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A disciplina
Olá, turma:
Meu nome é Fernando (Fernando da Mota Lima) e vou estar com vocês ao longo deste semestre
ministrando a disciplina Cultura Brasileira. Espero que nosso trabalho em grupo seja proveitoso e
concorra para aprimorar nossa percepção e conhecimento de alguns aspectos fundamentais da
realidade cultural brasileira e por extensão global. Gosto sempre de dizer a meus alunos, quando a
eles me apresento na sala de aula, que estudamos para aprender. Sendo assim, espero que vocês
se sintam à vontade para perguntar tudo que lhes pareça importante e merecedor de
esclarecimento. De minha parte, prometo fazer o possível para ser um professor dedicado expondo
com clareza as questões contidas no programa. Mas ninguém é absolutamente claro e preciso,
assim como nenhum receptor da mensagem, vocês, pode ou tem a obrigação de entender tudo.
Portanto, perguntem sempre, proponham questões e exponham suas dúvidas. Farei o possível para
esclarecer as dúvidas que surgirem durante nosso trabalho em comum.
O primeiro critério que destaco na composição do programa, assim como no seu desenvolvimento,
apóia-se na compreensão histórica de conceitos tais como cultura brasileira, memória, identidade,
tradição e modernidade, nacionalismo e regionalismo, política cultural, globalização etc. Dentro
deste princípio, uma das preocupações dominantes no curso de todo o processo argumentativo
será acentuar o caráter histórico, inclusivo, mas também conflituoso da cultura brasileira, única via
coerentemente passível de favorecer uma articulação democrática das nossas práticas culturais. De
resto, dentro dessa moldura geral foram produzidas obras fundamentais de história social e cultura
brasileira, aqui incluída certa faixa da literatura, como Casa-Grande & Senzala, de Gilberto
Freyre; Macunaíma, de Mário de Andrade; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; O
Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro.
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Cultura Brasileira (atualizada IV) – Prof. Fernando da Mota Lima
No que se refere ao aspecto interpretativo desse processo cultural, do qual resulta o que hoje
entendemos como ´cultura brasileira`, compreendo que a via interpretativa mais fecunda supõe o
tratamento dialético das relações entre os fatores externos, sobretudo de procedência européia e
mais recentemente norte-americana, e os internos, nacionais e mais restritamente regionais.
Dizendo isso de outro modo, esses fatores estão interligados de modo desigual, já que os externos
têm mais poder e influência na cultura global, mas são inseparáveis e se influenciam sempre.
Outra dimensão enfatizada no programa da disciplina, sempre compreendida dentro dos princípios
acima esboçados, é a da educação. Ela supõe resultados que, não obstante lentos, viabilizarão
uma sociedade mais igualitária e uma assimilação mais crítica e adequada dos empréstimos
culturais. Esses pressupostos remetem coerentemente ao reconhecimento de que os fins
educacionais e culturais acima visados são inconcebíveis à margem de uma transformação
qualitativa da sociedade e do Estado.
Por fim, importa também considerar e melhor compreender a relação entre globalização e
identidade cultural Assim, procuro acentuar que a globalização é um fenômeno que está aí inscrito
no cerne da realidade contemporânea, um dado incontornável da realidade. Resta-nos, portanto, e
esta é a questão que se impõe à nossa condição humana no início deste século, avaliar de modo
crítico e realista – noutras palavras, um modo dissociado das representações grosseiramente
demonológicas brandidas por conservadores alarmados – as suas implicações de ordem econômica
e cultural. E tal avaliação parece-me de outro lado implicar uma definição de medidas orientadas
para o enfrentamento deste problema: O que fazer diante do fato imperativo da globalização?
Como articular projetos educacionais que adaptem criativamente nossas condições específicas à
globalização?
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Entendendo ainda, de outro lado, que a identidade cultural se define na linha da mobilidade
inerente ao próprio processo da cultura, friso a necessidade de uma compreensão móvel da
realidade implicada no conceito. Tal como acima observei a propósito das noções de cultura
brasileira e memória social, penso que afirmações já banalizadas como “a globalização destrói a
identidade cultural” carecem de qualquer valor crítico. Nosso dever, que é o dever de toda pessoa
empenhada em compreender crítica e racionalmente a realidade em que se situa e opera, é
analisar compreensivamente os fenômenos da cultura e não obscurecê-los com representações
irracionalistas e sociologicamente infundadas.
Por fim, nossa aprendizagem da cultura brasileira poderá ajudar-nos a melhor viver num futuro
incerto, eis minha aposta esperançosa, num mundo de interação e convívio entre as culturas
inspirados pelo desejo de integração e tolerância em face do outro. Que mundo seria esse em que
o outro já não fosse o objeto da nossa arrogância etnocêntrica, ou do nosso desejo de
aniquilamento da diferença?
Ementa
Conceitos básicos. Matrizes da cultura brasileira. Herança e mudança cultural. A cultura brasileira e
seus intérpretes. Cultura, identidade e globalização.
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Referências bibliográficas
Bibliografia básica:
Botelho, André e Schwarcz, Lilia (org.). Um enigma chamado Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.
Coelho, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: Iluminuras, 1997. Ver em
especial os verbetes: Cultura, globalização cultural, identidade cultural, indústria cultural, mudança
cultural, multiculturalismo, política cultural.
Mota, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil – Um Banquete no Trópico. 2ª. ed. São
Paulo: Editora Senac, 1999.
Bibliografia complementar:
Bosi, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 34ª. edição. São Paulo; Editora Cultrix,
1994.
Costa e Silva, Valéria da. A Modernidade nos Trópicos: Gilberto Freyre e os debates em
torno do nacional. Recife: Carpe Diem, 2009.
Freyre, Gilberto. Região e Tradição. Com Introdução do autor e prefácio de José Lins do Rego.
2ª. edição. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1941.
______. Manifesto Regionalista. 7ª. edição revista e aumentada. Prefácio de Antônio Dimas.
Recife: Fundaj; Editora Massangana, 1996.
Mota, Lourenço Dantas (org.). Introdução ao Brasil – Um banquete no trópico. Volumes I e II.
São Paulo: Editora Senac, 1999 e 2001.
Rouanet, Sérgio Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Santos, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 1981
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Veloso, Mariza; Madeira, Angélica. Leituras Brasileiras. Prefácio de Sérgio Paulo Rouanet. São
Paulo: Editora Paz e Terra,1999.
Wilson Martins. A Ideia Modernista. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Topbooks,
2002.
Artigos:
Andrade, Mário de. “O Movimento Modernista”, in Aspectos da Literatura Brasileira. 6ª. ed. São
Paulo: Martins, 1978, pp. 231-58.
Bastos, Elide Rugai. “Gilberto Freyre: Casa-Grande & Senzala”, in Mota, Lourenço Dantas (org.) op.
cit., pp. 215-34.
Bomeny, Helena. “Aposta no futuro: o Brasil de Darcy Ribeiro”, in Botelho e Schwarcz (org.), op.
cit., pp. 338-51.
Candido, Antonio. “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, in Literatura e Sociedade. 8ª. edição.
São Paulo: T. A. Queiroz; Publifolha, 2000.
Ricupero, Bernardo. “Caio Prado Jr. e o lugar do Brasil no mundo”, in Botelho e Schwarcz (org.),
op. cit., pp. 226-39.
Sallum Jr., Brasílio. “Sérgio Buarque de Holanda: Raízes do Brasil”, in Mota, Lourenço Dantas
(org.) op. cit., pp. 235-56.
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Sumário
1. Cultura: conceito sócio-antropólogo
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Conceito – no sentido corrente, aquele empregado pelo senso comum, a cultura é antes de tudo
associada à aprendizagem intelectual. Assim, quando falamos de uma pessoa culta queremos
noutras palavras dizer que ela estudou muito, especialmente as humanidades ou ciências humanas
e as artes. Este sentido do termo, ainda bastante usado, no geral envolve atitudes
preconceituosas.
O sentido sócio-antropológico é o que mais nos importa. Ele é bem mais amplo e complexo do que
o outro acima indicado. A influência crescente da sociologia e da antropologia no mundo
contemporâneo se evidencia na adoção crescente do conceito sócio-antropológico da cultura pela
mídia e pela linguagem da polítca e da publicidade. Basta lembrar a frequência com que hoje
falamos da cultura pernambucana, cultura global, cultura jovem, identidade cultural etc. Adiante
esclarecerei melhor o sentido destes e outros qualificativos da cultura.
Antes de expor o conceito, acho que é didaticamente mais eficaz chegar a ele através de um
exemplo que apresento com riqueza de detalhes e argumentos na sala de aula. Como não é o
nosso caso, tentarei resumi-lo num parágrafo. O argumento geral é baseado na distinção entre
natureza e cultura, ou biologia e cultura. Partindo das necessidades primárias que nos ligam à
nossa natureza biológica (sexualidade, comida, linguagem, habitação, vestuário, agressividade)
procuro esclarecer, em cada caso, de que forma a espécie humana se diferencia do mundo da
natureza. Observe, por exemplo, um gato, cachorro ou outra espécie animal ligada à nossa vida.
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Pense no modo como essas espécies realizam suas necessidades sexuais, alimentares etc. e
observe que nelas essas funções são constantes ou fixas. Elas são determinadas pelo instinto
biológico. Na espécie humana isso é totalmente diferente. Basta considerar a extraordinária
variedade das culturas humanas. Cada povo, cada grupo humano, cria suas regras próprias
relativas à sexualidade, aos modos de comer, morar, vestir, expressar a agressividade etc. Citarei
abaixo o antropólogo Claude Lévi-Strauss, que nos esclarece sobre a distinção fundamental entre
natureza e cultura:
Como você observa na citação acima, ele tanto estabelece a distinção básica entre natureza e
cultura quanto define o sentido desta. Há muitas definições de cultura, que você pode facilmente
consultar nos dicionários especializados e nas obras de referência e introdução à sociologia e à
antropologia. Vou acrescentar à definição proposta por Lévi-Strauss uma outra, talvez mais
sintética. O que importa é que ambas traduzem o sentido substancial do conceito sócio-
antropológico que é objeto deste ponto do programa:
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Uma outra evidência desse fato se reflete na difusão igualmente forte de vários conceitos
relacionados à cultura. Melhor dizendo, constituem qualificações ou especificações da cultura. Este
é o objeto da aula que agora nos ocupa. Os conceitos de uso mais corrente são os seguintes:
CULTURA É a que no mundo atual se manifesta em escala global. Ela é fruto, antes de
GLOBAL tudo, da integração dos mercados e da revolução tecnológica e
comunicacional.
Observe que até este ponto o critério implícito que regeu as diferentes modalidades acima indicadas foi o
geográfico ou espacial. Parti do mais próximo, o local, para o mais amplo e também remoto e
paradoxalmente próximo, o global. É claro que essas modalidades interagem e se influenciam dentro da
realidade cultural em que passamos a viver. Um filme como Bye Bye Brasil, de Carlos Diegues, ilustra de
forma admirável essa relação complexa e perturbadora entre elementos da cultura global, internacional,
nacional, regional e local. Mencionei o exemplo deste filme, mas poderia talvez mais apropriadamente
mencionar as imagens e programas que vemos todos os dias na televisão sentados na nossa casa. Além das
formas de interação entre as modalidades acima definidas, importa também acrescentar as modalidades que
abaixo especifico.
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CULTURA DE Relativa à cultura produzida e difundida pelos meios de massa (jornal, rádio,
MASSA televisão, revistas, internet). Esta modalidade de cultura é de conceituação
muito complexa, pois não basta indicar seus meios de produção e difusão.
IDENTIDADE Este é um outro conceito muito complexo e por isso sempre dá margem a
CULTURAL controvérsias e divergências. É muito difícil, senão impossível, determinar a
identidade cultural de um grupo ou nação, especialmente no mundo
contemporâneo onde os contatos e empréstimos culturais se processam com
uma intensidade sem precedente histórico. A identidade recortada pelos
estudiosos, assim como aquela declarada por seus agentes ou portadores, é
sempre uma construção ideal ou imaginária. Portanto, não tem localização
precisa no universo dos fatos ou da realidade objetiva.
Para os conservadores culturais, a identidade cultural é algo inquestionável e precisa ser sempre
defendida contra todo o tipo de força ou fator externo que a ameaça. Em decorrência, são no geral
intolerantes com relação à diversidade cultural ou aos contatos e empréstimos entre culturas, fato de
incidência corrente no mundo em que vivemos. No outro extremo poderíamos qualificar como cosmopolitas
aqueles que defendem o livre comércio entre as culturas, a irrestrita manifestação de contatos e empréstimos
culturais.
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Concluiria este ponto ressaltando mais uma vez a complexidade dos conceitos acima expostos. Em
certo grau, são definições discutíveis e até contestáveis, dependendo assim da perspectiva de
quem os aborda. Sem negar sua complexidade, precisamos de qualquer modo, por razões de
ordem didática, propor definições que em alguns casos incorrem em simplificação, mas nos ajudam
a melhor compreender o objeto estudado.
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Exponho um exemplo histórico que ilustra essa questão melhor do que qualquer exposição
puramente conceitual e teórica. Quando o colonizador português e o jesuíta aportaram na costa
brasileira, defrontaram-se com um povo e uma cultura radicalmente diferentes da sua. O que
fizeram eles, com sua cultura técnica e sua religião mais poderosas? Impuseram ao indígena uma
cultura que representou para este um verdadeiro processo de extermínio e supressão da sua
identidade. Foi o que hoje chamaríamos de lavagem cerebral. Além de vestirem o índio e lhe
imporem uma religião completamente incompatível com a sua, impuseram-lhe valores econômicos
e culturais baseados numa noção de individualismo e propriedade privada que eram o avesso da
cultura tribal ou comunitária dos grupos indígenas.
Devido aos motivos acima esboçados, o etnocentrismo é mais que um conceito; ele é, na verdade,
um dos fundamentos metodológicos da investigação da realidade cultural. Sabemos que o termo
método quer simplesmente dizer caminho ou conjunto de meios que o estudioso adota para chegar
ao alvo do seu estudo ou investigação. Portanto, o etnocentrismo é um obstáculo tão grave que na
prática anula qualquer possibilidade de conhecermos efetivamente a realidade que estudamos.
