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FACULDADE DE DIREITO
por
Faculdade de Direito
por
Orientador:
BANCA EXAMINADORA
________________________________
Prof. Dr. Ivair Coelho Itagiba Lisboa – ORIENTADOR
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
__________________________________
Profª. Livre Docente Heloísa Helena Gomes Barboza
Faculdade de Direito – FD
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ
__________________________________
Profª. Drª. Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca
Faculdade Nacional de Direito – FND
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
IV
AGRADECIMENTOS
Elaborar uma dissertação de mestrado é uma tarefa que pode ser comparada à
travessia de um oceano. É exatamente essa a impressão que guardo, ao cabo de três anos de
intenso esforço. Em meio à elaboração dos capítulos e seções da presente dissertação, tive a
eterna sensação de que por mais que se trabalhasse sempre havia muito a remar até chegar a
um ‘porto seguro’.
Realizada essa tarefa e vivida essa experiência, passam a me fazer mais sentido
as páginas que ora escrevo no intuito de expressar meu reconhecimento e gratidão àqueles
que contribuíram para a verdadeira obra que se realizou, e que se realiza a cada trabalho
previsível e fútil formalismo, como uma oca solenidade a que muitos não gostam de se
furtar. No entanto, a vivência dessa experiência fez-me sentir uma gratuita (no bom sentido
aqueles a quem considero e chamo por ‘mestres’, pois é exatamente o que tem sido para
mim neste grande, bonito e frutífero reencontro que tive - e estou tendo - com a
universidade. Com o apoio de Dílson deu-se aquela fase romântica, que em todos nós deixa
Ao professor Jorge Coelho, um muito especial obrigado pelas aulas, pelo apoio
tanto no plano intelectual como no pessoal. Com seu olhar arguto, percebeu o quanto a
vida acadêmica era importante para mim, e com isso não só me fez adquirir mais
oportunidades que abriu e por seu curso de Teoria da Justiça, onde tive o ensejo de tomar
À Profª Maria Celina Bodin, por seu curso de Direito Civil Constitucional, onde
demonstrou grande seriedade, bem como respeito aos alunos, tanto no plano intelectual
À Profª Heloísa Helena, por sua atenção, dentro e fora de sala, por sua simpatia,
Ao caríssimo Prof. Miguel Baldez, por sua generosa leitura e crítica de meus
textos, por suas valiosas indicações bibliográficas e, acima de tudo, por sua honestidade,
coerência e engajamento.
Sônia, Patrícia e Terezinha. Pelos inúmeros “galhos quebrados”, pela grande dose de
VII
paciência, por sua acessibilidade, o meu sincero e justo agradecimento, vocês que
forneceram meios sem os quais o percurso até seus últimos termos seria muito mais penoso.
Sérgio Scherman, a quem muito estimo e com quem mais uma vez pude contar - esperando
que possa retribuir à altura. À também eterna amiga Eliane Dantas Rocha e à prima e amiga
Juliana Ferreira Veiga pelo apoio editorial. Aos amigos Francisco Telles, Henrique Pedrosa
viabilizou o indispensável fator tempo nos momentos de fechamento desse trabalho. Nesse
mesmo sentido, agradeço também ao Luís Fernando (da UERJ) e ao Danilo Doneda, que
me socorreram com grande presteza, como somente os amigos são capazes de fazer. Ao
meu caro Mauricio Motta e à prezada Cíntia Érica, por todas as “forças” que já deram de
maneira geral. Aos companheiros de turma, de quem o carinho trocado me foi e será
Magna, Marcos e César. Pelo grande companheirismo e pelas frutíferas tertúlias, agradeço
aos colegas Gleide Carolina, Sérgio Castilho e Francisca. Um obrigado especial à Maria da
Ajuda e ao Luís Fernando (da UNIG), pelo empréstimo de livros, bem como ao Pedro
Roberto, pelo empréstimo de material em disquetes e por seu apoio de forma geral,
enquanto amigo. Agradeço ao Fábio, por sua atenciosa leitura e crítica do texto, e por sua
enorme simpatia. Agradeço, ainda, à Nívea Maria Segreto, que me auxiliou com a revisão
ortográfica, o que valeu também como uma revisão de língua portuguesa, bem como à Elza
Rita, que me fez esta preciosa indicação. Meu muito obrigado, por fim, a todos aqueles que
anonimamente ajudaram, rezaram, torceram, e a todos aqueles que por algum lapso de
Agradeço à minha irmã Cristiane e a meu pai Raimundo, que, sendo pessoas
Agradeço com muito amor - e sem controlar a emoção - à Wanderléia, por tudo
que tem sido para mim, porque tudo que faz tem em vista preservar e fazer crescer o
VIII
sentimento que existe entre nós. Por isso, ela é uma salvaguarda de nossa família e uma das
Por fim, agradeço à minha mãe, Emília, para quem toda palavra é pouca, todo
carinho é pouco. Suas contribuições foram tantas que dizê-las é perigar esquecer algumas e
não reconhecer outras que somente a mãe pode o saber. Obrigado mãe, não por hoje e não
Comi-o.”
RESUMO
concepções e práticas se configuram enquanto direitos sobre o solo. A análise adota como
cenário a cidade, tomada como uma instituição social, e parte daquelas concepções-práticas
que vêem na propriedade um bem, ou valor, de uso e consumo, chegando às outras que
enxergam nela uma mercadoria, ou um bem de troca. No bojo do debate entre estas duas
uso.
transformações, o que por sua vez nos leva a cogitar das conseqüências desta
propriedade
XI
terra, fator entendido como condição sine qua non a reparação das adversas condições de
subsistência de amplas camadas sociais brasileiras, bem como a consecução dos objetivos
ABSTRACT
about the property of land, whilst analyzing some conceptions and practices concerning this
property and approaching the respective juridical expressions, or how those conceptions
and practices represent the legal rights on the land. This analysis uses as its scenery the city,
taken as a social institution, going from those practical conceptions that see the property as
a good for use and consumption, to those that regard it as a merchandise. In the heart of
this debate between this two opposing representations, we approach this notion of the
property’s social function. It is the outcome of law and our modern industrial society, even
society, the vicissitudes of its’ social making, and the kind of society historically
consolidates itself there, always evoking the contextualization of this process in the dynamic
between the tenure, predominantly private, with the purposes of its social function. This
entangles the submission of the concept of property to a lot of changes, what makes us
consider the consequences of this change in other institutions and juridical concepts, and
also the juridical culture in general. The doctrinaire exposition concerning the social
function of property gives more importance to the understanding of this one in the level of
the juridical relations essentially private, which have a great interest to the author, and in
which we see a lot of obstacles to its perfect applicability and effectiveness. Thus, we will
to the land, which is taken as a condition sine qua non for the compensation of the poor
XIII
living conditions for most part of the social strata in Brazil, and also the accomplishment of
the purposes of democracy and emancipation expressed in its federal constitution alive
nowadays.
XIV
SUMÁRIO
Introdução p. 01
Capítulo 1 Da categoria ‘Função’ no discurso científico p. 07
Capítulo 2 A propriedade no processo de diferenciação campo-cidade p. 15
capitalista p. 64
Capítulo 3 A formação social brasileira e a propriedade p. 79
mercadorias p. 116
propriedade p. 199
INTRODUÇÃO
expulsão, buscando, em última análise, a regularização jurídica das frações de terra por
respectivos pedidos com base na função social da propriedade. Deparamos, então, com
direito positivo, às situações e conflitos concretamente vividos. Daí as razões tanto para
a escolha do tema como para o privilégio conferido ao estudo dos efeitos do dispositivo
jurídico da função social no campo do direito civil, isto é, das relações classificadas
julgávamos possuir, mas sim adquirir maior domínio teórico da questão, percorrendo,
que trazíamos conosco. Assim, surge o presente trabalho de uma pesquisa bibliográfica a
histórico, enquanto, no caso da primeira, iniciou-se pelo aspecto histórico, para por fim
chegar ao especificamente doutrinário. Claro é, para nós, que um aspecto não pode nem
conhecimento que retiraria qualquer validade ao saber assim constituído. Até por isso,
pondo-os em íntimo diálogo. Aliás, acreditamos ser esse um aspecto que realizamos com
grande dose de naturalidade, dado que o mesmo faz parte de nossas características de
trabalho e convicções científicas. Não obstante, nada disso significa diluir um momento
histórico e doutrinário possuem suas especificidades que valem a pena ser exploradas e
lugar, tratamos a história como o plano das relações sociais, como aquilo que é capaz de
reconhecida por Marx, entendendo todas as restantes como decorrência daquela, que
seria para elas a matriz. O aspecto histórico é, para nós, aquele onde se enseja a visão
tal ciência, e como o único capaz de distingui-la de outras. De nossa parte, recusamos tal
perspectiva. Não nos parece suficiente falar do direito abstratamente, abordando aquilo
que formalmente define-se como relações jurídicas olvidando-se que estas são,
representa um dos saberes possíveis e necessários a respeito do direito, mas não é todo o
saber ou a ciência do direito. Uma ciência que a isto se reduza, segundo alguns autores 1,
como menos útil para a sociedade. Assim, impõe-se historicizar o saber jurídico,
constituíam algo externo à ciência jurídica - de maneira talvez análoga a como hoje
campo. Fazemos esta escolha seguindo a conveniência ditada não só por ser o Direito
também pelos fatos que justificam a própria existência desse curso. Conforme pudemos
perceber com mais clareza na pesquisa realizada, e que buscamos traduzir ao longo do
trabalho, a cidade significa o locus de todos os problemas que afligem o ser humano
tomado como ser social, bem como a fonte das questões de grande envergadura às quais
1
A exemplo de EHRLICH, Eugen. Fundamentos de Sociologia do Direito. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1986. p. 373-388. Vide ainda MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A
ciência do direito; conceito, objeto e método. Rio de Janeiro, Forense, 1982. p. 98-157.
2
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984. p. 109-162.
4
civilização, servindo aquela para definir estas. Por sua abrangência, por seu caráter de
síntese, por sua indiscutível relevância social e teórica, escolhemos a cidade como o
interesses não do dominus particular, mas sim da coletividade. Julgamos ter demonstrado
3, bem como a ‘espécie’ que a positivação da função social causa à grande parte da
trabalho de vocação prática mas sim teórica, como acreditamos ser mais próprio à
produção científica em seu sentido estrito. Tal se justifica até porque os problemas
5
resolvidos sequer pelos mais festejados doutrinadores, bem como pela própria
que estritamente buscar respondê-las. Julgamos que desta forma também contribuímos, e
míope dos problemas, não se colocando, pois, a altura dos mesmos. Queremos, antes de
tudo, cumprir esta preliminar condição, qual seja, a de nos colocarmos a altura dos
que não se contém o mesmo no plano científico, mas insere-se claramente no terreno
nos consideramos firmemente engajados em tal tarefa. Nesse sentido, o trabalho arrisca
algumas teses, firma, aqui e acolá, algumas posições, e fornece, cautelosamente, pistas
ao trabalho de natureza prática. Vez que sua origem última está vinculada a indagações
formuladas não pela teoria, mas pela história - como acreditamos que deva ser -, a esta
história este trabalho está disposto a voltar. Imaginamos que isto seja feito naquele
espírito tão bem definido por Henri Lefebvre. Para ele, o arquiteto, o urbanista, o
capazes de tirar o coelho da cartola, extraindo do nada e por decreto novas relações e
formas sociais, novas civilizações. Isto faz parte dos mitos legados pelo período
3
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991, p. 107-108.
7
CAPÍTULO 1
A primeira acepção do termo função foi por nós localizada em Platão, onde
obedecendo todas as relações de dependência a uma certa regularidade 4 5. Sem tal noção,
preliminar conceito.
Mas há, ainda, outra acepção do termo presente na obra aristotélica. Decorre
ela de uma outra categoria ou idéia fundamental presente em toda a filosofia e cultura
conhecimento não tinha operado a distinção, hoje conhecida, entre natureza e sociedade,
cunhando uma categoria própria para designar esta última, de maneira inconfundível em
objetivo”6; tudo retorna à natureza, havendo, pois, uma ordem natural das coisas, que
corresponde ao cumprimento, por qualquer coisa ou ser existente, dos objetivos ou fins -
o telos - para os quais existe, isto é, de sua função. Há uma cognição do universo que
4
Assim, por exemplo, a uma maior força corresponde um maior efeito, e cessada essa mesma força os
seus efeitos também cessarão.
5
FERRATER MORA, José. Función. In: ___ . Diccionario de filosofia. Madrid: Alianza Editorial,
1988. v. 2, p. 1297.
6
ARISTÓTELES. A política. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s.d. Tradução de Nestor Silveira Chaves.
p. 19
8
função para tudo. Nisto consiste a teleologia aristotélica, que se interroga a todo
momento sobre o telos de cada fenômeno, de cada parte da natureza. Nas palavras do
próprio autor:
que elas percam suas características, já não se poderá dizer que sejam as
existência, não realizarem o fim ou não desempenharem as funções que justificam sua
existência. Trata isto, no entanto, como uma discrepância, como algo antinatural, pois a
cultura grega antiga o entendimento de que a forma nada diz e nada garante a respeito
do conteúdo, sendo, pois, imbuída de uma racionalidade que Max Weber classificaria
como material.
função em sua acepção moderna, e mais estrita, que é a de equação funcional, onde
função aparece como uma constante que expressa a relação de duas quantidades
e da Matemática.
No domínio particular das ciências sociais, onde consta que foi introduzido
7
op. cit. p. 19.
8
FERRATER MORA, José. op. cit. p. 1298-1299.
9
orgânica, em suas duas expressões, encontra-se sob uma lei - um ‘ter que’, um ‘dever
ser’ - inconsciente e não livre, porém claro e conveniente para a razão. Mesmo
reconhecendo as importantes diferenças entre um e outro, os adeptos dessa tese (que não
foram poucos, nem insignificantes11) afirmam que a sociedade não é mais que a
organismo social comparece, também, com várias nuanças, desde a Filosofia grega da
no pensamento medieval.
aludida, estando um e outro bastante imbricados. Se seria simplificador supor, aqui, uma
mera continuidade da teleologia aristotélica, de outro lado, seria equivocado não ver
9
CASADO, Javier Pascual. Biologismo. In: DICIONÁRIO de Ciências Sociais. 2. ed. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1987. p. 124-125.
10
LOPÉZ, Francisco Sánchez. Organismo social. In: DICIONÁRIO ... cit.. p. 842-3.
11
Dentre os nomes mais citados na bibliografia consultada encontramos, dentre outros, Summer Maine,
F. Tönnies, Auguste Comte, E. Dürkheim, R. Redfield, Radcliffe-Brown, Tylor, Morgan, sem falar
naquele que é considerado o mais proeminente representante desta teoria: Herbert Spencer.
12
CASADO. op. cit. p. 125.
10
nenhuma relação entre ambas. Cada membro ou unidade (ou ainda indivíduo) de uma
sociedade não tem como existir fora do corpo, pois está ligado por uma relação
inextrincável, e, pertencendo ao corpo, possui nele um papel que somente este membro
individualismo na análise social, já que em tal análise vale-se aquele da idéia fundante de
sistema, reconhecendo, pois, que a vida em conjunto não se reduz à vida de cada
face ao indivíduo, embora não seja inteiramente independente deste. Assim, uma vez que
de propriedade.
conta que certas realidades podem ser compreendidas primeiramente em virtude de suas
funções, que são, às vezes, equiparadas aos fins em vista dos quais operam.14
temos um sentido do termo do qual nos ocupamos que mais se aproxima do sentido que
13
EISTER, Allan W. Função. In: DICIONÁRIO ... cit. p. 500-501.
14
Conforme FERRATER MORA. op. cit. p. 1300.
11
o mesmo adquirirá na ciência jurídica, sendo útil assim na reconstituição de seu marco de
origem. Tal autor fala da função sociológica quando “relaciona uma instituição social
e do conceito de função, vai através dele estudar a contribuição que uma atividade
parcial dá à atividade total da qual faz parte, em outras palavras, a relação entre um fato
analogia orgânica representa aí não uma descrição ou definição precisa, mas sim uma
duas instâncias em questão, sendo comuns muitos dos problemas que se oferecem às
15
MACEDO, Silvio de. Função. In: ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977.
Organizada por Rubens Limongi França. v. 38, p. 482.
16
Conforme EISTER. op. cit. p. 500-501.
17
Conforme CASADO. op. cit. p. 125 e fulano. op. cit. p. 841.
12
realiza; algo define-se enquanto opera de uma dada forma. Ao nível do pensamento,
portanto, conforme a clara lição de Ferrater Mora 18, não há razão para concebermos a
dizer, independentemente de suas funções, posto que estas são constitutivas daquela.
realidade, sem concessões a qualquer tipo de essencialismo a priori. Até o século XVIII,
emerge como a maior tradução, o papel da ciência era apenas classificatório e, portanto,
estático por definição, não sendo capaz de absorver o dinamismo embutido na noção de
função. Não está, dessa forma, plasmado pela aludida concepção de devir, isto é, de que
agir (ajo de tal forma para tornar-me proprietário). Aplicado ao direito de propriedade,
assim, o conceito leva a que o mesmo não mais se autojustifica, nem se justifica
18
op. cit. p. 1300-1301.
13
poderes exercitáveis pelo encarregado de uma função são instrumentais ao alcance das
aludidas finalidades, sem os quais não poderia ele desincumbir-se de seu dever. Eles são
Há, pois, uma sujeição do poder, e não uma limitação ao mesmo, vez que estas não
seriam naturais, mas circunstanciais a ele - trata-se de uma distinção que consideramos
e que será desenvolvido no respectivo capítulo. Na verdade, o que existe de fato não são
funções em matérias de Direito Privado, já que esse ramo do Direito é orientado pelo
relações civis um conceito de Direito Público-Administrativo, o que fará com o que uma
19
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo:
Malheiros, 1996. p. 29 e 55.
14
série de princípios e regras próprios deste também forçosamente o sejam, sendo, assim,
CAPÍTULO 2
Nas cidades o ser humano não meramente ocupa um espaço, não apenas
mora nas cidades, mas nesse espaço cria-se um determinado ambiente sociocultural. Ao
humano de maneira geral. O homem concreto das urbes “quer determinar-se de alguma
tecido urbano é o suporte de um modus vivendi específico, que pode ser designado por
sociedade urbana. Para Henri Lefebvre, semelhante modo de viver comporta sistemas de
cidade”.21
uma das primeiras e mais importantes reflexões sistemáticas sobre a cidade que chegaram
até os dias de hoje, e que, evidentemente, se inspira na singular realidade histórica das
que alguns consideram fundadores da ciência política como o ponto de partida para o
Desde a civilização grega da Antigüidade, que tem como sua expressão mais
aglomerado humano, dado que apenas aquela demarca algo orgânico e civilizador, cujo
surgimento supõe motivos cívicos que justificam e dão sentido à existência do grupo e à
sua vida em comum. Embora habitar o mesmo lugar seja condição necessária para que
uma cidade exista, não é ela o elemento distintivo ou a característica essencial da cidade,
mas apenas a sua forma. Assim, a cidade pressupõe uma comunidade de indivíduos,
como tudo no reino da natureza, a cidade também tem, forçosamente, a sua teleologia.
um bem absoluto, um bem em si valioso; algo, pois, que vai além de fatores utilitários ou
circunstanciais como seguir às mesmas leis, promover a defesa formando uma aliança
militar ou incentivar o comércio formando uma rede de trocas. Estes configuram bens
relativos ou instrumentais, isto é, dependentes das finalidades que mediante eles se deseje
viver se quiser ser homem. A não ser por força de alguma circunstância inibidora, como
uma pena a ele imposta, nenhum homem pode, voluntariamente, subsistir fora da cidade,
mas somente um ser ou muito vil - um bruto - ou muito superior - um deus. No primeiro
23
ARISTÓTELES. op. cit. p. 121.
