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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE DIREITO

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

NA HISTÓRIA E NA DOUTRINA JURÍDICA

por

ALEX FERREIRA MAGALHÃES

Rio de Janeiro, Março de 1999


II

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Faculdade de Direito

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

NA HISTÓRIA E NA DOUTRINA JURÍDICA

por

ALEX FERREIRA MAGALHÃES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

como requisito para a obtenção do título de Mestre

Orientador:

Prof. Dr. IVAIR COELHO ITAGIBA LISBOA

Rio de Janeiro, Março de 1999


III

ALEX FERREIRA MAGALHÃES

A Função Social da Propriedade

na História e na Doutrina Jurídica

Dissertação submetida ao Curso de Mestrado do


Programa de Pós-Graduação em Direito (Área de
Concentração: Direito da Cidade), da Faculdade de
Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FD - UERJ), como requisito parcial necessário a
obtenção do título de Mestre em Direito.

Aprovada em 19/05/1999 (com distinção e louvor, e recomendação de publicação)

BANCA EXAMINADORA

________________________________
Prof. Dr. Ivair Coelho Itagiba Lisboa – ORIENTADOR
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

__________________________________
Profª. Livre Docente Heloísa Helena Gomes Barboza
Faculdade de Direito – FD
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

__________________________________
Profª. Drª. Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca
Faculdade Nacional de Direito – FND
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
IV

À minha filha Clara


V

AGRADECIMENTOS

Elaborar uma dissertação de mestrado é uma tarefa que pode ser comparada à

travessia de um oceano. É exatamente essa a impressão que guardo, ao cabo de três anos de

intenso esforço. Em meio à elaboração dos capítulos e seções da presente dissertação, tive a

eterna sensação de que por mais que se trabalhasse sempre havia muito a remar até chegar a

um ‘porto seguro’.

Realizada essa tarefa e vivida essa experiência, passam a me fazer mais sentido

as páginas que ora escrevo no intuito de expressar meu reconhecimento e gratidão àqueles

que contribuíram para a verdadeira obra que se realizou, e que se realiza a cada trabalho

desta natureza. A princípio, quando descomprometidamente lia as páginas de

agradecimentos das dissertações de colegas, um sem número delas me soava como um

previsível e fútil formalismo, como uma oca solenidade a que muitos não gostam de se

furtar. No entanto, a vivência dessa experiência fez-me sentir uma gratuita (no bom sentido

da palavra) e emocionada disposição em distinguir, no meio de tantos, aqueles que mais

especialmente contribuíram para a empreitada que se finaliza, evitando que a ‘travessia do

oceano’ se convertesse em naufrágio.

Primeiramente, hei de distinguir os Professores Ivair Itagiba e Dílson Motta,

aqueles a quem considero e chamo por ‘mestres’, pois é exatamente o que tem sido para

mim neste grande, bonito e frutífero reencontro que tive - e estou tendo - com a

universidade. Com o apoio de Dílson deu-se aquela fase romântica, que em todos nós deixa

muitas saudades, das primeiras descobertas, conquistas e resultados. Com Ivair se dá um

momento de maturação, de aprimoramento e de exploração dos novos horizontes dantes

abertos. A ambos, o meu mais fraternal agradecimento.

Em segundo lugar, gostaria de agradecer a outros professores, que ao longo do

curso de mestrado pude conhecer melhor, conviver e admirar.


VI

Ao professor Jorge Coelho, um muito especial obrigado pelas aulas, pelo apoio

tanto no plano intelectual como no pessoal. Com seu olhar arguto, percebeu o quanto a

vida acadêmica era importante para mim, e com isso não só me fez adquirir mais

autoconsciência como me estimulou imensamente.

Ao Prof. Ricardo Lira, sempre carinhoso, amante do debate, a minha imensa

gratidão, principalmente pelo testemunho que nos dá acerca da necessidade de se aliar um

profundo conhecimento técnico a um espírito democrático.

Ao Prof. Vicente Barreto, pelo incentivo à produção científica, pelas

oportunidades que abriu e por seu curso de Teoria da Justiça, onde tive o ensejo de tomar

contato com a magnífica obra de Kant.

À Profª Maria Celina Bodin, por seu curso de Direito Civil Constitucional, onde

demonstrou grande seriedade, bem como respeito aos alunos, tanto no plano intelectual

como no pessoal, e onde tive a oportunidade de começar a desenvolver mais diretamente o

tema da presente dissertação.

À Profª Heloísa Helena, por sua atenção, dentro e fora de sala, por sua simpatia,

pelas fundamentais sugestões e críticas, que estão sendo e serão aproveitadas.

Ao caríssimo Prof. Miguel Baldez, por sua generosa leitura e crítica de meus

textos, por suas valiosas indicações bibliográficas e, acima de tudo, por sua honestidade,

coerência e engajamento.

Além dos diletos mestres, não poderia deixar de mencionar os diversos

membros do corpo administrativo da Faculdade de Direito, que de forma silenciosa e

permanente nos deram providenciais ajudas. Destaco aqui os bibliotecários de toda a

universidade, a quem muito recorri, e em especial à Fátima da Conceição Nascimento

Souza e à equipe do SERCIS-C. Um muito obrigado à Valéria Sodré Machado, do setor de

informática, e aos bravos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação, especialmente

Sônia, Patrícia e Terezinha. Pelos inúmeros “galhos quebrados”, pela grande dose de
VII

paciência, por sua acessibilidade, o meu sincero e justo agradecimento, vocês que

forneceram meios sem os quais o percurso até seus últimos termos seria muito mais penoso.

Agora, os amigos! Aos sempre presentes e companheiros Patrícia Teixeira e

Sérgio Scherman, a quem muito estimo e com quem mais uma vez pude contar - esperando

que possa retribuir à altura. À também eterna amiga Eliane Dantas Rocha e à prima e amiga

Juliana Ferreira Veiga pelo apoio editorial. Aos amigos Francisco Telles, Henrique Pedrosa

e Paulo Jorge - o “PJ”, pela providencial “cobertura” em compromissos profissionais, a qual

viabilizou o indispensável fator tempo nos momentos de fechamento desse trabalho. Nesse

mesmo sentido, agradeço também ao Luís Fernando (da UERJ) e ao Danilo Doneda, que

me socorreram com grande presteza, como somente os amigos são capazes de fazer. Ao

meu caro Mauricio Motta e à prezada Cíntia Érica, por todas as “forças” que já deram de

maneira geral. Aos companheiros de turma, de quem o carinho trocado me foi e será

sempre fundamental, principalmente Luciane Moás, Mauro Abdon (grande vascaíno),

Magna, Marcos e César. Pelo grande companheirismo e pelas frutíferas tertúlias, agradeço

aos colegas Gleide Carolina, Sérgio Castilho e Francisca. Um obrigado especial à Maria da

Ajuda e ao Luís Fernando (da UNIG), pelo empréstimo de livros, bem como ao Pedro

Roberto, pelo empréstimo de material em disquetes e por seu apoio de forma geral,

enquanto amigo. Agradeço ao Fábio, por sua atenciosa leitura e crítica do texto, e por sua

enorme simpatia. Agradeço, ainda, à Nívea Maria Segreto, que me auxiliou com a revisão

ortográfica, o que valeu também como uma revisão de língua portuguesa, bem como à Elza

Rita, que me fez esta preciosa indicação. Meu muito obrigado, por fim, a todos aqueles que

anonimamente ajudaram, rezaram, torceram, e a todos aqueles que por algum lapso de

memória não foram aqui expressamente lembrados.

Agradeço à minha irmã Cristiane e a meu pai Raimundo, que, sendo pessoas

importantes para mim, me estimulam mesmo sem talvez o saberem.

Agradeço com muito amor - e sem controlar a emoção - à Wanderléia, por tudo

que tem sido para mim, porque tudo que faz tem em vista preservar e fazer crescer o
VIII

sentimento que existe entre nós. Por isso, ela é uma salvaguarda de nossa família e uma das

grandes responsáveis pelo resultado que ora apresento.

Por fim, agradeço à minha mãe, Emília, para quem toda palavra é pouca, todo

carinho é pouco. Suas contribuições foram tantas que dizê-las é perigar esquecer algumas e

não reconhecer outras que somente a mãe pode o saber. Obrigado mãe, não por hoje e não

por este trabalho, mas por sempre e por tudo...


IX

“A vida é uso, e não produção”

Aristóteles (A política, sec. IV a.c.)

“Perguntei a um homem o que era o direito.

Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade.

Esse homem chamava-se Galli Mathias.

Comi-o.”

Oswald de Andrade (Manifesto Antropófago, 1928)

“O problema social é complexo;

mas tal complexidade tem de se cristalizar em novas estruturas,

que serão, necessariamente, jurídicas,

donde ter de ser, inevitavelmente, o ‘problema de um novo direito’.”

Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1946, 1963)

“Vivi por muito tempo no Peru:

lá as pessoas tinham um sonho parecido em relação às grandes cidades.

Cidade significa trabalho, escola, saúde,

em uma palavra, cidade significa poder viver.”

Pe. Franziskus Gmür, CS (palestra, 1998)


X

RESUMO

A presente dissertação procura desenvolver uma reflexão de caráter

interdisciplinar a respeito da propriedade do solo, analisando algumas concepções e práticas

a respeito desta, e abordando as respectivas expressões jurídicas, isto é, como tais

concepções e práticas se configuram enquanto direitos sobre o solo. A análise adota como

cenário a cidade, tomada como uma instituição social, e parte daquelas concepções-práticas

que vêem na propriedade um bem, ou valor, de uso e consumo, chegando às outras que

enxergam nela uma mercadoria, ou um bem de troca. No bojo do debate entre estas duas

representações polarizadas, aborda-se a noção de função social da propriedade, uma noção

produto do direito e da sociedade industrial moderna, mas que certamente se vale de

elaborações pré-modernas, onde se primava por conceber a propriedade enquanto bem de

uso.

Especial atenção se confere ao estudo do contexto específico da sociedade

brasileira, das vicissitudes de sua formação social, e do tipo de propriedade que aí

historicamente se consolida, sempre se valendo da contextualização desse processo na

dinâmica das relações campo-cidade.

Ao nível doutrinário, procura-se expor como se concebe modernamente a

vinculação da propriedade fundiária, então predominantemente privada, a finalidades de

caráter social. Isto implica em submeter o conceito de propriedade a uma série de

transformações, o que por sua vez nos leva a cogitar das conseqüências desta

transformação no plano de outras instituições e conceitos jurídicos, bem como da cultura

jurídica de maneira geral. A exposição doutrinária a respeito da função social da

propriedade
XI

privilegia o entendimento desta no plano das relações jurídicas propriamente

privadas, portadoras de especial interesse para o autor, e no qual se identificam diversos

impasses à sua perfeita aplicabilidade e efetividade. Procura-se, assim, discutir as suas

relações com o ordenamento jurídico de natureza civil.

De maneira geral, a dissertação é motivada pelo problema do acesso universal à

terra, fator entendido como condição sine qua non a reparação das adversas condições de

subsistência de amplas camadas sociais brasileiras, bem como a consecução dos objetivos

democráticos e emancipatórios contidos na sua Constituição Federal atualmente em vigor.


XII

ABSTRACT

This dissertation aims to develop some considerations, of interdisciplinary bias,

about the property of land, whilst analyzing some conceptions and practices concerning this

property and approaching the respective juridical expressions, or how those conceptions

and practices represent the legal rights on the land. This analysis uses as its scenery the city,

taken as a social institution, going from those practical conceptions that see the property as

a good for use and consumption, to those that regard it as a merchandise. In the heart of

this debate between this two opposing representations, we approach this notion of the

property’s social function. It is the outcome of law and our modern industrial society, even

though it makes use of pre-modern developments, where the conception of property as a

good intended for use is dominant.

Special attention is given to the study of the specific context of Brazilian

society, the vicissitudes of its’ social making, and the kind of society historically

consolidates itself there, always evoking the contextualization of this process in the dynamic

of the relations between city and a country.

In a doctrinaire level we try to show how we modernly conceive the link

between the tenure, predominantly private, with the purposes of its social function. This

entangles the submission of the concept of property to a lot of changes, what makes us

consider the consequences of this change in other institutions and juridical concepts, and

also the juridical culture in general. The doctrinaire exposition concerning the social

function of property gives more importance to the understanding of this one in the level of

the juridical relations essentially private, which have a great interest to the author, and in

which we see a lot of obstacles to its perfect applicability and effectiveness. Thus, we will

debate its relation with the civil law.

In general, this dissertation is motivated by the problem of the universal access

to the land, which is taken as a condition sine qua non for the compensation of the poor
XIII

living conditions for most part of the social strata in Brazil, and also the accomplishment of

the purposes of democracy and emancipation expressed in its federal constitution alive

nowadays.
XIV

SUMÁRIO

Introdução p. 01
Capítulo 1 Da categoria ‘Função’ no discurso científico p. 07
Capítulo 2 A propriedade no processo de diferenciação campo-cidade p. 15

2.1 A concepção ou ideologia política de cidade e seus fundamentos p. 15

2.2 As contradições no processo de urbanização p. 21

2.3 O surgimento de um ‘sentido’ de propriedade entre os homens p. 39

2.4 A propriedade na nova ordem urbana p. 51

2.4.1 A emergência do ‘mercado’ p. 51

2.4.2 Megalopolis: a nova face do complexo urbano p. 58

2.4.3 O significado econômico da propriedade na cidade

capitalista p. 64
Capítulo 3 A formação social brasileira e a propriedade p. 79

3.1 A cidade periférica p. 79

3.2 Os alicerces rurais da cidade brasileira p. 83

3.3 O marco jurídico-fundiário de origem: o sistema sesmarial p. 99

3.4 Decadência rural e pequena propriedade p. 108

3.5 Lei de Terras: a instituição da propriedade privada p. 116

3.5.1 A constituição da cidade e da propriedade enquanto

mercadorias p. 116

3.5.2 A relação terra-trabalho p. 127

3.6 O Brasil ‘moderno’ política, econômica e juridicamente p. 135

3.7 O sentido social de propriedade na ‘cidade capitalista’ p. 144

3.7.1 Positivismo e função social da propriedade p. 144

3.7.2 Os ‘novos tempos’ da função social da propriedade p. 147


Capítulo 4 Aspectos doutrinários da função social da propriedade p. 157

4.1 A constituição do conceito p. 157

4.2 A natureza jurídica da função social da propriedade p. 164


XV

4.3 Efeitos da função social sobre o direito de propriedade p. 172

4.4 Os conceitos estruturalista e funcionalista de propriedade p. 187

4.5 Distinções entre a função social e outras limitações à propriedade p. 193

4.6 Da Desapropriação e de sua relação com a função social da

propriedade p. 199

4.7 Algumas aplicações específicas da função social da propriedade p. 208

4.7.1 A função social e as locações p. 208

4.7.2 A posse e a função social da propriedade p. 211

4.8 A Função Social da Propriedade nos Tribunais p. 217


Conclusão p. 231
Bibliografia p. 236
1

INTRODUÇÃO

O presente trabalho se deve, em última análise, à nossa experiência

profissional com conflitos fundiários, onde atuamos, enquanto advogados, na defesa

jurídica de comunidades faveladas do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense, as quais

em geral possuem a demanda de defesa contra processos, mais ou menos legais, de

expulsão, buscando, em última análise, a regularização jurídica das frações de terra por

elas ocupadas, garantindo-se definitivamente contra o eterno perigo da remoção.

Tal experiência, obrigando à construção de argumentos jurídicos em defesa

dos interesses dos clientes, levou-nos a um esforço, teórico e prático, em fundamentar os

respectivos pedidos com base na função social da propriedade. Deparamos, então, com

a extrema dificuldade em identificar-se referências doutrinárias e jurisprudenciais que

esclarecessem com objetividade a respeito da aplicação da função social, prevista no

direito positivo, às situações e conflitos concretamente vividos. Daí as razões tanto para

a escolha do tema como para o privilégio conferido ao estudo dos efeitos do dispositivo

jurídico da função social no campo do direito civil, isto é, das relações classificadas

como de direito privado.

Este trabalho, porém, não é um estudo de caso, o que demandaria o tempo e

os recursos de pesquisa empírica de que, infelizmente, não dispúnhamos. De outro lado,

interessava-nos aprofundar não o conhecimento dos casos em si, o que, modestamente,

julgávamos possuir, mas sim adquirir maior domínio teórico da questão, percorrendo,

cotejando e debatendo as pesquisas e obras científicas realizadas por outrem, e, quem

sabe, destacar-lhes os pontos relevantes e as lacunas em face às questões e problemas

que trazíamos conosco. Assim, surge o presente trabalho de uma pesquisa bibliográfica a

respeito da função social da propriedade, onde se buscou sumariar os elementos


2

importantes segundo o recorte desejado.

A ordem de apresentação do trabalho, no entanto, não expressa,

rigidamente, a ordem das indagações. No caso desta, partiu-se do aspecto doutrinário ao

histórico, enquanto, no caso da primeira, iniciou-se pelo aspecto histórico, para por fim

chegar ao especificamente doutrinário. Claro é, para nós, que um aspecto não pode nem

deve estar absolutamente separado do outro, numa compartimentalização do

conhecimento que retiraria qualquer validade ao saber assim constituído. Até por isso,

procurou-se, ao longo da dissertação, entremear criteriosamente os dois aspectos,

pondo-os em íntimo diálogo. Aliás, acreditamos ser esse um aspecto que realizamos com

grande dose de naturalidade, dado que o mesmo faz parte de nossas características de

trabalho e convicções científicas. Não obstante, nada disso significa diluir um momento

no outro. Conquanto guardem mútuas dependências e compromissos, os aspectos

histórico e doutrinário possuem suas especificidades que valem a pena ser exploradas e

ressaltadas, no intuito de um saber mais completo e que não seja unilateral.

Feita, dessa forma, a pesquisa doutrinária a respeito do assunto, iniciou-se,

em seguida, a pesquisa de caráter histórico, termo de que aqui nos valemos,

primeiramente, alheio ao sentido evolucionista no qual é empregado em diversas obras

que abordam a evolução histórica de determinados institutos jurídicos. Em segundo

lugar, tratamos a história como o plano das relações sociais, como aquilo que é capaz de

definir a totalidade da experiência humana e social e, nesse sentido, a única ciência

reconhecida por Marx, entendendo todas as restantes como decorrência daquela, que

seria para elas a matriz. O aspecto histórico é, para nós, aquele onde se enseja a visão

interdisciplinar do jurídico, e onde, de fato, recorremos ao apoio das mais variadas

ciências - inclusive as ciências naturais - para de tratar de um problema como a

propriedade e as suas funções sociais, hipotéticas ou reais.


3

A concepção formalista tradicional de ciência jurídica se contenta em deter-

se nos aspectos doutrinários do direito, preconizando esse como o aspecto bastante de

tal ciência, e como o único capaz de distingui-la de outras. De nossa parte, recusamos tal

perspectiva. Não nos parece suficiente falar do direito abstratamente, abordando aquilo

que formalmente define-se como relações jurídicas olvidando-se que estas são,

simultaneamente, relações sociais. O conhecimento doutrinário, em nossa perspectiva,

representa um dos saberes possíveis e necessários a respeito do direito, mas não é todo o

saber ou a ciência do direito. Uma ciência que a isto se reduza, segundo alguns autores 1,

sequer pode denominar-se ciência. Independente desta tese, um saber exclusivamente

doutrinário a respeito do direito configuraria um saber abstrato, que dificilmente se

libertaria de reduções idealistas ou dogmatizantes, tornando-se não só menos exato

como menos útil para a sociedade. Assim, impõe-se historicizar o saber jurídico,

contextualizá-lo, dialetizá-lo, inserir-lhe na essência aqueles dados que para Kelsen2

constituíam algo externo à ciência jurídica - de maneira talvez análoga a como hoje

discutimos a inserção da função social na essência do conceito de propriedade.

Justificado o aspecto histórico que o trabalho contempla, cabe esclarecer que

este se materializa na referência que fazemos à cidade e ao seu correlato - no caso, o

campo. Fazemos esta escolha seguindo a conveniência ditada não só por ser o Direito

da Cidade a área de concentração do curso de mestrado onde nos inserimos, como

também pelos fatos que justificam a própria existência desse curso. Conforme pudemos

perceber com mais clareza na pesquisa realizada, e que buscamos traduzir ao longo do

trabalho, a cidade significa o locus de todos os problemas que afligem o ser humano

tomado como ser social, bem como a fonte das questões de grande envergadura às quais

1
A exemplo de EHRLICH, Eugen. Fundamentos de Sociologia do Direito. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1986. p. 373-388. Vide ainda MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A
ciência do direito; conceito, objeto e método. Rio de Janeiro, Forense, 1982. p. 98-157.
2
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984. p. 109-162.
4

se dedica a ciência. Ao identificarmos determinado perfil de cidade estamos,

concomitantemente, identificando uma determinada espécie de sociedade e de

civilização, servindo aquela para definir estas. Por sua abrangência, por seu caráter de

síntese, por sua indiscutível relevância social e teórica, escolhemos a cidade como o

cenário no qual podemos buscar o significado e o sentido dos fenômenos jurídicos - na

verdade, sempre sociojurídicos - por nós escolhidos.

Falar da função social da propriedade é, de certa forma, falar da própria

propriedade, já que aquela representa uma determinada maneira de conceber a esta.

Assim, em diversos momentos da dissertação, tratamos da concepção dominante de

propriedade, na qual se pode perceber uma maior ou menor vinculação a objetivos e

interesses não do dominus particular, mas sim da coletividade. Julgamos ter demonstrado

que não obstante o conceito jurídico, ou a forma jurídica, da função social da

propriedade ser algo pertencente ao mundo invadido e dominado pelo capitalismo

industrial, a vinculação da propriedade a fins ou funções sociais é, em verdade, muito

anterior a este. Dada a configuração socioeconômica pré-capitalista, julgamos que nesta,

objetivamente, existiram mais condições do que agora para conceber-se e efetivar-se a

propriedade em bases sociais. Outro não é o testemunho do processo de formação e

modernização da propriedade no Brasil, por nós investigado e apresentado no Capítulo

3, bem como a ‘espécie’ que a positivação da função social causa à grande parte da

doutrina moderna, a qual vive em meio a recorrentes perplexidades, hesitações e

reticências em torno do assunto, como também se abordará.

Enfim, este trabalho não se propõe a responder questões, a resolvê-las

juridicamente, a distinguir a melhor doutrina a respeito do assunto. Não se trata de um

trabalho de vocação prática mas sim teórica, como acreditamos ser mais próprio à

produção científica em seu sentido estrito. Tal se justifica até porque os problemas
5

práticos levantados contemporaneamente a respeito da função social não foram

resolvidos sequer pelos mais festejados doutrinadores, bem como pela própria

jurisprudência. De outro lado, apraz-nos mais levantar, identificar e suscitar questões do

que estritamente buscar respondê-las. Julgamos que desta forma também contribuímos, e

muito, para a causa da ciência e do conhecimento, até porque observamos ser um

recorrente fenômeno de nossos dias a produção de ‘soluções’ calcadas numa visão

míope dos problemas, não se colocando, pois, a altura dos mesmos. Queremos, antes de

tudo, cumprir esta preliminar condição, qual seja, a de nos colocarmos a altura dos

problemas que desejamos enfrentar. E neste enfrentamento, acrescentamos, temos claro

que não se contém o mesmo no plano científico, mas insere-se claramente no terreno

propriamente político, no sentido mais lato da palavra.

Tais considerações não significam, de nossa parte, um ânimo diletante de

suscitar questões sem qualquer compromisso com seu equacionamento. Ao contrário,

nos consideramos firmemente engajados em tal tarefa. Nesse sentido, o trabalho arrisca

algumas teses, firma, aqui e acolá, algumas posições, e fornece, cautelosamente, pistas

ao trabalho de natureza prática. Vez que sua origem última está vinculada a indagações

formuladas não pela teoria, mas pela história - como acreditamos que deva ser -, a esta

história este trabalho está disposto a voltar. Imaginamos que isto seja feito naquele

espírito tão bem definido por Henri Lefebvre. Para ele, o arquiteto, o urbanista, o

sociólogo, o economista, o filósofo, o político, o jurista - em poucas palavras, os

intelectuais da cidade - não têm, definitivamente, poderes de taumaturgo, não são

capazes de tirar o coelho da cartola, extraindo do nada e por decreto novas relações e

formas sociais, novas civilizações. Isto faz parte dos mitos legados pelo período

imediatamente posterior ao Iluminismo e ao cientificismo novecentista - que parecem

ainda não ter se extinto. Diferente disso, esses intelectuais...


6

“em certas condições favoráveis, auxiliam certas tendências a se formular,


[...] podem limpar o caminho, [...] propor, tentar, preparar formas, [...]
inventariar a experiência obtida, tirar lições dos fracassos, ajudar o parto do
possível através de uma maiêutica nutrida de ciência”.3

3
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991, p. 107-108.
7

CAPÍTULO 1

DA CATEGORIA ‘FUNÇÃO’ NO DISCURSO CIENTÍFICO

A primeira acepção do termo função foi por nós localizada em Platão, onde

tem a conotação de operação, do grego érgon, que significa ‘trabalho’ ou ‘obra’. Já ao

tempo de Aristóteles era familiar à ciência existente o conceito de dependência

funcional, o qual se fundava na percepção de que na natureza há relações tais de

dependência que a mudança de uma magnitude é condicionada pela mudança de outra,

obedecendo todas as relações de dependência a uma certa regularidade 4 5. Sem tal noção,

teria sido impossível aos homens da Antigüidade esboçar qualquer ciência do

movimento, no mais amplo sentido da palavra. Os escolásticos do século XIV não

ignoraram a possibilidade de descrever fenômenos naturais e sociais mediante este

preliminar conceito.

Mas há, ainda, outra acepção do termo presente na obra aristotélica. Decorre

ela de uma outra categoria ou idéia fundamental presente em toda a filosofia e cultura

gregas de então: a idéia de natureza, que abrangia a ordem social e às suas

determinações absolutas, supra ou meta-sociais. Trata-se de um momento, pois, onde o

conhecimento não tinha operado a distinção, hoje conhecida, entre natureza e sociedade,

cunhando uma categoria própria para designar esta última, de maneira inconfundível em

relação à primeira. Segundo Aristóteles, “a natureza nada faz em vão e sem um

objetivo”6; tudo retorna à natureza, havendo, pois, uma ordem natural das coisas, que

corresponde ao cumprimento, por qualquer coisa ou ser existente, dos objetivos ou fins -

o telos - para os quais existe, isto é, de sua função. Há uma cognição do universo que
4
Assim, por exemplo, a uma maior força corresponde um maior efeito, e cessada essa mesma força os
seus efeitos também cessarão.
5
FERRATER MORA, José. Función. In: ___ . Diccionario de filosofia. Madrid: Alianza Editorial,
1988. v. 2, p. 1297.
6
ARISTÓTELES. A política. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s.d. Tradução de Nestor Silveira Chaves.
p. 19
8

interpreta e valoriza a tudo com base no seu objetivo, ou fim, e na correspondente

função. Logo, no corpo ou na totalidade representada pela natureza há um fim e uma

função para tudo. Nisto consiste a teleologia aristotélica, que se interroga a todo

momento sobre o telos de cada fenômeno, de cada parte da natureza. Nas palavras do

próprio autor:

“Todas as coisas se definem pelas suas funções; e desde o momento em

que elas percam suas características, já não se poderá dizer que sejam as

mesmas; apenas ficam compreendidas sob a mesma denominação”. 7

Como se observa, Aristóteles concebe a possibilidade de as coisas, em sua

existência, não realizarem o fim ou não desempenharem as funções que justificam sua

existência. Trata isto, no entanto, como uma discrepância, como algo antinatural, pois a

forma, ou aparência, não corresponde ao conteúdo, ou ao ser, ou à essência, levando

determinado nome sem na verdade o merecer. Trata-se de um dado fundamental da

cultura grega antiga o entendimento de que a forma nada diz e nada garante a respeito

do conteúdo, sendo, pois, imbuída de uma racionalidade que Max Weber classificaria

como material.

No entanto, quer os antigos quer os medievos não conheceram a noção de

função em sua acepção moderna, e mais estrita, que é a de equação funcional, onde

função aparece como uma constante que expressa a relação de duas quantidades

variáveis.8 Esta acepção emerge com Descartes em 1637, no domínio da Geometria

Analítica, cabendo posteriormente a Leibniz a primazia em utilizá-la no campo da Lógica

e da Matemática.

No domínio particular das ciências sociais, onde consta que foi introduzido

por Herbert Spencer, o conceito de função penetrará decisivamente a partir do

7
op. cit. p. 19.
8
FERRATER MORA, José. op. cit. p. 1298-1299.
9

desenvolvimento da tese da analogia orgânica ou organicismo (ou, ainda, biologismo)

onde se entende que, ao organismo biológico natural e ao organismo moral da vida

social é aplicável a mesma definição de vida, estando as transformações de ambos

reguladas de acordo com os mesmos princípios metafísicos de ordem. 9 10


A vida

orgânica, em suas duas expressões, encontra-se sob uma lei - um ‘ter que’, um ‘dever

ser’ - inconsciente e não livre, porém claro e conveniente para a razão. Mesmo

reconhecendo as importantes diferenças entre um e outro, os adeptos dessa tese (que não

foram poucos, nem insignificantes11) afirmam que a sociedade não é mais que a

“continuação da natureza e também o mais elevado e desenvolvido de todos os

organismos”12; em suma, um superorganismo. A representação da sociedade como

organismo social comparece, também, com várias nuanças, desde a Filosofia grega da

Antigüidade até os pensadores democráticos do século XVIII, fazendo-se notar também

no pensamento medieval.

Se tomada como premissa a tese da analogia orgânica, daí decorrerá

logicamente que em qualquer sociedade onde haja aumento em tamanho haverá

aumento, também, em complexidade e, como conseqüência também necessária, surgirão

processos de diferenciação estrutural e diferenciação funcional. Vale dizer, os membros

do corpo social comporão estruturas específicas que realizarão trabalhos diferenciados,

porém dependentes um do outro e coordenados ao alcance do mesmo e coletivo fim -

repare-se aqui que do organicismo passa-se facilmente à perspectiva teleológica já

aludida, estando um e outro bastante imbricados. Se seria simplificador supor, aqui, uma

mera continuidade da teleologia aristotélica, de outro lado, seria equivocado não ver
9
CASADO, Javier Pascual. Biologismo. In: DICIONÁRIO de Ciências Sociais. 2. ed. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1987. p. 124-125.
10
LOPÉZ, Francisco Sánchez. Organismo social. In: DICIONÁRIO ... cit.. p. 842-3.
11
Dentre os nomes mais citados na bibliografia consultada encontramos, dentre outros, Summer Maine,
F. Tönnies, Auguste Comte, E. Dürkheim, R. Redfield, Radcliffe-Brown, Tylor, Morgan, sem falar
naquele que é considerado o mais proeminente representante desta teoria: Herbert Spencer.
12
CASADO. op. cit. p. 125.
10

nenhuma relação entre ambas. Cada membro ou unidade (ou ainda indivíduo) de uma

sociedade não tem como existir fora do corpo, pois está ligado por uma relação

inextrincável, e, pertencendo ao corpo, possui nele um papel que somente este membro

pode realizar. Cada membro recebe, em contrapartida, os benefícios resultantes da

realização, pelos outros membros, de suas respectivas funções.

Segundo verificamos, o organicismo contribui para a crítica do

individualismo na análise social, já que em tal análise vale-se aquele da idéia fundante de

sistema, reconhecendo, pois, que a vida em conjunto não se reduz à vida de cada

unidade individual ou ao somatório destas, possuindo, ao contrário, uma especificidade

face ao indivíduo, embora não seja inteiramente independente deste. Assim, uma vez que

a noção de função decorre da perspectiva organicista, e que esta noção embasará a

elaboração da categoria jurídica da função social da propriedade, conclui-se que esta,

como veremos, fatalmente apontará na direção de uma crítica à concepção individualista

de propriedade.

O uso dos termos ‘estrutura’ e ‘função’ em ciências sociais, portanto, indica,

segundo o antropólogo funcionalista Radcliffe-Brown, algum nível de aceitação da tese

da analogia orgânica, embora, acrescente Roberto Da Matta, não implique

necessariamente em estar-se trabalhando com o método de análise estrutural-funcional.13

A contrariu sensu, em qualquer saber de natureza organicista ou mesmo teleológica, a

idéia de função desempenhará um papel determinante, especialmente quando se tem em

conta que certas realidades podem ser compreendidas primeiramente em virtude de suas

funções, que são, às vezes, equiparadas aos fins em vista dos quais operam.14

Na obra de Émile Durkheim e dos sociólogos/antropólogos que o sucedem,

temos um sentido do termo do qual nos ocupamos que mais se aproxima do sentido que

13
EISTER, Allan W. Função. In: DICIONÁRIO ... cit. p. 500-501.
14
Conforme FERRATER MORA. op. cit. p. 1300.
11

o mesmo adquirirá na ciência jurídica, sendo útil assim na reconstituição de seu marco de

origem. Tal autor fala da função sociológica quando “relaciona uma instituição social

com as necessidades do organismo social”. Implica esse conceito “num conjunto de

atividades e papéis exercidos por indivíduos ou grupos sociais, no sentido de atender

necessidades específicas”.15 A Antropologia, que em muito se vale da obra de Durkheim

e do conceito de função, vai através dele estudar a contribuição que uma atividade

parcial dá à atividade total da qual faz parte, em outras palavras, a relação entre um fato

ou comportamento e o sistema ao qual se integra. Nessa tradição, portanto, o conceito

em tela está atrelado ao significado social de determinado fato ou instituição, bem

como ao seu lugar ou papel em um determinado sistema social.16

Atualmente, a teoria funcional utiliza a analogia orgânica, mas com um

caráter simplesmente instrumental, sem tomá-la como fundamento. Acompanha, desta

forma, o entendimento predominante no atual estágio histórico e científico, onde não

mais se concebe a realidade (o mundo, o universo) como uma espécie de organismo,

reconhecendo-se que o nível sociocultural da vida humana transcende o biológico. A

analogia orgânica representa aí não uma descrição ou definição precisa, mas sim uma

metáfora que surge da percepção de certas analogias, paralelismos ou similitudes entre as

duas instâncias em questão, sendo comuns muitos dos problemas que se oferecem às

suas respectivas ciências.17

O conceito de função, assim, molda-se no pensamento contemporâneo, cada

vez mais decisivamente como operação ou conjunto de operações que determinam o

que uma dada realidade é ou que permitem compreendê-la. Podemos sintetizar o

significado do conceito segundo as seguintes máximas: algo é, em virtude daquilo que

15
MACEDO, Silvio de. Função. In: ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977.
Organizada por Rubens Limongi França. v. 38, p. 482.
16
Conforme EISTER. op. cit. p. 500-501.
17
Conforme CASADO. op. cit. p. 125 e fulano. op. cit. p. 841.
12

realiza; algo define-se enquanto opera de uma dada forma. Ao nível do pensamento,

portanto, conforme a clara lição de Ferrater Mora 18, não há razão para concebermos a

essência ou substância dos fenômenos independentemente daquilo que realizam, vale

dizer, independentemente de suas funções, posto que estas são constitutivas daquela.

Temos, pois, aqui, uma concepção predominantemente dinâmica da

realidade, sem concessões a qualquer tipo de essencialismo a priori. Até o século XVIII,

na esteira dos pressupostos da filosofia dominante, de onde a obra de Immanuel Kant

emerge como a maior tradução, o papel da ciência era apenas classificatório e, portanto,

estático por definição, não sendo capaz de absorver o dinamismo embutido na noção de

função. Não está, dessa forma, plasmado pela aludida concepção de devir, isto é, de que

na realidade social nada é, tudo se torna, na medida do atendimento a determinados

requisitos. Não será outro o sentido da incorporação desse conceito no discurso

jurídico-legislativo, vez que a noção de função social da propriedade transmuda o direito

de propriedade da esfera estática do ser (sou proprietário), para a esfera dinâmica do

agir (ajo de tal forma para tornar-me proprietário). Aplicado ao direito de propriedade,

assim, o conceito leva a que o mesmo não mais se autojustifica, nem se justifica

exclusivamente com base em sua origem, mas seu fundamento é inseparável da

consideração de seu uso num contexto espaço-temporal definido.

No que diz respeito ao direito, afirma Bandeira de Mello o seguinte:

“Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas


finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto,
manejar os poderes requeridos para suprí-las. [...] É instituto que se traduz
na idéia indeclinável de atrelamento a um fim preestabelecido e que deve
ser atendido para benefício de um terceiro. É situação oposta à da
autonomia da vontade, [...] quando alguém busca, em proveito próprio, os
interesses que lhe apetecem, fazendo-o com plena liberdade, contanto que

18
op. cit. p. 1300-1301.
13

não viole alguma lei”. 19

Assim, o vocábulo função designa o exercício de um poder que se dispõe no

interesse de um terceiro, cumprindo determinada finalidade legalmente estabelecida. Os

poderes exercitáveis pelo encarregado de uma função são instrumentais ao alcance das

aludidas finalidades, sem os quais não poderia ele desincumbir-se de seu dever. Eles são

natural e originariamente sujeitos a tais finalidades e não à pessoa exercente do poder.

Há, pois, uma sujeição do poder, e não uma limitação ao mesmo, vez que estas não

seriam naturais, mas circunstanciais a ele - trata-se de uma distinção que consideramos

fundamental ao exato significado e implicações jurídicas da função social da propriedade,

e que será desenvolvido no respectivo capítulo. Na verdade, o que existe de fato não são

poderes, pura e simplesmente, mas sim deveres-poderes, manejados no interesse alheio.

Aquele que desempenha função, portanto, executa atividade onde o

elemento voluntarista não é componente, não tendo a disposição da coisa administrada

e nem agindo em vista de objetivos próprios, sendo, portanto, um gestor ou curador de

negócios alheios. Assim, classicamente, não se concebe juridicamente a cominação de

funções em matérias de Direito Privado, já que esse ramo do Direito é orientado pelo

princípio da autonomia da vontade, e terreno onde, em princípio, tudo é disponível,

transacionável. Nesse contexto, onde se separa rigidamente o Direito Privado do Direito

Público, somente ao Estado comina-se o exercício de funções, razão pela qual a

categoria em questão é conceituada, sobretudo pela doutrina de Direito Administrativo,

não fazendo parte das cogitações tradicionais dos civilistas.

Conforme veremos, no entanto, com o aparecimento da função social da

propriedade no direito positivado, transporta-se para o domínio da mais fundamental das

relações civis um conceito de Direito Público-Administrativo, o que fará com o que uma

19
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo:
Malheiros, 1996. p. 29 e 55.
14

série de princípios e regras próprios deste também forçosamente o sejam, sendo, assim,

fator de abrandamento da summa diviso entre os dois principais ramos do Direito

demarcada desde a matriz do Direito Romano.


15

CAPÍTULO 2

A PROPRIEDADE NO PROCESSO DE DIFERENCIAÇÃO CAMPO-CIDADE

2.1 A concepção ou ideologia ‘política’ de cidade e seus fundamentos

Nas cidades o ser humano não meramente ocupa um espaço, não apenas

mora nas cidades, mas nesse espaço cria-se um determinado ambiente sociocultural. Ao

contrário do que ocorreria na cultura provinciana e tradicional do campo, a cidade

edifica-se sobre o ideário da não submissão humana ao meio natural, às forças, às

contingências e aos fenômenos próprios da natureza, controlando-se e revertendo-se a

dominação exercida por esses em relação a organização social e ao comportamento

humano de maneira geral. O homem concreto das urbes “quer determinar-se de alguma

forma e determinar-se significa, também, determinar seu ambiente de moradia”.20 O

tecido urbano é o suporte de um modus vivendi específico, que pode ser designado por

sociedade urbana. Para Henri Lefebvre, semelhante modo de viver comporta sistemas de

objetos e sistemas de valores, pelo que, há uma “racionalidade divulgada pela

cidade”.21

Temos no pensamento grego da Antigüidade, em especial no de Aristóteles,

uma das primeiras e mais importantes reflexões sistemáticas sobre a cidade que chegaram

até os dias de hoje, e que, evidentemente, se inspira na singular realidade histórica das

cidades-estado de então. Esta singularidade é marcada por tratarem-se de cidades

essencialmente políticas, conforme colocação de Lefebvre22, que afirma o mesmo em

relação às cidades oriental e romana antigas. Assim, tomaremos o pensamento daqueles

que alguns consideram fundadores da ciência política como o ponto de partida para o

desenvolvimento de um quadro teórico inicial a respeito da cidade, o que implicará falar


20
LOPES, José Reinaldo de Lima. Cidadania e propriedade; perspectiva histórica do direito à moradia.
Cadernos de Direito Social, Rio de Janeiro, ano I, n. 1, p. 28. 1994.
21
LEFEBVRE. op. cit. p. 12.
22
op. cit. p. 6.
16

também do correlato em oposição a quem se forma a cidade, isto é, ao campo.

Desde a civilização grega da Antigüidade, que tem como sua expressão mais

evidente a Polis, comparece a distinção, de início aludida, entre a cidade e um mero

aglomerado humano, dado que apenas aquela demarca algo orgânico e civilizador, cujo

surgimento supõe motivos cívicos que justificam e dão sentido à existência do grupo e à

sua vida em comum. Embora habitar o mesmo lugar seja condição necessária para que

uma cidade exista, não é ela o elemento distintivo ou a característica essencial da cidade,

mas apenas a sua forma. Assim, a cidade pressupõe uma comunidade de indivíduos,

“uma reunião de famílias e pequenos burgos associados”23 com idênticos objetivos;

como tudo no reino da natureza, a cidade também tem, forçosamente, a sua teleologia.

Aristóteles compara a cidade a um navio, onde todos os tripulantes, embora tenham

diferentes funções, habilidades e, logo, valores, navegam juntos e suas diferenças

convergem numa definição aplicável a todos: “a salvação da equipagem é a ocupação

de todos e o que todos desejam igualmente”.24 Assim, a cidade necessita fundar-se em

um bem absoluto, um bem em si valioso; algo, pois, que vai além de fatores utilitários ou

circunstanciais como seguir às mesmas leis, promover a defesa formando uma aliança

militar ou incentivar o comércio formando uma rede de trocas. Estes configuram bens

relativos ou instrumentais, isto é, dependentes das finalidades que mediante eles se deseje

alcançar, e se baseada fundamentalmente nisso, a associação urbana poderá, conforme

Aristóteles, mais parecer uma separação.25

Cidade é o locus da sociedade no qual o homem é naturalmente destinado a

viver se quiser ser homem. A não ser por força de alguma circunstância inibidora, como

uma pena a ele imposta, nenhum homem pode, voluntariamente, subsistir fora da cidade,

mas somente um ser ou muito vil - um bruto - ou muito superior - um deus. No primeiro
23
ARISTÓTELES. op. cit. p. 121.
24
op. cit. p. 106.
25
op. cit. p. 120.
17

caso, tal indivíduo mereceria a censura de um ser “sem família, sem leis, sem lar”.26 O

homem é, pois, zoon politikón em vista de que somente se constitui, se forma, como tal,

no âmbito humanizador da polis.

O escritor grego Pausânias assim se refere a uma pequena aldeia no centro

da Grécia que pretendia ser chamada de polis:

“Não tem edifícios públicos, nem teatro, nem ágora, nem água de fonte, e

onde as pessoas vivem em casebres que se parecem cabanas de

montanha nos bordos de uma ravina”.27

Tal colocação é reveladora da concepção do que seria uma genuína e

autêntica cidade, devendo ser tomada a definição estético-arquitetural de Pausânias

como metáfora de uma definição político-cultural. Suas características essenciais estão

ligadas à centralidade e organicidade políticas, à difusão da cultura, bem como a um

mínimo de bem-estar. Tratam-se de condições sem as quais não poderia haver a

existência civilizada que distingue a cidade, capaz de governar-se e de educar e prover

seus membros.

Formar o homem, aperfeiçoá-lo, fazendo dele “o mais excelente de todos os


28
animais” é, pois, a principal função social da cidade. Cabe a ela voltar-se sobretudo

à administração das coisas que dizem respeito aos homens, e não às coisas inanimadas.

Ela não existe para um mero ‘viver’, mas se forma tendo por alvo o ‘bem viver’ humano,

almejando dar-lhe uma vida feliz, pois só assim a cidade será valorizada e respeitada por

seus membros. Em suma, “o homem só trabalha pelo que ele tem na conta de um

bem”.29 Desta forma, configura-se o que Norberto Bobbio30 denominará Estado

eudemonológico, isto é, a concepção eudemonista de cidade e de sociedade típica da

26
ARISTÓTELES. op. cit. p. 18-19.
27
FINLEY, Moses. A economia antiga. 2. ed. Porto: Afrontamento, 1986. p. 172.
28
ARISTÓTELES. op. cit. p. 19.
29
ARISTÓTELES. op. cit. p. 15.
30
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 89.
18

civilização grega. Configura-se, ainda, uma pioneira análise da cidade com base na

categoria função, o que no plano da atual filosofia social de Lefebvre constitui um

instrumento metodológico do qual largamente se vale.31

Dado o significado da cidade bem como o papel, ou função, que cabe a ela

realizar, decorre que a cidade é mais importante que seus entes constitutivos, ou seja, há

um privilégio do público sobre o privado. Nesse sentido, lembra Lefebvre que apenas a

cidade, como tal, possuía liberdade, não os seus indivíduos e grupos. 32 No entanto, os

membros da cidade, os indivíduos, não são inteiramente subsumidos no ente coletivo,

aos moldes de uma horda primitiva, na forma definida por Durkheim.33 Confere-se e

reconhece-se ao indivíduo um lugar, uma função no sistema:

“O fim para o qual cada ser foi criado é de cada um bastar-se a si mesmo;

ora a condição de bastar-se a si próprio é o ideal de todo indivíduo, e o que

de melhor pode existir para ele.” 34

No entanto, não desfaz-se o referido autor, e nem seus contemporâneos, da

primazia da Polis, conforme se verifica abaixo, verbis:

“Na ordem da natureza, o Estado se coloca antes da família e antes de


cada indivíduo, pois que o todo deve, forçosamente, ser colocado antes da
parte. Erguei o todo; dele não ficará mais nem pé nem mão, a não ser no
nome, como se poderá dizer, por exemplo, uma mão separada do corpo
não mais será mão além do nome.” 35

Como vemos, o ideal aristotélico de cidade é marcado por nítido caráter

publicista, embora não descarte inteiramente a esfera privada e individual, reconhecendo

o seu papel, conforme se pode verificar, dentre outros, no fundamental conceito de


31
op. cit. p. 59.
32
LEFEBVRE. op. cit. p. 42.
33
Tipo de sociedade que configuraria um “protoplasma social”, o “germe de onde teriam saído todos os
tipos sociais”, não comportando outro tipo de elo além daquele de natureza mecânica ou por laços de
semelhança, afinidade e consangüinidade. Comporta, simplesmente, um sistema de alianças. Vide
RODRIGUES, José Albertino (org). Émile Durkheim - Sociologia. 5. ed. São Paulo: Ática, 1990. p. 85-
86.
34
ARISTÓTELES. op. cit. p. 18.
35
op. cit. p. 19.
19

cidadão, exposto em certa feita pelo filósofo estagirita na seguinte forma:

“O cidadão, em geral, é aquele que manda e obedece, alternadamente,


mas existe uma diferença conforme a natureza da constituição36: na melhor
de todas é aquele que pode e quer ao mesmo tempo mandar e obedecer,
conformando sua vida às regras da virtude.” 37

Dada essa colocação, poderá se falar no equilíbrio entre direitos e deveres,

entre faculdades e ônus, que será resgatado no pensamento social moderno, chegando

até a instituições jurídicas como a da função social da propriedade, onde se busca

precisamente esse equilíbrio, o qual poderíamos dizer que engendra a propriedade

cidadã.

Os laços que unem e integram a cidade consistem, na concepção política ora

discutida, em algo de mais largo espectro que o reino das utilidades imediatas, não se

fundando numa ratio pragmática, mas diríamos que possuem um caráter mais eterno.

Baseiam-se eles em virtudes idealmente concebidas, que Aristóteles chama “virtudes

cívicas fundamentais”38, dentre as quais o mesmo localiza fundamentalmente a justiça e

a amizade - esta última entendida no sentido específico conferido por tal autor, isto é,

enquanto um valor político, algo que conduz os homens à vida social, incutindo neles um

conhecimento e um apreço uns pelos outros, de forma que a cidade se torne perfeita. Se

o escopo da cidade é um ‘bem viver’, e não apenas um mero viver, a vida nela deve ser

algo virtuoso e honesto.39 Desta forma, configura-se a concepção moral de cidade,

segundo elemento importante desta concepção.

Da formação das cidades decorre, pois, em princípio, a criação de novos

36
Refere-se Aristóteles às cerca de 158 constituições de cidades gregas e bárbaras, que foram objeto de
minuciosa pesquisa de campo realizada por ele e por seus discípulos - já que não eram formalizadas
como as modernas constituições políticas - bem como de comparação analítica e sistemática, resultando
nas generalizações procedidas em sua obra intitulada “A política”, a que temos nos referido nessa
dissertação. Os dados da pesquisa de Aristóteles são de MACHADO NETO, A. L. Sociologia Jurídica.
6. ed. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 52-53 e 100-101.
37
op. cit. p. 132.
38
op. cit. p. 121.
39
op. cit. p. 121 e 163.
20

padrões civilizatórios, de um ethos particular, onde se redefine a relação homem-

natureza, e, por que não dizer, a própria relação homem-homem. Em termos históricos e

sociais, portanto, temos nas cidades não somente uma nova fronteira da ocupação

humana do espaço, ou, simplesmente, uma nova espacialidade, mas, sobretudo, uma

nova espaço-temporalidade.

Ficam, assim, excluídos do conceito político de cidade critérios típicos do

conceito de cidade que se forma paralelamente à constituição do modo de produção

capitalista, como os critérios demográfico e de dimensão, e o critério econômico. Muitas

genuínas cidades gregas não eram maiores que aldeias em população ou área, sendo a

poderosa Esparta um dos melhores exemplos: durante a maior parte de sua história não

contou mais de nove mil cidadãos homens adultos, o que quase nada significava diante

dos cem mil que, à mesma época, já se aglomeravam em Alexandria, Cártago e outras

comunidades na metade oriental do Império Romano.40 De outro lado, bastava à cidade,

de uma ou outra maneira, a disponibilidade dos bens indispensáveis à vida amena e

civilizada. O critério econômico, assim, somente terá sua importância realçada à medida

da progressão da divisão do trabalho, a qual implica na crescente interdependência das

cidades e na perda da auto-suficiência própria às comunidades menos complexas e de

perfil predominantemente rural.

Consideramos fundamentais as premissas que ora assentamos ao

desenvolvimento futuro de uma exposição e reflexão a respeito do direito de propriedade

e de sua função social. Isto porque as cidades, na forma como aqui a tratamos,

representam uma totalidade, quase um sinônimo de sociedade ou mesmo de civilização.

Assim, aquilo que se aplica à cidade deve necessariamente se aplicar às suas instituições,

em especial ao direito, uma das mais fundamentais de que uma cidade deve dispor, um

40
Dados de FINLEY. op. cit. p. 38.
21

daqueles elementos que é requisito de sua auto-suficiência, conforme discutiremos logo

abaixo. Por essa via, chegamos ao direito de propriedade, um domínio particular, e

relevante, dentro da instância jurídica que a cidade deve comportar. Se aceitas as

premissas ora colocadas - e elas, apesar do tempo, preservam muito de seu vigor - um

direito de propriedade que se afaste das premissas aplicáveis à cidade como um todo

seria, em lógica decorrência, a manifestação de algo bárbaro, no sentido mais rigoroso

do termo: o de fora da civilização. Não mereceria sequer o nome de “direito”, embora

leve esse nome, vez que reduzido ao seu aspecto formal, encontrando-se desprovido de

seu conteúdo próprio e distintivo.

2.2 As contradições no processo de urbanização

A formação das cidades supõe um princípio orgânico. Vale dizer, significa

uma superação, mesmo que relativa, do estado de dispersão e descentralização que

marcam as sociedades primitivas, de ordem puramente tribal ou comunitária. Exige, pois,

que tais comunidades se organizem, isto é, se associem na polis, estabelecendo algum

tipo de pacto ou contrato entre elas. Assim, a formação das cidades induz à passagem de

uma sociedade de base comunitária para uma sociedade de base político-associativa, de

um sistema de alianças familiares para um sistema de pactos civis, de relações sociais de

subordinação (autoridade, chefia) para relações contratuais, de uma coesão ou

integração social baseada no princípio da semelhança - o que Durkheim designará

solidariedade mecânica - para uma outra baseada no princípio da divisão social do

trabalho - o que o mesmo autor designará agora por solidariedade orgânica.41 Nas

palavras de Manuel Castells42, trata-se da passagem de um sistema de relações sociais

41
A primeira forma de solidariedade leva esse nome numa alusão aos elementos homogêneos que
formam os corpos sem vida, enquanto a segunda alude aos elementos diferenciados, estrutural e
funcionalmente, que compõem os seres vivos. Conforme RODRIGUES. op. cit. p. 83 e ss.
42
CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 100.
22

primárias, baseadas no contato pessoal direto e na afinidade afetiva, para um sistema de

relações sociais secundárias ou indiretas, onde as relações são mediadas por

organizações, há segmentação de papéis e multiplicam-se as dependências que se

colocam sobre o indivíduo.

Há, no entanto, contradições, ou nuanças, a serem percebidas, e que até hoje

se verificam no processo urbanizador. Isto é, malgrado a sua indiscutível organicidade, a

cidade grega, assim como muitas outras posteriores a ela - inclusive aquela que se forma

na experiência social brasileira - não incorpora o sistema orgânico de integração em toda

a sua extensão e implicações, na forma como o mesmo é tipificado a partir de Durkheim.

Subsistem, portanto, diversas formas de retorno ou de conciliação, talvez necessárias,

com aquilo que representaria o estágio original, isto é, ao sistema de integração de tipo

mecânico, apelando-se constantemente aos valores desta ordem, o que fomenta a

hipótese da eterna necessidade que os dois sistemas teriam um do outro. De alguma

forma, esta hipótese encontra-se na obra de Émile Durkheim, um dos filósofos sociais

novecentistas mais dedicados a essa questão específica, que afirmara:

“O desenvolvimento dos padrões de solidariedade orgânica, que estão


relacionados com uma divisão extensa do trabalho, pressupõe a existência
de um sistema de integração societal caracterizado pela solidariedade
mecânica”.43

Mais recentemente, o historiador Lewis Mumford parece confirmar a

hipótese:

“Da aldeia, a cidade deriva sua natureza de ambiente maternal e promotor


da vida, estável e seguro, arraigado nas relações recíprocas do homem
com outros organismos e comunidades. Da aldeia, também derivam os
costumes e valores de uma democracia não-hierarquizada, na qual cada
membro representa seu papel apropriado em cada fase do ciclo de sua

43
RODRIGUES. op. cit. p. 109.
23

vida”.44

A seguir, procuraremos delinear aquilo que identificamos como os principais

eixos dessa contradição que marca o desenvolvimento das cidades, a qual, em seu limite,

exigiria uma redefinição da própria concepção de cidade.

