos úteis. Naturalmente, essa vontade será tão mais forte quanto maior for
a restrição de espaço para produção dentro da sua casa ou do seu terreno. Ou
seja, se você tem uma casa com um quintal bem grande, talvez isso nem passe
pela sua cabeça, mas se você morar num apartamento pequeno, com outras
pessoas, talvez esses espaços externos e públicos sejam sua única opção de tentar
plantar alguma coisa.
Vamos discutir alguns locais e abordagens que podem ser tentadas, para
aumentar o espaço disponívvel para você produzir.

Calçadas
Em muitos locais, o projeto da rua contemplava arborização e paisagismo
urbano, e por isso, quando da construção da calçada, foi deixado aquele espaço
aberto, com terra, para possibilitar o plantio. Porém, muitas vezes as árvores
nunca chegam a ser plantadas, ou até o são, mas por falta de cuidados morrem e
não são substituívdas, de forma que aquele espaço, quadrado ou retangular, passa
a abrigar apenas capim e, não raro, lixo. Você pode resolver “fazer justiça com
as próprias mãos”, e assumir para si a tarefa de colocar uma árvore ali.
Idealmente, você deverá pedir autorização à prefeitura e também contar com a
permissão do morador em frente ao local em questão. Em cidades pequenas,
será fácil falar com o encarregado da prefeitura, e quase invariavelmente, você
contará com uma permissão informal imediata. Já em cidades grandes, você
geralmente terá bem mais difculdade de ter acesso à pessoa encarregada do
cuidado das ruas e arborização pública, e enfrentará mais burocracias, que lhe
tomarão tempo. Mesmo que consiga falar com a pessoa “certa”, ela
provavelmente nem sequer sabe da existência da sua rua. Por esses e outros
motivos, talvez faça mais sentido você simplesmente plantar sua árvore e ver o
que acontece.
É importante plantar árvores que sejam adequadas à arborização urbana,
levando em consideração implicações futuras em relação à fação elétrica acima,
e impacto no calçamento e tubulações de água e esgoto abaixo, etc. Muitos
municívpios contam com manuais de arborização urbana, com recomendações
especívfcas de espécies adequadas àquela área em questão; nesses casos, é
conveniente se ater às espécies e recomendações da prefeitura, para evitar
problemas futuros. Nós, permacultores, sempre queremos plantar árvores
frutívferas, pois achamos maravilhosa a ideia de produzir alimentos na cidade,
então você pode tentar fazer isso. Mas, se a prefeitura tiver recomendações
expressas contra árvores frutívferas na arborização urbana, ou se seu vizinho for

274
Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

contra a ideia, é melhor não fazer isso. Caso você insista, o que pode acontecer é
o seguinte: você vai plantar, e cuidar por anos; enquanto a árvore é jovem, não
incomodará a prefeitura ou o vizinho. Porém, assim que começar a produzir, eles
provavelmente decidirão cortar a árvore, trazendo-lhe grande decepção,
frustração e revolta. Daív, você poderá reclamar, criticar e chorar, mas isso
adiantará em nada. Portanto, é melhor evitar esses problemas logo de cara, na
escolha da espécie a ser plantada.
Mas não basta plantar uma muda e cuidar dela — você deverá providenciar
uma proteção bastante sólida, preferencialmente feita de metal, de forma
profssional em uma serralheria, e pintada, seguindo o padrão do seu municívpio
(não vale apenas enfar pedaços de pau ou estacas de bambu!). Embora isso
implique em custo, é essencial para dar visibilidade e respeitabilidade para sua
atitude. Caso contrário, infelizmente muitas pessoas falharão em ver a diferença
entre uma muda de árvore plantada e cuidada, e um mato qualquer que ali
nasceu, sendo comum transeuntes pisarem e quebrarem, ou mesmo o pessoal da
manutenção das ruas vir capinar e acabar cortando ou arrancando sua muda,
acidental ou intencionalmente.
Sempre que o espaço em questão não for estritamente em frente à sua
própria casa, conversar com o vizinho e contar com seu consentimento e
cooperação também é muito importante. Muitas vezes, pessoas simplesmente
não querem uma árvore em frente à sua casa, alegando uma variedade de
motivos, um mais esdrúxulo que outro. Exemplos desses motivos alegados
incluem: “faz muita sujeira” (referindo-se às folhas caívdas), “atrai vagabundos e
maconheiros” (sem comentários...), ou simplesmente “não gosto”. A verdade é,
infelizmente, que muitas pessoas têm preconceito ou simplesmente odeiam
árvores. Então, se vem a prefeitura e planta uma árvore em frente às suas casas,
talvez aceitem, pois se trata de uma autoridade; mas se for você, apenas uma
pessoa, talvez não aceitem. Talvez, com uma conversa amigável, elas concordem
e cooperem, talvez não. Por isso, é sempre melhor começar conversando com as
pessoas. Se elas não se mostrarem receptivas, procure outro local.
Agora, não se trata apenas de árvores: na bacia ao redor da árvore, você
pode plantar fores, ervas, etc., deixando tudo bem lindo. O mesmo em relação a
canteiros e foreiras que às vezes existem em calçadas. Você pode até plantar
verduras, mas isso talvez não seja uma boa ideia. Isso porque muitas pessoas não
respeitam, e suas verduras estarão sujeitas a todo tipo de “ataques”: pessoas
jogarão lixo e pisarão em suas verduras; outras, as colherão antes do tempo, não
lhe dando a oportunidade de colher o que você mesmo plantou. Em alguns
locais, o próprio poder público (prefeitura) pode destruir sua verdura, por
considerar que “ali não é lugar”. Plantar verduras na beira da calçada e rua é
uma receita já comprovada inúmeras vezes de colher desentendimentos e
desilusões. Mas, nada te impede de tentar. Talvez tenha sorte em sua vizinhança
em particular. Agora, uma alternativa muito mais segura é plantar PANCs, pois
não serão reconhecidas como verduras pela imensa maioria das pessoas, a não

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

ser pessoas conhecedoras de PANCs que são, geralmente, pessoas com muito
mais consciência. Portanto, você terá mais chances de sucesso, e de colher o que
plantou, se plantar alimentos não convencionais.

O jardim do seu vizinho


Talvez você tenha vizinhos bem próximos à sua casa que têm uma boa área
de jardim em frente às suas casas, mas que não cuidam, seja porque não sabem,
ou porque não ligam, ou não têm tempo, etc., então o jardim está sempre
horroroso, parecendo um matagal. Você pode tentar conversar com eles, para
ver se deixam você plantar em seus jardins. Você pode fazê-lo basicamente de
duas formas: cobrando ou de graça. O primeiro caso confgura-se como
prestação de serviços em permacultura, e será discutido no capívtulo 17. Agora,
você pode oferecer para cuidar do jardim do seu vizinho de graça, apenas em
troca de parte da produção que você terá. Assim, todos saem ganhando: seu
vizinho não terá mais trabalho de cuidar do jardim, e terá um lindo jardim-horta
em frente à sua casa, ao invés do costumeiro matagal. E ainda ganhará fores,
ervas e verduras! E você, terá acesso a um espaço a mais para produção.
Agora, para que você possa convencer qualquer pessoa a te deixar usar o
espaço de seu jardim, você deve primeiro mostrar serviço em seu próprio
jardim. Transforme a área em frente à sua casa (se você tiver uma, claro) em um
verdadeiro Jardim do Éden, chamando a atenção e conquistando a admiração
dos vizinhos, e não terá difculdade em convencer outras pessoas a te deixar
fazer o mesmo em suas casas. Claro que você terá que vencer também o
empecilho da privacidade — nem todo mundo aceita de primeira ter alguém
entrando e saindo de seu jardim ou quintal; isso provavelmente envolverá ainda
fazer uma cópia da chave do portão para você usar, e esse tipo de questão pode
desestimular muitas pessoas. Por outro lado, esse tipo de contato e convivência
pode aproximar as pessoas, resgatando um senso de comunidade que as
vizinhanças urbanas vêm perdendo ao longo das últimas décadas, podendo
portanto ser muito enriquecedor e positivo para todos envolvidos.

Terrenos baldios
Nem todos os bairros têm terrenos baldios — eles costumam ser raros em
regiões centrais da cidade, e comuns em áreas mais periféricas. Se eles existirem
em sua área, são geralmente ótimas oportunidades para a permacultura urbana.
Seu potencial produtivo é óbvio. Além disso, costumam causar dor de cabeça
para os proprietários, pois eles têm que fcar de olho e cuidar do terreno,
mantendo-o roçado (controlando o crescimento de mato) e evitando que se
transformem em depósitos clandestinos de lixo e entulho, etc.
Procure saber quem é o proprietário do terreno baldio de seu interesse, e
proponha um acordo informal, um comodato: ele te deixa usar o terreno para
plantar, por um perívodo de tempo preestipulado, que pode ser de 6 meses ou um

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

ano, de forma que ele não se sinta privado da autonomia e direito sobre seu
imóvel. E você se compromete a manter o terreno limpo, livre de mato, lixo ou
entulho, e talvez a compartilhar a produção com o proprietário, de forma que
todos saem ganhando! Inclusive a vizinhança, que deixará de ter um terreno
abandonado para ter um lindo jardim-horta que embeleza o local e traz boas
inspirações.
Você pode combinar que o proprietário fca livre para colher o que quiser
da produção, pois na maioria dos casos, ele colherá nada ou quase nada, mas o
acordo que lhe preserva a liberdade para entrar e colher o que é produzido em
seu próprio terreno remove qualquer insegurança que ele possa ter em relação à
cessão parcial de direitos sobre seu imóvel. Talvez, isso o inspire a também
participar, envolver-se, ajudar com os trabalhos, o que signifcará não apenas
ajuda para você, mas também um fortalecimento do movimento da
permacultura!
Praticamente todas as técnicas descritas a respeito da zona um no capívtulo
9 podem ser aplicadas aqui, igualmente.
Agora, uma coisa muito importante de se pensar é a fonte de água para sua
plantação. Terrenos baldios muitas vezes não contam com instalação de água
municipal, e mesmo que contem, esse não é um uso adequado dessa água. A
melhor opção é você pedir aos moradores vizinhos a permissão para colher a
água da chuva de seus telhados, ligando suas calhas a uma tubulação que traga
essa água até o terreno que você utilizará. Para armazenar essa água, você pode
comprar uma caixa d’água plástica ou cisterna de polietileno, de 2.000 a 5.000
litros, e instalá-la no terreno, mas isso representará um custo substancial, e não é
realmente necessário. Uma opção válida e extremamente barata é você construir
uma cisterna temporária subterrânea: escave um buraco quadrado no chão, com
2 m de largura por 2 m de comprimento, e 1,25 m de profundidade. Use essa
terra para fazer suas curvas de nívvel no terreno. Agora, revista esse buraco
internamente com uma lona plástica de polietileno de alta densidade (PEAD) de
boa qualidade, sendo que a melhor opção são as lonas dupla face (branca e preta)
usadas para cobrir silos. Cubra as bordas da lona, que fcaram para fora do
buraco, com uma camada de terra, formando uma borda elevada para sua
cisterna. Para tampar a cisterna, você pode usar uma tela de sombreamento de
PEAD tipo “sombrite”, armada em um quadro de madeira, de forma a impedir o
acesso de mosquitos, e para proteção extra, cubra tudo com uma tampa de
madeira (podem ser tábuas de construção usadas). Pronto, você tem uma
cisterna com capacidade para 5.000 litros, discreta (quase invisívvel!), por uma
fração do custo de uma caixa d’água do mesmo volume. Os únicos materiais
novos que você precisará comprar são um pedaço de lona plástica de 5 × 5 m,
um pedaço de sombrite de 2,5 × 2,5 m, e 8 m de ripas de madeira para a tampa.
Para tirar a água da cisterna, você pode instalar uma bomba do tipo “puxa-
empurra”, que você mesmo pode fazer usando tubos e conexões de PVC, a um
baixo custo.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

Caso o terreno não seja murado, você terá que providenciar um muro ou
cerca para lhe dar privacidade e proteger seu jardim-horta de invasores animais
e humanos. Você pode fazer uma bonita cerquinha de madeira, usando pallets
usados — na maioria dos casos, isso será sufciente. Caso deseje, pode plantar
uma cerca viva, podendo usar hibiscos, por exemplo, que são propagados por
estacas e crescem rapidamente. Hibiscos são excelentes pois, além das vantagens
já citadas, não têm espinhos e ainda dão lindas fores! Você deverá manter
aparada sua cerca viva, o que lhe dará um bom suprimento de matéria vegetal
morta para cobertura de solo em sua horta. Você pode ainda optar por espécies
de hibisco comestívveis, e plantar mais de uma espécie, dando um aspecto
particularmente lindo à sua cerca viva, e fornecendo fores para suas saladas,
conservas e chás.

Parques e praças
Em muitas áreas, as praças e parques públicos existem, mas, devido à falta
de adequada manutenção, caem em decadência, o que se torna visívvel pelo
crescimento desordenado de vegetação, especialmente capins, acúmulo de lixo e
deterioração progressiva de infraestruturas como calçamento, iluminação, cercas,
lixeiras, bancos, brinquedos infantis e aparelhos de lazer em geral. Cobrar das
autoridades competentes do poder público providências para a manutenção
adequada desses espaços é geralmente inútil.
Essas áreas também podem ser vistas como locais com potencial produtivo
que podem estar disponívveis a quem tiver disposição para trabalhar nelas. Num
trabalho onde se assume combinadamente as responsabilidades de limpeza,
paisagismo, talvez alguma manutenção de infraestruturas, associado a trabalhos
de cunho mais estritamente ambiental, como fxação de água de chuva, aumento
de biomassa e biodiversidade, aliado ainda à produção de alimentos, sem dúvida
todos saem ganhando! Isso de fato acontece em muitos lugares, felizmente.
Do ponto de vista do planejamento da utilização da área, aqui você poderá
aplicar os conceitos discutidos no capívtulo 9, referentes às zonas um, dois e três,
talvez até a quatro, dependendo do tamanho da área. Ou seja, você poderá ter
canteiros de fores e verduras (sendo sempre uma boa ideia focar nas PANCs),
agroforestas arbustivas e arbóreas, e também áreas com um reforestamento
mais nativo.
Porém, diferentemente dos casos que vimos discutindo até agora, esse não
é o tipo de trabalho que normalmente possa ser feito por uma pessoa
individualmente. O motivo para isso é que se trata de áreas públicas, destinadas
a uso público; portanto, se você pedir autorização às autoridades competentes
(na verdade, incompetentes), difcilmente será autorizado a utilizar a área para
um fm diferente daquele a que o local se destina. Mesmo que conseguisse tal
autorização e fzesse ali um bonito trabalho, muito provavelmente você não teria
um amplo apoio da população local, pois muitos sentiriam que você está
usurpando um espaço que não é seu.

278
Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

Agora, nada disso signifca que seja impossívvel ou inviável fazer um


trabalho de recuperação, revitalização dessas áreas, associado à produção de
alimentos — signifca apenas que há uma forma correta de se fazer isso, e essa
forma é justamente através da comunidade. Ou seja, você terá que iniciar um
movimento, uma organização comunitária (caso ela ainda não exista), para
conquistar a legitimidade para fazer seu projeto nessas áreas. Isso é muito mais
simples do que parece, pelo menos neste caso em questão. Basta você seguir os
seguintes passos:
✔ Elabore um projeto. Faça uma planta do espaço (praça ou parque) em que
você deseja atuar, indicando os principais pontos de referência (ruas,
infraestruturas, etc.). Use fotos aéreas (e.g. obtidas pelo Google Earth)
para elaborar uma planta bem decente.
✔ Sobre o esboço geral da planta do local, indique as atividades e melhorias
que você propõe: terraços, canteiros, mudas de árvores, etc. Você pode
procurar fazer uma representação artívstica de como você espera que esses
elementos e sistemas se pareçam, quando estabelecidos e maduros.
✔ Além dos elementos e atividades produtivas, indique também outras
atividades de recuperação a serem feitas, como limpeza e remoção de lixo
e entulho, pintura de paredes e cercas, conserto de brinquedos infantis, etc.
✔ Estabeleça um cronograma de atividades.
✔ Anexe fotos atuais do local, enfatizando sua decadência: mato, lixo,
entulho, pintura velha, coisas quebradas, etc.
✔ Anexe também folhas de assinaturas, constando nome, endereço e
assinatura dos moradores da vizinhança que têm intenção de participar das
atividades, ou pelo menos apoiam a iniciativa.
✔ Agora, visite todas as casas da vizinhança, expondo sua ideia para os
moradores, convidando-os a participar e pedindo seu apoio expresso, na
forma de adesão e assinatura da folha de assinaturas.
✔ Isso tudo feito, você está pronto para levar seu projeto à prefeitura. Entre
em contato e marque um encontro com a pessoa responsável pela
manutenção da área em questão. De preferência, não vá sozinho ao
encontro — leve junto consigo pelo menos dois outros participantes do
movimento. Isso aumenta muito as chances de seu projeto ser aceito, e seu
trabalho autorizado.
Quando você começa esse tipo de movimento, especialmente se for a
primeira vez que você inicia ou se envolve com uma associação comunitária, é
comum fcar superexcitado, com aquela impressão que você está iniciando um
movimento revolucionário que poderá transformar o mundo. E, realmente, pode
até vir a ser; porém, é importante que você modere suas expectativas.
Associações comunitárias são feitas de pessoas, e esteja preparado para

279
Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

descobrir que nem todo mundo que apoia e parece adorar a ideia num primeiro
momento terá a mesma disposição e perseverança que você.
Você deve fazer todo esse procedimento de mobilização da comunidade, e
realmente desejar esse trabalho em conjunto. Isso poderá ter um grande efeito
transformador em sua vizinhança, em múltiplos nívveis: na melhoria estética da
rua, na devolução de uma área de lazer a todos, no resgate do senso de
comunidade, aumento e melhoria das relações sociais, inspiração para a
mudança em toda a vizinhança, envolvendo pessoas de todas as idades, etc.
Porém, você deve também estar totalmente preparado para fazer tudo sozinho!
Muitas vezes, as pessoas aderem no inívcio, mas desanimam rapidamente, e a
adesão às atividades pode cair progressivamente, até que só reste você. Mesmo
que isso aconteça, é importante que você não se deixe desanimar. Pelo menos,
você fez sua parte, e, além disso, conseguiu o que de inívcio pretendia, que era o
acesso, de forma legívtima, àquela área para uso em produção e recuperação
ambiental. Feito desta forma, você difcilmente perderá esse direito, porque você
começou do modo correto.
Agora, claro que há casos em que a mobilização conta com uma grande
adesão da comunidade, e se transforma em um movimento que cresce, toma
corpo e seriedade. Quando isso acontece, você, juntamente com os demais
membros, podem optar por formalizar a associação como uma organização não-
governamental legalmente instituívda. Isso permitirá à sua associação lançar-se a
projetos mais ambiciosos, e poderá também dar acesso a recursos fnanceiros
públicos e privados. Porém, é preciso ter em mente que esse maior alcance vem
acompanhado de uma grande carga de burocracia e novas responsabilidades.
Mas você não deve se preocupar com nada disso no começo. O melhor é você
começar pequeno e simples, focando no que pode ser feito com mívnimos
recursos, e ir se adequando conforme a coisa fui.
Outra coisa muito importante que deve ser dita: quando se trata de atuar na
revitalização de uma área, ou qualquer projeto de plantio, seja para produção ou
recuperação ambiental ou ambos, o mais fácil é sempre começar — o mais
difívcil, porém essencial, é continuar trabalhando. Isso, na verdade, se aplica a
qualquer empreendimento permacultural, seja na zona rural ou urbana, em seu
próprio terreno ou de outrem, e também a outras atividades socioambientais em
geral. Conforme já mencionado, a maioria das pessoas que aderem a essas
iniciativas o fazem na base do “fogo de palha”, ou seja, com grande empolgação
no inívcio, mas que não se sustenta ao longo do tempo. É vital que você garanta
que esse não será também o seu caso! Repito aqui o que disse no capívtulo 9
(“Permacultura Rural”): plantar uma muda é a coisa mais fácil; cuidar dela até
que se torne árvore é que é difívcil! Sei por experiência própria, e também por
relatos de inúmeras pessoas, que se você plantar uma árvore, seja onde for, mas
especialmente numa área pública, e simplesmente virar as costas achando que já
fez o seu trabalho, quando você voltar lá, depois de algum tempo, difcilmente
encontrará sua muda, muito menos uma árvore. Ou seja, embora possa te dar

280
Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

uma sensação de grande satisfação na hora, aquele sentimento que você é um


herói e acabou de salvar o mundo, a verdade é que plantar uma árvore e não
cuidar dela é praticamente o mesmo que não plantar nada. E é preciso cuidar de
verdade, o que signifca visitas frequentes, e intervenções frequentes, como
cuidar da cerca de proteção da muda, refazer a bacia, aplicar cobertura de solo,
adubação, regas, proteção contra pragas, etc. por um perívodo de alguns anos. Aív
sim, você poderá dizer que fez alguma coisa.

