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LEITURAS

DO MUNDO
DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA,
FOTOGRAFIA E HISTÓRIA

Mesmo sem
usar palavras, o
misterioso artista

INTERPRETAÇÃO INTERNACIONAL britânico Bansky


deixou na fachada
de um edifício da
Representações A antipoesia de cidade inglesa de
Dover uma dura
da oralidade Nicanor Parra propõe crítica sobre a
saída do Reino
na escrita pacto desconcertante Unido da União
Europeia (UE).
contemporânea com leitor

RESENHA: Corpo humano como produtor e receptor de ensinos na visão de um xamã yanomami
GRAMÁTICA: Como a tessitura do texto pode assegurar sua completa compreensão e intenção
Na s L i v r a r i a s !

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EDITORIAL

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Fragmentada
Toda vida é fragmentada. Em emoções, lembran- ginário coletivo. Essa é a tese defendida por Abrahão
ças, projetos… Da mesma forma que uma menina em- Costa de Freitas em A Língua em Prosa e Diversos,
preende sua Viagem ao Céu e constrói um universo nossa matéria de capa.
particular que divide memórias e atualidade, como Um debate por si só é todo fragmentado e expõe
vemos nesse Ponto de Encontro de Jussara Saraíba, as contradições do tema escolhido. Imagina, então, se
o mar e suas ondas, as letras e suas múltiplas funções esse assunto for o nosso País, com todas as particulari-
também não são homogêneas, estáticas. É o que ve- dades que carregamos. São as Querelas do Brasil, ana-
mos na entrevista desta edição com o marujo literário lisadas por Luiz Guilherme Sakai. E quem escancarou
Nei Duclós. E isso se dá em toda parte, principalmente que até a poesia apresenta um fragmento daqueles foi
quando “fiamos” um texto, com sua tessitura de colcha o escritor chileno Nicanor Parra, que optou por ser um
de retalhos, o qual temos de organizar, mostra Avram antipoeta e, mesmo assim, deu Gracias a La Vida, pro-
Ascot em Hora de Fiar. va Maria Beatriz.
Para lidarmos com todos esses pedaços – e resis- A modernidade, ela a própria definição de frag-
tirmos àqueles que nos machucam – é preciso muita mentação, provoca os Balbucios na Literatura Con-
coragem e um modo lírico de olhar o mundo, mesmo temporânea, na tentativa de deixá-la mais transpa-
na adversidade. Por isso precisamos ler mais Bertold rente e identificá-la com o lugar social de uma possí-
Brecht, argumenta Maria Beatriz em Resgate. O le- vel representação, detalha Roberto Sarmento Lima.
tramento também é um terreno em que a diversida- E então uma menina, Clarice, chega cheia de ques-
de faz morada e convive com várias possibilidades – a tionamentos e luz, na criação de Roger Mello, e não
literatura infantil é uma delas, ensina Aline Fernanda sai da Cabeceira, de Fernanda De Paula. Enquanto
Sampaio em Lá Vem História… Já Educadores em isso, o corpo transforma-se em A Pele e o Papel, na
Lados Opostos demonstra que a divisão pode virar visão do xamã yanomami Davi Kopenawa, exposta
estilhaços no processo de alfabetização, uns de um por Eduardo Guimarães. Mas, mesmo fragmenta-
lado do método fônico, outros do construtivismo, dos, Márcio Scarpellini Vieira professa que Nenhum
e corre-se o perigo de tudo se transformar em um Professor é uma Ilha, em Ponto de Vista.
grande imbróglio se não soubermos interpretar e co- Enfim, o importante é não permitir que fragmen-
dificar as propostas. tos virem cacos e transformem nossa vida em uma
Mas fragmentar é tudo o que Lygia Fagundes Profissão de Risco, alerta Marcelo Niel em Reticências.
Telles sempre fez com sua prosa. Seus personagens Aproveite esta edição fragmentada, que pulsa com
são latentes, com emoções à flor da pele, demonstra a diversidade de temas e opiniões e respeita todos.
seu Coração Ardente em Perfil. E a língua, tão multi-
facetada, divide-se mais e mais e dialoga com o cine- Boa leitura!
ma, a história e a literatura, para construir nosso ima- Mara Magaña, Editora

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 3


SUMÁRIO EDIÇÃO 75
VOL. 8 / Nº 75 / ANO 2019

40

32. CAPA
LEITURAS DIÁLOGOS
DO MUNDO
DIÁLOGOS ENTRE LITERATURA, DA LÍNGUA
FOTOGRAFIA E HISTÓRIA

Como a linguagem interage


com as múltiplas manifestações 44
culturais, permitindo a nós, seres
humanos, interpretarmos o que
Mesmo sem
usar palavras, o
misterioso artista

INTERPRETAÇÃO INTERNACIONAL britânico Bansky


deixou na fachada
de um edifício da
Representações A antipoesia de cidade inglesa de

da oralidade
na escrita
Nicanor Parra propõe
pacto desconcertante
Dover uma dura
crítica sobre a
saída do Reino
Unido da União
Europeia (UE).
nos afeta e construirmos nosso
contemporânea com leitor
imaginário coletivo.
RESENHA: Corpo humano como produtor e receptor de ensinos na visão de um xamã yanomami
GRAMÁTICA: Como a tessitura do texto pode assegurar sua completa compreensão e intenção

08 18 54

20

08. Entrevista: 20. Leitura e 48. Interpretação LEITURA RÁPIDA


Nei Duclós desnuda uma Escrita de Texto
de suas maiores criações, Como a literatura infantil A literatura 05. Ponto de
Jack o Marujo, e mostra pode se transformar contemporânea tem Encontro
o porquê de sua paixão 28 sido marcada por uma Tudo é história…
em excelente porta
avassaladora pelo mar. de entrada para o linguagem próxima à
oralidade, na busca
06. Síntese
letramento. Fique por dentro dos
14. Gramática de identificação da
acontecimentos do mundo
28. Literatura voz narradora com a da Língua Portuguesa e da
representação de seu Educação.
Brasileira lugar social.
Lygia Fagundes 27. Acontece
Telles mostra prosa 54. Resenha Escolas que inovam na
A tessitura do texto, ou a
fragmentada com O corpo como produtor proposta pedagógica.
forma como as palavras e
frases se combinam, é que mosaico de personagens e receptor de ensinos
rico e perturbador. na visão do xamã
53. Cabeceira
assegura a compreensão
yanomami Davi A poeticidade inquietante em
e intenção de um bom
desenvolvimento da 40. Debate 44. Literatura Kopenawa.
Clarice, de Roger Mello.

escrita. As contradições que Estrangeira 64. Estante


caracterizam o Brasil e A antipoesia de 58. Ponto de Vista As novidades que estão
18. Resgate que se radicalizaram nos Nicanor Parra chega A empatia pode ser chegando às livrarias.
A necessidade de ler últimos anos na arte, finalmente ao Brasil a solução para a
Bertold Brecht em tempos tanto na escrita como na em antologia de seus aprendizagem em 66. Reticências
sombrios. literatura e na música. melhores livros. sala de aula. Professor vira profissão de risco.

4 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Texto de Jussara Saraíba Ponto de Encontro

Viagem ao Céu
V “A língua tem sua
iver no mundo das letras é, talvez mais do que em
qualquer outro ambiente, viver no mundo do “era
uma vez…”. Tudo é história, principalmente em sala história, seus caminhos,
de aula: o pequeno aluno que tem dificuldade de
aprendizagem traz uma história e tanto. O sabe-tudo também.
descaminhos, palavras
Os livros de leitura que o mestre indica abrem janelas para um que ficam, palavras que se
mundo impensável. A língua tem sua história, seus caminhos, despedem, palavras que
descaminhos, palavras que ficam, palavras que se despedem,
palavras que somem sem nos dar adeus. E outras chegam, somem sem nos dar adeus”
empoderadas, ansiosas, empertigadas ou desleixadas. Não
importa, também terão seu espaço no olimpo das narrativas.
Pensei nisso conversando com minha pequena vizinha, Suave, para fazer o diagnóstico do que eu já sabia. Deitei lei-
Jéssica. Ela tem seis anos, diz com orgulho que já sabe ler e, tura corrente, mas achava que b+a ba, b+e be etc. não eram
em seu primeiro dia letivo, me mostrou o caderno que levava propriamente algo para se ler. E perguntei à queima-roupa:
com seu nome escrito, escondido da mãe, que não queria “Tem alguma história de verdade?”. Ela me deu, então, um pe-
que a filha o “estragasse” antes de chegar à escola. “Ela queno livrinho, A Viagem de Dona Ratinha, da Melhoramentos
não sabe”, cochichou, “mas escrevo em tudo quanto é lu- dos bons tempos. Não sei se para realmente analisar o que eu
gar”. E perguntei, curiosa: “O que você escreve?”. “Ora”, me sabia ou para se ver livre de mim e poder dar, enfim, atenção
respondeu, “o que todo mundo que sabe escrever escreve: às outras crianças, essas, sim, efetivamente alunas.
histórias”. E lá foi ela, com seu uniforme luzindo, sua mochila Passei o resto do dia lendo aquele livrinho, que já tinha
de bichinhos e um enorme sorriso no rosto. Quando chegou bastante texto. Vez em quando, a professora botava olhos em
à esquina, virou-se e gritou: “Quando eu chegar, eu conto mim, e eu fingia que não percebia, só para não ter de parar
como foi a história toda”. a leitura. Mas a aula chegou ao fim, tinha de devolver aque-
Jéssica me encheu o coração de memórias. A primeira delas la preciosidade, e fui entregá-lo a ela, que me disse: “Você
diz respeito a assuntos açucarados. Também tinha seis anos, gostou mesmo, não é? Pode levar para casa”. Saí saltitando.
também estava feliz porque, finalmente, poderia frequentar o No outro dia, entreguei-lhe logo na entrada, já sabia de cor a
primário. Como, naquele tempo, ainda não tinha idade para saga da ratinha que empreendia uma longa viagem com seu
entrar no primeiro ano, fui admitida em pleno maio, como uma joelho machucado. Agradeci e confessei: “Sabe que eu tenho
espécie de ouvinte. Não cabia em mim de tanta felicidade, por um livro inteiro, grandão, do Monteiro Lobato, e li ele todinho,
isso peguei meu saco de balas Juquinha e fui distribuir na porta o Viagem ao Céu?”. A professora abriu os olhos de espanto
de casa para a meninada toda. Lembro que minha mãe sentou e, amante do escritor, disse: “Boa viagem nesse nosso céu”.
comigo e explicou tudo tim-tim por tim-tim. Que eu, na verdade, Devo dizer que a Dona Marly conseguiu quebrar régua e com-
não estava no primeiro ano, era só para escutar a professora, passo, mas fez valer, à custa de muitos relatórios (quantas
porque não era de verdade. Eu iria fazer para valer depois. histórias), aquele ano letivo para mim. Acho que ela foi uma
Dei de ombros. E criei uma outra história. Quando a profes- das “culpadas” por minhas viagens literárias e ao mundo da
sora, que se chamava Marly, passou “de lição”, em meu cader- língua. Virei professora e jornalista e vivo de contar histórias.
no de caligrafia, uma linha cheia de “os”, completei a página Uma será a da Jéssica, a qual espero nesse fim de tarde que
como um raio. Ela voltou e colocou um “a”. Quebrei a barreira ora escrevo com ansiedade. Como terá sido o seu “era uma
do tempo. Resolveu, então, me emprestar a cartilha Caminho vez” de hoje?

JUSSARA SARAÍBA é jornalista e contadora de histórias.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 5


Síntese
COMPETÊNCIAS e que podem ser desenvolvidas ao
longo da vida, como persistência, oti- PEDAGOGIA SAI
EMOCIONAIS NA mismo, criatividade, tolerância à frus- NA FRENTE COMO
ORDEM DO DIA tração, foco, motivação, capacidade de
ouvir o outro, capacidade de trabalhar CURSO MAIS
em equipe, entre outras. E é imprescin-
dível que sejam trabalhadas em todas
PROCURADO
Segundo o Censo da Educação
as etapas de formação.
Superior, mais de 3,2 milhões
Na educação, essas competências po-
de pessoas ingressaram em
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dem ser trabalhadas de diversas formas


em integração com as disciplinas do um curso superior no Brasil em
currículo. Na aula de História, por exem- 2017. Desse total, 296.776 (9,2%
plo, professores e alunos podem discutir do total) optaram pelo curso de
o comportamento da população durante Pedagogia, que pela segunda
um determinado período, como o mo- vez consecutiva se destacou
As competências socioemocionais estão vimento dos Black Block, que iniciaram como o programa de graduação
na ordem do dia quando se fala em uma série de passeatas e atividades no com maior número de ingres-
educação e têm sido muito pesquisadas Brasil a partir de 2013. santes do País.
devido à sua influência em diversos É uma forma de os estudantes exerci- O curso também tem o maior
indicadores de sucesso pessoal, escolar tarem a resiliência e a capacidade de se número de concluintes (126.144)
e profissional. Há uma variada gama de adaptar a todas as transformações que e aparece em segundo lugar
características e habilidades que com- já batem à nossa porta e as que estão em número de matriculados
põem as competências socioemocionais para chegar. (714.345), perdendo apenas para
Direito, que tem 879.234 alunos.
A quantidade de alunos na
Pedagogia é bem superior
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE à observada na média da

ALFABETIZAÇÃO NA CONTRAMÃO DO MEC Organização para a Cooperação


e o Desenvolvimento Econômico
(OCDE), organização que reúne
A Associação Brasileira de diversos períodos e que merece uma
36 países, entre eles as nações
Alfabetização (Abalf) posicionou-se, análise das conquistas do passado em
mais ricas do mundo. Para cada
em carta, contra as declarações do comparação com o presente, uma vez
10 mil habitantes, temos uma
ministro da Educação, Ricardo Vélez, que só criticar o momento atual acaba
e do secretário de Alfabetização, desconsiderando as lutas antigas. taxa de 31,5 pessoas ingressan-
Carlos Nadalim, em que ambos cri- “Há uma ideia amplamente difundida do na carreira. Na OCDE, a rela-
ticam o conceito do letramento e de que a alfabetização não avança ção é de 5,1 para cada 10 mil.
defendem uma metodologia única no Brasil. Essa conclusão equivo- O Censo também trouxe a
de alfabetização. cada resulta da análise isolada de relação das 15 licenciaturas
A carta, que foi assinada por mais índices, que desconsidera uma com maior número de alunos
de 100 grupos de centros de pesqui- comparação essencial entre séries matriculados. Pedagogia apare-
sa, ONGs, associações científicas e históricas. Por exemplo, do final do ce em primeiro lugar, seguida
dirigentes, afirma que a associação século XIX até as primeiras décadas pela formação de professor de
está aberta para diálogos com a se- do século XXI, passamos de 17,7% educação física. Este tem quase
cretaria de Nadalim para discussões de alfabetizados (primeiro Censo o dobro de alunos do terceiro
e proposições de política de alfabeti- de 1872, sem computar a população colocado, o curso de formação
zação para o País. escrava) para 93% da população de professor de matemática. Em
Entretanto, o grupo deixa claro que com 15 anos ou mais de idade (IBGE, relação a outras carreiras, como
a história da educação passou por 2017)”, reforça o grupo na carta. o de professor de física, a pro-
porção é 6,5 vezes superior.

6 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


© DIVULGAÇÃO
WHATSAPP
É O MEIO DE CAATINGA VIRA

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COMUNICAÇÃO CENÁRIO DE GAME
DOS ANALFABETOS E TRAZ ATÉ GUERRA
FUNCIONAIS DOS CANUDOS
Segundo o Inaf (Indicador de O cotidiano sertanejo do século XIX,
Analfabetismo Funcional), cerca de a partir das venturas e desventuras
30% da população brasileira, entre da jovem negra Cícera, na Bahia, é
15 e 64 anos, é considerada analfa- o ponto de partida para o game de
beta funcional. Isso quer dizer que zam o Facebook. Mesmo a rede social origem baiana Árida.
essa parcela da população sabe ler exigindo certo domínio de leitura e A paisagem do sertão nordestino,
o básico (como uma placa e o nome escrita, isso não foi barreira, uma a Guerra de Canudos e as carac-
de um ônibus), escrever o próprio vez que 92% dos analfabetos funcio- terísticas da personagem central
nome e conferir troco, mas não con- nais enviam mensagens escritas no tornam o jogo eletrônico uma
segue interpretar textos simples e WhatsApp, contra 99% dos alfabetiza- atividade educadora, que quebra
realizar operações matemáticas. Mas, dos, e 84% dos analfabetos funcionais estereótipo e traz a representativi-
mesmo assim, pesquisas realizadas compartilham textos, enquanto 82% dade da força feminina.
no ano passado pelo instituto mos- dos alfabetizados fazem o mesmo. Está tudo lá: a seca nordestina, a
tram presença assídua e maciça na Os dados chamam a atenção, princi- luta pela sobrevivência, a caatinga
internet – praticamente a mesma dos palmente no que diz respeito às fake em todo seu esplendor, a música,
considerados “alfabetizados”. Dos news, distribuídas em texto, foto, o cordel e nem mesmo o grafite fi-
analfabetos funcionais, 86% usam vídeo e áudio, colocando em xeque as cou de fora. O game recebeu apoio
WhatsApp, 72% acessam o Facebook informações que chegam ao usuário, de historiadores e especialistas
e 31% têm conta no Instagram. Já 89% muitas vezes despreparado para se- da Uneb (Universidade do Estado
dos alfabetizados, por exemplo, utili- parar o trigo do joio. da Bahia) e está há cerca de dois
anos em processo de construção.
O primeiro episódio deverá ser
UNESCO LANÇA EM HQ VIDA lançado nesse primeiro trimestre

DAS MULHERES NA ÁFRICA para computadores.


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A Unesco (Organização das Nações traduzida para o português . Njinga


Unidas para a Educação, a Ciência e Mbande (1581-1663) foi uma diplomata
a Cultura) está disponibilizando em e rainha da atual Angola que resistiu
HQ o livro Mulheres na história da à invasão portuguesa. O livro ainda
África via on-line e de forma gratuita. aborda o tráfico de escravos, como
Trata-se da biografia de lideranças Njinga inspirou diversos povos de seu
femininas que se destacaram no continente e a construção da identi-
continente africano desde a luta pelo dade da população de seu reino.
direito das mulheres, de seus terri- Wangari Maathai e o Movimento
tórios às ameaças ao meio ambiente. do Cinturão Verde e Funmilayo
Além da história, há uma breve Ransome-Kuti e a União das Mulheres
orientação pedagógica para auxiliar de Abeokuta completam a série da
o professor em sala de aula. Unesco, porém estes livros só foram
Njinga Mbande: Rainha do Ndongo traduzidos em inglês
e do Matamba (ed. Cereja) já está e francês.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 7


ENTREVISTA / Nei Duclós

O marujo
das letras
Um de seus personagens mais famosos,
Jack, um náutico como ele, é assíduo
frequentador das redes sociais. Nei Duclós,
gaúcho de Uruguaiana, navega com destreza
e suavidade nos mares literários e infovias,
assim como em outros também, ou, como ele
prefere, nos pampas em movimento
por Mara Magaña

P
oeta, escritor e jornalista, formado em História pela USP,
a paixão pela escrita o pegou de jeito bem cedo, ainda na
infância. O primeiro poema aconteceu aos 9 anos. É ativo
nas redes sociais, publica e-books e livros impressos inces-
santemente. Também escreve sobre literatura, cinema – outra de suas
paixões –, história, política, esporte e tem se dedicado ultimamente
às memórias. O mais novo rebento, um “romanção”, está para chegar.
Gaúcho de Uruguaiana, hoje mora em Florianópolis. “Sou um homem
que só sabe viver perto da água. Aos 9 anos me levaram para conhe-
cer o mar. Era o pampa, mas em movimento. Fiquei possesso. Entrei
dando soco nas ondas. Foi paixão à primeira vista. Isso em Tramandaí.
Quando voltei dessas férias em Uruguaiana comecei a fazer poesia que
já falava de mar desde a primeira estrofe”. Entre seus 34 livros, o mar
tem sido, muitas vezes, o protagonista, como No Mar, veremos. O sim-
pático protagonista de Jack o Marujo, por vezes lírico – “Um marujo é
feito de partidas. O reencontro no cais é só mais uma forma de solidão”
–, por vezes cortante – “Jack o Marujo levou um grupo de consultores de
autoajuda para um passeio em alto-mar. Voltou só, assobiando. Grupo?
Que grupo?” –, que o diga!

8 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


“Acho que a literatura brasileira
hoje, múltipla, extensa, com muitos
talentos, é uma compensação para
a pobreza geral da política e da
economia. É uma forma de peitar a
mediocridade ambiente”

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 9


ENTREVISTA / Nei Duclós

PABLO RUIZ 1 CPLPLIT: Você é um autor múltiplo, com primeiro foi tradicional, como PICASSO1. Com o
PICASSO variados interesses. E, como diz o es- fundamento consolidado, você tem recursos
(1881-1973) critor Ernani Terra, parece que trabalha para acompanhar ou transcender. Vejo muito a
Foi um pintor
espanhol, escultor,
como um mouro. De onde vem essa agili- ansiedade de ser vanguarda sem ter a referên-
ceramista, cenógrafo, dade mental? cia. Cai no vazio. Mas é claro que a gramática
poeta e dramaturgo NEI DUCLÓS: Vocação e treinamento. E a boa muda, evolui, não é estática. E tem aquela má-
que passou a maior formação escolar. Comecei a escrever poesia e xima do Oswald (de Andrade), “A CONTRIBUIÇÃO
parte da vida na
França. É conhecido ficção na infância e adolescência. Depois vie- MILIONÁRIA DE TODOS OS ERROS”2.
como o cofundador ram as barras do jornalismo. Mais tarde cur-
do Cubismo – ao lado sei História na USP. Isso tudo me deu muito Que é extraordinária… Livro só é consi-
de Georges Braque.
Entre as suas obras preparo. Escrevo diariamente há décadas. Sou derado livro, por boa parcela dos leito-
mais famosas estão autor onívoro. Faço todo gênero de literatura res e escritores, o de papel… Aquela his-
os quadros cubistas mais reportagens e ensaios. tória de sentir o cheiro do livro novo etc.
As Meninas D’Avignon
(1907) e Guernica
Os e-books ainda são considerados “ci-
(1937), uma pintura Este é um ponto crucial para a nova dadãos de segunda classe” por boa parte
do bombardeio geração de autores: formação escolar. da intelectualidade. Mas vem crescendo,
alemão de Guernica Que é o nó do nosso futuro. Com as mu- as editoras começam a apostar suas
durante a Guerra
Civil Espanhola. O danças que já estavam em pauta, refor- fichas nesse formato. Com a crise que se
pintor de Málaga mulação total do ensino médio e com as instituiu no mercado livreiro, você acre-
demonstrava talento atuais lides do novo governo, como vê o dita que o e-book vai deslanchar?
artístico desde
jovem, pintando de cenário hoje e em um futuro próximo? ND: Acho que tem espaço para tudo. O impres-
forma realista por ND: Há tempos a educação vai mal. Minha so vai continuar, e o e-book, crescer. Eu vejo o
toda a sua infância geração teve sorte, estudei em bons colégios e-book como um exercício de edição. O impres-
e adolescência. Na
públicos e particulares e desde cedo traba- so é definitivo.
primeira década
do século XX, o lhamos com disciplina e liberdade. Não havia
seu estilo mudou mais palmatória, mas havia rigor nos estudos, Quando você parte do e-book para o im-
graças aos seus com muita cobrança. A escola precisa alfabeti- presso, muda muita coisa em sua escrita?
experimentos com
diferentes teorias, zar e ensinar o principal instrumento, que é a ND: Não. O texto ou poema ficam idênticos.
técnicas e ideias.  língua. Com boa formação na linguagem, tudo
fica acessível. É a base. Sua escrita, como já disse, é múltipla.
Tem uma predileção por algum gênero?
Você é um dos poucos autores que, indivi- ND: Sou poeta desde os 9 anos. É meu gênero
dualmente, abraçaram as novas tecnolo- favorito. Aos 13 escrevi uma espécie de romance
gias. Tem um olhar bastante diferenciado em cadernos de espiral. Depois parti para a crô-
dos escritores com relação aos e-books, nica, o conto e o ensaio. Além da reportagem.
por exemplo. Sua linguagem mostra-se Tenho gostado de fazer romance. Lancei um
evolutiva… A gramática serve como base, este ano que passou pela Amazon, A outra luz
mas não como recurso linguístico. Isso do subúrbio. Mas também lancei quatro e-books
deveria estar presente no dia a dia do em 2018. O jornalismo, principalmente o de re-
ensino da Língua Portuguesa? vista, foi um excelente treinamento para fazer
ND: Meus filhos me ensinaram a lidar com no- ficção. O chamado texto redondinho de grande
vas tecnologias. Tenho um blog desde 2002, o sedução. E a poesia é fundada em alguns poe-
outubro.blogspot.com, com mais de cinco mil tas perfeitos, como Lorca, Cabral, Drummond…
posts. E faço e-books porque tem a agilidade Trabalhei muito em literatura depois que mudei
para acompanhar minha produção diária e o para Florianópolis em 2013. Já tinha morado aqui
impresso é caro. A gramática é fundamental, antes, mas desta vez foi para valer. E mergulhei
é o parâmetro. Você só transgride em relação no trabalho. Há muito tempo queria me dedicar
a algo consolidado. O pintor de vanguarda a isso. O blog incentivou muito a crônica, mas

