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DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
RESUMO
Este texto tem por objetivo analisar a obra de Juan Rulfo através de uma leitura
crítica para com as temáticas de incesto e patriarcalismo contidas nele.
Visivelmente, o incesto ocupa um lugar central na obra do escritor, de mãos dadas
com a ideia de pecado e do sentimento de culpa, imagem carregada de uma densa
atmosfera religiosa-espiritual. Da mesma forma, temos a imagem do patriarca a ser
obedecido, como regulador de um sistema social universal e hegemônico. Para
tanto, será analisada a estilística de Juan Rulfo, cuja semântica ideológica forja a
narrativa de sua Jalisco natal. O embasamento teórico está dado pelas teorias de
Freud e Lévi-Strauss a respeito do incesto, contestadas pelas Teorias Feministas
pós-estruturalistas com base em algumas ideias de Michel Foucault e Jacques
Lacan.
SUMÁRIO
RESUMO..................................................................................................................... 5
SUMÁRIO.................................................................................................................... 6
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 7
CAPÍTULO 1
1.1 FREUD E O INCESTO: TOTEM E TABU............................................................ 13
1.2 O HORROR AO INCESTO.................................................................................. 14
1.3 TABU E AMBIVALÊNCIA EMOCIONAL.............................................................. 17
1.4 ANIMISMO, MAGIA E A ONIPOTÊNCIA DE PENSAMENTOS .......................... 20
1.5 A ORIGEM DA EXOGAMIA E SUA RELAÇÃO COM O TOTEMISMO ............... 24
CAPÍTULO 2
2.1 LÉVI-STRAUSS E O INCESTO: AS ESTRUTURAS ELEMENTARES DO
PARENTESCO.......................................................................................................... 30
2.2 NATUREZA E CULTURA E O PROBLEMA DO INCESTO................................. 31
2.3 O UNIVERSO DAS REGRAS E O PRINCÍPIO DE RECIPROCIDADE .............. 36
2.4 O TABU DO INCESTO E A INSTITUIÇÃO MATRIMONIAL EM FREUD E LÉVI-
STRAUSS ................................................................................................................. 41
CAPÍTULO 3
3.1 AS TEORIAS FEMINISTAS E O INCESTO ........................................................ 44
CAPÍTULO 4
4.1 JUAN RULFO E “LOS BAJOS DE JALISCO” ..................................................... 58
4.2 PEDRO PÁRAMO ............................................................................................... 74
CONCLUSÃO ........................................................................................................... 92
INTRODUÇÃO
1
Veremos que, apesar de muitos deles, não todas as proibições recaem sobre sujeitos em algum grau de
consangüinidade.
8
ao longo de toda sua vida, voltará insistentemente à procura deste objeto de desejo
perdido por ele para sempre, ativando seus mecanismos de defesa do eu para evitar
sua destruição e originando os recalques transfigurados em neuroses.
O que subjazeria no fundamento do tabu existente sobre uma proibição,
assim como no comportamento do neurótico, seria uma conduta ambivalente em
relação ao objeto sagrado: ao mesmo tempo em que se deseja (o objeto de desejo),
há uma poderosíssima força em contrário que impele ao seu afastamento e à
proibição.
Freud recorrerá á literatura para exemplificar, com a história de Édipo, o mito
que dará lugar ao complexo homônimo. Este simboliza a entrada de cada sujeito na
Cultura, através da lei de interdição do incesto, possibilitando sua constituição como
sujeito sexuado dentro de cada lugar simbólico que ocupará no contexto familiar e
social.
Lévi-Strauss, por outro lado, chega a conclusões semelhantes quanto ao
interdito do incesto confundir-se com a própria Cultura.
A instituição da ordem simbólica necessitaria de uma regra universal que atue
como reguladora da vida em sociedade. O interdito do incesto, assim, estabeleceria
esta nova ordem deslocando a ordem natural; imporia uma ordenação da
sexualidade humana estabelecida por via da Regra, da reciprocidade (das relações
humanas entre os homens) e do dom (a mulher oferecida como o bem mais
prezado).
A sexualidade humana estaria, desse modo, na encruzilhada entre a ordem
natural e a ordem social; Lévi-Strauss considerou a proibição do incesto uma
estrutura universal de caráter coletivo impositório para realizar a passagem entre as
duas ordens.
Tanto a análise freudiana da ciência do inconsciente quanto o método
estruturalista antropológico tentam explicar o incesto a partir de sua proibição. E esta
proibição funcionaria como uma construção cultural submetida a regras dentro da
sociedade.
A partir dos anos setenta e com mais força nas duas últimas décadas, surge
outro discurso que, entre outras temáticas, vem a contestar as visões clássicas de
explicação do incesto apontadas acima.
As Teorias Feministas argumenta que o incesto e sua proibição são uma
construção discursiva que visa legitimar, entre outras coisas, uma hierarquia de
10
gênero baseada num modelo patriarcal com o inerente correlato de uma sexualidade
heteronormativa.
Com efeito, se o tabu do incesto fosse uma verdade universal, poder-se-ia
explicar sua existência como uma aberração, como um crime contra a humanidade.
Mas uma análise histórica mais acurada revela que o tabu do incesto varia conforme
as épocas e as culturas nas quais este está inscrito. O incesto, assim, seria uma
construção cultural.
Judith Butler, por exemplo, interpreta a proibição do incesto como uma
instância formadora de gênero e heterossexualidade.
A criança, ao renunciar à mãe como objeto de desejo, identifica-se com o pai;
esta perda, descrita por Freud como melancolia, é internalizada pela criança como
uma proibição, e esta proibição regula a identidade de gênero e a lei do desejo
heterossexual (BUTLER, 1990, p.60).
Vicki Bell (1993, p.115) vê este raciocínio também na línea do estipulado por
Michel Foucault, na medida em que o desenvolvimento da sexualidade requer da
proibição do incesto porque é dentro da família onde se dão os primeiros passos da
sexuação do indivíduo.
Gayle Rubin não é menos incisiva. Para a autora, os elementos fornecidos
por Lévi-Strauss para manter os arranjos sexuais, assim como os de Freud e a
internalização psíquica do indivíduo em masculino e feminino, implicam uma
exposição das estruturas sociais criadas pelo discurso para a opressão da mulher
(2006, p.98).
Se sairmos um pouco especificamente da visão das teóricas feministas,
poderemos também visualizar alguns argumentos de desconstrução das teorias
universalizantes.
Jacques Derrida faz uma análise, em “A Escritura e a Diferença”, dos
pressupostos que Lévi-Strauss contemplou na construção de sua teoria
estruturalista. Entre outras coisas, ele chama a atenção para a oposição, escolhida
por Lévi-Strauss, entre natureza e cultura. Este fio condutor, comenta Derrida, é tão
antigo quanto a própria filosofia: “É mesmo mais velho do que Platão. Tem pelo
menos a idade da Sofística” (1971, p.236). Foi concebido como uma cadeia histórica
que opõe a natureza não só à cultura, mas “à lei, à instituição, à arte, à técnica,
também à liberdade, ao arbitrário, à história, à sociedade, ao espírito” (1971, p.236).
Lévi-Strauss vai considerar um escândalo o fato da proibição do incesto, já que
11
constitui um fato natural, por ser universal, e compreende ao mesmo tempo uma
série de regras e normas inscritas na Cultura. A proibição do incesto, então, é um
escândalo porque desafia a oposição entre natureza e cultura.
Derrida aduze que o pensar a natureza e a cultura em termos de uma
“diferença” constitui uma falácia, derrubando assim o postulado estruturalista:
[...] Só existe evidentemente escândalo no interior de um sistema de
conceitos que dá crédito á diferença entre natureza e cultura.
