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Desde 2004, a Neuropsicologia é reconhecida no Brasil como uma especialidade pelo Conselho Federal de Psicologia, e
segundo o texto oferecido por este órgão para a descrição da especialidade, o Neuropsicólogo “[...] atua no diagnóstico, no
acompanhamento, no tratamento e na pesquisa da cognição, das emoções, da personalidade e do comportamento sob o
enfoque da relação entre estes aspectos e o funcionamento cerebral. [...] Além do diagnóstico, a Neuropsicologia e sua área
interligada de Reabilitação Neuropsicológica visam realizar as intervenções necessárias junto ao paciente, para que possam
melhorar, compensar, contornar ou adaptar-se às dificuldades; junto aos familiares, para que atuem como co-participantes do
processo reabilitativo; junto a equipes multiprofissionais e instituições acadêmicas e profissionais, promovendo a cooperação
na inserção ou re-inserção de tais indivíduos na comunidade quando possível, ou ainda, na adaptação individual e familiar
quando as mudanças nas capacidades do paciente forem mais permanentes ou a longo prazo.[...]” (Conselho Federal de
Psicologia, 2004).
ferramentas válidas, com aplicação clínica imediata para quem trabalha com diagnóstico das disfunções neuropsicológicas. A
neuropsicologia usufrui da integração entre pesquisa em neurociências e prática clínica – entendemos melhor como o
cérebro funciona, então vemos com mais clareza O QUÊ está errado no funcionamento cognitivo. Mais do que isso:
entendemos o PORQUÊ das dificuldades do paciente: conseguimos levantar hipóteses que expliquem porque a pessoa não
consegue desempenho satisfatório em sua vida. Por exemplo, ao vermos uma criança saudável e afetuosa que não segue
ordens, podemos levantar, como hipóteses causais, não apenas a má vontade infantil ou a ingerência dos pais, mas também
uma possível dificuldade nos processos de memória operacional ou de codificação linguística. Para citar algumas teorias que
consideramos muito eficientes na compreensão de dificuldades observáveis na vida real, temos os modelos de memória
operacional (Baddeley & Hitch, 1974; Baddeley, 2003; Cowan, 2005), sistemas de memória (Squire, 1982; Shacter 1987;
Sherry & Shacter, 1987; Oliveira & Bueno, 1993), funcionamento executivo (Cummings, 1993; Tekin & Cummings, 2002; Lezak,
2004), sistema supervisor atencional (Shalice, 1988; Norman & Shallice, 1986), e tantos outros.
Entretanto, na área da intervenção voltada às pessoas com distúrbios neuropsicológicos, os profissionais encontram
novamente uma barreira para integrar pesquisa e clínica. Os modelos neurobiológicos e as teorias da neuropsicologia
cognitiva não se traduzem em ferramentas para o tratamento das disfunções. E aqui o dilema que se mostra é: as teorias da
neuropsicologia e as técnicas de avaliação não nos dizem COMO fazer a intervenção.
Os estudos buscando evidências de recuperação de funções cognitivas ainda não conseguem recomendar soluções
inequívocas para o dia-a-dia da clínica – o fato de sabermos exatamente como funciona e o que está errado com o cérebro,
não nos fornece instrumentos para “consertá-lo”. E ainda que isso fosse (ou que seja um dia) possível, a ideia de que o papel
da reabilitação neuropsicológica seria apenas o tratamento direto das disfunções cognitivas desconsidera que as bases
biológicas do ser humano não são a totalidade de sua existência, e sim um veículo de sua interação com o mundo, e que tais
interações: suas atividades, relacionamentos, pensamentos, sentimentos, devem ser o principal alvo de mudanças em um
processo de intervenção. A melhora na vida real é o que chamamos de funcionalidade em reabilitação (OMS, 2001).
Tabela de Hipóteses
O planejamento inicial do caso é uma ação de estreitamento da aliança terapêutica entre paciente, família e o profissional.
Inclui um momento em que o profissional trabalha sozinho, organizando as metas levantadas, e outro momento em que
todos trabalham juntos, selecionando metas prioritárias e entrando em acordo quanto às estratégias para atingi-las. Segundo
Ylvisaker e Fenney (1988), a reabilitação é um processo de constante testagem de hipóteses, visto que as dificuldades
cognitivas, emocionais e fatores externos estão constantemente inter-relacionados na origem dos problemas encontrados
pelo paciente na vida diária. Assim, uma mesma dificuldade pode ser causada por diferentes fatores, e a forma de intervir
deve ser coerente com a possível causa.