Como já observei, somos espontaneamente etnocêntricos. Por que isso acontece? A razão provável
reside no fato de que assimilamos ou internalizamos a cultura na qual nascemos e nos formamos,
através do que antes designei como processo de socialização, como se ela fosse o centro do
mundo, a expressão do que há de certo, aceitável e verdadeiro em termos culturais. A cultura
torna-se para nós algo que nos molda, que se converte numa espécie de segunda natureza para
nossa vida. É por isso que pensamos com a nossa língua, expressamo-nos com a nossa língua de
modo tão espontâneo que ela passa a funcionar na gente como se fosse algo de natureza
inconsciente. É por isso que não conseguimos compreender verdadeiramente outra cultura,
sobretudo quando é profundamente diferente da nossa, se não pusermos nossa cultura entre
parênteses.
Acredito que essa operação mental não é totalmente possível, mas é possível o suficiente para que
a gente se coloque na perspectiva do outro, na cultura do outro. Este é o único meio possível de
compreendermos a realidade de uma outra cultura. É também por isso, e por ter consciência do
quanto sua percepção da realidade é etnocêntrica, que o antropólogo pratica pesquisa de campo,
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vai viver no meio de uma tribo durante tempo suficiente para ser aceito e assimilar os valores e
percepções daquela cultura até sentir-se em condições de traduzi-la de algum modo para os
códigos da sua cultura de origem.
Gilberto Freyre designou o processo mental e metodológico acima descrito com o termo empatia.
Mas do que um esforço espontâneo ou deliberado de identificação com o outro, o estranho, o que
não é parte da nossa cultura e dos nossos valores fundamentais, a empatia significa tornar-se o
outro. Gilberto Freyre procurou exemplificar esse fenômeno indicando seu próprio exemplo, a
maneira como procurou compreender sociológica e antropologicamente o processo de formação da
cultural brasileira baseado nas três matrizes que adiante estudaremos: a indígena, a lusa e a
africana. Ele observa então que para escrever Casa-Grande & Senzala tornou-se empaticamente
o índio, o colonizador luso, o escravo africano, o homem patriarcal, a mulher, a escrava, o menino
da casa-grande e toda a galeria impressionante de tipos sociais que desfilam nas páginas da sua
obra-prima.
É no sentido acima que é justo dizermos que, como método de investigação, o relativismo cultural
é uma necessidade. É preciso, noutras palavras, partirmos do pressuposto da infinita variedade das
culturas e da singularidade de cada uma delas. O problema com o conceito de relativismo,
sobretudo no seu uso corrente, é que muita gente salta deste fato metodologicamente adotado
pelas ciências sociais para afirmar que cada cultura é única e portanto intraduzível numa outra.
Afirmam ainda que não podemos julgar nenhuma cultura, pois cada uma, sendo única, é
intraduzível fora de si própria.
Se levamos o relativismo a esse extremo – algo traduzível no lugar comum: cada cabeça, cada
sentença, pensemos ainda no célebre postulado do filósofo grego Protágoras: “o homem é a
medida de todas as coisas” – então ficamos de mãos atadas para julgar qualquer valor, costume ou
prática de outra cultura. Propondo um exemplo concreto: dentro dessa moldura não temos como
julgar horrores como o nazismo ou culturas onde a mulher é sujeita a formas brutais de opressão.
Neste último caso, bastaria lembrarmos o caso recente, de repercussão mundial, da iraniana
Sakineh, acusada de adultério e portanto condenada, segundo as leis e práticas culturais do seu
país, à morte por apedrejamento público.
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Sugiro que você leia o artigo que postei sobre este assunto num artigo
intitulado Universalismo versus Relativismo. Aqui vai o link:
http://fmlima.blogspot.com/2010/10/universalismo-versus-
relativismo.html.
Mas eis que aqui entra em cena o outro conceito chave desta aula, o conceito de universalismo
cultural. Ele constitui o oposto ou avesso do relativismo. A primeira vista, parece insensato falar de
universalismo quando observamos a extraordinária diversidade e até antagonismo das culturas
humanas. Além disso, estamos vivendo numa atmosfera cultural baseada na defesa intransigente
do relativismo e da infinita variedade de particularismos culturais. Cada cultura, sentindo-se
ameaçada pela presença dominadora dos processos econômicos e culturais da globalização,
reivindica sua singularidade, sua autonomia ilusoriamente separada da rede de intercâmbios de
todo tipo que atravessa nossa realidade cotidiana. Os movimentos das minorias (aqui incluído o da
mulher, que estatisticamente não é minoria), também clamam pela singularidade da sua cultura ou
subcultura.
Diante do quadro acima, que poderia descrever com maior amplitude de exemplos, qualquer
defesa de uma perspectiva universalista é não raro desqualificada como dominação mascarada do
Ocidente ou das forças culturais dominantes. Isso sem dúvida ocorre em muitos casos. Mas
importa lembrar que, privados de critérios universalistas ficamos de mãos atadas para tomar
posição, para julgar situações de opressão ou horror concretos, como é o caso da iraniana Sakineh,
acima mencionado. Que posição tomar diante de ditaduras brutais que desprezam os direitos
humanos mais elementares? Denunciar essas violações é simplesmente fazer o jogo do
imperialismo ocidental, que inventou o código dos direitos humanos?
Outra questão. Ou melhor, falo agora de uma evidência. Todos nós, seres humanos,
compartilhamos certas características fundamentais, não obstante a diversidade de costumes e
valores culturais que nos separam. Nosso aparelho biológico, nossas emoções fundamentais,
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As ponderações finais desta aula constituem antes pontos necessários de reflexão e debate do que
verdades objetivamente sustentáveis. Como antes observei, estas questões da cultura são objeto
de debates acalorados e polêmicas aparentemente insolúveis. Sugiro para quem queira apreciar
mais amplamente estas questões dois livros muito importantes de Sérgio Paulo Rouanet. Sua
abordagem é apaixonadamente universalista e portanto seu tom é às vezes muito polêmico. Mas a
leitura dos dois livros que abaixo indico é muito proveitosa, seja você um adepto da perspectiva
universalista, seja relativista.
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diferentes e até antagônicos não se realizou de forma harmônica. Essa é a representação que
correntemente percebemos na nossa tradição conservadora, sobretudo nas representações oficiais
da cultura brasileira. Bastaria lembrarmos as imagens e sons difundidos triunfantemente pela mídia
durante o carnaval, expressão suprema dessa nossa cultura híbrida, multicultural, como reza o
slogan publicitário oficial, e tão ruidosamente festeira.
O processo de caldeamento e mistura do qual resultou a cultura brasileira foi muito mais complexo
do que nos faz crer a ideologia oficial do Brasil. Ele é resultado da colonização imposta por uma
minoria de origem portuguesa inicialmente ao elemento indígena, habitante primitivo do que viria a
tornar-se o Brasil. Num momento posterior ele inclui o africano trazido como escravo para formar a
força de trabalho que construiu a nossa sociedade. Portanto, o processo de formação da nossa
cultura nada teve de harmônico, nada de pacificamente integrador. Por outro lado, ele foi ainda
mais complexo porque de fato concorreu para aproximar e integrar esses grupos antagônicos
através do intercurso sexual, dominante na relação entre o elemento europeu e o indígena, depois
entre o europeu e o africano. Daí resultou a extraordinária diversidade mestiça do nosso povo.
Mais que um processo de simples mestiçagem racial, nossa mestiçagem foi também cultural, já
que integrou as três matrizes formadoras em processos sociais complexos que envolvem religião,
linguagem, culinária, festas e muitas outras expressões humanas compreendidas pela cultura. O
fato é que essa interação complexa e profunda entre o índio, o português e o africano formou as
bases do que hoje é a cultura brasileira. Bem mais tarde, sobretudo a partir de fins do século 19,
grupos culturais de outras procedências somaram-se à nossa cultura. É o caso do imigrante
italiano, do japonês, do sirio-libanês, do alemão etc. No entanto, além de se concentrarem no Sul
do Brasil, chegaram a um país cuja cultura básica estava já bem consolidada. Sendo assim,
ingressaram na nova cultura muito mais integrando-se a ela do que modificando-a.
Nas páginas de Casa-Grande & Senzala, obra consagrada como a mais importante sobre a
formação da nossa cultura, Gilberto Freyre descreve e interpreta o processo de choque e
integração entre as três matrizes formadoras do Brasil. Ele demonstra, por exemplo, como as
relações de antagonismo econômico e social foram contrabalançadas pelas relações sexuais que se
estabeleceram entre os grupos. Dada a sua condição de povo dividido entre dois continentes, o
português trouxe para o Brasil uma experiência de mestiçagem já bem sedimentada que se
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ampliou muito mais ao contato com o indígena. Mais exatamente, com a índia. Mais tarde a
mestiçagem se aprofunda ainda mais com a chegada dos diferentes grupos de origem africana.
Gilberto Freyre estuda não apenas esses processos de acasalamento, mas também suas
consequências socioculturais.
Também Darcy Ribeiro, assim como muitos outros estudiosos, escreveu um livro importante sobre
o assunto que nesta aula nos ocupa. Refiro-me a O Povo Brasileiro. Existe no mercado um ótimo
documentário homônimo, dividido em dez capítulos e baseado no livro. Dirigido e idealizado por Isa
Grinspum Ferraz, constitui fonte muito importante para o estudo da formação da cultura brasileira.
Além do texto, fornecido pelo próprio autor e por outras fontes fundamentais citadas no
documentário, o filme é plasticamente muito bonito e enriquece através dos meios visuais a
percepção e a diversidade das nossas matrizes formadoras.
O documentário ilustra muito bem o que antes estudamos como o conceito sócio-antropológico da
cultura. Observando as imagens que retratam a cultura indígena, percebemos não somente sua
riqueza, mas também sua autossuficiência. Dizendo melhor, a cultura indígena, fruto das
necessidades decorrentes da relação que o índio estabeleceu com o ambiente em que vivia,
compreende todos os aspectos primários e complexos observáveis em qualquer cultura. Além de
prover seus meios de subsistência através da caça, da pesca, da domesticação de plantas adotadas
para fins nutritivos, como é o caso da mandioca, ele criou no ambiente da floresta, nos trópicos de
difícil sobrevivência, todos os meios necessários à existência de um grupo humano.
Quando aqui aporta, o português, limitado por sua visão etnocêntrica, como de resto ocorre em
toda cultura, já antes observamos este ponto na aula sobre etnocentrismo, foi incapaz de
reconhecer a riqueza e autonomia da cultura com a qual entrou em contato. Sendo assim, impôs
ao índio os valores e práticas de sua cultura. A catequese imposta pelos jesuítas ao elemento
indígena constitui talvez o melhor exemplo do contato entre culturas que resulta em choque e
imposição. O que ocorreu, de fato, foi um verdadeiro processo de etnocídio, isto é, um processo de
destruição das bases culturais do indígena pela imposição da cultura dominante, a portuguesa.
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O português viu no índio, antes de tudo, um objeto de exploração econômica, já que sua ambição
ao colonizar os trópicos era acumular riqueza. Daí a imposição do trabalho forçado ao índio. Como
este resistiu tenazmente à escravidão, o português recorreu por fim ao africano, que aqui chegou
já escravizado para garantir a reprodução da força de trabalho e da riqueza acumulada pelo
português dominador.
Apesar da sua condição de escravo, o elemento africano foi tão decisivo na nossa formação cultural
que Gilberto Freyre a ele se refere em Casa-Grande & Senzala como um autêntico agente
civilizador do Brasil. De fato, é extraordinária a forma como o elemento negro marcou de forma tão
profunda, tão indelével, uma cultura na qual ingressou como escravo, sofrendo, portanto, todos os
horrores da escravidão durante séculos. Sua contribuição é nitidamente reconhecível em todos os
aspectos significativos da nossa cultura.
Apesar da sua condição subordinada, mesmo depois da abolição formal da escravidão, já que a
abolição foi na verdade mais formal do que real, o negro formou e transformou a composição da
nossa cultura através do trabalho, dos hábitos alimentares, das práticas religiosas, da linguagem,
da sua espantosa energia de vida tão patente nas festas, jogos, nas expressões dionisíacas e
mágicas de sua cultura.
Como antes observei, o processo de caldeamento das nossas matrizes culturais foi complexo e
original. Através de meios tanto violentos quanto integradores, os grupos nele envolvidos criaram
um país e uma cultura de características singulares. Um exemplo que ressalta nessa singularidade
é o que diz respeito à nossa mestiçagem e à forma como se processam nossas relações raciais.
Diferentemente dos Estados Unidos, onde as relações entre brancos e negros foi marcada pela
segregação racial e linhas de separação bem nítidas, aqui no Brasil a escravidão misturou os polos
antagônicos. Há uma expressão muito feliz que sintetiza a diferença entre Brasil e Estados Unidos
com relação a esse problema. Enquanto eles, os americanos, são iguais, mas separados, nós
somos desiguais, mas juntos. Explicando melhor essa distinção, lá os americanos criaram leis que
asseguram a igualdade legal, mas mantém separados os brancos e os negros. Aqui não fomos
capazes de instituir a igualdade de fato perante a lei, mas vivemos juntos, misturamos de muitos
modos as nossas diferenças e antagonismos sociais.
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Concluiria frisando que a forma como criamos meios culturais de expressão da nossa mestiçagem
tem muito de positivo. Mas importa prevenir, mais uma vez, contra a representação integradora da
nossa mistura na visão oficial ou dominante no Brasil. Ela nos representa como um povo portador
de uma cultura mestiça ou híbrida cuja virtude maior reside na integração harmoniosa da
nacionalidade. Essa imagem é difundida principalmente pela mídia e a propaganda oficial. Como
acima salientei, ela é bem visível durante nossas grandes festas, notadamente no carnaval, na
música e no futebol. Mas essa imagem idealizadora do país contém um avesso sombrio e violento
suprimido pelos meios de comunicação de massa. Ela suprime as brutais condições de exploração
do trabalho no Brasil, ainda herdeiras do nosso passado escravista. Ela suprime nossas formas
dissimuladas de racismo e outras formas de opressão incompatíveis com um regime
autenticamente democrático.