24
op. cit. p. 106.
25
op. cit. p. 120.
17
caso, tal indivíduo mereceria a censura de um ser “sem família, sem leis, sem lar”.26 O
homem é, pois, zoon politikón em vista de que somente se constitui, se forma, como tal,
“Não tem edifícios públicos, nem teatro, nem ágora, nem água de fonte, e
seus membros.
à administração das coisas que dizem respeito aos homens, e não às coisas inanimadas.
Ela não existe para um mero ‘viver’, mas se forma tendo por alvo o ‘bem viver’ humano,
almejando dar-lhe uma vida feliz, pois só assim a cidade será valorizada e respeitada por
seus membros. Em suma, “o homem só trabalha pelo que ele tem na conta de um
26
ARISTÓTELES. op. cit. p. 18-19.
27
FINLEY, Moses. A economia antiga. 2. ed. Porto: Afrontamento, 1986. p. 172.
28
ARISTÓTELES. op. cit. p. 19.
29
ARISTÓTELES. op. cit. p. 15.
30
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 89.
18
civilização grega. Configura-se, ainda, uma pioneira análise da cidade com base na
Dado o significado da cidade bem como o papel, ou função, que cabe a ela
realizar, decorre que a cidade é mais importante que seus entes constitutivos, ou seja, há
um privilégio do público sobre o privado. Nesse sentido, lembra Lefebvre que apenas a
cidade, como tal, possuía liberdade, não os seus indivíduos e grupos. 32 No entanto, os
aos moldes de uma horda primitiva, na forma definida por Durkheim.33 Confere-se e
“O fim para o qual cada ser foi criado é de cada um bastar-se a si mesmo;
entre faculdades e ônus, que será resgatado no pensamento social moderno, chegando
cidadã.
discutida, em algo de mais largo espectro que o reino das utilidades imediatas, não se
fundando numa ratio pragmática, mas diríamos que possuem um caráter mais eterno.
a amizade - esta última entendida no sentido específico conferido por tal autor, isto é,
enquanto um valor político, algo que conduz os homens à vida social, incutindo neles um
conhecimento e um apreço uns pelos outros, de forma que a cidade se torne perfeita. Se
o escopo da cidade é um ‘bem viver’, e não apenas um mero viver, a vida nela deve ser
36
Refere-se Aristóteles às cerca de 158 constituições de cidades gregas e bárbaras, que foram objeto de
minuciosa pesquisa de campo realizada por ele e por seus discípulos - já que não eram formalizadas
como as modernas constituições políticas - bem como de comparação analítica e sistemática, resultando
nas generalizações procedidas em sua obra intitulada “A política”, a que temos nos referido nessa
dissertação. Os dados da pesquisa de Aristóteles são de MACHADO NETO, A. L. Sociologia Jurídica.
6. ed. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 52-53 e 100-101.
37
op. cit. p. 132.
38
op. cit. p. 121.
39
op. cit. p. 121 e 163.
20
natureza, e, por que não dizer, a própria relação homem-homem. Em termos históricos e
sociais, portanto, temos nas cidades não somente uma nova fronteira da ocupação
humana do espaço, ou, simplesmente, uma nova espacialidade, mas, sobretudo, uma
nova espaço-temporalidade.
genuínas cidades gregas não eram maiores que aldeias em população ou área, sendo a
poderosa Esparta um dos melhores exemplos: durante a maior parte de sua história não
contou mais de nove mil cidadãos homens adultos, o que quase nada significava diante
dos cem mil que, à mesma época, já se aglomeravam em Alexandria, Cártago e outras
civilizada. O critério econômico, assim, somente terá sua importância realçada à medida
e de sua função social. Isto porque as cidades, na forma como aqui a tratamos,
Assim, aquilo que se aplica à cidade deve necessariamente se aplicar às suas instituições,
em especial ao direito, uma das mais fundamentais de que uma cidade deve dispor, um
40
Dados de FINLEY. op. cit. p. 38.
21
premissas ora colocadas - e elas, apesar do tempo, preservam muito de seu vigor - um
direito de propriedade que se afaste das premissas aplicáveis à cidade como um todo
leve esse nome, vez que reduzido ao seu aspecto formal, encontrando-se desprovido de
tipo de pacto ou contrato entre elas. Assim, a formação das cidades induz à passagem de
trabalho - o que o mesmo autor designará agora por solidariedade orgânica.41 Nas
41
A primeira forma de solidariedade leva esse nome numa alusão aos elementos homogêneos que
formam os corpos sem vida, enquanto a segunda alude aos elementos diferenciados, estrutural e
funcionalmente, que compõem os seres vivos. Conforme RODRIGUES. op. cit. p. 83 e ss.
42
CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 100.
22
cidade grega, assim como muitas outras posteriores a ela - inclusive aquela que se forma
com aquilo que representaria o estágio original, isto é, ao sistema de integração de tipo
forma, esta hipótese encontra-se na obra de Émile Durkheim, um dos filósofos sociais
hipótese:
43
RODRIGUES. op. cit. p. 109.
23
vida”.44
eixos dessa contradição que marca o desenvolvimento das cidades, a qual, em seu limite,
se, primeiramente, pela tendência ou vetor histórico, que através dele se introduz, no
sentido da dissolução progressiva dos laços de sangue, família, tribo e clã, isto é, das
cidades não podem constituir-se e manter-se sem que tais vínculos tradicionais
pactos e uma integração de tipo orgânico.45 Esta é gerada por diferenciação funcional,
primitivas, vez que na mesma medida que as reforça pela associação mútua, faz com que
a satisfação de suas necessidades cada vez mais dependa das atividades especializadas
realizadas por outros indivíduos e grupos, sendo a recíproca igualmente verdadeira. Uma
44
MUMFORD, Lewis. A cidade na história suas origens, desenvolvimento e perspectivas. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1982. Originalmente editada em 1961.
45
Num indicador da aludida conversão, LOPES (op. cit., p. 11) anota que nos forais das comunas
medievais a defesa da cidade passa a ser colocada prioritariamente em relação à defesa do parente.
46
RODRIGUES. op. cit. p. 102.
24
indivíduos profundamente diferenciados.49 Não há, pois, cidade homogênea, mas sim
sistema de alianças para a vida da cidade, que embora não constituam seu fundamento,
não a definindo de per si, são instrumentos sem os quais não haveria como lograr a
felicidade que identifica a cidade como tal e que constitui o seu fim último. Isto porque é
união das quais a cidade se constitui. As alianças familiares e matrimoniais, portanto, são
que pode nelas então se reproduzir, levando aos sacrifícios comuns e à benevolência
mútua que devem acompanhar a associação política. De outro lado, tanto a cidade como
as fratrias têm o mesmo fim, a felicidade, havendo por isso uma identificação entre
estrutural, que é sentida já na própria polis grega. Nesse sentido, Norberto Bobbio51
reconhecimento, por parte das famílias - desde o ghenos até as tribos, passando pelas
47
RODRIGUES. op. cit. p. 73-79. Tal expressão, aliás, intitula um dos capítulos da clássica obra de
Durkheim, “Da divisão do trabalho social”.
48
op. cit. p. 106-107.
49
Como cidadãos e não cidadãos; senhores, servos e escravos; ricos e pobres; letrados e iletrados; nobres
e plebeus; nacionais e estrangeiros; familiares e desconhecidos.
50
op. cit. p. 121.
51
BONINI, Roberto. Polis. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política. Brasília: Ed. UnB,
1986. p. 949-954.
25
supremacia da polis não significou subtração das funções exercidas pelos organismos
próprios membros, acerca dela, bem como de sua natureza, significado, finalidades e
porém, trata-se de uma cidade que carrega diversos elementos próprios da integração
mecânica, indo buscar no código de valores próprios desta os elementos para forjar uma
ética da cidade.
riqueza53, forma pela qual se refere às atividade com fins lucrativos. 54 Tal crítica decorre
do já mencionado privilégio que confere a administração das coisas que se referem aos
52
FINLEY. op. cit. p. 61.
53
op. cit. p. 36.
54
Nessa categoria ele enquadra atividades como comércio, transporte, usura e trabalho remunerado. op.
cit. p. 32.
26
perfeição a atividade que hoje denominamos empresarial, que administra o capital. Esta
tem empresas e negócios - o próprio capital, enfim - como sujeitos, o lucro por fim, e a
maximização destes lucros por função. Logo, trata-se de uma atividade desumanizada,
pois o homem, enquanto tal, não comparece em nenhum de seus momentos substanciais,
sendo algo de adjetivo nesse processo. Segundo Aristóteles, a vida dedicada ao comércio
possui “qualquer cousa de vil”, não formando “homens justos no sentido absoluto da
diversos privilégios, dentre eles o mais pleno acesso à propriedade do solo. Havia, no
propriedade de capitais, detida por aqueles que não possuíam terra, como comerciantes e
prestamistas. A crítica aristotélica, sem exclusão de outros motivos, parece ser bastante
mais contrária à natureza - logo, é a mais injusta -, já que não é realizada na estrita e
exata proporção das necessidades de cada um, aos moldes da economia familiar, mas
louvável de adquirir riqueza seria aquela que não tem outro fim além da satisfação das
55
op. cit. p. 171.
56
op. cit. p. 61.
27
palavras de Aristóteles percebemos que ele não se refere a outro fenômeno que não o da
formação de capitais, em termos, aliás, não muito diversos dos que Marx utilizará em “O
figurariam:
57
ARISTÓTELES. op. cit. p. 37.
58
Sobre todo este parágrafo, ver ARISTÓTELES. op. cit. p. 31-37 e 171.
59
op. cit. p. 19.
60
FINLEY (op. cit., p. 24) esclarece que embora os antigos praticassem atividades econômicas, estas não
se articulavam no conceito particular e diferenciado de economia, que ora não existe e ora possui sentido
inteiramente diverso nas sociedades pré-capitalistas de maneira geral. Isto porque a atividade que
chamamos econômica era representada de maneira indistinta e inseparável de outras espécies de
atividades, isto é, era ‘encravada’ou ‘embebida’ dessas outras, não representando sistema autônomo.
28
oportunidade que configura o que chamamos especular, em seu sentido mais estrito.
Aristóteles afirmava que “as coisas que se consideram úteis são exatamente aquelas
A ética grega, portanto, embora não possa ser classificada como não
aquisitiva, pois era possível buscar algum nível de riqueza desde que por meios não
artificiais, pode, em face da ética protestante, por exemplo, ser vista como improdutiva,
já que excluía a ideologia do lucro, a dedicação a ele.63 Nessa tábua de valores, o lucro
jamais pode ser um fim, mas apenas um meio, e, sendo assim, seria eternamente
racionalidade material - e não aos meios - o que conformaria uma racionalidade formal,
que somente adiante se desenvolve, tendo a cidade romana participado desta, sobretudo
no campo do Direito.
para nós representa um difícil equilíbrio, como aquele que procura a função social da
urbanização na era antiga acentua essa e outras contradições. Assim, embora louvassem
61
Acreditamos que as mais claras são as referências bíblicas do Antigo Testamento (Pentateuco), nas
quais o narrador associa tais medidas ao advento da escravidão.
62
op. cit. p. 152.
63
FINLEY. op. cit. p. 169.
29
insistiam que a civilização exigia a cidade.64 Além de, como já vimos, limitarem a
próprio conceito antigo de cidade, o qual, conforme Bobbio, Castells e Finley65, abrange
antiga incluía tanto o interior rural - a chora - quanto o centro urbano onde residiam os
comunal.66
formação das cidades, posto que a divisão do trabalho tem por uma de suas precisas
maiores - exemplos nesse sentido foi a própria cidade de Roma que, a partir do momento
em que se converte em cidade imperial, torna-se uma cidade onívora, dada a acentuação
doações, rendas, adjudicações de conquista, dízimos, impostos e tributos, bem como dos
produtos primários e matérias primas que não produzia, tendo por isso que buscá-los em
outras cidades para não desabastecer-se, segundo Finley.67 Dela, teria afirmado Martinho
Lutero ser “o maior ladrão que alguma vez surgiu ou surgirá na face da terra”. Enfim,
“ninguém pretenderá que Roma pagava em produção uma minúscula fração que fosse
da capital política dos Estados nacionais, bem como na própria Igreja Católica.
Analisando a cidade romana, Castells69 afirma que a cidade, em seu marco de origem,
substituídas pelas dominações locais dos senhores feudais, formando-se um vazio nos
bispo.
Dado esse quadro, vemos que abria-se um grande leque nas relações campo-
perda de sua tão acalentada auto-suficiência econômica. De fato, reflete-se nas obras de
Platão e Aristóteles a rígida defesa das vantagens morais da auto-suficiência das cidades
gregas:
Aristóteles que as classes essenciais à cidade eram a dos guerreiros e a dos cidadãos,
admitia que uma cidade não poderia bastar-se a si mesma sem coisas como armas,
69
op. cit. p. 20-21.
70
ARISTÓTELES. op. cit. p. 102 e 162.
31
madeira, metais, sal, especiarias, peles, pedras preciosas, escravos; além de indivíduos
artesãos, professores, além de homens afortunados.71 Era, assim, obrigado a fazer o que
para ele era uma infeliz constatação: a de serem poucas as cidades de fato auto-
suficientes.
predominância da primeira. Isto porque tal pretensão justificava que a associação urbana
que levaria, fatalmente, a subordinação das regiões camponesas necessárias para tanto.
Xenofonte - do século IV a.C. - num texto considerado por Finley como o mais
71
ARISTÓTELES. op. cit. p. 170-173; e FINLEY. op. cit. p. 174-175.
72
op. cit. p. 61.
73
Conforme deduz-se de FINLEY. op. cit. capítulo I, e MUMFORD. op. cit. p. 118-122 e 259-266.
32
basta um para sustentar um homem e por vezes menos que um: por
exemplo, um homem faz sapatos para homem, outro para mulher, há locais
em que um homem ganha a vida só a remendar sapatos, outro a cortá-los,
outro a coser a parte superior, enquanto há outro que não faz nada disso
mas que reúne todas as partes. Necessariamente, aquele que desempenha
uma tarefa muito especializada, fa-la-á melhor”.74
da auto-suficiência das cidades, a qual em poucos casos de fato se deu, embora fosse
relação ao campo, a qual também foi precária, embora igualmente valorizada no campo
ideológico. Por fim, implicação final de todo o processo, produz uma dominação do
seu provimento material, fazendo cultivar seus campos por servos e escravos. Dessa
além de produzir o necessário para si, produza para o consumo das classes não
produtoras em troca dos serviços, reais ou imaginários, que esta oferece. Supõe, pois,
que a economia não limite-se à economia de subsistência, o que levaria a supor que a
status oculta a consciência de classe”.79 Assim, embora nas sociedades de baixa divisão
equivalente, subsiste uma hierarquização social, que começa na própria estrutura familiar
Aristóteles.80 De outro lado, no entanto, não há como negar que nas economias urbanas
estratificação social, sendo, aliás, esse o contexto em que o termo classe social é mais
forma, deve ser feito com bastante cuidado, no sentido de não se naturalizar os
complexos fenômenos sociais em questão. Assim, embora não seja dela exclusiva, a
economia urbana é aquela que se tipifica pela estrutura de classes, nela visualizando-se
alienação.83
Por fim, o último aspecto a ser mencionado dentro da contradição que nos
justiça patriarcal e/ou tribal. Quanto mais aprofundada a primazia do público sobre o
clânicos e tribais.
83
MARX, Karl. O capital; crítica da economia política. 11. ed. São Paulo: Difel, 1987. v. 2, p. 664-
665.
84
GARMENDIA, José A. Ação Direta. In: DICIONÁRIO de Ciências Sociais. cit. p. 10. Aplicamos,
aqui, esta categoria a um outro contexto. Ela surge na tradição sociológica bem como no discurso
político moderno, para designar movimentos sociais que se propõem atingir pelos próprios meios e
esforços - isto é, diretamente - determinado objetivo. Trata-se de um método de ação que não recorre às
instâncias políticas, às vias institucionais, para obter os resultados pretendidos. Uma certa dose de
violência é, pois, ingrediente forçoso da ação direta, a qual, no entanto, é justificada por seus autores em
função da “iniludível necessidade de agir” (op. cit., p. 10).
35
uma justiça e uma administração cujo funcionamento possa, ao menos em princípio, ser
- conhecidas na história, o Império passa a organizar a vida social sob critérios mais
relação aos preceitos religiosos ou morais, assinalando que direito e moral compõem
indivíduo por burocracias, aprisionadoras, por definição, de todas as áreas da vida social,
produz, por si mesmo, tudo o que utiliza enquanto unidade, e fundando exatamente nisso
85
WEBER, Max. História geral da economia. São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 297-307.
86
GASSEN, Valcir. A natureza histórica da instituição do direito de propriedade. In: WOLKMER,
Antonio Carlos. Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 75.
87
Conforme ARRUDA JR., Edmundo Lima de (org). Max Weber: direito e modernidade. Florianópolis:
Letras Contemporâneas, 1996. p. 92 e ss.
36
estágios, um direito racional, isto é, uma racionalidade jurídica de caráter formal.88 Nesse
processo ocorre uma mudança da mesma ordem daquela ocorrida em relação à atividade
de fins lucrativos, isto é, os meios convertem-se em fins e os fins originais como que
desaparecem, esvaem-se, continuam a ser princípios mas sem o poder vinculante de que
implicando numa ação definida por processos lógicos, a partir de premissas válidas. Tal
coisificada por parte dos aparatos burocráticos, atribuindo a estes a dignidade universal
cidade já estudadas. Em vista disso, leva sempre em conta fatores que, à luz da clivagem
racionalidades - que de outro lado não é exclusividade do campo jurídico, mas de certa
88
Razão instrumental no dizer dos teóricos da Escola de Frankfurt, ou razão funcional no dizer de
Mannheim, ou, simplesmente, razão (ou racionalidade) orientada a fins na expressão original de
Weber. Registra-se, ainda, na literatura, os termos razão formal e razão objetiva, para designar idêntico
conteúdo. Há, também, a expressão racionalidade tecnológica, cunhada por Marcuse. Conforme
ARRUDA JR. op. cit. p. 32.
89
WEBER. op. cit. p. 297-307.
90
Razão (ou racionalidade) orientada a valores, ou, simplesmente, racionalidade material nos termos
de Weber, ou, ainda, racionalidade substancial no dizer de Mannheim, seguida por racionalidade
subjetiva em Lowy. Conforme ARRUDA JR. op. cit. p. 35.