A especificidade das relações sociais no espaço-tempo da cidade caracteriza-

se, primeiramente, pela tendência ou vetor histórico, que através dele se introduz, no

sentido da dissolução progressiva dos laços de sangue, família, tribo e clã, isto é, das

formas mecânicas - segundo alguns, naturais - de solidariedade ou integração social, que

não se estendiam além dos limites estreitos da solidariedade intrafamiliar. De fato, as

cidades não podem constituir-se e manter-se sem que tais vínculos tradicionais

convertam-se numa solidariedade para com os outros habitantes da cidade, ampliando-se

e diversificando-se o contato entre grupos e pessoas, engendrando, então, um sistema de

pactos e uma integração de tipo orgânico.45 Esta é gerada por diferenciação funcional,

desempenhando as pessoas papéis e funções diferenciadas no sistema social. Tal forma

de integração ou coesão social paulatinamente retira a auto-suficiência das comunidades

primitivas, vez que na mesma medida que as reforça pela associação mútua, faz com que

a satisfação de suas necessidades cada vez mais dependa das atividades especializadas

realizadas por outros indivíduos e grupos, sendo a recíproca igualmente verdadeira. Uma

das conseqüências imediatas será o aprofundamento do sistema de trocas e intercâmbios

sociais. Nesta sociedade, aparecerá como fundamental “o complexo compreendido pelo

contrato, pela propriedade e pela ocupação profissional”.46

Enquanto a espécie mecânica de solidariedade ou integração social é

44
MUMFORD, Lewis. A cidade na história suas origens, desenvolvimento e perspectivas. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1982. Originalmente editada em 1961.
45
Num indicador da aludida conversão, LOPES (op. cit., p. 11) anota que nos forais das comunas
medievais a defesa da cidade passa a ser colocada prioritariamente em relação à defesa do parente.
46
RODRIGUES. op. cit. p. 102.
24

também, e justamente, chamada por Durkheim de solidariedade por semelhança47,

Aristóteles48 já reconhecia ser a cidade o locus da dessemelhança, pois compreendia

indivíduos profundamente diferenciados.49 Não há, pois, cidade homogênea, mas sim

possuidora dos mais variados talentos e interesses, sendo o seu princípio o da

diversidade e/ou da pluralidade.

Não obstante, o mesmo Aristóteles50 também afirmava a importância de um

sistema de alianças para a vida da cidade, que embora não constituam seu fundamento,

não a definindo de per si, são instrumentos sem os quais não haveria como lograr a

felicidade que identifica a cidade como tal e que constitui o seu fim último. Isto porque é

a partir de alianças no plano familiar e de casamentos que se formam as fratrias, da

união das quais a cidade se constitui. As alianças familiares e matrimoniais, portanto, são

instrumentais à cidade na medida em que se fundam na virtude fundamental da amizade,

que pode nelas então se reproduzir, levando aos sacrifícios comuns e à benevolência

mútua que devem acompanhar a associação política. De outro lado, tanto a cidade como

as fratrias têm o mesmo fim, a felicidade, havendo por isso uma identificação entre

ambas com base no objetivo comum.

Temos, então, na formação e integração das cidades, uma ambigüidade

estrutural, que é sentida já na própria polis grega. Nesse sentido, Norberto Bobbio51

reporta-se ao dado do fundamento familiar e religioso da polis, o qual seria até

preponderante sobre o fundamento político. Se, de um lado, esta se forma pelo

reconhecimento, por parte das famílias - desde o ghenos até as tribos, passando pelas

47
RODRIGUES. op. cit. p. 73-79. Tal expressão, aliás, intitula um dos capítulos da clássica obra de
Durkheim, “Da divisão do trabalho social”.
48
op. cit. p. 106-107.
49
Como cidadãos e não cidadãos; senhores, servos e escravos; ricos e pobres; letrados e iletrados; nobres
e plebeus; nacionais e estrangeiros; familiares e desconhecidos.
50
op. cit. p. 121.
51
BONINI, Roberto. Polis. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política. Brasília: Ed. UnB,
1986. p. 949-954.
25

fratrias - de uma autoridade comum superior à autoridade familiar, de outro, a

supremacia da polis não significou subtração das funções exercidas pelos organismos

familiares, conservando-se longamente algumas instituições próprias destes. A esse

respeito, Finley afirma que:

“[...] nos séculos de formação da Grécia e de Roma, a ‘cidade’ era uma


comunidade constituída e cimentada pela religião, pela tradição, pela
intimidade e pela autonomia política de maneiras que não encontram
paralelo nas cidades modernas”.52

Nesse sentido, o caso do direito familiar e sucessório, que se manteve

essencialmente livre da ingerência da autoridade citadina, é o mais destacado. Além

disso, os vínculos políticos significaram, ao mesmo tempo, a formação de ligas

sagradas, formadas em torno de grandes santuários, sendo o de Delfos o mais célebre.

Enfim, a cidade helênica, obviamente, diferencia-se da horda primitiva, dado o caráter

orgânico patenteado na Polis, o qual se reflete na racionalização realizada, por seus

próprios membros, acerca dela, bem como de sua natureza, significado, finalidades e

funções, elaborando-se uma apurada fundamentação para a mesma. De outro lado,

porém, trata-se de uma cidade que carrega diversos elementos próprios da integração

mecânica, indo buscar no código de valores próprios desta os elementos para forjar uma

ética da cidade.

Um segundo aspecto da contradição urbana fica bastante evidenciado

quando nos deparamos com a crítica de Aristóteles à arte ou ciência de adquirir

riqueza53, forma pela qual se refere às atividade com fins lucrativos. 54 Tal crítica decorre

do já mencionado privilégio que confere a administração das coisas que se referem aos

homens, em detrimento da que se refere às coisas inanimadas, onde se encaixa com

52
FINLEY. op. cit. p. 61.
53
op. cit. p. 36.
54
Nessa categoria ele enquadra atividades como comércio, transporte, usura e trabalho remunerado. op.
cit. p. 32.
26

perfeição a atividade que hoje denominamos empresarial, que administra o capital. Esta

tem empresas e negócios - o próprio capital, enfim - como sujeitos, o lucro por fim, e a

maximização destes lucros por função. Logo, trata-se de uma atividade desumanizada,

pois o homem, enquanto tal, não comparece em nenhum de seus momentos substanciais,

sendo algo de adjetivo nesse processo. Segundo Aristóteles, a vida dedicada ao comércio

possui “qualquer cousa de vil”, não formando “homens justos no sentido absoluto da

palavra”55, justificando assim a própria interdição, a estes, do aristocrático status de

cidadãos. Conforme percebe Finley56, a condição de cidadão é a mais importante

distinção existente entre as diversas ordens sociais na economia antiga, gozando de

diversos privilégios, dentre eles o mais pleno acesso à propriedade do solo. Havia, no

entanto, uma dissociação entre propriedade da terra, detida pelos cidadãos, e

propriedade de capitais, detida por aqueles que não possuíam terra, como comerciantes e

prestamistas. A crítica aristotélica, sem exclusão de outros motivos, parece ser bastante

determinada por essa dissociação.

De todas as formas de adquirir riqueza, aquela que vem pelo comércio é a

mais contrária à natureza - logo, é a mais injusta -, já que não é realizada na estrita e

exata proporção das necessidades de cada um, aos moldes da economia familiar, mas

objetiva a lucros indefinidamente, não conhecendo qualquer limite. Forma justa e

louvável de adquirir riqueza seria aquela que não tem outro fim além da satisfação das

necessidades da natureza, ou seja, uma economia de subsistência, que impõe limites ao

enriquecimento, sendo, pois, a mais próxima da virtude.

A crítica aristotélica contempla um outro aspecto, referente ao desvio de

função que a atividade empresarial promove. A moeda, originariamente criada com a

função de facilitar a troca, é aplicada à função de aumentar a quantidade de moeda

55
op. cit. p. 171.
56
op. cit. p. 61.
27

possuída. O lucro, nesse sentido, é o dinheiro que se multiplica por si mesmo, é o

dinheiro do dinheiro, é o dinheiro que se converte, ele próprio, em mercadoria.57 Pelas

palavras de Aristóteles percebemos que ele não se refere a outro fenômeno que não o da

formação de capitais, em termos, aliás, não muito diversos dos que Marx utilizará em “O

capital”. Trata-se, pois, de um declarado crítico da ordem capitalista.

O código de valores grego, e antigo de maneira geral, instituía, assim, sério

gravame moral para as atividades acumulativas.58 Não obstante, atividades dessa

natureza não deixavam de se desenvolver, já que na nova espaço-temporalidade das

cidades estabelece-se um ritmo de produção onde se intensifica a criação e a acumulação

de excedentes. Nesse sentido, Castells59 associa o surgimento de assentamentos humanos

sedentários e de maior densidade ao desenvolvimento de condições naturais e sociais que

possibilitaram aos agricultores produzir tais excedentes. Dentre tais condições

figurariam:

- incremento de técnicas de aumento de produção e de armazenamento

daquilo que é produzido em excesso;

- oportunidades favoráveis de trabalho e de acumulação através do mesmo;

- estímulo e diversificação dos padrões de consumo em face da diferenciação

sociocultural produzida na cidade.

Se a produção de excedentes já era em si condenável numa ‘economia’60

eticamente direcionada para a subsistência, a sua definição como mercadoria e

apropriação privada representaria algo impensável. Há várias referências históricas da

57
ARISTÓTELES. op. cit. p. 37.
58
Sobre todo este parágrafo, ver ARISTÓTELES. op. cit. p. 31-37 e 171.
59
op. cit. p. 19.
60
FINLEY (op. cit., p. 24) esclarece que embora os antigos praticassem atividades econômicas, estas não
se articulavam no conceito particular e diferenciado de economia, que ora não existe e ora possui sentido
inteiramente diverso nas sociedades pré-capitalistas de maneira geral. Isto porque a atividade que
chamamos econômica era representada de maneira indistinta e inseparável de outras espécies de
atividades, isto é, era ‘encravada’ou ‘embebida’ dessas outras, não representando sistema autônomo.
28

antigüidade - e da mesma região - dando notícia de que o excedente produzido ou era

imediatamente consumido nas festas ou era devido às divindades mediante o sacrifício e

as oferendas.61 Censurava-se, assim, a aquisição não natural da riqueza, fruto da

utilização engenhosa da inteligência, do cálculo racional e utilitário, do senso de

oportunidade que configura o que chamamos especular, em seu sentido mais estrito.

Aristóteles afirmava que “as coisas que se consideram úteis são exatamente aquelas

cuja superabundância é forçosamente prejudicial, ou pelo menos inútil”62, assim

expondo sua crítica ao utilitarismo que decorria da racionalidade econômica da busca de

grandes (infinitas) quantidades de riqueza.

A ética grega, portanto, embora não possa ser classificada como não

aquisitiva, pois era possível buscar algum nível de riqueza desde que por meios não

artificiais, pode, em face da ética protestante, por exemplo, ser vista como improdutiva,

já que excluía a ideologia do lucro, a dedicação a ele.63 Nessa tábua de valores, o lucro

jamais pode ser um fim, mas apenas um meio, e, sendo assim, seria eternamente

subordinado, visto que a racionalidade grega voltava-se justamente aos fins -

racionalidade material - e não aos meios - o que conformaria uma racionalidade formal,

que somente adiante se desenvolve, tendo a cidade romana participado desta, sobretudo

no campo do Direito.

A civilização grega, e até mesmo a romana, procuraram, pois, aquilo que

para nós representa um difícil equilíbrio, como aquele que procura a função social da

propriedade moderna. Trata-se do equilíbrio - ou do justo meio - de limitar o lucro

individual sem excluí-lo de todo, conciliando dois princípios opostos. O avanço da

urbanização na era antiga acentua essa e outras contradições. Assim, embora louvassem

61
Acreditamos que as mais claras são as referências bíblicas do Antigo Testamento (Pentateuco), nas
quais o narrador associa tais medidas ao advento da escravidão.
62
op. cit. p. 152.
63
FINLEY. op. cit. p. 169.
29

a agricultura e a associassem à excelência moral - a célebre fisiocracia - simultaneamente

insistiam que a civilização exigia a cidade.64 Além de, como já vimos, limitarem a

produção às necessidades, opondo óbices à produção de excedentes. Isto se reflete no

próprio conceito antigo de cidade, o qual, conforme Bobbio, Castells e Finley65, abrange

também o espaço rural, havendo, pois, uma continuidade e uma complementaridade

rural-urbano no processo de produção das formas sociais. Assim, a verdadeira cidade

antiga incluía tanto o interior rural - a chora - quanto o centro urbano onde residiam os

de melhores ordens e status e onde se instalavam os cultos públicos e a administração

comunal.66

No entanto, esta unidade parece ter existido de fato - e não apenas no

imaginário predominante a respeito das cidades - somente em estágios mais primitivos da

formação das cidades, posto que a divisão do trabalho tem por uma de suas precisas

características engendrar a segmentação entre campo e cidade. Um dos primeiros - e

maiores - exemplos nesse sentido foi a própria cidade de Roma que, a partir do momento

em que se converte em cidade imperial, torna-se uma cidade onívora, dada a acentuação

de sua característica de centro de consumo, ou parasita, dado que subsistia à base de

doações, rendas, adjudicações de conquista, dízimos, impostos e tributos, bem como dos

produtos primários e matérias primas que não produzia, tendo por isso que buscá-los em

outras cidades para não desabastecer-se, segundo Finley.67 Dela, teria afirmado Martinho

Lutero ser “o maior ladrão que alguma vez surgiu ou surgirá na face da terra”. Enfim,

“ninguém pretenderá que Roma pagava em produção uma minúscula fração que fosse

das suas importações maciças”.68 Com o Império Romano, portanto, instaura-se um

sistema de divisão do trabalho entre as cidades, caracterizado pelo primado de uma


64
FINLEY. op. cit. p. 171.
65
BOBBIO. op. cit. p. 949; CASTELLS. op. cit. p. 19; e FINLEY. op. cit. p. 171.
66
FINLEY. op. cit. p. 171-172.
67
op. cit. p. 173.
68
FINLEY. op. cit. p. 181.
30

cidade sobre o conjunto de todas as outras - o qual modernamente subsiste na instituição

da capital política dos Estados nacionais, bem como na própria Igreja Católica.

Analisando a cidade romana, Castells69 afirma que a cidade, em seu marco de origem,

não é um centro de produção, mas de gestão e de domínio, ligada à primazia do aparelho

político-administrativo. Por esta razão, o desaparecimento do Império Romano no

ocidente contribui para uma desurbanização, isto é, o quase desaparecimento da forma

socioespacial da cidade. As funções político-administrativas centralizadas são

substituídas pelas dominações locais dos senhores feudais, formando-se um vazio nos

encargos da cidade, que então se reduz em suas funções praticamente a de residência do

bispo.

Dado esse quadro, vemos que abria-se um grande leque nas relações campo-

cidade, que ia desde o parasitismo até a simbiose. As circunstâncias do crescimento das

cidades, portadora de crescentes necessidades, no entanto, conduzirão a uma crescente

perda de sua tão acalentada auto-suficiência econômica. De fato, reflete-se nas obras de

Platão e Aristóteles a rígida defesa das vantagens morais da auto-suficiência das cidades

gregas:

“Chamamos de cidade à multidão de cidadãos capaz de se bastar a si

mesma, e de obter, em geral, tudo o que é necessário à sua existência. [...]

O natural da cidade é bastar-se à si própria”.70

No entanto, as necessidades da ‘sociedade civilizada’, sobretudo se

consideradas as exigências próprias da concepção política de cidade, eram, em geral,

superiores às forças produtivas da mesma. Dentro de tal concepção, mesmo entendendo

Aristóteles que as classes essenciais à cidade eram a dos guerreiros e a dos cidadãos,

admitia que uma cidade não poderia bastar-se a si mesma sem coisas como armas,

69
op. cit. p. 20-21.
70
ARISTÓTELES. op. cit. p. 102 e 162.
31

madeira, metais, sal, especiarias, peles, pedras preciosas, escravos; além de indivíduos

como lavradores, artesãos, soldados, sacerdotes, juízes, artistas, administradores,

artesãos, professores, além de homens afortunados.71 Era, assim, obrigado a fazer o que

para ele era uma infeliz constatação: a de serem poucas as cidades de fato auto-

suficientes.

Concluímos, pois, junto com Finley72, que a auto-suficiência almejada

encontra-se em razão inversa da divisão do trabalho, e a dependência econômica está na

razão direta desta. Somente há condições reais de auto-suficiência em circunstâncias

históricas de baixa escala de divisão do trabalho, ou seja, apenas nas sociedades

camponesas, que funcionam à base de economia doméstica e de subsistência. Por outro

lado, consideramos que, longe de contê-la, a pretensão de auto-suficiência das cidades

motivaria uma crescente divisão do trabalho entre cidade e campo, e com a

predominância da primeira. Isto porque tal pretensão justificava que a associação urbana

empreendesse todos os recursos necessários à obtenção dos meios de sua provisão, o

que levaria, fatalmente, a subordinação das regiões camponesas necessárias para tanto.

Não deixa de ser este um dos motivos da expansão imperialista romana.73

De outro lado, a auto-suficiência exigia maiores níveis de trabalho

especializado dentro da própria cidade, como revela o historiador e filósofo grego

Xenofonte - do século IV a.C. - num texto considerado por Finley como o mais

importante da antigüidade a respeito do tema:

“Nas pequenas cidades o mesmo homem faz as camas, as portas, as


charruas, as mesas, e muitas vezes também constrói casas e ainda se dá
por feliz se conseguir encontrar trabalho suficiente para se sustentar. E é
impossível a um homem de muitos ofícios fazê-los todos em condições.
Contudo, nas grandes cidades, porque há muitos pedidos para cada ofício,

71
ARISTÓTELES. op. cit. p. 170-173; e FINLEY. op. cit. p. 174-175.
72
op. cit. p. 61.
73
Conforme deduz-se de FINLEY. op. cit. capítulo I, e MUMFORD. op. cit. p. 118-122 e 259-266.
32

basta um para sustentar um homem e por vezes menos que um: por
exemplo, um homem faz sapatos para homem, outro para mulher, há locais
em que um homem ganha a vida só a remendar sapatos, outro a cortá-los,
outro a coser a parte superior, enquanto há outro que não faz nada disso
mas que reúne todas as partes. Necessariamente, aquele que desempenha
uma tarefa muito especializada, fa-la-á melhor”.74

A divisão do trabalho, em suma, induz, primeiramente, ao desaparecimento

da auto-suficiência das cidades, a qual em poucos casos de fato se deu, embora fosse

almejada no imaginário político da antigüidade a respeito da cidade. Em segundo lugar, e

conseqüentemente ao primeiro, induz a uma segmentação da unidade das cidades em

relação ao campo, a qual também foi precária, embora igualmente valorizada no campo

ideológico. Por fim, implicação final de todo o processo, produz uma dominação do

campo pela cidade.

Os efeitos da divisão do trabalho, no entanto, não se fazem sentir apenas

sobre a relação cidade e campo, segmentando-os e engendrando a cidade parasita. Cabe,

também, referirmo-nos à criação de segmentos sociais parasitas, isto é, de uma

determinada classe de indivíduos que, analogamente às cidades, destacam-se da

dedicação direta a atividades produtivas, e que, em função de sua privilegiada ocupação,

detém bens fundamentais como a terra, e passam a desempenhar funções de governo75,

que progressivamente se especializam e se multiplicam, constatando Finley76 que, no

contexto de crescimento das cidades, observa-se um aumento tanto absoluto quanto

relativo das classes economicamente improdutivas. Recebem do restante da sociedade o

seu provimento material, fazendo cultivar seus campos por servos e escravos. Dessa

forma, conseguem meios de se apropriar daquilo que é realizado pelas classes

propriamente produtoras, mantendo um “estilo de vida suntuário”77, e firmando-se


74
FINLEY., op. cit. p. 187.
75
Correspondente a cargos de administração, justiça, militares, bem como religiosos. Vide SINGER,
Paul. Economia política da urbanização. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1975. p. 11-28.
76
op. cit. p. 193-194.
77
FINLEY. op. cit. p. 193-194.
33

enquanto classes dominantes.

Este sistema supõe a produção de excedentes, isto é, que o produtor direto,

além de produzir o necessário para si, produza para o consumo das classes não

produtoras em troca dos serviços, reais ou imaginários, que esta oferece. Supõe, pois,

que a economia não limite-se à economia de subsistência, o que levaria a supor que a

existência de classes sociais esteja em razão direta à produção de excedentes, somente

surgindo, pois, com o desenvolvimento das cidades, onde diversas ocupações

especializadas se complementam mutuamente. Tal suposição é errônea. De maneira

geral, a estratificação social é bastante anterior à cidade e à economia de acumulação

e/ou produtora de excedentes. No entanto, essa estratificação apresenta-se

fundamentalmente como diferentes status sociais, que são predominantes em todas as

sociedades pré-capitalistas.78 Conforme Georg Lukács, em seu clássico “História e

consciência de classe” (de 1923), “nas sociedades pré-capitalistas a consciência de

status oculta a consciência de classe”.79 Assim, embora nas sociedades de baixa divisão

do trabalho a inserção no processo de produção e consumo seja relativamente

equivalente, subsiste uma hierarquização social, que começa na própria estrutura familiar

e termina na organização política, com o aristocrático conceito de cidadão, único a quem

se poderia legitimamente permitir a abastança e a posse de bens de raiz, conforme

Aristóteles.80 De outro lado, no entanto, não há como negar que nas economias urbanas

e naquelas onde há maior divisão do trabalho, agrava-se, aperfeiçoa-se e consolida-se a

estratificação social, sendo, aliás, esse o contexto em que o termo classe social é mais

apropriado enquanto instrumento analítico.81 Podemos, com Castells82, dizer que a

urbanização tem como correlato previsível a estrutura de classes, o que, de qualquer


78
Conforme FINLEY. op. cit. p. 65.
79
apud FINLEY. op. cit. p. 65.
80
op. cit. p. 173.
81
FINLEY. op. cit. p. 65.
82
CASTELLS. op. cit. p. 17.
34

forma, deve ser feito com bastante cuidado, no sentido de não se naturalizar os

complexos fenômenos sociais em questão. Assim, embora não seja dela exclusiva, a

economia urbana é aquela que se tipifica pela estrutura de classes, nela visualizando-se

aquele processo que, com base na terminologia marxista, podemos denominar

alienação.83

Por fim, o último aspecto a ser mencionado dentro da contradição que nos

ocupa, refere-se à formação de uma instância jurídica e de uma instância política de

regulação da vida em grupo e de síntese da vontade coletiva. Ao lado das diferenciações

apontadas anteriormente, temos com as cidades a criação de outras instituições e

espaços de definição da identidade, posição e relações sociais. Assim, a partir da

formação da comunidade ‘política’ territorial, procura-se impor a dissolução, ou a

limitação na melhor das hipóteses, da administração privada do direito e da justiça,

proibindo as diversas formas de vingança e/ou justiçamento familiar e de ação direta84 de

vigência imemorial, e colocando os magistrados e a assembléia da cidade acima da

justiça patriarcal e/ou tribal. Quanto mais aprofundada a primazia do público sobre o

privado, mais fortemente se imporia o direito da Polis. Corporificada no Estado, a

comunidade política - ou sociedade política, no termo mais invocado - opõe-se e

contribui para a superação da comunidade gentílica, baseada em grupos familiares,

clânicos e tribais.

Tal processo se acentua sob a formação do Império Romano e sob a

centralização política que este induziu. As vicissitudes da expansão imperialista da cidade

83
MARX, Karl. O capital; crítica da economia política. 11. ed. São Paulo: Difel, 1987. v. 2, p. 664-
665.
84
GARMENDIA, José A. Ação Direta. In: DICIONÁRIO de Ciências Sociais. cit. p. 10. Aplicamos,
aqui, esta categoria a um outro contexto. Ela surge na tradição sociológica bem como no discurso
político moderno, para designar movimentos sociais que se propõem atingir pelos próprios meios e
esforços - isto é, diretamente - determinado objetivo. Trata-se de um método de ação que não recorre às
instâncias políticas, às vias institucionais, para obter os resultados pretendidos. Uma certa dose de
violência é, pois, ingrediente forçoso da ação direta, a qual, no entanto, é justificada por seus autores em
função da “iniludível necessidade de agir” (op. cit., p. 10).
35

de Roma, criadoras de uma complexa estrutura de articulação de cidades, demandam

uma justiça e uma administração cujo funcionamento possa, ao menos em princípio, ser

calculado racionalmente segundo regras sólidas, devendo possuir um mínimo de

objetividade e previsibilidade, para que assim o controle político se efetive. Considerado

uma das primeiras organizações de caráter burocrático - no sentido weberiano do termo

- conhecidas na história, o Império passa a organizar a vida social sob critérios mais

impessoais, aplicando o conhecimento à obtenção de determinado resultado,

selecionando os meios de comprovada eficiência técnica para tanto. Insere, pois, na

administração da organização política um critério de cálculo racional.85

No campo de direito, “modalidade específica de realização da função

política”86, isto significa um distanciamento do pensamento mágico tradicional,

superando-se o apelo a meios dessa ordem, aliado a uma tentativa de afastamento em

relação aos preceitos religiosos ou morais, assinalando que direito e moral compõem

complexos de racionalidade inconfundíveis. Minimizar a importância dos sentimentos, da

espiritualidade e dos valores morais é, pois, condição do controle da vida diária do

indivíduo por burocracias, aprisionadoras, por definição, de todas as áreas da vida social,

da religião e educação ao trabalho e à lei. Lançam-se as bases de um sistema jurídico

autopoiético ou autoreferencial, isto é, um sistema fechado, que funda a ordem jurídica

em si própria, recusando-se a referenciar-se em qualquer elemento estranho, e que

produz, por si mesmo, tudo o que utiliza enquanto unidade, e fundando exatamente nisso

a sua própria unidade.87

Assim, vemos que o Império Romano cria e desenvolve, em seus primeiros

85
WEBER, Max. História geral da economia. São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 297-307.
86
GASSEN, Valcir. A natureza histórica da instituição do direito de propriedade. In: WOLKMER,
Antonio Carlos. Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 75.
87
Conforme ARRUDA JR., Edmundo Lima de (org). Max Weber: direito e modernidade. Florianópolis:
Letras Contemporâneas, 1996. p. 92 e ss.
36

estágios, um direito racional, isto é, uma racionalidade jurídica de caráter formal.88 Nesse

processo ocorre uma mudança da mesma ordem daquela ocorrida em relação à atividade

de fins lucrativos, isto é, os meios convertem-se em fins e os fins originais como que

desaparecem, esvaem-se, continuam a ser princípios mas sem o poder vinculante de que

gozavam. A espécie de racionalidade que então se desenvolve estaria, assim, bastante

próxima do conceito aristotélico de virtude intelectual calculista ou deliberadora,

implicando numa ação definida por processos lógicos, a partir de premissas válidas. Tal

racionalidade, conforme percebe Weber89, conduz necessariamente à dominação

coisificada por parte dos aparatos burocráticos, atribuindo a estes a dignidade universal

da razão; em outras palavras, a burocracia é elevada e o homem é reificado.

O desenvolvimento que os romanos dão à ciência do Direito será, como

vemos, contraditório com a herança que procedia do pensamento jurídico da civilização

grega. Este, diversamente, era de base racional material90, fundamentalmente preocupado

em fazer justiça, referindo-se, no curso de seus julgamentos, a valores de ordem ética,

política, econômica, religiosa; exatamente aqueles que fundamentam as concepções de

cidade já estudadas. Em vista disso, leva sempre em conta fatores que, à luz da clivagem

promovida pela racionalização formal do Direito, chamaríamos de extrajurídicos (a

situação e as intenções dos indivíduos, suas condições gerais de existência). É, por

definição, uma racionalidade casuística e empirista.91 A contradição das duas

racionalidades - que de outro lado não é exclusividade do campo jurídico, mas de certa

88
Razão instrumental no dizer dos teóricos da Escola de Frankfurt, ou razão funcional no dizer de
Mannheim, ou, simplesmente, razão (ou racionalidade) orientada a fins na expressão original de
Weber. Registra-se, ainda, na literatura, os termos razão formal e razão objetiva, para designar idêntico
conteúdo. Há, também, a expressão racionalidade tecnológica, cunhada por Marcuse. Conforme
ARRUDA JR. op. cit. p. 32.
89
WEBER. op. cit. p. 297-307.
90
Razão (ou racionalidade) orientada a valores, ou, simplesmente, racionalidade material nos termos
de Weber, ou, ainda, racionalidade substancial no dizer de Mannheim, seguida por racionalidade
subjetiva em Lowy. Conforme ARRUDA JR. op. cit. p. 35.
91
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. p.
184-185.
37

forma é universal - produz o dilema cósmico no qual a ciência jurídica até hoje se debate,

entre o justo e o legal. A partir daí se constituem as várias formas de compreender,

interpretar e lidar com o direito e com suas instituições.

Enfim, é no contexto da separação entre campo e cidade e de seus aspectos e

implicações jurídicas que procuraremos situar a questão da propriedade, bem como a sua

compreensão a partir do conceito de função social a ela aplicado. Tal instituição

certamente se relaciona como todo o processo anteriormente citado, representando pré-

requisito inolvidável na formação de estruturas urbanas em oposição àquelas rurais,

vendo Valcir Gassen em seu surgimento a “origem de toda a civilização”92, e

sustentando Marx e Engels que são as transformações em suas formas que, basicamente,

caracterizam a sucessão das formações econômicas e sociais.93 Se é certo que nas

cidades, o problema da partilha das riquezas socialmente produzidas vai ser recolocado,

por meio da instituição da propriedade se buscará resolver, jurídica e socialmente, o

problema da redefinição da partilha de bens no ambiente urbano, marcado por diferentes

formas de solidariedade. Dessa instituição nos ocuparemos, de maneira mais detida, nas

seções seguintes.

Acabamos, pois, de delinear um grande, complexo e multifacetado processo

- como toda cidade também o é. Este se esboçou durante o Império Romano, foi de

alguma forma revertido a partir da queda de seu braço ocidental, quando o

desenvolvimento e dominação urbanos foram contrapostos pelas estruturas feudais, a

demarcar um momento histórico de dominação e de centralidade rural nas formações

sociais.94 Reaparece historicamente somente a partir da derrocada do feudalismo e da

emergência das transformações que viriam a desembocar na ordem capitalista moderna e

92
GASSEN. op. cit. p. 79.
93
FINE, Ben. Propriedade fundiária e renda da terra. In: BOTTOMORE, Tom (org). Dicionário do
pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 304.
94
LEFEBVRE. op. cit. p. 31.
38

contemporânea. Nesta, a cidade não estará isenta das contradições fundamentais

presentes na cidade antiga a que acabamos de nos referir, as quais, no entanto, se

recolocarão num novo patamar, dado que se, como imaginava Hegel, “todos os fatos de

grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes”,

acrescentou Marx que a primeira ocorreria como tragédia, e a segunda como farsa, isto

é, por hipótese alguma, ambas terão o mesmo significado.95

2.3 O surgimento de um ‘sentido’ de propriedade entre os homens

Ao contrário do que alguns discursos nos fazem crer, a propriedade não é

um desígnio universal entre os homens. Vale dizer, nem em todas as circunstâncias

espaço-temporais surgiu o sentimento de um vínculo estreito entre homem e

determinado(s) bem(ns) de forma a fazê-lo dizer ‘isto é méu; é como parte de mim

próprio’.96 Tanto não se aplica a todos os tipos de sociedades, como não se aplica a

todos os tipos de objeto. Do mesmo modo, não existiu sempre da mesma forma, não

significando o mesmo feixe de faculdades e deveres. Conforme nos mostram diversas

pesquisas históricas e antropológicas97 98, o sentido de propriedade em relação à terra é

inexistente em determinados povos e raças - a terra não pertence a ninguém -, somente

existindo em relação aos frutos da terra ou então aos animais. Em alguns desses, mesmo

onde tenha se estabelecido, o foi de maneira penosa. Em diversas regiões e povos

conheceram-se formas de partilha ou redistribuição periódica de terras, pelo que a cada

momento fixava-se a cada indivíduo ou família um diferente lote de terra para as suas

necessidades. Na vida tribal ou comunitária, de maneira geral, a característica principal,


95
MARX, Karl. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
Tradução de Leandro Konder e Renato Guimarães. p. 21.
96
Tanto quanto possível, evitaremos utilizar o termo ‘propriedade privada’, o qual, conquanto seja usado
na literatura especializada, pode conduzir a confusão com a ‘propriedade burguesa’, dada a íntima
associação que modernamente se fez dos dois termos.
97
FUSTEL DE COULANGES. A cidade antiga; estudo sôbre o culto, o direito e instituições da Grécia
e de Roma. 4. ed. Lisboa: Livraria Clássica, 1937. p. 86-105.
98
FINE. op. cit. p. 304.
39

no tocante ao nível coletivo de consumo e riqueza, parece ser a partilha, realizada num

contexto social seja de penúria, seja de abundância, situação usualmente designada por

comunismo primitivo. Os bens fundamentais à atividade de produção de riqueza, então

restrita basicamente ao pastoreio e à coleta - bens esses consistentes em rebanhos, terras

de cultivo, rotas e pastagens - são possuídos em comum. Tal fato é explicado por

Durkheim como produto necessário de uma espécie de sistema de integração social que

absorve o indivíduo dentro do grupo. Conforme esse autor,

“Onde a personalidade coletiva é a única, a propriedade também não pode


deixar de ser coletiva. [...] A propriedade só pode se tornar individual
quando o indivíduo, se desligando da massa, se torne ele também um ser
pessoal e distinto, não apenas enquanto organismo, mas enquanto
elemento da vida social.” 99

Assim, há sempre que se perquirir que ordem de fatores específicos

conduziram ao surgimento de ‘propriedades’ e de que espécie de propriedades, quer no

plano dos fatos, quer no plano do sentimento ou imaginário social, fator este que

consideramos da mais alta relevância na constituição do Direito.

Na civilização greco-romana da antigüidade temos, pois, um momento

fundamental de fixação da propriedade, isto é, de adscrição de uma determinada terra a

uma determinada gente. Como veremos, a concepção de propriedade construída por esse

grupo constitui referência para as concepções modernas, que resgatarão aquela em

vários pontos, porém, em alguns casos de maneira inapropriada, ao nosso ver. Assim, o

contexto do surgimento da propriedade nas sociedades em tela é marcado, conforme

Coulanges100, pela manifesta e (aparentemente) inseparável inter-relação de comunidade

gentílica - familiar, clânica ou tribal -, religião doméstica e propriedade.

Cada família101 possuía o seu deus, o seu altar doméstico, sobre o qual se
99
RODRIGUES. op. cit. 88.
100
op. cit. p. 88-89.
101
Cabe lembrar que o termo ‘família’, neste caso, refere-se a uma estrutura social mais complexa e mais
abrangente, envolvendo grupos de até três mil pessoas; bastante diferenciada, portanto, da família
40

colocava o símbolo religioso que era o seu fogo, além de seus mortos e antepassados. A

devoção mantida por cada família era exclusiva, isto é, somente ela poderia adorar ao

seu deus, até porque este liga-se aos antepassados da família, bem como aos que

futuramente virão, sendo pois impossível e sem sentido que alguém preste culto ao

passado que não lhe pertence. De outro lado, sendo exclusivos de cada família, os

diversos cultos não poderiam confundir-se, vez que representam divindades distintas,

que não se unem nem mesmo quando duas famílias o fazem. Tal exigência impunha a

clara demarcação dos termos de cada propriedade, bem como de uma certa distância102

entre as casas impedindo-se em absoluto que as mesmas se tocassem e que o culto alheio

fosse devassado pelo vizinho. Os termos demarcatórios e o isolamento da casa também

eram considerados sagrados e, até por isso, eternos, não podendo ser deslocados. Por

fim, o culto aos antepassados era feito na própria casa, que era o local onde os mesmos

se encontravam sepultados - cada gleba familiar dispunha de um lote de terra para tanto -

mantendo-se, assim, a unidade da família em todas as suas gerações. Os mortos não

deixavam, pelo fato da morte, de integrar a comunidade familiar - a qual adquiria, neste

sentido, uma natureza transcendente - mas permaneciam de certa forma ligados às

condições terrenas.103 Coulanges cita inúmeras fontes históricas que atestam que “o uso

antigo era enterrar os mortos não nos cemitérios ou à borda de uma estrada, mas no

campo de cada família”.104 A regra para o túmulo era idêntica à regra vigente para o

fogo, para o deus, para o culto: não se permitia juntar duas famílias na mesma sepultura.

A adesão unânime de toda a comunidade familiar ao mesmo conjunto de

moderna, atomizada e reduzida. Conforme GASSEN, Valcir. A natureza histórica da instituição do


direito de propriedade. In: WOLKMER. op. cit. p. 77.
102
Tratava-se, em Roma, do espaço dedicado ao “deus da cêrca”. Conforme FUSTEL DE
COULANGES. op. cit. p. 92.
103
Nas palavras de DA MATTA, Roberto (A casa e a rua. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1991) a
respeito do Brasil, “a morte mata, mas os mortos não morrem” (p. 170).
104
op. cit. p. 95-96. Dentre as citadas fontes temos uma lei de Sólon, passagens de Plutarco, Demóstenes
e Siculo Flacco, a própria Lei das XII Tábuas e os textos dos jurisconsultos.
41

crenças e valores, faz com que estes adquiram uma intensidade particularmente maior,

vale dizer, um caráter religioso, o qual marcará, de resto, toda a vida psíquica do grupo.

Aparecerão como fundamentais nas sociedades menos complexas as instituições familiar

e religiosa, na medida em que constituem os símbolos que exprimem e resumem as

semelhanças do grupo, ao mesmo tempo em que as garantem.105

Ora, uma vida familiar e religiosa assim organizada não somente supõe um

solo onde se assente e se sedentarize, como cria (e reproduz) um sentimento de

apropriação da terra, conforme Coulanges “o lar toma posse do solo; tornou sua esta

parte da terra; é propriedade sua.” Surge, assim, a idéia do domicílio.“Cada família,

tendo os seus deuses e o seu culto, devia ter também o seu lugar particular na terra, o

seu domicílio isolado, a sua propriedade”.106 Consagra-se, desse modo, a família como

senhora da terra e proprietária da mesma. A propriedade constitui-se como propriedade

familiar, refletindo, pois, as formas de coesão, ou de solidariedade, predominantes na

antigüidade, as quais, embora já conhecendo algum espaço para a autonomia individual,

não lhe conferia maior valor do que à coletividade representada pela família, cuja

projeção ampliada no plano político seria a Polis. Aquilo que era fundamental à família

não poderia tocar a um de seus membros, mas somente à totalidade, da mesma maneira

que as questões privadas, conquanto valorizadas, deveriam ceder ao interesse público,

que tocava a todos e, portanto, era mais fundamental em relação àquelas.

No entanto, ao tempo histórico da cidade antiga as famílias já não

compunham estruturas cujos membros são absolutamente indistinguíveis uns dos outros,

já tendo surgido em seu seio um processo de individuação resultante das primeiras

formas de organização e de centralização, isto é, de divisão do trabalho. Já era, assim,

amplamente instituída a figura do chefe, autoridade central que encarna o tipo coletivo,

105
Sobre todo o parágrafo, ver RODRIGUES. op. cit. p. 76 e ss.
106
COULANGES. op. cit. p. 89 e 92.
42

passando os membros do grupo a vincularem-se não ao próprio grupo enquanto

totalidade, mas sim àquilo que é a sua imagem. Desse modo, a propriedade da terra, que

a comunidade exercia de maneira indivisível, passa integralmente para a autoridade

superior do déspota, do senhor de escravos e do pater familias, que, além da senhoria da

propriedade, exercia ainda as funções de chefia religiosa e judicial. A propriedade, no

entanto, não pertencia a este de maneira individual, mas era administrada por ele

enquanto direito familiar, já que esta transformação não tem um caráter de dissolução da

integração social de tipo mecânico. Um dos indícios nesse sentido é encontrável na

afirmação de José Reinaldo de Lima Lopes, segundo a qual nesse sistema “não há

diferença entre o nível de consumo e riqueza do chefe e de seu servo”.107 Tal dissolução,

em nome da integração social em bases associativas - ou de tipo orgânico - suporia

relações de reciprocidade e de dependência mútua que em verdade não existiam: o laço

que liga o indivíduo ao chefe é idêntico àquele que liga a coisa à pessoa, ou um objeto

possuído ao seu possuidor, isto é, apenas o primeiro depende do segundo, jamais o

contrário. Resulta daí a não diferenciação dos direitos pessoais em relação aos direitos

reais. Mantida essa unilateralidade fundamental da vida em sociedade, não se modifica o

seu caráter dominante, que é antes holista do que individualista. Assim, tal propriedade

não pode ser classificada como instituto de direito real e/ou civil.108

Podemos, então, sintetizar na forma abaixo os princípios vigentes a respeito

do direito de propriedade no marco greco-romano:

a) a terra é indisponível: aliená-la implica transportar o culto familiar para

outra gleba, o que é material e religiosamente difícil, já que não é fácil transportar o altar,

bem como na terra estão depositados para sempre os antepassados familiares, tendo,

ainda, se dado sobre ela toda a história do grupo. Assim, não só não pode o chefe da

107
LOPES. op. cit. p. 11.
108
Sobre todo o parágrafo, ver RODRIGUES. op. cit. p. 76 e 89.
43

família aliená-la voluntariamente, como não pode dar-lhe outra destinação que não a

traçada pela religião. Em sua vasta pesquisa das constituições do mundo grego,

Aristóteles verifica que as cidades em geral proibiam a venda das terras. 109 Escritos do

ano 110 d.C. a respeito de missões oficiais do Império Romano na Ásia Menor

verificaram a não disponibilidade de terras para compra. 110 Outrossim, a propriedade não

responde por dívidas, mas apenas o corpo do devedor. No antigo direito das cidades

helênicas, não se conhecia a expropriação por dívidas e muito pouco a hipoteca. A Lei

das XII Tábuas, embora não poupasse o devedor, não permitia o confisco da

propriedade em proveito do credor, já que “a terra é inseparável da família”111, com

base em que conclui Gassen112 que era bem mais fácil escravizar um homem do que

expropriar-lhe o domínio de suas terras, vez que estas não o acompanhavam na

escravidão. A disposição sobre a propriedade familiar somente legitimava-se em caso de

extrema necessidade, como expulsão por inimigo, doença ou se a família não fosse capaz

de tirar da terra o seu alimento;

b) os direitos sobre a terra são perpétuos: isto porque pertencentes a uma

família, somente se extinguindo se a mesma também se extinguir; passam, pois, de

geração em geração, sendo essa perpetuidade a própria garantia da continuidade familiar;

c) a casa assentada sobre a terra é inviolável: invadí-la é ato supremo de

impiedade, pois viola-se o culto doméstico, ofende-se o deus abrigado nesta casa;

d) os direitos sobre a terra gozam de garantia contra terceiros: Se o

homem dificilmente podia desapossar-se de sua terra, “com maior razão o não deviam

despojar dela, contra a sua vontade”. Não se admitia, assim, expropriação por ato de

império, motivada em utilidade pública, e mesmo o confisco somente se impunha como

109
op. cit. p. 102-103.
110
FINLEY. op. cit. p. 164.
111
FUSTEL DE COULANGES. op. cit. p. 104-105.
112
op. cit. p. 78.
44

conseqüência da sentença de exílio, a qual, pondo fim ao título de cidadão, impedia o

exercício de direito ao solo nas cidades - disposição que desapareceu na idade

democrática das cidades113;

e) o uso da terra é exclusivo: cabe somente a uma família, devendo para

isso ser clara a extremação de uma propriedade em relação à outra.

Durante a Antigüidade, a terra era a principal fonte de riqueza, tanto moral

quanto materialmente, implicando a exploração da mesma em enriquecimento do senhor

e ascensão do mesmo na escala social e de poder, conforme reconhecido pela própria

população da época. No entanto, isto se faz dentro de um modo de produção voltado

essencialmente para a subsistência, que não tem paralelo possível com a exploração

capitalista da terra. Embora aos proprietários interessasse, de alguma forma, a percepção

de lucros, não lhes padronizava o comportamento o fato de viverem dos lucros extraídos

da terra, atitude que somente aparece com o empresário capitalista. Há, pois, várias

formas de explorar a terra, não se podendo supor que delas tenham sucedido e seguido

as formas capitalistas, numa relação de mera continuidade. Estando o domínio e a

fruição da terra tão entrelaçadas à instância familiar e religiosa da vida em sociedade, o

resultado é que não se distingue uma atividade econômica de aproveitamento da terra,

não se estabelece, assim, qualquer tipo de mercado de terras. 114 O investimento em terras

nunca foi objeto de decisões sistemáticas e calculadas segundo uma racionalidade

econômica, que não compunha, como esclarece Finley115, um sistema diferenciado e

autônomo de sociedade. O uso da terra, pois, haveria de manter o equilíbrio natural, pois

“[...] pela natureza todas as coisas recebem o seu alimento da sua mãe e da mesma

forma os homens recebem o seu da terra”.116

113
Sobre todo o parágrafo, ver FUSTEL DE COULANGES. op. cit. p. 104-105.
114
FINLEY. op. cit. p. 9, 163 e 266.
115
op. cit. p. 24 e 162.
116
FINLEY. op. cit. p. 169.
45

Em suma, todos esses fatores ajudam a compor o sentimento da união

indissolúvel com a terra, o qual comparecerá mesmo em épocas muito posteriores,

somente cedendo, se bem que não por completo, ao avanço da economia de mercado.

Temos, de outro lado, vários embriões de modernos institutos civis e até constitucionais.

Assim, de um lado, os direitos de propriedade na antigüidade são, de maneira geral,

absolutos, conhecendo hipóteses bastante excepcionais de restrição, o que apontaria na

direção da propriedade burguesa. De outro lado, no entanto, estão submetidos à

concepção de cidade reinante, havendo, por isso, uma certa publicização dos mesmos.

Nas palavras de Aristóteles:

“propriedade é uma palavra que deve ser entendida como parte: a parte

não se inclui apenas no todo, mas pertence ainda, de um modo absoluto, a

qualquer coisa além de si própria”. 117

Mais adiante, o mesmo faz duas colocações em estreita sintonia com o

conceito moderno de função social da propriedade, ao qual o autor evidentemente não

faz referência, porém inequivocamente concebe-o em seu conteúdo:

“O melhor e preferível é que os bens pertençam aos particulares, mas se


tornem, por assim dizer, propriedade comum pelo uso que dêles se faça.
[...] Pensamos que a propriedade não deve ser comum, como o pretendem
alguns escritores; mas que a amizade entre os cidadãos poderá tornar o
seu uso comum”.118

Parece-nos que o autor deseja evidenciar a diferença entre a polis e as

primitivas comunidades tribais, valendo-se para isso da instituição da propriedade,

concebendo-a como uma propriedade submetida às necessidades comuns da cidade, mas

diversa da propriedade comunitária e/ou coletiva, que seria pré-política. Parece-nos,

ainda, que ele deseja avançar em relação à própria vinculação da propriedade à família e

não a algum (ou alguns) ente definido desta, vez que essa não deixaria de ser uma forma
117
op. cit. p. 22. Grifo nosso.
118
ARISTÓTELES. op. cit. p. 10 e 174.
46

de coletivizá-la, possuindo-a o indivíduo na condição de depositário, já que a

propriedade pertenceria efetivamente “àqueles que morreram e aos que estão para

nascer”119 120
. Esta diferença pode, de fato, estar a demonstrar dois momentos distintos

na ideologia e nas relações sociais a respeito da propriedade.

Em qualquer hipótese, a propriedade sempre conhecerá algum nível de

socialização em vista de ser estritamente vinculada ao desempenho de uma determinada

função conferida pela cidade, sendo concebida de maneira oposta à concepção

individualista, que somente adquirirá predominância com o pensamento moderno.

Possuem um cunho sagrado, o que lhes reforça o galardão de inquestionáveis,

irrelativizáveis, desde que respeitados os deveres religiosos. O estabelecimento, a

substância e a garantia desses direitos são encontrados primeiramente na religião, na

divindade doméstica, e não num sistema jurídico-estatal diferenciado da mesma. Assim,

tanto os poderes quanto os deveres do titular da terra têm esta mesma ascendência.

Aqui, estamos diante da não-diferenciação das esferas normativas que

denotaria o sistema jurídico pré-moderno, sistema, conforme lição de Weber121, não-

racionalizado em bases formais de maneira a converter-se em fonte autônoma de

imposição de normas de conduta. Não que a lei não pudesse dispor a respeito; de fato a

legislação da época o fez, mas segundo o espírito dominante nas leis daquele período: o

de ratificar aquilo que já era um fato social pretérito. Temos, então, que a relação entre a

comunidade familiar titular da propriedade e o bem objeto da mesma é recheada de forte

vínculo místico, ligando os homens à terra de um modo mais profundo, gerando um

“direito de propriedade [...] muito mais completo e absoluto nos seus efeitos, do que

pode ser nas sociedades modernas, em que é fundado noutros princípios”.122 As leis
119
ARISTÓTELES. op. cit. p. 103.
120
Importante registrar que o uso dos bens hoje existentes, tendo em vista as gerações futuras, é um dos
princípios consagrados no debate contemporâneo a respeito do chamado desenvolvimento sustentável.
121
WEBER, Max. Economia y sociedad. Ciudad do Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1992.
122
FUSTEL DE COULANGES. op. cit. p. 102.
47

pelas quais os antigos garantiam uma propriedade determinada é, pois, diversa daquelas

mesmas leis pelas quais o fazem as sociedades capitalistas contemporâneas, o que

determina, em cada caso, a existência de diferentes atributos dessa propriedade.

Pode-se, no entanto, considerar que malgrado toda a secularização que

marca o advento da modernidade não se apartaram inteiramente do imaginário jurídico e

social das sociedades contemporâneas a idéia de redutos indevassáveis, intocáveis,

analisados desde uma perspectiva sacral. Embora tenham desaparecido os ônus religiosos

e familiares que sobre ela pesavam, não desapareceu, de outro lado, uma certa ideologia

religiosa a respeito do direito de propriedade, que ora se apresenta explicitamente como

tal, ora pela forma mais racionalizada de dizê-lo um direito ou uma exigência natural e

intrínseca do ser humano, como se o mesmo fora criado com a concepção burguesa de

propriedade impressa em sua alma.

Com advento e triunfo histórico do cristianismo, se finda o processo de

transformações na sociedade antiga, que se iniciara seis ou sete séculos antes de seu

advento e que se reflete diretamente no estatuto da propriedade e nas nuanças

assinaladas a respeito do mesmo. Mediante este fato demarca-se, especialmente para o

mundo ocidental, o fim da sociedade antiga com sua religiosidade pagã, levando à

extinção o culto doméstico - privado - e encaminhando a humanidade para um mais

elaborado123 sistema de crenças: o culto da cidade, a religião pública praticada nos

grandes templos existentes nas cidades. Desfaz-se, pois, o isolamento exigido pela

religião familiar, que impossibilitava ou entravava a vida em comum fomentada pela

cidade e pelas novas formas de coesão que nela se deveriam estabelecer. 124 Nesse

sentido, percebe-se uma flexibilização dos princípios reitores da propriedade, posto que,

123
Termo a que recorro em seu sentido mais neutro e rigoroso, desprovido de qualquer juízo de mérito
sobre quaisquer das expressões religiosas em questão, o que, além de subjetivismo incompatível com o
trabalho científico, representaria postura claramente evolucionista.
124
Conforme GASSEN. op. cit. p. 78.
48

paulatinamente, perdem sentido aquelas normas a seu respeito que mantivessem alguma

relação com o sistema religioso familiar. Coulanges125 nos fornece, a esse respeito, alguns

importantes exemplos:

- conservando-se o caráter inalienável dos túmulos, isentaram-se os campos

de tal condição (regra que representa, e consagra, a quebra da unidade campo-cidade);

- permite-se o parcelamento da propriedade familiar na hipótese de existirem

muitos irmãos, com a condição de ser feita mediante solenidade religiosa;

- enfim, permite-se a venda do domínio, exigindo-se, da mesma forma,

formalidades religiosas (como sacrifícios aos deuses).

No campo da propriedade, essa transformação configura um divisor de

águas na história desse instituto, já que, assim, liberou-se a terra das funções familiares e

religiosas, às quais estava dantes fundamentalmente adstrita. Podemos considerar esse

como o primeiro pré-requisito colocado à futura revalorização deste bem, onde passaria

a constituir-se, também, como um valor de troca, donde se desdobrará o surgimento de

um mercado de terras.

2.4 A propriedade na nova ordem urbana

2.4.1 A emergência do ‘mercado’

Uma das principais modificações históricas ocorridas no cenário das cidades,

e que rapidamente repercutirá também sobre o ambiente rural, é a formação do mercado.

Este de alguma forma se insinuara durante a antigüidade, vindo a se aprofundar com

mais clareza durante o período medieval, até chegar a posição dominante com a

formação de sistemas econômicos de mercado126, o que corresponde ao advento do


125
op. cit. p. 104.
126
Conjunto de instituições, regras e modos estabelecidos de pensamento que organizam a vida
econômica, nos quais se supõe a prevalência de um regime concorrencial perfeito de formação de preços,
ou seja, onde estes se formam imunes a qualquer tipo de imposição ou comando centralizado. Trata-se
49

modo de produção capitalista e da ordem social daí decorrente, baseada

fundamentalmente na livre iniciativa e no direito de propriedade privado e individual.

Nesse sentido, a cidade medieval (ocidental), sobretudo a partir do século XII,

aproximadamente, possui um significativo contraste com relação à cidade antiga, que é o

de, sem perder seu caráter político, ter sido principalmente uma cidade comercial,

artesanal e bancária.127 Nela observamos uma expansão populacional, econômica e

tecnológica, na qual se restabelece a simbiose campo-cidade debilitada desde a queda do

Império Romano ocidental, ocorrida no século V da era cristã.128 Com tais expansões, os

mercadores, outrora nômades e relegados para fora da cidade, começam a pertencer à

cidade129 e a se integrar no tecido urbano.130 Multiplicam-se então as grandes rotas

comerciais - muitas delas à longa distância -, alianças comerciais - sendo a Liga

Hanseática a de maior envergadura -, e conhecem grande desenvolvimento os sistemas

bancário e creditício - onde destaca-se a Península Itálica.131 Motivados por todos esses

fatores, institucionaliza-se a praça de mercado e o dia de feira132, isto é, reuniões ou

encontros periódicos e regulares de comerciantes - e não só destes, mas de artistas,

intelectuais, funcionando como um momento de amplos intercâmbios sociais, conforme

afirma Henry Loyn.133 Em termos do processo de urbanização, o incremento do

comércio irá redundar no surgimento de novas cidades em toda a Europa.

Tão ou mais importante que o surgimento do mercado em si, porém, é a

de um termo considerado mais exato do que ‘economia de mercado’, usualmente utilizado, de maneira
errônea, para designar a economia capitalista. Nesse sentido, ROSSETTI, José Paschoal et al. Economia
de mercado: fundamentos, falácias e valores . Rio de Janeiro: IBMEC/CODIMEC, 1985. p. 28 e ss.
127
COMÉRCIO. In: LOYN, Henry R.(org). Dicionário da idade média . 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997. p. 99-100.
128
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. História econômica da América Latina. 3. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1988. p. 10
129
CASTELLS. op. cit. p. 21. Conforme a mesma fonte, a ideologia do pertencimento à cidade, que já
existira no período greco-romano, encontra então um novo momento de enraizar-se, prolongando-se até
a cidade industrial.
130
Conforme LEFEBVRE. op. cit. p. 4.
131
COMÉRCIO. op. cit. p. 99-100.
132
MUMFORD. op. cit. p. 445 e ss.
133
COMÉRCIO. op. cit. p. 99 e ss, e 144 e ss.
50

formação de uma ética do mercado, o que também se inicia nesse período. Por esta,

transferem-se ao mercado valores que até então orientavam práticas estritamente

religiosas, como, por exemplo, abstenção, abnegação, ordem sistemática, adiamento de

prazeres presentes em troca de maiores recompensas futuras. Os negócios são

permeados de valores ascéticos, produzindo ganhos crescentes e visíveis.134 Em fins do

século XVIII, Adam Smith emancipa a ciência econômica ao separá-la da filosofia moral.

