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“A criança nasceu para ser feliz... E nós somos responsáveis por dar a ela essa
oportunidade”. Com tal desejo, visão de infância e de educação, Valderez de Freitas
Valle aportou na Escola Israelita. Um belo casarão na Avenida João Pinheiro abrigava a
Escola, do Jardim de Infância ao 4ª ano do Ensino Primário. Pela primeira vez, uma
não judia e pedagoga estaria no comando. Corria a primeira metade dos anos 1960.
Jovem e recém-formada, ela logo se pôs a perguntar: Como fazer? O que fazer
de interessante, de diferente? Ela queria descobrir e inventar novos métodos. Como
professora trazia experiências, como diretora não. Ela apostou na inteligência coletiva,
“não por humildade, mas ignorância mesmo!”, conta Valderez às gargalhadas. Passou
a se reunir periodicamente com a diretoria da União Israelita, professores, pais da
comunidade judaica, funcionários, intelectuais para trocar ideias. Atitude que era
favorecida pela organização da Escola em diversas comissões, como a Pedagógica, de
Transporte, de Informações, que incentivavam a participação e a gestão
compartilhada.
Para alfabetizar as crianças, Valderez buscou fazer diferente do jeito que lhe
ensinaram: repetindo cartilhas. Repetindo o ba-be-bi-bo-bu ou as frases do “Livro de
Lili”. Buscava propostas mais lúdicas. No chão desenhava as letras com carvão, milho,
feijão, para as crianças escreverem com o corpo inteiro. Sentava-se com elas em roda
para conversar sobre o dia, as coisas que estavam acontecendo, o que pensavam e
sentiam. Filosofia para criança, já naquela época.
Observando a dificuldade da meninada com a escrita do português, ela
incentivou a feitura de Haikais. Aquela poesia concisa de origem japonesa depois
difundida no mundo, que transcende a linguagem usual e o pensamento linear. Exige a
introspecção para captar uma experiência, um instante e de dizer o máximo com o
mínimo de palavras. Valderez, inicialmente, conduzia as crianças para um relaxamento,
para que sentissem o vazio. Depois deveriam observar imagens, mensagens e histórias
que iam construindo mentalmente. Esta inspiração deveria ser descrita em poucas
palavras na primeira estrofe. A segunda estrofe deveria trazer a reflexão sobre a
inspiração. Na terceira estrofe deveria haver uma conclusão. E assim os Haikais das
crianças eram a síntese de três etapas: inspiração, reflexão e conclusão. “Começaram
a encher caderninho e melhoraram a capacidade de escrever”, lembra-se com alegria
Valderez.
Na equipe de professores estava Berta Goifman – futura bibliotecária da Escola
da Serra. No currículo, o amor cultivado pelos livros desde a infância, a habilidade com
o piano, os ideais de um mundo mais igualitário, o envolvimento com a União da
Juventude Comunista, o gosto e o hábito da reflexão e do debate. Berta levava as
crianças a descobertas e vivências da cultura judaica e brasileira.
Para ampliar as contribuições pedagógicas e atrair mais gente para a Escola
Israelita, Valderez foi à procura de alguns mestres do seu Curso de Pedagogia e do
Curso de Didática, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras1 (futura UFMG), e outros
educadores para oferecer um seminário gratuito à cidade. Entre eles estavam a
psicóloga Helena Antipoff, a professora de didática Alaíde Lisboa de Oliveira e a
psicóloga e professora Maria Silvia Machado, conhecedora das teorias de Piaget. O
seminário repercutiu nos jornais, reverberou na cidade, atraiu muitos educadores,
inclusive professores universitários, contou com a presença de membros da Secretaria
de Educação. Mais famílias descobriram e se interessaram pela Escola Israelita e
matricularam seus filhos. Mais crianças não judias chegavam.
Uma carta da Direção da União para os sócios proprietários mostra a firmeza
com o propósito educacional, a busca constante pelo aperfeiçoamento e o entusiasmo
com a evolução da Escola:
Os métodos mudaram. O único que não muda é o ideal: a formação de bons
cidadãos judeu-brasileiros. Longe veio o tempo que educar é questão de jeito e
o que se exigia de um professor era somente paciência para falar às crianças...
Educar é uma ciência, e ao professor é exigido estar a par do que de mais
moderno existe na teoria e na prática dessa ciência. A Escola Israelita está
avançando... ela sabe estar a altura da nova pedagogia...Seu quadro de
professores selecionado e testado consegue que a criança sinta prazer em
aprender e conviver.
