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O Corpo da Deusa
2
Rachel Pollack
O corpo da Deusa
No mito, na cultura e nas artes
EDITORA
ROSA DOS
TEMPOS
4
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Pollack, Rachel
P833c O corpo da Deusa: no mito, na cultura e nas artes /
Rachel Pollack; tradução de Magda Lopes. -
Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1998.
Sumário
Relação das Figuras ...............................................................................15
Agradecimentos.........................................................................................18
INTRODUÇÃO ........................................................................................20
Primitivismo ............................................................................... 72
Poder de Lascaux.......................................................................... 74
Primórdios da Arte ........................................................................ 76
Primeiras Imagens Femininas ....................................................... 77
A "Explosão Criativa" .................................................................. 78
Abstração Simbólica .................................................................... 79
Impressões de Mãos..................................................................... 80
Bastões Entalhados ....................................................................... 82
O Trabalho de Alexander Marshack ............................................ 82
Marcas em Ossos .......................................................................... 83
A Vênus de Laussel ....................................................................... 84
As Histórias e a Determinação do Tempo .................................... 85
Economia do Caçador-Coletor .................................................... 86
Pensando Sobre a Arte nas Cavernas ........................................... 88
Estados de Transe .......................................................................... 89
O Xamã de Lascaux ..................................................................... 90
Os Cultos da Fertilidade e as Vênus ............................................ 91
A Pornografia e o Corpo Divino ................................................ 93
Os Rituais da Menstruação e da Gravidez................................... 93
A Caverna como o Corpo Interior — Pêch-Mèrle ..................... 95
Fotos .........................................................................................................156
7 - O Corpo na Canção............................................................................194
Bibliografia .............................................................................................274
Agradecimentos
Alguém certa vez definiu um especialista como uma pessoa que sabe
cada vez mais sobre cada vez menos. Enquanto escrevia este livro, muitas
vezes achei que sabia cada vez menos sobre cada vez mais. Ao tentar seguir
o tema do corpo da Deusa, baseei-me demasiado na obra de muitas pessoas
de diversos campos de estudo e expressão — historiadores, arqueólogos,
artistas, sacerdotisas, cientistas, psicólogos, adivinhadores, romancistas,
teólogos, classicistas e simplesmente amigos que têm viajado e realizado sua
própria pesquisa. Se interpretei mal as idéias ou as descobertas das pessoas
— e estou certa de que o fiz, apesar de todas as melhores intenções —, a culpa
é inteiramente minha, e peço desculpas por isso. Quando me afastei da
pesquisa das outras pessoas e me lancei em caminho próprio, tentei deixar isto
claro. Se turvei o trabalho de alguém com minhas próprias especulações, mais
uma vez peço desculpas.
Este livro não pretende ser um compêndio de história ou um trabalho
acadêmico, e muito menos de teologia (ou tealogia). A religião da Deusa
não é simplesmente um tema da história, mas está vivo hoje na vasta
pesquisa de pessoas como Marija Gimbutas, e também na poesia e na arte, e
nos rituais que as pessoas realizam sozinhas e em grupos, em templos e
cavernas, e também em seus próprios quintais e cozinhas. Tentei
homenagear todos estes níveis da religião ressurgente da Deusa e expressar
minha gratidão por todas as contribuições que tais pessoas proporcionaram,
tanto os acadêmicos quanto os adoradores, e sobretudo aqueles cujo desejo
de saber mais conduziu-os a uma rigorosa pesquisa, assim como aqueles que
acharam que a academia os conduziu à crença e a um compromisso
apaixonado.
Estes acadêmicos merecem menção especial. O primeiro é Marija
Gimbutas, a arqueóloga que reuniu sua ampla pesquisa com a coragem de se
afastar da ideologia acadêmica oficial e reconhecer a realidade de uma
religião complexa e diversificada em toda a arte e nas ruínas escavadas da
Europa pré-histórica. A segunda escritora, menos conhecida atualmente, é
Gertrude Rachel Levy. Quando comecei a ler os escritores modernos que
falam sobre a Deusa, tive acesso a uma obra sempre mencionada desta
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autora: The Cate of Horn. Escrevendo meio século atrás, Levy conseguiu a
proeza de reunir e apresentar uma quantidade fantástica de informações e,
ao mesmo tempo, sintetizá-las e pensar em conceitos originais e amplos.
Foi Gertrude Rachel Levy quem primeiro observou que a forma dos
templos pré-históricos de Malta formava o contorno do corpo de uma
mulher. A última personagem eminente é Vincent Scully, autor de The Earth,
the Temple, and the Gods. Recentemente aposentado, Scully foi um respeitado
professor de história da arquitetura da Universidade de Yale. Ao voltar sua
atenção para os templos gregos e os primeiros palácios de Creta, perseguiu
sempre a verdade da paisagem, com uma paixão pelas formas sagradas vivas
na beleza da Terra.
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INTRODUÇÃO
1
Resina aromacizada com vinho grego. (N. da T.)
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Como nos lembramos. Como sua memória trouxe-me a minha memória. Como eu
sabia o que ela sabia, como seus seios também perceberam, seu corpo, como estávamos
inundadas de memória.
Susan Griffin
O Nascimento de Artemis
O que significa escrever sobre o corpo da Deusa? Preocuparmo-nos com o
corpo, pensar na idéia, tentar conceber (uma palavra que se origina dos
corpos das mulheres) Deus(a) tendo um corpo? Para muitas pessoas, a idéia
é absurda, quase impensável. Nos anos que passei escrevendo este livro, eu às
vezes dizia às pessoas em que estava trabalhando e só recebia de volta um
olhar confuso e a pergunta: "Como a Deusa pode ter um corpo?"
Um calendário sagrado publicado algum tempo atrás relacionou, entre
os rituais sazonais pagãos e os feriados das religiões oficiais, os nascimentos de
várias divindades da Antiga Grécia e de outras culturas. O dia 28 de abril foi
apresentado como o nascimento de Buda e da Deusa Artemis (cujo corpo
preenche estas páginas até mesmo quando se ergue tranqüilo nas colinas e
montanhas da Grécia). Para homenagear Artemis, fui a uma cachoeira nas
montanhas próximas da minha casa. Quando contei às pessoas o que havia
feito, muitas delas me olharam surpresas, ou até riram. "Artemis tem uma
data de aniversário?" — perguntaram. Algumas dessas pessoas eram pagas,
que, na verdade, adoravam Artemis como Diana, a deusa romana da Lua.
28
2
"a bua in tbt wen" — expressão da língua inglesa para indicar que uma mulher está grávida.
(N. da T.)
32
Conscientes como todo mundo de que a Lua é uma pedra que gira na órbita
da Terra, elas têm estudado mais profundamente a sua importância em
nossas vidas. Como os antigos, incorporaram-na como um símbolo da
fertilidade das mulheres.
Mas será "apenas" um símbolo? Ou alguma de suas qualidades físicas
afeta diretamente os corpos das mulheres? As pessoas às vezes consideram:
se o impulso gravitacional da Lua controla as marés, por que não controlaria
o fluxo mensal da menstruação? Entretanto, o efeito das marés sobre os
oceanos ocorre devido à grande dimensão da Terra. Ou seja, a Terra é tão
grande, que a gravidade lunar afeta o lado mais próximo da Lua de uma
maneira diferente da que afeta o lado mais distante. Esta diferença na força
da gravidade provoca as marés. Os corpos das mulheres não são maciços o
bastante para criar uma diferença tão significativa. Mas há uma maneira mais
direta da Lua influenciar a fertilidade: a qualidade especial da luz lunar.
Quando a mulher tem problemas com seus ciclos menstruais, como
períodos irregulares, os médicos em geral receitam-lhe hormônios. Nos
últimos anos, entretanto, alguns médicos (e mulheres por sua própria conta)
têm tentado uma abordagem diferente. As mulheres dormem à luz da Lua
ou de uma luz que proporcione o mesmo tipo de luz que a Lua. Em muitos
casos, seus ciclos regularizaram-se após algumas semanas.
Quando pensamos na Deusa Tríplice, tendemos a pensar na Grécia
antiga ou na Irlanda celta. Entretanto, Marija Gimbutas observou que a
imagem remonta pelo menos ao período magdaleniano, na França, 12.000 anos
atrás, pois a caverna de Abri Du Roc Aux Sorciers, em Angles-sur-Anglin, na
França, contém um relevo do que Gimbutas chama de "três presenças
femininas clássicas com vulvas expostas". A partir de 3200 a.C.,
encontramos uma imagem tríplice mais abstrata, uma espiral tríplice
magnificamente entalhada no marco de pedra situado na entrada do imenso
passage mound 3em Newgrange, no vale do Rio Boyne, na Irlanda (ver Foto
l).
Não podemos dizer com certeza se essas formas pré-históricas re-
presentam uma Deusa lunar ou as fases da vida de uma mulher. Entretanto,
elas mostram a surpreendente longevidade das imagens tríplices. E as
espirais têm sido encontradas em muitas esculturas e templos da Deusa,
possivelmente como símbolos de nascimento, morte e renascimento. A
espiral não é apenas filosófica. Embora em geral apareça na arte abstrata,
3
Tipo de passagem de acesso. (N. da T.)
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O Corpo no Céu
Para muitas pessoas que procuram o corpo divino na mitologia, tor-
nou-se um lugar-comum que Terra = Deusa, e Céu = Deus. Na cultura
européia, esta idéia provém em grande parte da mitologia grega e romana,
com o Deus Céu, Urano, engravidando a Deusa Terra, Gaia. Algumas
culturas americanas nativas falam no Avô Céu e na Avó Terra. Obviamente, a
dualidade reconhece os "fatos da vida", uma expressão interessante, embora
ultrapassada. Mas serão estes "fatos" do envolvimento masculino e
feminino na reprodução a verdade final da criação?
O mito grego não fala de Urano surgindo ao mesmo tempo que
Gaia. Ao contrário, a existência tem início simplesmente com Gaia, que
depois dá à luz Urano de seu corpo, onde ela teria um parceiro e consorte.
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A Emergência do Masculino
Os achados da biologia e da evolução reforçam a primazia do feminino. Os
biólogos descrevem os primeiros organismos como femininos, reproduzidos
pela separação entre a "filha" e a "mãe". No decorrer da longa evolução, a
introdução do masculino ocorre bem mais tarde, e pode ser chamada de
uma mutação do feminino.
Várias décadas atrás, os biólogos descobriram que todos os fetos
humanos começam como femininos e nos dois primeiros meses seguem um
padrão de desenvolvimento que resultaria em um bebê do sexo feminino.
Na quinta semana, desenvolve-se uma gônada indiferenciada que
eventualmente vai se transformar nos órgãos sexuais femininos ou
masculinos. Um sexo com cromossomos XX vai então desenvolver ovários
na sexta semana. Entretanto, se o feto contém cromossomos XY, o
cromossomo Y vai fazer com que as gônadas secretem um "organizador
testicular". Esta química promove a "diferenciação", ou seja, envia as
gônadas para uma nova linha de desenvolvimento, formando os testículos.
Um artigo publicado em 4 de agosto de 1992, no The New York Times,
descreve como o processo se inicia com a proteína conhecida como "fator
de determinação dos testículos" subjugando o DNA para que os diferentes
genes entrem em comunicação.
Segundo Monica Sjoo e Barbara Mor, em seu livro The Great Cosmic
Mother, no início os fetos portam possibilidades reprodutoras tanto femininas
quanto masculinas. À medida que um conjunto se desenvolve, o outro
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Figura2. Desenho de frente e costas de uma estatueta feminina de forma fálica de Starçevo, Hungria, datada
de c. 5600-5300 a.C. (extraída de Gimbutas).
Figura 3: Desenho de uma cabeça de touro de uma tumba mediterrânea em S. Lesei, Bonnanaro, Sardenha, c. 4000
a.C. (à esquerda), comparado com a forma do útero humano e as trompas de Falópio (à direita), (segundo
(Gimbutas e Cameron).
4
A pedra que ensina. (N. da T.)
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Como acontece com qualquer idéia radical, o corpo da Deusa nos atrai
pelo caráter estranho e maravilhoso do seu tema básico, evocando algo
antigo em nós mesmos que não sabíamos existir até o momento do seu
despertar. Mas uma vez que entramos nesse mundo, ele começa a se abrir,
revelando sutilezas cada vez maiores. As pessoas que adoravam a Deusa não
a viam apenas em seus corpos divinos mais impressionantes, nas conjunções
mais óbvias da natureza e da reprodução humana. Procuravam encontrá-la no
terror da morte ou na energia espiralada das serpentes. Retrataram-na nas
formas de seus templos. E quando começamos a seguir estes caminhos,
descobrimos nossas próprias ramificações e transformações ao descobrirmos
a realidade do corpo da Deusa na arte, nos mistérios do desejo e no júbilo da
contemplação.
O Corpo Visível
A Deusa tem ao mesmo tempo um corpo visível e um corpo invisível. O
visível é qualquer coisa física e substancial. O invisível surge como qualquer
coisa real mas que não pode ser tocada. Inclui esses aspectos da imaginação,
do desejo e do pensamento. O corpo sagrado envolve o Céu e a Terra, não
somente em sua existência física, mas também como expressões da
imaginação mítica. Ou seja, o mundo simplesmente existe. Quando
consideramos essa existência, e começamos a percebê-la em termos
espirituais, nós mesmos permitimos ao corpo da Deusa tornar-se visível.
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uma grande vagina natural, inclinada para trás, com um imenso clitóris de
pedra pendente de seu centro, atrás dos lábios de pedra."
Morte
O visível e o invisível movem-se para dentro e para fora um do outro.
Encontramos este movimento no jogo entre o nascimento, a vida e a morte.
Entretanto, por mais que saibamos do esperma, do óvulo e do
desenvolvimento do feto, cada nascimento continua recriando o milagre de
algo visível — um ser humano individual — emergindo de um mistério
vasto e invisível. E com cada morte, a alma, a pessoa, retorna ao nada.
As plantas desaparecem em uma suposta morte no outono, sumindo
no mundo subterrâneo invisível, e só se tornam novamente visíveis na
primavera. Quando contemplamos a morte, temos a sensação de que o
corpo invisível da Deusa é mais vasto, e talvez mais verdadeiro, que o
visível. Mais de 90 por cento de todas as espécies que já viveram na Terra
estão extintas e, entre as espécies vivas, o número de indivíduos vivos em
cada momento é uma pequena fração daqueles que já viveram.
Isto é verdadeiro em relação a todas as espécies, exceto uma — os
seres humanos, de quem há mais vivos agora do que em toda a história.
Este simples fato provavelmente distorce — mais que qualquer outro
aspecto de nossas vidas — o nosso relacionamento com a natureza e com
a nossa própria existência. Não somente abarrota aquelas partes do
mundo propícias à vida humana, mas também nos permite negar o local
dominante da morte no mundo natural.
A distorção, no entanto, é um fenômeno moderno. Durante a maior
parte da história humana, os mortos sempre excederam em número os
vivos. E se hoje são mais numerosos, talvez possuam também mais poder
espiritual. Afinal, a vida é curta, mas a morte é eterna. E a vida é cheia de
limitações. Nós, os vivos, podemos controlar o tempo, ou desastres
naturais como os terremotos. Não podemos adivinhar o futuro. Mas é
possível — apenas possível — que os mortos possam. Muitas culturas têm
atribuído grande poder aos ancestrais ou a outras figuras mortas há muito
tempo. Nos mitos, o herói frequentemente vai visitar a Terra dos Mortos
em busca de conhecimento ou de ajuda. Os maiores mágicos são aqueles
que podem despertar espíritos mortos.
A primazia da morte emerge de uma maneira incomum na
cosmologia do povo de Bella Coola da Colúmbia Britânica, como conta
Joseph Campbell em The Way of the Animal Powers. Para o povo de Bella
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Sexualidade
O corpo visível expressa-se mais ainda e vem à tona na sexualidade — a
procriação dos animais e das plantas, o sexo elétrico do céu e da terra no
trovão e no relâmpago, e a grande variedade de experiência sexual
humana. E aqui a religião da Deusa, tanto antiga quanto moderna,
difere muito da religião do Deus transcendente. Pois se Deus não tem
corpo, e existe separado do universo que criou, então os seres humanos
tornam-se almas que ou possuem corpos, como objetos ou roupas, ou
estão presas dentro de corpos, prisioneiras em uma cela de carne. A
religião torna-se um anseio de escapar do corpo, assim como um co-
mando para controlá-lo. Na religião de um Deus desprovido de corpo e de
sexo, a sexualidade humana torna-se um fracasso e uma traição, um
afastamento de Deus rumo a uma natureza menosprezada, um pecado.
Uma religião que adora o corpo da Deusa não precisa dessa separa-
ção entre a espiritualidade e a sexualidade. Como algo básico à vida, o
sexo assume o seu lugar como sagrado... "Todos os atos do amor e do
prazer são meus rituais", escreve a bruxa contemporânea Starhawk — um
manifesto de libertação em uma única frase.
Os cientistas e os filósofos frequentemente debatem sobre o que
torna os humanos únicos e os separa dos outros animais. Alguns dizem que
é a linguagem, outros o pensamento abstrato etc. De certa maneira, a
questão em si traduz uma necessidade ansiosa de nos isolarmos da
natureza. Entretanto, há uma característica humana que na verdade nos
torna únicos — o clitóris. As fêmeas humanas são os únicos mamíferos
para os quais o desejo sexual e o prazer não estão diretamente relacio-
nados com a reprodução.
Isto torna o sexo humano mais cultural do que simplesmente bio-
lógico. O sexo torna-se comunicação e uma expressão da nossa hu-
manidade. Quando os cristãos fundamentalistas e outros descrevem o
sexo como a nossa parte "animal", estão realmente distorcendo a realidade
em sua cabeça. A idéia de que só devemos fazer amor para produzir bebês
inverteria a evolução, pois é isso que os animais fazem. A sexualidade é
visível, envolvendo o toque e outras sensações, inclusive o orgasmo, que é
um evento físico no corpo. Além disso, o sexo nos abre para o corpo
invisível do desejo. Como um toque nos lábios, no seio ou no ombro
produz uma reação em uma parte do corpo não tocada, os genitais? E por
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que isso acontece com algumas pessoas, mas não com outras? E qual a
resposta dos nossos corpos quando vemos, sem tocar, alguém bonito, ou
sexy — um amante, um total estranho ou simplesmente uma fotografia?
E que dizer das fantasias que não existem fisicamente no mundo, mas
apenas nas nossas mentes? Que linha Invisível as conecta com nossos
genitais? Dizer que a sexualidade existe no cérebro simplesmente
comprova a questão. Não conseguimos responder ao mistério do desejo
com descrições do funcionamento biológico.
Assim como a morte conduz ao corpo invisível, o mesmo acontece
com o nascimento. Quando uma criança pergunta "De onde vêm os
bebês?”, não está querendo conhecer a mecânica da relação sexual. Nosso
nervosismo sobre este tema leva-nos a falar sobre a reprodução biológica, e
"uma mamãe e um papai que se amam" — o que talvez satisfaça a
criança, que pelo menos recebeu uma resposta. A questão, no entanto,
toca um mistério básico da vida. De onde vêm os bebês? Nós sabemos
como os fetos crescem, mas o que torna um feto uma pessoa viva? Como
um indivíduo emerge do nada para se formar em torno de um corpo
físico?
(para viajar no mar, precisamos criar barcos, que com sua forma seme-
lhante a um útero adquirem o caráter de fêmeas). E como estas aves
"falam" sob a forma de canto, podem portar a sabedoria codificada da
Deusa, assim como a inspiração para a arte, outra maneira do Seu corpo
invisível movimentar-se rumo ao visível.
As aves nos ligam às cobras, mesmo que apenas através de sua
oposição simbólica. E se movem através do ar invisível. Já as cobras,
mais que qualquer outra criatura, deslizam através do corpo invisível da
imaginação. As mitologias de todo o mundo descrevem a conexão íntima
— frequentemente a antipatia — existente entre as aves e as cobras. Em
quase toda cultura, ambas aparecem como as criaturas primárias da Deusa.
E nem sempre são inimigas. Muitos mitos e histórias de fadas contam a
história de um herói que prova o sangue de uma cobra (ou dragão) e
aprende "a linguagem das aves", ou seja, todo o conhecimento. A ave
viaja para os mundos invisíveis do alto; e a cobra desliza pelos mistérios
que há embaixo da terra.
As aves e as cobras parecem representar a cisão (ou o jogo) entre o
consciente e o inconsciente, a racionalidade e o instinto. É fácil com-
preender o fascínio através das aves e de sua capacidade de voar com
graça rumo ao céu. Mas o que proporciona às cobras o seu mistério, a sua
acalentada resistência em quase toda mitologia?
Podemos considerar várias possibilidades. Para se desenvolver, as
cobras precisam trocar sua pele periodicamente. Isto lhes proporciona
uma aura de imortalidade. As cobras têm uma qualidade andrógina —
esticadas, parecem falos, enquanto enroladas assemelham-se às dobras da
vulva. Além disso, seu poder vai além do simbolismo intelectual. Marija
Gimbutas fala da cobra como a energia enrolada.
Embora pensemos nas cobras como venenosas, elas podem atuar
sobre o corpo de maneiras positivas. O veneno de muitas cobras, espe-
cialmente o das najas, atua como alucinógeno, produzindo visões
extáticas. Em 1989, na Califórnia, o Dr. Richard Kunin decidiu pesquisar o
óleo de cobra, frequentemente usado como símbolo de curas inúteis e
fraudulentas. Descobriu que o óleo das cobras d'água chinesas contém um
alto teor de importantes ácidos e outros nutrientes, incluindo a
concentração mais elevada de ômega-3derivado do ácido eicosa-
pentanóico (AEP). Em Fats That Heal, Fats That Kill, Udo Erasmus
afirma que o The New England Journal of Medicine recusou-se a publicar o
estudo do Dr. Kunin.
53
Aspectos do Céu
A luz em todas as suas frequências, incluindo as ondas de rádio, viaja
através do corpo invisível do espaço — e do tempo — e nos traz as
imagens e o conhecimento das estrelas, dos quasares e das galáxias há
muito desaparecidos. Quando olhamos para as estrelas, ou mesmo para o
Sol, cuja luz demora oito minutos para chegar até nós, o passado torna-
se visível. O tempo torna-se uma revelação da realidade divina. Quanto
mais profundamente olhamos para o espaço, mais para trás nos vemos no
tempo, até nos aproximarmos da própria origem da existência.