Tal fato, pertencente ao mundo das idéias e do saber científico, acompanha aquela

mudança que há algum tempo vinha se processando no plano histórico, onde se constitui

uma vida econômica (o comércio, o afã de lucro) como sistema diferenciado da vida em

sociedade, deixando de ser um capítulo de outras atividades urbanas, embora, para isso,

se aproprie de bens simbólicos a estas pertencentes, como no exemplo acima. Tanto o

termo ‘feira’ quanto a atividade material nesta realizada provém de matriz religiosa,

muitas vezes adotando nomes de santos, que eram como seus protetores, e ocorrendo

em dias festivos da Igreja, isto é, em feriados - do latim feriae, que significava dia de

repouso em honra dos deuses.135

Com tais modificações, o comércio libera-se de justificar-se em alguma outra

instância, isto é, deixa de estar em função de fins superiores, mas passa a ser um fim em

si mesmo. Mumford vai além, afirmando que surge então “uma nova espécie de ordem

urbana, na qual os negócios tinham precedência sobre todas as outras espécies de

atividades”.136 A atividade que objetivava lucro deixa, pois, de assumir aquele caráter de

excepcionalidade, e até de antinaturalidade e injustiça, que antes se lhe emprestava,

tornando-se algo de ordinário na vida das cidades, a tal ponto de não mais caber falar-se

em dia especial de feira, já que todos os dias são dias de feira. O comprar e o vender

perdem seu caráter incidental e passam a figurar como preocupações permanentes de


134
MUMFORD. op. cit. p. 449.
135
FEIRAS. In: LOYN. op. cit. p. 144.
136
op. cit. p. 457-458.
51

todas as classes.137 Naturalizam-se e trivializam-se as atividades que têm por objeto a

obtenção de dinheiro, o mero acumular, que passa a justificar-se em si mesmo - o

ganhar por ganhar. Esmaecem-se os óbices morais, religiosos e jurídicos próprios às

formas de coesão social pré-capitalistas, os quais faziam da finalidade lucrativa uma

finalidade socialmente subordinada. No campo moral e religioso em muito contribuiu o

advento do protestantismo, aspecto objeto de clássico estudo de Max Weber. 138 No

campo jurídico, libera-se a atividade do mercado mediante a institucionalização, como

direitos, de várias liberdades - como o princípio voluntarista (autonomia da vontade),

livre exercício de profissões, dentre outras, bem como as garantias que cercam os

contratos e a propriedade privada.

A constituição do mercado como engrenagem base do sistema econômico

possui implicações em diversos níveis. Comecemos pela configuração da cidade, que,

conforme já expusemos, pode ser tomada como matriz de todo o sistema social. Nesta

verifica-se a dissolução daquele substrato ético-político de matriz helênica, vale dizer,

alterou-se toda a ordem urbana na medida em que se alteraram os seus fundamentos de

existência, aquilo que definiria sua razão de ser. Aqui, visualiza-se concretamente o que

afirma Mumford139 a respeito da ordem capitalista, que se revelou um verdadeiro

solvente químico dado o nível em que desfez as instituições históricas e suas edificações.

De locus da civilização, a cidade passa a ser encarada como praça mercantil cujo sentido

é viabilizar a existência de negócios e, logo, a percepção do melhor resultado possível

em tais negócios, levando-a a se esquecer completamente daquilo que tinham sido sua

natureza e finalidade. Assim, de um sistema de crescimento propositado e/ou finalístico

passa-se a expansão sem propósito e sem limite, pois a economia que se expande

137
MUMFORD. op. cit. p. 471.
138
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 9. ed. São Paulo: Pioneira, 1994. 233
p.
139
op. cit. p. 448.
52

dedicada aos lucros não dispõe das limitações internas próprias da economia voltada a

satisfação das necessidades da vida - oposição que permeia toda a abordagem que

Mumford faz das transformações que conduzem a cidade moderna, que ele vai

denominar Megalopolis140, o que será objeto da seção seguinte. Esse processo de

mercantilização da vida na cidade induz o mesmo autor a afirmar que:

“[...] a cidade planejada dentro daquelas linhas podia propagar-se em

qualquer direção. [...] Todas as ruas podiam tornar-se ruas de tráfego;

todos os bairros podiam tornar-se bairros de negócios”.141

Efetiva-se, assim, aquela grande redução da qual a civilização grega desejava

prevenir-se. Sabedora de que “nada existe que não possa tornar-se objeto de uma

troca”142, temiam que a sua polis não constituísse mais que um mero aglomerado

humano e de edifícios, ambos reificados, isto é, não vistos senão como meios de

multiplicar riqueza. Na cidade mercantil, a única função considerada foi aquela da

intensificação progressiva do uso, tendo em vista atender às necessidades dos negócios

ora em fase de expansão. “Prosseguir torna-se a meta”.143 Assim, desmantela-se a vida

urbana tal como estruturada desde a cidade política, sendo reestruturada numa base que

não possui qualquer fim ou função definível além de sua própria expansão. As plantas

urbanas passam, então, a ser realizadas segundo a finalidade básica de obter o máximo

número de lotes comercializáveis, intensificando-se assim o aproveitamento da terra, nos

planos tanto horizontal quanto vertical.144 Paulatinamente, a cidade deixa de ser tratada

como uma instituição pública, chegando ao século XIX como “uma aventura comercial

privada”, na qual, quando se tratava de obter lucros, “o interesse particular tinha

primazia, dentro da teoria capitalista clássica, sobre o interesse público”.145


140
op. cit. p. 567 e ss.
141
op. cit. p. 457.
142
ARISTÓTELES. op. cit. p. 32.
143
MUMFORD. op. cit. p. 588.
144
MUMFORD. op. cit. p. 458 e 465.
145
MUMFORD. op. cit. p. 461.
53

O sentido de obrigação pública que tanto marcava a cidade política

virtualmente desaparece ao longo do desenvolvimento do mercado até seus últimos

estágios, quando se conforma o capitalismo industrial. Para Mumford, o capitalismo

produziu seus melhores resultados, em termos de configuração urbana, durante o

período de dois a três séculos em que se manteve a vigilância de todo o conjunto urbano

no sentido de um bem público, uma das felizes heranças deixadas pela economia

medieval. Trata-se de um período em que aquele ainda não se tornara dominante e

exclusivo, subsistindo misturado a instituições mais antigas e sendo colorido por elas. A

este fator o autor atribui a fundação e desenvolvimento de todas as comodidades urbanas

conhecidas. No entanto, o triunfo comercial impôs a liquidação das antigas estruturas, e

a conseqüente “destituição cívica” em que isso importa.146

Segundo Mumford147, graças aos direitos dominiais feudais de longo prazo

ainda sobreviventes, cidades como Londres e Berlim escaparam por muito tempo dos

mais perversos resultados da conversão capitalista da terra urbana, como a especulação

imobiliária e a conseqüente elevação dos valores da terra e dos aluguéis. A terra feudal,

concedida por prazos de 99 ou de 999 anos - por várias gerações, portanto -, favorecia a

continuidade e reduzia o movimento ascensional dos preços. A posse feudal contemplava

deveres recíprocos entre senhor e arrendatários, ao contrário da propriedade comercial,

concebida sem nenhum tipo de obrigação além do pagamento de impostos.148

A conversão capitalista consistia em transformar um bem permanente num

produto como outro qualquer, cuja compra e venda é ilimitada. Converte-se em simples

mercadoria, sendo o valor de mercado o seu ‘único’ valor. Aliás, antes disso, é

necessário dizer que é em tal momento histórico que surge, ou amplia-se, a possibilidade

de comercializar-se a terra, que torna-se mais um dos mecanismo de fabricar dinheiro.


146
MUMFORD. op. cit. p. 480-481.
147
op. cit. p. 453.
148
MUMFORD. op. cit. p. 450.
54

Libera-se a terra naquele sentido de liberdade próprio do capitalismo, isto é, fuga de

regulamentação, limites ou restrições municipais, bem como às obrigações caritativas;

liberdade para o investimento e a acumulação privada, sem qualquer referência ao bem-

estar da comunidade como um todo. 149

Tarefas como a provisão de acomodações decentes para as famílias de

trabalhadores urbanos são, então, deixadas às operações de mercado, criando problemas

de superpopulação e insalubridade nas moradias por estas obtidas, o que foi objeto de

escritos de diversos autores a partir do final do século XVIII. Dentre eles, destacamos

aqueles que se notabilizaram por dar início, na primeira metade do século XIX, a

iniciativas e movimentos visando a reorganização de toda a paisagem urbana e rural

segundo novas relações econômicas e sociais, vindo por isso a ser reconhecidos como

fundadores do moderno urbanismo e da plataforma que hoje denominamos reforma

urbana.150 Referimo-nos aqui a nomes como os de Robert Owen (1771-1858), Conde de

Saint-Simon (1760-1825), Charles Fourier (1772-1837), Étienne Cabet (1788-1856) e de

Friedrich Engels (1820-1895). São esses os líderes de uma das primeiras reações

orgânicas à cidade dominada e produzida pelo sistema de mercado, e os primeiros a

perceberem aquilo que, em nosso século, Castells afirmará:

“A produção de moradias é tal, na situação histórica estudada, que se

deixada a seu próprio encargo ela não seria capaz de alojar a maioria da

população das grandes cidades”.151

Tais autores, e ativistas sociais e políticos, demonstraram que com a

industrialização provocava-se um congestionamento urbano caracterizado por um

número demasiadamente grande de demandantes de acomodações, que existiam em

149
MUMFORD. op. cit. p. 450.
150
BENEVOLO, Leonardo. As origens da urbanística moderna. Lisboa: Editorial Presença, [1963]. p.
51-90.
151
op. cit. p. 188.
55

número limitado. O resultado disso é uma competição perversa que somente pressiona

para baixo os padrões de qualidade, higiene, conforto e segurança das habitações feitas

para suprir tal demanda. As disponibilidades habitacionais pioram na mesma e inversa

medida em que crescem as rendas da terra e, com ela, a concentração de renda.152 Sem

acesso ao solo urbano, as classes despossuídas permanecem fisicamente na cidade sem

habitar realmente nela, conforme expressão de Paul Singer153, aonde se percebe a efetiva

redução do papel e das funções da cidade, que nesse caso não passa de um aglomerado

humano sem civilidade e sem bem-estar.

Assim, a cidade perde o controle sobre a terra e, perdendo-o, escapará de

suas mãos o conveniente desenvolvimento das cidades segundo finalidades de caráter

público. A exceção ficará por conta daquelas cidades onde os antigos direitos feudais ou

prerrogativas reais reduziam o ritmo da implacável atividade comercial.154 Desde então,

fica clara a impossibilidade de uma cidade controlar e promover seu crescimento sem o

respectivo controle institucional do desenvolvimento de suas terras.155

Os dados acima suscitados a respeito da formação do mercado e,

especialmente, o mercado de terras, constituem elementos de suma importância

sobretudo porque marcarão a expansão colonialista ibérica dos séculos XV e XVI, e que

determinarão que tipo de cidade se procurará edificar em terras latino-americanas.156

2.4.2 Megalopolis: a nova face do complexo urbano

Nos séculos XIX e XX assistiremos ao desenvolvimento do sistema de

mercado, que passa a produzir em escala industrial, promovendo, no interior desta


152
MUMFORD. op. cit. p. 465.
153
Apud SANTOS, Boaventura de Souza. O Estado, o direito e a questão urbana. In: FALCÃO,
Joaquim de Arruda (org). Conflito de direito de propriedade: invasões urbanas. Rio de Janeiro:
Forense, 1984. p. 44.
154
MUMFORD. op. cit. p. 449, 451 e 456.
155
MUMFORD. op. cit. p. 461.
156
Ponto a ser mais desenvolvido no capítulo 3.
56

escala, sucessivas revoluções. Ao lado disso, assistiremos a novas etapas do processo de

urbanização, que nesse período adquire intensidade jamais vista. Há, de fato, um certo

paralelismo entre os dois processos referidos - o de industrialização e o de urbanização -

na verdade, dois aspectos inseparáveis do mesmo processo. Deles, afirma Henri Lefebvre

que “a produção industrial, após um certo crescimento, produz a urbanização, fornece

as condições desta e lhe abre possibilidades”.157 A cidade desempenhou importante

papel na arrancada do modo de produção industrial, pois, na medida em que nela se

permitiu a concentração de meios de produção, acelerou-se o crescimento da

produtividade industrial.158 De outro lado, formam uma unidade que é conflitante.159 A

industrialização significa uma nova etapa na história das cidades, uma virtual refundação

das mesmas, pressupondo, conforme Lefebvre, “a ruptura do sistema urbano pre-

existente”.160 “A urbanização da sociedade industrializada não acontece sem a

explosão daquilo que ainda chamamos ‘cidade’ ”161, com a sociedade urbana se

constituindo sobre as ruínas desta.

Assim, um dos resultados do processo de expansão ilimitada da atividade do

mercado é o contínuo aumento do número, da área e da população das grandes cidades.

Estas passam literalmente a invadir o campo, avançando sua área sobre ele e

transformando-o em periferia urbana.162 No século XX, num sem número de países, a

cidade supera o campo tanto em desenvolvimento das forças produtivas, como em

população e em área geográfica ocupada. A isto podemos somar as remotas e originárias

funções político-administrativas, militares e científicas (função de centro produtor de

conhecimento) da cidade, as quais são mantidas nas cidades modernas, conformando um

157
op. cit. p. 80.
158
LEFEBVRE. op cit. p. 7-8.
159
LEFEBVRE. op. cit. p. 9.
160
LEFEBVRE. op. cit. p. 6.
161
LEFEBVRE. op. cit. p. 75.
162
MUMFORD. op. cit. p. 461-463.
57

conjunto de meios que lhe asseguram poderes de direção e organização social.

De outro lado, seu crescimento não deixa de vincular-se à influência da

burocracia que expande para todos as esferas da vida os chamados controles

organizacionais.163 Neste âmbito, podemos situar um fator de transformação da relação

cidade-campo: o aparecimento daquilo que Mumford designa por cidade invisível164, na

qual preponderam mecanismos mais sutis de controle, de socialização e de exploração.

Os poderes reinantes se eterizam, se desmaterializam, tornam-se obscuros e impossíveis

de posicioná-los, operando “abaixo do limiar da observação habitual”.165 Logo, são

mais eficientes, na medida em que se torna mais difícil combatê-los. Diante das

vicissitudes do enfrentamento, por exemplo, de um cartel internacional, apareceria muito

mais fácil romper uma muralha medieval e matar o rei. Não há mais necessidade, e nem

conveniência, de existência de realeza, pelos menos enquanto algo definido de maneira

concreta e palpável, pois o palpável é, por causa disso, atingível.166

O resultado final do processo acima aludido é o de que a cidade engole e

subordina o campo, aparentemente de forma definitiva. A economia dominante é uma

economia metropolitana, na qual não há qualquer empreendimento eficiente que não se

encontre firmemente ligado à grande cidade. No atual estágio econômico, pois, a cidade

é o reservatório natural de capital, sendo os seus bancos, escritórios e bolsas de valores

o ponto de reunião das economias do campo que as rodeia.167 Extrai-se de um olhar

panorâmico sobre as cidades contemporâneas o desaparecimento da aguda divisão entre

cidade e campo.

Na tradição marxista, entende-se que toda divisão desenvolvida do trabalho

tem como fundamental a separação entre cidade e campo, e que essa própria separação
163
MUMFORD. op. cit. p. 575 e ss.
164
op. cit. p. 606.
165
MUMFORD. op. cit. p. 606.
166
MUMFORD. op. cit. p. 574.
167
MUMFORD. op. cit. p. 578.
58

já é uma das primeiras e fundamentais divisões do trabalho criadas pelas trocas de bens

utilitários, nas quais, grosso modo, se distribui ao campo o trabalho material e/ou

natural, e à cidade o trabalho intelectual e/ou espiritual.168 169


No entanto, nas formas

atualmente dominantes de espacialização do capital percebe-se uma diversificação e

hierarquização do espaço urbano, de forma a que a contradição clássica urbano-rural se

desloque para o eixo urbano-urbano, ou metrópole-urbano.170 O desenvolvimento do

capitalismo como fenômeno eminentemente urbano extrapolou, pois, o horizonte original

de Marx, o qual tratou da subordinação do campo à cidade que necessariamente

resultaria desse desenvolvimento, mas não do avanço desta sobre aquele. Palco do

florescimento primeiro do mercantilismo, e mais adiante do modo de produção

capitalista, a cidade constitui manifestação da mais intensa divisão do trabalho intelectual

e manual, sendo própria do capitalismo industrial, pelo menos em seu estágio inicial, uma

dominação do campo mediante a cidade171, onde a divisão do trabalho se define a partir

da dinâmica própria da economia urbana, mantendo-se, entretanto, a especificidade de

cada um dos aludidos espaços. No entanto, Paul Singer172, sem desviar-se de seu

referencial marxista, tem verificado que na economia industrial contemporânea o

desenvolvimento tecnológico, contribuindo para uma progressiva urbanização do campo,

projeta uma resolução da aludida subordinação mediante o desaparecimento do campo

como forma distinta de organização da vida social. Ou seja, prefigura-se o

desaparecimento do espaço-tempo rural enquanto tal, na forma pela qual o mesmo se

168
LEFEBVRE. op. cit. p. 28-29.
169
FINLEY. op. cit. p. 266. Conforme a mesma fonte, enquanto no marxismo concebe-se uma
hostilidade fundamental entre cidade e campo, a economia política de Adam Smith considera a
existência de um comércio harmônico entre ambas, não interpretando os ganhos da cidade como perdas
para o campo, já que ambos não estão em competição entre si, mas numa relação de mutualismo e
reciprocidade. De qualquer forma, em ambas as escolas coloca-se claramente a mesma linha divisória
fundamental entre os dois setores da atividade econômica e da vida social, bem como se entende o
campo como plenamente inserido nas relações capitalistas de produção.
170
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 24.
171
SINGER. op. cit., 1975. p. 11-28 e 94 e ss.
172
op. cit. p. 94.
59

definiu ao longo do desenvolvimento do modo de produção capitalista.

Para Lefebvre “a relação cidade-campo mudou profundamente no decorrer

do tempo histórico, segundo as épocas e os modos de produção, sendo ora

profundamente conflitante, ora mais pacífica e perto de uma associação”.173 Numa

mesma época manifestam-se relações bem diferentes. Em qualquer caso, no entanto, “a

cidade em expansão ataca o campo, corrói-o, dissolve-o”174, penetra na vida camponesa

para despojá-la de seus elementos tradicionais e de sua especificidade. Isto não significa

a resolução da contradição entre cidade e campo, o que este autor só admite na hipótese

(que julga distante) de superação concomitante da divisão do trabalho social da qual

aquela contradição faz parte e, mesmo nesta hipótese, não cogita de que essa se dê por

uma confusão generalizada, onde um dos pólos se perca no outro. Entende que essa

contradição tem se atenuado no plano da morfologia material - isto é, da realidade

imediata, prático-sensível, arquitetônica - mas não no plano da morfologia social - isto é,

das relações sociais a serem concebidas, construídas e reconstruídas pelo pensamento -

onde, ao contrário, ela se acentua.175

A persistência desses recipientes supercrescidos - como Mumford176

denomina as cidades contemporâneas - também no mundo socialista, aponta para a

universalidade do fenômeno e sua condição de manifestação concreta de forças

civilizatórias dominantes. Nunca teria sido tão verdadeira a conhecida máxima de que

‘todos os caminhos levam a Roma’.

Na forma exposta nos parágrafos antecedentes pode ser definido o processo

de expansão urbana definido como megalopolização, termo que se convencionou para

designar a expressão última de áreas metropolitanas. Tais áreas têm merecido a contínua

173
op. cit. p. 68.
174
LEFEBVRE. op. cit. p. 68-69.
175
LEFEBVRE. op. cit. p. 49 e 69.
176
op. cit. p. 568-569.
60

atenção de diversos organismos - públicos e privados, nacionais e multinacionais - da

comunidade internacional em épocas recentes. O processo de megalopolização tem

conhecido novos capítulos, isto é, adquirido novas nuanças, ao contrário do que uma

determinada, e sempre presente, perspectiva de fim da história tem levado a supor.

Desde a década de 1960 observa-se um processo de dispersão urbana, espalhando-se

pelos arredores das megalópoles, e até para regiões mais remotas, uma parcela crescente

da população urbana bem como das plantas industriais. O sentido de tal movimento

consiste na procura das condições de vida e de produção que se tornaram inacessíveis no

núcleo central. Tem, então, ocorrido que as cidades genericamente chamadas de médio

porte, ou centros regionais, cresçam em ritmo mais rápido que as próprias megalópoles,

o que pode fazer com que aí se reproduzam os mesmos problemas que historicamente

entorpeceram a vida nas cidades se não submetido esse crescimento a determinados

processos orgânicos. Por tais processos, entende Mumford um conjunto de finalidades e

de metas, estabelecidas pela cidade, que funcionem como controles internos e que

confiram uma coordenação ao crescimento.177 Em suma, o desafio da cidade

contemporânea e o desafio de autolimitar-se.

2.4.3 O significado econômico da propriedade na cidade capitalista

A análise histórica do processo de urbanização deve ser complementada e

aprofundada pela análise estrutural da propriedade fundiária, agrícola ou urbana, e do

papel importante e contraditório desta na consolidação do capitalismo. Segundo a teoria

marxista, os direitos sobre a terra instituídos significam muito mais do que a mera

“garantia do exercício da possibilidade”178, isto é, o exercício, pelo seu titular, de

determinadas faculdades dominiais, ou mesmo o objeto desta atividade. Ao contrário,


177
MUMFORD. op. cit. p. 596
178
ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago. In: ___ . Obras Completas - VI. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 16.
61

trata-se de uma relação essencial, isto é, “a propriedade dos meios de produção é o

princípio orgânico que determina tanto as relações de produção como as de

distribuição”.179 Nas formações sociais capitalistas, no entanto, a análise da propriedade

do solo deve centrar-se não na propriedade em si, mas, como preceitua Boaventura

Santos, “no capital a cuja lógica seu conteúdo econômico submete”.180

A transição das formas de solidariedade social, que conduzem a emergência

da comunidade política em lugar da comunidade familiar, levam a um crescente

privilégio, tanto social quanto jurídico, do indivíduo singular como centro referencial do

sistema social, que passa, em seu modelo mais avançado, a ser classificado como

individualista. Na comunidade política urbana, que tem no Estado moderno a sua

corporificação última, centralizam-se os poderes e direitos dantes difusos na tradição

antiga e medieval, os quais, uma vez centralizados, emancipam-se em relação às formas

jus-políticas intra regnum e supra regnum.

No tocante à propriedade, tais transformações importam numa

individualização progressiva dos direitos referentes à terra, que cada vez mais passam a

tocar a um sujeito definido e independente de seu extrato familiar ou ocupacional.

Praticamente elimina-se, assim, a antiga divisão da propriedade em vários e

hierarquizados domínios, a qual foi engendrada pelas relações de vassalagem. Nestas, há

uma coexistência de possuidores, a títulos diversos, sobre um mesmo bem, a saber: o

domínio eminente (detido pelo Príncipe), o domínio direto (detido pelo senhor feudal) e

o domínio útil, também denominado tenência (detido pelo camponês-vassalo).181 A

individualização da propriedade do solo é usualmente considerada uma das condições do

desenvolvimento capitalista, pois por esse mecanismo desvinculou-se da terra uma

enorme massa de camponeses, que vieram a se constituir em mão-de-obra para o


179
FINE. op. cit. p. 304.
180
op. cit. p. 56.
181
CARDOSO. op. cit. p. 18.
62

trabalho assalariado nas indústrias. Na Europa ocidental, a apropriação individual está

ligada à dissolução do modo de produção feudal, enquanto na América colonial está

imediatamente ligada à natureza política da relação colonial.182 As revoluções burguesas

do século XVIII procuraram, pois, numa batalha política e jurídica, pôr fim à concepção

medieval de propriedade, formada desde que a soberania romanista havia sido destruída

em fins do século V, quando se dissolveu o modelo de cidade e as relações de produção

e de apropriação do solo constituídas sob o Império Romano. Desenvolve-se, então, uma

concepção unitária do direito de propriedade, onde o proprietário é considerado senhor

único e exclusivo de sua terra, sobre a qual a liberdade de disposição do titular pode

exercer-se plenamente. A esse respeito, é sintomático o dispositivo presente nas

codificações modernas de Direito Civil, que prescreve a presunção legal juris tantum da

exclusividade e ilimitação do domínio183, o que corresponde, pois, a um dos princípios

que governam a propriedade moderna. De outro lado, a propriedade fundiária, que no

modo de produção feudal constituía relação de produção, converte-se, no capitalismo,

em vínculo jurídico, estabelecedor de um monopólio legal do seu uso. 184 Tal

transformação constitui um dos vetores das transições havidas entre os dois modos de

produção.

O supracitado conjunto de prerrogativas e liberdades cometidas ao

proprietário pertence, pois, à teoria conceitual da propriedade de matriz burguesa. Nesta,

o domínio particular é enfocado não mais somente como valor de uso, isto é, um bem de

consumo, adstrito à satisfação de uma finalidade familiar e religiosa. Trata-se agora de

encará-la e institucionalizá-la, sobretudo enquanto valor de troca, ou seja, um bem de

produção, uma mercadoria capaz de ser integrada num processo de trocas mais amplo

182
Conforme SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 26-27. Este ponto será mais aprofundado no capítulo 3.
183
No caso brasileiro, trata-se do art. 527 do Código Civil em vigor. BRASIL. Código civil e legislação
em vigor. 16. ed. São Paulo, Saraiva, 1997. p. 123.
184
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 27.
63

que a economia de subsistência, satisfazendo finalidades que na economia hodierna

colocam-se numa relação de complementaridade recíproca. Já ao seu tempo, Aristóteles

havia concebido tal distinção entre duas ordens de valor:

“Toda propriedade tem duas funções particulares, diferentes entre si: uma
própria e direta, outra que não o é. Exemplo: o calçado pode ser posto nos
pés ou usado como meio de troca; eis, pois, duas maneiras de fazer uso
dêle. Aquele que troca o calçado por moeda ou por alimento com o que tem
precisão de calçados, dêle faz justo uso, como calçado, mas não um uso
próprio e direto, porque não foi feito para troca”.185

No ambiente econômico e cultural do capitalismo, que envolve tanto as

cidades quanto o campo, temos uma emergência dos valores de troca, em detrimento dos

valores de uso, pois toda propriedade, em princípio, é objeto de troca, é “coisa de

comércio”, é disponível e alienável. A grande transformação consistiu em fixar

profundamente este critério ao nível tanto do imaginário como do próprio

comportamento social. Em termos do fenômeno jurídico, esta fixação se dá quer através

de um processo que designaríamos ideal - o discurso jurídico contido nas leis, nas

sentenças e nas obras doutrinárias - quer por um processo que diríamos real - as mesmas

fontes jurídicas, tomadas enquanto fundamentadoras de relações sociais, vale dizer, de

práticas sociais materiais.

A história da cidade, assaltada que foi pela irrupção da industrialização e do

capitalismo que Lefebvre denomina concorrencial, fica marcada assim pela passagem da

dominação do valor de uso à dominação do valor de troca, ou, da substituição da cidade

enquanto obra pela cidade enquanto produto.186 Ao contrário, no entanto, a cidade,

segundo o mesmo autor, só tinha e só tem sentido como ‘obra’ e, logo, como fim, como

lugar de livre fruição, como domínio do valor de uso.187 A colocação abaixo bem

185
op. cit. p. 31-32.
186
LEFEBVRE. op. cit. p. 14-15.
187
op. cit. p. 76.
64

identifica a sua hipótese fundamental:

“A cidade e a realidade urbana dependem do valor de uso. O valor de troca


e a generalização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao
subordiná-las a si, a cidade e a realidade urbana, refúgios do valor de uso,
embriões de uma virtual predominância e de uma revalorização do uso.”188

No entanto, as análises da economia capitalista, especialmente do ponto de

vista marxista, admitem que todo tipo de mercadoria possua não uma ou duas, mas três

espécies de demanda, vale dizer, três espécies de motivação para a sua posse: demanda

direta (ou enquanto valor de uso); demanda enquanto fator de produção (ou enquanto

valor de troca); demanda enquanto bem de investimento (ou reserva de valor).189 No

curso do desenvolvimento do sistema de mercado, portanto, acrescenta-se esta terceira

demanda às anteriores, já identificadas desde a ‘economia’ antiga. Lançam-se,

conseqüentemente, as bases do rompimento da univocidade do conceito de propriedade,

pois se pode falar:

1) de uma propriedade simples ou comum, colocada em seu uso final pelas ordens

ou esforço pessoal direto de seu titular, e voltada a funções particulares como o

atendimento de necessidades subjetivas de subsistência, estando, por isso, fora

do mercado e sendo, assim, definida como estática. No caso da propriedade

fundiária, trata-se, no setor urbano, da propriedade utilizada intuito moradia,

isto é, a residência habitual, ou a propriedade do local de trabalho dos

produtores diretos (artesão, pequeno comerciante, pequeno industrial). Já no

setor agrícola, trata-se da chamada propriedade camponesa, ou propriedade

parcelar dos utilizadores diretos;190

2) de uma propriedade capitalista propriamente dita, voltada ao mercado, que


188
op. cit. p. 6.
189
A esse respeito consulte-se SERRA, Mozart Vitor & SERRA, Maria Teresa Fernandes. As invasões
de terra urbana: o alcance e as limitações da economia neoclássica no seu exame. In: FALCÃO. op.
cit. p. 136-139.
190
Conforme SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 46-49.
65

constitui um capital de seu titular e que, portanto, está vocacionada a expandir-

se e a multiplicar-se uma vez que seja integrada ao processo produtivo, sendo

possível agregar-lhe valor mediante o trabalho social, e, por isso, sendo definida

como dinâmica. Aqui, encontramos a propriedade industrial, apropriada como

condição de produção, e a propriedade financeira, apropriada como condição de

investimento. Embora autônomas, ambas têm em comum serem objetos de

atividade capitalista, servindo de substrato a atividades específicas cada vez

mais associadas e interligadas, sendo preferível abordá-las num só tipo, “ainda

que internamente diversificado”.191 Estando o solo inserido numa dinâmica de

máxima rotação de capital e obtenção de sobrelucros mediante venda, ele será

detido apenas pelo período necessário a execução da respectiva promoção

imobiliária. Trata-se, pois, de uma propriedade fugaz;

3) de uma propriedade que funciona como estoque e/ou como meio para obtenção

de rendimentos financeiros, representando reservas ou disponibilidades que não

estão vinculadas a nenhuma empresa ou ao atendimento de obrigações e

encargos quando estes se tornarem exigíveis. Ao contrário, gozam de ampla

liberalidade, sendo capazes de gerar benefícios (lucros ou situações de

vantagem no mercado) mesmo sem participar diretamente da atividade

produtiva, representando um reforço e uma garantia da integridade do capital.

Trata-se de uma propriedade que interfere na esfera da produtiva pela sua não-

ação, sendo comumente designada propriedade especulativa.192 193

Podemos, ainda, com base em Boaventura Santos194, nos referir a uma

modalidade de propriedade próxima a esta última, mas em essência diferente desta, dado
191
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 51-52.
192
SERRA & SERRA. op. cit. p. 136 e ss.
193
LIRA, Ricardo Pereira. O uso do solo urbano e a criminalidade. Temas atuais do direito brasileiro,
Rio de Janeiro, Primeira série, p. 144-153. 1987.
194
op. cit. p. 51.
66

que agora a terra não é um setor de investimento capitalista. Trata-se da grande

propriedade fundiária tradicional, que na Europa Ocidental resulta da transição do

feudalismo ao capitalismo, e na América Latina encontra-se ligada à dominação

oligárquica e patrimonialista de origem colonial que se preservou em larga escala,

mesmo após o fim do sistema colonial. Tal sorte de propriedade latifundiária é detida

pela velha burguesia fundiária urbana e rural (os coronéis e suas famílias, bem como a

Igreja), estando relacionada a funções e objetivos sociais que transcendem os critérios de

produtividade capitalista, produzindo rendas muito inferiores às taxas médias de lucro da

apropriação industrial-financeira. Há, aqui, uma ausência de rotação de capital, estando

ele todo imobilizado na própria terra. Esta espécie de propriedade vem conhecendo

constante declínio, principalmente na Europa, face ao já aludido avanço da cidade sobre

o campo, bem como, supomos, face aos fatores acima mencionados, que revelam a sua

não adaptação às relações capitalistas.

Pode-se, por fim, falar-se de uma propriedade estatal, que também tem tido

peso decrescente na estrutura fundiária tanto urbana quanto rural, restringindo-se

progressivamente àquele solo de domínio público inalienável, vez que observa-se uma

alienação sistemática das reservas fundiárias do Estado. Na experiência brasileira, tal

alienação tem sido feita, tradicionalmente, sob a forma de regularização jurídica do

apossamento já realizado por particulares, passando, a partir do século XIX, a ser

realizada também sob a forma de compra e venda. Em tempos mais recentes,

observamos que a alienação de terras públicas vem se transformando em política oficial

do Estado, vendo-se em suas entrelinhas a vigência do princípio da despatrimonialização

dos entes políticos, entendido como parte da concepção de Estado então dominante. 195 O

195
Conforme as seguintes recentes reportagens: 1) SCHMIDT, Selma. O latifúndio que cabe à Prefeitura
do Rio. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 6 ago. 1995. 1º caderno, p. 33. 2) NOVO plano do prefeito.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27 set. 1995. 1º caderno, p. 19. 3) RIO vai vender 1.500 imóveis.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 jun. 1995.
67

pano de fundo de tais medidas é, claramente, o do Estado mínimo, associado à

privatização utilizada como mecanismo de ‘redução’ da dívida pública.

Originariamente, a teoria do valor de corte marxista196, baseada na premissa

de que todo valor existente é gerado pelo trabalho, afirmará que a terra virgem, assim

como o ar, os prados naturais, embora úteis ao homem, não constituem para ele um

valor, posto que não são produtos de seu trabalho, não configurando, por conseguinte,

uma mercadoria. Na mesma direção vão as palavras de Luiz César de Queiroz Ribeiro197,

para quem se tratam de “bens não-produzidos”, em uma palavra, naturais. Portanto, em

princípio, a substância do valor, seja de uso seja de troca, reside no trabalho humano

social e útil, o que permite que sejam todas elas aquilatadas e, via de conseqüência,

trocadas, mercantilizando-se todo e qualquer bem. No entanto, a mesma teoria

reconhece que a base do valor de uso reside nas qualidades próprias da mercadoria, que

em virtude dessas qualidades se habilita à satisfação de determinada necessidade. Já a

base do valor de troca, aquele fundamental na economia capitalista, que por isso será

designado como valor propriamente dito198, consiste no trabalho humano necessário à

sua produção.

Coloca-se, então, a questão referente a explicar como um bem não-

produzido pode possuir valor de troca na economia capitalista, mais especificamente, no

mercado de terras. Conforme Ribeiro, o fundamental a ser percebido é que a terra, em

verdade, possui não um valor, mas sim preço, adquirido em função da “demanda

capitalista por solo”, bem como do “monopólio legal de seu uso” 199, fator ao qual está

associada. Não é tipicamente um capital, mas em virtude desses fatores assemelha-se a


196
MARX. op. cit. v. 1, p. 41-94.
197
RIBEIRO, Luiz César de Queiroz. Espaço urbano, mercado de terras e produção da habitação. In:
MACHADO DA SILVA, Luis Antônio. Solo Urbano; tópicos sobre o uso da terra. Rio de Janeiro:
Zahar, 1981. p. 32.
198
SINGER, Paul. Curso de introdução à economia política. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1980. p. 11-25.
199
op. cit. p. 32-33.
68

este.

Os preços fundiários formam-se, primeiramente, a partir da hierarquia de

preços gerada pelas várias demandas dos agentes capitalistas, que valorizam seus capitais

através da utilização e da transformação do uso do solo urbano. Assim, a formação do

preço da terra urbana passa não somente pelo mercado de terras, mas, sobretudo, por

um outro produto do desenvolvimento tecnológico e acumulativo inerente ao capitalismo

urbano: o mercado imobiliário, vale dizer, um movimento de capitais que se reproduzem

a partir da produção e distribuição de edificações.

De outro lado, o preço adquirido pela terra urbana provém dos direitos

monopolísticos exercidos por seu titular, já tendo Aristóteles, em seu tempo, antevisto

que todos aqueles que podem criar um monopólio têm acesso à atividade de

“especulação lucrativa”200, vale dizer, de se capitalizar, criando um dinheiro que se

auto-reproduz. No contexto urbano, os aludidos direitos monopolísticos significam mais

do que parece à primeira vista, quando considerados de maneira atomizada. Em primeiro

lugar, significa monopólio sobre o uso do solo, através do direito real de propriedade

que pesa sobre o mesmo. O preço e a renda extraídos da terra não decorrem

automaticamente da operação do modo de produção capitalista, mas estão em

dependência funcional das condições sociais específicas de seu processo de produção em

cada comunidade delimitada.201 Entre essas condições, ressalta aquela pertinente ao tipo

de propriedade fundiária institucionalizada. O preço da terra não é, portanto, uma

qualidade estritamente econômica, mas incorpora centralmente os fatores jurídicos - e de

outras naturezas - que afetam seu funcionamento. Conforme pesquisas citadas por

Boaventura Santos202, já se verificou na economia urbana que a propriedade privada é o

centro privilegiado de decisões sobre o uso do solo, sendo objeto das transações
200
op. cit. p. 39.
201
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 45-46.
202
op. cit. p. 46.
69

imobiliárias não o solo em si, mas sim o complexo de direitos e faculdades vinculados à

sua apropriação. Em outras palavras, negocia-se de um lado e almeja-se de outro o

poder resultante da apropriação jurídica da terra. A importância econômica do direito de

propriedade deriva, portanto, “de seu papel de fonte de controle e de direitos sobre o

produto ou rendimentos produzidos [...] Trata-se de uma espécie de custódia sobre

ativos, recursos e meios de produção resultantes do esforço humano”.203

Em segundo lugar, esses direitos exercidos sobre o solo significam o

monopólio sobre o acesso ao consumo do que Ribeiro, dentre outros, denomina


204
“sistema espacial de objetos imobiliários”. Tal sistema nasce da articulação

qualitativa e quantitativa de vários valores de uso específicos, ou simples, a saber: vias

de transporte, de comunicações, subsistemas de captação, de tratamento e distribuição

de água, de recolhimento de esgoto, de distribuição de energia, e de abastecimento,

moradias, praças, parques, etc. Com base em tal sistema, que na verdade configura um

sistema de sistemas, nasce o que o mesmo autor chama “valor de uso complexo”205,

atribuído às propriedades fundiárias urbanas, que representam, como afirmamos, mais

que uma simples gleba (com eventual construção) assim definida em seu respectivo título

dominial. Nessa segunda hipótese, elas representam um instrumento de participação no

consumo dos objetos imobiliários, isto é, nos fatores externos ao solo mas que interferem

em suas qualidades - o que a terminologia específica das ciências econômicas

denominará externalidades. O meio urbano possui e distribui, desigualmente206, os

fatores externos tanto positivos como negativos, que são determinantes na formação do

203
ROSSETTI. op. cit. 48.
204
op. cit. p. 34-35 e 38.
205
op. cit. p. 34.
206
A respeito do problema da distribuição das externalidades, RIBEIRO também acrescenta (op. cit., p.
35) que a formação do valor da terra urbana depende de uma operação “nascida ao azar”, isto é, não
detida por nenhum agente capitalista em particular, pois nasce da combinação de vários processos
autônomos de produção e circulação de mercadorias, não se verificando na estrutura urbana o ocorrido
numa empresa determinada onde o capital consegue controlar e direcionar as forças produtivas
envolvidas.
70

preço da terra urbana e constituem um “capital constante fixo”207 agregado à terra

propriamente dita. Estão eles para a produção da mercadoria fundiária da mesma forma

que as máquinas estão para um processo produtivo particular.208 Em vista de tais fatores,

afirma Boaventura Santos209, invocando outros autores, que a sociedade é o único autor

do capital fundiário urbano. Isto porque sendo ele não um instrumento de produção

como a terra rural, mas um simples suporte passivo de meios de produção, circulação ou

consumo, seu valor depende não de características intrínsecas, mas dos serviços que o

mesmo comporte. O que significa dizer que o mesmo depende da localização e do acesso

a equipamentos urbanos, condições criadas pelo trabalho de toda a cidade.

Notamos que se, do ponto de vista jurídico, é indiscutível a admissão da

propriedade privada do solo urbano, de um ponto de vista econômico tal possibilidade

não se coloca. Dada a atual configuração das cidades, o solo urbano em hipótese alguma

é um bem puramente privado, vale dizer, produzido e consumido sem que existam

efeitos contra terceiros - conforme informa o conceito respectivo - isto porque sempre

sujeito às externalidades que caracterizam a estrutura urbana.210 A produção211 do solo

urbano enquanto bem econômico, portanto, é feita, por definição, de forma coletiva - ou

pública - naquela exata definição de trabalho - coletivo e socialmente útil - preconizada

por Marx.212 Desse mesmo ponto de vista econômico, pois, pode-se afirmar que a

instituição jurídica da propriedade privada, entendida enquanto acesso monopolístico

àquilo que a terra urbana propicia, não significa mais que um confisco individual da

riqueza coletivamente produzida, uma aferição privada de renda pública.

207
RIBEIRO. op. cit. p. 34.
208
RIBEIRO. op. cit. p. 34-35.
209
op. cit. p. 33-35.
210
Sobre o conceito econômico de externalidades vide SANTOS, Ângela Moulin Simões Penalva.
Investimentos infra-estruturais na urbanização brasileira: uma discussão sobre seu financiamento e
distribuição. 1996. Xerox. p. 3 e ss.
211
Ao falarmos de produção já deixamos claro que não se trata de um processo natural, já não podendo
mais falar-se de ‘terra virgem’, nesse caso.
212
op. cit. p. 86-87.
71

Do acima exposto, podemos desdobrar, apoiados em Ângela Santos 213, que

reside precisamente neste ponto uma das mais fundamentais contradições do contexto

urbano, qual seja, a apropriação jurídica em bases puramente privadas de uma

mercadoria produzida em bases público-privadas, o que é uma das matrizes de iniqüidade

na distribuição de renda real nas cidades, vindo a agravar o já crônico problema da má

distribuição da renda monetária. A apropriação exclusivista de um bem que não apenas o

seu titular, mas difusamente toda a sociedade, despendeu esforços em sua produção,

torna o rendimento dessa mercadoria excepcionalmente superior comparativamente a

outras que demandam trabalho produtivo e assalariado pelo empreendedor. Tal cenário

urbano tem motivado juristas e outros profissionais engajados na questão urbana a

procurarem novas formas jurídicas para o acesso à terra, que não passem

necessariamente por sua aquisição.214 Exatamente nesse diapasão, cremos, coloca-se a

concepção de função social da propriedade, dispositivo jurídico próprio do direito

moderno, surgido e desenvolvido ao longo do presente século, e que parece configurar

uma situação jurídica subjetiva em favor dos não-proprietários, deixando de supor,

portanto, que a mesma situação seja monopolizada pelo titular da propriedade. Trata-se

de um conceito jurídico de particular importância em todo tipo de reflexão sobre o

espaço urbano, em especial sobre o solo enquanto mercadoria.

À medida que se propaga a conurbação, mais patente torna-se a perda do

sentido original de cidade, em outras palavras, mais a cidade converte-se paradoxalmente

numa não-entidade.215 Nesse sentido, já aludimos aqui ao processo mediante o qual os

fins da cidade se tornam “cada vez mais, vazios e triviais, mais infantis e primitivos,

mais bárbaros e pesadamente irracionais”.216 O desenvolvimento urbano dos últimos

213
SANTOS, Ângela. op. cit. p. 3-6.
214
Conforme propõe SANTOS, Ângela. op. cit. p. 6.
215
MUMFORD. op. cit. p. 583.
216
MUMFORD. op. cit. p. 597.
72

séculos não ajudou o homem a tornar-se mais humano, mas o submeteu aos mecanismos

econômicos e tecnológicos diante dos quais as defesas psíquicas são baixas tal o fascínio

que a sua aura de progresso, liberdade e domínio da natureza engendram. O homo

aeconomicus das urbes restou convencido de que esse processo deve apenas ser

acelerado, olvidando de seu necessário direcionamento.

Mumford217, no entanto, assinala bem o grande problema das cidades: não

reside tanto na abundância de processos destrutivos ou catabólicos, desagregadores de

algo pré-existente, mas sim na insuficiência de energia construtiva ou anabólica, que é

responsável pela primazia dos primeiros. Assim, o principal fator capaz de reconfigurar o

desenvolvimento urbano residiria na superveniência de finalidades humanas a esse

processo, deixando de ser controlado por forças aparentemente automáticas. Trata-se,

pois, de “restituir ao centro de nossa existência as imagens, as forças e as finalidades

da vida”, submetendo os recursos disponíveis à produção de uma superior condição da

associação humana, “que faça justiça a todas as dimensões dos organismos vivos e

personalidades humanas”.218 Sem este telos, todo progresso econômico e tecnológico

pode ser não só inútil como perigoso. 219 A partir de uma economia dirigida para e pela

vida, aos seus bens e finalidades, pode-se iniciar uma redefinição das funções da cidade.

A mobilização sobre-humana de energias ocorrida na reabilitação das cidades européias

no pós-segunda guerra mundial demonstra tanto as possibilidades quanto os limites de tal

empreitada. De um lado, expôs como a reconstrução da cidade, nos sentidos material e

simbólico, pode ser realizada em curto lapso de tempo desde que a economia seja

orientada diretamente às necessidades humanas. De outro, reafirmou como esse


217
op. cit. p. 599.
218
MUMFORD. op. cit. p. 611.
219
Conforme o percebeu o físico Julius Robert Oppenheimer, em 1945, quando se aplicou para
fabricação de poderosíssimas armas de guerra o conhecimento a respeito da energia atômica que havia
ajudado a desenvolver, ante o que o mesmo repetiu, com amargor, a sentença de Baghvad-Gita: “tornei-
me a morte, o destruidor dos mundos.” OPPENHEIMER. In: ENCICLOPÉDIA Abril. São Paulo: Abril,
1973. v. 9, p. 3468.
73

direcionamento humano da economia é residual, excepcional e adjetivo na civilização

contemporânea, impondo-se, em regra, apenas em casos extremos como a necessidade

ditada pela guerra.

Na redefinição da função da cidade, há alguns pressupostos importantes,

ressaltados por Mumford:

“Nenhum aperfeiçoamento orgânico é possível sem uma reorganização de


seus processos, funções e propósitos. [...] Não é só o modelo da própria
cidade, mas cada instituição, organização e associação que compõem a
cidade, que serão transformados por esse desenvolvimento”.220

Assim, é pressuposto de uma nova cidade um também renovado complexo

de instituições, onde localizamos o papel do direito, e em especial do direito de

propriedade. Trata-se, pois, de uma instituição cuja mudança constitui condição para a

determinação de um novo rumo às cidades, ou, de outra forma, uma instituição que,

dependendo de sua conformação, determinará um ou outro perfil de cidade. Na função

social da propriedade, temos claro exemplo de uma forma jurídica que procura fazer

com que as forças da economia capitalista operem no sentido de finalidades públicas, e

não ao mero acaso, segundo a ‘mão invisível’ do mercado ou a vontade individual e

exclusiva do seu titular. Com ela procura-se engendrar uma economia mista, de

complementaridade entre as empresas privada e pública, exigindo a direção local - da

cidade - à ação coletiva e ao crescimento urbano. Segundo Mumford, tratar-se-ia de um

capitalismo que opera “a despeito de si mesmo”.221 Mais do que isso, trata-se do

primeiro momento histórico em que, sob a dominância desse modo de produção, admite-

se a hipótese de o mesmo dar alguma resposta, em termos não capitalistas, a problemas

como a piora generalizada das cidades, de sua qualidade de vida, da precariedade da

habitação de grandes parcelas de seus habitantes, etc. Tal hipótese, até a segunda metade

220
op. cit. p. 610.
221
op. cit. p. 476.
74

do século XIX, foi solenemente recusada.222

Assim, a questão fundamental a merecer atenção e análise consiste não no

mero fato da existência de propriedade, no simples uso da terra, pois o titular de

propriedade que não é detentor de capital suficiente para cultivar a terra de forma a

produzir além do necessário à sua própria subsistência não representa nada diferente do

simples proletário urbano, detentor apenas de sua própria força de trabalho individual. O

eixo da questão radica-se, sim, na forma capitalista de usar, valorizar e até de degradar a

propriedade e os bens existentes, conforme haja interesse. Esta forma de propriedade

jamais se reduz à detenção de uma coisa, mas representa detenção de um poder e de

“libertas”, capaz de interferir na configuração da cidade capitalista, posto que a história

desta última se faz “onde se faz dinheiro”. 223

222
MUMFORD. op. cit. p. 480.
223
LOPES. op. cit. p. 37 e 29.
75

CAPÍTULO 3

A FORMAÇÃO SOCIAL BRASILEIRA E A PROPRIEDADE

3.1 A cidade periférica

A formação de cidades não é um processo mundialmente homogêneo,

guardando, pois, em cada situação espaço-temporal uma especificidade a ser

reconhecida, mesmo que tal especificidade seja parcial. Assim, de um lado é certo que a

operação do capitalismo em escala mundial e a divisão internacional do trabalho que aí

se estabelece, determinam semelhantes exigências em termos de produção econômica,

reprodução social e gestão dos meios para tanto. De outro, no entanto, não há como

classificar no mesmo tipo processos sociais tão diferentes como a megalópolis americana

e o empilhamento humano de Calcutá, conforme o ilustrativo exemplo de Castells.224 O

segundo em hipótese alguma é réplica do primeiro, não sendo a ele aplicáveis os mesmos

parâmetros e índices. Trata-se de não fazer tabula rasa na análise sócio-histórica,

neutralizando diferenças objetivas no conteúdo de fenômenos assemelhados na forma.

Assim, há um sentido e uma lógica específica na formação das cidades periféricas, e,

dentro desta, procuraremos situar a cidade latino-americana em suas peculiaridades. A

complexidade desse fenômeno é constatada quando observamos, no interior do caso

bastante restrito da América Latina, nuanças bem marcadas entre as cidades de

colonização hispânica e lusitana, bem como as diversas características regionais

presentes nas cidades brasileiras. Em suma, dentro de um processo que é global,

encontram-se articuladas uma série de formações sociais particulares interdependentes. A

particularidade de cada uma dessas situações normalmente não está ligada a uma região,

mas ao conjunto da formação e da estrutura social. Assim, há que se reconstituírem as

224
op. cit. p. viii-ix.
76

relações sociais que lhe organizam e dão conteúdo histórico preciso.225

Uma das características importantes do processo de urbanização latino-

americano é o acelerado crescimento urbano sem concomitante crescimento econômico-

industrial.226 Tais cidades gozam de um nível de urbanização que é bastante elevado, e

superior ao europeu, se considerada a sua base industrial. No mesmo estágio

populacional das grandes cidades periféricas contemporâneas, o nível de industrialização

dos países centrais era bem superior. Em face disto, fala-se de uma hiperurbanização227

em relação aos países ditos periféricos, sinalizando um índice de urbanização superior ao

que seria normalmente alcançado tendo em vista o aparato industrial.228 Há, nesse caso,

uma diferente co-variação entre urbanização e industrialização.

Como explicar, então, o crescimento urbano no caso latino-americano? Um

dos principais caminhos reside nas relações da cidade com o campo. Em sua origem

colonial, tais cidades eram ligadas diretamente à metrópole, não ultrapassando em quase

nada os limites da região circunvizinha nas suas comunicações e dependências

funcionais. Não se forma, então, uma rede urbana, uma integração das cidades numa

articulação econômica, fragilizando as cidades em sua formação. A cidade colonial latina

é, em geral, afastada dos recursos naturais do interior do continente, para o qual as

normas metropolitanas restringiam o acesso dos colonos. Conquanto pré-capitalista, esta

cidade não inclui o campo, formando-se em grande distância sócio-econômico-cultural

em relação a este. Assim, não se caracteriza a formação de aglomerados urbanos por um

processo de arrancada econômica que viesse a desaguar na industrialização, embora

sucedesse de qualquer forma uma acelerada e crescente concentração populacional e de


225
CASTELLS. op. cit. p. viii e ss.
226
LEFEBVRE. op. cit. p. 10. Acrescenta o autor que este é o caso também das cidades africanas.
227
CASTELLS (op. cit., p. 67) constata que em 1960 a taxa de urbanização latino-americana é
praticamente idêntica à européia - 27,4% contra 29,6%, respectivamente. Se tomada como critério a
população habitante de megalópoles - cidades com mais de um milhão de habitantes - a taxa latina é
superior - 14,7% contra 12,5%.
228
CASTELLS. op. cit. p. 54-55.
77

serviços, que terá outras razões. Ainda que os países mais urbanizados sejam também os

mais industrializados, não há correspondência direta entre os dois fatores na América

Latina.229 Nas palavras de Boaventura Santos, neste continente, de maneira geral, o

crescimento urbano está relacionado, numa primeira fase, com o desenvolvimento das

funções urbanas associadas à economia agrária e, somente numa segunda etapa, à

industrialização. O caso brasileiro é bastante sintomático a respeito, já existindo

inúmeras concentrações urbanas ao tempo do incremento do parque industrial brasileiro,

pois este se dá somente ao longo do século XX.

Segundo Castells230, o fenômeno essencial que determina o crescimento

urbano é o das migrações do campo em direção à cidade.231 Tal migração tem

característica de uma fuga, vale dizer, é motivada muito mais por um processo de

expulsão rural - derivada de uma decomposição da sociedade agrária e de sua estrutura

produtiva - do que por um processo de atração urbana que exprimisse algum dinamismo

da cidade. As estruturas agrárias dos países periféricos constituíram-se historicamente

em estrita dependência dos centros industriais e consumidores, bem como do jogo de

preços por estes praticados.232 Tornaram-se, pois, bastante sensíveis às alterações neste

âmbito, a ponto de virtualmente dissolverem-se largos complexos produtivos,

desaparecendo as ocupações a elas atreladas - conforme ocorre no Brasil,

sucessivamente, com a lavoura canavieira, mineração e lavoura cafeeira.

A decadência rural faz afluir, às cidades, camponeses sem posses e sem

ocupação em vista do refluxo em sua exploração de origem. De outro lado, esse

movimento irrompe num quadro em que as possibilidades de absorção de mão-de-obra e

229
CASTELLS. op. cit. p. 68. O autor cita diversos outros que, à luz de abrangentes estatísticas, chegam
à mesma conclusão.
230
op. cit. p. 62 e ss.
231
Seminário da UNESCO a respeito concluiu que 50% do crescimento urbano se deve às migrações,
sendo apenas os outros 50% creditados ao crescimento natural da cidade. CASTELLS. op. cit. p. 81-82.
232
LEFEBVRE. op. cit. p. 10.
78

oferecimento de condições de vida por parte das cidades é inferior às dimensões da

migração. Se nas cidades pode-se, efetivamente, auferir renda expressivamente superior

à rural - dado o acentuado desequilíbrio entre os dois ambientes -, nelas é também maior

o custo do consumo de bens básicos, dada a impossibilidade de acesso direto aos

mesmos. Somam-se uma série de novos tributos ao orçamento familiar, sendo o custo da

moradia, talvez, o maior deles, o que se deve ao preço da terra, exponencialmente

superior no caso das cidades, especialmente se destinado a essa finalidade. Destes

fatores, desdobram-se os conhecidos problemas da favelização e da forte segmentação

sócio-espacial que marcam o tecido urbano latino-americano. Por fim, podemos acrescer

o consumo supérfluo, estimulado pelo sistema de mercado em seu processo de

consolidação, e cuja inacessibilidade constitui fator de inegável reforço do quadro

anterior de demandas sociais insatisfeitas e reprimidas. Assim, na história latino-

americana, as cidades constituem “um autêntico desaguadouro daquilo que o sistema

desorganiza sem poder destruir inteiramente”233, somente não ocorrendo tal destruição

em face da resistência social a ela oposta.

Em suma, poderíamos dizer, com Castells, que:

“a urbanização na América Latina não é a expressão de um processo


de ‘modernização’, mas a manifestação, a nível das relações socio-
espaciais, da acentuação das contradições sociais inerentes a seu
modo de desenvolvimento - desenvolvimento determinado por uma
dependência específica no interior do sistema capitalista mundial”.234

Cabe, no entanto, indagarmos quais são os fatores que, por sua vez, estão à

base da desorganização da sociedade rural, agravando o já acentuado desequilíbrio entre

cidade e campo. Para Castells, o fator estruturalmente determinante deste problema

reside na “persistência do sistema de propriedade tradicional da terra nas novas

233
CASTELLS. op. cit. p. x.
234
op. cit. p. 84.
79

condições econômicas”235, que, viabilizando a “manutenção das formas improdutivas

da propriedade latifundiária”236, confronta-se com o aumento acelerado da população

ocorrido especialmente em virtude da redução das taxas de mortalidade natural havida

ao longo do século XX. Falando num plano mais geral, encontramos na questão

fundiária um dos principais fatores do status ‘periférico’237 das sociedades latino-

americanas, visto que este se define principalmente pela “impossibilidade de uma

organização social capaz de concentrar e dirigir os meios existentes em direção ao

desenvolvimento da coletividade”.238 Com efeito, a terra, o solo, é um dos principais

‘meios’ de que trata o enunciado acima, sendo o acesso à terra, pois, condição de

superação da condição periférica no quadro sócio-econômico mundial.