1
A Faculdade de Filosofia Ciências e Letras começou por iniciativa de um grupo de professores
do Colégio Marconi. Em 1939 eles fundaram a Faculdade de Filosofia para formar professores
em novas áreas. Em Belo Horizonte, os cursos superiores instalados desde o final do século XIX
e início do século XX eram voltados basicamente para a formação de engenheiros, médicos,
dentistas, farmacêuticos e advogados. Dez anos depois, a Faculdade foi integrada à
Universidade de Minas Gerais (UMG), e em seguida, foi federalizada tornando-se a UFMG.
passou a desfrutar também da piscina e das quadras. Para melhor acomodar a escola,
que ia do Jardim de Infância ao 4º ano do Ensino Primário, decidiram construir um
andar com oito salas. Uma comissão levantou recursos entre os judeus e conseguiu
empréstimos bancários a juros baixos. Os engenheiros José Mintz e Abrão Brum,
responsáveis pela obra, entregaram o anexo em 1967. A União seguiria mantenedora
da escola. Os pais continuariam ajudando na realização de eventos, tais como bingo,
bazar e noite dançante, para gerar dinheiro a favor da escola, sempre deficitária. As
turmas continuavam com poucos alunos, e o lucro não sendo objetivo.
Para a equipe da diretora Valderez chegou Naum Weinberg, ou Moré2 como a
meninada lhe chamava, para dar aulas de hebraico 3 e tradições judaicas. Querendo
motivar, incentivar a participação, dar segurança e ver o aluno feliz, ele foi inventando
um jeito muito peculiar de trabalhar. Com atividades lúdicas, criativas e desafiadoras,
permeadas por uma “didática afetiva” e pelo uso da liberdade com responsabilidade –
que descobrira com Mr. Neill, o fundador da Summerhill School 4 -, Naum envolvia a
meninada.
Aventura, coragem, adrenalina, iniciativa, coletividade, liberdade, liderança
eram conteúdos escolares na “Coloninha de Férias” que ele oferecia. Uma atividade
inspirada no Escotismo, que em Israel equivale ao movimento juvenil judaico. A
meninada ficava quatro dias distante de Belo Horizonte e da família, em dormitórios
coletivos, dividindo responsabilidades, participando de atividades esportivas, lúdicas,
formativas. Caminhadas noturnas ajudavam as crianças a “ter menos medo das coisas
pequenas”, lembra Naum. Vania Mintz, à época aluna, anos depois coordenadora
pedagógica da Escola da Serra, recorda-se da Coloninha:
Naum, com seu lema “vida ativa é vida vivida”, estava sempre desafiando,
criando jogos e brincadeiras. Matemática e educação financeira podiam ser aprendidas
brincando de “banco”, usando “cheque” para comprar na cantina, que era
2
Moré/Morá – professor/professora em hebraico.
3
Língua oficial de Israel depois da criação do Estado de Israel.
4
O jornalista Alexander Sutherland Neill (1883-1973) foi o fundador da Summerhill School, na
Inglaterra. Um sistema educativo no qual flexibiliza a hierarquia, dá à criança liberdade para
escolher e decidir o que aprender, ajudar na gestão da escola.
administrada pelos próprios alunos – um exemplo da influência da Summerhill School,
que inverte a hierarquia e aposta no aluno como gestor. Descobrir o maior número
possível de mares, numa época sem internet nem Google, foi um desafiou para a
garotada que navegou no conhecimento e descobriu quase 50 mares, entre outras
informações que vieram a reboque. Naum embarcava as crianças num “navio”, de fato
a piscina, para uma longa “viagem imaginária" até Israel para conhecer outras regiões
e países, incluindo a Itália para comer pizza. Ele incentivava a aproximação das
crianças de escolas do Rio de Janeiro, São Paulo e Israel. O contato ia por meio de um
lindo cartão postal enfeitado com flores secas. Explicando a intenção do gesto ia um
texto mimeografado. Convicto que “a criatividade é dom tão universal quanto a
memória e a inteligência”, ele desafiava. Propunha diversas atividades para a criança
ampliar a percepção, aprender a ver as coisas sob os mais diversos ângulos, procurar
novos caminhos. A atividade podia ser a feitura de uma escultura no giz ou andar pela
escola observando cada canto para olhar o mesmo com outra visão, com mais
percepção. “Naum tinha uma energia de criatividade que era contagiante, todo mundo
queria inventar!”, recorda-se Vania Mintz.
Para ele, que fora estudante da Escola Israelita numa época de relações
autoritárias, outro componente imprescindível era a afetividade. Opressão que vinha
atada à história da educação brasileira e explícita em diferentes formas de castigar.
Punições que foram abrandando, seja pela construção da sensatez ou pela constituição
de leis e estatutos nacionais e internacionais para proteger a criança e seus direitos.