91
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. p.
184-185.
37
forma é universal - produz o dilema cósmico no qual a ciência jurídica até hoje se debate,
implicações jurídicas que procuraremos situar a questão da propriedade, bem como a sua
sustentando Marx e Engels que são as transformações em suas formas que, basicamente,
cidades, o problema da partilha das riquezas socialmente produzidas vai ser recolocado,
formas de solidariedade. Dessa instituição nos ocuparemos, de maneira mais detida, nas
seções seguintes.
- como toda cidade também o é. Este se esboçou durante o Império Romano, foi de
92
GASSEN. op. cit. p. 79.
93
FINE, Ben. Propriedade fundiária e renda da terra. In: BOTTOMORE, Tom (org). Dicionário do
pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. p. 304.
94
LEFEBVRE. op. cit. p. 31.
38
recolocarão num novo patamar, dado que se, como imaginava Hegel, “todos os fatos de
grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes”,
acrescentou Marx que a primeira ocorreria como tragédia, e a segunda como farsa, isto
determinado(s) bem(ns) de forma a fazê-lo dizer ‘isto é méu; é como parte de mim
próprio’.96 Tanto não se aplica a todos os tipos de sociedades, como não se aplica a
todos os tipos de objeto. Do mesmo modo, não existiu sempre da mesma forma, não
existindo em relação aos frutos da terra ou então aos animais. Em alguns desses, mesmo
momento fixava-se a cada indivíduo ou família um diferente lote de terra para as suas
no tocante ao nível coletivo de consumo e riqueza, parece ser a partilha, realizada num
contexto social seja de penúria, seja de abundância, situação usualmente designada por
de cultivo, rotas e pastagens - são possuídos em comum. Tal fato é explicado por
Durkheim como produto necessário de uma espécie de sistema de integração social que
plano dos fatos, quer no plano do sentimento ou imaginário social, fator este que
uma determinada gente. Como veremos, a concepção de propriedade construída por esse
vários pontos, porém, em alguns casos de maneira inapropriada, ao nosso ver. Assim, o
Cada família101 possuía o seu deus, o seu altar doméstico, sobre o qual se
99
RODRIGUES. op. cit. 88.
100
op. cit. p. 88-89.
101
Cabe lembrar que o termo ‘família’, neste caso, refere-se a uma estrutura social mais complexa e mais
abrangente, envolvendo grupos de até três mil pessoas; bastante diferenciada, portanto, da família
40
colocava o símbolo religioso que era o seu fogo, além de seus mortos e antepassados. A
devoção mantida por cada família era exclusiva, isto é, somente ela poderia adorar ao
seu deus, até porque este liga-se aos antepassados da família, bem como aos que
futuramente virão, sendo pois impossível e sem sentido que alguém preste culto ao
passado que não lhe pertence. De outro lado, sendo exclusivos de cada família, os
diversos cultos não poderiam confundir-se, vez que representam divindades distintas,
que não se unem nem mesmo quando duas famílias o fazem. Tal exigência impunha a
clara demarcação dos termos de cada propriedade, bem como de uma certa distância102
entre as casas impedindo-se em absoluto que as mesmas se tocassem e que o culto alheio
eram considerados sagrados e, até por isso, eternos, não podendo ser deslocados. Por
fim, o culto aos antepassados era feito na própria casa, que era o local onde os mesmos
se encontravam sepultados - cada gleba familiar dispunha de um lote de terra para tanto -
deixavam, pelo fato da morte, de integrar a comunidade familiar - a qual adquiria, neste
condições terrenas.103 Coulanges cita inúmeras fontes históricas que atestam que “o uso
antigo era enterrar os mortos não nos cemitérios ou à borda de uma estrada, mas no
campo de cada família”.104 A regra para o túmulo era idêntica à regra vigente para o
fogo, para o deus, para o culto: não se permitia juntar duas famílias na mesma sepultura.
crenças e valores, faz com que estes adquiram uma intensidade particularmente maior,
vale dizer, um caráter religioso, o qual marcará, de resto, toda a vida psíquica do grupo.
Ora, uma vida familiar e religiosa assim organizada não somente supõe um
apropriação da terra, conforme Coulanges “o lar toma posse do solo; tornou sua esta
tendo os seus deuses e o seu culto, devia ter também o seu lugar particular na terra, o
seu domicílio isolado, a sua propriedade”.106 Consagra-se, desse modo, a família como
não lhe conferia maior valor do que à coletividade representada pela família, cuja
projeção ampliada no plano político seria a Polis. Aquilo que era fundamental à família
não poderia tocar a um de seus membros, mas somente à totalidade, da mesma maneira
compunham estruturas cujos membros são absolutamente indistinguíveis uns dos outros,
amplamente instituída a figura do chefe, autoridade central que encarna o tipo coletivo,
105
Sobre todo o parágrafo, ver RODRIGUES. op. cit. p. 76 e ss.
106
COULANGES. op. cit. p. 89 e 92.
42
totalidade, mas sim àquilo que é a sua imagem. Desse modo, a propriedade da terra, que
entanto, não pertencia a este de maneira individual, mas era administrada por ele
enquanto direito familiar, já que esta transformação não tem um caráter de dissolução da
afirmação de José Reinaldo de Lima Lopes, segundo a qual nesse sistema “não há
diferença entre o nível de consumo e riqueza do chefe e de seu servo”.107 Tal dissolução,
que liga o indivíduo ao chefe é idêntico àquele que liga a coisa à pessoa, ou um objeto
contrário. Resulta daí a não diferenciação dos direitos pessoais em relação aos direitos
seu caráter dominante, que é antes holista do que individualista. Assim, tal propriedade
não pode ser classificada como instituto de direito real e/ou civil.108
outra gleba, o que é material e religiosamente difícil, já que não é fácil transportar o altar,
bem como na terra estão depositados para sempre os antepassados familiares, tendo,
ainda, se dado sobre ela toda a história do grupo. Assim, não só não pode o chefe da
107
LOPES. op. cit. p. 11.
108
Sobre todo o parágrafo, ver RODRIGUES. op. cit. p. 76 e 89.
43
família aliená-la voluntariamente, como não pode dar-lhe outra destinação que não a
traçada pela religião. Em sua vasta pesquisa das constituições do mundo grego,
Aristóteles verifica que as cidades em geral proibiam a venda das terras. 109 Escritos do
ano 110 d.C. a respeito de missões oficiais do Império Romano na Ásia Menor
verificaram a não disponibilidade de terras para compra. 110 Outrossim, a propriedade não
responde por dívidas, mas apenas o corpo do devedor. No antigo direito das cidades
helênicas, não se conhecia a expropriação por dívidas e muito pouco a hipoteca. A Lei
das XII Tábuas, embora não poupasse o devedor, não permitia o confisco da
base em que conclui Gassen112 que era bem mais fácil escravizar um homem do que
extrema necessidade, como expulsão por inimigo, doença ou se a família não fosse capaz
impiedade, pois viola-se o culto doméstico, ofende-se o deus abrigado nesta casa;
homem dificilmente podia desapossar-se de sua terra, “com maior razão o não deviam
despojar dela, contra a sua vontade”. Não se admitia, assim, expropriação por ato de
109
op. cit. p. 102-103.
110
FINLEY. op. cit. p. 164.
111
FUSTEL DE COULANGES. op. cit. p. 104-105.
112
op. cit. p. 78.
44
essencialmente para a subsistência, que não tem paralelo possível com a exploração
de lucros, não lhes padronizava o comportamento o fato de viverem dos lucros extraídos
da terra, atitude que somente aparece com o empresário capitalista. Há, pois, várias
formas de explorar a terra, não se podendo supor que delas tenham sucedido e seguido
não se estabelece, assim, qualquer tipo de mercado de terras. 114 O investimento em terras
autônomo de sociedade. O uso da terra, pois, haveria de manter o equilíbrio natural, pois
“[...] pela natureza todas as coisas recebem o seu alimento da sua mãe e da mesma
113
Sobre todo o parágrafo, ver FUSTEL DE COULANGES. op. cit. p. 104-105.
114
FINLEY. op. cit. p. 9, 163 e 266.
115
op. cit. p. 24 e 162.
116
FINLEY. op. cit. p. 169.
45
somente cedendo, se bem que não por completo, ao avanço da economia de mercado.
Temos, de outro lado, vários embriões de modernos institutos civis e até constitucionais.
concepção de cidade reinante, havendo, por isso, uma certa publicização dos mesmos.
“propriedade é uma palavra que deve ser entendida como parte: a parte
ainda, que ele deseja avançar em relação à própria vinculação da propriedade à família e
não a algum (ou alguns) ente definido desta, vez que essa não deixaria de ser uma forma
117
op. cit. p. 22. Grifo nosso.
118
ARISTÓTELES. op. cit. p. 10 e 174.
46
propriedade pertenceria efetivamente “àqueles que morreram e aos que estão para
nascer”119 120
. Esta diferença pode, de fato, estar a demonstrar dois momentos distintos
tanto os poderes quanto os deveres do titular da terra têm esta mesma ascendência.
imposição de normas de conduta. Não que a lei não pudesse dispor a respeito; de fato a
legislação da época o fez, mas segundo o espírito dominante nas leis daquele período: o
de ratificar aquilo que já era um fato social pretérito. Temos, então, que a relação entre a
“direito de propriedade [...] muito mais completo e absoluto nos seus efeitos, do que
pode ser nas sociedades modernas, em que é fundado noutros princípios”.122 As leis
119
ARISTÓTELES. op. cit. p. 103.
120
Importante registrar que o uso dos bens hoje existentes, tendo em vista as gerações futuras, é um dos
princípios consagrados no debate contemporâneo a respeito do chamado desenvolvimento sustentável.
121
WEBER, Max. Economia y sociedad. Ciudad do Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1992.
122
FUSTEL DE COULANGES. op. cit. p. 102.
47
pelas quais os antigos garantiam uma propriedade determinada é, pois, diversa daquelas
analisados desde uma perspectiva sacral. Embora tenham desaparecido os ônus religiosos
e familiares que sobre ela pesavam, não desapareceu, de outro lado, uma certa ideologia
tal, ora pela forma mais racionalizada de dizê-lo um direito ou uma exigência natural e
intrínseca do ser humano, como se o mesmo fora criado com a concepção burguesa de
transformações na sociedade antiga, que se iniciara seis ou sete séculos antes de seu
mundo ocidental, o fim da sociedade antiga com sua religiosidade pagã, levando à
grandes templos existentes nas cidades. Desfaz-se, pois, o isolamento exigido pela
cidade e pelas novas formas de coesão que nela se deveriam estabelecer. 124 Nesse
sentido, percebe-se uma flexibilização dos princípios reitores da propriedade, posto que,
123
Termo a que recorro em seu sentido mais neutro e rigoroso, desprovido de qualquer juízo de mérito
sobre quaisquer das expressões religiosas em questão, o que, além de subjetivismo incompatível com o
trabalho científico, representaria postura claramente evolucionista.
124
Conforme GASSEN. op. cit. p. 78.
48
paulatinamente, perdem sentido aquelas normas a seu respeito que mantivessem alguma
relação com o sistema religioso familiar. Coulanges125 nos fornece, a esse respeito, alguns
importantes exemplos:
águas na história desse instituto, já que, assim, liberou-se a terra das funções familiares e
como o primeiro pré-requisito colocado à futura revalorização deste bem, onde passaria
um mercado de terras.
mais clareza durante o período medieval, até chegar a posição dominante com a
de, sem perder seu caráter político, ter sido principalmente uma cidade comercial,
Império Romano ocidental, ocorrida no século V da era cristã.128 Com tais expansões, os
bancário e creditício - onde destaca-se a Península Itálica.131 Motivados por todos esses
de um termo considerado mais exato do que ‘economia de mercado’, usualmente utilizado, de maneira
errônea, para designar a economia capitalista. Nesse sentido, ROSSETTI, José Paschoal et al. Economia
de mercado: fundamentos, falácias e valores . Rio de Janeiro: IBMEC/CODIMEC, 1985. p. 28 e ss.
127
COMÉRCIO. In: LOYN, Henry R.(org). Dicionário da idade média . 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1997. p. 99-100.
128
CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. História econômica da América Latina. 3. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1988. p. 10
129
CASTELLS. op. cit. p. 21. Conforme a mesma fonte, a ideologia do pertencimento à cidade, que já
existira no período greco-romano, encontra então um novo momento de enraizar-se, prolongando-se até
a cidade industrial.
130
Conforme LEFEBVRE. op. cit. p. 4.
131
COMÉRCIO. op. cit. p. 99-100.
132
MUMFORD. op. cit. p. 445 e ss.
133
COMÉRCIO. op. cit. p. 99 e ss, e 144 e ss.
50
formação de uma ética do mercado, o que também se inicia nesse período. Por esta,
século XVIII, Adam Smith emancipa a ciência econômica ao separá-la da filosofia moral.
Tal fato, pertencente ao mundo das idéias e do saber científico, acompanha aquela
mudança que há algum tempo vinha se processando no plano histórico, onde se constitui
uma vida econômica (o comércio, o afã de lucro) como sistema diferenciado da vida em
sociedade, deixando de ser um capítulo de outras atividades urbanas, embora, para isso,
termo ‘feira’ quanto a atividade material nesta realizada provém de matriz religiosa,
muitas vezes adotando nomes de santos, que eram como seus protetores, e ocorrendo
em dias festivos da Igreja, isto é, em feriados - do latim feriae, que significava dia de
instância, isto é, deixa de estar em função de fins superiores, mas passa a ser um fim em
si mesmo. Mumford vai além, afirmando que surge então “uma nova espécie de ordem
atividades”.136 A atividade que objetivava lucro deixa, pois, de assumir aquele caráter de
tornando-se algo de ordinário na vida das cidades, a tal ponto de não mais caber falar-se
em dia especial de feira, já que todos os dias são dias de feira. O comprar e o vender
livre exercício de profissões, dentre outras, bem como as garantias que cercam os
conforme já expusemos, pode ser tomada como matriz de todo o sistema social. Nesta
existência, aquilo que definiria sua razão de ser. Aqui, visualiza-se concretamente o que
solvente químico dado o nível em que desfez as instituições históricas e suas edificações.
De locus da civilização, a cidade passa a ser encarada como praça mercantil cujo sentido
em tais negócios, levando-a a se esquecer completamente daquilo que tinham sido sua
passa-se a expansão sem propósito e sem limite, pois a economia que se expande
137
MUMFORD. op. cit. p. 471.
138
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 9. ed. São Paulo: Pioneira, 1994. 233
p.
139
op. cit. p. 448.
52
dedicada aos lucros não dispõe das limitações internas próprias da economia voltada a
satisfação das necessidades da vida - oposição que permeia toda a abordagem que
Mumford faz das transformações que conduzem a cidade moderna, que ele vai
prevenir-se. Sabedora de que “nada existe que não possa tornar-se objeto de uma
troca”142, temiam que a sua polis não constituísse mais que um mero aglomerado
humano e de edifícios, ambos reificados, isto é, não vistos senão como meios de
urbana tal como estruturada desde a cidade política, sendo reestruturada numa base que
não possui qualquer fim ou função definível além de sua própria expansão. As plantas
urbanas passam, então, a ser realizadas segundo a finalidade básica de obter o máximo
planos tanto horizontal quanto vertical.144 Paulatinamente, a cidade deixa de ser tratada
como uma instituição pública, chegando ao século XIX como “uma aventura comercial
período de dois a três séculos em que se manteve a vigilância de todo o conjunto urbano
no sentido de um bem público, uma das felizes heranças deixadas pela economia
exclusivo, subsistindo misturado a instituições mais antigas e sendo colorido por elas. A
ainda sobreviventes, cidades como Londres e Berlim escaparam por muito tempo dos
imobiliária e a conseqüente elevação dos valores da terra e dos aluguéis. A terra feudal,
concedida por prazos de 99 ou de 999 anos - por várias gerações, portanto -, favorecia a
produto como outro qualquer, cuja compra e venda é ilimitada. Converte-se em simples
mercadoria, sendo o valor de mercado o seu ‘único’ valor. Aliás, antes disso, é
necessário dizer que é em tal momento histórico que surge, ou amplia-se, a possibilidade
de superpopulação e insalubridade nas moradias por estas obtidas, o que foi objeto de
escritos de diversos autores a partir do final do século XVIII. Dentre eles, destacamos
aqueles que se notabilizaram por dar início, na primeira metade do século XIX, a
segundo novas relações econômicas e sociais, vindo por isso a ser reconhecidos como
Friedrich Engels (1820-1895). São esses os líderes de uma das primeiras reações
deixada a seu próprio encargo ela não seria capaz de alojar a maioria da
149
MUMFORD. op. cit. p. 450.
150
BENEVOLO, Leonardo. As origens da urbanística moderna. Lisboa: Editorial Presença, [1963]. p.
51-90.
151
op. cit. p. 188.
55
número limitado. O resultado disso é uma competição perversa que somente pressiona
para baixo os padrões de qualidade, higiene, conforto e segurança das habitações feitas
medida em que crescem as rendas da terra e, com ela, a concentração de renda.152 Sem
habitar realmente nela, conforme expressão de Paul Singer153, aonde se percebe a efetiva
redução do papel e das funções da cidade, que nesse caso não passa de um aglomerado
público. A exceção ficará por conta daquelas cidades onde os antigos direitos feudais ou
fica clara a impossibilidade de uma cidade controlar e promover seu crescimento sem o
sobretudo porque marcarão a expansão colonialista ibérica dos séculos XV e XVI, e que
urbanização, que nesse período adquire intensidade jamais vista. Há, de fato, um certo
na verdade, dois aspectos inseparáveis do mesmo processo. Deles, afirma Henri Lefebvre
industrialização significa uma nova etapa na história das cidades, uma virtual refundação
explosão daquilo que ainda chamamos ‘cidade’ ”161, com a sociedade urbana se
Estas passam literalmente a invadir o campo, avançando sua área sobre ele e
157
op. cit. p. 80.
158
LEFEBVRE. op cit. p. 7-8.
159
LEFEBVRE. op. cit. p. 9.
160
LEFEBVRE. op. cit. p. 6.
161
LEFEBVRE. op. cit. p. 75.
162
MUMFORD. op. cit. p. 461-463.
57
mais eficientes, na medida em que se torna mais difícil combatê-los. Diante das
mais fácil romper uma muralha medieval e matar o rei. Não há mais necessidade, e nem
encontre firmemente ligado à grande cidade. No atual estágio econômico, pois, a cidade
cidade e campo.
tem como fundamental a separação entre cidade e campo, e que essa própria separação
163
MUMFORD. op. cit. p. 575 e ss.
164
op. cit. p. 606.
165
MUMFORD. op. cit. p. 606.
166
MUMFORD. op. cit. p. 574.
167
MUMFORD. op. cit. p. 578.