3.2 Os alicerces rurais cidade brasileira

No Brasil, o surgimento das cidades, assim como todo o processo de

constituição e organização da sociedade brasileira, se dá, evidentemente, determinado

pela situação de colônia portuguesa, processo no qual emergirão uma série de

particularidades. De alguma forma, esta sociedade, dita periférica no contexto

internacional, reflete as características básicas da empresa colonial promovida por

Portugal. Cabe, então, indagarmos que tipo de empresa é esta e quais são suas

características diferenciais. No entendimento tanto de Buarque de Holanda239, quanto de

Raymundo Faoro240, trata-se mais de um sistema de feitorização do que um sistema de

efetiva colonização, ou, em outras palavras, de um sistema de colonização cuja grande

235
op. cit. p. 81.
236
op. cit. p. 84. À p. 63 há, outrossim, uma colocação praticamente idêntica.
237
CASTELLS (op. cit., p. 57) repudia o termo subdesenvolvido, dando-o por equivocado.
238
CASTELLS. op. cit. p. 57.
239
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.
99 e ss.
240
FAORO, Raymundo. Os donos do poder; formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro:
Globo, 1984. p. 108-115.
80

característica é o prolongamento do sistema de feitorias implantado noutras colônias

portuguesas. Isto porque nela predomina o caráter de exploração comercial, de perfil

próximo ao da colonização na antigüidade, que praticamente reduz-se à instalação de

unidades de produção e comércio (exclusivamente com a metrópole) em pontos de fácil

acesso e abundância de matéria-prima, tudo em detrimento de aspirações mais ousadas

como ordenar e dominar segundo um projeto previamente arquitetado ou reproduzir

uma dada civilização.

Sendo assim, não se faz necessária a formação de um sólido sistema urbano,

que é um instrumento decorrente de processos mais ‘firmes’ de dominação, os quais

demandam de uma organização urbana a fim de conferir eficácia ao poder que se quer

constituir. Neste ponto, reside uma das diferenças fundamentais entre os sistemas

coloniais lusitano e espanhol. A Coroa de Aragão e Castela, certamente marcada pela

experiência da Guerra de Reconquista de seu território em face dos mouros - muito mais

penosa e duradoura para ela do que para Portugal241, fez sentir sua ‘mão forte’ a partir

do próprio século XVI. Já em 1570, constituía-se um sistema administrativo e militar

baseado numa rede de cidades estendida por toda a possessão espanhola, o qual se

manterá praticamente até a independência das colônias - iniciada na segunda metade do

século XVIII.242 De outro lado, nota-se nas cidades hispano-americanas uma forte

integração interna, bem como um rigoroso ordenamento territorial e infra-estruturação

urbana, que exprimem a imposição da vontade colonizadora às sinuosidades do ambiente

natural e humano ali encontrados. São, pois, expressão da idéia de intervenção humana

na natureza e na história, bem como de prolongamento orgânico da metrópole na


241
Em Portugal a reconquista praticamente se conclui em 1147 quando D. Afonso Henrique, primeiro
monarca português, vende os mouros na batalha de Ourique e entra em Lisboa. O então Condado
Portucalense forma um Estado independente, separando-se de Castela, que continuaria a empreender a
luta até 1492, quando retoma a região sul espanhola, último território peninsular sob domínio árabe.
PORTUGAL. In: ENCICLOPÉDIA Abril. São Paulo: Abril, 1973. v. 10, p. 3832-3834, e
RECONQUISTA, Guerra da. Idem, cit. v. 10, p. 4079-4084.
242
CARDOSO. op. cit. p. 79.
81

colônia. Trata-se, enfim, de um sistema colonial de características mais acentuadamente

urbanas em relação ao lusitano.243

É verdade que o sistema urbano surge, não só no Brasil como em toda a

América Latina, voltado para o objetivo básico de sustentar o sistema de exploração

colonial, consistindo seu papel, essencialmente, em concentrar e, logo, potencializar a

força de coerção metropolitana no corpo da sociedade colonial.244 No entanto, não se

pode negar que, na colonização lusitana, a fundação de vilas e cidades representava a

formação de simples núcleos residenciais, estabelecidos por determinação direta da

Coroa Portuguesa ou de seus mandatários, e habitadas por gente dedicada apenas a

explorar as riquezas da terra. Dessa forma, uma das primeiras funções exercidas pelas

cidades era a de entrepostos comerciais, isto é, constituíam ponto obrigatório de

passagem, armazenamento e comércio de mercadorias importadas e exportadas. Eram

instrumentos de combate ao contrabando e ao comércio não controlados pela Coroa,

pois embora não desejados os ônus de uma efetiva colonização, buscava-se de toda

forma os bônus da empresa colonial. Por fim, o fato de não ter sido aqui encontrada uma

civilização urbana pré-existente, ao contrário do ocorrido em diversos pontos das

possessões espanholas, também dispensava a metrópole portuguesa de organizar a

exploração colonial a partir de bases urbanas, favorecendo a fraqueza de tais núcleos,

que sequer chegaram a constituir uma rede articulada.

Uma das conseqüências imediatas disto será a predominância do campo em

relação à cidade, predominância que se enraizará a ponto de só podermos considerar ter

sido fundamentalmente alterada, em todos os sentidos, a partir do século XIX. Quer no

tocante à ordenação econômica, arquitetônica e demográfica, quer no tocante à

regulação política, jurídica e administrativa, funcionava a cidade como extensão da

243
CARDOSO. op. cit. p. 79 e ss.
244
SINGER. op. cit. 1975, p. 98 e ss.
82

propriedade rural.245 Podemos considerar esta predominância rural uma decorrência

lógica do fato de a colonização ter um caráter de feitorização, aliada ao fato de a cidade

não ser um centro de produção, mas sim de administração e de consumo, conforme já

visto no capítulo anterior. Assim, temos no Brasil colonial, sobretudo durante os séculos

XVI e XVII, a formação de uma “civilização de raízes rurais”, pois, conforme Buarque

de Holanda:

“É efetivamente nas propriedades rústicas que toda a vida da colônia se


concentra durante os séculos iniciais da ocupação européia: as cidades são
virtualmente, se não de fato, simples dependências delas. Com pouco
exagero pode dizer-se que tal situação não se modificou essencialmente
até a Abolição”.246

Embora, como também acentua o autor, trate-se, indiscutivelmente, de uma

civilização cuja matriz não se encontra na cidade, mas sim no campo, não é ela, de outro

lado, uma civilização tipicamente agrícola. Primeiramente, por não ser a agricultura a

atividade de maior expressão na metrópole lusa, sociedade que, por formação, se

predispôs mais ao comércio e às aventuras das conquistas e descobertas marítimas.247 Em

segundo lugar, pelo modelo predatório de exploração da terra que prevalece desde os

engenhos açucareiros nordestinos dos séculos XVI-XVII até os cafezais paulistas dos

séculos XVIII-XIX, ambos valendo-se de técnicas não muito desenvolvidas e

comprometedoras da fertilidade e produtividade do solo. Tornou-se freqüente, assim, a

busca incessante de novos sítios, abandonando-se os anteriores - que, desvalorizados,

acabam sendo objeto de ocupação por famílias de pequenos lavradores.248 Uma

civilização verdadeiramente agrícola suporia uma ética do trabalho e uma racionalização

das técnicas de exploração da terra que, de fato, não pertencem a história lusitana.249
245
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 39.
246
op. cit. p. 73.
247
HOLANDA. op. cit. p. 49-50.
248
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto; o Município e o regime representativo no Brasil.
6. ed. São Paulo: Alfa-ômega, 1993. p. 26 e ss.
249
HOLANDA. op. cit. p. 44 e 51.
83

Não obstante a ausência de tradição agrícola, até a metade do século XVIII

é característica do desenvolvimento nacional o contraste entre a pujança dos domínios

rurais e a mesquinhez urbana.250 Às suas propriedades rurais os senhores dedicavam sua

morada, seus maiores zelos, concentrando aí suas riquezas. Acorriam às cidades em

momentos excepcionais como festas religiosas ou eventos de natureza política. O

engenho constituiu, de fato, uma unidade de “singular autarquia”251, um organismo

completo, dotado de todas as matérias-primas, instituições e serviços de que necessitava

para sua reprodução. Há escassa inter-relação das unidades, sendo com o exterior as

suas relações preferenciais, onde não só se revendia sua produção mas obtinham-se os

insumos básicos por elas não produzidos. Assim, mesmo que eventualmente recorressem

ao mercado interno para obtenção de matéria-prima, mão-de-obra ou bens de consumo,

quase não dependiam deste para subsistir, mas sim de seus próprios meios de produzir e

comercializar, bem como da demanda externa.252 Merecem, por isso, ser categorizadas

por Ciro Flamarion Cardoso 253 como instituição total, em adaptação do conceito original

de Erving Goffman.254 Compõem não somente uma unidade homogênea de organização

da produção, mas uma própria sociedade segmentada.255

No caso do Brasil - colônia, portanto, realiza-se no campo o clássico ideal

urbano de auto-suficiência. A tal ponto chegava esse contraste que, a respeito de

Salvador no século XVI, então a mais importante cidade brasileira, Frei Vicente do

Salvador dizia ser ela uma “cidade esquisita, de casas sem moradores”256, constando a

população urbana, basicamente, de gente obrigada a ali residir, em geral ligadas a

funções públicas ou, em alguns casos, comerciantes que conseguiam lograr alguma
250
HOLANDA. op. cit. p. 90-91.
251
HOLANDA. op. cit. p. 80.
252
CARDOSO. op. cit. p. 102-103.
253
op. cit. p. 102-103.
254
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1990.
255
CARDOSO. op. cit. p. 102.
256
Apud HOLANDA. op. cit. p. 90.
84

prosperidade mediante esta atividade. Buarque de Holanda257 reproduz relatos

praticamente idênticos a respeito da cidade do Rio de Janeiro em 1767, que ressaltam a

escassez, na cidade, de homens de negócios bem como de pessoas habilitadas a servir em

cargos autorizados, vivendo as pessoas nobres e distintas retiradas em suas fazendas e

engenhos. Dada a grande fragilidade de sua estrutura, as cidades serão, em geral,

extremamente limitadas em suas instituições fundamentais - como escolas, ofícios

industriais e repartições públicas - constatação que somente é excepcionada pela

importância, localizada, que assumiram instituições como escolas e Câmaras Municipais.

A divisão clássica entre o engenho ou a fazenda258, que demarcam o espaço

rural no Brasil, e a cidade surge, de modo pontual e prematuro, por circunstâncias

alheias ao colonizador português como a invasão holandesa em Pernambuco, no século

XVII, o que representou um fato novo na articulação campo-cidade no Brasil.259 Esta

divisão se tornará mais pronunciada apenas com a emergência da mineração, o que se dá

na passagem do século XVII ao XVIII, a partir do que vai iniciar-se uma mudança no

eixo dinâmico de toda a vida nacional, que passa do Nordeste para o Centro-Sul. O

desenvolvimento da extração de minerais preciosos faz com que recrudesçam, como

nunca, os controles metropolitanos sobre o Brasil e, nessa conjuntura, formam-se

estruturas realmente urbanas, com um papel e uma estrutura sem paralelo com os

primeiros e desprovidos núcleos fundados nos séculos anteriores. O desenvolvimento das

cidades se dá, nesse caso, não motivado pela edificação de alguma obra permanente na

colônia, mas sim no sentido de policiar e reprimir a atividade que despertou a avidez

metropolitana.260 A atividade mineradora atraiu e demandou o desenvolvimento de um

257
op. cit. p. 91.
258
Entende CARDOSO (op. cit., p. 101 e ss.) ser mais próprio designá-las, enquanto unidades de
produção, mediante o termo Plantations, dado que somente este significa uma forma determinada de
organização da produção.
259
HOLANDA. op. cit. p. 63.
260
HOLANDA. op. cit. p. 102-103.
85

conjunto de atividades complementares, ou subsidiárias, de caráter agro-pastoril,

artesanal, e, sobretudo, político-administrativo.261 Isto conduziu ao surgimento de novas

cidades e ao desenvolvimento das já existentes, o que ocorrerá não somente na região

das Minas. No tocante à cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, estudo realizado por

Jurandir Freire Costa verifica o quanto a mineração influencia no desenvolvimento da

cidade, que então se converte no “principal entreposto comercial do ouro”, passando,

conseqüentemente, a atrair fluxos migratórios de mão-de-obra. Este processo culmina

com a sintomática transformação da cidade em sede administrativa da colônia262,

transferindo-se a mesma de Salvador para o Rio de Janeiro em 1763. 263 O mesmo

ocorrerá quando da emergência da cultura do café, que no século XIX passa a ser o

principal item da economia agro-exportadora nacional. Tal fato também contribui para o

desenvolvimento urbano, sobretudo em Santos e no Rio de Janeiro, onde se

desenvolvem os serviços necessários ao suporte desta cultura - como bancos, casas

comissárias, companhias de exportação e escritórios de advocacia.264 Trata-se de uma

lavoura já dotada de instituições próprias do capitalismo que, conseqüentemente,

desenvolve sua face urbana, passando a alimentar, nas cidades, uma considerável

clientela de todas as profissões. Segundo Faoro 265, começa a negar-se, neste período, a

aparência do país essencialmente agrícola. De outro lado, instaura-se aí a tensão entre

cidade e campo na sociedade brasileira, verificando-se o crescente rancor entre dois

mundos e/ou mentalidades que passam a se diferenciar e a se opor uma a outra. Daí parte

a associação que hoje fazemos da cidade ao moderno, racional, abstrato e cosmopolita, e

do campo ao tradicional, sensível/corpóreo e paroquial/regional.266 Fica claro, ao longo

261
CARDOSO. op. cit. p. 135.
262
COSTA. op. cit. p. 19 e ss.
263
RIO DE JANEIRO. In: ENCICLOPÉDIA Abril. São Paulo: Abril, 1973. v. 11, p. 4215-4216.
264
FAORO. op. cit. p. 412-413.
265
op. cit. p. 419.
266
HOLANDA. op. cit. p. 78.
86

de todo o processo acima narrado, a simbiose entre cidade e campo, isto é, como as

transformações num desses espaços, mais cedo ou mais tarde, se fazem sentir no outro.

As novas cidades então surgidas eram dotadas de uma faixa de população

livre muito superior a do Nordeste, o que fomentou tanto o desenvolvimento de um

mercado regional (em função da demanda por bens de consumo), como a formação de

classes intermediárias entre os status polarizados de senhor e escravo. Tal segmento

social era integrado basicamente por homens de letras, negociantes, assalariados,

religiosos e funcionários públicos, destacando-se, dentre os últimos, as corporações

militares. Um dos desdobramentos deste fenômeno será, como sabemos, a emergência de

rebeliões contra o monopólio colonial.267 A ascensão urbana é seguidamente reforçada

com a migração forçada da Corte Portuguesa em 1808, com a Independência em 1822, e

ganhará foros praticamente definitivos com a Abolição. É ao longo do século XIX que

se reverte a condição desfavorável da cidade em relação ao campo, apenas então

assumindo o meio urbano o papel de centralidade de toda a vida social.268

O predomínio esmagador do ruralismo, acusado em toda a literatura

histórico-sociológica especializada, constitui uma característica diferencial da formação

social brasileira, senão em seu ulterior desenvolvimento, mas certamente em suas raízes e

fundações. Enquanto a regra geral, exposta no capítulo anterior, demonstra que a

prosperidade dos centros urbanos faz-se à custa dos centros de produção agrícola, sendo

esta produção consumida na cidade sem que esta dê a devida contraprestação

econômica, no caso brasileiro “os centros urbanos nunca deixaram de se ressentir

fortemente da ditadura dos domínios rurais”.269 Este teria sido, segundo Buarque de

Holanda270, antes um fenômeno típico do caráter, ou do espírito, do colonizador e da

267
MINERAÇÃO NO BRASIL. In: ENCICLOPÉDIA Abril. São Paulo: Abril, 1973. v. 8, p. 3108-3110.
268
HOLANDA. op. cit. p. 161.
269
HOLANDA. op. cit. p. 89.
270
op. cit. p. 92 e 95.
87

dominação por ele imposta do que uma espécie de exigência do ambiente. Possuiria ele

um ethos empático ao tomismo e à filosofia clássica. Logo, hostilizava a vida no

ambiente anti-natural da cidade, associada mais a manifestações da vontade humana do

que do espírito. Repele igualmente a formalidade, a disciplina, a vida planejada,

racionalizada - e, logo, despersonalizada-, e todos os demais corolários da vida urbana.

Procura ordenar a vida não mediante pactos ou contratos, mas por relações mais

imediatas, fundadas no conhecimento pessoal e, se possível, na amizade e no

parentesco.271 Em suma, seu caráter se forma com uma radical incompreensão em relação

ao que se pode chamar de civilização urbana, pois é possuído de uma íntima convicção

de que “não vale a pena ...”.272

Dessa forma, transfere-se para as cidades “a mentalidade da Casa-

grande”273 - os preconceitos e o teor de vida específicos do campo - marcando-se a

constituição das primeiras cidades brasileiras por uma ambiência rural.274 Para isto,

contribui decisivamente o fato de os indivíduos chamados a exercer as novas funções e

ocupações exigidas pela cidade provirem diretamente do “patriciado rural”.275 Ante a

ausência de uma expressiva burguesia urbana, independente e apta para tais funções,

improvisa-se a aristocracia rural. Com isto, difundem-se na cidade as atitudes e

tendências peculiares do segmento rural, deixando de ser exclusividade delas as

características que marcam a organização familiar e social brasileiras.276 É afirmação

consensual entre os historiadores nacionais que as funções mais elevadas cabiam aos

senhores de terras, sendo comuns as queixas de comerciantes à Corte de Lisboa, onde

reclamavam do monopólio das municipalidades - tanto dos governos quanto das

271
HOLANDA. op. cit. p. 133 e 137.
272
HOLANDA. op. cit. p. 110.
273
HOLANDA. op. cit. p. 87.
274
SINGER. op. cit., 1975. p. 99.
275
HOLANDA. op. cit. p. 87.
276
COSTA. op. cit. p. 47.
88

poderosas Câmaras - exercidos por aqueles.277 278 Considerando a condição de senhor de

terras do mesmo escalão dos títulos de nobreza do Reino, considerava a Corte, em geral,

absurda e impertinente a pretensão dos comerciantes em se ombrearem com os

proprietários rurais. Não obstante os interesses metropolitanos na exploração colonial,

nos dois primeiros séculos de colonização os proprietários rurais gozam de quase total

autonomia, acumulando, assim, uma massa de poder capaz de competir com a própria

Coroa. Um bom exemplo disso, lembrado por Nunes Leal279 e por Buarque de

Holanda280, é a substituição, pelo Coronel, de importantes instituições sociais e de

funções do Estado, especialmente a jurisdicional e a policial. Este poder subsistirá até o

próprio período republicano, em cuja formação observam-se elementos estreitamente

vinculados ao senhoriato rural281, que demonstra, ao longo de toda a história nacional,

uma grande capacidade de adaptação às novas exigências e realidades - por exemplo, ao

fazer-se substituir, no bojo do processo de modernização, por uma burguesia intelectual

a ela vinculada por laços e compromissos pessoais, conforme esclarece Nunes Leal:

“Novas condições [...] forçaram o velho tipo de chefe municipal a uma


retirada estratégica: o coronel foi para o fundo do cenário. Mas,
cautelosamente, deixou no primeiro plano, na direção política de seu feudo,
o genro-doutor, a fachada moderna do coronelismo como força política”.282

Dado o protagonismo político e cultural dos extratos rurais, a formação das

cidades terá como referência forte a família colonial, isto é, predominará uma visão da

sociedade civil e política como prolongamento ou ampliação da comunidade doméstica.

Esta comunidade fornece uma idéia de estabilidade do poder e de coesão entre os

homens, sendo algo não só útil como necessário a constituição da sociedade à sua

277
HOLANDA. op. cit. p. 88-89.
278
COSTA. op. cit. p. 39.
279
op. cit. p. 23.
280
op. cit. p. 82.
281
COSTA. op. cit. p. 36 e ss.
282
op. cit. p. 22.
89

imagem e semelhança. O resultado disto é o predomínio, em largas esferas da vida social,

de sentimentos particularistas, hierarquizantes e antipolíticos, próprios da ordem

doméstica.283 Desse modo, não se estabelecem as novas formas de solidariedade

requeridas no espaço urbano, ocorrendo, ao reverso, uma absolutização das

solidariedades tradicionais - de natureza clânica, familística, etc. Estas se espraiam pelo

espaço público, de forma a “englobá-lo” - categoria sugerida pelo antropólogo francês

Louis Dumont284 - isto é, a submetê-lo às regras próprias das relações propriamente

particulares, portanto, aos ditames das formas mecânicas e/ou naturais de solidariedade.

Por essa forma contraditória ocupa-se o vácuo de civilidade, o “vazio de instituições e

de valores”285, deixado na formação das cidades brasileiras.

O protagonismo de determinadas famílias no sistema colonial é também

realçado pelo fato de serem elas as agentes executoras do empreendimento colonial.

Este, se, de um lado, é público em seu desígnio, ressaltando Faoro a “rédea legalmente

curta” 286 com que a Coroa prende os propósitos colonizadores, de outro, possui uma

natureza privada, a qual, porém, não se confunde com aquele privatismo de matriz

burguesa. A diferença reside, conforme percepção de Oliveira Vianna287, no fato de nela

haver uma pressão social que isenta os indivíduos de seus direitos e deveres de cidadãos,

para obrigá-los a agir segundo os padrões emocionais e particularistas das relações de

parentesco. Há, conforme o mesmo define, uma “solidariedade da família senhorial”288,

que não se confunde com os já mencionados tipos ideais de solidariedade - mecânica e

orgânica - elaborados na obra de Durkheim. Assim, a colonização foi confiada pela

Coroa Portuguesa ao encargo de pessoas privadas, não consistindo numa intervenção

283
HOLANDA. op. cit. p. 82 e 85.
284
Apud DA MATTA. op. cit. p. 19 e ss.
285
DA MATTA. op. cit. p. 25.
286
op. cit. p. 125.
287
Apud COSTA. op. cit. p. 41-42.
288
COSTA. op. cit. p. 42.
90

direta por parte da mesma, que não desejava os riscos da empreitada colonial, cujos

resultados a priori eram imprevisíveis. Estruturou-se um sistema de concessões

administrativas289 a determinados fidalgos portugueses, nobres cujas famílias gozavam

da confiança e do prestígio real - além de serem senhores de cabedais ou de serviços

públicos -, a quem eram outorgados extensos tratos de terra - as conhecidas capitanias

hereditárias.290 Do ato de concessão das capitanias resultavam amplas prerrogativas

(poderes) e encargos necessários ao cumprimento da função almejada com tais

concessões, que era, genericamente, a de promover a consolidação da conquista

portuguesa, povoando e desenvolvendo a nova colônia. Isto implicava, concretamente,

no encargo de criar núcleos de povoamento, eximindo-se a autoridade pública da

fundação de cidades, transferindo-a, ab initio, aos senhores rurais. Interessada numa

espécie de lucro sem custos, a Coroa livra-se do ônus do investimento na colonização e

na instalação da rede urbana no novo território.291

Dessa forma, criam-se as condições objetivas de uma apropriação privada -

mas, repetimos, não em bases burguesas - da vida em comunidade, sendo abandonado

tudo aquilo que definiria o espaço, o interesse ou o patrimônio públicos, quer pelas

oligarquias, quer pelos segmentos subalternos. Aquelas assim agem porque não tratam

do que aqui há de ficar, mas apenas do que “hão de levar para o Reino”292; estes porque

imitadores do desprezo tradicional pelo bem comum que parte do alto da pirâmide

social, o que José Reinaldo Lopes conceitua como “conivência inconsciente dos

oprimidos”.293 Já foi percebida por diversos escritores a ausência do homem republicano,

interessado e zeloso das questões que a todos atingem, e a presença marcante do homem
289
Conforme LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil. 2. ed. Porto Alegre: Sulina,
1954. p. 39.
290
FAORO. op. cit. p. 407.
291
COSTA. op. cit. p. 36.
292
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. 4. ed. São Paulo: Melhoramentos,
1954. p. 58.
293
op. cit. p. 20.
91

que trata apenas do interesse particular. Dentre eles, podemos lembrar Manuel da

Nóbrega294 e Frei Vicente do Salvador, tendo este último afirmado: “[...]

verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é

república, sendo-o cada casa”.295 A invasão do espaço público pelo particular começa

no âmbito sócio-cultural, onde se põe o código de valores reitor da cidade, e termina no

âmbito propriamente físico, onde o primeiro se realiza. Nesse âmbito, percebe-se a

ausência de beleza e de comodidades urbanas, a construção de um espaço do qual não se

pode fruir, dado o amesquinhamento do espaço público, sendo praticamente toda a

cidade ocupada pelos domínios particulares.296 Exteriorização evidente da apropriação a

que aludimos pode ser encontrada na histórica ausência de efetividade das obrigações de

alinhamento e arruamento contidas nas posturas municipais, obedecendo a construção e

disposição dos edifícios particulares não ao traçado pré-ordenado de acordo com os fins

e funções da cidade, como na cidade hispânica, mas sim à caprichosa comodidade dos

senhores de terra.297 Tratam-se de normas que ficam “nos papéis públicos”298, não

dobrando os interesses senhoriais.

O confinamento da “res publica” aos domínios familiares e particulares foi

mais tarde definido por Da Matta como “supercidadania da casa” e “subcidadania da

rua”, referindo-se à capacidade da sociedade brasileira em fazer um “igual para cima”

no espaço particular e um “igual para baixo”, isto é, de comportamento tremendamente

negativo, no espaço público.299 Para tratar das cidades brasileiras, Jurandir Freire, em seu

já aludido estudo, constrói a categoria cidade familiar, discorrendo em termos muito

felizes os mecanismos básicos de vinculação entre os membros da organização familiar,

294
Citado por HOLANDA. op. cit. p. 107.
295
HOLANDA. op. cit. p. 16.
296
COSTA. op. cit. p. 37.
297
HOLANDA. op. cit. p. 109.
298
COSTA. op. cit. p. 38-39.
299
DA MATTA. op. cit. p. 22 e ss., e 79 e ss.
92

que se tornarão decisivos na trama social como um todo. O primeiro e fundamental

desses mecanismos é a estrutura auto-referenciada, ensimesmada, descrita por tal autor

nos seguintes termos:

“Os interesses do grupo e da propriedade excluíam a possibilidade de que


os membros da família orientassem suas condutas, desejos e aspirações
em função de outros parâmetros. Girando em torno da autopreservação, a
família funcionava como um bloco compacto voltado exclusivamente para o
clã. Essa polarização autodirigida gerou uma introversão social prejudicial
aos interesses do Estado. A família não formava cidadãos, e sim parentes.
A participação destes indivíduos na sociedade resumia-se à defesa do
grupo a que pertenciam. Donde a oposição que o Estado sofria quando os
convocava para o cumprimento de tarefas nacionais. Esse apelo era
estranho ao sentimento familiar. Os indivíduos estavam habituados a ver
nos limites da casa-grande, as fronteiras do mundo”.300

Vale acrescentar que uma estrutura como essa não somente é prejudicial aos

interesses do Estado - pelo menos do Estado em si mesmo considerado - mas, outrossim,

a qualquer tipo de interesse público, e a qualquer tipo de interesse que remeta a outras

modalidades de associação e de coletividade que não a própria família.

O segundo mecanismo de vinculação entre os membros da família colonial

era a dependência do pai, ou seja, a estrutura sócio-familiar, além de auto-referenciada, é

de natureza patriarcal, o que supõe a existência de uma hierarquia, na qual o patriarca

situe-se no vértice. A respeito desta figura emblemática diz-nos Jurandir Freire:

“Seu desejo e seu nome davam unidade às aspirações dos indivíduos.


Havia quase um vácuo de interesses próprios no restante dos membros.O
desejo correto era o desejo do pai; o interesse justo era o da manutenção
do patrimônio. [...] Habituados a defender o pai para sobreviverem, os
membros da família demoraram a acreditar que a sociedade pudesse
oferecer-lhes meios de autonomia econômica, social e psicológica”.301

Essa outra característica também foi e é responsável pela impermeabilidade

300
COSTA. op. cit. p. 46-47.
301
COSTA. op. cit. p. 47.
93

dos indivíduos às solicitações de natureza pública e/ou estatal. Junto com a primeira,

formam o quadro sócio-cultural ao qual se agregará e com o qual interagirá o estatuto

jurídico-legal da propriedade, sendo o direito de propriedade historicamente existente

aquele que resulta da combinação destas duas variáveis - a de natureza social e a de

natureza legal.

Enfim, o sistema urbano organizado a partir da colonização não se

caracteriza como um projeto civilizatório, aos moldes de uma concepção política de

cidade, onde mediante a fundação de novas cidades se busque repetir um certo conjunto

de liberdades e instituições fundamentais e/ou realizar um certo conjunto de finalidades

voltadas ao bem estar do ser humano. Embora no modelo grego clássico de cidade

política seja também observável uma forte presença das solidariedades familiares e

mecânicas como estruturantes da vida na cidade, não se verifica, a partir daí, uma

prevalência da entidade particular em relação à pública, como de fato observamos na

cidade da conquista portuguesa. Esta, de outro lado, também não encontra paralelo com

as cidades européias impulsionadas pelo comércio, as cidades livres medievais, posto

que não resulta de um impulso livre e dinâmico no sentido da urbanização e do

desenvolvimento de um sentimento de pertencimento à cidade. Tais matrizes constituem

exatamente os fundamentos das noções de cidadão e de cidadania, expressões modernas

da liberdade que recobre a emergência das cidades.302 A compreensão da realidade

brasileira e periférica em geral, no entanto, não deve ser feita sob o signo daquilo que lhe

falta, prisma, aliás, incapaz de gerar qualquer compreensão que seja digna de tal nome.

As ausências e as lacunas em uma formação social como a brasileira se encontram,

sobretudo, quando a sua análise é feita comparativamente aos processos havidos nas

antigas sociedades metropolitanas, isto é, as não-periféricas, tomadas em diversas

302
LOPES. op. cit. p. 17 e ss.
94

análises como referenciais. Tal análise não é capaz de esclarecer as motivações e

significados internos que, dentro de um processo global, também dão forma às

sociedades periféricas e que, aliás, respondem por sua especificidade, a ser devidamente

conhecida pelo trabalho científico.

3.3 O marco jurídico-fundiário de origem: o sistema sesmarial

Em sua forma jurídica, a colonização brasileira se fez sob o sistema

sesmarial, cujos objetivos primordiais eram aqueles, já mencionados, de incremento do

povoamento do território e de produção de gêneros a serem exportados. Tais objetivos,

de uma forma ou de outra, se fincaram no direito brasileiro, comparecendo em vários

diplomas legislativos que dispõem sobre questões fundiárias303 os tradicionais requisitos

da morada efetiva e da cultura habitual.

O sistema sesmarial surge mediante a Lei de 26 de Junho de 1375, imposta

pelo Rei D. Fernando I, “o formoso”304, cuja ementa é a seguinte: “Obriga a prática da

lavoura e o semeio da terra pelos proprietários, arrendatários, foreiros e outros, e dá

outras providências.”305 A lei régia foi editada com o objetivo de fazer face à profunda

depressão e graves dificuldades por que passava a agricultura em Portugal, com êxodo

rural e não aproveitamento dos campos. Dado que a situação era não só de

inaproveitamento dos campos, mas também de desocupação de parcelas do território,

além do prejuízo em termos econômicos, existia também o problema militar, relativo à

possibilidade de novas invasões dos mouros, que ainda não haviam sido inteiramente

303
Vide especialmente a legislação a respeito de usucapião especial rural e regularização de posses em
terras públicas - art. 4º, 5º e 6º da Lei nº 601 de 18/09/1850 (Lei de Terras); art. 102 da Lei nº 4.504, de
20/11/1964 (Estatuto da Terra); art. 29 da Lei nº 6.383, de 7/12/1976 (processo discriminatório de terras
devolutas); art. 1º da Lei 6.969 de 10/12/81 (usucapião especial rural); Constituições Brasileiras de
1946, de 1967, Emenda nº 1 de 1969, e 1988 (artigos 156, 164, 171 e 191, respectivamente).
304
LIRA, Ricardo Pereira. Campo e cidade no ordenamento jurídico brasileiro. Rio de Janeiro, [S.n.],
1991. p. 21.
305
BRASIL, Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, Programa Nacional de Política
Fundiária. Coletânea: legislação agrária, legislação de registros públicos, jurisprudência. Brasília:
1983. p. 355-356.
95

expulsos da Península Ibérica, o que somente se ultima em fins do século XV.306 A

origem última do sistema sesmarial guarda, assim, estreitas relações com a reação dos

povos da Península Ibérica à invasão árabe. Ao lado da reconquista, a palavra de ordem

que movia os cristãos em ditas batalhas era repovoamento, já que as invasões levaram os

camponeses a se refugiarem nas montanhas, transformando as planícies em desertos, com

o que se interromperam rotas comerciais, arruinando as cidades. De outro lado, as

regiões reconquistadas eram distribuídas pela Coroa aos nobres que nelas tinham se

destacado, os quais instalam aí um sistema latifundista, que mais tarde será transportado

às colônias.307

Assim, a lei incentivava e constrangia os titulares de herdades a fazerem-nas

cultivar, pessoalmente ou concedendo-as a terceiros, instituindo-se, assim, um regime de

utilização compulsória de glebas rurais. Além do referido instituto, a Lei de Sesmarias

estabelecia outra importante limitação ao direito de propriedade, uma vez que

determinava a redistribuição de terras senhoriais inaproveitadas, fossem elas

pertencentes à Coroa Portuguesa ou ao Rei, a membros do clero ou da nobreza. 308

Embora não mencionada expressamente na Lei em tela, também integrava as tradições

próprias da herança sócio-jurídica portuguesa a limitação à propriedade consistente no

direito de fogo morto, pelo qual se permitia ao colono que tivesse promovido o cultivo

de campos abandonados, de terras incultas, de matos, etc., a prerrogativa de não poder

ser expulso pelos senhorios de tais herdades.309

A Lei Sesmarial portuguesa buscava, através de métodos repressivos, lutar

contra a desagregação de seu setor agrícola, então já bastante sentida, evitando a evasão

dos lavradores dos campos, e determinando uma reconversão aos mesmos de forma que

306
CARDOSO. op. cit. p. 26-30.
307
RECONQUISTA, Guerra da. In: ENCICLOPÉDIA Abril. cit. v. 10, p. 4079-4084.
308
ANTUNES, Paulo Bessa. A propriedade rural no Brasil. Rio de Janeiro: OAB/RJ, [1985]. p. 41.
309
ANTUNES. op. cit. p. 67.
96

nenhuma herdade ficasse inaproveitada. Premida pela necessidade de defesa do território

e incremento da agricultura, em benefício de quem a Lei foi editada, estipulam-se na

mesma mecanismos que permitem sua imediata execução - como fixação de prazo para

que se principie a lavoura e penas aos contumazes. Dentre essas últimas, encontra-se a

possibilidade de execução específica da obrigação, a ser promovida pelas autoridades

nomeadas na Lei como responsáveis por sua aplicação. Outrossim, procurava-se inibir

expedientes que visassem esquivar-se dela, proibindo de possuir gado aqueles que não

fossem lavradores. Desta forma evitava-se que as glebas fossem destinadas

exclusivamente a pastos. Informa-nos, no entanto, a literatura especializada, que o

intento buscado pelas autoridades portuguesas com esse sistema não só não foi

alcançado, como ainda adicionou a cota de sacrifício socialmente exigida dos

trabalhadores do campo, compelida ao trabalho obrigatório e, pior, com salário

tabelado.310

A Lei Sesmarial foi posteriormente confirmada e inserida nas Ordenações

Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, grandes compilações das leis gerais vigentes em

Portugal, editadas respectivamente em 1446, 1521 e 1603. Com o descobrimento, as

Ordenações foram transplantadas da metrópole à nova colônia, constituindo-se no direito

vigente neste território. Sem embargo das Ordenações, ao longo do período colonial- e

mesmo pós-colonial - faz-se sistematicamente presente extensa legislação especial311,

que, excepcionando as normas gerais, procurava de alguma forma adaptar o direito às

condições materiais e objetivas da sociedade. Isto porque, em novos contextos, as

instituições ou elementos trasladados para o continente americano assumiram

significados muito distintos daqueles que haviam tido na Europa. No que concerne ao

310
ANTUNES. op. cit. p. 31.
311
Composta das cartas de doação e dos forais das capitanias, de leis, alvarás e cartas régias, de
regimentos baixados pelos Governadores-gerais e por funcionários coloniais. Conforme MACHADO
NETO. op. cit. p. 313.
97

sistema sesmarial, enquanto no caso português o mesmo consistiu num programa de

reocupação e repovoamento compulsório do campo, no caso brasileiro ele significou um

programa de distribuição de extensos tratos de terras a nobres portugueses.

As enormes diferenças entre a sociedade brasileira e a sociedade portuguesa

impuseram, outrossim, uma série de adaptações na aplicação da Lei Sesmarial, já que

imposta a um contexto para o qual não estaria preparada e vocacionada. Tal lei não

nascera do choque de interesses, das práticas sociais e econômicas, bem como das

referências culturais das populações por ela atingidas e regidas, ficando sempre aquém

do que o momento social demandava. “Era um direito que estava feito e que precisava,

simplesmente, ser aplicado, depois de importado”; era uma lei que existia, mas era

“aplicada segundo um ‘jeitinho’ inesperado e irreverente.”312 Portanto, o sistema de

apropriação de terras de fato existente na colônia, embora baseado nas mesmas

instituições, é muito distinto daquele vigente em Portugal no mesmo período. A Lei de

Sesmarias é imposta por autoridade distante daqueles a quem ela se impõe e visando o

espaço-tempo social português e não brasileiro. A partir daí, instaura-se aquela dinâmica,

até hoje verificada, na qual, uma vez que o conjunto legal é elaborado a despeito das

relações sociais vigentes, o comportamento social se estrutura de forma ambígua em

relação ao mesmo, “num diz-que-diz ou faz-que-faz que não assume o outro ou a coisa

nem tampouco desiste deles.”313 Diante da norma, o comportamento concreto da

sociedade não representa nem uma autêntica adesão e cumprimento dos comandos legais

e nem, muito menos, uma resistência e oposição frontal aos mesmos. Quer a adesão quer

a resistência à lei se fazem, pois, de forma oblíqua, tangencialmente.

Em sua axiologia, os institutos do sistema sesmarial acima mencionados

parecem imbuídos daquele sentido, tipicamente aristotélico, de naturalismo na destinação


312
ANTUNES. op. cit. p. 33 e 39.
313
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança; um reencontro com a pedagogia do oprimido. 2. ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 225.
98

da propriedade do solo, preconizando uma primazia do valor de uso e estabelecendo

claramente fins públicos a serem alcançados mediante a concessão do solo, sob as penas

legais. Por exemplo, o instituto da reversão à Coroa da terra inaproveitada, o mais

importante do sistema sesmarial segundo Faoro314, preconizava o predomínio dos fins e

objetivos públicos sobre aqueles de ordem particular. De outro lado, concebem-se os

direitos sobre a terra, desde a primeira hora, como vinculados ao aproveitamento da

mesma, sendo a sesmaria ociosa uma “sesmaria cuja concessão caducara

irremediavelmente”315. Por fim, ressalte-se que a exigência de efetivo cultivo como

condição para confirmação da concessão de terras jamais foi dispensada pelos

regulamentos vigentes, sendo pois algo de constante ao longo da vigência do sistema

sesmarial. Não obstante o fato de não ter se efetivado, a não ser em casos extremos e

conflituosos, o que será abaixo comentado, a subsistência dessa exigência revela que ela

não se reduzia a mero formalismo ou a palavras gratuitamente inseridas na lei, mas que

se constituía em autêntica parte constitutiva e estrutural do sistema, cuja imposição era

temperada pelas circunstâncias da colonização.316

Como podemos observar, os institutos ora mencionados, não obstante sejam

de origem pré-capitalista, são harmonizáveis e confluentes com a moderna concepção de

função social da propriedade, a qual supõe a propriedade privada de matriz burguesa, até

por isso surgida, enquanto direito vigente, apenas ao longo do século XX, no ambiente

cultural e político da reforma das instituições do capitalismo industrial. No caso

brasileiro, isto ocorrerá notadamente a partir da Constituição de 1934. Em relação à

moderna função social, os institutos próprios da Lei Sesmarial e das antigas tradições

jurídicas lusitanas se colocam na condição de precursores.

Todos esses exemplos representam não apenas fatos da lei, mas, na medida
314
op. cit. p. 123.
315
FAORO. op. cit. p. 125.
316
FAORO. op. cit. p. 125.
99

em que se incorporam nas práticas bem como no imaginário social, podem converter-se

em parte da cultura, sendo, nessa condição, fatores sociais condicionantes de toda

produção jurídica futura, nas várias formas em que a mesma é capaz de se expressar.

Tratam-se, pois, de fatores histórico-culturais capazes, ao menos potencialmente, de

ensejar uma predisposição positiva no sentido da incorporação da função social da

propriedade no patrimônio jurídico da sociedade brasileira, tomado este, insistimos,

sobretudo enquanto uma determinada cultura. Os institutos comentados supra, vigentes

durante o período colonial, aludiriam, remotamente, à noção de função social da

propriedade, já que tutelares não da propriedade em si, mas da mesma enquanto

cultivada e produtiva, diferenciando-se pois das concepções estreitas de propriedade que

passarão a dominar o cenário jurídico a partir do século XIX.

No entanto, a contradição que merece ser destacada é que, mediante essa

mesma legislação, e sob a égide dela, se constitui a estrutura latifundista que até hoje

marca a distribuição - vale dizer, a não-distribuição - fundiária brasileira. No caso

brasileiro, edificou-se historicamente um quadro onde se fazem presentes, com bastante

visibilidade, os traços comuns à apropriação de terras nas colônias escravistas

americanas, relacionados por Ciro Flamarion Cardoso317, a saber:

a) apesar das condições legais sob as quais a concessão das terras era feita (como

confirmação real, medição, demarcação, cultivo efetivo, etc.) o não

cumprimento das mesmas muito raramente acarretou o confisco da gleba;

b) ainda que legalmente o direito de propriedade fosse limitado, na prática foi

desde o princípio de tipo alodial, posto que inexistia controle público do

mesmo, além de não se encontrar sujeito a dependências pessoais, como no

sistema de vassalagem, ou a entraves enfitêuticos, sendo, por fim, hereditário;

317
op. cit. p. 107.
100

c) não obstante a disposição metropolitana no sentido de evitar a excessiva

concentração e açambarcamento fundiários, esta nunca impediu as fraudes,

monopolização do solo e conseqüente latifundismo;

d) predominou amplamente a concessão gratuita, não havendo compensação

monetária sequer na regularização de ocupações irregulares.

Aplicada ao Brasil pela colonização portuguesa, a instituição das sesmarias

deu origem a uma distribuição de terras sem nenhum tipo de encargo além do dízimo à

Ordem de Cristo. Os foros e contribuições, bastante conhecidos e aplicados no sistema

feudal, somente se instituem em 1695, os quais, em tese, seriam até incompatíveis com o

sistema de sesmarias, pois induzem a existência de uma apropriação sobre a terra -

cindido o domínio em direto e útil -, o que neste sistema não se admite, não sendo a terra

objeto de domínio, mas somente de concessão administrativa.318 A propriedade era

concedida limpa de vestígios feudais, excluída, desde logo, qualquer relação de

subordinação entre proprietário e autoridade que não aquela de natureza política, própria

de qualquer associação humana. Em suma, “o colono só respondia pelo não cultivo,

cláusula essencial na restrição do domínio, ao soberano e à sua justiça”. 319 A

abundância de terras - absoluta e relativa - que marca os dois primeiros séculos de

colonização, conjugada à ausência de reclamações bem como à frouxidão dos controles

metropolitanos neste período, conduziu a que tal cláusula restritiva fosse pouco aplicada,

imperando a transigência e a vista grossa diante da sesmaria não aproveitada no prazo.320

Forma-se, assim, o que Ciro Flamarion Cardoso denomina “sistema alodial de

propriedade fundiária”321, onde as limitações jurídicas não eram mais que sua aparência

formal. Mais que isso, estabelece-se uma propriedade de “forte caráter patrimonial”322,
318
FAORO. op. cit. p. 38 e LIMA. op. cit. 1954, p. 37-38.
319
FAORO. op. cit. p. 124.
320
FAORO. op. cit. p. 125.
321
CARDOSO. op. cit. p. 27.
322
CARDOSO. op. cit. p. 107.
101

isto é, embora alodial, não se tratava de uma propriedade-mercadoria típica do sistema

capitalista. Não estava, assim, exposta ao embargo, seqüestro e às demais sanções legais

aplicáveis aos bens dos devedores insolventes, condição que somente fez reforçar as

posições dos grandes detentores de terras. De maneira praticamente consensual, atribui-

se ao sistema sesmarial a origem da excessiva concentração fundiária323, que se

perpetuou até o presente histórico, gerando um quadro que é exatamente oposto àquilo

que seus dispositivos pareciam comandar e, conseqüentemente, distante de qualquer

idéia de funcionalização da propriedade em bases sociais.

O sistema sesmarial vigorou oficialmente até 1822, quando foi revogado

expressamente mediante a célebre “Resolução de Consulta da Mesa do Desembargo do

Paço, de 17 de julho de 1822”.324 Antes dessa, no entanto, a exaustão dos bens a

distribuir decretara, no plano dos fatos, o fim do sistema sesmarial. Tantas foram as

liberalidades na concessão de sesmarias, algumas de até 100 léguas e diversas delas

doadas a um mesmo requerente, que ao tempo da extinção formal não havia mais terras a

distribuir.325 Deixava, no entanto, a sua herança:

“Os abarcadores possuem até 20 léguas de terreno, e raras vezes


consentem a alguma família estabelecer-se em alguma parte de suas
terras, e mesmo quando consentem, é sempre temporariamente e nunca
por ajuste, que deixe ficar a família por alguns anos [...] Há muitas famílias
pobres, vagando de lugar em lugar, segundo o favor e capricho dos
proprietários das terras, e sempre (SIC) faltas de meios de obter algum
terreno em que façam um estabelecimento permanente. [...] o proprietário
com sobra de terras, que não as cultiva, nem permite que outrem as
explore. Lavradores meeiros e moradores de favor são duas sombras que a
grande propriedade projeta, vinculadas à agricultura de subsistência,
arredadas da lavoura que exporta e que lucra”.326

323
A título de exemplo, vide LIMA, Ruy Cirne. Terras devolutas; história, doutrina e legislação. Porto
Alegre: Livraria do Globo, 1935. p. 59.
324
ANTUNES. op. cit. p. 60.
325
FAORO. op. cit. p. 407-408.
326
FAORO. op. cit. p. 407 e 418.
102

3.4 Decadência rural e pequena propriedade

A estrutura fundiária latifundista legada pelo sistema sesmarial, no entanto,

não ficou imune a períodos de decadência econômica e à ocorrência de conflitos pela

posse da terra, o que, como vimos, constitui um fenômeno comum na história do

segmento agrário latino-americano. Para isso contribui, no caso brasileiro, “a

agricultura depredadora que praticamos”327, isto é, a ausência de uma tradição agrícola,

que racionalizasse a exploração do solo de modo a assegurar a manutenção de sua

produtividade e alargar sua vida útil. Observa-se, pois, um esgotamento prematuro do

solo agricultável, mantendo-se uma determinada cultura graças, sobretudo, à abundância

de terras, aliada a uma forte demanda externa, o que garante, de per si, altas taxas de

retorno do investimento. É, assim, no contexto da precariedade das grandes lavouras

extensivas - que, no caso brasileiro, são, historicamente, as da cana-de-açúcar, do café e

do algodão - que se colocam as condições desfavoráveis a subsistência da grande

propriedade colonial.328 Nesse sentido, Nunes Leal classifica o fazendeiro atual, em geral,

não como alguém próspero e abastado - que somente subsiste no imaginário popular -,

mas sim como alguém “remediado”, isto é, que “passa bem de boca” e que possui

propriedades e negócios, mas que, de outro lado,

“não possui disponibilidades financeiras; que tem o gado sob penhor ou a


terra hipotecada; que regateia taxas e impostos, pleiteando
condescendência fiscal; que corteja os bancos e demais credores, para
poder prosseguir em suas atividades lucrativas”.329

Ao que tudo indica, portanto, foram-se os tempos do grande conforto da

fazenda. Hoje, o grande capital do proprietário rural consiste em seu prestígio político,
327
LEAL. op. cit. p. 27.
328
LEAL. op. cit. p. 28.
329
op. cit. p. 24.
103

na rede de relações pessoais de que dispõe - onde se incluem os descendentes, bacharéis

que procuram abrigo no emprego público -, na sua notória ligação com bancos ou com o

Estado, o que lhe dá meios de obter créditos das mais diversas formas.330

É indiscutível, assim, a precarização do latifúndio o que, tanto antes como

agora, absolutamente significa o seu desaparecimento, vez que o mesmo é lucrativo,

embora a taxas reduzidas, sobretudo se comparadas com o nível de acumulação da

empresa capitalista urbana, no circuito da qual o primeiro se encontra hoje integrado.

Ocorrem, pois, em nossa realidade fundiária, diversos fatores que irão engendrar não

uma estrutura pura e simplesmente latifundista, mas sim a criação de dois setores

agrícolas articulados entre si. O primeiro, dominante, escravista e exportador, e o

segundo, subordinado ou subsidiário ao primeiro, de trabalho autônomo e voltado ao

mercado interno.331 Forma-se já durante o período colonial, mas adquirindo maior

visibilidade somente nos séculos XVIII e XIX, uma estrutura fundiária mista. Esta é

marcada, de um lado, pela propriedade latifundiária, constituída em função do vetor

concentracionista representado pelo sistema sesmarial, que condiciona todo o complexo

econômico e fundiário; e de outro, por uma grande quantidade de pequenos sítios -

“ínfimos sitiecos” diante das glebas familiares do Nordeste, “pouco maiores que as

quintas portuguesas”332, em suma, um sistema de pequenas e médias propriedades, além

da propriedade familiar. De maneira geral, observamos que os ciclos por que passam os

segmentos dominantes da economia dependem, em muitos aspectos, das economias

subsidiárias. Estas, no entanto, possuem dinâmica interna inteiramente estranha àquela

ditada pelos vínculos colônia-metrópole.

Podemos situar, como o primeiro dentre os fatores da diversificação de

330
FAORO. op. cit. p. 418-419; LEAL. op. cit. p. 24.
331
CARDOSO. op. cit. p. 105.
332
ANTUNES. op. cit. p. 59.
104

estrutura fundiária, o importante fenômeno denominado “brecha camponesa”333, assaz

documentado na historiografia do continente americano. Trata-se de um fenômeno

recorrente em todas as economias escravistas americanas - sem exclusão mesmo dos

Estados Unidos - mediante o qual forma-se uma espécie de “proto-campesinato

escravo”. Consiste ele no trabalho agrícola realizado pelos escravos em seu próprio

favor, nas parcelas de terra e intervalos de tempo a eles facultados por seus senhores - de

onde o termo ‘brecha’. Este trabalho, que não era supervisionado pelo senhor, permitia

aos escravos obter alguma remuneração e, assim, a aquisição de suplementos à sua

subsistência, quando não a própria alforria. De outro lado, a brecha camponesa permitia

aos escravos, inclusive, testar as parcelas de terra utilizadas nessa condição,

transmitindo-se, mortis causa, algo como um usufruto gratuito. A investida sobre o

direito configurado na brecha consistiu numa das razões mais fortes de revoltas ou fugas

de escravos. Trata-se de uma instituição a princípio de natureza informal, mas que em

diversas colônias era reconhecida nos próprios textos legais.334 Formalizado ou não, o

fato é que trata-se de um fenômeno que converteu-se numa autêntica instituição da

economia escravista, e cuja conseqüência é a criação de dois setores agrícolas inter-

relacionados da forma apontada alhures.

No entanto, a instituição da brecha camponesa desaparece, no Brasil, com o

processo abolicionista. Este significou o fim daquela, já que era um instituto próprio da

escravidão e admitido em função desta. Vez que desacompanhada de medidas que

visassem assegurar o acesso à terra - o que implicaria em algum tipo de modificação no

regime de propriedade imobiliária - a Abolição significou o agravamento das condições

de vida e de trabalho do camponês, bem como a ampliação dos poderes dominiais do

segmento proprietário.335 Elimina-se, assim, uma das restrições à propriedade privada


333
CARDOSO. op. cit. p. 105, 117 e ss.
334
CARDOSO. op. cit. p. 117-118.
335
CARDOSO. op. cit. p. 139-143 e 159-162.
105

conhecidas e efetivas no direito colonial e imperial. Não se procedeu, pois, com a

Abolição, uma regularização jurídica das posses ou usufrutos exercidos pelos ex-

escravos, o que, concretamente, significaria uma reforma agrária. Faz-se aqui exatamente

o oposto daquilo que se fizera em 1850, quando mediante a Lei de Terras se

regularizaram posses “voltadas à grande extensão”, reforçando-se o “rumo

expansionista do latifúndio”.336

Sucede, então, a partir do século XVIII na região centro-sul, um segundo

fator a contribuir para o surgimento da pequena e média propriedade. Nesta região,

então a ‘nova fronteira’ do desenvolvimento econômico nacional, verifica-se o

surgimento da pequena propriedade, pela ação daqueles que Faoro denomina

“intrusos”.337 Esta possui características peculiares, que levarão a propriedade territorial

aí existente a exercer um papel histórico diverso do latifúndio, pelo menos por algum

tempo.338 Atraída pelas valorizações de determinados produtos agrícolas, as então

crescentes levas de trabalhadores livres são projetadas a penetrar nos latifúndios

desocupados, engendrando um regime de ocupação de terras pela ação de pequenos

posseiros, que foi se tornando cada vez mais “efetiva e valedoura”.339 Nesse caso, a

apropriação não é fruto da generosa concessão de amplos domínios territoriais pelo

poder régio, conforme o regime regido pela Lei de Sesmarias, mas sim da iniciativa

pessoal do camponês. Decorrência dessa estrutura fundiária, ganha certo espaço na

economia centro-sulista a agricultura de subsistência, bem como a pequena produção

familiar (a pequena lavoura), ao lado da exploração da terra em caráter extensivo e

comercial, voltada substancialmente ao mercado externo. 340 De outro lado, temos nelas

336
FAORO. op. cit. p. 410. Voltar-se-á a este tópico nas seções seguintes.
337
op. cit. p. 409.
338
ANTUNES. op. cit. p. 59.
339
ANTUNES. op. cit. p. 59.
340
Fator inicialmente imposto pela própria circunstância colonial e que se perpetuará com a inserção
periférica no comércio e na divisão do trabalho internacional..
106

uma atividade produtiva já não baseada no trabalho escravo, sendo a terra trabalhada

diretamente por seus proprietários, com o eventual concurso de um ou outro trabalhador

autônomo que pudessem contratar.