10 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


A VOZ DE JACK
Jack navega entre o lirismo São seus olhos, disse a sus- perguntou o cético. Nada, “A poesia (e a literatura em
e a língua afiada. Criado ape- pirosa. Não, são suas curvas, respondeu Jack o Marujo. Se geral) deve ser um dos fun-
nas para distrair os filhos de disse Jack o Marujo. aprende apenas a sonhar. damentos da educação. É
Duclós, invadiu outras águas por meio da literatura que
e, desde 2012, vem destilan- Por que o senhor tem esse “Acho que a literatura brasi-
apreendemos o mundo. Nos
do seu hálito com cheiro de nome estrangeiro? pergun- leira hoje, múltipla, extensa,
maresia por aí, como estes: tou o Grumete. Nasci no com muitos talentos, é uma livros didáticos antigos ha-
alto-mar. Terra de ninguém, compensação para a pobreza via muita poesia. Foi lá que
Cansei de navegar, vou ser lugar sem porto. Sou vento, geral da política e da econo- tomei contato com Castro
funcionário público na capi- disse Jack o Marujo. mia. É uma forma de peitar a Alves, Olavo Bilac, Camões”
tal, disse o Imediato. Melhor, mediocridade ambiente”
oferenda ruim o mar devol- O senhor já discutiu a rela- “O Jack é um personagem
ve, disse Jack o Marujo. ção? perguntou a conselhei- “Poesia, para mim, é uma baseado nas leituras que fiz
ra. Já, mas não levo jeito. Por linguagem de poder, que do Emilio Salgari, uma cria-
Todos acham o senhor falta de argumento passo a enfrenta as linguagens do
tura divertida e aventureira.
muito mau, disse a admira- mão nas coxas, disse Jack o poder, como a corporativa,
dora. Conversa, disse Jack Marujo. a religiosa, a política etc. A Claro que depois coloquei
o Marujo. Sou mole como literatura assim entra no muita coisa minha. Ele diz o
barbatana. Mas venho junto Viver no mar é perda de jogo com sua força. O poema que gostaria de dizer, mas
com o tubarão. tempo. O que existe por lá? desmascara o discurso” na voz dele funciona melhor”

também publiquei crônicas em jornal impresso e Todos os gêneros cumprem essa função? 2 “A CONTRIBUIÇÃO
mais tarde em e-books. Em tudo o que escrevo há ND: Principalmente a poesia que, para mim, é MILIONÁRIA
DE TODOS OS
o poder da poesia. Para que haja boa literatura é uma linguagem de poder, que enfrenta as lin- ERROS”
preciso que exista um ambiente favorável, múlti- guagens do poder, como a corporativa, a religio- A frase, que se tornou
plo, coletivo, com muita gente trabalhando. Dessa sa, a política etc. A literatura assim entra no jogo célebre, de Oswald
vivência e experiência o tempo e os leitores sele- com sua força. O poema desmascara o discurso. de Andrade aparece
no poema Falação,
cionam o que pode surgir de mais significativo Tenho um e-book de ensaios literários (e outro
que abre o livro Pau-
de cinema) o qual coloca em lados opostos o dis- Brasil e diz: “a língua
Há uma contradição no mercado: o País é curso, que é a linguagem em ruínas e é o que sem arcaísmos. Sem
apontado como iletrado, as editoras quei- vemos todos os dias. E, do outro, a linguagem erudição. Natural
e neológica. A
xam-se da queda das vendas, livrarias literária, com poder de encantamento e síntese. contribuição milionária
fecham, mas, me parece, nunca se publi- de todos os erros”.
cou tanto como agora… Coletivos, princi- Falando em concurso, ainda é uma porta
3 GEOVANI
palmente femininos, pequenas editoras, de entrada para novos escritores? MARTINS
feiras literárias explodem aqui e ali. É um ND: Acho concurso tudo assim meio… Nem É um escritor
bom momento para a literatura? vou falar. brasileiro. Nasceu em
ND: Hoje existem grupos de poetas em todos Bangu, na zona oeste
da cidade. Estudou
os estados do Brasil. Concursos literários, fei- Você é extremamente lírico, mas tam- apenas até a oitava
ras de livros, lançamentos etc. Todos de mãos bém tem uma escrita cortante… Esse série, trabalhando em
à obra. A literatura veio para ficar entre nós. amálgama, que sempre foi a base da boa seguida como homem-
Todo leitor é um autor e vice-versa. Acho que literatura, é o que falta muitas vezes aos -placa, atendente de
lanchonete, entre
a literatura brasileira hoje, múltipla, extensa, novos escritores. Há alguns nomes que outros. Morou nas
com muitos talentos, é uma compensação para vêm surgindo aqui e ali, como GEOVANI favelas da Rocinha
a pobreza geral da política e da economia. É MARTINS³, FERRÉZ⁴ e outros. Você tem e Barreira do Vasco,
antes de ir para o
uma forma de peitar a mediocridade ambiente. acompanhado esses jovens? Vidigal.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 11


ENTREVISTA / Nei Duclós

FERRÉZ 4 ND: Eu fiz resenhas, ensaios e prefácios para podem vir a ser consideradas, agora,
Nome artístico de muitos escritores contemporâneos, desde a como ferramentas de doutrinação…
Reginaldo Ferreira da época em que eu publicava na grande impren- Como enxerga isso?
Silva. É romancista, sa. Escrevi sobre muitos autores. ND: Doutrinação sempre existiu, em maior ou
contista, poeta e
empreendedor. Seu menor escala. Tínhamos pressões pró-patriotis-
livro mais famoso Algum o tocou para valer? mo etc. Hoje há outros vetores interferindo. Mas
é Capão Pecado e ND: Tem muita gente e muitos eu desconheço isso é coadjuvante. O básico é a alfabetização e o
compõe a chamada
literatura marginal o trabalho. Gosto de Ricardo Silvestrin, Juliana treinamento da linguagem, o exercício em busca
por ser desenvolvida Meira, Celso Gutfriend, Marga Cendón, Marcia do domínio da língua. Aí qualquer doutrinação
na periferia das Conti Rubens Jardim, Nydia Bonneti, Elke entra no processo seletivo do aluno prepara-
grandes cidades
Lubitz, Marceli Becker, Paulo Fabris… E muitos do. Ninguém engole as coisas como vieram por
e tratar de temas
relacionados a este outros. Tem também o Carlos Cramez, o Eduardo muito tempo. Sempre há uma elaboração, um
universo. San Martin, o Luiz de Miranda, o Comar Duarte, descarte… O aluno é proativo, não é passivo. Ele
a Vera Ione, a Valéria Surreaux. Tanta gente boa. interage, pode ser mais tarde, mas reage.

VOZES D'ÁFRICA 5 Muita gente mesmo… Esses autores, Uma peça com seus poemas é grata notí-
E NAVIO
NEGREIRO aliás, vêm fazendo furor entre os jovens. cia… Pode adiantar alguma coisa?
São poemas do Você diz que a poesia é uma linguagem ND: Me pediram o mais absoluto segredo (ri-
poeta Castro Alves. de poder… Mas como fazer essa lingua- sos). Tenho que obedecer. Mas digo que é um
Vozes d’África, gem chegar, de fato, ao povo, como in- sonho que pode acontecer.
poema de estilo
épico, pertence ao cluir a poesia na educação?
livro Escravos e põe ND: A poesia (e a literatura em geral) deve ser O mar é um de seus mais caros persona-
em cena toda a dor um dos fundamentos da educação. É por meio gens. Qual o motivo dessa paixão?
de um continente.
da literatura que apreendemos o mundo. Nos ND: Eu fui criado no pampa. Aos 9 anos me leva-
Já Navio Negreiro
é um dos poemas livros didáticos antigos havia muita poesia. ram para conhecer o mar. Era o pampa, mas em
mais conhecidos da Tomei contato com Castro Alves, Olavo Bilac, movimento. Fiquei possesso. Entrei no mar dan-
literatura brasileira. Camões etc. Ao chegar à universidade me co- do soco nas ondas. Foi paixão à primeira vista.
O poema descreve
com imagens e locaram Fernando Pessoa, Shakespeare, Lorca, Isso em Tramandaí. Quando voltei dessas férias
expressões terríveis Maiakóvski. O aluno gosta de fazer poesia, há em Uruguaiana comecei a fazer poesia que já fa-
a situação dos muito exercício nesse sentido, de professores in- lava de mar desde a primeira estrofe. Uruguaiana
africanos arrancados
de suas terras, centivando a meninada a escrever, fazendo ofici- são águas internacionais. Havia fuzileiros navais
separados de suas na com eles, trazendo autores para conversar. A lá. Meu pai era pescador de carreirinha e tive um
famílias e tratados literatura precisa estar impregnada na formação tio que vivia na beira do rio. As águas fazem parte
como animais nos
escolar. Não é apenas uma janela, é um alicerce, de mim. Sou fluvial e marítimo. Moro na praia. O
navios negreiros que
os traziam para uma base, um fundamento da boa formação es- mar é sempre maior e o luar lhe faz a corte, como
ser propriedade de colar. No meu colégio, no antigo ginásio, havia digo num poema. E tem o Jack o Marujo, que é
senhores e trabalhar grêmios literários com gente declamando VOZES um personagem que criei para meus filhos e des-
sob as ordens dos
feitores. D’AFRICA, NAVIO NEGREIRO5 e tantos outros grandes lanchou nas redes sociais. Jack é o cara de frase
poemas… Depois a poesia entrou forte no teatro, cortante e contundente, o de fala direta. Faz muito
como no ESPETÁCULO LIBERDADE, LIBERDADE6. Eu sucesso. Tenho um livro intitulado No Mar, vere-
sonho com uma peça com meus poemas, tenho mos, sobre a história do pescador de barco a remo
recebido notícias de que isso pode acontecer, que diz enfrentar o mar um dia…
mas por enquanto está nos bastidores.
A literatura gaúcha tem representantes
Esses autores citados são hoje, em sua extraordinários, mas um pouco esque-
maioria, imensamente desconhecidos cidos. O próprio Erico, tantos outros…
pelos jovens, salvo ação isolada de pro- Mario Quintana, José Simões de Lopes
fessores raros que teimam em ser edu- Neto, Moacyr Scliar… E não se pode colo-
cadores. Mas poesia, literatura, enfim, car o peso nas costas da regionalidade,

12 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


porque outros autores regionalistas, ou Difícil alguém falar de Bilac… Ah, o 6 LIBERDADE,
assim considerados, estão mais presen- Menalton Braff, que também nos conce- LIBERDADE
tes. Nas próprias “leituras obrigatórias” deu entrevista, o mencionou também. É um musical
eles vêm desaparecendo. De onde vem Será paixão dos gaúchos? escrito por Millôr
Fernandes e Flávio
isso, em sua opinião? ND: Ah… E o esplendor da técnica, a sonorida- Rangel, em 1965, que
ND: João Simões influencia Guimarães Rosa, de, a construção perfeita? “… a bruta mina en- estreou no palco no
Erico influencia Gabriel Garcia Marques, como tre os cascalhos vela…”. mesmo ano. A obra
tentou traduzir o
ele próprio confessou que tirou Cem Anos De inconformismo da
Solidão de O Continente. Dyonelio Machado Você se aventura também na literatura nação perante o
faz literatura up to date. Jayme Caetano Braun infantil, e um dos seus ídolos, Monteiro arbítrio e a repressão
do regime, após
é nosso Homero, sua obra é um grande poema Lobato, que está sendo defenestrado… o golpe de 1964,
de formação de um povo. Augusto Meyer é a ci- ND: Burrice e muita sacanagem. Lobato é um inaugurando um
vilização no seu esplendor, assim como Walmyr gênio. Emília no País da Gramática nos ensina estilo de espetáculo
Ayala. Uma literatura poderosa que não pode desde criança… O Poço do Visconde é uma obra- que viria a ser
chamado “teatro
ficar de lado. Acho que existe muito esforço em -prima. Ele formou milhares de escritores bra- de resistência”.
colocar o Rio Grande do Sul de lado. Somos mui- sileiros. Todos passam por Lobato. Eu escrevi Liberdade, Liberdade
to fortes, mas há estados com pretensões hege- duas histórias infantis que ninguém quis publi- recorre a 56
personagens para
mônicas sem ter cacife para isso. Temos em ati- car e nenhum concurso, prêmio… Um dia lanço. rever e reavaliar este
vidade grandes romancistas, como Assis Brasil e tema, aplicando-o
Tabajara Ruas, temos o Caio Fernando Abreu, um E dizem, agora, que Lobato não pode pas- à realidade atual.
Em cena, os atores
autor cult, como deixar tanta coisa de lado? O RS sar… Quais seus próximos passos, Nei? se revezam na
precisa se impor novamente não como hegemo- ND: Meu próximo passo é um romanção ba- interpretação de
nia, mas como força literária de primeiro time. seado na pesquisas que minha mulher fez so- textos clássicos
bre minha família. de autores como
Sócrates, Marco
Nei, você disse que criou o Jack para Antonio, Platão,
seus filhos. É seu alter ego? Como acon- Outra área que está começando a ganhar Abraham Lincoln,
teceu isso? adeptos e leitores, memórias… Martin Luther King,
Castro Alves, Anne
ND: Não, era um personagem baseado nas li- ND: Memórias com ficção, no caso, é bem interes- Frank, Danton,
turas que fiz do Emilio Salgari, uma criatura sante. Tenho uma trilogia da memória: Universo Winston Churchill,
divertida e aventureira. Claro que depois colo- baldio, Tudo o que pisa deixa rastro e A dura luz Vinicius de Moraes,
Geraldo Vandré,
quei muita coisa minha. Ele diz o que gostaria do subúrbio. Agora vou de novo romance.
Jesus Cristo, William
de dizer, mas na voz dele funciona melhor. Ele Shakespeare,
tem carisma, capital simbólico para dizer para Como se dá seu processo de criação? Moreira da Silva,
o convidado que elogiou o vinho que a garrafa ND: Eu me impregno do assunto meditando e Carlos Drummond
de Andrade, entre
saiu da adega dele. E há a parte poética e amo- pesquisando e vou escrevendo aos poucos, dia- outros.
rosa de Jack, que encanta. Às vezes tenho de riamente. Isso em prosa. Na poesia sempre há
colocá-lo no freezer porque todo mundo quer motivo para mais um poema.
saber dele e me esquece. Sua virilidade não
tem muita concorrência hoje (risos). Você escreve diariamente, tem um pe-
ríodo certo do dia para isso?
Qual é sua última obra? ND: De manhã. Mas às vezes também à noite.
ND: Duas porções do poema. São poemas re- Ah, e de tarde também (risos). Leio bastante.
centes e mais alguns textos da oficina virtual Tenho lido os filósofos, Hobbes, Nietsche… Li
que exercito com alguns alunos. Plutarco bastante e mais o Christopher Hill so-
bre revolução inglesa no século 17.
Quais foram suas influências?
ND: Castro Alves, Lorca, Maiakóvski, Drummond, Informação não vai faltar! SOBRE A AUTORA
Monteiro Lobato… Mas tem muito de Cecília ND: Espero que não… Mas o que dá a inspira-
MARA MAGAÑA é jornalista,
Meirelles, Conrad, Erico, e tantos mais, Bilac… ção é a vida. E o mar. escritora e educadora.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 13


14 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA
fiar
Hora de
É o tecido do texto, ou a
forma como as frases se
combinam, aliado à sua
estrutura semântica, que
por Avram Ascot asseguram a compreensão
e intenção de um bom
desenvolvimento textual

P
roduzir textos, orais ou escritos, os elementos do texto, a coesão textual está 1 LUIZ ANTONIO
não é uma tarefa fácil. Isso porque, intrinsecamente ligada à coerência. MARCUSCHI
como diz MARCUSCHI1, o texto é uma Para BEAUGRANDE2 e DRESSLER3, a coesão ma- Um dos mais
importantes
“sequência de atos de linguagem nifesta-se no nível MICROTEXTUAL4 e tem como linguistas brasileiros,
(falados e escritos)”, e “não uma sequência de referência os componentes do universo tex- foi professor do
frases de algum modo coesa”. tual, ou seja, as palavras que ouvimos e vemos Departamento
de Linguística da
Para ele, a análise de qualquer texto, em ligam-se entre si obedecendo a uma determi-
Universidade Federal
qualquer nível, deve levar em conta tanto as nada sequência. de Pernambuco,
“condições gerais dos indivíduos como os con- A coerência, por sua vez, manifesta-se em falecido em 2016.
textos institucionais de produção e recepção”, grande parte na MACROTEXTUALIDADE5 e refere-se
uma vez que “estes são responsáveis pelos aos modos como os componentes do universo
progressos de formação de sentido compro- textual unem-se em uma configuração acessí- 2 ROBERT DE
metidos com processos sociais e configura- vel e relevante. BEAUGRANDE
Foi um linguista
ções ideológicas”. Essas definições, no entanto, estão longe de
estadunidense de
Em outras palavras, o sentido do texto serem definitivas e apenas atestam o que diz origem francesa,
é socialmente construído e sua eficiência Marcuschi, quando afirma que “os termos coesão falecido em 2008.
como ato de fala ou de escrita depende de e coerência estão longe de uma definição clara”. Beaugrande foi
um dos principais
uma série de fatores textuais e extratextu- Por isso, o que pretendemos aqui não é ela- estudiosos da
ais, que envolvem os mecanismos de coesão borar conceitos definitivos sobre o que sejam linguística textual
e coerência presentes na construção dos coesão e coerência, mas analisá-las como me- e da análise
do discurso na
enunciados da língua. canismos de estruturação e compreensão de atualidade.
Elaborada a partir de uma série de proces- textos capazes de revelar nas entrelinhas de
sos linguísticos que têm como principal fun- um dado texto o seu discurso, ou seja, a visão
ção estabelecer relações significativas entre de mundo expressa pelo enunciador.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 15


GRAMÁTICA / Coesão e Intenção do Texto

WOLFGANG 3 O que procuramos é analisar de que ma-


DRESSLER neira os componentes conceituais e linguísti- “… o sentido do
É professor de
linguística da
cos ajudam na construção de uma unidade de
sentido para o texto.
texto é socialmente
Universidade de Viena.
A produção acadêmica As condições de textualidade de qualquer construído e sua
de Dressler abrange
vários campos da
enunciado dependem tanto de sua estrutura eficiência como ato
linguística, com
especial ênfase na
semântica quanto de sua TESSITURA6, ou seja, a
maneira pela qual as frases se combinam para
de fala ou de escrita
linguística textual e no assegurar um bom desenvolvimento textual. depende de uma série
desenvolvimento da
linguagem infantil.
Principal responsável pela coerência textual,
a coesão se estabelece a partir de relações que
de fatores textuais
são fixadas por elementos de natureza gramati- e extratextuais,
MICROTEXTUAL 4 cal, lexical e sintática. (ver box Relações Coesivas) que envolvem os
Refere-se à
microestrutura textual, ENTRELAÇANDO FIOS mecanismos de coesão
ou seja, ao conjunto
formado pelas frases Como podemos perceber, pelo que já foi e coerência presentes
que integram a
superfície linear do
dito até aqui, um texto não é apenas um amon-
toado de palavras soltas e sem nexo, mas um
na construção dos
texto. É responsável pela
ordenação da coerência
fenômeno linguístico complexo que exige para enunciados
linear do texto. além do conhecimento linguístico e do conhe- da língua”

RELAÇÕES COESIVAS
© DIVULGAÇÃO/ SITE FOLIAS TEATRAIS
Crítico ferrenho da viúvas à época em que DR. LUPICÍNIO — Mas
sociedade de seu tem- foi escrita e encenada seu marido não morreu,
po, o escritor e teatró- a peça em questão. minha senhora?
logo Nelson Rodrigues A ideia-chave do texto IVONETE — Morreu. E
com apenas uma pode ser sintetizada na por isso mesmo. Ou o
conjunção, “porém”, fala de Ivonete, a viú- senhor me acha com
era capaz não apenas va da peça; ainda no cara de trair um marido um marido que não
de sugerir o conteúdo primeiro ato expõe sua morto? Um vivo não morreu. O senhor
de uma peça teatral firmeza de caráter: significa nada. O senhor, está vivo. Já imagi- O diálogo entre
como também sinteti- por exemplo, é casado? nou como o senhor Ivonete e Lupicínio
zar a visão de mundo IVONETE — Uma vir- DR. LUPICÍNIO — deve ser chato em estabelece uma liga-
de uma época. gem qualquer pode Perfeitamente. casa? No quarto, no ção com o que é su-
Aliando ao conheci- sentar e fazer outros IVONETE — Vive bem banheiro? E se a sua gerido no título e dá
mento linguístico nos- papéis. Não uma com sua mulher? Vai senhora, achando que unidade de sentido ao
so conhecimento de viúva. Eu tenho um dizer que vive bem. o senhor é realmente texto e àquilo que se
mundo, é fácil inferir a compromisso, afinal Mentira. Vive mal. Não chato, resolve traí-lo? sugere a respeito da
visão que se tem das de contas. se pode viver com Pôr-lhe uns chifres? conduta das viúvas.

16 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


coesivas que asseguram a transmissão coeren- 5 MACRO
SENTIMENTO te de mensagens, conceitos e ideias. TEXTUALIDADE
DO MUNDO O conjunto de propriedades que faz com
que o texto seja realmente um texto é bastante
Diz respeito à
macroestrutura
textual. Introduzido
amplo e deve ser considerado dentro dessa am- no domínio
O mundo é grande plitude. Cada enunciado, como diz o pensador linguístico por Van
e teórico Baktin, ligado ao estruturalismo e ao Dijk, estudioso da
análise do discurso
O mundo é grande marxismo, é uma cadeia complexa de outros e suas interfaces,
O mundo é grande e cabe enunciados. E é dessa forma que ele se mate- o conceito de
nesta janela sobre o mar. rializa como unidade real da comunicação. (ver macroestrutura
refere-se à estrutura
O mar é grande e cabe box Sentimento do Mundo) semântica global
na cama e no colchão de amar. Essa relação dialógica entre enunciados ul- do texto. É dela que
O amor é grande e cabe trapassa as meras relações linguísticas e articu- depende a coerência
no breve espaço de beijar. global do texto.
la-se a outras esferas de valores e significados.
A compreensão entre dois interlocutores dá-se,
A compreensão global do poema
como diz Marcuschi, “não só porque [eles] são 6 TESSITURA
acima, de Carlos Drummond de
coerentes, mas principalmente porque sabem do É o que garante
Andrade, dá-se a partir da con-
que se trata”. Assim, “texto se produz dialogica- uma unidade para o
junção “e”, que estabelece um texto assegurando a
nexo de coesão entre as partes mente, na concorrência de dois ou mais agentes”.
transmissão coerente
pela oposição de ideias. Os pronomes, conjunções, preposições e de uma mensagem.
Do ponto de vista semântico, as formas verbais presentes no texto não são sufi-
construções e expressões linguís- cientes para garantir uma ligação significativa
ticas que estabelecem a oposição entre os elementos que compõem a superfície
pelo confronto de orações são textual se não formarem uma unidade discur-
sintetizadas pelo adjetivo “breve” siva significativa. O uso de sinônimos, antôni-
que se contrapõe a de vastidão mos e repetições se considerados como atos
proposta pelo substantivo “mun-
isolados, desvinculados de um sentido, nada
do” e pelo adjetivo “grande”.
acrescentará ao já dito ou ao não dito.
De uma maneira sutil e até mes- REFERÊNCIAS
Por seu caráter pluridiscursivo, a linguagem BIBLIOGRÁFICAS
mo amena, o poeta propõe que a
despeito de toda sua imensidade orienta todo o discurso para uma resposta que ANDRADE, Carlos Drummond de.

o mundo não é tão grande que ao mesmo tempo em que concorda também Amar se aprende amando. 22ed,
Rio de Janeiro: Record, 1999. p. 19.
não caiba naquilo que há de mais pergunta, discorda ou refuta aquilo que foi dito. ANTUNES, Irandé. Lutar com
nosso. Em outras palavras, ape- Os mecanismos sintáticos de coordenação, palavras: coesão e coerência.
São Paulo: Parábola Editorial,
sar de tudo, ainda há espaço para subordinação e ordenação de vocábulos, mui- 2005.
o que é nosso no mundo. tas vezes, não são suficientes para estabelecer BAKHTIN, M. Estética da criação
verbal. São Paulo: Martins
Uma visão filosófica que mostra uma relação dialógica como o interlocutor. Fontes, 1979.
para além do aparente tema do As manifestações linguísticas articuladas BEAUGRANDE R. de & DRESSLER,
“amor” presente no texto, uma pelo texto veiculam por meio da linguagem va-
M. U. 1981. Introduction to Text
Linguistics London Longman.
preocupação existencialista típi-
lores, princípios e conceitos que só ganham sen- DIJK, Teun A. Van. Cognição,
ca da poesia drummoniana. discurso e interação. São Paulo:
tidos em uma perspectiva dialógica que valori- Contexto. 1992.
ze igualmente outros discursos e as respectivas FÁVERO. Leonor Lopes. Coesão
e coerência textuais. São Paulo:
situações sociais em que foram produzidos. Ática. 19. Série Princípios 2009.
Como vimos nos exemplos aqui citados, HOLANDA, Chico Buarque.
cimento textual, adquiridos nos atos de co- os elementos de coesão, além de explicitar os Carioca. Rio de Janeiro. Biscoito
Fino, 2006. Fragmento.
municação, um conhecimento de mundo tipos de relações que se estabelecem entre os MARCUSCHI, Luiz Antonio.
amplo e variado. elementos linguísticos que compõem o texto, 1988. Coesão e coerência na
conversação. Recife, UFPE.
As práticas interativas às quais somos também contribuem para a concepção do tex- Mimeo.

expostos diariamente em nossos atos de to como um tecido composto pelos fios dialógi-
fala e escrita compõem uma unidade lin- co/ideológico da linguagem enquanto proces- SOBRE O AUTOR
Avram Ascot é heterônimo de
guística que se organiza a partir de regras so de enunciação. Abrahão Costa de Freitas.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 17


Texto de Maria Beatriz Resgate

Escrita que
incomoda
Se os tubarões fossem homens, fábula escrita na
década de 1950, traz de volta à baila a literatura
crítica de um dos maiores escritores alemães

E
m tempos obscuros, sempre nos lembramos de tempo a outras escritas, como poesia, prosa, crítica literária e
Bertold Brecht. Mais conhecido aqui por sua drama- intervenção política, roteiros para o cinema, uma vasta corres-
turgia em obras que levam sua assinatura como A pondência que trata de tudo isso, além da música, trabalhada
Ópera dos Três Vinténs, Mãe Coragem e Seus Filhos, em parceria com alguns dos mais importantes compositores de
Os fuzis da Senhora Carrar e tantas outras, e por suas posições sua época, entre eles Kurt Weil e Paul Dessau, ambos composi-
antinazistas, ele se mostra lúdico e sempre surpreendente em tores alemães de grande sucesso.
Se os tubarões fossem homens, na belíssima edição da Olho Em 1924, acabou transferindo-se de Munique para Berlim,
de Vidro. Com excelente tradução de Cristine Rörig e ilustra- onde teve início sua grande aventura artística. Na cena berli-
ções cinematográficas do premiado Nelson Cruz, que arre- nense, logo alcançou sucesso de público sem, contudo, fazer
banhou o Jabuti na categoria no ano passado, o livro traz um concessões ao gosto médio. Envolveu-se também com o ci-
texto repleto de metáforas, criadas no fio da navalha, mas com nema – meio que ele via com simpatia –, admirava o cineasta
sensibilidade e doçura. Que fazem pensar e, por isso, incomo- Sergei Eisenstein e o ator e dramaturgo Charles Chaplin.
dam, como em toda obra do autor.
Eugen Berthold Friedrich Brecht nasceu a 10 de fevereiro de RETRATO DA SOCIEDADE
1898, em Augsburgo, na região da Bavária, do então Império Se os tubarões fossem homens é uma fábula, publicada pela
Alemão. Com formação bíblica – era filho de Berthold Brecht, primeira vez em 1956, quando o autor já se dedicava a escrever
diretor de uma fábrica de papel, católico, exigente e autoritário, uma enorme variedade de textos curtos, e faz parte do livro
e de Sophie Brezing, protestante, que fez seu filho ser batizado Histórias do Sr. Keuner, que muitos críticos acreditam ser o alter
nesta igreja –, estudou Medicina e trabalhou como enfermeiro ego de Brecht. A conversa entre o senhor K e a filha da dona da
em um hospital em Munique, durante a Primeira Guerra, além hospedaria revela, desde o início, a profunda ironia e sarcas-
de seu ativismo na tentativa de revolução alemã. mo com que ele reveste seus textos. “Se os tubarões fossem
Mas foi a arte o espaço escolhido por Brecht para se expres- homens, será que eles seriam mais gentis com os peixinhos?”,
sar. Artista revolucionário em todos os sentidos, teve enorme pergunta a criança, que obtém como resposta: “Claro que sim…
influência, sobretudo no teatro moderno, como autor, diretor, Se os tubarões fossem homens, mandariam construir para os
encenador e teórico. Profícuo, ainda dedicou boa parte do seu peixinhos enormes gaiolas no mar, que seriam abastecidas com

Maria Beatriz é professora de Língua Portuguesa e Literatura e mestra em Literatura Comparada.