Ele relembra:
Quando eu fui aluno não senti nenhuma afetividade no trato. Na escola
Primária, muito pelo contrário, havia um diretor autoritário e que, por
qualquer falta, colocava o aluno no quarto escuro de castigo.
Cada um era cuidado com o bom senso da época, com nossos princípios. Se um
aluno não conseguia aprender muito bem, eu chamava o professor e pedia para
prestar mais atenção nele, se dedicar muito a ele, colocá-lo mais na frente na
sala. Eu procurava sempre incentivar as crianças com mais dificuldade, valorizar
o que dava conta, as facilidades, desenvolver os potenciais. Na maioria das
vezes dava certo.
A Escola Israelita ia crescendo. A formação intelectual consistente seguia como
objetivo na Escola Israelita, bem como a formação emocional dos alunos. Desde os
tempos de Valderez havia muito cuidado no trato com eles.
Se para as crianças a felicidade corria solta, já em meados dos anos 1970, a
presença da Escola dentro da União Israelita começou a incomodar. Atas das reuniões
da diretoria à época, mostradas por Luiza Lerman, descrevem descontentamentos de
alguns sócios da União Israelita. E por algumas razões. A Escola, que crescera até a
8ª série, acabara utilizando outros espaços além daquele anexo construído
especialmente para ela. A área de lazer, por vezes, estava com aula quando sócios da
União queriam utilizá-la. Escolhas pedagógicas iam alterando o currículo e reduzindo o
cultivo de algumas tradições da cultura judaica – fato que desagradava alguns judeus.
Para Luiza Lerman “uma adaptação que a escola precisava fazer. Estava difícil
encontrar professores para transmitir a cultura judaica, a história do povo judeu, e a
maioria das crianças vinha de famílias que não eram tão conservadores em termos de
religiosidade”. Em outras épocas a Escola contratara professores de Israel para
trabalhar com a cultura judaica.
Belo Horizonte e todo o país viviam numa atmosfera fortemente repressiva da
ditadura militar, que esmagava a liberdade de expressão, vidas, perspectivas. Mas
crianças viviam envoltas em experiências afetivas e aprendizagens significativas.
Famílias mineiras iam descobrindo esse lugar, se identificando com a educação
proposta. Entre elas, o escritor Olavo Romano e Vania Pimentel, sua mulher à época,:
“Queríamos para nossos filhos uma escola que fosse arejada, com características de
liberdade, abertura, criatividade. Que levasse em conta o potencial de cada um e
oferecesse o máximo de oportunidades”.
Seguiam alterações na direção da Escola. Saiu Naum, depois Luiza Lerman.
“Desgastada pela pressão da comunidade judaica, sentindo que alguns judeus não
davam o devido valor à Escola e uma parte não estava interessada em manter a Escola
dentro da União Israelita”, Luiza passou o bastão. Contornar divergências e
insatisfações continuaria um desafio para quem ficou. Possível apenas por mais alguns
anos.
“Que educação nós queremos para o mundo que está aí? Para que serve a
educação? Qual a intenção maior da Escola Albert Einstein? Quais atitudes são
coerentes com a proposta?, perguntava o novo diretor Adilson Rodrigues Pereira, ao
Conselho de Pais, aos professores, pais, alunos e funcionários. Entre suas bagagens,
Adilson trazia experiências como professor de didática de Português na Faculdade de
Educação da UFMG. Com a professora Magda Soares da FAE-UFMG, ele escrevera
livros como colaborador ou coautor. Na coleção “Comunicação em Língua Portuguesa”
ao invés de gramática formal havia comunicação de massa – jornal, publicidade,
história em quadrinho – para o aluno ler e desenvolver outras linguagens e o senso
crítico.
Ele chegara, em 1976, apostando intensamente na reflexão coletiva e no
diálogo para analisar os processos pedagógicos, saber das expectativas da
coletividade, propor mais e novas estratégias didáticas, avançar na educação
progressista. Fora indicado por Luiza Lerman e aceito depois de sabatinado pelo
Conselho de Pais. À época, era composto por Berta Goifman e o marido Jayme, José
Mintz e a mulher Miriam, Bernardo Wajnman, Tobias Chaimowicz e a mulher Luiza
Lerman Chaimowicz, Moisés Chacham, Aron e Gilda Dicker, entre outros. Gente que
também colaborava com a construção da proposta pedagógica. O professor da
Faculdade de Educação da UFMG Miguel Arroyo e ex-Secretário Adjunto de
Educação de Belo Horizonte, levara os filhos para lá estudar e também se integrou
ao Conselho de Pais. Ele recorda-se da prática de Adilson:
Havia muitas reuniões para discutir: Qual a educação queremos para os
filhos? Qual educação queremos na escola? Mais em termos de coincidir que
tipo de ser humano queríamos formar.