Recomendação importante: não se apegue ao que não é seu.

Muitas vezes, quando queremos plantar mas não temos espaço, começamos
a observar os espaços públicos e privados, como ruas, praças e parques, quintais
subaproveitados dos vizinhos e terrenos baldios, etc. Embora muitas vezes seja
possívvel utilizar esses espaços, conforme discutido acima, você tem que ter
sempre em mente que as pessoas em geral muitas vezes não compartilham dos
seus pontos de vista, até por falta de conhecimento e consciência ambiental. Por
isso, o que muitas vezes acontece é que, embora você consiga autorização para
uso de espaços que não são de sua propriedade, ao iniciar atividades que não são
comuns na área, muitas vezes isso gera insatisfação em outras pessoas, o que cria
tensões que podem lhe causar problemas. Há vários motivos prováveis para isso,
incluindo:
• Questões culturais arraigadas, em relação a um senso estético estabelecido
em que a aridez e monotonia são valorizadas sobre a vida e a
produtividade.
• Questões relativas ao ego: a atitude medívocre caracterívstica de pessoas
ineptas que nada de produtivo fazem, e sentem terrívvel tensão psicológica
ao verem outras pessoas fazerem coisas boas e belas, e se sobressaívrem —
trocando em miúdos, inveja.
• Medo da perda do controle: se alguém é dono, detém a posse ou de alguma
forma um controle sobre uma área qualquer, essa pessoa muitas vezes terá
medo que você, ao cuidar daquela área e torná-la produtiva, lhe roube a
autoridade ou controle sobre o local, etc.
Por esses e outros motivos, infelizmente é muito comum que, embora você
tenha obtido consentimento para uso de uma área, a qualquer momento no
desenvolvimento do seu projeto esse consentimento seja retirado, seja por
insatisfação do próprio dono, ou devido a pressões por parte de outros. Sendo
assim, você tem que ter sempre em mente que, não importa o quão lindas
estejam suas plantas, seus canteiros, enfm, tudo o que você fez e o amor que
você depositou ali, alguém poderá vir e simplesmente destruir tudo, a qualquer
momento, talvez antes mesmo que você consiga colher qualquer coisa.
Isso não deve te desanimar ou impedir de ao menos tentar usar esses
espaços com fnalidades produtivas, contanto que você não crie grandes

281
Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

expectativas, não faça planos de longo prazo, e não se apegue àqueles pedaços de
chão e aquelas plantas que você plantou, pois, caso o faça, estará plantando
desilusão.

Preocupações quanto a contaminação do solo

A utilização de solos urbanos para produção de alimentos levanta uma


questão importante a respeito da segurança para a saúde humana do consumo
dos alimentos produzidos no tocante à contaminação quívmica por poluentes do
solo decorrentes da atividade humana, particularmente metais pesados.
Trata-se de uma preocupação pertinente, pois é sabido que os nívveis de
metais pesados são comumente aumentados no ar, poeira e solos das cidades. As
fontes principais desses metais são o tráfego de veívculos automotores, devido a
metais pesados presentes em combustívveis fósseis, e atividades industriais,
presentes e passadas, na área.
Porém, embora haja de fato uma elevação nos nívveis desses elementos nas
cidades, na grande maioria dos casos eles se mantêm dentro de limites
permitidos para solos agrívcolas, e não representam riscos signifcativos à saúde. *
Mesmo quando presentes em nívveis elevados, o maior risco à saúde humana
reside no consumo inadvertido de solo, e não de plantas, já que a absorção
desses metais pelas plantas é baixo. Portanto, medidas básicas de higiene
alimentar, ou seja, lavar as frutas e verduras antes de consumir, são normalmente
sufcientes para eliminar riscos de contaminação humana.
Ainda assim, é importante adotar outras práticas de descontaminação do
solo, sempre que se pratica a agricultura urbana. Uma prática essencial é a
correção da acidez do solo, ou seja, a elevação do pH para a faixa de 6,5 a 7 pela
adição de calcário ou cinzas, pois isso causa a imobilização dos metais reduzindo
sua biodisponibilidade para as plantas. Outra prática que pode ser usada com
efcácia para remediação com solos contaminados por metais pesados é a
compostagem — tanto a adição e incorporação de composto maduro ao solo
como a co-compostagem do solo juntamente com resívduos orgânicos foram
demonstradas como efetivas na imobilização de metais na biomassa do solo,
eliminando riscos à saúde.**
Os riscos de contaminação são maiores em locais altamente poluívdos, ou
seja, ao lado de vias de tráfego intenso e as proximidades de áreas industriais
contaminadoras com metais pesados, como indústrias metalúrgicas, fundições,
áreas de mineração ou próximas a usinas termelétricas, etc. Nesses casos, é
recomendável fazer uma análise do solo para determinação de metais pesados

* Hough, R. T. et al. Assessing potential risk of heavy metal exposure from consumption of
home-produced vegetables by urban populations. Environmental Health Perspectives.
2004.
** Barker A. V.; Bryson, G. M. Bioremediation of heavy metals and organic toxicants by
composting. The Scientific World Journal. 2002.

282
Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

antes de começar a plantar, e avaliar opções de remediação em caso de nívveis


aumentados. Porém, talvez seja melhor você pensar em se mudar dessa área, já
que essa contaminação traz riscos à sua saúde de outras formas, como pela
ingestão, contato com a pele e inalação de ar e poeira com altos nívveis de metais
pesados. Esses riscos são substancialmente maiores para crianças.*
Deve-se ressaltar, porém, que não há estudos epidemiológicos indicando
ligação da agricultura urbana e consumo de seus produtos com aumento na
incidência de quaisquer doenças causadas por metais pesados ou outros
poluentes urbanos.

Atuação na esfera pública

Até aqui, vimos discutindo coisas que você pode fazer sozinho ou num
nívvel comunitário, em permacultura urbana — o que você pode fazer com a sua
casa para torná-la mais sustentável, ou como produzir alimentos na sua casa e
suas imediações. Mas a permacultura urbana certamente não pára por aív!
As cidades são uma realidade concreta e inescapável da nossa civilização. E
em geral elas são extremamente insustentáveis. Agora, há uma porção de coisas
que podem ser feitas para tornar as cidades mais sustentáveis e mais produtivas,
através da aplicação dos princívpios da permacultura. Cabe, portanto, ao
permacultor urbano atuar também nesse nívvel coletivo mais amplo, como uma
força transformadora para melhorar a cidade e a vida das pessoas no tocante à
sustentabilidade, qualidade de vida, qualidade ambiental, etc. Isso pode ser feito
de diversas maneiras, seja de forma individual e voluntária, ou através de
prestação de serviços e consultoria, atuando na conscientização e mobilização
social, talvez através de organizações não-governamentais; atuando em áreas
técnicas dentro da esfera pública, em órgãos do governo, ou junto ao poder
legislativo, etc.
Alguns dos principais problemas das cidades no tocante à sustentabilidade
já foram discutidos, e propostas de soluções apresentadas, nos capívtulos
anteriores. Por exemplo, a destruição do ciclo das águas nas cidades e formas de
revertê-la, conforme discutimos no capívtulo 8 (“Água em Permacultura”), ou o
gravívssimo problema da poluição das águas e desperdívcio de nutrientes pelos
esgotos, tratados no capívtulo 11 (“Saneamento Ecológico”). Agora, há ainda
muitas outras coisas que podem e devem ser feitas para que as cidades sejam
mais sustentáveis, e também mais saudáveis, humanas e agradáveis. Por
exemplo, aumentar a efciência da reciclagem de resívduos sólidos urbanos, ou
reduzir a dependência do transporte motorizado individual, melhorando o
transporte público e estimulando o uso da bicicleta como meio de locomoção, ou
* Sun, G. et al. Metal exposure and associated health risk to human beings by street dust in
a heavily industrialized city of Hunan province, central China. International Journal of
Environmental Research and Public Health. 2017.

283
Parte II – A Alternativa da Permacultura 13. Permacultura Urbana

ainda estimulando a instalação de sistemas solares fotovoltaicos ligados à rede


(“on grid”), avançando assim na transição para uma matriz energética renovável,
etc.
Agora, você pode contribuir para que essas e outras propostas se realizem,
de diversas maneiras. Você pode levar propostas e cobranças às autoridades
competentes — prefeitos e vereadores, por exemplo. Claro que tentar fazer isso
de forma individual será extremamente precário, com baixívssimas (na verdade,
nulas) chances de sucesso; porém, se o fzer através de alguma associação
comunitária, ou algum outro tipo de mobilização social, como por exemplo
através de petições públicas, suas chances talvez sejam bem melhores. Isso passa
necessariamente por um trabalho de divulgação de informações e
conscientização pública, que é sem dúvida uma atuação importantívssima,
imprescindívvel do permacultor.
Outra forma de tentar intervir nas polívticas públicas é tornando-se você
mesmo uma autoridade pública, seja como um profssional em algum cargo
público com algum poder de decisão, ou mesmo candidatando-se a um cargo
eletivo, levantando a bandeira da sustentabilidade, buscando apoio da população
para esses projetos, de forma que possa, caso eleito, instituir polívticas públicas
adequadas contemplando essas soluções para os problemas ambientais da cidade.
Agora, claro que deve-se ter sempre em mente que isso tudo é muito fácil
de falar, mas difívcil de conseguir realizar, até porque depende das outras
pessoas, que na sua grande maioria não estão sensibilizadas ou sequer cientes da
severidade da crise ambiental atual, e seus papéis nessa história, tendo portanto
outras prioridades, muitas vezes bastante individualistas, egoívstas. Ainda assim, é
nosso dever tentar, pois se nós, permacultores, não o fzermos, quem o fará? Só
não se pode exagerar nas expectativas, e vincular a sua noção de sucesso,
realização e felicidade a essas conquistas coletivas. A boa notívcia é que, mesmo
se nada disso der certo, ou seja, mesmo que você não consiga infuenciar as
polívticas públicas e resolver os grandes problemas de sustentabilidade de sua
cidade, ou obter avanços signifcativos no curto e médio prazo, ainda há muitas
coisas que você pode fazer pela sua comunidade ou vizinhança sozinho, ou
através de pequenas associações, muitas vezes informais. Além dos exemplos já
citados nas páginas anteriores, você ainda pode fazer trabalhos em escolas, por
exemplo, coordenando atividades com os alunos, como horta orgânica e
compostagem, incluindo captação de água dos telhados para irrigação; também
pode dar palestras sobre meio ambiente e sustentabilidade em escolas, igrejas,
associações de bairro, etc. Ou mesmo formar um grupo ou cívrculo de
permacultura, ou até um centro de permacultura, desempenhando essas e outras
atividades de forma coletiva, além de divulgar e difundir a permacultura. Isso
tudo representa um trabalho de base fundamental, pois você estará preparando o
terreno para possibilitar uma evolução da sociedade, possibilitando um
engajamento e uma adesão às causas da sustentabilidade no futuro.

284
Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

14
ESTILO DE VIDA DA
PERMACULTURA

Conforme já mencionado, a aplicação diligente dos princívpios da


permacultura às nossas escolhas e atitudes diárias invariavelmente faz com que
tenhamos um estilo de vida mais natural, saudável e sustentável. A adoção do
estilo de vida da permacultura é condição indispensável para alcançarmos a
sustentabilidade. Se a humanidade como um todo adotasse esse estilo de vida,
jamais terívamos nos metido na arapuca em que hoje estamos; do mesmo modo,
se todos passarmos a adotar esse estilo de vida, talvez possamos reverter nosso
curso de colisão com o ambiente natural. Talvez essa seja nossa única chance de
sobrevivência, como espécie, a longo prazo, bem como a única chance de
preservação da biodiversidade na Terra.
O estilo de vida da permacultura é caracterizado por:
• Vida simples, frugal, e natural, valorizando o essencial enquanto rejeitando
o consumismo e a artifcialização da vida, etc.
• Uma preocupação constante e medidas para evitar o consumo
desnecessário ou excessivo de recursos (água, energia, alimentos, materiais
em geral), evitando o desperdívcio e a geração de resívduos (lixo, poluição do
ar e da água, etc.), fazendo ainda tudo o que estiver a seu alcance para que
seus resívduos sejam efetivamente reciclados.

285
Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

• Uma busca contívnua pela reintegração com a natureza e seus ciclos.


• Trabalhar com a terra, visando a produção saudável de alimentos e
recuperação ambiental.
• Foco nas relações cooperativas, ao invés de competição.
• Proatividade e engajamento, agindo na sociedade maior ao seu redor para
amplifcar o alcance e os efeitos positivos de suas ações e levar
conhecimento, consciência e inspiração a mais pessoas, fortalecendo o
movimento da permacultura.
A adoção do estilo de vida da permacultura é o ponto mais básico e
essencial a qualquer permacultor, seja ele urbano ou rural, que deve ser sempre
observado, com grande seriedade. É também a porta de entrada à prática da
permacultura, pois consiste de hábitos e práticas que estão ao acesso de todos
que aprendem os conceitos da permacultura — muito antes que tenham
condições de produzir grandes quantidades de alimentos ou praticar recuperação
ambiental em larga escala, etc. — servindo como um ponto de partida para uma
transição a um modo de vida realmente sustentável.

Passo a passo

Há uma série de medidas importantívssimas que estão ao alcance de


praticamente qualquer pessoa, e a transição para um estilo de vida, e uma
sociedade sustentável, deve necessariamente começar por esses pontos — não
adianta nada você querer mudar o mundo, sem primeiro mudar a si mesmo.
Por exemplo, no primeiro dia você já pode começar a separar seu lixo em
orgânico, recicláveis e não recicláveis (não é difívcil!). Reduzir seu consumo: não
compre nada que não seja essencial. Não compre mais um par de sapatos, ou
uma bolsa nova (com certeza você não está precisando!). Não compre um novo
eletrodoméstico porque o antigo quebrou — leve-o para consertar. Observe se há
lâmpadas acesas desnecessariamente, e apague-as. Tome um banho mais curto, e
feche a água enquanto se ensaboa. Dê menos descargas durante o dia
(certamente não é necessário dar a descarga a cada mero xixi!), etc.
No segundo dia, que tal tirar a poeira e encher o pneu da sua bicicleta... e
botá-la pra funcionar? Deixe o carro em casa, e vá ao supermercado pedalando,
ou mesmo a pé — experimente, não vai machucar. Ao comprar alimentos, fuja
dos que tem excesso de embalagem; melhor ainda, dê uma passada numa feira
ou mercadão próximo à sua casa e experimente comprar tudo a granel — sem
embalagens! Arrume umas sacolas de compras de pano (pode ser de plástico,
também, ou outros materiais), e leve-as sempre que for fazer compras. Não
pegue sacolinhas de supermercado descartáveis! Negue-se a pegá-las, e nunca
esqueça de levar sua própria sacola reutilizável. Faça disso uma questão de
honra. Mas, caso tenha que pegar (esqueceu a sacola de compras, ou surgiu uma

286
Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

compra emergencial), sem crise: use-a, dobre-a e guarde-a na bolsa ou mochila.


Da próxima vez, não pegue outra — reutilize a mesma! e assim por diante,
enquanto ela durar. E vai durar muitas vezes, pode ter certeza. Isso também vale
para o saco de pão: após comer os pães, não jogue o saquinho fora — leve-o de
novo à padaria ou mercado, e ponha os pães novos no mesmo saquinho. Faça
isso todos os dias, até que rasgue e não mais seja possívvel. Você se surpreenderá
com quantas vezes vai conseguir reusar o saquinho — normalmente, cerca de
um mês inteiro. E você fcará pensando: “e eu vim jogando fora todos esses
saquinhos perfeitamente bons, esses anos todos!”
Aliás, abandone completamente a cultura do descartável. Ao comprar
qualquer coisa, pense e assuma a responsabilidade por todo o impacto ambiental
envolvido, desde a extração das matérias primas, passando pela manufatura,
transporte e comercialização, até o destino do bem no fnal de sua vida útil, a
energia que foi gasta, poluição que foi gerada, etc. Pense em tudo isso, e só
compre o que for essencial.
No terceiro dia, não consuma alimentos processados. Faz parte do estilo de
vida da permacultura procurar ter uma alimentação saudável, baseada em
produtos naturais, locais e, sempre que possívvel, orgânicos; consumir muitas
frutas, verduras, legumes e grãos integrais, e menos carnes, leite e derivados e
produtos refnados, como açúcar e farinha branca, por exemplo. Permacultores
em geral não têm o hábito de consumir alimentos processados e
ultraprocessados, como biscoitos, salgadinhos, refrigerantes e quaisquer tipos de
“fast food”, por saberem que não são bons para a saúde humana ou do planeta.

“Acredite no poder transformador de um


conjunto de atitudes pequenas e simples”

Faça de todas essas mudanças hábitos. É justamente aív que está a força
transformadora dessas pequenas atitudes. Você se sentirá muito bem com seus
novos hábitos. Você provavelmente notará uma reação de confusão e
perplexidade de algumas pessoas ao seu redor, ao verem suas atitudes, mas não
deixe isso te incomodar ou desencorajar! Mais cedo que você imagina, você verá
algumas delas seguindo o seu exemplo, e isso fará você se sentir melhor ainda. É
você fazendo as pessoas pensarem, ajudando o movimento a crescer.
Aliás, aqui vale um parêntese: não fque se gabando de sua consciência ou
seus hábitos sustentáveis; não tente impor isso às outras pessoas ao seu redor,
pois essa é uma atitude arrogante, tívpica de pessoas imaturas e inseguras que
querem chamar a atenção e parecer superiores aos demais — é assim que as
pessoas lerão seu comportamento, e isso só servirá para fechar portas, ou seja,
fazer com que não te levem a sério, o que consequentemente as impedirá de se
sentirem inspiradas por seu exemplo, sendo portanto totalmente
contraproducente. Apenas faça a sua parte, e deixe que seu exemplo (e não

287
Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

palavras) faça o resto.


Assimiladas essas mudanças, comece uma composteira em casa e passe a
compostar todos os seus próprios restos orgânicos! E que tal plantar algumas
verduras e fores no seu quintal, no próximo fm de semana? Ou mesmo naquele
canteirinho esquecido na entrada do prédio, ou em vasos em sua própria janela...
Plante em caixinhas de leite vazias as sementes das frutas que consumir.
Acompanhe a germinação e crescimento de suas mudas (seus bebês!), e depois
plante-as em algum lugar. Que tal revitalizar uma praça abandonada no seu
bairro? Convide amigos, limpe a praça, apare a grama, plante as mudas, ponha
uma plaquinha com o nome da espécie. Volte para regar, umas 2 vezes por
semana (esse assunto já foi discutido no capívtulo anterior, “Permacultura
Urbana”).
Outra coisa muito legal de se fazer é estudar sobre as espécies da fora da
sua região. Tenha o hábito de prestar atenção nas árvores, inclusive as usadas na
arborização urbana e parques da sua cidade, aprendendo a identifcá-las.
Pesquise, e organize um calendário da época de foração e frutifcação das
árvores nativas da sua região, isso ajudará muito a reconhecê-las. Colete
sementes, produza mudas para usá-las em seus projetos. Participe de grupos de
compartilhamento de sementes e mudas, se engaje em projetos de
reforestamento, se existentes na sua área, participando com trabalho voluntário e
também contribuindo com suas próprias mudas!
Pense em captar e armazenar água de chuva na sua casa, na medida do
possívvel. Comece pequeno, com uma bombona colocada em baixo da calha, e vá
planejando sistemas mais efetivos.
Voltemos agora à questão da separação do lixo na sua casa. Agora, você já
se acostumou a separar os orgânicos (que vão para sua composteira) e os secos,
e já viu que não machuca, não é mesmo? Agora, que tal melhorar isso ainda
mais? Não se limite a separar o lixo seco do orgânico — separe por material:
papel, plástico, vidro, metal e, por fm, o que não pode ser reciclado. Aliás,
analise bem esses itens (que não podem ser reciclados) — será que não dá para
substituir, ou mesmo simplesmente deixar de consumi-los?
Com seus novos hábitos, verá que a quantidade de lixo sendo produzida foi
reduzida dramaticamente. Então, você pode ir mais além, e separar ainda melhor
seu lixo: papéis brancos separados do papelão; vidros também, separados por
cor; aço separado do alumívnio, etc. Eles serão reciclados separadamente, então,
quem melhor para separa que você mesmo, a fonte geradora desses resívduos?
Caso você gaste muito tempo no trânsito indo ao trabalho (ou faculdade,
etc.), pense em se mudar para perto do emprego, ou arrumar um emprego perto
de onde mora, de forma que possa ir a pé ou de bicicleta, evitando assim o gasto
excessivo de energia e tempo com locomoção, evitando também toda a poluição
e outros impactos negativos envolvidos. Não tenha pressa em fazer mudanças,

288
Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

mas vá pensando, avaliando opções. Caso seu emprego ou área de estudo seja em
um ramo ou função que seja contra seus princívpios, por exemplo por ser
intrinsecamente insustentável, considere mudar de ramo. Mas mantenha a
prudência, não faça movimentos bruscos; só não se deixe cair em estagnação.
Olhe em novas direções.
Há diversas formas de ter a permacultura como seu estilo de vida, mas a
melhor forma de começar é assim, com o que é fácil e está imediatamente ao seu
alcance, e avançando passo a passo. A partir daív, há diversos caminhos possívveis:
permacultura rural ou urbana, educação, prestação de serviços e consultoria,
projetos ambientais ou socioambientais através de ONGs, etc. Examine as
opções, entre em contato com grupos já existentes, converse com as pessoas.
Comece a bolar sua própria estratégia para passar da situação em que você está
para a que deseja estar. Esse processo de transição, é normal que leve anos, mas
é muito melhor do que se atirar em algo precipitadamente, só para depois morrer
na praia. Ninguém vira um “herói da sustentabilidade” da noite para o dia! É
preciso jogar fora o imediatismo, domar a ansiedade. Toda transformação
profunda leva tempo. O importante é não confundir paciência com comodismo:
a primeira é uma virtude necessária, enquanto a última é um vívcio mortal. Cada
passo pequeno na direção certa é uma vitória. O importante é a direção, e não a
velocidade.
Precisamos de mais pessoas que fazem da permacultura seu estilo de vida,
que consumam menos e poluam menos, que em suas pequenas atividades do dia
a dia preservem e ajudem a recuperar os ecossistemas, e que inspirem outros,
fortalecendo assim o movimento — ao invés de um monte de gente apenas
falando de sustentabilidade, sem mudar em nada seus hábitos, como muitas
vezes vemos por aív.