18 | Conhecimento Prático | LITERATURA


“Mais do que respeito, enfatizando sua inteligência e perspicácia. Isso já
constatar, o autor havia acontecido com A Cruzada das Crianças, um poema que

procurou, com seus


fala sobre os pequenos que tentam cruzar as fronteiras para
fugir da Segunda Guerra, publicado originalmente em 1948,

tubarões, desvelar e aqui, pela Pulo do Gato, em 2016. É a questão da migração


tratada delicadamente, mas que deixa clara sua intenção:
as razões do mundo mostrar de forma lúdica e lírica a devastação da Europa.

mercantilizado, da Durante o trajeto, sem a presença de algum adulto, uma das


próprias crianças torna-se líder do grupo e tenta guiá-las, mas
natureza das relações ela mesma não sabe para onde ir.

sociais. E é isso que No ano de trinta e nove


o torna tão atual e a Polônia verteu sangue;
suas vilas pereceram
tão necessário para sob o fogo de falanges.
o momento que o A criança ficou órfã,
mundo vive hoje” faleceu o irmão querido,
a cidade era só chamas,
a mulher perdeu marido.
toda sorte de alimentos tanto vegetais como animais”. São as …
ilustrações de Nelson Cruz que fazem o contraponto da história, Com a neve foi chegando
mostrando os tubarões (homem e gente) com dentes afiados. a notícia ao oriente:
O Sr. Keuner, nessa pequena história que se traveste de in- na Polônia uma cruzada
fantil, faz as vezes de filósofo, refletindo, então, sobre o funcio- infantil era nascente…
namento do mundo dos homens e o dos animais. É por meio do
diálogo com a criança que ele oferece uma perspectiva sobre Mais do que constatar, o autor procurou, com seus tubarões,
os problemas que afligem os seres humanos. O resultado é um desvelar as razões do mundo mercantilizado, da natureza das
retrato atual da sociedade, com suas fragilidades, paradoxos e relações sociais. E é isso que o torna tão atual e tão necessário
desigualdades. para o momento que o mundo vive hoje. A verdade é que havia
Essa ironia e sarcasmo fazem parte da ideia de Brecht de em Brecht uma ânsia por mostrar com clareza as suas ideias e
que o artista deve compreender a própria dimensão histórica contribuir com elas para o mundo. Para Walter Benjamin, en-
e intervir na esfera pública, porque ele sempre acreditou que saista, crítico literário e seu amigo pessoal, o que encanta em
toda arte é política e baseou sua criação no estudo e na expe- Brecht é a sua ligação com a simplicidade.
riência radical. Por isso, os versos extremamente conhecidos de Aos que
Isso fica claro nas respostas do texto à pergunta inicial, Se virão depois de nós ainda nos cala pungentemente:
os tubarões fossem homens?, que servem como alavanca para
os questionamentos que Brecht enxerga como cruciais para Que tempos são esses, quando
a compreensão dos grandes problemas do homem, como em falar sobre flores é quase um crime.
“Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, então lhe Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
fariam imediatamente um curativo, para que ele não lhes mor- Aquele que cruza tranquilamente a rua
resse antes do tempo”, em clara alusão à guerra. já está então inacessível aos amigos
O fato de o texto estar mais para uma obra cross-dressing que se encontram necessitados?
não invalida sua inserção no universo infantojuvenil, especial-
mente porque Brecht trata crianças, adolescentes e jovens com Precisamos ler mais Bertold Brecht.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 19


20 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA
Lá vem
HISTÓRIA…
A literatura infantil é excelente porta de
entrada para o letramento e permite às
crianças uma agradável possibilidade
de divertimento e aprendizagens
por Aline Fernanda Sampaio

V
ivemos hoje em uma época de
grandes progressos tecnológicos
e modernização, mas também nos
deparamos com uma grande “desu-
manização” das pessoas, o que reflete na falta
de valores. A literatura, como arte da palavra,
deve estar presente na vida cotidiana do ho-
mem, propiciando a organização das emoções
e a reflexão sobre as manifestações ficcionais
que expressam os valores, a cultura e a identi-
dade do contexto a que pertence.
A literatura infantil, sobretudo a origina-
da da tradição oral, tem grande contribuição
no processo de alfabetização e letramento de
crianças no que se refere ao aprendizado das
práticas de leitura e escrita. Ao fornecer ao
leitor não só informações de caráter utilitário,
mas valores simbólicos e morais, a literatura
infantil promove a autonomia e a integração
com a sociedade.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 21


LEITURA E ESCRITA / Letramento

MAGDA 1 Etimologicamente, o termo alfabetização do com o uso da literatura infantil originada


BECKER não ultrapassa o significado de “levar à aqui- da tradição oral para o letramento de crianças,
SOARES sição do alfabeto”, ou seja, ensinar o código da sobretudo, na primeira infância. Para o autor, a
Professora
titular emérita língua escrita. De acordo com MAGDA SOARES1, busca pelo sentido individual e social da vida
da Faculdade de atribuir um significado muito amplo ao pro- é uma tarefa a ser cumprida por todos os se-
Educação da UFMG. cesso de alfabetização seria negar-lhe a espe- res humanos, e seu cumprimento culmina na
Pesquisadora
cificidade, com reflexos indesejáveis na carac- maturidade psicológica do indivíduo, que pode
do Centro de
Alfabetização, terização de sua natureza, na configuração das ocorrer em qualquer idade, fornecendo-lhe
Leitura e Escrita habilidades básicas de leitura e escrita, na defi- força interior para resistir e enfrentar as ad-
– Ceale – da nição da competência em alfabetizar. versidades inevitáveis de sua existência.
Faculdade de
Educação da UFMG. Magda explica que o termo letramento, no Nesse sentido, a literatura infantil configu-
Graduada em sentido em que é usado atualmente, deriva do ra-se como um instrumento eficaz para os que
Letras, doutora e conceito da palavra literacy, de origem inglesa acreditam que imaginação, criatividade e fanta-
livre-docente em
Educação. que vem do latim liera (letra), com o sufixo sia fazem parte do processo educativo. Se letrar
–cy, que denota quali- significa apropriar-se su-
dade, condição, estado, ficientemente da escrita
BRUNO 2
BETTELHEIM fato de ser. Letramento, e da leitura a ponto de
(1903-1990) para a pesquisadora, “… a literatura usá-las com propriedade
É psicanalista
austro-americano,
portanto, é a capacida-
de de compreender os
infantil configura- na prática social, para dar
conta das atribuições co-
originário de uma
família judia da alta significados do texto, de -se como um tidianas, os livros de lite-
burguesia. Entrou
na universidade
usá-los no cotidiano, de
interagir com as pala-
instrumento ratura infantil devem fa-
zer parte constante desse
para fazer um curso
que passava pela vras escritas, e não ape- eficaz para os processo, pois podem tra-
literatura, pela
história da arte e pela
nas decodificar o som
em letras ou as letras
que acreditam zer no seu bojo propostas
simples, mas grandiosas,
estética. É autor da
obra muito conhecida em som, aprendendo a que imaginação, a serem exploradas por
A Psicanalise dos
Contos de Fadas.
escrever e reconhecer o
alfabeto, ou mesmo assi-
criatividade e qualquer professor com-
prometido com uma edu-

CHRISTIAN 3
nar o próprio nome e ler fantasia fazem cação crítica, que faça o

POSLANIEC
uma frase. Estas últimas
definições serviram, por
parte do processo aluno pensar.
É a partir do contato
Escritor francês
especializado em
muito tempo, como base
para qualificar um in-
educativo” com as histórias infantis
que a criança inicia seu
literatura infantil
e juvenil. Também divíduo como alfabeti- processo de letramento.
é pesquisador do zado nas pesquisas científicas sobre grau de Para POSLANIEC3 & HOUYEL4, a formação do leitor
Instituto Nacional
de Pesquisas escolaridade no Brasil. na infância não pode prescindir de determina-
Educacionais Sabemos que inúmeros problemas têm das competências ligadas à compreensão do
(INRP), na França. contribuído para que a escola atual não este- texto e, consequentemente, à satisfação que
ja conseguindo vencer o desafio de promover este pode proporcionar à criança.
o letramento da parcela da população que Essas competências provêm de duas fon-
consegue chegar a ela. Entre os vários fatores tes: aquelas que as crianças já trazem de casa
que colaboram para essa fragilidade há uma antes da alfabetização e aquelas que ela pode
incompreensão do significado do ato de ler, re- adquirir na escola ou em atividades de leitura
duzido à tarefa de simples reconhecimento de em geral (sessões livres em bibliotecas ou em
um único sentido para o texto. centros de cultura, por exemplo).
BETTELHEIM2 aponta o encontro do signifi- Para os pequenos leitores (de zero a dois
cado da vida e da convivência em sociedade anos de idade aproximadamente), o que pode ser
como o principal benefício que pode ser obti- construída é uma relação com o objeto livro, no

22 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


FALANDO EM LETRAMENTO…
(Da Redação)

Até a transição do século XVII para Emilia Ferreiro. Ela e seus colabo-
o XVIII, o significado e o papel radores alteraram profundamente
social da infância não existiam. As a concepção de alfabetização, que
crianças eram vistas como adultas passou a ser vista como a constru-
em miniatura e, consequentemen- ção da representação da língua es-
te, os hábitos de leitura eram os crita pela criança, cujo início ocorre
mesmos que os de seus pais ou antes de ingressar na escola, desde
cuidadores, assim também como as que esteja exposta a manifestações
tarefas que os menos favorecidos de leitura e escrita.
cumpriam, explicando, por um lado, No Brasil, só na segunda metade
a alta taxa de mortalidade infantil. dessa década que, no âmbito aca-
Apenas com a ascensão da bur- dêmico, encontram-se as primeiras
guesia e reestruturação familiar, a formulações da palavra letramento
criança começou a ser reconhecida para designar algo que ultrapassa o
como indivíduo diferente do adul- processo de alfabetização. Mais do
to, com atribuições diferentes. No que ler e escrever, é preciso saber
século XVIII, a literatura infantil responder às exigências de leitura
mostrou-se importante no âmbito e escrita que a sociedade nos im-
escolar e na necessidade de uma põe cotidianamente.
mudança na mentalidade sociocog- Segundo Magda Soares, autora
nitiva que a criança possuía. A es- de Letramento: Um Tema em Três
cola foi um dos principais agentes Gêneros, o surgimento do termo
para que a mudança na literatura representa uma mudança histórica
ocorresse. nas práticas sociais, sendo que
Por aqui, a educação infantil andou essas novas demandas de uso da
a passos bem lentos. A mudança do leitura e da escrita exigiram uma
conceito de alfabetização ocorreu palavra para designá-la.
somente com os ventos da abertu- Contudo, o letramento é conside-
ra democrática no País, nos anos rado um fenômeno multifacetado
1980. Passou-se a perceber que era e, por cobrir uma vasta gama de
preciso ir além do processo de codi- conhecimentos, habilidades, capa-
ficação e decodificação. Daí para o cidades, valores, usos e funções
conceito de letramento foi um pas- sociais, seu conceito envolve suti-
so. Uma das grandes incentivadoras, lezas e complexidades difíceis de
através da perspectiva construti- serem contempladas em uma única
vista, foi a psicolinguista argentina definição.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 23


LEITURA E ESCRITA / Letramento

CHRISTINE 4 sentido de torná-lo próximo das crianças, tanto o modo como o adulto relaciona-se com o ob-
HOUYEL quanto um brinquedo, por exemplo. A impor- jeto livro (como segura, como manuseia, como
É consultora tância que o livro tem em nossa cultura só será observa) são passos importantes a serem cons-
educacional e compreendida pela criança muito mais tarde, se truídos neste período.
responsável pela
leitura da academia o adulto for um contador de histórias competen- A participação da criança nessas práticas
de Sarthe desde te (dando vida às histórias e personagens) e cati- de leitura permite que ela construa o seu pró-
1989. Foi também vante (compartilhando suas emoções). prio modelo, vivencie esta experiência e a per-
responsável pela
missão acadêmica De acordo com GLÁDIS KAERCHER5, este é um cepção de que cada um encontra o seu jeito, o
“Domínio da ponto crucial para formar crianças que gos- modo que mais lhe agrada (para uns, ler deita-
língua” e delegada tem de ler e vejam na leitura e na literatura do é um horror; para outros, maravilhoso).
departamental do
uma possibilidade de divertimento e aprendi- Em torno dos três anos, por exemplo, os
Grupo Permanente
de Luta contra o zagens. Ela defende a ideia de que precisamos contos de fadas passam a despertar o interesse
Analfabetismo. É ter, nós adultos, uma relação especial com a infantil: histórias que auxiliam a criança a or-
responsável pela literatura e a leitura: precisamos gostar de ler, ganizar as suas experiências de vida, lidar com
seção “Literatura
Juvenil” da revista ler com alegria, por diversão; brigando com o receios e alegrias, com conquistas e perdas,
OCCE Animation. texto, discordando, desejando mudar o final da enfim, com sentimentos contraditórios. Além
história, enfim, costurando cada leitura, como disso, os contos de fadas, com seus seres má-
GLÁDIS ELISE 5 um retalho colorido, à grande colcha de reta- gicos e seus finais exemplares (em que o mal
PEREIRA DA lhos – colorida, significativa – que é a nossa sempre é punido) são histórias que possibili-
SILVA KAERCHER história de leitura. tam às crianças de qualquer contexto – social,
Mestra e doutora econômico, cultural, étnico, racial – a vivência
em Educação, atua
principalmente
A IMPORTÂNCIA DOS CONTOS DE FADAS de uma experiência sem precedentes.
nos seguintes À medida que vão crescendo e tornando- Vale salientar, ainda, que os contos de fadas
temas: educação -se falantes plenos da língua portuguesa (do- auxiliam as crianças no processo de constru-
infantil, literatura minando as regras de sintaxe e ampliando o ção de sua identidade e no desenvolvimento
infantil, educação
antirracista, infância, vocabulário), os pequenos começam a se in- de suas habilidades sociais, culturais e educa-
texto e identidade e teressar mais pela escrita. Nesse momento, as tivas. É o que afirma Beelheim na obra A psi-
diferença. histórias (os textos) passam a ganhar destaque canálise dos contos de fadas:
e, com elas, as práticas de leitura tendem a ter
um sentido especial. “… os contos de fadas têm um valor inigua-
Familiarizá-los com a necessidade de se lável, conquanto oferecem novas dimen-
acomodar confortavelmente para ouvir, de fa- sões à imaginação da criança que ela não
zer o menor barulho possível para que todos poderia descobrir verdadeiramente por
possam acompanhar a narrativa, de visualizar si só. Ajuda mais importante: a forma e
a estrutura dos contos de fadas sugerem
imagens à criança com as quais ela pode
estruturar seus devaneios e com eles dar
“A participação da criança melhor direção à sua vida.”
nas práticas de leitura Sabemos que o texto literário narrativo ofe-
permite que ela construa rece ao leitor a possibilidade de “experimentar
o seu próprio modelo, uma vivência simbólica” por meio da imaginação
suscitada pelo texto escrito e/ou pelas imagens.
vivencie esta experiência e No entanto, nenhuma boa narrativa de fic-

a percepção de que cada um ção explicita tudo. Tanto no texto escrito como
em narrativas por imagens existem “brancos”
encontra o seu jeito…” que o leitor deve completar. A articulação en-
tre o explícito e o não explícito, nas boas narra-

24 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


PARA GOSTAR DE LER
COLEÇÃO DA NINOCA
Autor: Lucy Cousin
Crianças pequenas
adoram essa coleção.
Basta manipular as
abas nos sentidos
indicados para ajudar
Ninoca a trocar de
roupa, a escrever, OU ISTO OU AQUILO
a dançar… Os livros Autora: Cecília Meireles
desta série também Um dos mais belos clássicos da poesia brasi- O CACHORRINHO
ensinam as cores e os leira, Ou isto ou aquilo aborda os sonhos e as SAMBA
números de um jeito fantasias do mundo infantil – a casa da avó, Autor: Maria José
divertido. Indicado os jogos e os brinquedos, os animais e as flo- Dupré
para crianças de 0 a res, tudo ganha vida nos poemas de Cecília No colo da Vovó, lam-
3 anos. Meireles. Indicado para crianças de 4 a 6 anos. bendo a orelha dos
Editora: Ática Editora: Nova Fronteira donos ou brincando
com a garotada, o
cachorrinho Samba
era a alegria da casa.
OS CONTOS A VELHOTA CAMBALHOTA Até o dia em que ele,
curioso, resolveu dar
DE GRIMM Autor: Sylvia Orthof
uma saidinha… E aca-
Autora: Tatiana O texto retrata as peripécias de uma velho- bou se perdendo na
Belinky ta da tradicional família mineira, que resol- cidade grande, cheia
Os contos de fadas ve dar cambalhotas e virar o direito pelo de perigos, pessoas
dos irmãos Grimm avesso, escan- ameaçadoras e luga-
têm mais de dois sé- dalizando uma res desconhecidos.
culos e são clássicos cidade do inte- Trata-se de uma cole-
da literatura infantil. rior de Minas. ção da editora ática
Neste livro, são re- Para os leitores com vários contos
contados por Tatiana de 7 a 9 anos. sobre o cachorrinho
Belinky. Para crian- Editora: LE. Samba. Perfeito para
ças de 4 a 6 anos. quem está na faixa de
9 a 12 anos.
Editora: Paulus
Editora: Ática.

tivas, é construída pelo autor de modo a deixar andar pela selva notando as pistas e sinais 6 ANTONIO CANDIDO
pistas ao leitor para que ele possa preencher que lhes permitirão sobreviver, aprender DE MELLO E SOUZA
esses “brancos”. É o que afirma a professora de a ler literatura dá oportunidade de se
(1918-2017)
Foi um sociólogo,
Didática da língua e escritora Teresa Colomer: sensibilizar com os indícios da linguagem,
crítico literário e
de converter-se em alguém que não perma- professor universitário
“A literatura, precisamente, é um dos nece à mercê do discurso alheio, alguém brasileiro. Estudioso
instrumentos humanos que ensina ‘a se capaz de analisar e julgar […]” da literatura brasileira
e estrangeira, é autor
perceber’ que há mais do que o que se diz de uma obra crítica
explicitamente. Qualquer texto tem vazios De fato, a literatura tem o poder de alargar extensa, respeitada nas
e zonas de sombra, mas no texto literário as possibilidades de leitura, conduzir o leitor principais universidades
do Brasil.
a elipse e a confusão foram organizadas pelos caminhos das entrelinhas, levá-lo a per-
deliberadamente. Como quem aprende a ceber o não dito. Segundo ANTONIO CANDIDO6,

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 25


LEITURA E ESCRITA / Letramento

PIERRE BAYARD 7 não há homem ou sociedade que possa viver riências que envolvam o grupo, entre outras,
Autor francês, sem literatura e não há possibilidade de que estimulam as crianças a sentirem-se também
professor uma pessoa possa “[…] passar vinte e quatro produtoras de histórias, de registros que po-
de literatura horas sem mergulhar no universo da ficção e dem ser passados aos demais, contados, reto-
psicanalista. O mais
recente livro de da poesia […]”. mados, ilustrados.
Bayard, Comment Nesse sentido, a escritora e crítica literária Daí a grande importância de o professor ter
parler des livres que Nelly Novaes Coelho enfatiza a importância da uma formação literária básica para saber ana-
n’a pas lus?, é um
literatura infantil como instrumento para a for- lisar os livros infantis, selecionar o que pode
best-seller na França,
aqui publicado pela mação de uma nova mentalidade, objetivando “a interessar às crianças em dado momento e
Objetiva com o título educação integral da criança, propiciando-lhe a decidir sobre os elementos literários que sejam
Como falar dos livros educação humanística e ajudando-a na forma- úteis para ampliar o conhecimento espontâ-
que não lemos?.
ção de seu próprio estilo”. neo que a criança já traz consigo.
Com isso, caberá à escola ampliar as com- De acordo com BAYARD7, a escola, a partir
petências que a criança possui antes da alfabe- de uma determinada série, passa a sacrificar o
tização, introduzindo-a no domínio de alguns potencial leitor do aluno com a dita obrigação
aspectos literários que já estão presentes em de ler. Ao avançar seus estudos, o educando
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS narrativas de livros infantis e dos quais o mais sente-se obrigado a ler textos que, comumente,
BAYARD, Pierre. Como falar dos
livros que não lemos?. Tradução
natural é a vivência de uma história. não possui um aparato imaginário e intelec-
Rejane Janowitzer, Rio de tual preparados para sua boa compreensão.
Janeiro: Objetiva, 2007.
ENTRAM EM CENA Tal prática vem de encontro ao que se es-
OS PEQUENOS ESCRITORES
BETTELHEIM, Bruno. A
psicanálise dos contos de fadas. pera da promoção do aluno leitor, uma vez que
São Paulo: Editora Paz e Terra,
1980, p. 16. Geralmente, em trabalhos com a leitura e minimiza suas preferências literárias, consti-
CANDIDO, A. O direito à a elaboração de textos narrativos ou poéticos, tuídas desde o primeiro contato com a literatu-
literatura. In:_______.Vários
escritos. São Paulo: Duas
costuma-se solicitar dos alunos que produzam ra até então. Com isso, o potencial criativo do
Cidades, 1995, p. 242. textos espontâneos, como se eles dominassem indivíduo, que até aquele momento vinha em
COELHO, Nelly Novaes.
Panorama histórico da
instintivamente todos os elementos básicos uma crescente expansão graças ao “alimento”
literatura infantil/juvenil: das na construção de narrativas ou de poemas. que lhe é oferecido através da leitura das mais
origens indoeuropeias ao Brasil
contemporâneo. São Paulo: Esta é uma ideia muito corrente na escola, a variadas literaturas existentes, tende a estacio-
Ática, 1991, p. 5. de acreditar que a criatividade das crianças já nar, justamente no momento em que este mais
COLOMER, T. Andar entre livros:
a leitura literária na escola. São
é suficiente para elaborar, criar suas histórias necessitará de suas capacidades criativas não
Paulo: Global, 2007, p. 70. e pequenos poemas. Mas a aquisição dessas só no ambiente escolar, mas também nas de-
KAERCHER, Gládis E. E por falar
em Literatura… In: Educação
competências passa de início pela leitura ou mais áreas de sua vida.
Infantil: Pra que te quero? Porto adição de narrativas e poemas. Convidar a família das crianças para parti-
Alegre: Artmed, 2001, p. 83.
Cabe destacar que a criança que convive cipar, registrando os seus relatos (de vida ou as
POSLANIEC, Ch. & HOUYEL, Ch.
Activités de lecture à partir de em um ambiente desafiador, do ponto de vista narrativas orais que são contadas de pai para
la litteráture de jeunesse. Paris:
Hachette, 2000. linguístico (em que haja livros, painéis escritos, filho há gerações) e contando estas e outras
SOARES, Magda. Letramento: revistas, jornais, cartazes, embalagens, enfim, histórias pode ser desafiador e extremamente
um tema em três gêneros. Belo
Horizonte: Editora Autêntica,
marcas da língua escrita), demonstrará nesta rico para as crianças.
1998, p. 15; 21. fase interesse pela escrita. Não raro, se pergun- Por fim, é sempre bom lembrar que a litera-
tarmos para uma criança o que ela está fazen- tura infantil, além de ser porta de entrada para
SOBRE A AUTORA do, ouviremos: “escrevendo”. o letramento, também é arte. Arte que se utili-
Aline Fernanda Camargo
Sampaio é mestra em Isso indica que ela percebe o código escrito za da palavra como meio de expressão para, de
Educação e linguagem
nesse período como algo importante e sente algum modo, dar sentido à nossa existência. Se
pela USP, especialista em
Docência no Ensino Superior, curiosidade em conhecê-lo. Nesse contexto, é nós, na nossa prática cotidiana, deixarmos um
graduada e Licenciada em
Letras/Português pela USP, imprescindível trabalhar com a produção de espaço para que esta forma de manifestação
pesquisadora do Grupo DiCLiME- histórias pelas crianças: o professor, como “es- artística nos conquiste, seremos, com certeza,
USP (Diversidade Cultural,
Linguagem, Mídia e Educação) e criba”, registra histórias inventadas por elas. mais plenos de sentido, mais enriquecidos e
professora universitária. E-mail:
alinefcsampaio@gmail.com.
Histórias de terror, romance, passeios, expe- mais felizes.