58
já é uma das primeiras e fundamentais divisões do trabalho criadas pelas trocas de bens
utilitários, nas quais, grosso modo, se distribui ao campo o trabalho material e/ou
resultaria desse desenvolvimento, mas não do avanço desta sobre aquele. Palco do
e manual, sendo própria do capitalismo industrial, pelo menos em seu estágio inicial, uma
cada um dos aludidos espaços. No entanto, Paul Singer172, sem desviar-se de seu
168
LEFEBVRE. op. cit. p. 28-29.
169
FINLEY. op. cit. p. 266. Conforme a mesma fonte, enquanto no marxismo concebe-se uma
hostilidade fundamental entre cidade e campo, a economia política de Adam Smith considera a
existência de um comércio harmônico entre ambas, não interpretando os ganhos da cidade como perdas
para o campo, já que ambos não estão em competição entre si, mas numa relação de mutualismo e
reciprocidade. De qualquer forma, em ambas as escolas coloca-se claramente a mesma linha divisória
fundamental entre os dois setores da atividade econômica e da vida social, bem como se entende o
campo como plenamente inserido nas relações capitalistas de produção.
170
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 24.
171
SINGER. op. cit., 1975. p. 11-28 e 94 e ss.
172
op. cit. p. 94.
59
para despojá-la de seus elementos tradicionais e de sua especificidade. Isto não significa
a resolução da contradição entre cidade e campo, o que este autor só admite na hipótese
aquela contradição faz parte e, mesmo nesta hipótese, não cogita de que essa se dê por
uma confusão generalizada, onde um dos pólos se perca no outro. Entende que essa
civilizatórias dominantes. Nunca teria sido tão verdadeira a conhecida máxima de que
designar a expressão última de áreas metropolitanas. Tais áreas têm merecido a contínua
173
op. cit. p. 68.
174
LEFEBVRE. op. cit. p. 68-69.
175
LEFEBVRE. op. cit. p. 49 e 69.
176
op. cit. p. 568-569.
60
conhecido novos capítulos, isto é, adquirido novas nuanças, ao contrário do que uma
pelos arredores das megalópoles, e até para regiões mais remotas, uma parcela crescente
da população urbana bem como das plantas industriais. O sentido de tal movimento
núcleo central. Tem, então, ocorrido que as cidades genericamente chamadas de médio
porte, ou centros regionais, cresçam em ritmo mais rápido que as próprias megalópoles,
o que pode fazer com que aí se reproduzam os mesmos problemas que historicamente
de metas, estabelecidas pela cidade, que funcionem como controles internos e que
marxista, os direitos sobre a terra instituídos significam muito mais do que a mera
do solo deve centrar-se não na propriedade em si, mas, como preceitua Boaventura
privilégio, tanto social quanto jurídico, do indivíduo singular como centro referencial do
sistema social, que passa, em seu modelo mais avançado, a ser classificado como
individualização progressiva dos direitos referentes à terra, que cada vez mais passam a
domínio eminente (detido pelo Príncipe), o domínio direto (detido pelo senhor feudal) e
do século XVIII procuraram, pois, numa batalha política e jurídica, pôr fim à concepção
medieval de propriedade, formada desde que a soberania romanista havia sido destruída
único e exclusivo de sua terra, sobre a qual a liberdade de disposição do titular pode
codificações modernas de Direito Civil, que prescreve a presunção legal juris tantum da
transformação constitui um dos vetores das transições havidas entre os dois modos de
produção.
o domínio particular é enfocado não mais somente como valor de uso, isto é, um bem de
produção, uma mercadoria capaz de ser integrada num processo de trocas mais amplo
182
Conforme SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 26-27. Este ponto será mais aprofundado no capítulo 3.
183
No caso brasileiro, trata-se do art. 527 do Código Civil em vigor. BRASIL. Código civil e legislação
em vigor. 16. ed. São Paulo, Saraiva, 1997. p. 123.
184
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 27.
63
“Toda propriedade tem duas funções particulares, diferentes entre si: uma
própria e direta, outra que não o é. Exemplo: o calçado pode ser posto nos
pés ou usado como meio de troca; eis, pois, duas maneiras de fazer uso
dêle. Aquele que troca o calçado por moeda ou por alimento com o que tem
precisão de calçados, dêle faz justo uso, como calçado, mas não um uso
próprio e direto, porque não foi feito para troca”.185
cidades quanto o campo, temos uma emergência dos valores de troca, em detrimento dos
de um processo que designaríamos ideal - o discurso jurídico contido nas leis, nas
sentenças e nas obras doutrinárias - quer por um processo que diríamos real - as mesmas
capitalismo que Lefebvre denomina concorrencial, fica marcada assim pela passagem da
segundo o mesmo autor, só tinha e só tem sentido como ‘obra’ e, logo, como fim, como
lugar de livre fruição, como domínio do valor de uso.187 A colocação abaixo bem
185
op. cit. p. 31-32.
186
LEFEBVRE. op. cit. p. 14-15.
187
op. cit. p. 76.
64
vista marxista, admitem que todo tipo de mercadoria possua não uma ou duas, mas três
espécies de demanda, vale dizer, três espécies de motivação para a sua posse: demanda
direta (ou enquanto valor de uso); demanda enquanto fator de produção (ou enquanto
1) de uma propriedade simples ou comum, colocada em seu uso final pelas ordens
possível agregar-lhe valor mediante o trabalho social, e, por isso, sendo definida
3) de uma propriedade que funciona como estoque e/ou como meio para obtenção
Trata-se de uma propriedade que interfere na esfera da produtiva pela sua não-
modalidade de propriedade próxima a esta última, mas em essência diferente desta, dado
191
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 51-52.
192
SERRA & SERRA. op. cit. p. 136 e ss.
193
LIRA, Ricardo Pereira. O uso do solo urbano e a criminalidade. Temas atuais do direito brasileiro,
Rio de Janeiro, Primeira série, p. 144-153. 1987.
194
op. cit. p. 51.
66
mesmo após o fim do sistema colonial. Tal sorte de propriedade latifundiária é detida
pela velha burguesia fundiária urbana e rural (os coronéis e suas famílias, bem como a
ele todo imobilizado na própria terra. Esta espécie de propriedade vem conhecendo
o campo, bem como, supomos, face aos fatores acima mencionados, que revelam a sua
Pode-se, por fim, falar-se de uma propriedade estatal, que também tem tido
progressivamente àquele solo de domínio público inalienável, vez que observa-se uma
dos entes políticos, entendido como parte da concepção de Estado então dominante. 195 O
195
Conforme as seguintes recentes reportagens: 1) SCHMIDT, Selma. O latifúndio que cabe à Prefeitura
do Rio. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 6 ago. 1995. 1º caderno, p. 33. 2) NOVO plano do prefeito.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27 set. 1995. 1º caderno, p. 19. 3) RIO vai vender 1.500 imóveis.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 28 jun. 1995.
67
de que todo valor existente é gerado pelo trabalho, afirmará que a terra virgem, assim
como o ar, os prados naturais, embora úteis ao homem, não constituem para ele um
valor, posto que não são produtos de seu trabalho, não configurando, por conseguinte,
uma mercadoria. Na mesma direção vão as palavras de Luiz César de Queiroz Ribeiro197,
princípio, a substância do valor, seja de uso seja de troca, reside no trabalho humano
social e útil, o que permite que sejam todas elas aquilatadas e, via de conseqüência,
reconhece que a base do valor de uso reside nas qualidades próprias da mercadoria, que
base do valor de troca, aquele fundamental na economia capitalista, que por isso será
sua produção.
verdade, possui não um valor, mas sim preço, adquirido em função da “demanda
capitalista por solo”, bem como do “monopólio legal de seu uso” 199, fator ao qual está
este.
preços gerada pelas várias demandas dos agentes capitalistas, que valorizam seus capitais
preço da terra urbana passa não somente pelo mercado de terras, mas, sobretudo, por
De outro lado, o preço adquirido pela terra urbana provém dos direitos
monopolísticos exercidos por seu titular, já tendo Aristóteles, em seu tempo, antevisto
que todos aqueles que podem criar um monopólio têm acesso à atividade de
lugar, significa monopólio sobre o uso do solo, através do direito real de propriedade
que pesa sobre o mesmo. O preço e a renda extraídos da terra não decorrem
cada comunidade delimitada.201 Entre essas condições, ressalta aquela pertinente ao tipo
outras naturezas - que afetam seu funcionamento. Conforme pesquisas citadas por
centro privilegiado de decisões sobre o uso do solo, sendo objeto das transações
200
op. cit. p. 39.
201
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 45-46.
202
op. cit. p. 46.
69
imobiliárias não o solo em si, mas sim o complexo de direitos e faculdades vinculados à
propriedade deriva, portanto, “de seu papel de fonte de controle e de direitos sobre o
moradias, praças, parques, etc. Com base em tal sistema, que na verdade configura um
sistema de sistemas, nasce o que o mesmo autor chama “valor de uso complexo”205,
que uma simples gleba (com eventual construção) assim definida em seu respectivo título
consumo dos objetos imobiliários, isto é, nos fatores externos ao solo mas que interferem
fatores externos tanto positivos como negativos, que são determinantes na formação do
203
ROSSETTI. op. cit. 48.
204
op. cit. p. 34-35 e 38.
205
op. cit. p. 34.
206
A respeito do problema da distribuição das externalidades, RIBEIRO também acrescenta (op. cit., p.
35) que a formação do valor da terra urbana depende de uma operação “nascida ao azar”, isto é, não
detida por nenhum agente capitalista em particular, pois nasce da combinação de vários processos
autônomos de produção e circulação de mercadorias, não se verificando na estrutura urbana o ocorrido
numa empresa determinada onde o capital consegue controlar e direcionar as forças produtivas
envolvidas.
70
propriamente dita. Estão eles para a produção da mercadoria fundiária da mesma forma
que as máquinas estão para um processo produtivo particular.208 Em vista de tais fatores,
afirma Boaventura Santos209, invocando outros autores, que a sociedade é o único autor
do capital fundiário urbano. Isto porque sendo ele não um instrumento de produção
como a terra rural, mas um simples suporte passivo de meios de produção, circulação ou
consumo, seu valor depende não de características intrínsecas, mas dos serviços que o
mesmo comporte. O que significa dizer que o mesmo depende da localização e do acesso
não se coloca. Dada a atual configuração das cidades, o solo urbano em hipótese alguma
é um bem puramente privado, vale dizer, produzido e consumido sem que existam
efeitos contra terceiros - conforme informa o conceito respectivo - isto porque sempre
urbano enquanto bem econômico, portanto, é feita, por definição, de forma coletiva - ou
por Marx.212 Desse mesmo ponto de vista econômico, pois, pode-se afirmar que a
àquilo que a terra urbana propicia, não significa mais que um confisco individual da
207
RIBEIRO. op. cit. p. 34.
208
RIBEIRO. op. cit. p. 34-35.
209
op. cit. p. 33-35.
210
Sobre o conceito econômico de externalidades vide SANTOS, Ângela Moulin Simões Penalva.
Investimentos infra-estruturais na urbanização brasileira: uma discussão sobre seu financiamento e
distribuição. 1996. Xerox. p. 3 e ss.
211
Ao falarmos de produção já deixamos claro que não se trata de um processo natural, já não podendo
mais falar-se de ‘terra virgem’, nesse caso.
212
op. cit. p. 86-87.
71
reside precisamente neste ponto uma das mais fundamentais contradições do contexto
seu titular, mas difusamente toda a sociedade, despendeu esforços em sua produção,
outras que demandam trabalho produtivo e assalariado pelo empreendedor. Tal cenário
procurarem novas formas jurídicas para o acesso à terra, que não passem
portanto, que a mesma situação seja monopolizada pelo titular da propriedade. Trata-se
fins da cidade se tornam “cada vez mais, vazios e triviais, mais infantis e primitivos,
213
SANTOS, Ângela. op. cit. p. 3-6.
214
Conforme propõe SANTOS, Ângela. op. cit. p. 6.
215
MUMFORD. op. cit. p. 583.
216
MUMFORD. op. cit. p. 597.
72
séculos não ajudou o homem a tornar-se mais humano, mas o submeteu aos mecanismos
econômicos e tecnológicos diante dos quais as defesas psíquicas são baixas tal o fascínio
aeconomicus das urbes restou convencido de que esse processo deve apenas ser
responsável pela primazia dos primeiros. Assim, o principal fator capaz de reconfigurar o
associação humana, “que faça justiça a todas as dimensões dos organismos vivos e
pode ser não só inútil como perigoso. 219 A partir de uma economia dirigida para e pela
vida, aos seus bens e finalidades, pode-se iniciar uma redefinição das funções da cidade.
simbólico, pode ser realizada em curto lapso de tempo desde que a economia seja
propriedade. Trata-se, pois, de uma instituição cuja mudança constitui condição para a
determinação de um novo rumo às cidades, ou, de outra forma, uma instituição que,
social da propriedade, temos claro exemplo de uma forma jurídica que procura fazer
exclusiva do seu titular. Com ela procura-se engendrar uma economia mista, de
primeiro momento histórico em que, sob a dominância desse modo de produção, admite-
habitação de grandes parcelas de seus habitantes, etc. Tal hipótese, até a segunda metade
220
op. cit. p. 610.
221
op. cit. p. 476.
74
propriedade que não é detentor de capital suficiente para cultivar a terra de forma a
produzir além do necessário à sua própria subsistência não representa nada diferente do
simples proletário urbano, detentor apenas de sua própria força de trabalho individual. O
eixo da questão radica-se, sim, na forma capitalista de usar, valorizar e até de degradar a
222
MUMFORD. op. cit. p. 480.
223
LOPES. op. cit. p. 37 e 29.
75
CAPÍTULO 3
reconhecida, mesmo que tal especificidade seja parcial. Assim, de um lado é certo que a
reprodução social e gestão dos meios para tanto. De outro, no entanto, não há como
classificar no mesmo tipo processos sociais tão diferentes como a megalópolis americana
segundo em hipótese alguma é réplica do primeiro, não sendo a ele aplicáveis os mesmos
particularidade de cada uma dessas situações normalmente não está ligada a uma região,
224
op. cit. p. viii-ix.
76
dos países centrais era bem superior. Em face disto, fala-se de uma hiperurbanização227
que seria normalmente alcançado tendo em vista o aparato industrial.228 Há, nesse caso,
dos principais caminhos reside nas relações da cidade com o campo. Em sua origem
colonial, tais cidades eram ligadas diretamente à metrópole, não ultrapassando em quase
funcionais. Não se forma, então, uma rede urbana, uma integração das cidades numa
serviços, que terá outras razões. Ainda que os países mais urbanizados sejam também os
crescimento urbano está relacionado, numa primeira fase, com o desenvolvimento das
característica de uma fuga, vale dizer, é motivada muito mais por um processo de
produtiva - do que por um processo de atração urbana que exprimisse algum dinamismo
preços por estes praticados.232 Tornaram-se, pois, bastante sensíveis às alterações neste
229
CASTELLS. op. cit. p. 68. O autor cita diversos outros que, à luz de abrangentes estatísticas, chegam
à mesma conclusão.
230
op. cit. p. 62 e ss.
231
Seminário da UNESCO a respeito concluiu que 50% do crescimento urbano se deve às migrações,
sendo apenas os outros 50% creditados ao crescimento natural da cidade. CASTELLS. op. cit. p. 81-82.
232
LEFEBVRE. op. cit. p. 10.
78
à rural - dado o acentuado desequilíbrio entre os dois ambientes -, nelas é também maior
mesmos. Somam-se uma série de novos tributos ao orçamento familiar, sendo o custo da
sócio-espacial que marcam o tecido urbano latino-americano. Por fim, podemos acrescer
desorganiza sem poder destruir inteiramente”233, somente não ocorrendo tal destruição
Cabe, no entanto, indagarmos quais são os fatores que, por sua vez, estão à
233
CASTELLS. op. cit. p. x.
234
op. cit. p. 84.
79
ao longo do século XX. Falando num plano mais geral, encontramos na questão
‘meios’ de que trata o enunciado acima, sendo o acesso à terra, pois, condição de
Portugal. Cabe, então, indagarmos que tipo de empresa é esta e quais são suas
235
op. cit. p. 81.
236
op. cit. p. 84. À p. 63 há, outrossim, uma colocação praticamente idêntica.
237
CASTELLS (op. cit., p. 57) repudia o termo subdesenvolvido, dando-o por equivocado.
238
CASTELLS. op. cit. p. 57.
239
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.
99 e ss.
240
FAORO, Raymundo. Os donos do poder; formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro:
Globo, 1984. p. 108-115.
80
demandam de uma organização urbana a fim de conferir eficácia ao poder que se quer
constituir. Neste ponto, reside uma das diferenças fundamentais entre os sistemas
experiência da Guerra de Reconquista de seu território em face dos mouros - muito mais
penosa e duradoura para ela do que para Portugal241, fez sentir sua ‘mão forte’ a partir
baseado numa rede de cidades estendida por toda a possessão espanhola, o qual se
século XVIII.242 De outro lado, nota-se nas cidades hispano-americanas uma forte
natural e humano ali encontrados. São, pois, expressão da idéia de intervenção humana
explorar as riquezas da terra. Dessa forma, uma das primeiras funções exercidas pelas
pois embora não desejados os ônus de uma efetiva colonização, buscava-se de toda
forma os bônus da empresa colonial. Por fim, o fato de não ter sido aqui encontrada uma
243
CARDOSO. op. cit. p. 79 e ss.
244
SINGER. op. cit. 1975, p. 98 e ss.
82
visto no capítulo anterior. Assim, temos no Brasil colonial, sobretudo durante os séculos
XVI e XVII, a formação de uma “civilização de raízes rurais”, pois, conforme Buarque
de Holanda:
civilização cuja matriz não se encontra na cidade, mas sim no campo, não é ela, de outro
lado, uma civilização tipicamente agrícola. Primeiramente, por não ser a agricultura a
segundo lugar, pelo modelo predatório de exploração da terra que prevalece desde os
engenhos açucareiros nordestinos dos séculos XVI-XVII até os cafezais paulistas dos
das técnicas de exploração da terra que, de fato, não pertencem a história lusitana.249
245
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 39.
246
op. cit. p. 73.
247
HOLANDA. op. cit. p. 49-50.
248
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto; o Município e o regime representativo no Brasil.
6. ed. São Paulo: Alfa-ômega, 1993. p. 26 e ss.
249
HOLANDA. op. cit. p. 44 e 51.
83
para sua reprodução. Há escassa inter-relação das unidades, sendo com o exterior as
suas relações preferenciais, onde não só se revendia sua produção mas obtinham-se os
insumos básicos por elas não produzidos. Assim, mesmo que eventualmente recorressem
quase não dependiam deste para subsistir, mas sim de seus próprios meios de produzir e
comercializar, bem como da demanda externa.252 Merecem, por isso, ser categorizadas
por Ciro Flamarion Cardoso 253 como instituição total, em adaptação do conceito original
Salvador no século XVI, então a mais importante cidade brasileira, Frei Vicente do
Salvador dizia ser ela uma “cidade esquisita, de casas sem moradores”256, constando a
funções públicas ou, em alguns casos, comerciantes que conseguiam lograr alguma
250
HOLANDA. op. cit. p. 90-91.
