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I
A tarefa de esboçar a história do liberalismo, embora modesta, é difícil, por razões
metodológicas. Pois camos diante da questão de se existe mesmo algo como o
liberalismo, como um objeto claramente de nível, e se este objeto, não sendo
claramente de nível, pode ter uma história. Tocamos aqui em um problema
metodológico geral. Toynbee, por exemplo, introduz seu grande trabalho com a questão
de se há ou não uma história da Inglaterra; ele conclui que a nação inglesa, como uma
sociedade, está tão intimamente relacionada com a sociedade da civilização ocidental,
que não se pode escrever uma história inglesa sem entrar em toda a história da
civilização ocidental. É neste sentido que surgem as questões de como o liberalismo
deve ser delimitado e se possui uma história. E elas surgem mais agudas porque o caso
do liberalismo é muito mais complexo que o da Inglaterra. Pois mesmo que algumas
fases da história inglesa, por exemplo, a Reforma, possam ser consideradas apenas em
relação à história geral europeia, neste caso, da Reforma e da Contrarreforma, ainda há
longos períodos de história isolada especi camente inglesa. No caso do liberalismo, um
estreitamento do assunto para as sociedades nacionais – alemã, francesa, inglesa ou
americana – di cilmente é justi cável. Pois todas as fases regionais do liberalismo são
americana – di cilmente é justi cável. Pois todas as fases regionais do liberalismo são
apenas partes de um movimento ocidental comum; e, ademais, só muito raramente
este movimento pode ser isolado de outros movimentos paralelos a ele no tempo.
As questões metodológicas devem ser suscitadas, pois no decorrer dos últimos 30 anos,
a imagem do liberalismo mudou completamente. Se você olhar para um trabalho
modelo mais antigo, como a obra de Guido de Ruggiero na década de 1920, verá que,
naquele momento, no nal da era liberal, o liberalismo ainda parecia ser um fenômeno
facilmente de nível. Mas se você olhar para a literatura mais recente, verá que o
protótipo do trabalho de Ruggiero praticamente desapareceu – hoje, as questões do
liberalismo estão situadas em contextos mais amplos. Deixe-me descrever brevemente
três dos trabalhos mais recentes para ver em qual direção a investigação se move hoje.
Finalmente, em seu novo trabalho sobre Die Dritte Kraft, Friedrich Heer desenha uma
importante linha da história espiritual partindo do iluminismo tempo de Erasmo, no
início do século XVI, até o presente. Usando esta abordagem de “terceiro poder”, Heer
apresenta a história de um movimento que tentou repetidamente estabilizar uma
ordem liberal entre revolução e reação, entre a esquerda e a direita dos movimentos
políticos circundantes da Europa. Emerge a imagem do movimento político secular do
qual o liberalismo é uma fase.
Estas breves indicações mostram até onde está articulada a moldura de problemas em
Estas breves indicações mostram até onde está articulada a moldura de problemas em
que o liberalismo está encaixado. O contexto que cerca e dá sentido ao liberalismo vai
muito além do que comumente se entende por liberalismo clássico, representado por
John Stuart Mill.
II
A imagem do liberalismo se transforma porque o próprio liberalismo se transforma no
processo da história. E se transforma porque não é um corpo de proposições cientí cas
atemporalmente válidas sobre a realidade política, mas sim uma série de opiniões e
posições políticas que encontra sua verdade ideal na situação que as motiva, sendo
então ultrapassadas pela história e obrigadas a fazer justiça por novas situações. O
liberalismo é um movimento político no contexto do movimento revolucionário
ocidental circundante; seu signi cado se altera com as fases do movimento circundante.
Seu momento de maior evidência é o século XIX, que é precedido e seguido por
momentos de clareza decrescente, onde se torna cada vez mais difícil estabelecer sua
identidade. Podemos obter acesso a este campo de signi cado em constante mudança
se tomarmos a expressão “liberal” em seu ponto de origem histórica e política.