Nossos corpos surgem da realidade passada, pois tudo em nosso
sistema solar, incluindo nós mesmos e o Sol, formou-se da poeira das
estrelas explodidas. E não podemos viver sem o Sol, cuja luz viaja até nós
através do corpo invisível do espaço, do ar e do tempo.
Lembre-se dos mitos da nossa galáxia, da Via Láctea fluindo dos
seios da Deusa (frequentemente descrita como o corpo visível de uma vaca
ou de um búfalo), ou das estrelas como parte de Sua roupa, manto ou dança.
E pense como os círculos e morros de pedra marcam o nascente (ou o
poente) em determinados dias do ano. Eles servem ao propósito de tomar
conta do tempo, indicar quando plantar ou colher, mas também servem
claramente a um propósito ritual. Parte desse propósito pode ter sido trazer o
corpo invisível dos céus para o corpo mais visível de todos, a pedra e a lama.
Quando o feixe de luz do solstício do inverno penetra na caverna artificial de
Newgrange, na Irlanda, a luz toma forma na presença dos adoradores.
Durante alguns momentos, os túneis de pedra moldam a luz em uma espécie
de escultura, uma forma como um ser humano de pé.
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A Natureza e a Arte
A realidade visível do mundo também nos conduz para o invisível. O poder
da terra repousa em parte no fato de dependermos dela para viver
e em parte na sensação de que algo maior que aquilo que conseguimos
ver vive dentro dela e dá significado ao mundo dos sentidos.
O ato de tornar a Deusa visível torna-se mais do que reconhecimento
passivo. Os esforços da imaginação tornam visível o corpo invisível. O
período neolítico (Idade da Pedra Polida) foi um tempo dedicado a grandes
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Dolores La Chapelle amplia esta idéia, comentando que uma criança recém-
nascida emerge plenamente consciente (se não estiver dopada por drogas
administradas à mãe) e vê o corpo de sua mãe antes de tudo como os montes
veneris e o ventre, com os seios assomando acima deles. Quando ela é
erguida, vê então o rosto de sua mãe. Por isso, quando vemos a formação
tripla da paisagem natural, inconscientemente esperamos que a face da Deusa
Mãe esteja simplesmente fora da vista.
Na Grécia, a formação tripla das colinas suscita particularmente
Artemis — que cuidava das mulheres quando elas davam à luz. Ela
também pertencia às montanhas, onde vivia com Suas ninfas, que tanto
caçavam quanto protegiam os animais. As gravuras arcaicas de Artemis
às vezes mostram-na com Suas asas abertas. Esta imagem pode ter
derivado daquele mesmo pico tríplice, com a colina central como o Seu
corpo e as montanhas laterais como Suas asas.
Se aceitamos que essa imagem da paisagem natural incorpora a
Deusa, isso vai requerer antes de tudo um ser humano para percebê-la e
homenageá-la; depois que ele fique de pé e olhe para um ponto específico o.
Passei a compreender isso melhor em um local na Grécia onde não estava
particularmente procurando essa explicação. Próximo ao templo de Artemis
em Brauron (Vavrona, em grego moderno), há um exemplo da imagem da
Mãe de Scully e La Chapelle (ver Foto 4).
O relacionamento entre as três montanhas pode ser melhor visto
como um ponto ao longo da estrada, a cerca de dois quilômetros do templo.
Não sei se a estrada moderna está no mesmo lugar que a antiga, mas
certamente é possível que as jovens que vinham em procissão de Atenas
para servir Artemis passassem por este ponto. Muitas estradas atuais
realmente seguem os antigos caminhos.
Caminhando ao longo da estrada a partir do templo de Brauron,
você vai experimentar uma sensação do corpo da Deusa lentamente se
tornando realidade. Primeiro, você vê apenas a montanha mais próxima e
parte da seguinte. Depois, quando as duas montanhas laterais se separam,
percebe um vislumbre da montanha menor entre elas. Mas a visão dessa
montanha permanece justaposta por aquela próxima de você, de tal modo
que a forma essencial, um morro no centro ladeado por dois picos iguais,
só fica visível (e essa é a sensação, pelo menos para um observador
moderno) no ponto preciso da estrada em que você vê a montanha central
se erguer equidistante das duas maiores. Por isso, esta pequena visão da
paisagem natural da Deusa só vem à tona quando um observador humano
fica de pé e observa a partir de um determinado ponto.
59
O Pessoal E o Espiritual
Nos estágios iniciais do movimento das mulheres modernas, uma expressão
tornou-se a pedra fundamental do pensamento feminista. "O pessoal é o
político" tem obtido várias interpretações, mas talvez dois dos principais
significados possam ser descritos: primeiro, as mulheres individualmente
desenvolvem conhecimento e entendimento político através da observação
de suas próprias experiências; segundo, isto acontece porque o que
experimentamos nos relacionamentos, no trabalho ou em nossas famílias
ocorre em um contexto político. Colocado de outra maneira, uma estrutura
social inteira existe quando um homem e uma mulher discutem sobre o
trabalho doméstico, o fato de a mulher querer fazer um aborto ou a luta por
remuneração igual. Quando as mulheres começam a examinar e
compartilhar suas experiências, passam a conhecer a política. A ação na
63
O Espiritual É o Político
Assim como seus outros significados, a expressão "o pessoal é político"
significa que qualquer coisa que façamos tem um valor e um impacto políticos.
A política não ocorre apenas nas cabines de votação ou nas passeatas. A
maneira como vivemos nossas vidas carrega significado político tanto para a
sociedade como para as pessoas que nos cercam. O mesmo acontece com a
expressão "o pessoal é espiritual". Não experimentamos a Deusa apenas
quando vamos aos templos ou realizamos rituais. Ao contrário, fazemos essas
coisas para nos tornarmos mais conscientes do sagrado dentro e à volta de
nós o tempo todo, para reconhecermos o sagrado em nossos relacionamentos,
em nossas famílias, nos alimentos que comemos, na maneira como
64
espirituais de uma terra para outra. Espero que possamos aprender a fazê-
lo sem o imperialismo dos cristãos ou dos maometanos, que tentaram
obrigar os povos indígenas de todo o mundo a abandonar seus próprios
Deuses e Deusas. O valor da polinização cruzada é ver as coisas de uma
maneira nova.
Eles viviam sob as sombras das geleiras que tinham até um quilômetro e
meio de espessura, compartilhando seu mundo com rebanhos de renas e
vacas e touros selvagens, chamados bisões. Nós separamos luas fogueiras,
catalogamos seus instrumentos e escavamos seus restos mortais para examinar
seus ossos sob microscópios. Criamos fantasias de suas vidas, retratando
homens selvagens golpeando as mulheres na cabeça para arrastá-las de volta
às cavernas. Entretanto, um aspecto das vidas de nossos ancestrais mais
remotos ainda nos impressiona. Contra tudo que poderíamos esperar, essas
tribos da Idade da Pedra, dezenas de milhares de anos atrás, criaram uma
arte magnífica, desde imensos desenhos de touros e cavalos até estatuetas
delicadamente entalhadas do corpo feminino, muitas delas extremamente
estilizadas e abstratas. De que maneira essas imagens se comunicam
conosco? Que histórias podemos descobrir (e criar) sobre elas? Quando
pensamos no corpo da Deusa, pensamos mais frequentemente na Mãe Terra,
de forma que as cavernas pintadas se traduzem por um retorno ao Seu útero.
Será que os próprios pintores as consideraram dessa maneira? Os sinais da
vulva escavados nas paredes sugerem isso. Assim como as esculturas, pois
ainda que seus criadores as tenham feito pequenas o bastante para caberem
em uma só mão, também as escavaram em um estilo maciço, reminiscente
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Primitivismo
Observar o mistério da arte das cavernas significa antes de tudo observar
nossos próprios preconceitos. Quando os etnógrafos europeus começaram a
investigar as crenças e o comportamento dos nômades e de outros povos
tradicionais, criaram o termo "primitivo", ou seja, pessoas que não foram
além dos estágios iniciais do desenvolvimento humano. Ao examinar os
africanos do deserto de Kalahari ou os aborígines australianos, os europeus
supostamente podiam olhar para trás no tempo, para seus próprios
primórdios. Alguns textos comparavam a visão de mundo das "tribos
primitivas" com aquela das crianças ocidentais.
Não foi por acaso que essa abordagem da antropologia desenvolveu-
se no período após a publicação da Origem das Espécies, de Charles Darwin.
O conceito de evolução mudou a maneira dos europeus considerarem as
outras culturas. Anteriormente, até europeus que rejeitavam a doutrina
cristã, segundo a qual Deus criou o mundo 5.000 anos atrás, ainda tendiam a
considerar as culturas não-européias como ignorantes e desprezíveis. Depois
de Darwin, os europeus começaram a descrever a humanidade como
evoluindo de um estágio para outro.
A própria cultura européia certamente parece ter feito isso. A Idade da
Pedra Lascada evoluiu para a Idade da Pedra Polida com o desenvolvimento
da agricultura e das construções monumentais. Os metais produziram
primeiro a Idade do Bronze, depois a Idade do Ferro. O
patriarcado e os governos centralizados parecem ter substituído as
comunidades tribais, e assim por diante.
Por isso, para os europeus torna-se natural encarar cada mudança
como um avanço para uma cultura "mais elevada". De fato, isto é
literalmente verdadeiro na arqueologia, pois se encontra evidência de culturas
mais antigas escavando mais fundo na Terra. É possível, contudo, que este
seja o único ponto verdadeiro. Pois à medida que exploramos o
conhecimento, a sofisticação e as vidas cotidianas dos povos da Idade
da Pedra, tanto da Pedra Lascada quanto da Pedra Polida, começamos a
questionar se as mudanças necessariamente desenvolveram a sociedade
humana ou o conhecimento humano. Somente com os computadores e
os microscópios começamos a recuperar parte do conhecimento perdi
do com a Idade da Pedra. E ainda temos um longo caminho a percorrer
antes de recuperarmos a sabedoria.
73
Poder de Lascaux
Uma vantagem de ver com nossos próprios olhos é que isso pode nos ajudar
a tirar da mente a ideologia do primitivismo. Ironicamente, quando
observamos os monumentos da pré-história européia — os círculos como
Stonehenge, ou as cavernas muito mais antigas, como Lascaux ou Pêch-
Mèrle —, podemos emergir desprovidos da idéia de que sempre houve isso
que chamamos de ser humano primitivo.
Ver Lascaux é ver, de uma maneira esmagadora, o brilhantismo e a
complexidade dos humanos Cro-Magnon de 17.000 anos atrás. Em 1963, o
governo francês fechou Lascaux devido à contaminação bacteriana dos
muitos visitantes. (Foi feita uma cópia, a mais exata possível em termos de
pigmentação e dos contornos das paredes, explodindo uma segunda caverna
no mesmo declive da montanha, algumas centenas de metros de distância
dali. Imagina-se como os arqueólogos do futuro, incapazes de decifrar
nossas línguas, considerariam essa duplicação, com um intervalo de quase
20.000 anos separando as duas cavernas)
Ainda é possível ver a original, solicitando permissão com bastante
antecedência. Como ela só recebe quatro ou cinco pessoas de cada vez, os
guias desenvolveram uma maneira dramática para mostrar a caverna em sua
glória. Primeiro, conduzem o visitante até uma antecâmara cortada na
encosta da montanha. Depois, apagam todas as luzes antes de abrir a porta
para a caverna em si. Se, como alguns suspeitam, a caverna foi usada para
iniciações, esta pode ter sido a maneira como os membros das tribos originais
penetravam no segredo — isto é, na escuridão total, até seus líderes
acenderem suas tochas ou lamparinas.
Os guias conduzem você até a câmara e ligam as luzes elétricas. E ali
fica você, de pé, entre enormes paredes brancas cobertas de animais
saltando, correndo, bufando, alguns com até cinco metros e meio de
comprimento, parecendo manadas de cavalos, ou touros, alguns com outros
animais emergindo de seus corpos, todos pintados com cores brilhantes. O
efeito é um desejo de gritar ou chorar de assombro e júbilo, enquanto o
tempo todo você pensa: "Isto tem 17.000 anos de idade. As pessoas
pintavam estas obras-primas 17.000 anos atrás" (ver Foto 7).
O tamanho das pinturas, as cores brilhantes ou o ambiente gran-
dioso — não é apenas isso que liberta você das ideologias do
primitivismo. É a técnica, a beleza do trabalho. Os detalhes anatômicos são
75
Primórdios da Arte
Antes de examinar os possíveis propósitos da arte nas cavernas, devemos
observar o desenvolvimento dessa arte. Isso não somente vai nos instruir no
que os cientistas aprenderam da história inicial da humanidade, mas vai
também ajudar a demonstrar a primazia da arte na cultura humana. Talvez
esta última frase devesse falar na cultura dos "primatas". John Pfeiffer, em
The Creative Explosion, conta-nos sobre um chimpanzé do Jardim
Zoológico de Londres, chamado Congo, que produziu 384 desenhos aos
quatro anos de idade, "progredindo desde rabiscos até círculos e cruzes
toscos", alguns deles tendo sido até vendidos em uma exposição. Nos
Estados Unidos, um chimpanzé chamado Moja, com três anos e meio, fez
um desenho de "quatro segmentos de linha, um ângulo reto e uma curva
ampla". Moja fazia parte de uma experiência de comunicação entre espécies
e aprendeu um vocabulário limitado da Linguagem Americana de Sinais.
Quando parou de desenhar, o humano que estava assistindo comunicou-lhe
com sinais: "Faça mais." Moja sinalizou como resposta: "Terminado." O
humano perguntou: "O que é isso?" Moja respondeu: "Pássaro." Mais tarde,
Moja prosseguiu, desenhando "grama", "frutinha" e "flor". Possivelmente, o
impulso para criar a linguagem e a arte teve um desenvolvimento si-
multâneo.
Entre as primeiras criações humanas estão os "machados de mão",
pedras escolhidas por sua forma alongada e arredondada, aplanadas e depois
aparadas lateralmente para produzir tanto uma extremidade cortante quanto
uma simetria. Eles aparecem cerca de um e meio milhão de anos atrás. Será
que seus fabricantes os moldaram simetricamente por razões estéticas? Um
exemplar encontrado em Norfolk, na Inglaterra, contém uma concha
fossilizada, exatamente no meio, como se tivesse sido colocada ali para
embelezá-lo.
Os historiadores da pré-história referem-se a tais objetos como
machados de mão, mas na verdade, segundo Pfeiffer, "não são machados e
não eram usados para cortar nem para qualquer outro tipo de trabalho
pesado". Seriam realmente ferramentas? Os famosos machados duplos de
Creta eram feitos de um metal mole demais para ser usado como
ferramentas ou armas. Variando em tamanho desde alguns centímetros até
mais de dois metros de altura, eles eram usados como oferendas votivas,
objetos de devoção à Grande Deusa. Os muitos brasões e outras imagens
77
A "Explosão Criativa"
Cerca de 35-40.000 anos atrás, a humanidade Cro-Magnon sofreu o que John
Pfeiffer chama de "explosão criativa", com o surgimento de entalhes na
parede, ossos delicadamente entalhados e estatuetas elaboradamente
esculpidas, que continuaram a ser criados durante milhares de anos.
Isto não significa que a cultura humana teve início apenas na Europa.
A maior parte do nosso conhecimento do período paleolítico vem de uma
pequena área do sul da França e do norte da Espanha, particularmente os
vales dos rios Dordogne e Vézère, na França. Entretanto, pelo menos a
China e a índia são também conhecidas como tendo experimentado
desenvolvimento na Idade da Pedra, embora pouca arte tenha sido lá
encontrada, possivelmente devido a uma exploração menos extensiva. A
arte na pedra aparece virtualmente em toda parte, e sua fonte mais rica é o
sul da África, onde foram encontrados cerca de 6.000 sítios arqueológicos,
contendo cerca de 175.000 pinturas. As pesquisas arqueológicas recentes
deslocaram o início da arte — e do comércio — da Europa para épocas
muito anteriores na África. Pelo menos 100.000 anos atrás, os humanos
na África desenvolveram redes comerciais de longa distância para vários
produtos, incluindo contas.
A arte inicial, especialmente a arte mural e as estatuetas, mostra o
poder espiritual do corpo feminino. As gravuras murais européias co-
meçaram com imagens da vulva, e embora os animais mais tarde tenham
79
Abstração Simbólica
As vulvas entalhadas não eram imagens realísticas dos genitais femininos,
mas fendas ou triângulos abstratos. Em outras palavras, eram símbolos. E
quando encontramos símbolos, podemos falar de idéias e de um sentido
do sagrado. As pessoas daquela época não viviam nas cavernas escuras e
inacessíveis, mas em abrigos de pedra, que também pintavam e
entalhavam. No abrigo de pedra de L'Abri Pataud, os arqueólogos
encontraram uma mulher e uma criança enterradas em frente a uma
vulva escavada na pedra. Repetidas vezes, essa mesma conjunção aparece
diante de nós: o cadáver e a vulva; ocre — a cor da vida — e o morto; a
morte e o renascimento; voltando milhares de anos.
80
Impressões de Mãos
As outras formas de arte aparecem cedo e continuam através do período
paleolítico: bastões entalhados e impressões de mãos. Como as marcas de
xícaras, as impressões de mãos aparecem no mundo todo na arte da pedra.
Às vezes as encontramos junto com outras imagens; outras vezes, apenas
elas. Os artistas usavam dois métodos. As impressões de mãos "positivas"
81
eram a imersão das mãos na tinta e depois sua pressão contra a parede. As
impressões de mãos "negativas" parecem ter sido feitas pressionando-se a
mão contra a parede, com os dedos abertos, e depois soprando a tinta
através de um tubo na área em torno da mão. Algumas impressões de mãos
aparecem com parte de um dedo faltando. Na caverna de Maltrevieso, no
oeste da Espanha, todas as impressões de mãos se caracterizam pela ausência
das duas articulações superiores do dedo mínimo. Embora isto possa ter
resultado de uma amputação ritual, talvez como uma oferenda aos
Espíritos, Mark Newcomer, um arqueólogo experimental, demonstrou a
possibilidade de se falsificarem essas imagens dobrando o dedo antes de
soprar a tinta.
O tamanho das mãos indica que as mulheres faziam tais impressões,
dando suporte à idéia de que artistas mulheres criaram as pinturas. Na índia
rural, pintoras mulheres contemporâneas incluem as impressões das mãos
como parte do seu trabalho.
À semelhança que ocorre com toda a arte pré-histórica, desconhe-
cemos o significado específico das impressões das mãos. Podemos supor, em
um sentido genérico, o que levaria as pessoas a deixar esses tipos de marcas.
Quando vamos a um lugar sagrado, onde experimentamos grande respeito,
em geral desejamos tocar o chão, as pedras ou as árvores. Queremos
pressionar nossas mãos como uma extensão da nossa consciência, pois elas
de alguma forma transportam uma carga especial de energia. Não somente
nossas mãos nos distinguem dos outros animais, mas as usamos para
reconstruir o mundo que nos cerca. As impressões das mãos fazem uma
declaração poderosa. Deixam uma marca da consciência. Constituem tanto
um ato de submissão quanto uma atitude ousada de participação no poder
espiritual vivo, presente naquele lugar. Com as impressões das mãos
absorvemos o poder de um lugar sagrado e entregamos em troca algo de nós.
Pressionamos a realidade do nosso próprio corpo no corpo da Terra.
Na caverna de Pêch-Mèrle, impressões de mãos negativas cercam um
desenho de dois cavalos. As mãos permanecem fora dos corpos,
transmitindo uma sensação de que os humanos podem não penetrar em algo
tão venerável quanto um espírito animal. Esta separação estrita torna-se
mais interessante quando consideramos que os artistas das cavernas em geral
desenhavam um animal surgindo de outro, como em Lascaux, ou ainda
superpondo muitos desenhos, um acima do outro.
82
Bastões Entalhados
Os bastões entalhados são uma questão mais complexa, pelo menos pelo
fato de conterem mais informações. Eles consistem em ossos ou chifres
entalhados e decorados, às vezes com uma série de marcas simples,
aparentemente abstratas, mas outras vezes com figuras de animais c de
plantas cuidadosamente entalhadas. A maioria deles tem pelo menos um
buraco perfurando-os; alguns têm vários. Os arqueólogos costumavam se
referir a eles como "batons de commandant", presumindo que fossem um
símbolo de autoridade de um chefe tribal — uma suposição que talvez diga
mais sobre os arqueólogos do que sobre a cultura da Idade da Pedra. O
museu da arte das cavernas, em Lês Eyzies, na França, descreve atualmente
os poucos bastões exibidos como "objetos enigmáticos".
Das várias imagens de humanos com animais na arte paleolítica,
nenhum dos humanos porta armas. Alguns poucos, no entanto, carregam
objetos ou discos cerimoniais, indicando que eles procuravam encontrar
animais sagrados, não matá-los ou subjugá-los.
Marcas em Ossos
O estudo das marcas abstratas nos ossos sugere mais fortemente ainda essa
consciência. Se Marshack estiver correto, essas séries de linhas regulares
gravadas, sempre consideradas rabiscos sem significado, realmente
representam uma cuidadosa contagem de dias, ou meses. As linhas podem
marcar dois tipos de tempo, ambos associados aos corpos das mulheres;
primeiro, as fases da Lua, tão vitalmente ligadas à menstruação; segundo, a
duração da gravidez.
Em vez de serem varas fálicas representando o poder de um chefe,
os "batons" podem ter funcionado como bastões-calendários para as
84
A Vênus de Laussel
Uma das imagens mais famosas da arte das cavernas é a chamada "Vênus
de Laussel", uma incrível escultura em relevo de mais de 20.000 anos de
idade, encontrada em um abrigo de pedras no vale do Rio Dordogne (ver
Foto 9).
Como acontece com várias outras obras em relevo, o artista usou a
curva e a protuberância da parede para proporcionar à imagem qualidade
tridimensional. A evidência indica que essa figura também foi pinta- \ da
com ocre vermelho, aquele símbolo ubíquo do sangue vital da Deusa. Aqui
a mulher aparece grávida. Sua mão esquerda se apóia em sua barriga,
enquanto a direita segura o chifre de um bisão marcado com 13 linhas. O
chifre detém uma importância simbólica imensa. Um ano contém 13 luas
cheias ou 13 luas novas (um mês lunar dura 29,5 dias), e o chifre do bisão,
ou da vaca, se parece com a Lua crescente ou minguante, como uma
barriga grávida se assemelha à Lua cheia.