Importa ter em mente essa face dupla da nossa cultura, dividida entre a integração e o conflito
cultural, para evitarmos uma visão parcial e idealizada da nossa cultura. Precisamos assimilar essa
compreensão mais realista e complexa da cultura brasileira para, de um lado, melhor valorizarmos
o que temos de bom, o que merece ser louvado e preservado; de outro lado, lutarmos para
modificar condições de opressão e desigualdade que continuam mantendo o Brasil numa posição
incompatível com uma sociedade verdadeiramente democrática, incompatível ainda com um país
cuja economia passou a figurar entre as dez maiores do mundo. Portanto, nosso problema maior já
não é o do subdesenvolvimento econômico que nos castigou por tanto tempo, mas o de uma mais
justa distribuição da riqueza, o problema de uma autêntica democracia econômica e social.
Enquanto não realizarmos esse ideal, continuaremos longe de ter motivos realistas para
celebrarmos o país que somos.
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Embora praticamente inseparáveis durante a fase inicial do modernismo, também conhecida como
a fase heroica do movimento, Mário e Oswald eram personalidades muito diferentes, embora não
faltasse quem os confundisse até como parentes. Ora, as diferenças entre ambos eram nítidas até
do ponto de vista físico. Mais do que poetas e escritores literários, como são convencionalmente
identificados, ambos tiveram participação decisiva na renovação das artes e da cultura. Questões
como as dos estudos de interpretação da nossa formação histórico-cultural e da nossa identidade,
de que mais adiante cuidaremos, ocupam lugar de relevo na obra de ambos.
Importa deixar claro, visando melhor justificar o conceito de modernismo que aqui proponho, que a
própria poesia que ambos realizaram traduz um esforço de compreensão da nossa formação como
uma cultura singular, assim como uma tentativa de definir a nossa identidade de povo colonizado
e dividido entre a Europa e nossa herança indígena e africana. Livros como Paulicéia Desvairada
(1922), marco inaugural da poesia moderna brasileira, e Clã do Jabuti (1927), de Mário de
Andrade, e Pau-Brasil (1925), de Oswald de Andrade, renovaram a poesia brasileira tanto do
ponto de vista formal quanto temático. Atentando em particular para este, o ponto de vista
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temático das obras, notamos a transparente preocupação de refletir sobre as nossas características
culturais a partir das origens da nossa formação. É assim que Oswald de Andrade retoma os
historiadores e cronistas coloniais para compor seu livro acima indicado. Bastaria correr os olhos
pela composição deste livro, Pau-Brasil, especialmente as seções intituladas História do Brasil e
Poemas da colonização.
Dentro da perspectiva acima indicada, a obra de ambos alcança seu ponto culminante nos anos
1920 em Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e no “Manifesto Antropófago” (1928), de
Oswald de Andrade, precedido pelo “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” (1924). Nestas obras ambos
traduzem sua concepção nacionalista do modernismo, que na sua fase inicial caracterizou-se por
seu empenho internacionalista sob a influência direta das vanguardas europeias.
O fato acima descrito ilustra uma característica estrutural da nossa formação cultural, assim como
da nossa identidade. Como todo povo de largo passado colonial, dividido entre a Europa e o país
novo, fruto do encontro e entrechoque entre a Europa e a América, entre a cultural europeia, a
indígena e a africana, somos ao mesmo tempo europeus, indígenas, africanos e outras misturas.
Somos acima de tudo isso: mestiços, povo formado a partir da mistura de múltiplos elementos que
se compuseram numa identidade nova, brasileira, a partir de complexos processos de aproximação
e conflito, dominação e mistura.
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O problema é que nossas elites, alienadas da sua própria cultura e do seu próprio povo, eram
incapazes de se espelharem na realidade concreta do seu próprio país, na realidade baseada nas
características acima indicadas. Daí a situação irônica acima descrita: elas precisam apresentar o
Brasil ao estrangeiro, a um membro da elite intelectual europeia, para afinal se darem conta do
Brasil. Pois os aspectos do Brasil que fascinaram Blaise Cendrars eram exatamente aqueles que
nos diferenciam da Europa, aqueles que temos de próprio e que nossas elites reprimiam na sua
postiça identidade europeia. Noutras palavras, o que fascinava Blaise Cendrars, assim como
acontece com os estrangeiros que no geral nos visitam, é o que temos de diferenciadamente
brasileiro: as paisagens históricas, o carnaval, nossas expressões artísticas, os costumes típicos do
nosso povo e das nossas regiões diferenciadas por circunstâncias de vida e formação econômica e
social etc.
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práticas canibalistas dos indígenas brasileiros para enfrentar a questão da nossa dependência
cultural da Europa. Assim, ele converte o ato de devoração canibal do inimigo colonizador numa
metáfora de combate ideológico que nem se confunde com o nacionalismo que rejeita a cultura
estrangeira fechando fronteiras contra o mundo, o que é de resto impossível, nem adere
acriticamente a qualquer influência externa. Sua atitude antropofágica consiste, noutras palavras,
em devorar tudo o que vem do estrangeiro com o espírito do canibal que comia o inimigo para se
fortalecer. Esclarecendo melhor o sentido da metáfora, devemos devorar e digerir todas as
influências estrangeiras que sirvam para fortalecer nossa cultura.
Essa estratégia de luta contra a dependência cultural foi retomada nos anos 1960 por movimentos
de vanguarda como o concretismo, o tropicalismo e o Teatro Oficina. Caetano Veloso e Gilberto Gil,
aliados aos concretistas, sobretudo a Augusto de Campos, retomaram as ideais de Oswald de
Andrade para criar uma música brasileira contrária à ideologia nacionalista dominante na MPB
(Música Popular Brasileira), corrente dominante na era dos festivais de música e dos movimentos
de oposição à ditadura militar em meados dos anos 1960. Já nesse momento, quando a televisão
começava a dominar o sistema de comunicação cultural brasileiro, eles adquiriram a consciência da
impossibilidade de um nacionalismo fechado contra o fluxo da cultura de massa e das influências
da cultura internacional, sobretudo a proveniente dos Estados Unidos. Por isso, seguindo o
exemplo proposto por Oswald de Andrade, eles se entregam à devoração crítica do pop
internacional mesclando sem preconceito o rock e o baião, o berimbau e a guitarra, o rural e o
urbano, o luxo e lixo da cultura de massa brasileira. Gilberto Gil condensou numa frase precisa a
estratégia antropofágica adotada por ele, Caetano Veloso e os seguidores do tropicalismo:
“Existem muitos modos de fazer música; eu prefiro todos”.
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decisivos de Paulo Duarte, articulador político das ações culturais do Departamento, e Oneyda
Alvarenga, discípula dileta de Mário e apaixonada estudiosa da música.
Ainda nesse decênio, o dos anos 1930, Mário de Andrade dá forma, atendendo a um pedido de
Augusto Meyer, seu chefe no Instituto Nacional do Livro durante a gestão de Gustavo Capanema,
ministro da Educação e da Saúde, ao anteprojeto da enciclopédia brasileira. Infelizmente o
anteprojeto viveu e morreu como tal. Aliás, sobreviveu, já que foi afinal publicado em 1993. Esta
obra irrealizada ilustra muito bem a amplitude dos interesses culturais de Mário de Andrade, que
são no fundo os interesses e ambições do movimento cultural que ele, mais que qualquer
modernista, melhor encarnou.
Outra evidência justificadora do conceito de modernismo que neste texto proponho é observável na
trajetória de outros modernistas de grande importância infelizmente omitidos num mero resumo
restrito à demonstração de um conceito. Tal qual Mário de Andrade, modernistas como Sérgio
Buarque de Holanda e os já citados Sérgio Milliet, Paulo Prado e Rubens Borba de Morais partiram
da literatura e da crítica literária para horizontes intelectuais mais amplos. Sérgio Buarque, ainda
muito jovem, fundou e coeditou o periódico Estética, um dos grandes veículos de difusão e debate
do ideário modernista. Lançado logo em seguida ao esgotamento de Klaxon, periódico inaugural e
oficial do movimento, Estética torna-se um dos focos do debate cultural do momento, anos 1924 e
1925. Na década seguinte lança, em 1936, seu livro de maior repercussão até o presente, embora
não fosse o seu preferido. Refiro-me a Raízes do Brasil, que será objeto de um dos capítulos
deste curso. Daí Sérgio Buarque deriva para as pesquisas e estudos históricos dos quais resultarão
suas obras mais sólidas e permanentes na historiografia brasileira: Monções (1945), Caminhos e
Fronteiras (1957) e Visão do Paraíso (1959).
Quanto a Sérgio Milliet, embora antes de tudo um crítico da literatura e das artes, distinguiu-se
como estudioso da sociologia e da história, como o comprova seu livro Roteiro do Café (1938).
Sua obra de crítico mais importante está reunida nos dez volumes do seu Diário Crítico. Paulo
Prado, antes mencionado como patrono do modernismo, dedicou-se aos estudos de história
regional e lançou em 1928 um ensaio de interpretação do Brasil que é ainda objeto de muita
atenção crítica dos estudiosos: Retrato do Brasil. Por fim, algumas palavras relativas a Rubens
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Borba de Morais. Modernista da primeira hora, assim como todos aqui citados, escreveu um livro
de crítica de ideias muito esclarecedor sobre as características iniciais do modernismo: Domingo
dos Séculos. Nos anos 1930, além de colaborador decisivo de Mário de Andrade no Departamento
de Cultura, distinguiu-se como especialista em biblioteconomia.
A história das relações entre o modernismo de São Paulo e o regionalismo de Recife parece o
romance familiar de dois irmãos desunidos brigando por heranças e feitos que, quando
isentamente avaliados, são bens comumente amealhados, refeitos e transmitidos a seus herdeiros,
que somos todos nós. Para ser mais fiel à analogia, a briga, ou os rompantes de desunião, são
antes de tudo do irmão pobre, isto é, do regionalismo nordestino. O fato é sociologicamente
compreensível. Como São Paulo tornou-se, à altura em que o modernismo lá eclodiu, a força
hegemônica do país, é compreensível que não conceda importância demasiada ao irmão pobre.
Aliás, o fato mesmo de o modernismo eclodir em São Paulo com as características que marcaram
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O fato é que só recentemente se afirma uma corrente nos estudos de crítica literária e cultural
tendente a reconhecer e sobretudo demonstrar as afinidades que atam esses irmãos desavindos.
O crítico pioneiro dessa corrente foi provavelmente José Aderaldo Castelo, como se pode verificar
lendo seu livro José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo (1961). Aliás, antes dele
Sérgio Buarque de Holanda fez o que pôde, com exemplar isenção crítica, para conciliar os irmãos
desunidos quando escreveu em 1951 uma série de três artigos sob o título “Fluxo e Refluxo”.
Esquecidos durante muito tempo, podem agora ser consultados pelo leitor na obra O Espírito e a
Letra, composta por dois volumes que reúnem seus estudos de crítica literária dispersos durante
muito tempo em periódicos inacessíveis ao público.
Sérgio Buarque põe o dedo na ferida, ou no motivo da briga, quando ressalta que o modernismo,
embora de início universalista e até cosmopolita, foi também nacionalista e regionalista. Ele faz
essa observação, comprovada pela história do movimento, visando corrigir o ponto de vista de
Gilberto Freyre, que em 1941 escreveu uma introdução polêmica para seu livro Região e
Tradição opondo o regionalismo de Recife, por ele liderado, ao modernismo de São Paulo. O eixo
do conflito, ou o ponto de separação entre os dois movimentos, residiria no caráter
internacionalista e até europeizante do movimento paulista. No lado contrário, Gilberto Freyre
argumenta que se colocaria o regionalismo de Recife, que na sua inspiração regionalista procurou
revalorizar a cultura brasileira a partir de suas fontes regionais e tradicionais.
Também José Lins do Rego, o discípulo mais fiel e arrebatado de Gilberto Freyre, assinou o
prefácio do já citado Região e Tradição em tom de exaltada devoção à liderança intelectual
exercida por Gilberto Freyre. Indo além disso, engrossou a briga aberta contra os paulistas
atacando o modernismo e reiterando em tom polêmico o pioneirismo do nacionalismo postulado
por Freyre a partir da perspectiva regionalista que adota no livro e no conjunto da sua obra. A
valorização das fontes regionais da cultura brasileira levou Gilberto Freyre e seus seguidores a
reivindicarem para o Nordeste uma posição de originalidade e fonte de valores nacionais que volta
e meia são repostos em termos polêmicos.
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Sem a intenção de resolver essa briga regional, que com certeza vai além das disputas atiçadas
por Gilberto Freyre e José Lins do Rego, assim como por outros intelectuais e artistas nordestinos,
um dado fundamental para compreendermos de modo criticamente isento essas disputas sem fim
deriva com certeza das relações de rivalidade e ressentimento nutridas pelo irmão pobre contra a
dominação e os preconceitos provenientes do irmão rico. Como este tem mais poder, a
historiografia oficial do modernismo, produzida sobretudo em São Paulo, tendeu a subordinar o
regionalismo ao modernismo tratando muitas vezes Gilberto Freyre, José Lins do Rego e outros
grandes nomes da cultura nordestina como capítulos da história geral do modernismo, quando não
meros anexos. Nesse sentido, é compreensível o ressentimento de Gilberto Freyre e de muitos dos
seus seguidores. Mais que compreensível, é necessário salientar que a obra de Freyre, assim como
dos grandes representantes do regionalismo nordestino, se fez de forma independente do
modernismo paulista.
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sediado no Recife. Se já nos anos de 1920 Gilberto se ressentia do modernismo, propondo a partir
de Recife um movimento de renovação cultural independente, seu espírito de independência
certamente acentuou-se depois da publicação de Casa-Grande & Senzala, que logo o consagrou
como o mais importante intérprete da cultura brasileira. Em 1941, quando lança Região e
Tradição, como acima observei, desfecha com a ajuda de José Lins do Rego uma polêmica contra
o modernismo que durante muito tempo sobreviveu e alimentou muito mal-entendido. É a tal briga
entre irmãos a que aludi na abertura deste texto.
Tentando pôr ordem na casa, se possível reconciliando de vez os irmãos brigados, conviria
destacar que modernismo e regionalismo têm bem mais em comum do que tendiam a admitir
nossos regionalistas ressentidos. Personalizando a questão, pois a briga foi com frequência
encarnada nas figuras dominantes dos dois movimentos, Mário de Andrade e Gilberto Freyre, Mário
e Gilberto seguiram linhas muito convergentes na obra que produziram e nos caminhos que
trilharam visando interpretar e valorizar a cultura brasileira. Corrigindo a crítica enviesada de
Gilberto Freyre, que negou caráter nacionalista e regionalista ao modernismo com o propósito de
reivindicar exclusivamente para si próprio e para o regionalismo que liderou os méritos das
realizações culturais do período, é preciso reconhecer que o modernismo concorreu de forma
decisiva para a valorização da cultura nacional, para o estudo e a defesa da identidade cultural
brasileira, para os estudos dedicados à exploração e esclarecimento de todas essas questões.
