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DO MUNDO
DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA,
FOTOGRAFIA E HISTÓRIA
Mesmo sem
usar palavras, o
misterioso artista
RESENHA: Corpo humano como produtor e receptor de ensinos na visão de um xamã yanomami
GRAMÁTICA: Como a tessitura do texto pode assegurar sua completa compreensão e intenção
Na s L i v r a r i a s !
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EDITORIAL
© IAREMENKO / ISTOCKPHOTO.COM
Fragmentada
Toda vida é fragmentada. Em emoções, lembran- ginário coletivo. Essa é a tese defendida por Abrahão
ças, projetos… Da mesma forma que uma menina em- Costa de Freitas em A Língua em Prosa e Diversos,
preende sua Viagem ao Céu e constrói um universo nossa matéria de capa.
particular que divide memórias e atualidade, como Um debate por si só é todo fragmentado e expõe
vemos nesse Ponto de Encontro de Jussara Saraíba, as contradições do tema escolhido. Imagina, então, se
o mar e suas ondas, as letras e suas múltiplas funções esse assunto for o nosso País, com todas as particulari-
também não são homogêneas, estáticas. É o que ve- dades que carregamos. São as Querelas do Brasil, ana-
mos na entrevista desta edição com o marujo literário lisadas por Luiz Guilherme Sakai. E quem escancarou
Nei Duclós. E isso se dá em toda parte, principalmente que até a poesia apresenta um fragmento daqueles foi
quando “fiamos” um texto, com sua tessitura de colcha o escritor chileno Nicanor Parra, que optou por ser um
de retalhos, o qual temos de organizar, mostra Avram antipoeta e, mesmo assim, deu Gracias a La Vida, pro-
Ascot em Hora de Fiar. va Maria Beatriz.
Para lidarmos com todos esses pedaços – e resis- A modernidade, ela a própria definição de frag-
tirmos àqueles que nos machucam – é preciso muita mentação, provoca os Balbucios na Literatura Con-
coragem e um modo lírico de olhar o mundo, mesmo temporânea, na tentativa de deixá-la mais transpa-
na adversidade. Por isso precisamos ler mais Bertold rente e identificá-la com o lugar social de uma possí-
Brecht, argumenta Maria Beatriz em Resgate. O le- vel representação, detalha Roberto Sarmento Lima.
tramento também é um terreno em que a diversida- E então uma menina, Clarice, chega cheia de ques-
de faz morada e convive com várias possibilidades – a tionamentos e luz, na criação de Roger Mello, e não
literatura infantil é uma delas, ensina Aline Fernanda sai da Cabeceira, de Fernanda De Paula. Enquanto
Sampaio em Lá Vem História… Já Educadores em isso, o corpo transforma-se em A Pele e o Papel, na
Lados Opostos demonstra que a divisão pode virar visão do xamã yanomami Davi Kopenawa, exposta
estilhaços no processo de alfabetização, uns de um por Eduardo Guimarães. Mas, mesmo fragmenta-
lado do método fônico, outros do construtivismo, dos, Márcio Scarpellini Vieira professa que Nenhum
e corre-se o perigo de tudo se transformar em um Professor é uma Ilha, em Ponto de Vista.
grande imbróglio se não soubermos interpretar e co- Enfim, o importante é não permitir que fragmen-
dificar as propostas. tos virem cacos e transformem nossa vida em uma
Mas fragmentar é tudo o que Lygia Fagundes Profissão de Risco, alerta Marcelo Niel em Reticências.
Telles sempre fez com sua prosa. Seus personagens Aproveite esta edição fragmentada, que pulsa com
são latentes, com emoções à flor da pele, demonstra a diversidade de temas e opiniões e respeita todos.
seu Coração Ardente em Perfil. E a língua, tão multi-
facetada, divide-se mais e mais e dialoga com o cine- Boa leitura!
ma, a história e a literatura, para construir nosso ima- Mara Magaña, Editora
40
32. CAPA
LEITURAS DIÁLOGOS
DO MUNDO
DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA, DA LÍNGUA
FOTOGRAFIA E HISTÓRIA
da oralidade
na escrita
Nicanor Parra propõe
pacto desconcertante
Dover uma dura
crítica sobre a
saída do Reino
Unido da União
Europeia (UE).
nos afeta e construirmos nosso
contemporânea com leitor
imaginário coletivo.
RESENHA: Corpo humano como produtor e receptor de ensinos na visão de um xamã yanomami
GRAMÁTICA: Como a tessitura do texto pode assegurar sua completa compreensão e intenção
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20
Viagem ao Céu
V “A língua tem sua
iver no mundo das letras é, talvez mais do que em
qualquer outro ambiente, viver no mundo do “era
uma vez…”. Tudo é história, principalmente em sala história, seus caminhos,
de aula: o pequeno aluno que tem dificuldade de
aprendizagem traz uma história e tanto. O sabe-tudo também.
descaminhos, palavras
Os livros de leitura que o mestre indica abrem janelas para um que ficam, palavras que se
mundo impensável. A língua tem sua história, seus caminhos, despedem, palavras que
descaminhos, palavras que ficam, palavras que se despedem,
palavras que somem sem nos dar adeus. E outras chegam, somem sem nos dar adeus”
empoderadas, ansiosas, empertigadas ou desleixadas. Não
importa, também terão seu espaço no olimpo das narrativas.
Pensei nisso conversando com minha pequena vizinha, Suave, para fazer o diagnóstico do que eu já sabia. Deitei lei-
Jéssica. Ela tem seis anos, diz com orgulho que já sabe ler e, tura corrente, mas achava que b+a ba, b+e be etc. não eram
em seu primeiro dia letivo, me mostrou o caderno que levava propriamente algo para se ler. E perguntei à queima-roupa:
com seu nome escrito, escondido da mãe, que não queria “Tem alguma história de verdade?”. Ela me deu, então, um pe-
que a filha o “estragasse” antes de chegar à escola. “Ela queno livrinho, A Viagem de Dona Ratinha, da Melhoramentos
não sabe”, cochichou, “mas escrevo em tudo quanto é lu- dos bons tempos. Não sei se para realmente analisar o que eu
gar”. E perguntei, curiosa: “O que você escreve?”. “Ora”, me sabia ou para se ver livre de mim e poder dar, enfim, atenção
respondeu, “o que todo mundo que sabe escrever escreve: às outras crianças, essas, sim, efetivamente alunas.
histórias”. E lá foi ela, com seu uniforme luzindo, sua mochila Passei o resto do dia lendo aquele livrinho, que já tinha
de bichinhos e um enorme sorriso no rosto. Quando chegou bastante texto. Vez em quando, a professora botava olhos em
à esquina, virou-se e gritou: “Quando eu chegar, eu conto mim, e eu fingia que não percebia, só para não ter de parar
como foi a história toda”. a leitura. Mas a aula chegou ao fim, tinha de devolver aque-
Jéssica me encheu o coração de memórias. A primeira delas la preciosidade, e fui entregá-lo a ela, que me disse: “Você
diz respeito a assuntos açucarados. Também tinha seis anos, gostou mesmo, não é? Pode levar para casa”. Saí saltitando.
também estava feliz porque, finalmente, poderia frequentar o No outro dia, entreguei-lhe logo na entrada, já sabia de cor a
primário. Como, naquele tempo, ainda não tinha idade para saga da ratinha que empreendia uma longa viagem com seu
entrar no primeiro ano, fui admitida em pleno maio, como uma joelho machucado. Agradeci e confessei: “Sabe que eu tenho
espécie de ouvinte. Não cabia em mim de tanta felicidade, por um livro inteiro, grandão, do Monteiro Lobato, e li ele todinho,
isso peguei meu saco de balas Juquinha e fui distribuir na porta o Viagem ao Céu?”. A professora abriu os olhos de espanto
de casa para a meninada toda. Lembro que minha mãe sentou e, amante do escritor, disse: “Boa viagem nesse nosso céu”.
comigo e explicou tudo tim-tim por tim-tim. Que eu, na verdade, Devo dizer que a Dona Marly conseguiu quebrar régua e com-
não estava no primeiro ano, era só para escutar a professora, passo, mas fez valer, à custa de muitos relatórios (quantas
porque não era de verdade. Eu iria fazer para valer depois. histórias), aquele ano letivo para mim. Acho que ela foi uma
Dei de ombros. E criei uma outra história. Quando a profes- das “culpadas” por minhas viagens literárias e ao mundo da
sora, que se chamava Marly, passou “de lição”, em meu cader- língua. Virei professora e jornalista e vivo de contar histórias.
no de caligrafia, uma linha cheia de “os”, completei a página Uma será a da Jéssica, a qual espero nesse fim de tarde que
como um raio. Ela voltou e colocou um “a”. Quebrei a barreira ora escrevo com ansiedade. Como terá sido o seu “era uma
do tempo. Resolveu, então, me emprestar a cartilha Caminho vez” de hoje?
O marujo
das letras
Um de seus personagens mais famosos,
Jack, um náutico como ele, é assíduo
frequentador das redes sociais. Nei Duclós,
gaúcho de Uruguaiana, navega com destreza
e suavidade nos mares literários e infovias,
assim como em outros também, ou, como ele
prefere, nos pampas em movimento
por Mara Magaña
P
oeta, escritor e jornalista, formado em História pela USP,
a paixão pela escrita o pegou de jeito bem cedo, ainda na
infância. O primeiro poema aconteceu aos 9 anos. É ativo
nas redes sociais, publica e-books e livros impressos inces-
santemente. Também escreve sobre literatura, cinema – outra de suas
paixões –, história, política, esporte e tem se dedicado ultimamente
às memórias. O mais novo rebento, um “romanção”, está para chegar.
Gaúcho de Uruguaiana, hoje mora em Florianópolis. “Sou um homem
que só sabe viver perto da água. Aos 9 anos me levaram para conhe-
cer o mar. Era o pampa, mas em movimento. Fiquei possesso. Entrei
dando soco nas ondas. Foi paixão à primeira vista. Isso em Tramandaí.
Quando voltei dessas férias em Uruguaiana comecei a fazer poesia que
já falava de mar desde a primeira estrofe”. Entre seus 34 livros, o mar
tem sido, muitas vezes, o protagonista, como No Mar, veremos. O sim-
pático protagonista de Jack o Marujo, por vezes lírico – “Um marujo é
feito de partidas. O reencontro no cais é só mais uma forma de solidão”
–, por vezes cortante – “Jack o Marujo levou um grupo de consultores de
autoajuda para um passeio em alto-mar. Voltou só, assobiando. Grupo?
Que grupo?” –, que o diga!
PABLO RUIZ 1 CPLPLIT: Você é um autor múltiplo, com primeiro foi tradicional, como PICASSO1. Com o
PICASSO variados interesses. E, como diz o es- fundamento consolidado, você tem recursos
(1881-1973) critor Ernani Terra, parece que trabalha para acompanhar ou transcender. Vejo muito a
Foi um pintor
espanhol, escultor,
como um mouro. De onde vem essa agili- ansiedade de ser vanguarda sem ter a referên-
ceramista, cenógrafo, dade mental? cia. Cai no vazio. Mas é claro que a gramática
poeta e dramaturgo NEI DUCLÓS: Vocação e treinamento. E a boa muda, evolui, não é estática. E tem aquela má-
que passou a maior formação escolar. Comecei a escrever poesia e xima do Oswald (de Andrade), “A CONTRIBUIÇÃO
parte da vida na
França. É conhecido ficção na infância e adolescência. Depois vie- MILIONÁRIA DE TODOS OS ERROS”2.
como o cofundador ram as barras do jornalismo. Mais tarde cur-
do Cubismo – ao lado sei História na USP. Isso tudo me deu muito Que é extraordinária… Livro só é consi-
de Georges Braque.
Entre as suas obras preparo. Escrevo diariamente há décadas. Sou derado livro, por boa parcela dos leito-
mais famosas estão autor onívoro. Faço todo gênero de literatura res e escritores, o de papel… Aquela his-
os quadros cubistas mais reportagens e ensaios. tória de sentir o cheiro do livro novo etc.
As Meninas D’Avignon
(1907) e Guernica
Os e-books ainda são considerados “ci-
(1937), uma pintura Este é um ponto crucial para a nova dadãos de segunda classe” por boa parte
do bombardeio geração de autores: formação escolar. da intelectualidade. Mas vem crescendo,
alemão de Guernica Que é o nó do nosso futuro. Com as mu- as editoras começam a apostar suas
durante a Guerra
Civil Espanhola. O danças que já estavam em pauta, refor- fichas nesse formato. Com a crise que se
pintor de Málaga mulação total do ensino médio e com as instituiu no mercado livreiro, você acre-
demonstrava talento atuais lides do novo governo, como vê o dita que o e-book vai deslanchar?
artístico desde
jovem, pintando de cenário hoje e em um futuro próximo? ND: Acho que tem espaço para tudo. O impres-
forma realista por ND: Há tempos a educação vai mal. Minha so vai continuar, e o e-book, crescer. Eu vejo o
toda a sua infância geração teve sorte, estudei em bons colégios e-book como um exercício de edição. O impres-
e adolescência. Na
públicos e particulares e desde cedo traba- so é definitivo.
primeira década
do século XX, o lhamos com disciplina e liberdade. Não havia
seu estilo mudou mais palmatória, mas havia rigor nos estudos, Quando você parte do e-book para o im-
graças aos seus com muita cobrança. A escola precisa alfabeti- presso, muda muita coisa em sua escrita?
experimentos com
diferentes teorias, zar e ensinar o principal instrumento, que é a ND: Não. O texto ou poema ficam idênticos.
técnicas e ideias. língua. Com boa formação na linguagem, tudo
fica acessível. É a base. Sua escrita, como já disse, é múltipla.
Tem uma predileção por algum gênero?