Lembre-se de que os bovinos, touros e vacas, são os animais mais
comuns na arte das cavernas. E lembre-se de que, nas culturas posteriores
de todo o mundo, a vaca ou o búfalo incorpora a Grande Deusa, com
figuras como a Mulher Búfalo Branco entre os sioux de Lakota,' Oya como
um búfalo na África Ocidental, na Europa e na mitologia, grega, Hator no
Egito, e a vaca no mito escandinavo, que lambeu um bloco de água
salgada congelada para formar o mundo. A Via Láctea, o nome que damos
à nossa galáxia, refere-se ao mito das estrelas como leite da Deusa (vaca)
85
Economia do Caçador-Coletor
Durante muitos anos, os historiadores da pré-história descreveram as
pinturas nas cavernas como "mágica da caça". Preocupados em garantir um
suprimento constante de carne, os "homens das cavernas" supostamente
faziam desenhos da presa desejada e esperavam que isso lhes desse poder
sobre as criaturas. Contudo, as evidências arqueológicas corroem esta idéia.
Antes de tudo, a partir do que conhecemos dos ossos e dos restos
fósseis, a caça não era de modo algum escassa, mas abundante. A maioria de
nós foi criada com a imagem dos "homens das cavernas" levando uma
existência miserável e desesperada. Isto também pertence à ideologia do
primitivismo, pois nos diz que estamos muito melhor servidos com nossa
sociedade tecnológica avançada, e que toda a história seguiu um progresso
contínuo para condições cada vez melhores. Se consideramos nossas vidas
atualmente insatisfatórias, podemos nos dizer que não temos escolha, e que
os povos mais antigos sofriam muito mais que nós. Essa visão da vida na
Idade da Pedra Lascada justifica não apenas as chamadas "grandes
civilizações" começando com a Suméria, mas até o capitalismo tardio.
Quando ecologistas e outros atacam nossa aproximação da natureza baseada
no consumo, os conservadores freqüentemente citam a suposta miséria que
existia antes do homem dominar a natureza. Entretanto, a pesquisa tem
corroído esta visão da vida pré-histórica. Em um artigo intitulado "The First
Affluent Society", Marshall Sahlins demonstrou que os povos paleolíticos só
87
Estados de Transe
A arte das cavernas originou-se de viagens de transe? David Lewis-
Williams desenvolveu essa teoria baseado na neuropsicologia das pessoas
em estados de transe, comparando suas visões com as imagens nas cavernas.
Por exemplo, as pessoas em estados de transe vêem formas geométricas e
figuras abstratas similares às centenas de "sinais" encontrados em Lascaux e
em outros locais. Vêem seres animais poderosos — e conversam com eles.
Também podem encontrar "tierantropos", criaturas parte humanas e parte
animais, ou eles próprios podem se tornar essas criaturas. Embora as
paredes das cavernas exibam principalmente animais, encontramos algumas
misturas de humanos e bestas — por exemplo, uma forma com
características humanas com cabeça e chifres de veado. As pessoas em transe
geralmente iniciam suas viagens experimentando uma descida através de
um túnel descendente. Uma caverna proporciona realidade física a este túnel
psíquico. Lewis-Williams estudou a arte na pedra dos !Kungs, da África do
Sul, como parte de sua pesquisa. Entre os !Kungs, os xamãs desenham
enquanto estão em transe, muitas vezes pintando borrões e outras
abstrações que lhes aparecem em seus estados alterados.
O que é interessante nesta teoria do transe é sua base no corpo. Ela
procura apontar o conhecimento do mundo dos espíritos como a fonte das
pinturas. Mas não trata essas viagens como alucinações; ao contrário,
considera-as experiências do corpo.
Há um conjunto — corpo — de informações relacionadas aos estados
de transe. Grande parte dele diz respeito a medições da eletricidade do
cérebro e assim por diante. Só recentemente, os ocidentais começaram a
considerar as próprias viagens como experiências reais. Só recentemente
começamos — de uma maneira muito nervosa — a ver o mundo dos
espíritos como um lugar real, e os seres que lá habitam como algo além de
projeções das nossas próprias fantasias. Apesar disso, esta é exatamente a
maneira como, há centenas de anos, as pessoas de todas as culturas têm
encarado o mundo dos espíritos.
Acreditar na realidade das viagens de transe requer dois tipos de
confiança. Primeiro, precisamos confiar no fato de que as pessoas que
fizeram estas viagens durante um período de dezenas de milhares de anos
sabiam o que estavam fazendo. Segundo, precisamos confiar na experiência
dos nossos próprios corpos. Felicitas D. Goodman, em Where the Spirits Ride
the Wind, documentou uma série de experiências usando posturas corporais
90
O Xamã de Lascaux
Uma das posturas de Goodman veio de Lascaux. A única imagem humana
nesta grande galeria mostra, em um bastão, a figura de um homem, deitado
de costas ao lado de um bisão (Ver Figura 4).
Figura 5: Desenho de mulheres grávidas dançando, sem cabeça e com cabeça de pássaro, feito em barro, da
caverna de Pêch-Mèrle, na França, c. 20 000 a.C. (conforme Vicki Noble).
Marija Gimbutas
Os Primórdios da Agricultura
Os escritores cuja temática são os primórdios da cultura humana oferecem
épocas e locais diferentes para o início do plantio e da colheita deliberados.
Segundo Joseph Campbell, a agricultura começa em torno da mesma época,
10000 a.C., em quatro áreas distintas — as Américas, o sudeste da Ásia e o
Pacífico, o sudoeste da Ásia e a África. Concentrando-se no Oriente Médio,
Merlin Stone escreveu que a primeira evidenciada agricultura data de cerca
de 8 500 a.C., na Síria, no Jordão e em Jerico. James Mellaart data os
instrumentos agrícolas de 9000 a.C., assinalando que as pessoas primeiro
domesticaram os carneiros, por volta de 8900 a.C., e que existem evidências
de comércio (in obsidian) já em 8300 a.C., entre a Anatólia, na Turquia, e a
cidade de Jerico, próximo à margem oeste do Rio Jordão.
Na maior parte da Europa, essas grandes mudanças culturais só
ocorreram algum tempo depois. A disciplina acadêmica da arqueologia
origina-se da cultura européia, o que explica por que sabemos tão mais sobre
as primeiras sociedades agrícolas européias e do Oriente Médio do que
sobre as culturas da Ásia, da África ou das Américas.
Outra razão são os próprios megálitos, o vasto numero de morros,
círculos de pedra, túmulos, dolmens, marcos de pedra e outras construções
que se estendem desde a Irlanda e a Grã-Bretanha e atravessam a Europa
ocidental até a Escandinávia, Malta, Sicília, Creta e mais além. Os megálitos
comandam nossa atenção, inspirando-nos com devoção e curiosidade. Quem
realmente os construiu? A que propósito serviam? Por que aparecem ao
mesmo tempo que a agricultura? E, acima de cudo, o que significam?
Astro-Arqueologia
Nos últimos anos, concentrou-se a atenção na "astro-arqueologia", a
descoberta de amplos alinhamentos entre os círculos de pedra e eventos
celestiais como os solstícios e os equinócios. Gerald Hawkins, cujo livro
Stonehenge Decoded foi o primeiro a trazer essas idéias ao povo em geral,
descreve Stonehenge como um computador gigante que segue o rastro das
eclipses, determina as posições extremas do Sol e da Lua e, é claro, o famoso
nascer do sol do meio do verão.
Por exemplo, a Lua cheia não nasce nem se põe no mesmo lugar
todos os meses, mas se move em um ciclo que dura, em média, 18,61 anos
para se completar. Como o número inclui uma fração (0,61), e como o
tempo realmente varia entre um ciclo e o seguinte, Hawkins calcula que o
melhor número inteiro para seguir a órbita da Lua durante várias décadas é
56 anos. Segundo seu descobridor do século XVII, o sítio arqueológico de
Stonehenge contém um círculo de 56 buracos, conhecidos como buracos de
Aubrey. Se os marcadores mudassem de buraco para buraco durante 56
anos, poderiam ter mapeado o progresso d a Lua.
104
Formas Corporais
O próprio Brennan rejeita a idéia de qualquer representação
antropomórfica nos montes. Além disso, a forma não é estritamente
funcional. As passagens precisam ter uma determinada extensão para a luz
penetrar corretamente, mas não está claro que precisem ser cruciformes,
uma forma que a arquitetura sagrada sempre usou para retratar o corpo
humano. E a grande dimensão dos montes, sem falar em sua forma
arredondada, implica alguma importância simbólica, se não
ginecomorfismo (moldado como uma mulher). O amplo monte de
Newgrange cobre muito mais espaço do que seria necessário para cobrir
o interior. A passagem nos lembra uma caverna em uma montanha — ou
um útero.
Além de montes maiores, a Irlanda contém muitos "court cairns"
(montes da corte), assim chamados devido à entrada semicircular for-
mada por duas fileiras curvas de grandes pedras. Estes também contêm
aquela forma interior como um corpo com os braços e as pernas para
(ora. Podemos vê-la também no Grande Túmulo de West Kennet, o
passage mound retangular próximo ao Círculo de Pedra de Avebury, na
Inglaterra. E a encontramos também em santuários neolíticos na Polônia na
região anteriormente ocupada pela Iugoslávia.
Um Dia do Ano
Uma das descobertas de Brennan diz respeito a Dowth, terceiro na MTÍC
de montes gigantescos que incluem Knowth e Newgrange. Ao contrário
dos outros dois locais, Dowth não foi restaurado, de forma que aparece
como uma pequena colina verde, com árvores e grama alta. Quando
olhamos mais de perto, percebemos que esta colina, que parece natural,
contém uma "caverna" em sua base, com um portão de ferro bloqueando a
entrada. E se examinarmos a rocha nua na base da colina gramada,
descobriremos espirais entalhadas.
Segundo Brennan, a luz que penetra em Dowth vem do pôr-do-sol no
meio do inverno, e não do nascente como em Newgrange. Talvez as pessoas
que a tenham construído observassem um "dia" ritual no decorrer do ano.
Essa cerimônia com um ano de duração pode ter ocorrido em intervalos
especiais — digamos, a cada sete anos. (A importância do número sete na
108
As Tumbas e os Arqueólogos
A arqueologia profissional descreve os megálitos de toda a Europa como
"tumbas", às vezes descrevendo a cultura neolítica como obcecada com a
morte, ou centralizada em torno de um culto do morto. Para um não-
arqueólogo, a insistência em ver todo monumento como uma tumba pode
parecer obsessiva. Os escavadores têm encontrado restos de esqueleto e
restos cremados em algumas estruturas megalíticas, mas de modo algum
em todas. Escrevendo sobre as estruturas circulares da Itália, Ruth
Whitehouse (em The Megalithic Monttments of Western Europe) cita a
109
Local de Marcação
O arqueólogo Colin Renfrew sugere que os monumentos funcionavam como
"marcadores territoriais", significando que um grupo particular dominava
uma área de terra. É um pouco difícil entender como isto podia funcionar,
como um círculo de pedra, por exemplo, indicaria que porção de terra estava
sendo "reivindicada", ou por que alguns locais requeriam vários morros
imensos ou círculos tão próximos um do outro, e outros nada, ou por que
um montinho de pedra seria suficiente em um lugar, um dólmen em outro e
um passage mound gigantesco em um terceiro. Mas por que devemos rejeitar
a idéia, como alguns defensores da espiritualidade megalítica parecem fazer?
As pessoas frequentemente sentem necessidade de marcar sua presença.
Na Nova Inglaterra e no Estado de Nova York, inúmeras casas, igrejas,
bancos e shopping centers exibem pedras verticais bastante grandes (e em
geral bonitas), ou até linhas inteiras ou semicírculos feitos de pedra, em
entradas para automóveis, gramados, portões ou áreas de estacionamento.
Na minúscula cidade de North Salem, em Nova York, pode-se ver uma
enorme pedra de cerca de 90 toneladas, com a forma um pouco parecida
com a cabeça de uma cobra ou de uma tartaruga, apoiada sobre várias
pedras pequenas de calcário, todas de forma cônica c dispostas em um
triângulo isósceles. Os defensores dos megálitos norte-americanos
111
corpos da terra. Ou, para inverter isso, podemos dizer que perceber a
paisagem natural como o corpo divino proporciona um contexto poderoso
para o valor prático do território mapeado.
Figura 6: Desenho do caminho do Sol no decorrer de um ano. Construção de Charles Ross, "Sunlight
Convergence, Solar Burn: The\fear Shape", 1972. j
Fígura 7: Desenho de espirais em uma estatueta da Deusa encontrada em Cucuteni — uma cultura da Ro-
mênia—, c. 4300 a.C. (segundo Gimbutas).
Nossos corações são chagas para o ultraje à ordem das antigas deusas.
A Não-Violência e a Arte
No período neolítico, não encontramos a glorificação da guerra e da
matança, tão proeminente nas sociedades posteriores. Em Çatai Hüyük, 150
pinturas sobreviveram nas paredes. A arte era evidentemente importante
nesta cidade bastante antiga (Mellaart enfatiza que era realmente uma
cidade, não uma colônia temporária), e, entre essas 150 pinturas, nenhuma
mostra batalha, guerra ou tortura.
Em Creta, também, a arte elegante encontrada em todas as ruínas não
mostra cenas de guerra. Os arqueólogos encontraram armas nesses locais.
James Mellaart relata evidências em Çatal Hüyük do uso de estilingue, arco
e flecha, e lanças. Mas todos estes artefatos eram tanto instrumentos de caça
quanto armas, e por isso não podemos supor que representem evidência de
guerra. O mais significativo é que nenhuma arma aparece na arte. Segundo
Stylianos Alexiou, no livro Minoan Civilization, Creta tinha uma marinha e
travou batalhas no mar. Entretanto, na própria Creta as fortificações
permaneceram desconhecidas e nenhuma batalha naval aparece na arte. Os
cretenses podem ter combatido estrangeiros, mas viviam pacificamente entre
eles.
Assim como não mostra evidências de violência, a arte neolítica não
exibe glorificação de um chefe ou governante, seja homem ou mulher. Nos
afrescos e brasões murais cretenses, vemos principalmente grupos de pessoas
realizando juntas atividades como danças ou sacrifícios de touros. Algumas
mulheres são em geral Deusas, ou talvez sacerdotisas, mas não rainhas. Só
uma vez aparece uma imagem masculina individual, e esta figura, um jovem
gracioso segurando flores, dificilmente sugere o todo-poderoso "Rei Minos",
descrito pela posterior lenda grega patriarcal.
121
Túmulos Individuais
As vezes, a honra nos sepultamentos envolvia mais simbolismo do que
riquezas. Na Polônia, os arqueólogos encontraram um túmulo de uma
mulher de 50-60 anos de idade. O túmulo continha um recipiente "cheio até a
borda" — segundo a professora Gimbutas — de ocre vermelho. Isto pode
ter significado mais que honra ou até mesmo simbolismo. O ocre vermelho
implica poder sagrado, e um recipiente cheio dele representa riqueza
espiritual (compare com a grande quantidade de ouro enterrada com os
chefes guerreiros posteriores). Se as mulheres agiram como chefe durante a
vida, as pessoas podem ter buscado sua benevolência como um espírito
ancestral após a morte.
Nas culturas neolíticas, a comunidade pode ter homenageado as
mulheres mais velhas em parte por sua sabedoria e experiência de vida, mas
também porque era menos comum as pessoas viverem após a meia-idade. As
mulheres, particularmente, teriam sido homenageadas porque,
individualmente, incorporavam o poder criativo da Deusa, e porque esse
poder era transmitido de mãe para filha pelo meio mais natural possível — o
ato de dar à luz.
A incorporação da Deusa nas mulheres proporciona-lhes autoridade.
Como esse poder chega muito naturalmente, as mulheres mais velhas
podem não ter sentido necessidade de subjugar os homens. O poder viria então
de seus corpos, não simplesmente dos controles sociais. Em algumas nações
norte-americanas, em especial os povos da confederação dos iroqueses, as
124
Figura 8: Desenho da coroa de Isis (esquerda), comparada com os Chifres Cretenses da Consagração encontrados
em Cnossos, Creta (direita, segundo Al exiou).
Escarnação
Os povos antigos podem ter observado a conjunção da cabeça do touro e do
útero através da escarnação, um processo fúnebre pelo qual um corpo é
exposto à natureza antes do sepultamento o u desenterrado para um segundo
sepultamento. Não somente as pessoas podiam ter visto o interior do corpo
feminino através deste processo, mas também teriam visto o útero enquanto
o corpo estava deitado, quando as trompas de Falópio assumem mais
obviamente a forma dos chifres de um touro.
Em Çatai Huyük e em outros locais, as pessoas praticavam a
escarnação através da exposição do corpo a abutres que iriam remover a
129
carne podre para revelar os ossos. Os ossos significam o corpo eterno que
não se deteriora. Os xamãs, em seus transes iniciatórios, muitas vezes
experimentam o dilaceramento de seus corpos, ou sua exposição à água
fervendo, para que o osso seja exposto e depois preenchido com o poder de
cura. Consta que os xamãs recebem o poder de ver os ossos de uma pessoa
através da carne. (Para mais informações sobre o desmembramento
xamânico e sua relação com o mito grego posterior, particularmente com
Dionísio, ver Capítulo 7.)
Os agentes da escarnação, os abutres, aparecem muito dramatica-
mente nas pinturas murais encontradas em Çatai Huyük. Uma pintura,
cobrindo várias paredes, mostra abutres estilizados, com enormes asas tipo
vassouras e pés humanos. Os pés indicam que eles incorporam mais a
Deusa do que propriamente as aves.
Em Çatai Huyük, as imagens da vida e da morte misturam-se de uma
maneira que podemos achar bizarra. A equipe de Mellaart descobriu os
crânios de abutres, raposas ou doninhas incorporados em representações de
seios. Às vezes, as mandíbulas dos animais ou de varrões selvagens
projetam-se dos mamilos. Mellaart descreve um santuário com uma cabeça
de touro, e depois seios duplos com mamilos abertos dos quais emergem os
bicos de abutres. Havia uma construção, decorada com uma série de cabeças
de abutres, que fora queimada. Quando a revestiram de gesso, cada
mandíbula de abutre foi transformada em um seio de mulher.
De outro ponto de vista moderno, tendemos a considerar a
sacralidade da natureza como ingênua ou filosófica. Isto é, desde que
aprendemos a ver Deus como apartado da natureza, supomos que as
pessoas adoravam diretamente os animais ou os consideravam símbolos de
algo mais. Eu tenho usado o termo "incorporação" para indicar uma
alternativa que proporciona aos povos antigos uma sutileza intelectual,
embora não os afastando (nem a nós) do encontro direto com o sagrado nas
criaturas vivas. Ver a Deusa incorporada em um abutre ou em um touro (e
não há razão para a Deusa não poder se incorporar em um animal macho ou
em um animal fêmea, em homens e também em mulheres) significa
reconhecer que estas criaturas contêm o poder vivo do divino.
Os Nós
Não somente os aspectos do mundo natural eram considerados incorporação
da Deusa. Em muitos lugares, os nós significavam o Seu poder, e imagens dos
132
O Nó Górdio
Os nós também simbolizam a tradição. Muitos de nós conhecem a lenda de
Alexandre, o Grande, e o Nó Górdio. Este nó extremamente complexo
derrotou vários pretensos conquistadores da Ásia, e uma profecia declarava
que quem o desatasse se tornaria o governante de toda a Ásia. Alexandre,
sabemos muito bem, simplesmente pegou sua espada e cortou-o ao meio.
(Não está claro exatamente que lição nossos professores queriam que
extraísse-mos disso — destruir nossos problemas em vez de tentar
resolvê-los?). Esta pequena fábula adquire maior profundidade quando
descobrimos que Górdio foi a principal cidade da Frígia, terra natal de
Cibele, a Grande Mãe (e também de Afrodite, que no Quinto Hino
Homérico descreve-se como filha de Frígia). Barbara Walker conta-nos
que o nó representava o vínculo no casamento místico da Mãe com Seu
filho/consorte/rei. (Compare a imagem moderna — negativa — de um
homem amarrado às fitas do avental de sua mãe.) Cortar esse nó represen-
tava uma espécie de infanticídio, o assassinato dos filhos da Deusa,
assim como uma tentativa de assassinar a própria Deusa. E, realmente, a
conquista de Alexandre trouxe a morte — e também a violação e a
escravidão — para um grande número de pessoas.
A complexidade dos nós simbolizava os milhares de anos de
tradição, ciência e conhecimento sagrado da Deusa. O patriarcado
ascendente, simbolizado por Alexandre, não tentou compreender esta
grande civilização, ou sequer mudar suas crenças e estruturas atuando
através de suas várias tradições. Ao contrário, simplesmente a conquistou
através do poder da espada, e continuou a fazê-lo a partir de então — nas
Américas, na Austrália, na África e, mais recentemente, nas profundezas
134
aos corpos. "Penso, logo existo." (Vicki Noble menciona uma inscrição
antiga cuja tradução é: "Tenho seios, logo existo.") Em nossa época, temos
visto como cientistas e engenheiros bélicos "criam" excitadamente sistemas
destinados a matar grandes números de pessoas, e nunca parecem conectar
este trabalho intelectual com a morte de seres humanos reais. Apesar disso,
o corpo invade a si mesmo. A gíria do Pentágono descreve os mísseis e as
bombas avançadas como "sexy". Quando os cientistas em Los Alamos
explodiram a primeira bomba atômica, distribuíram charutos e
anunciaram: "É um menino”.
A valorização do pensamento abstrato e da designação da criatividade
aos homens pode ter surgido com a necessidade de contradizer o fato mais
óbvio sobre o nosso mundo — que as mulheres criam a partir de seus
corpos. A visão de Deus como feminino apresenta poucos problemas. O
feminino dá à luz e assim o faz a Deusa. Só há problema se os homens
desejarem, primeiro, se separar das mulheres; e, segundo, estabelecer o
domínio sobre as mulheres e o mundo. Para isso, precisam separar a
criatividade da natureza. Só assim podem vislumbrar um Deus masculino
criando o universo.