26 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


ACONTECE / Na Mídia
Série apresenta, em

Sementes
da Redação
13 episódios, escolas
que inovam na
proposta pedagógica

da diferença
e impactam alunos e
sua comunidade

I
deias transformadoras habitam as escolas como música, artes visuais, dança, teatro etc. ESCOLAS
de todo o Brasil, mas poucos conhecem São incentivadas a conhecer e a criar. A escola PARTICIPANTES
seus projetos e seus resultados. Pensando também trabalha a cultura africana, seus mitos, Cieja Campo Limpo,
nisso, o Videocamp, uma plataforma que músicas e artes plásticas. de São Paulo (SP)
reúne filmes de impacto disponíveis para exibi- A Escola Cecília Meireles fica localizada em Escola Canadá,
ções públicas gratuitas, disponibilizou a série Nova Friburgo (RJ) e é uma das poucas iniciati- de Viamão (RS)
Sementes da Educação. vas que oferece a Pedagogia Waldorf, baseada EMEF Guido
A série reúne 13 episódios, cada um deles apre- na Antroposofia criada por Rudolf Steiner, Lermen, de Lajeado
sentando uma escola brasileira que inova na de forma gratuita. A Pedagogia Waldorf tem (RS)
proposta pedagógica, transformando e impac- o pressuposto da divisão do desenvolvimento IFET Paraná
tando tanto alunos quanto a comunidade. humano em setênios. A escola busca atender a – Campus
Realizada pela Oz Produtora e selecionado por este ideal em sua prática pedagógica, até o 2º Jacarezinho, de
meio de uma chamada pública, a série foca os ciclo de sete anos, que é o Ensino Fundamental. Jacarezinho (PR)
métodos apresentados por cada escola. A es- Outro caso especial é o da EMEF Escola Maria
colha recaiu sobre as que oferecem ensino gra- Desembargador Amorim Lima, fundada em Peregrina, de São
tuito e que, com poucos recursos, conseguiram 1956, mas que só em 1996 começaram a ocor- José do Rio Preto
(SP)
inovar os métodos educacionais. Entre essas, rer mudanças transformadoras. Primeiro, os
no primeiro episódio, temos o Centro Integrado alambrados, por obra da diretora Ana Elisa EMEF
de Educação de Jovens e Adultos – Cieja Campo Siqueira, foram derrubados, e a escola chamou Desembargador
Amorim Lima, de
Limpo, que fica no Capão Redondo (SP), re- a comunidade para fazer parte deste espaço. São Paulo (SP)
gião marcada pela alta vulnerabilidade social. Em 2003, através da consultoria da psicóloga
Autodenominada uma escola de resistência e de Rosely Sayão, pais e funcionários conheceram EM Acliméa
Nascimento, de
excluídos oferece gestão compartilhada com os a pedagogia da Escola da Ponte de Portugal e Teresópolis (RJ)
estudantes, já que todos os assuntos são resolvi- decidiram adotar seus princípios.
dos coletivamente. Além das aulas, há atividades Os alunos passaram a trabalhar em conjunto com Escola Municipal
Cecília Meireles, de
extracurriculares abertas para a comunidade das diferentes faixas etárias, eliminando a divisão por Nova Friburgo (RJ)
quais adultos e idosos também participam. séries. Os alunos seguem roteiros de pesquisas
A Escola Janela é uma instituição de ensino e decidem a ordem do que vão pesquisar. Deste EEEP Alan Pinho
Tabosa, de
comunitária e também faz parte da série. modo, um grupo pode estar ou não na mesma Pentecoste (CE)
Localizada em Cavalcante (GO), na região da pesquisa, e os alunos buscam ajuda com seus
Chapada dos Veadeiros, é um dos destaques colegas antes de recorrerem ao professor tutor. Centro Municipal de
Educação Infantil
devido à sua atitude de repensar o papel social Há várias outras escolas apresentadas na série Hilza Diogo Cals, de
da educação. Seu surgimento ocorreu por meio (confira lista ao lado), que ainda conta com de- Fortaleza (CE)
da iniciativa de pais e educadores que decidem poimentos dos especialistas Celso dos Santos
Escola Pluricultural
tudo em conjunto. A Janela trabalha com proje- Vasconcellos, doutor em Educação pela USP, Odé Kayodê, de
tos de pesquisa e turmas multisseriadas. Caio Dib, jornalista e fundador do site Caindo Goiânia (GO)
Já o Centro Municipal de Educação Infantil no Brasil, e Rosely Sayão, psicóloga especia- Escola Janela, de
Hilza Diogo Cals está localizado na periferia lista em temas sobre educação de crianças e Cavalcante (GO)
de Fortaleza (CE), local de violência e vulne- adolescentes.
UFABC, de Santo
rabilidade social. A cultura é o principal eixo Para acessar o conteúdo é preciso reunir um André (SP)
de trabalho da escola. As crianças entram em mínimo de dez pessoas. O endereço eletrônico é
contato com diferentes linguagens artísticas, HTTPS://WWW.VIDEOCAMPCOM/PT.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 27


LITERATURA BRASILEIRA / Lygia Fagundes Telles

© ARQUIVO NACIONAL / DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG


Coração E
la é da pá virada e nunca gostou
muito dos holofotes. Lygia Fagundes
Telles, prestes a completar 96 anos

ardente
em 19 de abril, coleciona prêmios –
o Jabuti em cinco ocasiões, o Coelho Neto, da
Academia Brasileira de Letras, o APCA quatro
vezes e vários outros memoráveis. No dia 13 de
outubro de 2005, recebeu o CAMÕES1 pelo con-
junto da obra, o mais importante da literatura
em português, na cidade do Porto, no norte de

Lygia Fagundes Telles Portugal, país que diz amar profundamente e


onde afirma possuir antigas raízes familiares.
constrói personagens à Em 2016, mais de 40 anos depois da última

flor da pele. Vivenciando indicação brasileira – Alceu de Amoroso Lima,


em 1965 –, a escritora tornou-se a primeira mu-
as transformações do lher brasileira a ser indicada ao prêmio Nobel
de Literatura pela UBE (União Brasileira de
País no início de dois Escritores), em uma seara dominada por homens
séculos, levou para sua – os outros indicados foram Coelho Neto, Flávio
de Carvalho e Manoel Wanderley.
literatura um mosaico Mesmo pertencendo à nata do Olimpo lite-
de personagens rico e rário brasileiro, foge o quanto pode de entre-
vistas e eventos comemorativos. Conta uma
perturbador jornalista que, há alguns anos, ao ligar para
sua casa e tentar conversar com Lygia, foi in-
por Mara Magaña

28 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


formada de que ela não estava e demoraria a
voltar. Detalhe: foi a própria quem atendeu o “Porão e Sobrado,
telefone, passando-se por secretária, e nem dis-
farçou a voz. Histórias como essa são contadas
lançado em 1938,
por aí. A língua afiada da autora, quando se foi bem em crítica
apresenta, acentua o caráter peculiar.
Considerada uma das maiores escritoras
e público, mas
brasileiras, as histórias curtas de Lygia ga- rejeitado por ela, 1 PRÊMIO CAMÕES
nharam, no final do ano passado, uma cole-
tânea completa denominada simplesmente
porque em sua DE LITERATURA
Foi instituído em 1988
Os Contos (ver box A Palavra Lapidada), pela opinião ‘a pouca com o objetivo de
consagrar um autor
Companhia das Letras. Estão lá Antes do
Baile Verde, Seminário dos Ratos, A Estrutura
idade não justifica de língua portuguesa
que, pelo conjunto
da Bolha de Sabão, A Noite Escura e Mais Eu, o nascimento de de sua obra, tenha
contribuído para
Invenção e Memória, Um Coração Ardente e
ainda Contos Esparsos. textos prematuros, o enriquecimento
do patrimônio
Uma publicação de fôlego. Lygia Fagundes
Telles é dona de uma maestria ímpar no gê-
que deveriam literário e cultural
de nossa língua
nero. Alguns de seus contos, como O Moço do continuar no limbo’ ” comum. A Menção
Internacional foi
Saxofone, Antes do Baile Verde, ambos perten- criada pelo Protocolo
centes à primeira fase, ou Seminário dos Ratos, Adicional ao Acordo
Cultural entre os
Confissões de Leontina, Uma Branca Sombra governos português
Pálida, entre tantos outros, ganharam (e conti- Devido à profissão do pai, morou em várias e brasileiro,
nuam ganhando) sucessivos estudos tanto no cidades do interior paulista, tendo uma infân- representados,
respectivamente,
Brasil como fora dele. cia turbulenta. Isso a marcou profundamente,
pela Direção Geral do
revelando uma sensação de medo e inseguran- Livro, dos Arquivos
BARONESA SEM PAPAS NA LÍNGUA ça, como contou a Edla. Mas tinha na mãe uma e das bibliotecas/
Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo, alma mais pé no chão: “… risonha, mas atenta. Secretaria de Estado
da Cultura (Portugal),
na rua Baronesa de Tatui, e passou a infância no Muitas vezes a vi com o lápis fazendo contas”. e pela Fundação
interior do estado, onde o pai, o advogado Durval A libertação veio justamente com o curso Biblioteca Nacional/
de Azevedo Fagundes, foi promotor público. de Direto, que a levou a romper amarras com MinC (Brasil).
Considerado o mais
A mãe, Maria do Rosário, a Zazita, era pianista. as convenções. Com as transformações que o importante prêmio da
Voltando a residir com a família em São Paulo, País vinha sofrendo, conquistou mais liberda- língua portuguesa,
a escritora fez o ginásio e colegial na Escola de e autonomia e alinhou-se, politicamente, à contempla
anualmente autores
Caetano de Campos e em seguida ingressou na esquerda. Casou-se, pela primeira vez, com o
da Comunidade dos
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, jurista Gofredo da Silva Telles e, depois, com Países de Língua
da Universidade de São Paulo, onde se formou. o escritor e crítico de cinema Paulo Emilio Portuguesa - CPLP. A
Em Viver e Escrever, de Edla Van Steen, LFT Salles Gomes. comissão julgadora
é composta por
confessa que o pai a chamava afetuosamen- Sem papas na língua, costuma dizer que representantes do
te de Baronesa de Tatui. E fala sobre ele, com adotou duas profissões de homem: advogada Brasil, de Portugal e
quem sempre manteve laços estreitos. “Aposto e escritora. Mas acrescenta ironicamente que, de países africanos
de língua oficial
no verde como meu pai apostava, arriscava no no Brasil, há três espécies em extinção: o índio, portuguesa. Desde
baralho”. O verde, aliás, impregna a sua ficção, a árvore e o escritor. que foi instituído, o
como pode-se perceber claramente no conto Brasil levou o prêmio
que dá nome ao livro Antes do Baile Verde. Não FICÇÃO FRAGMENTADA E ATENTA em 11 ocasiões. Dos
trinta premiados no
só: é ainda a cor que rege sua vida, segundo ela A contista saiu na frente. Seu primeiro livro total, apenas seis
própria: “Para mim, a cor da esperança, se eu ti- surge quando ainda era menina, aos 15 anos, são mulheres – duas
vesse uma bandeira ela seria vermelha e verde, bancado pelo pai. Porão e Sobrado, lançado em delas, brasileiras
(além de LFT, Rachel
esperança e paixão não destituída de cólera”, 1938, foi bem em crítica e público, mas rejeitado de Queiroz foi
confessou a Edla Steen. por ela, porque em sua opinião “a pouca idade agraciada em 1993).

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 29


LITERATURA BRASILEIRA / Lygia Fagundes Telles

A PALAVRA LAPIDADA
Lygia Fagundes Telles é uma perfeccio- tão: “Aproximei-me da janela. O sopro Públicas teve um olhar de suspeita
nista. Só para se ter uma ideia, conside- do vento era ardente como se a casa para a estatueta de bronze em cima da
ra apenas “exercício literário” seu se- estivesse no meio de um braseiro. lareira, uma opulenta mulher de olhos
gundo livro de contos, Praia Viva, acla- Respirei de boca aberta agora que vendados, empunhando a espada e
mado pela crítica – o primeiro, Porão e ele não me via, agora que eu podia a balança. Estendeu a mão até a ba-
Sobrado, bancado pelo pai quando tinha amarfanhar a cara como ele amarfa- lança. Passou o dedo num dos pratos
15 anos, nem entra em sua lista. Essa nhara o papel. Esfreguei nela o lenço, empoeirados. Olhou o dedo e limpou-o
seleção de todas as histórias curtas de até quando, até quando?…”, questiona com um gesto furtivo no espaldar da
LFT, Os Contos, que a Companhia das mentalmente Rodolfo, o personagem- poltrona”. Detalhe que não tem nada
Letras nos oferece, é joia rara. -narrador de Verde Lagarto Amarelo, de mero: o conto traz uma epígrafe de
Dá para acompanhar a evolução de um conto sobre a inveja entre dois Carlos Drummond de Andrade: “Que sé-
sua escritura desde Antes do Baile irmãos. O leitor acompanha o dra- culo, meu Deus! — exclamaram os ratos
Verde, publicado inicialmente em ma de Rodolfo, que desde criança e começaram a roer o edifício”.
1970, que abre a coletânea e traz na esconde-se da vida como “um lagarto Já em O Coração Ardente, que dá título
capa uma Lygia jovem, foto garimpada no vão do muro”, daí o título do conto. ao livro, o suicídio é o tema: “Em redor
em seu arquivo pessoal, imagens de Parecendo-se com um jacaré em mi- as pessoas ficam fascinadas, é sedu-
uma São Paulo amada pela escritora, niatura e tendo a cabeça semelhante tor um coração ardente, mas quem
assim como uma de suas grandes ami- à das serpentes, o lagarto possui as- não quer se aquecer nessa chama?
gas, Hilda Hilst, e uma caricatura feita pecto assustador, o que faz com que Pois meu filho Athos herdou esse co-
por um de seus maiores fãs: Carlos grande parte das pessoas mantenha ração, matou-se antes de completar
Drummond de Andrade. distância desse animal. vinte anos…”. O coração ardente que a
Senhora de um estilo que retrata os O viés político pode ser observado própria Lygia desfruta, com seus de-
sentimentos como poucos escritores em Seminário dos Ratos, da obra de vaneios, sensibilidade e delírios, todos
conseguem, lapida a escrita à exaus- mesmo nome: “O Chefe das Relações eles levados para suas narrativas.

REFERÊNCIAS não justifica o nascimento de textos prematu- reagiram contra o Modernismo e suas experiên-
BIBLIOGRÁFICAS ros, que deveriam continuar no limbo”. Mas cias revolucionárias nas décadas de 1930 e 1940
BOSI, Alfredo. O conto
brasileiro contemporâneo.
é Praia Viva, de 1944, que marca seu início na –, ela afina-se mais com o ambiente cultural da
São Paulo: Cultrix, 1977. carreira literária e já carrega marcas do viés fe- época, onde sobressaíam o experimentalismo
CAVALHEIRO, Edgar. Evolução minino sempre presente em sua obra, embora vanguardista, presentes no Expressionismo e
do conto brasileiro. Rio
de Janeiro: Ministério da sua literatura não possa ser classificada como Surrealismo. Na literatura, o estilo indireto livre
Educação e Cultura, s/d.
feminista – Lygia investiga o universo femini- e o fluxo de consciência eram a base para o re-
LUCAS, Fábio. A ficção
giratória de Lygia Fagundes no sob uma perspectiva moderna: a mulher é gistro interior da personagem.
Telles. In Cult, São Paulo, nº.
23, junho, 1999.
figura central na obra da escritora e, por meio Lygia não se fez de rogada e, antenada como
STEEN, Edla Van. Viver e das técnicas do fluxo de consciência e do mo- era, acolheu de bom grado as novidades. Sua
Escrever 3. São Paulo: LP&M nólogo interior, fez delas as protagonistas de escrita revela um estilo pontilhado de oralida-
Pocket, 2008, 2ª ed., vol. 709.
TELLES, Lygia Fagundes. Os suas histórias. de e uma forte exploração das manifestações
Contos. São Paulo: Companhia Mas a “escritora”, segundo sua própria aná- do inconsciente. Essa construção narrativa lhe
das Letras, 2018.
lise, começa a ser desenhada com seu romance trouxe dois benefícios: a oralidade lhe trouxe
inicial, Ciranda de Pedra. Aclamado pela crí- fluência, e a exploração do inconsciente, den-
tica, traz em seu bojo uma história de paixão, sidade. Misture-se a tudo isso seus gostos pes-
SOBRE A AUTORA loucura e morte. soais, como pela magia e fantástico, boas pita-
MARA MAGAÑA é
jornalista, escritora, Apesar da escrita de LFT estar impregnada das de romantismo, novela gótica e histórias
docente de Produção e
das características que marcam o período pós-45 de terror. Esse é o amálgama em que foi mol-
Interpretação de Texto e
fã absoluta de LFT. – e que designam principalmente os poetas que dada a literatura de Lygia Fagundes Telles.

30 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


MOMENTO DO LIVRO

Assassinato, traição, vingança,


romance e mistério compõem o
pano de fundo para Um Estudo
em Vermelho, que marca a estreia
da parceria entre o detetive mais
famoso do mundo, Sherlock Holmes,
e o médico John Watson. A partir
desse encontro, estará selado um
SDFWRHQWUHDPERVb‫۔‬1DPHDGD
LQFRORUGDYLGDFRUUHRਭRYHUPHOKR
do crime, e o nosso dever consiste
em desenredá-lo, isolá-lo e expô-lo
em toda a sua extensão”.

Livro: Sherlock Holmes Um Estudo em Vermelho


Número de páginas: 176
Editora: Lafonte

Nas livrarias e na loja Escala www.escala.com.br


CAPA / Interações Discursivas

/
Ln
A gua
em prosa e
diversos
32 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA
A linguagem e suas
múltiplas manifestações
permitem a nós, seres
humanos, traduzirmos
como pensamos com
relação àquilo que nos
afeta e de que forma
constituímos nosso
imaginário coletivo
por Abrahão Costa de Freitas

A
linguagem humana é um fenôme-
no social dinâmico historicamente
situado. Sua compreensão envolve
aspectos culturais relacionados
tanto à língua quanto à sociedade.
1 Sob essa perspectiva, LÍNGUA E LINGUAGEM1
são fenômenos através dos quais o ser huma-
DISTINÇÃO no se constitui como um ser de interação social.
ENTRE LÍNGUA
E LINGUAGEM A partir do momento em que se institui como
Podemos definir forma de intercomunicação de uma sociedade
linguagem como a específica, a língua transforma-se em um patri-
capacidade humana
mônio cultural por meio do qual se fortalecem
para expressar
pensamentos, ideias os laços de pertencimento àquela comunidade.
e sentimentos. Em Não apenas isso, em uma perspectiva inter-
outras palavras, a disciplinar, a interação entre língua e socieda-
linguagem relaciona-
-se aos fenômenos de revela aspectos importantes da organização
comunicativos: social e cultural do ser humano. Isso porque,
língua, literatura, como diz ÉMILE BENVENISTE2, “a língua é por ex-
música, arte,
fotografia etc. celência o índice das mudanças que se operam
Portanto, havendo na sociedade”.
comunicação, Em outras palavras, a língua é repositório
há linguagem. A
de uma série de experiências vividas, também
língua por sua vez,
é a manifestação presentes em outras manifestações da lingua-
verbal da linguagem gem através da qual se exteriorizam a memó-
representada por ria histórica e o conhecimento adquirido de
meio dos signos
linguísticos. uma sociedade.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 33


CAPA / Interações Discursivas

DO
É por meio da interação entre as diversas
T RAÇO
A IDEIA
manifestações da linguagem à nossa dispo-
sição que nós, seres humanos, conseguimos
construir as REPRESENTAÇÕES COLETIVAS3 consti-
tutivas de nosso imaginário coletivo.
Característica inerente às sociedades hu-
manas, a cultura constitui-se fundamentada
na linguagem. Para EDGAR MORIN4, é a partir
dela que tomamos conhecimento “das expe-
riências vividas, da memória histórica [e] das
crenças míticas de uma sociedade”. A heran-
ça cultural que recebemos quando nascemos
sobrepõe-se à nossa hereditariedade genética
e constitui uma forma de conhecimento que
é “simultaneamente biológico, cerebral, espiri-
tual, lógico, linguístico, cultural, social, históri-
co, e não pode ser desvinculado da vida huma-
na e da relação social”.
As interações discursivas presentes no uso
cotidiano da língua revelam que, para além das
PINTURA RUPESTRE ESCRITA CUNEIFORME
idealizações, ela não é uma entidade íntegra,
homogênea e uniforme. Localizada na ação so-
Nascida da necessidade de comu-
cial, ela é um sistema simbólico cujas assime-
nicar e registrar ideias, a pintura
trias revelam-se em sua interação com outros rupestre pode ser considerada o
fenômenos da linguagem. embrião da pictografia, forma de
Todo processo de enunciação está inseri- escrita que servira de base para
do em um contexto social, imediato ou não, e a escrita cuneiforme e para os
pressupõe um diálogo entre um ou vários in- hieróglifos.
terlocutores. Assim, a competência comunica- Além de seu caráter ritualístico,
tiva do falante está intimamente ligada à sua esse tipo de pintura demonstra o
capacidade de se relacionar com outros modos esforço do ser humano na busca
de comunicação. de formas eficazes de registrar
sua vida, suas ideias e atividades.
Perceber de que maneira pessoas, lugares e
Com o passar do tempo, as repre-
objetos influenciam em nossa maneira de ver e
sentações naturalistas da reali-
conceber o mundo a partir da linguagem é um
dade deram lugar a traços mais
exercício de criticidade que contribui muito para simples que tinham por objetivo
a melhoria de nossa competência comunicativa. sintetizar uma ideia. No entanto,
As redes de convenções sociais que regem ainda não se trata da escrita pro-
o nosso comportamento na relação com o ou- priamente dita, mas de uma re-
tro também manifestam-se em nossas práticas presentação a partir de símbolos.
discursivas e é a partir delas que, nas páginas A primeira forma de escrita de
seguintes, analisaremos a relação entre língua que se tem registro foi cria-
e cultura privilegiando as interações discursi- da pelos Sumérios, na antiga
vas com a literatura, a fotografia e a história. Mesopotâmia. Feita a partir de
glifos em forma de cunha, a escri-
ta cuneiforme data de 3.500 a.C.
LEITURAS DE MUNDO O desenvolvimento dos glifos
Qualquer exercício para estabelecer uma
cuneiformes levou a formas mais
relação entre língua e cultura passa necessaria- simples e abstratas de escrita.