Trabalhar a terra

Muitas vezes encontramos pessoas com um discurso super-empolgado


sobre a permacultura, e muitas vezes até aderem a muitas das práticas descritas
acima, porém sem praticamente nenhum trabalho com a terra, e portanto
nenhum esforço para alcançar uma produção relevante, ou trabalhos de
recuperação ambiental (e.g. reforestamento). Embora possa-se argumentar que
isso ainda é bem melhor que nada, deve-se ressaltar que esse tipo de adesão
“pela metade” à permacultura jamais será sufciente para resolver nenhum dos
graves problemas que afigem a humanidade.
É preciso lembrar que, no inívcio, a permacultura signifcava “agricultura
permanente”, e embora o sentido tenha sido expandido para “cultura
permanente”, o trabalho com a terra para produzir alimentos e restaurar
ecossistemas continua sendo um ponto central, indispensável à permacultura.
Sendo assim, o estilo de vida do verdadeiro permacultor é de trabalhar com a

289
Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

terra, mão na terra e pé na terra. E trabalhar pesado, pois só assim se alcançará


qualquer resultado. Caso contrário, não se pode dizer que a pessoa leva a
permacultura a sério.

Um pé lál, outro cá

Agora, é claro que não se pode sugerir que todas as pessoas evacuem as
cidades e mudem-se para o campo para viverem totalmente autossufcientes.
Isso seria não apenas impossívvel ou inviável, como também, sob a maioria dos
aspectos, indesejável. Se todos largassem seus empregos urbanos (claro que isso
jamais aconteceria, mas apenas como suposição), isso signifcaria a perda de
todas as tecnologias e um retorno à idade da pedra! Um retorno do qual poucos
sobreviveriam, diga-se de passagem. Então, não se está sugerindo de forma
alguma o abandono da civilização, e sim uma reinvenção da mesma.
O que quero dizer é que todas as profssões (tá legal, nem todas, mas a
maioria) continuarão sempre sendo importantes ou necessárias. Portanto, não
faz parte da proposta da permacultura abandonar essas atividades. O problema
é quando a norma é a pessoa dedicar-se integralmente a um emprego urbano
qualquer, dependendo de seu salário para comprar todas as coisas de que
precisa, para suprir todas as suas necessidades (e também seus excessos e
superfuidades), enquanto a natureza é massacrada sem que ninguém se
enxergue como responsável. Ou seja, o que se está propondo é um equilívbrio
entre atividades para a provisão direta ou indireta das necessidades humanas de
forma sustentável, preservando e restaurando a terra e os ecossistemas, e as
atividades convencionais necessárias aos aspectos positivos da vida civilizada.
Conforme discutido no Capívtulo 9 (“Permacultura Rural”), a manutenção
de uma profssão convencional é desejável e muitas vezes mesmo necessária na
fase de preparação e também por toda fase de estabelecimento de seu projeto
de permacultura, e sua transição para esse estilo de vida, sendo que, uma vez
completo seu processo de transição e amadurecido seu projeto, você pode optar
por continuar se dedicando a esse emprego, ofívcio ou atividade, em caráter de
tempo parcial, conciliando com o trabalho com a terra e outras atividades
permaculturais, ou deixar de vez a vida antiga e dedicar-se inteiramente à
permacultura.
Deve-se ressaltar que algumas profssões e atividades são particularmente
compatívveis com a proposta da permacultura por poderem contribuir para a
solução de problemas relativos à atual crise ambiental e civilizacional. Isso
depende muito da maneira que você trabalha. Por exemplo, você pode ser um
engenheiro que desenvolve tecnologias de reciclagem, ou desenvolver mais
produtos com obsolescência programada, reforçando o consumismo e
desperdívcio; você pode ser um professor que traz informações relevantes aos
seus alunos e estimula o pensamento crívtico, ou apenas forçá-los a decorar um
monte de informações inúteis ou mesmo falsas para passar nas provas; pode ser

290
Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

um arquiteto dedicado às construções sustentáveis ou envolvido na construção


de arranha-céus luxuosos para corporações bilionárias; pode ser um polívtico ou
gestor público consciente a respeito de questões ambientais e sociais, ou apenas
praticar demagogia, populismo e atos corruptos para se manter o poder e
enriquecer ilicitamente, etc.
Outras profssões talvez não tenham contribuição a dar especifcamente
em relação à crise ambiental (por exemplo, médico, contador, mecânico,
dentista, eletricista, bancário, etc.); porém, são úteis à sociedade e podem ser
úteis também para viabilizar a sua transição para uma vida na permacultura, o
que é ótimo. Infelizmente, há também atividades que são inerentemente nocivas
ao meio ambiente, ou não contribuem de qualquer forma positiva para a
sociedade, ou são francamente degradantes, etc. Atividades assim, que ferem as
éticas da permacultura e a moral em geral, não podem ter qualquer lugar no
movimento da permacultura.

Proatividade e engajamento

Nós, permacultores, não fcamos parados, esperando as coisas


acontecerem para só então nos adaptarmos; tampouco fcamos apenas
observando e criticando, e reclamando dos caminhos da humanidade — nós
assumimos a responsabilidade de fazer acontecer, de sermos nós mesmos a
mudança que queremos ver no mundo. Proatividade faz parte do estilo de vida
da permacultura.
Agora, como sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só, é
importante que sonhemos juntos, para que esse sonho possa se tornar realidade!
Ou seja, temos que nos unir, buscar a cooperação, tanto entre permacultores
como entre esses e a sociedade em geral.
Você até pode trabalhar sozinho, isoladamente, mas é muito melhor que
você estabeleça redes de trabalho com outras pessoas que têm interesses afns.
Estabeleça contatos com outros permacultores para favorecer um fuxo de
ideias, informações, intercâmbio de trabalhos, trocas de sementes, etc.
Busque também um engajamento recívproco com a sociedade maior que o
cerca; procure participar de associações ou organizações não governamentais,
formais ou informais, ou mesmo entidades governamentais, se possívvel, criando
ou participando de projetos socioambientais, como educação ambiental,
projetos de reforestamento e recuperação de mananciais; fazendo atividades
em escolas e outros espaços comunitários, como hortas orgânicas,
compostagem, etc.; organize ou participe de mutirões de revitalização de
parques e praças, mobilize a comunidade. Dê palestras, escreva matérias e
reportagens para jornais, revistas e rádios locais, fale sobre a crise ambiental e a
permacultura, mostrando resultados de seu próprio trabalho, buscando inspirar,
engajar a comunidade e contribuir para o fortalecimento do movimento.

291
Parte II – A Alternativa da Permacultura 14. Estilo de Vida da Permacultura

Recomendação aos jovens: não larguem os estudosl, não desistam da


faculdade!

Muitas pessoas desenvolvem uma consciência aguda da atual crise


ambiental e civilizacional e tomam contato com a permacultura enquanto
cursam uma faculdade, ou estão se preparando para tal. Isso pode se dar por
vários motivos: nessa época, o jovem já atingiu maturidade suficiente e
contato com o mundo para perceber que algo está muito errado, e muitas
vezes o próprio curso, ou seja, as coisas que lhe são ensinadas, causam
grande decepção e o ajudam a ver isso. Nesses casos é muito comum a
pessoa se sentir desestimulada e mesmo arrependida de estar naquele
curso, e ter vontade de abandonar os estudos e aquela carreira, por descobrir
que aquela não é a vida que deseja para si.
Porém, embora possa ser realmente desestimulante aprender tantas
coisas aparentemente inúteis e formas insustentáveis de se viver a vida e
fazer as coisas, nada disso significa que você terá que fazer as coisas
daquela maneira. Na verdade é importante, útil aprender essas coisas
justamente para entender mais profundamente como as pessoas em geral
fazem, como a sociedade funciona e às vezes até mesmo justamente para
aprender o que não fazer. Mas, no futuro, você provavelmente ficará surpreso
com quantas vezes informações aprendidas na faculdade serão úteis em sua
vida, inclusive em suas atividades permaculturais. Muito provavelmente será
também muito importante no começo de sua trajetória como permacultor, por
aumentar suas chances de emprego e renda que possibilitarão levantar
capital para comprar terra e fazer as benfeitorias em seu próprio projeto de
permacultura rural ou urbana (sem dinheiro, tudo fica muito mais difícil, senão
impossível). Conhecimento e capacitação técnica formal são vitais também
para realizar atividades permaculturais em áreas técnicas específicas e
legalmente regulamentadas que exigem nível de bacharelado, como
engenharia, arquitetura, biologia ou ecologia, gestão ambiental, etc.
Por isso, faço esta recomendação, e de fato este apelo aos jovens: não
desistam dos estudos, embora seja uma boa ideia direcioná-los para áreas
particularmente aplicáveis à permacultura. A firmeza em não esmorecer
frente a uma situação transitória desconfortável, porque isso te abrirá portas
e ampliará suas possibilidades de sucesso, na verdade faz parte daquele
pacote essencial de virtudes necessárias à permacultura — seriedade,
tenacidade, persistência, etc. Essa atitude de firmeza é essencial não apenas
para o seu sucesso pessoal na permacultura (de fato qualquer coisa na vida),
mas também para o sucesso do próprio movimento da permacultura, em
cumprir sua nobilíssima missão. Como disse Bill Mollison, “Precisamos de
especialistas de todas as áreas na permacultura.”

292
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

15
COMUNIDADES EM
PERMACULTURA

As pessoas que abraçam a permacultura o fazem porque desejam alcançar


um estilo de vida natural, simples e saudável, em contato e harmonia com a
natureza e outros seres humanos, preservando e recuperando ecossistemas.
Esses objetivos de vida são radicalmente diferentes, senão mesmo opostos aos
da imensa maioria das pessoas, consideradas “normais” pela sociedade em que
estão inseridas, que são voltados para para o crescimento material, competição,
consumo, manutenção de aparências e muitas vezes hedonismo — objetivos
que evidenciam uma visão de mundo marcada pelo individualismo.
Pessoas que compartilham dos objetivos da permacultura existem,
espalhadas pelo mundo. Se considerarmos, apenas para efeitos ilustrativos, já
não há dados disponívveis, que somos 0,1% da população mundial, dada uma
população total de mais de 7 bilhões, isso signifca que somos mais de 7
milhões de pessoas que desejamos uma vida em harmonia com a natureza! O
que certamente não é pouco. Agora, o problema é que estamos diluívdos no meio
de uma enorme massa de pessoas ignorantes e inconscientes em relação à atual
crise ambiental e civilizacional e suas terrívveis consequências.
E é justamente isso que nos enfraquece — estamos isolados uns dos
outros e cercados de pessoas que não nos entendem, que estão o tempo todo
tentando nos convencer que somos “malucos”, idealistas, que nossas

293
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

preocupações são infundadas, nossas expectativas não são realistas, que o que
queremos fazer nunca vai dar certo, etc. Podemos muitas vezes passar a vida
toda sem jamais encontrar ou conhecer alguém que compartilhe de nossas
ideias, valores e visões, o que certamente é extremamente desanimador.
Existe uma enorme pressão por parte das pessoas — familiares, amigos,
colegas, patrões, enfm, da sociedade em geral para que você se adeque à norma
— a forma como você se veste, o carro que você tem, seus papos, suas ideias,
etc., tudo tem que estar dentro de um conjunto de opções pré-defnidas,
consideradas “normais”, dentre as quais você tem “liberdade” para escolher. Se
pisar fora da linha, te olham torto; e se “pisar muito na bola”, você é perseguido,
ou simplesmente excluívdo. Todos que não se adequam às normas implívcitas
impostas pela sociedade sentem o peso dessa pressão. Frente a isso, há
basicamente dois caminhos possívveis: ceder, ou não ceder à pressão, ou, em
outras palavras, o caminho da submissão e o da “rebeldia”.
Muitos acabam cedendo às pressões da sociedade para se conformarem aos
seus ditames de normalidade, e por isso acabam padecendo de uma sívndrome
chamada de normose, caracterizada por depressão, baixa suto-estima, etc.,
levando muitas vezes a tendências destrutivas, como a misantropia e mesmo
tendências suicidas.
Por outro lado, os que não cedem à pressão e se mantém féis às suas
próprias essências muitas vezes acabam se isolando (ou sendo isolados), o que
fatalmente resulta em infelicidade crônica, já que ninguém pode ser feliz
sozinho. Porém, basta você encontrar alguém, ou de preferência um grupo de
pessoas que compartilham de seus pontos de vista e ideais para que você
melhore instantaneamente! Naquele momento, toda a pressão da sociedade
torna-se algo distante, irrelevante, e você se sente imensamente fortalecido,
passando a olhar com esperança para a possibilidade de um futuro empolgante, e
um caminho excitante para chegar até ele.
Se é o isolamento que nos enfraquece, então somente através da união
podemos nos fortalecer. A união possibilita o fuxo de ideias, que leva ao
amadurecimento; a troca de experiências, que ensina e encoraja; o
compartilhamento de trabalho, que o torna mais leve e produtivo, e o convívvio
saudável e respeitoso, que possibilita uma vida feliz. Daív decorre a importância
do conceito de comunidades em permacultura.
Existem muitas formas de você se inserir em algum tipo de grupo que de
alguma forma represente uma comunidade de pessoas; todas essas formas são
válidas, e se complementam.

Comunidades virtuais

A forma mais fácil e acessívvel são comunidades virtuais, através da


internet. Por exemplo, redes sociais têm inúmeros grupos abertos de

294
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

permacultura, com milhares de membros. Outro exemplo são fóruns de


permacultura na internet, sendo que alguns deles são ligados a centros e
institutos de permacultura bastante reconhecidos.
Quando falamos de comunidades virtuais de permacultura, muitos torcem
o nariz, julgando que isso não conta, pois não é “real”. E de fato, se a única
permacultura que você faz é através da internet, isso certamente não fará
diferença nenhuma em sua vida, e muito menos no mundo. Assim mesmo, é
importante não subestimar a utilidade dessa ferramenta. Para muitas pessoas,
essa será a única forma de romper a barreira inicial de isolamento, e entrar em
contato com outras pessoas envolvidas com a permacultura, especialmente nos
casos, infelizmente muitívssimo comuns, em que todas as pessoas do seu convívvio
social, as pessoas ao seu redor, não conhecem ou sequer ouviram falar da
permacultura. Agora, basta entrar em algum grupo ou fórum, e você estará
instantaneamente em contato com uma infnidade de pessoas que praticam a
permacultura em diversas partes do mundo, e poderá também descobrir pessoas
na sua região, ou mesmo na sua própria cidade. A partir daív, você pode passar
para encontros fívsicos, reais. Essa ferramenta ainda abre inúmeras outras portas:
trocas de ideias, fuxo de informações, inclusive publicações e outros materiais
de estudo, divulgação de eventos como cursos, palestras, mutirões, etc., e
também vivências e oportunidades de voluntariado para aprendizado prático.
Há que se fazer uma ressalva: dos milhares de membros que participam
dessas comunidades virtuais, apenas uma minoria efetivamente pratica a
permacultura de fato em qualquer grau, enquanto a maioria são apenas pessoas
interessadas ou simpatizantes pela permacultura. É importante ressaltar que o
mundo não precisa de mais permacultores virtuais, ou qualquer outro tipo de
“guerreiros dos teclados”. Ler, publicar e comentar compulsivamente em redes
sociais é uma forma tívpica dos dias atuais de não fazer nada e sair com a
impressão que faz muito, e é vital que você evite esse vívcio! Mas insisto que os
meios virtuais são ferramentas úteis, desde que usados de forma adequada.

Associações

No capívtulo 13 (“Permacultura Urbana”), discutimos formas de engajar a


comunidade local em atividades permaculturais, ou seja, projetos ambientais e
socioambientais tais como revitalização de parques e praças, talvez inclusive com
produção de alimentos; hortas em escolas ou em áreas subaproveitadas,
atividades de educação ambiental, etc., que podem ser feitas através de
associações informais ou formais (ONGs).
Trabalhos em conjunto, voltados para o bem comum e da natureza,
geralmente conquistam a simpatia de todos. Isso faz com que as pessoas refitam
e passem não só a entender e respeitar, como também admirar seu trabalho, suas
motivações, enfm, seus pontos de vista. Muitas pessoas aderirão às suas causas e

295
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

às suas atividades, inspiradas pelas suas ações, muito mais que pelas suas
palavras
Esses trabalhos de mobilização da sociedade local são muito importantes
pois aproximam as pessoas, formando um verdadeiro senso de comunidade.

Ecovilas

Quando se fala em comunidades de permacultura, normalmente a ideia que


vem à cabeça são grupos de pessoas, permacultores, vivendo em assentamentos,
geralmente na zona rural, onde buscam uma vida autossufciente e realmente
integrada à natureza, pela aplicação maciça dos princívpios e técnicas da
permacultura — ou seja, uma ecovila.
Uma ecovila é uma comunidade intencional de pessoas que buscam uma
vida simples, natural e saudável, em contato e harmonia com a natureza e outros
seres humanos.

A “cola” da ecovila

Chama-se de “cola” um componente ideológico em comum que serve de


elo, de ligação entre os membros de uma comunidade intencional, e que de certa
forma a defne. Pode ser uma linha espiritual ou religiosa (e.g. Amish, Hare
Krishna, Santo Daime, mosteiros de diversas denominações religiosas, etc.),
ideológica (e.g. anarquismo, comunalismo, naturismo, liberação
animal/veganismo, etc.), entre outras visões de mundo. A cola das ecovilas é a
permacultura. Nada impede que uma comunidade intencional tenha mais de
uma cola.

O que tem em uma ecovila?

Uma ecovila é essencialmente uma vila, um assentamento humano


coletivo, e portanto terá pessoas, habitações e sistemas produtivos. Agora,
basicamente tudo relacionado à permacultura pode e deve estar presente em uma
ecovila. Pode-se dizer que quanto mais princívpios da permacultura estiverem em
uso, e com maior intensidade e efciência, mais “eco” será a vila. São exemplos:
bioconstrução, saneamento ecológico, produção orgânica de alimentos, captação
e uso de água de chuva, minimização da geração de lixo e poluição em geral,
minimização do consumo de energia através do uso consciente (efciente) e
possivelmente uso de fontes alternativas, conservação e recuperação ambiental,
como reforestamento, agroforestas e recuperação de nascentes, economia
solidária, etc.
Outras coisas, como atividades comerciais discutidas mais adiante, também
podem estar presentes. Dependendo do tamanho e maturidade de uma ecovila,

296
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

ela pode também contar com uma escola própria para servir primariamente às
crianças da própria comunidade. Nessas escolas, normalmente se adotam
pedagogias alternativas e conteúdos diferenciados, em certo grau, da educação
formal convencional, em concordância com as visões de mundo dos membros da
ecovila.

Do que vive uma ecovila?