Embora não represente um consenso, vários autores têm destacado que as

diferenças do centro-sul passam também pelo caráter estrutural e mentalmente mais

moderno das próprias classes latifundiárias. Teria aí surgido, basicamente no século XIX,

um novo grupo de fazendeiros que, mesmo usando escravos, não tinham sua fortuna

nestes concentrada, sendo, assim, menos atados à escravidão em relação aos grandes

latifundistas, quer do Nordeste, quer do Vale do Paraíba.341 Nesse sentido, vai,

obviamente, contribuir a incidência de suprimento de mão-de-obra alternativo aos

escravos, representada pelo recebimento de consideráveis ondas migratórias de

trabalhadores livres, internos e externos, o que não se verifica especialmente no

Nordeste.342

A maior freqüência das pequenas e médias propriedades em algumas regiões

brasileiras explica-se por diversos fatores. No caso do extremo sul, tiveram importância

primacial as correntes migratórias. Já no caso de São Paulo, este fato teve peso

reduzido, visto que a concorrência da grande propriedade cafeeira absorveu para si todo

o contingente imigratório, trazido, aliás, com os subsídios providenciais do Estado,

conforme nos informa José de Souza Martins343, bem como dispõem os próprios artigos

18 a 20 da Lei de Terras. No caso paulista, Nunes Leal, louvando-se em Caio Prado

Júnior, aponta como razões determinantes do surgimento das pequenas e médias

propriedades a necessidade da grande lavoura em prevenir-se com uma reserva de mão-

de-obra, bem como a demanda dos centros urbanos por artigos cuja produção seria

341
CARDOSO. op. cit. p. 156.
342
CARDOSO. op. cit. p. 159-160.
343
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.p. 65-67.
107

incompatível com a agricultura extensiva.344 345

Assim como no caso da brecha camponesa, a pequena propriedade oriunda

das ocupações realizadas pelos intrusos também padece de enorme vulnerabilidade, que

eternamente ameaça a sua sobrevivência. Opôs-se, e opõe-se, a ela a (óbvia) resistência

do segmento senhorial, mesmo quando se tratam de latifúndios ociosos. Esta resistência

recrudesce nas mesmas circunstâncias que motivam a ocupação, ou seja, em momentos

de alta nos preços externos dos produtos agrícolas. Isto leva a que o proprietário lance

mão de todos os recursos, administrativos e judiciais, para reaver a terra informalmente

ocupada. Neste conflito, nos conta Faoro 346, a vitória coube aos senhores de sesmarias,

que, assim como no caso do açúcar, definem a cultura do café como uma empresa de

grande propriedade, praticamente impedindo a cultura pessoal e autônoma do pequeno

proprietário. A pequena lavoura se torna, pois, gradativamente subalterna. A

consolidação de tais posições se dá logo na primeira metade do século XIX, não

havendo oportunidade, portanto, para que os pequenos posseiros, em sua maioria,

lograssem legitimar suas terras por ocasião da Lei de 1850347, conforme será

desenvolvido na seção a seguir. Em que pese esta lei estabelecer a proteção do posseiro,

em princípio louvável, teria ela chegado, para eles348, tarde demais, quando a resistência

dos pequenos posseiros já tinha sido dobrada pelo poderio da grande propriedade,

contribuindo não para promover, mas para frustrar a repartição da propriedade,

impedindo a formação de uma pequena burguesia rural.

Em conclusão, verificamos, em primeiro lugar, que a pequena propriedade

não desapareceu, mas, ao contrário, em número de estabelecimentos ela até cresceu -


344
LEAL. op. cit. p. 26.
345
Em tal colocação o autor, infelizmente, não nos fornece nenhum exemplo.
346
op. cit. p. 409-410
347
FAORO. op. cit. p. 410.
348
Para os escravos esta lei veio muito cedo, pois, enquanto ‘mercadorias’ na economia escravista, não
poderiam autonomamente exercer posse. Conforme BALDEZ, Miguel Lanzellotti. Solo urbano;
propostas para a constituinte. 2. ed. Rio de Janeiro: FASE, 1986. p. 2-3.
108

embora não tenha crescido em termos a área por elas ocupada. 349 O mais grave, no

entanto, é o caráter excepcional da pequena propriedade que seja próspera, o que

somente se verifica “naquelas regiões em que não está sujeita a concorrência da

grande, nem se constitui como legatária de sua ruína.” 350 Num horizonte mais largo,

portanto, a decadência da grande propriedade tradicional - que, dada a sua larga

predominância, implica na própria decadência rural -, é o grande fator que permite o

surgimento da pequena propriedade, parcelando-se o latifúndio à medida que, não sendo

as terras exploradas adequadamente, se torna imprestável para a grande lavoura. No

entanto, a crise que atinge o latifúndio atingirá, forçosamente e com muito mais vigor, o

minifúndio. Dada a baixa produtividade a que este se vê fadado, não gera níveis mínimos

de renda ao seu titular, de forma a não retirá-lo da situação de pobreza em que vive,

pouco o diferenciando do trabalhador assalariado.351 Reduz-se, assim, a pouco mais que

nada o grupo intermediário entre o senhor e o trabalhador rural. Conforme Faoro:

“O lavrador sem terras e o pequeno proprietário somem na paisagem,


apêndices passivos do senhor territorial que, em troca da safra, por ele
comercializada, lhes fornece, em migalhas encarecidas, os meios de
sustentar o modesto plantio”.352

Decorrência praticamente direta do insucesso da pequena propriedade, da

parca formação de classes médias rurais e da pauperização do trabalhador rural, será a

não fixação do homem no campo e o deslocamento demográfico para as cidades,

conforme fenômeno sobejamente conhecido.

Embora não se possa reduzir um fenômeno ao outro, não se pode deixar de

reconhecer certa analogia entre a pequena propriedade rural surgida do latifúndio

decadente e o processo que, no âmbito das cidades, designamos por favelização.353 Tal
349
LEAL. op. cit. p. 27.
350
LEAL. op. cit. p. 29-30.
351
LEAL. op. cit. p. 24-25; 27; 29-30.
352
op. cit. p. 418.
353
A comparação é sugerida em texto de BALDEZ, Miguel Lanzellotti. Sobre o papel do direito na
109

analogia se deve a que no último caso, assim como no primeiro, observamos, salvo

exceções, a ocupação, por parte de trabalhadores, de glebas sem interesse para o capital,

dado o seu difícil acesso - localizadas em distantes periferias urbanas ou em morros - e a

ausência de infra-estrutura urbanística. Outro ponto em comum reside no fato de, em

ambos os casos, formar-se um estoque de força de trabalho para o grande capital, sendo

a mesma de baixo custo e reduzida expectativa de vida. Por fim, falando de um ou de

outro caso, talvez estejamos tratando das mesmas pessoas, posto que, em última análise,

a população favelizada é uma população expulsa de suas pequenas posses no campo.

Cabe ressaltar, por fim, que se as modificações havidas nos fatores e nas

relações de produção não fizeram desaparecer as estruturas econômicas e fundiárias - e,

por que não dizer, políticas - desenvolvidas sob a hegemonia do latifúndio, elas

importaram numa diversificação da sociedade brasileira em suas mais diversas instâncias.

Assim, a realidade fática do sistema de posses e/ou ocupação coexiste largamente com

pequenas propriedades legalizadas, bem como com o provecto sistema latifundista, que

tanto caracterizou o período colonial. Um modelo se justapõe ao outro, criando uma

realidade que contém diversas espaço-temporalidades, isto é, diversos modelos

econômicos em operação simultânea, atrelados a diversas estruturas jurídicas, que dão

origem a diferentes perfis urbanos e rurais, de natureza regional, e que por sua vez vão

contribuir para uma diversificação sócio-cultural. Em suma, sem que seja superado um

determinado modelo, outros são incorporados, sendo que na nova realidade engendrada

pela incorporação de novas modalidades, aqueles anteriores conseguem viabilizar as

condições de sua perpetuação, tornando a realidade brasileira cada vez mais complexa e,

talvez por isso, mais dificilmente enquadrável em esquemas analíticos predispostos.

sociedade capitalista; ocupações coletivas; direito insurgente. Petrópolis: Centro de Defesa dos Direitos
Humanos, 1989. p. 10.
110

3.5 Lei de Terras: a instituição da propriedade privada

3.5.1 A constituição da cidade e da propriedade enquanto mercadorias

No século XIX, em toda a América Latina, se dá um conjunto de mudanças

sociais e econômicas, exigidas para viabilizar a expansão em grande escala das atividades

exportadoras, o que Ciro Flamarion Cardoso irá designar por “transição ao capitalismo

periférico”354. Segundo ele, esta transição se efetua, basicamente, através de três

mecanismos:

- abolição da escravatura;

- reforma liberal da atividade econômica;

- colonização de áreas vazias.355

No caso brasileiro, é precisamente em meados do século XIX que esta

transição atingirá seu ponto forte, sendo a nação então tomada de uma “febre intensa de

reformas”356, como nunca havia sido em tão breve período. Entre os principais

acontecimentos que marcaram este divisor de águas histórico podemos listar, com base

na literatura disponível357:

1850 - extinção do tráfico negreiro (mediante a célebre Lei Eusébio de Queiroz),

edição do Código Comercial Brasileiro e do Decreto nº 737, o Código de Processo

Comercial, que instrumentalizava judicialmente o código substantivo358;

1851 - refundação do Banco do Brasil e início de um movimento regular de

constituição de sociedades anônimas, motivado pela mudança promovida pelo Império,

354
op. cit. p. 133-227.
355
CARDOSO. op. cit. p. 138.
356
HOLANDA. op. cit. p. 74.
357
BALDEZ. Sobre o papel do direito ... cit. p. 11; HOLANDA. op. cit. p. 74.
358
Editado a 25/11/1850, o código de processo comercial é mais conhecido como Regulamento 737, e é
citado como o primeiro código de processo civil brasileiro. Isto porque, pelo Decreto nº 736, de
19/09/1890, o recém constituído Governo republicano estendeu a aplicação deste Regulamento às causas
cíveis em geral, revogando o Livro Terceiro das Ordenações Filipinas, que até então disciplinava a
matéria. Conforme ROSA, Eliézer. Capítulos de história do direito processual civil brasileiro. Rio de
Janeiro: Ed. Rio, 1975. p. 17 e 139-143.
111

que fez com que a formação de tal espécie de sociedade comercial deixasse de constituir

privilégio real, passando a figurar como ato dependente de simples autorização estatal;359

1852 - inauguração do serviço telegráfico na cidade do Rio de Janeiro;

1853 - fundação do Banco Rural e Hipotecário;

1854 - inauguração da primeira estrada de ferro do país, ligando o Porto de Mauá

à Estação Fragoso.

Não se trata, pois, de mera casualidade ou de aleatória coincidência

cronológica que fatos como estes se dêem tão próximos uns dos outros, havendo, ao

contrário, uma verdadeira relação histórica entre eles. O paradigmático período de 1850-

1855 é um momento de excepcional vitalidade e adensamento dos negócios, que se

desenvolve sob a direção e proveito de comerciantes e especuladores, agentes

econômicos sem raízes rurais. Trata-se de um período de passos largos na direção da

organização da instância econômica das relações sociais segundo um sistema de

mercado, operando-se uma modificação da base econômica colonial.360 “O proprietário

senhor de rendas cede lugar ao empresário, com conta corrente [...]”361, as relações

comerciais se impersonalizam - pelo menos em sua forma -, entram em cena as

instituições creditícias (como bancos e casas comissárias) e os títulos de crédito. O

dinheiro abstrato representado pelo crédito constitui singular novidade, dado que até

então a noção de propriedade “ainda estava intimamente vinculada à posse de bens

mais concretos, e ao mesmo tempo menos impessoais do que um bilhete de banco ou

uma ação de companhia”.362 De outro lado, é um momento em que a base colonial das
359
Tal mudança é feita através do Decreto nº 575, de 10/01/1949, sendo ratificada no Código Comercial
de 1850. A 4/11/1882, vem à lume a Lei nº 3150, a primeira lei das S.A.s editada no Brasil, que isenta a
formação dessas empresas de qualquer autorização, bastando o cumprimento das prescrições legais
quanto aos seus elementos característicos e às formalidades indispensáveis à sua organização e
funcionamento. Consagra-se, assim, o liberalismo econômico nesta matéria. Vide VALVERDE, Trajano
de Miranda. Comentários ao Decreto-lei nº 2627, de 26 de Setembro de 1940. 3. ed. rev. aum. Rio de
Janeiro, Forense, 1959. v. I: p. 18-19 e 25-27.
360
HOLANDA. op. cit. p. 74.
361
FAORO. op. cit. p. 411-413.
362
HOLANDA. op. cit. p. 77.
112

atividades econômicas, ainda reinante, determina a penúria de capitais, comprometendo a

expansão das exportações pela ausência de financiamento. As novas exigências

econômicas engendram, assim, a necessidade de entrada maciça de capitais estrangeiros

que concedessem empréstimos.363 Nesse período, a pauta produtiva e exportadora

conhece uma nova etapa, em que o café ultrapassa o açúcar em valores exportados,

convertendo-se no principal item desta pauta, crescendo sua cultura ao mesmo tempo em

que decrescia a do produto que marcou o primeiro ciclo econômico nacional.364

Diferentemente da cultura açucareira, a cafeeira se organiza estreitamente apoiada em

serviços urbanos - naqueles citados acima bem como em outros que compõem a própria

identidade urbana -, sendo, pois, fator de aceleração do desenvolvimento urbano. Dessa

forma, surge também a necessidade de realizar investimentos e obras de infra-estrutura

nas cidades, o que será realizado não somente mediante o aporte de capitais externos,

mas também à custa do setor agrícola. O caminho aberto pelas transformações de

meados do século XIX iria levar a uma inversão da tradicional relação campo-cidade

existente no Brasil, assemelhando-a mais ao leito comum da urbanização aos moldes

ocidentais, onde há uma exploração do campo pela cidade. Conforme Buarque de

Holanda365, prefigura-se uma liquidação, mais ou menos rápida, de nossa velha herança

rural e colonial.

As grandes modificações na matriz sócio-econômica demandarão um aparato

jurídico-institucional a elas articulado, razão pela qual então observa-se uma farta

produção legislativa. É nesse contexto que surge a Lei nº 601, de 18/09/1850, mais

conhecida como Lei de Terras e Imigração366, com a qual se inaugura um novo

momento na história e no direito fundiários, representando ela um fato novo para o

363
CARDOSO. op. cit. p. 138.
364
FAORO. op. cit. p. 409.
365
op. cit. p. 74.
366
Íntegra do texto da lei encontra-se em BRASIL, Ministério Extraordinário... op. cit. p. 357-361.
113

contexto jurídico da propriedade e, por conseguinte, para a configuração de cidade e

campo.367 Nesta lei se encontraria a “súmula da história territorial brasileira”368, a pedra

de toque do sistema fundiário, que fornece os princípios jurídicos sobre os quais toda

uma estrutura vai se edificar de forma perene, “em lento e inexorável processo

evolutivo”.369 Um dos grandes significados que pode ser extraído da referida lei é o de

modernização das relações econômicas e produtivas, abrindo campo e cidade a expansão

do capitalismo. A terra passa a ser um fator da acumulação e fortalecimento de capitais

então em curso.

Num nível doutrinário, podemos reconhecer370 a Lei de Terras como

demarcadora do terceiro grande período, ou sistema, do direito em relação à terra,

período que se caracteriza pela natureza propriamente dominial adquirida por este

direito. Tornando-se então dominante, este sistema conheceria sua segunda fase a partir

da edição do Código Civil brasileiro, em 1917, no qual ele se aperfeiçoa. O primeiro

sistema seria aquele, já abordado, de natureza sesmarial, que oficialmente vigorou até

1822, mas que antes disso já se encontrava, de fato, em vias de desaparecimento, e onde

existe não uma relação de domínio, mas sim de concessão administrativa. O segundo

sistema consistiria no chamado regime de posses, que para alguns existiu somente no

vácuo deixado entre a extinção do sistema sesmarial e o advento da Lei de Terras, mas

que, na verdade, parece ter coexistido paralelamente ao sistema sesmarial. Dispondo de

maneira geral sobre o sistema fundiário, público e privado, buscando organizá-lo em

todos os aspectos então necessários (formas de aquisição, ratificação, medição,

367
O histórico desta lei inicia-se em 1842, quando o Governo Imperial solicita ao Conselho de Estado,
através da Secção dos Negócios do Império, a formulação de uma proposta de reforma legislativa sobre
sesmarias e colonização. Em 1843, o projeto que se transformaria na futura lei é apresentado na Câmara.
Conforme LIMA. op. cit. 1935, p. 56.
368
PORTO, Custódio Moreira. As ocupações legítimas de terras devolutas. Revista da PGE-SP, São
Paulo, n. 1, p. 55, jan. 1971.
369
BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. São Paulo: Juriscredi, 1974. p. 187.
370
Apoiados na literatura consultada, em especial, as de FAORO, CIRNE LIMA e BALDEZ.
114

demarcação, titulação e registro das posses existentes), a Lei de Terras significa a ab-

rogação do regime de posses no campo formal. Nos é útil, portanto, tecer algumas

considerações sobre tal período, que se relaciona intimamente com os outros dois, que

lhe antecederiam e sucederiam.

O regime - ou período - de posses não foi criado, em tempo algum, por

qualquer disposição normativa, mas sim consiste numa prática social criada

espontaneamente pelo costume e reforçada pela tolerância da autoridade pública, que foi

ratificada a posteriori pela Lei de Terras. Esta, ao mesmo tempo em que pôs fim à

possibilidade de aquisição de terras por meio do apossamento ou ocupação, reconheceu

aqueles(as) que tivessem se realizado até o seu advento, atribuindo-lhes o efeito jurídico

de permitir a constituição de domínio - o que se daria por meio da então chamada

legitimação de posse.371 Ao cobrir as posses existentes com o manto da legalidade,

fazendo com que passassem do plano empírico ao plano jurídico (vale dizer, ao exercício

de poderes jurídicos conferidos a particulares observadas certas condições formais

prescritas em lei), a Lei de Terras promove a primeira ação de regularização fundiária372

de que se tem notícia em nossa história. Com base na práxis jurídica, esta pode ser

definida como o processo pelo qual se busca trazer aquele que encontra-se em situação

precária, instável, anormal e irregular em sua relação com a terra de que se utiliza, para o

mundo da certeza, previsibilidade e estabilidade do ordenamento jurídico, o que se

processará por meio de sua titulação como proprietário ou, na pior das hipóteses, como

detentor de um direito real, portanto, derivado da propriedade.


371
Conforme disposto no art. 8º da referida lei. BRASIL, Ministério Extraordinário... op. cit. p. 359.
372
Regularizar é o mesmo que “legalizar”, “pôr na ordem de determinada lei”, “normalizar”,
“consertar”, “reajustar”, “por em ordem ou arrumar o que se mostrava desarranjado” - conforme SILVA,
De Plácido e. Regularizar. In: ___ . Vocabulário Jurídico. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 695.
De outro lado, tem origem no direito agrário o termo regularização de posse e ocupação, o qual, não
obstante a sua doutrina não lhe tenha encontrado um sentido pacífico e unívoco, pode ser entendido
como o processo “pelo qual se reconhece uma situação e relação jurídica pré-constituída para
titulação dos ocupantes (...)”. Consiste, assim, numa “maneira de se reconhecer um direito advindo da
posse e da ocupação de terra (...)” - conforme MIRA, Benedito Antônio Leal de. Regularização de
posse e ocupação. In: ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito. cit. v. 64: p. 358-360.
115

Indicando a relevância e a extensão que o fenômeno da posse assumiu ao

longo da história territorial brasileira, Cirne Lima assevera que:

“Apoderar-se de terras coletivas e cultivá-las tornou-se cousa corrente entre


os nossos colonizadores, e tais proporções essa prática atingiu que pôde,
com o correr dos anos, vir a ser considerada como modo legítimo de
aquisição do domínio, paralelamente a princípio, e, após, em substituição
ao nosso tão desvirtuado regime de sesmarias”.373

Dado o enraizamento social da ocupação ao cabo de três séculos e meio do

início da colonização, demitir compulsoriamente todos os ocupantes de suas posses

pareceu aos homens de então algo impossível e que importaria em risco de revoltas

sociais com as quais os donos de sesmarias seriam incapazes de arcar. A solução

encontrada e consagrada na lei - segundo Faoro374, a única capaz de se impor - seria o

reconhecimento da posse, mas com extensão reduzida a de uma sesmaria igual às últimas

concedidas na mesma comarca ou nas mais próximas.375 Baldez, de seu turno, parece

esmiuçar mais a questão ao recordar que durante o período de posses as terras foram

ocupadas não por quem o quisesse, mas apenas por quem o pudesse, isto é, não eram

acessíveis aos trabalhadores, na medida em que a imensa maioria destes tratavam-se de

escravos, aos quais este poder estava vedado dada a natureza de sua inserção sócio-

econômica. Não eram eles enquadráveis na categoria colonizadores, dentre os quais teria

se tornado corrente o apoderar-se de terras, conforme a citação feita supra. Assim,

conclui que até 1850 a posse era considerada um meio legítimo de aquisição da

propriedade, sobretudo porque somente era acessível às classes dominantes.376 No

mesmo sentido, Cirne Lima ressalta que entre os beneficiários da regularização

promovida pela lei encontrava-se “um número considerável de agricultores e criadores,

373
Apud FAORO. op. cit. p. 408.
374
op. cit. p. 408.
375
Conforme dispõe o § 1º, in fine, do art. 5º, da Lei de Terras. BRASIL, Ministério Extraordinário... op.
cit. p. 358.
376
BALDEZ. Solo urbano ... cit. p. 2-3.
116

com posição designada nos quadros de nossa vida social e econômica”.377 Conforme

será exposto mais adiante378, tais posições se confirmam à medida que se percebe a

rigorosa articulação entre a libertação do trabalhador escravizado, que se inicia em 1850

com a Lei Eusébio de Queiroz, e a distinção nítida entre posse e propriedade, que se

inicia exatamente no mesmo ano, com a Lei de Terras.

Na sistemática vigente até a Lei de Terras não havia, assim, uma distinção

clara entre posse e propriedade, sendo que “a posse que promovesse a colonização, o

povoamento e a incorporação de terras ao processo produtivo, valia usualmente como

domínio.”379 Nesse mesmo diapasão eram exercidos os direitos da Coroa Portuguesa

sobre a colônia, cujo poder fundamental era o de conceder sesmarias e não,

propriamente, o de exercer as tradicionais faculdades dominiais (usar, gozar, dispor,

reivindicar). Posse e propriedade coimplicavam-se uma na outra, sendo certo que as

disputas territoriais resolviam-se, sobretudo, à luz do princípio do uti possidetis, ita

possideatis (“do jeito que possuís, assim continueis possuindo”), oriundo do Direito

Romano, conforme nos ensina Linhares de Lacerda em seu “Tratado das terras do

Brasil”.380

A Lei de Terras possui dois aspectos fundamentais, um que se volta para o

passado, outro para o futuro, sendo este último o que constituía o centro das

preocupações do legislador. Com relação ao passado, procura respeitar as situações

preteritamente engendradas, reconhecendo efeitos jurídicos às mesmas. Com relação ao

futuro, extingue, doravante, a possibilidade de aquisição de domínio de terras devolutas

com base na posse, mesmo se respeitados os requisitos de morada habitual e cultura

efetiva. Aliás, proíbe terminantemente a ocupação espontânea de tais terras,


377
op. cit. 1935. p. 59-60.
378
na seção 3.5.2.
379
PORTO. op. cit. p. 55.
380
Apud MIRA, Benedito Antônio Leal de. Legitimação de posse. In: ENCICLOPÉDIA Saraiva do
Direito. cit. v. 48: p. 363-364.
117

criminalizando este ato e prevendo-lhe penas drásticas nos campos civil e penal.381

Assim, a Lei concilia-se, compõe-se, com o passado, para somente após isto instituir

uma nova ordem diversa dele.

Extinto o regime de aquisição por meio da posse, ou simplesmente regime de

posses, a Lei de Terras enuncia que as terras somente seriam acessíveis por intermédio

da compra e venda, isto é, exclusivamente pelo sistema de mercado. 382 Esta lei procurou

criar a propriedade burguesa do solo, isto é, aquela que se compra e vende sem restrição

jurídica alguma, ou, na melhor das hipóteses, com restrições excepcionais,

desaparecendo os direitos tradicionais que pesavam sobre as mesmas e instaurando-se o

princípio da alienabilidade. Induz-se ou reforça-se, assim, a constituição de um mercado

de terras bem como de uma classe burguesa organizada em torno dele. Este processo,

pelo qual se traz determinados bens à circulação econômica, é designado por

desamortização ou desimobilização, e constitui um dos problemas básicos da transição

ao capitalismo, sendo geralmente um processo violento.383 Como vimos, antes do

capitalismo, a terra, de maneira geral, é dificilmente alienável, posto que, ou é

considerada coisa fora de comércio ou sobre ela são constituídos direitos de longuíssima

duração. Assim, grandes extensões de terra aproveitáveis encontraram-se imobilizadas

até o advento da Lei de 1850, quando então cedem ao “avanço inexorável da

propriedade privada”.384 Isto significava que “não havia interesse e nem possibilidade

de acumulação de terras de maneira especulativa. [...] Ganhar dinheiro pela terra era

muito mais difícil”.385 Exemplo da virtual impossibilidade de lucro especulativo

preteritamente à economia capitalista, até hoje se encontra em vigor, paradoxalmente, o

irrisório foro, de 0,6% do valor do domínio pleno, exigido anualmente pela União
381
Vide art. 2º da Lei de Terras. BRASIL, Ministério Extraordinário... op. cit. p. 357.
382
Art. 1º da Lei de Terras. BRASIL, Ministério Extraordinário ... op. cit. p. 357.
383
CARDOSO. op. cit. p. 161.
384
CARDOSO. idem, ibidem.
385
LOPES. op. cit. p. 25-26.
118

Federal em face do enfiteuta de seus terrenos de marinha386 - este também um instituto

de remota origem.

De outro lado, a Lei de Terras estabelece mecanismos tendentes à

regularização das antigas posses, bem como à sua demarcação, medição e registro

público do domínio387, criando segurança jurídica na medida em que se eliminaria todo

foco de dúvidas a respeito da titularidade das propriedades fundiárias, separando-se “o

senhor da terra do mero pretendente ao usucapião”.388 Contempla, ainda, mecanismos

que possibilitam extremar o domínio particular em relação ao público, de forma que

ambos não venham a se confundir, caracterizando-se com nitidez a propriedade privada

individual da terra, pressuposto fundamental à existência do mercado de terras. 389 Dado o

papel relevante assumido pela lavoura cafeeira nas plantations do centro-sul esta ordem

de providências legais se afiguravam fundamentais, fazendo com que a pretendida

alavancagem da economia em bases de mercado não encontrasse óbices jurídicos. Nesse

sentido, a Lei de Terras é complementada por outras, que vêm com o mesmo espírito de

aperfeiçoar a sistematização jurídica da proteção da propriedade, como a Lei nº 1237 de

24/09/1864 - mais conhecida como Lei Hipotecária - e o decreto 169A de 19/01/1890.

A primeira dispõe sobre o processo de caracterização e titulação da terra, de forma que

sirva de garantia jurídica - de natureza real - aos financiamentos indispensáveis às

movimentações e empreendimentos econômicos. O segundo modifica o sistema

registrário e simplifica o processo de execução, induzindo a ampliação da oferta de

crédito.390

386
É o disposto no art. 101 do Decreto-Lei nº 9760, de 5.09.1946, diploma legal que dispõe sobre os bens
imóveis da União. O dispositivo em questão foi confirmado nas modificações introduzidas pelo art. 88
da Lei nº 7450, de 23.12.1985.
387
Tratam-se dos arts. 7º, 11 e 13 da Lei de Terras. BRASIL, Ministério Extraordinário... op. cit. p. 358-
359.
388
FAORO. op. cit. p. 408-409.
389
É o disposto no art. 10 da Lei em questão. BRASIL, Ministério Extraordinário... op. cit. p. 359.
390
BALDEZ. Sobre o papel do direito ... cit. p. 11.
119

No entanto, e aqui reside o ponto crucial, a referida lei praticamente impede

o acesso à terra por parte dos colonos nacionais e estrangeiros, vedando de vez o

estabelecimento de novos pequenos produtores, impedindo um contínuo afluxo

populacional às novas terras incorporadas ao processo produtivo. Ela estabelece um

“monopólio virtual da propriedade da terra pelos grupos rurais dominantes”391,

dificultando a formação de uma classe de pequenos proprietários rurais. A transformação

da terra em mercadoria conduz a evidente seleção dos segmentos subalternos, que não

têm como arcar com o preço que as terras adquirem no mercado, a não ser aquelas que

em razão de externalidades negativas alcançam ínfimo valor. Num mercado que por

definição já é seletivo e excludente, a Lei de Terras estabelece, ainda, preferência legal

para compra de terras devolutas àqueles que já tinham posses, desde que essas

estivessem legitimadas e que comprovassem “pelo estado de sua lavoura ou criação”,

que possuíam “os meios necessários para aproveitá-las”.392 Fica-nos claro que, também

nesse caso, prevaleceu a tônica geral observada desde o sistema sesmarial, vale dizer, por

meio de dispositivos aparentemente democráticos recompensavam-se os posseiros que já

possuíam capacidade econômica393, propiciando-se oportunidades mais favoráveis

exatamente aos segmentos senhoriais.

Nesse aspecto, o caso brasileiro é dissonante da tendência que prevaleceu em

diversas regiões do continente, onde o fim da escravidão representa uma revolução na

estrutura da mão-de-obra, que leva à formação e expansão de um campesinato negro,

que obtém terras e torna-se economicamente independente. Se expressa, aqui, a

manutenção das estruturas internas do país no período imperial, a qual é historicamente

marcada pela hegemonia dos interesses ligados à agricultura e à exportação de produtos

391
CARDOSO. op. cit. p. 158.
392
Art. 15 da Lei. BRASIL, Ministério Extraordinário... op. cit. p. 360.
393
LIMA. Terras devolutas ... cit. p. 60.
120

primários.394 A conseqüência disto é que na sociedade de homens formalmente livres se

engendra uma forte dependência econômica. Reproduz-se, agora, entre proprietários e

não-proprietários (ou pequenos proprietários), aquela extrema polarização observada na

sociedade escravocrata., gerando a recorrente necessidade do estabelecimento de uma

ponte - um elo de ligação, um matizamento - entre estes dois pólos.

Em suma, a transição ao capitalismo periférico e à economia de mercado

possui um caráter acentuadamente conservador, fazendo-se de forma a não alterar

radicalmente as posições alcançadas no período colonial. Assim, a transição da ‘cidade

da conquista’ à ‘cidade-mercado’ se faz mediante uma superação dialética em que

características básicas da primeira ficam preservadas na segunda.

3.5.2 A relação terra-trabalho

Conforme demonstrado acima, a Lei de Terras, como não poderia deixar de

ser, é um evento estreitamente articulado ao conjunto de transformações sócio-

econômicas que ora se processavam na sociedade brasileira e latino-americana de

maneira geral. No sentido da busca do significado histórico da instituição da propriedade

há, no entanto, um nível mais específico desta articulação, que refere-se às relações entre

o processo de constituição da propriedade burguesa e o processo abolicionista. Trata-se

de um aspecto que aventamos anteriormente de maneira breve, e que agora pode ser

melhor desenvolvido.

Segundo colocações bastante convergentes dos autores consultados, haveria

uma espécie de relação inversa entre os processos de libertação do homem e da terra,

isto é, “num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num regime de

trabalho livre, a terra tinha que ser cativa”.395 A aparente desvinculação entre os dois

394
CARDOSO. op. cit. p. 154-155.
395
MARTINS. op. cit. p. 32.
121

processos é refutada por Ciro Flamarion Cardoso, que assim define seus nexos:

“Nos países que durante o período colonial se caracterizaram por uma


economia centrada na plantation escravista, o problema da abolição - ou
seja, a necessidade de uma mudança radical no mercado de trabalho -,
determinará as soluções consideradas como possíveis para o conjunto mais
amplo de transformações imprescindíveis: mercado de terras, de capitais,
legislação, etc”.396

Em idêntico sentido, José de Souza Martins recorda-nos que o debate

parlamentar sobre a abolição da escravatura “é ao mesmo tempo um debate sobre a

propriedade fundiária e sobre a colonização”. 397

Dessa forma, identificamos dois fatores básicos que levariam a que, no

processo de criação do trabalho livre e assalariado, ou de reforma do processo de

trabalho, representado pela Abolição, se fizesse necessário o aprisionamento da terra,

isto é, o seu fechamento tanto de fato quanto de direito.

O primeiro fator consistiria na necessidade de realizar a passagem do regime

de trabalho compulsório ao livre e assalariado. Significando esta passagem não uma

simples modificação das instituições, mas sim uma transição entre dois modos de

produção - ou, na pior das hipóteses, do eixo do modo de produção - resta clara a

complexidade da mesma, nada autorizando supor que o decreto que formalmente ab-

rogou a escravidão correspondesse, ipso facto, a uma liberdade econômico-social e a

relações produtivas organizadas num mercado de trabalho. Conforme Ciro Flamarion

Cardoso, aliás, as circunstâncias dos séculos XIX e início do XX demonstram que tal

não se poderia esperar, subsistindo até nossos dias, dentro de uma economia plenamente

integrada no capitalismo de escala industrial, vínculos pessoais que sujeitam o

trabalhador em sua liberdade de contratar trabalho.398 A partir daí pode-se considerar que

396
op. cit. p. 138-139.
397
op. cit. p. 65.
398
CARDOSO. op. cit. p. 141-160.
122

o principal resultado da Abolição foi não o advento de uma classe de trabalhadores

assalariados, mas sim a definição e universalização da propriedade capitalista da terra,

engendrada como forma de sujeição do trabalho.

Dado, portanto, o arraigamento sócio-cultural do modo de produção

escravista, o que colocava em dúvida que o exército de mão-de-obra se destinasse, ou se

dirigisse, ao mercado de trabalho, é que justifica-se a instituição de um monopólio sobre

a terra. A criação da propriedade privada seria, nesse sentido, o mecanismo capaz de

garantir uma oferta de força de trabalho, sendo a Lei de Terras o instrumento legal desta

criação.399 No século XIX já se afigurava irreversível o colapso do regime escravista, que

já estaria ‘com seus dias contados’. Assim, a única forma de se produzir trabalho livre

seria impedindo o acesso à terra, já que de outra forma o trabalhador a obteria por

ocupação e se autonomizaria. Não podendo fazê-lo, se obrigaria a trabalhar para seus

proprietários, onde supostamente acumularia recursos para acessar a terra mediante

compra. O trabalho é, assim, apresentado como condição da propriedade, justificando-se

em função daquela.

Revelador dessa ideologia, que acena com a possibilidade de acesso à terra

desde que, primeiro, se alugue trabalho, Manoel Maurício de Albuquerque colhe um

importante fragmento de uma declaração do Conselho de Estado, de 1842, onde se

reclama da “dificuldade que hoje se sente de obter trabalhadores livres”.400 Ante esta

dificuldade se indica a providência de que, sem exceção alguma, as terras sejam

adquiridas por compra e venda. Nos termos da mencionada declaração:

“Aumentando-se o valor das terras e dificultando-se, conseqüentemente, a


sua aquisição, é de se esperar que o imigrante pobre alugue o seu trabalho
efetivamente por algum tempo, antes de obter meios de se fazer

399
MARTINS. op. cit. p. 59.
400
ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de. Pequena história da formação social brasileira. 2. ed. Rio
de Janeiro: Graal, 1981. p 286.
123

proprietário”.401

Assim, num primeiro nível, a propriedade privada da terra seria um

mecanismo para ‘motivar’ o trabalhador a dirigir-se ao mercado de trabalho, ensinando-o

a trabalhar para vir a se tornar proprietário. 402 Em relação ao campo, tal hipótese, em

absoluto, revelou-se verdadeira, sancionando-se o banimento do trabalhador em relação

a terra. É isto o que demonstram os índices levantados por Victor Nunes Leal403 a

respeito da concentração fundiária no campo e da não prosperidade da pequena

propriedade, bem como aqueles de Luiz Cesar Ribeiro, demonstrando a concentração de

população miserável no campo - no campo encontra-se 50% da população brasileira

considerada miserável, apesar de lá viver somente 25% do total de habitantes.404 Já em

relação à cidade, a mesma hipótese revelou-se, até hoje, apenas em parte verdadeira. Ao

longo do século XX, não obstante a favelização, a precarização da moradia e a produção

de periferias mal servidas (ou não servidas) de comodidades urbanas, as cidades

alcançaram um considerável nível de prosperidade, que elevou o percentual de

moradores em casa própria para 57%.405

Mais importante que os números, no entanto, é o dado qualitativo de que a

ideologia - ou, também poderíamos dizer, a engenharia - em questão é essencialmente

contraditória, dado que procura combater o escravismo valendo-se dos meios próprios

deste, abolindo-o enquanto relação, mas preservando-o enquanto ética. Cria-se o

trabalho livre, mas por uma via compulsória. Não seria muito absurdo entender que fazer

o contrário talvez fosse mais razoável, pois nesta hipótese a liberdade possivelmente

entraria de modo substantivo e não apenas adjetivo.

401
ALBUQUERQUE, idem, ibidem.
402
MARTINS. op. cit. p. 59 e ss.
403
op. cit. p. 26-30.
404
RIBEIRO, Luiz César de Queiroz. Reforma urbana na cidade da crise: balanço teórico e desafios.
in: ___ & SANTOS JR. , Orlando Alves dos (orgs). Globalização, fragmentação e reforma urbana; o
futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. p. 266-268.
405
Conforme dados de RIBEIRO. op. cit. p. 264.
124

O segundo fator da relação inversa entre liberdade do homem e da terra

consiste no processo de transfiguração - ou metamorfose - do capital detido pelo senhor

de terras. Na economia escravista, o principal do capital do proprietário encontrava-se

investido e imobilizado em sua escravaria. De fato, a propriedade de escravos consistia

na maior riqueza detida pelos produtores, representando, no período de 1850 a 1886, de

30 a 70% do valor total da empresa rural.406 Sem escravos, a posse de terras de nada

valia - o que reforça o argumento de que a ocupação de terras era inócua às classes

trabalhadoras durante a economia escravista. De outro lado, o escravo era a mais

necessária de todas as riquezas pois, com ele, o senhor adquiria uma determinada

capacidade de criar renda, uma probabilidade de ganho futuro. Este seria o parâmetro

para a fixação do preço pago ao traficante de escravos, que representava um tributo

pago antecipadamente com base na expectativa de um resultado a ser produzido.

Empenhavam, então, os senhores de terra, grandes somas na importação, transporte,

alimentação, instalação e vigilância dos escravos, o que equivalia a uma capitalização de

sua empresa. Assim, não representavam apenas uma fonte de trabalho, mas, sobretudo,

uma fonte de capital, desempenhando uma dupla função. Na pessoa do escravo

cumulavam-se o trabalho e o capital.

O papel do escravo, no modo de produção escravista, era comparável ao

desempenhado pela terra no modo de produção capitalista, isto é, funcionam ambos

como objeto da renda capitalizada.407 Nisto se incluía, até mesmo, o papel de garantia

para o pagamento de empréstimos.408 Registra-se, ainda, o uso de escravos na

integralização do capital das sociedades comerciais que se formaram no século XIX.409

De outro lado, conforme já demonstrado no item anterior, a propriedade da terra, da

406
op. cit. p. 412.
407
MARTINS. op. cit. p. 24.
408
MARTINS. op. cit. p. 26.
409
VALVERDE. op. cit. p. 18-19.
125

mesma forma que a escravidão, constitui meio de extorquir trabalho, valendo uma e

outra como aquisição monopolística “do direito de exploração da força de trabalho”.410

Ao longo do século XIX, firmou o Império Brasileiro a posição pelo fim do sistema

escravista, para o qual contribuiu a conhecida pressão inglesa. Antes da própria Lei

Eusébio de Queiroz, registram-se medidas legais de repressão ao tráfico negreiro, mas

esta se tornou célebre por ser a Lei mediante a qual tal intenção realmente se efetivou, o

que ocorreu quase imediatamente após a sua edição.411 Estava, pois, anunciado o fim do

trabalho compulsório e o advento do trabalho remunerado. No entanto, se pura e

simplesmente se concedesse liberdade aos escravos estaria descapitalizando-se

inteiramente as unidades de produção que sustentavam a economia nacional, e o decreto

do Estado significaria um confisco dos capitais privados existentes. Faz-se então

necessário repor estes cabedais, mantendo-lhes a integridade, o que não se faria pela

mera compensação financeira, que, apesar de ter ocorrido de fato412, não asseguraria a

reprodução do capital como o escravo seria capaz de fazer. Dado que o escravo deixa de

ser uma mercadoria - e meio de produção - para adquirir personalidade civil, a reposição

se faz pela conversão de um bem de uso - no caso, a terra - na mercadoria que até então

ela não era.

Assim, a Lei Eusébio de Queiroz associada à Lei de Terras atuam

complementarmente no sentido de, no mesmo ano, operar essa transfiguração: enquanto

a primeira converte o escravo em pessoa, a segunda converte a terra em mercadoria. A

terra passa a ser objeto de domínio, e de um domínio que se define enquanto mercadoria,

para, assim, recapitalizar a empresa rural - até então as grandes empresas nacionais, dado

o estado pré-industrial da produção. Adquire, pois, a terra um valor e um papel que ela

nunca havia conhecido antes na sociedade brasileira. Enquanto o modo de produção


410
MARTINS. op. cit. p. 32.
411
HOLANDA. op. cit. p. 74-79; e CARDOSO. op. cit. p. 156.
412
Conforme CARDOSO. op. cit. p. 156.
126

escravista vigorou sem perspectiva de extinção, a terra, até por ser bem fora de

comércio, possuía ínfimo valor econômico, tendo apenas um valor nominal para

finalidades práticas. Não sendo sobre ela que se formava o monopólio indispensável a

produção, era destituída de valor, dispensando cautelas jurídicas que lhe vedassem o

acesso.413 Já em 1850, Faoro 414 registra que o preço da terra aumentara até dez vezes em

relação ao começo do rush cafeeiro, enquanto, de outro lado, o preço dos escravos

atinge seu auge em 1877, quando então declina à medida da aproximação da Abolição. 415

Dessa forma, a capitalização da empresa passava por seus domínios fundiários, fazendo-

se evidentemente necessário cercar esse domínio de garantias. Daí a proscrição quase

completa da ocupação como meio de aquisição de domínio, dado que apoderar-se de

terras significaria apoderar-se de algo exponencialmente mais valioso, capaz de gerar

lucros reais mesmo se improdutiva. As fontes de renda, assim, transformam-se em seu

uso e modo de existência, no entanto, não mudam de mãos, isto é, de proprietários.

Até 1850 não havia um interesse explícito na interdição do acesso à terra,

visto que não era esse o fator primordial de sustentação da economia mas sim o escravo.

Com a evolução da formação social, a riqueza passa a assentar-se na propriedade do

solo, que se converte em bem econômica e juridicamente relevante, justificando-se o seu

cerco jurídico. Tal cerco, conquanto não seja físico, mas sim virtual ou simbólico, é

bastante efetivo e perceptível, naquela exata linha dos controles sociais próprios da

cidade invisível, dos quais tratamos no capítulo anterior (seção 2.4.2). Nesse sentido,

substitui-se a dominação direta e personalizada do escravismo por relações abstratas e

universais constituídas em normas jurídicas, “que subjetivam a realidade num grande

sistema de formas e fórmulas”.416 A relação de poder, existente tanto na propriedade do

413
BALDEZ. Solo urbano ... cit. p. 2.
414
op. cit. p. 412.
415
HOLANDA. op. cit. p. 74 e ss.
416
BALDEZ. Sobre o papel do direito ... cit. p. 1.
127

escravo quanto na propriedade da terra, neste último caso se apresenta como “mero

vínculo jurídico”.417 Esta transformação é um dos vetores da complexa transição à

ordem capitalista, a qual, no caso brasileiro e latino-americano, se dá a partir de uma

ordem escravista e mercantil.

Por fim, a extinção do comércio negreiro deixa em disponibilidade amplas

margens de capital, até então empenhado na obtenção e manutenção de escravos. Isto

permite investimentos em tecnologia aplicada ao processo produtivo, bem como, de

outro lado, seu direcionamento para fortalecimento das instituições bancárias, o que,

segundo Buarque de Holanda418, ocorreu de fato, estando a própria refundação do Banco

do Brasil, em 1851, relacionada a tal movimento. Assim, conclui-se que a plena

instalação das forças produtivas do capitalismo não era compatível com a persistência de

relações escravistas, dado o alto nível de comprometimento e imobilização de capitais

que este supõe. Conforme arremata José de Souza Martins, “ao libertar o trabalhador o

capital se liberta a si mesmo”.419 Nessa equação terra-trabalho, no entanto, temos um

processo de “formação não-capitalista do capital”420, assaz observado a partir do setor

agrícola da economia brasileira.

3.6 O Brasil ‘moderno’ política, econômica e juridicamente

Podemos afirmar que, no final do século XIX e nas primeiras décadas do

XX, completa-se, pelo menos numa primeira fase, a inexorável transição ao capitalismo

periférico, ocorrendo então uma série de transformações na sociedade brasileira que

criam as condições fundamentais para o posterior desenvolvimento em bases capitalistas.

Nesse sentido, destacamos como aspectos mais relevantes:

417
BALDEZ. idem. ibidem. p. 12.
418
op. cit. p. 76.
419
op. cit. p. 33.
420
MARTINS. op. cit. p. 62.
128

a) na instância política, a adoção da forma republicana de Estado (1889);

b) na instância econômica, o início da industrialização (durante a 1ª Grande

Guerra);

c) na instância jurídica, a edição de um Código Civil (1916/1917).

Este conjunto de modificações também pode ser definido como um

movimento de transformação conservadora, que, assim, se transformaria na grande

constante histórica brasileira.

Quanto ao primeiro aspecto, a República nasce, em fins do século XIX, do

amálgama de diversas correntes de pensamento, grosso modo alicerçadas nos setores

oligárquicos descontentes com o Império e na classe média urbana. Quanto às

oligarquias rurais/proprietárias de terra, tudo indica que o fator determinante de seu

descontentamento foi justamente a posição pró-abolição categoricamente firmada pelo

Império, contrariando-lhes em seus interesses imediatos.

Com a República de certa forma triunfa, no plano jurídico-constitucional, a

ideologia liberal que já se fizera presente ao longo de todo o século XIX, século de

rápida e intensa penetração dos valores burgueses. O liberalismo, no entanto, não era a

única inspiração político-ideológica republicana, dividindo espaço na condição de co-

responsáveis pelo novo pacto político as facções de natureza positivista, bem como

aquele conservadorismo de origem senhorial. Como bem nos mostra José Murilo de

Carvalho421, dentre outros historiadores, o Estado liberal que daí nasce, o faz repleto de

ambigüidades e contradições, ensejando uma larga oposição entre ideais políticos e

práticas reais. Nesse sentido, bastaria dizer que a Federação de Estados-membros que

compõe a República é decretada a 15/11/1889 não pelos próprios Estados através de

seus representantes, mas sim pelo Governo Provisório da República dos Estados Unidos

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados; o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed.
421

São Paulo: Companhia das Letras, 1987.


129

do Brasil.422 Conforme Ciro Flamarion Cardoso:

“Ainda que a ideologia liberal e as novas instituições surjam como uma


importação de idéias e instituições similares da Europa ou dos Estados
Unidos, não existe senão uma semelhança formal entre os processos
liberais europeu e latino-americano”.423

Resta claro que em nenhum momento pretenderam os segmentos

oligárquicos hegemônicos estender um regime de igualdade política e liberdades

individuais às massas populares, razão pela qual o autor supracitado falará numa espécie

de República sem povo. “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem

conhecer o que significava”424, como então sentenciaria Aristides Lobo, em célebre carta

escrita três dias após a proclamação do novo regime. Este mesmo povo, do qual até hoje

muitos se lamentam de sua ausência enquanto ator político, àquela época era fervoroso

adepto da restauração monárquica.425 O governo da República em diversos momentos se

confrontou com as repúblicas populares, sem integrá-las numa república maior que

abrangesse todos os seus cidadãos - fato retratado em célebre romance “O cortiço”, de

Aluísio de Azevedo, lançado em 1890.426 Ao mesmo tempo em que necessitava de um

lastro popular para se tornar um regime coerente, a República demonstrou uma grande

dose de horror a este mesmo povo, o que levou o ideal liberal-democrático a deturpar-se

em soluções autoritárias.427 De forma análoga à ocorrida em relação à Abolição, a

liberdade que se instaura não permite a emancipação do sujeito ‘libertado’, que a rigor é

deixado à sua própria sorte.428

Longe, pois, de representar um amadurecimento de uma concepção política

422
Conforme Decreto nº 1, de 15.11.1889. BRASIL, Constituição. Constituições do Brasil. Brasília:
Senado Federal, 1986. p. 61-62.
423
CARDOSO. op. cit. p. 218. O grifo é nosso.
424
HOLANDA. op. cit. p. 161.
425
CARVALHO, J. M. op. cit. p. 31.
426
Bem como na literatura propriamente científica, a exemplo de CHALHOUB, Sidney. Cidade febril:
cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. p. 15-59.
427
CARVALHO, J. M. op. cit. p. 35-39.
428
CARDOSO. op. cit. p. 159.
130

bem definida e específica no seio da sociedade, o movimento republicano representou

uma importação um tanto abrupta da democracia liberal, com a qual vem se acomodar e

compor os direitos e privilégios da aristocracia rural e semifeudal, os mesmos privilégios

que foram objeto de ataque da burguesia no Velho Mundo. Um país ainda preso às

raízes escravistas é vestido com a roupagem moderna da democracia burguesa. Como

bem lembra Buarque de Holanda429, a fermentação do ideário liberal no caso das massas

populares e trabalhadores é limitadíssima e, no caso da aristocracia rural, um ornamento,

um luxo ao qual somente um segmento seguro de seu status quo poderia se permitir. Já a

democracia, diz-nos o mesmo historiador em célebre sentença, essa “foi sempre um

lamentável mal entendido”.430 Demonstração da forma contraditória em que o ideário

liberal é incorporado a sociedade brasileira encontramos nas palavras de José de Souza

Martins:

“[...] na crise da transição, trabalho livre também tinha um sentido muito


particular para o fazendeiro, que de modo algum se explicitava plena ou
principalmente em sua formulação jurídica. O trabalho livre era
concretamente o trabalho libertado do tributo ao traficante 431, da
transferência de capital da produção ao comércio; [...] era o trabalho que
entrava no processo produtivo totalmente desonerado”. 432

Com a proclamação da República, se dá algo definido por José Murilo de

Carvalho como “uma vitória do capitalismo desacompanhado da ética protestante” 433,

formando-se um espírito aquisitivo solto de qualquer peia de valores éticos. Assim,

incorpora-se basicamente um dos aspectos deste capitalismo, talvez o mais grave deles,

representado pela mentalidade acumulativa. O capitalismo não se caracteriza apenas

pela ganância, pelo amor à riqueza obtida à custa de outrem, o que na verdade pertence

429
op. cit. p. 160-161.
430
HOLANDA. idem, ibidem.
431
referência aos traficantes e/ou comerciantes de escravos.
432
op. cit. p. 62.
433
op. cit. p. 26-27.
131

a todas as épocas. Além disso, define-se o capitalismo por fatores tais como a

manutenção da igualdade de oportunidades, o cálculo racional que garanta a manutenção

do lucro a médio prazo, a exploração não predatória dos recursos, a geração de novas

tecnologias a serem aportadas à produção, bem como a separação entre o mundo dos

negócios e a lealdade devida a amigos, parentes e afins. A incorporação desses outros

fatores representa o ponto profundamente problemático do capitalismo organizado no

Brasil.

Ao seu turno, o processo de industrialização não resultou, como na maioria

dos países latino-americanos, de transformações revolucionárias da antiga estrutura de

produção, mas sim de uma acomodação da mesma à nova realidade econômica. Muito

embora se agrave a decadência rural e a transferência de excedentes do campo à cidade,

às oligarquias rurais foi permitido reter a propriedade do solo, bem como manter formas

semi-servis de exploração de mão-de-obra, preservando-se, ainda, o latifúndio como

forma fundamental de organização produtiva no setor agrícola. A esse respeito, o

período histórico seguinte, por nós conhecido como Era Vargas (compreendida entre

1930 e 1945), momento de profundas transformações e de grande incremento no

processo de industrialização, é paradigmático: se, por um lado, nela se desenvolveram,

em larga escala, as forças produtivas do capitalismo brasileiro, que o levariam, algumas

décadas mais tarde, a situar-se entre as dez maiores economias do planeta; por outro,

mantiveram-se intactas as estruturas agrárias de nossa sociedade. Conforme já

acentuamos, as mudanças impostas pelo modo de produção capitalista, de maneira geral,

não se circunscrevem à cidade, visto que cidade e campo inserem-se no mesmo circuito

produtivo e de divisão do trabalho. No entanto, as vicissitudes do desenvolvimento

capitalista-industrial brasileiro até recentes décadas não tinham levado ao campo as infra-

estruturas sociais e as tecnologias industriais geradas nesse desenvolvimento, que já eram


132

desfrutadas pela cidade, mesmo que de maneira profundamente desigual. Desse modo,

agudizou-se o fosso entre campo e cidade, fazendo-o ainda mais profundo que aquele

próprio das distinções entre esses dois modelos organizativos. Aprofunda-se, pois, entre

cidade e campo, bem como no interior de cada um desses espaços, o já mencionado

problema da coexistência de distintas temporalidades.

A industrialização, assim, fez-se prescindindo do mercado rural para seus

produtos, dado o insignificante poder aquisitivo de seus habitantes. As cidades que

emergem em tal contexto, ver-se-ão transtornadas em suas funções tradicionais de sedes

da burocracia estatal, núcleos residenciais da elite dominante e palco da arrancada

industrial, convertendo-se em refúgio de escravos que, a partir do século XIX,

progressivamente se libertam, além de camponeses e migrantes das regiões periféricas ao

centro dinâmico da economia, expelidos que foram de sua origem, no dramático

fenômeno do êxodo rural.434 Assumem, portanto, as cidades, a configuração de uma

espécie de “depósito de gente e coisas”435, no limite, de cidades dormitório, desprovidas

de uma estrutura de bens e serviços capazes de garantir a reprodução do contingente

humano aí existente, proporcionando-lhe um mínimo de condições de bem-estar.

Os marcos jurídicos de tal processo estão presos, basicamente, à primeira

Constituição republicana, de 1892, e ao Código Civil brasileiro - Lei nº 3071, de

1º.01.1916 -, cuja “data mental” remonta a 1899436, mas que entra em vigor apenas em

1917. Não obstante contradições como as que temos nos referido, que marcam a

formação social brasileira, nesta são absorvidos, no plano jurídico, os padrões

434
Segundo o IBGE, na década de 1980 a taxa de urbanização da população nacional chega a 75% , e a
população rural cai, não somente em números relativos, mas também absolutos - em relação à década
anterior passou de 38,6 para 36 milhões de habitantes. Dados in RIBEIRO. op. cit. p. 266.
435
LOPES. op. cit. p. 16.
436
Ano em que o jurista Clóvis Bevilaqua concluiu e entregou ao Governo Republicano o esboço de dito
Código, tarefa para a qual fora cometido pelo mesmo Governo. Este, após análise de comissão
governamental, remeteu-o ao Congresso no ano seguinte, onde tramitou durante 15 anos, até lograr
aprovação. Conforme PONTES DE MIRANDA. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981. p. 83-85.
133

normativos mais necessários ao desenvolvimento de um sistema de mercado, sendo tal

processo amplamente inspirado na ordem jurídica das nações de ponta do capitalismo

industrial. Do ponto de vista do sistema jurídico-normativo abstrato, portanto,

arriscaríamos afirmar que a sociedade brasileira encontra-se, desde então, num patamar

rigorosamente ‘modernizado’.

Tal afirmação vale, em primeiro lugar, para a matriz constitucional. Já a

partir da primeira Constituição Republicana, se asseguram os direitos do cidadão e se

determina a separação dos poderes, conforme a concepção herdada da Revolução

Francesa. Conquanto conturbados pelos amplos poderes reconhecidos ao Imperador, tal

ordem de dispositivos não deixa de figurar na própria Constituição Imperial.437 A

Constituição de 1892, assim, confirmou aquilo que já existia, pouco acrescentando em

termos de direitos e garantias do cidadão.