Para facilitar esse processo contínuo, nosso grupo desenvolveu a Tabela de Hipóteses (Bolognani e Bueno, 2012), uma
ferramenta simples que reúne, de forma clara e organizada, as informações relevantes referentes às dificuldades do paciente
e os caminhos para tentar solucioná-las ao longo da intervenção. Trata-se de uma tabela impressa contendo 6 colunas e
número de linhas indefinido, com campos para o registro da dificuldade apresentada, a meta desejável, as possíveis causas da
dificuldade em questão (hipóteses), as estratégias coerentes para abordar cada causa, o resultado de cada estratégia ou
técnica, e os próximos passos da intervenção, quando necessários.
Como Usar a Tabela de Hipóteses
Para entendermos as ideias de teste de hipóteses e de planejamento lógico da intervenção (ou de seleção de estratégias
coerentes com a dificuldade), veremos, por exemplo, o paciente #1, que após um traumatismo craniencefálico passou a ter
dificuldades para pagar suas contas em dia. A meta para tal situação seria ‘’ter as contas pagas em dia’’. Para decidir como
essa meta seria alcançada, devemos explorar possíveis causas do problema (hipóteses): se o atraso fosse porque ele não se
lembra de pagar o boleto no dia do vencimento, um arquivo organizador aliado a um lembrete no celular poderiam ser boas
estratégias. Entretanto, algumas vezes não é a dificuldade cognitiva primária ou principal que causa o comprometimento
funcional. Se após uma ou duas tentativas a estratégia não se mostrar bem sucedida, torna-se necessária uma nova análise da
situação, procurando novas hipóteses. Faz-se uma revisão das circunstâncias globais e dos papéis das pessoas envolvidas
(para garantir que a causa da falha não é ambiental, por exemplo, o filho sempre altera a configuração do celular), além de
observação direta do paciente na execução da tarefa real, ou em uma atividade semelhante, que pode ser simulada durante o
atendimento. Suponhamos que tal observação revelasse que o paciente tinha oscilações atencionais e se atrapalhava em
processos longos com vários passos, e assim, ao fazer operações online acabava deixando de completar o pagamento de
alguma conta. Para esta causa, seria necessário um treinamento do uso do serviço online, ou mesmo passar a pagar as contas
no caixa da agência. Aqui, a Tabela de Hipóteses organizaria as informações da intervenção (Tabela 1):
Considerando que a primeira hipótese não foi suficiente para o sucesso da estratégia, seria então preenchida a segunda linha
da tabela com a nova hipótese explicativa para o problema, com o raciocínio coerente para a escolha da nova estratégia, e
assim sucessivamente até que a meta seja atingida ou modificada. (ver Tabela 2).
Vejamos agora o caso de um paciente #2, que após uma lesão encefálica hipóxica, apresentava a mesma queixa “não pagar
contas em dia”. Neste caso, a causa do problema poderia ser a pouca consciência sobre a gravidade do esquecimento, então
ele não iria fazer o pagamento logo que ouviu o alarme, por acreditar que não se esqueceria, deixando para ‘’mais tarde’’ e
depois não se lembraria. Neste caso, apenas um alerta do celular não adiantaria; possivelmente seria preciso fazer um
trabalho de conscientização sobre o funcionamento atual da memória, sobre o perigo de ‘’deixar para depois’’, além de usar
múltiplos alarmes e outras formas de garantir que a conta fosse paga. Ainda, poderia haver uma crença disfuncional ou um
sentimento de ansiedade por sentir-se incapacitado ou ‘’dependente’’, o que demandaria uma intervenção direta para a
causa psicológica. Neste caso, o registro poderia ser mais detalhado quanto às estratégias, já que o raciocínio fica mais
complexo, com mais fatores e passos envolvidos (Tabela 4).
Tabela 4. Paciente #2, hipóteses levantadas e respectivas estratégias a serem testadas
DIFICULDADE META HIPÓTESE ESTRATÉGIA RESULTADOS PROXIMOS
PASSOS
Não usa o alarme Usar o alarme 1. Acha que depois vai Psicoeducação sobre
de forma eficiente com eficiência se lembrar; pouca amnésia e o impacto
auto-consciência prático em sua vida
Usar situações teste nas
sessões e ver que o erro
pode ocorrer se deixar
para depois
Criar hábito de fazer a
tarefa na hora
2. Caso se distraia não Colocar o alarme para
se lembra de retomar repetir
depois
Só desligar alarmes após
finalizar a tarefa
Esses foram alguns exemplos para ilustrar o uso da Tabela de Hipóteses. Não há uma maneira única ou correta de usar esta
ferramenta, sendo mais importante compreender que seu propósito geral é a organização e registro do passo a passo do
raciocínio clínico em diversos tipos de casos. Desta forma, a Tabela pode ser usada independentemente da faixa etária do
paciente ou da etiologia do problema cognitivo, desde que a proposta de intervenção seja orientada a metas bem definidas,
que busquem resultados observáveis na vida real, quantitativa ou qualitativamente.