Alguns mitos da criação masculina descrevem o Deus criador como se
cortando para extrair o mundo do Seu corpo. Podemos imaginar os homens
rejeitando esta imagem. Ela envolve uma imitação muito óbvia do que as
mulheres fazem naturalmente. É muito mais satisfatório supor um Deus que
cria a partir do pensamento "puro" (desincorporado), que cria o cosmos e a
vida simplesmente falando ou, melhor ainda, a partir de um livro, pois os
homens não permitiam que as mulheres aprendessem a ler. (Em setembro
de 1996, rebeldes muçulmanos fundamentalistas tomaram o controle do
Afeganistão. Quase como sei. primeiro ato, interromperam a educação das
meninas.) Nos últimos 150 anos, começamos a emergir deste aspecto
particular da nossa própria idade das trevas. E, no entanto, as antigas
suposições ainda detêm muito poder, pois a nossa cultura as construiu mais
de 50 séculos atrás. A descoberta das culturas centralizadas na Deusa no
período neolítico, c suas grandes realizações, pode nos ajudar a nos
libertarmos dessas visões limitadas da criatividade, tanto nas mulheres
quanto nos homens.
138
A Descoberta da Paternidade
Muitos admitem que o patriarcado se desenvolveu quando os homens
descobriram sua importância na reprodução humana. Segundo este
argumento, os primeiros povos, "primitivos", não compreendiam a conexão
entre sexo e gravidez. Afinal, as mulheres não ficam grávidas toda vez que
fazem sexo, nem a gravidez é imediatamente percebida. As mulheres eram
olhadas com reverência e temor, por sua capacidade mágica de produzir
bebês, mas quando os homens descobriram seu próprio lugar neste processo,
tornaram-se arrogantes e insistiram na supremacia masculina.
139
que só precisavam dos homens para a procriação. A teoria então sugere que
as mulheres conheciam a mecânica da reprodução mas deliberadamente
escondiam esta informação dos homens, relegando-os à periferia da
sociedade. Tendo pouco a fazer exceto testar sua força, os homens
desenvolveram bandos de saqueadores que começaram a descobrir o poder
da violência. Quando descobriram sua própria importância na procriação,
tomaram inteiramente o poder. Este argumento assume a marginalidade dos
homens em uma cultura matrifocal, mas os registros dos sepultamentos e da
arte o rejeita.
Padrões Universais
O problema da mudança da sociedade matrística para patriarcal torna-se
mais complicado quando descobrimos que pessoas do mundo todo, em
muitos tipos diferentes de culturas, incluindo os caçadores-coletores não
tecnológicos, mostram sinais de terem sofrido uma transição do poder
centralizado na mulher para o poder centralizado no homem.
Grande parte desta evidência está nos mitos. O padrão comum
descreve uma Deusa arcaica conquistada, demonizada e frequentemente
desmembrada por um Deus homem que agora emerge como todo-
poderoso. Outras histórias falam de um tempo em que as mulheres
possuíam grande poder, simplesmente em virtude de seus corpos femi-
ninos, e de como os homens ascenderam e tomaram o poder. Outras ainda
ensinam uma lição "moral" do próprio domínio masculino, mas com um
tom subjacente de transformação de uma ordem mais antiga.
Vamos examinar daqui a pouco alguns desses mitos, mas agora
precisamos considerar o que eles nos contam em geral. Os mitos e os
registros arqueológicos parecem implicar um padrão universal do poder
retirado das mulheres. Muitos escritos sobre este tema, incluindo o de
muitas feministas, duvidam que, historicamente, tenha havido um
momento em que os homens tomaram o poder. Argumentam que os mitos
das sociedades matrifocais e do poder das mulheres realmente derivam das
ansiedades do homem e do medo das mulheres. Algumas feministas vêem
mitos de uma época de poder feminino como uma justificativa dos homens
para explorar e reprimir as mulheres. Peggy Sanday, em seu livro Female
143
Lilith
O método de usar o mito e a religião para controlar as mulheres envolvia
lições morais e também a demonização. Em uma história característica, uma
mulher ou Deusa realiza uma determinada ação que resulta em um desastre.
Outra figura feminina atua de uma maneira "adequada" e o mundo é
corrigido. Esses mitos justificam o controle masculino como necessário para
evitar o suposto caos resultante quando as mulheres assumem o controle. Ao
mesmo tempo, com frequência trata-se de histórias que aludem a sociedades
anteriores, quando as mulheres detinham mais poder, e muitas vezes
envolvem a sexualidade ou algum outro aspecto do corpo.
Os antigos israelitas desenvolveram grande parte de seus temas
mitológicos e lendários durante seu exílio na Babilônia. Por exemplo, ai
Torre de Babel pode ter sido baseada nos zigurates da Babilônia,
construídos pelo trabalho escravo de muitas terras diferentes. (As estu-
diosas feministas consideram a Mesopotâmia, ou Babilônia, uma terra de
transição, com uma cultura mais antiga da Deusa ainda presente, mas
demasiado distorcida sob o domínio do patriarcado. Uma Deusa
144
babilônica, Lilith, foi transformada de uma maneira que diz algo sobre os
próprios israelitas.)
Lilith, cujo nome significa "coruja que guincha", tornou-se o
centro de uma série de lendas hebraicas que a descrevem como primeira
esposa de Adão. Segundo estas histórias, Deus criou Adão e Lilith ao
mesmo tempo, da mesma lama. (O nome Adão deriva do hebraico
adama, que significa "terra"; similarmente, a palavra latina humanus
deriva de húmus, "lama"). Outra versão da história contém o detalhe
extremo de que, enquanto criou Adão da lama, Deus criara Lilith da
sujeira e do excremento. Quando eles foram fazer sexo, Lilith recusou-se
a permitir que Adão ficasse por cima, dizendo que Deus os criara iguais.
Por este pecado, Deus a baniu e criou Eva. Como Eva saiu de Adão, deve
demonstrar-lhe a devida subserviência.
O escritor de livros humorísticos Neil Gaiman descobriu outra
história explicativa, descrevendo uma criação feminina entre Lilith com
Eva. Deus fez este corpo de mulher sem nome, pedaço por pedaço, de
dentro para fora, com Adão observando. Adão recusou-se a fazer sexo
com ela, porque, segundo o texto explicativo, "viu-a cheia de secreções e
sangue".
Podemos considerar a história de Lilith e Eva (e sua irmã sem nome)
simplesmente como uma fábula para manter as mulheres em seu lugar —
ou como uma alusão a uma época em que as mulheres e os homens
desfrutavam de igualdade. Para afastar essa igualdade e se certificar de que
as mulheres aceitavam uma posição inferior como "natural", oi rabinos
criaram esta lição moral.
Além de seus significados políticos, os mitos das outras esposas de
Adão dizem-nos algo sobre as ansiedades relacionadas ao corpo. Lilith,
uma mulher próxima à natureza, foi feita dos excrementos. Adão não
podia suportar sua segunda esposa porque viu o funcionamento interno do
seu corpo. Por outro lado, a Eva mágica é criada a partir de Adão, e não
dos processos naturais do mundo físico.
Mitos Distorcidos
Mitos que nos parecem bizarros ou estranhos às vezes derivam de uma
necessidade patriarcal de distorcer, ou virar de cabeça para baixo, um
mito anterior da Deusa. A Deusa grega Atena foi originalmente uma
figura de grande poder e muitos aspectos, cujos animais incluíam a
coruja e a cobra, símbolos de diferentes níveis de consciência. (Ver Capítulo
l para comentários adicionais sobre as conexões entre as aves e as
serpentes.) Para mantê-la sob o controle de Zeus, os gregos desenvolveram
a história de que Zeus engoliu sua primeira esposa, Metis, para evitar
que ela desse à luz uma criança que poderia derrubá-lo. Quando uma
terrível dor de cabeça assaltou Zeus, o Deus Hefesto abriu o crânio de
Zeus com um machado. Atena irrompeu, armada como um guerreiro. Da
perspectiva de uma religião anterior da Deusa, podemos decodificar este
mito como uma história da conquista do patriarcado, engolindo a cultura
da Deusa. Essa cultura recusou-se a morrer, dando ao patriarcado uma dor
147
Eva e a Maçã
A história de Adão, Eva e a maçã pode nos parecer estranha até
aprendermos suas primeiras versões. Quando criança, eu jamais consegui
extrair nenhum sentido desta história, que, é claro, aprendi como um fato
histórico. ("O mundo está repleto de mitos sobre a origem", escreve Joseph
Campbell, "e todos eles são na verdade falsos.") Por que, fico imaginando,
Deus faria aquelas duas árvores se não queria que Adão e Eva comessem
delas? Por que se incomodar com isso? E por que fazer todo aquele jardim
para eles e depois expulsá-los dele devido a um único erro? Meus
professores explicavam que Deus dera ao homem o livre-arbítrio e colocara
as duas árvores ali como um teste, mas isso parecia um truque sórdido,
especialmente porque as duas árvores representavam a glória do jardim — e
porque um Deus onipotente deveria conhecer antecipadamente o resultado.
Isso simplesmente não faz sentido. Somente quando li When God was a
Woman, de Merlin Stone, e The Masks of God: Occidental Mythology, de
Joseph Campbell, comecei a entender o que estava acontecendo nessa história
confusa.
Nós já vimos como os povos neolíticos e os primeiros povos da
Idade do Bronze adoravam a Deusa como uma árvore, estabelecendo
148
Um Mito Explícito
Possivelmente, a história mais específica sobre o controle masculino vem
dos onas, da Terra do Fogo, um povo do qual não se tem dúvida de sua
evolução dos estágios "primitivos" para os "mais elevados" da civilização. Em
Primitive Mythology, Joseph Campbell reconta-nos como os onas explicavam
a origem do Hain, local da sociedade secreta dos homens. No início do
mundo, disseram os onas a um certo Lucas Bridges, as mulheres detinham
todo o poder, e os homens "viviam em abjeto medo e sujeição". Então, os
homens mataram todas as mulheres, deixando apenas as menininhas que
ainda não haviam aprendido sobre o poder feminino. Para se certificarem de
que as futuras gerações de mulheres jamais se reuniriam novamente para
redescobrir sua força mágica, os homens criaram um alojamento totalmente
masculino. Depois inventaram vários seres espirituais que horrorizariam as
mulheres e as manteriam afastadas do alojamento e do conhecimento. Os
próprios homens personificariam estes seres. O que surpreende nesta
história não é apenas sua explícita brutalidade, mas sua clara descrição da
religião institucionalizada como uma fraude estabelecida para confundir e
subjugar as mulheres.
Os homens onas personificam os Deuses para reprimir as mulheres.
As personificações e as mascaradas tornam-se uma estratégia para os
homens também em outras culturas. Judith Gleason escreve que, entre os
iorubas, "O feminino é primário", e além disso também perigoso, de forma
que os homens devem contê-lo através das "estruturas masculinas de
pensamento e linguagem". Um aspecto desta contenção consiste em trajes
elaborados, em parte projetos abstratos, em parte imagens sobrenaturais e
em parte imitações de mulheres, ou ainda qualidades femininas (por
exemplo, seios e quadris extremamente exagerados). Na maioria dos lugares,
estes rituais de egungun, ou mascaradas, pertencem apenas aos homens.
Entretanto, vários mitos do oeste africano descrevem-nos como uma arte
originalmente feminina, usada para aterrorizar e dominar os homens até que
os homens a arrancaram das mulheres.
150
Matando um Dragão
Muitos mitos patriarcais falam da ordem do mundo estabelecida a partir do
caos, através da destruição de um dragão, uma serpente gigantesca ou uma
serpente marinha. Encontramos isto especialmente nas mitologias grega e
do Oriente Próximo. O Deus hebreu mata Leviatã; Apoio mata Píton, e
assim estabelece controle sobre o Oráculo de Delfos; Zeus mata Tifeus (ou
Tifon), que é o último filho de Gaia, a Terra, e assim por diante. Muitas
dessas histórias identificam explicitamente a serpente/monstro como
feminina, ou a associam com uma Deusa arcaica, ou com o local do poder
feminino.
A mais famosa dessas histórias fala do herói babilônico Marduk, que
mata Tiamat, a Deusa Mãe serpente original, que é também tetravó de
Marduk. Tiamat, segundo nos conta Enuma Elisb, transformou-se no mal e
deu à luz monstros.
Para defender a criação, os Deuses coroam Marduk, dizendo-lhe:
"Nós lhe entregamos a soberania sobre o mundo todo. Esta arma nunca
deverá perder o seu poder", uma frase que sugere a adoração do falo e a
ansiedade resultante quando o poder do homem reside em um órgão que,
por sua própria natureza, tanto pode cair quanto subir. (A adulação, e até
adoração, das espadas e de outras armas pode se desenvolver do fato de que
as espadas jamais se tornarão moles.) Os Deuses dão a Marduk o raio e o
trovão, além de outras armas, e ele segue adiante para destruir Tiamat. Não
somente a mata, mas quebra o seu crânio e divide seu corpo como se fosse
um molusco.
Anne Baring e Jules Cashford, em The Myth of the Goddess, analisam a
história como uma mensagem política. Esta não apenas simboliza a
ascensão do patriarcado, mas também coincide com a conquista
babilônica da Suméria. Na Suméria, segundo a história, a Deusa extrai o
mundo do Seu corpo, formando uma montanha celestial. Então, nas palavras
de Baring e Cashford, Marduk, tendo aberto sua tetravó, "cria novamente a
criação". Ele empilha uma montanha sobre a cabeça de Tiamat, mais
monumentos sobre Seus seios, fura seus seios e olhos para lazer rios, usa o
espaço entre Suas pernas para sustentar o céu, e assim por diante. Também
estabelece os 12 meses do ano, coloca o Sol e a Lua em seus lugares, e em
geral dispõe o mundo de uma maneira ordenada. Finalmente, cria o homem
151
como uma criatura inferior para servir aos Deuses a fim de que "eles possam
ficar à vontade".
Tudo nesta história funciona para validar o sistema político
"dominador", em que os homens dominam as mulheres, e o rei, o Deus sobre
a Terra, vive do trabalho de seus escravos, assim como os Deuses recebem os
sacrifícios e as orações da humanidade. Mas também precisamos detectar
outra camada desta história, e todos os outros assassinatos da
serpente/dragão. Vários pesquisadores e autores modernos que escrevem
sobre a Deusa, como Luisa Francia, autora de Dragon Time, e Mary K. Greer,
líder dos mistérios menstruais das mulheres, têm sugerido que o "dragão" é a
menstruação, e que a destruição deste dragão significa o fim do poder
mágico/religioso que chega às mulheres através do seu sangue. Um dragão
é uma serpente mítica, uma serpente com consciência. As serpentes agitam-
se na terra como líquido, como um rio encarnado — ou como sangue. E há
outra associação: na menstruação, o útero verte seu conteúdo da mesma
maneira que uma serpente deixa cair sua pele para "renascer".
Nós já vimos (no Capítulo 1) que a cultura humana pode ter se
iniciado através das mulheres experimentando o poder da "sincronia
menstrual", ou seja, menstruando durante a Lua nova ou cheia. A maior parte
dos "dragões" ocidentais são, na verdade, serpentes marinhas, como Tiamat e
Leviatã, que vivem naquela água salgada que é semelhante ao sangue.
Outras, como a Píton Délfica, vivem em cavernas escuras e úmidas.
Muitas culturas têm demonizado a menstruação. Zoroastro chamou a
própria menstruação de fonte de todos os males. Medusa, a gêmea
aterrorizante de Atena, pode ter recebido sua imagem monstruosa, com seu
cabelo feito de cobras e seus olhos capazes de transformar os homens em
pedras, do medo masculino da menstruação. Freud descreveu Medusa como
uma projeção masculina dos genitais femininos.
Apropriação Masculina
Em alguns lugares, um patriarcado emergente pode ter assumido o poder
associado à menstruação. Em um artigo intitulado "Menstrual Synchrony
and the Australian Rainbow Snake", no livro Blood Maga (editado por
Buckley e Gottlieb), Chris Knight conta-nos que os reis das antigas culturas
européias não tinham permissão para ver o Sol ou tocar o chão — os mesmos
tabus que foram colocados sobre as meninas menstruando. Os mitos chineses
descrevem os imperadores como nascidos da cópula com um dragão, que os
mitos descreviam como "molhado", "perigoso" — e feminino.
152
Fotos
Foto 3: A Deusa Nana criada por Niki de St. Phalle para uma feira
sueca. Foto de Hans Hammerskiold; com permissão de Niki de St. Phalle.
157
158
Foto8(Esquerda):A “Vênusde
Willendorf”, Áustria, c. 30.000a. C.
Reproduzida com permissão dos
Arquivos Aras, Instituto Junguiano,
São Francisco.
Foto9(Direita): A “Vênus de
Laussel”, França, c. 15.000 a. C.
Reproduzida com permissão dos
Arquivos Aras, Instituto Junguiano,
São Francisco.
Foto 13: Glastonbury Tor, Inglaterra, no pôr-do Sol. Reproduzida com permissão de Marilyn Bridges.
161
162
Foto 18: O Monte Ida visto do pátio do palácio de Festos, Creta, c. 1.700 a. C.
166
Foto 20: A grande pedra do Velho Templo de Atena Pronaina, Mármara, Grécia, c. 700 a. C.
167
Foto 22: O precinto sagrado de Elêuses, Grécia, 400 a. C. O pico fendido do Monte Kerata
pode ser visto ao fundo.
6- O Corpo na Terra
Nor Hall
O período neolítico europeu não destruiu tudo de uma vez só. Enquanto
algumas áreas sucumbiram aos invasores, outras continuaram a se
desenvolver e florescer. Esta "civilização da Deusa", como a chamou Marija
Gimbutas, atingiu seu auge na ilha de Creta 4.500 anos arás. Até seu mundo
ser destruído por uma combinação de terremotos e sucessivas invasões do
continente, os cretenses desfrutaram de uma sociedade ao mesmo tempo
complexa e graciosa, com grandes e complexos palácios estabelecidos em
harmonia com a presença física da Deusa na paisagem natural. Os cretenses
celebravam a sensualidade da vida em suas montanhas cornudas e seus
santuários nas cavernas, nos elegantes afrescos que exibiam coisas como
flores viçosas e golfinhos saltando, em suas danças de touros, e até mesmo em
seus sacrifícios animais, que retrataram em sua arte como jubilosas
procissões. Os gregos que vieram depois deles distorceram tudo isso, criando
particularmente histórias de pesadelo de um personagem metade homem
metade touro, o minotauro, devorando jovens e desamparadas atenienses.
Através da arqueologia e de introjeções de historiadores da arte e adoradores
da Deusa, despertamos deste pesadelo para descobrir uma veneração da vida.
Como os gregos posteriores, os cretenses cultuaram o corpo e beleza.
Ao contrário dos gregos, que procuravam a perfeição equilibrada, os cretenses
expressavam a vitalidade do corpo. Observamos isso nas estatuetas da própria
Deusa, de seios nus, cheia de energia, segurando serpentes em ambas as mãos.
E nós mesmos podemos experimentar um eco distante dela quando seguimos
os antigos caminhos das procissões em torno e dentro dos palácios, situados
diante da presença eterna das montanhas cornudas.
170
Pasífae e o Touro
Segundo o mito grego, Minos casou-se com uma mulher chamada Pasífae,
filha de Hélio e Perseu. Pasífae significa "toda iluminada", enquanto Hélio e
Perseu são o Sol e a Lua. Os nomes revelam a mulher mortal como a Deusa
do Céu. Será que os gregos tomaram o nome de uma Deusa do Céu
cretense e deram-lhe um papel secundário como esposa do Rei Minos? O
mito conta-nos como Poseidon, o Deus do Mar grego, enviou um touro
branco pelo mar até Minos, para que este sacrificasse o animal em honra ao
Deus. (Outras versões dizem ter sido Zeus quem enviou o touro, o que faz
sentido, porque Zeus assumiu a forma de um touro para violentar Europa.
Zeus, Deus do Céu, Poseidon, Deus do Mar, e Hades, Deus da Morte, eram
irmãos no mito, mas podem ter sido uma única figura dividida em três
funções.)
O sacrifício de touros, que aparece na arte cretense como um aspecto
tão poderoso da religião, pode ter derivado da domesticação de animais. No
173
O Minotauro
Da união da mulher e do touro, Pasífae dá à luz um filho, o “minotauro” ou
"touro de Minos", como se o próprio Minos de alguma forma fosse seu pai,
ou até tivesse dado à luz o monstro. Agora, Dédalo constrói um labirinto
gigantesco para esconder este marco da vergonha de Minos, este metade-
homem, metade-touro, que na verdade, como Zeus ou Dionísio, representa
o consorte da Deusa. Para a mente patriarcal, a adoração da natureza e da
terra como a Deusa, o corpo feminino é aterrorizante, e qualquer coisa que
resulte desta "rendição" ao feminino só pode ser monstruosa. Assim, Dédalo
constrói seu "labirinto" para esconder o minotauro, e o Rei Minos exige
que Atenas, a cada nove anos, envie sete rapazes e sete virgens para serem
sacrificados ao minotauro. Assim como o número sete evoca os planetas
visíveis, o nove é o número supremo da Deusa, devido às nove Luas da
gravidez c à mágica do três vezes três, isto é, a Deusa Tríplice lunar
triplicada. Assim, os dois números sugerem movimentos celestiais. O
minotauro, na verdade, porta um nome grego, Astério, que significa
174
"(Rei) das Estrelas", embora haja outro indício de que ele originalmente
representou o parceiro da vaca cujas tetas deram origem à Via Láctea.
A história do próprio Dédalo, mestre dos artesãos, pode ter se ori-
ginado dos guerreiros gregos encontrando a complexa civilização
tecnológica de Creta, com suas cidades, palácios com muitas histórias,
encanamentos internos, rede de estradas e portos desenvolvidos. Os piratas
gregos provavelmente jamais viram nada remotamente parecido com isso.
Do mesmo modo, a idéia do labirinto pode ter se originado da complexidade
e do esplendor dos palácios, pois a palavra labirinto significa "casa do
machado duplo", e o machado duplo forma o símbolo ubíquo da Deusa em
toda Creta.
O Machado Duplo
Como foi mencionado no Capítulo 3, o machado duplo não funcionava como
arma, e a imagem nunca aparece na arte com figuras masculinas, mas apenas
isolada, nos pilares sagrados da Deusa ou nas cenas da Deusa e de suas
adoradoras, às vezes ao lado da Arvore da Vida no jardim do paraíso. (Um
guia de turismo de Creta descreve o machado duplo como um símbolo de
Zeus, um exemplo da maneira como a distorção patriarcal continua na cultura
moderna.)