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Em suma, talvez o melhor modo de conciliar os dois movimentos, ou indicar suas afinidades
substanciais, consista em reuni-los à sombra do designativo neorrealismo, termo empregado por
José Aderaldo Castelo no seu livro pioneiro acima citado para traduzir o fato de que ambos
constituíram uma atualização do espírito do movimento romântico. Este, como sabemos, tem como
características dominantes traços comuns ao modernismo e ao regionalismo: o espírito
nacionalista, a valorização da cultura e da identidade nacionais, a acentuação dos valores
particulares e subjetivos.
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/brasileiros-de-sao-paulo-e-
de.html
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/nacional-e-universal.html
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tempo que nos separa da irrupção desses movimentos na cultura brasileira, a questão da
identidade se mantém ainda muito viva entre nós. Um fato que bem ilustra a evidência desse
fenômeno é a instituição de uma secretaria de governo exclusivamente dedicada à administração
política da questão, a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. De imediato, isso parece
contradizer a crença de que somos dotados de uma cultura forte e integrada. Afinal, se somos
assim, por que precisaríamos de uma secretaria empenhada em defender e promover nossa
identidade cultural?
Até onde sei, essa secretaria é uma instituição singularmente brasileira. Ela parece denotar que
somos ainda um povo inseguro acerca da sua identidade cultural. Outra evidência dessa
insegurança é demonstrável na frequência com que esse assunto vem a público, não raro em tom
polêmico. Um dos que mais enfática e polemicamente se pronunciam sobre ele é o escritor Ariano
Suassuna, que tem sempre se conduzido na esfera pública como um defensor intransigente da
nossa identidade e do que no seu entender seria a autêntica cultura brasileira, baseada nas
tradições enraizadas no catolicismo ibérico conservado pela história do sertanejo nordestino. Com
seu dom de criar frases polêmicas, ele há pouco afirmou numa entrevista que não troca seu oxente
pelo okei de ninguém.
Mas voltemos no tempo para melhor caracterizar o problema da identidade cultural brasileira.
Desde o século XIX as ciências sociais aqui produzidas imprimiram relevo ao problema da
identidade cultural. Também a literatura, conviria acrescentar. Basta que se pense na ênfase que
nossos românticos conferiram à questão, em particular Gonçalves Dias e José de Alencar. Como
antes observei, os modernistas e regionalistas retomam a questão nas décadas de 1920 e 1930.
Mas ela esteve sempre presente nos estudos e nas reflexões de nossos principais escritores.
Menciono alguns com a intenção de sugerir a persistência do problema da identidade cultural no
desenvolvimento da nossa cultura: Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto,
Nina Rodrigues, Manuel Bonfim. É curioso observar que nosso escritor mais universal e importante,
Machado de Assis, passou ao largo das obsessões e polêmicas e teorias relativas ao nacionalismo e
à identidade cultural.
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Completando neste parágrafo a síntese do percurso histórico acima esboçado, a questão da nossa
identidade cultural prolonga-se muito além das décadas de 1920 e 1930, que assinalam o auge
dos movimentos modernista e regionalista. Ela é retomada durante os anos 1950, marcados pela
euforia do nacionalismo desenvolvimentista orquestrado pelo governo Juscelino Kubitschek e
adentra pelos anos 1960. Mesmo depois do golpe militar de 1964 e da associação flagrante do
regime militar com o capitalismo estrangeiro, que promoveu a modernização autoritária atrelada à
globalização econômica e cultural acelerada a partir da década de 1970, a angústia da identidade
esteve no centro da ideologia nacional popular característica dos movimentos políticos e culturais,
perdeu força durante as décadas de 1970 e 1980 e hoje aparenta estar diluída no clima da
globalização dominante no país.
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As políticas de imigração adotadas por São Paulo a partir de fins do século XIX, as teoria do
branqueamento da população brasileira e a política de reforma urbana do Rio de Janeiro, inspirada
no modelo do barão de Haussemann para a reforma de Paris, são evidências desse desejo de ser
europeu nos trópicos. O livro de Jeffrey Needell, Belle Époque Tropical, documenta e analisa
muito bem essa pretensão da elite brasileira, sua fantasia de ser europeia. Como viver essa ilusão
sem reprimir ou marginalizar os fortes elementos diferenciadores da nossa cultura, precisamente
aqueles que nos distinguem da Europa e resultam do nosso processo de miscigenação racial e
cultural envolvendo o indígena, o português e o africano? Como indiquei na aula sobre o conceito e
os aspectos culturais do modernismo, a passagem do poeta suíço-francês Blaise Cendrars pelos
círculos modernistas brasileiros ilustra muito bem essa questão.
Foi nesse sentido que os modernistas e regionalistas concorreram de forma decisiva para alterar de
forma efetiva a representação da nossa identidade cultural ou a representação da cultura
brasileira. Assim como Mário de Andrade converte nas páginas de Macunaíma valores culturais
depreciados pela nossa elite em valores positivos, antes de tudo nossa miscigenação racial e
cultural, Gilberto Freyre procede de forma semelhante ao compor num grande e poderoso ensaio o
processo da nossa formação cultural. Através da apreciação positiva da nossa cultura mestiça, que
desde suas origens integrou valores conflituosos ou antagônicos provenientes das diversas
matrizes culturais que forjaram a cultura brasileira, ele pintou um quadro da cultura brasileira e do
nosso povo tão admirável e compreensivo que levou o brasileiro a reconhecer no quadro sua
própria imagem. Assim fazendo, Gilberto Freyre contribuiu de forma decisiva para reconciliar o
brasileiro com sua própria cultura, com sua própria identidade.
Notem que até aqui não me arrisquei a propor um conceito de identidade cultural. O motivo dessa
omissão é claro: não acredito que exista uma identidade cultural objetivamente dada, uma
identidade que possamos reconhecer no universo objetivo das relações culturais. Penso que a
identidade é uma construção ideal, um recorte seletivo feito pelos teóricos da identidade a partir da
representação ideológica que propõem sobre o que seja a identidade cultural de um povo. Mário de
Andrade, por exemplo afirma em certos contextos de sua obra (ver por exemplo o Ensaio sobre a
música brasileira) que ela já existe como realidade inconsciente expressa na criação popular – na
música popular, por exemplo. Nesse sentido, o papel que caberia a um intelectual como ele seria
organizar essa identidade inconsciente, dar-lhe forma estética e ideológica através da criação
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intelectual cuja função maior seria integrar a cultura popular à cultura da elite. Noutros contextos,
porém, ele se contradiz. Isso ocorreu quando se empenhou numa verdadeira cruzada proselitista
destinada a promover a valorização e o reconhecimento da cultura e da identidade brasileira. Isso
é evidente na passagem que abaixo transcrevo de uma carta que escreveu para Carlos Drummond
de Andrade em novembro de 1924:
A lição do amigo, p. 5
A citação acima contradiz claramente o que Mário afirma no Ensaio sobre a música brasileira e
noutros pontos da sua obra. Se o Brasil tem já uma identidade detectável na inconsciência cultural
do povo, nas formas espontâneas e tradicionais da sua cultura, por que então ele afirma para
Drummond que o Brasil não tem ainda uma alma e por isso precisamos lutar para dar uma alma ao
Brasil e por fim integrá-lo no concerto das grandes nações do mundo, como ele também afirmou?
Do mesmo modo, se temos hoje uma cultura e uma identidade consolidadas que nos inspiram
confiança e orgulho, por que então precisamos instituir uma secretaria da identidade cultural, um
órgão governamental para trabalhar pela afirmação da nossa identidade e da nossa cultura?
O fato acima parece antes de tudo traduzir a persistência da nossa angústia de identidade. O
historiador Evaldo Cabral de Melo observou com razão que esse problema da identidade, da
necessidade de afirmação de uma cultura nacional, é um problema típico de países de passado
colonial, como é o caso do Brasil, incapazes de realizar integralmente seu ingresso na
modernidade. Seria também o caso de países como a Rússia, que ficaram na periferia da
modernidade. Como Gilberto Freyre ressaltou, são fortes as afinidades culturais entre a Rússia do
século XIX e o Brasil da época em que ele escreveu seus livros fundamentais sobre a nossa história
cultural.
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A observação de Evaldo Cabral de Melo parece-me abrir uma trilha fecunda para melhor
compreendermos a persistência da questão relativa à identidade cultural do Brasil. No meu
entender, ela não foi nem poderia ser resolvida pelos nossos teóricos da identidade, não
importando a grandeza da obra que produziram visando interpretar e resolver nossos impasses
culturais. De Sílvio Romero a Darcy Ribeiro, passando pelos modernistas, regionalistas,
desenvolvimentistas, nacional-populares e nacionalistas em geral, dispomos de uma grande e
admirável tradição de estudos e interpretações correntemente alinhada sob o rótulo do
pensamento social brasileiro. Muitos desses estudos importam, além dos seus valores teórico-
interpretativos, como indicação de medidas de ação prática para a modificação da nossa realidade
sociocultural. Mas o nó da questão, segundo entendo, radica na necessidade da transformação
estrutural da nossa sociedade. Quero dizer, enquanto mantivermos grande parte dos brasileiros,
como é fato, à margem das conquistas da modernidade, será ilusório acreditar numa identidade
que não esteja sempre sonhando ser o outro, sobretudo o outro simbolizado na cultura norte-
americana. Trocando em miúdos a questão do ingresso do conjunto da população brasileira no
horizonte da modernidade, que no Brasil é ainda muito parcial ou restrita, somente ingressaremos
de fato na modernidade no dia em que o brasileiro em geral tiver acesso efetivo à democracia
social e cultural. Isso quer dizer acesso à habitação, educação, saúde, justiça, segurança social e
transporte público. Em suma, qualidade de vida substantiva, que não é bem comprável nas vitrines
de shopping center, como nos enganam os publicitários cuja função principal é vender ao preço de
qualquer mentira.
Visando acrescentar alguns indicadores objetivos para uma melhor compreensão da identidade
cultural, concluiria acrescentando que o núcleo duro da identidade cultural, valho-me de expressão
escrita por Teixeira Coelho no seu Dicionário crítico de política cultural, é composto pelos
traços culturais mais fortes e constantes na história do nosso povo. Eles se manifestam nas
tradições orais presentes na língua, nas tradições religiosas, nos mitos e narrativas populares, nas
tradições artísticas. As tradições religiosas compreendem as formas de crenças, mitos e ritos
coletivos. Caberia ainda acrescentar a essas manifestações sagradas as formas da cultura profana:
carnaval, tradições folclóricas, os esportes, sobretudo o futebol, as festas e as manifestações
artísticas.
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É preciso, no entanto, também considerar que a cultura geral do Brasil compreende uma grande
diversidade de expressões ligadas às diferentes regiões, classes sociais e múltiplos grupos
formadores do conjunto da nossa nacionalidade. A isso seria ainda preciso acrescentar, na
realidade do mundo globalizado em que vivemos, valores e comportamentos culturais
compartilhados por múltiplas nacionalidades culturais. Esse fato cada vez mais poderoso no mundo
em que vivemos – o fato relativo à cultura globalizada – complica a existência da identidade
cultural baseada na noção de núcleo duro. Enquanto o núcleo duro pode ser compreendido como o
conjunto de valores e práticas culturais comum à maioria do povo brasileiro, a dimensão relativa à
cultura globalizada, típica da sociedade contemporânea, segmenta ou fraciona as características
culturais de acordo com a variação dos grupos baseados nas diferenças de região, classe e
vinculação à cultura globalizada que concorre visivelmente para mudar os padrões de identidade
nacional.
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Além disso, ainda hoje sofremos de problemas internos crônicos que tornam nossa inclusão na
modernidade muito peculiar ou problemática. Se de um lado já figuramos entre as dez economias
mais poderosas do mundo, de outro somos ainda um país dividido por extremos de desigualdade
social. Noutros termos, a grande concentração de riqueza continua impedindo a realização de uma
autêntica democracia moderna no Brasil. Isso é evidente na qualidade precária dos quesitos que
mais importam para definir uma democracia social moderna: habitação, educação, saúde,
segurança, transporte, além de um sistema legal ainda baseado em privilégios e desigualdades
incompatíveis com as características dos países nos quais procuramos nos espelhar.
Penso que todos esses fatores contribuem de forma decisiva para explicar nossa angústia de
identidade e nossa dependência cultural. Acredito que o estudo individual das obras incluídas no
programa da disciplina é fundamental para melhor compreendermos esses problemas. Resumindo,
precisamos ainda de reformas sociais profundas. Enquanto isso não acontecer, continuaremos
presos a essa angústia de identidade que continuamente repõe nos estudos sobre a nossa cultura
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Embora escrita inicialmente em 1926, como observei acima, Macunaíma somente foi publicada
em 1928. Lida ainda hoje como símbolo do brasileiro, a obra é bem mais complexa e portanto
encerra muitos outros significados. O próprio Mário contribuiu para validar essa leitura
estreitamente nacionalista. Ao mesmo tempo, como era típico de sua personalidade múltipla e
contraditória, cuidou também de desmentir essa leitura nacionalista ao ressaltar que o livro
simbolizava também o latino-americano, não apenas o brasileiro. Indo além, afirmou depois que
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Macunaíma era um símbolo do homem moderno. Seguindo essa orientação crítica, Gilda de Mello e
Souza concede prioridade a uma leitura universalista (leia-se antes de tudo europeia) num ensaio
que é provavelmente a melhor interpretação do livro: O tupi e o alaúde.