Você é um dos poucos autores que, indivi- ND: Sou poeta desde os 9 anos. É meu gênero
dualmente, abraçaram as novas tecnolo- favorito. Aos 13 escrevi uma espécie de romance
gias. Tem um olhar bastante diferenciado em cadernos de espiral. Depois parti para a crô-
dos escritores com relação aos e-books, nica, o conto e o ensaio. Além da reportagem.
por exemplo. Sua linguagem mostra-se Tenho gostado de fazer romance. Lancei um
evolutiva… A gramática serve como base, este ano que passou pela Amazon, A outra luz
mas não como recurso linguístico. Isso do subúrbio. Mas também lancei quatro e-books
deveria estar presente no dia a dia do em 2018. O jornalismo, principalmente o de re-
ensino da Língua Portuguesa? vista, foi um excelente treinamento para fazer
ND: Meus filhos me ensinaram a lidar com no- ficção. O chamado texto redondinho de grande
vas tecnologias. Tenho um blog desde 2002, o sedução. E a poesia é fundada em alguns poe-
outubro.blogspot.com, com mais de cinco mil tas perfeitos, como Lorca, Cabral, Drummond…
posts. E faço e-books porque tem a agilidade Trabalhei muito em literatura depois que mudei
para acompanhar minha produção diária e o para Florianópolis em 2013. Já tinha morado aqui
impresso é caro. A gramática é fundamental, antes, mas desta vez foi para valer. E mergulhei
é o parâmetro. Você só transgride em relação no trabalho. Há muito tempo queria me dedicar
a algo consolidado. O pintor de vanguarda a isso. O blog incentivou muito a crônica, mas
também publiquei crônicas em jornal impresso e Todos os gêneros cumprem essa função? 2 “A CONTRIBUIÇÃO
mais tarde em e-books. Em tudo o que escrevo há ND: Principalmente a poesia que, para mim, é MILIONÁRIA
DE TODOS OS
o poder da poesia. Para que haja boa literatura é uma linguagem de poder, que enfrenta as lin- ERROS”
preciso que exista um ambiente favorável, múlti- guagens do poder, como a corporativa, a religio- A frase, que se tornou
plo, coletivo, com muita gente trabalhando. Dessa sa, a política etc. A literatura assim entra no jogo célebre, de Oswald
vivência e experiência o tempo e os leitores sele- com sua força. O poema desmascara o discurso. de Andrade aparece
no poema Falação,
cionam o que pode surgir de mais significativo Tenho um e-book de ensaios literários (e outro
que abre o livro Pau-
de cinema) o qual coloca em lados opostos o dis- Brasil e diz: “a língua
Há uma contradição no mercado: o País é curso, que é a linguagem em ruínas e é o que sem arcaísmos. Sem
apontado como iletrado, as editoras quei- vemos todos os dias. E, do outro, a linguagem erudição. Natural
e neológica. A
xam-se da queda das vendas, livrarias literária, com poder de encantamento e síntese. contribuição milionária
fecham, mas, me parece, nunca se publi- de todos os erros”.
cou tanto como agora… Coletivos, princi- Falando em concurso, ainda é uma porta
3 GEOVANI
palmente femininos, pequenas editoras, de entrada para novos escritores? MARTINS
feiras literárias explodem aqui e ali. É um ND: Acho concurso tudo assim meio… Nem É um escritor
bom momento para a literatura? vou falar. brasileiro. Nasceu em
ND: Hoje existem grupos de poetas em todos Bangu, na zona oeste
da cidade. Estudou
os estados do Brasil. Concursos literários, fei- Você é extremamente lírico, mas tam- apenas até a oitava
ras de livros, lançamentos etc. Todos de mãos bém tem uma escrita cortante… Esse série, trabalhando em
à obra. A literatura veio para ficar entre nós. amálgama, que sempre foi a base da boa seguida como homem-
Todo leitor é um autor e vice-versa. Acho que literatura, é o que falta muitas vezes aos -placa, atendente de
lanchonete, entre
a literatura brasileira hoje, múltipla, extensa, novos escritores. Há alguns nomes que outros. Morou nas
com muitos talentos, é uma compensação para vêm surgindo aqui e ali, como GEOVANI favelas da Rocinha
a pobreza geral da política e da economia. É MARTINS³, FERRÉZ⁴ e outros. Você tem e Barreira do Vasco,
antes de ir para o
uma forma de peitar a mediocridade ambiente. acompanhado esses jovens? Vidigal.
FERRÉZ 4 ND: Eu fiz resenhas, ensaios e prefácios para podem vir a ser consideradas, agora,
Nome artístico de muitos escritores contemporâneos, desde a como ferramentas de doutrinação…
Reginaldo Ferreira da época em que eu publicava na grande impren- Como enxerga isso?
Silva. É romancista, sa. Escrevi sobre muitos autores. ND: Doutrinação sempre existiu, em maior ou
contista, poeta e
empreendedor. Seu menor escala. Tínhamos pressões pró-patriotis-
livro mais famoso Algum o tocou para valer? mo etc. Hoje há outros vetores interferindo. Mas
é Capão Pecado e ND: Tem muita gente e muitos eu desconheço isso é coadjuvante. O básico é a alfabetização e o
compõe a chamada
literatura marginal o trabalho. Gosto de Ricardo Silvestrin, Juliana treinamento da linguagem, o exercício em busca
por ser desenvolvida Meira, Celso Gutfriend, Marga Cendón, Marcia do domínio da língua. Aí qualquer doutrinação
na periferia das Conti Rubens Jardim, Nydia Bonneti, Elke entra no processo seletivo do aluno prepara-
grandes cidades
Lubitz, Marceli Becker, Paulo Fabris… E muitos do. Ninguém engole as coisas como vieram por
e tratar de temas
relacionados a este outros. Tem também o Carlos Cramez, o Eduardo muito tempo. Sempre há uma elaboração, um
universo. San Martin, o Luiz de Miranda, o Comar Duarte, descarte… O aluno é proativo, não é passivo. Ele
a Vera Ione, a Valéria Surreaux. Tanta gente boa. interage, pode ser mais tarde, mas reage.
VOZES D'ÁFRICA 5 Muita gente mesmo… Esses autores, Uma peça com seus poemas é grata notí-
E NAVIO
NEGREIRO aliás, vêm fazendo furor entre os jovens. cia… Pode adiantar alguma coisa?
São poemas do Você diz que a poesia é uma linguagem ND: Me pediram o mais absoluto segredo (ri-
poeta Castro Alves. de poder… Mas como fazer essa lingua- sos). Tenho que obedecer. Mas digo que é um
Vozes d’África, gem chegar, de fato, ao povo, como in- sonho que pode acontecer.
poema de estilo
épico, pertence ao cluir a poesia na educação?
livro Escravos e põe ND: A poesia (e a literatura em geral) deve ser O mar é um de seus mais caros persona-
em cena toda a dor um dos fundamentos da educação. É por meio gens. Qual o motivo dessa paixão?
de um continente.
da literatura que apreendemos o mundo. Nos ND: Eu fui criado no pampa. Aos 9 anos me leva-
Já Navio Negreiro
é um dos poemas livros didáticos antigos havia muita poesia. ram para conhecer o mar. Era o pampa, mas em
mais conhecidos da Tomei contato com Castro Alves, Olavo Bilac, movimento. Fiquei possesso. Entrei no mar dan-
literatura brasileira. Camões etc. Ao chegar à universidade me co- do soco nas ondas. Foi paixão à primeira vista.
O poema descreve
com imagens e locaram Fernando Pessoa, Shakespeare, Lorca, Isso em Tramandaí. Quando voltei dessas férias
expressões terríveis Maiakóvski. O aluno gosta de fazer poesia, há em Uruguaiana comecei a fazer poesia que já fa-
a situação dos muito exercício nesse sentido, de professores in- lava de mar desde a primeira estrofe. Uruguaiana
africanos arrancados
de suas terras, centivando a meninada a escrever, fazendo ofici- são águas internacionais. Havia fuzileiros navais
separados de suas na com eles, trazendo autores para conversar. A lá. Meu pai era pescador de carreirinha e tive um
famílias e tratados literatura precisa estar impregnada na formação tio que vivia na beira do rio. As águas fazem parte
como animais nos
escolar. Não é apenas uma janela, é um alicerce, de mim. Sou fluvial e marítimo. Moro na praia. O
navios negreiros que
os traziam para uma base, um fundamento da boa formação es- mar é sempre maior e o luar lhe faz a corte, como
ser propriedade de colar. No meu colégio, no antigo ginásio, havia digo num poema. E tem o Jack o Marujo, que é
senhores e trabalhar grêmios literários com gente declamando VOZES um personagem que criei para meus filhos e des-
sob as ordens dos
feitores. D’AFRICA, NAVIO NEGREIRO5 e tantos outros grandes lanchou nas redes sociais. Jack é o cara de frase
poemas… Depois a poesia entrou forte no teatro, cortante e contundente, o de fala direta. Faz muito
como no ESPETÁCULO LIBERDADE, LIBERDADE6. Eu sucesso. Tenho um livro intitulado No Mar, vere-
sonho com uma peça com meus poemas, tenho mos, sobre a história do pescador de barco a remo
recebido notícias de que isso pode acontecer, que diz enfrentar o mar um dia…
mas por enquanto está nos bastidores.
A literatura gaúcha tem representantes
Esses autores citados são hoje, em sua extraordinários, mas um pouco esque-
maioria, imensamente desconhecidos cidos. O próprio Erico, tantos outros…
pelos jovens, salvo ação isolada de pro- Mario Quintana, José Simões de Lopes
fessores raros que teimam em ser edu- Neto, Moacyr Scliar… E não se pode colo-
cadores. Mas poesia, literatura, enfim, car o peso nas costas da regionalidade,
P
roduzir textos, orais ou escritos, os elementos do texto, a coesão textual está 1 LUIZ ANTONIO
não é uma tarefa fácil. Isso porque, intrinsecamente ligada à coerência. MARCUSCHI
como diz MARCUSCHI1, o texto é uma Para BEAUGRANDE2 e DRESSLER3, a coesão ma- Um dos mais
importantes
“sequência de atos de linguagem nifesta-se no nível MICROTEXTUAL4 e tem como linguistas brasileiros,
(falados e escritos)”, e “não uma sequência de referência os componentes do universo tex- foi professor do
frases de algum modo coesa”. tual, ou seja, as palavras que ouvimos e vemos Departamento
de Linguística da
Para ele, a análise de qualquer texto, em ligam-se entre si obedecendo a uma determi-
Universidade Federal
qualquer nível, deve levar em conta tanto as nada sequência. de Pernambuco,
“condições gerais dos indivíduos como os con- A coerência, por sua vez, manifesta-se em falecido em 2016.
textos institucionais de produção e recepção”, grande parte na MACROTEXTUALIDADE5 e refere-se
uma vez que “estes são responsáveis pelos aos modos como os componentes do universo
progressos de formação de sentido compro- textual unem-se em uma configuração acessí- 2 ROBERT DE
metidos com processos sociais e configura- vel e relevante. BEAUGRANDE
Foi um linguista
ções ideológicas”. Essas definições, no entanto, estão longe de
estadunidense de
Em outras palavras, o sentido do texto serem definitivas e apenas atestam o que diz origem francesa,
é socialmente construído e sua eficiência Marcuschi, quando afirma que “os termos coesão falecido em 2008.
como ato de fala ou de escrita depende de e coerência estão longe de uma definição clara”. Beaugrande foi
um dos principais
uma série de fatores textuais e extratextu- Por isso, o que pretendemos aqui não é ela- estudiosos da
ais, que envolvem os mecanismos de coesão borar conceitos definitivos sobre o que sejam linguística textual
e coerência presentes na construção dos coesão e coerência, mas analisá-las como me- e da análise
do discurso na
enunciados da língua. canismos de estruturação e compreensão de atualidade.
Elaborada a partir de uma série de proces- textos capazes de revelar nas entrelinhas de
sos linguísticos que têm como principal fun- um dado texto o seu discurso, ou seja, a visão
ção estabelecer relações significativas entre de mundo expressa pelo enunciador.
RELAÇÕES COESIVAS
© DIVULGAÇÃO/ SITE FOLIAS TEATRAIS
Crítico ferrenho da viúvas à época em que DR. LUPICÍNIO — Mas
sociedade de seu tem- foi escrita e encenada seu marido não morreu,
po, o escritor e teatró- a peça em questão. minha senhora?
logo Nelson Rodrigues A ideia-chave do texto IVONETE — Morreu. E
com apenas uma pode ser sintetizada na por isso mesmo. Ou o
conjunção, “porém”, fala de Ivonete, a viú- senhor me acha com
era capaz não apenas va da peça; ainda no cara de trair um marido um marido que não
de sugerir o conteúdo primeiro ato expõe sua morto? Um vivo não morreu. O senhor
de uma peça teatral firmeza de caráter: significa nada. O senhor, está vivo. Já imagi- O diálogo entre
como também sinteti- por exemplo, é casado? nou como o senhor Ivonete e Lupicínio
zar a visão de mundo IVONETE — Uma vir- DR. LUPICÍNIO — deve ser chato em estabelece uma liga-
de uma época. gem qualquer pode Perfeitamente. casa? No quarto, no ção com o que é su-
Aliando ao conheci- sentar e fazer outros IVONETE — Vive bem banheiro? E se a sua gerido no título e dá
mento linguístico nos- papéis. Não uma com sua mulher? Vai senhora, achando que unidade de sentido ao
so conhecimento de viúva. Eu tenho um dizer que vive bem. o senhor é realmente texto e àquilo que se
mundo, é fácil inferir a compromisso, afinal Mentira. Vive mal. Não chato, resolve traí-lo? sugere a respeito da
visão que se tem das de contas. se pode viver com Pôr-lhe uns chifres? conduta das viúvas.
o mundo não é tão grande que ao mesmo tempo em que concorda também Amar se aprende amando. 22ed,
Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 19.
não caiba naquilo que há de mais pergunta, discorda ou refuta aquilo que foi dito. ANTUNES, Irandé. Lutar com
nosso. Em outras palavras, ape- Os mecanismos sintáticos de coordenação, palavras: coesão e coerência.