Começando a sua obra com o factum da proibição do incesto, Lévi-
Strauss instala-se portanto no ponto em que essa diferença, que
sempre passou por evidente, encontra-se apagada ou contestada.
Pois a partir do momento em que a proibição do incesto já não se
deixa pensar na oposição natureza/cultura, já não se pode dela dizer
que seja um fato escandaloso [...] Poder-se-ia dizer talvez que toda a
conceptualidade filosófica fazendo sistema com a oposição
natureza/cultura está destinada a deixar no impensado o que a torna
possível, a saber, a origem da proibição do incesto (DERRIDA, 1971,
p.237).
CAPÍTULO 1
Sigmund Freud
[...] Pode imaginar o que são „mitos endopsíquicos‟? São o fruto mais
recente dos meus trabalhos mentais. A obscura percepção interior de
nosso próprio mecanismo psíquico estimula ilusões de pensamento
que são naturalmente projetadas para o exterior e, de modo
característico, para o futuro e o além-mundo. Imortalidade, castigo,
vida após morte, todos constituem reflexos de nossa própria psique
mais profunda” (Freud, 1980 (b), p.323).
“comparação entre a psicologia dos povos primitivos, como é vista pela antropologia
social, e a psicologia dos neuróticos, como foi revelada pela psicanálise” (Freud,
1980(c), p.20).
organização social. Frazer (1910, p.53), comenta que “o laço totêmico é mais forte
que o laço de sangue ou de família, no sentido moderno”. O totem também não está
vinculado a um determinado lugar: os integrantes de um clã estão distribuídos por
diversos lugares junto com integrantes de outros clãs, vivendo pacificamente lado a
lado.
A principal característica do sistema totêmico, e que rege toda sua
organização, é o da proibição de relações sexuais entre pessoas do mesmo clã:
pelo que as medidas de proteção são rigorosas. Um menino, por exemplo, ao chegar
a certa idade, deixa de morar em sua casa e vai para uma casa comum; pode voltar
a sua casa a pedir comida, desde que não esteja nenhuma de suas irmãs e sua mãe
só deixará comida perto da porta de entrada, do lado de fora; este menino não
seguirá as pegadas de sua irmã, se souber que são dela, e ela também não seguirá
as dele nem se chamarão mais pelo nome; em outras tribos os irmãos evitam
encontrar-se, escondendo-se um do outro, ou não se falam mais depois de casados;
outros casos proíbem até o aperto de mãos, o presentear-se objetos e o
conversarem só a alguns passos de distância; muitas vezes os pais não ficam
sozinhos (pai com filha ou mãe com filho) em casa.
Estas “evitações” vão além de aplicar-se aos graus de parentesco mais
próximo; evitam-se cunhados/as, sogros/as, tios e tias e atingem a todos na tribo
pertencentes ao mesmo totem. O encontro a sós de quaisquer membros de um clã
representa uma intimidade, e “desde que acreditam que as relações sexuais entre
parentes próximos acarretarão castigo e calamidades de todos os tipos, têm razão
em evitar qualquer tentação de transgredir essas proibições‟ (FRAZER, 1910,
p.189).
A pesar de que pode parecer absolutamente estranho e absurdo para nós,
sujeitos pertencentes à civilização, um exame mais atento quanto à observação de
nossos costumes demonstrará que também nós estamos aparelhados de uma série
de “evitações” que visam também não cometer incesto; pense-se nos costumes de
não tomar banho mãe e filho (ou pai e filha) a partir de uma certa idade, pense-se na
intimidade que regula os relacionamentos sexuais.
Freud considerava, apesar do postulado ter sido revistado, corrigido e
modificado ao longo de seus anos de investigação, que o relacionamento da criança
com seus pais está dominado por desejos incestuosos e constitui o complexo
nuclear das neuroses. E apesar da resistência à ideia – formulada em inícios do
século XX --, chama a atenção para o fato de que “o interesse dos escritores
criativos centraliza-se em torno do tema do incesto, e como o mesmo assunto, em
inúmeras variações e transformações, constitui o tema geral da poesia” (FREUD,
1980(c), p.37).
Os espíritos curiosos sobre o assunto não terão dificuldade em corroborar
esta afirmação, e é justamente a tarefa que nos propomos aqui, através da obra de
Juan Rulfo.
17
Wundt (1906, p.308) descreve o tabu como “o código de leis não escrito mais
antigo do homem”.
Admite-se de modo geral que o tabu é mais antigo que a crença em qualquer
tipo de deus e anterior a qualquer espécie de religião. Neste sentido, o temor
sagrado do tabu poderia ser o equivalente do castigo divino de épocas posteriores
até hoje.
Freud (1980(c), p.39), citando um artigo abrangendo a bibliografia mais
importante sobre o assunto de autoria de Northcote W. Thomas, da Encyclopaedia
Britannica, enumera as classes de tabus e seus objetivos. O tabu abrange: a) o
caráter sagrado (ou impuro) de pessoas ou coisas; b) a espécie de proibição que
resulta desse caráter; c) a santidade (ou impureza) que resulta de uma violação da
proibição.
E seus objetivos são: a) a proibição de contato com ou acesso a pessoas
importantes (chefes, sacerdotes); b) a salvaguarda dos fracos (mulheres, crianças)
pela influência mágica de chefes e sacerdotes; c) a precaução contra os perigos
decorrente do contato com cadáveres; d) à guarda dos principais atos da vida
(nascimento, iniciação sexual, casamento).
18
Estas proibições parecem ser necessárias para evitar o mal que certas
pessoas ou coisas possuem, uma ideia que se assemelha bastante à ideia do
demônio em nossa sociedade contemporânea.
19
A palavra tabu denota tudo – uma pessoa, um lugar, uma coisa ou uma
condição transitória – veículo ou fonte do misterioso atributo. Denota também as
proibições que do atributo emanam. E, ao mesmo tempo, algo sagrado, misterioso e
proibido (FREUD, 1980(c), p.42).
Uma comparação com as práticas religiosas atuais e as visões antagônicas
das distintas religiões sugere que “as proibições morais e as proibições pelas quais
nos regemos podem ter uma relação fundamental com esses tabus primitivos”
(FREUD, 1980(c), p.42). Se por um lado os selvagens primitivos consideravam
“tabu” algumas pessoas, animais, objetos ou situações, por outro lado existem hoje
entre nós práticas similares; o caráter sagrado da vaca na Índia é um tanto
enigmático para a cultura ocidental; no ocidente, no entanto, existem os mais
diversos tipos de superstições; os hebreus ortodoxos, para citar outro exemplo, não
comem carne de porco.
Assim, o tabu derivaria da crença dos povos primitivos nos poderes
demoníacos – provavelmente por situações que não conseguiam explicar, como o
trovão e o relâmpago, os eclipses e as enchentes, a força devastadora do fogo --,
passando gradualmente a significar um estatuto per se independente dos demônios,
até formar um conjunto de preceitos morais que posteriormente deram lugar a leis,
processo que se verifica até hoje.
Na continuação do seu ensaio sobre totem e tabu, Sigmund Freud faz uma
comparação entre os tabus e as proibições obsessivas dos neuróticos. O fato de
falar em neuróticos não refere a condições de perturbação mental excepcionais, pelo
menos na maioria dos casos, mas remete a incontáveis ações pelos homens
praticadas sem uma razão lógica aparente; neste ponto, será verificado que muitas
das “evitaçoes” antes mencionadas pelos homens primitivos encontram seu paralelo
com outras “evitaçoes” estipuladas e observadas pelo homem moderno. O que está
por trás do processo todo é o desejo inconsciente da realização de atos que são
proibidos e são deslocados para outros atos inofensivos, como se lavar
repetidamente as mãos. Uma vez que Freud postula que a violação de certas regras
se constitui na mais tenra infância, cremos apropriado nos determos na análise que
ele faz a respeito do desejo incestuoso inconsciente.