A viabilidade econômica é um dos pontos principais para o sucesso de


qualquer projeto de ecovila.
Alguns permacultores têm como foco principal a autossufciência, mas nem
todos. Também há os que prefram manter-se integrados à economia de
mercados, ou seja, produção, venda e consumo de bens e serviços, mas com
compromisso real com a sustentabilidade e preservação da natureza, e ética no
trato com as pessoas. O mesmo pode-se dizer das ecovilas.
Mesmo que você tenha como foco a autossufciência, é necessário ter em
mente algumas coisas:
• Autossufciência total, à la “Famívlia Robinson”, não é um objetivo realista.
Portanto, quando falamos de autossufciência estamos falando em níveis de
autossuficiência, ou seja, suprir tanto quanto possível suas próprias
necessidades, portanto dependendo o mínimo possível de bens e serviços
externos.
• Independentemente do nívvel de autossufciência desejado, levará tempo
para alcançá-lo, e estamos falando de vários anos. Portanto, nesse perívodo
você vai necessitar de outras atividades econômicas, fontes de renda, etc.,
para garantir sua sobrevivência. Essas atividades podem ser gradativamente
reduzidas ou abandonadas, conforme você aumenta seu nívvel de
autossufciência.
• Para efeitos práticos, pode ser considerado autossufciente o permacultor
que vive exclusivamente de sua produção de alimentos e outros produtos,
pelo consumo de sua própria produção e venda ou troca de excedentes, sem
necessidade de quaisquer outras atividades remuneradas ou fontes de renda,
e consumindo minimamente produtos externos.

Sendo assim, não importa se você ou sua ecovila têm um foco em


autossufciência ou não, será sempre necessária uma ou mais fontes de renda,
pelo menos na fase de estabelecimento, que poderão ser mantidas, alteradas ou
descontinuadas com o desenvolver do projeto, conforme discutimos no capívtulo
9 (“Permacultura Rural”, no item “Estabelecendo um projeto de permacultura
rural”). As opções de atividades econômicas que podem ser desenvolvidas são
praticamente ilimitadas, mas podem não ser nada óbvias, e saber escolher (ou
inventar) e desenvolvê-las economicamente é questão crucial para a

297
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

sobrevivência da ecovila e seus membros.


Claro que as atividades ideais ou viáveis variarão de acordo com uma série
de fatores, como: as potencialidades do terreno, mercados disponívveis, talentos,
conhecimentos e interesses dos membros, capital disponívvel, etc. Porém, há
alguns ramos de atividade que são notoriamente comuns em ecovilas. Dentre
eles, podemos citar: hospedagem ecológica e educação ambiental, eventos como
cursos e palestras, terapias holívsticas, artes e ofívcios em geral, além de empregos
externos em ramos convencionais.
É muito importante que a fonte de renda tenha compatibilidade com as
propostas da permacultura, por simples questão de coerência. Por exemplo, não
adianta nada você morar em uma ecovila e sair todo dia para trabalhar numa
corporação ou banco praticando capitalismo predatório, ou com venda de
agrotóxicos, desenvolvimento de transgênicos, marketing de alimentos infantis
ultraprocessados, setor energético promovendo uso de combustívveis fósseis, etc.

Como são organizadas ecovilas?

Embora os detalhes possam variar muito, existem basicamente três formas


de organização de ecovilas, em relação à propriedade da terra e tomadas de
decisões: propriedade compartilhada, propriedade centralizada e propriedade
individual.

Propriedade compartilhada

Neste modelo, que é semelhante a um condomívnio, um grupo de pessoas


adquire em conjunto um imóvel para nele estabelecer uma comunidade.
Normalmente, as regras são pré-defnidas em um estatuto, que prevê a realização
de assembleias para a defnição de pontos mais importantes, e também a forma
de resolução de confitos, adesão e saívda de membros, etc. Via de regra, decisões
que afetem o conjunto da comunidade são tomadas por consenso entre os
membros, nas assembleias.
Este modelo pode ser descrito como um sistema onde “nada é de ninguém
e tudo é de todo mundo”, pelo menos em relação à terra e edifcações, e as
decisões são tomadas pela vontade da maioria. Este modo de organização atrai
muitas pessoas adeptas ou simpatizantes do comunalismo.
Vantagens da propriedade compartilhada:
• Muitos identifcam este modelo com um forte senso de vida em
comunidade.
• A compra compartilhada da terra pode tornar o ingresso em uma ecovila
mais acessívvel (barato) para cada um dos membros, comparativamente à

298
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

propriedade individual.
Desvantagens da propriedade compartilhada:
• A formação deste tipo de ecovila encontra um obstáculo inicial muito
grande: a difculdade de se formar um grupo e chegar a um acordo para
formar a ecovila, já que há muitos pontos a serem defnidos, como: onde
será a ecovila? qual será o tamanho do terreno? qual o valor máximo por
pessoa? quantas pessoas? quais atividades serão desenvolvidas? etc.
• Tendência de ocorrerem muitos confitos. Decisões por consenso signifcam
o cerceamento da liberdade individual, pois muitas vezes a pessoa deseja
fazer algo, mas é vetado na assembleia, enquanto é obrigada a fazer outras
coisas contra sua vontade, pois assim foi decidido pela maioria, etc.,
levando a frustrações que tendem a acumular-se ao longo do tempo,
enfraquecendo a comunidade. Além disso, frequentemente ocorrem vários
tipos de parasitismo, por exemplo pessoas que nunca aparecem para plantar
ou cuidar, ou pegar no trabalho pesado, mas estão sempre lá para colher,
comer e usufruir; ou ainda, pessoas que trazem visitas indesejáveis, que se
instalam nas áreas de uso comum causando desarmonia no grupo, etc.
Esses fatores muitas vezes contribuem para uma certa instabilidade da
ecovila, causando uma rotatividade elevada de seus membros, e muitas
vezes levam a um fm precoce da comunidade.

Propriedade centralizada

O cenário é mais ou menos assim: uma pessoa possui um sívtio ou fazenda,


talvez uma herança, e decide ali fazer uma ecovila. Ela elabora um estatuto, com
direitos e obrigações de cada membro, forma de ingresso e saívda, etc., e começa
a aceitar membros, mediante algum tipo de seleção, talvez envolvendo um
perívodo de experiência, e geralmente também o pagamento de um depósito,
chamado de cota, que pode ser retornável ou transferívvel sob determinadas
condições previstas no estatuto, etc. Do ponto de vista de funcionamento em
geral, este modelo é basicamente semelhante ao anterior (de propriedade
compartilhada), pelo menos em teoria.
Vantagens da propriedade centralizada:
• É mais fácil de começar, já que depende essencialmente de apenas uma
pessoa, o membro fundador, proprietário do terreno, pulando portanto dois
grandes obstáculos iniciais do modelo anterior, que são os recursos
fnanceiros para aquisição de terra e a difculdade de escolha do local.
• Pode ser mais acessívvel a novos membros, dependendo do valor da cota,
que às vezes pode ser até de graça.

299
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

Desvantagens da propriedade centralizada:


• Neste modelo, não existe uma situação de igualdade, pois no fnal das
contas, a despeito de qualquer estatuto, quem manda na terra é o dono da
terra. Essa desigualdade é muitas vezes associada metaforicamente a uma
relação de casa grande e senzala, ou senhor feudal e vassalos, etc.
• Os demais membros fcam em uma situação de grande fragilidade. Muitas
vezes, após construívrem, plantarem, investirem dinheiro, sonhos,
expectativas, anos de suas vidas, etc., algo acontece: o dono do terreno por
algum motivo muda de ideia, ou se casa ou morre, e o cônjuge ou herdeiros
pensam diferentemente, etc. e, de repente, os membros da ecovila
subitamente têm o tapete puxado sob seus pés, e têm muita difculdade de
fazer valer quaisquer direitos, a despeito de qualquer estatuto, dada a
precariedade de sua situação frente à propriedade legívtima do imóvel (ou
seja, escritura registrada), por parte do fundador da ecovila.

Propriedade individual

Neste modelo, a ecovila consiste de uma vizinhança onde cada membro é


dono do seu próprio terreno e ali desenvolve seus projetos, sobre os quais é o
único responsável. Os membros ajudam-se mutuamente na medida do possívvel e
desejável, considerando sua afnidade de propostas, ideias e trabalhos, auxiliados
pela proximidade, e considerando o fortalecimento mútuo e o espívrito de
comunidade, abraçado por todos. A adesão de novos membros se dá através da
compra de terrenos vizinhos, resultando no crescimento da área da ecovila por
agregação, ou desmembramentos de terrenos que já fazem parte da ecovila.
Vantagens da propriedade individual:
• Preservação da liberdade individual, já que cada membro mantém o direito
de desenvolver seus projetos, pôr em prática suas ideias, fazer
experimentos, etc., sem depender da anuência de outros, tampouco sendo
obrigado a se submeter a obrigações com as quais não concorde, levando
inclusive à prevenção de confitos.
• Segurança jurívdica, já que cada membro é proprietário legívtimo de seu
“pedaço”.
• Tende a atrair pessoas mais maduras, preparadas e responsáveis, levando a
uma chance maior de sobrevivência a longo prazo da ecovila.
Desantagens da propriedade individual:
• O custo inicial para cada membro pode ser mais alto, pela aquisição da
terra, construção de benfeitorias como casa, sistemas produtivos, etc.
• Menor senso de vida comunitária, com maior tendência ao individualismo.

300
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

Considerações gerais sobre ecovilas e vida em comunidade

Viver em uma comunidade baseada na permacultura é uma ideia linda que


atrai muitas pessoas. Porém, é preciso ter muito cuidado com expectativas não
realistas, pois elas costumam resultar em desilusões que podem ferir algumas
pessoas a ponto de afastá-las defnitivamente da ideia da vida em ecovila.
A seguir, vamos abordar e procurar desmistifcar algumas das principais
ilusões que comumente se criam em torno da ideia de ecovilas e da vida em
comunidade:
• Achar que vai ser fácil. Muitas vezes, ao ter um primeiro contato com
livros e outros materiais de permacultura, tudo parece fazer tanto sentido
que o neófto acaba tendo a impressão que os princívpios da permacultura
funcionarão como palavras mágicas, que possibilitarão a construção de
casas lindas e confortáveis, e sistemas altamente produtivos e harmônicos,
em pouco tempo e com pouco esforço. Infelizmente, na prática não é bem
assim. A construção de uma ecovila requer, além de um bom preparo
teórico e prático, enormes doses de esforço por todos os membros
envolvidos, ou seja trabalho pesado por um longo tempo, e também
recursos fnanceiros.
• Ilusão do tapete vermelho. Consiste de achar que encontrará uma ecovila
pronta, já formada, com várias famívlias vivendo tranquilamente em
harmonia com a natureza, onde você simplesmente chegará, sem qualquer
dinheiro sequer para comprar uma cota ou terreno, e será aceito como
membro, e que os moradores farão um mutirão para construir uma casa
para você morar, etc. Isso pode ser em sonho, ou um trecho de um flme,
mas não tem nada a ver com a vida real.
• Ilusão de controle. Muitas pessoas sentem-se oprimidas pela sociedade,
que lhes impõe normas com as quais não concordam, e veem na ideia de
uma ecovila uma forma de escapar dessa situação, o que é bom. Muitas
vezes, porém, o indivívduo acaba vendo na ecovila uma forma de ele próprio
se tornar o opressor, impondo aos demais membros suas próprias normas,
valores, pontos de vista, etc. Assim, o idealizador da ecovila elabora um
estatuto com normas rívgidas e arbitrárias, que defnem seus próprios pontos
de vista, e sanções aos que se desviarem dessas normas. Por exemplo,
“aqui, todos têm que ser veganos”, ou “ninguém pode ter carro”, ou “todos
têm que praticar meditação transcendental”, etc. Não que essas ideias sejam
más ou erradas; o problema é que essas imposições e proibições ferem
injustifcadamente a individualidade e liberdade dos demais. Isso mostra
um tipo de atitude egocêntrica, controladora, e difculdade de lidar com
diferenças por parte dos idealizadores da ecovila, o que certamente não é
bom. É preciso ser fel ao objetivo real de qualquer ecovila, que é o estilo

301
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

de vida natural, saudável e sustentável em harmonia com a natureza, e


reconhecer que não existe receita universal; estamos todos aprendendo, e
cada um passará por um processo diferente para alcançar esse objetivo.
• O mito da divisão diferenciada de funções. É comum ver em grupos que
visam formar uma ecovila a ideia que cada um contribuirá apenas com suas
aptidões, e que assim se formará uma comunidade funcional e harmoniosa.
Aív, você para para analisar e vê que um membro quer fazer mapa astral e
tarô; outro, metido a xamã, quer contribuir com terapias holívsticas; outro
ainda, gosta de cozinhar, e pretende cuidar só dessa parte, enquanto o
último será o artista, e contribuirá com sua arte... Então, você pergunta: “e
quem é que vai fazer o trabalho pesado? Construir, plantar...” e todo mundo
se esconde! Em outro cenário tívpico, um membro endinheirado resolve
entrar com a grana, e portanto não terá que fazer mais nada; outro, que
“leu um livro”, quer ser o consultor técnico da ecovila, enquanto outro, que
tem bastante disposição mas não tem dinheiro nem leu o livro, e quer
muito entrar na ecovila, contribuirá com o trabalho braçal. Depois de
algum tempo, o terceiro membro percebe que está recebendo ordens do
segundo, e trabalhando para o primeiro; construindo para os outros em
uma terra que não é e nunca será sua, e resolve ir embora, cuidar da sua
vida. O segundo e o primeiro então também logo desistem, e a terra fca lá,
abandonada, e esse é o fm da ecovila.
Conforme já mencionado, a construção, funcionamento e permanência de
uma ecovila requerem empenho e dedicação de todos os envolvidos.
• Ecovila de fm de semana. É quando as pessoas trabalham a semana toda
em alguma atividade nada sustentável em um grande centro urbano, e nos
fnais de semana dirigem 100 ou 200 km até sua “ecovila”, onde fngem
viver em harmonia com a natureza por um ou dois dias, e “recarregam suas
baterias” para na segunda-feira estarem de volta aos seus empregos de
sempre, e o estilo de vida de sempre, sem terem a intenção real de
mudarem seu estilo de vida permanentemente para algo mais sustentável.
Claro que estão enganando a si próprias, e isso não é ecovila, e sim
meramente uma casa de campo.
• O erro do isolamento. Algumas pessoas idealizam uma ecovila como uma
“bolha”, isolada da sociedade maior que tanto reprovam — o que, muitas
vezes, tem a ver com a ilusão de controle já mencionada. Muitas vezes,
criam até um isolamento geográfco considerável, formando a ecovila em
local distante e de difívcil acesso, para reforçar esse distanciamento. Essa é
uma abordagem equivocada que acaba de cara com qualquer chance de
sucesso de uma ecovila, por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar,
pelas difculdades óbvias de estabelecimento da ecovila, pois tudo que já é
difívcil será ainda mais difívcil, pelas idas e vindas, transporte de materiais,
manutenção de uma fonte de renda especialmente na fase de formação, etc.

302
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

Além disso, o que na verdade ocorre é que, quando se busca essa utopia, de
uma comunidade “pura”, isso na verdade cria o cenário ideal para a criação
de uma distopia. Os inevitáveis confitos internos, agravados pelo
isolamento e as enormes difculdades práticas de sobrevivência podem criar
um verdadeiro inferno, que acaba com a dissolução da ecovila, e muitos
corações partidos.
Para que uma ecovila seja saudável e duradoura, deve estar sempre
integrada à sociedade maior que a cerca, para que seus membros possam
usufruir de seus benefívcios, manter-se em contato com famívlia e amigos, e
até para que a ecovila possa cumprir sua missão de ter um papel
transformador nessa sociedade.

A vida em uma comunidade, uma ecovila, é como a permacultura em


geral: um ideal possívvel e cheio de signifcado, mas também cheio de desafos. A
discussão acima é extremamente simplifcada — há na verdade uma infnidade
de modelos possívveis, formas de concretizar esse sonho, tanto em situações
rurais como urbanas. Não existe um modelo ideal; na verdade, o ideal é que
todos os modelos possívveis sejam testados, por quem neles acreditar, para que o
tempo e a experiência prática diga o que funciona melhor ou pior, nas diferentes
situações e para os diferentes tipos de pessoas. O melhor é que todos os modelos
possívveis existam, e coexistam, para que se complementem e atendam ao maior
número de pessoas possívvel, com suas necessidades e potenciais diferenciados.
Só assim as ecovilas poderão forescer e crescer, nem tanto em tamanho mas em
número, surgindo como uma opção viável de estilo de vida para cada vez mais
pessoas, permitindo, quem sabe, em determinado momento, um esvaziamento
dos grandes centros urbanos e uma transição em escala global para um modo de
organização social e estilo de vida sustentável, à luz da permacultura.
(discutiremos mais sobre isso no capívtulo 18, “Proposta de uma Transição
Global”).

Trata-se de uma mudança radical de estilo de vida, e uma realidade que


tem que ser construívda. Deve-se ter em mente que os resultados fnais (quando se
pensa em uma comunidade formada, com casas construívdas e famívlias morando,
produzindo alimentos e forestas, uma escola para as crianças dentro da ecovila,
etc.) só serão alcançados no longo prazo, e para que se tenha sucesso são
necessárias não apenas doses maciças de amor, mas também muito preparo,
planejamento, seriedade, dedicação, perseverança. Como já citado para projetos
de permacultura em geral, deve-se traçar uma sólida estratégia de transição, que
consistirá dos passos a serem tomados no curto e médio prazo, para possibilitar
alcançar os objetivos fnais. Tendo dito isso tudo, é preciso ressaltar que, embora
não seja fácil, essa mudança é cheia de sentido, e é uma mudança necessária
para alcançarmos o ideal de uma sociedade sustentável.

303
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

Economia solidária

Economia solidária é um conjunto de atividades econômicas — de


produção, distribuição e consumo de bens e serviços — organizadas de forma
livre e voluntária, independente do sistema fnanceiro monetário. Compreende
uma variedade de práticas econômicas e sociais organizadas sob a forma de
cooperativas, associações, clubes de troca, empresas autogestionárias, redes de
cooperação, entre outras, que realizam atividades de produção de bens,
prestação de serviços, fnanças solidárias, trocas, comércio justo, etc. Trata-se
de uma forma de economia centrada na valorização do ser humano e não do
capital, caracterizada pela igualdade; uma organização alternativa de trabalho,
produção e distribuição de riqueza que integra quem produz, quem vende,
quem troca e quem compra. Seus princívpios são autogestão, democracia,
solidariedade, cooperação, respeito à natureza e comércio justo. Lembrando,
sob vários aspectos, a organização econômica de sociedades primitivas, tribais e
pré-capitalistas, por ser baseada na troca e compartilhamento direto de trabalho,
produção e serviços, a economia solidária é geralmente vista como uma
alternativa mais humana ao sistema econômico fnanceiro moderno, com suas
caracterívsticas de alienação em seus diversos nívveis, individualismo e em geral
descaso pelas pessoas e natureza.
A economia solidária é baseada num espívrito de coletividade, de
comunidade. Por isso, ela é um componente essencial a todas as comunidades
permaculturais.
Dentro do contexto de economia solidária, merece destaque o trabalho
voluntário — aquele em que o indivívduo dedica parte de seu tempo e esforços
em prol de uma causa, geralmente de cunho social ou ambiental, sem uma
contrapartida fnanceira, ou seja, sem remuneração. A motivação para engajar-
se em trabalho voluntário normalmente vem do desejo de contribuir com causas
nas quais se acredita, buscando contribuir para um mundo mais justo e
solidário, ou seja, uma motivação moral.
Trabalho voluntário frequentemente se dá em ações de cunho assistencial
e humanitário (educação, assistência social e à saúde, apoio a órfãos, idosos,
pessoas com defciências, vívtimas de desastres, proteção animal, etc.),
ambientais (recuperação ambiental, reforestamento, agricultura orgânica,
coleta de lixo, reciclagem, educação ambiental, etc.), e outras, como eventos
esportivos, culturais, recreativos, etc. Outra importante fonte de motivação para
o trabalho voluntário são os benefívcios pessoais, seja pela aquisição de
conhecimentos e experiência, formação de contatos, interação social,
fortalecimento do espívrito de equipe, expansão de visão e compreensão do
mundo, etc.
A maioria dos projetos de permacultura e ecovilas aceitam voluntários
regularmente para ajudar em trabalhos os mais variados, como construções,

304
Parte II – A Alternativa da Permacultura 15. Comunidades em Permacultura

plantio, colheitas, manutenção em geral etc. Os hospedeiros benefciam-se


imensamente, não apenas pelas contribuições com força de trabalho, mas
também, de forma semelhante ao que ocorre com os próprios voluntários, pelo
contato com novas ideias, informações, diferentes visões de mundo, etc.
Voluntários são muito necessários em todas as etapas do trabalho
permacultural. Realizar trabalho voluntário em projetos de permacultura ainda
é uma das melhores formas de se adquirir experiência prática com as técnicas
da permacultura antes de iniciar seu próprio projeto, além de contribuir para o
avanço dos projetos existentes e, assim, da própria permacultura. Ao praticar o
voluntariado em ecovilas e projetos de permacultura, estamos formando redes
de trabalho e contatos, compartilhando e transmitindo conhecimentos,
divulgando a permacultura e inspirando futuros permacultores, dando a
oportunidade de uma experiência realmente transformadora. É claro que é uma
situação em que todos os lados são benefciados, e o movimento da
permacultura é fortalecido.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

16
APRENDIZADO DA
PERMACULTURA

Quando a permacultura foi criada nos anos 70 por Bill Mollison e David
Holmbren, logicamente não havia ainda nenhum livro ou material didático de
permacultura propriamente dita. Mas claro que tampouco foi a permacultura
criada “do nada”. O que havia era um grande acervo de conhecimentos e
informações registradas na forma de literatura técnica e cientívfca,
conhecimentos tradicionais e étnicos, experiência pessoal e visões de mundo dos
criadores do movimento, que catalisaram a aglutinação desses elementos na
criação do que passou a ser chamado de permacultura. Talvez a criação da
permacultura não represente a invenção de um estilo de vida sustentável, mas um
caminho viável para pessoas que nasceram e foram criadas em um modelo
insustentável alcançarem um modo de vida sustentável — um caminho, vale
ressaltar, que ainda está em construção.
Naqueles anos iniciais do movimento da permacultura, a natureza escassa,
difusa e incompleta da literatura e recursos didáticos disponívveis sobre os
assuntos pertinentes à crise ambiental e o viver sustentável representavam um
grande obstáculo ao seu ensino e disseminação. Foi nesse contexto que nasceram
os Cursos de Design em Permacultura, ou “PDC” (do inglês “Permaculture
Design Certificate”) como principal modelo de ensino da permacultura à época, e
que existem até os dias de hoje.