34 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


mente tanto pelo ato de ler a palavra quanto
pela leitura do mundo. Uma boa leitura da “… a língua é repositório de
palavra nasce sempre de uma leitura compe-
tente do mundo. Saber estabelecer relações
uma série de experiências
entre o que se lê e o mundo que nos rodeia é vividas, também presentes
essencial para a compreensão dos implícitos
e pressupostos que todo texto traz consigo.
em outras manifestações da
Como seres de cultura que somos, imer- linguagem através da qual
sos em uma sociedade letrada, estamos ir-
remediavelmente ligados à leitura. Afinal,
se exteriorizam a memória
como nos lembra o escritor e tradutor ar- histórica e o conhecimento
gentino naturalizado canadense Alberto
Manguel, “todos lemos a nós e ao mundo
adquirido de uma sociedade”
à nossa volta para vislumbrar o que somos
e onde estamos. Lemos para compreender,
ou para começar a compreender. Não po- mos para além do mundo concreto, criando 2 ÉMILE
demos deixar de ler. Ler, quase como respi- um universo de significados para tudo aqui- BENVENISTE
rar, é nossa função essencial”. lo que nos rodeia. Linguista francês
É através da leitura que nos constituí- No entanto, como os suportes textuais des- de origem síria
falecido em 1976,
mos enquanto indivíduos e nos projeta- tinados à leitura nem sempre são os mesmos, Benveniste concebe
é preciso ampliar a nossa compreensão lei- o estudo da língua
tora indo além do senso comum. A aquisição como uma atividade
interdisciplinar,
de uma consciência crítica passa também por centrada no diálogo
uma leitura crítica de mundo. entre teoria e
Agregar à leitura experiências e conheci- prática, na qual a
linguagem tem papel
mentos previamente adquiridos amplia em
fundamental.
muito a compreensão daquilo que se lê. A
esse respeito, o educador Paulo Freire é inci-
sivo quando declara que “a leitura do mundo 3 REPRESENTAÇÕES
precede a leitura da palavra, daí que a poste-
COLETIVAS
Para o sociólogo
rior leitura desta não possa prescindir da con-
francês Emile
tinuidade da leitura daquele”. Durkheim, as
Isso porque, segundo a experiência do representações
próprio autor, “linguagem e realidade se pren- coletivas traduzem
a maneira como o
dem dinamicamente”. Em um mundo per- grupo pensa nas
meado pela leitura não há como desprezar o suas relações com os
poder que tem a linguagem em nossas ações objetos que o afetam.
Segundo o autor,
mais triviais. para compreender
A compreensão de mundo, alcançada atra- como a sociedade
vés da leitura dos diversos textos aos quais so- se representa a
si própria e ao
mos expostos diariamente, implica percepções
mundo que a
diversas de como as relações entre estes e o rodeia, precisamos
contexto em que são produzidos se dão. Esta considerar a natureza
clareza é importantíssima para que ampliemos da sociedade e não
a dos indivíduos. Os
a nossa percepção de mundo e cheguemos ao símbolos com que
entendimento do que seja o ato de ler. a [sociedade] pensa
Do ponto de vista prático, na trajetória da mudam de acordo
com sua natureza.
cultura e da sociedade brasileiras, as questões
de língua e linguagem sempre foram ricas, di-
versificadas e polêmicas.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 35


CAPA / Interações Discursivas

In ter discursivi da de

© VICTOR MEIRELLES / DOMÍNIO PÚBLICO /COMMONS.WIKIMEDIA.ORG


PRIMEIRA MISSA NO BRASIL,
A DESCOBERTA AS MENINAS DA GARE VICTOR MEIRELLES, 1860.
Seguimos nosso caminho Eram três ou quatro moças
por este mar de longo bem moças e bem gentis Os poemas ao lado, de Oswald de
Até a oitava da Páscoa Com cabelos mui pretos Andrade, estabelecem um claro
Topamos aves pelas espáduas diálogo com a Carta de Pero Vaz
E houvemos vista de terra E suas vergonhas tão altas de Caminha, misturando ficção e
e tão saradinhas realidade em um exercício de humor
OS SELVAGENS Que de nós as muito bem e ironia que vai além do esforço
Mostraram-lhes uma olharmos histórico-informativo do original.
galinha Não tínhamos nenhuma Postos em contraposição ao registro
Quase haviam medo dela vergonha da primeira missa no Brasil, os tex-
E não queriam pôr a mão tos tornam-se ainda mais críticos e
E depois a tomaram como ANDRADE, Oswald de. Poesias revelam o quanto havia de fantasio-
reunidas. Rio de Janeiro: Civilização so na visão paradisíaca que os por-
espantados Brasileira, 1978, p. 80.
tugueses tinham do “Novo Mundo”.

36 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


© FRONTEIRAS DO PENSAMENTO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG
Em uma época em que as mídias sociais são registros de uma memória individual e
diversificam os suportes e as tipologias tex- coletiva que se projeta para além do tempo,
tuais, ampliando os espaços para a leitura de revelando nas representações coletivas o
textos e imagens, contribuindo para a forma- conhecimento lógico, cultural, social, histó-
ção de um público leitor cada vez mais amplo, rico e linguístico de uma época.
a aproximação do texto literário de outras 4
modalidades textuais de maior ou menor RETRATOS DA LÍNGUA EDGAR MORIN
prestígio expõe diálogos tão inusitados quan- A relação entre língua e sociedade só Sociólogo, antropólogo
to enriquecedores. pode ser compreendida se levarmos em e filósofo francês.
Como acertadamente diz o crítico literário e conta a experiência do vivido. O encontro Concebe o ser
humano como fruto
historiador Alfredo Bosi: “O texto literário não do ser humano com a linguagem é tam- da vida natural e da
só reage aos fatos históricos, mas propõe novas bém um encontro com a sua identidade. cultura. Sua obra,
visões sobre os acontecimentos”, e a partir dele Ao reorganizar os fatos, a linguagem reor- além da filosofia e da
sociologia, também
podemos construir um painel significativo não ganiza os processos pelos quais percebe-
apresenta profundas
apenas de nossa memória histórica, mas tam- mos o mundo. reflexões sobre a
bém da trajetória de nossa língua como “índice Os traços e desenhos deixados pelo ho- educação.
das mudanças que se operam na sociedade”. mem pré-histórico nas cavernas, por mais
A relação da palavra com a imagem, em primitivos que pareçam, constituem a pri-
toda sua complexidade e amplitude, é tão anti- meira tentativa do ser humano de construir
ga quanto multifacetada. As representações da um sistema de signos para exprimir ideias.
realidade feitas pela literatura e pela fotografia (Ver box Do traço à ideia)

A R
CaM NTEA
VIAJ A
Que pode a câmara fotográfica?
Não pode nada.
Conta só o que viu.
Não pode mudar o que viu.
Não tem responsabilidade no que viu.
A câmara, entretanto,
Ajuda a ver e rever, a multi-ver. Francisco Paulo de Almeida e sua família. Foto de 1870,
O real nu, cru, triste, sujo. por Militão Augusto de Azevedo.
Desvenda, espalha, universaliza. Assim como sugere o poema de Carlos Drummond de Andrade,
A imagem que ela captou e distribui. na foto acima, que retrata um “barão do café” do século XIX, a
Obriga a sentir, câmara fotográfica pouco conta sobre a realidade do negro à
A, criticamente, julgar, época do Brasil Império. No entanto, levanta muitas especula-
A querer bem ou a protestar, ções sobre o que pode ter sido a trajetória de Francisco Paulo
A desejar mudança. de Almeida. Agraciado com o título de Barão de Guaraciaba, em
1887, foi o único barão negro do Império. “O real nu, cru, triste,
ANDRADE, Carlos Drummond de. A câmara viajante.
In: MARIGO, Luíz Claudio et al. Mata Atlântica. Rio
sujo” do Brasil patriarcalista e escravocrata não foi a imagem
de Janeiro: Chase, 1984. P. 04. que a câmara captou e distribuiu.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 37


CAPA / Interações Discursivas

BONS No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara

DIAS!
franqueza:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens
casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um
ordenado que…
— Oh! Meu senhô! Fico.
— … um ordenado pequeno, mas que há de crescer.
Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente.
Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho;
hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais
alto quatro dedos…
— Artura não qué dizê nada, não, senhô…
— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é
de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu
vales muito mais que uma galinha.
— Eu vaio um galo, sim, senhô.
— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se
andares bem, conta com oito. Oito ou sete.
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe
dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas;
efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco,
sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil
adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu
de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí pra cá, te-
nho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de
orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do
diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus
me perdoe!) creio que até alegre.
O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular
que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito
antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da
família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a
gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo apren-
dido a ler, escrever e contar, (simples suposições) é então
professor de filosofia no Rio das Cobras; que os homens
puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que
obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao
escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos,
sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a
justiça na terra, para satisfação do céu. Boas noites.
© BILLYCM / PIXABAY.COM

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Bons dias! (em Crônicas 1888-1889).
Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Hucitec, 1990.

Crítico requintado do Brasil de sua época, Machado de


Assis analisa, com muita sutileza e humor ácido, o com-
portamento das classes sociais brasileiras de seu tempo.
Assim como a imagem das crianças indianas na foto ao
lado, o texto machadiano expõe a dimensão política e
social de contextos históricos específicos e constrói o
retrato nada cordial de nossa realidade cotidiana inserin-
do o Brasil no mapa da exclusão global.
© BOGAERTS, ROB / ANEFO / BEELDBANK NATIONAAL ARCHIEF, CC0 / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG
“Uma boa leitura da palavra
nasce sempre de uma leitura
competente do mundo. Saber
estabelecer relações entre
o que se lê e o mundo que
nos rodeia é essencial para a
compreensão dos implícitos 5

e pressupostos que todo UMBERTO ECO


Foi escritor, filósofo, semiólogo e linguista italiano.
texto traz consigo” Falecido em 2016, Eco foi um dos mais influentes
intelectuais contemporâneos. Notabilizou-se,
sobretudo, por seus estudos na área da semiótica.

Com o surgimento da escrita, este proces-


so intensificou-se de tal forma que em pouco
tempo a experiência do vivido produziu um lé-
xico tão rico quanto variado. Tão amplo quan- um texto. Cada leitor define o caminho que REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
to minucioso, esse léxico ampliou as relações deseja seguir, como se caminhasse pelas tri-
BOSI, Alfredo. Dialética da
entre língua, cultura e sociedade. lhas de um bosque, como diz UMBERTO ECO5. Por colonização. 3 ed. São Paulo:
Os ditos, provérbios e comparações, por outro lado, os interesses materiais e simbólicos Companhia das Letras, 1995.
____________. Literatura
meio dos quais manifestamos nossa visão de envolvidos nas relações que se podem estabele- e resistência. São Paulo:
mundo, estabelecem formas de subjetivida- cer entre língua, cultura e poder são facilmente Companhia das Letras, 2002.
CHARTIER, Roger. A aventura
de que também estão presentes em modelos identificáveis nas dimensões política, social e do livro: do leitor ao
mais elaborados de comunicação, como a fo- econômica que damos à linguagem. navegador. Trad. Reginaldo
de Moraes. São Paulo:
tografia e a literatura. Editora da Unesp, 1998.
A história da língua portuguesa no Brasil é ENTRE O IDEAL E O LITERAL ECO. Umberto. Seis passeios
pelo bosque. São Paulo:
também a história de nossas letras e artes. Em Mais do que simples manifestações cultu- Companhia das Letras, 1994.
um constante diálogo entre ficção e realidade, rais, língua, linguagem e literatura são formas FREIRE. Paulo. A importância
do ato de ler: em três artigos
a construção da identidade cultural brasileira de construção de um sentido para a realidade. que se completam. São
é um imenso caldo de cultura no qual se mis- Indo além daquilo que explicitam os fatos, elas Paulo: Autores Associados:
Cortez, 1989.
turam elementos tão diversos quanto o real e o podem dar outro sentido aos acontecimentos, MORIN, Edgar. O método
maravilhoso, o individual e o universal, o subli- mudando a nossa visão da história. III. O conhecimento do
conhecimento. Publicações
me e o grotesco. (ver box Interdiscursividade) Como ação intelectiva, o ato de ler transforma Europa-América. Biblioteca
Diversificando as possibilidades de leitura nossa visão de mundo, ampliando nossa capaci- Universitária, 1986. Trad.
Maria Gabriela de Bragança.
da realidade, literatura e arte alargam os hori- dade de ver, sentir e pensar a realidade. Nossos co-
zontes da língua, assumindo sem pudores um nhecimentos e valores prévios, adquiridos através
declarado compromisso com a imaginação. da experiência, são enriquecidos e se legitimam. SOBRE O AUTOR
Seletiva e voluntariosa como a memória A tradição oral, o romance, o conto, a crôni- ABRAHÃO COSTA DE FREITAS
é professor, escritor,
humana, a ficção ultrapassa os limites da expe- ca, a poesia, o diário, a memória, assim como as tradutor por opção. Artista
riência vivida e traz para o território social da não leituras, ou leituras selvagens, como a cha- plástico entre um poema e
outro. Formado em Letras
linguagem vestígios de uma realidade cuja re- ma o historiador francês Roger Chartier, tanto e com especialização em
leitura vai muito além do que sugerem as im- evidenciam as relações de poder estabelecidas Educomunicação pela
Universidade de São Paulo e
pressões do mundo exterior. pela língua quanto as transcendem, expondo em Jornalismo Internacional
pela PUC/SP. Com larga
É na relação interativa entre indivíduos para além dessas novas formas de interpre- experiência em educação, o
que a linguagem se institui como criadora do tar o mundo e apreender a realidade. (ver box que o faz pulsar mais forte é
a Língua Portuguesa. Adora
real. Ninguém é totalmente passivo diante de Bons Dias!) Literatura, Teatro e Cinema.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 39


DEBATE / Heranças culturais

A arte, em especial a escrita, tanto na


literatura quanto na música, apresenta
algumas contradições que caracterizam o
Brasil e que se radicalizaram nos últimos
anos. De um lado, uma das mais fascinantes
produções culturais que resultam de uma
formação social complexa e multiétnica. De
outro, a violência que marca nossa sociedade

Querelas do
Brasil por Luiz Guilherme Sakai
E
screvo este texto ao som de João 1 MANO
Bosco, que lançou ao final de QUE ZUERA
2017 o disco predominantemen- Após oito anos sem
lançar nenhum
te de inéditas intitulado MANO
projeto inédito, o
QUE ZUERA1. Não sem admiração pelo que cantor e violonista
ouço: quem tanto fez por nossa canção, ao mineiro João Bosco
longo de quatro décadas de carreira, con- lançou, no final
de 2017, “Mano
tinua realizando grandes façanhas nesta/ Que Zuera”, álbum
em prol desta, que é das nossas mais im- composto de 11
portantes e completas expressões cultu- canções, entre elas
algumas parcerias
rais e que não raro aglutina em ritmos, inéditas com o filho,
melodias e harmonias a nossa complexa Chico Bosco, que
formação marcada por fluxos migrató- também assina a
produção musical do
rios diversos. O próprio Bosco, mineiro
álbum. Além dessas
de Ponte Nova e posteriormente radicado parcerias, o projeto
no Rio, sintetiza em sua intuição rítmica engloba clássicos
e harmônica diversos gêneros da tradição como “Sinhá”
(parceria com Chico
de nosso cancioneiro popular, não apenas Buarque), “Duro na
de Minas, mas também do Rio e da Bahia, Queda” e “João do
sem desconsiderar influências estran- Pulo” (parcerias com
Aldir Blanc), esta
geiras, como a do jazz que nos chega via última conta com
bossa-nova e de algum modo já DEGLUTIDO uma fusão sonora
ANTROPOFAGICAMENTE2. com a canção Clube
da Esquina Nº 2, e
Caldo cultural multifacetado já cele-
o encontro inédito
brado e homenageado pelo compositor em com a composição
músicas como NAÇÃO³, em parceria com Aldir de Arnaldo Antunes
Blanc e Paulo Emílio, na qual, em ritmo de em Ultraleve, em que
a filha, Júlia Bosco,
que só um violonista absolutamente hábil também faz uma
como Bosco é capaz, passeiam entidades participação.
africanas na companhia daquele que talvez
seja a maior influência do artista – e tam-
DEGLUTIDO
2 ANTROPOFAGI-
© JFOTOGRAFIXX / ISTOCK.COM.BR

bém ele uma entidade –, Dorival Caymmi. CAMENTE


A canção comemora, ao mesmo tempo que Caetano Veloso,
se apresenta, de modo deslumbrante e har- em texto sobre
a apropriação
mônico, como produto dessa formação, con-
da antropofagia
ciliando por assim dizer heranças culturais oswaldiana pelos
diversas, para não dizer contrastantes, como tropicalistas,
constante de Verdade
Tropical, vê na bossa-
-nova, especialmente
“Escrevo este texto ao final de em João Gilberto, um
2018, em clima já de virada, sem híbrido entre tradição
e modernidade que
deixar de realizar o balanço do o inspira, também,
a idealizar o
que foi este ano especialmente movimento.
marcado por tensões políticas
e sociais que talvez jamais
havíamos testemunhado”

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 41


DEBATE / Heranças culturais

NAÇÃO 3 se realizasse em sua estrutura aquilo que se es- dade do Brasil, das quais é modelar a Aquarela
A música Nação foi pera de uma democracia que se queira racial, Brasileira, hino não oficial do Brasil de autoria
gravada por João em que as diferenças são apagadas e tratadas de Ary Barroso. Vale a pena reproduzir parte
Bosco em 1982, no horizontalmente, sem que haja uma hierarquia da letra de Nenhum Futuro:
álbum Comissão de
Frente. PolyGram. que privilegie uns em detrimento de outros.
Também foi gravada Escrevo este texto ao final de 2018, em clima “Pindorama libertária/
por Clara Nunes, já de virada, sem deixar de realizar o balanço Glória negra dos ilês/
entre outros
intérpretes. do que foi este ano especialmente marcado Iletrados, inspirados/
por tensões políticas e sociais que talvez jamais Se esgueirando pelas leis/
MANIFESTO 4 havíamos testemunhado. Por tensões cujo es-
ANTROPÓFAGO topim foram, possivelmente, as Jornadas de Corpos nus desrecalcados/
Pode ser lido em:
www.antropofagia.
Junho de 2013, a partir das quais veio à tona, em Terão sido a tua fé/
com.br, site criado meio às exigências por melhores condições de Foste uma pornochanchada/
por Beatriz Azevedo, vida – com ênfase à melhoria da qualidade dos Das elites à ralé/
cantora e estudiosa serviços públicos em saúde e em educação –, um …
autora do livro
Antropofagia generalizado e pelo visto longevo e recalcado 111 amontoados/
– palimpsesto sentimento de insatisfação com as instituições Nosso mar vermelho/
selvagem, estudo e com o sistema político brasileiro. Sentimentos Chora o anjo da história/
fundamental
sobre o conceito de “penúria, fúria, clamor, desencanto”, “subs- Pelo Brasil”.
de antropofagia tantivos” abstratos posto que “duros de roer”,
em Oswald de como cantou outro artista de obra monumen- Note-se que a letra estabelece uma relação
Andrade. Para ela,
tal, Gilberto Gil, na faixa de abertura que dá de contraste entre Pindorama, mítica terra li-
Oswald contesta
e ataca o sistema nome a seu último trabalho, Ok, ok, ok, lançado vre dos males segundo a tradição guarani e
patriarcal, marcado em agosto deste ano marcado por eventos que resgatada como matriarcado (o matriarcado
pela propriedade vão desde a greve dos caminhoneiros até as elei- de Pindorama) por Oswald de Andrade em seu
privada e pela
herança, e defende ções que mais dividiram o País desde a redemo- MANIFESTO ANTROPÓFAGO4, publicado em 1928, e o
formas contrárias à cratização e que inflamaram discursos de ódio Brasil em que ameríndios, alcoolizados, vivem
usura, favoráveis ao que já circulavam por aí, nas caixas de comentá- em situação de descalabro, vítimas da violência
coletivo, sendo tais
formas associadas rios a reportagens, nos programas policiais exi- e do apagamento de suas identidades sistema-
ao que ele chama bidos à tarde, nos jornais sensacionalistas e na ticamente impostos desde que os colonizado-
de Matriarcado de boca de alguns políticos que surfaram na crista res aqui chegaram. Em resumo, “sem nenhum
Pindorama.
dessa onda, valendo-se desses discursos de into- futuro”. Some-se a isso o “mar vermelho”, em
DAVI KOPENAWA 5 lerância como plataforma eleitoral. alusão aos banhos de sangue que ocorrem em
YANOMAMI Lá pelas tantas, ainda ao som de João nossas penitenciárias – abarrotadas sobretudo
É um escritor, Bosco, atenho-me à faixa Nenhum futuro, de homens negros e pobres – dos quais um dos
xamã e líder
composta em parceria com seu filho, Francisco mais nefastos foi o Massacre do Carandiru, que
político yanomami.
Atualmente, é Bosco, que definiu a canção como “choro nii- deixou 111 mortos “amontoados”.
presidente da lista”, como consta no site de Bosco. O caráter A canção aponta, assim, para o fracasso
Hutukara Associação pessimista, ou melhor, de denúncia da letra, social e para o caráter falacioso de nossa “de-
Yanomami, uma
entidade indígena aliado à melancolia ritmada que marca esse mocracia racial”. O que se vê sistematicamente
de ajuda mútua e gênero musical – à certa “tristeza que balança” nos noticiários comprova a violência sofrida
etnodesenvolvimento. –, não deixa de funcionar como uma espécie especialmente por homens e mulheres indíge-
de contraponto não apenas à canção que ce- nas e negras, sem falar do que sofrem outras
lebrava nossa complexa formação cultural, populações historicamente oprimidas e vulne-
mas também a toda uma tradição de poesia ráveis. Além disso, apresenta também uma es-
que se inicia no Romantismo, como certos poe- pécie de fissura, de tensão entre o conteúdo da
mas da primeira geração romântica do Brasil, letra e a estrutura musical: ao belo e harmôni-
cujo maior expoente é Gonçalves Dias e sua co choro executado com fluidez pelos músicos,
“Canção do exílio, e de canções mais ufanistas”, chocam-se os versos “niilistas”, portadores de
exaltadoras das belezas naturais e da diversi- denúncias atrozes, como se a combinação em

42 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


AMEAÇA SÓ CRESCE
O jornal Folha de São Paulo, em de uma cidade como Belo Horizonte.
reportagem publicada em 19 de no- Segundo notícia publicada no Diario
vembro, afirma: a “saúde indígena de Pernambuco, em outubro passa-
perderá 301 de seus 372 médicos do, no final de outubro de 2018, no
com a saída de cubanos” [do pro- sertão de Pernambuco, uma escola e
grama Mais Médicos, do Governo uma Unidade de Saúde que prestam
Federal]. Especialistas consultados atendimento a indígenas foram in-
pela reportagem acreditam que a cendiadas. A comunidade Pankararu
região da Amazônia será a mais suspeita que se trata de um incêndio
afetada. Falam, categoricamente, em criminoso e repudiou os atos, além
colapso. de exigir investigação por parte das
De acordo com pesquisadores autoridades.
do Instituto do Homem e Meio No Manifesto da Poesia Pau-Brasil,
Ambiente da Amazônia (Imazon), nos publicado em 1924, Oswald de
últimos 12 meses o desmatamento Andrade escreve: “Nenhuma fórmu-
na Amazônia aumentou 40% e atin- la para a contemporânea expressão
giu o coração da floresta. No último do mundo. Ver com olhos livres.
ano, quase quatro mil quilômetros Temos a base dupla e presente – a
de mata nativa foram devastados, o floresta e a escola”. Os poderosos
que equivale a 13 vezes o tamanho parecem ter entendido isso.

REFERÊNCIAS
harmonia de diversas culturas só fosse possí- ao fim do mundo previsto pelos xamãs yano- BIBLIOGRÁFICAS
vel no plano musical. Fora dele, a situação in- mami. Fim do mundo, assunto em que os indí- ALBERT, Bruce. KOPENAWA, Davi. A queda
versa: uma sociedade marcada pela violência, genas, segundo o antropólogo Eduardo Viveiros do céu. (Trad. Beatriz Perrone-Moisés). São
Paulo: Companhia das letras, 2016.
que inviabiliza as possibilidades de um país de Castro, são especialistas, visto que assistem BOSCO, João. Mano que zuera. Rio de
mais justo e igualitário, respeitoso com a diver- à destruição de seu mundo imposta há séculos, Janeiro: Som Livre, 2017.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São
sidade cultural e com modos de vida alterna- de Cabral e Colombo aos atuais governos, sejam Paulo: Companhia das letras, 1997.
tivos ao capitalismo predatório e patriarcal do de esquerda ou de direita. Fica a frase cortante www.antropofagia.com.br

qual em partes decorrem tais violências, que do Manifesto Antropófago. “Antes de os portu- www.azougue.com.br

devastam também e primeiramente a terra. gueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha des- www.joaobosco.com.br/musica/mano-que-
zuera-2017/
Capitalismo predatório e mercantilização coberto a felicidade”. https://www.socioambiental.org/pt-br/
contra os quais insurge a voz do xamã yano- Encerro este texto sob o impacto de ter noticias-socioambientais/os-indios-sao-
especialistas-em-fim-do-mundo-diz-o-
mami DAVI KOPENAWA5, cujas palavras foram re- assistido a um vídeo que circulou nas redes antropologo-eduardo-viveiros-de-castro

gistradas em papel por Bruce Albert no livro A sociais (pode ser visto no site Brasil247) e que https://www.brasil247.com/pt/247/
nordeste/378501/PM-destr%C3%B3i-
queda do céu. A obra, das mais importantes de exibe a reintegração de posse determinada lavoura-e-desaloja-povo-Trememb%C3%A9-
de-suas-terras-no-Maranh%C3%A3o.htm
nosso tempo, não é um fenômeno isolado. Está pela Justiça do Maranhão. Tratores literal-
https://www1.folha.uol.com.br/
acompanhada de tantas outras vozes de outros mente passam por cima das construções e das cotidiano/2018/11/saude-indigena-perdera-
povos indígenas que buscam por meio da pala- plantações realizadas pelos indígenas da co- 301-de-seus-372-medicos-com-a-saida-de-
cubanos.shtml
vra escrita estabelecer contato com o homem munidade Tremembé do Engenho, que há 70 http://amazonia.org.br/2018/08/
branco, convidado a ler e a ouvir o pensamento, anos ocupam a área localizada em São José do desmatamento-na-amazonia-aumentou-
40-nos-ultimos-12-meses-diz-instituto/
a conhecer a cosmogonia, as histórias, mitos e Ribamar, no Maranhão. Ora despejada, resta à http://www.diariodepernambuco.com.
tradições ameríndios – tome-se como exemplo comunidade viver na condição de pobreza, que br/app/noticia/vida-urbana/2018/10/29/
interna_vidaurbana,766848/escola-
a coleção Tembetá, organizada por Kaká Werá e é um modo de “incluí-los” ao sistema predató- e-posto-de-saude-indigenas-sao-
que apresenta o pensamento indígena sinteti- rio e de trazê-los finalmente àquilo a que se incendiados-em-pernambuco.shtml

zado por lideranças com papel importante para convencionou chamar de civilização. “Eu não
a preservação e divulgação das culturas tradi- queria isso, queria um país diferente, em que SOBRE O AUTOR
LUIZ GUILHERME SAKAI é músico,
cionais. E também chamado a considerar seus as autoridades olham pra nós tudo”, diz um dos professor de língua portuguesa e
literatura, mestre em Literatura e
alertas: “o despencar do céu sobre nós” refere-se moradores da comunidade. crítica literária (PUC-SP).