São Paulo: Parábola Editorial,
sar de tudo, ainda há espaço para subordinação e ordenação de vocábulos, mui- 2005.
o que é nosso no mundo. tas vezes, não são suficientes para estabelecer BAKHTIN, M. Estética da criação
verbal. São Paulo: Martins
Uma visão filosófica que mostra uma relação dialógica como o interlocutor. Fontes, 1979.
para além do aparente tema do As manifestações linguísticas articuladas BEAUGRANDE R. de & DRESSLER,
“amor” presente no texto, uma pelo texto veiculam por meio da linguagem va-
M. U. 1981. Introduction to Text
Linguistics London Longman.
preocupação existencialista típi-
lores, princípios e conceitos que só ganham sen- DIJK, Teun A. Van. Cognição,
ca da poesia drummoniana. discurso e interação. São Paulo:
tidos em uma perspectiva dialógica que valori- Contexto. 1992.
ze igualmente outros discursos e as respectivas FÁVERO. Leonor Lopes. Coesão
e coerência textuais. São Paulo:
situações sociais em que foram produzidos. Ática. 19. Série Princípios 2009.
Como vimos nos exemplos aqui citados, HOLANDA, Chico Buarque.
cimento textual, adquiridos nos atos de co- os elementos de coesão, além de explicitar os Carioca. Rio de Janeiro. Biscoito
Fino, 2006. Fragmento.
municação, um conhecimento de mundo tipos de relações que se estabelecem entre os MARCUSCHI, Luiz Antonio.
amplo e variado. elementos linguísticos que compõem o texto, 1988. Coesão e coerência na
conversação. Recife, UFPE.
As práticas interativas às quais somos também contribuem para a concepção do tex- Mimeo.
expostos diariamente em nossos atos de to como um tecido composto pelos fios dialógi-
fala e escrita compõem uma unidade lin- co/ideológico da linguagem enquanto proces- SOBRE O AUTOR
Avram Ascot é heterônimo de
guística que se organiza a partir de regras so de enunciação. Abrahão Costa de Freitas.
Escrita que
incomoda
Se os tubarões fossem homens, fábula escrita na
década de 1950, traz de volta à baila a literatura
crítica de um dos maiores escritores alemães
E
m tempos obscuros, sempre nos lembramos de tempo a outras escritas, como poesia, prosa, crítica literária e
Bertold Brecht. Mais conhecido aqui por sua drama- intervenção política, roteiros para o cinema, uma vasta corres-
turgia em obras que levam sua assinatura como A pondência que trata de tudo isso, além da música, trabalhada
Ópera dos Três Vinténs, Mãe Coragem e Seus Filhos, em parceria com alguns dos mais importantes compositores de
Os fuzis da Senhora Carrar e tantas outras, e por suas posições sua época, entre eles Kurt Weil e Paul Dessau, ambos composi-
antinazistas, ele se mostra lúdico e sempre surpreendente em tores alemães de grande sucesso.
Se os tubarões fossem homens, na belíssima edição da Olho Em 1924, acabou transferindo-se de Munique para Berlim,
de Vidro. Com excelente tradução de Cristine Rörig e ilustra- onde teve início sua grande aventura artística. Na cena berli-
ções cinematográficas do premiado Nelson Cruz, que arre- nense, logo alcançou sucesso de público sem, contudo, fazer
banhou o Jabuti na categoria no ano passado, o livro traz um concessões ao gosto médio. Envolveu-se também com o ci-
texto repleto de metáforas, criadas no fio da navalha, mas com nema – meio que ele via com simpatia –, admirava o cineasta
sensibilidade e doçura. Que fazem pensar e, por isso, incomo- Sergei Eisenstein e o ator e dramaturgo Charles Chaplin.
dam, como em toda obra do autor.
Eugen Berthold Friedrich Brecht nasceu a 10 de fevereiro de RETRATO DA SOCIEDADE
1898, em Augsburgo, na região da Bavária, do então Império Se os tubarões fossem homens é uma fábula, publicada pela
Alemão. Com formação bíblica – era filho de Berthold Brecht, primeira vez em 1956, quando o autor já se dedicava a escrever
diretor de uma fábrica de papel, católico, exigente e autoritário, uma enorme variedade de textos curtos, e faz parte do livro
e de Sophie Brezing, protestante, que fez seu filho ser batizado Histórias do Sr. Keuner, que muitos críticos acreditam ser o alter
nesta igreja –, estudou Medicina e trabalhou como enfermeiro ego de Brecht. A conversa entre o senhor K e a filha da dona da
em um hospital em Munique, durante a Primeira Guerra, além hospedaria revela, desde o início, a profunda ironia e sarcas-
de seu ativismo na tentativa de revolução alemã. mo com que ele reveste seus textos. “Se os tubarões fossem
Mas foi a arte o espaço escolhido por Brecht para se expres- homens, será que eles seriam mais gentis com os peixinhos?”,
sar. Artista revolucionário em todos os sentidos, teve enorme pergunta a criança, que obtém como resposta: “Claro que sim…
influência, sobretudo no teatro moderno, como autor, diretor, Se os tubarões fossem homens, mandariam construir para os
encenador e teórico. Profícuo, ainda dedicou boa parte do seu peixinhos enormes gaiolas no mar, que seriam abastecidas com
V
ivemos hoje em uma época de
grandes progressos tecnológicos
e modernização, mas também nos
deparamos com uma grande “desu-
manização” das pessoas, o que reflete na falta
de valores. A literatura, como arte da palavra,
deve estar presente na vida cotidiana do ho-
mem, propiciando a organização das emoções
e a reflexão sobre as manifestações ficcionais
que expressam os valores, a cultura e a identi-
dade do contexto a que pertence.
A literatura infantil, sobretudo a origina-
da da tradição oral, tem grande contribuição
no processo de alfabetização e letramento de
crianças no que se refere ao aprendizado das
práticas de leitura e escrita. Ao fornecer ao
leitor não só informações de caráter utilitário,
mas valores simbólicos e morais, a literatura
infantil promove a autonomia e a integração
com a sociedade.
CHRISTIAN 3
nar o próprio nome e ler fantasia fazem cação crítica, que faça o
POSLANIEC
uma frase. Estas últimas
definições serviram, por
parte do processo aluno pensar.
É a partir do contato
Escritor francês
especializado em
muito tempo, como base
para qualificar um in-
educativo” com as histórias infantis
que a criança inicia seu
literatura infantil
e juvenil. Também divíduo como alfabeti- processo de letramento.
é pesquisador do zado nas pesquisas científicas sobre grau de Para POSLANIEC3 & HOUYEL4, a formação do leitor
Instituto Nacional
de Pesquisas escolaridade no Brasil. na infância não pode prescindir de determina-
Educacionais Sabemos que inúmeros problemas têm das competências ligadas à compreensão do
(INRP), na França. contribuído para que a escola atual não este- texto e, consequentemente, à satisfação que
ja conseguindo vencer o desafio de promover este pode proporcionar à criança.
o letramento da parcela da população que Essas competências provêm de duas fon-
consegue chegar a ela. Entre os vários fatores tes: aquelas que as crianças já trazem de casa
que colaboram para essa fragilidade há uma antes da alfabetização e aquelas que ela pode
incompreensão do significado do ato de ler, re- adquirir na escola ou em atividades de leitura
duzido à tarefa de simples reconhecimento de em geral (sessões livres em bibliotecas ou em
um único sentido para o texto. centros de cultura, por exemplo).
BETTELHEIM2 aponta o encontro do signifi- Para os pequenos leitores (de zero a dois
cado da vida e da convivência em sociedade anos de idade aproximadamente), o que pode ser
como o principal benefício que pode ser obti- construída é uma relação com o objeto livro, no
Até a transição do século XVII para Emilia Ferreiro. Ela e seus colabo-
o XVIII, o significado e o papel radores alteraram profundamente
social da infância não existiam. As a concepção de alfabetização, que
crianças eram vistas como adultas passou a ser vista como a constru-
em miniatura e, consequentemen- ção da representação da língua es-
te, os hábitos de leitura eram os crita pela criança, cujo início ocorre
mesmos que os de seus pais ou antes de ingressar na escola, desde
cuidadores, assim também como as que esteja exposta a manifestações
tarefas que os menos favorecidos de leitura e escrita.
cumpriam, explicando, por um lado, No Brasil, só na segunda metade
a alta taxa de mortalidade infantil. dessa década que, no âmbito aca-
Apenas com a ascensão da bur- dêmico, encontram-se as primeiras
guesia e reestruturação familiar, a formulações da palavra letramento
criança começou a ser reconhecida para designar algo que ultrapassa o
como indivíduo diferente do adul- processo de alfabetização. Mais do
to, com atribuições diferentes. No que ler e escrever, é preciso saber
século XVIII, a literatura infantil responder às exigências de leitura
mostrou-se importante no âmbito e escrita que a sociedade nos im-
escolar e na necessidade de uma põe cotidianamente.
mudança na mentalidade sociocog- Segundo Magda Soares, autora
nitiva que a criança possuía. A es- de Letramento: Um Tema em Três
cola foi um dos principais agentes Gêneros, o surgimento do termo
para que a mudança na literatura representa uma mudança histórica
ocorresse. nas práticas sociais, sendo que
Por aqui, a educação infantil andou essas novas demandas de uso da
a passos bem lentos. A mudança do leitura e da escrita exigiram uma
conceito de alfabetização ocorreu palavra para designá-la.
somente com os ventos da abertu- Contudo, o letramento é conside-
ra democrática no País, nos anos rado um fenômeno multifacetado
1980. Passou-se a perceber que era e, por cobrir uma vasta gama de
preciso ir além do processo de codi- conhecimentos, habilidades, capa-
ficação e decodificação. Daí para o cidades, valores, usos e funções
conceito de letramento foi um pas- sociais, seu conceito envolve suti-
so. Uma das grandes incentivadoras, lezas e complexidades difíceis de
através da perspectiva construti- serem contempladas em uma única
vista, foi a psicolinguista argentina definição.
CHRISTINE 4 sentido de torná-lo próximo das crianças, tanto o modo como o adulto relaciona-se com o ob-
HOUYEL quanto um brinquedo, por exemplo. A impor- jeto livro (como segura, como manuseia, como
É consultora tância que o livro tem em nossa cultura só será observa) são passos importantes a serem cons-
educacional e compreendida pela criança muito mais tarde, se truídos neste período.
responsável pela
leitura da academia o adulto for um contador de histórias competen- A participação da criança nessas práticas
de Sarthe desde te (dando vida às histórias e personagens) e cati- de leitura permite que ela construa o seu pró-
1989. Foi também vante (compartilhando suas emoções). prio modelo, vivencie esta experiência e a per-
responsável pela
missão acadêmica De acordo com GLÁDIS KAERCHER5, este é um cepção de que cada um encontra o seu jeito, o
“Domínio da ponto crucial para formar crianças que gos- modo que mais lhe agrada (para uns, ler deita-
língua” e delegada tem de ler e vejam na leitura e na literatura do é um horror; para outros, maravilhoso).
departamental do
uma possibilidade de divertimento e aprendi- Em torno dos três anos, por exemplo, os
Grupo Permanente
de Luta contra o zagens. Ela defende a ideia de que precisamos contos de fadas passam a despertar o interesse
Analfabetismo. É ter, nós adultos, uma relação especial com a infantil: histórias que auxiliam a criança a or-
responsável pela literatura e a leitura: precisamos gostar de ler, ganizar as suas experiências de vida, lidar com
seção “Literatura
Juvenil” da revista ler com alegria, por diversão; brigando com o receios e alegrias, com conquistas e perdas,
OCCE Animation. texto, discordando, desejando mudar o final da enfim, com sentimentos contraditórios. Além
história, enfim, costurando cada leitura, como disso, os contos de fadas, com seus seres má-
GLÁDIS ELISE 5 um retalho colorido, à grande colcha de reta- gicos e seus finais exemplares (em que o mal
PEREIRA DA lhos – colorida, significativa – que é a nossa sempre é punido) são histórias que possibili-
SILVA KAERCHER história de leitura. tam às crianças de qualquer contexto – social,
Mestra e doutora econômico, cultural, étnico, racial – a vivência
em Educação, atua
principalmente
A IMPORTÂNCIA DOS CONTOS DE FADAS de uma experiência sem precedentes.
nos seguintes À medida que vão crescendo e tornando- Vale salientar, ainda, que os contos de fadas
temas: educação -se falantes plenos da língua portuguesa (do- auxiliam as crianças no processo de constru-
infantil, literatura minando as regras de sintaxe e ampliando o ção de sua identidade e no desenvolvimento
infantil, educação
antirracista, infância, vocabulário), os pequenos começam a se in- de suas habilidades sociais, culturais e educa-
texto e identidade e teressar mais pela escrita. Nesse momento, as tivas. É o que afirma Beelheim na obra A psi-
diferença. histórias (os textos) passam a ganhar destaque canálise dos contos de fadas:
e, com elas, as práticas de leitura tendem a ter
um sentido especial. “… os contos de fadas têm um valor inigua-
Familiarizá-los com a necessidade de se lável, conquanto oferecem novas dimen-
acomodar confortavelmente para ouvir, de fa- sões à imaginação da criança que ela não
zer o menor barulho possível para que todos poderia descobrir verdadeiramente por
possam acompanhar a narrativa, de visualizar si só. Ajuda mais importante: a forma e
a estrutura dos contos de fadas sugerem
imagens à criança com as quais ela pode
estruturar seus devaneios e com eles dar
“A participação da criança melhor direção à sua vida.”
nas práticas de leitura Sabemos que o texto literário narrativo ofe-
permite que ela construa rece ao leitor a possibilidade de “experimentar
o seu próprio modelo, uma vivência simbólica” por meio da imaginação
suscitada pelo texto escrito e/ou pelas imagens.
vivencie esta experiência e No entanto, nenhuma boa narrativa de fic-
a percepção de que cada um ção explicita tudo. Tanto no texto escrito como
em narrativas por imagens existem “brancos”
encontra o seu jeito…” que o leitor deve completar. A articulação en-
tre o explícito e o não explícito, nas boas narra-
tivas, é construída pelo autor de modo a deixar andar pela selva notando as pistas e sinais 6 ANTONIO CANDIDO
pistas ao leitor para que ele possa preencher que lhes permitirão sobreviver, aprender DE MELLO E SOUZA
esses “brancos”. É o que afirma a professora de a ler literatura dá oportunidade de se
(1918-2017)
Foi um sociólogo,
Didática da língua e escritora Teresa Colomer: sensibilizar com os indícios da linguagem,
crítico literário e
de converter-se em alguém que não perma- professor universitário
“A literatura, precisamente, é um dos nece à mercê do discurso alheio, alguém brasileiro. Estudioso
instrumentos humanos que ensina ‘a se capaz de analisar e julgar […]” da literatura brasileira
e estrangeira, é autor
perceber’ que há mais do que o que se diz de uma obra crítica
explicitamente. Qualquer texto tem vazios De fato, a literatura tem o poder de alargar extensa, respeitada nas
e zonas de sombra, mas no texto literário as possibilidades de leitura, conduzir o leitor principais universidades
do Brasil.
a elipse e a confusão foram organizadas pelos caminhos das entrelinhas, levá-lo a per-
deliberadamente. Como quem aprende a ceber o não dito. Segundo ANTONIO CANDIDO6,
PIERRE BAYARD 7 não há homem ou sociedade que possa viver riências que envolvam o grupo, entre outras,
Autor francês, sem literatura e não há possibilidade de que estimulam as crianças a sentirem-se também
professor uma pessoa possa “[…] passar vinte e quatro produtoras de histórias, de registros que po-
de literatura horas sem mergulhar no universo da ficção e dem ser passados aos demais, contados, reto-
psicanalista. O mais
recente livro de da poesia […]”. mados, ilustrados.