Melhorar engajamento e comunicação entre equipe, paciente e família: pode ser usada exclusivamente pela equipe, sem a
participação da família, para auxiliar no planejamento apenas com metas dos terapeutas. Em outros casos, pode ser um
material concreto a ser preparado e apresentado ao paciente e familiares, ou mesmo a ser produzido em conjunto. Assim,
ajuda na aliança terapêutica e na adequação das expectativas quanto ao que o tratamento pode oferecer, já que estão todos
cientes dos objetivos e colaborando para atingí-los.
Manter o foco nas metas: é um guia para definir conteúdo das sessões; pode aumentar a garantia de que as metas estejam
sendo diretamente abordadas, que aquelas que forem possíveis sejam atingidas, e ainda ajuda a decidir se uma meta deve ser
abandonada ou postergada, pois estarão documentados tanto os sucessos como as tentativas pouco eficazes.
Acompanhar os avanços da intervenção: após alguns meses, é muito comum que todos estejam envolvidos com as metas do
momento, e percam a perspectiva de quantos avanços já foram feitos. O fato de o paciente ainda ter limitações muitas vezes
gera na família a ideia de que o ‘’tratamento não está adiantando’’. Os problemas superados podem ser esquecidos ou sua
resolução pode não ser percebida como uma conquista terapêutica. Ter em mente o passo a passo e os esforços, bem como
acompanhar os sucessos, faz com que a família se mantenha motivada e positiva, confie na intervenção, e tenha esperança
para continuar. Mesmo o registro dos insucessos torna-se útil, pois ajuda a adequar as expectativas de forma realista.
Orientar o processo de alta: acompanhar o planejamento inicial, passando por diversas etapas da intervenção, mostra que a
intervenção tem processos com começo, meio e fim. Novas metas vão sendo agregadas conforme a necessidade, mas tal
inclusão depende da concordância dos envolvidos, e da avaliação do custo-benefício de estender a intervenção ou investir em
novas atividades. No caso do encerramento do processo, podem ser definidas metas de manutenção de ganhos e
generalização das conquistas para outros ambientes, espaçando-se as sessões gradativamente. O registro dos passos na
Tabela também facilita que o foco se mantenha apesar da menor frequência dos encontros.
Até o momento, não temos estudos para avaliar a eficácia desta ferramenta, mas a observação informal e o relato dos
colegas e alunos que a experimentaram é de que o instrumento é útil e esclarecedor. É um material concreto que permite
visualizar um processo de solução de problemas de forma lógica, o que facilita o engajamento de todos os envolvidos, para
que compartilhem a compreensão do caso e cooperem nas ações de reabilitação.
Considerações finais
Um dos elementos mais importantes para o sucesso de uma intervenção terapêutica é a formação sólida do profissional. As
competências fundamentais do neuropsicólogo clínico envolvem comunicação, organização, planejamento e orientação do
trabalho para os resultados (Sperry, 2010).
A intervenção de reabilitação sempre envolve inúmeras metas, e lidar com tantos fatores para cada uma delas pode tornar os
atendimentos confusos e pouco eficientes – o que torna o REGISTRO ESCRITO um componente fundamental do processo. A
Tabela de Hipóteses é uma ferramenta simples de usar e auxilia o profissional a construir sua metodologia de trabalho. As
ações de organização das estratégias e de manutenção do foco de cada sessão impedem que as demandas se acumulem,
evitando o risco de investir em muitas áreas ao mesmo tempo sem concluir nenhuma adequadamente ou de levar tempo
demais ou de menos no investimento em uma estratégia.
Nossa experiência tem mostrado que a organização do pensamento clínico, a seleção dos aspectos relevantes para cada
momento da intervenção, o registro adequado das informações e o acompanhamento dos resultados fazem muita diferença
no bom andamento do caso. E é justamente isso que a Tabela de Hipóteses procura proporcionar.
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