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 43


LITERATURA ESTRANGEIRA / Antipoesia Chilena

© LPETTET / ISTOCKPHOTO.COM
iz
por Maria Beatr

44 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Nicanor Parra viveu 103 anos, todos eles dando uma banana às
convenções, inclusive para a poesia. Transgressor até a raiz dos cabelos,
que manteve revoltos até o fim, ajudou a colocar o Chile no mapa da
literatura mundial e deixou uma peculiar despedida: “Vou e volto”

E
le pertence a uma forte linhagem artística.

© ROOSEWELT PINHEIRO/ABR / AGENCIA BRASIL / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG


Só para citar os membros da família mais
conhecidos por aqui, é irmão da folclorista
Hilda Parra e de Violeta Parra, a mais famo-
sa do clã, cantora e compositora – é dela a pequena
obra-prima Volver a los 17 –, tio de Isabel e Angel Parra
(ela cantora e ele músico, ambos filhos de Violeta e do
ferroviário Luis Cereceda), e do músico Nicanor Baez
Parra, nascido da união de Hilda e Juan Joaquín Baez.
Há mais gente ligada às artes que divide o mesmo so-
brenome, como Robert, Clarita, Nano e Jeremy Parra,
um palhaço muito admirado no Chile, entre outros.
Todos eles estão, de alguma forma, ligados ao folclo-
re e à tradição popular. É da simplicidade que Nicanor
Parra se alimentou e deu forma à sua poesia, ou anti-
poesia. Amigo pessoal de outro gigante da literatura
chilena, Pablo Neruda, desancou a elegância dos versos
nerudianos e adotou uma postura ácida, divertida, irô-
1
nica, como pode-se observar em Epitáfio: JOSÉ ALBERTO
MUJICA CORDANO
Conhecido popularmente
De estatura mediana, como Pepe Mujica, é
Com uma voz nem fina nem grossa, agricultor e político
Filho mais velho de um professor primário uruguaio, tendo sido
Presidente da República
E de uma costureira doméstica; Oriental do Uruguai entre
Magro de nascimento 2010 e 2015.
Ainda que adorador da boa mesa;
De faces esquálidas
2 FEDERICO
Mas, sim, abundantes orelhas; GARCIA LORCA
Com um rosto quadrado (1898-1926)
Em que os olhos muito mal se enxergam Foi um poeta e
dramaturgo espanhol
E um nariz de boxeador mulato e uma das primeiras
Sobre uma boca de ídolo asteca vítimas da Guerra Civil
– Tudo isso banhado Espanhola. Sua morte,
envolta em mistério,
Por uma luz entre irônica e pérfida –
aponta para assassinato
Nem muito esperto nem doido varrido em um fuzilamento
Fui o que fui: uma mescla em 1936 pelas forças
De vinagre e azeite de oliva franquistas, mas seus
restos mortais não foram
Um embutido de anjo e de besta! encontrados até hoje.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 45


EM DEFESA DE VIOLETA
Nicanor Parra deixou instruções expressas de como gostaria que
Reconhecido mundialmente, somente no fosse seu velório: uma delas era que tocasse, durante toda a ce-
final de 2018, dez meses após sua morte, é que rimônia, as músicas de sua irmã, Violeta Parra. Mas a igreja não
o Brasil, por meio da Editora 34, finalmente co- concordou com a exigência. Foi preciso que sua filha, Colombina
locou à disposição dos leitores Só para Maiores Parra, batesse o pé e ameaçasse levar seu corpo para outro lu-
gar – milhares de pessoas esperavam para vê-lo, do lado de fora,
de Cem Anos, uma antologia, em edição bilín-
entoando Gracias a la Vida – para que o padre, enfim, e muito a
gue, com 75 poemas das principais publica-
contragosto, concordasse com o pedido.
ções de Parra, em tradução esmerada de Joana
Parra era muito próximo a Violeta, que se matou aos 49 anos, em
Barossi e Cide Piquet. Uma empreitada, aliás, 1967, devido à uma depressão
que estava sendo preparada há anos, mas com que a acometeu desde a morte
a morte da agente literária do autor, a famosa precoce de uma filha de poucos
Carmen Barcells, acabou atrasando o projeto. meses, em 1964, e desiludida com
o afastamento do terceiro mari-
“NÃO SOU do, o músico suíço Gilbert Favre.
AUTOR DE NADA”
© REPRODUÇÃO / RCA RECORDS

Criticada por muitos, saiu em seu


Em 2011, disse em entrevista uma frase im- socorro, com o belo Defesa de
pactante ao jornal El País: “Nunca fui autor Violeta Parra, cedendo, só para
ela, ao lirismo escancarado.
de nada, porque sempre pesquei coisas que
estavam no ar”. A declaração veio de alguém
que ganhou o Prêmio Nacional de Literatura
em 1969, o Prêmio Ibero-Americano de Poesia sobrinho
Doce vizinha da Flor da cordilheira
Pablo Neruda em 2012 e o Cervantes em 2011, só verde floresta da costa
com a tia
para citar alguns. Hóspede eterna do És um manancial
A desafetação não se refletia somente em abril florido Quando é que vais inesgotável
sua escrita: Nicanor Parra, a exemplo de PEPE
te lembrar de ti
Grande inimiga dos mesma Da vida humana.
MUJICA1, levava uma vida espartana e ganhava pés de amora
a vida dando graças a ela, como na belíssima Violeta piedosa. (…)
Violeta Parra.
canção de sua irmã, e lecionando matemáti-
ca e física, estacionando seu velho Fusca em A tua dor é um Isto é o que eu
frente à modesta casa de onde descortinava Jardineira círculo infinito queria te dizer
o Pacífico (como consta no posfácio assinado Louceira Que não começa
por Joana Barossi). Costureira nem termina nunca
Continua tecendo
O primeiro livro de Parra, escrito durante Bailarina da água Porém tu te teus arames
o período em que estudou Ciências Humanas, transparente sobrepõe a tudo
Teus ponches
Matemática e Física na universidade, é Árvore cheia de Violeta admirável. araucanos
Cancionero sin nombre, de 1935. Aqui já se en- pássaros cantores
(…) Teus cantarinhos
contra o embrião da antipoesia, apesar de ele Violeta Parra. de Quinchamalí
ainda flertar com a escrita de FEDERICO GARCIA
Continua polindo
LORCA2, em Romance Gitano. Estudou na Brown Como não
Tens percorrido noite e dia
University, nos Estados Unidos, na universida- gostar de ti
toda a comarca Teus toromiros de
de de Oxford, na Inglaterra, enquanto se tor- eu me pergunto
Desenterrando madeira sagrada
nava igualmente um grande especialista na Quando são só uns
cântaros de argila Sem aflição
cultura popular de seu país. Essa experiência tristes funcionários
internacional, ao mergulhar profundamente
E libertando Sem lágrimas
pássaros cativos Cinzentos como as
em sociedades estrangeiras e desenvolvidas, pedras do deserto inúteis
Entre as ramagens. Ou se quiseres com
diferentes da sua, foi, junto com uma oposição Não é mesmo?
à poesia tradicional de Pablo Neruda, a base da lágrimas ardentes
gestação de sua produção antipoética. Preocupada sempre E lembra-te que és
É assim que surge De poemas e Antipoemas, com os outros Tu por outro lado
Um cordeirinho
de 1954, livro que abre a antologia Só para Quando não com o Violeta dos Andes disfarçado de lobo.

46 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Maiores de Cem Anos. Desconstruindo o mo- só Parra, mas também seus irmãos, Violeta à

© CREATIVE COMMONS ATRIBUCIÓN-COMPARTIRIGUAL 3.0


delo de escrita e leitura herdado, a antipoesia frente, puseram em prática uma das máximas
mostra-se como um caminho que contradiz o ambições da poesia de todos os tempos: en-
estabelecido, que pretende romper com as con- cher a paciência do público”.
venções poéticas esterilizadas. A antipoesia é da Iconoclasta à sua maneira, em Manifesto,
rua, provando que enquanto Neruda e outros de 1963, coloca por terra a mística do poeta
grandes falam do povo, ela é, antes de qualquer como era concebido até então.
coisa, o próprio povo. Vai ao mercado, conversa
com o dono da barraca de frutas, fala do vulgar Senhoras e senhores
(mas sem perder o encanto) e, claro, desconcer- Esta é nossa última palavra
ta. Mostra-se livre, e isso sempre provocou um – Nossa primeira e última palavra –
certo desassossego no stablishment, como é Os poetas baixaram do Olimpo
possível perceber no poema Eu Pecador, publi- (…)
cado originalmente em Obra Grossa, de 1966.
3
o poeta não é um alquimista
Eu galã imperfeito o poeta é um homem qualquer ROBERTO
BOLAÑO ÁVALOS
Eu dançarino à beira do abismo um pedreiro que constrói seu muro: (1953-2003)
um construtor de portas e janelas Foi um escritor chileno,
Eu sacristão obsceno (…) ganhador do Prêmio
Menino-prodígio dos lixões Rômulo Gallegos
por seu romance Os
Todos esses senhores Detetives Selvagens,
Eu sobrinho – eu neto – E digo isso com muito respeito – que ele descreveu como
Eu confabulador de marca maior, Devem ser processados e julgados uma carta de despedida
à sua geração.
Por construir castelos no ar
Eu senhor das moscas Por desperdiçar espaço e tempo
Eu esquartejador do regato Las Tocas Escrevendo sonetos à Lua
(…)
Eu violador das tumbas
Eu satanás doente de caxumba… Parra nocauteava qualquer instituição, des-
de que plantada sobre sólidos princípios. Nem
eDSRHVLDGHVFHQGRGHVXDWRUUHGHPDU¿P seu eu lírico escapa, como em Me defino como
homem razoável, de Obra Grossa. REFERÊNCIAS
FORA DA CAIXA BIBLIOGRÁFICAS
CARBALLO, Emmanuel. Un gran
Os amigos de fato de Nicanor Parra vi- Me defino como homem razoável novelista latino-americano.
IN: García Márquez, colección
viam à margem do estabelecido. Entre 1990 e não como professor iluminado el escritor y la crítica. Madrid:
2000, foi ROBERTO BOLAÑO³ quem fez as honras nem como vate que sabe de tudo Taurus, 1982. p. 22-37.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem
da casa para o autor e disse, após sua despe- Claro que às vezes me pego fazendo Anos de Solidão.

dida: “Não foram capazes de lidar com Parra o papel do galã incandescente/ (por- TODOROV, Tzvetan. Introdução à
literatura fantástica. São Paulo:
nem a esquerda chilena de convicções direi- que não sou um santo do pau oco) Perspectiva, 1998.
TODOROV, Tzvetan. A narrativa
tistas nem a direita chilena neonazi nem a es- porém não me defino como tal fantástica. In: As estruturas
querda latino-americana neoestalinista nem Sou um modesto pai de família narrativas. Trad. Leyla Perrone.
Moysés. São Paulo: Perspectiva, 1969.
a direita latino-americana globalizada nem os um ferrabrás que paga seus impostos
medíocres professores latino-americanos das Nem Nero nem Calígula: SOBRE A AUTORA
universidades estadunidenses nem os zum- um sacristão/ um homem ordinário Maria Beatriz é professora de
Língua Portuguesa e Literatura e
bis que passeiam pela aldeia de Santiago. Não um aprendiz de santo do pau oco mestra em Literatura Comparada.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 47


INTERPRETAÇÃO / Expressões linguísticas

Balbucios
da Literatura
Contemporânea
Textos dessa fase têm
sido marcados por uma
linguagem que os aproxima
da oralidade, numa busca de
deixar transparente a voz
narradora e identificá-la com
o lugar social da possível
representação
por Roberto Sarmento Lima

E
m um tempo aí que já vai longe, o
crítico Sílvio Romero denunciou na
escrita romanesca de Machado de
Assis o quanto há de anódino na
repetição monótona de palavras e na indife-
rença dele para com a cor local nas suas rarís-
simas descrições, lamentando a baixa expres-
sividade das formas de composição literária
desse escritor, toda ela sentida como resulta-
do de “sua índole psicológica indecisa” ou, pior
do que isso, de sua “perturbação nos órgãos
da linguagem”. Na época ressaltar inferiori-
dade ou superioridade de um autor com base

48 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


em traços psíquicos ou genéticos era tudo o O que dizer disto então, no texto que se se-
que se fazia, sob inspiração do DETERMINISMO gue, o trecho inicial do conto “A Lei”, de ANDRÉ
DE HIPPOLYTE TAINE1, teoria pela qual o homem SANT’ANNA2, constante do livro Sexo e Amizade,
estava irremediavelmente condicionado a de 2007?
fatores externos, como tempo, raça e lugar.
Se, ainda por cima, era sabido que Machado
tinha epilepsia e gagueira, convinha, natu- “Eu nunca percebi isso, mas eu sou muito burro. Não
ralmente, acusar em seus escritos sombras parece nem que sou eu que estou pensando nessas
desses males. Vivia-se, como sabem todos, o palavras que estão saindo no papel. Eu não sei juntar
Naturalismo na crítica e na própria literatura, as palavras e fazer com que essas palavras, juntas,
no final do século XIX. ganhem um sentido. Eu não conheço gramática nem
Amava-se, pois, em compensação, aos es- nada dessas coisas de escrever. Eu não estou escre-
tilistas que se derramavam no ato de dizer o vendo. Eu só estou pensando que eu estou escrevendo.
mundo: era o caso de José de Alencar, por seus É que eu sou burro. Sabe por quê? Porque eu sou da
painéis de gradações de cores e variadas nu- polícia. E na polícia todo mundo é burro. Tem que
ances vistas na paisagem, e até mesmo o de ser burro para ser da polícia. Nessa polícia da qual
Coelho Neto, por sua incontrolável verborra- eu faço parte. (Viu como eu pensei estar escrevendo
gia, mesclada de parnasianismo e realismo pic- bonito esse negócio de “da qual”?), só tem gente burra
tórico. O negócio brasileiro era, pois, exaltar a que nem eu. Nós, essa polícia, só sabemos mesmo é dar
fartura, marca da nossa diferença em relação porrada, é fazer tráfico de arma.”
ao colonizador, que ficou para trás. A economia
no emprego dos recursos ditos estéticos era
vista, neste país tropical, como uma indigên-
cia, algo a espantar, como um entrave à sen- O narrador começa por dizer que se con-
sibilidade de quem curte se expor ao sol para sidera “muito burro”, não sabe “juntar as pala-
amorenar-se e, de quebra, desviar-se de pre- vras” nem conhece “gramática”. No fim, declara
ocupações mais rasteiras. Machado de Assis, que é assim, simplesmente porque é “da polí-
mais discreto, não seguia, com efeito, o figu- cia”, visto que “na polícia todo mundo é bur-
rino do nacionalismo plástico e cantante dos ro” ou “tem que ser burro para ser da polícia”.
indianistas e regionalistas do seu pobre século. Servindo-se de um máximo de informalidade,
Preferiu ver o Brasil representado na alma das dizendo as coisas do modo como se fala, num
personagens, nas atitudes — em geral sorratei- rasgão de sinceridade e dor existencial trazida
ras e acanalhadas, apesar do disfarce de refina- à tona, esse narrador — sem se incomodar se
mento de que se nutriam — e nas aspirações escreve literariamente ou, como diria PAULO
desse povo que, até hoje, gosta de vencer na HONÓRIO3, de São Bernardo, sem ter “a bondade
1 HIPPOLYTE
vida pelas aparências e não tanto assim pelo de traduzir isto em linguagem literária” — de- ADOLPHE TAINE
esforço pessoal, pelo trabalho, pelo mérito ou nuncia a situação atual do Brasil, país em que Crítico e historiador
coisa que seja tão ou mais dignificante. educação e segurança são instituições pratica- francês, membro da
mente falidas. Ou seja, sem salamaleques ou Academia francesa,
SINCERIDADE E POBREZA disfarces nos comentários que tece, o narra-
foi um dos expoentes
do Positivismo
Acontece, porém, meu amigo leitor, que, dor desabafa e vai direto ao ponto, não tanto do século XIX, na
como dizia Camões, “mudam-se os tempos” como um jornalista o faz, mas como qualquer França. O Método
de Taine consistia
e, com isso, “mudam-se as vontades”; e o que, cidadão brasileiro, com sua sintaxe arrevesa-
em fazer história
antes, parecia gagueira linguística, desleixo ou da, pode fazer no auge da sua irritação com as e compreender
falta de estilo hoje parece ser a maneira como coisas que não andam como deveriam. Pode- o homem à luz
nós nos encaramos e nos definimos em face -se dizer que o narrador de Graciliano Ramos, de três fatores
determinantes: meio
dos novos acontecimentos. Tempos mais po- o tal Paulo Honório, antecipou essa sintonia ambiente, raça e
bres? Digamos que são outros tempos! com os tempos que correm. Pois hoje, mais momento histórico.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 49


INTERPRETAÇÃO / Expressões linguísticas

ANDRÉ 2 do que nunca, Honório está certo e esteve cer- de a ver montada. Digamos que, com a redemo-
SANT’ANNA to o tempo todo, dos anos de 1930 às primei- cratização do Brasil, a partir da década de 1980,
Filho do escritor ras décadas do século XXI. Hoje, é regra falar os grupos que não puderam falar por muito
Sérgio Sant’Anna,
desse jeito; ontem, era o despontar de uma tempo, abafados em seus lugares de opressão
é, também, um
escritor brasileiro e regra que ainda viria consolidar-se, apesar de e censura oficial, mantidos calados, passaram a
trabalha, atualmente, todas as conquistas de libertação formal do gritar para quem quisesse ouvir seus conteúdos
como roteirista de Modernismo. de classe. O intrigante nisso tudo é que André
publicidade, cinema
e televisão. Nos anos O que mudou ou fez a literatura mudar Sant’Anna, escritor branco, de classe média,
1980, era compositor substancialmente de lá para cá? É evidente bem ambientado nos salões universitários e
e contrabaixista do que as conquistas atuais da expressão linguís- literários do País (ele é filho do escritor Sérgio
grupo Tao e Qual.
tica na literatura, tanto no verso quanto na Sant’Anna, o que não é pouca coisa), não é essa
prosa, não existiriam sem as lições do primei- voz reprimida que de repente se danou a dizer
ro modernismo, aquele lá de 1922 em diante, o que pensa, sem papas na língua. O lugar de
quando a ordem era o despojamento e quan- onde ele vem o favorece, obviamente — o que
PAULO HONÓRIO 3 do o ataque ao verbalismo inútil e açucarado não o impede de dar realidade literária ao que
Narrador
protagonista do era a arma que se empunhava, nesse projeto ele conhece por intuição, observação atilada ou
romance São de modernização das letras e do País. A repre- por experiências acumuladas de vida.
Bernardo, de sentação, como só se percebe agora, ficou mais Suas personagens são, em geral, pessoas de
Graciliano Ramos,
transparente; os tempos, mais pobres, mas só outro lugar, socialmente menos protegido em
reconhecido por
muitos críticos como no sentido de que ficou definitivamente claro comparação ao dele mesmo; são pessoas mui-
a voz do autor na não ser mais possível ocultar, sob metáforas e to comuns, que têm dificuldade de viver com o
obra, conta sua delicadezas verbais, o que, na verdade, é custo- salário que têm, com a formação educacional
história desde os
tempos de guia de so e áspero. Paulo Honório já estava convenci- que têm; é gente do cotidiano como nós, em
cego no interior de do disso, desde aquela época; e não economi- algum momento da vida. Disse um dia o pró-
Alagoas até tornar-se zou palavras duras e secas, com direito a pa- prio Sant’Anna, numa entrevista dada em 2007
um latifundiário, sem
se ater a princípios lavrões, quando ia se referir à realidade social à revista Fronteiraz, da PUC de São Paulo, que
éticos. a sua volta. Eis que deixou essa lição para os “o motorista de táxi é um dos maiores retratos
anos que viriam. do que é o brasileiro hoje em dia”: ele conduz
Não é que a literatura tenha decaído, como as pessoas, vê e sente as pessoas que entram
dizem alguns, desgostosos com a presença de no seu táxi reagindo à realidade diária, e o
termos chulos e vulgares nos textos, ou caído escritor seria mais ou menos como esse mo-
do pedestal em que talvez muitos gostem ainda torista, que assiste a tudo e compartilha com
os clientes a atmosfera vibrante da cidade. Há,
por exemplo, um quê de sadismo no motorista
ao frear subitamente, causando susto na ve-
lhinha à frente do seu carro, seu instrumento
“Se, ainda por cima, era de trabalho, como o é a pena, ou a caneta, ou o
sabido que Machado teclado do computador para o escritor. Enfim,
é o insatisfeito que se vinga da realidade que o
tinha epilepsia e gagueira, sufoca, o que gera nele também uma descren-

convinha, naturalmente, ça em si mesmo, tal como se vê no policial que


se desprestigia diante do leitor, chamando a si
acusar em seus escritos próprio de burro.

sombras desses males. REPETIÇÃO E DESMETAFORIZAÇÃO


Vivia-se, como sabem todos, A realidade, hoje, chegou a um ponto de ser

o Naturalismo na crítica e na tão agudamente sentida e percebida — não


porque ela nos surpreenda, mas porque ela
própria literatura, no final nos acostuma a ver os mesmos quadros — que

do século XIX” nem mesmo em arte se pode mais idealizar (o


que dizer, então, das utopias? tenderão ao fra-
casso?). Da sua parte, os textos contemporâ-
neos captam a realidade mais crua, quase sem

© AKADEMIE DER KÜNSTE / DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG


a intermediação do olhar institucional da lite-
ratura ou, como gostam de dizer as teorias lite-
rárias mais tradicionais, sem a intermediação
da forma, tal como esta foi entendida no âmbi-
to das operações da linguagem. Tudo no texto
avulta como se o discurso montado nele dei-
xasse as personagens soltas, a seu bel-prazer,
falando como querem ou sabem, sem que haja
qualquer interferência planejada da forma na
sensibilidade e no modo como elas atuam na
vida em sociedade. Examinando o mundo con-
4
temporâneo — volátil, atordoante por seu acú-
mulo de imagens via televisão e internet —, o
WALTER
BENEDIX
narrador o percebe como se estivesse dirigindo do, transformado numa grande tela de tele- SCHÖNFLIES
a cena com uma câmera na mão. Isso se dá por- visão ou cinema? Tudo cabe nesse quadrado; BENJAMIN
que em cada época a tecnologia cria e fomen- e sabemo-lo sempre pela repetição do mo- Foi um ensaísta,
vimento dos olhos, indo da esquerda para a crítico literário,
ta um modo de olhar a realidade. A nossa, em
tradutor, filósofo
razão da hegemonia dos meios eletrônicos de direita da tela, de cima a baixo, para todos os e sociólogo judeu
captação de imagens e produção de informa- lados. Parece que tudo está ali previsto. Opta- alemão. Associado à
ção, contribui para a gestação de um olhar que -se sempre, pois, pela repetição e pela rarefação Escola de Frankfurt
e à Teoria Crítica, foi
se move com rapidez, sem dar (ou ter) tempo da metáfora, que se torna peça de museu, sem fortemente inspirado
para maiores reflexões. Se o mundo virou uma implicar qualquer tipo de nostalgia. Raciocina tanto por autores
tela de televisão ou de computador, imagina-se nesses termos André Sant’Anna, nessa mesma marxistas, como
Bertolt Brecht, como
prontamente que tudo está a nu, oferecendo- entrevista dada à Fronteiraz: se o narrador re-
pelo místico judaico
-se em sua transparência luminosa, nada ha- lata a vida do pobre, do menos instruído, da- de Gershom Scholem.
vendo de mais sério a decifrar. quele que tem poucos recursos de linguagem,
WALTER BENJAMIN4, no ensaio Experiência e porque não pôde aprender, porque não teve
Pobreza, de 1933, já havia profetizado o que po- maior tempo de escolaridade, a saída para o
deria aparecer depois, no âmbito da cultura. O ficcionista é repetir (que não nos ouça lá do
filósofo alemão argumenta que nossa pobreza seu túmulo Sílvio Romero, que disse ser esse
no modo de ver, resultado da deliquescência da um traço infame da literatura machadiana,
transmissão oral da tradição, coincide com o contrário à qualidade literária prevista naque-
uso maciço, na arquitetura moderna, de mate- le século). Indaga o escritor: “Como uma pessoa
riais que permitem devassar a intimidade dos semianalfabeta, que tem vocabulário reduzido,
apartamentos, como o vidro e o ferro. Decai, vai explicar alguma coisa que percebeu sobre
pois, o mistério; e a metáfora, nossa velha co- a vida? Acho esse o grande desafio e daí cai na
nhecida, começa também a perder seu pres- repetição, embora eu use repetição em todos
tígio na literatura. Em troca, teríamos maior os meus livros”. Repete-se sobretudo porque
grau possível de honestidade, dissipando as se perdeu definitivamente a capacidade para
opacidades e as brumas que fizeram a delícia criar estímulos novos do real, que não oferece
dos autores modernos, encalacrados em seus mais obstáculos à percepção, pelo menos não
enigmas metafóricos. Pouco a pouco, aberta a porque a linguagem se tenha tornado espessa.
era da transparência vítrea, fomo-nos encami- Mais translúcido, o real se dá linguisti-
nhando a uma produção verbal de realidade camente (assim parece) sem intermediações
na qual o próprio signo verbal foi perdendo complexas. Portanto, sem aquele leque elegan-
sua espessura, adelgaçando-se. te de ambiguidades, com um mínimo de infor-
Como é comunicar um mundo mecaniza- mação a ser revelada. Sem beleza, portanto. A