A professora Gimbutas sugeriu que o labrys derivava da borboleta; e,
na verdade, aparecem borboletas gravadas em alguns dos primeiros
machados, enquanto outros mais ornamentados se assemelham a desenhos
de borboletas. No museu da capital cretense de Heraklion, um vaso da
cidade escavada de Kato Zakros exibe uma borboleta com asas como
machados duplos (ver Foto 14). A palavra grega psyche significa tanto "alma"
quanto "borboleta", uma conjunção que pode remontar à antiga cultura
cretense. A alma, como borboleta, implica uma visão da vida humana como
um estágio para uma existência mais plena.
As asas da borboleta e as lâminas curvas dos machados significam a
Lua crescente e minguante, e também os lábios da vulva humana. Labrys e
lábia são etimologicamente relacionados. O machado duplo pode nos sugerir
outras imagens. O cabo se assemelha a um galho ou um tronco de árvore,
estendendo-se em direção ao poder da Terra. A lâmina em si forma um laço
infinito, como um sinal do infinito na matemática moderna. Devido à
175
Sacrifício Humano
A história grega dos sete rapazes e das sete virgens sacrificados ao
minotauro levanta a possibilidade de sacrifício humano, e também de touros,
em Creta. Tanto os gregos quanto os hebreus citaram supostos sacrifícios
humanos como justificativas para sua derrubada da antiga religião da Deusa.
Na verdade, encontramos evidência em Creta de um — apenas um —
sacrifício humano. Este ocorreu bem no fim do período minoano, durante
uma época de terremotos. Ninguém sabe ao certo a razão da aniquilação da
cultura cretense e da destruição dos palácios, particularmente de Cnossos,
em torno de 1400 a.C. Entretanto, a maioria dos arqueólogos supõe que a
aniquilação ocorreu devido a uma série de terremotos, o mais poderoso tendo
ocorrido em 1450 a.C. Este terremoto concentrou-se na ilha próxima de
Thera, mas as ondas por ele provocadas destruíram as cidades e os palácios
de Creta. Um terremoto anterior, ocorrido em 1700 a.C., destruiu a primeira
versão do palácio. O fato de não o terem reconstruído após o segundo
grande abalo implica um enfraquecimento fatal na estrutura social durante os
250 anos decorridos entre os desastres.
Segundo Vincent Scully, os cretenses construíram Cnossos em um
local de perturbação císmica máxima, como se quisessem sentir o poder da
Terra dando vida às paredes. Podiam não ter compreendido o perigo antes
do primeiro terremoto e depois reconstruíram o palácio no mesmo local
porque acreditavam que ali fosse o seu lugar. Ou, como os habitantes
contemporâneos de Los Angeles, podem ter decidido ficar e correr o risco de
outro maior.
Terremotos mais fracos, anteriores ao de Thera, ameaçaram a
cultura do palácio durante um certo tempo, período em que as pessoas
podiam perceber o que estava acontecendo e buscar, através de orações,
evitar esta catástrofe que não podiam esperar controlar por seus próprios
esforços. Isto ocorreu durante um período em que os micenenses proto-
gregos estabeleceram o domínio em Cnossos, levando para lá chefes
guerreiros e adaptando grande parte da religião da Deusa.
Evidência arqueológica mostra que, próximo ao final do período dos
terremotos, um sacerdote levou um rapaz para um altar em um local agreste
nas colinas e enfiou uma faca em suas costas. Só recentemente os
arqueólogos descobriram este lugar. A pequena ruína está no alto de uma
montanha íngreme no campo. Em contraste com a área do porto ou com as
177
A Dança do Touro
A partir das evidências arqueológicas, pode parecer que o assassinato
isolado contrasta com toda a prática anterior. Então, por que os atenienses
imaginam um "Rei das Estrelas" com cabeça de touro devorando as
crianças de Atenas? Além do valor óbvio da propaganda, podiam estar
distorcendo a famosa dança do touro cretense, em que rapazes e moças
seguram os chifres do touro e saltam graciosamente sobre suas costas —
uma distorção realmente enorme de algo tão positivo e alegre.
A arte que mostra a dança do touro não apenas homenageia o corpo
jovem, mas ajuda a demonstrar a igualdade das mulheres e dos homens na
sociedade cretense. Milhares de anos antes de nossos estilos "unissex"
ocidentais, os cretenses praticavam esta mistura livre das imagens dos dois
sexos discutida no Capítulo 5- As mulheres com artefatos masculinos para
cobrir os órgãos sexuais, e os homens nos rituais — outro tipo de dança —
com suas saias farfalhando graciosamente. A arte mostra ambos os sexos
com cinturas finas e muitas jóias. As mulheres e os homens também foram
mostrados caçando juntos. Mas não eram assexuados ou desatentos às
diferenças entre os sexos, pois outras imagens mostram mulheres com
seios nus ou homens com pênis eretos.
A dança do touro, como as danças religiosas de toda parte, expressam
o poder e a beleza do corpo sagrado. Já vimos a possibilidade de campos de
178
Teseu e o Labirinto
O espiritual é político. Toda religião carrega uma mensagem social. A maior
parte da mitologia grega patriarcal apoiava o regime da época, ao mesmo
tempo em que denegria a cultura anterior. No mito ateniense, Dédalo — um
gênio masculino isolado — constrói o "labirinto", uma estrutura
179
O Poder da Terra
As idéias de Vincent Scully sobre as paisagens sagradas receberam muito
pouca atenção dos arqueólogos clássicos, embora Donald Preziosi, em seu
livro Minoan Architectural Design, comente que Scully merece mais
consideração do que lhe tem sido prestada. Embora crítico de alguns
detalhes de Scully, Preziosi reconhece a total plausibilidade dos dois pontos
principais de Scully: que os cretenses deliberadamente orientaram seus
palácios em um eixo norte-sul, e que os associaram a características
particulares da paisagem natural.
O próprio Scully, no prefácio da edição de 1979 de The Earth, the
Temple, and the Gods, expressa sua exasperação com o fato de que, para a
maioria dos autores que escrevem sobre os locais sagrados gregos, "a
181
paisagem natural ainda não exista". Ele comenta que os seres humanos
"observam seletivamente, não empiricamente", e sua visão é condicionada
pela "estrutura conceituai de sua cultura".
Se os arqueólogos profissionais não deram atenção à estética da
paisagem natural de Scully, o movimento para redespertar a religião da
Deusa inspirou-se muito em seu trabalho. Isto aconteceu em parte através da
disseminação das idéias de Scully em outros escritos, como o artigo de Mimi
Lobell em Heresies, ou o livro de Elinor Gadon, The Once and Future
Goddess, ou ainda Earth Wisdom, de Dolores La Chapelle. Assim como a obra
de Marija Gimbutas, os escritos do professor Scully vão além do
fornecimento de informações. Transmitem uma sensação do poder e da
beleza da Deusa, cujo corpo na terra só emerge integralmente através das
ações simbióticas dos seres humanos.
Scully descreve a arquitetura antiga como "um milagre da reconci-
liação" entre as necessidades humanas e a natureza. Na Grécia continental,
este equilíbrio delicado pendeu para o humano, de forma que o templo
assume uma imagem de "vitória". Na cultura cretense anterior, os palácios
buscavam a harmonia da paisagem natural como o corpo da Deusa. Não
havia templos, em parte porque os cretenses, como os pintores do período
paleolítico, adoravam a Deusa em sua caverna-útero. A construção dos
templos significa uma religião em que os Deuses começaram a se separar da
terra. Com a construção dos templos para sua adoração, os Deuses
assumiram personalidades distintas da natureza. Embora os templos gregos
ainda se insiram na paisagem natural, suas elegantes colunas e estátuas
evocam uma divindade mais inspirada pela cultura humana do que pelos
ciclos da Terra. Entretanto, os santuários encontrados nos palácios cretenses
não impediram os cretenses de conservar sua atenção nas montanhas e nas
cavernas.
A Natureza e a Política
Scully declara que a qualidade da terra, em si, ajuda a criar a sensação do
sagrado que é especial para uma sociedade. Embora Creta tenha algumas
regiões inóspitas, as montanhas são em geral acessíveis, os montes
arredondados. Scully observa que o "horror" às vezes encontrado na visão
que outras culturas têm da Deusa Mãe—que Erich Neumann chamou de "a
Mãe Terrível" — não existe em Creta. Diferente, digamos assim, da feroz
Deusa hindu Kali, a Deusa cretense não devora, mas inspira encantamento.
182
diretamente aos chifres elevados. Scully descreve o cone como "a forma
maternal da terra", e a montanha cornuda como "o símbolo do seu poder
ativo".
Vale a pena repetir aqui a descrição de Mimi Lobell da paisagem
natural como o corpo. "O vale representava seus braços envolventes; a
montanha cônica, seu seio... a montanha cornuda, seu "colo" ou vulva
fendida... e o santuário da caverna, seu útero que dá à luz."
No mais famoso palácio de Creta, Cnossos, o Monte Jouctas surge
impressionante atrás dos muros (ver Foto 16).
Jouctas também é visto claramente, ao sul, do antigo porto de
Cnossos. Na verdade, também pode ser visto claramente, também ao sul, da
linha litorânea da moderna capital de Heraklion, um fato que descobri
enquanto caminhava rumo a uma montanha cônica a oeste do porto
moderno.
Jouctas, como Ida e Dikte, contém santuários em cavernas onde os
cretenses adoravam a Deusa. Mais tarde, essas mesmas cavernas tornaram-se
residências de Zeus, inclusive o local da "tumba" do Deus imortal. Em todo o
Oriente Médio, a religião se concentrava na montanha sagrada. Nos países
planos, como a Mesopotâmia, as pessoas construíam zigurates e pirâmides
para imitar o corpo montanhoso da Deusa. Em Earth Wisdom, Dobres La
Chapelle descreve as montanhas como um local natural de revelação,
citando sua própria experiência de ver uma "glória", um magnífico jogo
óptico de luz e sombra, visível apenas em altitudes elevadas.
Diferenças Sutis
Na verdade, apenas o palácio de Festos situa-se em um eixo norte-sul
preciso em relação à sua montanha, o Monte Ida. Em Mallia, um palácio
situado na costa norte, o Monte Dikte realmente aparece sobre o canto sul-
leste, enquanto em Cnossos vemos o Monte Jouctas a alguns graus de
distância do eixo norte-sul. Como os construtores estavam lidando com
uma conjunção de princípios, como os alinhamentos direcionais e a
praticidade de colocar seu palácio alinhado com os contornos do chão,
teríamos que esperar alguma variação.
Fachadas de dois ou três andares de altura cercavam os palácios. Do
pátio, dentro dos muros, só os picos das montanhas podiam ser vistos. Isto
na verdade enfatizava as montanhas cornudas. Os adoradores ainda teriam
184
Os Chifres da Consagração
Segundo Preziosi, Cnossos possuía uma grande entrada na fachada sul. Esta
entrada não ficava no centro da parede, o que parece incomum. Na verdade,
abria diretamente para uma visão do Monte Jouctas. Os primeiros
escavadores de Cnossos encontraram os grandes Chifres da Consagração
colocados precisamente na frente desta entrada. Se colocados na linha do
teto acima da porta, teriam moldado a montanha fendida.
Em certas ocasiões do ano, os Chifres teriam também moldado o Sol
em sua graciosa curva. Esta combinação teria feito eco às imagens egípcias
do disco do Sol entre dois picos. Similarmente, quando a Lua cheia aparecia
entre os Chifres, a visão duplicaria a coroa egípcia de Ísis.
Será que Creta e o Egito influenciaram um ao outro ou se inspiraram
em uma fonte comum? Mimi Lobell descreveu a procissão anual de barcos
descendo o Nilo entre dois picos, um de cada lado do rio. O faraó, em sua
barcaça, incorporava Amon-Ra, o Deus Sol, viajando para se encontrar
com a Deusa Nut. Em uma conferência, Lobell vinculou a viagem a Creta.
Mostrou um slide da Deusa cretense com os braços levantados, chifres em
Sua cabeça e um cone de pé atrás Dela e visto entre Seus braços. Se ficarmos
nesta posição, com os pés juntos e os braços levantados e curvados, como
chifres, vamos experimentar uma abertura no corpo, uma abertura para o
universo. Isto é especialmente verdadeiro se ficamos nesta posição olhando
para o Sol — e mais ainda se ficamos de frente para os picos de uma
montanha cornuda.
185
Outros Alinhamentos
O alinhamento com picos cornudos ou fendidos aparece em outros lugares
além dos três principais palácios. Na cidade de Gournia, situada na encosta
de um monte ao longo da costa norte (ver Foto 17), podemos perceber uma
sensação da Terra nos protegendo, com a montanha dupla próxima parecendo
mais seios que chifres.
Tanto Gournia quanto Kato Zakros, um palácio situado na extre-
midade oriental da ilha, contêm pátios orientados para as montanhas.
Escavando um santuário de um aposento no alto do monte em Gournia, os
arqueólogos encontraram um altar com três pés, pedestais, um modelo dos
Chifres da Consagração e uma Deusa Serpente de barro.
Andar à beira do mar em Gournia e entrar na cidade é comparável
a entrar no corpo da Deusa nos templos de Malta. Gournia dificilmente l
foi contemporânea dos templos malteses em Mnajdra, o único grupo de l
templos que está diante do mar (e os únicos alinhados com os eventos
solares). Na verdade, os templos de Mnajdra estão de frente para a
pequena Ilha de Filfla, que tem um perfil de pico duplo.
Gournia parece ter sido, em sua época, uma cidade próspera. Atual-
mente, as ruínas possuem uma quietude tranqüila (devida em parte, sem
dúvida, à ausência de grandes levas de turistas). Situadas na encosta de
uma colina verde e com árvores, elas ficam de frente para o mar. Ao
mesmo tempo, o lugar apresenta contrastes rítmicos de paisagem l
natural áspera e suave. Uma cordilheira parece cercar a cidade, e além j
dela elevam-se as montanhas denteadas do acidentado interior de Creta. Os
montes arredondados como seios erguem-se ao sul, mas rochas es-
carpadas elevam-se diante deles. O mar parece ser a única abertura.
Até as residências particulares seguem o mesmo padrão. Próximo à
praia de Amnissos, fora da capital, Heraklion, situa-se a ruína de uma j
aldeia, em um eixo norte-sul com um pico duplo atrás dela, mais um j
monte que uma montanha, mais adequado para uma residência que para
um "palácio".
Amnissos, próximo de Heraklion, tornou-se uma popular praia de
turistas. A mitologia clássica, no entanto, une a praia a Artemis. Zeus j
pergunta a Artemis, com três anos de idade, que dons Ela gostaria de
possuir como Seus atributos. (Parte do programa para proporcionar su-
premacia a Zeus incluía transformar a arcaica Artemis em filha de uma
186
geração mais jovem dos Deuses do Olimpo.) Rindo, a Deusa diz que
gostaria de se livrar do casamento, além de um arco e o direito de caçar,
o domínio das montanhas e a companhia das ninfas de Amnissos. j O nome
Artemis é de origem incerta e não é grego. Aparece pela primeira vez em
placas de Pilos, na escrita Linear B. Por isso, remonta pelo menos ao
período micenense, e possivelmente à Creta minoana ou até mesmo à
Idade da Pedra. Três Deusas cretenses ficaram ligadas a Artemis —
Diktynna, "A Mulher da Rede", Britomartes, ou "Doce Virgem", e
Eileitia, a Deusa do Parto. Segundo Anne Baring e Jules Cashford, os
festivais da primavera no grande templo de Artemis em Éfeso, na
Anatólia, incluíam uma tourada e sacrifício.
Procissões
A idéia de um caminho de procissões para os palácios de Creta deriva de
várias fontes. Antes de tudo, caminhos claros, freqüentemente con-
tornados com afrescos, sugerem um movimento ritual. As imagens dos
brasões e dos próprios afrescos exibem pessoas se movendo majestosa-
mente em costumes cerimoniais para os locais do sacrifício. A mitologia
grega posterior fala-nos sobre os kouretes, guardas do infante Zeus,
martelando os escudos para encobrir os gritos do Deus escondido en-
quanto ele estava em sua caverna de Creta, alimentado por abelhas. Esta
imagem pode ter se originado das procissões de Creta, que incluíam o
martelar de escudos com a forma do número 8. Evans encontrou esses
escudos, e também pinturas deles, em sua escavação de Cnossos. O
número 8 traz à mente os seios e os quadris arredondados do corpo
feminino e recorda as "Venus" da Idade da Pedra Lascada e o chão plano
dos templos malteses.
As imagens cretenses mostram uma Deusa viajando em um barco
com Seus adoradores. Também temos conhecimento de viagens para
santuários em cavernas e de danças de touro no pátio, à vista do pico
cornudo. Finalmente, podemos presumir os rituais das procissões ob-
servando suas práticas posteriores na Grécia, onde a adoração das Deusas
freqüentemente envolvia procissões, como aquela doarktoi, ou "elas
rumam" — meninas com cerca de nove anos de idade que viajavam de
Atenas para o templo de Artemis em Brauron.
187
188
A Beleza de Festos
Minha própria percepção das formas da Deusa na paisagem e nos palácios
não vem tanto de Cnossos (eternamente repleto de turistas guiados), mas do
palácio de Festos, situado em uma colina ao sul de Creta, em uma área mais
acidentada que Cnossos. Do rio que fica na base da colina do palácio, o
Monte Ida é eclipsado por outra colina, mas do próprio Festos, o Monte Ida
surge magnífico, parecendo mais próximo e mais íntimo do que o Jouctas
em Cnossos.
Vincent Scully descreve o Monte Ida como uma "mulher aconche-
gante", descendo de seus chifres amplos e simétricos "em escarpas redondas
e espalhadas, cortadas por chifres escuros" (ver Foto 18).
Outro Monte Ida, na Frígia, era o lar de Cibele, a "Grande Mãe dos
Deuses". Cibele pode alcançar todo o caminho para Çatai Hüyük, pois
algumas de suas imagens parecem-se muito com aquelas encontradas na
velha cidade de 8.000 anos. O primeiro hino homérico a Afrodite descreve
o Ida frígio como sagrado para a Deusa do Amor. Segundo o mito, lá ela se
deitou com Anquises e mais tarde deu à luz Enéas, herói da Eneida de
Virgílio.
Devido ao fato de Festos estar situado em uma colina, temos uma
percepção mais ampla do vale e das montanhas que o cercam. A uma curta
distância está outro "palácio", na verdade mais uma grande mansão,
chamado Agia Tríada (o nome, que significa "Santíssima Trindade", deriva
de uma capela cristã próxima). Apesar da proximidade das duas
construções, a diferença entre elas é notável. Agia Tríada foi construído
diante de uma colina curva e transmite uma sensação de sossego e
tranqüilidade, apesar das visões do Monte Ida e de um par de colinas em
forma de cone.
Os estudiosos em geral se referem a Festos como um "palácio de
verão" dos governantes minoanos para fugir do comércio e do burburinho de
Cnossos. O professor Scully comenta que o termo "não descreve de maneira
adequada seu poder assustador", e prossegue comentando que Festos
"parece propositalmente estendido como um ar de adoração por toda a terra
(...) possuído pelo invencível mistério da terra, louvando a amplitude do
vale, o terror da montanha". Eu acrescentaria que caminhar através das
ruínas de Festos, ficar de pé no pátio aberto ou no "teatro", descansar e
olhar além das colinas e para o Monte Ida, tudo isso proporciona uma
sensação de ligação com aquele mistério da Terra, sem necessidade de
resolvê-lo ou de buscar revelações milagrosas. Festos, como Delfos no
continente, é um lugar que pertence à Terra. B à semelhança do que ocorre
192
com Delfos, não posso prestar maior tributo a Festos do que dizer que o
simples fato de pensar e escrever sobre o palácio e sua paisagem natural me
dá uma enorme vontade de voltar. Como descrevi no Capítulo 2, observei as
formas da paisagem natural sagrada e sabia que havia chegado antes mesmo
de realmente me encontrar no palácio. Seguindo a estrada para Festos, surge
uma montanha em forma de cone em um local elevado, cercado por
colinas baixas, enquanto uma montanha cornuda torna-se visível no
horizonte. No momento em que as duas formações ficam visíveis das colinas
mais baixas, a estrada moderna faz uma curva e lá está a placa anunciando
Festos.
O Cone e a Montanha
Como descobri quando segui o que poderia ter sido o caminho das
procissões, o cone desempenha um papel importante na conexão com a terra.
O Monte Ida está ao norte do pátio de Festos, o alinhamento mais preciso
de todos os palácios. O cone eleva-se a noroeste. O caminho da procissão tem
início na entrada do noroeste, com o cone situado bem atrás de nós. O
caminho segue para oeste, em direção ao teatro aberto, onde desce as
escadas e atravessa o teatro na diagonal, em sentido sudeste, com o cone
atrás de nós. Na extremidade do teatro, o caminho retorna, de forma que
de repente nos percebemos diante da poderosa imagem da montanha
cornuda, com o cone à esquerda. O caminho move-se para o leste, depois
retorna, como um labirinto, segue a direção norte e sobe as escadas.
Continua a subir, rumo a um aposento com os restos de um pilar. A
partir daí, parece voltar sobre si novamente e sobe uma rampa, mais uma
vez ficando de frente para o Monte Ida. O propileu do teatro conduz a uma
escada estreita e escura que desce em direção à luz e ao pátio principal.
Olhando na direção norte a partir do sul do pátio, o Monte Ida eleva-se
tanto acima do muro quanto abaixo da entrada para os apartamentos da ala
norte do palácio. Ao mesmo tempo, a extremidade sul do pátio abre-se para
o vale, oferecendo uma visão das suaves colinas.
Estando do lado de fora do palácio, o cone aparece atrás de nós.
Quando realmente entramos no prédio, o cone desaparece, bloqueado pela
parede. Ao mesmo tempo, uma colina cônica menor e arredondada pode ser
vista a oeste do teatro aberto.
193
Da mesma forma, quando Ida assoma às nossas costas, sem ser vista,
uma suave colina de pico duplo eleva-se diante de nós à esquerda, a sudeste,
mais ou menos em um eixo com o cone mais pontiagudo e mais escarpado.
Esta colina tem ainda um montículo à sua frente, que parece uma versão
menor e mais acessível da montanha sagrada.