Lembro quando deixamos de ter prova. Eu dando volta na piscina decorando alguma
coisa. Depois num momento eu já não tinha mais de fazer isso. Lembro que isso foi
conversado: ‘Vocês acham que devemos decorar? Para que serve decorar? Não é
melhor trabalhar e acrescentar conhecimento e dividir com os colegas? Para quê cada
um sozinho ficar decorando para fazer prova?’ As decisões eram conversadas com a
gente. Quando deixou de ser obrigatório o uso do uniforme perguntaram: ‘O que
representa o uniforme na escola? Vocês acham importante?’ Aboliu-se a
obrigatoriedade, mas tinha a camiseta para quem queria estar identificado. As coisas
eram construídas. Era sentar e conversar sobre.
9
Até 1911, os estudantes das universidades brasileiras eram ex-alunos de colégios tradicionais.
Nesse ano Ministro da Justiça e dos Negócios Rivadávia da Cunha Corrêa, instituiu a prova de
admissão à universidade, que passou a se chamar “vestibular” em 1915. Havia prova escrita e
oral. Além das matérias tradicionais, havia o conteúdo do primeiro ano do curso que o
candidato desejava fazer. A partir da década de 1960 eram submetidos a longas provas com
questões de múltipla escolha, modelo de exame alvo de críticas de especialistas na época .
A partir de 1970 o conteúdo da prova foi restrito a matérias do científico.
alguns com binóculos. O formato se repetiu algumas vezes na década e em outros
estados brasileiros.
Quando Malu chegou ao Einstein, primeiro para dar aula, “a escola que sempre
quis”, lhe “abriu um mundo”. Com os grupos de estudo propostos por Luiza Lerman,
descobrira Lauro de Oliveira Lima. Com Adilson, especialmente, viu seu trabalho ser
questionado para descobrir e inventar novas didáticas. “Professora dedicada e
respeitada, assimilou e respondeu bem as novas propostas”, conta Adilson. Em 1980,
depois de ter se afastado por um período, Olavo Romano, representando a diretoria,
lhe convidou para voltar. Ela aceitou o desafio de assumir a direção geral da escola e a
coordenação do Ginásio. Trabalho “pesadíssimo”, conta ela, pois no seu currículo trazia
experiência como professora.
Entre as dificuldades, o relacionamento com alunos de uma turma. Um dia eles
expuseram sua inconformidade. Picharam no muro da escola “Abaixo a ditadura da
Malu”. No primeiro momento, “foi sofrido” para ela. Mas encarou o fato, que
demonstrava que eles sabiam o que se passava no país e que na Escola havia
liberdade de expressão.
Fui sentar com eles para entender o porquê, e descobri que eu não estava mais sendo
aquela pessoa afetiva que fora quando professora, não tinha mais tempo para brincar
com eles. Fui explicar que meu tempo estava muito pequeno, o que significava dirigir
uma escola inteira e com aquelas características. Eles estavam sofrendo. Quando
entendi o que estavam sentindo, foi muito bom. Quando se é dura demais para colocar
limites, acontece esse tipo de coisa.
Seria mesmo uma atitude autoritária ou Malu estava exercendo sua autoridade?
“Delimitar o que era aceitável não era tarefa fácil naquele tipo de escola”, reconhece
ela. A equipe tinha que enfrentar duas situações. Os pais que achavam que a Escola
dava liberdade em excesso. O filho se tornava mais questionador na escola e da
escola, queria saber os porquês, e em casa queria fazer o mesmo. Por outro lado, pais
que viviam com intensidade a abertura democrática e queriam ambientes mais
libertários. Para pensar e estabelecer os limites e traçar as normas eram realizadas
discussões com a equipe pedagógica e os alunos. Decisões com acertos e erros,
inevitáveis.
Para dividir parte do trabalho, em meados de 1982, Malu convidou Tieko para a
coordenação de 5ª a 8ª. E continuava contando com Ângela Dumont na coordenação
de 1ª a 4ª, e Zoé, vinda do Balão Vermelho, na coordenação do infantil. Ambas
trabalhando desde o tempo de Adilson. Malu sentia-se integrada à comunidade, e até
sua mãe colaborava. Foi quem transformou a nova biblioteca da escola, que fora
transferida para uma sala maior, numa ambiente mais aconchegante. Fez grandes
almofadas coloridas para a meninada poder espichar o corpo e ler com mais conforto.
Ideia, posteriormente, levada para a Escola da Serra.
O Einstein ia “ocupando, ocupando, ocupando a União. Ocupando salas de
cima, muito espaço lá em baixo”, recorda-se Malu, que se despediu da Escola em
1982. Para assumir a direção da escola chegou a educadora e psicóloga Arminda Matta
Machado. Viriam mais mudanças.