251
HOLANDA. op. cit. p. 80.
252
CARDOSO. op. cit. p. 102-103.
253
op. cit. p. 102-103.
254
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1990.
255
CARDOSO. op. cit. p. 102.
256
Apud HOLANDA. op. cit. p. 90.
84
na passagem do século XVII ao XVIII, a partir do que vai iniciar-se uma mudança no
eixo dinâmico de toda a vida nacional, que passa do Nordeste para o Centro-Sul. O
estruturas realmente urbanas, com um papel e uma estrutura sem paralelo com os
cidades se dá, nesse caso, não motivado pela edificação de alguma obra permanente na
colônia, mas sim no sentido de policiar e reprimir a atividade que despertou a avidez
257
op. cit. p. 91.
258
Entende CARDOSO (op. cit., p. 101 e ss.) ser mais próprio designá-las, enquanto unidades de
produção, mediante o termo Plantations, dado que somente este significa uma forma determinada de
organização da produção.
259
HOLANDA. op. cit. p. 63.
260
HOLANDA. op. cit. p. 102-103.
85
das Minas. No tocante à cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, estudo realizado por
ocorrerá quando da emergência da cultura do café, que no século XIX passa a ser o
principal item da economia agro-exportadora nacional. Tal fato também contribui para o
desenvolve sua face urbana, passando a alimentar, nas cidades, uma considerável
clientela de todas as profissões. Segundo Faoro 265, começa a negar-se, neste período, a
mundos e/ou mentalidades que passam a se diferenciar e a se opor uma a outra. Daí parte
261
CARDOSO. op. cit. p. 135.
262
COSTA. op. cit. p. 19 e ss.
263
RIO DE JANEIRO. In: ENCICLOPÉDIA Abril. São Paulo: Abril, 1973. v. 11, p. 4215-4216.
264
FAORO. op. cit. p. 412-413.
265
op. cit. p. 419.
266
HOLANDA. op. cit. p. 78.
86
de todo o processo acima narrado, a simbiose entre cidade e campo, isto é, como as
transformações num desses espaços, mais cedo ou mais tarde, se fazem sentir no outro.
mercado regional (em função da demanda por bens de consumo), como a formação de
ganhará foros praticamente definitivos com a Abolição. É ao longo do século XIX que
social brasileira, senão em seu ulterior desenvolvimento, mas certamente em suas raízes e
prosperidade dos centros urbanos faz-se à custa dos centros de produção agrícola, sendo
fortemente da ditadura dos domínios rurais”.269 Este teria sido, segundo Buarque de
267
MINERAÇÃO NO BRASIL. In: ENCICLOPÉDIA Abril. São Paulo: Abril, 1973. v. 8, p. 3108-3110.
268
HOLANDA. op. cit. p. 161.
269
HOLANDA. op. cit. p. 89.
270
op. cit. p. 92 e 95.
87
dominação por ele imposta do que uma espécie de exigência do ambiente. Possuiria ele
Procura ordenar a vida não mediante pactos ou contratos, mas por relações mais
parentesco.271 Em suma, seu caráter se forma com uma radical incompreensão em relação
ao que se pode chamar de civilização urbana, pois é possuído de uma íntima convicção
constituição das primeiras cidades brasileiras por uma ambiência rural.274 Para isto,
ausência de uma expressiva burguesia urbana, independente e apta para tais funções,
consensual entre os historiadores nacionais que as funções mais elevadas cabiam aos
271
HOLANDA. op. cit. p. 133 e 137.
272
HOLANDA. op. cit. p. 110.
273
HOLANDA. op. cit. p. 87.
274
SINGER. op. cit., 1975. p. 99.
275
HOLANDA. op. cit. p. 87.
276
COSTA. op. cit. p. 47.
88
terras do mesmo escalão dos títulos de nobreza do Reino, considerava a Corte, em geral,
nos dois primeiros séculos de colonização os proprietários rurais gozam de quase total
autonomia, acumulando, assim, uma massa de poder capaz de competir com a própria
Coroa. Um bom exemplo disso, lembrado por Nunes Leal279 e por Buarque de
a ela vinculada por laços e compromissos pessoais, conforme esclarece Nunes Leal:
cidades terá como referência forte a família colonial, isto é, predominará uma visão da
homens, sendo algo não só útil como necessário a constituição da sociedade à sua
277
HOLANDA. op. cit. p. 88-89.
278
COSTA. op. cit. p. 39.
279
op. cit. p. 23.
280
op. cit. p. 82.
281
COSTA. op. cit. p. 36 e ss.
282
op. cit. p. 22.
89
particulares, portanto, aos ditames das formas mecânicas e/ou naturais de solidariedade.
Este, se, de um lado, é público em seu desígnio, ressaltando Faoro a “rédea legalmente
curta” 286 com que a Coroa prende os propósitos colonizadores, de outro, possui uma
natureza privada, a qual, porém, não se confunde com aquele privatismo de matriz
haver uma pressão social que isenta os indivíduos de seus direitos e deveres de cidadãos,
283
HOLANDA. op. cit. p. 82 e 85.
284
Apud DA MATTA. op. cit. p. 19 e ss.
285
DA MATTA. op. cit. p. 25.
286
op. cit. p. 125.
287
Apud COSTA. op. cit. p. 41-42.
288
COSTA. op. cit. p. 42.
90
direta por parte da mesma, que não desejava os riscos da empreitada colonial, cujos
tudo aquilo que definiria o espaço, o interesse ou o patrimônio públicos, quer pelas
oligarquias, quer pelos segmentos subalternos. Aquelas assim agem porque não tratam
do que aqui há de ficar, mas apenas do que “hão de levar para o Reino”292; estes porque
imitadores do desprezo tradicional pelo bem comum que parte do alto da pirâmide
social, o que José Reinaldo Lopes conceitua como “conivência inconsciente dos
interessado e zeloso das questões que a todos atingem, e a presença marcante do homem
289
Conforme LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil. 2. ed. Porto Alegre: Sulina,
1954. p. 39.
290
FAORO. op. cit. p. 407.
291
COSTA. op. cit. p. 36.
292
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. 4. ed. São Paulo: Melhoramentos,
1954. p. 58.
293
op. cit. p. 20.
91
que trata apenas do interesse particular. Dentre eles, podemos lembrar Manuel da
verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é
república, sendo-o cada casa”.295 A invasão do espaço público pelo particular começa
que aludimos pode ser encontrada na histórica ausência de efetividade das obrigações de
disposição dos edifícios particulares não ao traçado pré-ordenado de acordo com os fins
e funções da cidade, como na cidade hispânica, mas sim à caprichosa comodidade dos
senhores de terra.297 Tratam-se de normas que ficam “nos papéis públicos”298, não
negativo, no espaço público.299 Para tratar das cidades brasileiras, Jurandir Freire, em seu
294
Citado por HOLANDA. op. cit. p. 107.
295
HOLANDA. op. cit. p. 16.
296
COSTA. op. cit. p. 37.
297
HOLANDA. op. cit. p. 109.
298
COSTA. op. cit. p. 38-39.
299
DA MATTA. op. cit. p. 22 e ss., e 79 e ss.
92
Vale acrescentar que uma estrutura como essa não somente é prejudicial aos
a qualquer tipo de interesse público, e a qualquer tipo de interesse que remeta a outras
300
COSTA. op. cit. p. 46-47.
301
COSTA. op. cit. p. 47.
93
dos indivíduos às solicitações de natureza pública e/ou estatal. Junto com a primeira,
natureza legal.
cidade, onde mediante a fundação de novas cidades se busque repetir um certo conjunto
voltadas ao bem estar do ser humano. Embora no modelo grego clássico de cidade
política seja também observável uma forte presença das solidariedades familiares e
mecânicas como estruturantes da vida na cidade, não se verifica, a partir daí, uma
cidade da conquista portuguesa. Esta, de outro lado, também não encontra paralelo com
brasileira e periférica em geral, no entanto, não deve ser feita sob o signo daquilo que lhe
falta, prisma, aliás, incapaz de gerar qualquer compreensão que seja digna de tal nome.
sobretudo, quando a sua análise é feita comparativamente aos processos havidos nas
302
LOPES. op. cit. p. 17 e ss.
94
sociedades periféricas e que, aliás, respondem por sua especificidade, a ser devidamente
outras providências.”305 A lei régia foi editada com o objetivo de fazer face à profunda
depressão e graves dificuldades por que passava a agricultura em Portugal, com êxodo
rural e não aproveitamento dos campos. Dado que a situação era não só de
possibilidade de novas invasões dos mouros, que ainda não haviam sido inteiramente
303
Vide especialmente a legislação a respeito de usucapião especial rural e regularização de posses em
terras públicas - art. 4º, 5º e 6º da Lei nº 601 de 18/09/1850 (Lei de Terras); art. 102 da Lei nº 4.504, de
20/11/1964 (Estatuto da Terra); art. 29 da Lei nº 6.383, de 7/12/1976 (processo discriminatório de terras
devolutas); art. 1º da Lei 6.969 de 10/12/81 (usucapião especial rural); Constituições Brasileiras de
1946, de 1967, Emenda nº 1 de 1969, e 1988 (artigos 156, 164, 171 e 191, respectivamente).
304
LIRA, Ricardo Pereira. Campo e cidade no ordenamento jurídico brasileiro. Rio de Janeiro, [S.n.],
1991. p. 21.
305
BRASIL, Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários, Programa Nacional de Política
Fundiária. Coletânea: legislação agrária, legislação de registros públicos, jurisprudência. Brasília:
1983. p. 355-356.
95
origem última do sistema sesmarial guarda, assim, estreitas relações com a reação dos
que movia os cristãos em ditas batalhas era repovoamento, já que as invasões levaram os
regiões reconquistadas eram distribuídas pela Coroa aos nobres que nelas tinham se
destacado, os quais instalam aí um sistema latifundista, que mais tarde será transportado
às colônias.307
direito de fogo morto, pelo qual se permitia ao colono que tivesse promovido o cultivo
contra a desagregação de seu setor agrícola, então já bastante sentida, evitando a evasão
dos lavradores dos campos, e determinando uma reconversão aos mesmos de forma que
306
CARDOSO. op. cit. p. 26-30.
307
RECONQUISTA, Guerra da. In: ENCICLOPÉDIA Abril. cit. v. 10, p. 4079-4084.
308
ANTUNES, Paulo Bessa. A propriedade rural no Brasil. Rio de Janeiro: OAB/RJ, [1985]. p. 41.
309
ANTUNES. op. cit. p. 67.
96
mesma mecanismos que permitem sua imediata execução - como fixação de prazo para
que se principie a lavoura e penas aos contumazes. Dentre essas últimas, encontra-se a
nomeadas na Lei como responsáveis por sua aplicação. Outrossim, procurava-se inibir
expedientes que visassem esquivar-se dela, proibindo de possuir gado aqueles que não
intento buscado pelas autoridades portuguesas com esse sistema não só não foi
tabelado.310
vigente neste território. Sem embargo das Ordenações, ao longo do período colonial- e
significados muito distintos daqueles que haviam tido na Europa. No que concerne ao
310
ANTUNES. op. cit. p. 31.
311
Composta das cartas de doação e dos forais das capitanias, de leis, alvarás e cartas régias, de
regimentos baixados pelos Governadores-gerais e por funcionários coloniais. Conforme MACHADO
NETO. op. cit. p. 313.
97
imposta a um contexto para o qual não estaria preparada e vocacionada. Tal lei não
nascera do choque de interesses, das práticas sociais e econômicas, bem como das
referências culturais das populações por ela atingidas e regidas, ficando sempre aquém
do que o momento social demandava. “Era um direito que estava feito e que precisava,
simplesmente, ser aplicado, depois de importado”; era uma lei que existia, mas era
Sesmarias é imposta por autoridade distante daqueles a quem ela se impõe e visando o
espaço-tempo social português e não brasileiro. A partir daí, instaura-se aquela dinâmica,
até hoje verificada, na qual, uma vez que o conjunto legal é elaborado a despeito das
relação ao mesmo, “num diz-que-diz ou faz-que-faz que não assume o outro ou a coisa
sociedade não representa nem uma autêntica adesão e cumprimento dos comandos legais
e nem, muito menos, uma resistência e oposição frontal aos mesmos. Quer a adesão quer
claramente fins públicos a serem alcançados mediante a concessão do solo, sob as penas
sesmarial. Não obstante o fato de não ter se efetivado, a não ser em casos extremos e
conflituosos, o que será abaixo comentado, a subsistência dessa exigência revela que ela
não se reduzia a mero formalismo ou a palavras gratuitamente inseridas na lei, mas que
função social da propriedade, a qual supõe a propriedade privada de matriz burguesa, até
por isso surgida, enquanto direito vigente, apenas ao longo do século XX, no ambiente
moderna função social, os institutos próprios da Lei Sesmarial e das antigas tradições
Todos esses exemplos representam não apenas fatos da lei, mas, na medida
314
op. cit. p. 123.
315
FAORO. op. cit. p. 125.
316
FAORO. op. cit. p. 125.
99
em que se incorporam nas práticas bem como no imaginário social, podem converter-se
produção jurídica futura, nas várias formas em que a mesma é capaz de se expressar.
mesma legislação, e sob a égide dela, se constitui a estrutura latifundista que até hoje
a) apesar das condições legais sob as quais a concessão das terras era feita (como
317
op. cit. p. 107.
100
deu origem a uma distribuição de terras sem nenhum tipo de encargo além do dízimo à
feudal, somente se instituem em 1695, os quais, em tese, seriam até incompatíveis com o
cindido o domínio em direto e útil -, o que neste sistema não se admite, não sendo a terra
subordinação entre proprietário e autoridade que não aquela de natureza política, própria
metropolitanos neste período, conduziu a que tal cláusula restritiva fosse pouco aplicada,
propriedade fundiária”321, onde as limitações jurídicas não eram mais que sua aparência
formal. Mais que isso, estabelece-se uma propriedade de “forte caráter patrimonial”322,
318
FAORO. op. cit. p. 38 e LIMA. op. cit. 1954, p. 37-38.
319
FAORO. op. cit. p. 124.
320
FAORO. op. cit. p. 125.
321
CARDOSO. op. cit. p. 27.
322
CARDOSO. op. cit. p. 107.
101
capitalista. Não estava, assim, exposta ao embargo, seqüestro e às demais sanções legais
aplicáveis aos bens dos devedores insolventes, condição que somente fez reforçar as
perpetuou até o presente histórico, gerando um quadro que é exatamente oposto àquilo
distribuir decretara, no plano dos fatos, o fim do sistema sesmarial. Tantas foram as
doadas a um mesmo requerente, que ao tempo da extinção formal não havia mais terras a
323
A título de exemplo, vide LIMA, Ruy Cirne. Terras devolutas; história, doutrina e legislação. Porto
Alegre: Livraria do Globo, 1935. p. 59.
324
ANTUNES. op. cit. p. 60.
325
FAORO. op. cit. p. 407-408.
326
FAORO. op. cit. p. 407 e 418.
102
de terras, aliada a uma forte demanda externa, o que garante, de per si, altas taxas de
propriedade colonial.328 Nesse sentido, Nunes Leal classifica o fazendeiro atual, em geral,
não como alguém próspero e abastado - que somente subsiste no imaginário popular -,
mas sim como alguém “remediado”, isto é, que “passa bem de boca” e que possui
fazenda. Hoje, o grande capital do proprietário rural consiste em seu prestígio político,
327
LEAL. op. cit. p. 27.
328
LEAL. op. cit. p. 28.
329
op. cit. p. 24.
103
que procuram abrigo no emprego público -, na sua notória ligação com bancos ou com o
Estado, o que lhe dá meios de obter créditos das mais diversas formas.330
Ocorrem, pois, em nossa realidade fundiária, diversos fatores que irão engendrar não
uma estrutura pura e simplesmente latifundista, mas sim a criação de dois setores
visibilidade somente nos séculos XVIII e XIX, uma estrutura fundiária mista. Esta é
“ínfimos sitiecos” diante das glebas familiares do Nordeste, “pouco maiores que as
da propriedade familiar. De maneira geral, observamos que os ciclos por que passam os
330
FAORO. op. cit. p. 418-419; LEAL. op. cit. p. 24.
331
CARDOSO. op. cit. p. 105.
332
ANTUNES. op. cit. p. 59.
104
escravo”. Consiste ele no trabalho agrícola realizado pelos escravos em seu próprio
favor, nas parcelas de terra e intervalos de tempo a eles facultados por seus senhores - de
onde o termo ‘brecha’. Este trabalho, que não era supervisionado pelo senhor, permitia
subsistência, quando não a própria alforria. De outro lado, a brecha camponesa permitia
direito configurado na brecha consistiu numa das razões mais fortes de revoltas ou fugas
diversas colônias era reconhecida nos próprios textos legais.334 Formalizado ou não, o
processo abolicionista. Este significou o fim daquela, já que era um instituto próprio da
Abolição, uma regularização jurídica das posses ou usufrutos exercidos pelos ex-
escravos, o que, concretamente, significaria uma reforma agrária. Faz-se aqui exatamente
expansionista do latifúndio”.336
aí existente a exercer um papel histórico diverso do latifúndio, pelo menos por algum
posseiros, que foi se tornando cada vez mais “efetiva e valedoura”.339 Nesse caso, a
poder régio, conforme o regime regido pela Lei de Sesmarias, mas sim da iniciativa
comercial, voltada substancialmente ao mercado externo. 340 De outro lado, temos nelas
336
FAORO. op. cit. p. 410. Voltar-se-á a este tópico nas seções seguintes.
337
op. cit. p. 409.
338
ANTUNES. op. cit. p. 59.
339
ANTUNES. op. cit. p. 59.
340
Fator inicialmente imposto pela própria circunstância colonial e que se perpetuará com a inserção
periférica no comércio e na divisão do trabalho internacional..
106
uma atividade produtiva já não baseada no trabalho escravo, sendo a terra trabalhada
moderno das próprias classes latifundiárias. Teria aí surgido, basicamente no século XIX,
um novo grupo de fazendeiros que, mesmo usando escravos, não tinham sua fortuna
nestes concentrada, sendo, assim, menos atados à escravidão em relação aos grandes
Nordeste.342
brasileiras explica-se por diversos fatores. No caso do extremo sul, tiveram importância
primacial as correntes migratórias. Já no caso de São Paulo, este fato teve peso
reduzido, visto que a concorrência da grande propriedade cafeeira absorveu para si todo
conforme nos informa José de Souza Martins343, bem como dispõem os próprios artigos
de-obra, bem como a demanda dos centros urbanos por artigos cuja produção seria
341
CARDOSO. op. cit. p. 156.
342
CARDOSO. op. cit. p. 159-160.
343
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1986.p. 65-67.