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 51


INTERPRETAÇÃO / Expressões linguísticas

GEOVANI 5 beleza vira um terreno de depreciação crítica e A diferença, agora, comparando Geovani
MARTINS de autodepreciação crítica, como diz, sem sub- Martins com André Sant’Anna, é que, se este
É um escritor terfúgio nenhum, o policial do excerto do con- veste a capa do policial, ou do taxista, ou do
brasileiro. Nasceu to A Lei, aqui reproduzido: “Nessa polícia da executivo, aquele pertence ao ambiente que o
em Bangu, na Zona
Oeste do Rio de qual eu faço parte. (Viu como eu pensei estar conto exibe: o morro, o asfalto, a praia, a escola
Janeiro. Estudou escrevendo bonito esse negócio de ‘da qual’?)”. pública, o shopping, lugares de confrontação
apenas até a oitava Romper com a camada de metáforas — da violência na cidade do Rio de Janeiro, com
série, trabalhando
em seguida como cortar laços com a beleza tradicional, de que todas as suas contradições, beleza e horror,
homem-placa, a metáfora é arma de sedução — é o primei- vício e medo, crime e sedução, droga e álcool.
atendente de ro pulo para o assentamento de nossa con- As frases que se sucedem no conto, desde a
lanchonete, entre
temporaneidade. Mal comparando, José de sua abertura, exigem do leitor certo domínio
outros. Morou nas
favelas da Rocinha Alencar, hoje, estaria em maus lençóis, caso daquela linguagem, porque não haverá tradu-
e Barreira do quisesse conservar o tom elegante e altaneiro ção. O que significa, por exemplo, “tava ligado o
Vasco, antes de ir das suas descrições. maçarico”? Certamente é algo como “estava fa-
para o Vidigal
zendo um calor dos diabos”. Do mesmo modo,
NO LUGAR DE QUEM FALA a falta de concordância verbal (“Não era nem
Passando para outro texto contemporâ- nove da manhã”) ou de concordância nominal
neo, vejamos, no conto Rolézim, de GEOVANI (“Não dava nem mais pra ver as infiltração na
MARTINS5 (extraído de sua coletânea de estreia, sala”) ou a presença de aféreses típicas da rea-
O Sol na Cabeça, de 2018), mais um exemplo de lidade da língua oral (“tava tudo seco” ou “tava
representação que foge de ser de fato uma re- dado que o dia ia ser daqueles”) revelam que
presentação no seu sentido clássico, como se o — em nome da transparência e da autonomia
espetáculo da linguagem fosse o próprio espe- da voz que fala, do seu lugar social, sem reto-
táculo da cena. De novo, o texto mostra-se in- ques nem intermediações da língua culta — o
fenso à circunscrição dos artifícios tradicional- texto literário contemporâneo está mais para o
mente conhecidos por literários. A linguagem balbucio do que para a ordenação lógica da lin-
do texto se quer transparente, como que alheia guagem. Espécie de gagueira contemporânea,
a um tratamento de experimentação estética o discurso se entrega a uma execução em tem-
— já notou, leitor, que, hoje, o apelo à noção de po real, como se diz hoje nos domínios ciber-
“vanguarda” é algo fora de moda? —, como se néticos. Sem correções e sem aparos. Genuína,
a narração do fato constituísse a própria fala espontânea, sem edição.
do narrador/personagem, sem intermediações Se André Sant’Anna ainda representa (no
para a sua transcrição: sentido de que o escritor fica vestindo um
figurino que não é o dele, ocupando proviso-
riamente o lugar do outro), Geovani Martins
sente-se autorizado, ele mesmo, a falar, em seu
nome, em um país que se redemocratiza — ou
“Acordei tava ligado o maçarico! Sem neurose, ao menos busca isso, aos trancos e barrancos,
não era nem nove da manhã e a minha caxanga apesar de você. Uma das conquistas literárias
parecia que tava derretendo. Não dava nem contemporâneas, no Brasil, foi justamente
mais pra ver as infiltração na sala, tava tudo esta: ser transparente e igual a si mesmo. Sem
seco. Só ficou as mancha: a santa, a pistola e o maiores enganos, o que já é uma ação política,
dinossauro. Já tava dado que o dia ia ser daque- não meramente estética; é a defesa do lugar
les que tu anda na rua e vê o céu todo embaçado, que não quer se ver usurpado por outro. E da-
tudo se mexendo que nem alucinação. Pra tu ter ne-se o resto!
uma ideia, até o vento que vinha do ventilador
era quente, que nem o bafo do capeta.”
SOBRE O AUTOR
ROBERTO SARMENTO LIMA é professor doutor da Universidade Federal de Alagoas.
Autor do livro O Narrador ou o Pai Fracassado: Revisão Crítica e Modernidade em
Vidas Secas, publicado em 2015 pela OmniScriptum/Novas Edições Acadêmicas,
em Saarbrücken, Alemanha. E-mail: sarmentorob@uol.com.br.

52 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


Texto de Fernanda De Paula Cabeceira

Para tempo
de incertezas “A literatura nos liberta

O
ano de 2018 foi de contestações e mudanças. de nossas maneiras
Diante desse cenário, quem melhor poderia expor convencionais de
temores, perguntas sem respostas e angústias com pensar a vida – a nossa
sinceridade ímpar? Uma criança – ser naturalmente
transparente, acostumado a dizer o que passa pelo pensa-
e a dos outros –, (…)
mento e lhe vem à boca! A personagem que encarnará essa
ela resiste à tolice não
franqueza é uma menina chamada Clarice. violentamente, mas de
No primeiro semestre do ano passado, Roger Mello, pre- modo sutil e obstinado”
miado escritor e ilustrador brasileiro, presenteou-nos com
seu romance Clarice. Interessante escolha feita pelo autor, um lugar a outro, de uma casa a outra, de um adulto a outro,
afinal o panorama é, de certo modo, sombrio. O substantivo sempre precisando eliminar ou esconder os livros.
próprio escolhido como título deriva da raiz etimológica cla- Clarice é um romance repleto de poeticidade, inquietante,
rus, isto é, claridade, luz. capaz de causar um incômodo, o susto necessário a uma boa
Não foi à toa o nome dado pelo autor ao livro. Entenda- leitura. Em sua linguagem metafórica, o leitor precisará “afun-
-se: Roger Mello nasceu em Brasília, em tempos de ditadura dar” no livro para, página a página, conhecer essa estranha
militar. Exatamente nesse período, Clarice Lispector escreveu história (que, ao mesmo tempo, soa-nos familiar), em que não
um dos textos mais emblemáticos sobre a capital do País, a se sabe ao certo onde estão os pais da protagonista, nem há
crônica Brasília (1962). precisão sobre o tempo em que ocorre. Há um tom na lingua-
Nela, a autora expõe, como numa catarse, em um único gem que torna perceptível o momento crítico sobre o qual pai-
parágrafo, sua estranheza quanto à arquitetura da cidade, a ram muitos segredos e deslocamentos, estes motivados pela
penumbra causada por seus prédios, o silêncio, a ausência necessidade de fazer desaparecer os livros ou protegê-los.
de pessoas pelas ruas. Dessa impactante composição, o autor Impossível não se sensibilizar com o drama vivenciado por
extrai a epígrafe para a sua obra: “… certos silêncios fazem Clarice e as demais personagens, pois o tempo do romance
meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte”. E também também é estranhamente nosso. Ali, lagos engoliam livros,
retira o termo brasiliários empregado pela personagem central familiares desapareciam e se vivia num trânsito constante.
do romance. Ou seja, caro leitor, nada no romance de Mello Aqui, no hoje, as palavras já se tornam caras, os laços frouxos
está ali ao acaso. Tudo é cuidadosamente pensado, tal qual e o movimento continua sendo metáfora de sobrevivência em
toda obra de grande literatura. tempos inconstantes.
Falando sobre a protagonista, Clarice é uma garota incrível, Seja então a literatura o lugar da resistência. Ou como diria
com uma acuidade única em sua percepção sobre os fatos ao Antoine Compagnon, professor de literatura francesa compa-
seu redor e herda de sua “xará” uma característica: o fluxo de rada e autor, entre inúmeras obras, de Literatura para quê?:
consciência. De seu discurso vazarão memórias, impressões A literatura nos liberta de nossas maneiras convencionais de
pessoais, em um limite entre a confusão mental e o transbor- pensar a vida – a nossa e a dos outros –, (…) ela resiste à tolice
dar dos sentimentos. não violentamente, mas de modo sutil e obstinado. Seu poder
O jogo narrativo criado por Mello, por meio da personagem, emancipador continua intacto, o que nos conduzirá por vezes a
é surpreendente, pois, ao mesmo tempo em que ela conta querer derrubar os ídolos e a mudar o mundo, mas quase sem-
os acontecimentos, tenta elaborá-los, como se convocasse o pre nos tornará simplesmente mais sensíveis e mais sábios,
leitor a compreender esse universo hostil em que trafega de em uma palavra, melhores. (grifo nosso)

FERNANDA DE PAULA é especialista em Literatura e Teoria Literária (PUC-SP); coordenadora pedagógica na Rede Pública Estadual (SEE-SP); professora de Língua Portuguesa
no Ensino Fundamental II e Médio; capacitadora de professores em instituições públicas e privadas; revisora de textos acadêmicos e produtora de material didático.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 53


RESENHA / A queda do céu

A pele e o
papel
Na visão de Kopenawa, o corpo é
visto como produtor e receptor de
ensinos. É objeto de educação, afetos
e encantamento. Os conhecimentos
inscritos no corpus formam a pele
de papel. As palavras da pele. O
despertar dos corpos
por Eduardo Guimarães

54 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


E
ssa é uma das primeiras frases que 1 XAMÃ
escutamos ao nos aproximarmos Indivíduo que,
da voz do XAMÃ1 yanomami DAVI por meio de
estados extáticos
KOPENAWA2, devidamente traduzida
e invocações
e gravada na pele de papel do livro A que- ritualísticas,
da do céu. Pele de papel é como Kopenawa manifesta supostas
refere-se às folhas que compõem o livro, um faculdades mágicas,
curativas ou
corpo estranho aos yanomami, povo amerín- divinatórias.
dio situado na região do interflúvio Orinoco-
-Amazonas, Brasil-Venezuela, que não possui
2 DAVI KOPENAWA
tradição com palavra escrita. Seus conheci- YANOMAMI
mentos são passados por vias como a oralida- É um escritor,
de, transmissora da tradição e da relembrança xamã e líder
de como os antepassados faziam; os sonhos, político yanomami.
Atualmente, é
local de incidência e solidificação de aprendi-
presidente da
zados; a espiritualidade ou encontro com os Hutukara Associação
espíritos da floresta; e o corpo, elemento-cha- Yanomami, uma
ve produtor e receptor de saberes – em situa- entidade indígena
de ajuda mútua e
ções ritualísticas, como a ingestão de YÃKOA- etnodesenvolvimento.
NA3, temos o corpo do xamã que, ao entrar em
contato e fusão com um corpus vegetal (casca
3 YÃKOANA
da árvore yãkoana hi), torna-se capaz de atra-
É uma substância
vessar os portais e tocar os conhecimentos ritualística que
profundos que retransmitirá. consiste em um pó
Assim, é surpreendente que a voz de feito de cascas da
árvore yãkoana hi.
Kopenawa chegue desenhada nesse corpus
Para obtenção desse
não habitual, um livro de mais de 700 pági- pó, as cascas são
nas. E sua motivação é firme, um apelo global secas e pulverizadas.
pelo fim da destruição das florestas e de seus Ao inalar o pó
de yãkoana, o
habitantes pelo branco, isto é, uma luta para iniciado adentra
que não ocorra um rompimento no equilíbrio o conhecimento
ordenatório planetário de tal envergadura que xamânico de seu
povo.
regressaremos ao caos e assistiremos à queda
do céu. Isso ocorrerá porque, com a destruição
dos povos da floresta, não sobrará nenhum 4 BRUCE ALBERT
xamã para segurá-lo. É um antropólogo
francês, nascido no
Acontece que esse apelo não vem sob a for-
Marrocos. Participou
ma plana de uma advertência. Na verdade, ele em 1978 da fundação
nos é transmitido através da educação, como da ONG Comissão
demonstração de pensamentos, movimentos, Pró-Yanomami,
que conduziu com
motivações e afetos que conscientizam e jus- Davi Kopenawa
tificam a advertência. Desse modo, seu movi- uma campanha até
© FILIPEFRAZAO / ISTOCKPHOTO.COM

mento é enorme. Kopenawa se vale, com a par- obter, em 1992, a


homologação da Terra
ceria do antropólogo BRUCE ALBERT4, da forma Indígena Yanomami,
que valorizamos, ou seja, do corpus livro, na à qual viaja quase
esperança de que assim tornará mais efetiva anualmente.
nossa escuta, como se pode observar:
RESENHA / A queda do céu

nossa imagem para o tempo do sonho. Por isso


“Seus somos capazes de ouvir seus cantos e contem-

professores plar suas danças de apresentação enquanto


dormimos. Essa é nossa escola, onde aprende-
não o haviam mos as coisas de verdade.”
A situação descrita acima é um exemplo de
ensinado a aplicação de recursos sutis e altamente com-
sonhar, como plexos – o reconhecimento e a utilização de
sonhos e outros mecanismos inconscientes –
nós fazemos” como instrumentos de ensino que efetivam a
passagem de conhecimentos para formação e
A queda do céu, p. 63 transformação. Trata-se assim de uma amplia-
ção de possibilidades e de recursos educacio-
nais, com a retomada, nesse caso, de mecanis-
MOVIMENTO 5 “São essas palavras que pedi para você fixar mos que afastamos do âmbito escolar e relega-
XAMÂNICO nesse papel, para dá-las aos brancos (…). Quem mos, por exemplo, à psicanálise.
Segundo Kopenawa, sabe assim eles finalmente darão ouvidos ao
o primeiro xamã
é filho de Omama
que dizem os habitantes da floresta, e começa- O PAPEL DO CORPO NA EDUCAÇÃO
(demiurgo rão a pensar com mais retidão a seu respeito?” Embora Kopenawa tenha se valido de um
da mitologia “(…) para que minhas palavras sejam ouvi- modo característico da cultura branca para
yanomami) e é das longe da floresta, fiz com que fossem de- transmitir seu conhecimento – o livro e a pala-
responsável por,
através da ingestão senhadas na língua dos brancos. Talvez assim vra escrita –, o que importa compreender é que
da yãkoana, fazer eles afinal entendam, e depois deles seus filhos, na cultura indígena esses processos têm como
contato com os e mais tarde ainda, os filhos de seus filhos. veículo fundamental o corpo em ação.
xapiri (espíritos
das florestas) e Desse modo, suas ideias a nosso respeito dei- Por isso, ainda que parte expressiva do
promover curas xarão de ser tão sombrias e distorcidas e talvez conhecimento xamânico ocorra em sonhos,
nas doenças dos até percam a vontade de nos destruir. (…)” conforme nos é descrito, para chegar a tal fre-
humanos. Assim,
Desse modo, Kopenawa realiza aqui um MO- quência o xamã precisa submeter seu corpo
a figura do xamã
é normalmente VIMENTO XAMÂNICO5, no sentido de buscar estabe- a regimes alimentares específicos e utilizá-lo
associada a alguém lecer uma religação entre mundos, nesse caso o em gestos e movimentos rituais, que envolvem
capaz de fazer mundo dos brancos e a floresta. Tudo isso em enfeites, pintura, canto, dança e contato com a
contato entre
mundos, como vivos um gesto que parece guardar não só o desespe- yãkoana. Ou seja, o xamã precisa funcionar em
e mortos, humanos ro de quem já falou com presidentes, apresen- um corpo ativo e expressivo, produtor e ponte
e espíritos da tou-se na ONU e não sabe por qual via poderá para o conhecimento. Partindo disso, podemos
floresta, humanos e
animais etc. se fazer entender e preservar, mas também apontar a grande diferença com o que comu-
a crença firme nas palavras que articula e na mente nos ocorre.
ideia de mudança pelo ensinamento. O saber. De nosso lado, desde a escola, aprendemos
Com base nisso, se pensarmos em um pla- a disciplinar o corpo de modo a colocá-lo em
no prático, A queda do céu interessa não só por uma gesticulação e movimentação padroni-
sua mensagem fundamental de (não) destrui- zada, dentro de um estado de semidormência,
ção da floresta e seus povos, mas também por sentado por horas e mais horas, com direito
sugerir e revelar métodos e meios ancestrais a saídas de cinco minutos durante os inter-
de ensino que, em nossa sociedade, onde curio- valos e a uma outra, maior, para alimentação
samente prestigiamos uma performatividade e recreio. Esse procedimento reaparece em
branca-ocidental, optamos por subutilizar ou relações de trabalho nas quais repetimos o
esquecer. É o que podemos ouvir na passagem: comportamento de sentarmos por horas a fio
“Enquanto isso, no silêncio da floresta, nós, na frente de uma tela, trabalhando em um pa-
xamãs, bebemos o pó das árvores yãkoana hi, drão restrito de gestos e movimentos, em um
que é o alimento dos xapiri. Estes então levam estado que parece prioritariamente mental. E

56 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


aparece também nas relações virtuais que uti- sistemas educativos oriundos de nossos ances- 6 BARUCH DE
lizam gestos repetitivos, como teclar ou passar trais – o povo da floresta que hoje ocupamos ESPINOSA
o dedo na tela, e dispensam maiores movimen- – merecem ser reconhecidos, e mais, devem en- (1632-1677)
tos e contato entre corpos. trar em diálogo com a educação hoje praticada, Foi um filósofo
holandês que
Ocorre que, na busca por uma educação em um processo ampliativo e afetivo. pensava o corpo
mais afetiva e integrativa, capaz de lidar com Esse movimento requer a capacidade de e a mente como
expressões como dores, bloqueios, agressi- pensar com esses povos, e não apenas sobre diferentes atributos
de uma mesma
vidade, tristeza, e capaz de estimular movi- esses povos, como é nosso costume. É neces- coisa, sem a
mentos de transformação e criatividade, é sário deslocar-se do lugar daquele que deseja prevalência de um
fundamental a retomada do corpo como um ensiná-los ou ajudá-los na gestão de seu es- ou outro, teoria que
vai na contramão
dos elementos centrais. Diante disso, importa paço-tempo, para nos colocarmos no lugar de
de pensadores
ampliar a ideia de apenas educar o corpo em aprendizes diante de mestres e educadores da que concebem o
aulas de educação física, e criar possibilidades floresta que, como tais, podem auxiliar nossos corpo como mero
de sermos, também e processos de transfor- receptáculo de algo
divino ou superior,
efetivamente, educados mação e, consequente-
pelo corpo. É com tal “Desse modo, mente, nossa capacida-
como a alma ou a
mente.
gesto que poderemos
desenhar, aprendendo
Kopenawa de de transformarmos
o espaço-tempo que ha- 7 GILLES DELEUZE
com os indígenas, um realiza aqui bitamos. Ou seja, é hora (1925-1995) E
FÉLIX GUATTARI
movimento de religa-
ção, agora entre mente e
um movimento de deixarmos os conhe-
cimentos ancestrais im-
(1930-1992)
corpo, questão relevante xamânico, no pregnarem nossa pele,
Foram filósofos
que pensaram a
que aparece em concep-
ções filosóficas como as
sentido de buscar nosso papel. Deleuze
chamava essa capa-
esquizoanálise e
abordaram questões
de ESPINOSA6, retomadas
nos estudos de DELEUZE E
estabelecer uma cidade de encontrar
pontos de fuga, respiro
ligadas ao corpo,
à dicotomia corpo/

GUATTARI7. religação entre e abertura de microrre-


mente, e dialogaram
com a obra de
Se tentarmos pensar
esse movimento como
mundos, nesse voluções. E para nossos
xamãs ancestrais, o sa-
Espinosa, como
ocorre, por exemplo,

prática e procedimento, caso o mundo ber que se realiza com


na obra Espinosa
e o problema da
podemos imaginar situa-
ções que vão desde edu-
dos brancos e a o corpo e o movimento
parece sempre ter sido
expressão.

candos que tocam a terra, floresta” um procedimento na-


REFERÊNCIAS
a semente, e aprendem tural, como é possível BIBLIOGRÁFICAS
não só a plantar, mas também com o tempo do observar no trecho: “Eu não aprendi a pensar Kopenawa, Davi; Bruce,
plantio, indo, portanto, muito além da leitura de as coisas da floresta fixando os olhos em pe- Albert. A queda do céu:
palavras de um xamã
um livro de Ciências; até procedimentos como les de papel. (…) Vi-as de verdade, bebendo o yanomami. Tradução de
estimular os corpos a produzirem suas próprias sopro de vida de meus antigos com o pó de Beatriz Perrone-Moisés;
São Paulo: Companhia
narrativas, que trarão vestígios dos corpos que yãkoana que me deram”.
das Letras, 2015.
as geraram, revelando pontos de fissuras, dores, Assim, conforme já dito, uma educação Deleuze, Gilles. Espinosa
amarras e potências, e que por isso poderão ser- mais afetiva e integrativa, capaz de dar con- e o problema da
Expressão. São Paulo:
vir como base para trabalhos de fortalecimento ta de questões emergenciais, como violên- Editora 34, 2017.
e cura, como ocorre em processos aprofunda- cia, tristeza e exclusão, precisará envolver os
dos de renarrativas. corpos e acoplar novos gestos, novos meca-
Portanto, é preciso compreender que as nismos, meios e estruturas de conhecimento
SOBRE O AUTOR
práticas e os procedimentos de abertura e que, na verdade, talvez sejam mais uma re- Eduardo Guimarães é advogado,
atuação dos corpos são incontáveis e estão em lembrança do que uma invenção. Afinal, nos- escritor, poeta e ministra oficinas de
escrita criativa e aulas de interpretação
construção, sendo fundamental, para acessar- sos xamãs nos mostram que sempre soube- de texto. Autor do romance Voo para
mos esse processo, partirmos do aceite inicial mos sonhar. O problema é o que temos feito onde vão as araras (ed. Quelônio,
2017), pesquisa construções narrativas,
de que diferentes modos de pensamentos e de nossos sonhos. processos ritualísticos e memória.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 57


PONTO DE VISTA / Empatia e Ensino

Nenhum
professor
é uma ilha
Parafraseando John
Donne, no prólogo
de Por Quem os
Sinos Dobram,
de Hemingway, a
habilidade de o
professor se colocar
no lugar do aluno
pode ser a chave
para o sucesso da
aprendizagem
por Márcio Scarpellini Vieira

58 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


“Nem só de professores

A
o ensinar, ao conversar com co- se faz uma escola.
legas que ensinam, ao conversar
com pais de alunos, sempre reflito Todo o ecossistema
sobre qual deve ser o cerne do pro-
blema do ensino no Brasil, qual seria, enfim, a
educativo deve estar
grande chave que, ao ser virada, poderia tirar alinhado em produzir,
a educação brasileira de uma mediocridade
aviltantemente cômoda e levá-la para um pa-
propagar e solidificar
tamar minimamente aceitável. conhecimentos
Esta reflexão parte de conversas com e entre
os entes envolvidos no processo educacional e,
aprendidos, e não
via de regra, aporta na sala de aula, momento apenas professados”
em que se dá a produção e a entrega do ensino
formal. Entretanto, este momento é apenas um
momento no processo, um importante momen- Todo o ecossistema educativo deve estar alinha-
to, mas é um dos tantos que existem e também do em produzir, propagar e solidificar conheci-
é influenciado por aquele que identifico ser um mentos aprendidos, e não apenas professados.
grande, um enorme ponto nevrálgico a ser toca- Talvez assim minorássemos um efeito ter-
do e curado nas relações que precedem e envol- rível que muitas escolas e, talvez a Escola, en-
vem os atos de ensinar e de aprender: a empatia. quanto instituição de ensino, acabe por perpe-
Aliás, nunca é demais voltar à questão dos tuar em seus pequenos aprendizes, que é o de
objetivos de ensino versus objetivos de apren- matar a aprendizagem e a vontade de aprender.
dizagem. Esta simples mudança de ponto de Este terrível e nefasto efeito vem sendo sis-
referência pode levar o docente a corrigir e re- temática e silenciosamente concretizado em
modelar completamente sua atividade, saindo gerações, exterminando aquilo que é mais na-
da cômoda posição de alguém que já ensinou tural e intrínseco a estes bípedes que escrevem
a mesma coisa quinhentas vezes e, para ele, e leem: o saber e a busca pelo saber, conhecer
apenas isso já é a validação necessária para ga- e refletir, competências que nos levaram a nos
rantir a qualidade e a forma como pratica sua autoclassificarmos como homo sapiens.
atividade docente, para uma posição de que
o que realmente importa é que o aprenden- ÂNSIA DE CONHECIMENTO
te aprenda, e não apenas ouça uma boa aula. Normalmente, os pequenos da nossa es-
Mais uma vez, nunca é demais lembrar que o pécie, ao articularem seus primeiros ques-
célebre prognóstico “ninguém tira 10 nas mi- tionamentos, repetem ininterruptamente a
nhas provas” não significa incompetência do pergunta “por quê?”, na ânsia de exercitar
grupo discente e, menos ainda, um brilhan- aquilo que vieram fazer neste mundo, ou seja,
tismo inacessível do distinto professor. Pelo descobri-lo. Nós, pais e especialistas da educa-
contrário, quem professa tal sentença apenas ção, no desejo de equipar estes pequenos com
garante que é incapaz de fazer com que qual- os conhecimentos deste mundo, os colocamos
quer aluno seu alcance 100% de entendimento em “Instituições de Ensino”, para que eles pa-
naquilo que ele mesmo diz. rem de perguntar “por quê?” e comecem, desde
Nesta linha, e compartilhando a carga dos cedo, a fazer o contrário, ou seja, eles mesmos
mestres, sugiro uma mudança sistêmica, em darem respostas. Triste, improdutivo, incoe-
que, além de reforçarmos a evidente impor- rente e aniquilador da aprendizagem. Afinal,
tância de estabelecermos objetivos de apren- perguntas movem a humanidade, não respos-
dizagem, em oposição aos objetivos de ensino, tas. Perguntas criam. Respostas acabam.
também troquemos o codinome “Instituição Ao serem postos à prova para responderem
de Ensino” por “Instituição de Aprendizagem”. ininterruptamente por quase duas décadas,
Afinal, nem só de professores se faz uma escola. nossos substitutos são subjugados a um pro-