Bayard, Comment Nesse sentido, a escritora e crítica literária Daí a grande importância de o professor ter
parler des livres que Nelly Novaes Coelho enfatiza a importância da uma formação literária básica para saber ana-
n’a pas lus?, é um
literatura infantil como instrumento para a for- lisar os livros infantis, selecionar o que pode
best-seller na França,
aqui publicado pela mação de uma nova mentalidade, objetivando “a interessar às crianças em dado momento e
Objetiva com o título educação integral da criança, propiciando-lhe a decidir sobre os elementos literários que sejam
Como falar dos livros educação humanística e ajudando-a na forma- úteis para ampliar o conhecimento espontâ-
que não lemos?.
ção de seu próprio estilo”. neo que a criança já traz consigo.
Com isso, caberá à escola ampliar as com- De acordo com BAYARD7, a escola, a partir
petências que a criança possui antes da alfabe- de uma determinada série, passa a sacrificar o
tização, introduzindo-a no domínio de alguns potencial leitor do aluno com a dita obrigação
aspectos literários que já estão presentes em de ler. Ao avançar seus estudos, o educando
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS narrativas de livros infantis e dos quais o mais sente-se obrigado a ler textos que, comumente,
BAYARD, Pierre. Como falar dos
livros que não lemos?. Tradução
natural é a vivência de uma história. não possui um aparato imaginário e intelec-
Rejane Janowitzer, Rio de tual preparados para sua boa compreensão.
Janeiro: Objetiva, 2007.
ENTRAM EM CENA Tal prática vem de encontro ao que se es-
OS PEQUENOS ESCRITORES
BETTELHEIM, Bruno. A
psicanálise dos contos de fadas. pera da promoção do aluno leitor, uma vez que
São Paulo: Editora Paz e Terra,
1980, p. 16. Geralmente, em trabalhos com a leitura e minimiza suas preferências literárias, consti-
CANDIDO, A. O direito à a elaboração de textos narrativos ou poéticos, tuídas desde o primeiro contato com a literatu-
literatura. In:_______.Vários
escritos. São Paulo: Duas
costuma-se solicitar dos alunos que produzam ra até então. Com isso, o potencial criativo do
Cidades, 1995, p. 242. textos espontâneos, como se eles dominassem indivíduo, que até aquele momento vinha em
COELHO, Nelly Novaes.
Panorama histórico da
instintivamente todos os elementos básicos uma crescente expansão graças ao “alimento”
literatura infantil/juvenil: das na construção de narrativas ou de poemas. que lhe é oferecido através da leitura das mais
origens indoeuropeias ao Brasil
contemporâneo. São Paulo: Esta é uma ideia muito corrente na escola, a variadas literaturas existentes, tende a estacio-
Ática, 1991, p. 5. de acreditar que a criatividade das crianças já nar, justamente no momento em que este mais
COLOMER, T. Andar entre livros:
a leitura literária na escola. São
é suficiente para elaborar, criar suas histórias necessitará de suas capacidades criativas não
Paulo: Global, 2007, p. 70. e pequenos poemas. Mas a aquisição dessas só no ambiente escolar, mas também nas de-
KAERCHER, Gládis E. E por falar
em Literatura… In: Educação
competências passa de início pela leitura ou mais áreas de sua vida.
Infantil: Pra que te quero? Porto adição de narrativas e poemas. Convidar a família das crianças para parti-
Alegre: Artmed, 2001, p. 83.
Cabe destacar que a criança que convive cipar, registrando os seus relatos (de vida ou as
POSLANIEC, Ch. & HOUYEL, Ch.
Activités de lecture à partir de em um ambiente desafiador, do ponto de vista narrativas orais que são contadas de pai para
la litteráture de jeunesse. Paris:
Hachette, 2000. linguístico (em que haja livros, painéis escritos, filho há gerações) e contando estas e outras
SOARES, Magda. Letramento: revistas, jornais, cartazes, embalagens, enfim, histórias pode ser desafiador e extremamente
um tema em três gêneros. Belo
Horizonte: Editora Autêntica,
marcas da língua escrita), demonstrará nesta rico para as crianças.
1998, p. 15; 21. fase interesse pela escrita. Não raro, se pergun- Por fim, é sempre bom lembrar que a litera-
tarmos para uma criança o que ela está fazen- tura infantil, além de ser porta de entrada para
SOBRE A AUTORA do, ouviremos: “escrevendo”. o letramento, também é arte. Arte que se utili-
Aline Fernanda Camargo
Sampaio é mestra em Isso indica que ela percebe o código escrito za da palavra como meio de expressão para, de
Educação e linguagem
nesse período como algo importante e sente algum modo, dar sentido à nossa existência. Se
pela USP, especialista em
Docência no Ensino Superior, curiosidade em conhecê-lo. Nesse contexto, é nós, na nossa prática cotidiana, deixarmos um
graduada e Licenciada em
Letras/Português pela USP, imprescindível trabalhar com a produção de espaço para que esta forma de manifestação
pesquisadora do Grupo DiCLiME- histórias pelas crianças: o professor, como “es- artística nos conquiste, seremos, com certeza,
USP (Diversidade Cultural,
Linguagem, Mídia e Educação) e criba”, registra histórias inventadas por elas. mais plenos de sentido, mais enriquecidos e
professora universitária. E-mail:
alinefcsampaio@gmail.com.
Histórias de terror, romance, passeios, expe- mais felizes.
Sementes
da Redação
13 episódios, escolas
que inovam na
proposta pedagógica
da diferença
e impactam alunos e
sua comunidade
I
deias transformadoras habitam as escolas como música, artes visuais, dança, teatro etc. ESCOLAS
de todo o Brasil, mas poucos conhecem São incentivadas a conhecer e a criar. A escola PARTICIPANTES
seus projetos e seus resultados. Pensando também trabalha a cultura africana, seus mitos, Cieja Campo Limpo,
nisso, o Videocamp, uma plataforma que músicas e artes plásticas. de São Paulo (SP)
reúne filmes de impacto disponíveis para exibi- A Escola Cecília Meireles fica localizada em Escola Canadá,
ções públicas gratuitas, disponibilizou a série Nova Friburgo (RJ) e é uma das poucas iniciati- de Viamão (RS)
Sementes da Educação. vas que oferece a Pedagogia Waldorf, baseada EMEF Guido
A série reúne 13 episódios, cada um deles apre- na Antroposofia criada por Rudolf Steiner, Lermen, de Lajeado
sentando uma escola brasileira que inova na de forma gratuita. A Pedagogia Waldorf tem (RS)
proposta pedagógica, transformando e impac- o pressuposto da divisão do desenvolvimento IFET Paraná
tando tanto alunos quanto a comunidade. humano em setênios. A escola busca atender a – Campus
Realizada pela Oz Produtora e selecionado por este ideal em sua prática pedagógica, até o 2º Jacarezinho, de
meio de uma chamada pública, a série foca os ciclo de sete anos, que é o Ensino Fundamental. Jacarezinho (PR)
métodos apresentados por cada escola. A es- Outro caso especial é o da EMEF Escola Maria
colha recaiu sobre as que oferecem ensino gra- Desembargador Amorim Lima, fundada em Peregrina, de São
tuito e que, com poucos recursos, conseguiram 1956, mas que só em 1996 começaram a ocor- José do Rio Preto
(SP)
inovar os métodos educacionais. Entre essas, rer mudanças transformadoras. Primeiro, os
no primeiro episódio, temos o Centro Integrado alambrados, por obra da diretora Ana Elisa EMEF
de Educação de Jovens e Adultos – Cieja Campo Siqueira, foram derrubados, e a escola chamou Desembargador
Amorim Lima, de
Limpo, que fica no Capão Redondo (SP), re- a comunidade para fazer parte deste espaço. São Paulo (SP)
gião marcada pela alta vulnerabilidade social. Em 2003, através da consultoria da psicóloga
Autodenominada uma escola de resistência e de Rosely Sayão, pais e funcionários conheceram EM Acliméa
Nascimento, de
excluídos oferece gestão compartilhada com os a pedagogia da Escola da Ponte de Portugal e Teresópolis (RJ)
estudantes, já que todos os assuntos são resolvi- decidiram adotar seus princípios.
dos coletivamente. Além das aulas, há atividades Os alunos passaram a trabalhar em conjunto com Escola Municipal
Cecília Meireles, de
extracurriculares abertas para a comunidade das diferentes faixas etárias, eliminando a divisão por Nova Friburgo (RJ)
quais adultos e idosos também participam. séries. Os alunos seguem roteiros de pesquisas
A Escola Janela é uma instituição de ensino e decidem a ordem do que vão pesquisar. Deste EEEP Alan Pinho
Tabosa, de
comunitária e também faz parte da série. modo, um grupo pode estar ou não na mesma Pentecoste (CE)
Localizada em Cavalcante (GO), na região da pesquisa, e os alunos buscam ajuda com seus
Chapada dos Veadeiros, é um dos destaques colegas antes de recorrerem ao professor tutor. Centro Municipal de
Educação Infantil
devido à sua atitude de repensar o papel social Há várias outras escolas apresentadas na série Hilza Diogo Cals, de
da educação. Seu surgimento ocorreu por meio (confira lista ao lado), que ainda conta com de- Fortaleza (CE)
da iniciativa de pais e educadores que decidem poimentos dos especialistas Celso dos Santos
Escola Pluricultural
tudo em conjunto. A Janela trabalha com proje- Vasconcellos, doutor em Educação pela USP, Odé Kayodê, de
tos de pesquisa e turmas multisseriadas. Caio Dib, jornalista e fundador do site Caindo Goiânia (GO)
Já o Centro Municipal de Educação Infantil no Brasil, e Rosely Sayão, psicóloga especia- Escola Janela, de
Hilza Diogo Cals está localizado na periferia lista em temas sobre educação de crianças e Cavalcante (GO)
de Fortaleza (CE), local de violência e vulne- adolescentes.
UFABC, de Santo
rabilidade social. A cultura é o principal eixo Para acessar o conteúdo é preciso reunir um André (SP)
de trabalho da escola. As crianças entram em mínimo de dez pessoas. O endereço eletrônico é
contato com diferentes linguagens artísticas, HTTPS://WWW.VIDEOCAMPCOM/PT.
ardente
em 19 de abril, coleciona prêmios –
o Jabuti em cinco ocasiões, o Coelho Neto, da
Academia Brasileira de Letras, o APCA quatro
vezes e vários outros memoráveis. No dia 13 de
outubro de 2005, recebeu o CAMÕES1 pelo con-
junto da obra, o mais importante da literatura
em português, na cidade do Porto, no norte de
A PALAVRA LAPIDADA
Lygia Fagundes Telles é uma perfeccio- tão: “Aproximei-me da janela. O sopro Públicas teve um olhar de suspeita
nista. Só para se ter uma ideia, conside- do vento era ardente como se a casa para a estatueta de bronze em cima da
ra apenas “exercício literário” seu se- estivesse no meio de um braseiro. lareira, uma opulenta mulher de olhos
gundo livro de contos, Praia Viva, acla- Respirei de boca aberta agora que vendados, empunhando a espada e
mado pela crítica – o primeiro, Porão e ele não me via, agora que eu podia a balança. Estendeu a mão até a ba-
Sobrado, bancado pelo pai quando tinha amarfanhar a cara como ele amarfa- lança. Passou o dedo num dos pratos
15 anos, nem entra em sua lista. Essa nhara o papel. Esfreguei nela o lenço, empoeirados. Olhou o dedo e limpou-o
seleção de todas as histórias curtas de até quando, até quando?…”, questiona com um gesto furtivo no espaldar da
LFT, Os Contos, que a Companhia das mentalmente Rodolfo, o personagem- poltrona”. Detalhe que não tem nada
Letras nos oferece, é joia rara. -narrador de Verde Lagarto Amarelo, de mero: o conto traz uma epígrafe de
Dá para acompanhar a evolução de um conto sobre a inveja entre dois Carlos Drummond de Andrade: “Que sé-
sua escritura desde Antes do Baile irmãos. O leitor acompanha o dra- culo, meu Deus! — exclamaram os ratos
Verde, publicado inicialmente em ma de Rodolfo, que desde criança e começaram a roer o edifício”.
1970, que abre a coletânea e traz na esconde-se da vida como “um lagarto Já em O Coração Ardente, que dá título
capa uma Lygia jovem, foto garimpada no vão do muro”, daí o título do conto. ao livro, o suicídio é o tema: “Em redor
em seu arquivo pessoal, imagens de Parecendo-se com um jacaré em mi- as pessoas ficam fascinadas, é sedu-
uma São Paulo amada pela escritora, niatura e tendo a cabeça semelhante tor um coração ardente, mas quem
assim como uma de suas grandes ami- à das serpentes, o lagarto possui as- não quer se aquecer nessa chama?
gas, Hilda Hilst, e uma caricatura feita pecto assustador, o que faz com que Pois meu filho Athos herdou esse co-
por um de seus maiores fãs: Carlos grande parte das pessoas mantenha ração, matou-se antes de completar
Drummond de Andrade. distância desse animal. vinte anos…”. O coração ardente que a
Senhora de um estilo que retrata os O viés político pode ser observado própria Lygia desfruta, com seus de-
sentimentos como poucos escritores em Seminário dos Ratos, da obra de vaneios, sensibilidade e delírios, todos
conseguem, lapida a escrita à exaus- mesmo nome: “O Chefe das Relações eles levados para suas narrativas.