De outro lado, o adjetivo moderno se encaixa com perfeição ao Código

Civil, onde se realiza a garantia constitucional da autonomia privada e da propriedade,

que se aprimora em seu caráter dominial e de mercadoria. O código brasileiro é

largamente inspirado no legendário Code de Napoléon, de 1804, o qual influenciou

decisivamente a várias codificações civis editadas na Europa e América Latina, ao longo

dos séculos XIX e XX. Este diploma concentra as referências jurídicas dominantes,

teórica e praticamente, a respeito da questão fundiária, até o desenvolvimento de uma

legislação especificamente agrária, que introduz algumas modificações. O Código de

1917 não faz qualquer distinção entre propriedade imobiliária urbana e rural, tratando-as,

pois, univocamente, isto é, como uma só modalidade de propriedade. Além disso, não

adstringe a utilização do solo a qualquer finalidade, não impõe restrição às glebas em

termos de tamanho máximo ou mínimo, bem como não fixa obrigação de utilização e/ou

437
Conforme, sobretudo, seus arts. 9º e 179.
134

aproveitamento das terras - através de cultivo, parcelamento ou edificação - pelos

respectivos proprietários ou prepostos. Rompe, nesse ponto, com o sistema fundiário

existente desde as sesmarias, que de alguma forma sempre preceituou a utilização efetiva

do imóvel possuído, contemplando restrições a propriedade privada - e restrições que

não dependem de relação de vizinhança, mas que fundam-se na concepção moral e

aristotélica de bem-estar, que é muito mais ampla.

A regulação jurídica contida no Código Civil em tudo se adéqua ao ideário

definido por Pietro Perlingieri438 como patrimonialista, que coloca no centro do

ordenamento civil a propriedade privada, em especial a propriedade fundiária,

inspirando-se na manutenção e incremento desta a disciplina das relações civis. Em tal

ideário converte-se a condição de proprietário em verdadeiro pressuposto chave à

condição - crítica e paradigmática - de sujeito de direito na ordem civil, numa lógica do

‘quem possui é’, em que a categoria do ser subordina-se à categoria do ter. No caso

europeu, essa perspectiva é estritamente vinculada ao ideário liberal clássico e

oitocentista do ‘laisser faire, laisser passer’, preconizando, no limite, uma abstenção de

limitação estatal das faculdades e poderes senhoriais, que somente se legitimaria no

intuito de harmonização do exercício concomitante das diversas esferas dominiais,

evitando-se conflito entre as mesmas. Fora disso, não se conceberia qualquer hipótese de

relativização dos poderes dominiais. Nesse sentido, sobre esta perspectiva pesaria a

implacável crítica marxista, que diria ser a mesma nada mais que instrumento de coesão

da classe dominante, bem como de manutenção do bloco histórico por esta composto.

No caso brasileiro, no entanto, há um problema anterior a este. Na forma como foi

incorporado à práxis dos sujeitos sociais concretos - em especial das oligarquias

latifundiárias - o patrimonialismo assumiu conotação fortemente conservadora e

438
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 4.
135

autoritária, abdicando daqueles aspectos do liberalismo que colidissem com essa

perspectiva, em processo bastante aproximado daquele que corrompeu os ideais liberal-

democráticos do pacto republicano.

Desde sua edição, o Código Civil vem operando como uma verdadeira

‘constituição do direito privado’, tal a sua permanência histórica - que apresenta mais

perenidade que a própria ordem constitucional -, tal a dificuldade a que ante ele se faça

valer, na práxis jurídica, a supremacia constitucional, e tal o zelo com que é guardado

pelos juristas, que parecem ter nele, quiçá, a referência legal de maior ascendência sobre

sua formação e atuação profissional.

Pelas razões acima, pode-se vislumbrar na Lei de Terras um dos primeiros

marcos da modernização do sistema jurídico brasileiro, pois a partir dela emerge da

noção de posse a de propriedade, propriedade esta com as características que marcam-na

em seus contornos atuais consagrados no Código Civil brasileiro. Neste, a propriedade

constitui um efeito jurídico, criado por força de lei, que garante a disponibilidade da terra

independentemente de seu efetivo aproveitamento, sendo, assim, um instrumento que

viabiliza a acumulação em bases especulativas - típica da economia capitalista.439 A partir

de então, a propriedade tornar-se-á hegemônica, fazendo da posse um satélite seu,

negando-se a esta qualquer autonomia, entendida enquanto critérios e valor próprios,

que não estejam em função de algo externo a si. A posse civil, quando distanciada da

propriedade, será sempre representada como situação de incompletude e precariedade,

não possuindo qualquer valor intrínseco, exceção única na hipótese de aquisição por

usucapião - o que não destoa da lógica do sistema, visto que esta significará o ingresso

do possuidor no mundo dos proprietários. A propriedade, por sua vez, encontra seu

estribo na lei e jamais no costume ou em fatos, indicando que a legitimidade submete-se

439
BALDEZ, Miguel Lanzellotti. A luta pela terra urbana. Revista da Procuradoria Geral, Rio de
Janeiro: Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, n. 51, p. 167. 1998.
136

a legalidade, afirmando-se, assim, a tendência de formalização das relações sociais,

resultado do fortalecimento da perspectiva jus-positivista, a qual vai conferir um novo

perfil à ciência e à técnica jurídicas.

3.7 O sentido social de propriedade na ‘cidade capitalista’

3.7.1 Positivismo e função social da propriedade

À época da fundação da República quase todas as lideranças preocupadas

com o destino do proletariado o faziam em função da influência positivista-comteana. Ao

lado desta poderíamos nos referir, baseados em José Murilo de Carvalho, às correntes

anarquista, socialista e comunista, que se formaram ao longo da Primeira República

(1889-1930), que, no entanto, não contaram com a mesma expressão do Positivismo.

Abstraindo das conseqüências autoritárias de seu ideário, que tinham por razão aquele já

mencionado horror à realidade brasileira tal qual ela era, o certo é que as correntes

Positivistas podem ser consideradas pioneiras, no Brasil, de uma moderna práxis voltada

à questão social, questão que tradicionalmente coube a Igreja. O Positivismo, no Brasil,

defendia medidas em grande parte bem intencionadas, buscando beneficiar a população

em termos de conforto e higiene, principalmente em suas habitações, donde não só as

conhecidas campanhas sanitaristas do início do século XX, como também a imputação

de obrigações aos proprietários de imóveis, corporificadas nas posturas municipais.440 O

conceito positivista de Estado, portanto, será fatalmente o de um Estado

intervencionista. Nesse sentido, ele vê tanto a cidade como a pátria como prolongamento

da família, devendo ser o seu princípio o amor, tal qual a família se apoiaria no amor

maternal. Assim, serão sempre enfatizados, enquanto valor superior, os deveres de cada

440
Conforme CARVALHO, J. M. op. cit. p. 35-36.
137

indivíduo para com a sua coletividade.441

Obviamente, a posição dos positivistas os levaria a um confronto com os

liberais, cujo pensamento era diametralmente oposto, conquanto as contradições deste o

levassem a cair no mesmo leito autoritário e antidemocrático de seus opositores. Nesse

sentido, é de se recordar que dado o enrijecimento da ortodoxia liberal que se observa na

fundação da República. No tocante aos chamados direitos sociais, nesta configura-se um

retrocesso em relação ao Império, posto que na Constituição de 1892 retiram-se

dispositivos desta natureza instituídos na Carta de 1824 - tais como a garantia de

instrução primária gratuita, que somente comparece na declaração de direitos da

Constituição Imperial.442

Temos, assim, duas incompletas concepções de cidadania. A concepção

liberal admitia direitos civis e políticos, mas não sociais. E a concepção positivista que,

embora não incluísse os direitos políticos, contemplava direitos civis e sociais.443 No

sentido de uma concepção social ou socializada de propriedade, ambas as facções

representaram um entrave. A primeira, que parece ter sido derrotada no âmbito de

direito constitucional positivo - e apenas nesse âmbito -, por não admitir que o Estado

crie outras compressões ao direito fundamental de propriedade além daquelas

estritamente necessárias a convivência harmônica entre as várias propriedades. A

segunda, para qual é não só concebível como necessário o estabelecimento de deveres

sociais do proprietário, a princípio contribui no sentido da institucionalização de uma

funcionalização social da propriedade, podendo se atribuir à sua influência a inclusão de

dispositivos desta natureza nos textos constitucionais, bem como o desenvolvimento de

um controle urbanístico pelas municipalidades.

441
CARVALHO, J. M. op. cit. p. 63.
442
Em seu art. 179, item 32. Não figura idêntico dispositivo dentre os parágrafos do art. 72 da
Constituição de 1892. BRASIL, Constituição. op. cit. p. 34 e 78.
443
CARVALHO, J. M. op. cit. p. 54-55.
138

No entanto, enraiza-se na perspectiva positivista o que nos parece constituir

o maior problema da concepção de função social da propriedade tal qual ela foi

incorporada a experiência jurídica nacional. Uma vez que não concebe direitos políticos,

essa perspectiva veta a ação política e a pressão social como meios legítimos de

obtenção de direitos. Isto porque a imagem da sociedade é a família, e nesta não se

admite luta e conflito por direitos, pelo menos no foro interno. Aliás, na família nem

sequer admitem-se direitos, mas apenas deveres.444 Nessa condição os direitos ficam na

dependência de uma concessão paternalística e alimentária do Estado, a quem caberá,

movido por sabedoria e eqüidade, instituir e garantir a função social da propriedade.

Assim, não cabe ao cidadão, quando justamente interessado no uso da propriedade

segundo o interesse da coletividade, outra conduta além de dirigir-se ao Estado, a fim de

obter deste a providência de exigir do dominus as suas obrigações sociais. Sendo o

Estado o detentor exclusivo do poder de império, somente ele teria legitimidade para

fazer tal exigência. Em tal esquema não existe cidadania, mas sim apenas estadania445,

isto é, a participação social se dá não através da organização de interesses, mas tão

somente através da substituição do sujeito social pela máquina do Estado. Em suma,

nesse esquema somente existe direito público e não direito privado. Só há, assim, espaço

para se cogitar de função social da propriedade no domínio do direito administrativo e

não do direito civil. Isto conduz, primeiramente, a uma permanência do direito civil de

propriedade em suas bases originariamente liberais e individualistas. Em segundo lugar,

significa um reforço da separação público e privado - alheia-se um do outro - separação

que, no campo do direito, há algum tempo vem se procurando superar. Por fim, e em

conseqüência dos aspectos anteriores, a aniquilação da supremacia constitucional e a

ratificação das codificações civis como constituições de direito privado.

444
CARVALHO, J. M. op. cit. p. 63.
445
Categoria sugerida por CARVALHO, J. M. op. cit. p. 155 e outras ao longo da obra.
139

3.7.2 Os ‘novos tempos’ da função social da propriedade

À margem e à sombra do Direito Civil - e do Direito das Coisas,

departamento privilegiado daquele - desenvolve-se o enfoque dado à propriedade

fundiária próprio ao assim chamado Direito Agrário, especialidade da ordem jurídica que

se verá estimulada de forma contraditória a partir da ruptura histórica promovida entre

campo e cidade, e que, como vimos, relaciona-se com a dinâmica de superação-

preservação, ou de “modernização conservadora”446, verificada nos mais diversos

quadrantes do desenvolvimento nacional. A história dessa disciplina ou subsistema

jurídico - o Direito Agrário - no entanto, guarda, em período recente, íntimas conexões

com o advento do conceito moderno de função social da propriedade. Este conceito, de

certa forma, contribui na própria estruturação do subsistema legal em tela, visto que

pertence à base do direito agrário o estudo da terra como bem de produção, possuindo,

nessa condição, uma função social a ser por ela realizada. Não é outro o sentido do

disposto no Estatuto da Terra - lei nº 4504/64 - que em seu artigo 12 dispõe:

“À propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função social e


seu uso é condicionado ao bem-estar coletivo previsto na Constituição
Federal e caracterizado nesta lei”.447

Embora a cláusula constitucional da função social da propriedade abranja os

imóveis tanto urbanos quanto rurais, apenas no caso da legislação agrária concebe-se

tradicionalmente o direito de propriedade como derivado do trabalho produtivo, isto é,

do efetivo cultivo, que corresponde a sua função social. No caso das cidades, o

ordenamento jurídico demonstra uma margem muito maior de tolerância para com a

propriedade inutilizada e/ou improdutiva, fator que somente se atenua com a edição da

446
Termo utilizado por SANTOS, Ângela (op. cit., p. 8) em relação ao regime militar de 1964-1985,
mas, segundo nos parece, também por outros autores e em relação a diversos períodos históricos.
447
BRASIL, Ministério Extraordinário para Assuntos ... cit. p. 16.
140

constituição de 1988. Nestas, não se desenvolve um direito da cidade igualmente

fulcrado na função social, restando a propriedade urbana regida basicamente pela

codificação civil, que não a concebe segundo suas utilidades para a coletividade, mas sim

exclusivamente como conjunto de poderes de ação conferido ao seu detentor. Exemplo

recente dessa diversa sujeição da terra urbana e da rural em relação ao princípio da

função social encontramos no art. 589, III do Código Civil448. Ele estabelece o abandono

como hipótese de perda da propriedade imobiliária, e dispõe, em seu § 2º, que os estados

arrecadarão os imóveis abandonados após um lapso de tempo que para os imóveis

localizados em zona rural é de três anos, e para os imóveis localizados em zona urbana é

de dez anos. Tal discrepância não destoa dos fatores até analisados no tocante a

formação das cidades e, em especial, das cidades brasileiras, onde o desenvolvimento

econômico engendra uma divisão do trabalho entre cidade e campo que impõe a este

suster a cidade com seus produtos, o que faz com que nele se concentre a pressão em

prol do efetivo aproveitamento da terra.

No direito agrário, portanto, inaugura-se uma tradição que se distingue da já

citada concepção patrimonialista, a qual estuda a propriedade em si mesma, isto é,

enquanto bem patrimonial. O produtivismo, como ressalta Perlingieri449, constitui uma

vertente surgida ao longo do século XX, que coloca no centro da ordem jurídica a

preocupação com a empresa, com a necessidade de organização e incremento da

atividade produtiva. Aqui, concebe-se o intervencionismo ou dirigismo estatal sobre a

esfera dominial privada, no entanto, voltada ao interesse, agora público e reconhecido

pela ordem jurídica, de aumentar a produtividade. Corresponde essa opção ideológico-

jurídica do legislador, pois, a um contexto histórico de aprofundamento do

448
Com a redação dada pela lei nº 6969, de 10.12.81. BRASIL. Código civil e legislação em vigor. cit.
p. 131.
449
op. cit. p. 27-28.
141

desenvolvimento capitalista, onde havia necessidade de fortalecer capitais primariamente

acumulados.

Verifica-se, portanto, uma reação ao patrimonialismo, e logo ao absolutismo,

que marca o conceito clássico de propriedade. Esta reação, que tem se materializado e

abrigado no conceito de função social da propriedade, não se esgota na vertente

produtivista, mas conhece uma outra, a qual podemos, inspirados mais uma vez em

Perlingieri450, classificar como humanista. Trata-se de uma perspectiva que se elabora a

partir dos grandes movimentos populares que, fortalecendo-se no século XX, trouxeram

à baila reivindicações por melhores condições de vida e de trabalho, fazendo emergir a

chamada questão social, como hoje a designamos, fator historicamente determinante da

revisão das formas mais grosseiras da ordem capitalista. O Estado, nesse contexto, é

pressionado a sair tanto de seu papel de mero árbitro dos conflitos sociais, como de

mero adjunto e garantidor da atividade produtiva, passando a conceber-se uma

intervenção e/ou direção estatal no sentido de mediar os conflitos, o que se faz à luz da

finalidade de humanizar as relações inter-classistas, isto é, de forma a impedir a

exploração desenfreada dos pobres e das classes trabalhadoras. Essa perspectiva surge

no ideário e no sistema socialista, no qual se promoveram intervenções do porte da

nacionalização do solo e da abolição completa do mercado de terras.451 Decorre,

também, de sua variante social-democrata, fruto da Segunda Grande Guerra, de seus

traumas e de suas mais variadas conseqüências sociais e psicológicas. Esta última seria

mais afinada com o conceito de função social da propriedade, vez que não preconiza a

abolição do mercado mas estipula um limite insuperável a atividade produtiva,

consistente no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. Trata-se, pois, de


450
op. cit. p. 4 e ss.
451
Conforme ANTUNES (op. cit., p. 97), promovidas em 1917, no México, e em 1918, na extinta União
Soviética, que aboliram qualquer forma de compra, venda, arrendamento, hipoteca ou alienação,
configurando-se na mais radical intervenção no regime de propriedade privada conhecida
historicamente.
142

uma variante que concebe a propriedade do solo dentro de um prisma e como um

instrumento de direitos humanos. O enfoque que nos interessa desenvolver no presente

trabalho é precisamente este que procura localizar a temática dos direitos humanos no

interior das situações jurídicas subjetivas que envolvem a propriedade. Isto porque

“[...] a proteção dos direitos humanos não mais pode ser perseguida a
contento se confinada ao âmbito do direito público, sendo possível mesmo
aduzir que as pressões do mercado, especialmente intensas na atividade
econômica privada, podem favorecer uma conspícua violação à dignidade
da pessoa humana; reclamando por isso mesmo um controle social com
fundamento nos valores constitucionais. Por outro lado, [...] no campo das
relações privadas, a usual técnica regulamentar mostra-se avessa à
proteção dos direitos humanos, pois que incapaz de abranger todas as
hipóteses em que a pessoa humana se encontra a exigir tutela”.452

À medida que se fomenta o predomínio da lógica do mercado nas relações

sociais de maneira geral, mais urgente e necessário se faz a tutela dos direitos humanos

nas relações jurídicas de direito privado. A importante tarefa histórica que se nos coloca

consiste em reorientar ditas relações privadas de acordo com os princípios fundamentais,

e de ordem pública, que procuram funcionalizar socialmente a atividade econômica e

elevar ao ápice a tutela da pessoa humana. Sem prejuízo das relações de direito público,

que, conquanto relevantes avanços legais, ainda se apresentam de fato deficientes em

termos de uma efetivação dos direitos humanos, não vemos hoje como excluir as

relações jurídicas privadas da realização de tais direitos.453

Sobre a perspectiva tanto produtivista como humanista pesa, outrossim, a

reserva crítica segundo a qual o condicionamento da propriedade a alguns critérios

considerados de relevância social possui, no fundo, um caráter conservador, posto que

constitui uma limitação que viabiliza a sua preservação, evitando que a mesma seja

452
TEPEDINO, Gustavo. Direitos humanos e relações jurídicas privadas. In: ___ . Temas de direito
civil. Rio de Janeiro, Renovar, 1999. p. 66.
453
TEPEDINO. Direitos humanos ... cit. p. 67 e 70.
143

abolida pelo crescente movimento operário. Trata-se do procedimento popularmente

definido na sentença ‘dar o anel para não perder os dedos’.

Os elementos para uma sistematização dessa crítica nos são ricamente

fornecidos por Boaventura de Souza Santos454, naquilo que denomina dialética negativa

do Estado capitalista. Tal Estado seria definido por uma “relação social em que se

condensam as contradições do modo de produção capitalista e as lutas sociais que elas

suscitam”, constituindo sua função geral antes dispersar tais contradições do que

resolvê-las (no sentido de superá-las). Cabe-lhe, pois, manter as contradições sociais

próprias do capitalismo em estado de relativa latência, isto é, “em níveis tensionais

funcionalmente compatíveis com os limites estruturais impostos pelos processos de

acumulação e pelas relações sociais de produção em que ele tem lugar”.455 A dispersão

das contradições assim realizada constitui um processo complexo, presente em todas as

ações do Estado, e que é acionado preferencialmente através do direito. Compõe-se de

um conjunto articulado e diversificado de mecanismos de três tipos, a saber: mecanismos

de repressão/exclusão, de trivialização/neutralização e de socialização/integração.

No caso da função social da propriedade, evidentemente, não temos um

mecanismo repressivo-excludente de dispersão das contradições geradas pela utilização

da propriedade privada na sociedade capitalista, visto que tal ordem de mecanismos

caracteriza-se, como o próprio nome já sugere, por uma tentativa de afastar e/ou conter

pela força as aludidas contradições, opondo uma resistência às mesmas. Na medida em

que é uma forma jurídica que, de alguma forma, absorve a contradição sócio-econômica

no interior da ordem jurídica, bem como que possui uma eficácia de propaganda

ideológica das virtudes democráticas e sociais do ordenamento jurídico, temos que ela

aproxima-se dos mecanismos integrativos-socializadores. O que não exclui que seja

454
op. cit. p. 15 e ss.
455
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 15-16.
144

vista, também, como mecanismo de trivialização/neutralização, na medida em que não se

efetiva, restando como princípio puramente retórico, e logo mistificador, na ordem

jurídica, o que contribui para que a ciência e a prática jurídica, bem como a consciência

social, o encarem de forma banal. Conforme já registrado pela literatura especializada,

“o direito de propriedade nos países latino-americanos é caracterizado por uma

retórica agressiva do uso da propriedade no interesse da sociedade e por uma prática

social de grande insucesso em atingir tal objetivo”. 456 A questão fundiária, pois, é uma

daquelas em que mais nítida se encontra a discrepância entre norma abstrata e práticas

sociais, vale dizer, entre a law in books e a law in action, conforme conceituado na

jurisprudência anglo-americana. Essa discrepância, pelo vazio jurídico que cria, constitui

um mecanismo de trivialização, bem como de um efeito político-jurídico daí decorrente.

Descrito por Boaventura Santos, trata-se este efeito da:

“[...] ambigüidade jurídica do estatuto da terra e a conseqüente


impossibilidade de se fixar inequivocamente, e com recurso exclusivo a
meios jurídicos, a titularidade da propriedade ou da posse em caso de
litígio. Esta ambigüidade [...] é funcional para o exercício da dominação
política na medida em que cria um novo espaço de manobra para o
accionamento de mecanismos de dispersão. Assim, o Estado pode decidir
a titularidade politicamente, ainda que com recurso a uma mediação
jurídica, contra ou a favor de qualquer dos grupos em litígio, consoante o
que for mais funcional, no momento, para a redução da ‘tensão social’
surgida”.457

Sem negar a validade, em larga escala, dessa crítica, cremos que não se

justifica, com base nela, um abandono do esforço científico e político em refletir-se a

respeito da função social da propriedade, buscando seu sentido e suas formas de

concreção. Faz-se necessário focalizar-se a questão por um outro ângulo, que se

justaporá ao primeiro, já que, conforme as palavras de Da Matta, tudo tem um ‘outro

456
SANTOS. op. cit. p. 68.
457
op. cit. p. 68.
145

lado’458, especialmente para nós brasileiros. Assim, diríamos que se, de fato, essa

absorção da contradição no campo do direito envolve uma dispersão, ela, para ser

realizada, envolve, também e necessariamente, uma concessão. Isto é, diferentemente da

via repressiva-excludente, a via integrativa-socializadora exige, para que se disperse a

contradição, que se conceda algo àquilo que os fatos nos trazem, o que significa

transportar a contradição para o interior do sistema. Assim, se a cominação de uma

função social evitaria a ruptura histórica do sistema de propriedade privada, de outro

lado ela acentua o caráter de valor de uso da propriedade, significando um limite a

conversão da mesma em pura e simples mercadoria. Torna-se legítima e legal, nesse

caso, a pressão social em torno da socialização do acesso à terra, permitindo que as

contradições desse sistema mais sejam expostas ao se reivindicar ou efetivar a referida

função. Conforme lembra o próprio Boaventura Santos:

“[...] a limitação ou relegação das formas e instituições jurídicas clássicas


pela acção do próprio Estado capitalista pode fazer com que sejam, em
momento posterior, utilizadas pelas classes populares com vista a uma
repolitização autónoma dos conflitos sociais. Por outro lado, a repolitização
controlada pode vir a sair do controle do Estado se as classes populares,
pelas suas lutas, souberem encontrar nos interstícios da participação
manipulada e nos instrumentos jurídicos que ela pressupõe os germens de
novas estratégias de organização e de polarização social”.459

Entendemos, pois, que a função social da propriedade deve ser tomada como

uma oportunidade de inserir, na base da elaboração teórico-doutrinária a respeito do

direito de propriedade, as contradições do real e as demandas sociais que daí partem,

sem o que jamais se conseguirá superar o abismo que conhecemos entre aplicação da

lei, de um lado, e justiça social, de outro, abismo que é visível nos conflitos fundiários

ocorridos no Brasil. O que se constata nos estudos de caso recentes, no caso dos

458
op. cit. p. 162.
459
op. cit. p. 19.
146

conflitos urbanos460, é que a solução juridicamente possível é sempre socialmente

injusta, sendo essa oposição estampada nas próprias sentenças judiciárias. Uma das

conseqüências disto, constatada nos casos acima assinalados, é que os respectivos juízes

começam a buscar soluções extralegais para os conflitos, onde articulam noções contidas

no Código Civil com outras desenvolvidas conforme as circunstâncias. Já no âmbito

rural, colocam-se pesadas críticas aos instrumentos jurídicos disponíveis, mesmo aqueles

em tese inspirados na função social, visto que os mesmos usualmente passam ao largo

das situações de conflito, isto é, não fornecem diretrizes jurídicas específicas para a

solução dessas situações, que ocorrem a uma freqüência significativa. Dados produzidos

pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão vinculado à CNBB, mostram que em

1981 eram 915 os conflitos de terra no Brasil, envolvendo mais de um milhão e meio de

pessoas, compreendidas numa área de 37 milhões de hectares.461 No entanto, a Lei do

Usucapião Rural, por exemplo, exige como condição para que seja declarada a aquisição

originária a ausência de oposição a posse durante todo o lapso legal, isto é, que não haja

litígio sobre a área.462 Critica-se, assim, o silêncio ético-jurídico da lei sobre o nervo

exposto do conflito de propriedade, tergiversando sobre o mesmo, o que deixa toda a

tarefa árdua de sua composição ao Executivo e ao Judiciário. Estes, por sua vez, não

raramente atribuirão um ao outro a responsabilidade pela solução do litígio.

A função social da propriedade representa a expressão jurídica das

contradições presentes e atuantes na ordem social. Traz elementos que demandam uma

própria redefinição não apenas de normas e instituições, mas da própria cultura jurídica e

do sistema lógico que a inspira. Nesse sentido, pode ser tomada como potencial

460
Aqueles por nós conhecidos são aqueles de FALCÃO, Joaquim de Arruda. Justiça social e justiça
legal: conflitos de propriedade no Recife. In: --- (org.). Conflito de direito de propriedade; invasões
urbanas. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 79-101; e de CARVALHO, Eduardo Guimarães. O negócio
da terra; a questão fundiária e a justiça. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1991. 119 p.
461
ANTUNES. op. cit. p. 100-103.
462
Trata-se do art. 1º da Lei nº 6969 de 10/12/1981.
147

elemento renovador do campo jurídico, o que, evidentemente, significa alteração na sua

forma de dispersar contradições. Será isto o que procuraremos demonstrar nos capítulos

seguintes.
148

CAPÍTULO 4

ASPECTOS DOUTRINÁRIOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

4.1 A constituição do conceito

Conforme assinala Eros Roberto Grau463, podemos considerar a propriedade-

função social como o terceiro e moderno momento básico a que chegou a evolução da

teorização a respeito do fundamento - ou justificação - da propriedade. Primeiramente,

como vimos, forma-se a concepção que a justificava por sua origem familiar e religiosa,

a qual é típica da antigüidade. Em segundo lugar, surge aquela que vê na propriedade

uma necessidade natural do ser humano, a qual possui uma versão teológica, própria do

medievo - a ‘necessidade’ é revelada por Deus aos homens -, e uma versão racional, que

triunfa junto com a Revolução Francesa, a qual, de uma certa forma, representa uma

secularização da versão teológica. Conforme as palavras consagradas pela Assembléia

Nacional Francesa, em agosto de 1789,

“o objetivo de qualquer associação política é a conservação dos direitos


naturais e imprescritíveis do homem; esses direitos são a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão. [...] As propriedades
são um direito inviolável e sagrado [...]”.464

Distanciando-se de ambas essas percepções, mas com alguma relação com o

pensamento social grego clássico, com a idéia de função social chegamos à justificação

da propriedade por meio dos serviços e fins coletivos a que esta possa ser útil. Isto

implica a superação da idéias do direito como algo inato ao homem, em prol da

concepção de que consiste numa prerrogativa social. Nesse exato sentido, as palavras do

renomado publicista francês Josserand, em sua obra De l’esprit des droits et de leur

463
GRAU, Eros Roberto. Função social da propriedade. In: ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito. cit. v.
39, p. 17 e ss.
464
DECLARAÇÃO dos direitos do homem e do cidadão. Rio de Janeiro, Embaixada da França, [s. d.].
Não paginado. A citação corresponde à íntegra do artigo 2 e a trecho do artigo 17.
149

relativité, de 1939:

“[...] cada vez que (o indivíduo) exerce um direito, embora seja na


aparência o mais individual, o mais egoísta, é, ainda, uma prerrogativa
social que ele realiza, e é, portanto, em uma direção social que deve utilizá-
lo, conforme o espírito da instituição, civiliter”.465

Na segunda metade do século XIX, e no início do século XX, ganham

terreno, como um fato histórico, científico e moral, as teses que preconizavam a

solidariedade social. Na medida em que tais teses concebiam determinado rol de direitos

e deveres, impõe-se a sua tradução em termos jurídicos, o que se deu quer ao nível da

teoria, quer ao nível da normatividade. Aplicada esta ao direito de propriedade,

conforma-se a noção de função social da propriedade, a qual iria comparecer nos mais

diversos ordenamentos jurídicos do início do século XX, como no caso das constituições

mexicana, de 1917, e alemã, de 1919. Nesse sentido, é interessante notar como a noção

de função social floresceu em contextos imediatamente posteriores ao de guerras, civis

ou militares, sendo largamente baseada na noção de ‘sacrifício social’ em nome de um

bem coletivo.

Para a formação dessa noção confluirão as mais distintas contribuições,

como aquelas do anarquismo de Pierre Joseph Proudhon466, do catolicismo social, cujo

grande nome é o Papa Leão XIII - autor da não menos célebre encíclica Rerum

Novarum, vinda à lume em 15/05/1891 -, e, por fim, do positivismo sociológico de

Auguste Comte e daquele que colheu das três influências acima indicadas que foi Léon

Duguit.

A partir da obra de Proudhon, o secular princípio do suum cuique tribuere

começa a ser confrontado pelo dar a cada um aquilo que basta para seu trabalho e

consumo individual. A propriedade, que tanto para Proudhon como para Duguit se
465
Apud PEREIRA DA SILVA, Carlos Maximiliano. Condomínio. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1947. p. 12. O grifo é do autor.
466
O qual na perspectiva marxista seria classificável como representante do ‘socialismo utópico’.
150

traduz em termos de posse e é inseparável desta, é definida por estes como precária,

instável, relativa e móvel. Concebem como universal o direito à ocupação e à posse da

terra necessária ao trabalho. Logo, se variável o número de possuidores, necessariamente

variará a extensão da propriedade. A propriedade somente se torna direito na medida em

que é uma função.

Já a doutrina católica historicamente bateu-se contra o liberalismo

econômico, procurando realizar, por meio de imperativos morais, a melhor distribuição

dos bens da vida. Conforme Pontes de Miranda467, os doutores da Igreja têm acentuado

que os direitos do homem à sua subsistência passam à frente dos seus direitos à

propriedade. No entanto, pregara Leão XIII em 1892 que:

“entre os graves e numerosos deveres dos governos que querem prover


como convém ao bem público, o que domina todos os outros consiste em
cuidar igualmente de todas as classes de cidadãos, observando
rigorosamente as leis da justiça dita distributiva”.468

Segundo Pontes de Miranda469, os princípios de justiça distributiva referidos

nesse corpo de idéias, traduzem-se nas constituições brasileiras como princípios de

justiça social, já que é na distribuição que reside o índice de justiça material.

Conforme as referências acima, fica clara a contribuição do pensamento

social católico à formação do modelo jurídico da função social da propriedade, visto que

se o mesmo repudia o individualismo liberal que edificou a propriedade burguesa,

também, por outro lado, deixa claro o seu distanciamento em relação ao socialismo

coletivista. Aliás, essa parece ser uma característica comum das três mencionadas

vertentes de onde parte o conceito de função social da propriedade, nas quais a

propriedade privada é inscrita num quadro de evolução para a sua socialização, mas não

467
PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1946. 4. ed. Rio de Janeiro, Borsoi, 1963.
tomo V, p. 442.
468
PONTES DE MIRANDA. Comentários... cit. p. 442.
469
op. cit. p. 442 e ss.
151

no sentido de sua coletivização ou desaparecimento, e sim no sentido de sua

consideração como uma utilidade social.470

Já Auguste Comte - em seu Système de politique positive - que procura

desenvolver uma concepção de propriedade segundo um critério sábio, vê nela,

sobretudo, “uma indispensável função social”, destinada a formar e a administrar

capitais mediante os quais prepara cada geração os trabalhos da seguinte. 471 No

positivismo comteano, o conceito de função social decorre, em primeiro lugar, dos nexos

que ligam o indivíduo à sociedade, os quais a todo momento são enfatizados. Todas as

relações sociais engajam o indivíduo na sociedade, tanto no plano físico como no moral.

Assim, a idéia de um direito individualizado era por demais abstrata, pois não se podia

referir uma situação subjetiva jurídica a um ente descontextualizado que de fato não

existia. De outro lado, a relação entre indivíduo e sociedade é enxergada sob o signo, ou

noção, de dever, ou ainda de dívida social daquele para com esta, noção que fundará a

própria concepção comteana de direito.472 O que caracteriza cada indivíduo é o fato de

possuir uma tarefa a executar na sociedade. Assim, no estado positivo não caberá mais

falar em direito, que irrevogavelmente desaparecerá, pois ninguém mais possuirá direitos

propriamente ditos, mas apenas exercerá funções sociais.473 Por isso, para Comte, assim

como para Duguit, a noção de direito subjetivo parecerá extremamente criticável, assim

como aquela de autonomia da vontade. Fundavam, e legitimavam, sua concepção de

direito não na idéia voluntarista de autonomia da vontade, ou na idéia patrimonialista de

direito subjetivo de propriedade, mas sim no sistema de necessidades sociais. Todo

direito é entendido como função social, pois, conforme afirmava Comte, “ninguém

470
FARIAS, José Fernando Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar,
1998. p. 235.
471
PEREIRA DA SILVA, Carlos Maximiliano. Comentários à Constituição brasileira. 3. ed. Porto
Alegre: Globo, 1929. p. 764.
472
FARIAS. op. cit. p. 232-233.
473
Colocação muito assemelhada àquela de Marx a respeito do direito na sociedade sem classes.
152

possui outro direito do que aquele de sempre fazer o seu dever”.474

Toda a concepção de direito - e de Estado - no pensamento de Léon Duguit

fundamenta-se na idéia de fim, conforme o próprio expressamente o afirmou. O direito

objetivamente existente na sociedade representa uma “lei de fim” no sentido da

realização da “solidariedade social”.475 Um ato, assim, só tem valor, tanto social quanto

jurídico, se for determinado por um fim conforme a solidariedade social, e não por se

sustentar na vontade do sujeito. Com a idéia de fim esse autor não deseja legitimar o

direito por sua origem, mas sim por seu conteúdo e por sua destinação, sua finalidade de

assegurar o funcionamento do sistema social.476

No direito brasileiro, embora sejamos de opinião que a função social da

propriedade somente assume, plenamente, as suas características mais apropriadas a

partir das Constituições Federais de 1967 e, sobretudo, de 1988 - e isto pelas razões que

exporemos abaixo - há de se reconhecê-la como princípio ancilarmente presente no

direito brasileiro, de forma que foi possível a Carlos Maximiliano, já sob a vigência da

própria Carta de 1891, de feição estritamente liberal, conceber a propriedade não mais

como o direito subjetivo do proprietário, mas sim como a função social do detentor da

riqueza. Invocando o magistério de Léon Duguit, entendia superado o conceito

individualista de propriedade oriundo das codificações civis oitocentistas, entendendo

que o mesmo deveria ser redefinido como “a submissão da coisa ao domínio da vontade

para fazê-la servir aos objetivos humanos”.477 Muito embora o referido autor não utilize

expressamente o termo ‘função social da propriedade’, ele não refere-se a outra coisa ao

discorrer sobre a supremacia do interesse coletivo sobre o individual, nos seguintes

termos:

474
FARIAS. op. cit. p. 232.
475
FARIAS. op. cit. p. 224-225.
476
FARIAS. op. cit. p. 229.
477
PEREIRA DA SILVA. op. cit. p. 764.
153

“Não há domínio privado absoluto, visto que os direitos reais são mantidos
por motivos de ordem social. Desde que á comunidade se torne necessário
o que ao indivíduo pertence, ou o interesse geral exija certas restricções a
uma prerogativa individual, cede o homem compulsoriamente em proveito
da collectividade. (...) Não há direitos sem deveres correlativos”. 478

Trata-se, segundo entendemos, de uma perspectiva a respeito de nosso tema

que é bastante marcada pelo contexto da Primeira República, e pelo ideário positivista

que, como vimos, aí teve grande influência. Do discurso do autor selecionamos as

seguintes características, inteiramente convergentes com o positivismo que se exprimiu

no Brasil entre o final do século XIX e o início do XX:

a) crítica ao liberalismo individualista e à ideologia da acumulação; crítica esta

vazada em tom de denúncia do seu atraso histórico e provavelmente inspirada

na teoria comteana - e evolucionista - dos três estados. Pretendia-se, assim, tirar

o conceito de propriedade do reino das abstrações metafísicas próprias do

liberalismo e alçá-lo ao estágio científico e positivo da propriedade-função;

b) discurso higienista e moralista, profundamente preocupado com questões como

saúde e salubridade públicas, decência, bons costumes, etc.479

c) valorização do aspecto coletivo da vida em sociedade, procurando demonstrar

que o particular que, com seu patrimônio, serve à comunidade, à rigor serve a si

próprio;

d) discurso jurídico marcado pelo equilíbrio ou correlação entre direitos e deveres.

Trata-se, a função social da propriedade, de um standard jurídico que guarda

grande relação com a emergência, no início do século XX, de orientação política

fortemente movida pela intenção de harmonizar os interesses liberal-individualistas com

aqueles relativos ao bem-estar coletivo. Na base dos vários sistemas sócio-políticos que

478
op. cit. p. 768.
479
Nesse sentido, o seguinte fragmento: “(...) o direito de propriedade é limitado pelo direito alheio de
viver e conservar a própria saúde”. PEREIRA DA SILVA. op. cit. p. 772.
154

buscaram concretizar esse intento - onde podemos destacar o que conhecemos como

Welfare State - encontramos o mesmo princípio de solidariedade social, preconizado por

Duguit como assento de toda a teoria jurídica. Se, por um lado, a afirmação de que a

liberdade individual e a autonomia privada não são valores absolutos e intangíveis deixa

clara a diferença para com o sistema capitalista, de outro, a afirmação de um princípio

não estatizante demarca o distanciamento do sistema soviético, o chamado ‘socialismo

real’. Surgindo enquanto tipo jurídico nas sociedades capitalistas, a função social

apresenta-se, para nós, com a indiscutível feição de instrumento de reforma do

capitalismo bem como de controle social da atividade do mercado.

No contexto do Brasil contemporâneo, talvez nada se revele socialmente tão

relevante quanto o desenvolvimento de um tipo legal com esse perfil. Conforme já

demonstrado, há uma necessidade urgente, e historicamente constituída, de ampliar o

acesso das classes trabalhadoras à terra, o que implica em re-elaborarem-se os padrões

jurídicos que de alguma forma podem viabilizar ou impedir esse acesso, onde

centralmente situa-se o direito de propriedade. O status jurídico de proprietário, no

contexto das cidades contemporâneas, é situado entre as raízes da desigualdade na

distribuição e percepção de renda real gerada a partir de investimentos públicos nas

cidades. Dito de outra forma, a prolongar-se o regime atual de aquisição e exercício de

faculdades jurídicas sobre a propriedade fundiária, será inevitável que os proprietários do

solo urbano monopolizem os benefícios sócio-econômicos resultantes da ação do poder

público, naquilo que essa é capaz de agregar valor a propriedade privada.

4.2 A natureza jurídica da função social da propriedade

Assim como a propriedade privada, a função social que ela deve atender

goza do status de direito e, ao mesmo tempo, garantia fundamental, tanto individual


155

quanto coletiva, e de natureza expressa, pois constam do que literalmente dispõem os

incisos XXII e XXIII, do artigo 5º, da Constituição em vigor.

Quanto à propriedade a garantia constitucional abrange qualquer partícula de

patrimonialidade existente, consagrando o conceito de propriedade desenvolvido pela

doutrina. Conforme esclarece Pontes de Miranda, “não se garante o Código Civil, nem,

sequer, qualquer de seus artigos”, bem como não se protege o direito de propriedade

“contra emendas às leis vigentes, para lhes extinguir direitos reais, diminuir prazos de

aquisição usucapional da propriedade e prescrição de pretensões ou preclusão de

direitos”.480 Diversamente, o que se garante é a “atribuição de direito patrimonial aos

indivíduos”, impedindo-se o legislador “de acabar, como tal e em geral, com o instituto

jurídico, com o direito de propriedade”.481 O que é objeto da garantia constitucional,

portanto, é a instituição da propriedade, sendo seu conteúdo e limites definidos nas leis,

conforme expressamente dispôs a Constituição de 1937482, mas que sempre foi

subentendido doutrinariamente.483 Em virtude da mudança na legislação, são suscetíveis

de mudança o conteúdo e os limites do direito de propriedade, bem como as condições

de seu exercício. Não há, assim, fundamento constitucional para entender tal ou qual

poder ou faculdade dominial como inerente ao direito de propriedade, o que depende de

como a legislação infra-constitucional o irá regular.

A legislação regulamentadora, no entanto, deve ser elaborada à luz da

própria Constituição, de onde também parte a garantia fundamental consistente na

função social da propriedade. Enquanto norma constitucional esta exerce a sua

supremacia sobre as normas a ela hierarquicamente inferiores, constituindo para elas o

necessário fundamento de validade. A garantia da propriedade cede, pois, perante outro

480
PONTES DE MIRANDA. Comentários... cit. p. 21.
481
PONTES DE MIRANDA. idem. ibidem.
482
Art. 122, nº 14. BRASIL, Constituição. Constituições do Brasil. cit. p. 214.
483
PONTES DE MIRANDA. Comentários ... cit. p. 22-23.
156

dispositivo jurídico de igual dignidade, isto é, outra garantia constitucional. Assim, toda

a regulamentação infraconstitucional do direito de propriedade fica condicionada pela

garantia da função social, a qual deve se concretizar nas relações jurídicas que aludem ou

envolvem o direito de propriedade, bem como no conteúdo das faculdades e poderes que

o compõem.

O que até aqui dissemos, no entanto, isto não quer dizer que, em sua

eficácia, a função social da propriedade seja dependente da adaptação da legislação

infraconstitucional, pois tem, assim como todas as demais garantias fundamentais,

aplicação imediata, vinculando diretamente as relações por ela reguladas - isto conforme

o § 1º, do art. 5º, da Constituição Federal. Tratam-se, pois, de dois efeitos distintos e

independentes da mesma garantia constitucional, de um lado ser imediatamente aplicável,

devendo orientar o intérprete na aplicação da lei, e de outro condicionar a atividade

legiferante futura. Este primeiro aspecto possui uma especial importância, não só por

sinalizar para a eficácia imediata - embora possivelmente não integral - da função social

da propriedade, a qual, dessa forma, vincula desde o primeiro instante a atividade

jurisdicional. Aquilatamos sua importância, sobretudo, pelo fato de dizer respeito a

fatores que orientam axiologicamente a compreensão do sistema jurídico nacional,

estabelecendo critérios hierárquicos de valor.484 Reconhecemos nesta eficácia

interpretativa uma das mais profundas atuações que uma norma jurídica pode

contemplar, possuindo tais normas um potencial de reforma tanto do pensamento quanto

das instituições jurídicas. Interferem não apenas nas formas jurídicas, mas na

racionalidade imbuída nas formas.

Em sua expressão mais simples, a função social da propriedade garante a

vocação social do bem objeto do direito de propriedade, alargando a sua vinculação


484
SILVA, José Afonso da. Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais. Revista da OAB-PI,
Teresina, ano II, v. 2, 1995. p. 28.
157

jurídica, a qual não se circunscreve mais apenas ao arbítrio do proprietário individual,

mas toca simultaneamente a outros sujeitos. Mediante esta garantia a ordem

constitucional reconhece um outro tipo de interesse jurídico sobre a propriedade - que é

‘outro’ em referência ao interesse do seu titular. Assim, o não-proprietário converte-se

em sujeito de direito, ou, na pior das hipóteses, sujeito de um interesse

constitucionalmente protegido, o qual também goza das garantias jurídicas disponíveis

para a generalidade das situações de direito. Enquanto garantia individual e coletiva

integrante da Constituição, a função social se dirige a todo aquele que não sendo

proprietário sofre os efeitos e conseqüências da utilização da propriedade de forma a não

trazer benefícios a coletividade, embora possa estar beneficiando o seu titular. Com tal

garantia coloca-se o fundamento do que chamaríamos de direito dos despossuídos, por

oposição a garantia da propriedade em si, que demarcaria o direito dos possuidores,

entendido o termo em lato sentido. Com ela, demonstra não limitar-se a ordem jurídica a

dar a cada um o que é seu, mantendo cada um em seu exato status sócio-econômico.

Como tem por objetivos fundamentais - valores supremos resguardados na ordem

jurídica em vigor - a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o

desenvolvimento da nação, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades

sociais e a promoção do bem de todos sem quaisquer preconceitos485, a Constituição

procura dar a cada um aquilo que necessita para constituir-se como pessoa humana

digna. É este o perfil do Estado social e democrático de direito, o qual, aliás, achamos

mais próprio definir como Sociedade democrática e de direito, tendo em vista ressaltar

que ao dispor estas e outras garantias a Constituição não impõe apenas um determinado

modelo de sociedade política, mas também de sociedade civil. Neste modelo, como

teremos a oportunidade de observar, os princípios jurídicos tradicionais de origem

485
Art. 3º da Constituição de 1988. BRASIL. Constituição da República Federativa ... cit. p. 3.
158

romanista, como aquele que acabamos de citar, devem ser necessariamente

redimensionados, não sendo suficientes para conter a largueza dos princípios e dos

conceitos de que a ordem jurídica contemporânea lança mão.

Quanto ao grau de seus efeitos jurídicos, é fora de questão que a função

social da propriedade, embora, como toda e qualquer norma constitucional, não seja

destituída de eficácia, não possui aquele grau de efeitos mais pleno que se possa

conceber. Nas palavras de José Afonso da Silva486, não possui aplicabilidade integral,

sendo dotada de todos os meios e elementos necessários à sua executoriedade, não

requerendo normatividade alguma ulterior para sua aplicação. Em princípio, a

enquadraríamos no gênero das normas constitucionais de eficácia limitada, mais

especificamente na espécie das normas declaratórias de princípios programáticos, no

sentido de que “em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses,

limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos”487 pelos órgãos e pessoas

por elas atingidos, como programa de suas atividades. Não é, pois, uma norma que

contenha diretamente um preceito, exigindo que a atividade interpretativa deduza-lhe os

preceitos e as regras objetivas de conduta, dando ensejo a definição de direitos

subjetivos. Exercem uma função de irradiar e imantar os sistemas de normas, sendo

“‘núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens constitucionais”.488

No entanto, afirma Pontes de Miranda489, já à luz da Carta de 1946, que o

princípio constitucional que condiciona o uso da propriedade ao bem-estar social

representa mais do que uma norma programática, pois entende que:

a) quem quer que sofra prejuízo causado por alguém que exerça o usus

ferindo ou ameaçando o bem-estar social, pode invocar a aludida regra, inclusive para
486
Eficácia e aplicabilidade... cit. p. 19.
487
SILVA, José Afonso da. Eficácia e aplicabilidade ... cit. p. 20.
488
SILVA, José Afonso da. Eficácia e aplicabilidade ... cit. p. 24. Onde faz referência à doutrina de J.J.
Gomes Canotilho.
489
Comentários ... cit. p. 496-499.
159

fundamentar ações de natureza cominatória;

b) qualquer uso da propriedade que não seja compossível com o bem-estar

social deve ser desaprovado juridicamente;

c) o legislador pode e deve explicitar suficientemente as espécies de ofensa

ao bem-estar social, servindo de pauta constitucional a atividade legislativa.

Assim, a simples previsão constitucional da função social impõe certos

limites a autonomia dos agentes sociais, sendo razoavelmente identificáveis, desde logo,

comportamentos a ela contrários, os quais merecem a repulsa jurídica, com todos os

instrumentos e conseqüências daí decorrentes.

De outro lado, não há como se deixar de falar do art. 182 da Constituição

em vigor, o qual operou notável avanço no sentido de conferir conteúdo preceptual à

função social da propriedade. Tal dispositivo é de indiscutível importância, embora (1)

dependa, como ele próprio dispõe, de ulterior regulamentação e (2) estipule de maneira

satisfatória apenas as sanções à propriedade usada de forma anti-social, deixando em

termos genéricos o preceito em si - o que se percebe na cláusula “adequado

aproveitamento”.490 Em princípio, este dispositivo representaria uma tentativa de fazer a

função social elevar-se ao status de uma norma constitucional de eficácia apenas contida,

definindo claramente os direitos subjetivos dela decorrentes, e deixando apenas uma

“margem à atuação restritiva da competência do poder discricionário do Poder

Público”.491 Contudo, não enxergamos esse artigo constitucional propriamente como

uma falha, mas sim de um outro ângulo, reconhecido desde a obra de Pontes de

Miranda492, quando este referia-se a largueza do conceito de função social ou de bem-

estar social.

A característica de constituição programática é o dado marcante da


490
BRASIL. Constituição da República Federativa ... cit. p. 105.
491
SILVA, José Afonso da. Eficácia e aplicabilidade ... cit. p. 19-20.
492
Comentários ... cit. p. 499.
160

Constituição de 1988, acentuada pela doutrina, e nisso acompanha o caráter assumido

por inúmeras das constituições contemporâneas. Assim, o enunciado de suas normas

assumiu, muitas vezes, grande imprecisão, o que, conforme cabe esclarecer, não quer

dizer que sejam vazios, mas sim que estamos diante de uma categoria de conceitos

jurídicos formal e metodologicamente contrapostos à casuística. Tais conceitos têm sido

admitidos pela ciência e pela técnica jurídicas na medida em se buscam respostas à altura

dos novos problemas e exigências, fruto da sociedade contemporânea. São identificados

como cláusulas gerais, ou como conceitos indeterminados - os quais, embora

assemelhados, não são tratados pela doutrina como sinônimos.

Assim como os também importantes conceitos jurídicos de boa-fé, de abuso,

de razoável, de moralidade, de bons costumes, e etc., o conceito de uso socialmente

adequado da propriedade - ou uso socialmente justo, ou conforme o interesse e/ou

benefício da coletividade - dispõe uma idéia não só genérica como também, por

definição, alheia a uma elaboração acabada e casuística, só produzindo seus melhores

frutos quando animada por fatos reais. A partir desse contato é que se habilita a formar

regras jurídicas objetivas, operáveis e de acordo com suas características peculiares. A

função social de um bem, portanto, não é algo abstrato, aferível hipoteticamente ou em

tese, nem está sujeita a padrões genéricos, mas somente é perceptível de maneira exata

diante do caso concreto, em razão das peculiaridades de cada situação.

Trata-se de um conceito jurídico formado não precipuamente segundo um

método racional ou dogmático, mas sim de maneira “sensível a interpenetração de fatos

e valores externos”493, admitindo princípios tradicionalmente considerados pela ciência

do direito como extra-legais, ou metajurídicos - tais como os dados éticos, sociológicos,

históricos, econômicos, etc. Significam uma janela, aberta pela ordem jurídica, à

493
MARTINS-COSTA, Judith. As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico.
Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 81, v. 680, jun. 1992. p. 48.
161

elaboração de uma síntese entre norma jurídica e realidade histórica, a ser elaborada pelo

intérprete e/ou aplicador da lei.

Em tais características, dentre outras que arrolaremos, se justifica a distinção

que fazemos entre a função social da propriedade e outras espécies de limitações à

propriedade. Trata-se de uma distinção de matriz teórica e epistemológica. Isto porque

contribui para afastar a idéia de um sistema e de um conhecimento jurídico rígido,

fechado e autopoiético - autoreferenciado, ou autocentrado -, isto é, que é “aplicado,

interpretado e desenvolvido a partir de si mesmo”.494 Assim, não só permite como até,

paradoxalmente, exige um exercício de liberdade no ato de sua aplicação. Vale dizer,

uma vez que não há como se definir, exaustiva e casuisticamente, as hipóteses de

utilização social e anti-social da propriedade, exige-se do intérprete/aplicador, em cada

caso, uma atitude valorativa, isto é, de avaliação crítica a respeito dos comportamentos

submetidos à sua apreciação. À grosso modo, diríamos que trata-se de uma norma cuja

aplicação dá mais trabalho. Isto porque supõe um modelo interpretativo fortemente

amparado no raciocínio problemático, isto é, que veja o direito como ordem relativa e

voltada à “permanente discussão de problemas concretos”, tal como nos falou Theodor

Viehweg em sua obra Topica y Jurisprudencia.495 Não se trata, como muitos

eternamente confundem, de delegar-se ao intérprete a arbitrária criação da norma

jurídica. Esta já existe, demandando-se, sim, do intérprete o preenchimento do conteúdo

das normas existentes, isto fazendo em harmonia com os princípios dispostos nas

mesmas normas, com os instrumentos que o ordenamento e a doutrina lhe dão.

Assim, a função social da propriedade implica em mudanças no conteúdo do

instituto jurídico da propriedade e, mais do que isso, implica numa renovação dos

métodos e técnicas hermenêuticas. É uma cláusula legal a ser continuamente lida, e re-

494
MARTINS-COSTA. op. cit. p. 49.
495
MARTINS-COSTA. op. cit. p. 48 e 52.
162

lida, no sentido de sua teleologia, que é a construção de uma ordem jurídica justa no

campo particular dos direitos reais. Trata-se, segundo cremos, da melhor combinação

que hodiernamente se pode obter entre as racionalidades material e formal que, segundo

percebeu Weber496, permeiam a ciência do direito. Como toda opção que fazemos na

vida, esta também tem um preço e um prêmio. Assim, não obstante ela represente um

certo menoscabo das diretrizes de segurança e certeza na aplicação do direito,

dominantes no âmbito de sua concepção formal, este é compensado por uma maior

sintonia da ciência e da técnica jurídicas em relação às demandas sociais objetivas,

dotando-lhe de instrumentos epistêmicos mais compreensivos e, nessa medida, mais

habilitados a respondê-las.

4.3 Efeitos da função social sobre o direito de propriedade

Enfrentemos agora a importante questão a respeito da espécie de

propriedade que estaria sujeita ao princípio da função social. Eros Grau497 preleciona que

à propriedade dotada de função estritamente pessoal ou familiar não é imputável

qualquer função de caráter social, posto que instrumento garantidor da subsistência de

seu titular e de seus familiares, bem como produto do trabalho ou de prestações sociais

devidas pelo Estado. Trata-se de uma propriedade que teria, digamos a grosso modo e

genericamente, um caráter alimentar. Essa propriedade, lembra o renomado autor, é

garantida por toda sorte de nações, inclusive aquelas do socialismo real. A única

limitação que conhecerão, portanto, é de caráter externo e circunstancial, pelo poder de

polícia estatal, em caso de abuso em seu exercício.

Assim, entende Eros Grau que a função social da propriedade incide sobre:

a) a propriedade enquanto bem de produção, isto é, em sua fase dinâmica,


Apud FREUND. op. cit. p. 181-186.
496

GRAU, Eros Roberto. Ordem econômica na Constituição Federal de 1988. São Paulo: RT, 1991. p.
497

244 e ss.
163

inserida no processo capitalista, de propriedade-empresa;

b) a propriedade que “excede o quanto caracterizável enquanto função

individual”, situando-se aí especialmente aquela “detida para fins de especulação ou

acumulada sem destinação ao uso a que se volta”.498

Nesse sentido a opinião de Carlos Maximiliano, invocando as palavras do

deputado Ferreira de Souza, integrante da assembléia constituinte que elaborou a

Constituição de 1946:

“Que o homem possua como seu, de forma absoluta, aqueles bens


necessários à sua vida, à sua profissão, à sua manutenção e à da sua
família, mesmo os que constituírem economias para o futuro é
perfeitamente lógico. [...] Mas, além desse mínimo, ou a propriedade tem
uma função social, o seu proprietário a explora, a mantem dando-lhe
utilidade, concorrendo para o bem comum, para o enriquecimento geral, ou
ela não se justifica”.499

Fica claro, dessa forma, que a própria noção de função social supõe que a

propriedade não constitui um instituto jurídico unitário, mas um conjunto de institutos

relacionados aos mais diversos tipos de bens.