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 59


PONTO DE VISTA / Empatia e Ensino

“A empatia deveria E hoje? O conhecimento sobre qualquer


coisa está na palma da mão de qualquer um
ser algo praticado que tenha acesso à internet. É óbvio que é ne-

e ensinado nas cessário saber procurá-lo e utilizá-lo, mas isso a


escola não ensina!
instituições de Aliás, acredito que a escola não ensina os

aprendizagem, visto grandes conhecimentos necessários para uma


vida de sucesso no mundo atual, e menos ain-

HABILIDADE 1
que está inclusa da no mundo adulto, que espera que os nossos
alunos os encontrem sozinhos, e aqui eu reto-
ESPACIAL
Capacidade de
como uma das mo o ponto principal com o qual iniciei este ar-
compreender e
lembrar as relações
grandes habilidades tigo: Qual o grande problema do ensino?

espaciais entre
objetos. Essa
a serem exigidas no SENTIR O QUE O OUTRO SENTE
capacidade pode ser
vista como um tipo de
mercado de trabalho Nesta análise pensei em mim mesmo como
aluno, e coloquei-me no lugar dos meus alu-
inteligência distinto
de outras formas de
e nas relações nos. A esta prática damos o nome de “empatia”,
inteligência, como
a habilidade verbal,
humanas no mundo ou seja, a inclinação em sentir (pathos em gre-
go) o que o outro sente.
capacidade
de raciocínio
contemporâneo e Da mesma etimologia, e para deixar bem

e habilidades de
memória.
nos próximos anos” claro o conceito, vem a palavra que define a
oposição ao que o outro sente, a que chama-
mos de antipatia, ou ainda a concordância que
cesso mecanicista que considera apenas suas nos junta ao que o outro sente, a que denomi-
idades biológicas, em detrimento de suas idades namos simpatia. Em sentido análogo, patolo-
BHASKARA 2 cognitivas e intelectuais, recebem os mesmos gia é a ciência que estuda a doença, o sofrimen-
AKARIA conteúdos nas mesmas etapas, das mesmas for- to, algo que o indivíduo “está sentindo”.
(1114-1185) mas e são medidos com as mesmas réguas. Pois bem, aqui está o ponto que acredito
Foi um matemático,
astrólogo, astrônomo A HABILIDADE ESPACIAL MATEMÁTICA1 é a gran- ser uma questão visceral não apenas no ensi-
e professor indiano. de régua que continua sendo batida nas peque- no, mas na humanidade: a empatia.
Tornou-se conhecido nas cabeças, repetindo que, se não aprenderem A discussão sobre a característica inata da
por ter criado a
seno, cosseno, BHASKARA2, análise sintática e li- empatia no ser humano vem sendo ampliada
fórmula matemática
aplicada na equação gações covalentes, jamais serão bem-sucedidos e aprofundada nos últimos anos, e o que se
de 2° grau, que leva em suas vidas. apurou envolve até ao chamado SISTEMA DE NEU-
seu nome. Sinceramente, muitas vezes me vejo justi- RÔNIOS-ESPELHO4, sistema neural presente em
ficando a REBIMBOCA DA PARAFUSETA3 educacio- primatas, que imita o outro, e provavelmente
nal, para validar alguns conteúdos que conti- esteja ligado à nossa capacidade ou tendência
REBIMBOCA DA 3 nuamos a repetir. a nos inclinarmos a sentir a dor de outro indi-
PARAFUSETA Quando eu estudava na antiga quinta ou víduo da nossa espécie.
Expressão corrente sexta série, na minha escola estadual não havia A empatia, a meu ver, deveria ser algo pra-
em certas regiões do biblioteca, e então eu e um amigo fomos ao co- ticado e ensinado nas instituições de aprendi-
Brasil para designar
uma peça, real ou légio das freiras, para pedir que elas nos deixas- zagem, visto que está inclusa como uma das
fictícia, cujo nome sem frequentar a biblioteca da escola delas. Nos grandes habilidades a serem exigidas no mer-
ou função não são deixaram e isso com certeza contribuiu para o cado de trabalho e nas relações humanas no
conhecidos, do motor
nosso aprendizado, em uma época em que o mundo contemporâneo e nos próximos anos.
de um automóvel ou
de qualquer outra buscador de internet ainda não existia. Nem Digo aprendida, pois devido à plasticidade
máquina. Usada a internet, na verdade. Logo, o conhecimento neural, a empatia pode ser aprendida e treina-
metaforicamente, formal de fato era um bem valioso, algo a ser da e está provado que, ao ser praticada, esta-
designa algum
problema ou questão adquirido, mentalizado e decorado, pois não era belece novas rotas neurais, estabelecendo tam-
de difícil solução. possível acessá-lo quando bem quisesse. bém assim novas saídas para problemas a se-

60 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


rem resolvidos. Aliás, resolução de problemas que ganhamos para isso. A empatia é uma das
também deveria ser conteúdo programático! principais competências para o futuro, e isto nos
Empatia é uma habilidade a ser treinada em inclui como sujeitos a aprendê-la urgentemente.
cada ente envolvido no processo educativo, e Acredito que a empatia seja uma das chaves para
em relação a cada um dos outros entes, ou seja, uma grande mudança em nosso mundo.
não é um processo curto, nem fácil, mas é um Muitas vezes reclamamos que o aluno
processo necessário e transformador, capaz de não tem interesse no aprendizado, mas es-
estancar a mortalidade da aprendizagem e a quecemos de observar a entrada dos alunos
ojeriza criada em muitas das nossas crianças. na educação infantil, quando a habilidade de
Inclinar-se a sentir as dores dos pais é uma descobrir o mundo ainda está aguçada, ainda
atividade necessária aos gestores pedagógicos, não sofreu a destruição que a escola produz no
tanto quanto os professores devem experi- ímpeto de aprender.
mentar sentir as dores dos alunos, e os pais as Observo que o aluno de hoje precisa cada
dos professores. vez mais do fazer, para que possa aprender um
É comum a mudança drástica da percepção dado conteúdo. Isto não é novo, visto que fa-
do professor, quando este conhece a família e zer é um dos pilares da educação, e VIGOTSKY7 já
a realidade do ser humano que desempenha o sentenciou que “O saber que não vem da expe-
papel de aluno em sala de aula. Quando conhe- riência não é realmente saber”.
cemos os pais, a realidade social e emocional O fazer traz significado para a aprendiza- 4 NEURÔNIOS-
da família, por vezes, além de nos compade- gem, traz motivação para saber, não um saber -ESPELHOS
cermos da realidade vista, ressignificamos os inócuo, mas um saber que serve a algo. Sei que São células que
comportamentos e reações observadas no alu- muitos podem me criticar, pois acreditam que estão localizadas no
no em sala de aula. alguns conhecimentos devem ser aprendidos e córtex pré-motor,
denominando-se
Outro exercício transformador é conviver ponto final, ou que o saber deve se dar apenas de neurónios viso-
com o aluno em outro ambiente e atividade pelo prazer de aprender. Eu particularmente motores. Estas
que não seja a sala formal. Um jogo de futebol, gosto de aprender algo apenas porque gosto, células são ativadas
pela execução de
uma atividade de teatro, uma apresentação mas infelizmente esta não é a característica da uma ação simples,
musical ou artística por vezes nos revelam um atual geração de alunos. que seja direcionada
indivíduo encantador, completamente dife- Também em particular, decidi não lamentar a objetivos e
que respondem
rente do indivíduo opositor com que lidamos a falta de interesse dos alunos em aprender o
igualmente bem
durante uma aula tradicional. conteúdo proposto, pois acredito que, na verda- à própria mão ou
Acredito firmemente que se todos os en- de, o interesse não foi semeado neles e, portanto, a outra pessoa –
sinadores praticassem a empatia com seus não será colhido. Devemos ser semeadores de permitindo entender
a base neural.
alunos, sentindo a dor de receber milhares de espanto, como diria RUBEM ALVES8, plantadores
estímulos visuais e interacionais, de jogar um de descobertas, professores de descobrimentos.
jogo eletrônico ouvindo música, conversar ao
mesmo tempo no aplicativo com os colegas e 5
© DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG

na escola ser obrigado a assistir a uma expo- JOHN MAYRA


sição cansativa e que, muitas vezes, não com- DONNE
preende sequer o vocabulário que está sendo Foi um poeta inglês,
utilizado, as aulas seriam completamente dife- pregador e o maior
representante dos
rentes, mesmo com o atual sistema de ensino. poetas metafísicos
da época. Sua obra é
“NENHUM HOMEM notável por seu estilo
sensual e realista,
É UMA ILHA ISOLADA” incluindo-se sonetos,
JOHN DONNE5 no prefácio de Por Quem os poesia amorosa, poemas
Sinos Dobram, de ERNEST HEMINGWAY6, já ensinou: religiosos, traduções
do latim, epigramas,
“Nenhum homem é uma ilha isolada”. A empa- elegias, canções, sátiras
tia é profundamente necessária, pois ninguém e sermões.
vive sozinho, não podemos ensinar apenas por-

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 61


PONTO DE VISTA / Empatia e Ensino

6
Na verdade, o aluno não sabe o que não
ERNEST MILLER quer aprender. Ele sabe COMO não quer
HEMINGWAY (1899-1961) aprender, e este como é exatamente o padrão
Foi um dos maiores escritores de ensino que temos. O desafio é pararmos de
norte-americanos. Trabalhou bater cabeça tentando manter um padrão que
como correspondente de guerra
em Madrid durante a Guerra Civil já não tem sintonia com os alunos e encantá-
Espanhola. Esta experiência inspirou -los com as descobertas que podemos e deve-
uma de suas maiores obras, Por mos apresentar-lhes.
Quem os Sinos Dobram. Hemingway
Sim, em um dado momento eles deverão
sobreviveu a dois acidentes de
avião, teve seus livros queimados sentar, ler e decorar, mas aí já terão caído na rede
pelos nazistas, deu nome a um corpo do conhecimento, e buscar mais conhecimento
celeste que orbita o Sol e, como se será uma necessidade, não uma imposição.
isso não fosse suficiente, ganhou
Tenho plena ciência de que este assunto

© DOMÍNIO PÚBLICO / COMMONS.WIKIMEDIA.ORG


o Prêmio Nobel de Literatura. Ao
fim da Segunda Guerra Mundial, pode gerar muita controvérsia, mas convido o
instalou-se em Cuba. Entre suas nobre colega a pensar na educação indígena, que
maiores obras, estão Adeus às
Armas, O Velho e o Mar, Paris é uma nunca acaba, e sempre tem sua origem na práxis.
Festa, O Jardim do Edem, As Neves A educação oriental tradicional também era as-
de Kilimanjaro. E, naturalmente, Por sim, mas não é necessário retomar a história da
Quem os Sinos Dobram.
educação para comprovar que não deveríamos
ter a concepção de que os estudos terminam.

LEV 7
SEMYONOVICH
VYGOTSKY
PARA ENTENDER (E SENTIR) EMPATIA
(1896-1934)
Foi um psicólogo, Empatia é, hoje, um tema tão importante que Aos poucos, ela começa a esquecer certas pa-
proponente da até ganhou uma biblioteca própria. Um dos lavras e a se perder pelas ruas de Manhattan. É
Psicologia cultural- maiores especialistas internacionais sobre o diagnosticada com Alzheimer. A doença coloca
-histórica. Pensador tema, o filósofo Roman Krznaric, lançou o proje- em prova a força de sua família. Enquanto a rela-
importante em
sua área e época,
to A Biblioteca da Empatia (Empathy Library, em ção de Alice com o marido, John (Alec Baldwin),
foi pioneiro no inglês - https://empathylibrary.com/), baseado se fragiliza, ela e a filha caçula, Lydia (Kristen
conceito de que o na crença de que a empatia pode transformar Stewart), se aproximam.
desenvolvimento tanto as nossas próprias vidas quanto as socie- Outro que não poderia ficar de fora é o sensibi-
intelectual das dades em que vivemos. Não é só: o cinema tem líssimo A Troca, de Clint Ewastood. Na cidade de
crianças ocorre em
função das interações
oferecido obras memoráveis sobre o assunto. Los Angeles, em março de 1928, Christine Collins
sociais e condições Um deles, Os meninos que enganavam nazistas, (Angelina Jolie), uma mãe solteira, se despede
de vida. de Christian Duguay, foi baseado no livro ho- de Walter (Gattlin Griffith), seu filho de 9 anos,
mônimo de Joseph Joffo e conta a história real e parte rumo ao trabalho. Ao retornar, descobre
dos irmãos judeus Joseph e Maurice, que se que Walter desapareceu, o que faz com que
separam da família durante a Segunda Guerra inicie uma busca exaustiva. Cinco meses depois
RUBEM 8 Mundial, quando a França foi ocupada pelos a polícia traz uma criança, dizendo ser Walter.
AZEVEDO ALVES nazistas. Os dois têm de encontrar coragem e Atordoada pela emoção da situação, além da pre-
(1933-2014) desenvolver estratégias para fugirem dos ale- sença de policiais e jornalistas que desejam tirar
Foi um psicanalista, mães, enquanto tentam reencontrar seus pais. proveito da repercussão do caso, Christine aceita
educador, teólogo, Outro filme importante é Para Sempre Alice, diri- a criança. Porém, no íntimo, ela sabe que ele não
escritor e pastor
gido por Richard Glatzer e Wash Westmoreland, é Walter e, com isso, pressiona as autoridades
presbiteriano
brasileiro. Foi autor que narra a história de Alice Howland (Julianne para que continuem as buscas por ele.
de livros religiosos, Moore), uma renomada professora de linguística. Só para começar.
educacionais,
existenciais e
infantis.

62 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


“Inclinar-se a
Este conceito por si destrói a possibilidade
de muitos indivíduos continuarem aprenden-
sentir as dores
do, e como diz o professor CORTELLA9, “só pode dos pais é uma
ser um bom ensinante quem for um bom
aprendente”. Acredito piamente nesse concei-
atividade necessária
to, mas infelizmente por vezes vejo exatamen- aos gestores
te o contrário em muitas salas de professores.
Costumo contar a história de quando, ao
pedagógicos,
conversar com uma professora que estava tendo
problemas recorrentes em sala de aula, disse-me
tanto quanto os
que não deveria mudar em absolutamente nada professores devem
suas atitudes, pois lecionava há três décadas e
sempre com sucesso. Ao questioná-la se ela tal-
experimentar sentir
vez não tivesse nada mais a aprender em relação as dores dos alunos,
à profissão docente, ela me respondeu que não.
Neste momento, eu estava acompanhado do
e os pais as dos
psicólogo da instituição, encerrei a reunião e, em professores”
separado, comentei com o psicólogo: “que pena,
esta professora morreu”. O psicólogo estranhou
profundamente minha colocação, mas, para de ao que fazemos, reflexão ao como fazemos e 9 MARIO SERGIO
mim, uma pessoa que já está pronta e não pre- responsabilidade e envolvimento com o resul- CORTELLA
cisa mais aprender nada deve ser chamada de tado do que fazemos. É um filósofo,
escritor, educador,
“defunto”, já que defunto é aquele indivíduo que A atividade docente em sala de aula deve palestrante
já cumpriu toda a sua missão. ser tomada pela intencionalidade em cada e professor
Por fim, é importante salientar três compo- ação, em cada reação, em cada palavra, em universitário
brasileiro, mais
nentes fundamentais para que haja a empatia: cada silêncio.
conhecido por
os componentes cognitivo, afetivo e os regula- Intencionalidade não deve ser confundida divulgar questões
dores de emoções. com “boa intenção”. Como profissionais do en- sociais ligadas à
O componente cognitivo diz respeito ao en- sino, devemos ser específicos naquilo que fa- filosofia na sociedade
contemporânea.
tendimento sobre o estado mental do outro, ou zemos, cuidando de garantir qualidade e com-
seja, é necessário a quem pretende ser empá- petência na forma como ensinamos e fazemos
tico ser intencional, ou seja, deliberar sobre as com que nossos alunos aprendam.
condições e sobre o funcionamento mental do Mais uma vez, e sendo repetitivo, empatia
indivíduo a quem deseja ser empático. pode ser a grande mudança no processo de
O afetivo diz respeito à compreensão e par- ensino-aprendizagem na nossa vida e no futu-
tilha dos sentimentos do outro. Sentir de fato ro que deixaremos para as próximas gerações.
a dor do outro, a partir de seu próprio ponto de Praticar empatia, ensinar empatia através REFERÊNCIAS
vista, entendendo sua história e seus valores. do exemplo pode mudar a vida de quem nos BIBLIOGRÁFICAS
Sim, é um processo que depende muitas vezes ouve em sala de aula, de modo a contribuirmos HEMINGWAY, Ernest. Por
Quem os Sinos Dobram.
de convívio e envolvimento, já que algumas do- de forma decisiva para um mundo melhor no Trad.: Luís Peazê. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil,
res são profundas, e não são visíveis em olha- futuro. Praticar, aliás, é mais importante do que 2013. Edição Kindle.
res superficiais. falar, pois ensinamos muito mais ao fazer do VYGOTSKY, L. S. A Formação
Social da Mente. 1ª ed .
E os reguladores de emoções são as travas, que ao falar. Muitas vezes o falar acaba minimi- São Paulo: Editora Martins
os limites que separam os sentimentos, a fim zando o efeito daquilo que demonstramos. Fontes, 1984.

de que não haja confusão entre os seus pró- Devemos lutar para criarmos verdadeiros
prios sentimentos e os sentimentos do outro. discípulos de empatia, devemos ser professo- SOBRE O AUTOR
Usei um termo anteriormente, que deve ser res dignos de sermos imitados, para que possa- MÁRCIO SCARPELLINI VIEIRA
é pedagogo, cientista social,
reforçado. “Intencional” é uma predisposição mos perpetuar nossa existência na existência palestrante e administrador de
que devemos trazer para as nossas atividades dos nossos alunos. Empresas. Diretor-executivo do
Colégio Ouro Preto e professor
e relações, pois querer fazer algo traz qualida- Boa aula, boa empatia! Universitário.

LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA | 63


Estante

INÉDITO DE PAULO sor: “Ensinar já não é, na perspectiva


democrática, a transferência bem-feita,
FREIRE ABORDA não é a descrição perfeita do perfil dos

COMPROMISSO objetos. Ensinar é, sobretudo, desafiar


o aluno, para que o aluno saiba o que
Uma série de entrevistas, palestras, par- o professor já sabe”. Chile ficou com a
ticipações em seminários estão reunidas parte III, e as entrevistas a Boris Bezama,
em Pedagogia do Compromisso, de um importante jornalista chileno, reforçam
dos maiores educadores brasileiros, Paulo o título do livro. Depois vem, em quarto
Freire. Os conteúdos, sempre de impro- lugar, Nicarágua, onde faz um manifesto
© REPRODUÇÃO

viso, aconteceram não apenas no Brasil, aos dez anos da revolução sandinista.
mas em diversos países. O livro é dividido Paraguai vem na sequência, e o tema da
geograficamente: a parte I traz as falas palestra suscitou inúmeras perguntas dos
ocorridas na Argentina, com uma entre- participantes, sobre a educação popular
vista interessantíssima, A confrontação na América Latina. Uruguai fecha o livro,
não é pedagógica e sim política, em que composto de duas entrevistas, uma sobre
diz: “Um dos maiores desafios do momen- educação, política e religião e a outra
to é como fazer frente à ideologia parali- abordando educação, televisão e mudan-
sante e fatalista que o discurso neoliberal ça social.
tem imposto”. A entrevista foi dada à A reunião dos textos foi tutelada por Nita
imprensa de San Luis, em 1996. Freire, também educadora e filha de edu-
O Brasil está na segunda parte, e cadores, que se casou com Paulo em 1986
Educação Popular e processos de apren- e desde sua morte, em 1997, vem dissemi-
dizagem devia ser lido por todo profes- nando sua obra. Essencial.

Autor: Paulo Freire • Páginas: 288 • Editora: Paz&Terra

PARA LER preender que, para além de sua utilidade


instrumental na atividade comunicativa
FLUENTEMENTE cotidiana, a língua que ele fala é uma forma

© REPRODUÇÃO
de conhecer, de ser e de atuar no mundo.
Ler com desenvoltura e competência pode
Nesse momento, a língua deixa de ser mera
definir o sucesso de qualquer empreen-
herança imposta aos indivíduos como mem-
dimento. Uma boa leitura compreende a
reflexão sobre a natureza simbólica da bros da comunidade e é posta a serviço de
linguagem e a revelação dos efeitos de suas escolhas e de sua capacidade de criar. 
sentido de um texto com base em sua cons- O ensino da língua é a ideia fixa que percor-
trução formal. Em A linguística, o texto e o re os doze capítulos desta obra. Em cada
ensino da língua, de José Carlos de Azeredo, um deles, insistimos na condição que o tex-
reafirma-se a importância da palavra como to detém de objeto e objetivo do ensino da
eixo de qualquer projeto educacional, uma língua materna. Os capítulos 1 e 2 focalizam
vez que é na posse e no exercício da lingua- os percursos; os fundamentos (aspectos
gem que se reconhece o traço essencial do teórico-conceituais e metodológicos) são
modo humano de ser.  matéria dos capítulos 3 a 8. Os capítulos 9
O leitor pode dar um salto qualitativo a 12 são incursões no território da literatura
nos planos intelectual e cultural ao com- brasileira pelo caminho da língua.

Autor: José Carlos de Azeredo • Páginas: 200 • Editora: Parábola Editorial

64 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


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CONHECIMENTO PRÁTICO LÍNGUA PORTUGUESA &
LITERATURA é uma publicação bimestral da EBR _ Empresa
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responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados
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tão mais para histórias de terror, algo que a série televisiva REVISÃO: Adriana Giusti
REDAÇÃO: Abrahão Costa de Freitas, Avram Ascot, Jussara
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COLABORADORES: Aline Fernanda Camargo Sampaio,
Traduzidos para mais de 170 idiomas, tem uma importância Eduardo Guimarães, Fernanda De Paula, Luiz Guilherme
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Profissão
“Diante de
problemas tão
complexos, o
de risco risco de adoecer
mentalmente
torna-se
uma rápida

H
á alguns anos, tem-se percebido aumento da e crescente

© ISTOCKPHOTO.COM
procura por atendimento psiquiátrico por parte de
professores do ensino médio de escolas públicas,
realidade”
sejam elas municipais ou estaduais. Depressão,
ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático têm sido
os principais diagnósticos para esses trabalhadores, e, não
raramente, muitos deles acabam necessitando permanecer
afastados do trabalho por longos períodos. esse professor encontrar novos caminhos profissionais, seja
E por qual motivo? O nome da “doença” que causa essa na rede de ensino privada, seja até mudando de profissão;
doença é violência. O professor tem sido vítima de vários mas como resolver o dilema de professores que dedicaram a
tipos de violência, um monstro de várias cabeças que não vida ao ensino e suas opções profissionais se encontram mais
ataca silenciosamente: gestores truculentos e insensíveis; estreitas? Em um momento em que o ensino público encontra-
perseguições e assédio moral no ambiente de trabalho; -se cada vez mais sucateado, a saúde psíquica dos nossos
violência psicológica e mesmo física por parte de alunos e mestres vai sendo cada vez mais estrangulada.
até de pais de alunos; remuneração insuficiente, que obriga Mais recentemente, um novo ataque: a chamada “Escola
professores a cargas horárias triplas, exaustivas e inviáveis sem partido” e o aumento da vigilância sobre o livre pensa-
do ponto de vista da saúde. Tudo isso muitas vezes vem em mento daqueles que teriam por função primordial desenvolver
bloco e se soma aos problemas na vida pessoal desses que, o senso crítico e a capacidade de reflexão nas mentes dos
muitas vezes, escolheram a profissão pelo sonho em exercer indivíduos em formação.
a vocação de ensinar, o que tem se tornado cada vez mais Diante de problemas tão complexos, o risco de adoecer
difícil nesse contexto tão árido. mentalmente torna-se uma rápida e crescente realidade.
A violência não para por aí. Grande parte dos professores Entretanto, uma vez que se adoece, é imprescindível buscar
que precisa recorrer ao atendimento psiquiátrico nos hospi- tratamento, sendo que, muitas vezes, o apoio psiquiátrico com
tais aos quais têm direito se vê desamparada e descoberta medicações faz-se necessário. Além disso, o apoio psicológico
de um atendimento de qualidade. E quando necessitam se é de fundamental importância, porque é preciso, com a ajuda
afastar do trabalho, têm seus direitos muitas vezes negados, de um profissional capacitado, fortalecer-se para poder ga-
com suspensão e negativas de licenças. Além disso, quando rantir a volta ao trabalho ou até tomar decisões que envolvam
afastados do trabalho, perdem muitas das premiações, e novos rumos profissionais.
seus rendimentos são drasticamente reduzidos em um mo- Mas, antes de adoecer, é recomendável que esses profis-
mento bastante crítico da vida. sionais procurem apoio psicológico preventivo: psicoterapias,
O cenário é bem crítico, e as soluções parecem cada vez atividade física, atividades artísticas e de lazer podem funcio-
mais difíceis de ser encontradas. Aos iniciantes na carreira, nar como válvulas de escape para o estresse ocupacional e
pode ser um pouco mais fácil, porque há mais chances de afastar as doenças para longe.

Marcelo Niel é médico psiquiatra e doutor em Ciências pela UNIFESP.

66 | LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA


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