306
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

O PDC é um curso em formato desenvolvido e ministrado inicialmente por


Bill Mollison e, posteriormente, seus discívpulos, e eventualmente centenas ou
milhares de professores, conforme a permacultura se disseminou pelo mundo.
Trata-se de um curso intensivo e de curta duração, normalmente 72 a 90 horas,
cobrindo os principais tópicos pertinentes à permacultura.
Nas primeiras décadas de vida da permacultura (leia-se, na era pré-
internet), esse foi um modelo fantástico e, realmente, necessário para a
disseminação da permacultura. Numa época em que as informações eram
escassas e difívceis de obter, um PDC era realmente uma experiência
profundamente transformadora para todos seus participantes, pois era
geralmente a primeira vez que eles tinham contato com aquelas informações —
tanto as estarrecedoras sobre o caminho sendo trilhado pela humanidade, quanto
as alentadoras representadas pelas propostas de soluções da permacultura. Além
disso, o contato próximo com um grupo de pessoas que compartilham dos
mesmos ideais, preocupações em relação ao futuro do mundo (humanidade e
natureza) e a intenção de mudança, era certamente uma experiência
extremamente inspiradora e motivadora aos participantes desses cursos.
Porém, hoje, quatro décadas depois do nascimento da permacultura, a
realidade é bem diferente, com uma abundância de informações e recursos
didáticos cobrindo todos os aspectos e elementos essenciais à permacultura, dos
mais básicos aos mais avançados, incluindo livros e apostilas, artigos técnicos e
cientívfcos, vívdeos, etc. Além disso, com a internet, a maioria desses materiais
estão livremente disponívveis, praticamente a qualquer pessoa interessada, em
diversas lívnguas, havendo apenas dois fatores limitantes: que a pessoa tenha
acesso à internet livre, e que saiba como procurar.
Claro que PDCs continuam existindo, e motivando e inspirando milhares
de pessoas todos os anos e, portanto, continuam sendo úteis e importantes.
Porém, já não se pode dizer que sejam necessários ao ensino e aprendizado da
permacultura. Deve-se ressaltar que a carga de informação e conhecimentos
teóricos que se pode transmitir em um curso de 72 horas é muito limitada e,
portanto, esses cursos são necessariamente superfciais. Isso contrasta com a
enorme quantidade e profundidade de informações que se pode obter estudando
materiais disponívveis na internet.
Não podemos esquecer também do ensino e aprendizagem da parte prática
da permacultura; afnal, de nada vale teoria sem prática, e aqui também a
situação é semelhante: enquanto num PDC tívpico a parte prática é limitadívssima
em função até da curta duração do curso, qualquer interessado tem a opção de
obter um aprendizado prático muito mais abrangente e profundo através da
realização de estágios de trabalho voluntário em projetos de permacultura,
conforme discutiremos mais adiante.

307
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

Finalmente, há que se considerar a questão fnanceira: PDCs são cursos


pagos, e embora geralmente sejam oferecidas bolsas ou formas alternativas de
pagamento, o custo desses cursos continua sendo um fator restritivo a muitos
interessados, o que contrasta com o caráter gratuito das informações e materiais
didáticos disponívveis através da internet, e também do aprendizado prático
através de trabalho voluntário.

Cursos de Permacultura

Apesar de haver outras alternativas ao ensino e aprendizagem da


permacultura, cursos de permacultura deverão sempre existir, pelos seguintes
motivos:
• Pessoas diferentes aprendem de formas diferentes, e por mecanismos
diferentes, e isso não quer dizer que um seja mais esperto ou inteligente
que outro. Por isso, enquanto algumas pessoas têm facilidade em aprender
sozinhas pelo estudo de materiais didáticos, outras necessitam de cursos
presenciais e interativos para um aprendizado efciente.
• A imersão no mundo da permacultura, em contato próximo e o espívrito de
compartilhamento de ideias para um mundo melhor, numa espécie de
“retiro permacultural” que os cursos normalmente representam, é uma
experiência transformadora, fonte de inspiração e motivação para mudança
que não tem paralelo no estudo solitário da permacultura.
• Um curso é um evento social e, como tal, atinge pessoas que talvez não se
interessariam pela leitura de um livro, por exemplo. Muitos podem se
inscrever em um curso só porque seus amigos ou namorado(a) irão
participar, e acabar sendo completamente arrebatados pelos conceitos
apresentados no decorrer do curso — talvez tornando-se ainda mais
entusiásticos que aqueles que os convidaram.
• Nenhuma forma de transmissão da permacultura deve ser negligenciada ou
abandonada. Quanto mais formatos houver, melhor para sua disseminação.

Tipos de curso de permacultura

Existem inúmeros tipos de cursos de permacultura e assuntos correlatos,


indo desde palestras de uma hora de duração até cursos que levam semanas ou
mesmo meses; de cursos introdutórios até os de especialização, gerais e
especívfcos, etc., e é natural que seja assim, desde que haja público para todos
esses tipos de cursos — cursos especívfcos para públicos com interesses e
necessidades especívfcas.

308
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

Palestras introdutórias

Este é o tipo de “curso” mais simples, rápido, fácil e barato de organizar e,


provavelmente, o mais importante. Praticamente qualquer pessoa que tenha uma
razoável noção do que é a permacultura e a venha aplicando em algum grau em
sua vida pode falar sobre a permacultura, na forma de uma apresentação
relativamente simples, ou seja, uma palestra.
Pode-se dizer que palestras introdutórias são as mais importantes por
serem mais acessívveis, tanto para quem ministra quanto para o público em geral.
Assim, esse tipo de curso é o que pode atingir o maior número de pessoas,
pegando muitas “de surpresa”, e despertando-as para a gravívssima realidade da
crise ambiental, sobre a qual estão completamente inconscientes e até
anestesiadas pela forma distorcida e entorpecente como o assunto é passado pelo
sistema educacional e pela mívdia. Essas palestras também são vitais para dar
projeção, visibilidade ao nome permacultura e sua proposta, despertando o
interesse das pessoas para que possam, a partir daív, pesquisar por si próprias, ou
interessar-se por cursos mais aprofundados, potencialmente iniciando aív uma
jornada de mudanças positivas em suas vidas.
Palestras geralmente têm duração de 1 a 4 horas, e podem ser feitas em
qualquer espaço disponívvel, seja em uma escola ou faculdade, ONGs e
associações em geral, e mesmo em sua própria casa. Apresentações sobre a
permacultura também podem servir como trabalhos escolares individuais ou em
grupo, ou serem inseridas em eventos como feiras de ciências, etc.
Devido ao tempo restrito e ao caráter introdutório, o conteúdo deve ser
selecionado e focado, reduzido aos pontos mais essenciais:
• A crise ambiental global, suas origens e consequências, abordando:
- Agricultura industrial
- Cidades
- Tecnologia, indústria e consumo
- Desmatamento
- Poluição
- Cenários futuros
• A Proposta da Permacultura:
- Éticas e princívpios
- Produção orgânica e agroforestas
- Bioconstrução e saneamento ecológico
- Estilo de vida da permacultura
- Recuperação ambiental, reforestamento, despoluição de águas, etc.

309
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

Cursos de Introdução à Permacultura

O universo da permacultura abrange uma grande variedade de assuntos


complexos que se inter-relacionam de forma intricada; portanto, é claro que uma
simples palestra não permite mais do que uma “pincelada” geral, que possa
informar e despertar o interesse das pessoas para que busquem um
aprofundamento maior de outras formas. Daív a utilidade de cursos introdutórios
mais longos e aprofundados, sendo que o preferido continua sendo o modelo
PDC, proposto por Bill Mollison (embora o nome PDC seja obsoleto e deva ser
abandonado, conforme discutiremos mais adiante).
Cursos de introdução à permacultura variam muito quanto aos detalhes,
mas não em sua essência. Podem ser ministrados em praticamente qualquer
espaço e até na forma de ensino à distância, mas tipicamente são cursos
presenciais, realizados em estações e centros de permacultura, associações e
centros comunitários, faculdades ou em propriedades privadas onde se pretende
estabelecer um projeto de permacultura, etc.
Os tópicos tipicamente abrangidos em um curso introdutório de
permacultura são:
• Introdução (retrato de nosso tempo e justifcativa para a necessidade de
mudança):
- Crise ambiental global
° Perspectiva histórica
° Realidade atual:
━ Agricultura industrial
━ Cidades
━ Superpopulação
━ Tecnologia, indústria e consumo
━ Desmatamento
━ Poluição
━ Destruição de ecossistemas e extinções em massa
° Cenários futuros:
━ Exaustão de recursos
━ Pico do petróleo
━ Mudança climática
• Permacultura:
- Histórico
- Éticas
- Princívpios
- O estilo de vida da permacultura
- A habitação permacultural

310
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

° Bioconstrução
° Efciência energética e hívdrica
° Saneamento ecológico
- Ecossistemas
° Solos
° Florestas
° Semiáridos
° Desertos
- Água e Energia
- Permacultura rural
° Sistemas de água
° Planejamento por zonas
° Agroforestas
° Animais em permacultura
° Aquacultura
° Permacultura nos trópicos úmidos
° Permacultura nos trópicos secos
° Permacultura em climas temperados
- Permacultura urbana
- Comunidades em permacultura
- Ensino da Permacultura
- Consultoria em Permacultura
- Proposta de uma transição global
- Conclusão

Além das exposições teóricas, os cursos ainda devem incluir:


• Saívdas a campo para demonstração de exemplos negativos, como
monoculturas, erosão, desmatamento, poluição de rios, lixões, etc., bem
como exemplos positivos, como agroforestas e policulturas,
bioconstruções, sistemas de água de chuva, aquaculturas, forestas em
diferentes estágios de regeneração, sistemas de saneamento ecológico, etc.
• Demonstrações e atividades práticas, como técnicas de bioconstrução,
plantio de mudas e hortaliças, compostagem, etc.
• Atividades em grupo, com a elaboração de projetos de permacultura.
• Atividades sociais e recreativas de confraternização.

Claro que não há dois cursos de permacultura que sejam idênticos — o


exposto acima é apenas uma ideia geral do conteúdo de um curso introdutório
tívpico, mas tópicos podem ser fundidos, expandidos, ter suas ordem alterada e

311
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

novos tópicos podem ser criados, a critério do professor, a estrutura exata do


curso variando, inclusive, de acordo com a realidade especívfca do local e do
público-alvo do curso.

Cursos de tópicos específcos relacionados à permacultura.

Além dos cursos introdutórios gerais sobre permacultura, há uma variedade


crescente de cursos de tópicos relacionados à permacultura, em que um ou
alguns dos assuntos e técnicas pertinentes ou úteis à permacultura são objeto de
um curso especívfco e mais detalhado. Esses cursos podem atender a um público
com interesses especívfcos, como por exemplo bioconstrução em geral ou alguma
técnica em particular (e.g. cob, cobertura de sapé, estruturas de bambu, etc.), ou
então saneamento ecológico (e.g. banheiro seco), ou ainda agroforestas,
captação de água de chuva, etc.
Cursos de tópicos especívfcos podem servir para um aprofundamento em
alguma determinada área ou técnica, mesmo para pessoas que já conhecem e
vêm aplicando a permacultura. Também podem servir de “porta de entrada”
para pessoas que têm um interesse prático em particular, e descobrem através do
curso um mundo muito maior de possibilidades através da permacultura.
Dois tipos de curso merecem menção especial aqui: cursos de consultoria
em permacultura e cursos de formação de professores.
Cursos de consultoria em permacultura devem ter como público-alvo
apenas permacultores experientes que necessitem de ajuda especívfca sobre como
iniciar ou melhorar seu negócio de consultoria, de forma profssional — quando
existe uma demanda e o permacultor acredita que pode suprir essa demanda,
mas encontra difculdades pois não tem familiaridade com a gestão de um
negócio de consultoria. Profssionais da educação técnica e de administração de
empresas podem participar na preparação e apresentação do curso, tratando de
assuntos gerais relacionados a consultoria. Os tópicos abordados devem incluir
análise de mercados, divulgação do trabalho (marketing), elaboração de projetos
técnicos, orçamento, contratação de mão de obra, elaboração de contratos,
contabilidade, abertura e gerenciamento de uma empresa de consultoria, etc.
Curso de formação de professores de permacultura. Todos sabemos
que “há pessoas que sabem fazer mas não sabem ensinar”, e cursos de formação
de professores devem ser voltados para esse público especívfco: permacultores
experientes que têm interesse em ensinar, mas têm difculdade em transmitir seus
conhecimentos, ou organizar cursos, etc. Cursos de formação de professores de
permacultura devem ser ministrados por professores experientes e consagrados
tanto na prática permacultural como em seu ensino. Pedagogos e outros
profssionais da educação, sejam permacultores ou não, podem e devem
participar na preparação e apresentação do curso, contribuindo para o

312
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

aprimoramento do ensino da permacultura. É preciso ter a clareza que o foco


desses cursos jamais deve ser o ensino da permacultura em si — isso já deve ser
dominado previamente pelos alunos.
Tópicos abordados em cursos de formação de professores incluem: como
organizar o evento (o local, recursos didáticos, alojamento, alimentação,
divulgação, etc.), a estrutura do curso (o conteúdo e sua organização), técnicas
didáticas, atividades complementares, sociais, etc.
É importante frisar que cursos de consultoria e formação de professores
devem ter como público-alvo exclusivamente permacultores experientes, e não
iniciantes — e isso inclui aqueles entusiasmados neóftos que participaram de
cursos e ostentam orgulhosamente seus certifcados, e estão ávidos por mais, mas
ainda não têm experiência prática e muitas vezes nem sequer aplicam a
permacultura em suas vidas diárias.

A indústria do certifcado

É comum vermos em anúncios de cursos e vivências de permacultura e


assuntos correlatos os organizadores declararem enfaticamente: “com
certificado”. Claro que não há nada errado em se imprimir um certifcado
dizendo que a pessoa participou de um evento; porém, o fato de isso ser
anunciado ostensivamente diz algo sobre as pessoas, tanto os organizadores
como pelo menos parte do público: que eles estão presos à ilusão do certificado.
Esse negócio de “certifcado” e “currívculo” é trazido desta nossa sociedade
baseada em aparências, imagens, ilusões. Cultivam esse pedaço de papel como
se ele dissesse algo real sobre você, ou como se abrisse portas. Porém, é claro
que o certifcado não diz absolutamente nada sobre a pessoa — seu caráter, suas
motivações, talentos, competências, enfm, coisa alguma! Tampouco lhe abrirá
portas; não ajudará no estabelecimento e produtividade de seus sistemas, ou lhe
garantirá um emprego. Pelo contrário: nessa indústria do certifcado, muitas
vezes a única coisa que esse pedaço de papel lhe dará “direito” será de fazer
mais cursos: “permacultura avançada”, “educador em permacultura”, etc.,
progressivamente mais caros e também, por sua vez, fornecendo mais
certifcados, todos igualmente inúteis.
É lamentável que as pessoas ainda façam questão desses pedaços de papel
(certifcados e currívculos), que insistam nessa cultura de imagens, de ilusões,
uma cultura do insignificante. Igualmente é reprovável que educadores de
permacultura reforcem e utilizem essa ilusória cultura do certifcado para tentar
convencer seus potenciais alunos que o dinheiro pago pelo curso valerá a pena.
Justamente por isso tudo, o nome PDC, que signifca “Certifcado de
Design em Permacultura”, é inadequado e deve ser abandonado — porque

313
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

mantém e reforça essa ilusão do certifcado. Um nome como “Curso de


Introdução à Permacultura” seria muito mais adequado e muito mais honesto
até, pois, dada a dimensão da permacultura, qualquer curso de poucas semanas
de duração jamais poderá representar mais do que uma breve introdução, por
mais caprichado que seja.

Aprendizado independente da permacultura

Hoje, graças à internet, é muito fácil estudar a permacultura sozinho, onde


quer que você esteja. Basta pesquisar, em um bom site de busca, pela palavra
“permacultura”, e você terá milhões de resultados, uma amostra do universo
permacultural, com uma infnidade de informações úteis. Cheque todos os links
que aparecerem, navegue por eles em busca de informações sobre a
permacultura, projetos em andamento, materiais didáticos, etc.
Agora, se você incluir na sua busca a palavra “PDF”, encontrará inúmeros
materiais didáticos, entre livros, apostilas, artigos, etc. Baixe todos os materiais
que aparecerem, e estude-os, procurando focar, é claro, nos de melhor qualidade.
Pesquise também sobre a permacultura em sites de vívdeos (e.g. Youtube, Vimeo,
etc.), e assista a todos os vívdeos relacionados: vívdeos explicativos sobre a
permacultura, apresentação de projetos, entrevistas com permacultores, etc.
Participe de fóruns de permacultura na internet. Há discussões interessantes e
boas fontes de informação. Aliás, muitos materiais para estudo da permacultura
que não aparecem em resultados de sites de busca podem ser encontrados
através de fóruns de permacultura.

Dicas para o estudo da permacultura na internet:

• Pesquise em outras línguas. Compreender outras lívnguas, especialmente


o inglês, confere uma grande vantagem no estudo da permacultura, pois
infelizmente alguns dos melhores materiais, como livros, e vívdeos, são
disponívveis apenas nessa lívngua. Também, os melhores fóruns de
permacultura são em inglês.
• Não basta baixar, tem que estudar! Com o desenvolvimento das mívdias
digitais, as pessoas têm desenvolvido uma espécie de mania de acumular
aquivos digitais. Fazendo aqui um paralelo com a música, antigamente,
comprar ou ganhar um disco de sua banda favorita era uma grande coisa —
as músicas eram ouvidas exaustivamente, o encarte lido e relido, as letras
decoradas, e construir sua coleção era motivo de orgulho. Em contraste,
hoje você pergunta a alguém: “você conhece o Led Zeppelin?”, e a pessoa
responde: “ah sim, tenho toda a discografa deles num pendrive”, mas na

314
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

verdade muitas vezes não sabe sequer citar o nome de uma música, e talvez
esteja até confundindo com outra banda! O mesmo vale para livros em
formato digital: muitas pessoas têm a mania de acumular arquivos em PDF;
não raro, têm centenas de livros armazenados em seu computador, sem
jamais tê-los lido. Não obstante, continuam a baixar mais arquivos — e a
não lê-los.
A explicação psicológica para esse fenômeno é simples: baixar um arquivo
é simples e rápido, e dá uma sensação de satisfação imediata, e até uma
sensação de “poder”, pois você pode ler aquilo tudo, e portanto tem o
potencial de um grande conhecimento. Por outro lado, ler os livros é
demorado e trabalhoso. Numa sociedade crescentemente caracterizada por
imediatismo e superfcialidade, a ilusão do “tenho milhares de livros (em
PDF), portanto manjo muito do assunto” é sedutora e parece até natural
para muitas pessoas. Porém, é preciso ter a clareza que é melhor ter apenas
um livro e lê-lo, do que ter mil livros e não ler nenhum! Portanto, para
aprender sobre a permacultura (e qualquer assunto), é necessário ter
disciplina e seriedade, e realmente ler, reler, estudar, devorar os materiais
disponívveis!
• Nem tudo o que foi escrito merece ser lido. Claro que, dentro do
universo de materiais que você vai encontrar, alguns serão ótimos; outros,
bons, e outros ainda, ruins mesmo. Use o bom senso para fltrar os
materiais que você encontrar. Avalie: faz sentido aquilo que você está
lendo? Desconfe de tudo o que parecer muito “milagroso” (bom demais
para ser verdade) ou baseado em pseudociência. Dê prioridade aos
materiais de maior qualidade e reputação, e faça bom uso do seu tempo de
estudo.
• Tenha perseverança. A permacultura compreende um mundo novo para
ser descoberto, aprendido; um universo de informações, conhecimentos e
habilidades necessárias para se viver em harmonia com a natureza, sendo
que nada disso nos foi ensinado na escola ou pela mívdia e a sociedade em
geral — estas só nos ensinam conhecimentos que nos permitam um
convívvio social, ter um emprego, pagar impostos, consumir e poluir.
Aprender qualquer profssão, ou mesmo a tocar um instrumento musical,
falar uma lívngua estrangeira ou se tornar bom em um esporte ou qualquer
arte requer anos de estudos dedicados e prática. É claro que com a
permacultura não poderia ser diferente! É preciso jogar fora o imediatismo
e a preguiça, e ter a coragem e determinação para se dedicar intensamente
e por muito tempo ao estudo teórico e também prático da permacultura,
para se atingir o grau necessário de compreensão e habilidade necessários
para ter sucesso nessa mudança de vida.