A concordância mais evidente entre as proibições neuróticas e as do tabu é o
fato delas estarem destituídas de qualquer lógica aparente. Freud (1980(c), p.46)
comenta que surgidas “em certo momento não especificado, são forçosamente
20
E considera que, embora não sendo ainda uma religião, o animismo contém o
germe do qual as religiões posteriormente serão criadas.
O fato de o homem e a natureza estarem povoados por espíritos, com a
capacidade de se deslocarem de um lugar ou de um corpo a outro, agrega mais um
ingrediente ao processo de expressão espiritual do homem primitivo: a magia.
A magia surge aparentemente como uma tentativa de comunicação com
estes espíritos; comunicação não entendida aqui necessariamente em termos de ato
22
comunicativo, mas em termos de poder ter algum contato de alguma maneira com
os espíritos, seja para aplacar sua cólera, seja para expulsá-los, para convidá-los a
atuarem como guia espiritual, para eliminá-los, ou para usufruir seus poderes.
Assim, entre os incontáveis números de atos mágicos que se registram, os rituais
para produção de chuva e fertilidade permanecem praticamente até hoje, sem contar
as seções específicas sobre magia e feitiçaria das bibliotecas e livrarias.
Assim, aparentemente, o ato mágico é determinado pela onipotência do
pensamento, isto é, penso em uma situação e esta acontecerá: acredito que a ferida
que causei a um inimigo infeccionará se eu deixar a arma utilizada perto do fogo.
Toma-se equivocadamente uma conexão ideal por uma real. Frazer (1911, p.420)
diz que “os homens tomaram equivocadamente a ordem de suas ideias pela ordem
da natureza e daí imaginaram que o controle que tem ou parecem ter sobre seus
pensamentos permite-lhes exercer um controle correspondente sobre as coisas”.
O homem primitivo tinha uma enorme crença no poder de seus pensamentos,
e estes eram veiculados através da magia para a obtenção das coisas almejadas ou,
dito de outra maneira, para a satisfação de seus desejos. E aqui chegamos a uma
convergência entre os primitivos e os modernos: somos movidos a desejo. É
verificável que a criança, nesse sentido, assemelha-se ao homem primitivo na
elaboração de seus processos mentais; a simples observação das atividades lúdicas
delas basta para verificar a imensa força que a imaginação tem na passagem da
situação ideal à real, do pensamento ao ato; o homem adulto, para a satisfação de
seus desejos, estará fadado a “alterar toda a face da terra” (FREUD, 1980(c), p.106).
A onipotência dos pensamentos, assim, resulta vital para o estabelecimento
do sistema totêmico e os tabus dele derivados. A teoria freudiana fará um paralelo
com a sintomatologia de neuróticos, onde a supervalorização dos processos
mentais, em sua comparação com o que de fato acontece na vida real, desempenha
um papel primordial; os atos obsessivos chegam a ser, pela sua evidente inutilidade
prática, atos mágicos; desempenham, no entanto, uma importantíssima função a
nível psíquico, qual seja, o alívio da tensão libidinal, cujo corolário é a satisfação do
desejo. É importante observar o que Freud diz a respeito:
[...] Os atos obsessivos primários desses neuróticos são de um
caráter inteiramente mágico. Se não são encantamentos, são, no
mínimo, contra-encantamentos, destinados a manter afastadas as
expectativas de desgraça com que a neurose geralmente começa.
Sempre que consegui penetrar o mistério, descobri que a desgraça
esperada era a morte (FREUD, 1980(c), p.110).
23
Em nossa civilização, a ciência não deixa muito campo para acreditar que a
simples força do pensamento é suficiente para controlar a natureza. Apesar de que
desde o ponto de vista psicológico ainda consideremos que “a fé move montanhas”,
na prática isso não constitui um padrão regular; Apesar do alívio emocional, a
maioria das vezes as montanhas continuam aí.
Finalmente, existe apenas um único campo onde a onipotência de
pensamentos ainda conserva sua natureza, seu propósito e seus resultados, e este
campo é o da arte. Na arte é possível a consumação dos desejos graças à
sublimação, resquício talvez de um pensamento que se quer onipotente e não
desiste da batalha. Talvez o bom poeta – a boa literatura – seja, de fato, aquela que
consegue aliviar a tensão satisfazendo o desejo, desde a narrativa originada pela
força do pensamento. Freud comenta que “a primeira realização teórica do homem –
a criação dos espíritos – parece ter surgido da mesma fonte que as primeiras
restrições morais – as observâncias do tabu”. Não serão algumas personagens da
literatura espíritos a violar tabus?
24
3
O incesto, como se sabe, é cometido desde sempre. Observa-se, entretanto, que a maioria dos casos acontece
entre irmãos ou entre pais e filhas, sendo raro entre mãe e filho, como atestam dados atuais.
25
4
Aforismo Arapesh, extraído do livro “As Estruturas Elementares do Parentesco”, de Claude Lévi-Strauss.
27
5
O ponto de vista de Lévi-Strauss é diferente, como veremos.
28
6
“Para nós, modernos, para quem a separação que divide o humano do divino aprofundou-se, transformando-se
num abismo instransponível, essa imitação pode parecer ímpia, mas era diferente com os antigos. No
pensamento deles deuses e homens eram parecidos, pois muitas famílias faziam sua descendência remontar a
uma divindade, e a deificação de um homem provavelmente parecia-lhes tão pouco extraordinária quanto a
canonização de um santo parece a um católico moderno (FRAZER, apud FREUD, 1980(c), p.177).
29
CAPÍTULO 2
7
Aforismo Arapesh, citados por M.Mead em “Sex and Temperament in Three Primitive Societes”.
31
rituais entre a tribo e seu totem. O caráter sagrado do totem estende-se aos
membros do clã, já que estes estão reencarnados pelo espírito daquele, constituindo
uma unidade única. O sangue menstrual cumpriria um papel determinante neste
sentido, uma vez que o entrar em contato com ele equivaleria ao derramamento do
sangue do totem, do animal totêmico. Esta crença ritualística e sua força mágica
determinariam que o contato entre pessoas do mesmo clã seja evitado; o que
inicialmente não concebia distinção de sexo, já que todo sangue pertence ao totem e
aos indivíduos, ganha força e categoria exogámicas quando observada a interdição
sexual em função das regras femininas. O interdito não existe fora do clã, porque o
totem, isto é, o espírito e a carne, são outros e não o meu próprio, e a ulterior
proibição do incesto constituiria um resíduo do sistema exogámico, sendo que a
proibição inicial referia ao contato sanguíneo e não especificamente sexual.
A refutação de Lévi-Strauss a esta interessante teoria está baseada em dois
aspectos: por um lado, o sangue do totem pode ser contatado e inclusive o animal
totêmico consumido, desde que se observe um ritual, e o próprio casamento e o ato
sexual representam, em muitas sociedades, um caráter eminentemente ritualístico,
pelo que, por força das circunstâncias, uma coisa não excluiria à outra; por outro
lado, nem todas as sociedades têm esta aversão ao sangue menstrual e, mesmo em
sistemas totêmicos, o contato com ele possui significados diversos e não é
vitalmente passível de ser evitado. Eis os lugares de não sustentação da teoria
durkheniana.
Vemos, assim, que nenhuma das interpretações sociológicas é de inteira
satisfação para explicar este fenômeno que constitui o problema do incesto. O vício
metodológico delas consiste em tomar aleatoriamente um determinado evento que
se produz em algumas sociedades e propor o caráter universal deste: em vez de
explicar o fenômeno, postula-se a teoria.