Face ao acima exposto, fica nítido que o preceito jurídico que confere à

propriedade uma vocação social, transformando-a numa propriedade-função, ou num

direito-dever, dirige-se tanto aos três poderes do Estado em todos os níveis (no que

orientará as normas de direito público a respeito da propriedade privada), quanto

diretamente a todos os cidadãos brasileiros que vierem a se encontrar na situação jurídica

de proprietário (no que regulará relações interpessoais de caráter privado). Ao contrário

das limitações à propriedade por nós aqui definidas como clássicas, a função social não

suporá a rígida divisão público-privado, vez que se trata de um dispositivo que não se

contém nos limites de um desses dois ramos fundamentais do ordenamento jurídico, mas

498
GRAU. Ordem econômica ... p. 248-249.
499
PEREIRA DA SILVA. Comentários à Constituição brasileira. 1954. p. 102-103.
164

apresenta características que o fazem transitar de um ao outro. Não possui, assim, uma

característica unidimensional, já que deverá adaptar-se a diferentes situações de relações

jurídicas, seguindo, no entanto, uma mesma ratio.

Com relação a definição civilista clássica de propriedade, a noção de função

social a ela aplicada representa uma inovação, visto que se reconhece que a mesma não

deve ser protegida apenas em face do interesse individual que sobre ela estabelece o

titular. Fica a propriedade individual posta a serviço do desenvolvimento social, somente

sendo concebida enquanto direito patrimonial na medida em que contribui com o bem-

estar da comunidade, pois com esta finalidade foi criada constitucionalmente.

Predominante, de maneira absoluta, na concepção civilista de propriedade do século

XVIII, a vontade do particular passa a dividir terreno com o dever e a finalidade, as

quais por sua vez eram admitidas apenas em relação ao Estado. A relação jurídica

dominial passa, assim, a se estruturar “ao influxo de uma finalidade cogente”.500

Nesta nova definição legal de propriedade as faculdades dominiais privadas

ficam condicionadas a uma finalidade. Trata-se da moderna noção de direito subjetivo

que na verdade é direito-dever ou poder-dever, que estende ao direito subjetivo de

propriedade aquela condição já presente desde o código civil alemão - o Bürgerliches

Gesetzbuch - BGB, de 1896 - em relação aos direitos de família. Além de um rol de

poderes que lhe são inerentes, a propriedade passa a encampar deveres, de exercê-la em

benefício de outrem e não somente o não exercê-la em prejuízo de outrem (o clássico

‘neminem laedere’, ou ‘alterum non laedere’, de matriz jusromanista). Impõe, pois, um

comportamento positivo, uma obrigação de fazer, naquela exata direção da Constituição

de Weimar (Alemanha, 1919), segundo a qual a propriedade obriga. O exercício do

direito subjetivo e o cumprimento da obrigação de fazer devem ser simultâneos, a um só

500
LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 1954. p. 63.
165

tempo, um e também o outro.

Ao incorporar decisivamente a função social como parte da própria definição

do direito da propriedade, o ordenamento jurídico traduz de alguma forma o princípio de

que a propriedade somente se legitima pelo seu uso efetivo. Para que qualquer cidadão

possa, portanto, fazer valer seu direito de propriedade é preciso que a sua propriedade

esteja cumprindo uma função de cunho social, pois a única propriedade que merece

tutela jurídica é aquela propriedade-qualificada pela circunstância de seu uso

socialmente adequado, excluída a propriedade simples, isto é, aquela em tese, abstrata,

hipotética ou a priori. Uma das conseqüências disto é que o exercício do jus

reivindicandi passa a submeter-se a um requisito, que é a prova, a ser realizada pelo

proprietário, do cumprimento da função social adstrita ao seu bem, prova esta que deve

ser judicialmente exigida pelo Juiz quando das competentes ações, sendo possível aos

eventuais Réus oporem, como item de defesa, as respectivas exceções por não

cumprimento da mesma.

A incidência da função social faz o titular da propriedade se transmudar

necessariamente em “gestor de negócios da coletividade” ou de “interesses coletivos”,

“procurador da comunidade para a gestão de bens destinados a servir a todos embora

não pertençam a todos”.501 Na propriedade-função, pois, opera-se a distinção da

utilidade ou aproveitamento em relação à titularidade, isto é, conquanto seja o titular da

propriedade, a destinação do bem objeto da mesma e o exercício de suas faculdades não

se prenderão a utilidade individual exclusiva do titular, mas sim a da coletividade a qual

pertença. Isto porque, como o sabemos desde o direito público, o curador de qualquer

interesse público gere interesses inapropriáveis por ele próprio e que não se encontram à

livre disposição de sua vontade.502 Trata-se de uma cisão semelhante aquela promovida

501
RABAHIE. op. cit. p. 227.
502
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. p. 32-33.
166

em relação ao capital industrial, no qual, desde o surgimento das sociedades anônimas,

concebeu-se a separação entre a propriedade da empresa e o seu controle econômico.503

A título de contextualização deste novo paradigma a respeito da

propriedade, podemos afirmar que o mesmo representa grande avanço do ponto de vista

cívico-cultural. Como vimos, a sociedade brasileira apresenta-se muito zelosa em sua

esfera de vida privada, conduta que se inverte na passagem à esfera de vida pública, na

qual lamentavelmente percebemos um difuso sentimento de descompromisso. A

passagem da ‘casa à rua’ demarca, pois, uma forte mudança de padrões sociais de

conduta, demonstrando como esses dois mundos estão segmentados na experiência

social, sendo necessária, nesse sentido, a sua reaproximação como condição de

cidadania.

Em suma, a função social da propriedade manifesta-se sobre o direito de

propriedade principalmente nos seguintes aspectos:

1) privação de determinadas faculdades, impedindo, por exemplo, que o

proprietário injustificadamente destrua o bem ou deixe de utilizá-lo;

2) obrigação de exercer certas faculdades inerentes ao domínio;

3) criação de um complexo de condições para o exercício de poderes

dominiais, como, por exemplo, o condicionamento do direito à alienação, como já ocorre

no caso dos loteamentos504;

4) imposição de gravames mesmo diante do uso regular e normal do bem,

como é o caso do solo criado, uma “agravação das condições para exercício regular

do direito de construir”, nas palavras do mestre Ricardo Pereira Lira.505

503
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 65.
504
Vide lei nº 6766, de 19/12/1979, que regula o parcelamento da terra para fins urbanos, instituindo
determinadas condições para que se possa comercializar as frações de terra.
505
Tal colocação tem como fonte as notas de aula registradas na disciplina de ‘Propriedade Urbana’,
ministrada pelo referido professor no âmbito do Curso de Mestrado em Direito da Cidade da UERJ, por
nós cursada no segundo semestre de 1996.
167

Em princípio, falarmos de faculdades a serem obrigatoriamente exercidas

configuraria o melhor exemplo de uma contraditio in terminis, já que se é obrigatória

não podemos estar falando de faculdade mas apenas de obrigações. No entanto, esta

contradição é própria e intrínseca às situações jurídicas na forma como podemos

organizá-las a partir do princípio da função social da propriedade. Assim, na situação

jurídica de proprietário equilibram-se o direito subjetivo de domínio e as obrigações

resultantes de sua funcionalização social. Contradizem-se nela a autonomia da vontade

individual e a supremacia da ordem pública. Trata-se do direito-dever de que falavam os

Positivistas, e que foi incorporado pelo Direito Administrativo. A tipicidade desta

situação jurídica, portanto, é uma tipicidade contraditória.

Esta contradição, no entanto, não é absolutamente nova no direito brasileiro.

Desde a década de 1950, San Tiago Dantas506 se referia à obrigação de contratar, na qual

a lei estabelece uma situação contratual, criando um vínculo dessa natureza em hipóteses

determinadas.507 Trata-se esta de uma nova etapa ou estágio no processo de dirigismo

contratual levado a cabo pelo Estado, que é pressionado pelas conseqüências desumanas

do liberalismo no Direito. Ao contrário das tradicionais limitações negativas, a presente

restrição à liberdade de contratar parece por em xeque as próprias concepções

contratuais, atingindo a liberdade de estabelecer ou não o vínculo jurídico, suprimindo a

irrestrita liberdade em se contratar ou não à luz de conveniências e interesses individuais.

Trata-se de um mecanismo fundamental no sentido de assegurar proteção ao contratante

mais fraco - o empregado, o devedor, o inquilino, o consumidor, a vítima - que, face a

sua hiposuficiência, em geral cede à imposição da vontade da parte contrária. Embasa-

506
DANTAS, San Tiago. Evolução contemporânea do direito contratual. In: ___ . Problemas de direito
positivo. Rio de Janeiro: Forense, 1953. p. 13-33.
507
O mais remoto exemplo dessa modalidade contratual consiste no contrato de seguro de
responsabilidade civil, estabelecido, para vários tipos de situações, no art. 20 do Decreto-Lei nº 73, de
21/11/1966, que organiza o Sistema Nacional de Seguros Privados e operações de seguro e resseguro.
Ficou esta modalidade popularmente conhecida como “seguro obrigatório”.
168

lhe, pois, um princípio de solidariedade social, e decorre ele da observação concreta de

como se dão as relações jurídicas, isto é, daquilo que Eugen Ehrlich designa por direito

vivo.508

O contrato coativo é um conceito jurídico que julgamos possuir o mesmo e

exato espírito da função social da propriedade, visto que embora surja do fenômeno da

publicização do direito privado, atua no campo deste, isto é, não retira o contrato do

domínio específico do direito civil. O vínculo jurídico não deixa de ser contratual, não

podendo ser confundido com uma mera obrigação ‘ex lege”, fruto da subordinação dos

indivíduos ao Estado, o que mais se aproximaria de uma relação jurídica tributária. Isto

porque não se suprime completamente a autonomia da vontade, mas se predetermina

apenas o último dos elos de uma cadeia de atos voluntários, estipulando-se a convenção

final e os efeitos desta sobre o particular. Não há uma oposição ou ruptura, mas uma

continuidade entre imposições públicas e autonomia privada. Na situação jurídica

subjetiva, assim, integram-se elementos hauridos nas duas fontes.

O tema do direito de construir, mencionado no item 4, supra, possui tal vulto

que merece aprofundamento específico, o que não será possível no âmbito desta

dissertação. Desde já, no entanto, é possível deduzir-se do que acima se afirmou que não

está em consonância com o princípio da função social o disposto no art. 572 do Código

Civil brasileiro, segundo o qual o direito de construir é ínsito ao direito de propriedade,

não conhecendo por isso qualquer limitação interna. Tal entendimento já figura em

algumas legislações européias, com destaque para a lei italiana nº 10, de 28/01/1977, a

qual estabelece, em seu artigo 1º, in fine, que a execução de obras ou atividades que

envolvam a transformação edilícia e urbanística do solo da comuna estão subordinadas à

concessão municipal.509 Entende, pois, que o direito de construir não se insere como

508
EHRLICH. op. cit. p. 373 e ss.
509
MOTA. op. cit. p. 321-322.
169

manifestação natural do direito de propriedade, mas sim que se lhe agrega por ato

administrativo, de acordo com o interesse e o benefício da coletividade, nos termos e

condições definidas pela legislação urbanística. Trata-se de um direito que vem de fora

para dentro.

Não vemos, pois, na separação entre direito de propriedade e direito de

construir uma violação ao conteúdo mínimo do direito de propriedade, a qual, retirando

deste direito qualquer utilidade prática, violaria a garantia fundamental da instituição da

propriedade. Isto porque, em primeiro lugar a titularidade do bem, aquilo que de fato

representa o mínimo essencial a existência do direito, não está em questão. Em segundo

lugar, há uma clara diferença entre condicionar o exercício de determinada faculdade ao

cumprimento de uma dada condição - no caso, os requisitos exigidos para a concessão

municipal - e excluir essa mesma faculdade. Por condicionar, e não extinguir, a faculdade

de construir é que entendemos que não há aí violação do conteúdo mínimo, parecendo-

nos exagerado ver em tal condicionamento algum traço de expropriação, a exigir a

respectiva indenização. Trata-se de um exagero da mesma ordem daquele que nos dias

de hoje vem se insinuando, por iniciativa de investidores transnacionais, os quais

começam a exigir o direito à percepção de indenização, a ser suportada pelo Estado

nacional, sempre que alguma lei de proteção social, trabalhista ou ambiental por este

editada acarretar-lhes perda de patrimônio, o que consideram uma expropriação

indireta.510 Por fim, ressaltamos que mesmo os atos lícitos e tidos como uso regular de

determinado direito ensejam, hodiernamente, restrições jurídicas. Não é outro o sentido

do conceito de responsabilidade civil por ato lícito, o qual supõe um dano injusto

causado por um comportamento em princípio legal. É como se admitíssemos, hoje, o

paroxismo de o legal se tornar ilegal. No direito contemporâneo, portanto, não se pode

510
VIEIRA, Lizt. A constituição do ‘mundo novo’. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 mar. 1998. 1.
caderno, p. 23.
170

usar daquela linearidade típica dos princípios jurídicos romanistas, os quais são alheios às

complexidades com as quais hoje nos defrontamos.

Ainda sobre o ponto em questão, cabe acrescentar que a compressão das

faculdades dominiais realizadas com base na função social da propriedade não configura

uma restrição ao direito de propriedade, pois esta é posterior à sua constituição jurídica,

enquanto aquela é constitutiva do mesmo. Ou seja, integra a sua definição, operando

num plano rigorosamente anterior e inconfundível àquele em que atuam as limitações de

natureza administrativa, urbanística e oriundas de direito de vizinhança. Assim, com base

na função social da propriedade define-se e configura-se um novo perfil de propriedade

privada, define-se e configura-se um novo feixe de poderes de ação, detidos tanto pelo

proprietário quanto pelos estranhos à propriedade. Se admitimos que a função social é

algo substantivo ao direito de propriedade, isto é, que integra o própria conceito jurídico

de propriedade, e não é algo que vem após este como algo adjetivo, a conseqüência a ser

forçosamente admitida é a de que vale para ela aquele mesmo princípio admitido a

qualquer poder constituinte originário. Ante este não cabe falarmos em limitações

jurídicas, em direito adquiridos, visto que este poder é o responsável por reconceber

todo o sistema normativo, por reinstaurar o direito, definindo quais são por ele admitidos

e quais são por ele proscritos. Fica, pois, prejudicada qualquer noção a priori sobre

faculdades tais ou quais que seriam inerentes a propriedade, pois é exatamente este o

ponto a ser definido e discernido no âmbito de uma conceituação da propriedade-função.

Nesse sentido, cabe-nos utilizar com muita parcimônia das expressões utilização normal

e utilização natural da propriedade, as quais funcionam usualmente como postulados de

natureza apriorística.

Caso necessário, portanto, se suprimirão algumas das faculdades dominiais

próprias da propriedade de tipo alodial, ou de tipo quiritária. Aliás, se o ponto de


171

referência para a análise forem tais espécies de propriedade, a referida supressão

fatalmente ocorrerá, conforme já mencionamos em relação a faculdade de não usar e de

destruir o próprio bem em prejuízo da coletividade. De outro lado, parece evidente que

tal supressão não pode extinguir toda e qualquer forma concebível de utilização da

propriedade, pois a titularidade sem qualquer meio de aproveitamento corresponde a

algo como um corpo sem membros. O campo da análise, pois, há de ser abrangente,

analisando que tipo de faculdades se conferem ao proprietário, e se elas permitem a

razoável utilização do bem, sem prejuízo de sua vocação social.

A definição sobre em que espécie(s) de faculdade(s) residiria(m) o conteúdo

mínimo do direito de propriedade não parece gozar do menor consenso em termos

doutrinários e jurisprudenciais, carecendo de melhor elucidação. Há, pois, desde aqueles

que consideram essencial o poder de uso, até os que o situam no poder de disposição,

passando pelos que o vêem no poder de gozo. 511 Indubitável, nesta matéria, parece-nos a

afirmação de que o conteúdo mínimo não constitui um limite fixo em si, mas possui um

âmbito variável, conforme a seguinte colocação de Rui Medeiros:

“Os poderes essenciais do proprietário são diferentes em relação à


propriedade dos bens de uso e dos bens de consumo, à propriedade do
solo abrangido por medidas de urbanização, à propriedade utilizada
economicamente para a produção de bens de alimentação e de matérias
primas, à propriedade empresarial e a outras categorias de propriedade”.512

Parece-nos claro, outrossim, que o critério para discernir a respeito da

violação ou não do conteúdo mínimo, demarcando uma região do direito de propriedade

indevassável mesmo pelo princípio da função social da propriedade, há ser encontrado

nos mais altos valores protegidos pela ordem jurídica. No caso brasileiro, isto significa

recorrer aos fundamentos e aos objetivos fundamentais da República Federativa do

511
MOTA. op. cit. p. 320-322. Vide ainda PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das cousas. Rio de
Janeiro: B. L. Garnier, 1877. v. 1, p. 75.
512
Apud MOTA. op. cit. p. 361.
172

Brasil, constantes dos artigos 1º e 3º de nossa Carta Magna. A síntese doutrinariamente

extraída das disposições de tais artigos aponta a dignidade da pessoa humana - do

homem e da mulher concretos como seres livres - como o mais alto valor

constitucionalmente consagrado, e o espírito do qual todo fragmento de direito deve

estar imbuído. Trata-se da “base de todos os demais direitos e garantias fundamentais e

princípio de sua unidade material”513, sendo insuscetível de restrição a situação jurídica

que realiza este valor.

Outro importante efeito da função social da propriedade no plano das

relações jurídicas diz respeito a temática do abuso de direito. Não sendo mais concebido

o direito de propriedade como absoluto, mas relativizado pelo dever social que faz parte

de sua ontologia, torna-se possível em tese aquilo que sempre foi fato empírico, isto é, o

abuso desse direito. De outro lado, significando a função social a adstrição do bem a

uma finalidade, cria-se também a possibilidade jurídica de desvio de tal finalidade.

Constituída a partir do Conselho de Estado francês e hoje consagrada quer na doutrina

quer na jurisprudência, a noção de desvio de finalidade - ou desvio de poder - define-se

como o comportamento no qual o agente vale-se de um determinado poder para alcançar

finalidade não abrigada pelo mesmo, gerando uma descoincidência objetiva entre aquele

e esta.514 Como a lei não prestigia intenção orientada para fim diverso daquele nela

contido, não se faculta ao titular da propriedade suprimir o fim para o qual o bem do

qual é detentor está destinado finalisticamente. Tal interdição vale mesmo para a

hipótese de pretender resultado materialmente lícito.515 Isto porque desviar-se da

finalidade legal equivale a desviar-se da própria lei, e desatender à primeira equivale a

desatender à segunda. Aplicar a lei, nesse caso, significa conformar-se a sua razão de ser,

ao objetivo em vista do qual foi editada. A finalidade é o ‘espírito da lei’, não cabendo
513
MOTA. op. cit. p. 360.
514
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. p. 564.
515
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. p. 232.
173

tomá-la como suporte para comportamentos contrários a sua finalidade, o que

significaria burlá-la a pretexto de cumpri-la.516

Assim, a primeira conseqüência da violação da função social da propriedade

é o nenhum valor jurídico dos atos dessa forma praticados, que se penalizam com sua

nulidade. A segunda conseqüência é a responsabilidade, pelo menos no plano civil,

daqueles que agiram em desvio de poder, num mau uso dos poderes dominiais. Torna-se,

então, possível ao prejudicado demandar do proprietário, ante atos abusivos e/ou

desviados de finalidade da parte deste, a declaração judicial da nulidade de tais atos, bem

como as devidas reparações pelos danos, de forma análoga àquela possível face ao

Estado. Se a função social cria um dever jurídico, a sua contraface é a responsabilidade,

conseqüência civil do descumprimento de uma obrigação.

Finalizando a presente exposição, concluímos que mesmo face ao grande

desenvolvimento que a Constituição Federal de 1988 deu a função social da propriedade,

boa parte da doutrina ainda salienta a falta de clareza e objetivação em seu enunciado 517,

entendendo que uma enunciação precisa exigiria:

a) imposição clara de deveres ao proprietário518;

b) afirmação expressa da não absolutividade do direito de propriedade;

c) garantia expressa do direito apenas àquele capaz de exercê-lo de acordo

com a satisfação do interesse social.

No sentido do item “a”, Gustavo Tepedino propõe que sejam legalmente

relacionados os interesses estranhos ao binômio sujeito/coisa - os quais tocariam àqueles

em situação de “não-proprietários” - a serem atendidos, a exemplo de habitação,

proteção ambiental, trabalho, etc. Tal definição, em relação aos imóveis urbanos, caberia

516
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. p. 62.
517
Como RABAHIE. op. cit. p. 222 e 238.
518
Vide TEPEDINO, Gustavo. A tutela da propriedade privada na ordem constitucional. Revista da
Faculdade de Direito, Rio de Janeiro: UERJ, v. 1, n. 1, p. 118. 1993.
174

à lei municipal do plano diretor, na linha do que dispõe o § 2º, do art. 182 da

Constituição Federal. Faz-se, pois, necessário que tais planos definam com objetividade

que objetivos são estes, como e quando devem ser alcançados. A título de exemplo, o

planejamento urbano do município de Porto Alegre trabalhava, em 1994, com a hipótese

de zerar o déficit habitacional da cidade num prazo de dez anos, indicando, nesse

sentido, um determinado número de unidades habitacionais a serem colocadas no

mercado.519 Tal medida significava uma indução a que os proprietários particulares,

detentores de imóveis utilizáveis para a função de moradia, realizassem efetivamente tal

função. Trata-se de um exemplo de um dispositivo que avança numa definição dos

encargos relativos ao bem-estar coletivo a serem suportados pela propriedade privada,

pois define que encargo é este, e em que prazo será realizado, restando apenas definir

como ela será repartida e exigida de cada indivíduo por ela atingido.

Quanto ao item “b”, percebemos que com o mesmo não se harmoniza o

disposto no artigo 527 do Código Civil brasileiro, segundo a qual “o domínio presume-

se exclusivo e ilimitado até prova em contrário”.520 À luz dos novos contornos do

direito de propriedade estabelecidos pela inserção do aspecto funcional em sua própria

concepção, não se justifica a presunção legal, mesmo que juris tantum, a respeito das

faculdades dominiais. Sendo certo que uma das conseqüências da adstrição do bem ao

interesse coletivo consiste na relativização de sua exclusividade, e considerando a

prevalência do interesse público sobre o particular, talvez fosse mais correto presumir o

domínio eminente que pesa sobre a propriedade, com a particularidade de que seria

detido não pelo Estado, mas sim pela coletividade. A ilimitação, ou melhor, a

inviolabilidade do direito de propriedade coloca-se na estrita dependência do

519
OSÓRIO, Letícia Marques et al. Instrumentos de reforma e de desenvolvimento urbano. Porto
Alegre: Cidade, 1994. p. 8-9.
520
BRASIL. Código civil e legislação em vigor. cit. p. 123.
175

cumprimento efetivo da sua função social, isto é, seria um a posteriori, jamais uma

presunção, que tem uma natureza apriorística.

Não se dirigindo a função social da propriedade apenas ao poder público,

mas tratando-se de princípio diretamente aplicável às relações intersubjetivas privadas,

obrigando diretamente àqueles particulares na condição de proprietários e criando, para

os não-proprietários, aquela situação jurídica subjetiva de vantagem521, revela-se em

grande contra-senso a sistematização constitucional a respeito da propriedade fundiária

urbana. Esta, se, de um lado, meritoriamente, impõe comportamentos positivos ao

proprietário de terrenos urbanos, discriminado objetivamente as sanções aplicáveis, de

outro, inexplicavelmente, restringe toda a iniciativa de gestão da matéria ao poder

público municipal. Coloca, em princípio, o cidadão, prejudicado por atividades de

retenção e especulação imobiliária, ante a única alternativa de dirigir-se ao Executivo e

Legislativo municipais para que, estes sim, imponham ao proprietário as obrigações que

a Constituição lhe comina. Assim, o direito, ou, na pior das hipóteses, interesse, detido

por tal cidadão, somente seria exercível por intermédio dos poderes políticos locais.

Trata-se, pois, de um retorno às concepções juspolíticas do século XVIII,

nas quais o Estado é o representante exclusivo da coletividade, concepção esta que

ignora que entre Estado e sociedade existem mediações, isto é, outras formas de

representação de interesses, fato de que os longevos movimentos associativos não nos

deixam quaisquer dúvidas. A própria Constituição Federal, em seus artigos 29, XII e

XIII, e 204, II, apenas para ficar nos exemplos mais evidentes, ao sancionar

juridicamente o princípio da participação popular, dando ao nosso sistema político o

perfil de democracia participativa, já demonstra claramente a superação, por evidente

521
Conforme a doutrina de José Afonso da Silva a respeito da eficácia das normas constitucionais
programáticas. In: SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São Paulo:
RT, 1982. § 17, n. 66.
176

esgotamento, de tal concepção que nos remete ao primeiro momento do Estado

moderno. Assim, se, à primeira vista, com a incorporação mais incisiva do princípio da

função social teríamos uma ampliação da subjetividade jurídica (vale dizer, faríamos

não apenas dos proprietários os sujeitos de direitos do ordenamento civil), de outro

lado, quando de sua regulamentação operacional, aquilo que se anunciava se realiza de

forma limitada e contraditória. Trata-se de aspecto a merecer urgente revisão, sob pena

de reproduzirmos aquela imagem predominante na sociedade brasileira segundo a qual

‘o que o caput dá, o parágrafo tira’, ou de que ‘na prática a teoria é outra’.

Encontrando-se o proprietário em situação de devedor perante a coletividade

- vale dizer, perante a sociedade, não perante o Estado, jamais podendo dissolver-se

aquela neste -, conseqüentemente há de ser juridicamente reconhecida a legitimidade não

só dessa mesma coletividade, através de suas inumeráveis formas de representação, para

exigir, administrativa ou judicialmente, o adimplemento de tal débito, como também do

próprio Ministério Público, face às suas atribuições institucionais.

4.4 Os conceitos estruturalista e funcionalista de propriedade

O Código Civil brasileiro, da mesma forma que o alemão (em seu § 903),

não conceitua propriedade ou mesmo direito de propriedade, apenas indicando o

conteúdo deste, mencionando o feixe de deveres que nele se contém, e deixando a tarefa

de sua conceituação ao trabalho doutrinário. Nesse âmbito, Laffayette Rodrigues

Pereira, em sua pioneira obra Direito das Cousas, de 1877, define o direito de

propriedade como o “direito real que vincula e legalmente submette ao poder absoluto

de nossa vontade a cousa corporea, na substancia, accidentes e accessorios”.522 Em

sentido bastante próximo, o alemão Jorge Frederico Puchta, nas suas Pandekten -

522
PEREIRA, Laffayette Rodrigues. Direito das cousas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877. p. 74.
177

editada no mesmo ano de 1877 - afirmara a propriedade como a “total sujeição jurídica

de uma coisa, o domínio completo sobre um objeto corpóreo”.523 Lacerda de Almeida, a

seu turno, escreveu que “domínio é o direito real que vincula à nossa personalidade

uma coisa corpórea sob todas as suas relações”.524 Clovis Bevilaqua, a quem atribuímos

a autoria da codificação civil brasileira, a define como o poder de dispor, arbitrariamente

e como entender, a respeito da substância e utilidades de uma coisa, com exclusão de

qualquer outra pessoa, podendo seu titular impedir que estranhos façam o menor uso525

da coisa a ele submetida pelo vínculo dominial.526 Além disso, acrescenta que é a

“reunião mais completa de poderes de uma pessoa sobre uma coisa”,527 forma como

pode-se expressar no vernáculo a expressão romana plena in re potestas.

Assim, à luz do Código Civil desenvolveu-se uma conceituação de

propriedade exclusivamente sob um ângulo hoje classificado como estrutural, que capta

a propriedade em seu momento estático. Nesse sentido, ela disporia de um aspecto

interno - os poderes senhoriais de uso, fruição e disposição -, e um aspecto externo - o

direito de exclusão universal, isto é, a possibilidade jurídica de afastar a qualquer um do

campo onde a senhoria se exerce, podendo reaver a coisa de quem injustamente a

detenha. Assim, o único efeito jurídico que a propriedade gera para aqueles que não se

encontram na condição de titular do domínio (os não-proprietários) é a constituição de

um dever de abstenção de qualquer ingerência na esfera de dominação do titular do

domínio, ou seja, temos uma obrigação de não fazer, também chamada dever geral

negativo.

O regime fundamental da propriedade, no entanto, tem assento na


523
Apud PEREIRA DA SILVA. op. cit. p. 764.
524
ALMEIDA, Francisco de Paula Lacerda de. Direito das cousas. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos,
1908. v. I, p. 72.
525
Expressão que consta do § 903 do Código Civil alemão, o BGB.
526
BEVILAQUA, Clovis. Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado. 4. ed. São Paulo:
Francisco Alves, 1933. v. III, p. 56.
527
BEVILAQUA. cit. p. 136.
178

Constituição Federal. Seu conteúdo é definido nas leis ordinárias - onde teremos um

complexo de normas civis, administrativas e urbanísticas dispondo a seu respeito - tendo

sempre por base os princípios e normas de matriz constitucional. Conforme Pontes de

Miranda,

“a propriedade tem passado, desde o terceiro decênio do século, por


transformação profunda, à qual ainda não se habituaram os juristas,
propensos à só consulta do código civil, em se tratando de propriedade”.528

A Constituição Federal comete aos particulares deveres irrenunciáveis e

indisponíveis - de ordem pública, portanto -, ainda que se relacionem ao exercício de um

direito individual, classicamente tido como disponível ou transacionável, situado de

maneira plena na esfera da autonomia privada.

Baseada nas disposições constitucionais a respeito do direito de propriedade,

desenvolve-se uma outra perspectiva, classificada como funcional, que capta a

propriedade em seu sentido dinâmico, referente ao papel que desempenha nas relações

sociais. O termo função, como vimos, serve para designar a maneira concreta de um

direito operar. Trata-se de uma perspectiva que se encontra em contraste - embora não

em oposição - à perspectiva estrutural a respeito da propriedade.

No âmbito do enfoque estrutural da propriedade não há como se falar,

estritamente, de sua função social, dado que neste o direito é abordado a partir de suas

características abstratas, isto é, fala-se do direito em tese, das noções formadas a priori

sobre o direito em questão. Já o aspecto funcional somente se apresenta quando o objeto

se insere no plano fático daquilo que compõe a vida em sociedade. Com base nesse

ponto abre-se uma divergência doutrinária. Joaquim Castro Aguiar529 entende que o que

possui função social é o bem, porque sendo ele o objeto do direito, somente ele

528
PONTES DE MIRANDA. Comentários... cit. p. 22.
529
AGUIAR, Joaquim Castro. Direito da Cidade. Rio de Janeiro, Renovar, 1996. p. 6.
179

encontra-se no plano dos fatos. É contraposto por Marina Macedo Rabahie530, para

quem a função social qualifica a atuação do proprietário e não a propriedade em si. Esta

representa um bem embutido no direito, logo, não tem função, não pesando a função

social sobre o objeto do direito, mas sim sobre o próprio direito, em vista do qual age o

proprietário. À luz dessa perspectiva, o correto, talvez, fosse falar-se em ‘função social

do direito de propriedade’.

A função social da propriedade vai, pois, situar-se como um componente do

próprio direito de propriedade. Insere-se na concepção e no conceito de propriedade,

impondo, logo, uma revisão dos enunciados clássicos que definem juridicamente o

direito de propriedade, que mencionamos acima de maneira sumária. Incide no conteúdo

do direito em causa, atinge sua substância, toca-o de maneira direta.

O art. 524 do Código Civil brasileiro, por somente se referir a faculdades

dominiais, espelhando apenas o aspecto estrutural da propriedade, tornou-se incompleto

face a Constituição Federal, logo colidente com a mesma, embora de maneira não

frontal. Nesse sentido, o Projeto de Código Civil531 atualmente em trâmite no Congresso

Nacional, está um pouco mais sintonizado com os contornos que a Lei Maior demarca

para a propriedade, repetindo em seu art. 1.229 o enunciado corrente do Código Civil,

mas procurando, nos seus §§ 1º a 4º, traduzir, ao nível da legislação ordinária civil, o

aspecto funcional da propriedade. Tais dispositivos representam um avanço em termos

de direito privado no Brasil, até hoje praticamente infenso aos contornos impostos ao

direito de propriedade pela ordem constitucional. No entanto, estes são limitados em seu

conteúdo, e passíveis da crítica de falta de clareza e objetivação do conteúdo da função


530
RABAHIE, Marina Mariani de Macedo. Função social da propriedade. In: DALLARI, Adilson Abreu
e FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coord). Temas de Direito Urbanístico - 2. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1992. p. 229-230.
531
Trata-se do Projeto de Lei da Câmara nº 118/84 (e de nº 634/75 na Casa de origem), apresentado pelo
Poder Executivo em 12/06/75, por meio da Mensagem 160/75. Foi aprovado na Câmara, com alterações,
e enviado à revisão do Senado em 12/06/84, onde hoje se encontra aguardando votação. Recebeu 366
emendas dos Senadores.
180

social, conforme procuraremos expor em seguida.

O § 1º, do indigitado art. 1229, dispõe, em sua primeira parte, que “o direito

de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas

e sociais”.532 Não faz muito além de repetir o princípio constitucional, sem o

regulamentar, isto é, sem definir que finalidades seriam estas. A segunda parte do mesmo

parágrafo menciona expressamente as finalidades a serem atendidas, mas estas se

concentram na preservação ambiental, histórica, artística e paisagística. Tem-se, pois,

neste parágrafo, uma redução nítida do conceito de bem-estar social, o qual, no contexto

das cidades, não poderia se olvidar em assegurar o direito de moradia, uma das

prioritárias necessidades coletivas urbanas, condicionando ao atendimento desta

necessidade a tutela jurídica do direito de propriedade.

O § 2º do mesmo artigo dispõe que “são defesos atos que não trazem ao

proprietário qualquer comodidade ou utilidade, e sejam animados pela intenção de

prejudicar outrem”.533 Refere-se o presente dispositivo ao conceito jus-romanista de

aemulatio. No sentido de uma tradução em regras do princípio da função social ele

também deixa a desejar, tendo em vista que adota uma concepção negativa de

obrigações dominais, não impondo nenhum tipo de comportamento positivo, conforme

seria mais adequado à concretização do referido princípio.

Já o § 3º limita-se a repetir o comando constitucional que prescreve poder

ser o proprietário privado de seu patrimônio nos casos de desapropriação - em suas

várias modalidades - e de requisição. A respeito dos nexos entre o instituto da

desapropriação e a realização da função social da propriedade desenvolveremos alguns

comentários mais específicos em seção própria. Optamos por proceder da mesma forma

532
BRASIL, Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. Código Civil; Projeto de Lei da
Câmara n. 118, de 1984. Brasília, 1984. v. 4, p. 7.
533
BRASIL, Senado Federal ... op. cit. p. 7.
181

em relação ao § 4º, cuja análise integramos à seção onde analisaremos os nexos entre a

função social e o instituto da posse.

De maneira geral, os parágrafos que acabamos de comentar parecem não

absorver o entendimento que retira do princípio da função social da propriedade toda a

sua potencialidade e riqueza. Segundo José Afonso da Silva, o conceito de propriedade,

transformado e redefinido pela incidência do princípio da função social, define uma

situação jurídica subjetiva complexa, na qual se contemplam o direito subjetivo privado,

ou civil, do proprietário, e o direito subjetivo público, detido pela coletividade, e cujo

conteúdo é, de maneira geral, o uso da propriedade de maneira a promover o bem-estar

social. Dessa forma, pode se considerar incompleta toda tentativa de concreção do

princípio e da garantia contida na função social se esta não atribuir à coletividade, e mais

especificamente aos possíveis beneficiários da socialização da propriedade, os direitos

que decorrem do princípio em tela. Como exemplo daquilo que ora afirmamos,

invocamos o § 3º, do art. 2º, do Estatuto da Terra - lei nº 4504, de 30/11/1964 -, o qual

dispõe que “a todo agricultor assiste o direito de permanecer na terra que cultive,

dentro dos termos e limitações desta lei, observadas sempre que for o caso as normas

dos contratos de trabalho”.534 Neste, estipula-se claramente o direito que toca àqueles

que se encontram na situação de não-proprietários, os beneficiários imediatos da função

social da propriedade, implicando isto na definição da obrigação social do proprietário.

Não se restringe tal disposição à impor limitações negativas à propriedade. Assim,

consiste numa regulamentação infraconstitucional da função social da propriedade mais

afinada com as suas características mais fundamentais.

4.5 Distinções entre a função social e outras limitações à propriedade

534
BRASIL, Ministério Extraordinário ... op. cit. p. 13.
182

Não obstante o disposto na primeira parte do art. 544 do Código Civil

francês535, a qual parece ter dado ensejo a certas concepções segundo as quais a

propriedade vai aos céus e aos infernos, afirma a doutrina que em verdade o direito de

propriedade jamais foi absoluto e ilimitado. A própria declaração universal de 1789, que

declara o caráter sagrado e inviolável da propriedade, é a primeira a conceber-lhe uma

espécie de limitação. É o que categoricamente estabelece o seu artigo 4:

“A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudicar a outrém.


Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem só conhece os
limites que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo desses
mesmos direitos; esses limites só podem ser fixados pela lei”.536

Se quisermos ir mais longe, no entanto, descobriremos os milenares limites

ao uso da propriedade, conhecidos já no direito romano. Neste, encontramos não só as

limitações oriundas dos direitos de vizinhança, como a admissão da possibilidade do mau

uso do próprio direito, de seu abuso, de seu uso irregular ou anormal, o que mereceria a

devida repulsa jurídica. Desde então se concebe que “o direito existe para ser exercido

regularmente”.537 Comparece aí a noção de aemulatio, consistente em exercer o próprio

direito sem utilidade para si, ou com utilidade mínima, mas com o fim precípuo de

incomodar ou prejudicar a um terceiro. 538 A doutrina moderna, igualmente, em diversos

momentos afirmará a não juridicidade do ato cujos efeitos sejam anti-sociais, reservando

tal caráter apenas aos comportamentos orientados por interesse apreciável e legítimo.539

No direito brasileiro do período colonial, como já vimos, tais limitações eram

sobejamente admitidas, embora fossem pouco eficazes. As Ordenações Filipinas, no

entanto, firmavam com nitidez a condenação ao mau uso daquilo que se possuía como
535
Que prescreve que “a propriedade é o direito de fazer e de dispor das coisas do modo mais
absoluto”. Conforme FRANÇA. Código Napoleão ou Código Civil dos franceses. Rio de Janeiro:
Record, 1962. Traduzido por Souza Diniz.
536
DECLARAÇÃO dos direitos ... cit. Não paginado.
537
Frase insistentemente repetida por nosso saudoso professor de direito civil no período de graduação,
Amílcar Paranhos da Silva Velloso, a quem aproveitamos o ensejo para homenagear.
538
PEREIRA DA SILVA. Condomínio. cit. p. 75.
539
PEREIRA DA SILVA. Condomínio. cit. p. 76-78.
183

próprio. Tais limitações foram mais racionalizadas e explicitadas pelo Código Civil, onde

passam a ser encaradas com o mesmo espírito, ou caráter, daquelas limitações

concebidas a partir da Revolução e da codificação civil francesas.

Com base nisso, Clovis Bevilaqua entendia haver no Código Civil brasileiro

uma conciliação das faculdades individuais do proprietário com as exigências do

interesse público. Tal entendimento devia-se sobretudo à cláusula que, após estabelecer

tais faculdades acrescentava: “contanto que delas não se faça um uso proibido pela lei

ou pelos regulamentos”.540 Esta cláusula aparece expressamente na parte final do art.

544 francês, e foi retirada da redação do art. 524 do código brasileiro durante a sua

tramitação na casa legislativa. Ao ver de Clovis Bevilaqua, redator da redação original,

tal modificação deixou incompleta a definição de propriedade em nossa legislação civil, a

ser suprida pela atividade interpretativa. Este autor entende como limitações à

propriedade os direitos de vizinhança, o usucapião e a desapropriação (mencionados no

corpo do próprio código), além dos impostos e das posturas municipais - baixadas por

motivos de higiene, salubridade e aformoseamento (as quais são externas à

codificação).541 Assim, tal sorte de limitações à propriedade privada, num primeiro

momento, são entendidas como suficientes a harmonizá-la com o interesse social. No

entanto, o mesmo renomado jurista brasileiro, mais adiante, reconhece que embora os

códigos civis modernos não estabeleçam o caráter absoluto da propriedade, ao

regulamentar com grande amplitude as faculdades atribuídas ao proprietário, neles “se

consagra um direito, realmente, absoluto”.542

De forma mais ou menos paralela ao aprimoramento do conceito de função

social da propriedade, os doutrinadores começaram a reconhecer as particularidades

desta em relação àquelas tradicionais limitações à propriedade, de forma a ver, em cada


540
BEVILAQUA. Codigo Civil... cit. p. 56.
541
BEVILAQUA. idem. ibidem.
542
BEVILAQUA. Codigo Civil... cit. p. 136.
184

uma delas, formas jurídicas de naturezas distintas e inconfundíveis. Nesse sentido, a

colocação límpida de Pontes de Miranda:

“[...] uma coisa é o limite ao uso, elaborado milenarmente, ou sob a


inspiração de regras entre vizinhos, e outra, o limite que não precisa do
elemento conceptual da vizinhança, ou sequer, da proximidade. Bem-estar
social é conceito mais vasto que o de vizinhança, ou de proximidade”.543

As relações de vizinhança impõem, assim, um primeiro nível de limitações ao

direito de propriedade, surgindo nesse domínio as primeiras críticas ao individualismo e

ao absolutismo da propriedade privada elaboradas pelo pensamento jurídico. Os

comentários de Clovis Bevilaqua aos artigos do Código Civil que tratam dos direitos de

vizinhança544 exibem uma conceituação do direito de propriedade que já não é

estritamente individualista, mas sim que é uma célula individual que convive com outras

de mesma espécie, inserindo-se numa teia social onde existem limites necessários à

liberdade das partes autônomas.545 De forma geral, procura-se, com tais limitações,

manter um equilíbrio social e jurídico dos interesses dos vizinhos, problema agravado

pelas características intensivas do aproveitamento do espaço urbano. No uso, gozo e

disposição de propriedades confinantes, busca-se impedir que um vizinho invada o

prédio do outro, bem como que o exercício das faculdades dominiais em uma torne inútil

ou impossível que o mesmo se realize em outra - ainda que indiretamente. Assegura-se,

assim, o máximo e eficiente aproveitamento do espaço urbano, se possível, de todo este

espaço. Evitam-se, de outro lado, grandes prejuízos a determinada propriedade,

mediante estritas restrições impostas a uma outra. 546 Aqui já se pode conceber, e de fato

se concebeu, a doutrina do abuso de direito e da relatividade do direito. Cria-se, assim,

uma solidariedade social entre os confinantes.

543
PONTES DE MIRANDA. Comentários... cit. p. 496.
544
Arts. 554-588. BRASIL. Código civil e legislação em vigor. cit. p. 127-131.
545
BEVILAQUA. Codigo Civil... cit. p. 96-130; e Direito das coisas. cit. p. 186-187.
546
BEVILAQUA. Codigo Civil... cit. p. 124, 126; e Direito das coisas. cit. p. 187.
185

Porém, no caso da função social da propriedade, se igualmente temos uma

limitação - no sentido lato da palavra - ao direito de propriedade, não estamos diante de

uma limitação de mesma natureza, isto é, da limitação de uma determinada propriedade

em face de uma outra propriedade vizinha à primeira. Estamos, isto sim, diante de uma

limitação da propriedade em face das necessidades básicas da coletividade - podemos

dizer, da cidade. Em outras palavras, estamos falando não da relação entre proprietários,

mas sim daquela entre estes e os despossuídos, isto é, os não-proprietários. Fundada na

noção muito mais ampla de bem-estar social, a função social da propriedade busca

ampliar a solidariedade entre vizinhos, fazendo-a abranger todos os habitantes da cidade.

Busca fazer não apenas com que todas as propriedades sejam igualmente aproveitáveis,

mas que sejam aproveitadas igualmente por todos, que toquem a todos, propiciando um

acesso universal à terra. A função social se volta àqueles a quem não se aplica, ainda, o

conceito de vizinhos, dado que, em virtude de processos sócio-econômicos

marginalizantes, não se encontram em posição de fruição da terra, compondo aquele

segmento social do qual se diz que mora na cidade mas não a habita.

As limitações administrativas ao direito de propriedade guardam grande

analogia com as regras de trânsito, também conhecidas contemporaneamente. Estas

regras estabelecem evidentes limitações a liberdade individual de uso dos espaços de

circulação, no entanto a ratio de tais limitações não é outra que permitir que cada

indivíduo chegue ao lugar que pretende, isto é, o espírito destas regras é potencializar as

liberdades individuais, retirando entraves sociais a que cada um possa atingir os próprios

fins, logrando por seus próprios meios a felicidade. Já a função social da propriedade não

se restringe a tal perspectiva instrumental, sendo um dispositivo jurídico de natureza

material, isto é, que interfere no processo de escolha dos próprios objetivos ou fins que

orientam os movimentos de cada indivíduo, determinando que estes sejam os fins que
186

melhor atendem ao bem-estar da coletividade. Seu espírito é o de assegurar não uma

mera oportunidade mas sim um determinado resultado, resultado este de relevância não

apenas subjetiva como no caso de lei de trânsito, mas sim de relevância no âmbito da

cidade.

Enfim, procuramos demonstrar que há, em última análise uma diferença de

grau entre função social da propriedade e àquelas limitações ao direito de propriedade

existentes e conceituadas desde o final do século XVIII. Nesse sentido, a doutrina

italiana chega a uma esquematização de tal diferença que identifica quatro distintos

graus, fora a desapropriação, de intervenção na propriedade, verbis :

“1) le limitazioni ammnistrative al diritto di proprietà; 2) le imposizioni coattive

di diritti reali parziali; 3) la conformazione provvedimentale del bene; 4) la

funzionalizzazione del diritto di proprietà”.547

Com base naquilo que até aqui se expôs, sintetizamos, no quadro abaixo as

diferenças fundamentais entre as limitações à propriedade oriundas das normas

administrativo-urbanísticas e de direito de vizinhança, por nós classificadas como

clássicas, e a função social da propriedade, que implica numa outra qualidade de

limitação à propriedade. Seriam os seguintes os eixos de tal distinção:

FUNÇÃO SOCIAL LIMITAÇÕES CLÁSSICAS

DA PROPRIEDADE À PROPRIEDADE
a) É interna, essencial e necessária à são externas à propriedade e

propriedade circunstanciais ao uso dado a ela

b) Opera ex ante operam ex post

c) Limita poder de disposição do titular não limitam este poder

SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 8. ed. rev. São Paulo: Malheiros,
547

1992. p. 254.
187

d) Insere o interesse dos ‘não- harmonizam os interesses dos

proprietários’ na esfera dominial proprietários, não inserindo outro

interesse na esfera dominial

e) Constitui obrigações positivas, isto é constituem obrigações negativas, isto

um ‘facere’ é um ‘non facere’

f) Exprime um direito da coletividade exprimem o poder de polícia do

em face do proprietário Estado

g) Chama o proprietário particular a um não possuem este caráter

encargo social

h) Direito individual de propriedade é este direito permanece absoluto

relativizado

4.6 Da Desapropriação e de sua relação com a função social da propriedade

A desapropriação aparece no direito moderno - em especial nas cartas

constitucionais - como a única via pela qual se admite uma exceção à inviolabilidade da

propriedade. Nesse sentido o artigo 17 da Declaração Universal de 1789:

“As propriedades são um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser


privado das mesmas, a não ser por necessidade pública, legalmente
constatada e evidentemente exigida sob a condição de uma justa e prévia
indenização”.548

Considerando-se que a desapropriação restringe de alguma forma o direito

de propriedade, e considerando-se as motivações que a fundamentam - sua imposição é

condicionada pela verificação de necessidade/utilidade pública ou, mais recentemente, do

interesse social - é que se finda por confundir este instituto com a realização da função

social da propriedade.

No entanto, a função social da propriedade, se bem entendida, transforma a

548
DECLARAÇÃO dos direitos ... cit. Não paginado.
188

propriedade privada, típica das sociedades capitalistas, sem estatizá-la. Transforma, ou

altera, não a titularidade da propriedade, mas sim as suas formas de utilização e/ou

aproveitamento, o qual é submetido ao bem-estar coletivo. Seu princípio reitor é,

portanto, publicista e não estatista, não se reduzindo o primeiro ao segundo, mas ao

contrário, trata-se aquele de algo muito maior, que extrapola os limites deste. A

recíproca sim, e apenas esta, pode-se afirmar como verdadeira. Segundo cremos, o

contexto contemporâneo, mais do que qualquer outro, permite e exige tal distinção entre

aquilo que é público e o que é estatal, podendo-se falar do primeiro sem estar-se

necessariamente incorrendo no segundo. Tal distinção não é ignorada pela doutrina,

conforme constatamos nas obras de Bandeira de Mello549 e de Hely Lopes Meirelles550,

segundo as quais o interesse da coletividade administrada não se confunde com o

interesse da Administração em si mesma considerada. No mesmo sentido, José Afonso

da Silva afirma, com base na Constituição, que “uma coisa é a propriedade pública,

outra a propriedade social e outra a privada”.551 São estas distinções fundamentais que

permitem que não se confunda o campo da função social da propriedade em relação ao

campo da desapropriação. Esta supõe, prioritariamente, a modificação da titularidade da

propriedade, extinguindo o direito do particular em prol do Estado, e somente em função

dessa condição transforma o bem em seu aproveitamento. Nesse sentido, Bandeira de

Mello define desapropriação como:

“o procedimento administrativo através do qual o poder público


compulsoriamente despoja alguém de uma propriedade e a adquire para si,
mediante indenização, fundado em um interesse público”.552

O caráter e as implicações de um e de outro são inconfundíveis. A

549
op. cit. p. 55.
550
MEIRELLES Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 23. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros,
1998. p. 491.
551
SILVA. op. cit. p. 248.
552
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. 10. ed. p. 533.
189

desapropriação é fruto do Estado Liberal, onde a relação entre este e a sociedade civil é

predominantemente de subordinação, traço que neste é mais forte certamente em função

de sua vizinhança histórica com o Estado absolutista, de onde nos vêm noções como a

de ‘poder de império’. Na desapropriação, o interesse público é primário e

preponderante. Já a função social da propriedade é fruto do Estado Social, o qual, em

vista do desenvolvimento das relações sócio-econômicas mantém com a sociedade uma

relação que, sem descartar a de subordinação, passa a ser também de coordenação, a

partir do que se organiza o modelo de dirigismo estatal das atividades privadas. Esta

direção não faz do Estado parte das relações econômicas no sentido formal da palavra,

não se torna titular de direitos, mas sim procura regulá-los no intuito de proteger os

próprios particulares. Por isto, se afirma que o interesse público, nesse caso, é

secundário.

De comum, portanto, entre uma e outra apenas o fato de limitarem a esfera

dominial privada em nome do interesse coletivo, o que não justifica que uma se resolva

na outra, diluindo-se as reais distinções. Em nome dos mesmos princípios, o

ordenamento jurídico também admite a intervenção estatal no domínio econômico, a fim

de reprimir as práticas abusivas na operação dos mercados, que ferem interesses e

normas de ordem pública. Desenvolvem-se aí diversas modalidades de intervenção -

tabelamento de preços, controle administrativo, requisição de produtos ou serviços,

anulação de contratos - os quais por hipótese alguma se confundem com a

desapropriação, que corresponderia a estatização de uma determinada empresa. Sem

necessidade de chamar para a sua titularidade as empresas existentes, o Estado procura

controlá-las, direcionando o mercado o cumprimento de finalidades de interesse público.

O mesmo podemos afirmar agora em relação a função social da propriedade. Sua

concreção, de forma adequada e coerente, supõe o desenvolvimento de instrumentos


190

jurídicos de controle social da propriedade privada ordenados no sentido de efetivar as

obrigações sociais cominadas ao proprietário particular, garantindo a sua execução

específica.

Conseqüentemente, não consideramos a desapropriação sequer como um

instrumento de realização da função social. Na melhor das hipóteses, a desapropriação

seria uma maneira pouco coerente de instrumentalizá-la. Isto porque é uma forma de por

fim à propriedade privada, extinguindo-a, revogando-a. Logo, é incompatível com um

entendimento mais desenvolvido de função social da propriedade, a qual supõe a

existência de uma propriedade privada, sobre a qual recairá. De outro lado,

reconhecemos uma ligação essencial e verdadeira entre a função social da propriedade e

o denominado “conceito alargado de expropriação”, o qual abrange expropriações não

translativas da propriedade ou “expropriações de valor”.553 Configura-se, nesse caso,

mais que um conceito lato para o mesmo termo, mas, sobretudo, um outro conceito, que

se distancia muito do conceito original de desapropriação, como reconhece o jurista

português Fernando Alves Correia.554 Originário do direito alemão, a expropriação de

valor é entendida não como um processo de aquisição do bem, mas como imposição de

sacrifício ao particular. Segundo o supracitado jurista, sua única função é

“reunir todas as características necessárias à distinção entre os atentados


ao patrimônio do particular que devem ser acompanhados de indenização e
aqueles que não reclamam qualquer ressarcimento”.555

Até 1988, no entanto, a distinção na qual insistimos jamais se fez presente

nas constituições brasileiras. Anteriormente a esta, prescrevia-se a garantia fundamental

da propriedade - a qual, até a Carta de 1891, acrescentava-se a paradigmática expressão

“em toda a sua plenitude” - ao que invariavelmente seguia-se a disposição “salvo a


553
MOTA, Maurício Jorge Pereira da. Responsabilidade civil do Estado legislador. Dissertação
(Mestrado em Direito). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1997. p. 332.
554
Apud MOTA. op. cit. p. 332.
555
MOTA. op. cit. p. 332-333.
191

desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia”.556

Apenas na atual ordem constitucional verifica-se um afastamento da orientação que a

tradição constitucional brasileira sempre manteve, com poucas alterações de redação -

como, por exemplo, a partir de 1946 a indenização expropriatória, além de prévia, deve

também ser justa e em dinheiro, salvo exceções pontuais que comparecem a partir de

1967. Até período recente, portanto, o texto constitucional considerava a desapropriação

uma exceção à propriedade, bem como não transparecia admitir uma distinção nítida

entre desapropriação e função social da propriedade. Aliás, somente a partir de 1946 o

texto constitucional trata da função social da propriedade em dispositivo distinto daquele

que estabelece a garantia da propriedade e as suas ‘exceções’. De outro lado, nas cartas

constitucionais de 1934 e 1946, o único desdobramento legal do princípio da função

social da propriedade, além da desapropriação, era a possibilidade de requisição estatal

do bem em casos de guerra ou comoção interna, assegurado sempre o direito a ulterior

indenização.