315
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

Aprendizado prático da permacultura

A melhor forma de se aprender a fazer uma coisa é fazendo — na verdade,


esta é a única forma de se aprender. Você só construirá um sólido conhecimento
prático da permacultura praticando-a intensamente, por anos, ou seja,
desenvolvendo seus próprios projetos. Porém, você não deve tentar “reinventar a
roda” a cada novo projeto ou atividade que for começar! Deve-se sempre
procurar obter o máximo de conhecimentos teóricos e práticos, absorvendo-os
de quem já vem praticando há tempos, e no caso de habilidades manuais e
conhecimentos práticos, isso signifca ser aprendiz de alguém. Felizmente,
muitos permacultores, talvez a maioria deles, aceitam voluntários para ajudar nos
trabalhos de construção e manutenção de seus sistemas, em seus projetos de
permacultura.
Conforme citado no capívtulo anterior, o trabalho voluntário benefcia
ambos os lados — tanto o voluntário como o hospedeiro.
O voluntário tem a oportunidade de aprender na prática diversas
habilidades necessárias ou úteis para a vida com a natureza, como plantar,
colher, manutenção em geral, construção, sistemas de saneamento ecológico,
estabelecimento de agroforestas, criação de animais, manejo de resívduos,
compostagem, etc. Claro que difcilmente terá tudo isso em apenas um projeto,
em um curto perívodo, e por isso é interessante realizar vários estágios de
trabalho voluntário em diferentes projetos.
Além desse aprendizado prático, o voluntário pode aprofundar também
seus conhecimentos teóricos através de discussões produtivas com os
hospedeiros e outros voluntários. Além disso, o voluntariado é normalmente uma
rica experiência cultural, muitas vezes internacional, que pode contribuir muito
para a expansão de visões de mundo de todos os envolvidos. Para muitos
voluntários, as vivências em permacultura são experiências profundamente
transformadoras e motivadoras, que encorajam a trilhar o caminho da
permacultura e iniciar seus próprios projetos.
Para o hospedeiro, a vantagem mais óbvia é a ajuda recebida dos
voluntários nos trabalhos, nas atividades do projeto. Porém, receber voluntários
também traz grande aprendizado, com a aquisição de novos conhecimentos e
técnicas trazidas pelos voluntários, que muitas vezes têm uma considerável
bagagem de vida. Além disso, também o hospedeiro se benefcia do intercâmbio
cultural propiciado pelo voluntariado.
A maioria dos permacultores que aceitam voluntários estão legitimamente
interessados em contribuir para o avanço da permacultura e oferecer
oportunidade a quem deseja praticar, e a presença de pessoas imbuívdas do
mesmo espívrito de compartilhamento e ajuda mútua torna seu dia a dia muito
mais leve e agradável, sendo bastante encorajador.

316
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

Vivência ou voluntariado?

Embora sejam usados muitas vezes como termos equivalentes,


normalmente prefere-se reservar o termo vivência para eventos programados em
que um determinado conteúdo prático é passado a interessados, em um perívodo
preestabelecido de poucos dias. Normalmente é cobrada uma taxa de
participação, e podem ser oferecidos hospedagem e alimentação. É como um
“curso prático”, onde o hospedeiro se dispõe a transmitir um conhecimento ou
habilidade que supostamente tem, por exemplo uma determinada técnica de
bioconstrução, na construção de uma determinada estrutura, por exemplo uma
casa, e oferece a oportunidade a pessoas interessadas em aprender essa técnica
na prática participando da construção. Nesses casos, em geral o hospedeiro está
mais interessado na contrapartida fnanceira do que na ajuda prática oferecida
pelos participantes.
Já a palavra voluntariado é usada normalmente para a ajuda com trabalho
voluntário nas atividades que estiverem sendo desenvolvidas naquele momento
naquele determinado projeto, desde as mais rotineiras até as mais excepcionais.
Normalmente, nada é cobrado dos voluntários, tampouco se oferece qualquer
remuneração pelo seu trabalho; porém, na maioria das vezes, o hospedeiro
oferece hospedagem e alimentação aos voluntários. Essas condições podem
variar, dependendo das condições particulares de cada caso e acordos prévios
entre as partes.
Existem vários websites dedicados a facilitar ou mediar o contato entre
hospedeiros e voluntários em potencial, entre eles WWOOF, Workaway, HelpX,
etc. Ali, o hospedeiro cria um perfl onde são descritos seu projeto, localização,
tipo de trabalho, acomodações, etc., e pessoas interessadas em participar como
voluntários podem contactá-lo para combinar um estágio. Esses sites costumam
ter regras preestabelecidas; por exemplo, sobre a obrigatoriedade ou não de
oferecer hospedagem e alimentação, limitações de carga horária para o trabalho
voluntário, etc.
Outra opção para encontrar locais para fazer voluntariado, ou conseguir
voluntários para os seus projetos através da internet, são grupos especívfcos nas
redes sociais e fóruns virtuais de permacultura.

Considerações sobre o custo de cursosl, vivências e materiais de


permacultura

É perfeitamente legívtimo que cursos e materiais de permacultura sejam


cobrados, afnal, dão trabalho, tomam tempo e custam dinheiro para fazer.
Porém, acredito que eles devem ser oferecidos sempre ao menor preço possívvel,
por dois motivos:
1. O objetivo principal de quem oferece o curso ou material deve ser a
divulgação e fortalecimento da permacultura, e não o lucro. A cobrança

317
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

pode ser necessária justamente para viabilizar essa atividade, esse serviço,
para garantir que continue sendo feito e atingindo cada vez mais pessoas.
Agora, restringir o acesso à informação em função do poder econômico é
no mívnimo questionável, ainda mais em se tratando de informações que são
para o bem da humanidade e do planeta. Além disso, o objetivo de lucro
tende a corromper e desvirtuar, esvaziar qualquer coisa de sua essência ao
transformá-la em mercadoria. Se permitirmos que o ensino da
permacultura se transforme em mera mercadoria, fatalmente ocorrerá o
mesmo que ocorre no jornalismo, por exemplo, onde o que se transmite
não é necessariamente o que é mais verdadeiro, mas sim aquilo que vende
melhor.
2. Quem oferece cursos de permacultura teoricamente não precisa de muito
dinheiro, justamente por ser permacultor. Se alguém se oferece para
ensinar a permacultura (e cobrar por isso), subentende-se que se trata de
um permacultor experiente e competente, certo? Ora, quanto melhor for o
permacultor, menor sua necessidade de dinheiro, pois mais autossufciente
ele será, ou maior sua renda pela venda de excedentes de produção
agrívcola.
É comum encontrar permacultores que alegam depender do ensino da
permacultura como fonte de renda, para sua sobrevivência. Porém, o indivívduo
que o faz comete na verdade um tipo de charlatanismo, pois, considerando que
uma das principais promessas da permacultura é a produção de alimentos em
abundância, permitindo a autossufciência e até alimentar o mundo, ele está de
fato “ensinando” algo que nunca conseguiu ele próprio fazer. Portanto, desconfe
de cursos, vivências e materiais de permacultura excessivamente caros. Procure
conhecer pessoalmente os méritos e resultados práticos do professor antes de
comprar um curso — e não basear-se na imagem que ele conseguiu vender de si
mesmo. Tenha sempre em mente que a construção de uma imagem glamourosa
depende muito mais de habilidade em marketing do que de méritos reais da
pessoa associada àquela imagem.

Faculdade de permacultura

Há um debate antigo sobre se deveria ou não haver um curso de graduação


em permacultura, em nívvel universitário. A ideia é defendida por muitos
permacultores, com base no argumento que a permacultura é uma ciência
extremamente complexa e ampla, abrangendo elementos dos mais variados
campos do conhecimento humano, incluindo ciências agrárias (agronomia,
zootecnia e engenharia forestal), ecologia, arquitetura, urbanismo e saneamento,
ciências sociais (antropologia, sociologia), flosofa, etc. Pode-se dizer que a
permacultura é tão ou mais complexa e ampla que qualquer profssão de nívvel
superior, justifcando, pois, um curso de nívvel superior com carga horária e
duração igual ou superior a qualquer curso de graduação existente. Pode-se

318
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

argumentar, ainda que a permacultura é mais importante que qualquer profssão


convencional, já que é a única com condições de salvar a humanidade da
autodestruição.
Certamente, um curso de 72 ou 90 horas não é sufciente para preparar
ninguém para coisa alguma. Não se aprende a fazer nada em tão curto tempo!
Não se aprende a ser borracheiro ou ajudante de pedreiro, padeiro, cabeleireira,
etc. (para efeito de comparação: cursos do SENAI para essas profssões variam
de 160 a 400 horas-aula). Seria bom para a permacultura, os permacultores e a
sociedade ter pessoas bem preparadas para guiar e contribuir na transição a um
modelo sustentável — pessoas que entendem dos problemas atuais e desafos à
nossa frente, e sabem o que deve ser feito, e como fazê-lo. Simplesmente não há
nenhuma categoria profssional que preencha essas necessidades. A criação de
um curso universitário em permacultura, e inclusive cursos de pós-graduação,
poderia contribuir muito nesse sentido.
Porém, há também os que condenam a ideia, a começar pelo próprio Bill
Mollison, que temia que, se caívsse nas garras dos que controlam o sistema
educacional formal, a permacultura seria inevitavelmente destruívda. A
permacultura é uma ferramenta para mudar o mundo, enquanto as universidades
e o sistema educacional formal em geral nada mais são que um braço do sistema,
sendo portanto um instrumento de manutenção do status quo. A academia não
aceita nada que desafe o paradigma dominante da sociedade. Por isso, ela
provavelmente jamais aceitará a criação de um curso universitário de
permacultura, ou, pior que isso, o criará justamente para desvirtuá-la,
precisamente para neutralizá-la como ameaça ao status quo. Confar às
universidades a missão de transformar o mundo, com a criação um curso
superior de permacultura, seria como colocar um lobo para cuidar das ovelhas.
Isso tudo é especialmente válido para as universidades públicas, já que são
controladas pelos governos. Agora, claro que nada impede que universidades
privadas criem um curso de graduação em permacultura, bastando para isso que
haja mercado, ou seja, uma demanda sufciente que o justifque. Porém, é
preciso ter cuidado para evitar uma elitização da permacultura, que trairia sua
própria essência, ou sua transformação em mera mercadoria e consequente
deturpação.
Se vai haver faculdade de permacultura ou não, somente o futuro dirá.
Porém, independentemente de a criação de uma faculdade de permacultura
tornar-se realidade ou não, o mais importante é que cuidemos para não deixar
que a permacultura se desvirtue, e que a permacultura sempre possa ser
aprendida de forma independente e por meios próprios, e que seja acessívvel a
todas as pessoas através da liberdade de informação, geração de conteúdo de
qualidade, oportunidade de contato e práticas permaculturais, compartilhamento
de trabalho e experiências, etc. Idealmente, todos os permacultores devem estar
empenhados na disseminação, avanço e universalização da permacultura.

319
Parte II – A Alternativa da Permacultura 16. Aprendizado da Permacultura

320
Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

17
CONSULTORIA E PRESTAÇÃO DE
SERVIÇOS EM PERMACULTURA

A partir do momento que alguém conhece, internaliza, passa a dominar os


princívpios da permacultura e adquire experiência e habilidade sufciente em sua
aplicação prática, na elaboração e execução de projetos de permacultura, isso
abre a possibilidade de prestação de serviços e consultoria a pessoas, grupos e
instituições.
Exemplos de clientes em potencial para um permacultor são:
• Indivívduos não permacultores que desejam um trabalho especívfco, como
por exemplo um jardim, horta ou pomar bonito, produtivo e de baixa
manutenção, ou orientação técnica no estabelecimento de uma agroforesta
ou projeto de reforestamento, a instalação de um sistema de captação de
água de chuva, um banheiro seco, uma composteira, plantio de mudas,
alguma bioconstrução, etc.
• Permacultores que desejam ajuda de alguém mais experiente na elaboração
de um projeto ou serviços especívfcos como os citados acima;
• Produtores rurais que desejam incorporar conceitos da permacultura
visando sistemas produtivos mais naturais, reduzindo ou eliminando o uso

321
Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

de agrotóxicos ou fertilizantes quívmicos, reduzindo o consumo de energia e


água, prevenindo poluição, atuando na recuperação ambiental, etc.
• Grupos ou instituições que desejam incorporar conceitos de
sustentabilidade em suas instalações ou atividades. Por exemplo, uma
incorporadora que planeja construir um condomívnio mais sustentável;
empresas que querem reduzir seu impacto ou fazer compensação
ambiental, ou tornar-se mais sustentáveis, captando água da chuva,
melhorando a efciência energética, reduzindo resívduos; governos
interessados na construção ou adequação de praças, parques e campi
universitários para que tenham alta efciência ecológica, etc.

É perfeitamente possívvel conseguir contratos para serviços de consultoria


em permacultura, desde os mais simples e humildes, até os mais complexos e
ambiciosos. A chave para conseguir se envolver com projetos cada vez mais
vultosos chama-se reputação. Isso não é algo que se pode comprar, ou ganhar de
presente. A reputação deve ser construívda passo a passo, ou seja, começando
com projetos pequenos, procurando sempre fazer o melhor possívvel, acumulando
experiência prática, estudando muito pelo caminho, aprendendo com acertos e
erros.

Tornando-ose um prestador de serviços ou consultor

Para se tornar um consultor ou prestador de serviços em permacultura,


obviamente o primeiro passo é tornar-se um permacultor. Segue abaixo uma
sugestão de “passo a passo” geral para você se tornar um consultor em
permacultura.
1. Adquira conhecimentos teóricos e práticos da permacultura (consulte o
Capívtulo 16, “Aprendizado da Permacultura”).
2. Pratique a permacultura no seu dia a dia, com a incorporação e aplicação
prática dos princívpios da permacultura à sua vida diária, conforme
discutido no Capívtulo 14, “Estilo de Vida da Permacultura”.
3. Comece pela sua própria casa, e então passe também a aplicar a
permacultura em outros espaços disponívveis: praças, terrenos baldios, casas
de amigos e parentes, na sua escola, etc. Você pode começar de graça,
como trabalho comunitário voluntário, talvez junto com alguma ONG, etc.,
ou no caso de terrenos de outras pessoas, repartindo a produção com os
donos, por exemplo. Revitalize voluntariamente, por sua própria conta,
alguma praça abandonada (isso tudo foi discutido no capívtulo 13,
“Permacultura Urbana”). Ofereça serviços de instalação de sistemas
simples de água de chuva (calhas e cisternas), serviços de jardinagem,
ensine e convença as pessoas a fazerem compostagem, (que tal construir e
vender composteiras?). Tire fotos de seus sistemas, faça um portfólio.

322
Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

4. Apareça. Comece a falar sobre a permacultura. Dê palestras, escreva


artigos e reportagens para o jornal local, revistas, rádio, etc., escreva um
blog, use as redes sociais. Mostre os resultados do seu trabalho.
5. Ao ganhar visibilidade, você passará a ser requisitado como palestrante e,
logo, começará a ser procurado para serviços e consultorias. No começo
pode ser um pouco intimidador, mas não tenha medo! Comece devagar,
com trabalhos mais simples e coisas que você já tem prática. Seja honesto:
ao aceitar um desafo de um trabalho de natureza ou escala nova para você,
deixe o cliente ciente disso. Procure auxívlio e mão de obra especializados
se necessário. Não aceite o trabalho se achar que não tem condições de
realizá-lo.
6. Com a prática, você poderá ir aceitando trabalhos cada vez maiores e mais
complexos. Você pode optar por ser um especialista em determinada(s)
área(s), ou ser um generalista e contar com especialistas quando necessário.
Claro que quanto maior o projeto, maiores os custos e maior a
responsabilidade. Ao contrário de serviços pequenos para pessoas fívsicas, para se
conseguir contratos com empresas e governos para serviços e projetos grandes é
necessário apresentar projetos bem estruturados, de forma profssional, além de
ter uma empresa formalizada. Importantívssimo também é cumprir orçamentos e
prazos. A habilidade com isso virá com a prática, e por isso é importante
começar com projetos pequenos e simples, adquirindo a experiência prática e
aumentando a complexidade gradualmente. Ou seja, comece pequeno e, com
dedicação e seriedade, construa sua experiência e reputação. Agindo assim, o
céu é o limite; talvez um dia você se veja desenvolvendo projetos de
permacultura internacionais com orçamentos milionários, a exemplo de
permacultores famosos como Geof Lawton e Sepp Holzer.

Prestação de Serviços

O cenário é simples: alguém está interessado em um determinado serviço,


como estabelecer um jardim ou horta permacultural, ou construir uma casa ou
outra estrutura com técnicas e materiais naturais, por exemplo. Claro que
chamar um jardineiro ou construtor qualquer não vai dar certo; então, a pessoa
te procura, pois você é o mais indicado para fazer o serviço na área, já que é
permacultor. Isso não só é perfeitamente possívvel, como de fato acontece o
tempo todo, sendo que os serviços mais procurados são os de bioconstrução,
fazendo desse um dos ramos mais atrativos para quem quer trabalhar com
permacultura, atualmente. Em qualquer caso, você pode optar por fazer o
serviço você mesmo, ou apenas elaborar um projeto, com descrições detalhadas,
ou ainda acompanhar o trabalho, dando as devidas orientações e supervisão a
outros profssionais, como jardineiros, construtores, etc., que farão o serviço.
Mas há inúmeras outras formas de prestar serviços à sociedade como

323
Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

permacultor. Por exemplo, você pode abrir sua própria empresa em qualquer um
dos ramos em que possa contribuir para uma sociedade mais sustentável, como
uma empresa de reciclagem de materiais, ou uma operação de compostagem em
larga escala, utilizando os resívduos orgânicos municipais e talvez lodo de esgoto,
produzindo e vendendo composto orgânico de alta qualidade; você pode abrir
uma fora, um viveiro de mudas, contribuindo para pessoas que desejam praticar
a jardinagem, horticultura, reforestamentos, etc. Como já discutido no capívtulo
13, você pode atuar também no setor público ou no terceiro setor (ONGs),
atuando para melhorar a gestão dos resívduos sólidos em sua cidade, enfm, as
opções são praticamente ilimitadas.
Agora, em muitos casos é útil, importante ou necessário que você também
tenha uma qualifcação profssional formal para dar condições técnicas,
credibilidade e amparo legal para seus serviços permaculturais. Por exemplo, se
você for um arquiteto ou engenheiro civil, poderá atuar na elaboração de
projetos arquitetônicos e responsabilidade técnica sobre edifcações sustentáveis
em qualquer jurisdição; se for um urbanista, pode elaborar projetos de
assentamentos sustentáveis, como condomívnios, bairros e cidades planejadas; se
for agrônomo, poderá ser responsável técnico de empresas do ramo de produção
e benefciamento de alimentos, e se for engenheiro forestal, poderá coordenar
projetos de reforestamento em larga escala para clientes corporativos e
governamentais, etc. Por isso, é essencial que tenhamos na permacultura pessoas
com qualifcação formal em todas as áreas relevantes do conhecimento.