As tentativas de explicação ao problema do incesto estiveram dadas desde as
diferentes abordagens possíveis; para alguns, o fato tem caráter duplamente natural
e social, mas sua explicação é eminentemente racional; para outros, sua natureza é
de origem instintiva, de causas naturais; por último, há quem considere a proibição
surgida desde o sistema cultural, uma norma ou regra social. O olhar de Lévi-
Strauss a esta problemática envereda por outro lugar, que ele mesmo chama de
“passar da análise estática à síntese dinâmica”, e considera a proibição do incesto
como nem de caráter puramente natural e tampouco essencialmente uma categoria
36
cultural, mas “constitui o passo fundamental graças ao qual, pelo qual, mas
sobretudo no qual se realiza a passagem da natureza à cultura” (LÉVI-STRAUSS,
1976, p.62). A proibição do incesto não compete exclusivamente à existência
biológica e nem à existência social, porém se dá na articulação entre as duas ordens
e “constitui por si mesma o advento de uma nova ordem” (LÉVI-STRAUSS, 1976,
p.63).
equipara assim a um bem, que é tanto escasso quanto essencial. Mas por que a
mulher seria um bem escasso? Lévi-Strauss analisa este caráter de escassez. É
sabido, argumenta ele, que existe um equilíbrio biológico entre os nascimentos
masculinos e femininos, portanto as probabilidades de um homem de encontrar uma
esposa são muito altas. Por outro lado, existe no homem uma tendência polígama,
isto é, se deixado no terreno da natureza, o homem possuirá quantas mulheres
puder, isto de fato ocorre, e há regimes nos quais o homem pode ter tantas mulheres
quanto conseguir sustentar. Nos sistemas monogâmicos, são as restrições de ordem
ética e moral que cerceiam o monopólio das mulheres; o fato pode causar algum
espanto, talvez, mas as observações sociais e biológicas atestam para ele, e esta
tendência no homem é natural e universal. Não há época nem sociedade onde não
se registre o caso de um homem possuir várias mulheres, seja pela sua condição de
chefe tribal, de personagem importante, de rei. Além disso, e apesar do equilíbrio
biológico entre homens e mulheres, nem todas elas são desejáveis, por uma razão
ou outra, o que leva Lévi-Strauss a concluir que a mulher pode ser considerada
como um “bem escasso” e sua demanda está em constante estado de desequilíbrio
e tensão.
É importante aclarar que este raciocínio não permitiria entender a vital
importância do valor da mulher nas sociedades primitivas se olhado desde uma
perspectiva atual. As implicações sexuais aqui são secundárias, e a mulher possui
um valor estritamente econômico, dadas a divisão do trabalho entre os sexos e a
importância da sociedade conjugal. Dela dependia a satisfação das necessidades
econômicas, a fabricação de objetos, a obtenção de alimento, a higiene. Pediremos
licença ao leitor para citar uma longa passagem que ilustra esta questão de maneira
veemente:
[...] Uma das impressões mais profundas que guardamos de nossas
primeiras experiências no terreno é a do espetáculo, numa aldeia
indígena do Brasil central, de um jovem acocorado horas inteiras no
canto de uma cabana, sombrio, mal cuidado, terrivelmente magro, e,
ao que parecia, no estado de mais completa abjeção. Observamo-lo
vários dias seguidamente. Raramente saia, exceto para caçar,
solitário, e quando em redor das fogueiras começavam as refeições
familiares teria quase sempre jejuado se uma vez ou outra uma
parenta não colocasse ao seu lado um pouco de alimento, que ele
absorvia em silêncio. Quando, intrigado com este singular destino,
perguntamos finalmente quem era este personagem, a quem
atribuíamos alguma grave doença, responderam-nos rindo de nossas
suposições: „é um solteiro‟. Tal era com efeito a única razão dessa
aparente maldição (LÉVI-STRAUSS, 1976, p.79).
39
8
Itálico no original.
40
A tarefa que nos propomos nestes dois primeiros capítulos foi a de deixar
constância das visões psicanalítica e antropológica da interdição do incesto; Freud e
Lévi-strauss.
Nossa intenção na escolha deste enbasamento teórico possui duas razões
fundamentais. Em primeiro lugar, as teorias de Freud e de Lévi-Strauss contém, no
seu desenvolvimento, refutações a outras teorias que abordaram o problema da
proibição do incesto. O dado não é menor, se se consideram as três grandes
ciências que trataram do assunto: a sociologia, a antropologia e a psicologia.
Sigmund Freud propôs uma nova dimensão10 na sua abordagem explicativa, até
então inexistente, superadora das correntes antropológicas e sociológicas. Assim,
contestou Westermarck e Havelloc Ellis, para os quais o horror ao incesto se deve a
uma aversão inata ou eventualmente adquirida entre pessoas que crescem juntas ou
vivem em estreita intimidade, o que constitui uma tentativa de explicação desde um
plano psicológico. O edifício psicanalítico e suas descobertas apoiam-se justamente
no polo oposto dessa hipótese, ao considerar que as mais precoces excitações
sexuais dos seres humanos possuem um caráter incestuoso, o que originará
repressões – recalcamentos – que atuaram como forças motivadoras das neuroses.
A este respeito Freud, como em tantas outras ocasiões, utilizou-se da literatura, mais
precisamente da literatura mitológica, traçando uma analogia explicativa, referimo-
nos neste caso ao mito de Édipo, que gostaríamos de relembrar, na versão de
Talaferro (1996, p.156-7):
[...] Édipo, símbolo da fatalidade ou força do destino, segundo a
versão de Sófocles (497-405 a.C.), era filho de Laio, rei de Tebas, e
de Jocasta. Tendo Laio consultado o oráculo de Delfos para saber se
seria feliz em seu matrimônio, a pitonisa anunciou-lhe que o filho que
nasceria da união com Jocasta lhe daria morte. Aterrorizado e
tentando escapar a esse destino, Laio entregou o menino a um
criado com ordem de matá-lo no monte Citáiron. O servo atou o
menino pelos pés a uma árvore, abandonando-o –daí a origem do
nome Édipo (do grego Oidípous = “pés inchados”). Pouco depois ele
foi salvo por um pastor que o levou a Corinto, onde foi adotado por
Políbios, o rei local, e sua esposa Mérope. Ao chegar a maioridade,
Édipo começou a suspeitar da legitimidade de sua origem e, para
esclarecer suas dúvidas, interrogou o oráculo. Obteve uma resposta
10
Nessa obscuridade (a ausência convincente de explicação), um raio de luz isolado é lançado pela observação
psicanalítica (FREUD, 1969, p.154).
43
O notório da história de Sófocles consiste em que Édipo não cresce com sua
mãe, o que poderia ter amortecido a pulsão libidinal, e quando o acaso os coloca
frente a frente o ato sexual é consumado; mas Édipo inteira-se posteriormente que
Jocasta é sua mãe e não suportando o remorso cega-se a si próprio; o horror ao
incesto não pode ser explicado aqui como tendo origem em uma criação conjunta
desde a mais tenra infância. À mesma conclusão chega Lévi-Strauss, perguntando
qual seria a razão de proibir algo que a própria natureza humana não deixaria que
acontecesse; não é o caso, evidentemente, do incesto.
A segunda razão na escolha das teorias freudiana e levistrausiana como base
de sustentação teórica a nosso trabalho, obedece a uma constatação
poderosamente simples: a originalidade ou, dito de outro modo, o caráter inédito das
abordagens. Em efeito, se a teoria psicanalítica causou – e causa – certa rejeição
para a explicação do problema, o pressuposto da antropologia estrutural levantou –
e levanta – vozes contra.