REFERÊNCIAS não justifica o nascimento de textos prematu- reagiram contra o Modernismo e suas experiên-
BIBLIOGRÁFICAS ros, que deveriam continuar no limbo”. Mas cias revolucionárias nas décadas de 1930 e 1940
BOSI, Alfredo. O conto
brasileiro contemporâneo.
é Praia Viva, de 1944, que marca seu início na –, ela afina-se mais com o ambiente cultural da
São Paulo: Cultrix, 1977. carreira literária e já carrega marcas do viés fe- época, onde sobressaíam o experimentalismo
CAVALHEIRO, Edgar. Evolução minino sempre presente em sua obra, embora vanguardista, presentes no Expressionismo e
do conto brasileiro. Rio
de Janeiro: Ministério da sua literatura não possa ser classificada como Surrealismo. Na literatura, o estilo indireto livre
Educação e Cultura, s/d.
feminista – Lygia investiga o universo femini- e o fluxo de consciência eram a base para o re-
LUCAS, Fábio. A ficção
giratória de Lygia Fagundes no sob uma perspectiva moderna: a mulher é gistro interior da personagem.
Telles. In Cult, São Paulo, nº.
23, junho, 1999.
figura central na obra da escritora e, por meio Lygia não se fez de rogada e, antenada como
STEEN, Edla Van. Viver e das técnicas do fluxo de consciência e do mo- era, acolheu de bom grado as novidades. Sua
Escrever 3. São Paulo: LP&M nólogo interior, fez delas as protagonistas de escrita revela um estilo pontilhado de oralida-
Pocket, 2008, 2ª ed., vol. 709.
TELLES, Lygia Fagundes. Os suas histórias. de e uma forte exploração das manifestações
Contos. São Paulo: Companhia Mas a “escritora”, segundo sua própria aná- do inconsciente. Essa construção narrativa lhe
das Letras, 2018.
lise, começa a ser desenhada com seu romance trouxe dois benefícios: a oralidade lhe trouxe
inicial, Ciranda de Pedra. Aclamado pela crí- fluência, e a exploração do inconsciente, den-
tica, traz em seu bojo uma história de paixão, sidade. Misture-se a tudo isso seus gostos pes-
SOBRE A AUTORA loucura e morte. soais, como pela magia e fantástico, boas pita-
MARA MAGAÑA é
jornalista, escritora, Apesar da escrita de LFT estar impregnada das de romantismo, novela gótica e histórias
docente de Produção e
das características que marcam o período pós-45 de terror. Esse é o amálgama em que foi mol-
Interpretação de Texto e
fã absoluta de LFT. – e que designam principalmente os poetas que dada a literatura de Lygia Fagundes Telles.
/
Ln
A gua
em prosa e
diversos
32 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA
A linguagem e suas
múltiplas manifestações
permitem a nós, seres
humanos, traduzirmos
como pensamos com
relação àquilo que nos
afeta e de que forma
constituímos nosso
imaginário coletivo
por Abrahão Costa de Freitas
A
linguagem humana é um fenôme-
no social dinâmico historicamente
situado. Sua compreensão envolve
aspectos culturais relacionados
tanto à língua quanto à sociedade.
1 Sob essa perspectiva, LÍNGUA E LINGUAGEM1
são fenômenos através dos quais o ser huma-
DISTINÇÃO no se constitui como um ser de interação social.
ENTRE LÍNGUA
E LINGUAGEM A partir do momento em que se institui como
Podemos definir forma de intercomunicação de uma sociedade
linguagem como a específica, a língua transforma-se em um patri-
capacidade humana
mônio cultural por meio do qual se fortalecem
para expressar
pensamentos, ideias os laços de pertencimento àquela comunidade.
e sentimentos. Em Não apenas isso, em uma perspectiva inter-
outras palavras, a disciplinar, a interação entre língua e socieda-
linguagem relaciona-
-se aos fenômenos de revela aspectos importantes da organização
comunicativos: social e cultural do ser humano. Isso porque,
língua, literatura, como diz ÉMILE BENVENISTE2, “a língua é por ex-
música, arte,
fotografia etc. celência o índice das mudanças que se operam
Portanto, havendo na sociedade”.
comunicação, Em outras palavras, a língua é repositório
há linguagem. A
de uma série de experiências vividas, também
língua por sua vez,
é a manifestação presentes em outras manifestações da lingua-
verbal da linguagem gem através da qual se exteriorizam a memó-
representada por ria histórica e o conhecimento adquirido de
meio dos signos
linguísticos. uma sociedade.
DO
É por meio da interação entre as diversas
T RAÇO
A IDEIA
manifestações da linguagem à nossa dispo-
sição que nós, seres humanos, conseguimos
construir as REPRESENTAÇÕES COLETIVAS3 consti-
tutivas de nosso imaginário coletivo.
Característica inerente às sociedades hu-
manas, a cultura constitui-se fundamentada
na linguagem. Para EDGAR MORIN4, é a partir
dela que tomamos conhecimento “das expe-
riências vividas, da memória histórica [e] das
crenças míticas de uma sociedade”. A heran-
ça cultural que recebemos quando nascemos
sobrepõe-se à nossa hereditariedade genética
e constitui uma forma de conhecimento que
é “simultaneamente biológico, cerebral, espiri-
tual, lógico, linguístico, cultural, social, históri-
co, e não pode ser desvinculado da vida huma-
na e da relação social”.
As interações discursivas presentes no uso
cotidiano da língua revelam que, para além das
PINTURA RUPESTRE ESCRITA CUNEIFORME
idealizações, ela não é uma entidade íntegra,
homogênea e uniforme. Localizada na ação so-
Nascida da necessidade de comu-
cial, ela é um sistema simbólico cujas assime-
nicar e registrar ideias, a pintura
trias revelam-se em sua interação com outros rupestre pode ser considerada o
fenômenos da linguagem. embrião da pictografia, forma de
Todo processo de enunciação está inseri- escrita que servira de base para
do em um contexto social, imediato ou não, e a escrita cuneiforme e para os
pressupõe um diálogo entre um ou vários in- hieróglifos.
terlocutores. Assim, a competência comunica- Além de seu caráter ritualístico,
tiva do falante está intimamente ligada à sua esse tipo de pintura demonstra o
capacidade de se relacionar com outros modos esforço do ser humano na busca
de comunicação. de formas eficazes de registrar
sua vida, suas ideias e atividades.
Perceber de que maneira pessoas, lugares e
Com o passar do tempo, as repre-
objetos influenciam em nossa maneira de ver e
sentações naturalistas da reali-
conceber o mundo a partir da linguagem é um
dade deram lugar a traços mais
exercício de criticidade que contribui muito para simples que tinham por objetivo
a melhoria de nossa competência comunicativa. sintetizar uma ideia. No entanto,
As redes de convenções sociais que regem ainda não se trata da escrita pro-
o nosso comportamento na relação com o ou- priamente dita, mas de uma re-
tro também manifestam-se em nossas práticas presentação a partir de símbolos.
discursivas e é a partir delas que, nas páginas A primeira forma de escrita de
seguintes, analisaremos a relação entre língua que se tem registro foi cria-
e cultura privilegiando as interações discursi- da pelos Sumérios, na antiga
vas com a literatura, a fotografia e a história. Mesopotâmia. Feita a partir de
glifos em forma de cunha, a escri-
ta cuneiforme data de 3.500 a.C.
LEITURAS DE MUNDO O desenvolvimento dos glifos
Qualquer exercício para estabelecer uma
cuneiformes levou a formas mais
relação entre língua e cultura passa necessaria- simples e abstratas de escrita.
In ter discursivi da de
A R
CaM NTEA
VIAJ A
Que pode a câmara fotográfica?
Não pode nada.
Conta só o que viu.
Não pode mudar o que viu.
Não tem responsabilidade no que viu.
A câmara, entretanto,
Ajuda a ver e rever, a multi-ver. Francisco Paulo de Almeida e sua família. Foto de 1870,
O real nu, cru, triste, sujo. por Militão Augusto de Azevedo.
Desvenda, espalha, universaliza. Assim como sugere o poema de Carlos Drummond de Andrade,
A imagem que ela captou e distribui. na foto acima, que retrata um “barão do café” do século XIX, a
Obriga a sentir, câmara fotográfica pouco conta sobre a realidade do negro à
A, criticamente, julgar, época do Brasil Império. No entanto, levanta muitas especula-
A querer bem ou a protestar, ções sobre o que pode ter sido a trajetória de Francisco Paulo
A desejar mudança. de Almeida. Agraciado com o título de Barão de Guaraciaba, em
1887, foi o único barão negro do Império. “O real nu, cru, triste,
ANDRADE, Carlos Drummond de. A câmara viajante.
In: MARIGO, Luíz Claudio et al. Mata Atlântica. Rio
sujo” do Brasil patriarcalista e escravocrata não foi a imagem
de Janeiro: Chase, 1984. P. 04. que a câmara captou e distribuiu.
DIAS!
franqueza:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens
casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um
ordenado que…
— Oh! Meu senhô! Fico.
— … um ordenado pequeno, mas que há de crescer.
Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente.
Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho;
hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais
alto quatro dedos…
— Artura não qué dizê nada, não, senhô…
— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é
de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu
vales muito mais que uma galinha.
— Eu vaio um galo, sim, senhô.
— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se
andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe
dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas;
efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco,
sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil
adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu
de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, te-
nho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de
orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do
diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus
me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular
que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito
antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da
família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a
gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo apren-
dido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então
professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens
puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que
obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao
escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos,
sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a
justiça na terra, para satisfação do céu. Boas noites.
© BILLYCM / PIXABAY.COM
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Bons dias! (em Crônicas 1888-1889).
Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Hucitec, 1990.
Querelas do
Brasil por Luiz Guilherme Sakai
E
screvo este texto ao som de João 1 MANO
Bosco, que lançou ao final de QUE ZUERA
2017 o disco predominantemen- Após oito anos sem
lançar nenhum
te de inéditas intitulado MANO
projeto inédito, o
QUE ZUERA1. Não sem admiração pelo que cantor e violonista
ouço: quem tanto fez por nossa canção, ao mineiro João Bosco
longo de quatro décadas de carreira, con- lançou, no final
de 2017, “Mano
tinua realizando grandes façanhas nesta/ Que Zuera”, álbum
em prol desta, que é das nossas mais im- composto de 11
portantes e completas expressões cultu- canções, entre elas
algumas parcerias
rais e que não raro aglutina em ritmos, inéditas com o filho,
melodias e harmonias a nossa complexa Chico Bosco, que
formação marcada por fluxos migrató- também assina a
produção musical do
rios diversos. O próprio Bosco, mineiro
álbum. Além dessas
de Ponte Nova e posteriormente radicado parcerias, o projeto
no Rio, sintetiza em sua intuição rítmica engloba clássicos
e harmônica diversos gêneros da tradição como “Sinhá”
(parceria com Chico
de nosso cancioneiro popular, não apenas Buarque), “Duro na
de Minas, mas também do Rio e da Bahia, Queda” e “João do
sem desconsiderar influências estran- Pulo” (parcerias com
Aldir Blanc), esta
geiras, como a do jazz que nos chega via última conta com
bossa-nova e de algum modo já DEGLUTIDO uma fusão sonora
ANTROPOFAGICAMENTE2. com a canção Clube
da Esquina Nº 2, e
Caldo cultural multifacetado já cele-
o encontro inédito
brado e homenageado pelo compositor em com a composição
músicas como NAÇÃO³, em parceria com Aldir de Arnaldo Antunes
Blanc e Paulo Emílio, na qual, em ritmo de em Ultraleve, em que
a filha, Júlia Bosco,
que só um violonista absolutamente hábil também faz uma
como Bosco é capaz, passeiam entidades participação.
africanas na companhia daquele que talvez
seja a maior influência do artista – e tam-
DEGLUTIDO
2 ANTROPOFAGI-
© JFOTOGRAFIXX / ISTOCK.COM.BR
NAÇÃO 3 se realizasse em sua estrutura aquilo que se es- dade do Brasil, das quais é modelar a Aquarela
A música Nação foi pera de uma democracia que se queira racial, Brasileira, hino não oficial do Brasil de autoria
gravada por João em que as diferenças são apagadas e tratadas de Ary Barroso. Vale a pena reproduzir parte
Bosco em 1982, no horizontalmente, sem que haja uma hierarquia da letra de Nenhum Futuro:
álbum Comissão de
Frente. PolyGram. que privilegie uns em detrimento de outros.
Também foi gravada Escrevo este texto ao final de 2018, em clima “Pindorama libertária/
por Clara Nunes, já de virada, sem deixar de realizar o balanço Glória negra dos ilês/
entre outros
intérpretes. do que foi este ano especialmente marcado Iletrados, inspirados/
por tensões políticas e sociais que talvez jamais Se esgueirando pelas leis/
MANIFESTO 4 havíamos testemunhado. Por tensões cujo es-
ANTROPÓFAGO topim foram, possivelmente, as Jornadas de Corpos nus desrecalcados/
Pode ser lido em:
www.antropofagia.