Consultoria

A consultoria é um serviço diferenciado onde o permacultor elabora um


projeto técnico detalhado para atender às necessidades do cliente. O serviço de
consultoria pode ir desde um trabalho pontual, como por exemplo o projeto de
um sistema de captação de água de chuva, ou um jardim-horta, ou uma
bioconstrução, etc., até um projeto inteiro de uma fazenda, um módulo de
autossufciência rural, um condomívnio ecológico, etc.
Claro que não há receita universal, já que cada projeto é único e podem ser
completamente diferentes, de naturezas diferentes, mas o padrão de
procedimento em sua elaboração costuma ser mais ou menos o mesmo. A seguir
daremos uma visão geral dos principais aspectos de um trabalho de consultoria
em permacultura.
O trabalho de consultoria começa com uma conversa detalhada com o
cliente, onde ele explicará o que deseja que seja feito. Na maioria das vezes, ele
não estará bem certo — terá apenas uma ideia vaga, e muitas vezes fará
propostas que são bastante fantasiosas ou inviáveis; portanto, essa conversa deve
ser bem interativa: o consultor deve dar orientação, ajudando o cliente a decidir
o que exatamente ele deseja, dentro de limites realistas. Não raro, o cliente,
embora bem intencionado, terá ideias que prejudicariam o meio ambiente. Nesse

324
Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

caso, o permacultor deve intervir, explicando por que aquilo não é uma boa
ideia, e propor alternativas. Caso o cliente se mostre intransigente, o consultor
deverá recusar o serviço.
Em seguida, o permacultor deverá fazer uma pesquisa aprofundada para
conhecer as condições e recursos disponívveis para o projeto: reconhecimento da
propriedade e da área, utilizando inclusive plantas e cartas topográfcas, quando
disponívveis; caracterívsticas do local, como altitude, clima, pluviosidade, tipo de
solo, bioma nativo, etc.; atividades agrívcolas e outras, atuais e recentes;
condições ambientais do local, como grau de deterioração ambiental (degradação
do solo, erosão, contaminação quívmica, etc.) ou estágio de regeneração atual;
recursos disponívveis no local e na região, incluindo materiais disponívveis, mão de
obra, condições de mercado, etc. Conhecimentos e aptidões especívfcas do
cliente também devem ser conhecidas e levadas em consideração na elaboração
do projeto.
Então, o permacultor passará à elaboração do projeto em si, e fornecerá ao
cliente um relatório de recomendações técnicas detalhado, bem como seu
orçamento. O relatório muitas vezes inclui um memorial descritivo que pode ser
feito a partir de uma imagem aérea obtida através da internet (e.g. Google Earth)
sobre a qual é plotada uma planta da propriedade onde são representados os
elementos constantes do projeto. Inclui ainda plantas baixas e desenhos técnicos
conforme necessário, descrição das técnicas a serem utilizadas, listas de espécies
de plantas recomendadas e informações como quantidade, disposição, técnicas
de plantio e manejo, etc. Listas de materiais que serão necessários, e talvez uma
cotação de preços, também vão aqui.
No relatório, devem ser dadas ainda instruções especívfcas a respeito das
fases de estabelecimento do projeto. Ou seja, não se pode simplesmente dar um
apanhado de recomendações, e deixar que o cliente decida por onde vai começar
— ele deve ser orientado quanto à sequência mais racional e efciente possívvel
(as fases de estabelecimento de um projeto de permacultura rural foram
abordadas no capívtulo 9, “Permacultura Rural”).
No próprio relatório você pode recomendar profssionais especívfcos para
desempenhar cada parte do projeto, como arquitetos, bioconstrutores,
jardineiros, etc. Por isso, é importante formar uma malha de relações, uma rede
de trabalho com outros permacultores e profssionais competentes.
Geralmente, o trabalho do consultor não acaba no relatório. O mais comum
é continuar prestando serviços ao cliente, seja na execução dos trabalhos ou na
coordenação e supervisão das atividades.
Agora, há uma consideração importante a se fazer em relação a consultoria
na elaboração de projetos de permacultura completos, ou seja, módulos de
autossufciência ou viver sustentável à luz da permacultura, sejam rurais ou
urbanos. Embora esse tipo de consultoria possa parecer bastante atrativo tanto a

325
Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

consultores como a clientes, deve-se ter em mente que isso só faz sentido se o
cliente for permacultor. É importante ressaltar que a permacultura é, acima de
tudo, uma cultura, ou seja, um estilo de vida; portanto, ninguém se tornará um
permacultor somente por contratar um serviço de consultoria. Do que adianta
você elaborar todo um projeto, implementar um conjunto de sistemas, se a
pessoa que vai viver e trabalhar ali não tem ideia do que fazer, e provavelmente
tenderá a viver exatamente como sempre o fez? Claro que isso não tem como
dar certo. Ou seja, o relatório de consultoria servirá como uma orientação, uma
base de ideias que, por mais completo que seja, de maneira nenhuma elimina a
necessidade de o cliente possuir ou adquirir uma base sólida de conhecimentos
de permacultura (o aprendizado da permacultura foi discutido no capívtulo 16).

Cobrando por serviços e consultoria

O preço cobrado por um serviço de consultoria deve ser condizente com a


dimensão e complexidade do serviço, ou seja, o tempo e esforço necessários à
sua execução. Use o bom senso.
Claro que a reputação e experiência do permacultor também tendem a
infuenciar no preço, assim como o poder econômico do cliente, e a lei geral da
oferta e procura, etc. Além disso, caso você esteja atuando em uma área
especívfca em que possui qualifcação profssional formal, as tabelas de
honorários de sua categoria também devem ser levadas em consideração. Porém,
aqui também é necessário fcar atento para evitar que haja uma elitização da
permacultura, já que isso fere seus próprios preceitos éticos. Assim, é
recomendável que mesmo permacultores mais requisitados ou altamente
qualifcados mantenham sempre em suas agendas algum tempo dedicado a um
tipo de “cota social”, oferecendo serviços a preços acessívveis para clientes de
recursos limitados, especialmente para serviços com maior potencial de
transformação social ou maior benefívcio ambiental.

Preciso de um certifcado para prestar serviços de permacultura?

A resposta curta para essa pergunta é: não. Agora, isso vai deixar muitos
professores irritados, pois dependem dos cursos (e.g. PDCs) para sobreviverem
e, por isso, fazem de tudo para defender a velha cultura do certifcado. Mas não
deixe ninguém lhe convencer que você precisa de um certifcado para prestar
serviços e consultoria em permacultura. O que você precisa é: saber o que está
fazendo, assumir a responsabilidade sobre seu trabalho, e aderir integralmente às
éticas e princívpios da permacultura.
Conforme citado no capívtulo anterior, um certifcado não passa de um
pedaço de papel que não diz nada sobre você, seu conhecimento ou
competência, etc. Além disso, a ideia que um curso de duas semanas o tornará

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

apto a prestar consultoria é uma falácia total — isso requer anos de estudos e
prática, para que possa ser feito com seriedade (a não ser os trabalhos mais
simples, que você fará na condição de iniciante, justamente enquanto acumula
experiência para se lançar a projetos mais ambiciosos, conforme já discutido).
Alguns permacultores argumentam que a obrigatoriedade de um certifcado
de curso protegeria a permacultura, impedindo que se distorça, se desvirtue.
Embora essa preocupação seja totalmente pertinente, está claro que esse critério
(certifcado) é totalmente inefcaz nesse sentido. Profssões formais estabelecidas
contam com conselhos de classe legalmente instituívdos, para essa fnalidade.
Talvez, criar tal conselho também para a permacultura fosse benéfco nesse
sentido. Porém, isso estaria inevitavelmente vinculado à criação de um curso
formal (e.g. bacharelado em permacultura), ofcialmente reconhecido, o que,
conforme discutimos no capívtulo anterior, não se sabe se ocorrerá.
Por fm, vale lembrar que o próprio Bill Mollison jamais possuiu um
certifcado de curso de permacultura, o mesmo podendo ser dito de David
Holmgren, Sepp Holzer, Masanobu Fukuoka, entre outros dos mais famosos
nomes da permacultura.

Nem todos os serviços devem ser aceitos

Já citamos o caso em que um cliente, embora bem intencionado, por falta


de conhecimento tem a intenção de fazer coisas que terão um efeito negativo
sobre o meio ambiente, por exemplo por causar desequilívbrio ecológico, suprimir
fora ou fauna nativas, consumir recursos ou gerar resívduos demasiadamente, etc.
Agora, há casos bem piores ainda, onde o cliente simplesmente não é bem
intencionado. Por exemplo, talvez deseje fazer um empreendimento que causará
grande dano ambiental, visando apenas lucro, e procure sua ajuda na forma de
um serviço de consultoria para fazê-lo de forma mascarada, de modo que
consiga autorização das autoridades ambientais, por exemplo. Outro caso tívpico é
o chamado greenwashing ou “lavagem verde”, em que uma empresa altamente
poluente e degradante procura fazer algum projeto ecológico, geralmente de
orçamento e impacto ambiental positivo irrisórios, com o único objetivo de usar
isso como estratégia de marketing para conseguir vender mais, por convencer o
público que, ao comprar este ou aquele produto, estará contribuindo com o meio
ambiente. Na verdade, isso só ajuda a empresa a vender mais, e portanto poluir
mais, degradar mais o ambiente, de forma que o impacto ambiental global será
muito negativo. Permacultores não devem aceitar esses tipos de serviços de
consultoria, por ferirem as éticas da permacultura. A permacultura foi concebida
para ser parte da solução dos maiores problemas do mundo, e é vital que
cuidemos para que ela não seja usada indevidamente como ferramenta para a
manutenção ou agravamento desses mesmos problemas.

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Parte II – A Alternativa da Permacultura 17. Consultoria e Prestação de Serviços

Foco em consultoria?

Embora consultorias em permacultura possam dar signifcativas


contribuições para a melhoria do mundo, é importante ressaltar que esse não
deve ser o foco principal da permacultura. Isso porque, de um ponto de vista
humano, o mundo é feito essencialmente de pessoas. Portanto, quando dizemos
que o mundo está com sérios problemas por causa da insustentabilidade, isso
equivale a dizer que as pessoas estão com problemas e, de fato, são as pessoas,
voluntária ou involuntariamente, consciente ou inconscientemente, que estão
causando esses problemas pela forma como vêm vivendo — e são também as
pessoas que sofrerão as consequências, quando esta bolha que é nossa civilização
estourar (além de todo o mundo natural, infelizmente).
Portanto, a permacultura tem o potencial de mudar o mundo,
principalmente mudando a vida das pessoas — sua forma de ver o mundo e se
relacionar com ele, mudando seu estilo de vida para algo realmente sustentável e
harmônico (falaremos mais sobre isto no próximo capívtulo, “Proposta de uma
Transição Global”).
Isso deve fcar bem claro para todas as pessoas, e especialmente aos
professores de cursos de permacultura. Um foco excessivo em consultoria tem
sido um erro comum em cursos de permacultura, desde seu começo. Isso é um
problema porque vende-se uma ilusão a pessoas, num momento em que estão
tendo seu primeiro contato com a permacultura, que na semana seguinte serão
consultores em permacultura formados (com certifcado e tudo, lembra?), e que
haverá demanda para essa consultoria, e farão altos projetos e serão bem
remunerados, etc., sendo que isso não corresponde à realidade, não somente
porque o curso não prepara o sufciente, mas também porque a demanda ainda é
escassa, especialmente em se tratando de pessoas sem experiência. Além de
causar desapontamento e frustração aos alunos com o choque de realidade após a
conclusão do curso, essa abordagem pode atrair para a permacultura pessoas
muito interessadas em trabalhar para os outros por dinheiro (mantendo o
paradigma da alienação do trabalho e foco em lucro), e pouco interessadas em
mudar seu próprio estilo de vida.

328
Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

18
PROPOSTA DE UMA
TRANSIÇÃO GLOBAL

Por ser um sistema que promete suprir as necessidades humanas ao mesmo


tempo em que conserva os recursos naturais, protege o meio ambiente e ajuda na
recuperação de ecossistemas, a permacultura tem o óbvio potencial de mudar o
mundo e, no melhor dos casos, evitar o colapso da civilização, a ruívna da
humanidade e do ambiente natural no planeta Terra.
Porém, como alcançar este grandioso objetivo? Não parece razoável
assumir que um único indivívduo, seja eu ou você, começando uma horta ou
captando água da chuva dos telhados, ou iniciando um projeto de
autossufciência na zona rural, tenha qualquer chance de mudar os rumos do
mundo, não é mesmo? Claro que isso pode e certamente terá grande efeito na
vida da pessoa que o fzer, podendo trazer uma grande realização pessoal e
verdadeiro sentido à vida. Mas, em relação a uma perspectiva global, quais
seriam as chances de a permacultura realmente fazer alguma diferença?
David Holmgren, co-fundador da permacultura, parece ter a resposta para
essa questão. Ele explica:
“...A outra forma de pensar na permacultura é como uma forma de mudar
o mundo, porque muitas pessoas motivadas pela permacultura a veem com
uma atitude de ‘nós podemos mudar o mundo de uma forma positiva’, ao
invés de viver tentando parar o mundo que nós não queremos. A

329
Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

permacultura sempre teve uma postura de ‘como podemos criar o mundo que
nós queremos’.
“Quando se trata de mudar o modo como a sociedade funciona, a maioria
das pessoas pensam em maneiras de mudar polívticas públicas — como
infuenciar os cívrculos do poder de forma a mudar o funcionamento das
grandes estruturas da sociedade. Mas essa é uma maneira velha, ultrapassada
de mudar o mundo. A maneira nova, que já está bem comprovada, é mudar
você mesmo, sua vida, e o que você faz. O que muitos dos estudiosos e
pessoas que pensam em como podemos fazer para mudar o mundo ainda não
se tocaram é que na verdade, ao mudar você mesmo, isso não representa
apenas uma pequena contribuição para uma mudança em maior escala — na
verdade, isso talvez seja a coisa mais poderosa que você pode fazer.”

A proposta de Holmgren é equivalente àquela famosa citação, frequente-


mente atribuívda a Ghandi: “Seja a mudança que você quer ver no mundo.”
Ele continua:
“E alguns dos motivos para isso: se você tem uma estratégia ou qualquer
coisa em permacultura, desde construir sua própria casa até uma agricultura
apoiada pela comunidade, até o simples fato de produzir sua própria comida
no seu quintal; quando você faz algo para si mesmo e se benefcia disso, e
aquilo refete as éticas e princívpios da permacultura, você está fazendo algo
para si mesmo e também reduzindo seu impacto negativo no mundo. Mas,
por estar fazendo algo que te traz benefívcios, isso é potencialmente atrativo
para outras pessoas que podem pensar: ‘ah, eu vou fazer isso também’...
enquanto aquela pessoa amarga que está apenas fazendo algo para tentar
compensar por nossos pecados no mundo não é muito atrativa para muitas
outras pessoas. Você sabe, uma pequena proporção das pessoas são
motivadas por esse tipo de atitude — a maioria das pessoas quer ser
benefciada de alguma forma e, especialmente, querem benefívcios diretos.
Então, as estratégias da permacultura são atrativas para os seus adeptos, e
oferecem exemplos que outras pessoas podem copiar. E para fazê-lo,
geralmente não se necessita de permissão de autoridades, ou bancos para
obter fnanciamentos, etc. E isso é realmente importante, porque muitas
dessas mudanças, se feitas por uma parte da população, representam uma
ameaça real a muitas das estruturas de poder da sociedade, muitos desses
sistemas centralizados: as corporações, governos e seus contribuintes...
Então, eu entenderia que muitas dessas coisas de autossufciência e
empoderamento associadas com a permacultura são realmente subversivas.
Portanto, se essas ideias e atitudes realmente ‘pegarem’ de uma forma ampla,
elas poderiam não apenas não contar com qualquer apoio, mas de fato sofrer
tentativas de impedimento.
“Quando se trata de alguma tecnologia muito avançada, ou projetos em
larga escala, é fácil para os detentores do poder dizer: ‘não, você não pode
fazer isso’. E nós podemos ver a guerra entre energias renováveis versus
combustívveis fósseis. Mas se é algo que você pode fazer em casa, é muito

330
Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

difívcil impedir. Além disso, essa replicação permite uma evolução muito
rápida onde você pega um exemplo de alguma coisa, e você aprimora; então,
vem alguém e copia, e modifca e aperfeiçoa, então você tem uma evolução
progressiva. Se nós fzéssemos grandes projetos que são todos motivados por
conceitos de sustentabilidade mas representam imensas realocações dos
recursos da sociedade, isso sempre termina em bagunça, porque de algum
modo a complexidade dessas coisas... Você pode ter as ideias, mas quando
você vai realmente pôr em prática, nunca dá tão certo. Então, a replicação
em pequena escala, ao invés de projetos grandes, gigantes, além de ser muito
mais viável, é um bom processo de aprendizado, e também permite que as
pessoas adaptem as soluções a situações diferentes, e isso é muito
importante, porque cada situação é diferente. E então, quando você consegue
mais pessoas fazendo isso, isso lhe dá, se quiser ver dessa maneira, mais
poder de barganha; você diz: ‘olha, todos nós aqui estamos fazendo isso...’
Você tem uma certa base de poder através da autonomia, e não uma base de
poder tentando fazer barulho para fazer as autoridades mudarem as polívticas,
porque essa é realmente uma abordagem que não tem força alguma. E nós
podemos ver nos últimos 30 anos como movimentos populares conseguiram
mudanças em polívticas públicas... mas tem sido cada vez mais difívcil
conseguir essas mudanças, e requerido cada vez mais recursos desses
movimentos. Então, por que nós simplesmente não fazemos algo por nós
mesmos e com nossos próprios recursos, e damos um exemplo para os
outros? Esse é verdadeiramente o impulso para uma mudança positiva
maior.”*

Em suma, não adianta nada as pessoas fcarem apenas atacando o sistema e


elocubrando formas de transformar o mundo, sem que antes tenham
transformado suas próprias vidas para que sirvam de exemplo. Essa é uma
postura tívpica de revolucionários fajutos, uma atitude hipócrita e estéril.
A única forma de a permacultura fazer uma diferença no mundo é através
de uma revolução pacívfca, que começa silenciosa, por baixo, através de pontos
que se espalham, ligam e convergem. Mudar o mundo através da permacultura
pode parecer tarefa impossívvel ou inviável; mas mudar seu próprio mundo, seu
papel no mondo, sua própria vida à luz da permacultura, isso sim certamente é
possívvel, viável e repleto de signifcado, embora não seja simples ou fácil — e
essa é a tarefa número um de todos interessados na construção de um mundo
justo e sustentável. E, a partir daív, inspirar outros, através do seu exemplo, para
que sigam também o caminho, e que todos juntos trabalhemos no
aperfeiçoamento e disseminação da permacultura. E, nesse processo, formar
comunidades, que se integram e fortalecem mutuamente.
Então, este é o caminho para o movimento da permacultura. Não adianta
esperar que a mudança parta de cima, das elites — ela tem que partir de baixo, de
nós mesmos, de cada uma das pessoas que desejam a mudança, alastrando-se pela
* Em entrevista a Robyn Rosenfeldt, editora da revista “Pip Magazine”. 2014.

331
Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

base e infltrando-se para cima, abrangendo enfm toda a sociedade.

“Mudar o mundo começa por mudar a si próprio. Quem não


consegue mudar a si próprio, não muda coisa alguma.”

Nada disso, porém, signifca dizer que uma atuação polívtica em outros
sentidos, seja no ativismo ou na representação polívtica convencional, sejam
inúteis ou devam ser abandonados — muito pelo contrário. Mas signifca, sim,
que essas outras formas de atuação, para que sejam efetivas, devem ser
precedidas e acompanhadas de exemplos concretos por parte daqueles que as
defendem, pois só assim esses esforços terão qualquer efcácia. Além disso, para
que a via polívtica convencional possa ter uma participação viável numa
transformação mais global da sociedade rumo à sustentabilidade, é preciso que
antes o movimento da permacultura já tenha crescido e se tornado grande
demais, e forte demais para ser ignorado.

A permacultura pode mesmo alimentar o mundo?

Esta é uma questão que frequentemente gera confusão e preocupação nas


pessoas. Argumenta-se que a agricultura industrial, através de melhoramento
genético, técnicas modernas de cultivo envolvendo mecanização e irrigação em
larga escala e uso de fertilizantes quívmicos e pesticidas, logrou um grande
aumento na produtividade agrívcola comparativamente a técnicas antigas, mais
naturais e tradicionais, às quais a agricultura orgânica ou a permacultura são
geralmente associadas.
Isso é verdade, mas apenas parcialmente. Um grave equívvoco que quase
sempre se comete é comparar a permacultura com a agricultura convencional
levando em consideração apenas a produção bruta de determinado produto (e.g.
milho, leite, abacates ou tilápias) por unidade de área da fazenda produtora. Esse
tipo de análise é inválida, incorreta, por pelo menos três motivos:
• Na verdade, deve-se levar em conta não apenas a produção bruta do
produto agrívcola, mas sim o conjunto das produções e serviços ambientais
prestados. Como sabemos, a agricultura industrial não presta nenhum
serviço ambiental — não fomenta a fauna ou fora, não favorece a
penetração de água no solo ou a manutenção do ciclo das águas, não
contribui para a estabilidade do clima, não protege o solo, etc. Pelo
contrário, ela destrói o ciclo das águas, o solo, o clima, a biodiversidade. Já
os sistemas produtivos da permacultura prestam todos aqueles serviços
ambientais. Infelizmente, não há remuneração por esses serviços, apesar de
serem essenciais para o bem estar humano e a sobrevivência da
humanidade a longo prazo.