Macunaíma nasce no fundo da mata virgem (isto é, numa tribo amazônica) com características
físicas que já denotam o tema da miscigenação tão caro aos nossos nacionalistas. Ele é índio e ao
mesmo tempo negro. Mais tarde torna-se branco graças a um dos muitos expedientes de magia
que impregnam o livro. Utilizando fontes da mitologia indígena, além de uma enormidade de
documentos que traduzem a riqueza e variedade do nosso folclore e da nossa cultura popular,
Mário de Andrade se vale da magia como um dos princípios de composição da trama. Por isso a
narrativa foge aos padrões convencionais da lógica, já que é repleta de deslocamentos tanto
geográficos como temporais. Mário valeu-se muito desse recurso no livro para realizar um dos
ideais da sua concepção da cultura brasileira. O recurso ao qual me refiro é o da desregionalização
da narrativa. Noutras palavras, funde intencionalmente traços culturais das diferentes regiões
brasileiras com o propósito de integração numa unidade nacional.
A leitura nacionalista, reforçada em argumento do próprio Mário, chama nossa atenção para o
subtítulo do livro: o herói sem nenhum caráter. Como o próprio Mário explicou, o termo caráter
não deve ser lido no seu sentido restritamente moral, que é o mais corrente. Macunaíma não tem
caráter, segundo Mário, porque é privado de características culturais e psicológicas definidas ou
constantes. É por isso que a ação do livro tanto ressalta suas contradições ou ausência de lógica e
coerência psicológica. Exemplificando, Macunaíma é valente e covarde, mentiroso e sincero,
preguiçoso mas movido por uma vitalidade fascinante, um desejo irrefreável de vida e prazer. O
que importa antes de tudo reter, no caso, é a intenção com que Mário sintetiza nesses traços da
personagem o que lhe parecia simbólico da nossa carência de uma identidade cultural consistente e
estável.
A preguiça constitui outro traço saliente da obra. Macunaíma está sempre repisando esta frase: “ai,
que preguiça”, como um refrão que atravessa toda a narrativa. Esse traço relativo à preguiça foi
muito repetido através da nossa história como característico do brasileiro. Para ser mais preciso,
leia-se o brasileiro escravo, o negro que compreensivelmente fugia ao trabalho forçado sempre que
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possível. É compreensível que numa economia baseada no trabalho escravo o trabalhador use de
todos os meios e subterfúgios para escapar de um trabalho, ou pelo menos aliviá-lo, que é vivido
como castigo e punição. O próprio Mário, aliás, desmente esse mito. Embora tenha ironicamente
celebrado a preguiça (o primeiro artigo que publicou tinha como título: A divina preguiça),
trabalhou a vida inteira com um sentido de disciplina, método e tenacidade admiráveis.
Pontuando os extremos da nossa formação sociocultural, Macunaíma vai do fundo da mata virgem
para a cidade de São Paulo, centro do capitalismo brasileiro já fervilhante de imigrantes, fábricas,
aceleração do crescimento urbano e muitas outras características da nossa cultura moderna. O
livro de Mário é extraordinário nos efeitos estéticos e ideológicos que extrai desse antagonismo
observável entre o primitivo arrancado do fundo da cultura indígena para o polo mais avançado do
capitalismo brasileiro. O espanto e estranhamento do primitivo lançado no bojo da civilização
técnica constitui um dos momentos altos do livro.
Deixando o enredo de lado, chamaria a atenção do aluno para a linguagem de Macunaíma, que
deu margem a muita polêmica. A crítica negativa atacou com energia o artificialismo do estilo
adotado por Mário na composição da obra. Dentro desse grupo destacam-se Gilberto Freyre, José
Lins do Rego, Graciliano Ramos, diria todo o grupo de ficcionistas que representam a literatura
hegemônica na década de 1930. Mesmo leitores favoráveis à obra – como é o caso de Manuel
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Como toda obra de caráter experimental, típica daquele momento do modernismo brasileiro, assim
como dos movimentos de vanguarda que pipocaram na literatura do início do século 20,
Macunaíma exige bastante do leitor. Exige tanto devido a seus traços de linguagem e estilo, como
já acentuei, quanto à própria matéria recriada ficcionalmente por Mário de Andrade. Refiro-me
mais claramente às fontes utilizadas pelo autor. Já mencionei a obra de Koch-Grünberg, na qual
Mário descobriu Macunaíma e imensa documentação relativa às culturais tribais da Amazônia. A
esta fonte somam-se muitas outras eruditamente anotadas e comentadas por M. Cavalcanti
Proença num livro essencial para quem queira penetrar as entrelinhas da obra, sua impressionante
riqueza de elementos culturais expressos em mitos, lendas, ditos populares, frases feitas,
regionalismos e farta documentação etnográfica. O livro de M. Cavalcanti Proença é Roteiro de
Macunaíma. Além disso, Mário também aproveitou muito da obra dos cronistas e historiadores
coloniais do Brasil. Como pouco infelizmente conhecemos desse legado cultural, não é de
surpreender o estranhamento que um livro como Macunaíma causa de imediato ao leitor, mesmo
o leitor culto treinado na leitura da narrativa literária convencional.
O fato de ser ao mesmo tempo uma obra-prima indiscutível e um romance experimental (na
verdade, Mário optou por classificar sua narrativa como rapsódia, não romance), provocou o
surgimento de uma bibliografia crítica considerável. O leitor pode consultar essa bibliografia na
História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi. Também a edição crítica de
Macunaíma, coordenada por Telê Porto Ancora Lopez, contém rica documentação crítica.
Mencionaria ainda a adaptação cinematográfica da obra, dirigida por Joaquim Pedro de Andrade,
estrelando Grande Otelo e Paulo José interpretando respectivamente o Macunaíma negro e o
Macunaíma branco.
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A publicação de Casa-Grande & Senzala, em 1933, representou sem exagero uma revolução no
desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Antonio Candido ressaltou num célebre prefácio
escrito para Raízes do Brasil que o livro de Gilberto Freyre foi um dos três decisivos na formação
da sua geração. Esse juízo tornou-se tão consensual que hoje muitos estudiosos aludem à
apreciação de Antonio Candido para apontar as duas obras acima, acrescidas de Formação do
Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., como as três grandes obras clássicas do pensamento
social brasileiro. Darcy Ribeiro foi mais além. Escrevendo um outro prefácio, este para a edição
venezuelana do próprio livro de Gilberto Freyre, afirmou com todas as letras que Casa-Grande &
Senzala era a obra mais importante da cultura brasileira.
Inicio esta aula com o parágrafo acima para sugerir ao aluno a importância inegável que esta obra
passou a exercer na nossa história cultural desde o momento em que foi publicada. Gilberto Freyre
escreveu uma obra ainda hoje reconhecida como fundamental para se estudar e conhecer o Brasil,
sua formação cultural e suas características mais fortes. Ela mudou a maneira de o brasileiro,
sobretudo o brasileiro da elite, encarar a si próprio como brasileiro. Levando adiante e
consolidando tendências culturais inauguradas por alguns estudiosos isolados do passado, e mais
amplamente pelo modernismo, como observamos ao estudar este movimento e a contribuição dos
seus dois representantes mais significativos, Mário e Oswald de Andrade, Freyre inverteu a imagem
dominante no seu tempo, uma imagem ainda muito influenciada pela antropologia racista de
procedência europeia. Baseada em teorias de cunho determinista, tanto do ponto de vista
geográfico quanto racial, ela representava o Brasil como um país inviável ou incapaz de ingressar
na corrente da civilização ocidental.
Ao publicar Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre expõe evidências e argumentos que
invertem essa visão do Brasil. Antes de tudo, como ele próprio salienta no prefácio também célebre
escrito para a primeira edição do livro, sua obra baseia-se numa distinção fundamental entre raça
e cultura. Discípulo do grande antropólogo Franz Boas, de quem foi aluno nos EUA, Freyre reuniu
farta documentação, também inovadora dos estudos sociais no Brasil, para refutar as teses
racistas. Além disso, também dialoga com a tradição nacional tanto aproveitando lições de
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antecessores que convergem com suas teses, como é o caso da obra de Joaquim Nabuco, quanto
refutando contemporâneos como Oliveira Vianna e Paulo Prado, tendentes seja a adotar teses
racistas, seja a depreciar os valores culturais brasileiros.
Casa-Grande & Senzala constitui a primeira parte de uma obra mais ampla e ambiciosa
designada por Gilberto Freyre como uma “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil”.
A segunda parte, lançada, três anos mais tarde, intitula-se Sobrados & Mucambos. Enquanto a
primeira obra concentra-se na formação da nossa sociedade patriarcal durante o período colonial, a
segunda prende-se à decadência do patriarcalismo na contracorrente da nossa formação urbana. A
terceira parte, publicada bem mais tarde, 1959, sob o título Ordem e Progresso, concentra-se no
advento do Brasil republicano e na transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado.
O título da obra já indica sinteticamente muito do seu conteúdo e das teses sustentadas pelo seu
autor ao longo de mais de cinco centenas de páginas. Mais do que meros designativos de duas
formas de moradia ou habitação, a casa-grande e a senzala, na concepção de Freyre, condensam
todo um sistema social. Em primeiro lugar, elas constituem antagonismos sociais, já que a casa-
grande é a habitação do senhor de escravos, do patriarca e latifundiário todo-poderoso da nossa
sociedade colonial, enquanto a senzala é a moradia do escravo negro importado da África. Mas
esse antagonismo é abrandado – ou adoçado, como diz Freyre abusando da metáfora demasiado
integradora – pela miscigenação que marcou toda a nossa formação social. Importa salientar que a
miscigenação, nas palavras do próprio autor, não constituiu um fenômeno apenas físico ou
biológico. Ela foi também cultural. Suas causas ligam-se, em primeiro lugar, à experiência de
miscigenação vivida pelo português antes mesmo de vir colonizar o Brasil. Sua condição
bicontinental, espremida entre a Europa e a África, tornou-o adaptável à miscigenação com o árabe
e o judeu. A isso somou-se o fato de que, provindo de um país pequeno de população também
pequena para povoar a imensidão do nosso território, o português chega ao trópico antes de tudo
como um aventureiro sedento de riqueza fácil e gozo sensual. Como havia durante grande parte da
colonização escassez de mulher branca, ele facilmente se acasalou com a índia.
Essa foi a base da nossa miscigenação que se estendeu através dos tempos coloniais e hoje está
completamente consolidada na nossa formação cultural. Como o indígena resistiu ao trabalho
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forçado, necessário para que o português realizasse seu projeto de enriquecimento no trópico
através da monocultura exportadora, foi preciso importar o elemento africano, que chegou aqui já
escravizado e passou a constituir a força de trabalho da colônia e mais tarde do país independente.
A presença do negro na nossa cultura amplia o processo de miscigenação, além de enriquecer
nossa cultura em muitos aspectos.
Completando a explicação referente ao título do livro, Gilberto Freyre concentra seu estudo nas
relações entre o senhor da casa-grande e o escravo doméstico, diferenciado do escravo destinado
ao trabalho mais duro e castigante do eito. Essa, aliás, é uma das críticas feitas a Freyre, que
tenderia a generalizar relações entre senhor e escravo restritas ao ambiente da casa-grande. Mas
seria injusto afirmar que Freyre omite de sua obra os horrores da escravidão. Mesmo no ambiente
doméstico, onde descreve as relações entre o senhor branco e a negra escrava, o sinhozinho e o
moleque, a sinhazinha e a mucama, ele ressalta a violência e o sadismo impostos pelo dominador
ao dominado. Propondo uma explicação para a opressão imposta pela classe dominante ao povo
brasileiro, Freyre afirma que o sadismo da primeira e o masoquismo do segundo decorrem “[d]o
simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande
de engenho”. Esta é outra tese bastante criticada, mesmo por estudiosos que enaltecem a obra de
Freyre, como é o caso de Darcy Ribeiro e Elide Rugai Bastos.
Completando afinal a explicação de aspectos fundamentais da obra a partir do seu próprio título,
importa observar a conjunção aditiva “e” que enlaça os dois substantivos à primeira vista
antagônicos. Já antes acentuei as forças socioculturais que concorreram para aproximá-los.
Adianto agora que essa concepção supõe uma interpretação integradora das três matrizes
formadoras da cultura brasileira já estudadas na aula cujo título é A Cultura Brasileira e Suas
Matrizes. Embora reconheça os aspectos violentos e corruptores da escravidão, Gilberto Freyre
adota uma concepção sem dúvida integradora da cultura brasileira. Ele é sem dúvida a grande
fonte de uma representação hoje oficializada que representa nossa cultura como integradora de
todos os seus componentes, uma cultura que confunde miscigenação com democratização social.
Daí provém o mito de que somos uma democracia racial, o que não é verdadeiro. Embora nosso
racismo seja mais brando do que o norte-americano, por exemplo, onde foram adotadas medidas
de segregação racial nunca felizmente praticadas no Brasil, o fato é que não somos uma
democracia racial. Basta observar a extrema desigualdade social que ainda vigora na nossa
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A crítica acima não refuta o fato de que Gilberto Freyre contribuiu com sua obra mais do que
qualquer outro dos nossos estudiosos para a valorização da cultura negra. Além de inverter o
sentido antes conferido ao negro na constituição da nossa cultura, sentido que correspondia à
condição inferior do negro, Freyre expõe na sua obra evidências e argumentos sólidos em defesa
do negro, a quem aliás caracteriza como agente civilizador, apesar da sua condição de escravo.
Sua suposta inferioridade, como Freyre bem o demonstra, não tem nenhuma comprovação de base
científica ou racial. A inferioridade do negro, assim como do brasileiro pobre em geral, é fruto de
condições culturais, frisa Gilberto Freyre, não raciais. E ele vai adiante e assinala alguns desses
fatores responsáveis pelas condições de subdesenvolvimento do nosso povo: a monocultura, que
impôs condições de subnutrição crônica à nossa população pobre ou simplesmente desamparada; a
sífilis que se difundiu através de um estado de promiscuidade sexual que perversamente induzia o
macho, como é típico de sociedades patriarcais, a exibir com orgulho as chagas da doença, prova
de que ele era macho.
Pode-se afirmar que Freyre foi o introdutor no Brasil de técnicas e métodos sociológicos modernos
aprendidos durante seus estudos de formação sociológica nos Estados Unidos. Outra inovação
extraordinária, esta bem pouco seguida nos círculos acadêmicos onde se formam nossos cientistas
sociais, consiste na qualidade da sua prosa, devedora de sua formação também amplamente
literária. Sua obra destaca-se pelo estilo plástico e sedutor com que expõe seus argumentos e
descreve relações e tipos sociais. Utilizando tanto a linguagem técnica quanto a coloquial, para a
qual demonstra uma sensibilidade típica dos melhores prosadores e artistas da palavra, Freyre foi
muito criticado pelos cientistas de formação estreitamente acadêmica que sempre o depreciaram
alegando faltar rigor e precisão conceitual à sua obra. O irônico disso tudo é que muitos desses
autores acadêmicos passam, alguns depois de gozarem de grande prestígio no meio universitário,
enquanto a obra de Freyre fica e pode com justiça ser encarada como uma das obras definitivas da
cultura brasileira.