O fato de o conflito entre o interesse público e o particular resolver-se unica

ou basicamente pela desapropriação, aliada a ausência de repercussão da função social

no âmbito civil, deixa clara a predominância de outra concepção de função social, não

essencial ao direito de propriedade. Se assim não fosse, não haveria sentido em se falar

de compensação patrimonial, incabível quando se desempenha um dever jurídico imposto

pela lei. Quem adquire uma propriedade socialmente funcionalizada adquire, por

decorrência lógica, os deveres a ela inerentes, independente de indenização. De outro

lado, se o cumprimento da função social é requisito para a legitimação da propriedade, a

sua não observância faz desaparecer o bem que possa ser objeto de direito subjetivo.
São os seguintes os artigos constitucionais a esse respeito: art. 179, nº 22 da Constituição Imperial de
556

1824; art. 72, § 17 da Constituição Republicana de 1891; art. 113, nº 17 da Constituição de 1934; art.
122, nº 14 da Constituição de 1937; art. 141, § 16 da Constituição de 1946; art. 150, § 22 da
Constituição de 1967; art. 153, § 22 da Emenda Constitucional nº 1 de 1969; e art. 5º, inciso XXII da
Constituição Federal de 1988. Vide BRASIL, Constituição. op. cit. p. 34, 128, 170, 214, 287 e 393.
192

Logo, impossível desapropriar uma propriedade que não mais existe, o que, além de

tudo, enriqueceria ilicitamente o suposto proprietário. Por tais razões, e por

contemplarem apenas imposições de caráter negativo, as Constituições brasileiras

anteriores a 1967 se revelarão impróprias a uma configuração da função social de

maneira mais plena, ou pura. Esta tem como uma de suas condições a sua não

instrumentalização com base no instituto da desapropriação, o qual a desfigura em suas

características mais próprias.

Embora seja sistematicamente apresentada nos textos legais como ressalva à

propriedade, esta imagem de fato não corresponde à realidade do instituto da

desapropriação. Nesse sentido, cabe, em primeiro lugar, resgatar o contexto em que o

mesmo originariamente aparece, onde os revolucionários de 1789 buscavam criar uma

propriedade privada que se impusesse ao Estado, idéia inconcebível sob a égide do

absolutismo que até então vigorara. A desapropriação nasce num contexto de afirmação

da propriedade burguesa em face tanto da propriedade feudal como do poder arbitrário

do soberano, representando uma das maneiras de limitá-lo. Assim, na melhor das

hipóteses, a desapropriação seria uma exceção que confirma a regra, isto é, uma

ressalva que não faz mais do que afirmar a inviolabilidade da propriedade, sob a

aparência de sua negação.557 Ela não limita a propriedade em si, como se almeja mediante

a função social da propriedade, mas retira a tal propriedade o caráter de irrevogabilidade

e de perpetuidade. Tais características, aliás, não são próprias da propriedade burguesa,

mas sim da antiga e medieval.

Se nos voltarmos ao plano das práticas jurídicas concretas envolvendo a

desapropriação, as suas distinções com relação à função social da propriedade,

outrossim, ficarão nítidas. Conforme Boaventura de Souza Santos:

557
A esse respeito, vide BOBBIO. A era dos direitos. cit. p. 94-95 e 109 e ss.
193

“Já no princípio do séc. XIX, nos países em que a expropriação se


efectuava por processo judicial, os tribunais tendiam a fixar indenizações
demasiado elevadas, numa posição ostensivamente favorável aos
proprietários. Esta posição dos tribunais tem se mantido em geral até o
presente. Ainda há pouco tempo em França os juízes eram criticados pela
própria Administração por nos processos de expropriação se arvorarem em
guardiães da propriedade privada, contribuindo assim para a subida do
preço do solo urbano em vez de, como seria desejável, contribuírem para a
sua descida. [...]
A subida constante dos preços do solo urbano e a falta de meios
financeiros, em conjunção com fatores político-ideológicos ligados ao
respeito da propriedade, fazem com que seja muito moderado o recurso à
expropriação (sempre mais freqüente quando os objectivos visam
diretamente às necessidades de reprodução do capital, por exemplo, auto-
estradas)”.558

De um ponto de vista econômico e urbanístico, no processo expropriatório,

a pretexto de se fixar o montante da indenização segundo um justo preço, define-se e

assegura-se ao titular do domínio o recebimento de uma mais-valia, ou de renda fundiária

oriunda de trabalho alheio. Conforme já visto anteriormente, de tal ponto de vista a

propriedade é sempre público-privada, vez que a ela é agregado valor na medida em que

dotada de infra-estrutura consistente em equipamentos e serviços custeados pela

coletividade. No entanto, a indenização expropriatória é realizada como se a mesma fora

uma propriedade privada pura, isto é, como se todo o seu valor econômico se formasse

por exclusivo esforço do proprietário individual.

A Constituição de 1988 realizou notável e louvável esforço em dar maior

desenvolvimento e concretude à função social da propriedade. No tocante ao problema

que ora comentamos, ela é a primeira a não apresentar a desapropriação como ressalva

ao direito de propriedade e, logo, como meio de concretização da função social da

propriedade.559 No entanto, ela não está isenta de contradições, ou seja, embora não
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 63-64.
558

Vide os incisos XXII a XXIV do art. 5º. Em incisos separados a Constituição garante a propriedade
559

(XXII), submete-a à função social (XXIII) e prevê as hipóteses de desapropriação (XXIV). BRASIL.
194

incida em tal equívoco no capítulo da declaração de direitos, o mesmo não acontece

quanto ao capítulo da ordem econômica. Assim, no caso da política urbana temos o § 4º,

do art. 182, considerado como um dos dispositivos constitucionais que mais contribuiu

para instrumentalizar a concreção da função social da propriedade. Dispõe ele:

§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para


área incluída no plano diretor, exigir, nos termos de lei federal, do
proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que
promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no
tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de
emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate
de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o
valor real da indenização e os juros legais”.560

De um ponto de vista estritamente fiel às colocações de ordem doutrinária

até aqui feitas, pode-se afirmar que o inciso III, mencionado acima, representa grande

incongruência. Uma vez constatado que o proprietário não dá a seu imóvel destinação

compatível com a função social da propriedade, não adequando seu comportamento

mesmo após duas sucessivas penalidades impostas pela municipalidade, o desfecho mais

adequado a tal situação seria a perda do bem. Em tal situação de recalcitrância não nos

parece razoável garantir-se ao titular da propriedade uma indenização expropriatória, vez

que essa colide com a ratio não só das penalidades que lhe antecedem como do próprio

princípio da função social, que orienta toda a seção constitucional a respeito da política

urbana. Eros Grau561, em sua obra, também registra tal incoerência, embora,

cautelosamente, não proponha a alteração do texto constitucional, de forma a adotar tal

ordem de solução. De qualquer forma, consideramos útil ressaltar a contradição. O fato


Constituição da República ... cit. p. 7.
560
BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil ... 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 105.
O grifo é nosso.
561
GRAU. Ordem econômica ... cit. p. 315-317.
195

de o renomado autor reconhecer a previsão constitucional em tela como, em tese,

incongruente, de alguma forma sinaliza no mesmo sentido que vimos apontando, isto é,

para as necessárias distinções de caráter entre o instituto da desapropriação e a

concretização da função social da propriedade. Somente a partir de uma interpretação

restritiva desta é possível entender que ela se realiza ou se instrumentaliza mediante a

desapropriação. Longe de excluir, a desapropriação é uma salvaguarda da propriedade,

uma das maneiras de garanti-la ante o poder de império do Estado.

A mesma crítica pode ser feita a legislação que buscou regulamentar a

Constituição Federal no tocante à reforma agrária, a qual não encontrou meios de fazer

com que a propriedade privada cumpra sua função social, somente conhecendo a

alternativa de trazê-la ao domínio público, ante a sua utilização anti-social.562 Enquanto

tais meios não forem encontrados, a função social da propriedade, no tocante a sua

efetividade, ficará bastante comprometida.

4.7 Algumas aplicações específicas da função social da propriedade

4.7.1 A função social e as locações

Em virtude do enfoque da função social da propriedade que estamos

enfatizando, assumirá especial relevância a temática das locações, sobretudo no caso das

locações de natureza residencial. A partir deste tema, poderemos indagar das

conseqüências jurídicas da função social da propriedade no tocante a uma típica relação

intersubjetiva de direito privado, e mais, que guarda estreitas relações com a questão da

moradia, já identificada como uma das primordiais funções sociais das cidades, e uma
562
É o caso do art. 184 da Constituição Federal, que dispõe: “Compete à União desapropriar por
interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função
social, [...].” É acompanhado pelo art. 2º da Lei 8629, de 25/02/93, que o regulamenta, dispondo que:
“a propriedade que não cumprir a função social prevista no art. 9º é passível de desapropriação, nos
termos da lei, respeitados os dispositivos constitucionais.”
196

das mais importantes demandas a serem atendidas no sentido do bem-estar urbano.

Trata-se de uma das abordagens mais verticais e necessárias a respeito do tema, e um

campo praticamente virgem de pesquisas jurídicas, não sendo de nosso conhecimento

obras doutrinárias de grande circulação, que abordem esta relação jurídica sob a ótica da

função social da propriedade.

Dadas as premissas colocadas a respeito da função social, não mais se

admite, sob a égide desta, que a administração da propriedade privada se faça pura e

simplesmente inspirada pela vontade autônoma de seu titular. Assim, não há como se

reconhecer validade não somente à denúncia vazia, mas a diversos dispositivos da lei de

locações em vigor, toda ela estruturada à luz do princípio da autonomia da vontade,

restringindo, por isso, os controles públicos à ‘livre pactuação’, deixando que as

mesmas relações se auto-regulem na instância do mercado imobiliário. Diversas

exigências contidas na lei, nela própria submetem-se a vontade das partes, não tendo

caráter público, mas cedendo ante disposição contratual em contrário.

No entanto, a função social da propriedade submete a utilização da

propriedade ao princípio da finalidade, que não garante disponibilidade plena do imóvel

ao seu titular, mas uma certa margem de liberdade, harmonizável e sempre compossível

com a utilidade ou finalidade social a que deve obrigatoriamente atender. Conforme

esclarece Bandeira de Mello563, embutido no princípio da finalidade encontra-se o

princípio da motivação, um subprincípio, ou um princípio derivado do anterior. A

motivação é obrigação decorrente de qualquer ato que não seja rigorosamente vinculado,

isto é, onde há uma aplicação quase automática da lei, de forma que sua motivação

encontra-se implícita. É própria de atos que demandam a interveniência de certos juízos

subjetivos e que dependam de uma apreciação mais complexa. Sem dúvida nenhuma, tal

563
op. cit. p. 67.
197

é a ordem dos atos de administração da propriedade.

Estando o direito de propriedade submetido ao princípio da finalidade, não

há como a lei que regulamenta a sua utilização locatícia dispensar o senhorio de expor as

razões pelas quais deseja retomar o imóvel, fundamentando e justificando a sua

pretensão. Sem isso, não há como se auferir - e, logo, controlar - se a finalidade legal

está sendo atendida, se o ato está ou não em consonância com os deveres para com a

coletividade. No caso das locações tal aferição parece-nos vital, vez que, como

afirmamos, diz respeito a uma das mais essenciais funções da cidade, logo, a um

interesse público que prepondera sobre a conveniência particular. Somos, pois, de

opinião que a motivação prévia constitui requisito indispensável para a rescisão válida do

contrato de locação.

Em consonância com o que até aqui sustentamos, há que se perceber em tal

exigência uma condição de cidadania, a qual pode e deve ser concebida não somente nas

relações Estado-sociedade, mas também, e muito, nas relações sociedade-sociedade, ou

cidadão-cidadão. Ao contrário do século XVIII, hoje não se trata mais, apenas, de

proteger o cidadão contra os abusos do Estado, prevenindo-se o absolutismo deste. Mais

que isso, impõe-se a ampliação dessa proteção, garantindo a sociedade em relação aos

abusos engendrados no âmbito desta própria, combatendo agora os excessos cometidos

pelos poderes privados, mais do que nunca em escala crescente. É em vista de tal

ampliação que hoje vemos se processar uma larga renovação da civilística. Assim, da

mesma forma que é direito político de todo cidadão saber o porquê das decisões do

Estado - se os magistrados, por exemplo, têm por obrigação constitucional fundamentar

suas decisões - com muito mais razão deve se entender como direito civil de todo

cidadão ser informado das razões das decisões privadas que lhe afetem direta e

pessoalmente, pois só deve ajustar sua conduta àquelas amparadas pela lei. É o mínimo
198

que se pode pretender no âmbito de um Estado democrático de direito.564

No mesmo sentido que acima apontamos, temos a posição do Juiz de Alçada

gaúcho Márcio Oliveira Puggina565, que à luz do princípio constitucional da função social

da propriedade entende ser inconstitucional a denúncia vazia, referindo-se, inclusive, a

decisões monocráticas que esposaram tal posição em lides concretas. Com efeito, uma

vez que o imóvel locado está cumprindo a sua função social, sendo efetivamente

utilizado no sentido de atender a demanda habitacional, parece-nos ser esta a situação

que de fato goza de tutela jurídica. Se o imóvel tal como se encontra sendo utilizado

cumpre o programa constitucional, deve ceder diante disso a mera vontade individual do

proprietário.

4.7.2 A posse e a função social da propriedade

Uma vez que num sistema de propriedade-função confere-se tutela jurídica

apenas à propriedade qualificada, logo utilizada, abolindo a propriedade como direito em

tese, cabe-nos brevemente refletir a respeito status jurídico que nesse sistema se

reservaria ao instituto da posse. Como indicador da grande pertinência entre este

instituto e a função social da propriedade, registramos desde já o fato de que dos poucos

acórdãos encontrados que decidem a lide fundamentando-se no princípio da função

social da propriedade, dois deles referem-se a Ações Possessórias.

A posse é um fato histórico que antecede a propriedade, sendo esta,

sobretudo, um efeito jurídico constituído pelo direito. Nas obras de Comte e de

Proudhon, dois autores que muito contribuíram à formação do conceito de função social

da propriedade, observa-se uma grande valorização da posse em face da propriedade.

Assim, temos não apenas uma prioridade histórica, mas também ética daquela em relação
564
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. p. 67.
565
PUGGINA, Márcio Oliveira. A inconstitucionalidade da denúncia vazia. Ajuris, Porto Alegre, n. 20,
v. 57, p. 272-277, mar. 1993.
199

a esta. A concepção positivista de propriedade, segundo Comte, “lhe enobrece a posse,

sem restringir a sua justa liberdade, e até a faz respeitar melhor”.566 Já Proudhon é

categórico ao afirmar o seguinte: “suprimam a propriedade conservando a posse; e só

por esta modificação de princípio, vocês mudarão tudo nas leis, no governo, na

economia, nas instituições: vocês expulsarão o mal da terra”.567

Se, de um ponto de vista histórico, é a partir da posse que surge o conceito

jurídico de propriedade, do ponto de vista da ordem jurídica moderna se dá o contrário,

isto é, nela estabelece-se o conceito de posse em função e a partir do conceito de

propriedade. Assim, traduzindo e endossando a lição de Rudolf von Ihering, cuja

doutrina sobre a matéria exerceu influência destacada na codificação civil brasileira,

Clovis Bevilaqua afirma que a posse é protegida juridicamente enquanto “exterioridade

ou visibilidade da propriedade”, isto é, o modo pelo qual o proprietário, habitualmente,

se utiliza de suas coisas, afirmações nas quais se pode resumir “toda a teoria

possessória”.568 Prosseguindo, acrescenta que posse é o “complemento necessário da

proteção da propriedade, é facilidade da prova em favor do proprietário, que,

necessariamente, beneficia também o não proprietário”.569

Na esteira dos pressupostos racionalistas desenvolvidos no século XVIII por

Kant - que servirão de base ao desenvolvimento da ciência jurídica nos séculos XIX e

XX - afirma-se a propriedade como uma espécie de imperativo categórico, isto é, como

um dado interior e racional, uma essência incorruptível, um a priori, ao qual deve

corresponder alguma manifestação no plano dos fatos. Essa manifestação se concretiza

no instituto da posse, o dado externo e a posteriori, a aparência histórica e empírica, que

não possui valor em si, mas em função da essência a qual se vincula e da qual é
566
Apud PEREIRA DA SILVA. Comentários à Constituição brasileira. 1929. p. 764.
567
Apud MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Posse e propriedade em Proudhon. Cadernos da Pós-
Graduação, Rio de Janeiro: Faculdade de Direito da UERJ, ano 1, n. 2, abr, 1996. p. 39.
568
BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas. edição histórica. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. p. 23-28.
569
BEVILAQUA. Direito das coisas... cit. p. 24.
200

dependente. No racionalismo kantiano, a propriedade é uma obra da “razão pura mas

prática”.570 Logo, não retira seu valor da experiência sensível, mas dos postulados a

priori da razão. Nesse sentido, é inconcebível que a posse se imponha à propriedade, o

que equivaleria a conferir maior valor ao dado empírico em relação ao dado racional,

admitindo que aquele englobe este. Ao contrário, vendo-a enquanto imperativo

categórico, o racionalismo alça a propriedade a um ponto inalcançável pela posse, ponto

este que extrapola o próprio campo do direito - onde a posse se contem - pertencendo,

em última instância, a transcendental esfera moral. Ainda enquanto imperativo

categórico, a propriedade corresponde a um comando moral irresistível pelo ser humano,

sendo a sua negação incompatível com o Estado racional, não cabendo a este fazer outra

coisa além dar-lhe os instrumentos para que possa existir empiricamente, o que se fez

mediante a institucionalização jurídica da posse.

Aquilo que tem uma natureza racional - que é a propriedade - protege-se

mediante aquilo que é real - a posse -, pois seria difícil operacionalizar a garantia a algo

imperceptível pelos sentidos. Assim, por meio da posse torna-se palpável a relação

jurídica abstrata configurada na propriedade, sendo através daquela que esta pode ser

exercida. Tanto a posse é tomada como conteúdo da propriedade que Clóvis

Bevilaqua571 afirmará que os direitos básicos do domínio - uso, gozo e disposição -

pressupõem a posse. Reporta-se este autor a uma pressuposição de natureza racional e

não empírica. Não há, assim, uma valorização autônoma da posse, isto é, não é ela

tutelada juridicamente enquanto tal, de per si, mas unicamente enquanto face visível da

propriedade, enquanto “sistema preliminar de comprovação e garantia da

propriedade”. Isto significa que não possuirá qualquer valor se, circunstancialmente,

vier a se opor à propriedade, hipótese que, em tal sistematização, é tomada como


570
KANT, Emanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Coimbra: Edições 70, 1969. p. 16 e
ss.
571
BEVILAQUA, Clovis. Codigo Civil... cit. p. 57.
201

excepcional. Nesse sentido é que as codificações presumem ser o proprietário o

possuidor572 - designando-o, na pior das hipóteses, como possuidor indireto - bem como

prescrevem que “não se deve julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente

não pertencer o domínio”.573 Em suma, temos aqui uma sistemática que faz da posse um

capítulo da propriedade, virtualmente integrando aquela nesta, tal é a identificação que

se procura realizar entre ambas. Trata-se de concepção diametralmente oposta àquela

pré-moderna, onde era o conceito de propriedade que não se autonomizava e que

dependia do conceito de posse, sendo contido neste.

Na forma acima pode ser resumida a função da posse nas codificações e na

doutrina jurídica dominante no século XIX. O modelo de instituto da posse então

desenvolvido, bastante inspirado no sistema interdital da processualística romana574,

contou com a valiosa contribuição não somente de Ihering, mas também de juristas do

porte de Savigny, outro nome expoente no referido período. A formação do conceito e

da regulação jurídica da posse não esteve, como jamais poderia estar, apartada dos

mesmos condicionamentos históricos aos quais se sujeita a própria concepção de

propriedade. Se a propriedade então engendrada é uma propriedade burguesa, e se a

posse é concebida em função da propriedade, a conclusão, praticamente fatal, é a de que

a posse também é classificável como uma posse burguesa, em outras palavras, uma posse

compatível com o sistema capitalista em desenvolvimento, e com o papel que neste é

exercido pela propriedade fundiária. O acessório, pois, segue o destino do principal.

Segundo Miguel Reale, a conceituação da propriedade inspirada no princípio

da função social implica necessariamente num “novo conceito de posse, que se poderia

qualificar como sendo posse-trabalho”.575 Posse-trabalho consiste num conceito que o


572
É o que a doutrina deduz dos arts. 485 e 486 do Código Civil. BRASIL. Código civil e legislação em
vigor. cit. p. 115.
573
Código Civil, art. 505, 2ª parte. BRASIL. Código civil e legislação em vigor. cit. p. 116.
574
BALDEZ. Sobre o papel do direito ... cit. p. 12.
575
ANTEPROJETO de Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1972. Comentado por Miguel Reale. p. xxxix.
202

referido autor revela empregar desde 1943 em seus pareceres, e que ganhou aceitação

legislativa quando da instituição do usucapião rural pro-labore, isto é, aquele fundado no

efetivo cultivo do imóvel usucapiendo. Trata-se daquela espécie de posse valorizada, e a

única admitida, pelo ordenamento jurídico colonial, de onde partem os ancilares

requisitos da cultura efetiva e da morada habitual, que configuravam tanto a posse como

o próprio domínio. Assim, afirma o referido autor que:

“A lei deve outorgar especial proteção à posse que se traduz em trabalho


criador, quer este se corporifique na construção de uma residência, quer se
concretize em investimentos de caráter produtivo ou cultural. [...] Não há
como situar no mesmo plano a posse, como simples poder de manifestação
sobre uma coisa, ‘como se’ fora atividade do proprietário, com a ‘posse
qualificada’, enriquecida pelos valores do trabalho”.576

Com base no conceito de posse-trabalho, fundamental num sistema de

direitos reais orientado por sua vocação ao interesse social, justifica-se e legitima-se, no

conflito de interesses entre aquele que é simples detentor da propriedade e aquele, ou

aqueles, que de fato exercem tal espécie de posse, a opção do sistema normativo pela

solução em prol dos últimos, conferindo-se tutela jurídica àquele que realiza a destinação

social do bem. Por essa razão, Miguel Reale, jurista que supervisionou os trabalhos de

redação que levaram ao projeto de Código Civil que ora tramita no Congresso Nacional,

incluiu no § 4º, do art. 1229, do referido anteprojeto a seguinte hipótese de perda da

propriedade imóvel:

“O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicando


consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de
cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem
realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados
pelo juiz de interesse social e econômico relevante. Neste caso o juiz fixará
a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença
como título para a transcrição do imóvel em nome dos possuidores”.577

576
ANTEPROJETO ... cit. p. xxxix.
577
BRASIL, Senado Federal ... op. cit. p. 7.
203

Como se percebe, há vários comentários que podem ser feitos a este

dispositivo, alguns até que extrapolam o tema da presente seção - estes, no entanto,

serão deixados para a seção seguinte, no intuito de melhor ordenar a exposição dos

assuntos. Primeiramente, ante a posse qualificada pelo trabalho não prevalece o jus

reivindicandi do proprietário, o qual se converte em indenização. Estamos, pois, diante

de um dispositivo o qual podemos considerar que se harmoniza com a concepção que

adotamos de função social da propriedade, posto que protege o direito de propriedade se

e quando cumprida a condição deste estar realizando sua função social. Uma vez que é a

posse que realiza tal função, para esta se desloca a proteção conferida pelo direito, pois é

esta a situação que o ordenamento deseja estabilizar.

Trata-se de uma proposta legislativa cuja origem remonta ao ano de 1972, e

que, de certa forma, se viu superada com o advento da Constituição de 1988, que foi

mais longe, estabelecendo não a conversão das faculdades dominiais em indenização,

mas sim a própria prescrição aquisitiva, portanto, independente de indenização. 578 Em

qualquer dos casos, no entanto, vale destacar que à posse é conferido um valor que não

está em função do domínio, mas que pode até ser oposta ao mesmo. É considerada não

como uma exteriorização da propriedade, mas sim como meio de sua correção, de sua

humanização e de sua distribuição. Nas palavras de Antonio Hernandez Gil, invocadas

por Baldez:

“[...] a posse pode constituir o contraponto humano e social de uma


propriedade ao mesmo tempo concentrada e despersonalizada através de
generalizações econômico-jurídicas, que são o patrimônio, o capital, o
crédito, o dinheiro. A razão de ser da posse, seu sentido institucional, se
encontra, portanto, no que se afasta da propriedade, no que a corrige e
exclui”.579

No sentido de uma adequação do instituto da posse ao princípio da função


578
Vide artigos 183 e 191. BRASIL, Constituição da República Federativa... cit. p. 105 e 107.
579
BALDEZ. A luta pela terra urbana. cit. p. 170.
204

social da propriedade talvez seja importante apreender aquela concepção de posse já

formada no seio da sociedade - pelo menos naquela fração social constituída pelos

movimentos sociais organizados em torno da reivindicação do acesso à terra. No âmbito

destes, seja no campo seja na cidade, observa-se uma recriação do conceito de posse no

plano das práticas sociais concretas. Neste plano, a posse em hipótese alguma se

restringe à simples detenção da terra, adquirindo uma configuração mais ampla e um

conteúdo mais rico, dado que o interesse real dos integrantes de ditos movimentos não

se concentra na posse da terra por si mesma, mas sim na posse enquanto fator básico à

promoção de sua subsistência, de trabalho e de moradia, em suma, enquanto um meio de

defesa e de promoção da vida.580

4.8 A Função Social da Propriedade nos Tribunais

Finalizando a presente exposição doutrinária respeito da função social da

propriedade, discorramos sobre a jurisprudência a respeito da matéria. Trata-se de

aspecto fundamental ao perfeito entendimento deste tipo legal, sobretudo em vista da

aludida dependência da realidade que neste se verifica. Segundo tal premissa, que

colocamos alhures, a função social não é, em grande parte, definível de maneira

apriorística na norma jurídica abstrata, sendo mais adequado às suas características

defini-la no caso concreto, à luz das diretivas gerais que nela se contém.

Na coletânea de jurisprudência organizada pelo magistrado gaúcho Amilton

Bueno de Carvalho581 temos a referência a dois acórdãos da lavra do Tribunal de Alçada

do Estado do Rio Grande do Sul, ambos julgando recursos interpostos em Ações

Possessórias (um em grau de Apelação, outro de Embargos Infringentes), nos quais

encontra-se referência, dentre os inúmeros dispositivos jurídicos e doutrinários a que os


Conforme BALDEZ. Sobre o papel do direito ... cit. p. 15.
580
581
CARVALHO, Amílton Bueno (dir). Direito alternativo na jurisprudência. São Paulo: Acadêmica,
1993. p. 145-157.
205

julgadores recorreram para decidir a lide, ao princípio constitucional da função social.

Não nos ateremos aqui à solução propriamente dada a cada uma das lides, o

que além de nos obrigar a extensos comentários a respeito dos acórdãos nos desviaria do

enfoque que desejamos dar ao nosso tema. Assim, optamos por selecionar - e comentar -

alguns trechos dos acórdãos, segundo as premissas que até aqui já assentamos e segundo

a representatividade desses fragmentos em relação aos problemas teórico-práticos

envolvidos na aplicação e efetivação do dispositivo jurídico da função social da

propriedade.

Como primeiro aspecto relevante, identificamos o novo papel reconhecido

aos fatos, e/ou a nova forma de encarar a relação fatos-normas. Assim, a adoção do

princípio da função social, como fundamento para a solução de um conflito possessório

concreto, importou numa consideração dos fatos como conformadores do próprio

sentido e abrangência das normas aplicáveis ao caso. Em ambos os acórdãos enfatizou-se

que:

“Esta não é uma demanda comum, simplesmente envolvendo, de um


lado, o proprietário ou possuidor do imóvel, cuja posse alega ter sido
turbada, e, de outro, o solitário e clássico esbulhador. Aqui está
presente, claramente, um outro importante ingrediente a exercer forte
influência no espírito do julgador: uma delicada questão social que a
inércia inicial dos autores ajudou a criar. [...] Aqui, é uma
coletividade que se apresenta como ré. Busca-se reintegrar na posse
uns poucos e demitir da posse uma comunidade, uma vila. Essa a
peculiaridade a destacar desde logo [...].
[...] O Direito, ensina Miguel Reale, não se restringe apenas às
normas, mas compreende também fatos e valores. Assim, uma visão
integral do direito exige, não só no plano da filosofia, mas também e
muito mais no da prática judicial, que os julgamentos levem em conta
não só as normas legais, estabelecidas para resolver casos que
206

usualmente costumam ocorrer, mas também para os novos fatos


sociais, não previstos nas leis, e que devem ser objeto de valoração
contemporânea, não necessariamente igual à que fariam os que
legislaram no passado.
[...] O justo, outrossim, é dimensionado, também, pelas
circunstâncias específicas do caso concreto submetido ao exame do
Judiciário”.582

Esse primeiro aspecto refere-se diretamente àquilo que afirma a doutrina,

quando ressalta não ser a função social da propriedade um preceito estático, definível em

tese e aprioristicamente em relação ao fatos, mas, ao contrário, que necessita dos fatos

para a sua própria inteligibilidade e operatividade, somente sendo auferível mediante a

consideração destes mesmos fatos. Está, pois, imbuída da noção de que os fatos, por

definição, determinam o conteúdo da norma, invertendo o clássico silogismo da

subsunção dos fatos à lei em que se baseia o raciocínio jurídico, e obrigando o jurista a

um processo de busca do sentido da norma que não passa primeiramente e/ou

exclusivamente pela sua analise textual. Assim é que, num dos acórdãos, afirma-se que

“não via o Relator como fazer prevalecer uma visão tecnicista e formalista do Direito

sobre a função social da propriedade”.583

Dando materialidade aos pressupostos teóricos acima colocados, nota-se,

nos acórdãos analisados, que os Juízes consideraram, entre outros, os fatos de o imóvel

objeto da lide consistir em “extensa área de, aproximadamente, 42 hectares de

terras”584, fato que torna possível auferir, por exemplo, se o imóvel em questão excede

ou não a função individual de garantir a subsistência de seus proprietários, a qual não

seria tangível pelo princípio da função social. De outro lado, consideraram ainda o fato

de tratar-se a região onde o imóvel se localiza de uma periferia urbana sujeita a forte

582
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 153 e 149-151.
583
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 151.
584
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 153.
207

pressão e demanda habitacional, o que permite a avaliação não só da abusividade ou

injustiça da conduta do proprietário, como da boa ou má-fé dos ocupantes, verificando

se agiram impelidos por malícia ou por “autêntico estado de necessidade”.585 Num dos

acórdãos revela-se que a decisão tomada demandou longo debate da causa, “sob todos

os ângulos, inclusive o social, no caso até preponderante”.586 Nesse sentido, arrematam

que:

“O certo é que país com milhões e milhões de famintos e sem moradia (ou
com moradias atentatórias ao mínimo de dignidade humana) não pode
conviver com vastas áreas de terras sem ocupação, cujos proprietários
aguardam sua valorização”.587

O segundo aspecto a destacar refere-se aos fundamentos jurídicos dos

decisum. A esse respeito, destacamos que:

“Nossa Constituição Federal contem várias normas esplêndidas que não


ensejam dúvidas sobre como deve o julgador resolver em situações dessa
espécie (além do princípio da função social da propriedade); vejam-se os
exemplos: 1) o Brasil tem como fundamentos, entre outros, a dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III); 2) são objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária,
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais,
promover o bem de todos sem quaisquer discriminações (art. 3º, I, III e IV);

3) solo urbano inaproveitado se sujeita a penalização (art. 182, § 4º)”.588

Nota-se que o recurso ao princípio da função social implica, virtualmente,

numa re-leitura de todo o ordenamento civil à luz dos objetivos e diretrizes fundamentais

constitucionais acima expressos, minorando seu caráter marcadamente patrimonialista e

transformando-o num instrumento de realização e/ou promoção da pessoa humana, a

qual passa a figurar como o bem jurídico objeto de tutela desse sistema jurídico. Ou seja,

a ordem civil converte-se num instrumento daquilo que se convencionou designar

585
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 154.
586
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 153.
587
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 151.
588
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 151.
208

direitos humanos.

No caso dos acórdãos estudados, a concretização plena desse entendimento

significou uma espécie de discriminação positiva do elemento mais débil da relação

material, na linha da tutela da parte hiposuficiente, preconizada na recente legislação

brasileira. Ou seja, de sua aplicação resulta, quase que invariavelmente, um

reconhecimento implícito do direito da parte hiposuficiente à permanência no imóvel

objeto da lide, cedendo, ante a esse direito, os poderes e faculdades dominiais. Se não,

vejamos:

“Ora, colocado na balança da Justiça, de um lado os interesses de três


casais, para os quais a área em litígio representa muito, mas não é
fundamental, e, de outro, os de noventa ou mais famílias, para as quais
essa mesma área é condição de vida digna, parece não ser difícil
determinar para que lado pende a balança.
(...) ‘Opus justitiae pax’. É então de se perguntar qual a solução mais
consentânea com a paz social. E a resposta, mais uma vez, pende para os
vileiros, especialmente se levada em conta a crise econômica que ora
atravessamos, com levas de trabalhadores sem emprego, sem casa e sem
comida”.589

O terceiro aspecto importante é que a aplicação do princípio da função social

parece exigir do Juiz o assumir um papel mais criativo ante o Direito o qual tem por

missão velar e fazer cumprir:

“O Judiciário, por ser um Poder, não pode ficar apenas na posição


subalterna de obediência a comandos emitidos pelos demais Poderes.
Deve colaborar com o Executivo e o Legislativo na solução dos problemas
sociais, especialmente quando se apresentam hipóteses que não se
prestam à edição de normas abstratas, exigindo solução concreta, caso a
caso. Não pode o Judiciário ser injusto, aguardando que sobrevenha lei
justa, máxime quando o legislador se omite, temeroso das conseqüências
que possam advir da emissão de norma geral, perigo que o Judiciário pode
enfrentar, porque suas decisões não são leis, valendo apenas para o
caso”.590
589
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 150.
590
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 150 e 155-156.
209

Nesses três aspectos acima destacados, percebe-se que não houve consenso

a respeito deles entre os julgadores, como, aliás, seria de se esperar, pois estamos

tratando de pontos extremamente sensíveis de nossa cultura jurídica, de verdadeiras

pedras de toque da ciência do direito. Cremos que isto nada mais é do que demonstração

da radicalidade dos problemas teóricos a respeito do direito que a função social da

propriedade suscita. Do debate travado no Tribunal de Alçada gaúcho podemos ter um

panorama dos distintos caminhos pelos quais se propõe que a ciência jurídica responda

aos desafios da sociedade contemporânea. Assim, no tocante ao último ponto que acima

comentamos, colocou-se a dialética do juiz cumpridor da lei - pois é dela que retira a

sua autoridade, sendo a pior das ditaduras a do Judiciário - versus juiz construtor da lei -

ainda que não absoluto, pois ele dá concreção aos princípios fixados na Constituição.

Indo mais a fundo, percebemos que debater este ponto implica, e significa, definir qual a

extensão, abrangência ou rigidez do princípio da separação dos poderes do Estado.

Roger Raupp Rios591, juiz federal no estado do Rio Grande do Sul, parte do princípio da

imediata incidência das regras constitucionais - a qual independeria do próprio art. 5º, §

1º Constituição Federal - e do papel do Judiciário de guardião da ordem jurídica.

Entende tal magistrado, invocando inclusive a doutrina de Clovis Couto e Silva, que o

Juiz deve proceder com relação a função social da propriedade da mesma forma pela

qual já procede com relação ao princípio da boa-fé, princípio endereçado sobretudo aos

juízes, estimulando-os a formar instituições para responder aos novos fatos, exercendo

função individualizadora numa linha similar ao pretor romano, criando o direito do caso.

Face a dinâmica social, cabe à doutrina e à prática judicial a explicitação das

significações assumidas por conceitos jurídicos como o da função social da propriedade,

valendo ser lembrado o quão é inapropriado o texto legal elaborar definições científicas.
591
RIOS, Roger Raupp. A propriedade e sua função social na Constituição de 1988. Ajuris, Porto Alegre,
n. 22, v. 64, p. 307-320, jul. 1995.
210

No tocante aos dois pontos anteriores, e intimamente ligado com este último,

temos o debate a respeito do cabimento do poder judiciário, num conflito determinado,

realizar justiça social, ou se tal tarefa caberia exclusivamente ao Executivo. Nesse

sentido, colhemos o seguinte fragmento do voto de um dos Juízes:

“(...) dolorosa situação que pode e deve encontrar solução por ato da
administracão (a função executiva da soberania estatal).
(...) No caso presente, o problema social dos embargantes soluciona-se
através da desapropriação do imóvel, da competência do Estado-
Administração. A função social da propriedade, como definida na CF,
justamente, impõe-se, corretivamente, através do processo
592
expropriatório”.

Este ponto nos faz retornar sobre a própria discussão a respeito da

abrangência e extensão dos efeitos da função social cominada à propriedade. Em outras

palavras, trata-se de discernir como se resolve - ou, como deve se resolver - o conflito

entre o interesse público e o particular, se pela imposição de prestações positivas ao

proprietário - hipótese que reputamos publicista -, ou pelo clássico caminho pelo qual o

Estado chama a si essa mesma propriedade - o que reputamos de via estatista.

A segunda remissão jurisprudencial a ser feita refere-se a fatos bastante

semelhantes àqueles que o Tribunal de Alçada gaúcho teve diante de si. Trata-se, agora,

de uma Ação Reivindicatória, julgada pela 8ª Câmara do Tribunal de Justiça de São

Paulo, a 16/12/1994, em grau de Apelação, desta vez em votação unânime e cuja ementa

é a seguinte:

Ação Reivindicatória - Lotes de terreno transformados em favela dotada de


equipamentos urbanos - Função Social da Propriedade - Direito de
indenização dos proprietários - Lotes de terreno urbanos tragados por uma
favela deixam de existir e não podem ser recuperados, fazendo, assim,
desaparecer o direito de reivindicá-los. O abandono dos lotes urbanos
caracteriza uso anti-social da propriedade, afastado que se apresenta do
princípio constitucional da função social da propriedade. Permanece,

592
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 157.
211

todavia, o direito dos proprietários de pleitear a indenização contra quem de


direito”. 593

Resumiria, na forma abaixo, as razões e fundamentos de decidir do Tribunal

paulista. Ante ao fato de existir, sobre os lotes que compõem a “pseudo-realidade

jurídico-cartorária”594, há mais de vinte anos, uma densa favela, consolidada e já tendo

recebido, inclusive, diversos investimentos do poder público, conclui-se que não mais

existe o objeto do direito, que deixou de existir enquanto realidade material. Assim, se é

a realidade empírica, e não a normativa, o ponto de partida para o processo de

conhecimento da lide, é impossível o exercício de reivindicar aquilo que de fato pereceu,

pois, segundo o art. 77 do Código Civil, “perece o direito perecendo o seu objeto”. 595

Aquilo que se revela impossível do prisma social não pode revelar-se juridicamente

possível, já que a dimensão normativa do direito é indicotomizável de seu conteúdo

ético-social e fático. De outro lado, considerando que a Constituição Federal modifica o

art. 524 do Código Civil596, inserindo-se-lhe um interesse social que pode não coincidir

com os interesses dos proprietários, fica claro que este proprietário exerceu seu direito

de forma anti-social, isto é, abandonou seu bem por mais de vinte anos, num contexto de

franca expansão populacional e gravíssimos problemas habitacionais. Esta é a “natureza

peculiar”597 da cidade de São Paulo, durante as décadas de 70-90, ratificando a

afirmação de que tal noção não é abstrata, mas localizada no tempo e no espaço, vale

dizer, histórica e geograficamente.

593
CINTRA JR., Dyrceu Aguiar Dias & RUIZ, Urbano. Função social da propriedade. Justiça e
democracia, São Paulo: Associação Juízes para a Democracia, n. 1, p. 239-246, jan/jun. 1996. seção
‘Decisão comentada’.
Trata-se da Apelação Cível n. 212.726-1-8-São Paulo, relatada pelo Des. José Osório. O mesmo acórdão
foi também publicado no Boletim AASP, n. 1896, p. 137-140, abr/maio. 1995.
594
CINTRA JR. & RUIZ. op. cit. p. 240.
595
CINTRA JR. & RUIZ. op. cit. p. 240.
596
O qual dispõe que “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de
reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”. BRASIL. Código civil e legislação em
vigor. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 120-122.
597
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre, Sergio Fabris, 1991. p. 13-23,
especialmente a p. 18.
212

Nesse segundo acórdão, o que nos parece relevante é não somente as razões

do TJSP, que mostram como se insere a função social no próprio raciocínio do julgador,

mas sim, e, sobretudo, a solução, isto é, como se compõe o conflito entre o interesse

individual e o social. No caso, o Tribunal entendeu que, diante dos fatos, o jus

reivindicandi ficou neutralizado pelo princípio da função social da propriedade, mas que

permanece a eventual pretensão indenizatória em favor dos proprietários, contra quem

de direito. Ou seja, de um lado, não decretou a pura e simples perda do bem, o que

poderia imputar-se como inconstitucional face à garantia do direito de propriedade, que

a cominação de função social não abole, sendo sempre assegurado-lhe a titularidade do

bem, expressão de seu conteúdo mínimo. Diferente disso, entendeu ter desaparecido a

faculdade dominial de reivindicar o bem objeto da propriedade, o que significa, do lado

dos favelados, a continuidade do exercício da posse, vez que o proprietário, único

juridicamente legitimado a promover a retomada, ficou sem os meios normais para tanto.

Isto é o que se pode deduzir, de maneira estrita, do texto da decisão.

Estamos longe, no entanto, de esgotar todas as dúvidas que sobre ele podem-se levantar,

existindo em tese a possibilidade de que alguma das partes, na medida de seu interesse,

interponha os próprios Embargos Declaratórios. Assim, a indenização de que fala o

acórdão seria de natureza expropriatória ou não? Na hipótese positiva, estaria o Tribunal

adotando exatamente aquela solução preconizada no § 4º, do art. 1229, do Projeto de

Código Civil, já mencionado em seção anterior. Tal solução, que à primeira vista parecia

superada pelo advento do usucapião constitucional, neste caso revelou-se útil, como

referência, mesmo que de lege ferenda, à decisão judicial. Muito embora o lapso de

tempo da ocupação seja superior aos cinco anos determinados pelo art. 183 da

Constituição, o fato é que num sem número de casos o usucapião é uma possibilidade

que encontra enormes dificuldades, de natureza formal e material, em se concretizar.


213

Essa hipótese, ainda, significa a admissão jurídica da desapropriação de origem judicial,

uma modalidade de desapropriação aparentemente indireta.598 Quebra-se, assim, a

prerrogativa exclusivamente administrativa em declarar o interesse público ou utilidade

social do imóvel para fins de desapropriação. Vemos em tal inovação um sintoma da

necessidade de redefinir-se, tendo em vista as demandas da sociedade contemporânea, o

papel, o rol de poderes, e os instrumentos a disposição do Poder Judiciário, de forma a

que seja-lhe possível responder adequadamente a conflitos como aquele sob exame.

Parece-nos ter sido esta mesma percepção que orientou a redação da parágrafo incluído

no Projeto de Código Civil. A segunda hipótese - a indenização de que fala o acórdão

não tenha natureza expropriatória - também apontaria na direção da admissão e

concepção de novas formas de se proceder a desapropriação. Por meio dela, estabelecer-

se-ia hipótese de expropriação de valor, no entanto, de forma alterada em relação àquela

como a jurisprudência e a doutrina alemã a conceberam, visto que, nesta não há que se

falar em indenização. Trata-se de uma hipótese mais remota, dado a falta de referências

na experiência jurídica nacional que pudessem embasá-la.

Em sentido diverso, pode-se também entender a indenização determinada

pelo Tribunal paulista como sinalizando não a expropriação, em qualquer modalidade

admissível, mas a venda compulsória do imóvel. Nesse caso, a quem teria se dado a

venda? A princípio, vislumbramos apenas duas hipóteses: (1) aos próprios moradores, ou

(2) à municipalidade. A primeira hipótese apresenta alguma sintonia com o art. 182, § 4º

da Constituição, com a diferença de que não foi a municipalidade, mas sim o Juiz, quem

impôs o compulsório parcelamento e venda dos lotes, lotes estes que não seriam

oriundos de projeto aprovado pelo poder público, mas sim fruto da ocupação espontânea

598
Esta aparência se deve ao fato de não ter sido o Poder Público aquele que se apossou do bem
previamente à sua desapropriação. De fato, há desapropriações por interesse social feitas em hipótese
exatamente como a presente, que nem por isso são reputadas indiretas.
214

e anterior ao ato formal de parcelamento da terra. Este último aspecto, em si, não

constitui grande problema, já que é figura conhecida no ordenamento o loteamento

clandestino, que tem as mesmas características. Esta solução, no entanto, pode

apresentar alguns impasses como a própria situação sócio-econômica dos favelados. Se

são eles as vítimas do processo de “erosão social”599 a que se refere o Tribunal, por que

imputar-lhes o ônus de arcar com tal indenização ? Caso estes não possuam os recursos

para pagar o preço do imóvel - hipótese que nada tem de absurdo - como se resolveria a

questão ? Embora possua, em princípio, a virtude de ser feita em favor dos ocupantes do

imóvel, e não do Estado, essa solução inverte a função social da propriedade, premiando

com a indenização justamente aquele que se revelou faltoso no adequado aproveitamento

de seu patrimônio, e deixando a parte hiposuficiente o encargo de arcar com referida

indenização.

Caso optemos pela segunda solução, entendendo que a venda teria se dado à

municipalidade, estaríamos praticamente recaindo no instituto da desapropriação, cujo

decreto, mais uma vez, seria de competência judicial. Tal solução também não nos

parece satisfatória, uma vez que re-incide no grave e já criticado expediente de resolver

o conflito entre o interesse público e privado pela via da desapropriação.

De maneira geral, percebemos, face ao estudo jurisprudencial, que se, em

tese, a separação entre os âmbitos da função social e da desapropriação seja fundamental

à correta conceituação e aplicação de ambos, principalmente no caso da primeira, no

plano da práxis judicial - e até administrativa - parece que aquela deságua

inevitavelmente nesta. Neste sentido, certamente contribuíram as disposições normativas

- constitucionais e infraconstitucionais - que se encarregaram, salvo exceções, de

associar e identificar aquilo que ao nível doutrinário somos capazes de distinguir. Por

599
CINTRA JR. & RUIZ. op. cit. p. 240.
215

trás de tal dificuldade, observamos aquela dinâmica de se colocar remendo novo em

pano velho, isto é, de adotar soluções tradicionais em face de problemas e de formas

jurídicas novas.

Tais conjecturas, a que acima nos permitimos, deixam claro o quadro de

dificuldades e questões, cujo equacionamento é altamente complexo, que tem pela frente

a função social da propriedade no tocante à sua operacionalização. Deixam patenteada a

falta de meios, isto é, de instrumentos adequados previstos no ordenamento para a

realização de tal tarefa. Todavia, são precisamente essas questões que consideramos as

mais relevantes que sobre esse tipo legal se possa levantar, principalmente se desejamos

vê-lo aplicado diretamente às relações intersubjetivas privadas, e em consonância com as

premissas colocadas pela doutrina, em especial aquela em que distinguimos o caráter

público em relação ao estatal.

Por fim, acrescente-se que a escassez (para não dizer, em algumas hipóteses,

ausência) de jurisprudência baseada na função social da propriedade600, e que procure

dela retirar toda a sua potencialidade, sinaliza tanto para o quadro de requisitos, teóricos

e práticos, implicados em tal tarefa, quanto para uma certa resistência judicial, da mesma

natureza, ao que o princípio jurídico em questão significa. Pelo que expusemos,

observamos que a função social conduz a um repensar de vários dogmas de cultura e da

ideologia jurídica, ao que nem todos os espíritos encontram-se dispostos e abertos. Tal

escassez é assaz verificável quando se trata de conflitos tipicamente de direito civil, isto

é, aquelas relações intersubjetivas privadas e que de nenhuma forma envolvem interesse

strictu sensu do Estado. É o que se percebe da leitura de uma série de acórdãos versando

sobre tradicionais lides como Ações Reivindicatórias, Possessórias, ou outras que

envolvem relações locatícias. Nos estudos de caso a respeito de conflitos de direito de

600
A qual é registrada por SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. cit. p. 255.
216

propriedade, aos quais nos referimos alhures601 o que se verifica em todos os processos

judiciais pesquisados é que sequer é cogitada a solução do litígio tomando-se o

princípio da função social como base.

Qualquer que seja a solução da lide, essa ausência de cogitação de que

falamos revela-se igualmente preocupante, pois de alguma forma sinaliza para uma não

real incorporação da função social da propriedade em nossa cultura jurídica. Assim, fica

bastante prejudicada a tarefa de traduzir a contribuição judicial ao esclarecimento do seu

significado no contexto de nosso ordenamento, já que a produção judiciária tem se

caracterizado justamente pelo esquecimento do mesmo, permanecendo as lides sendo

solucionadas com base ou nos exatos termos em que a dispõe o Código Civil, vale dizer,

com base em noção absolutista dos direitos dominiais, ou tangenciando-se o

ordenamento jurídico, de maneira mais ou menos explícita.

601
FALCÃO. op. cit. p. 79-101.
217

CONCLUSÃO

Além das conseqüências que podem ser tiradas, em sede de interpretação,

das noções elaboradas pela doutrina no sentido de esclarecer os contornos legais da

função social da propriedade, para nós é evidente também que este modelo legal nos traz

tantas sombras quanto luzes, ou seja, resta-nos uma série de questões e problemas a

serem resolvidos na dialética teoria-prática que envolva de maneira direta a propriedade

e seu estatuto jurídico.

Não obstante, o estudo da função social da propriedade, histórica e

doutrinariamente, nos deu margem a que suscitássemos um amplo leque de problemas e

questões referentes ao direito. Mais do que isso, ensejou o levantamento de problemas

de indiscutível relevância, tanto teórica quanto prática, como acreditamos seja papel da

ciência fazer.

Por aquilo que exige do intérprete, seja no plano doutrinário, seja no plano

da prática profissional, reconhecemos na função social um certo caráter contra-cultural,

isto é, embora componente da ordem jurídica, fomenta um processo de revisão dos

conceitos e dos institutos jurídicos como até então se apresentaram. Se procurarmos

relacionar os grandes dogmas fundantes do sistema jurídico romano-germânico - direito

expresso em códigos, separação entre direito público e privado, separação entre direito

material e processual, tripartição dos poderes do Estado - perceberemos que a função

social, enquanto forma jurídica, não se harmoniza com nenhum deles, mas aponta na

direção de sua revisão. Assim, malgrado a legitimidade e utilidade do esforço

constitucional em objetivar e concretizar o conteúdo deste princípio - e também garantia

- constitucional, o mesmo se revela fugidio aos padrões genéricos das normas abstratas.

Até mesmo por essa razão não colocamo-nos como objetivo da pesquisa, como produto
218

a ser por ela apresentado, a definição de em que tipo de regras e de instrumentos

jurídicos se materializariam os significados e as características da função social da

propriedade ressaltados pela doutrina.

Fundamentalmente, gostaríamos de fincar, a título de conclusão, que a

concepção de função social que, com o indispensável apoio doutrinário, procuramos

desenvolver, enfatiza e tem em vista o papel do sujeito. Não restritamente o sujeito de

direito, mas, sobretudo, o sujeito social, ou melhor, os sujeitos sociais. Procuramos,

então, conceber e aprofundarmo-nos na função social como instrumento diretamente

manejável e operável pelos sujeitos sociais. Esforçamos-nos em vê-la como ferramenta

na busca da melhor situação de promoção do ser humano que formos capazes de

alcançar com base no direito.

Bem sabemos o quanto se encontram fragilizados, na sociedade brasileira, os

sujeitos de que falamos, existindo poderosos óbices à sua emancipação social, sobretudo

aqueles que sofrem as graves conseqüências da desigualdade social. Sobre estes, diz-nos

com clarividência Oliveira Vianna, citado por Victor Nunes Leal:

“[...] mesmo quando tivessem consciência dos seus direitos (e, realmente,
não têm ...) e quisessem exercê-lo de um modo autônomo - não poderiam
fazê-lo. E isto porque qualquer veleidade de independência da parte desses
párias seria punida com a expulsão ou o despejo imediato pelos grandes
senhores de terras”.602

Nota-se, pela colocação acima, que é necessário forjar não somente o acesso

à terra, mas, junto com isto (já que antes não há como fazê-lo), forjar o acesso ao

direito. Universalizar o direito, fazer com que deixe de ser mais uma das espécies de

artigo de luxo, de consumo ao qual poucos têm acesso, eis a tarefa histórica dos juristas,

de maneira especial. Conquanto suas reais fragilidades, não há como se pensar o direito

prescindindo de tais sujeitos, tratando-os como objeto de um sistema de intervenção,


602
LEAL. op. cit. p. 25. Grifo do autor.
219

proteção, tutela, etc. Isto é o que faz do sujeito um objeto. Exige-se, pois,

instrumentalizar o sujeito para que promova a sua autopromoção, autotutela, etc.

Dadas as características da formação social brasileira, onde o pensamento

social e político é fortemente marcado pelas imagens geradas tanto pelo catolicismo

quanto pelo positivismo, a concepção de função social é tributária dessas matrizes.

Assim, nesta se conferirá um papel central ao Estado e não à sociedade, conferindo

muitos poderes de ação a autoridade política, e poucos poderes ao cidadão, ao sujeito

social. O sujeito social, assim, não se converte em sujeito de direito. Existe na ordem

social, mas não - ou pouco - na jurídica.

Fica, então, comprometido, a partir de nossas matrizes sociais e ideológicas,

o trabalho jurídico que pretende situar as implicações da função social da propriedade no

plano das relações diretamente manipuláveis pelos sujeitos sociais, isto é, o plano das

relações de direito privado. Por este caminho, talvez expliquemos o porquê de a

legislação, a doutrina e a jurisprudência a respeito de questões de direito civil se

manterem até hoje praticamente infensas a existência, há várias décadas, do princípio

constitucional da função social da propriedade. Nesse sentido, basta-se observar em

quantos cursos jurídicos se o estuda de fato e em que medida o mesmo aparece na

bibliografia que nesses é utilizada.

Percebemos que a repercussão do princípio da função social tem se

concentrado, mormente, no plano das relações Estado-cidadão, isto é, no plano das

relações de Direito Público - em especial, dos Direitos Administrativo, Ambiental e

Urbanístico. É no sentido desses ramos do ordenamento, e não no do direito civil, que

ele tem se desenvolvido, sobretudo após a Constituição de 1988. A esse respeito, note-se

que o importante art. 182 da Constituição faz várias referências ao Plano Diretor, e

nenhuma ao Código Civil.


220

Mesmo tendo-se consciência das limitações e da revisão que saudavelmente

vem se impondo da divisão rígida entre os Direitos Público e Privado, tratam-se de duas

especificidades normativas e de relações sócio-jurídicas que não deixaram de existir, não

simplesmente desapareceram, de forma que qualquer referência a elas seja considerada

inválida e defasada. O que não cabe mais supor é que sejam campos estanques,

incomunicáveis, como se não compusessem um mesmo sistema, como se fossem ramos

autônomos do direito.

Nesse sentido, entendemos que os avanços logrados há algumas décadas no

campo mais específico do direito público, avanços que entendemos não só de natureza

legal mas, sobretudo, de natureza teórica e doutrinária - com uma interpretação menos

formalista e mais voltada aos escopos sociais e políticos do direito - são de máxima

importância, relevância e benefício social. No entanto, suspeitamos que a

democratização do direito público será de pouca valia sem que o mesmo ocorra nos

domínios específicos do direito privado.

A função social da propriedade coloca-se no epicentro deste debate. É

indiscutível a sua presença, como princípio orientador, nos Planos Urbanísticos, Planos

Diretores, leis ambientais. No entanto, sem que a legislação civil também lhe dê a devida

concreção, faltarão condições objetivas à sua efetivação de maneira geral. Não podemos

olvidar que a propriedade que se deseja democratizar é, em primeira mão, aquela

propriedade de que trata o código civil. Esta pode constituir, e, de fato, tem

constituído603, um insuperável limite ao melhor plano de ordenamento territorial, à mais

bem montada e intencionada política habitacional, e a uma série de outras intervenções

sociais, muitas delas legítimas, que não têm como deixar de violar esferas particulares de

patrimonialidade, logo, cobertas pelo direito de propriedade.

Conforme demonstrado em PESSOA, Álvaro. O uso do solo em conflito; a visão institucional. In:
603

FALCÃO (org). op. cit. p. 213-215.


221

Em suma, sem o desenvolvimento de uma ciência e de uma técnica jurídica

que se aprofundem na temática da função social, dentro do enfoque aqui proposto,

estaremos sistematicamente colocados diante da falta de instrumentos jurídicos básicos

ao equacionamento do problema da justa distribuição da terra e do acesso universal a

ela.
222

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