Mesmo se, como vimos, o início do liberalismo pudesse ser traçado até o início do
século XVI, a palavra “liberal” é, não obstante, uma criação relativamente tardia. Aparece
pela primeira vez na segunda década do século XIX, quando um partido das Cortes
espanholas de 1812 intitulou-se Liberales. Tratava-se de um partido constitucional liberal
que formou uma frente contra tentativas de restauração. A partir de então, a expressão
“liberal” incorporou-se ao vocabulário geral europeu, e logo ocorreu em toda a Europa a
formação de grupos, partidos e movimentos liberais.
Mas, mesmo tendo obtido esta percepção, ainda não podemos a rmar com precisão o
signi cado dos quatro símbolos como em uma de nição conceitual. Pois, no processo
histórico, os elementos dos movimentos se movem uniformemente, um em relação ao
outro, e mudam seu significado. Deixe-me indicar algumas mudanças de significado.
Em primeiro lugar, hoje “liberal” tornou-se quase equivalente a “conservador”, e, com
efeito, isto ocorre porque o movimento do liberalismo foi ultrapassado por novas ondas
de revoluções e mais radicais, em oposição às que desempenhavam o papel de
conservadorismo; formalmente, na década de 1810 a 1820, o conservadorismo era
conservador em oposição à revolução e ao liberalismo. Raymond Aron, por exemplo,
respondeu à pergunta sobre sua posição política a rmando que ele era liberal, isto é,
conservador. O mesmo poderia ser dito do economista von Hayek: ele é liberal, isto é,
conservador em relação ao socialismo, ao comunismo ou a qualquer outra variante da
fase da revolução que tenha ultrapassado o liberalismo. O protótipo do “liberal old-style”
hoje é considerado conservador.
Uma notável mudança de signi cado ocorreu no liberalismo a partir da Segunda Guerra
Mundial. Se você olhar para as frentes políticas do período pós-guerra – na Alemanha
Ocidental, França e Itália – notará uma força política que antes da guerra não existia em
grande escala: os principais partidos estão intimamente ligados às igrejas Católica e
Protestante. Através de mútua assimilação, o liberalismo e esta nova força entraram em
comum acordo. Os liberais que foram surpreendidos pela revolução tornaram-se
conservadores; e as organizações cristãs conservadoras se liberalizaram
consideravelmente. Tornou-se possível uma oposição comum ao perigo comum. Mas,
novamente, o contexto social tem seu efeito, e a direção do desenvolvimento não é
inequívoca. Quando partidos de liação católica ou protestante tornam-se titulares do
liberalismo, os liberais secularistas radicais podem se tornar ainda mais seculares e
anticlericais – podem, como na França, avançar ainda mais para a esquerda, já que a
anticlericais – podem, como na França, avançar ainda mais para a esquerda, já que a
posição liberal é agora ocupada pelos conservadores, e podem até se inclinar para o
partido comunista, embora não sejam de modo algum comunistas. Especialmente na
França e na Itália, o comunismo assumiu a função anticlerical do liberalismo mais
antigo, porque os antigos liberais mudaram para a direita e se tornaram conservadores,
ocasionalmente, com conotações distintamente cristãs.
Trabalhei esta mudança do signi cado da revolução permanente, não para apresentar
uma curiosidade histórica, mas porque o problema da revolução permanente está
envolvido no liberalismo. Para Charles Comte, a ideia de que o objetivo da revolução
possa ser alcançado através de um processo constante de reforma sem os efeitos
colaterais desagradáveis, pertence à classe gnóstica-utópica. Está intimamente
relacionado com a ideia progressista do século XVIII, como sustentam Kant e Condorcet,
de que um Estado nal de humanidade racional pode ser alcançado num processo de
aproximação in nita. Mas isso não pode ser alcançado, posto que o homem não é
apenas racional, mas muito além disso. Destarte, não é por acaso que o revolucionário
comunista retoma a révolution permanente liberal. Pois, no liberalismo, há também o
elemento irracional de um Estado nal escatológico, de uma sociedade que produzirá,
através de seus métodos racionais, sem perturbações violentas, uma situação de paz
perpétua. O liberalismo também faz parte do movimento revolucionário que sobrevive
na medida em que se move. De Charles Comte a Trotsky, há uma linha de crescente
percepção de que o movimento de reforma, ao qual também pertence o liberalismo, é
um Estado singular de a airs, na medida em que sua meta nal não pode ser
concretizada.
