1o Colóquio em epistemologia e pedagogia das ciências - 2005
Contextualização e pedagogia de projeto
no curso de Biologia
Marlise A.V. Araújo
Colégio Pedro II
Qual o percentual dos alunos egressos do ensino médio utiliza as
noções de produção de energia celular pelo ciclo de Krebs ou de Calvin-Benson? Qual a utilidade, para um cidadão comum, conhecer o ciclo reprodutivo das briófitas ou saber o que é um briozooa? Não se trata, sob hipótese alguma, de desmerecer o valor do conhecimento das diferentes áreas da Biologia mas de fazer um exercício de reflexão sobre a função do ensino da Biologia no nível médio, ou ainda, compreender os objetivos do aprendizado de Biologia para os indivíduos que não exercerão carreiras desta área do conhecimento. A recente reforma das diretrizes curriculares elaborou novos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que descrevem objetivos bem claros quanto à função do ensino nas diferentes áreas de conhecimento. No que tange à Biologia, os objetivos educacionais estabelecidos pela CNE/98 destacam que “há aspectos da Biologia que têm a ver com a construção de uma visão de mundo, outros aspectos práticos e instrumentais para a ação e, ainda aqueles que permitem a formação de conceitos, a avaliação, a tomada de posição cidadã”. No mesmo texto há referência à importância dos conteúdos serem apresentados de forma problematizadora, envolvendo o conhecimento de forma integrada e estimulante. Analisando com atenção os currículos e livros didáticos de Biologia para o ensino médio, encontraremos, na maioria, a mesma seqüência de conteúdos, mais ou menos detalhados, alguns bastante atualizados com 1o Colóquio em epistemologia e pedagogia das ciências - 2005
textos sobre curiosidades científicas. No entanto, os temas são colocados
fragmentados em capítulos sem perguntas que estabeleçam relações com a vida dos jovens estudantes. O professor, para valorizar os temas de aula, apega-se à promessa da importância futura ou da necessidade para o vestibular. Assim, o estudo da Biologia tem sido pensado a partir do interesse dos especialistas que reproduzem no ensino médio parte do programa dos cursos básicos de graduação nas áreas das biociências. Quando os conteúdos programáticos privilegiam os valores e os procedimentos de quem ensina e não a necessidade e o contexto de quem aprende, o aprendizado se torna árduo e desinteressante, e o resultado é quase sempre insatisfatório. Esses resultados, que revelam o analfabetismo científico das gerações escolarizadas estão registrados em avaliações como a do PISA (2003). Precisamos, racionalmente, avaliar quais os impactos que os currículos de Biologia têm gerado nos nossos alunos. Vamos tentar fazer esse exercício aqui, agora. O que nós, cidadãos comuns usamos, dos ensinamentos de Biologia, no nosso cotidiano? Por que estudamos Biologia? Por que ensinamos Biologia? O que esperamos, ao final do ensino médio, quanto ao saber adquirido da Biologia? No cotidiano da população que teve acesso à escola, as pessoas agem em relação à prórpia saúde de acordo com preceitos básicos aprendidos ou não na aula de ciências. Assim, os cuidados com a higiene, com a alimentação e com o saneamento básico são praticados utilizando uma mistura de crenças e regras simples. Neste primeiro nível de procedimentos, é desnecesária a compreensão dos conceitos abstratos de evolução, biologia celular e molecular, que são, hoje, o cerne da Biologia. No nível seguinte, quando se trata de compreender a relação do crescimento da agropecuária na preservação ambiental e o risco de sobrevivência de algumas espécies, ou mesmo para entender as conseqüências metabólicas do usos de determinadas substâncias químicas, tais como pílulas anticoncepcionais, anabolizantes ou cocaína, 1o Colóquio em epistemologia e pedagogia das ciências - 2005
torna-se necessário o uso de uma série de conceitos abstratos utilizá-los
de forma integrada. Estes dois níveis básicos exemplificam contextos práticos de aplicação do saber adquirido. Além disso, é preciso reconhecer que as diversas áreas de conhecimento da Biologia que estão em fase exponencial de expansão, têm contribuído com o desenvolvimento de novas tecnologias, cujos resultados poderão gerar, a médio prazo, impactos significativos no perfil socio-econômico mundial. Há quem acredite que a Biologia será capaz até de criar a eterna juventude, mas, será que isto nos interessa? A esta constatação pode ser associada uma outra que é igualmente relevante: no ensino médio, de maneira geral, os alunos não se mostram atraídos pela maior parte dos temas tratados nas aulas de Biologia. Uma pequena enquete realizada entre alunos do ensino médio de uma escola pública revelou que aproximadamente 70% dos alunos acham a Biologia uma matéria importante, mas menos da metade a classificou como interessante, com excessão dos conteúdos sobre o corpo humano e sobre o meio ambiente. Menos de 30% disse compreender porque precisa estudar citologia, e quase 80% afirmou que não se lembrará de nada após o vestibular (estou a considerar apenas a parcela dos estudantes que chegou lá, no final do ensino médio). No entanto, constata-se que, nos projetos realizados para eventos especiais, como as feiras de ciências, quando os alunos trabalham com afinco, em temas de seus interesses, preocupam-se em obter os melhores resultados. Os resultados revelados por avaliações e verificações posteriores indicam que o conhecimento utilizado na confecção destes trabalhos foi absorvido e transformado num saber “reutilizável”. Retomando à nossa questão inicial: se o conhecimento contido na Biologia é tão importante em diversos assuntos do cotidiano, se o tema "vida" por si só nos parece tão atraente, porque nossos alunos apresentam índices tão alto de desinteresse pelos cursos de Biologia? 1o Colóquio em epistemologia e pedagogia das ciências - 2005