No seguinte capítulo analisaremos, na sequência destas duas teorias,
justamente sua desconstrução. Para a Teoria Feminista, a interdição do incesto
supõe mais do que a passagem da natureza à cultura, revela uma intencionalidade
manifesta tendente à conservação de um status quo no qual deveriam se cumprir, à
maneira de lei e de normas “aceitamente” morais, os preceitos de subjugação
feminina, em primeiro lugar, com seu correlato em uma heterossexualidade
normativa. Constituem as narrativas clássicas universalizantes pensadas desde um
universo masculino que reduz a mulher a um “bem”.
44
CAPÍTULO 3
11
Se as mulheres são os presentes, então são os homens os parceiros que trocam. E é sobre os parceiros, e não
sobre os presentes, sobre os quais a troca recíproca confere o poder quase mítico de parentesco social. (Todas as
traduções feitas do inglês são nossas).
12
“gênero não é somente a identificação com um sexo; também implica que o desejo esteja direcionado para o
outro sexo”.
13
“De preferência, a sexualidade feminina deveria responder ao desejo dos outros, mais do que ativamente
procurar um desejo e uma resposta”.
46
[,,,] What strikes me about this case is the way in which the wrong of
incest is understood. The woman appeals to the powerful discourse
of romantic love in her presentation of the events, stating that […]
from her perspective it was not „incest‟ but an instance of adult
sexuality: „It was not like father and daughter at all. He was a man
and I was a woman‟. The English legal system, on the other hand, is
working with an understanding of incest that does not consider love or
consent to be relevant issues (BELL, 1993, p.viii)14.
14
O que me choca neste caso é a maneira em como o ruim do incesto é entendido. A mulher apela ao poderoso
discurso de amor romântico em sua exposição dos eventos dizendo que [...] desde sua perspectiva não era
incesto, porém uma instância de sexualidade adulta. „Não era como pai e filha em absoluto. Ele era um homem e
eu uma mulher‟. O sistema legal inglês, pelo contrário, trabalha com um entendimento que não considera que o
amor ou o consentimento sejam assuntos relevantes.
15
A lei exerce seu poder para desqualificar saberes e definições de eventos através da noção de um método legal.
48
16
a multiplicidade de relações de força imanentes na esfera em que elas operam e que constituem sua própria
organização (do poder); o processo que, através de intermináveis lutas e confrontações, transforma-as, fortalece-
as ou as inverte; como o suporte que essas relações de força encontram entre elas, formando assim uma corrente
ou sistema ou, pelo contrário, as disjunções e contradições que isolam (as forças) umas as outras e, finalmente,
como as estratégias nas quais (as forças) obtêm efeito cujo formato geral ou sua cristalização institucional é
incorporada no aparato de estado, na formação da lei, nas várias hegemonias sociais.
49
17
“propagação, nascimentos e mortandade, os níveis de saúde, expectativas de vida e longevidade, com todas as
condições de variação possíveis”.
50
21
“Saberes subjugados são esses blocos de saberes históricos que estavam presentes mas disfarçados dentro do
corpo da teoria sistemática e funcionalista e que a crítica.... tem sido capaz de revelar”.
52
22
Incestuosa desde a origem.
23
Para Foucault, portanto, família e incesto estão conectados de duas maneiras contrastivas. No desenvolvimento
da aliança, o incesto está ligado à família porque é uma atividade sexual que precisa ser proibida para que a
estrutura familiar e a aliança como sistema possam continuar. No desenvolvimento da sexualidade, o incesto está
ligado á família porque a família é o lugar onde operam inicialmente muitas das estratégias que desenvolvem a
sexualidade. Neste sentido, portanto, o incesto está situado numa encruzilhada entre os dois desenvolvimentos.
24
O incesto era uma prática popular, eu quero dizer com isto, largamente praticado pela população por um tempo
muito longo. Foi para o final do século 19 que várias pressões sociais foram dirigidas contra ele. E é claro que a
grande interdição do incesto é uma invenção dos intelectuais. Se se procuram estudos antropológicos e
sociológicos no século 19 não vai se encontrar nada. Há, é claro, alguns informes médicos, mas a prática do
incesto não parecia colocar um problema à época.
53
25
A formação da sexualidade de cada indivíduo está ligada a seu (sua) relacionamento familiar e o rol crucial
tanto dos desejos incestuosos quanto da proibição dos mesmos dentro desses relacionamentos. A psicanálise
incorpora tanto a agitação do desenvolvimento da sexualidade em volta da atividade sexual da família quanto a
necessidade da proibição do incesto.
26
Em “A Oleira Ciumenta”.
27
A notável afirmação de Lévi-Strauss de que “a emergência do pensamento simbólico deve ter requerido que as
mulheres, como as palavras, deviam ser coisas a serem trocadas”, sugere uma necessidade que o próprio Lévi-
Strauss induz das presumidas estruturas universais da cultura desde a retrospectiva posição de um observador
neutro. Mas o “deve ter” aparece como uma inferência somente para funcionar como um performativo; e uma
54
O fato da existência da proibição não indica que esta seja cumprida; pelo
contrário, ao que parece é a própria erotização do tabu a que origina as práticas.
Para Lévi-Strauss o tabu do incesto entre filho e mãe e as próprias fantasias
incestuosas são verdades universais da cultura e é mediante essa visão de uma
agenda masculina heterossexual que se geram e propagam as construções
discursivas de gênero e sexo (Butler, 1990, p.54).
No caso de Freud, a autora conclui que a identificação de gênero é um tipo de
melancolia na qual o sexo do objeto (pai, mãe) proibido é internalizado como uma
proibição, daí a identificação com o mesmo gênero, do menino com o gênero
masculino e da menina com o gênero feminino, na incorporação simbólica à cultura.
Esta espécie de melancolia é culturalmente instituída como o preço a pagar para o
estabelecimento de identidade de gênero, onde para que a heterossexualidade
vez que o momento em que o simbólico emergiu não pode ter sido testemunhado por Lévi-Strauss, ele conjetura
uma história necessária: o informe se torna, portanto, uma injunção.
28
Supondo a masculinidade heterossexual do sujeito do desejo, Lévi-Strauss sustenta que “o desejo pela mãe ou
a irmã, o assassinato do pai e o arrependimento do filho sem dúvida não correspondem a fatos ou grupo de fatos
que ocupem um lugar na história. Mas talvez eles expressem simbolicamente um antigo e perdurável desejo. [...]
Lévi-Strauss se refere à “magia desse sonho, seu poder para moldar os pensamentos dos homens desconhecidos
para eles... os atos que o sonho evoca nunca foram cometidos, porque a cultura se opôs a eles em todo tempo e
lugar”. Esta assombrosa afirmação provê insight não só para os aparentes poderes de negação de Lévi-Strauss
(atos de incesto que nunca foram cometidos!), mas para a dificuldade em assumir a eficácia da proibição.
55
Essa lei Lacan a considera como da ordem da linguagem, uma vez que
institui as denominações de parentesco que servirão de referente ao sujeito inscrito
na Cultura, na Ordem Simbólica. O sujeito passará a integrar-se às trocas simbólicas
a partir de sua sexuação. Eis a leitura de Judith Butler:
[…] The lacanian appropriation of Lévi-Strauss focuses on the
prohibition against incest and the rule of exogamy in the reproduction
29
Quando o status de construção de gênero é analisado como radicalmente independente do sexo, o próprio
gênero se transforma num artifício volátil, com a conseqüência de que homem e masculino podem
tranquilamente significar um corpo macho e um corpo fêmea, e mulher e feminina a mesma coisa.
56
E nessa abordagem que cada discurso faz, o incesto existe para ser proibido
e sua proibição o constitui e origina como tal.
32
a proibição do incesto existe somente na medida em que falamos dela ou, mais precisamente, a proibição do
incesto existe na medida em que falamos do incesto como algo proibido, como um comportamento não desejado.