III
Tratamos da revolução do espírito da qual o liberalismo é uma fase, e vimos que
autores mais recentes traçaram o início do movimento até o século XVI. O liberalismo
clássico do século XIX tem seu lugar neste movimento abrangente. Naturalmente, não é
possível oferecer aqui uma sinopse da história do movimento; o assunto é tão vasto,
que uma investigação detalhada revelaria nada mais que a futilidade da tentativa. Um
esboço do modelo deve ser razoável.
O movimento revolucionário segue seu curso em grandes ondas. Em cada uma destas
ondas pode-se distinguir, primeiro, a verdadeira irrupção da revolução; segundo, o
contramovimento e a organização da resistência; e, nalmente, um período de quietude
e ajustamento, de estabilização em um novo nível, até a próxima irrupção. Podemos
agora distinguir três destas ondas, a contar do século XVI. A primeira onda começa com
a Reforma, a qual culmina com a Contrarreforma. A segunda onda começa com a
Revolução Francesa, a qual evoca os contramovimentos de reação e restauração. A
terceira onda começa claramente com a revolução comunista. O contramovimento
correspondente, contudo, não é tão claramente de nido desde que a terceira onda
reverberou muito além de seu centro ocidental e tornou-se mundial em seu efeito. A
resistência assume formas tão diferentes quanto a maciça reação direitista, no
resistência assume formas tão diferentes quanto a maciça reação direitista, no
Ocidente, do fascismo e do nacional-socialismo (que têm seu próprio caráter
revolucionário), o movimento de resistência do mundo livre contra o comunismo (que
pode, entretanto, unir-se ao comunismo contra o caráter revolucionário do fascismo e
do socialismo nacional) e a oposição de um “terceiro mundo” neutro (que não pode ser
claramente delineado, por ser ofuscado pelo movimento de libertação do colonialismo
ocidental).
IV
Consideramos, até então, o liberalismo como uma fase do movimento revolucionário;
devemos agora de nir o seu conteúdo. Podemos utilizar como guia a classi cação dos
quatro aspectos do liberalismo de Franz Schnabel em Deutsche Geschichte: os aspectos
políticos, econômicos, religiosos e cientí cos do liberalismo. Esta classi cação é
direcionada, principalmente, à forma alemã do liberalismo; mais alguns pontos
precisam ser enfatizados para serem aplicados a outras nações ocidentais.
O aspecto político do liberalismo é de nido pela oposição liberal a certos abusos, que
devem ser eliminados. O liberalismo está, acima de tudo, contra o antigo Estado policial;
isto é, contra a invasão do poder executivo pelos poderes judiciário e legislativo; na
política constitucional, os liberais exigem a separação de poderes. Em segundo lugar,
opõem-se à velha ordem social, qual seja, a posição privilegiada do clero e da nobreza.
Neste ponto, pode-se enxergar a fraqueza de uma posição política que está amarrada à
Neste ponto, pode-se enxergar a fraqueza de uma posição política que está amarrada à
situação; teremos mais a dizer sobre isto depois. Em tempo, quando a crescente classe
de trabalhadores torna-se politicamente capaz de dirigir, o ataque aos privilégios in ige
contra a própria burguesia liberal. No curso do movimento revolucionário, o ataque não
pode terminar até que a sociedade se torne igualitária. E, nalmente, o liberalismo se
volta contra os laços entre igreja (não importa qual) e Estado; o movimento se torna
anticlerical.
Uma terceira frente é a religiosa. Ela não deve ser confundida com a política anticlerical,
cujo objetivo é a separação entre a igreja e o Estado. Além desta exigência
constitucional, o liberalismo rejeita a revelação e o dogma como fontes da verdade;
descarta a substância espiritual e torna-se secularista e ideológica.