107
das ocupações realizadas pelos intrusos também padece de enorme vulnerabilidade, que
de alta nos preços externos dos produtos agrícolas. Isto leva a que o proprietário lance
ocupada. Neste conflito, nos conta Faoro 346, a vitória coube aos senhores de sesmarias,
que, assim como no caso do açúcar, definem a cultura do café como uma empresa de
lograssem legitimar suas terras por ocasião da Lei de 1850347, conforme será
desenvolvido na seção a seguir. Em que pese esta lei estabelecer a proteção do posseiro,
em princípio louvável, teria ela chegado, para eles348, tarde demais, quando a resistência
dos pequenos posseiros já tinha sido dobrada pelo poderio da grande propriedade,
embora não tenha crescido em termos a área por elas ocupada. 349 O mais grave, no
grande, nem se constitui como legatária de sua ruína.” 350 Num horizonte mais largo,
entanto, a crise que atinge o latifúndio atingirá, forçosamente e com muito mais vigor, o
minifúndio. Dada a baixa produtividade a que este se vê fadado, não gera níveis mínimos
de renda ao seu titular, de forma a não retirá-lo da situação de pobreza em que vive,
decadente e o processo que, no âmbito das cidades, designamos por favelização.353 Tal
349
LEAL. op. cit. p. 27.
350
LEAL. op. cit. p. 29-30.
351
LEAL. op. cit. p. 24-25; 27; 29-30.
352
op. cit. p. 418.
353
A comparação é sugerida em texto de BALDEZ, Miguel Lanzellotti. Sobre o papel do direito na
109
analogia se deve a que no último caso, assim como no primeiro, observamos, salvo
exceções, a ocupação, por parte de trabalhadores, de glebas sem interesse para o capital,
ambos os casos, formar-se um estoque de força de trabalho para o grande capital, sendo
outro caso, talvez estejamos tratando das mesmas pessoas, posto que, em última análise,
Cabe ressaltar, por fim, que se as modificações havidas nos fatores e nas
por que não dizer, políticas - desenvolvidas sob a hegemonia do latifúndio, elas
Assim, a realidade fática do sistema de posses e/ou ocupação coexiste largamente com
pequenas propriedades legalizadas, bem como com o provecto sistema latifundista, que
origem a diferentes perfis urbanos e rurais, de natureza regional, e que por sua vez vão
contribuir para uma diversificação sócio-cultural. Em suma, sem que seja superado um
determinado modelo, outros são incorporados, sendo que na nova realidade engendrada
condições de sua perpetuação, tornando a realidade brasileira cada vez mais complexa e,
sociedade capitalista; ocupações coletivas; direito insurgente. Petrópolis: Centro de Defesa dos Direitos
Humanos, 1989. p. 10.
110
sociais e econômicas, exigidas para viabilizar a expansão em grande escala das atividades
exportadoras, o que Ciro Flamarion Cardoso irá designar por “transição ao capitalismo
mecanismos:
- abolição da escravatura;
transição atingirá seu ponto forte, sendo a nação então tomada de uma “febre intensa de
reformas”356, como nunca havia sido em tão breve período. Entre os principais
acontecimentos que marcaram este divisor de águas histórico podemos listar, com base
na literatura disponível357:
354
op. cit. p. 133-227.
355
CARDOSO. op. cit. p. 138.
356
HOLANDA. op. cit. p. 74.
357
BALDEZ. Sobre o papel do direito ... cit. p. 11; HOLANDA. op. cit. p. 74.
358
Editado a 25/11/1850, o código de processo comercial é mais conhecido como Regulamento 737, e é
citado como o primeiro código de processo civil brasileiro. Isto porque, pelo Decreto nº 736, de
19/09/1890, o recém constituído Governo republicano estendeu a aplicação deste Regulamento às causas
cíveis em geral, revogando o Livro Terceiro das Ordenações Filipinas, que até então disciplinava a
matéria. Conforme ROSA, Eliézer. Capítulos de história do direito processual civil brasileiro. Rio de
Janeiro: Ed. Rio, 1975. p. 17 e 139-143.
111
que fez com que a formação de tal espécie de sociedade comercial deixasse de constituir
privilégio real, passando a figurar como ato dependente de simples autorização estatal;359
à Estação Fragoso.
cronológica que fatos como estes se dêem tão próximos uns dos outros, havendo, ao
contrário, uma verdadeira relação histórica entre eles. O paradigmático período de 1850-
senhor de rendas cede lugar ao empresário, com conta corrente [...]”361, as relações
dinheiro abstrato representado pelo crédito constitui singular novidade, dado que até
uma ação de companhia”.362 De outro lado, é um momento em que a base colonial das
359
Tal mudança é feita através do Decreto nº 575, de 10/01/1949, sendo ratificada no Código Comercial
de 1850. A 4/11/1882, vem à lume a Lei nº 3150, a primeira lei das S.A.s editada no Brasil, que isenta a
formação dessas empresas de qualquer autorização, bastando o cumprimento das prescrições legais
quanto aos seus elementos característicos e às formalidades indispensáveis à sua organização e
funcionamento. Consagra-se, assim, o liberalismo econômico nesta matéria. Vide VALVERDE, Trajano
de Miranda. Comentários ao Decreto-lei nº 2627, de 26 de Setembro de 1940. 3. ed. rev. aum. Rio de
Janeiro, Forense, 1959. v. I: p. 18-19 e 25-27.
360
HOLANDA. op. cit. p. 74.
361
FAORO. op. cit. p. 411-413.
362
HOLANDA. op. cit. p. 77.
112
conhece uma nova etapa, em que o café ultrapassa o açúcar em valores exportados,
convertendo-se no principal item desta pauta, crescendo sua cultura ao mesmo tempo em
serviços urbanos - naqueles citados acima bem como em outros que compõem a própria
nas cidades, o que será realizado não somente mediante o aporte de capitais externos,
meados do século XIX iria levar a uma inversão da tradicional relação campo-cidade
Holanda365, prefigura-se uma liquidação, mais ou menos rápida, de nossa velha herança
rural e colonial.
jurídico-institucional a elas articulado, razão pela qual então observa-se uma farta
produção legislativa. É nesse contexto que surge a Lei nº 601, de 18/09/1850, mais
363
CARDOSO. op. cit. p. 138.
364
FAORO. op. cit. p. 409.
365
op. cit. p. 74.
366
Íntegra do texto da lei encontra-se em BRASIL, Ministério Extraordinário... op. cit. p. 357-361.
113
de toque do sistema fundiário, que fornece os princípios jurídicos sobre os quais toda
uma estrutura vai se edificar de forma perene, “em lento e inexorável processo
evolutivo”.369 Um dos grandes significados que pode ser extraído da referida lei é o de
então em curso.
período que se caracteriza pela natureza propriamente dominial adquirida por este
direito. Tornando-se então dominante, este sistema conheceria sua segunda fase a partir
sistema seria aquele, já abordado, de natureza sesmarial, que oficialmente vigorou até
1822, mas que antes disso já se encontrava, de fato, em vias de desaparecimento, e onde
existe não uma relação de domínio, mas sim de concessão administrativa. O segundo
sistema consistiria no chamado regime de posses, que para alguns existiu somente no
vácuo deixado entre a extinção do sistema sesmarial e o advento da Lei de Terras, mas
367
O histórico desta lei inicia-se em 1842, quando o Governo Imperial solicita ao Conselho de Estado,
através da Secção dos Negócios do Império, a formulação de uma proposta de reforma legislativa sobre
sesmarias e colonização. Em 1843, o projeto que se transformaria na futura lei é apresentado na Câmara.
Conforme LIMA. op. cit. 1935, p. 56.
368
PORTO, Custódio Moreira. As ocupações legítimas de terras devolutas. Revista da PGE-SP, São
Paulo, n. 1, p. 55, jan. 1971.
369
BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. São Paulo: Juriscredi, 1974. p. 187.
370
Apoiados na literatura consultada, em especial, as de FAORO, CIRNE LIMA e BALDEZ.
114
demarcação, titulação e registro das posses existentes), a Lei de Terras significa a ab-
rogação do regime de posses no campo formal. Nos é útil, portanto, tecer algumas
considerações sobre tal período, que se relaciona intimamente com os outros dois, que
qualquer disposição normativa, mas sim consiste numa prática social criada
espontaneamente pelo costume e reforçada pela tolerância da autoridade pública, que foi
ratificada a posteriori pela Lei de Terras. Esta, ao mesmo tempo em que pôs fim à
aqueles(as) que tivessem se realizado até o seu advento, atribuindo-lhes o efeito jurídico
fazendo com que passassem do plano empírico ao plano jurídico (vale dizer, ao exercício
de que se tem notícia em nossa história. Com base na práxis jurídica, esta pode ser
definida como o processo pelo qual se busca trazer aquele que encontra-se em situação
precária, instável, anormal e irregular em sua relação com a terra de que se utiliza, para o
processará por meio de sua titulação como proprietário ou, na pior das hipóteses, como
pareceu aos homens de então algo impossível e que importaria em risco de revoltas
reconhecimento da posse, mas com extensão reduzida a de uma sesmaria igual às últimas
concedidas na mesma comarca ou nas mais próximas.375 Baldez, de seu turno, parece
esmiuçar mais a questão ao recordar que durante o período de posses as terras foram
ocupadas não por quem o quisesse, mas apenas por quem o pudesse, isto é, não eram
escravos, aos quais este poder estava vedado dada a natureza de sua inserção sócio-
econômica. Não eram eles enquadráveis na categoria colonizadores, dentre os quais teria
conclui que até 1850 a posse era considerada um meio legítimo de aquisição da
373
Apud FAORO. op. cit. p. 408.
374
op. cit. p. 408.
375
Conforme dispõe o § 1º, in fine, do art. 5º, da Lei de Terras. BRASIL, Ministério Extraordinário... op.
cit. p. 358.
376
BALDEZ. Solo urbano ... cit. p. 2-3.
116
com posição designada nos quadros de nossa vida social e econômica”.377 Conforme
será exposto mais adiante378, tais posições se confirmam à medida que se percebe a
com a Lei Eusébio de Queiroz, e a distinção nítida entre posse e propriedade, que se
Na sistemática vigente até a Lei de Terras não havia, assim, uma distinção
clara entre posse e propriedade, sendo que “a posse que promovesse a colonização, o
possideatis (“do jeito que possuís, assim continueis possuindo”), oriundo do Direito
Romano, conforme nos ensina Linhares de Lacerda em seu “Tratado das terras do
Brasil”.380
passado, outro para o futuro, sendo este último o que constituía o centro das
criminalizando este ato e prevendo-lhe penas drásticas nos campos civil e penal.381
Assim, a Lei concilia-se, compõe-se, com o passado, para somente após isto instituir
posses, a Lei de Terras enuncia que as terras somente seriam acessíveis por intermédio
da compra e venda, isto é, exclusivamente pelo sistema de mercado. 382 Esta lei procurou
criar a propriedade burguesa do solo, isto é, aquela que se compra e vende sem restrição
de terras bem como de uma classe burguesa organizada em torno dele. Este processo,
considerada coisa fora de comércio ou sobre ela são constituídos direitos de longuíssima
propriedade privada”.384 Isto significava que “não havia interesse e nem possibilidade
de acumulação de terras de maneira especulativa. [...] Ganhar dinheiro pela terra era
irrisório foro, de 0,6% do valor do domínio pleno, exigido anualmente pela União
381
Vide art. 2º da Lei de Terras. BRASIL, Ministério Extraordinário... op. cit. p. 357.
382
Art. 1º da Lei de Terras. BRASIL, Ministério Extraordinário ... op. cit. p. 357.
383
CARDOSO. op. cit. p. 161.
384
CARDOSO. idem, ibidem.
385
LOPES. op. cit. p. 25-26.
118
de remota origem.
regularização das antigas posses, bem como à sua demarcação, medição e registro
papel relevante assumido pela lavoura cafeeira nas plantations do centro-sul esta ordem
sentido, a Lei de Terras é complementada por outras, que vêm com o mesmo espírito de
crédito.390
386
É o disposto no art. 101 do Decreto-Lei nº 9760, de 5.09.1946, diploma legal que dispõe sobre os bens
imóveis da União. O dispositivo em questão foi confirmado nas modificações introduzidas pelo art. 88
da Lei nº 7450, de 23.12.1985.
387
Tratam-se dos arts. 7º, 11 e 13 da Lei de Terras. BRASIL, Ministério Extraordinário... op. cit. p. 358-
359.
388
FAORO. op. cit. p. 408-409.
389
É o disposto no art. 10 da Lei em questão. BRASIL, Ministério Extraordinário... op. cit. p. 359.
390
BALDEZ. Sobre o papel do direito ... cit. p. 11.
119
o acesso à terra por parte dos colonos nacionais e estrangeiros, vedando de vez o
da terra em mercadoria conduz a evidente seleção dos segmentos subalternos, que não
têm como arcar com o preço que as terras adquirem no mercado, a não ser aquelas que
em razão de externalidades negativas alcançam ínfimo valor. Num mercado que por
para compra de terras devolutas àqueles que já tinham posses, desde que essas
que possuíam “os meios necessários para aproveitá-las”.392 Fica-nos claro que, também
nesse caso, prevaleceu a tônica geral observada desde o sistema sesmarial, vale dizer, por
391
CARDOSO. op. cit. p. 158.
392
Art. 15 da Lei. BRASIL, Ministério Extraordinário... op. cit. p. 360.
393
LIMA. Terras devolutas ... cit. p. 60.
120
há, no entanto, um nível mais específico desta articulação, que refere-se às relações entre
de um aspecto que aventamos anteriormente de maneira breve, e que agora pode ser
melhor desenvolvido.
isto é, “num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num regime de
trabalho livre, a terra tinha que ser cativa”.395 A aparente desvinculação entre os dois
394
CARDOSO. op. cit. p. 154-155.
395
MARTINS. op. cit. p. 32.
121
processos é refutada por Ciro Flamarion Cardoso, que assim define seus nexos:
simples modificação das instituições, mas sim uma transição entre dois modos de
produção - ou, na pior das hipóteses, do eixo do modo de produção - resta clara a
complexidade da mesma, nada autorizando supor que o decreto que formalmente ab-
Cardoso, aliás, as circunstâncias dos séculos XIX e início do XX demonstram que tal
não se poderia esperar, subsistindo até nossos dias, dentro de uma economia plenamente
trabalhador em sua liberdade de contratar trabalho.398 A partir daí pode-se considerar que
396
op. cit. p. 138-139.
397
op. cit. p. 65.
398
CARDOSO. op. cit. p. 141-160.
122
garantir uma oferta de força de trabalho, sendo a Lei de Terras o instrumento legal desta
já estaria ‘com seus dias contados’. Assim, a única forma de se produzir trabalho livre
seria impedindo o acesso à terra, já que de outra forma o trabalhador a obteria por
em função daquela.
reclama da “dificuldade que hoje se sente de obter trabalhadores livres”.400 Ante esta
399
MARTINS. op. cit. p. 59.
400
ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de. Pequena história da formação social brasileira. 2. ed. Rio
de Janeiro: Graal, 1981. p 286.
123
proprietário”.401
a trabalhar para vir a se tornar proprietário. 402 Em relação ao campo, tal hipótese, em
a terra. É isto o que demonstram os índices levantados por Victor Nunes Leal403 a
relação à cidade, a mesma hipótese revelou-se, até hoje, apenas em parte verdadeira. Ao
contraditória, dado que procura combater o escravismo valendo-se dos meios próprios
trabalho livre, mas por uma via compulsória. Não seria muito absurdo entender que fazer
o contrário talvez fosse mais razoável, pois nesta hipótese a liberdade possivelmente
401
ALBUQUERQUE, idem, ibidem.
402
MARTINS. op. cit. p. 59 e ss.
403
op. cit. p. 26-30.
404
RIBEIRO, Luiz César de Queiroz. Reforma urbana na cidade da crise: balanço teórico e desafios.
in: ___ & SANTOS JR. , Orlando Alves dos (orgs). Globalização, fragmentação e reforma urbana; o
futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. p. 266-268.
405
Conforme dados de RIBEIRO. op. cit. p. 264.
124
30 a 70% do valor total da empresa rural.406 Sem escravos, a posse de terras de nada
valia - o que reforça o argumento de que a ocupação de terras era inócua às classes
necessária de todas as riquezas pois, com ele, o senhor adquiria uma determinada
capacidade de criar renda, uma probabilidade de ganho futuro. Este seria o parâmetro
sua empresa. Assim, não representavam apenas uma fonte de trabalho, mas, sobretudo,
como objeto da renda capitalizada.407 Nisto se incluía, até mesmo, o papel de garantia
406
op. cit. p. 412.
407
MARTINS. op. cit. p. 24.
408
MARTINS. op. cit. p. 26.
409
VALVERDE. op. cit. p. 18-19.
125
mesma forma que a escravidão, constitui meio de extorquir trabalho, valendo uma e
Ao longo do século XIX, firmou o Império Brasileiro a posição pelo fim do sistema
escravista, para o qual contribuiu a conhecida pressão inglesa. Antes da própria Lei
esta se tornou célebre por ser a Lei mediante a qual tal intenção realmente se efetivou, o
que ocorreu quase imediatamente após a sua edição.411 Estava, pois, anunciado o fim do
necessário repor estes cabedais, mantendo-lhes a integridade, o que não se faria pela
mera compensação financeira, que, apesar de ter ocorrido de fato412, não asseguraria a
reprodução do capital como o escravo seria capaz de fazer. Dado que o escravo deixa de
ser uma mercadoria - e meio de produção - para adquirir personalidade civil, a reposição
se faz pela conversão de um bem de uso - no caso, a terra - na mercadoria que até então
terra passa a ser objeto de domínio, e de um domínio que se define enquanto mercadoria,
para, assim, recapitalizar a empresa rural - até então as grandes empresas nacionais, dado
o estado pré-industrial da produção. Adquire, pois, a terra um valor e um papel que ela
escravista vigorou sem perspectiva de extinção, a terra, até por ser bem fora de
comércio, possuía ínfimo valor econômico, tendo apenas um valor nominal para
finalidades práticas. Não sendo sobre ela que se formava o monopólio indispensável a
produção, era destituída de valor, dispensando cautelas jurídicas que lhe vedassem o
acesso.413 Já em 1850, Faoro 414 registra que o preço da terra aumentara até dez vezes em
relação ao começo do rush cafeeiro, enquanto, de outro lado, o preço dos escravos
atinge seu auge em 1877, quando então declina à medida da aproximação da Abolição. 415
Dessa forma, a capitalização da empresa passava por seus domínios fundiários, fazendo-
visto que não era esse o fator primordial de sustentação da economia mas sim o escravo.
cerco jurídico. Tal cerco, conquanto não seja físico, mas sim virtual ou simbólico, é
bastante efetivo e perceptível, naquela exata linha dos controles sociais próprios da
cidade invisível, dos quais tratamos no capítulo anterior (seção 2.4.2). Nesse sentido,
413
BALDEZ. Solo urbano ... cit. p. 2.
414
op. cit. p. 412.
415
HOLANDA. op. cit. p. 74 e ss.
416
BALDEZ. Sobre o papel do direito ... cit. p. 1.
127
escravo quanto na propriedade da terra, neste último caso se apresenta como “mero
outro lado, seu direcionamento para fortalecimento das instituições bancárias, o que,
instalação das forças produtivas do capitalismo não era compatível com a persistência de
que este supõe. Conforme arremata José de Souza Martins, “ao libertar o trabalhador o
XX, completa-se, pelo menos numa primeira fase, a inexorável transição ao capitalismo
417
BALDEZ. idem. ibidem. p. 12.