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Sérgio Buarque de Holanda nasceu em São Paulo no ano de 1902. Era portanto muito jovem
quando o modernismo irrompeu ruidosamente na cena cultural brasileira com a Semana de Arte
Moderna em 1922. Embora intelectualmente muito atuante ao longo do decênio de 1920, também
durante os anos seguintes, somente publicou seu primeiro livro em 1936, quando Raízes do
Brasil veio a público. No entanto, o livro, tal como hoje o conhecemos, foi muito modificado entre
a primeira edição e a segunda, que data de 1948. Apesar de confessadamente não encarar Raízes
do Brasil como seu livro mais importante (preferia Visão do Paraíso, cuja importância capital se
impõe cada vez mais aos olhos dos especialistas), o fato é que esta é a obra que o consagrou e se
mantém como a mais significativa e estudada no conjunto da sua produção intelectual.
Sérgio Buarque viveu cerca de um ano e meio na Alemanha, entre junho de 1929 e dezembro de
1930. Menciono ligeiramente essa experiência porque teve muita importância na sua vida e
formação, além de se refletir de vários modos no texto de Raízes do Brasil. Sérgio Buarque foi
para a Alemanha como correspondente de O Jornal, periódico de propriedade de Assis
Chateaubriand. Além de observar o clima de violência e tensão social que em 1933 culminou com
a ascensão de Hitler e do partido nazista ao poder, leu muito da produção intelectual alemã
desconhecida no Brasil. Leu em particular Max Weber e Georg Simmel. Do primeiro aproveitou o
conceito de patrimonialismo para melhor compreender a formação do Estado brasileiro e seu
aparato burocrático; com o segundo refina sua percepção analítica dos tipos sociais que
certamente ilumina categorias como o semeador e o ladrilhador, núcleo e título do capítulo 4 de
Raízes do Brasil.
Desde já esclareço que as citações diretas que acaso faça da obra no texto que segue serão
extraídas da edição comemorativa dos 70 anos organizada por Ricardo Benzaquen de Araújo e Lilia
Schwarcz, Editora Companhia das Letras, 2006. Além de ser uma edição previsivelmente bem mais
ampla e melhor cuidada do que todas as precedentes, vem enriquecida por textos do próprio autor
e de estudiosos e especialistas, arrematados pelos “Apontamentos para a cronologia de Sérgio
Buarque de Holanda” assinados por Maria Amélia Buarque de Holanda, sua companheira e
colaboradora da vida inteira. Além de republicar o sempre citado prefácio de Antonio Candido
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escrito para a edição dos 30 anos de Raízes do Brasil, citado inclusive mais de uma vez nos
textos desta disciplina Cultura Brasileira, são adicionados textos importantes de Alexandre Eulálio,
Evaldo Cabral de Mello, Bolivar Lamounier, Antonio Arnoni Prado, Pedro Meira Monteiro e Robert
Wegner.
Enriquecem ainda o volume três documentos raros: o muito citado artigo no qual é reposta a
controvérsia entre Cassiano Ricardo, autor do artigo, e Sérgio Buarque de Holanda acerca do
conceito de homem cordial. Como sabemos, esse conceito, central na argumentação do livro de
Sérgio Buarque, tem sido objeto de ampla fortuna crítica, mas também de muito mal-entendido. O
mal-entendido aparenta originar-se das críticas formuladas por Cassiano Ricardo. Portanto, é
oportuna a inclusão do seu artigo na edição que comento acrescido da resposta de Sérgio Buarque
em forma de carta endereçada a Cassiano Ricardo. Essa questão é ainda melhor iluminada pela
inclusão de um curto texto de Ribeiro Couto, datado de 1931, no qual ele saúda o surgimento do
homem cordial na América originário da fusão do homem ibérico (o espanhol e o português) e as
culturas nativas do Novo Mundo. Cuidarei melhor dessa questão no lugar apropriado, quando
abaixo discutir o capítulo relativo ao homem cordial brasileiro. Por fim, um texto ainda mais
precioso: o ensaio “Corpo e alma do Brasil”, publicado em 1935. Nele Sérgio Buarque sintetiza o
que no ano seguinte constituiria a primeira edição de Raízes do Brasil. Como já observei no
parágrafo de abertura, a obra foi refundida e ampliada na segunda edição, lançada em1948, que
passou a ser o texto definitivo da obra que estudamos.
O título da obra já indica, de partida, sua regressão às origens da nossa formação histórico-cultural
com o propósito de explicar o Brasil. Como salientei em outros textos das nossas aulas, essa é uma
característica comum a todas as obras que compõem a tradição do pensamento social brasileiro.
No caso do livro de Sérgio Buarque, porém, o objetivo de estudar o passado visando as questões
fundamentais do presente é bem mais nítido, como aliás ressaltou Antonio Candido. Uma das
evidências imediatas desse fato consiste nos títulos e na matéria dos dois capítulos finais
intitulados Novos Tempos e Nossa Revolução. Sérgio Buarque recua portanto a nossas origens
histórico-culturais para projetar luz sobre o presente, para melhor compreender e esclarecer os
problemas fundamentais e impasses da sociedade brasileira.
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O autor ressalta nas páginas iniciais duas questões de grande relevância no conjunto da obra. A
primeira refere-se ao processo de implantação da cultura europeia no trópico, fator originário da
constituição da cultura brasileira. Depois de acentuar as diferenças profundas observáveis entre
esses dois mundos que se encontram, entrechocam e por fim geram uma realidade inteiramente
nova, Sérgio Buarque escreve um dos períodos mais citados da sua obra: “Trazendo de países
distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter
tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em
nossa terra”. (p. 19)
A segunda questão diz respeito à cultura da personalidade típica do homem ibérico. Depois de
observar que representou o traço mais importante desse povo, esclarece que ela traduz o valor, a
originalidade de cada pessoa que assim se diferencia da coletividade e até a esta se opõe.
Salientando a oposição entre o culto da personalidade e as formas de associação características
detoda coletividade,Sérgio Buarque assinala que essa forma de personalismo ibérico constituiu e
constitui ainda na nossa cultura uma força de oposição à coletividade, além de estar na raiz das
forças anárquicas e desordenadoras da nossa sociedade. Paradoxalmente, ela supõe a obediência,
que se afirma notadamente em situações de crise de autoridade. Como anota, “Em terra onde
todos são barões, não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior
respeitável e temida”. (p. 21).
Assim, na terra onde medra o personalismo altaneiro, não raro arrogante, em termos políticos o
autoritarismo típico da América Latina, medra também a obediência imposta por uma autoridade
temida nos momentos de crise. A terra do personalismo ibérico é também fértil na produção de
forças sociais anárquicas, como também já ressaltei. Sérgio Buarque acrescenta, a esse propósito,
que essas forças sempre se manifestaram na nossa história, não raro favorecidas pela
cumplicidade e a leniência das instituições. Importaria esclarecer, visando melhor contextualizar a
obra, que ela foi escrita em meio a esse clima no qual se manifestavam forças anárquicas
representadas por rebeliões armadas e combates ideológicos e conflitos violentos travados por
comunistas e integralistas, ambos buscando soluções políticas e sociais avessas à democracia. É
significativo que o Estado Novo, instituído através de um golpe de Estado por Getúlio Vargas em
1937, portanto no ano seguinte ao da publicação de Raízes do Brasil, tenha imposto essa
autoridade temida diante da qual o personalismo assina o pacto social da obediência. Como
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sabemos, o Estado Novo vigorou até 1945. Depois de um período conturbado, durante o qual o
Partido Comunista manteve-se na legalidade apenas por um curto período, sobreveio o golpe
militar de 1964 e a ditadura militar que se prolongou até 1985. Esses poucos fatos históricos
conferem força explicativa ao livro de Sérgio Buarque.
Penso que as forças anárquicas sublinhadas na obra de Sérgio Buarque também se manifestam em
âmbito distinto do estritamente político acima mencionado. Elas são observáveis, por exemplo, no
cotidiano da nossa cultura, na nossa incapacidade crônica de instituirmos relações de convívio
baseadas na distinção fundamental entre a esfera pública e a privada. Nossas forças de
desregramento social são facilmente visíveis numa cena qualquer de rua, no estado típico de uso e
conservação da rua. Afinal, é ela quem define culturalmente a concepção inconsciente e a prática
de sentido público que imprimimos à nossa experiência social.
Outra questão relevante, também salientada por Sérgio Buarque, liga-se à condição excêntrica do
mundo ibérico na Europa. Essa excentricidade resulta tanto da posição geográfica da península
ibérica, espremida entre o continente europeu e o africano, quanto de caracteres culturais
diferenciadores fruto do contato do ibérico com o árabe e o judeu. Essa experiência de contato
cultural com povos do continente africano familiarizou o português com a mestiçagem e lhe foi de
grande utilidade no processo de colonização do Brasil onde desde o início, como bem sabemos,
livremente se mesclou com as tribos indígenas através do acasalamento com a mulher índia, mais
tarde com a negra. Trata-se, em suma, de uma questão antes bem explorada por Gilberto Freyre
em Casa-Grande & Senzala. Portanto, Sérgio Buarque apenas reitera o que se pode ler nas
páginas da obra do seu antecessor.
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entre nós ainda vigora não é o princípio segundo o qual minha liberdade termina onde a do outro
começa, mas sim o princípio que autoritariamente ordena: os incomodados que se mudem.
Caberia ainda acrescentar, nesse paralelo sumário entre o individualismo de extração anglo-
saxônica e o personalismo ibérico, que este mascara interesses explícitos naquele. Já que se baseia
nas relações de sentimento, o personalismo rejeita a atuação dos interesses nas relações
associativas. Assim procedendo, tende a mascará-los, além de sempre reprovar quem acaso tenha
a consciência de explicitar esta verdade elementar: as relações humanas em geral envolvem
interesses unilaterais ou recíprocos. Se o individualismo moderno é em muitos sentidos reprovável,
na medida em que encoraja em demasia os interesses de ordem privada, tem ele a vantagem de
reconhecer sem máscara ou isento de inconsciência danosa o lugar efetivo que os interesses
ocupam nas relações humanas. Nosso personalismo, atado às razões sentimentais, repele o
individualismo consciente e prático, mas é pautado por interesses inconfessáveis ou inconscientes
como os que latejam nessa frase modelar da nossa cultura: antes ter amigos em casa do que
dinheiro na praça. Ou ainda esta: para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei.
Concluo essas considerações em torno de alguns aspectos de Raízes do Brasil tecendo algumas
anotações relativas ao capítulo intitulado O homem cordial. Além da importância fundamental que
desempenha no conjunto da obra, o conceito chave aí exposto por Sérgio Buarque, o da
cordialidade brasileira, tem dado margem a muito mal-entendido. Houve quem erradamente o
interpretasse lendo efetivamente o livro, como foi o caso de Cassiano Ricardo, e houve sobretudo
quem remasse nessa canoa furada simplesmente por opinar sem ler. A canoa furada consiste,
noutras palavras, em interpretar cordialidade como sinônimo de bondade. Daí não faltou quem
concluísse que Sérgio Buarque de certa forma endossava interpretações ufanistas do Brasil ao
caracterizar o brasileiro como acima de tudo bom. Tentarei esclarecer agora esse equívoco indo ao
próprio texto da obra.
O próprio autor, visando corrigir a incompreensão de Cassiano Ricardo, assim como de tantos que
traduzem cordialidade num sentido incompatível com aquele contido em Raízes do Brasil, cuidou
de inserir na obra, a partir da segunda edição, longa e esclarecedora nota explicativa. A ela agora
se acrescenta, a partir desta edição comemorativa dos 70 anos em que me baseio para a redação
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destas notas, a carta que escreveu para Cassiano Ricardo em setembro de 1948. Divergindo
deste, que identifica cordialidade com polidez e opõe cordialidade a bondade, Sérgio Buarque deixa
claro, aliás desde o texto da primeira edição, conceber a cordialidade como a expressão dos
vínculos de cunho emotivo característicos das relações sociais brasileiras. Essa característica, de
resto, irmana o conceito de cordialidade com o do culto da personalidade, como acima observei.
Indo adiante na intenção de bem esclarecer o desacordo, Sérgio Buarque alude à etimologia da
palavra cordial. Procedendo do latim cordis, isto é, “relativo ao coração”, das expressões humanas
de fundo emotivo procedentes do coração, visa ele acentuar a descontinuidade, ou melhor, a
oposição entre as relações de fundo emotivo ou pessoal, típicas do homem cordial, e as relações de
base legal, que entendo características da democracia moderna baseada nos valores de cunho
impessoal, universal e abstrato típicos da ordem legal inspirada no individualismo moderno. O
sentido que procuro aqui esboçar parece-me evidente já na abertura do capítulo O homem cordial,
onde o autor começa por ressaltar a descontinuidade, ou mais exatamente a oposição, entre a
ordem familiar, notadamente a ordem familiar patriarcal típica da formação da cultura brasileira, e
a ordem do Estado. Como Sérgio Buarque acertadamente pontua, o Estado precisou negar a ordem
privada da família para se constituir como expressão política das leis impessoais e abstratas da
Cidade. Daí também deriva a oposição clara que estabelece entre cordialidade e polidez. Também
nesse ponto volto a recorrer à etimologia, embora Sérgio Buarque não repita esse procedimento
que emprega para melhor esclarecer o sentido de cordial, cordialidade. O ser polido é aquele
cultivado, educado pelas leis da polis, isto é, da cidade politicamente organizada. Penso que a
oposição que o autor fixa entre a ordem familiar e aquela instituída pelo Estado é da mesma
natureza da que opõe o homem cordial ao homem polido.
Negando ao brasileiro esta qualidade, a da polidez, o que Sérgio Buarque pretende mais uma vez
enfatizar é a prevalência na nossa cultura das relações de fundo emotivo enraizadas no coração.