A posição científica do liberalismo nem sempre pode ser separada de sua posição
religiosa. Sua essência é a suposição da autonomia da razão humana imanente como
fonte de conhecimento. Liberais falam de livre pesquisa no sentido de libertação das
“autoridades”, isto é, não apenas da revelação e do dogmatismo, mas também da
loso a clássica, cuja rejeição converte-se em questão de honra, posta sua associação
medieval com o escolasticismo.
V
Em todos estes quatro aspectos o liberalismo enfrentou di culdades. A batalha
programática, até certo ponto, sempre pôde ser travada com sucesso, apenas para cair
em uma nova di culdade, ainda mais séria que a superada. Devemos agora olhar mais
de perto para o fenômeno do liberalismo sendo ultrapassado e tornando-se obsoleto.
VI
Permita-me resumir o resultado destas observações. Como uma fase do movimento
revolucionário, o liberalismo deixou um sedimento na sociedade ocidental
contemporânea. Parte deste sedimento é a tendência à separação entre Igreja e Estado,
que se originou nos séculos XVI e XVII, antes do período liberal no sentido mais estrito.
Embora nem sempre tenha sido necessária a separação formal entre igreja e Estado,
como ocorreu nos Estados Unidos, o trauma das guerras religiosas exigiu a resolução de
que, sob nenhuma circunstância, con itos organizacionais ou dogmáticos entre igrejas
voltariam a ser permitidos e alcançariam tamanha importância política em casos
públicos, dividindo a sociedade em partidos numa guerra civil.
Implícita nesta resolução está uma posição de tolerância, posto que o surto de
hostilidades só poderia ser evitado se uma sociedade religiosamente pluralista for
aceita. Implementou-se uma política positiva de liberdade religiosa e liberdade de
consciência para todos, limitada apenas pelos costumes da sociedade e pelo direito
penal. Uma seita de Adamitas, por exemplo, conhecida pelo consenso de que a verdade
nua e crua sobre Deus é melhor representada quando se anda nu pela rua, di cilmente
será tolerada. O caso não é ctício – deu a Roger Williams um grande interesse em seu
religiosamente liberal Rhode Island. A poligamia, igualmente, di cilmente será permitida
– os mórmons tiveram de desistir da poligamia quando Utah foi aceito nos Estados
Unidos. Dentro dos limites indicados, a tolerância religiosa estava autorizada a reinar; e
onde ela ainda está em dúvida, está autorizada a se estabelecer.
Outra parte do sedimento deixado pelo liberalismo é uma certa resistência – ativada
lenta mas decididamente em casos concretos – àqueles fenômenos sociais que foram os
objetos especí cos do ataque liberal no seu tempo de luta, especialmente tendências
inclinadas a uma constituição ditatorial e tentativas de implementar socialmente uma
autoridade espiritual organizada.
Finalmente, podemos mencionar mais dois fenômenos, os quais não podem ser
chamados de parte do sedimento deixado pelo liberalismo, pois apontam, ao contrário,
para a transformação do liberalismo pressionada por eventos históricos; no entanto,
estão hoje tão profundamente enraizados no liberalismo, que pertencem à forma que
ele assumiu na sociedade contemporânea. O primeiro é a absorção de demandas éticas
e sociais no liberalismo clássico. Foi o que produziu este amálgama que conhecemos
por vários nomes – New Deal , Welfare State, Soziole Marktwirtschaft, etc. O segundo
fenômeno é que o liberalismo está se enchendo de substância cristã. Devemos ter
cuidado para não sustentar que a maneira de recapturar a substância cristã é sempre a
mais afortunada e a que promete sucesso duradouro. No entanto, o fenômeno é tão
opulento que, no período após a Segunda Guerra Mundial, os partidos próximos das
igrejas podiam se tornar apoiadores da política liberal em três das principais nações
continentais – Alemanha, França e Itália.
Notas:
[1] O termo “pink” é comumente utilizado na língua inglesa para se referir a pessoas com
tendências esquerdistas ou associado a homossexuais. (N. do T.).
[4] Summum bonum (do latim, “Bem maior” ou “Sumo bem”), expressão introduzida na
loso a por Cícero, correspondente à ideia do Bem na loso a grega antiga (e.g. Platão
em “A República”; Aristóteles em “A Ética a Eudemo”). (N. do T.).
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