418
op. cit. p. 76.
419
op. cit. p. 33.
420
MARTINS. op. cit. p. 62.
128
Guerra);
ideologia liberal que já se fizera presente ao longo de todo o século XIX, século de
rápida e intensa penetração dos valores burgueses. O liberalismo, no entanto, não era a
responsáveis pelo novo pacto político as facções de natureza positivista, bem como
aquele conservadorismo de origem senhorial. Como bem nos mostra José Murilo de
Carvalho421, dentre outros historiadores, o Estado liberal que daí nasce, o faz repleto de
práticas reais. Nesse sentido, bastaria dizer que a Federação de Estados-membros que
seus representantes, mas sim pelo Governo Provisório da República dos Estados Unidos
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados; o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed.
421
individuais às massas populares, razão pela qual o autor supracitado falará numa espécie
de República sem povo. “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem
conhecer o que significava”424, como então sentenciaria Aristides Lobo, em célebre carta
escrita três dias após a proclamação do novo regime. Este mesmo povo, do qual até hoje
muitos se lamentam de sua ausência enquanto ator político, àquela época era fervoroso
confrontou com as repúblicas populares, sem integrá-las numa república maior que
lastro popular para se tornar um regime coerente, a República demonstrou uma grande
dose de horror a este mesmo povo, o que levou o ideal liberal-democrático a deturpar-se
liberdade que se instaura não permite a emancipação do sujeito ‘libertado’, que a rigor é
422
Conforme Decreto nº 1, de 15.11.1889. BRASIL, Constituição. Constituições do Brasil. Brasília:
Senado Federal, 1986. p. 61-62.
423
CARDOSO. op. cit. p. 218. O grifo é nosso.
424
HOLANDA. op. cit. p. 161.
425
CARVALHO, J. M. op. cit. p. 31.
426
Bem como na literatura propriamente científica, a exemplo de CHALHOUB, Sidney. Cidade febril:
cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, Companhia das Letras, 1996. p. 15-59.
427
CARVALHO, J. M. op. cit. p. 35-39.
428
CARDOSO. op. cit. p. 159.
130
uma importação um tanto abrupta da democracia liberal, com a qual vem se acomodar e
que foram objeto de ataque da burguesia no Velho Mundo. Um país ainda preso às
bem lembra Buarque de Holanda429, a fermentação do ideário liberal no caso das massas
um luxo ao qual somente um segmento seguro de seu status quo poderia se permitir. Já a
Martins:
incorpora-se basicamente um dos aspectos deste capitalismo, talvez o mais grave deles,
pela ganância, pelo amor à riqueza obtida à custa de outrem, o que na verdade pertence
429
op. cit. p. 160-161.
430
HOLANDA. idem, ibidem.
431
referência aos traficantes e/ou comerciantes de escravos.
432
op. cit. p. 62.
433
op. cit. p. 26-27.
131
a todas as épocas. Além disso, define-se o capitalismo por fatores tais como a
do lucro a médio prazo, a exploração não predatória dos recursos, a geração de novas
tecnologias a serem aportadas à produção, bem como a separação entre o mundo dos
Brasil.
produção, mas sim de uma acomodação da mesma à nova realidade econômica. Muito
às oligarquias rurais foi permitido reter a propriedade do solo, bem como manter formas
período histórico seguinte, por nós conhecido como Era Vargas (compreendida entre
décadas mais tarde, a situar-se entre as dez maiores economias do planeta; por outro,
não se circunscrevem à cidade, visto que cidade e campo inserem-se no mesmo circuito
capitalista-industrial brasileiro até recentes décadas não tinham levado ao campo as infra-
desfrutadas pela cidade, mesmo que de maneira profundamente desigual. Desse modo,
agudizou-se o fosso entre campo e cidade, fazendo-o ainda mais profundo que aquele
próprio das distinções entre esses dois modelos organizativos. Aprofunda-se, pois, entre
1º.01.1916 -, cuja “data mental” remonta a 1899436, mas que entra em vigor apenas em
1917. Não obstante contradições como as que temos nos referido, que marcam a
434
Segundo o IBGE, na década de 1980 a taxa de urbanização da população nacional chega a 75% , e a
população rural cai, não somente em números relativos, mas também absolutos - em relação à década
anterior passou de 38,6 para 36 milhões de habitantes. Dados in RIBEIRO. op. cit. p. 266.
435
LOPES. op. cit. p. 16.
436
Ano em que o jurista Clóvis Bevilaqua concluiu e entregou ao Governo Republicano o esboço de dito
Código, tarefa para a qual fora cometido pelo mesmo Governo. Este, após análise de comissão
governamental, remeteu-o ao Congresso no ano seguinte, onde tramitou durante 15 anos, até lograr
aprovação. Conforme PONTES DE MIRANDA. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1981. p. 83-85.
133
arriscaríamos afirmar que a sociedade brasileira encontra-se, desde então, num patamar
rigorosamente ‘modernizado’.
dos séculos XIX e XX. Este diploma concentra as referências jurídicas dominantes,
1917 não faz qualquer distinção entre propriedade imobiliária urbana e rural, tratando-as,
pois, univocamente, isto é, como uma só modalidade de propriedade. Além disso, não
termos de tamanho máximo ou mínimo, bem como não fixa obrigação de utilização e/ou
437
Conforme, sobretudo, seus arts. 9º e 179.
134
existente desde as sesmarias, que de alguma forma sempre preceituou a utilização efetiva
‘quem possui é’, em que a categoria do ser subordina-se à categoria do ter. No caso
evitando-se conflito entre as mesmas. Fora disso, não se conceberia qualquer hipótese de
relativização dos poderes dominiais. Nesse sentido, sobre esta perspectiva pesaria a
implacável crítica marxista, que diria ser a mesma nada mais que instrumento de coesão
da classe dominante, bem como de manutenção do bloco histórico por esta composto.
438
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. p. 4.
135
Desde sua edição, o Código Civil vem operando como uma verdadeira
‘constituição do direito privado’, tal a sua permanência histórica - que apresenta mais
perenidade que a própria ordem constitucional -, tal a dificuldade a que ante ele se faça
valer, na práxis jurídica, a supremacia constitucional, e tal o zelo com que é guardado
pelos juristas, que parecem ter nele, quiçá, a referência legal de maior ascendência sobre
constitui um efeito jurídico, criado por força de lei, que garante a disponibilidade da terra
que não estejam em função de algo externo a si. A posse civil, quando distanciada da
não possuindo qualquer valor intrínseco, exceção única na hipótese de aquisição por
usucapião - o que não destoa da lógica do sistema, visto que esta significará o ingresso
do possuidor no mundo dos proprietários. A propriedade, por sua vez, encontra seu
439
BALDEZ, Miguel Lanzellotti. A luta pela terra urbana. Revista da Procuradoria Geral, Rio de
Janeiro: Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, n. 51, p. 167. 1998.
136
lado desta poderíamos nos referir, baseados em José Murilo de Carvalho, às correntes
Abstraindo das conseqüências autoritárias de seu ideário, que tinham por razão aquele já
mencionado horror à realidade brasileira tal qual ela era, o certo é que as correntes
Positivistas podem ser consideradas pioneiras, no Brasil, de uma moderna práxis voltada
intervencionista. Nesse sentido, ele vê tanto a cidade como a pátria como prolongamento
da família, devendo ser o seu princípio o amor, tal qual a família se apoiaria no amor
maternal. Assim, serão sempre enfatizados, enquanto valor superior, os deveres de cada
440
Conforme CARVALHO, J. M. op. cit. p. 35-36.
137
Constituição Imperial.442
liberal admitia direitos civis e políticos, mas não sociais. E a concepção positivista que,
direito constitucional positivo - e apenas nesse âmbito -, por não admitir que o Estado
441
CARVALHO, J. M. op. cit. p. 63.
442
Em seu art. 179, item 32. Não figura idêntico dispositivo dentre os parágrafos do art. 72 da
Constituição de 1892. BRASIL, Constituição. op. cit. p. 34 e 78.
443
CARVALHO, J. M. op. cit. p. 54-55.
138
o maior problema da concepção de função social da propriedade tal qual ela foi
incorporada a experiência jurídica nacional. Uma vez que não concebe direitos políticos,
essa perspectiva veta a ação política e a pressão social como meios legítimos de
admite luta e conflito por direitos, pelo menos no foro interno. Aliás, na família nem
sequer admitem-se direitos, mas apenas deveres.444 Nessa condição os direitos ficam na
Estado o detentor exclusivo do poder de império, somente ele teria legitimidade para
fazer tal exigência. Em tal esquema não existe cidadania, mas sim apenas estadania445,
nesse esquema somente existe direito público e não direito privado. Só há, assim, espaço
não do direito civil. Isto conduz, primeiramente, a uma permanência do direito civil de
que, no campo do direito, há algum tempo vem se procurando superar. Por fim, e em
444
CARVALHO, J. M. op. cit. p. 63.
445
Categoria sugerida por CARVALHO, J. M. op. cit. p. 155 e outras ao longo da obra.
139
fundiária próprio ao assim chamado Direito Agrário, especialidade da ordem jurídica que
certa forma, contribui na própria estruturação do subsistema legal em tela, visto que
pertence à base do direito agrário o estudo da terra como bem de produção, possuindo,
nessa condição, uma função social a ser por ela realizada. Não é outro o sentido do
imóveis tanto urbanos quanto rurais, apenas no caso da legislação agrária concebe-se
do efetivo cultivo, que corresponde a sua função social. No caso das cidades, o
ordenamento jurídico demonstra uma margem muito maior de tolerância para com a
propriedade inutilizada e/ou improdutiva, fator que somente se atenua com a edição da
446
Termo utilizado por SANTOS, Ângela (op. cit., p. 8) em relação ao regime militar de 1964-1985,
mas, segundo nos parece, também por outros autores e em relação a diversos períodos históricos.
447
BRASIL, Ministério Extraordinário para Assuntos ... cit. p. 16.
140
codificação civil, que não a concebe segundo suas utilidades para a coletividade, mas sim
função social encontramos no art. 589, III do Código Civil448. Ele estabelece o abandono
como hipótese de perda da propriedade imobiliária, e dispõe, em seu § 2º, que os estados
localizados em zona rural é de três anos, e para os imóveis localizados em zona urbana é
de dez anos. Tal discrepância não destoa dos fatores até analisados no tocante a
econômico engendra uma divisão do trabalho entre cidade e campo que impõe a este
suster a cidade com seus produtos, o que faz com que nele se concentre a pressão em
vertente surgida ao longo do século XX, que coloca no centro da ordem jurídica a
448
Com a redação dada pela lei nº 6969, de 10.12.81. BRASIL. Código civil e legislação em vigor. cit.
p. 131.
449
op. cit. p. 27-28.
141
acumulados.
que marca o conceito clássico de propriedade. Esta reação, que tem se materializado e
produtivista, mas conhece uma outra, a qual podemos, inspirados mais uma vez em
partir dos grandes movimentos populares que, fortalecendo-se no século XX, trouxeram
revisão das formas mais grosseiras da ordem capitalista. O Estado, nesse contexto, é
pressionado a sair tanto de seu papel de mero árbitro dos conflitos sociais, como de
intervenção e/ou direção estatal no sentido de mediar os conflitos, o que se faz à luz da
exploração desenfreada dos pobres e das classes trabalhadoras. Essa perspectiva surge
traumas e de suas mais variadas conseqüências sociais e psicológicas. Esta última seria
mais afinada com o conceito de função social da propriedade, vez que não preconiza a
trabalho é precisamente este que procura localizar a temática dos direitos humanos no
interior das situações jurídicas subjetivas que envolvem a propriedade. Isto porque
“[...] a proteção dos direitos humanos não mais pode ser perseguida a
contento se confinada ao âmbito do direito público, sendo possível mesmo
aduzir que as pressões do mercado, especialmente intensas na atividade
econômica privada, podem favorecer uma conspícua violação à dignidade
da pessoa humana; reclamando por isso mesmo um controle social com
fundamento nos valores constitucionais. Por outro lado, [...] no campo das
relações privadas, a usual técnica regulamentar mostra-se avessa à
proteção dos direitos humanos, pois que incapaz de abranger todas as
hipóteses em que a pessoa humana se encontra a exigir tutela”.452
sociais de maneira geral, mais urgente e necessário se faz a tutela dos direitos humanos
nas relações jurídicas de direito privado. A importante tarefa histórica que se nos coloca
elevar ao ápice a tutela da pessoa humana. Sem prejuízo das relações de direito público,
termos de uma efetivação dos direitos humanos, não vemos hoje como excluir as
constitui uma limitação que viabiliza a sua preservação, evitando que a mesma seja
452
TEPEDINO, Gustavo. Direitos humanos e relações jurídicas privadas. In: ___ . Temas de direito
civil. Rio de Janeiro, Renovar, 1999. p. 66.
453
TEPEDINO. Direitos humanos ... cit. p. 67 e 70.
143
fornecidos por Boaventura de Souza Santos454, naquilo que denomina dialética negativa
do Estado capitalista. Tal Estado seria definido por uma “relação social em que se
suscitam”, constituindo sua função geral antes dispersar tais contradições do que
acumulação e pelas relações sociais de produção em que ele tem lugar”.455 A dispersão
caracteriza-se, como o próprio nome já sugere, por uma tentativa de afastar e/ou conter
que é uma forma jurídica que, de alguma forma, absorve a contradição sócio-econômica
no interior da ordem jurídica, bem como que possui uma eficácia de propaganda
ideológica das virtudes democráticas e sociais do ordenamento jurídico, temos que ela
454
op. cit. p. 15 e ss.
455
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 15-16.
144
jurídica, o que contribui para que a ciência e a prática jurídica, bem como a consciência
social de grande insucesso em atingir tal objetivo”. 456 A questão fundiária, pois, é uma
daquelas em que mais nítida se encontra a discrepância entre norma abstrata e práticas
sociais, vale dizer, entre a law in books e a law in action, conforme conceituado na
jurisprudência anglo-americana. Essa discrepância, pelo vazio jurídico que cria, constitui
Sem negar a validade, em larga escala, dessa crítica, cremos que não se
456
SANTOS. op. cit. p. 68.
457
op. cit. p. 68.
145
lado’458, especialmente para nós brasileiros. Assim, diríamos que se, de fato, essa
absorção da contradição no campo do direito envolve uma dispersão, ela, para ser
contradição, que se conceda algo àquilo que os fatos nos trazem, o que significa
Entendemos, pois, que a função social da propriedade deve ser tomada como
sem o que jamais se conseguirá superar o abismo que conhecemos entre aplicação da
lei, de um lado, e justiça social, de outro, abismo que é visível nos conflitos fundiários
ocorridos no Brasil. O que se constata nos estudos de caso recentes, no caso dos
458
op. cit. p. 162.
459
op. cit. p. 19.
146
injusta, sendo essa oposição estampada nas próprias sentenças judiciárias. Uma das
conseqüências disto, constatada nos casos acima assinalados, é que os respectivos juízes
começam a buscar soluções extralegais para os conflitos, onde articulam noções contidas
rural, colocam-se pesadas críticas aos instrumentos jurídicos disponíveis, mesmo aqueles
em tese inspirados na função social, visto que os mesmos usualmente passam ao largo
das situações de conflito, isto é, não fornecem diretrizes jurídicas específicas para a
solução dessas situações, que ocorrem a uma freqüência significativa. Dados produzidos
pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão vinculado à CNBB, mostram que em
1981 eram 915 os conflitos de terra no Brasil, envolvendo mais de um milhão e meio de
Usucapião Rural, por exemplo, exige como condição para que seja declarada a aquisição
originária a ausência de oposição a posse durante todo o lapso legal, isto é, que não haja
litígio sobre a área.462 Critica-se, assim, o silêncio ético-jurídico da lei sobre o nervo
tarefa árdua de sua composição ao Executivo e ao Judiciário. Estes, por sua vez, não
contradições presentes e atuantes na ordem social. Traz elementos que demandam uma
própria redefinição não apenas de normas e instituições, mas da própria cultura jurídica e
do sistema lógico que a inspira. Nesse sentido, pode ser tomada como potencial
460
Aqueles por nós conhecidos são aqueles de FALCÃO, Joaquim de Arruda. Justiça social e justiça
legal: conflitos de propriedade no Recife. In: --- (org.). Conflito de direito de propriedade; invasões
urbanas. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 79-101; e de CARVALHO, Eduardo Guimarães. O negócio
da terra; a questão fundiária e a justiça. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1991. 119 p.
461
ANTUNES. op. cit. p. 100-103.
462
Trata-se do art. 1º da Lei nº 6969 de 10/12/1981.
147
forma de dispersar contradições. Será isto o que procuraremos demonstrar nos capítulos
seguintes.
148
CAPÍTULO 4
função social como o terceiro e moderno momento básico a que chegou a evolução da
como vimos, forma-se a concepção que a justificava por sua origem familiar e religiosa,
uma necessidade natural do ser humano, a qual possui uma versão teológica, própria do
medievo - a ‘necessidade’ é revelada por Deus aos homens -, e uma versão racional, que
triunfa junto com a Revolução Francesa, a qual, de uma certa forma, representa uma
pensamento social grego clássico, com a idéia de função social chegamos à justificação
da propriedade por meio dos serviços e fins coletivos a que esta possa ser útil. Isto
concepção de que consiste numa prerrogativa social. Nesse exato sentido, as palavras do
renomado publicista francês Josserand, em sua obra De l’esprit des droits et de leur
463
GRAU, Eros Roberto. Função social da propriedade. In: ENCICLOPÉDIA Saraiva do Direito. cit. v.
39, p. 17 e ss.
464
DECLARAÇÃO dos direitos do homem e do cidadão. Rio de Janeiro, Embaixada da França, [s. d.].
Não paginado. A citação corresponde à íntegra do artigo 2 e a trecho do artigo 17.
149
relativité, de 1939:
solidariedade social. Na medida em que tais teses concebiam determinado rol de direitos
e deveres, impõe-se a sua tradução em termos jurídicos, o que se deu quer ao nível da
conforma-se a noção de função social da propriedade, a qual iria comparecer nos mais
diversos ordenamentos jurídicos do início do século XX, como no caso das constituições
mexicana, de 1917, e alemã, de 1919. Nesse sentido, é interessante notar como a noção
bem coletivo.
grande nome é o Papa Leão XIII - autor da não menos célebre encíclica Rerum
Auguste Comte e daquele que colheu das três influências acima indicadas que foi Léon
Duguit.
começa a ser confrontado pelo dar a cada um aquilo que basta para seu trabalho e
consumo individual. A propriedade, que tanto para Proudhon como para Duguit se
465
Apud PEREIRA DA SILVA, Carlos Maximiliano. Condomínio. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1947. p. 12. O grifo é do autor.
466
O qual na perspectiva marxista seria classificável como representante do ‘socialismo utópico’.