Um olhar atento à seqüência conteudista da maioria dos cursos,
utilizada para “imprimir” uma visão geral sobre os fundamentos da Biologia, mostra algumas características pedagógicas marcantes: 1. temas apresentados em seqüências lineares, sem eixos transversais que integrem as partes. 2. representações estáticas para fenômenos dinâmicos. 3. simplificações explicativas que dificultam a compreensão das relações causais e de interdependência. 4. treinamento em problemas tipo com respostas padrão, abolindo o uso de diferentes códigos de linguagem e o uso da abstração necessária para a compreensão conceitual. Apesar da aparente ineficácia desta forma de transmitir conhecimentos, não podemos negar que uma parcela do saber específico, o nosso “saber científico”, precisa deste espaço sequencial, informativo e disciplinar. A compreensão profunda de modelos explicativos complexos depende tanto do esforço pessoal da busca e da organização das informações quanto da orientação experiente de um tutor que nos ajude a questionar e a perceber as sutilezas do encadeamento das idéias. Mas, para um adolescente vivendo nesta sociedade envolta em turbilhões de informações, com relações descartáveis, em crise com seus valores sociais e políticos, não há motivo para aprender o que não faz parte do seu mundo imediato: " Estudar é perda de tempo de vida". “Só me interesa aprender o que valer para viver”. Essas frases recolhidas de testemunhos entre alunos emitindo opinião sobre o papel da escola na vida deles esclarecem a apatia e a dificuldade diante das ciências chamadas “duras” e da natureza. Estamos obstinadamente tentando incutir nos alunos alguns saberes, sem importância para eles, desperdiçando tempo “de vida”, gerando desafetos e resistências científicas e, ainda, nos perguntando o que será desta geração que terá que se mover neste mundo globalizado, cada vez mais complexo? 1o Colóquio em epistemologia e pedagogia das ciências - 2005
Nesta sociedade em mutação, os indivíduos precisam se apropriar de
saberes múltiplos. Aprender a tirar proveito de seus sucessos e falhas, inventando, ele mesmo, suas próprias soluções. Neste contexto a Biologia pode ser um eixo central, utilizando o conceito de vida e da evolução para estabelecer interação com as mais diversas áreas de conhecimento que afetam a vida humana. Perguntemos quais seriam os eixos integradores que podem nortear procedimentos pedagógicos em Biologia e Ciências afim? Quais as estratégias e métodos pedagógicos que poderiam estimular um aprendizado ativo, ensinar o aluno a gostar de aprender, de achar o sentido no conhecimento pretendido? O primeiro passo é escolher, no contexto de vida dos alunos, assuntos que possibilitem perguntas de cunho científico. Exemplos: Por que nosso corpo não funciona sob quaisquer condições?; Porque dizem que as calorias engordam?; Como obter um corpo “sarado” e saudável?; Como se formam os buracos negros? Em seguida, estabelecer estratégias em torno de alguns princípios fundamentais: (1) despertar a curiosidade; (2) desenvolver a capacidade de observação utilizando práticas de microscopia; (3) apresentar os princípios básicos de metrologia realizando experimentos simples; (4) estimular o uso da lógica e da linguagem matemática; (5) estimular a aplicação do uso de funções matemáticas simples para descrever fenômenos experimentais; (6) propiciar a integração dos conhecimentos tratados pelas diferentes disciplinas; (7) desenvolver a precisão de linguagem, através da confecção de relatórios; (8) desenvolver atitudes de trabalho em grupo; (9) desenvolver comportamento ético. Além das etapas usuais para o desenvolvimento de trabalhos práticos em grupos, é fundamental que sejam elaboradas estratégias e ferramentas de avaliação tanto para o diagnóstico ao longo do processo, quanto para a verificação do alcance dos objetivos propostos. É relevante lembrar que devido à heterogeneidade dos alunos e das turmas, os dados gerados pelas verificações precisam ser organizados em planilhas que possibilitem análises estatísticas a longo prazo. Só assim será possível 1o Colóquio em epistemologia e pedagogia das ciências - 2005
afirmar que uma determinada metodologia é eficaz para as pretendidas
mudanças de valores e comportamentos sociais. A trajetória para alcançar uma proposta de ensino mais aberta e dinâmica como a proposta pelos PCN passa pela reestruturação dos objetivos pedagógicos, pela busca de novas organizações curriculares e da reordenação do espaço-tempo escolar. Para elaborar um curso que inclua projetos ou que desenvolva trabalhos sobre forma de projetos, é preciso que haja uma equipe pedagógica multidisciplinar concordando sobre os valores epistemológicos e os objetivos cognitivos. O sucesso da implementação do ensino contextualizado também depende da infra- estrutura institucional (bibliotecas, laboratórios, cinemateca, cursos de atualização permanente para docentes, etc...). Sem ela é impossível práticas pedagógicas que transcendam a sala de aula, e neste caso, não há como ir além do velho quadro de giz. Quando um aluno me pergunta qual a importância para ele de estudar um determinado assunto, e a única resposta que posso dar é porque cai no vestibular, então, preciso admitir que algo neste currículo está errado. A pergunta que resta a fazer é: como e quando será possível tornar fascinante a compreensão dos fenômenos naturais e da tecnologia atual, no contexto da cultura escolar?