Os dois picos cornudos, a montanha e a colina são todos visíveis do
pátio, pois enquanto Ida se eleva acima do palácio, o pátio se abre às suaves
colinas. Do alto dos degraus do teatro, o ponto mais elevado, aparecem as
quatro formas. Entretanto, quando nos movemos dentro do palácio, as
formas suaves desaparecem. O efeito torna-se uma suavização humana da
natureza. Os picos escarpados dominam quando entramos no palácio, dando
lugar apenas visualmente a suas contrapartes mais acessíveis. Estas colinas
baixas ainda contêm o corpo da Deusa, mas em uma escala mais humana,
em uma forma mais sensível à agricultura e ao desenvolvimento. Aqui,
como de tantas maneiras, a cultura da antiga Creta de algum modo reúne —
como as duas metades do machado duplo ou das duas serpentes carregadas
pela Deusa de seios nus em Sua longa saia — o humano e o divino, um não
se sobrepondo ao outro, mas os dois se misturando de maneira radiosa e
elegante.
194
7 - O Corpo na Canção
Adeus
Filhos de Zeus e Leto,
A jovem de lindos cabelos,
Nesta
E na próxima canção
Vou me lembrar de vocês.
Hino a Artemis,
Traduzido por Jules Cashford
Os Deuses Imortais
Vincent Scully descreve a arquitetura do templo da Grécia continental
como uma imagem de "vitória", em que o equilíbrio pende para o domínio
humano do cosmos. Certamente, poucas culturas perceberam os Deuses
em termos tão absolutamente humanos quanto os gregos. Só precisamos
pensar, por um lado, no realismo gracioso das estátuas, ou, por outro, nas
brigas domésticas nas histórias de Zeus e Hera.
Ao mesmo tempo, à medida que os Deuses tornam-se mais humanos,
os próprios humanos tornam-se diminuídos. Os palácios cretenses serviam
como casas, locais de trabalho e, provavelmente, bases do governo para o
povo, assim como pontos focais para se perceber a Deusa na terra. Os
templos gregos alojam estátuas, não pessoas.
Em Creta, encontramos a idéia de Zeus como o Deus que morre e se
regenera, incorporando o milagre da vida vegetal, que morre e vai para o
lar subterrâneo da Deusa da Morte apenas para retornar como uma nova
criança com a chegada da primavera. Os dórios, no entanto, perceberam
seus Deuses como imortais, desprovidos de corpo, livres dos ciclos da
natureza. Eles podem ter caracterizado seus Deuses em termos muito
humanos, mas também os descreveram como energia pura.
O conceito de imortalidade deriva do medo e da dor da morte. Mais
sutilmente, pode surgir da necessidade de separar a idéia de Deus da Deusa,
ou seja, separar a divindade do corpo essencialmente feminino do mundo
natural. (Até mesmo a nossa cultura monoteísta refere-se à "Mãe Terra" ou
196
A Conquista de Delfos
O mito grego parecia permitir que todas as camadas de significado
existissem ao mesmo tempo, a religião pré-histórica do corpo bem abaixo
da superfície da religião da abstração e da racionalidade, iluminada pelo Sol.
Mas esta não era uma coexistência fácil. Os olímpicos substituíram a
religião mais antiga através da conquista. O fato de que não poderiam
simplesmente bani-la proporcionou uma fonte de tensão e ansiedade.
Encontramos isto até em Delfos — talvez principalmente cm Delfos —,
principal santuário de Apoio, Senhor da Luz do Sol e da razão ponderada.
Porque Delfos era um local de profecias, o principal centro de adivinhação
do mundo antigo, um lugar para onde até os inimigos da Grécia se
200
O Terror do Conquistador
Quando um grupo de pessoas oprime outro, uma fúria se desenvolve, não
apenas no grupo oprimido, mas também no grupo dos opressores. A fúria
deste segundo grupo surge como um reflexo de negação do que os opressores
fizeram. Suas vítimas permanecem ali como um constante lembrete, tanto de
seus crimes quanto da realidade que eles tentaram subverter. E por isso eles
201
Chegando a Delfos
Os antigos peregrinos do oráculo podiam viajar para Delfos por terra ou por
mar. O próprio Apoio veio da água, trazendo marinheiros cretenses para
serem seus sacerdotes. Creta continuava sendo a terra da autoridade religiosa,
até mesmo — ou talvez especialmente — para aqueles que derrubaram suas
tradições pré-históricas. Tanto Zeus quanto Deméter vieram de Creta. Para
aumentar sua autoridade, Apoio arrancou a palmeira e o túmulo sagrados
da Deusa cretense. O Deus atraiu os marinheiros disfarçando-se de golfinho.
No palácio de Cnossos, enterrado séculos antes da construção do templo de
Apoio em Delfos, golfinhos brincalhões e saltitantes podem ser vistos nos
afrescos da parede. O nome Delfos está relacionado a duas palavras gregas:
delphis, ou golfinho, e delphys, útero.
Para aqueles que viajavam para Delfos a pé, o caminho era difícil e
montanhoso. Atualmente, no entanto, estradas modernas e as luzci elétricas
das cidades atenuam a viagem. Nada, no entanto, pode diminuir a incrível
beleza das colinas. O local de Delfos está sob a fenda profunda de Parnaso, a
montanha de inspiração poética, lar das nove musas (o nove mais uma vez,
o mágico três vezes três). Acima do grupo de templos, acima da sagrada
fonte castaliana, eleva-se uma colina "maravilhosamente coroada por
imensos chifres que se abrem ameaçadoramente para o céu" (Scully). Estes
são os Fedríades, os Brilhantes (ver Foto 19). A fonte, onde os peregrinos
despejavam água sobre suas cabeças para se purificar, desce do rochedo
abaixo dos chifres. Tendo nos treinado para isso, reconhecemos esta fonte,
mesmo que jamais a tenhamos visto. É a mesma água que emerge da
Montanha Silbury, ou Glastonbury, ou que passa sob as fissuras de "The
Teaching Rock", no Canadá. A fonte que jorra de uma montanha fendida é
o sangue da Deusa.
Todo o local está voltado para um vale e para uma fenda nas mon-
tanhas. Uma fenda incorpora a vulva da Deusa, seja ela uma linha estreita na
parede de uma caverna, ou uma fissura no chão ou os enormes chifres de
uma montanha. E com o fluxo da água da fonte, mais a caverna original do
oráculo, conseguimos uma série de imagens da vulva, tornando-se mais
íntimas à medida que nos aproximamos do santuário, da forma montanhosa
contra o céu para a água emergente, para os vapores escuros agora
encobertos pelo templo. Os simples vapores, elevando-se dos locais mais
ocultos da Terra, já inspiravam profecia.
Na época clássica, o templo realmente não cobria a fenda de vapores,
mas a envolvia. Embora Apoio tenha matado a serpente, as mulheres ainda
fazem oferendas ao oráculo, como se a nova religião não pudesse banir a
204
As Pedras de Gaia
Os gregos às vezes chamavam a caverna de Delfos de entrada para ai Terra
dos Mortos. Este aspecto subterrâneo, juntamente com as formas da
paisagem natural, a serpente e o meteorito, recorda-nos que o santuário
originalmente pertencia à Deusa da Terra, Gaia, também chamada de
Têmis. O santuário original de Gaia era um círculo de pedras, reminiscência
daqueles da Idade da Pedra, cercando a fenda aberta. Atualmente, ainda se
pode ver a grande pedra de Sibil, onde a antiga tradição descrevia o oráculo
como sentado para expressar suas profecias. Cercado por todos os prédios
clássicos, a pedra imensa e sem adornos transporta-nos de volta ao poder da
terra.
Uma pedra ainda maior evoca a Terra em um templo situado curta
distância da colina de Delfos, em um lugar chamado Mármara. Ali estão
os restos do Antigo e Novo Templos de Atena Pronaia, cujo título significa
"diante (ou guardiã) do santuário". Enquanto Delfos eleva-se junto à encosta
da colina, voltado para o céu, Mármara situa-se em uma área abaixo do
caminho, dando ao visitante uma sensação de proximidade com a terra.
Colocada atrás do Velho Templo (as escavações revelaram uma colônia
micenense neste lugar), uma enorme pedra, sugerindo uma forma humana,
volta bastante no tempo, recordando-nos que Atena, Deusa da sabedoria,
das corujas e das serpentes, representava bem mais — e era bem mais
velha — que um guerreiro armado que supostamente saltou já adulto da
cabeça de Zeus (ver Foto 20).
Embora eu não possa dizer que recebi alguma mensagem oracular
direta em Delfos, achei-o um lugar de grande beleza e cura pessoal. Maria
Fernandez e eu viajamos até Delfos com alguma apreensão, temendo
encontrá-lo, como o Partenon em Atenas, repleto de turistas. Na verdade, às
vezes se vêem até 20 ônibus de turismo estacionados ao lado da estrada.
Apesar disso, o poder da terra resiste a qualquer banalização. O visitante
pode passar dias, semanas, estudando a arquitetura dos diferentes
monumentos — ou simplesmente se sentar e observar as colinas.
206
Artemis e a Maternidade
Deusa da Lua, habitante das florestas montanhosas distantes do mundo dos
homens, servida por ninfas, caçadora mas também protetora dos animais
selvagens, Artemis certamente remonta a até antes da Idade da Pedra Polida,
à Idade da Pedra Lascada. Mas só quando conhecemos outro de Seus
atributos, a imagem da Grande Deusa começa a emergir da "bandeirante" da
mitologia clássica. Vigorosa, virgem, Artemis era a Deusa das mulheres no
parto.
O mito clássico nos proporciona justificativa para esta anomalia, ao
descrever Artemis e Apoio como gêmeos, filhos de Leto e (é claro) Zeus. A
história conta-nos que Artemis nasceu primeiro, sem dificuldade, e depois
207
Sua mãe suportou mais nove dias de trabalho de parto para dar à luz Apoio.
Como resultado, as mulheres mortais passaram a chamar por esta figura
incrível durante seu próprio trabalho de parto. Para algumas, Artemis
aplacava a dor. No entanto, para aquelas não destinadas a sobreviver, Suas
flechas prometiam uma morte rápida e misericordiosa.
Poderia parecer mais uma vez que a história distorce as tradições
mais antigas, em que a Mãe das montanhas e dos animais selvagens
naturalmente ajuda as mães humanas em seu trabalho de parto. Algumas
histórias de Leto contam como Zeus transformou-a em uma Ioba durante 12
dias, enquanto outras descrevem lobos escoltando a mãe e seus filhos
gêmeos.
O relato clássico parece quase uma racionalização. Poderosa, antiga,
amada pelas pessoas comuns que preferiam os antigos costumes, a Artemis
das Montanhas teria ameaçado a nova religião de Zeus e Apoio. Tornando-a
filha de Zeus e irmã de Apoio, eles não apenas a colocavam na mesma
linhagem dos olímpicos, como teriam se apropriado de Sua autoridade com
as pessoas. Mas as mulheres ainda a reverenciavam e buscavam o Seu
auxílio no parto, como o faziam desde tempos imemoriais. Para acomodar
este atributo especial — e ainda tornar Apoio o centro da história —, o
mito grego nasceu da história de Artemis cuidando de Leto.
Solidão e Sexualidade
Alguns escritores, como Ginette Paris, descrevem Artemis como uma
Deusa (ou "arquétipo") da solidão, vivendo eternamente só nas florestas,
uma espécie de bandeirante virtuosa, sem interesse por sexo. O que estes
escritores parecem indicar é que Artemis não se envolveu com homens. Mas
como podemos descrevê-la como solitária, quando os mitos falam de Suas 20
ninfas do rio de Amnissos, ou das arktoi ("elas rumam"), as meninas de nove
anos de idade que se uniam ao Seu serviço, ou as companheiras que a
serviam e se banhavam com Ela?
Com referência a sexo, Arthur Evans (em The God of Ecstasy) faz uma
colocação interessante. "Na verdade", escreve ele, "Artemis era muito
famosa por suas explorações sexuais — com outras mulheres." Evans
descreve as mulheres que "realizavam danças orgíacas selvagem em Sua
honra, às vezes usando máscaras". Marija Gimbutas fala-no$ das pinturas de
vasos mostrando as adoradoras de Artemis com máscaras de animais, como
209
Deusas da Lua
No mito grego, três Deusas simbolizavam a Lua — Artemis, Selena (às
vezes associada com Deméter) e Hecate. Elas formam o trio composto pela
Virgem (Lua crescente), a Mãe (Lua cheia) e a Anciã (Lua minguante). Por
outro lado, podem ter sido uma Deusa cujos diferentes lados foram
destinados a diferentes personalidades. Tanto Artemis quanto Hecate são
freqüentemente retratadas com cães. No mito de Perséfone, Artemis (junto
com Atena) está colhendo flores com Perséfone quando Hades sai do chão e
a seqüestra. O hino homérico conta-nos que somente Hecate testemunhou
o que aconteceu, e somente Hecate vai contar a Deméter o que aconteceu
com Sua filha. Com Artemis, Deméter e Hecate, os três aspectos da Lua
aparecem na história de Perséfone.
As características das três Deusas evocam as diferentes qualidades
simbolizadas pela Lua nas mutações de sua apresentação. A jovem Lua
crescente, tão parecida em sua forma com o arco tenso de Artemis, exibe as
muitas possibilidades da juventude, quando todas as coisas se abrem diante
de nós e ansiamos por correr selvagens e livres, experimentando nossa
força e coragem. A Lua cheia estimula emoções poderosas, mas também
nos exibe uma imagem de completude. O rosto baixa suavemente sobre
nós como uma mãe olhando para seus filhos. A Lua minguante, movendo-
se rumo à escuridão, exige rendi cão mesmo quando nos oferece a
sabedoria de ter atravessado todo o ciclo da vida.
Artemis e Apolo
No mundo grego antigo, os templos do Deus Sol Apoio pouco a pouco
assumem os lugares associados com a Artemis lunar. Como já foi descrito,
os gregos podem ter unido Apoio a Artemis para pedir emprestado (roubar)
um pouco da Sua autoridade. Em Delos, o templo mais antigo e maior
pertence a Artemis, com o santuário de Apoio sendo muito menor e
localizado na periferia. Delos também continha um altar cornudo,
supostamente construído por Teseu depois que ele matou o minotauro e em
seguida abandonou Ariadne na Ilha de Naxos (onde ela celebrou um
casamento divino com Dionísio, o Deus que Kerenyi considera o marido
212
Leões e Abelhas
Muitas placas e pinturas antigas de Artemis mostram-na com animais, em
geral leões, uma associação encontrada em todo o sul da Europa e no
Oriente Próximo. Inana e Ishtar da Suméria e da Babilônia, Isis e Sekhmet
no Egito, e as Deusas cretenses aparecem todas acompanhadas por leões.
Leões puxam a carruagem de Cibele através de Roma. De Çatai Hüyük, na
região natal de Cibele na Anatólia, vem aquela estátua da Deusa da Idade da
Pedra dando à luz sentada calmamente em uma pedra, com as mãos
apoiadas nas cabeças de dois leões. Milhares de anos mais tarde, a estátua
da Virgem Maria retrata-a sentada em um trono com cabeças de leão
esculpidas nos braços.
Os micenenses invocavam a Deusa de formas diferentes em sua
grande fortaleza de Micenas na Grécia continental, um local tradicio-
nalmente associado a Artemis. Vemos leões no famoso portão de entrada no
local, na base da colina (ver Foto 21).
Os leões estão de pé, uma expressão orgulhosa dos guerreiros de
Micenas. Entretanto, o pilar que lhes dá suporte nos retorna à Deusa, pois
temos conhecimento pelas "criptas em pilares" dos palácios cretenses de que
esses pilares evocavam Sua presença, quer como árvores, colunas de pedra
ou estalagmites nos santuários das cavernas. Em Micenas, os leões e os
pilares juntos formam um cone, uma forma da Deusa tão importante quanto
a montanha cornuda. Dolores La Chapelle descreve como o "Cone de Mukli"
213
Cibele
As romãs, assim como as rosas, pertenciam a Cibele. Uma estátua antiga da
Deusa retrata-a segurando romãs. A estátua vem da Síria, na extremidade
leste do império hitita, que conquistou a Anatólia e a Frígia em torno de
1740 a.C. Mil anos mais tarde, em Roma, as estátuas de Cibele ainda a
mostravam com romãs. As romãs vinculam Cibele mais obviamente com
Perséfone, que deve retornar todos os anos à Terra dos Mortos por ter
comido duas sementes de romã dadas a ela por Hades, o Deus da Morte.
Mas a arte romana às vezes exibe Cibele ao lado de Deméter, mãe de
Perséfone. Deméter deu o conhecimento da agricultura aos humanos como
uma expressão da Sua alegria quando Sua filha voltou para Ela.
Comparativamente, o escritor romano Lucrécio citou os frígios como o
primeiro povo a cultivar o solo. O filho de Cibele, Átis, que morria e
ressuscitava todos os anos, simbolizava o alimento, assim como Zeus havia
215
Em The Goddesses and Gods of Old Europe, Marija Gimbutas conta-nos que "As
oferendas a Artemis incluem falos e todas as espécies de animais e frutas (...)
Animais selvagens mutilados, dos quais 'um membro foi cortado', eram
sacrificados em honra a Artemis na Beócia, Eubéia e Ática".
A expressão mais plena do sacrifício genital vem com os gallae, que
acompanharam Cibele da Frígia para Roma. (Muitos autores que escrevem
sobre este tema usam a forma masculina da palavra, ou seja, galli. Como o
poeta romano Catulo, uma importante fonte de informação sobre os ritos,
usei o sufixo feminino como um reconhecimento de que a autocastração dos
gallae envolvia um movimento deliberado de um estado masculino para um
estado feminino. Similarmente, a maioria dos textos sobre este tema usa o
termo "autocastração" para as ações dos gallae. A castração, no entanto,
significa somente a remoção dos testículos. Os gallae castravam-se
inteiramente, como que para remover toda a masculinidade de seus corpos.)
Os gallae faziam sua oferenda, como parte dos longos ritos de Cibele e
Atis, em 24 de março, o "Dia do Sangue". Mais uma vez, a música c a dança
faziam parte do ritual, pois os gallae mais velhos ajudavam oi iniciantes a
atingir um estado de êxtase. As rosas também estavam presentes — segundo
Randy E Conner, em Blossom of Bone, "os devotos de Cibele e Átis
mostravam os galli [sic] com moedas e rosas brancas". Os gallae podem ter
eles próprios se castrado ou os idosos podem tê-lo feito para eles. Seja como
for, os órgãos removidos tornaram-se objetos de poder mágico. Alguns
relatos dizem que os gallae armazenavam-nos em aposentos subterrâneos
para serem usados em ritos secretos.
Depois de sua autocastração, osgallae recebiam cerimoniosamente
roupas femininas. Sir James Prazer descreveu-os usando trajes de noiva para
sua iniciação no serviço de sua Deusa.
Urano, mas Sua substituta. Depois que ele fica "não sexuado", retira-se na
escuridão.
Será que Afrodite tem Sua origem na Idade da Pedra? O mito revela-a
como uma geração mais velha que Zeus e os outros olímpicos primários.
Sua adoração inclui originalmente figuras como os gallae que adoravam
Cibele? No hino homérico a Afrodite, a Deusa descreve-se como filha de
Frígia, que era o lar de Cibele. Esta veio para Roma devido a uma profecia
do oráculo de Delfos, segundo o qual a Mãe de Ida iria salvar a cidade da
invasão. O mito conta-nos que Afrodite deitou-se com Anquises na encosta
do Monte Ida em Anatólia, e que quando Anquises descobriu a identidade de
sua amada, implorou à Deusa que não o tornasse impotente. Em
comparação com este mito, os homens na índia acreditam que os hijras
detêm o poder de amaldiçoar um homem com a impotência.
Na região de Amarthus, os devotos da Deusa local que assimilaram
Afrodite, descreviam sua divindade como "possuidora de um sexo duplo". E
chamavam-na/no de Afroditos. Nosso próprio ternv "hermafrodita"
origina-se de Hermafroditos, um filho de Hermes Afrodite que funde seu
corpo com o de uma ninfa do rio chamac1
Salmacis. E Robert Graves, em The Greek Myths, conta a história de
uma Deusa hitita que arranca com uma mordida os genitais do Deus do Céu,
Anu, e cospe sua semente em uma montanha para criar a Deusa do Amor.
A Deusa que realiza este ato é Kubaba, o nome hitita para Cibele.
Das muitas correntes que dão origem à religião grega, uma pode ter
derivado dos xamãs que superaram as barreiras do sexo: os homens, através
do sacrifício de seus genitais; as mulheres, usando roupas masculinas e
falos artificiais. As divindades e os heróis que mudam de sexo aparecem de
vez em quando no mito grego. Níobe zomba de Leto, a mãe de Apoio e
Artemis, por ter uma filha masculinizada e um filho efeminado. Tanto
Héracles quanto Aquiles usam às vezes roupas femininas. Tirésias, o profeta
grego, começa sua jornada para a profecia mudando de sexo. Cruzando com
duas serpentes copulando, ele mata a fêmea e se vê transformado em
mulher. Após sete anos, durante os quais se torna "uma famosa prostituta"
(Robert Graves), Tirésias tem a mesma visão, e, matando o macho,
novamente se transforma em homem. A história é filosófica, pois sugere que
podemos nos transformar em qualquer coisa que tentemos matar. E também
que o homem e a mulher são incompletos, e que o poder sagrado vem da
superação dessa divisão — dentro de um só corpo.
Artemis e Afrodite
À primeira vista, não há outras duas Deusas que pareçam mais diferentes que
Artemis e Afrodite. Artemis é rude, selvagem, ereta e forte, vivendo
escondida na floresta, inclemente, misteriosa como a Lua prateada. Afrodite
é sensual, dourada e macia como a aurora, apaixonada, perigosa,
voluntariosa, sempre se apaixonando e despojando os outros de razão e bom
senso. Artemis é a incorporação da força; Afrodite é a incorporação do
desejo.
Entretanto, quanto mais profundamente observamos, mais achamos
que estas duas Deusas se pertencem. As duas originam-se de raízes antigas,
remanescentes claras da Grande Deusa. Ambas podem ter sua origem fora
da Grécia, pois seus nomes são de origem e significado incertos. Mas estas
são comparações superficiais. Um poder mais profundo vincula as duas.