Ora, ele nitidamente identifica nessa nossa característica um traço negativo que precisaria ser
superado pela ordem social em formação naquele período, aludo à época em que o livro foi escrito,
para que no Brasil efetivamente se realizasse uma democracia moderna, isto é, baseada no
império das relações legais, que como tal suprimem os valores oriundos do culto da personalidade
e do homem cordial. Em suma, a ordem legal na qual passariam a dominar relações legais
baseadas em princípios universais e abstratos.
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Fazendo uma aposta otimista acerca do nosso futuro, Sérgio Buarque acreditou que essa nova
ordem triunfaria graças ao processo de urbanização em marcha acelerada, à instituição de novos
métodos educativos e práticas de organização do trabalho, casos exemplificados no capítulo que
comento. Embora acentue ainda a predominância do funcionário patrimonial em oposição ao
burocrata, parece-me também clara sua convicção de que este se imporia àquele. Temos aqui uma
outra ordem de oposição clara. Enquanto o funcionário patrimonial prende-se à ordem tradicional
associada à família patriarcal que se projeta sobre a ordem política privatizando a esfera pública, o
burocrata pauta sua função pelos mesmos princípios impessoais e abstratos observáveis na
instituição do Estado moderno. Os exemplos que o autor expõe acerca da psicologia moderna
aplicada à educação também reiteram e reforçam a oposição que percorre todos os pares acima
considerados. Portanto, entendo que em resumo o universo das relações cordiais identifica-se com
o império das relações de fundo emotivo, pessoais e antidemocráticas. No outro extremo, situam-
se as relações de fundo legal, típicas da democracia moderna.
No frigir dos ovos, se minha interpretação é correta, sem dúvida avançamos em muitos sentidos
em direção à ordem legal e democrática postulada na obra de Sérgio Buarque. Ele postula essa
mudança e nitidamente declara a esperança de que ela venha a se consumar na sociedade
brasileira. Embora possamos constatar avanços inegáveis na direção apontada, infelizmente o
homem cordial é ainda uma realidade muito viva na nossa cultura. Seus valores são ambivalentes,
como aliás já o reconhecia o autor. Se de um lado estão enraizados em muito da nossa
espontaneidade, da aversão a ritualismos estéreis, mas também a ritualismos em geral, e aí a
coisa já complica o sentido dos ganhos entre espontaneidade e formalismo social, de outro lado
eles estão nas raízes das nossas relações desiguais, do favorecimento dos parentes, amigos e
apadrinhados, da ordem social baseada no privilégio e,no limite, na apropriação corrupta do
público pelo privado.
Concluindo, o Brasil encontra-se já no início do século 21, sua economia está entre as dez mais
poderosas do mundo, mas no âmbito cultural e institucional continuamos nos balançando sem
solução entre os valores da cordialidade, ou das relações de fundo emotivo e pessoal, e os valores
da ordem social democrática baseada em relações legais de fundo universal e abstrato. Pior para a
maioria e portanto para o conjunto da nação, ainda atada a uma ordem de realidade cultural que
bem justifica a frase famosa de Tom Jobim: o Brasil não é para principiantes. Sendo assim, as
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explicações aqui estudadas sem dúvida muito nos esclarecem, mas não são nem podem ser a
solução dos problemas que entravam nosso ingresso na modernidade plena. A solução, suponho,
depende de transformações socioculturais e econômicas profundas, que ninguém sabe quando se
completarão.
O primeiro livro de Caio Prado Júnior, Evolução Política do Brasil, foi por acaso lançado no
mesmo ano em que Casa-Grande & Senzala veio a público. A coincidência merece registro
porque as duas obras balizam duas vertentes fundamentais da sociologia brasileira associadas aos
estudos de interpretação do Brasil. A de Gilberto Freyre, como sabemos, distingue-se como a obra
suprema de base cultural de interpretação do Brasil, enquanto a de Caio Prado inaugura a vertente
de base materialista. A fonte fundamental desta tradição cujo marco é Formação do Brasil
Contemporâneo é a obra de Karl Marx, teórico mais importante do comunismo moderno.
O fundamento da concepção materialista à qual Caio Prado se filia consiste no reconhecimento das
bases materiais da sociedade e da história humana. Traduzindo isso em termos mais claros, Marx e
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seus seguidores partem do princípio de que as necessidades materiais estão nas raízes da nossa
existência. Antes de fazer qualquer outra coisa (arte, religião, ideias, leis e o conjunto das
expressões de vida espiritual que Marx designa como sendo a superestrutura da vida social), o ser
humano precisa comer, precisa trabalhar para garantir sua sobrevivência biológica. Visando tornar
ainda mais clara a concepção materialista proposta por Marx e aplicada por Caio Prado à história da
formação da nossa sociedade, transcrevo abaixo palavras esclarecedoras de Engels, o outro grande
nome do comunismo moderno e amigo inseparável de Marx até a morte deste:
Em termos teóricos, portanto, é preciso eleger as condições de vida material, ou econômica, para
explicar as características fundamentais da nossa sociedade e da nossa cultura, o processo
histórico através do qual ela se formou. Enquanto Gilberto Freyre e outros estudiosos da formação
da nossa história social privilegiam a cultura, que no caso também compreende as condições de
existência econômica da sociedade, Caio Prado coloca a organização econômica da sociedade acima
de qualquer outro fator de ordem explicativa ou teórica.
Coerente com o princípio teórico acima indicado, Caio Prado rompe com a explicação de base
cultural, exemplificada na obra de Gilberto Freyre, concentrando sua obra no estudo e análise das
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Importa no entanto salientar que o autor reconhece e enfatiza a persistência dessa formação
colonial nas questões sociais do presente. É nesse sentido que, embora incompleto o projeto
original, Formação do Brasil Contemporâneo foi e continua atual como fonte para a explicação
das características dominantes na nossa sociedade e na nossa cultura. Noutras palavras,
precisamos compreender as causas determinantes da nossa formação colonial para
compreendermos adequadamente questões fundamentais do presente como nossos extremos de
desigualdade social e econômica, nossa dependência cultural, o atraso observável nos nossos
padrões de educação, saúde, organização urbana, transporte, segurança social etc. Em suma, é
preciso saber o que fomos, de onde viemos, para saber o que somos e para onde iremos. Esse
objetivo, suponho, está na raiz de todas as obras de explicação do Brasil. O que varia e até se
choca, fazendo com que uma obra negue ou contradiga outra, é a forma como cada um desses
estudiosos estudou nossa formação para elaborar a explicação do país contida em cada uma das
obras realizadas.
É também coerente com a teoria materialista que adota o fato de Caio Prado conceder papel
prioritário às bases econômicas da colonização do Brasil, assim como à questão das classes sociais.
Estas, como sabemos, derivam da natureza econômica da sociedade traduzida nas condições de
distribuição de renda. É isso, noutras palavras, que está na raiz da distinção que estabelecemos
entre o senhor e o escravo, o empregador e o empregado, o capitalista e o trabalhador assalariado.
Enquanto Gilberto Freyre reconhece esses extremos sociais baseado na objetividade das relações
econômicas, mas acentua os fatores culturais que os aproximam, como a miscigenação racial e
cultural, Caio Prado se concentra nas relações de conflito decorrentes da exploração econômica
imposta pelo dominador ao dominado. Nesse sentido, os fatores culturais são secundários. É por aí
que se explica a ruptura de Caio Prado com a vertente culturalista de explicação do Brasil acima
anotada.
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Passando especificamente às linhas gerais que compõem a obra, Caio Prado identifica no início do
século XIX, como de resto enfatiza já nas linhas iniciais da Introdução, o momento decisivo na
história da formação da sociedade brasileira contemporânea. Nesse momento se definem tanto o
esgotamento de uma realidade, a do sistema colonial que governou toda a nossa história anterior,
do início da colonização à transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, quanto o
advento de uma nova fase na evolução do Brasil. Esta fase, que compreende momentos
fundamentais, como o processo de independência política, o Império regido por D. Pedro II, a
Abolição e a proclamação da República, desenha o longo e complexo processo através do qual se
vai forjando o Brasil contemporâneo.
No capítulo intitulado “Sentido da colonização” Caio Prado sintetiza as bases profundas da nossa
formação, que são, como já salientei, de natureza econômica. Descrevendo o processo geral de
colonização do Novo Mundo, ressalta ele como os objetivos iniciais de todos os colonizadores
europeus eram estritamente econômicos, voltados para a apropriação fácil e o comércio de
riqueza. Essa característica marcou, de início, tanto a colonização portuguesa quanto as demais.
Foi bem mais tarde que se diferenciaram as colônias de povoamento e as colônias de exploração.
Também essa diferenciação resultou de determinações externas, isto é, de fatores ligados à
história política e religiosa europeia. As colônias de povoamento foram típicas das regiões
temperadas e as colônias de exploração típicas das regiões tropicais, estas baseadas na grande
propriedade e no uso da mão de obra escrava organizadas como grandes empresas comerciais a
serviço das demandas do mercado europeu. Em síntese, sociedades coloniais do tipo do Brasil
formaram-se voltadas para fora, subordinadas aos interesses e às demandas econômicas do
mercado externo. Como frisa o próprio autor,
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A citação acima se completa com uma outra observação feita por Caio Prado logo adiante: o
sentido da formação do Brasil contemporâneo baseia-se nas linhas citadas.
Darcy Ribeiro é um dos últimos grandes intérpretes da cultura Brasileira. Depois de sua morte, em
1997, restou apenas Roberto da Matta, curiosamente omitido da mais recente coletânea de textos
consagrada aos intérpretes do Brasil. Refiro-me à obra Um enigma chamado Brasil, organizada
por André Botelho e Lillia Schwarcz, e incorporada à bibliografia básica da nossa disciplina. A
omissão de da Matta é ainda mais estranha se consideramos que nela figuram nomes bem menos
conhecidos e influentes, além de outros pouco característicos dessa tradição que estamos
estudando dentro do nosso curso de cultura brasileira.
A obra de Darcy Ribeiro é marcada de ponta a ponta pelo espírito de participação apaixonada.
Intelectual declaradamente militante, Darcy escreveu sempre movido pelo desejo de ação. Sua luta
em defesa do povo brasileiro, notadamente as camadas mais impiedosamente oprimidas, imprimiu
à sua biografia tons de grandes feitos românticos, uma vontade de mudança revolucionária que lhe
custou exílio político e muita instabilidade, incerteza e derrota. Sendo no entanto um otimista
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incorrigível, manteve-se fiel à sua convicção de que desse Brasil tão surpreendente, de tão
complicada organização e explicação teórica, brotaria uma nova Roma, como dizia, lavada em
sangue negro e índio. Esses rompantes nacionalistas em meio a uma obra de análise de natureza
científica levam o autor a extremos confinantes com uma visão cultural ufanista. Isso é patente no
tom com que louva nossa miscigenação e sensualidade.
Darcy Ribeiro foi militante do Partido Comunista nos anos 1940. Nessa mesma década
especializou-se em etnologia na Escola Livre de Sociologia e Política, de São Paulo, onde foi colega
de Florestan Fernandes, que se tornou o grande nome da escola de sociologia paulista. Inspirado
pelas lições de Herbert Baldus, um dos professores estrangeiros contratados pela Escola Livre de
Sociologia e Política, dedicou-se apaixonadamente ao estudo das culturas indígenas e viveu
durante cerca de dez anos entre os índios. Isso explica o lugar de relevo que nossa matriz indígena
ocupa na sua obra e em particular em O Povo Brasileiro.
Darcy Ribeiro também se destacou por sua luta tenaz em defesa da educação. Discípulo e amigo
fiel de Anísio Teixeira, um dos líderes do Movimento da Escola Nova, lutou até o fim pela
institucionalização da escola pública de qualidade segundo o modelo das melhores políticas de
educação pública. Além de ser um dos criadores da Universidade de Brasília e da Universidade
Estadual do Norte Fluminense, atuou de forma combativa na esfera universitária e política em
vários países latino-americanos durante seus anos de exílio político. O exílio lhe foi imposto pelos
militares devido ao papel chave que desempenhou no governo deposto de João Goulart – era
Ministro da Casa Civil – além de sua tentativa de organizar uma resistência armada ao golpe militar
de 1964. Os militares permitiram que retornasse ao Brasil antes da anistia política por estar
sofrendo de um câncer no pulmão que, esperava-se, logo o mataria. O fato, porém, é que o tenaz
e incorrigível otimista sobreviveu até 1997. Estava internado na UTI quando fugiu para refugiar-se
na casa que tinha à beira de uma praia. Lá conseguiu dar forma definitiva a seu livro O Povo
Brasileiro, obsessão da sua vida. O livro foi publicado em 1995.
Esta obra, que perseguiu a imaginação criadora de Darcy Ribeiro durante mais de 30 anos, como
ele mesmo frisa no prefácio, é uma ambiciosa tentativa de aplicar à formação sociocultural do
Brasil a teoria geral que ele elaborou durante muito tempo. Dela resultaram obras como O
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Começando pela cultura indígena, o autor deixa evidentes os vínculos profundos que o prendem a
essa matriz da nossa formação. Ela foi decisiva, entre outras coisas, por ser portadora de uma rica
experiência antropológica de enraizamento no trópico, na imensidão das matas e florestas, onde os
indígenas desenvolveram formas de cultura ajustadas ao ambiente. O colonizador português soube
aliás astutamente assimilar no convívio com o indígena os meios técnicos e culturais necessários
para adaptar-se como europeu às condições impostas pelo ambiente novo. Além de domesticar
muitas plantas selvagens que transformou em meios fundamentais de nutrição, como o milho e a
mandioca, o índio desenvolveu no trópico uma cultura própria e autônoma. Somente a visão
etnocêntrica do colonizador poderia negar a esses grupos humanos uma riqueza de vida espiritual
que é profundamente diferente da europeia, ou civilizada em geral, mas igualmente significativa do
ponto de vista antropológico.