Junho de 2013, a partir das quais veio à tona, em Terão sido a tua fé/
com.br, site criado meio às exigências por melhores condições de Foste uma pornochanchada/
por Beatriz Azevedo, vida – com ênfase à melhoria da qualidade dos Das elites à ralé/
cantora e estudiosa serviços públicos em saúde e em educação –, um …
autora do livro
Antropofagia generalizado e pelo visto longevo e recalcado 111 amontoados/
– palimpsesto sentimento de insatisfação com as instituições Nosso mar vermelho/
selvagem, estudo e com o sistema político brasileiro. Sentimentos Chora o anjo da história/
fundamental
sobre o conceito de “penúria, fúria, clamor, desencanto”, “subs- Pelo Brasil”.
de antropofagia tantivos” abstratos posto que “duros de roer”,
em Oswald de como cantou outro artista de obra monumen- Note-se que a letra estabelece uma relação
Andrade. Para ela,
tal, Gilberto Gil, na faixa de abertura que dá de contraste entre Pindorama, mítica terra li-
Oswald contesta
e ataca o sistema nome a seu último trabalho, Ok, ok, ok, lançado vre dos males segundo a tradição guarani e
patriarcal, marcado em agosto deste ano marcado por eventos que resgatada como matriarcado (o matriarcado
pela propriedade vão desde a greve dos caminhoneiros até as elei- de Pindorama) por Oswald de Andrade em seu
privada e pela
herança, e defende ções que mais dividiram o País desde a redemo- MANIFESTO ANTROPÓFAGO4, publicado em 1928, e o
formas contrárias à cratização e que inflamaram discursos de ódio Brasil em que ameríndios, alcoolizados, vivem
usura, favoráveis ao que já circulavam por aí, nas caixas de comentá- em situação de descalabro, vítimas da violência
coletivo, sendo tais
formas associadas rios a reportagens, nos programas policiais exi- e do apagamento de suas identidades sistema-
ao que ele chama bidos à tarde, nos jornais sensacionalistas e na ticamente impostos desde que os colonizado-
de Matriarcado de boca de alguns políticos que surfaram na crista res aqui chegaram. Em resumo, “sem nenhum
Pindorama.
dessa onda, valendo-se desses discursos de into- futuro”. Some-se a isso o “mar vermelho”, em
DAVI KOPENAWA 5 lerância como plataforma eleitoral. alusão aos banhos de sangue que ocorrem em
YANOMAMI Lá pelas tantas, ainda ao som de João nossas penitenciárias – abarrotadas sobretudo
É um escritor, Bosco, atenho-me à faixa Nenhum futuro, de homens negros e pobres – dos quais um dos
xamã e líder
composta em parceria com seu filho, Francisco mais nefastos foi o Massacre do Carandiru, que
político yanomami.
Atualmente, é Bosco, que definiu a canção como “choro nii- deixou 111 mortos “amontoados”.
presidente da lista”, como consta no site de Bosco. O caráter A canção aponta, assim, para o fracasso
Hutukara Associação pessimista, ou melhor, de denúncia da letra, social e para o caráter falacioso de nossa “de-
Yanomami, uma
entidade indígena aliado à melancolia ritmada que marca esse mocracia racial”. O que se vê sistematicamente
de ajuda mútua e gênero musical – à certa “tristeza que balança” nos noticiários comprova a violência sofrida
etnodesenvolvimento. –, não deixa de funcionar como uma espécie especialmente por homens e mulheres indíge-
de contraponto não apenas à canção que ce- nas e negras, sem falar do que sofrem outras
lebrava nossa complexa formação cultural, populações historicamente oprimidas e vulne-
mas também a toda uma tradição de poesia ráveis. Além disso, apresenta também uma es-
que se inicia no Romantismo, como certos poe- pécie de fissura, de tensão entre o conteúdo da
mas da primeira geração romântica do Brasil, letra e a estrutura musical: ao belo e harmôni-
cujo maior expoente é Gonçalves Dias e sua co choro executado com fluidez pelos músicos,
“Canção do exílio, e de canções mais ufanistas”, chocam-se os versos “niilistas”, portadores de
exaltadoras das belezas naturais e da diversi- denúncias atrozes, como se a combinação em
REFERÊNCIAS
harmonia de diversas culturas só fosse possí- ao fim do mundo previsto pelos xamãs yano- BIBLIOGRÁFICAS
vel no plano musical. Fora dele, a situação in- mami. Fim do mundo, assunto em que os indí- ALBERT, Bruce. KOPENAWA, Davi. A queda
versa: uma sociedade marcada pela violência, genas, segundo o antropólogo Eduardo Viveiros do céu. (Trad. Beatriz Perrone-Moisés). São
Paulo: Companhia das letras, 2016.
que inviabiliza as possibilidades de um país de Castro, são especialistas, visto que assistem BOSCO, João. Mano que zuera. Rio de
mais justo e igualitário, respeitoso com a diver- à destruição de seu mundo imposta há séculos, Janeiro: Som Livre, 2017.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São
sidade cultural e com modos de vida alterna- de Cabral e Colombo aos atuais governos, sejam Paulo: Companhia das letras, 1997.
tivos ao capitalismo predatório e patriarcal do de esquerda ou de direita. Fica a frase cortante www.antropofagia.com.br
qual em partes decorrem tais violências, que do Manifesto Antropófago. “Antes de os portu- www.azougue.com.br
devastam também e primeiramente a terra. gueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha des- www.joaobosco.com.br/musica/mano-que-
zuera-2017/
Capitalismo predatório e mercantilização coberto a felicidade”. https://www.socioambiental.org/pt-br/
contra os quais insurge a voz do xamã yano- Encerro este texto sob o impacto de ter noticias-socioambientais/os-indios-sao-
especialistas-em-fim-do-mundo-diz-o-
mami DAVI KOPENAWA5, cujas palavras foram re- assistido a um vídeo que circulou nas redes antropologo-eduardo-viveiros-de-castro
gistradas em papel por Bruce Albert no livro A sociais (pode ser visto no site Brasil247) e que https://www.brasil247.com/pt/247/
nordeste/378501/PM-destr%C3%B3i-
queda do céu. A obra, das mais importantes de exibe a reintegração de posse determinada lavoura-e-desaloja-povo-Trememb%C3%A9-
de-suas-terras-no-Maranh%C3%A3o.htm
nosso tempo, não é um fenômeno isolado. Está pela Justiça do Maranhão. Tratores literal-
https://www1.folha.uol.com.br/
acompanhada de tantas outras vozes de outros mente passam por cima das construções e das cotidiano/2018/11/saude-indigena-perdera-
povos indígenas que buscam por meio da pala- plantações realizadas pelos indígenas da co- 301-de-seus-372-medicos-com-a-saida-de-
cubanos.shtml
vra escrita estabelecer contato com o homem munidade Tremembé do Engenho, que há 70 http://amazonia.org.br/2018/08/
branco, convidado a ler e a ouvir o pensamento, anos ocupam a área localizada em São José do desmatamento-na-amazonia-aumentou-
40-nos-ultimos-12-meses-diz-instituto/
a conhecer a cosmogonia, as histórias, mitos e Ribamar, no Maranhão. Ora despejada, resta à http://www.diariodepernambuco.com.
tradições ameríndios – tome-se como exemplo comunidade viver na condição de pobreza, que br/app/noticia/vida-urbana/2018/10/29/
interna_vidaurbana,766848/escola-
a coleção Tembetá, organizada por Kaká Werá e é um modo de “incluí-los” ao sistema predató- e-posto-de-saude-indigenas-sao-
que apresenta o pensamento indígena sinteti- rio e de trazê-los finalmente àquilo a que se incendiados-em-pernambuco.shtml
zado por lideranças com papel importante para convencionou chamar de civilização. “Eu não
a preservação e divulgação das culturas tradi- queria isso, queria um país diferente, em que SOBRE O AUTOR
LUIZ GUILHERME SAKAI é músico,
cionais. E também chamado a considerar seus as autoridades olham pra nós tudo”, diz um dos professor de língua portuguesa e
literatura, mestre em Literatura e
alertas: “o despencar do céu sobre nós” refere-se moradores da comunidade. crítica literária (PUC-SP).
© LPETTET / ISTOCKPHOTO.COM
iz
por Maria Beatr
E
le pertence a uma forte linhagem artística.
dida: “Não foram capazes de lidar com Parra o papel do galã incandescente/ (por- TODOROV, Tzvetan. Introdução à
literatura fantástica. São Paulo:
nem a esquerda chilena de convicções direi- que não sou um santo do pau oco) Perspectiva, 1998.
TODOROV, Tzvetan. A narrativa
tistas nem a direita chilena neonazi nem a es- porém não me defino como tal fantástica. In: As estruturas
querda latino-americana neoestalinista nem Sou um modesto pai de família narrativas. Trad. Leyla Perrone.
Moysés. São Paulo: Perspectiva, 1969.
a direita latino-americana globalizada nem os um ferrabrás que paga seus impostos
medíocres professores latino-americanos das Nem Nero nem Calígula: SOBRE A AUTORA
universidades estadunidenses nem os zum- um sacristão/ um homem ordinário Maria Beatriz é professora de
Língua Portuguesa e Literatura e
bis que passeiam pela aldeia de Santiago. Não um aprendiz de santo do pau oco mestra em Literatura Comparada.
Balbucios
da Literatura
Contemporânea
Textos dessa fase têm
sido marcados por uma
linguagem que os aproxima
da oralidade, numa busca de
deixar transparente a voz
narradora e identificá-la com
o lugar social da possível
representação
por Roberto Sarmento Lima
E
m um tempo aí que já vai longe, o
crítico Sílvio Romero denunciou na
escrita romanesca de Machado de
Assis o quanto há de anódino na
repetição monótona de palavras e na indife-
rença dele para com a cor local nas suas rarís-
simas descrições, lamentando a baixa expres-
sividade das formas de composição literária
desse escritor, toda ela sentida como resulta-
do de “sua índole psicológica indecisa” ou, pior
do que isso, de sua “perturbação nos órgãos
da linguagem”. Na época ressaltar inferiori-
dade ou superioridade de um autor com base
ANDRÉ 2 do que nunca, Honório está certo e esteve cer- de a ver montada. Digamos que, com a redemo-
SANT’ANNA to o tempo todo, dos anos de 1930 às primei- cratização do Brasil, a partir da década de 1980,
Filho do escritor ras décadas do século XXI. Hoje, é regra falar os grupos que não puderam falar por muito
Sérgio Sant’Anna,
desse jeito; ontem, era o despontar de uma tempo, abafados em seus lugares de opressão
é, também, um
escritor brasileiro e regra que ainda viria consolidar-se, apesar de e censura oficial, mantidos calados, passaram a
trabalha, atualmente, todas as conquistas de libertação formal do gritar para quem quisesse ouvir seus conteúdos
como roteirista de Modernismo. de classe. O intrigante nisso tudo é que André
publicidade, cinema
e televisão. Nos anos O que mudou ou fez a literatura mudar Sant’Anna, escritor branco, de classe média,
1980, era compositor substancialmente de lá para cá? É evidente bem ambientado nos salões universitários e
e contrabaixista do que as conquistas atuais da expressão linguís- literários do País (ele é filho do escritor Sérgio
grupo Tao e Qual.
tica na literatura, tanto no verso quanto na Sant’Anna, o que não é pouca coisa), não é essa
prosa, não existiriam sem as lições do primei- voz reprimida que de repente se danou a dizer
ro modernismo, aquele lá de 1922 em diante, o que pensa, sem papas na língua. O lugar de
quando a ordem era o despojamento e quan- onde ele vem o favorece, obviamente — o que
PAULO HONÓRIO 3 do o ataque ao verbalismo inútil e açucarado não o impede de dar realidade literária ao que
Narrador
protagonista do era a arma que se empunhava, nesse projeto ele conhece por intuição, observação atilada ou
romance São de modernização das letras e do País. A repre- por experiências acumuladas de vida.
Bernardo, de sentação, como só se percebe agora, ficou mais Suas personagens são, em geral, pessoas de
Graciliano Ramos,
transparente; os tempos, mais pobres, mas só outro lugar, socialmente menos protegido em
reconhecido por
muitos críticos como no sentido de que ficou definitivamente claro comparação ao dele mesmo; são pessoas mui-
a voz do autor na não ser mais possível ocultar, sob metáforas e to comuns, que têm dificuldade de viver com o
obra, conta sua delicadezas verbais, o que, na verdade, é custo- salário que têm, com a formação educacional
história desde os
tempos de guia de so e áspero. Paulo Honório já estava convenci- que têm; é gente do cotidiano como nós, em
cego no interior de do disso, desde aquela época; e não economi- algum momento da vida. Disse um dia o pró-
Alagoas até tornar-se zou palavras duras e secas, com direito a pa- prio Sant’Anna, numa entrevista dada em 2007
um latifundiário, sem
se ater a princípios lavrões, quando ia se referir à realidade social à revista Fronteiraz, da PUC de São Paulo, que
éticos. a sua volta. Eis que deixou essa lição para os “o motorista de táxi é um dos maiores retratos
anos que viriam. do que é o brasileiro hoje em dia”: ele conduz
Não é que a literatura tenha decaído, como as pessoas, vê e sente as pessoas que entram
dizem alguns, desgostosos com a presença de no seu táxi reagindo à realidade diária, e o
termos chulos e vulgares nos textos, ou caído escritor seria mais ou menos como esse mo-
do pedestal em que talvez muitos gostem ainda torista, que assiste a tudo e compartilha com
os clientes a atmosfera vibrante da cidade. Há,
por exemplo, um quê de sadismo no motorista
ao frear subitamente, causando susto na ve-
lhinha à frente do seu carro, seu instrumento
“Se, ainda por cima, era de trabalho, como o é a pena, ou a caneta, ou o
sabido que Machado teclado do computador para o escritor. Enfim,
é o insatisfeito que se vinga da realidade que o
tinha epilepsia e gagueira, sufoca, o que gera nele também uma descren-
GEOVANI 5 beleza vira um terreno de depreciação crítica e A diferença, agora, comparando Geovani
MARTINS de autodepreciação crítica, como diz, sem sub- Martins com André Sant’Anna, é que, se este
É um escritor terfúgio nenhum, o policial do excerto do con- veste a capa do policial, ou do taxista, ou do
brasileiro. Nasceu to A Lei, aqui reproduzido: “Nessa polícia da executivo, aquele pertence ao ambiente que o
em Bangu, na Zona
Oeste do Rio de qual eu faço parte. (Viu como eu pensei estar conto exibe: o morro, o asfalto, a praia, a escola
Janeiro. Estudou escrevendo bonito esse negócio de ‘da qual’?)”. pública, o shopping, lugares de confrontação
apenas até a oitava Romper com a camada de metáforas — da violência na cidade do Rio de Janeiro, com
série, trabalhando
em seguida como cortar laços com a beleza tradicional, de que todas as suas contradições, beleza e horror,
homem-placa, a metáfora é arma de sedução — é o primei- vício e medo, crime e sedução, droga e álcool.