Ambas as Deusas incorporam uma selvageria, uma urgência física que nos
conduz, como diz Vincent Scully, "além do alcance da razão ou do controle".
Elas permanecem, em todas as épocas, fiéis a si mesmas.
Encontramos também algumas conexões explícitas. Quando
Afrodite faz amor com Anquises no Monte Ida, o local para isso é um diva
"onde estão espalhadas peles de ursos e leões, enquanto as abelhas zumbem
sonolentas em volta deles" (Robert Graves). Estes três animais pertencem a
Artemis.
Afrodite e a Sexualidade
Ao contrário de algumas divindades, Afrodite não mantém uma distância
entre Ela e aqueles que caem sob o Seu poder. Ela se entrega ao amor de
uma maneira tão selvagem e insensata quanto qualquer de Seus súditos,
deitando com mortais e também com Deuses. "Então o amor abalou meu
coração como o vento que cai sobre os carvalhos nas montanhas", escreveu
223
Safo, talvez a maior devota da grande Deusa. Afrodite também permite que
o vento abale Seu próprio coração, pois como Ela pode compreender e
libertar o poder do desejo sem Ela própria se render a ele?
Apesar de todas as tentativas para reassegurar nossa sexualidade nos
últimos cem anos, ainda desconfiamos deste aspecto primitivo de nossas
vidas. Tentamos manter o sexo como um aspecto dos relacionamentos
emocionais. Se ouvimos falar de alguém que contraiu AIDS através do
sexo casual, falamos desta terrível doença como culpa da própria pessoa.
Sentimo-nos culpados se desejamos pessoas que não respeitamos, ou
fantasiamos sobre ações que não aprovamos. Tentamos controlar nossas
fantasias até em nossas mentes, e por isso elas não vão trair nenhum aspecto
desagradável ou ameaçador de nós mesmos. Assumimos contentes imagens
da Deusa como nutrientes, protetoras, fortes, doadoras da vida, destemidas
— mas evitamos retratos dela como libertinas, descontroladas, insaciáveis.
A Deusa Inana, freqüentemente considerada uma contraparte
sumeriana de Afrodite/Vênus, tornou-se uma favorita dos adoradores
modernos da Deusa, principalmente devido à Sua adoradora-cantora (para
usar uma expressão africana), Enheduana, filha do Rei Sargão, talvez a
poeta mais antiga do mundo. Aplaudimos a história de Inana de ir do
"Grande Acima para o Grande Abaixo", ou seja, do Céu para a Terra dos
Mortos, onde Ela enfrenta Sua todo-poderosa irmã, Ereshkigal, Deusa da
Morte. Vemos isto como um todo, enfrentando a Deusa das trevas dentro de
nós mesmos. Mas ignoramos as descrições de Inana como violenta, infiel,
patrona das prostitutas que visitam "tavernas", uma Deusa que copula com
cavalos e também com homens. Sentimo-nos desconfortáveis com as
descrições sumerianas de Sua vulva como o barco do céu, ou um campo
baldio esperando pelo arado. E não A mencionamos como a Deusa do beijo,
pois estas coisas parecem triviais e, pior, podem conduzir ao reconhecimento
de Sua função como Deusa da Masturbação.
Não amarramos mais as mãos das menininhas para evitar que elas se
toquem "lá embaixo", mas ainda achamos difícil ver a masturbação como
algo mais que uma brincadeira, ou um alívio de um aborrecimento, como
tomar uma pílula. Preferimos considerá-la uma substituição para "a coisa
real", não uma expressão de amor-próprio ou cor um poder do corpo para nos
conduzir à verdade. A masturbação pertence a toda uma variedade de
expressões sexuais inaceitáveis, desde o sexo casual até o fetichismo, o
sadomasoquismo e a dança orgíaca. Quando Nor Hall escreve sobre o
abandono ao desejo do corpo, não fala apenas na segurança de um
casamento apaixonado.
224
225
Afrodite e a Natureza
Afrodite pertence à Terra, às montanhas e ao mar, de onde ela primeiro
surgiu nua da água. Nós a vemos acompanhada de gansos e golfinhos. Com
frutas, com flores, com rosas e jacintos, com papoulas e romãs. Seu amante
Adônis, nascido de uma árvore de mirra, morre em um campo de alface,
uma planta cujo crescimento rápido, de abundante folhagem, faz com que
ela apareça com freqüência nos mitos da Deusa. Consta que a alface forma
os pêlos púbicos de Inana. Pelo menos um tipo de alface, o raponço, tem
uma flor de cinco pétalas, um elo com o planeta Vênus (nome romano de
Afrodite), com seu caminho de cinco pétalas até o céu. (Os leitores de
226
Sexualidade e Maternidade
O mito grego fala nas quatro Rainhas do Céu: Artemis, Atena, Hera
Afrodite. Em termos sexuais, podemos caracterizá-las como uma lê bica,
uma virgem casta, uma esposa e uma amante. Embora Homer6 descreva
Afrodite casada com Hefesto, o casamento não aparece muito em suas
histórias. Jamais a vemos como uma virgem, pois enquanto um mito pós-
homérico descreve Hera readquirindo seu hímen todos c anos, nenhum mito
fala de Afrodite "perdendo" sua virgindade. Além disso, nenhum Deus ou
mortal jamais a estuprou, raptou ou a tome contra a sua vontade. Ela se
rende à sua própria paixão, ao seu próprio poder de inflamar o corpo, não
forçar ou obrigar.
As Rainhas não suscitam imagens de maternidade, apesar das suj sições
de muitas pessoas de que "Deusa" sempre significa "Grande Mãe”. Tanto Hera
quanto Afrodite tiveram filhos, mas é muito raro vermos tais Deusas nesta
função. Artemis assiste outras mulheres no parto, mas ela própria não fica
grávida. Para a imagem da maternidade, precisamos recorrer às Deusas da
Terra, e principalmente a Deméter, através do seu relacionamento com
Perséfone, sua filha.
A divisão grega entre a paixão sexual e a maternidade faz eco à
nossa sociedade atual, onde muitas pessoas acham quase doloroso imaginar
suas mães como seres sexuais, e onde as mulheres com famílias acreditam
que precisam agir como duas pessoas diferentes em seus papéis como mãe e
amante.
6
Homero
227
devemos recorrer, não ao Filho, mas à Filha, a própria Rainha dos Mortos,
Perséfone.
230
Helene Cixous
poema dedicado a uma Deusa de hyrrh) esta espera por Sua Filha no
templo construído pelos eleusianos em sua honra.
234
A Tesmofória
A Tesmofória durava três dias e envolvia a preparação da Terra para:
semeadura dos grãos para o crescimento do inverno (como os Mistérios).
Na religião do corpo humano, os seres não observam passivamente
enquanto a natureza assume o seu próprio curso, ou Deus atua sem se
preocupar com a vontade humana. Na verdade, as ações humanas, os corpos
humanos unem-se ao mundo. O primeiro dia recebia i título de "Kathodos
e Anodos", ou seja, "o caminho para baixo e caminho para cima". As
mulheres levavam porcos e os atiravam em uma fenda cheia de serpentes
(lembre-se da píton profética da fenda em Delfos). Depois traziam para cima
os restos apodrecidos dos porcos sacrificados no ano anterior.
O segundo dia exigia o jejum, "Nestia", quando as mulheres imi-
tavam o período estéril da terra — quando as sementes ficavam escondidas
sob a terra — e a tristeza de Deméter por Sua filha ser banida da vida. A
semente e a Filha eram uma só, pois o nome da Filha no início do hino
homérico, Kore, ou "virgem", também significa "broto".
No terceiro dia, havia um banquete de carne, quando as mulheres
invocavam Kalligeneia, "a deusa do belo parto" (Baring e Cashford) e
espalhavam os restos dos porcos desintegrados nos campos, onde eles se
reintegrariam com os grãos.
Durante a Tesmofória, as mulheres abstinham-se de sexo. Em nossa
cultura, pensamos na abstinência como uma maneira de permanecer "pura",
ou talvez de manter a energia do corpo dentro do ser. Eu desconfio, no
entanto, que em rituais como a Tesmofória, a abstinência podia ter outro
significado — o significado de uma separação dos homens e um retorno à
primazia da Terra como fêmea. Também poderia haver um propósito
político, pois em uma cultura dominada pelos homens, como a Grécia, as
mulheres teriam de se separar dos homens para conhecer e expressar o seu
poder.
236
tempo que lhes davam as identidades dos Deuses ou heróis que estavam
representando.
238
A Procissão
Uma estrada moderna alinhada com os locais industriais atualmente
margeia grande parte de um caminho de procissões que liga Atenas a
Elêusis (chamada Elefsis em grego moderno). Apesar disso, ainda é possível
traçar o caminho e observar as mesmas formas da paisagem natural que os
celebrantes teriam visto em sua viagem sagrada. As formas da Deusa
aparecem e desaparecem ao longo do caminho.
A caminhada começa com uma subida ao Desfiladeiro de Dafne.
Uma colina cônica guarda o desfiladeiro no lado de Atenas. Através do
desfiladeiro, o pico cornudo do Monte Kerata surge à vista. O próprio nome
Kerata significa "cornudo". Vincent Scully descreve o Monte Kerata como
"incrivelmente feminino". Estas duas formas, o cone e o pico cornudo,
levam-nos de volta a Creta e às paisagens ao longo dos caminhos das
procissões em Cnossos e Festos. Todos os mitos antigos de Deméter
concordam que Ela veio para a Grécia proveniente de Creta, assim como
muitas outras figuras, incluindo o próprio Zeus. Na época de Homero, as
mulheres que participavam dos Mistérios Menores carregavam machados
duplos, o grande símbolo da religião de Creta. A propriedade intrínseca dos
Mistérios, assim como as formas da montanha, sugere uma linha direta dos
Deuses cretenses, mas eles têm adquirido seu próprio caráter por terem
sofrido a violência da cultura patriarcal simbolizada pelo rapto e pelo estupro
da filha da Deusa, que apesar disso ganha um poder especial por ter feito
aquela passagem para a morte.
Bem longe, o Monte Kerata desaparece da vista e o caminho se
torna estéril e rígido — uma incorporação para os caminhantes da viagem
de Perséfone no Mundo Subterrâneo, fora da vista de Sua mãe. Segundo
Scully, "Não é vista nenhuma abertura, nem qualquer objetivo acena para a
visão". Mas, depois, "as colinas que ficam à esquerda explodem",
revelando uma massa de pedras, o tipo do forma abrupta que assinala
Afrodite, e, na verdade, um santuário dedicado à Deusa do Amor aponta
diretamente. Embora os mitos gregos pareçam isolar o amor materno e a
paixão física, a viagem a Elêusis reúne as duas Deusas, Deméter e Afrodite.
Do santuário de Afrodite pode-se observar a Ilha de Salamis, fora da costa
de Elêusis. (Os navios gregos registram uma importante vitória de Salamis
contra os persas no mar.) Uma fenda distinta aparece nas colinas da ilha,
239
Narciso e a Romã
Conhecemos a história de Deméter e Perséfone principalmente a partir do
hino homérico a Deméter. Outros mitos nos proporcionam indícios
importantes para implicações da história central, mas a tradição conecta os
próprios Mistérios com a versão homérica. (Embora a tradição atribua o
poema a "Homero", ele realmente se origina de um período cerca de 700
anos após a composição da Ilíada e da Odisséia.)
No início da história, Perséfone não tem outro nome além de Kore,
"virgem" ou "moça". O poema começa com Ela inocente, colhendo flores
com as filhas de Oceano. Outras versões descrevem Kore acompanhada por
Artemis e Atena, Deusas virgens como a própria Kore. Um templo
dedicado a Artemis e Poseidon localiza-se fora do Precinto de Deméter
(Poseidon pode ter sido o consorte de Deméter, pois o nome significa
"marido de De [Terra]").
Enquanto colhe flores, Kore não percebe que uma armadilha a espera.
O Deus Hades decidiu tomá-la como Sua noiva, e convenceu Seu irmão,
Zeus, a ajudar a arranjar este "casamento". Zeus, por sua vez, consegue a
ajuda de Gaia, a Terra, que faz com que um magnífico narciso cresça como
isca para atrair a moça para longe de Suas amigas e de Sua mãe e de
qualquer pessoa que possa ouvi-la.
Segundo o Cambridge lllustraled Dictionary of Natural History, o narciso
é uma espécie de lírio, uma flor sagrada para as Deusas de muitos locais, em
parte por sua semelhança com a vulva. Barbara Walker associa o lírio com
240
O Rapto
O narciso provoca encantamento em todos que o contemplam, mesmo o
céu, a terra e os mares. Mas quando Kore se inclina para pegá-lo, a terra se
abre e Hades aparece em Sua carruagem de ouro. O Deus a rapta e a
carrega, gritando, para o Mundo Subterrâneo. Kore grita pedindo a Seu pai,
Zeus, que a ajude, "Mas ninguém, nenhum dos Deuses imortais, nenhum
homem mortal, ouve a sua voz". Como Zeus tomou as providências para o
rapto, podemos dizer que Ele se recusa a ouvir Sua filha, que o mundo todo
se recusa a ouvir o sofrimento e o terror do Seu rapto. À exceção de Hecate,
Deusa da Lua escura, e Hélio, o Sol (os atenienses consideravam Hecate filha
de Deméter, e por isso um alter ego de Perséfone). Ambos ficam afastados
dos Deuses. Como a luz do Sol e a escuridão da Lua, eles formam uma
completa dualidade em si.
Deméter também ouve a angústia de Sua filha, descobre que Ela
partiu, e embora atravesse terras e mares, ninguém vai lhe dizer nada.
Durante nove dias, vaga tristemente pelas florestas, com tochas em ambas
as mãos. Devido a esta busca, os Mistérios duram nove dias, com uma
procissão de tochas no meio da noite. O nove, como sabemos, não é
241
arbitrário. Três vezes três, ele aumenta o poder da Deusa da Lua. E, é claro,
nove é o número dos meses em uma gravidez (originalmente, um mês não
era uma categoria arbitrária, mas a extensão do ciclo lunar, vinte e nove
dias e meio). Os Mistérios ocorriam na segunda metade do mês lunar,
quando a Lua se perde para a escuridão, assim como Deméter (às vezes
identificada com a Lua cheia) perde Perséfone.
Finalmente, na nona manhã, Hecate, segurando Sua própria tocha,
aparece diante de Deméter para lhe contar que ouviu, mas não viu, o rapto
de Perséfone (o nome da Deusa aparece aqui pela primeira vez no poema).
Juntas, vão até Hélio, que coloca a culpa em quem de direito: Zeus, que "a
deu a Hades, seu próprio irmão, para lhe servir de esposa". Hélio aconselha
Deméter a não protestar, pois Hades vai ser um bom marido.
Deméter, no entanto, recusa-se a conciliar. Nem mesmo tenta, a esta
altura, se opor ao seu irmão todo-poderoso. Podemos pensar que Ela irá
secar o mundo porque perdeu Sua filha, mas isto não acontece. Ela se retira
na Sua tristeza, vagando pelo mundo disfarçada como uma anciã. E assim
chega a Elêusis.
Deméter Disfarçada
A família real acolhe Deméter, aceitando-a como pajem. Oferecem-lhe
vinho, mas Ela recusa, preferindo uma bebida de cevada de Sua própria
invenção. Uma bebida similar, chamada kykeon, é retratada nos Mistérios. R.
Gordon Wasson e outros têm declarado que o kykeon continha um
alucinógeno derivado dos grãos, a ergotina, que aumentava as revelações no
clímax do ritual. Carl Kerenyi interpreta a recusa do vinho de uma maneira
diferente. A recusa sugeriria um segredo — o fato de o marido de Perséfone
ser Dionísio, o Rei do Vinho.
Qualquer que tenha sido a razão, a Deusa recusou o vinho. Uma luz
entra na história neste ponto, como uma mulher que chega para animar a
velha pajem. Algumas versões chamam-na de lambe, filha do rei, outras de
Baubo, esposa de um criador de porcos que, segundo uma versão, perdera
seus porcos quando Hades os levara para o Mundo Subterrâneo com
Perséfone. Seja lambe ou Baubo, ela dança e conta histórias lascivas. Na
procissão vinda de Atenas, quando os mystae passavam por uma ponte, as
pessoas que incorporavam Baubo realizavam danças lascivas diante deles.
Alguns relatos descrevem-nas como mulheres, outras como homens
242
A Terra Inanimada
Deméter exige que os eleusianos construam-lhe um templo acima do Poço
das Belas Danças, local onde as virgens a encontraram e recolheram. Lá ela
se retira, e assim fazendo arruína o mundo, pois sem a Mãe nenhuma planta
pode crescer. Há algumas ironias sutis na ação de Deméter. Ela também
teve de reconhecer Sua própria ignorância, pois até Hecate e Hélio
chegarem para ajudá-la, nada sabia do destino de Sua filha. E embora Sua
raiva se origine da perda de Kore para a Morte, Ela reage ameaçando de
morte o mundo todo. Ou talvez a vida não estivesse inteiramente nas suas
mãos. Pois se kore significa "broto", e o brotar das plantas permanece
contido sob o solo, o que poderia ela, mesmo sendo a mãe dos Grãos fazer
sozinha?
Segundo Kerenyi, algumas versões do mito descrevem a própria Deméter
descendo ao Mundo Subterrâneo para trazer Sua filha de volta, devolver a
vida ao mundo. Em Homero, ela permanece oculta em Seu templo. Embora
aja contra a humanidade, também atinge os Deuses. Perturbou o equilíbrio
natural do mundo, incluindo a ecologia da Terra e do Céu. Assim como os
humanos dependem das plantas para viver, os Deuses dependem dos
sacrifícios humanos para uma espécie de sustentação. Os corpos mortais
atuam como uma ponte entre o corpo bruto da natureza e o corpo etéreo do
Espírito.
A angústia e a raiva de Deméter não conseguiram alterar o decreto de Zeus.
Sua obstinação, entretanto, e Sua simples recusa em desistir e aceitar a morte
finalmente convencem os Céus. Os Deuses não podem existir sem os
sacrifícios da humanidade. Zeus envia Hermes ao Mundo Subterrâneo para
recuperar Perséfone. Mas a Morte não é tão facilmente derrotada. Fingindo
obedecer, Hades dá a Perséfone duas sementes de romã, que ela come antes
de retornar à luz. Por causa deste ato, porque comeu o fruto da Terra dos
Mortos, Perséfone não pode permanecer o tempo todo na luz, devendo
retornar por um período, todos os anos, ao Seu lugar ao lado de Hades, como
Rainha do Mundo Subterrâneo.
244
A Romã
A romã aparece em outras histórias acompanhando Perséfone. Devido à
abundância de suas sementes, sua coloração vermelha e seu estrógeno
natural, ela simboliza o renascimento. No entanto, Perséfone tem de ficar
com a Morte devido ao fato de ter comido a romã, como se se permitisse
nascer na morte. Durante o veloz dia da Tesmofória, as mulheres comem
apenas um alimento, sementes de romã, mas somente aquelas que não
tocaram o chão. Quando eu e Maria Fernandez estivemos em Elêusis, um
visitante anterior espalhara romãs partidas sobre o chão de uma caverna rasa
às vezes identificada como o local por onde Hades levara Perséfone para a
escuridão. Assumindo deliberadamente a identidade de Hades, Maria abriu
uma, extraindo-lhe as sementes. O corte, com as sementes brancas
gotejando, parecia a boca de um cadáver, cheia de vermes.
O mito também liga a romã a Dionísio. Quando os espíritos pularam do
espelho para desmembrar o jovem Deus, a romã brotou do Seu coração.
Quando Perséfone come a semente, está comendo a semente de Dionísio,
ou seja, o Seu esperma. Nesta versão do mito, Ela fica grávida e dá à luz
laço, cujo nome os mystae gritam em sua procissão de tochas durante os
Mistérios.
Algumas versões descrevem laço como Filho de Deméter, um sinal
de que Deméter e Perséfone são a mesma pessoa. No final dos Mistérios,
eleva-se o clamor de que a Deusa deu à luz um filho, que "Brimo pariu
Brimos". Brimo, como seu equivalente masculino, Brimos, significa "o forte".
As identidades aqui se fundiram, a Mãe e a Filha (pois o choro não distingue
que Deusa é Brimo), e a Mãe e o Filho, pelo mesmo nome para ambos.
Podemos descrever os Mistérios simplesmente como uma fusão dos seres,
Deusa e mortal, mãe e filho, feminino e masculino, vida e morte.
Ao mesmo tempo, a ingestão da semente da morte conduz da fusão
para a individualidade. Perséfone nunca retorna completamente ao seu
estado desconhecido como a Virgem/Filha sem nome de Sua Mãe. Assume,
isto sim, o Seu próprio poder como Rainha do Reino das Trevas.
245
Os Poderes de Deméter
Tendo se tornado rainha por direito próprio, Perséfone conduz a carruagem de
ouro de Hades de volta à luz e à Sua Mãe. Quando chega, Sua Mãe exige que
Ela diga a verdade, tudo que lhe aconteceu. Sabendo das sementes de romã,
Deméter instantaneamente reconhece o vínculo de Sua filha com o Reino das
Trevas. Apesar disso, fica exultante com o retorno de Sua filha.
Agora Ela recompensa Elêusis e toda a humanidade. Não apenas
devolve a vida às plantas, mas ensina os segredos da agricultura, oferecendo
aos humanos o controle do seu suprimento alimentar. Transmite estas
informações a Triptólemos e o instrui para disseminar a mensagem pelo
mundo todo. Alguns historiadores identificam Triptólemos com um
autêntico rei de Elêusis. O nome significa "três vezes guerreiro" ou "três
vezes agricultor", implicando uma transformação de um para o outro. (Os
cristãos e os judeus podem recordar a previsão bíblica de que os homens
iriam fundir suas espadas para transformá-las em escavadeiras.) Junto com
o conhecimento, Triptólemos deu três ordens: honrar seus pais, honrar os
Deuses com frutos e poupar os animais.
Deméter ofereceu a agricultura como um presente para todo o
mundo. Deu outro presente, também muito especial, a Elêusis — os
Mistérios. No mundo antigo, qualquer pessoa podia ter acesso aos
Mistérios, contanto que falasse grego e não tivesse derramado sangue.
Qualquer um podia ir até lá, desde que fosse com este objetivo.