332
Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

• Outra questão-chave é a diversidade na produção. Enquanto a agricultura


industrial é baseada em monoculturas, a permacultura aposta em
policulturas integradas. Claro que numa monocultura de milho você terá
uma produção muito maior de milho que numa policultura contendo milho
entre outras coisas. Porém, na análise global da produção, a policultura
tende a ter uma produção total maior e mais diversifcada.
• Além disso, outro fator vital que praticamente ninguém leva em
consideração é a real relação entre consumo de recursos e produção. A
análise que geralmente se faz é “quantas toneladas de produto por
hectare/ano”, mas aív existe uma falha gravívssima! Isso porque a agricultura
industrial depende pesadamente da importação de recursos — fertilizantes
para a adubação, água para irrigação, rações para os animais, combustívveis
fósseis e eletricidade para mover maquinários… Ou seja, esses recursos
não são oriundos de dentro da propriedade em questão — vêm de fora, dos
locais onde está ocorrendo a mineração das rochas fosfáticas e calcário, a
extração e refno do petróleo, mananciais de onde é extraívda a água,
plantações longívnquas onde estão sendo produzidos os ingredientes para
rações animais, etc. Como pode-se calcular a produtividade por área sem
levar em consideração todas essas áreas externas usadas para alcançar essa
produção? Sem contar também toda a infraestrutura industrial e viária
necessária para produção e transporte desses insumos. Fazendo-se esse
cálculo adequadamente, ou seja, considerando toda a área efetivamente
usada, dentro e fora da propriedade em questão, para alcançar essa
produção, ver-se-á que a real produtividade por área da agricultura
industrial é bem menor que normalmente alardeado por seus proponentes!
Da mesma forma, os impactos ambientais a distância, sendo computados,
darão a real magnitude dos custos ambientais desse modelo produtivo. Em
contraste, na permacultura focamos no uso racional e sustentável dos
recursos locais, ou seja, de dentro do terreno, para produção, preservando e
reciclando recursos como água e nutrientes do solo, com importação
mívnima de recursos.

Deste modo, arrancando o manto falacioso sob o qual a agricultura


industrial se esconde, desfaz-se o mito que ela é muito mais produtiva, ou que só
ela pode alimentar o mundo.
A permacultura pode, sim, alimentar o mundo muito melhor que o
agronegócio moderno vem fazendo, não só em quantidade como também em
qualidade, com muito mais diversidade e evitando ainda contaminações
quívmicas, tanto no ambiente como nos próprios alimentos, por pesticidas, por
exemplo. Além disso, promete fazê-lo de forma sustentável, através da
preservação e recuperação dos recursos naturais necessários à produção de
alimentos e outros aspectos da vida humana. Já a agricultura industrial, bom,
sabemos que ela vem alimentando boa parte do mundo já por várias décadas;

333
Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

mas, até quando poderá fazê-lo? Ela é indiscutivelmente insustentável, já que


depende totalmente dos recursos que ela própria está consumindo e destruindo
(água, solos, fertilizantes quívmicos, clima, entre outros). Ou seja, ela faz parte de
um paradigma doentio, autofágico. Não podemos contar com ela, pois se o
fzermos, quando os recursos fatalmente acabarem, morreremos todos de fome.
É estarrecedor que a maioria das pessoas, inclusive agrônomos, estejam
desatentos a esse terrívvel fato!

Desafos da permacultura

Pode-se dizer que a permacultura é um movimento extremamente


audacioso, já que desafa, enfrenta o status quo, oferece a proposta de um modo
de vida radicalmente diferente, senão mesmo oposto ao estilo de vida
convencional da sociedade moderna, e abraça ainda a missão de alterar os rumos
do mundo, reverter a nossa atual crise ambiental e civilizacional, evitando as
consequências nefastas claramente previsívveis de nosso atual curso de ação.
Eu não estava lá, no fnal da década de 70 e inívcio da de 80, quando Bill
Mollison começou a ministrar seus cursos de permacultura pelo mundo, mas
tenho certeza, pelos registros deixados daquela época *, que deve ter sido um
momento extremamente excitante, empolgante para todos os que participaram
desses cursos, os pioneiros do movimento da permacultura — a sensação de
estarem participando de um momento histórico, em que um grupo de pessoas,
guerreiros da Terra, estavam construindo um modo de vida benéfco, harmônico
com a natureza, em um movimento que cresceria como uma bola de neve,
inaugurando um novo capívtulo na história da humanidade.
Porém, nessas quase quatro décadas desde seu surgimento, embora a
permacultura tenha efetivamente se espalhado por todo o mundo e conquistado
milhares de adeptos, há que se reconhecer que esse crescimento ainda está muito
abaixo do que seria necessário para efetivamente fazer uma diferença real,
prática nos caminhos do mundo. Talvez os pioneiros fcassem decepcionados ao
saberem que, hoje, ao invés de em processo de solução, cada um dos aspectos da
crise ambiental está de fato enormemente agravado em relação àquela época,
enquanto que as pessoas que participam, ou mesmo conhecem, ou sequer
ouviram falar da permacultura ainda são senão uma pequena minoria da
população global.
Agora, isso não signifca que a permacultura falhou, ou que não haja
esperança. A permacultura continua sendo o melhor caminho para lidar com a
situação da humanidade, e desistir de lutar certamente não é uma opção válida,
ou mesmo digna. Porém, não podemos fngir que estamos fazendo tudo certo, e
* Um ótimo exemplo de tais registros são as transcrições de um PDC ministrado por
Mollison em 1981, posteriormente transformadas em uma série de apostilas intitulada
“Série Curso de Design em Permacultura”, editada e publicada por Yankee Permaculture.

334
Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

que o movimento está indo perfeitamente bem; temos que aplicar o nosso
princívpio n.o 18 (“reavalie-se constantemente”) de forma que possamos sanar as
defciências, corrigir erros, fazer o movimento da permacultura evoluir e
avançar, para que possa cumprir a sua missão. E devemos ter nisso um grande
senso de urgência — não há tempo a perder, pois a crise ambiental se agrava a
cada dia.

Mudança de atitude

É muito comum as pessoas assumirem que a permacultura é um caminho


mais fácil que as opções convencionais de trabalho e estilo de vida da sociedade
moderna. Isso simplesmente não é verdade, e trata-se de uma ilusão perigosa.
Nada do que fazemos na permacultura, escolhemos por ser mais fácil.
Fazemos o que fazemos por uma variedade de motivos: porque é ético,
moralmente correto; porque queremos uma vida mais natural e saudável; porque
queremos independência de coisas com que não concordamos no mundo, porque
não queremos compactuar com a destruição da vida no nosso planeta, ou talvez
para termos melhores chances de sobreviver ao colapso do sistema que aív está,
etc. Mas não porque é mais fácil.
Algumas coisas são de fato fáceis: separar seu lixo para reciclagem,
economizar água e energia, ter hábitos alimentares saudáveis, evitar o
consumismo… Mas isso é só o comecinho. Embora importantes, medidas como
essas, sozinhas, obviamente não vão salvar o mundo. Agora, viver da terra e
atuar efetivamente na recuperação de ecossistemas, isso não é fácil. Mas
fazemos porque tem que ser feito.
Pelo menos parte dessa mentalidade que a permacultura é fácil vem de um
vívcio dos próprios cursos e livros de permacultura. Infelizmente, ao vender a
permacultura, os professores e autores acabam muitas vezes assumindo uma
mentalidade de vendedor que, conforme já mencionado, costuma deturpar as
coisas, esvaziando-as de sua essência — o objetivo principal passa a ser o
sucesso nas vendas. O problema é que coisas fáceis vendem mais, então as
muitas difculdades e agruras do caminho da permacultura acabam sendo
omitidos por esses educadores. Ao invés disso, focam em abraços coletivos e
danças circulares, etc., o que acaba criando ou reforçando a ilusão da
permacultura fácil, a atitude que tocar violão em volta da fogueira, cantar para a
terra ou aplaudir o pôr do sol vai mudar o mundo. Claro que não há nada errado
em fazer essas coisas, mas temos que deixar claro que isso não é a permacultura.
Um resultado negativo disso é que muitas pessoas acabam aderindo à
permacultura de forma despreparada, sem saberem exatamente no que estão se
metendo. Iniciam seus projetos sem dar a devida atenção à aquisição de
conhecimentos aprofundados, tanto na teoria como na prática, e não dão a
devida atenção e seriedade ao adequado planejamento, a elaboração de uma

335
Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

estratégia sólida de transição. Muitas vezes, iniciam sua jornada, mas o fazem de
forma mole, apática, anêmica — não no discurso, esse sim, sempre empolgado,
mas uma empolgação que não se traduz em empenho nos trabalhos, e acima de
tudo, na tenacidade necessária ao sucesso de qualquer empreendimento
permacultural e, de fato, qualquer coisa na vida.

“Se alguém te disser que a permacultura é fácil, isso só pode significar duas
coisas: ou ele não sabe do que está falando, ou ele quer o seu dinheiro.”

Então, temos que mudar essa mentalidade. Romper com o paradigma


dominante é totalmente possívvel e repleto de sentido, mas temos que construir
esse caminho. Portanto, precisamos de pessoas que entrem na permacultura com
uma mentalidade de pioneirismo, e mesmo de heroívsmo; pessoas preparadas
para enfrentar e vencer grandes desafos. Deve-se ter sempre em mente que não
há conquista sem sacrifívcios.

Avançar a permacultura na prática

Infelizmente, ainda são escassos os exemplos concretos de pessoas que


tiveram sucesso em fazer da permacultura o seu modo de viver, ou seja, que
realmente alcançaram um estilo de vida sustentável, autossufciente, com
abundância, e um papel relevante de recuperação ambiental. A maioria das
pessoas que se dizem envolvidas com a permacultura apenas falam sobre o
assunto; outras, a praticam em algum grau, mas não se pode dizer que vivam da
permacultura.
Precisamos de mais casos de sucesso, exemplos de vida e sistemas
altamente produtivos, efcientes, resilientes, associados a preservação e
recuperação ambiental, exemplos que possam ser replicados, para que possam
inspirar e mostrar o caminho a novos permacultores e a sociedade em geral. Para
isso é fundamental assumirmos a mentalidade de seriedade, compromisso e
trabalho discutida acima.

“Já é hora da permacultura assumir para si a


responsabilidade da produção de alimentos.”

Temos que encher o campo de pessoas que produzem alimentos e


restauram o ambiente através da permacultura. É inútil e esdrúxulo tentar
convencer os agricultores a produzir alimentos deste ou aquele jeito, com nossas
palavras e argumentos, se nós mesmos não produzimos nada. Tampouco
devemos esperar que os agricultores adotem a permacultura, para que nós
possamos consumir (comprar) alimentos ecológicos! Temos, sim, que arregaçar
as mangas e assumir nós mesmos a produção de alimentos naturais, saudáveis,

336
Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

ecológicos, para nós mesmos e para o mercado, de forma efciente e abundante,


através da permacultura, tornando assim o modelo ecocida, hegemônico na
atualidade, obsoleto. Assim, os demais agricultores naturalmente aderirão à
permacultura, transformando o movimento em uma bola de neve.

“Viver da terra = viver na terra”

Ainda há pouco, argumentei que a permacultura e agricultura orgânica


podem muito bem alimentar o mundo, no que acredito frmemente. Tratei da
questão da produtividade por área; porém, há uma outra questão muito
importante, que não pode ser omitida. É inegável que a agricultura industrial tem
uma produtividade por trabalhador rural, ou seja, por pessoa envolvida
diretamente no trabalho agrívcola, muito maior que a agricultura orgânica, e isso
se deve majoritariamente à mecanização. Como sabemos, a agricultura industrial
depende de um alto grau de mecanização, que de fato expulsa o homem do
campo; em contraste, sistemas agrívcolas naturais e sustentáveis são muito menos
favoráveis à mecanização, exigindo, portanto, a fxação do homem no campo, no
trabalho direto com a terra.
Ou seja, não é uma ilusão acreditar que a permacultura ou agricultura
orgânica podem alimentar o mundo, mas é, sim, uma ilusão acreditar que podem
fazê-lo com praticamente toda a população mundial morando em cidades.
Portanto, para que a humanidade possa alcançar a sustentabilidade através da
permacultura, é indispensável que haja um número sufciente de pessoas vivendo
no campo, trabalhando com a terra, produzindo alimentos e restaurando
ecossistemas. É fundamental que haja uma reversão da crescente tendência à
urbanização, e que passemos a um processo de ruralização, e esse fuxo deve ser
liderado pelos permacultores.

Ganhar visibilidade

Um dos principais obstáculos da permacultura é sua falta de visibilidade,


dentro da sociedade. Conforme já mencionado, a imensa maioria das pessoas
simplesmente nunca ouviu falar da permacultura; portanto, para elas a via da
permacultura simplesmente não existe. De fato, a maioria não está sequer ciente
da grave crise em que estamos metidos, e portanto não tem consciência da
necessidade de mudança. Isso se deve, ao menos em grande parte, ao fato de que
os grandes cívrculos do poder — corporações, governos, mívdia — não têm o
menor interesse em mudar o sistema atual. Essas entidades determinam
largamente o que as pessoas sabem e como elas pensam, já que detêm o controle
da educação formal e meios de comunicação em massa.
Agora, claro que não podemos contar com a ajuda do sistema para mudar o
sistema! Para que a permacultura cumpra sua missão, é fundamental que ela
atinja o maior número de pessoas possívvel, e para isso devemos lançar mão de

337
Parte II – A Alternativa da Permacultura 18. Proposta de Uma Transição Global

todos os meios disponívveis. Neste sentido, merecem destaque as mívdias


alternativas, especialmente a internet — websites, blogs, vívdeos, artigos e redes
sociais, etc., são todas ferramentas válidas e muito úteis na disseminação de
informações sobre a permacultura, seus conceitos, técnicas, projetos em
andamento, etc. Sempre que possívvel, devemos lançar mão também de canais da
mívdia convencional, especialmente rádios, jornais e revistas locais, mais
comumente disponívveis.
Agora, não devemos nunca subestimar o poder da transmissão boca a boca,
ou seja, a inspiração das pessoas ao nosso redor, através do nosso exemplo. Esta
talvez seja a ferramenta mais importante no fortalecimento e disseminação da
permacultura. E para que isso ocorra efcientemente, é essencial que tenhamos
mais e mais casos concretos de aplicação da permacultura às nossas vidas, como
discutido acima.

338
Parte II – A Alternativa da Permacultura 19. Conclusão

19
CONCLUSÃO

Nossa civilização industrial está em pleno boom: população crescendo,


economia crescendo, expectativa de vida crescendo, em praticamente todos os
paívses, todos os cantos do mundo. Todos os dias há mais gente, mais carros,
mais casas, mais aviões, mais navios, mais fábricas, etc. que no dia anterior.
Isso pode levar a pessoa desatenta à conclusão que está tudo bem, que
estamos no caminho certo e não há com que se preocupar. Porém, nada poderia
estar mais longe da verdade, pois o preço para esse boom é o declívnio dramático,
contívnuo, progressivo dos recursos naturais que são vitais não apenas a esse
crescimento, mas também à manutenção da civilização, à vida humana e de fato
a vida complexa em geral na Terra. Essa conta está se avolumando, para um dia
ser paga, se não por nós mesmos, pelos nossos descendentes. A humanidade não
escapará das consequências de seus atos.
A maioria das pessoas simplesmente não sabem, não têm conhecimento ou
consciência deste fato, porque esse declívnio de recursos está acontecendo longe
de suas vistas, ou porque não compreendem a natureza dos recursos naturais, ou
não são capazes de entender adequadamente escalas de tempo, etc. E parece
claro que as massas são mantidas nesse estado de inconsciência e ignorância de
forma proposital, para conveniência do sistema e seus mestres ocultos,
interessados na manutenção do status quo.

339
Parte II – A Alternativa da Permacultura 19. Conclusão

Por outro lado, também os despertos, pessoas que compreendem a


gravidade da situação atual, em sua grande maioria falham em tomar atitudes
concretas para mudar a história, ou pelo menos sua parte nela; talvez por estarem
perdidas e não saberem o que fazer, talvez por não terem a fbra necessária para
fazer o que tem que ser feito, ou provavelmente uma combinação de ambos.
Porém, não creio que seja produtivo tentar apontar culpados para esta
situação. O fato é que a causa real para a encruzilhada em que estamos é apenas
uma: a nossa civilização em si. Agora, como demonizá-la, se foi ela mesma que
nos possibilitou vencer a mortalidade infantil e passar para trás inúmeras
doenças terrívveis, como a varívola e poliomielite? Que permitiu o
desenvolvimento da ciência que nos possibilitou alguma percepção objetiva da
natureza, do universo e nosso lugar nele? Que nos possibilitou viajar e conhecer
o mundo, e viver vidas muito mais confortáveis e seguras que antes, entre outros
incontáveis avanços sem os quais nem sequer conseguimos imaginar como
estariam nossas vidas hoje?
Por essas e outras, certamente não é possívvel ou desejável abandonar a
civilização. Porém, se quisermos ter uma chance de sobreviver e dar aos nossos
descendentes condições para uma vida no mívnimo satisfatória, e preservar a vida
e beleza em nosso planeta, temos que reinventar a nossa civilização. Ou seja,
atitudes pontuais — os bons e velhos “fechar a torneira”, “apagar as lâmpadas”,
“jogar o lixo no lixo” — jamais serão sufcientes; é preciso uma reformulação
total da forma como vemos e nos relacionamos com o mundo natural e a
sociedade, uma mudança de nossos objetivos e estilos de vida, com aplicação em
massa dos conceitos para uma vida saudável e sustentável. Esse grande pacote de
mudanças é justamente o que a permacultura representa, daív sua imensa
importância, e por isso é fundamental que ela seja desenvolvida, propagada,
multiplicada, alcançando o maior número possívvel de pessoas, permitindo que se
engajem nesse movimento, antes que seja tarde demais. Muitos acreditam que já
é tarde demais, ou que um número sufciente de pessoas jamais abraçarão a
permacultura devido a vívcios da própria natureza humana. Eles podem até estar
certos, mas temos que tentar mesmo assim — afnal, o que mais podemos fazer?
Este pequeno livro é apenas um apanhado de informações, ideias e
conceitos que eu venho adquirindo ao longo de anos de estudos intensos,
observação atenta do mundo e experimentação prática. Reitero que não tenho
com ele a pretensão de dar respostas a todas as perguntas. O universo de
conhecimentos cientívfcos e tradicionais, informações e técnicas necessárias ou
úteis a uma vida sustentável é vasto e não cabe em um livro, ou em uma só
pessoa, seja ela quem for. Esse universo está aív para todos nós explorarmos e
aprendermos, ao longo de nossas vidas. A mente atenta e interessada nunca pára
de aprender.
Muitas perguntas permanecem sem resposta, e portanto muito ainda há que

340
Parte II – A Alternativa da Permacultura 19. Conclusão

se desenvolver. Há muitas pessoas pensando realmente em maneiras de sair desta


arapuca que criamos e em que nos metemos, e isso em si já é uma ótima notívcia.
Então, temos três missões: aplicar o que já se sabe, desenvolver o que ainda não
se sabe, e envolver o maior número de pessoas possívvel, levando conhecimento e
inspiração para que também abracem o ideal da sustentabilidade humana. Ainda
estamos apenas no começo desta jornada, desta luta para inventar um modo de
vida ao mesmo tempo abundante e confortável, mas também ecologicamente
saudável e sustentável — uma empreitada inédita na história da humanidade.
Reverter nossa trajetória rumo à nossa própria destruição é um imenso
desafo, mas certamente não pode haver outro desafo que mais valha a pena
abraçarmos. Agora, é preciso fazê-lo com muita coragem; é preciso adotarmos
uma mentalidade de pioneirismo e mesmo de heroívsmo frente a este desafo e as
difculdades com que fatalmente esbarraremos no caminho. Só assim teremos
alguma chance de sucesso, seja no nívvel individual, coletivo, e quem sabe, global.
Dediquei uma dose considerável de esforço e tempo de minha vida para
escrever este livro, o que fz com grande dedicação e amor, sendo que esteve
decidido desde o inívcio que seria posto em domívnio público, para que alcançasse
o maior número de pessoas possívvel, tendo como maior objetivo contribuir,
também dessa forma, para o progresso do movimento da permacultura. Se este
livro conseguir fazer com que ao menos uma única pessoa decida juntar-se a
nós, permacultores, abraçando como missão de vida cuidar de verdade do nosso
lindo planeta, meus esforços terão sido recompensados.

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“Curar a Terra e purificar o espírito humano são o mesmo processo.”
— Masanobu Fukuoka

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