58
CAPÍTULO 4
33
“Uma leitura ingênua dos livros de ficção confunde personagens e pessoas. Chegaram mesmo a escrever
“biografias” de personagens, explorando partes de sua vida ausente dos livros (“O que fazia Hamlet durante seus
anos de estudo?”). Esquece-se que o problema da personagem é antes de tudo lingüístico, que não existe fora das
palavras, que a personagem é “um ser de papel”. Entretanto recusar toda relação entre personagem e pessoa seria
absurdo: as personagens representam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção” (TODOROV, 1972,
p.286).
60
34
Prostituta barata, na linguagem coloquial da região.
63
amanhecer, Esteban vê seu patrão sair de um rancho com sua sobrinha em braços e
entrar na casa; ali a deposita na cama procurando não fazer barulho, já que sua irmã
– mãe de sua sobrinha Margarita – jaz no quarto ao lado, inválida desde há muito
tempo. Justo Brambila sai e encontra, no claro-escuro da alvorada, o velho Esteban
maltratando um bezerro; furioso, arremete contra o velho e lhe dá uma zurra, mas
sem conseguir evitar que este o mate de uma pedrada. Esteban vai para a cadeia e
Dom Justo é velado na igreja, numa cidade às escuras, já que “don Justo era el
dueño de la luz” (p.141). E foi Margarita quem achou o corpo de dom Justo, já de
manhã e chorando porque sua mãe, depois de muito sermão, disse-lhe que era uma
prostituta.
Dentro de uma trama relativamente simples, mostra-se outra vez um mundo
primitivo. O terratenente dono do vilarejo e seu proceder autoritário; seus
subalternos e empregados – o velho Esteban é só uma amostra – levando uma vida
miserável; não há constituição familiar, já que Justo Brambila mora com sua irmã –
inválida e prostrada numa cama – e sua sobrinha – com a qual comete incesto.
Nesse cenário onde se faz a vontade de quem tem a força, não é de se estranhar
que o interdito do incesto seja quebrado. Mas as consequências são trágicas. O
próprio Justo Brambila sente a mancha do pecado:
35
Esta é a única vez em toda sua obra que Rulfo menciona a palavra incesto.
65
[…] Las ranas son buenas para hacer de comer con ellas. Los sapos
no se comen; pero yo me los he comido también, aunque no se
coman, y saben igual que las ranas. […] Un día inventaron que yo
andaba ahorcando a alguien; que le apreté el pescuezo a una señora
nada mas por nomás (RULFO, 1997, p.87-88).
Vive trancafiado em seu quarto e quando sai o povo lhe joga pedras
causando-lhe feridas que demoram em cicatrizar por sua obstinação em coçar
encima delas. Mas a parte mais interessante, a que mais chama a atenção do leitor
e à que o autor mais destaque proporciona, é aquela da relação carnal entre Felipa
e Macário. Felipa ameaça Macário com que este irá para o inferno, sem nem sequer
passar pelo purgatório, caso ele não a obedeça. E assim se serve dele, e lhe serve
seu leite, como escreve Rulfo:
E mais adiante:
66
O conto tem seu eixo justamente nessa relação carnal, que embora não
possa ser considerada tecnicamente como incesto – o relacionamento se dá entre
parentes fictícios, sem uma relação biológica mas com uma relação social -, contém
todo um universo de relações simbólicas.
Primeiramente, Macário pode ser considerado com a idade mental de uma
criança pequena; ele é maltratado física e psicologicamente pela madrinha, é
apedrejado pelo povo e encontra refúgio e proteção unicamente no quarto com
Felipa, quem abusa dele.
Pode-se supor, então, que Felipa oficia com uma “mãe” substituta, mãe,
porém, que se aproveita da única figura masculina à mão para saciar seu desejo e
obter prazer. A visão que Macário tem de Felipa é a de uma mãe que lhe oferece os
peitos cheios de leite “dulce como las flores del obelisco”; e em função desse
relacionamento, Felipa vive rezando, temerosa e certa do mal fim de seu
comportamento:
[…] Felipa dice, cuando tiene ganas de estar conmigo, que ella le
contará al señor todos mis pecados. Que irá al cielo muy pronto y
platicará con Él pidiéndole que me perdone toda la mucha maldad
que me llena el cuerpo de arriba abajo. Ella le dirá que me perdone,
para que yo no me preocupe más. Por eso se confiesa todos los
días. No porque ella sea mala, sino porque yo estoy repleto por
dentro de demonios, y tiene que sacarme esos chamuscos del
cuerpo confesándose por mí. Todos los días. Todas las tardes de
todos los días (RULFO, 1997, p.89).
36
Neste caso ira.
68
“El llano en llamas” culmina, em seu último conto, também com um caso de
incesto e morte. Juan Rulfo se despede37, porém, com um toque de humor. Rafael
Camorlinga comenta a esse respeito:
Pois bem, “Anacleto Morones” parece ter um sabor agridoce, porque junto
com o mais grave caso de incesto de todos os contos aparece a fina ironia, a
caricatura hilária e até a apologia encomiástica das aptidões sexuais de quem
justamente comete este incesto, elogio que definitivamente tira qualquer tensão
interna ao conto.
A história trata da disputa que se estabelece entre um grupo de senhoras,
idosas já, e Lucas Lucatero, ex-genro de Anacleto Morones e a quem considerava
um mulherengo imoralista.
As velhas chegam em procissão à casa de Lucas Lucatero e este, crendo
adivinhar a intenção daquelas, pensa em uma estratégia para se livrar delas:
[…] ¡Viejas, hijas del demonio! Las vi venir a todas juntas, en
procesión. Vestidas de negro, sudando como mulas bajo el mero
rayo del sol. […] Las vi llegar y me escondí. Sabía lo que andaban
haciendo y a quien buscaban (RULFO, 1996, p.197).
37
Também há divergências entre os editores quanto ao lugar que ocupa na série de contos de “El llano...”; a
edição com a que trabalhamos o coloca em último lugar.
69
38
Itálico nosso.
70
Esse “dizer de determinado modo” nos situa perante o escritor enfrentado (ou
confrontado) com a sociedade da qual forma parte. Sua eleição – do dizer – é “de
consciência e não de eficiência”, como propõe Roland Barthes, pois “el lenguaje
nunca es inocente: las palabras tienen una memoria segunda que se prolonga
misteriosamente en medio de las significaciones nuevas” (BARTHES, 1991, p.45).
Mais especificamente:
[…] En efecto, estas escrituras (Barthes compara aqui a Mallarmé e
Celine, Gide e Camus, entre outros) son distintas pero comparables,
porque han sido originadas por un movimiento idéntico: la reflexión
del escritor sobre el uso social de su forma y la elección que asume.
Colocada en el centro de la problemática literaria, que sólo comienza
con ella, la escritura es por lo tanto esencialmente la moral de la
forma, la elección del área social en el seno de la cual el escritor
decide situar la Naturaleza de su lenguaje (BARTHES, 1991, p.44).
Eis a terra de Juan Rulfo. Terra do homem que paga sua culpa com a batalha
imemorial contra a aridez do chão e a miserabilidade de sua condição. Canto do
universo escolhido para a expiação do pecado pela penitência do sofrimento; e lugar
tanto de sofrimento quanto de pecado. Diz Chaves:
[...] Nos confins da eternidade nasce o pressentimento de que o
destino já foi definitivamente traçado. Desaparece a noção da
cronologia porque o tempo constantemente se recompõe num círculo
fechado. (CHAVES, 1973, p.79).