atendente de ro pulo para o assentamento de nossa con- As frases que se sucedem no conto, desde a
lanchonete, entre
temporaneidade. Mal comparando, José de sua abertura, exigem do leitor certo domínio
outros. Morou nas
favelas da Rocinha Alencar, hoje, estaria em maus lençóis, caso daquela linguagem, porque não haverá tradu-
e Barreira do quisesse conservar o tom elegante e altaneiro ção. O que significa, por exemplo, “tava ligado o
Vasco, antes de ir das suas descrições. maçarico”? Certamente é algo como “estava fa-
para o Vidigal
zendo um calor dos diabos”. Do mesmo modo,
NO LUGAR DE QUEM FALA a falta de concordância verbal (“Não era nem
Passando para outro texto contemporâ- nove da manhã”) ou de concordância nominal
neo, vejamos, no conto Rolézim, de GEOVANI (“Não dava nem mais pra ver as infiltração na
MARTINS5 (extraído de sua coletânea de estreia, sala”) ou a presença de aféreses típicas da rea-
O Sol na Cabeça, de 2018), mais um exemplo de lidade da língua oral (“tava tudo seco” ou “tava
representação que foge de ser de fato uma re- dado que o dia ia ser daqueles”) revelam que
presentação no seu sentido clássico, como se o — em nome da transparência e da autonomia
espetáculo da linguagem fosse o próprio espe- da voz que fala, do seu lugar social, sem reto-
táculo da cena. De novo, o texto mostra-se in- ques nem intermediações da língua culta — o
fenso à circunscrição dos artifícios tradicional- texto literário contemporâneo está mais para o
mente conhecidos por literários. A linguagem balbucio do que para a ordenação lógica da lin-
do texto se quer transparente, como que alheia guagem. Espécie de gagueira contemporânea,
a um tratamento de experimentação estética o discurso se entrega a uma execução em tem-
— já notou, leitor, que, hoje, o apelo à noção de po real, como se diz hoje nos domínios ciber-
“vanguarda” é algo fora de moda? —, como se néticos. Sem correções e sem aparos. Genuína,
a narração do fato constituísse a própria fala espontânea, sem edição.
do narrador/personagem, sem intermediações Se André Sant’Anna ainda representa (no
para a sua transcrição: sentido de que o escritor fica vestindo um
figurino que não é o dele, ocupando proviso-
riamente o lugar do outro), Geovani Martins
sente-se autorizado, ele mesmo, a falar, em seu
nome, em um país que se redemocratiza — ou
“Acordei tava ligado o maçarico! Sem neurose, ao menos busca isso, aos trancos e barrancos,
não era nem nove da manhã e a minha caxanga apesar de você. Uma das conquistas literárias
parecia que tava derretendo. Não dava nem contemporâneas, no Brasil, foi justamente
mais pra ver as infiltração na sala, tava tudo esta: ser transparente e igual a si mesmo. Sem
seco. Só ficou as mancha: a santa, a pistola e o maiores enganos, o que já é uma ação política,
dinossauro. Já tava dado que o dia ia ser daque- não meramente estética; é a defesa do lugar
les que tu anda na rua e vê o céu todo embaçado, que não quer se ver usurpado por outro. E da-
tudo se mexendo que nem alucinação. Pra tu ter ne-se o resto!
uma ideia, até o vento que vinha do ventilador
era quente, que nem o bafo do capeta.”
SOBRE O AUTOR
ROBERTO SARMENTO LIMA é professor doutor da Universidade Federal de Alagoas.
Autor do livro O Narrador ou o Pai Fracassado: Revisão Crítica e Modernidade em
Vidas Secas, publicado em 2015 pela OmniScriptum/Novas Edições Acadêmicas,
em Saarbrücken, Alemanha. E-mail: sarmentorob@uol.com.br.
Para tempo
de incertezas “A literatura nos liberta
O
ano de 2018 foi de contestações e mudanças. de nossas maneiras
Diante desse cenário, quem melhor poderia expor convencionais de
temores, perguntas sem respostas e angústias com pensar a vida – a nossa
sinceridade ímpar? Uma criança – ser naturalmente
transparente, acostumado a dizer o que passa pelo pensa-
e a dos outros –, (…)
mento e lhe vem à boca! A personagem que encarnará essa
ela resiste à tolice não
franqueza é uma menina chamada Clarice. violentamente, mas de
No primeiro semestre do ano passado, Roger Mello, pre- modo sutil e obstinado”
miado escritor e ilustrador brasileiro, presenteou-nos com
seu romance Clarice. Interessante escolha feita pelo autor, um lugar a outro, de uma casa a outra, de um adulto a outro,
afinal o panorama é, de certo modo, sombrio. O substantivo sempre precisando eliminar ou esconder os livros.
próprio escolhido como título deriva da raiz etimológica cla- Clarice é um romance repleto de poeticidade, inquietante,
rus, isto é, claridade, luz. capaz de causar um incômodo, o susto necessário a uma boa
Não foi à toa o nome dado pelo autor ao livro. Entenda- leitura. Em sua linguagem metafórica, o leitor precisará “afun-
-se: Roger Mello nasceu em Brasília, em tempos de ditadura dar” no livro para, página a página, conhecer essa estranha
militar. Exatamente nesse período, Clarice Lispector escreveu história (que, ao mesmo tempo, soa-nos familiar), em que não
um dos textos mais emblemáticos sobre a capital do País, a se sabe ao certo onde estão os pais da protagonista, nem há
crônica Brasília (1962). precisão sobre o tempo em que ocorre. Há um tom na lingua-
Nela, a autora expõe, como numa catarse, em um único gem que torna perceptível o momento crítico sobre o qual pai-
parágrafo, sua estranheza quanto à arquitetura da cidade, a ram muitos segredos e deslocamentos, estes motivados pela
penumbra causada por seus prédios, o silêncio, a ausência necessidade de fazer desaparecer os livros ou protegê-los.
de pessoas pelas ruas. Dessa impactante composição, o autor Impossível não se sensibilizar com o drama vivenciado por
extrai a epígrafe para a sua obra: “… certos silêncios fazem Clarice e as demais personagens, pois o tempo do romance
meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte”. E também também é estranhamente nosso. Ali, lagos engoliam livros,
retira o termo brasiliários empregado pela personagem central familiares desapareciam e se vivia num trânsito constante.
do romance. Ou seja, caro leitor, nada no romance de Mello Aqui, no hoje, as palavras já se tornam caras, os laços frouxos
está ali ao acaso. Tudo é cuidadosamente pensado, tal qual e o movimento continua sendo metáfora de sobrevivência em
toda obra de grande literatura. tempos inconstantes.
Falando sobre a protagonista, Clarice é uma garota incrível, Seja então a literatura o lugar da resistência. Ou como diria
com uma acuidade única em sua percepção sobre os fatos ao Antoine Compagnon, professor de literatura francesa compa-
seu redor e herda de sua “xará” uma característica: o fluxo de rada e autor, entre inúmeras obras, de Literatura para quê?:
consciência. De seu discurso vazarão memórias, impressões A literatura nos liberta de nossas maneiras convencionais de
pessoais, em um limite entre a confusão mental e o transbor- pensar a vida – a nossa e a dos outros –, (…) ela resiste à tolice
dar dos sentimentos. não violentamente, mas de modo sutil e obstinado. Seu poder
O jogo narrativo criado por Mello, por meio da personagem, emancipador continua intacto, o que nos conduzirá por vezes a
é surpreendente, pois, ao mesmo tempo em que ela conta querer derrubar os ídolos e a mudar o mundo, mas quase sem-
os acontecimentos, tenta elaborá-los, como se convocasse o pre nos tornará simplesmente mais sensíveis e mais sábios,
leitor a compreender esse universo hostil em que trafega de em uma palavra, melhores. (grifo nosso)
FERNANDA DE PAULA é especialista em Literatura e Teoria Literária (PUC-SP); coordenadora pedagógica na Rede Pública Estadual (SEE-SP); professora de Língua Portuguesa
no Ensino Fundamental II e Médio; capacitadora de professores em instituições públicas e privadas; revisora de textos acadêmicos e produtora de material didático.
A pele e o
papel
Na visão de Kopenawa, o corpo é
visto como produtor e receptor de
ensinos. É objeto de educação, afetos
e encantamento. Os conhecimentos
inscritos no corpus formam a pele
de papel. As palavras da pele. O
despertar dos corpos
por Eduardo Guimarães
Nenhum
professor
é uma ilha
Parafraseando John
Donne, no prólogo
de Por Quem os
Sinos Dobram,
de Hemingway, a
habilidade de o
professor se colocar
no lugar do aluno
pode ser a chave
para o sucesso da
aprendizagem
por Márcio Scarpellini Vieira
A
o ensinar, ao conversar com co- se faz uma escola.
legas que ensinam, ao conversar
com pais de alunos, sempre reflito Todo o ecossistema
sobre qual deve ser o cerne do pro-
blema do ensino no Brasil, qual seria, enfim, a
educativo deve estar
grande chave que, ao ser virada, poderia tirar alinhado em produzir,
a educação brasileira de uma mediocridade
aviltantemente cômoda e levá-la para um pa-
propagar e solidificar
tamar minimamente aceitável. conhecimentos
Esta reflexão parte de conversas com e entre
os entes envolvidos no processo educacional e,
aprendidos, e não
via de regra, aporta na sala de aula, momento apenas professados”
em que se dá a produção e a entrega do ensino
formal. Entretanto, este momento é apenas um
momento no processo, um importante momen- Todo o ecossistema educativo deve estar alinha-
to, mas é um dos tantos que existem e também do em produzir, propagar e solidificar conheci-
é influenciado por aquele que identifico ser um mentos aprendidos, e não apenas professados.
grande, um enorme ponto nevrálgico a ser toca- Talvez assim minorássemos um efeito ter-
do e curado nas relações que precedem e envol- rível que muitas escolas e, talvez a Escola, en-
vem os atos de ensinar e de aprender: a empatia. quanto instituição de ensino, acabe por perpe-
Aliás, nunca é demais voltar à questão dos tuar em seus pequenos aprendizes, que é o de
objetivos de ensino versus objetivos de apren- matar a aprendizagem e a vontade de aprender.
dizagem. Esta simples mudança de ponto de Este terrível e nefasto efeito vem sendo sis-
referência pode levar o docente a corrigir e re- temática e silenciosamente concretizado em
modelar completamente sua atividade, saindo gerações, exterminando aquilo que é mais na-
da cômoda posição de alguém que já ensinou tural e intrínseco a estes bípedes que escrevem
a mesma coisa quinhentas vezes e, para ele, e leem: o saber e a busca pelo saber, conhecer
apenas isso já é a validação necessária para ga- e refletir, competências que nos levaram a nos
rantir a qualidade e a forma como pratica sua autoclassificarmos como homo sapiens.
atividade docente, para uma posição de que
o que realmente importa é que o aprenden- ÂNSIA DE CONHECIMENTO
te aprenda, e não apenas ouça uma boa aula. Normalmente, os pequenos da nossa es-
Mais uma vez, nunca é demais lembrar que o pécie, ao articularem seus primeiros ques-
célebre prognóstico “ninguém tira 10 nas mi- tionamentos, repetem ininterruptamente a
nhas provas” não significa incompetência do pergunta “por quê?”, na ânsia de exercitar
grupo discente e, menos ainda, um brilhan- aquilo que vieram fazer neste mundo, ou seja,
tismo inacessível do distinto professor. Pelo descobri-lo. Nós, pais e especialistas da educa-
contrário, quem professa tal sentença apenas ção, no desejo de equipar estes pequenos com
garante que é incapaz de fazer com que qual- os conhecimentos deste mundo, os colocamos
quer aluno seu alcance 100% de entendimento em “Instituições de Ensino”, para que eles pa-
naquilo que ele mesmo diz. rem de perguntar “por quê?” e comecem, desde
Nesta linha, e compartilhando a carga dos cedo, a fazer o contrário, ou seja, eles mesmos
mestres, sugiro uma mudança sistêmica, em darem respostas. Triste, improdutivo, incoe-
que, além de reforçarmos a evidente impor- rente e aniquilador da aprendizagem. Afinal,
tância de estabelecermos objetivos de apren- perguntas movem a humanidade, não respos-
dizagem, em oposição aos objetivos de ensino, tas. Perguntas criam. Respostas acabam.
também troquemos o codinome “Instituição Ao serem postos à prova para responderem
de Ensino” por “Instituição de Aprendizagem”. ininterruptamente por quase duas décadas,
Afinal, nem só de professores se faz uma escola. nossos substitutos são subjugados a um pro-
HABILIDADE 1
que está inclusa da no mundo adulto, que espera que os nossos
alunos os encontrem sozinhos, e aqui eu reto-
ESPACIAL
Capacidade de
como uma das mo o ponto principal com o qual iniciei este ar-
compreender e
lembrar as relações
grandes habilidades tigo: Qual o grande problema do ensino?
espaciais entre
objetos. Essa
a serem exigidas no SENTIR O QUE O OUTRO SENTE
capacidade pode ser
vista como um tipo de
mercado de trabalho Nesta análise pensei em mim mesmo como
aluno, e coloquei-me no lugar dos meus alu-
inteligência distinto
de outras formas de
e nas relações nos. A esta prática damos o nome de “empatia”,
inteligência, como
a habilidade verbal,
humanas no mundo ou seja, a inclinação em sentir (pathos em gre-
go) o que o outro sente.
capacidade
de raciocínio
contemporâneo e Da mesma etimologia, e para deixar bem
e habilidades de
memória.
nos próximos anos” claro o conceito, vem a palavra que define a
oposição ao que o outro sente, a que chama-
mos de antipatia, ou ainda a concordância que
cesso mecanicista que considera apenas suas nos junta ao que o outro sente, a que denomi-
idades biológicas, em detrimento de suas idades namos simpatia. Em sentido análogo, patolo-
BHASKARA 2 cognitivas e intelectuais, recebem os mesmos gia é a ciência que estuda a doença, o sofrimen-
AKARIA conteúdos nas mesmas etapas, das mesmas for- to, algo que o indivíduo “está sentindo”.