O contato das culturas indígenas com o colonizador europeu resultou desastroso para sua
sobrevivência. Além de lhes impor formas brutais de deculturação, termo que copio do livro de
Darcy Ribeiro, de repressão ou supressão da sua cultura, como foi patente no caso da
catequização imposta pelos jesuítas, essas culturas foram submetidas a um verdadeiro etnocídio
provocado por doenças trazidas pelo europeu, estranhas ao meio tropical, que dizimaram muitas
tribos. Havia naturalmente um conflito insolúvel entre essas culturas, bem próximas da natureza e
regidas por valores culturais incompatíveis com os do colonizador, e o projeto mercantil do
português, que buscava no trópicos apenas a riqueza fácil, as pedras preciosas, a natureza
traduzível em lucro e acumulação. Foi também por essa razão que o português tentou sem sucesso
escravizar o índio. Este importava para aquele, antes de tudo, como fonte de exploração
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O fim do parágrafo acima explica de modo sumário como a terceira matriz da nossa formação
cultural junta-se às duas primeiras. Darcy Ribeiro descreve em dois longos parágrafos notáveis
(ver pp. 119-120), de intensidade descritiva comovente e chocante, o percurso de vida do
escravo africano desde o momento em que era aprisionado e vendido ou trocado no seu
continente até o seu fim como trabalhador escravizado no trópico. Segundo o autor, o tempo de
vida médio de um escravo submetido ao trabalho pesado – portanto distinto do escravo doméstico
preferencialmente estudado por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala – ia de sete a dez
anos. Trabalhando o ano inteiro, sem pausa sequer aos domingos, dia em que era liberado para
cultivar a rocinha de onde extrairia seu sustento. Melhor que pobremente parafrasear os
parágrafos citados é citar o segundo, que vai da página 119 a 120:
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agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela como
um graveto oleoso.
Parafraseando Brás Cubas, de Machado de Assis, foi sobre esse solo tenebroso que a elite brasileira
se formou, assim como foi sob ele, ou calcado pelas botas da escravidão, que se moldou e torturou
não apenas um povo, o brasileiro, mas uma rede de instituições, técnicas de governo e dominação,
de regime de trabalho espoliador, de práticas de vida e relação social que infelizmente não
desapareceram de todo da nossa realidade presente.
De onde afinal vem esse povo tão sofridamente descrito no livro de Darcy Ribeiro, de onde procede
sua identidade? O autor propõe uma teoria baseada na condição de “ninguendade”, com perdão do
neologismo esquisito, do fruto da miscigenação processada inicialmente entre o colonizador
português e a índia, mais tarde entre aquele e a escrava negra. Darcy afirma que os filhos
brotados desses acasalamentos, origem da miscigenação generalizada que passou a caracterizar a
etnia brasileira, eram ninguém, já que nem eram brancos, nem índios nem negros. Eram produto
de uma mistura rejeitada por qualquer das etnias individuais das quais eram formados. Foi
portanto dessa condição de zé ninguém, de “ninguendade” que se forjou a nossa identidade
cultural, o brasileiro que já não era individualmente nenhuma das etnias formadoras, mas produto
da sua miscigenação, isto é, um ser étnico novo.
Tanto quanto Caio Prado Júnior, Darcy Ribeiro ressalta o fato de que o Brasil se formou
economicamente como um apêndice da Europa, colônia produtora de bens primários subordinada à
demanda do mercado europeu. Esse dado primário está na raiz da violência exercida pela classe
dominante ao longo da nossa história. Está também inscrito na condição de proletariado externo
vivida pelo povo brasileiro. Darcy Ribeiro usa repetidas vezes expressões cruas, mas infelizmente
verdadeiras, para denunciar os processos brutais que ao longo da nossa formação histórica
oprimiram nosso povo. Quando usa expressões como moinhos de gastar gente, ou gente usada
como carvão, denuncia a opressão imposta pela classe dominante ao povo, particularmente o povo
escravizado, o povo castigado por um regime de trabalho incompatível com o ideário humanista e
cristão nunca de fato estendido à maioria da população.
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Chegamos ao texto conclusivo do nosso curso e no entanto pouco considerei a situação presente
da cultura brasileira e sua relação muito complexa com a questão da identidade cultural e a da
globalização. Como penso que seria uma omissão no mínimo criticável, tentarei adiante considerar
alguns aspectos dessas relações complexas sem nenhuma pretensão de resolver problemas ou
fornecer respostas suficientes. Como vocês certamente notaram, os textos precedentes
concentram-se no estudo das origens e da formação da cultura brasileira. Como elaborei o
programa adotando como prioridade essas dimensões da cultura brasileira e a forma como alguns
dos grandes representantes da tradição do pensamento social brasileiro as abordaram, suponho
haver coerência no conjunto dos textos postados. Além disso, caberia também adiantar que esta é
uma aula de composição livre, inspirada antes nas minhas observações e nas muitas leituras que
fiz sem anotações ou a intenção de escrever sobre o assunto.
Além do que já foi exposto sobre a cultura brasileira, importaria acrescentar que o conceito é muito
discutível, assim como os dois outros que dão título a esta lição. As pessoas tendem a falar de
cultura brasileira, mesmo pessoas muito educadas e até especialistas, como se o conceito indicasse
uma realidade uniforme ou pelo menos coerente. Na verdade, isso está bem longe da verdade.
Toda cultura, sobretudo as culturas do nosso tipo, estão expostas à variação no tempo e no
espaço, além de se diferenciarem internamente. Há pouco propus a duas turmas minhas da
Universidade Federal de Pernambuco que descrevessem uma viagem importante na vida de cada
membro das turmas relacionando o local visitado (cidade, vila ou país) com características culturais
de Recife. Para minha surpresa, os alunos me forneceram nas descrições feitas um rico material
etnográfico, isto é, relativo à descrição de costumes e valores culturais observados nas viagens que
fizeram. A maioria das descrições era relativa a cidades do inteior de Pernambuco. Um dos
aspectos mais interessantes dos trabalhos consistia precisamente na constatação da grande
variedade de costumes, hábitos de vida e valores culturais relativos à religião, culinária, vestuário,
educação, formas de entretenimento, cenas de rua etc.
Mencionei o exemplo acima para sugerir o quanto a cultura recifense, e mais amplamente
pernambucana, contém de diversidade. Essa diversidade depende de muitos fatores, entre eles os
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de classe, espaço, tempo, modos de tradição... Tudo isso importa para sugerir o quanto é difícil
fixar conceitos como os que dão título a esta aula. No entanto, falamos e ouvimos correntemente
falarem de cultura brasileira, cultura pernambucana, cultura nordestina, como se fossem
realidades facilmente apreensíveis e consensualmente aceitas. Isso não é verdade nem tenho a
pretensão de lhes apresentar a verdade sobre esses assuntos. Por isso afirmei já no parágrafo
inicial que o objetivo desta aula não é resolver problemas ou fornecer respostas suficientes. Meu
objetivo principal é propor claramente muitas dessas questões e assim induzi-los a refletir sobre
eles, considerar respostas possíveis, procurar estudar e compreender melhor o que não tem
respostas definitivas e absolutas.
A relação entre realidade social e ideologia é muito complexa. Além de não ser a questão mais
importante desta aula, não tenho também uma teoria definitiva sobre ela, nem sei de ninguém que
tenha proposto uma teoria universalmente aceita. Minha intenção ao mencionar o livro de Carlos
Guilherme Mota foi apenas assinalar uma corrente de estudos existente nessa área, além de
novamente explicitar a complexidade dos assuntos que estamos considerando. Noutras palavras,
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nossa disciplina é sobre cultura brasileira, falamos de cultura brasileira como algo que efetivamos
existe, mas me parece impossível determinar exatamente o que seja esse objeto. Por isso observei
numa outra aula minha convicção de que o conceito de cultura brasileira, assim como de
identidade cultural, é uma construção ideal, um conceito que compreende aspectos seletivos da
realidade dependentes da perspectiva do autor que considera o problema.
Mencionei acima a grande diversidade da cultura pernambucana que constatei ao ler os trabalhos
de duas turmas da Universidade Federal de Pernambuco. Observei como essa surpreendente
diversidade se opõe à noção corrente do conceito de cultura pernambucana, que representa este
objeto, a cultura pernambucana, como se fosse algo uniforme e coerente, algo facilmente
apreensível pela observação e também pelo conceito. É certo que agora se fala muito em
diversidade cultural, a começar pela própria secretaria de governo que se chama, aliás, Secretaria
da Identidade e da Diversidade Cultural. A mídia, mais do que essa secretaria e a propaganda
oficial, encarregou-se de difundir essa noção que virou portanto moda ou lugar comum. Agora todo
mundo fala em diversidade cultural, em carnaval multicultural e expressões afins. Isso parece
sugerir que somos todos muito conscientes e tolerantes com relação à grande diversidade da nossa
cultura. No entanto, não encontramos nenhuma tolerância nos que defendem ardentemente uma
concepção regionalista da cultura.
Já registrei no texto de uma das nossas aulas o exemplo de Ariano Suassuna, talvez o melhor que
se possa considerar. Afinal, além de ser um grande escritor e intelectual de imenso prestígio, ele é
o mais radical defensor dos valores regionais da cultura, o grande ideólogo e porta-voz da cultura
nordestina. Mais exatamente, ele defende um tipo de regionalismo conservador, preso a raízes
ibéricas da nossa cultura conservadas em áreas do sertão muito pobres e por isso mantidas à
margem da cultura típica do mundo moderno. É difícil encontrar nas atitudes públicas e
pronunciamentos de Ariano Suassuna o espírito de tolerância e diversidade corrente nos lugares
comuns da propaganda oficial, nos clipes publicitários, no discurso da mídia. Ele se pronuncia
nitidamente contra tudo que é expressão da cultura de massas, tudo que é expressão da cultura
contemporânea produzida e veiculada pela tecnologia, pelo capitalismo de consumo, pelas forças
da globalização econômica e cultural. Indico sumariamente este exemplo apenas com a intenção de
sugerir a complexidade das questões concernentes a esta aula: o conceito de cultura, o de
identidade cultural, o de globalização.
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É claro que podemos indicar com segurança alguns traços gerais da nossa cultura – da
pernambucana ou mais amplamente da brasileira – que são compartilhados por todos ou pelo
menos pela maioria. É o caso, por exemplo, da língua. Este é um traço cultural fundamental que
todos compartilhamos, isto é, todos falamos a língua portuguesa. Mas mesmo esta é
extremamente diferenciada nas suas formas de expressão que se manifestam no uso que dela
fazemos. Quero dizer, a língua que identifica todos os brasileiros varia de acordo com a classe
social, a região, padrões de educação etc. Logo, até esse valor compartilhado por todos os
brasileiros está sujeito a variações do tipo que acabo de indicar. Se considerarmos o caso da
religião, as variações e até mesmo as divergências e conflitos de crença e valor são ainda maiores.
Bastaria pensarmos numa questão polêmica como a do aborto para observarmos a grande
variedade de pontos de vista de diferentes tipos de brasileiros. Poderia acrescentar muitos outros
exemplos, uma infinidade deles, para sugerir o quanto é complexa essa noção de identidade
cultural, o quanto ela supõe tanto valores afins e compartilhados quanto valores conflitantes e
inconciliáveis. O que podemos em suma observar é que felizmente prevalece na organização da
sociedade uma situação de consenso sem a qual a sociedade não se sustentaria, isto é, nossos
modos correntes de convívio e interação não se sustentariam.
Restaria por fim tecer algumas considerações gerais sobre a globalização. Para começar, a própria
periodização do conceito é muito discutível. Há estudiosos que datam o processo de globalização a
partir dos grandes descobrimentos, em particular do descobrimento da América. Este fato histórico
representou, entre outras coisas, a expansão do capitalismo europeu para as Américas, assim
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como para outras partes do mundo. No que nos interessa, transportou para o mundo onde vivemos
o capitalismo, a ciência e a técnica então desenvolvidas pelos portugueses. Mais do que isso,
trouxeram os conquistadores da América e do Brasil todo um complexo de expressões culturais de
procedência europeia que se chocaram mas também se mesclaram com valores culturais nativos
produzindo a partir daí uma cultura nova. Lembrem-se de que já estudamos essa questão nas suas
linhas gerais na aula relativa à cultura brasileira e suas matrizes. Outros estudiosos, no entanto,
datam o processo de globalização a partir do século 18, tendo como marcos o Iluminismo, a
Revolução Industrial, originária da Inglaterra, e a Revolução Francesa. De fato, são marcos
históricos fundamentais para a fundação do mundo moderno, em particular do que hoje
correntemente designamos como globalização. Não vou explorar essa questão, até porque não
tenho a competência do historiador e do estudioso da história econômica e social para melhor
esclarecer os problemas que essa questão envolve. O que objetivo ressaltar é apenas a
complexidade do conceito de globalização, que já se manifesta na sua periodização.
O fato talvez mais destacável quando consideramos o problema da globalização consiste na sua
realidade objetiva. Quero dizer, noutras palavras, que ela é um fato. Em graus variáveis, a
globalização está presente em todo o mundo. Está presente no Recife, assim como em Pesqueira,
Limoeiro, Trindade, Ipojuca... Está presente nos polos mais avançados do capitalismo paulista,
assim como na floresta amazônica. O que varia é o grau de manifestação dessas forças
globalizadoras. A ciência e a técnica, ou a chamada civilização técnica, e a revolução
comunicacional que liga em tempo real o mundo inteiro são provavelmente as expressões mais
fortes disso que designamos como globalização. Este, sabemos, é um fato histórico sem
precedente. Como tal, ele mudou de forma profunda a realidade social e nossas formas de
relacionamento. A simples existência de um curso como este que nos associa, embora sem nos
encontrarmos fisicamente, é uma evidência do que acabo de afirmar.
Cultura Brasileira (atualizada IV) – Prof. Fernando da Mota Lima
posso infelizmente considerar de forma mais detida numa explanação geral desse desconcertante
mundo novo. Além de a nossa disciplina ter alcance muito mais modesto, não disponho de
conhecimentos para explorar a fundo as questões culturais implicadas nesse processo que
chamamos de globalização. Por isso quase que me limitei a assinalar sua realidade objetiva, além
de ressaltar sua complexidade, isto é, a própria complexidade do conceito. Reiterando o que
afirmei no início desta aula, e agora concluindo, meu propósito principal foi acentuar a
complexidade dos conceitos relativos a esta aula. Foi ainda explicitar problemas, torná-los mais
evidentes com a intenção de induzir o aluno a refletir melhor sobre a complexidade indicada na
aula. Portanto, este texto é antes um texto relativo à explicitação de problemas e reflexões do que
um texto de respostas e soluções fáceis.
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