Desta maneira, Juan Rulfo constrói seu estilo. Sua narrativa é marcada pela
sobriedade, pela tendência à condensação, pelo vocabulário rústico que, extraído
das mais profundas raízes de sua terá, adquire sua dimensão estética. A força de
evocação do mundo construído, por sua vez, carrega a fisionomia desse universo,
um lugar mais do que atemporal diríamos imemorial, assim como as personagens,
39
“La región, a grandes rasgos, es la del sudeste de Jalisco, extendiéndose aproximadamente desde el lago
Chapala, al oeste por Zacoalco hasta Ayutla y al sur por Sayula y Mozamitla hacia el límite que separa Jalisco de
los estados de Colima y Michoacán. Bandas armadas devastaron la zona durante la revolución” (HARSS, 1969,
p.315).
74
Foi o romance “Pedro Páramo”, publicado em 1955, dois anos depois de seu
livro de contos “El llano en llamas”, que lançou Juan Rulfo no meio das
especulações dos críticos literários.
A obra narra a história de Juan Preciado, quem conta -1° pessoa – sua
chegada ao povoado de Comala em busca de seu pai, Pedro Páramo. Pouco antes
se encontra com um arrieiro, filho também de Pedro Páramo, quem lhe conta que
este já está morto e que tem vários filhos ilegítimos em toda Comala. Uma vez em
Comala, Juan Preciado vai encontrando diversos personagens e passando por uma
série de situações nas quais todos parecem estar mortos e serem simplesmente
almas vivas sem sossego nem descanso. E é justamente em uma cena incestuosa,
praticada por Donis – outra personagem – e sua irmã, onde o leitor se inteira de que
Juan Preciado está contando a história a uma outra personagem também morta,
Dorotea, ambos no túmulo, uma vez que a partir daqui Juan Preciado também morre
e só sua alma continua a falar. Juan e Dorotea – ou melhor, seus espíritos –
conversam das outras almas que estão penando e que vão aparecendo e
75
40
“La llamada guerra cristera fue un hecho social predominantemente jaliciense. Otros estados (Colima,
Michuajan, Guanajuato, Guerrero, Querétaro, Zacatecas, San Luis Potosí, Durango, Aguascalientes, Oaxaca,
México, Hidalgo, Morelos) participaron activamente en la contienda, pero el ojo de la tormenta se localizó en las
zonas áridas de los Altos de Jalisco y en las estribaciones tropicales del volcán de Colima (VEGA, H. G. , 1985,
p.77).
76
41
Todas as citações são de RULFO, JUAN. PEDRO PÁRAMO Y EL LLANO EN LLAMAS. Barcelona: Planeta,
1996.
77
Dyada se suicida, Susana San Juan enlouquece, o Padre Rentería toma as armas,
Dolores Preciado morre de tristeza – com um vazio no coração -, Abundio Martinez
comete parricídio, Pedro Páramo destrói Comala, a Juan Preciado matam-no “os
murmúrios” de uma terra lamuriante de almas em pena.
A ordem patriarcal que estabelece Pedro Páramo se encontra também
exemplificada no binômio Bartolomé San Juan /Susana San Juan. E também aqui a
ordem familiar é quebrada, já que o único que sabemos da mãe de Susana é que
esta faleceu e mora com o pai. Mas o que se observa aqui é uma obsessão por
parte do pai em manter-se com a filha sem contato com o mundo exterior.
Lembremos que Pedro Páramo ama Susana San Juan, pelo que manda buscá-la:
“No repares en gastos, búscalos. Ni que se los haya tragado la tierra” (p.68). Até que
finalmente um dia chega o “mandadeiro” e diz:
“He repasado toda la sierra indagando el rincón donde se esconde42 don Bartolomé
San Juan, hasta que he dado con él, allá, perdido en un agujero de los montes,
viviendo en una covacha hecha de troncos, en el mero lugar donde están las minas
abandonadas de La Andrómeda” (p.68).
Pedro Páramo então “convida” Bartolomé e Susana a morar com ele, em uma
das casas de sua propriedade; quando chegam, o seguinte diálogo se produz entre
Pedro Páramo e um criado seu:
“No me interesa su mina Bartolomé San Juan. Lo único que quiero de usted es a su
hija. Ése ha sido su mejor trabajo” (p.69).
42
Todos os destaques são nossos.
79
“- Así que te quiere a ti, Susana. Dice que jugabas con él cuando eran niños. Que ya
te conoce. Que llegaron a bañarse juntos en el río cuando eran niños. Yo no lo supe;
de haberlo sabido te habría matado a cintarazos.
-No lo dudo
-¿Fuiste tú la que dijiste: no lo dudo?
-Yo lo dije.
-¿De manera que estás dispuesta a acostarte con él?
- Sí, Bartolomé.
-¿No sabes que es casado y que ha tenido infinidad de mujeres?
-Sí, Bartolomé.
-No me digas Bartolomé, ¡Soy tu padre!
…
-Le he dicho que tú, aunque viuda, sigues viviendo con tu marido, o al menos así
te comportas.
…
-Es, según yo sé, la pura maldad. Eso es Pedro páramo.
-¿Y yo quién soy?
-Tú eres mi hija. Mía. Hija de Bartolomé San Juan.
que não deixa Susana dormir. Dos dias depois da morte de Bartolomé, a criada
Justina vai dar a Susana a notícia:
43
“A diversidade de situações que suscitam a manifestação do narratário relaciona-se com as diferentes funções
que podem caber-lhe: ele constitui um elo de ligação entre narrador e leitor, ajuda a precisar o enquadramento da
narração, serve para caracterizar o narrador, destaca certos temas, faz acanzar a intriga, torna-se porta-voz da
moral da obra” (REIS, Carlos et al, 2000, p.65).
81
consumação de uma relação incestuosa carnal entre Bartolomé e Susana San Juan,
mas o incesto flutua, sem dúvida alguma, no imaginário rulfiano. E se corresponde,
provavelmente, à realidade da terra do autor, a simbiose ficção-realidade, mundo
fictício, mundo real. O preço a pagar, mais uma vez, e quando de incesto se trata,
são a loucura e a morte, o estigma que atinge a quem viola o pacto cultural para
voltar-se à natureza pura.
Seja como for, a narrativa patriarcalista fica evidente no relacionamento entre
as personagens. E esta narrativa tende a construir uma subjetividade e a designar
um comportamento: “por el modo como la trata mas bien parece su mujer”, indica
uma relação de posse. Igualmente, no fato de Pedro Páramo ter que “pedir” a
Bartolomé sua filha, o pressuposto do intercâmbio do bem mais preciado da teoria
de Lévi-Strauss se faz visível.
Da mesma maneira, a reminiscência incestuosa entre Bartolomé San Juan e
Susana San Juan é narrada desde o mesmo ponto de vista normativo e
universalizante.
Se supusermos que houve consumação do ato sexual, as reações das
personagens são muito diferentes. Bartolomé San Juan não dá nenhum sinal de
qualquer perturbação; Susana, por outro lado, enlouquece. Por que teria
enlouquecido? Temos, aparentemente, só duas hipóteses. Em primeiro lugar, ao
ocupar, por um desejo infantil, o lugar da mãe, acaba por refugiar-se na loucura;
depois, por ter perdido seu amor Florêncio, fato que lhe causa uma angústia
perturbadora:
- Florencio ha muerto, señora.
- (…) ¡Señor, tú no existes! Te pedí protección para él. Que me lo cuidaras. Eso te
pedí. (…) ¿Qué haré ahora con mis labios sin su boca para llenarlos? ¿Qué haré de
mis adoloridos labios? (RULFO, p. 82-3).
Uma hipótese indica como causa da loucura a inacessibilidade ao homem
objeto de desejo. Citando Bell:
[...] She (De Lauretis) argues that the construction of gender is both
the product and the process of its representation and self-
representation. That is, the individual lives, or „performs‟ in Butler‟s
terms, the representation of gender as self-representation, and that
performance constitute gender (BELL, 1993, p.74)44
44
Ela (De Lauretis) argumenta que a construção do gênero é tanto o produto quanto o processo de representação
e auto-representação desse produto. Isto é, o indivíduo vive, ou „desempenha‟, nas palavras de Butler, a
representação de gênero como auto-representação e esse desempenho constitui o gênero.