(1114-1185) mas e são medidos com as mesmas réguas. Pois bem, aqui está o ponto que acredito
Foi um matemático,
astrólogo, astrônomo A HABILIDADE ESPACIAL MATEMÁTICA1 é a gran- ser uma questão visceral não apenas no ensi-
e professor indiano. de régua que continua sendo batida nas peque- no, mas na humanidade: a empatia.
Tornou-se conhecido nas cabeças, repetindo que, se não aprenderem A discussão sobre a característica inata da
por ter criado a
seno, cosseno, BHASKARA2, análise sintática e li- empatia no ser humano vem sendo ampliada
fórmula matemática
aplicada na equação gações covalentes, jamais serão bem-sucedidos e aprofundada nos últimos anos, e o que se
de 2° grau, que leva em suas vidas. apurou envolve até ao chamado SISTEMA DE NEU-
seu nome. Sinceramente, muitas vezes me vejo justi- RÔNIOS-ESPELHO4, sistema neural presente em
ficando a REBIMBOCA DA PARAFUSETA3 educacio- primatas, que imita o outro, e provavelmente
nal, para validar alguns conteúdos que conti- esteja ligado à nossa capacidade ou tendência
REBIMBOCA DA 3 nuamos a repetir. a nos inclinarmos a sentir a dor de outro indi-
PARAFUSETA Quando eu estudava na antiga quinta ou víduo da nossa espécie.
Expressão corrente sexta série, na minha escola estadual não havia A empatia, a meu ver, deveria ser algo pra-
em certas regiões do biblioteca, e então eu e um amigo fomos ao co- ticado e ensinado nas instituições de aprendi-
Brasil para designar
uma peça, real ou légio das freiras, para pedir que elas nos deixas- zagem, visto que está inclusa como uma das
fictícia, cujo nome sem frequentar a biblioteca da escola delas. Nos grandes habilidades a serem exigidas no mer-
ou função não são deixaram e isso com certeza contribuiu para o cado de trabalho e nas relações humanas no
conhecidos, do motor
nosso aprendizado, em uma época em que o mundo contemporâneo e nos próximos anos.
de um automóvel ou
de qualquer outra buscador de internet ainda não existia. Nem Digo aprendida, pois devido à plasticidade
máquina. Usada a internet, na verdade. Logo, o conhecimento neural, a empatia pode ser aprendida e treina-
metaforicamente, formal de fato era um bem valioso, algo a ser da e está provado que, ao ser praticada, esta-
designa algum
problema ou questão adquirido, mentalizado e decorado, pois não era belece novas rotas neurais, estabelecendo tam-
de difícil solução. possível acessá-lo quando bem quisesse. bém assim novas saídas para problemas a se-
6
Na verdade, o aluno não sabe o que não
ERNEST MILLER quer aprender. Ele sabe COMO não quer
HEMINGWAY (1899-1961) aprender, e este como é exatamente o padrão
Foi um dos maiores escritores de ensino que temos. O desafio é pararmos de
norte-americanos. Trabalhou bater cabeça tentando manter um padrão que
como correspondente de guerra
em Madrid durante a Guerra Civil já não tem sintonia com os alunos e encantá-
Espanhola. Esta experiência inspirou -los com as descobertas que podemos e deve-
uma de suas maiores obras, Por mos apresentar-lhes.
Quem os Sinos Dobram. Hemingway
Sim, em um dado momento eles deverão
sobreviveu a dois acidentes de
avião, teve seus livros queimados sentar, ler e decorar, mas aí já terão caído na rede
pelos nazistas, deu nome a um corpo do conhecimento, e buscar mais conhecimento
celeste que orbita o Sol e, como se será uma necessidade, não uma imposição.
isso não fosse suficiente, ganhou
Tenho plena ciência de que este assunto
LEV 7
SEMYONOVICH
VYGOTSKY
PARA ENTENDER (E SENTIR) EMPATIA
(1896-1934)
Foi um psicólogo, Empatia é, hoje, um tema tão importante que Aos poucos, ela começa a esquecer certas pa-
proponente da até ganhou uma biblioteca própria. Um dos lavras e a se perder pelas ruas de Manhattan. É
Psicologia cultural- maiores especialistas internacionais sobre o diagnosticada com Alzheimer. A doença coloca
-histórica. Pensador tema, o filósofo Roman Krznaric, lançou o proje- em prova a força de sua família. Enquanto a rela-
importante em
sua área e época,
to A Biblioteca da Empatia (Empathy Library, em ção de Alice com o marido, John (Alec Baldwin),
foi pioneiro no inglês - https://empathylibrary.com/), baseado se fragiliza, ela e a filha caçula, Lydia (Kristen
conceito de que o na crença de que a empatia pode transformar Stewart), se aproximam.
desenvolvimento tanto as nossas próprias vidas quanto as socie- Outro que não poderia ficar de fora é o sensibi-
intelectual das dades em que vivemos. Não é só: o cinema tem líssimo A Troca, de Clint Ewastood. Na cidade de
crianças ocorre em
função das interações
oferecido obras memoráveis sobre o assunto. Los Angeles, em março de 1928, Christine Collins
sociais e condições Um deles, Os meninos que enganavam nazistas, (Angelina Jolie), uma mãe solteira, se despede
de vida. de Christian Duguay, foi baseado no livro ho- de Walter (Gattlin Griffith), seu filho de 9 anos,
mônimo de Joseph Joffo e conta a história real e parte rumo ao trabalho. Ao retornar, descobre
dos irmãos judeus Joseph e Maurice, que se que Walter desapareceu, o que faz com que
separam da família durante a Segunda Guerra inicie uma busca exaustiva. Cinco meses depois
RUBEM 8 Mundial, quando a França foi ocupada pelos a polícia traz uma criança, dizendo ser Walter.
AZEVEDO ALVES nazistas. Os dois têm de encontrar coragem e Atordoada pela emoção da situação, além da pre-
(1933-2014) desenvolver estratégias para fugirem dos ale- sença de policiais e jornalistas que desejam tirar
Foi um psicanalista, mães, enquanto tentam reencontrar seus pais. proveito da repercussão do caso, Christine aceita
educador, teólogo, Outro filme importante é Para Sempre Alice, diri- a criança. Porém, no íntimo, ela sabe que ele não
escritor e pastor
gido por Richard Glatzer e Wash Westmoreland, é Walter e, com isso, pressiona as autoridades
presbiteriano
brasileiro. Foi autor que narra a história de Alice Howland (Julianne para que continuem as buscas por ele.
de livros religiosos, Moore), uma renomada professora de linguística. Só para começar.
educacionais,
existenciais e
infantis.
de que não haja confusão entre os seus pró- Devemos lutar para criarmos verdadeiros
prios sentimentos e os sentimentos do outro. discípulos de empatia, devemos ser professo- SOBRE O AUTOR
Usei um termo anteriormente, que deve ser res dignos de sermos imitados, para que possa- MÁRCIO SCARPELLINI VIEIRA
é pedagogo, cientista social,
reforçado. “Intencional” é uma predisposição mos perpetuar nossa existência na existência palestrante e administrador de
que devemos trazer para as nossas atividades dos nossos alunos. Empresas. Diretor-executivo do
Colégio Ouro Preto e professor
e relações, pois querer fazer algo traz qualida- Boa aula, boa empatia! Universitário.
viso, aconteceram não apenas no Brasil, aos dez anos da revolução sandinista.
mas em diversos países. O livro é dividido Paraguai vem na sequência, e o tema da
geograficamente: a parte I traz as falas palestra suscitou inúmeras perguntas dos
ocorridas na Argentina, com uma entre- participantes, sobre a educação popular
vista interessantíssima, A confrontação na América Latina. Uruguai fecha o livro,
não é pedagógica e sim política, em que composto de duas entrevistas, uma sobre
diz: “Um dos maiores desafios do momen- educação, política e religião e a outra
to é como fazer frente à ideologia parali- abordando educação, televisão e mudan-
sante e fatalista que o discurso neoliberal ça social.
tem imposto”. A entrevista foi dada à A reunião dos textos foi tutelada por Nita
imprensa de San Luis, em 1996. Freire, também educadora e filha de edu-
O Brasil está na segunda parte, e cadores, que se casou com Paulo em 1986
Educação Popular e processos de apren- e desde sua morte, em 1997, vem dissemi-
dizagem devia ser lido por todo profes- nando sua obra. Essencial.
© REPRODUÇÃO
de conhecer, de ser e de atuar no mundo.
Ler com desenvoltura e competência pode
Nesse momento, a língua deixa de ser mera
definir o sucesso de qualquer empreen-
herança imposta aos indivíduos como mem-
dimento. Uma boa leitura compreende a
reflexão sobre a natureza simbólica da bros da comunidade e é posta a serviço de
linguagem e a revelação dos efeitos de suas escolhas e de sua capacidade de criar.
sentido de um texto com base em sua cons- O ensino da língua é a ideia fixa que percor-
trução formal. Em A linguística, o texto e o re os doze capítulos desta obra. Em cada
ensino da língua, de José Carlos de Azeredo, um deles, insistimos na condição que o tex-
reafirma-se a importância da palavra como to detém de objeto e objetivo do ensino da
eixo de qualquer projeto educacional, uma língua materna. Os capítulos 1 e 2 focalizam
vez que é na posse e no exercício da lingua- os percursos; os fundamentos (aspectos
gem que se reconhece o traço essencial do teórico-conceituais e metodológicos) são
modo humano de ser. matéria dos capítulos 3 a 8. Os capítulos 9
O leitor pode dar um salto qualitativo a 12 são incursões no território da literatura
nos planos intelectual e cultural ao com- brasileira pelo caminho da língua.
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Ano 8 - Edição 75
Ethel Santaella
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feitos para as crianças dormirem. Quando foram inventadas DIRETOR-GERAL: Angel Fragallo
COORDENADORA-EXECUTIVA: Juliana Klein – Mtb. 48.542
serviam como uma forma de dar medo nas crianças para EDITORA DE CONTEÚDO: Mara Magaña – Mtb. 15.179
que elas não fizessem algo considerado errado. Muitos es- linguaportuguesa@fullcase.com.br
DIAGRAMAÇÃO: Rodrigo Matias
tão mais para histórias de terror, algo que a série televisiva REVISÃO: Adriana Giusti
REDAÇÃO: Abrahão Costa de Freitas, Avram Ascot, Jussara
tentou resgatar. Saraíba, Maria Beatriz, Márcio Scarpellini
COLABORADORES: Aline Fernanda Camargo Sampaio,
Traduzidos para mais de 170 idiomas, tem uma importância Eduardo Guimarães, Fernanda De Paula, Luiz Guilherme
gigantesca para a Alemanha. Tanto que sua primeira edição Sakai, Marcelo Niel, Roberto Sarmento Lima
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Reticências Reflexão de Marcelo Niel
Profissão
“Diante de
problemas tão
complexos, o
de risco risco de adoecer
mentalmente
torna-se
uma rápida
H
á alguns anos, tem-se percebido aumento da e crescente
© ISTOCKPHOTO.COM
procura por atendimento psiquiátrico por parte de
professores do ensino médio de escolas públicas,
realidade”
sejam elas municipais ou estaduais. Depressão,
ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático têm sido
os principais diagnósticos para esses trabalhadores, e, não
raramente, muitos deles acabam necessitando permanecer
afastados do trabalho por longos períodos. esse professor encontrar novos caminhos profissionais, seja
E por qual motivo? O nome da “doença” que causa essa na rede de ensino privada, seja até mudando de profissão;
doença é violência. O professor tem sido vítima de vários mas como resolver o dilema de professores que dedicaram a
tipos de violência, um monstro de várias cabeças que não vida ao ensino e suas opções profissionais se encontram mais
ataca silenciosamente: gestores truculentos e insensíveis; estreitas? Em um momento em que o ensino público encontra-
perseguições e assédio moral no ambiente de trabalho; -se cada vez mais sucateado, a saúde psíquica dos nossos
violência psicológica e mesmo física por parte de alunos e mestres vai sendo cada vez mais estrangulada.
até de pais de alunos; remuneração insuficiente, que obriga Mais recentemente, um novo ataque: a chamada “Escola
professores a cargas horárias triplas, exaustivas e inviáveis sem partido” e o aumento da vigilância sobre o livre pensa-
do ponto de vista da saúde. Tudo isso muitas vezes vem em mento daqueles que teriam por função primordial desenvolver
bloco e se soma aos problemas na vida pessoal desses que, o senso crítico e a capacidade de reflexão nas mentes dos
muitas vezes, escolheram a profissão pelo sonho em exercer indivíduos em formação.
a vocação de ensinar, o que tem se tornado cada vez mais Diante de problemas tão complexos, o risco de adoecer
difícil nesse contexto tão árido. mentalmente torna-se uma rápida e crescente realidade.
A violência não para por aí. Grande parte dos professores Entretanto, uma vez que se adoece, é imprescindível buscar
que precisa recorrer ao atendimento psiquiátrico nos hospi- tratamento, sendo que, muitas vezes, o apoio psiquiátrico com
tais aos quais têm direito se vê desamparada e descoberta medicações faz-se necessário. Além disso, o apoio psicológico
de um atendimento de qualidade. E quando necessitam se é de fundamental importância, porque é preciso, com a ajuda
afastar do trabalho, têm seus direitos muitas vezes negados, de um profissional capacitado, fortalecer-se para poder ga-
com suspensão e negativas de licenças. Além disso, quando rantir a volta ao trabalho ou até tomar decisões que envolvam
afastados do trabalho, perdem muitas das premiações, e novos rumos profissionais.
seus rendimentos são drasticamente reduzidos em um mo- Mas, antes de adoecer, é recomendável que esses profis-
mento bastante crítico da vida. sionais procurem apoio psicológico preventivo: psicoterapias,
O cenário é bem crítico, e as soluções parecem cada vez atividade física, atividades artísticas e de lazer podem funcio-
mais difíceis de ser encontradas. Aos iniciantes na carreira, nar como válvulas de escape para o estresse ocupacional e
pode ser um pouco mais fácil, porque há mais chances de afastar as doenças para longe.
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