Estupro e Incesto
Um mito que atinge tantos níveis em nossas vidas — nossos anseios
espirituais, nossa percepção de nós mesmos, o próprio alimento que nos
mantém vivos — pode nos conduzir apenas a interpretações sutis. Só por um
momento, vamos observar a história de um ângulo diferente, como uma
história de estupro, incesto e resistência.
Julgar o significado do incesto nos mitos torna-se difícil, quando nos
lembramos que os Deuses e Deusas da maioria das mitologias formam uma
família. A energia divina é Una, e só se torna diferenciada através das várias
personalidades (personae) dos Deuses. Assim, as histórias descrevem-nos
como relacionados um ao outro. Quando um irmão e uma irmã se casam ou
246
O Poder do Conhecimento
Como a história de Deméter e Perséfone é um mito, vai além das lições de
moral do drama familiar. O mito incorpora tanto a verdade histórica quanto
a psicológica. A recusa de Deméter em aceitar a perda de Sua Filha simboliza
a recusa da cultura matrifocal em desaparecer ou abandonar sua sabedoria. A
sobrevivência e o retorno de Perséfone falam a tantos homens e mulheres
atualmente porque descrevem o dramático retorno da religião da Deusa. Em
nossa ignorância do passado, temos representado o mito do povo ona, cujos
homens mataram todas as mulheres com conhecimento (como a queima das
bruxas européias matou centenas de milhares, talvez milhões, de mulheres) e
impediram as meninas de tomar conhecimento do seu poder. E
representamos o mito do Gênese, permitindo que um Deus (Seu termo para
Ele próprio) "ciumento" desenvolvesse uma inimizade entre nós e a serpente,
249
A Mãe e a Filha
O corpo da Deusa não pode ser destruído. Paul Friedrich traça os muitos
momentos em que o estupro da Deusa produz uma filha, como se, quando o
Deus patriarcal buscasse violentar a Deusa, Ela ao contrário transferisse Seu
poder para a próxima geração. Zeus estupra Leto, que dá à luz Artemis
(também Apoio, mas Artemis primeiro). Zeus estupra Deméter, que dá à
luz Perséfone. Poseidon (Zeus do mar) estupra Deméter Erinis, que dá à luz
"a Amante". Outra versão mostra Poseidon estuprando a Górgona, Medusa,
que dá à luz Perséfone.
Mas quando Hades estupra Perséfone, algo diferente ocorre. Não
nasce nenhuma criança. Os mystae chamam o nome "laço" durante os
Misrérios; mas não é descrito nenhum nascimento no Reino das Trevas. Só
no fim, quando a Deusa retorna, Brimo gera Brimos.
Faz sentido que nenhuma nova vida surja na Terra dos Mortos. Mas
também podemos dizer que a transferência se interrompeu. Perséfone não
renuncia ao Seu poder e o transmite a uma filha. Na verdade, encontra sua
própria força e torna-se por direito próprio governante, pois enquanto Hades
simplesmente preside as almas mortas, não lhes dá nada. Perséfone dá-lhes
conforto e algo mais: através da participação nos Mistérios, a alegria e a
salvação prometidas.
Quando Zeus estupra Deméter, a Deusa se vê impotente e busca
conforto em Sua filha. Mas quando Hades, com a ajuda de Zeus, se
250
atrai para longe deles. Desse modo, a visão afasta ambos os personagens
da consciência e os aproxima da morte.
E depois se modifica. Na morte, Kore toma consciência porque
não volta atrás. A morte e a visão são inimigas. Quando alguém morre, nós
fechamos suas pálpebras. Mas Perséfone olha. A consciência não é algo
que simplesmente acontece conosco. É uma decisão que precisamos
tomar. Quando opta pela consciência na Terra dos Mortos, Kore entra em
Seu poder, se torna Perséfone, aquela que brilha na escuridão. A Morte
leva-a, como a todos os mortais, mas, ao contrário destes, a Deusa não
lhe permite destruí-la. Através do Seu movimento para a
autoconsciência, Ela muda os termos da morte para todos nós — mas
somente se nós também nos tornarmos conscientes.
Sófocles escreveu: "Bem-aventurados aqueles mortais que viram
estes ritos e assim entram em Hades; só para eles há vida, para os outros
tudo é infelicidade." (Fragmento citado em Burkert, Greek Religion.) Aqueles
que não transpuseram os Mistérios continuavam a experimentar a morte da
maneira antiga, como sombras vazias. O iniciado percebia a morte de uma
maneira totalmente diferente, e por isso era salvo. Não à maneira de
Cristo, que nos salva a todos, contando que Lhe deu permissão,
"aceitando-o". Perséfone pedia algo mais de Seus adoradores, que eles se
tornassem plenamente conscientes dela durante os nove dias dos Seus
Mistérios.
Em nossa época, com os Mistérios Maiores há muito desaparecidos
do mundo, Perséfone pode se tornar uma imagem da nossa própria
consciência. Podemos pensar especialmente em estupro e incesto.
Perséfone é a Deusa daqueles que sofreram violações. A mensagem que
Ela lhes transmite é simples: não se tornar inconsciente, não se tornar
negligente. Penetre nesta morte e irá transformá-la. Ela fará de você algo
maior que a destruição de sua inocência.
Perséfone retorna através da lealdade e da raiva de Sua mãe. Mas
não retorna para sempre, deixando Sua experiência para trás. Aqui também
Ela assume o Seu poder, o Seu nome. Afinal, como poderia brilhar na
escuridão, se só aparecesse na luz? Todos os anos, Ela desce ao Reino de
Hades durante parte do ano — o período da Serpente.
253
vaso arcaico mostra Perséfone com Dionísio em uma pose que sugere
casamento (Dionísio segura uma xícara para Ela), enquanto Deméter e
Hermes observam de lado. Similarmente, os vasos que mostram
Triptólemos em geral retratam Dionísio do outro lado. Já vimos como a
versão arcadiana do mito descreve Dionísio como filho de Perséfone. Há
uma profunda diferença entre um Deus Pai que estupra Sua Filha e uma
Deusa Mãe que toma Seu Filho como seu amante voluntário. O primeiro
estabelece o domínio da força. A segunda reencena o drama pré-histórico
da unidade entre a Mãe e o Filho que cresceu em Seu corpo, entre a eterna
Terra e as plantas que Crescem e morrem e retornam.
O consorte de Deméter em Creta, Zagreus, foi também identificado
com Dionísio. Assim, Deméter e Perséfone tornam-se um só, enquanto
Zagreus/Hades/Dionísio tornam-se o amante que morre, vai para debaixo
da terra e substitui a si mesmo. Uma vez mais lembramos o
desmembramento de Dionísio. A derrubada do consorte identificou o Deus
com o trigo colhido, e o retorno da semente à Terra. Podemos identificar
Brimos, filho da Deusa, como Dionísio renascido, e Perséfone como Brimo,
Sua mãe, para que no final dos Mistérios o círculo se feche, incólume.
Lembre-se do trigo ou da cevada milagrosamente crescidos no ritual final.
Será que a verdadeira identidade do raptor de Perséfone era parte do
segredo do fim dos Mistérios? O que não pode ser falado pode ter incluído
uma manifestação da própria Perséfone, quer retratada como uma
sacerdotisa ou como uma visão induzida pela oração e pela intensidade de
nove dias de celebração mística. (Uma visão não é o mesmo que uma
alucinação, uma diferença sendo que, numa visão, todos vêem a mesma
coisa.) Será que esta revelação poderia ter incluído o conhecimento de um
casamento sagrado, na Terra dos Mortos, entre a Deusa da Vida e o Deus
do Êxtase?
O Presente da Agricultura
Politicamente, o mito de Deméter e Perséfone simboliza a invasão das tribos
patriarcais na velha ordem matrifocal. O mundo sagrado que anteriormente
se movia entre a Mãe e Sua filha e Filho/consorte agora tem seu controle
assumido pelo dominador Zeus/Poseidon/Hades. Deméter resiste a esta
mudança, dizendo que se Sua filha deve morrer, também o mundo deve
morrer. Quando Perséfone retorna, Ela não restaura o status quo; o mundo
255
Hye! Kye!
Chover. Conceber.
258
9 - O Corpo Vivo
O Calor do Corpo
Se os cientistas não consideram a Terra um ser consciente, o que significa
dizer que a Terra tem vida? Um ponto básico da Teoria de Gaia envolve a
idéia da auto-regulação. Os organismos vivos mudam coisas como
temperatura do corpo em resposta a mudanças no ambiente. Segundo
Lovelock, a Terra faz exatamente isso, mantendo a temperatura ambiental
mais ou menos constante durante milhões de anos, apesar do fato de o sol ter
ficado cada vez mais quente durante este longo período de tempo. Lovelock
calcula que a produção de calor do Sol aumentou entre 30 e 50 por cento
desde a origem da vida. Entretanto, por todas as evidências, a temperatura da
Terra permaneceu constante.
Uma maneira de isto poder ter acontecido seria uma camada de
algum gás, amônia ou dióxido de carbono, ter mantido a Terra aquecida
durante o período inicial, quando o Sol não gerava tanto calor. Quando o Sol
261
Suposições Culturais
E difícil para nós reconhecer a Terra como um ser vivo, em parte porque
nós mesmos vivemos nela, e em parte porque ela é muito maior que nós
— e em parte porque aprendemos a pensar nela como uma rocha
inanimada contendo as plantas e animais que consideramos seres vivos.
Outras culturas achariam a idéia menos estranha, pois muitas pessoas têm
imaginado o planeta como orgânico, como a antiga Mãe, a Deusa.
Amadou Hampote Ba escreve que no Sudão "considera-se a Terra um ser
vivo. Ela cresce, diminui e morre".
Nossos corpos também contêm uma infinidade de seres vivos. Po-
demos imaginar que não nos reconhecem como vivos devido ao nosso
enorme tamanho. Um ser vivo é composto de outros seres vivos, cada um
sendo um organismo independente. Ao mesmo tempo, atua como um
todo, com um limite que lhe dá forma e o distingue do que o cerca. O pêlo
de um gato, a pele humana e a atmosfera da Terra realizam todos funções
similares. Entretanto, o limite nunca é absoluto, jamais uma barreira, para
nós ou para a Terra. As criaturas vivas não podem permanecer totalmente
separadas do ambiente. A vida exige que troquemos energia com o mundo
que nos cerca. Os seres humanos comem outras criaturas, sejam elas plantas
ou animais. Transformamos sua substância e energia em partes dos nossos
próprios corpos. Excretamos dejetos de volta ao ambiente, onde eles então
atuam como um fertilizante, ou seja, nutrientes para criaturas
262
O Corpo Desmembrado
Os muitos mitos do corpo desmembrado da Deusa surgem de uma
percepção de que tudo está vivo, mas fragmentado. Esta não é uma
construção intelectual, mas uma intuição profunda. E assim criamos
histórias de uma Deusa que sacrifica Seu corpo para construir o mundo. Na
teoria do Big Bang da ciência moderna, toda a existência iniciava como
uma unidade, ligada em uma espécie de ovo perfeito chamado ylem. Oylem
explodiu em luz e energia, e parte disso converteu-se em partículas de
matéria.
A conversão da energia da luz em matéria segue a fórmula E = me2,
de Einstein. Isto envolve um elo de quantidades maciças de energia, pois a
fórmula se traduz como "energia igual a massa vezes o tempo de velocidade
da luz ao quadrado". A velocidade da luz é tão grande, que uma pequena
quantidade de matéria contém uma enorme energia. As bombas nucleares
demonstram este fato de uma maneira terrível, mas se observarmos essa
aplicação destrutiva, a relação da matéria com a energia nos dá muito o que
pensar. Podemos descrever nossos próprios corpos, juntamente com tudo
mais, como luz reduzida.
Na tradição da Cabala do misticismo judeu, encontramos uma idéia
incrivelmente semelhante à do Big Bang. Lá, aprendemos que Deus enviou
Sua luz de um ponto isolado desconhecido. Dirigiu a luz em "vasos" que
passaram a ser muito frágeis para conter a energia. Eles se romperam e
formaram nosso universo. Vivemos, portanto, em um universo composto de
264
Um Universo Autocriado
Os seguidores da religião transcendente freqüentemente fazem objeção à
idéia do universo como autocriado. De onde vem o universo? perguntam eles.
Algo — Alguém — deve tê-lo criado. Mas podemos dizer a mesma coisa
sobre Deus. De onde veio Deus? Deus não veio do nada, alguém deve tê-lo
feito. Em algum ponto, precisamos deixar a discussão para trás. Na
265
insistência de que Deus deve ter feito a natureza está a suposição de que a
natureza é muito imperfeita, muito confusa, muito viva, para compor o
mundo "real". Nós morremos na natureza. Nossos corpos desejam coisas
impossíveis: voar, viver para sempre, fundir-se totalmente com outros
seres. Não conseguimos controlar nossos desejos, ou nossos corpos. Eles se
tornam doentes e inúteis. Nos constrangem com seus anseios e com seu
sofrimento. E ansiámos por algo mais perfeito, algo desligado da confusão
dos corpos. E que aceitemos como real, como autocriado.
Mas pagamos um preço por esta transcendência. Abandonamos nossa
própria realidade. Ficamos insatisfeitos, no sentido mais profundo, com a
vida como ela existe. Se pensamos em Deus como perfeito e desligado,
vamos tentar também nos tornar perfeitos, desligados dos corpos,
imutáveis. Na Antiga Grécia, Pitágoras e Platão descreveram a verdadeira
existência como geometria, formas ideais acessíveis através da razão
"pura".
Em grande parte da ciência moderna, temos buscado outro tipo de
perfeição, aquela da máquina, que sempre conserva a mesma forma e faz a
mesma coisa repetidamente. Tentamos descrever o corpo, e especialmente o
cérebro, como algum tipo de mecanismo — um sistema de sondagem, um
relógio, uma conversa telefônica, um computador —, qualquer coisa ditada
pela moda atual. Mas existe uma diferença vital entre as máquinas e os
organismos. Os organismos não atuam da mesma maneira em todos os
momentos. Através da Teoria de Gaia, começamos a recaptar uma
percepção de nós mesmos, e do universo, como dinâmicos, como se
decompondo e se desenvolvendo, como em constante mutação. Vivos.
O Lugar da Mente
Será que podemos pensar na "mente" como de algum modo envolvida neste
compartilhamento bacteriano da informação? Como cientista, Margolis
presumivelmente rejeitaria tal sugestão, assim como Lovelock e outros
negam qualquer sugestão de consciência para a Gaia planetária. Mas talvez
as bactérias — e Gaia — possam nos ajudar a encontrar uma definição mais
ampla de mente. Se o trabalho desses biólogos conduzem-nos à percepção
"primitiva" ou "mística" de toda existência como viva, talvez devêssemos
honrar também a segunda metade dessa percepção, de que toda existência é
consciente. Sahtouris escreve: "Aqueles que acreditam que a vida é
autocriada em um universo dinamicamente vivo e não em um universo
mecânico também acreditam que a vida pode criar seu próprio significado e
propósito." Desde que escreveu seu livro sobre Gaia, a Dra. Sahtouris tem
trabalhado para criar uma rede em todo o mundo com o propósito de
defender o conhecimento científico dos povos indígenas.
Assim como os caçadores-coletores, a sociedade humana atual precisa
cooperar para obter sucesso. Precisamos comunicar conhecimento,
exigências, habilidades e informações. Assim como os proto-hominídeos,
precisamos transportar os alimentos. Em suma, precisamos criar um corpo
social cooperativo. As exigências continuam as mesmas, apenas em uma
escala muito maior. Uma visão de todo o planeta como um organismo
composto de organismos menores ajuda-nos a ver a sociedade humana
também como um organismo — não uma espécie de monstro que engole
indivíduos, mas um organismo em que os indivíduos compartilham
experiência e conhecimento para criar o organismo maior. E esta criação
prossegue o tempo todo, para sempre, não de uma vez só. Embora
mantenham uma forma exterior e processos de vida contínuos, os
organismos mudam constantemente, tomando e devolvendo energia. Uma
sociedade baseada no corpo também mudaria constantemente, ao mesmo
tempo mantendo uma percepção interna de sua forma, seus limites e seus
valores. E uma sociedade baseada no corpo divino manteria uma consciência
da unidade da ciência, da vida cotidiana e do sagrado — para os organismos
individuais e também para o organismo maior da cultura.
268
O Nosso Lugar
As discussões de Gaia como um organismo composto de organismos
menores parecem conduzir inevitavelmente a uma discussão da função da
humanidade neste corpo maior. Muitas vezes, a discussão segue a partir de
uma suposição de que a humanidade ocupa alguma posição vitalmente
importante na existência de Gaia. Alguns escritores tratam a humanidade
como uma ameaça, outros nos tratam como uma bênção para a vida
planetária — mas a maioria nos considera fundamental.
Uma teoria considera a humanidade uma experiência na consciência.
Com o cérebro humano, Gaia está experimentando a autoconsciência. Elisabet
Sahtouris descreve-nos como uma experiência na livre escolha, e sugere,
com otimismo, que nossos traços de egotismo, ansiedade, imprevidência,
medo e agressão são sinais de adolescência. Implicitamente, vamos superar
estas limitações e nos tornar um pouco melhores que a nossa história.
Peter Russel declara que os seres humanos formam o sistema nervoso
central de Gaia. Em sua opinião, o mundo logo vai conter tantos humanos
quanto um cérebro individual contém neurônios. Nesse ponto, os humanos
podem se organizar em uma inteligência planetária (esta idéia nos dá uma
visão totalmente nova da "explosão populacional" das últimas décadas).
Outros escritores defendem a visão mais convencional de que a
humanidade coloca em risco a vida no planeta e adaptam isso à Teoria de
Gaia. A. I. W Summers modifica a idéia da inteligência em seu raciocínio.
Ele compara a nossa destruição da natureza com as enfermidades
psicossomáticas. O "psicossomático" não descreve a doença como imaginária
ou ficcional. Na verdade, refere-se a situações em que a psique deixa o
corpo realmente doente. Se os humanos realmente representam o cérebro
de Gaia, então este distorceu seu relacionamento com o resto do corpo,
fazendo-o adoecer.
Outra idéia começa com a descrição do comportamento da huma-
nidade visto de fora. Ao contrário da maioria das outras criaturas, os
humanos espalham-se por todo o planeta. Aonde quer que vamos, nos
multiplicamos sem controle. Devido ao nosso crescimento populacional
incontrolável, consumimos todos os recursos de todo lugar que habitemos.
Como resultado, as criaturas que pertencem a esses locais morrem todas, e
os próprios locais sofrem grande dano, às vezes se transformando em desertos
ou águas mortas. Agora, se considerarmos o mesmo tipo de descrição e a
269
Desmembramento e Unidade
Acima de tudo mais, a Teoria de Gaia nos dá uma visão da inteireza da Terra.
Retorna aqueles mitos do corpo desmembrado da Deusa. As pessoas
percebem que tudo no mundo pertence a um só corpo, só que fragmentado.
Podemos sentir as conexões, mas vemos os fragmentos. E assim passamos a
acreditar que o mundo só pode existir, nós só podemos existir, porque a
Deusa sacrificou o Seu corpo. Ou Ela se dedicou livremente a criar a Terra,
o Céu e tudo mais que existe neles, ou alguma força a rompeu ou
despedaçou.
Em alguns lugares, esta percepção interna se mistura com a história
cultural da posse do homem. Na Babilônia, Tiamat torna-se um monstro, e
Marduk a dilacera como uma validação da civilização centralizada no
homem, que derrubou a anterior, matrística. No México, a Deusa
Coyolxauhqua foi selvagemente dilacerada por Seus dois irmãos, com uma
mensagem cultural semelhante. Quando lemos que o mito descreve os
irmãos como cobras, vamos nos encontrar atrás dos portões do Éden, onde o
patriarcado criou inimizade entre a mulher e a serpente.
A história mexicana também descreve a morte e o retorno da Lua, no
final de cada mês, para os irmãos a cortarem em 14 pedaços, apro-
ximadamente metade do ciclo lunar. No Egito, o Deus Set corta Seu irmão
Osíris em 14 pedaços. Os mitos sempre contêm muitas coisas
simultaneamente — mensagens políticas, descrições científicas, percepções
espirituais.
Podemos encontrar algo mais profundo aqui do que política sexual, ou
mesmo explicações da natureza. Esses mitos de desmembramento carregam
uma percepção de ansiedade sobre nossa própria existência. Nós só vivemos
porque comemos outras criaturas, sejam elas animais ou plantas (e evitando
que elas nos comam). Vivemos porque nossa Mãe sacrificou Sua perfeita
Unidade.
272
Um Ritual e um Sonho
Vou terminar este sonho com mais uma história, um sonho de Gaia. Em
outubro de 1990, mudei-me para minha casa perto do Rio Hudson no Estado
de Nova York. Algum tempo depois, descobri um incrível montículo de pedra
nos bosques do outro lado da entrada de carros (ver Foto 23).
Evidentemente, pessoas empilharam essas pedras em alguma ocasião,
mas quando e com que propósito eu não sei. A abertura está virada para o
leste, para o nascer do sol. Pedras brancas cristalinas estavam espalhadas
diante dele quando me aproximei. Tais pedras são comuns na região, mas
nunca tantas em um mesmo lugar.
Seja qual for a origem ou o propósito desse montículo, achei-o uma
maravilhosa surpresa após visitar montículos, círculos e templos arruinados
em tantos países. Quando o solstício do inverno se aproximou, decidi
realizar um ritual em minha nova casa, concentrando-me no montículo,
como uma maneira de agradecer à Deusa por me trazer para este lugar.
Duas amigas juntaram-se a mim no solstício. Então, realizamos uma
cerimônia simples. Pedi a cada uma delas que trouxesse algo que quisesse
oferecer à Terra. Como minha própria contribuição, fiz um bolo baixo na
forma de uma Deusa e o levei até lá, junto com sementes e pedras
encontradas em viagens a locais sagrados de outros países. Então
realizamos uma procissão, indo a diferentes árvores e outros lugares
especiais em volta da casa, cantando canções, carregando estátuas da Deusa e
tocando instrumentos. Quando chegamos ao montículo, cada uma de nós
falou de coisas da própria vida que desejava devolver à Terra. Fizemos uma
oração honrando a ascensão da luz neste ponto culminante do ano, quando o
Sol começa a readquirir o seu poder. Quando depositamos nossas oferendas
273
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Indice Remissivo do Original Impresso. Colocado no livro apenas como referencia de
pesquisa.
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