82
-¿Crees tú?
-Mira, se mueve. ¿Te fijas como se revuelca? Igual que si lo zangolotearan por
dentro. Lo sé porque a mí me ha sucedido.
-Aquello.
-De cómo me sentía apenas me hiciste aquello, que aunque tú no quieras yo supe
que estaba mal hecho. (p.42).
Juan Preciado sente o pecado do lugar que o dilacera por dentro, pelo que
não consegue dormir; levanta-se e tem com a mulher o seguinte diálogo:
-“Yo sé tan poco de la gente. Nunca salgo. Aquí donde me ve, aquí he estado
sempiternamente…Bueno, ni tan siempre. Sólo desde que él me hizo su mujer.
Desde entonces me la paso encerrada, porque tengo miedo de que me vean. Él no
quiere creerlo, pero ¿verdad que estoy para dar miedo? –y se acercó a donde le
daba el sol- ¡Míreme la cara!
-¿No me ve el pecado? ¿No ve que esas manchas morada como de pote que me
llenan de arriba abajo? Y eso es sólo por fuera; por dentro estoy hecha un mar de
lodo (p.44).
E mais adiante:
-Y esa es la cosa por la que esto está lleno de ánimas; un puro vagabundear de
gente que murió sin perdón y que no lo conseguirá de ningún modo, mucho menos
valiéndose de nosotros (p.45).
Donis, que por sua vez se transforma em uma mera possessão – nem sequer pode
ser lida como objeto de desejo -, depois que seu irmão a faz “sua” através do ato
sexual.
A segunda constatação, que se torna clara depois de lermos o comentário de
González Boixo, corresponde à insistência secular de conferir à raça humana um
pecado original derivado do incesto primigênio, postulado que as narrativas
universalizantes – Freud e Lévi-Strauss principalmente – se encarregariam de
legitimar.
O pecado original, de origem incestuosa, persegue os habitantes de Comala
em seu errar itinerante. Mas o autor deixa espaço para a redenção, porque (diz Juan
Preciado):
comenzando a pagar. Más vale empezar temprano, para terminar pronto” (p. 57),
diz, pressentindo seu trágico final.
Quem mais sofrem, porém, o autoritarismo de Pedro Páramo, são as
mulheres de Comala. E, necessariamente, é a mulher também a que subvertirá a
relação de poder que o dono da “Media Luna” ostenta. Porque as mulheres do
romance, apesar de subjugadas e com atitudes passivas, terão em Susana San
Juan o calcanhar de Aquiles de Pedro Páramo; afinal, por inatingível, será ela que o
ferirá de morte, uma vez que sem ela nada faz sentido para “Don Pedro”, que se
deixa morrer.
E se a tensão é manifesta ao longo de toda a obra, é no terreno da
sexualidade onde a narrativa estabelece um eixo comportamental muito claro: o
homem (Pedro Páramo, Miguel Páramo, Donis) decide a maneira em como as
soisas devem ser feitas, cabendo à mulher aceitar com resignação seu destino, seu
papel.
O homem ou seduz ou violenta. A mulher ou é tentada ou é violentada.
Estamos diante de uma narrativa masculina e patriarcal, que designa em Susana
San Juan a resistência à aceitação da ordem que se quer estabelecer.
Juan Preciado vai à procura de seu pai, Pedro Páramo, quem enganou sua
mãe, Dolores Preciado, casando-se com ela por conveniência e tomando suas
terras; a única reação de Dolores foi deixar o lugar. Em seu leito de morte,
encomenda a seu filho Juan ir a Comala por seu pai: “No vayas a pedirle nada.
Exígele lo nuestro. Lo que estuvo obligado a darme y nunca me dio...” (, p.7).
Dolores Preciado aceita qualquer coisa para casar-se com Pedro Páramo, aceita até
ser substituída na noite do casamento por sua amiga, Eduviges Dyada, por força das
circunstâncias. E Eduviges aceita, “de buena gana”.
Também Eduviges age de maneira aparentemente passiva diante do mundo
masculino:
[…] Ella sirvió siempre a sus semejantes. Les dio todo lo que tuvo.
Hasta les dio un hijo, a todos. Y ella los puso enfrente para que
alguien los reconociera como suyo pero nadie lo quiso hacer.
Entonces les dijo: “En ese caso yo soy también su padre, aunque por
casualidad haya sido su madre”. Abusaron de su hospitalidad por esa
bondad suya de no querer ofender ni de malquistarse con ninguno
(RULFO, p.28).
88
[...[ a castração se faz sobre o falo enquanto objeto não real, mas
imaginário... A criança, menino ou menina, quer ser o falo para
captar o desejo de sua mãe (é o primeiro tempo do Édipo). A
interdição do incesto (o segundo tempo) deve desalojar-lhe desta
posição de ideal do falo materno. Esta interdição provém do fato de
que o pai simbólico, ou seja, uma lei, deve ser assegurado pelo
discurso da mãe. Mas ela não visa somente à criança, ela visa
igualmente à mãe e, por esta razão, ela é compreendida pela criança
como sendo também castrada. No terceiro tempo intervém o pai real,
aquele que tem o falo (mais exatamente, aquele que a criança supõe
que o tenha), aquele que, em todo caso o usa e se faz preferir pela
mãe. O menino que renunciou a ser o falo vai poder se identificar
com o pai e ele terá então “no bolso os títulos necessários para se
89
apesar da desgraça de sua situação, há um lugar para sua redenção. Esta não
provém de um paraíso após morte, mas da própria vida que elas levam quando a
vida acaba. Dorotea, finalmente, jaz com Juan Preciado, seu filho substituto, no
túmulo; já não precisará carregar seu filho imaginário no colo; Dolores Preciado
deixa ouvir sua voz dos seus bons momentos em vida; a irmã de Donis se liberta de
seu irmão e de toda a Comala que a julga; Susana San Juan, a figura central do
romance, descansa também liberta do autoritarismo de seu pai e da perseguição de
Pedro Páramo e liberta-se também da religião, dizendo ao Padre Rentería, no seu
leito de morte, que não precisa dele. Talvez o preço que paga é alto, a loucura que
evita a desintegração total do eu, mas aparece como uma personagem que
subverte, que não se deixa definir como o objeto de outro ser, como o bem de troca
de quaisquer intenções; neste sentido, a função social que ocupa é justamente a da
resistência de que todo poder se constitui; sua própria psique a aparta a um lugar
onde se realiza como mulher, e isso faz com que morra a vontade de Pedro Páramo.
A realidade de Comala, então, estará determinada por outro tipo de poder, aquele
que emana dos “murmúrios do silêncio”45.
Susana San Juan seduz Pedro Páramo desde a infância até sua morte, mas
nunca a alcançou, nunca a obteve. Foi-lhe sempre utópica como o próprio driblar a
morte, a quem ninguém escolhe. E dentre as manifestações conscientes que
expressa o discurso e a ambigüidade dos rumores lidos nas entrelinhas, estabelece-
se um equilíbrio estético, semântico e ideológico que diz mais justamente naquilo
que cala.
Em “Pedro Páramo” é possível sentir o mal-estar cultural que descreveu
Freud (1980(a), p73-148), que impele os artistas se aventurarem para alguma rota
de fuga; o simbolismo enigmático de “Pedro Páramo” procura, através de suas
personagens, a libertação daquilo que mantém a raça humana presa à opressão da
culpa.
45
Juan Rulfo tinha escolhido como primeiro título para a obra “Los murmullos del silencio”, que depois trocou
por Pedro Páramo.
92
CONCLUSÃO
46
Tradução nossa.
93
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