150
traduz em termos de posse e é inseparável desta, é definida por estes como precária,
dos bens da vida. Conforme Pontes de Miranda467, os doutores da Igreja têm acentuado
que os direitos do homem à sua subsistência passam à frente dos seus direitos à
social católico à formação do modelo jurídico da função social da propriedade, visto que
também, por outro lado, deixa claro o seu distanciamento em relação ao socialismo
coletivista. Aliás, essa parece ser uma característica comum das três mencionadas
propriedade privada é inscrita num quadro de evolução para a sua socialização, mas não
467
PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição de 1946. 4. ed. Rio de Janeiro, Borsoi, 1963.
tomo V, p. 442.
468
PONTES DE MIRANDA. Comentários... cit. p. 442.
469
op. cit. p. 442 e ss.
151
positivismo comteano, o conceito de função social decorre, em primeiro lugar, dos nexos
que ligam o indivíduo à sociedade, os quais a todo momento são enfatizados. Todas as
relações sociais engajam o indivíduo na sociedade, tanto no plano físico como no moral.
Assim, a idéia de um direito individualizado era por demais abstrata, pois não se podia
referir uma situação subjetiva jurídica a um ente descontextualizado que de fato não
existia. De outro lado, a relação entre indivíduo e sociedade é enxergada sob o signo, ou
noção, de dever, ou ainda de dívida social daquele para com esta, noção que fundará a
possuir uma tarefa a executar na sociedade. Assim, no estado positivo não caberá mais
falar em direito, que irrevogavelmente desaparecerá, pois ninguém mais possuirá direitos
propriamente ditos, mas apenas exercerá funções sociais.473 Por isso, para Comte, assim
como para Duguit, a noção de direito subjetivo parecerá extremamente criticável, assim
direito é entendido como função social, pois, conforme afirmava Comte, “ninguém
470
FARIAS, José Fernando Castro. A origem do direito de solidariedade. Rio de Janeiro: Renovar,
1998. p. 235.
471
PEREIRA DA SILVA, Carlos Maximiliano. Comentários à Constituição brasileira. 3. ed. Porto
Alegre: Globo, 1929. p. 764.
472
FARIAS. op. cit. p. 232-233.
473
Colocação muito assemelhada àquela de Marx a respeito do direito na sociedade sem classes.
152
realização da “solidariedade social”.475 Um ato, assim, só tem valor, tanto social quanto
jurídico, se for determinado por um fim conforme a solidariedade social, e não por se
sustentar na vontade do sujeito. Com a idéia de fim esse autor não deseja legitimar o
direito por sua origem, mas sim por seu conteúdo e por sua destinação, sua finalidade de
partir das Constituições Federais de 1967 e, sobretudo, de 1988 - e isto pelas razões que
direito brasileiro, de forma que foi possível a Carlos Maximiliano, já sob a vigência da
própria Carta de 1891, de feição estritamente liberal, conceber a propriedade não mais
como o direito subjetivo do proprietário, mas sim como a função social do detentor da
que o mesmo deveria ser redefinido como “a submissão da coisa ao domínio da vontade
para fazê-la servir aos objetivos humanos”.477 Muito embora o referido autor não utilize
expressamente o termo ‘função social da propriedade’, ele não refere-se a outra coisa ao
termos:
474
FARIAS. op. cit. p. 232.
475
FARIAS. op. cit. p. 224-225.
476
FARIAS. op. cit. p. 229.
477
PEREIRA DA SILVA. op. cit. p. 764.
153
“Não há domínio privado absoluto, visto que os direitos reais são mantidos
por motivos de ordem social. Desde que á comunidade se torne necessário
o que ao indivíduo pertence, ou o interesse geral exija certas restricções a
uma prerogativa individual, cede o homem compulsoriamente em proveito
da collectividade. (...) Não há direitos sem deveres correlativos”. 478
que é bastante marcada pelo contexto da Primeira República, e pelo ideário positivista
que o particular que, com seu patrimônio, serve à comunidade, à rigor serve a si
próprio;
aqueles relativos ao bem-estar coletivo. Na base dos vários sistemas sócio-políticos que
478
op. cit. p. 768.
479
Nesse sentido, o seguinte fragmento: “(...) o direito de propriedade é limitado pelo direito alheio de
viver e conservar a própria saúde”. PEREIRA DA SILVA. op. cit. p. 772.
154
buscaram concretizar esse intento - onde podemos destacar o que conhecemos como
Duguit como assento de toda a teoria jurídica. Se, por um lado, a afirmação de que a
liberdade individual e a autonomia privada não são valores absolutos e intangíveis deixa
real’. Surgindo enquanto tipo jurídico nas sociedades capitalistas, a função social
jurídicos que de alguma forma podem viabilizar ou impedir esse acesso, onde
Assim como a propriedade privada, a função social que ela deve atender
doutrina. Conforme esclarece Pontes de Miranda, “não se garante o Código Civil, nem,
sequer, qualquer de seus artigos”, bem como não se protege o direito de propriedade
“contra emendas às leis vigentes, para lhes extinguir direitos reais, diminuir prazos de
indivíduos”, impedindo-se o legislador “de acabar, como tal e em geral, com o instituto
portanto, é a instituição da propriedade, sendo seu conteúdo e limites definidos nas leis,
de seu exercício. Não há, assim, fundamento constitucional para entender tal ou qual
480
PONTES DE MIRANDA. Comentários... cit. p. 21.
481
PONTES DE MIRANDA. idem. ibidem.
482
Art. 122, nº 14. BRASIL, Constituição. Constituições do Brasil. cit. p. 214.
483
PONTES DE MIRANDA. Comentários ... cit. p. 22-23.
156
dispositivo jurídico de igual dignidade, isto é, outra garantia constitucional. Assim, toda
garantia da função social, a qual deve se concretizar nas relações jurídicas que aludem ou
envolvem o direito de propriedade, bem como no conteúdo das faculdades e poderes que
o compõem.
O que até aqui dissemos, no entanto, isto não quer dizer que, em sua
aplicação imediata, vinculando diretamente as relações por ela reguladas - isto conforme
o § 1º, do art. 5º, da Constituição Federal. Tratam-se, pois, de dois efeitos distintos e
legiferante futura. Este primeiro aspecto possui uma especial importância, não só por
sinalizar para a eficácia imediata - embora possivelmente não integral - da função social
interpretativa uma das mais profundas atuações que uma norma jurídica pode
das instituições jurídicas. Interferem não apenas nas formas jurídicas, mas na
integrante da Constituição, a função social se dirige a todo aquele que não sendo
trazer benefícios a coletividade, embora possa estar beneficiando o seu titular. Com tal
entendido o termo em lato sentido. Com ela, demonstra não limitar-se a ordem jurídica a
dar a cada um o que é seu, mantendo cada um em seu exato status sócio-econômico.
procura dar a cada um aquilo que necessita para constituir-se como pessoa humana
digna. É este o perfil do Estado social e democrático de direito, o qual, aliás, achamos
mais próprio definir como Sociedade democrática e de direito, tendo em vista ressaltar
que ao dispor estas e outras garantias a Constituição não impõe apenas um determinado
modelo de sociedade política, mas também de sociedade civil. Neste modelo, como
485
Art. 3º da Constituição de 1988. BRASIL. Constituição da República Federativa ... cit. p. 3.
158
redimensionados, não sendo suficientes para conter a largueza dos princípios e dos
social da propriedade, embora, como toda e qualquer norma constitucional, não seja
destituída de eficácia, não possui aquele grau de efeitos mais pleno que se possa
conceber. Nas palavras de José Afonso da Silva486, não possui aplicabilidade integral,
por elas atingidos, como programa de suas atividades. Não é, pois, uma norma que
a) quem quer que sofra prejuízo causado por alguém que exerça o usus
ferindo ou ameaçando o bem-estar social, pode invocar a aludida regra, inclusive para
486
Eficácia e aplicabilidade... cit. p. 19.
487
SILVA, José Afonso da. Eficácia e aplicabilidade ... cit. p. 20.
488
SILVA, José Afonso da. Eficácia e aplicabilidade ... cit. p. 24. Onde faz referência à doutrina de J.J.
Gomes Canotilho.
489
Comentários ... cit. p. 496-499.
159
limites a autonomia dos agentes sociais, sendo razoavelmente identificáveis, desde logo,
dependa, como ele próprio dispõe, de ulterior regulamentação e (2) estipule de maneira
função social elevar-se ao status de uma norma constitucional de eficácia apenas contida,
uma falha, mas sim de um outro ângulo, reconhecido desde a obra de Pontes de
estar social.
assumiu, muitas vezes, grande imprecisão, o que, conforme cabe esclarecer, não quer
dizer que sejam vazios, mas sim que estamos diante de uma categoria de conceitos
admitidos pela ciência e pela técnica jurídicas na medida em se buscam respostas à altura
benefício da coletividade - dispõe uma idéia não só genérica como também, por
frutos quando animada por fatos reais. A partir desse contato é que se habilita a formar
tese, nem está sujeita a padrões genéricos, mas somente é perceptível de maneira exata
históricos, econômicos, etc. Significam uma janela, aberta pela ordem jurídica, à
493
MARTINS-COSTA, Judith. As cláusulas gerais como fatores de mobilidade do sistema jurídico.
Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 81, v. 680, jun. 1992. p. 48.
161
elaboração de uma síntese entre norma jurídica e realidade histórica, a ser elaborada pelo
caso, uma atitude valorativa, isto é, de avaliação crítica a respeito dos comportamentos
submetidos à sua apreciação. À grosso modo, diríamos que trata-se de uma norma cuja
amparado no raciocínio problemático, isto é, que veja o direito como ordem relativa e
voltada à “permanente discussão de problemas concretos”, tal como nos falou Theodor
das normas existentes, isto fazendo em harmonia com os princípios dispostos nas
instituto jurídico da propriedade e, mais do que isso, implica numa renovação dos
métodos e técnicas hermenêuticas. É uma cláusula legal a ser continuamente lida, e re-
494
MARTINS-COSTA. op. cit. p. 49.
495
MARTINS-COSTA. op. cit. p. 48 e 52.
162
lida, no sentido de sua teleologia, que é a construção de uma ordem jurídica justa no
campo particular dos direitos reais. Trata-se, segundo cremos, da melhor combinação
que hodiernamente se pode obter entre as racionalidades material e formal que, segundo
percebeu Weber496, permeiam a ciência do direito. Como toda opção que fazemos na
vida, esta também tem um preço e um prêmio. Assim, não obstante ela represente um
dominantes no âmbito de sua concepção formal, este é compensado por uma maior
habilitados a respondê-las.
propriedade que estaria sujeita ao princípio da função social. Eros Grau497 preleciona que
seu titular e de seus familiares, bem como produto do trabalho ou de prestações sociais
devidas pelo Estado. Trata-se de uma propriedade que teria, digamos a grosso modo e
garantida por toda sorte de nações, inclusive aquelas do socialismo real. A única
Assim, entende Eros Grau que a função social da propriedade incide sobre:
GRAU, Eros Roberto. Ordem econômica na Constituição Federal de 1988. São Paulo: RT, 1991. p.
497
244 e ss.
163
Constituição de 1946:
Fica claro, dessa forma, que a própria noção de função social supõe que a
Face ao acima exposto, fica nítido que o preceito jurídico que confere à
direito-dever, dirige-se tanto aos três poderes do Estado em todos os níveis (no que
das limitações à propriedade por nós aqui definidas como clássicas, a função social não
suporá a rígida divisão público-privado, vez que se trata de um dispositivo que não se
contém nos limites de um desses dois ramos fundamentais do ordenamento jurídico, mas
498
GRAU. Ordem econômica ... p. 248-249.
499
PEREIRA DA SILVA. Comentários à Constituição brasileira. 1954. p. 102-103.
164
apresenta características que o fazem transitar de um ao outro. Não possui, assim, uma
social a ela aplicada representa uma inovação, visto que se reconhece que a mesma não
deve ser protegida apenas em face do interesse individual que sobre ela estabelece o
sendo concebida enquanto direito patrimonial na medida em que contribui com o bem-
quais por sua vez eram admitidas apenas em relação ao Estado. A relação jurídica
poderes que lhe são inerentes, a propriedade passa a encampar deveres, de exercê-la em
500
LIMA, Ruy Cirne. Princípios de direito administrativo. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 1954. p. 63.
165
que a propriedade somente se legitima pelo seu uso efetivo. Para que qualquer cidadão
possa, portanto, fazer valer seu direito de propriedade é preciso que a sua propriedade
esteja cumprindo uma função de cunho social, pois a única propriedade que merece
proprietário, do cumprimento da função social adstrita ao seu bem, prova esta que deve
ser judicialmente exigida pelo Juiz quando das competentes ações, sendo possível aos
eventuais Réus oporem, como item de defesa, as respectivas exceções por não
cumprimento da mesma.
pertença. Isto porque, como o sabemos desde o direito público, o curador de qualquer
interesse público gere interesses inapropriáveis por ele próprio e que não se encontram à
livre disposição de sua vontade.502 Trata-se de uma cisão semelhante aquela promovida
501
RABAHIE. op. cit. p. 227.
502
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. p. 32-33.
166
propriedade, podemos afirmar que o mesmo representa grande avanço do ponto de vista
esfera de vida privada, conduta que se inverte na passagem à esfera de vida pública, na
passagem da ‘casa à rua’ demarca, pois, uma forte mudança de padrões sociais de
cidadania.
como é o caso do solo criado, uma “agravação das condições para exercício regular
503
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 65.
504
Vide lei nº 6766, de 19/12/1979, que regula o parcelamento da terra para fins urbanos, instituindo
determinadas condições para que se possa comercializar as frações de terra.
505
Tal colocação tem como fonte as notas de aula registradas na disciplina de ‘Propriedade Urbana’,
ministrada pelo referido professor no âmbito do Curso de Mestrado em Direito da Cidade da UERJ, por
nós cursada no segundo semestre de 1996.
167
não podemos estar falando de faculdade mas apenas de obrigações. No entanto, esta
Desde a década de 1950, San Tiago Dantas506 se referia à obrigação de contratar, na qual
a lei estabelece uma situação contratual, criando um vínculo dessa natureza em hipóteses
contratual levado a cabo pelo Estado, que é pressionado pelas conseqüências desumanas
506
DANTAS, San Tiago. Evolução contemporânea do direito contratual. In: ___ . Problemas de direito
positivo. Rio de Janeiro: Forense, 1953. p. 13-33.
507
O mais remoto exemplo dessa modalidade contratual consiste no contrato de seguro de
responsabilidade civil, estabelecido, para vários tipos de situações, no art. 20 do Decreto-Lei nº 73, de
21/11/1966, que organiza o Sistema Nacional de Seguros Privados e operações de seguro e resseguro.
Ficou esta modalidade popularmente conhecida como “seguro obrigatório”.
168
como se dão as relações jurídicas, isto é, daquilo que Eugen Ehrlich designa por direito
vivo.508
exato espírito da função social da propriedade, visto que embora surja do fenômeno da
publicização do direito privado, atua no campo deste, isto é, não retira o contrato do
domínio específico do direito civil. O vínculo jurídico não deixa de ser contratual, não
podendo ser confundido com uma mera obrigação ‘ex lege”, fruto da subordinação dos
indivíduos ao Estado, o que mais se aproximaria de uma relação jurídica tributária. Isto
apenas o último dos elos de uma cadeia de atos voluntários, estipulando-se a convenção
final e os efeitos desta sobre o particular. Não há uma oposição ou ruptura, mas uma
que merece aprofundamento específico, o que não será possível no âmbito desta
dissertação. Desde já, no entanto, é possível deduzir-se do que acima se afirmou que não
está em consonância com o princípio da função social o disposto no art. 572 do Código
não conhecendo por isso qualquer limitação interna. Tal entendimento já figura em
algumas legislações européias, com destaque para a lei italiana nº 10, de 28/01/1977, a
qual estabelece, em seu artigo 1º, in fine, que a execução de obras ou atividades que
concessão municipal.509 Entende, pois, que o direito de construir não se insere como
508
EHRLICH. op. cit. p. 373 e ss.
509
MOTA. op. cit. p. 321-322.
169
manifestação natural do direito de propriedade, mas sim que se lhe agrega por ato
condições definidas pela legislação urbanística. Trata-se de um direito que vem de fora
para dentro.
propriedade. Isto porque, em primeiro lugar a titularidade do bem, aquilo que de fato
municipal - e excluir essa mesma faculdade. Por condicionar, e não extinguir, a faculdade
respectiva indenização. Trata-se de um exagero da mesma ordem daquele que nos dias
nacional, sempre que alguma lei de proteção social, trabalhista ou ambiental por este
indireta.510 Por fim, ressaltamos que mesmo os atos lícitos e tidos como uso regular de
do conceito de responsabilidade civil por ato lícito, o qual supõe um dano injusto
510
VIEIRA, Lizt. A constituição do ‘mundo novo’. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 mar. 1998. 1.
caderno, p. 23.
170
usar daquela linearidade típica dos princípios jurídicos romanistas, os quais são alheios às
faculdades dominiais realizadas com base na função social da propriedade não configura
uma restrição ao direito de propriedade, pois esta é posterior à sua constituição jurídica,
privada, define-se e configura-se um novo feixe de poderes de ação, detidos tanto pelo
algo substantivo ao direito de propriedade, isto é, que integra o própria conceito jurídico
de propriedade, e não é algo que vem após este como algo adjetivo, a conseqüência a ser
forçosamente admitida é a de que vale para ela aquele mesmo princípio admitido a
qualquer poder constituinte originário. Ante este não cabe falarmos em limitações
jurídicas, em direito adquiridos, visto que este poder é o responsável por reconceber
todo o sistema normativo, por reinstaurar o direito, definindo quais são por ele admitidos
e quais são por ele proscritos. Fica, pois, prejudicada qualquer noção a priori sobre
faculdades tais ou quais que seriam inerentes a propriedade, pois é exatamente este o
Nesse sentido, cabe-nos utilizar com muita parcimônia das expressões utilização normal
natureza apriorística.
destruir o próprio bem em prejuízo da coletividade. De outro lado, parece evidente que
tal supressão não pode extinguir toda e qualquer forma concebível de utilização da
algo como um corpo sem membros. O campo da análise, pois, há de ser abrangente,
que consideram essencial o poder de uso, até os que o situam no poder de disposição,
passando pelos que o vêem no poder de gozo. 511 Indubitável, nesta matéria, parece-nos a
afirmação de que o conteúdo mínimo não constitui um limite fixo em si, mas possui um
nos mais altos valores protegidos pela ordem jurídica. No caso brasileiro, isto significa
511
MOTA. op. cit. p. 320-322. Vide ainda PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das cousas. Rio de
Janeiro: B. L. Garnier, 1877. v. 1, p. 75.
512
Apud MOTA. op. cit. p. 361.
172
homem e da mulher concretos como seres livres - como o mais alto valor
relações jurídicas diz respeito a temática do abuso de direito. Não sendo mais concebido
o direito de propriedade como absoluto, mas relativizado pelo dever social que faz parte
de sua ontologia, torna-se possível em tese aquilo que sempre foi fato empírico, isto é, o
abuso desse direito. De outro lado, significando a função social a adstrição do bem a
finalidade não abrigada pelo mesmo, gerando uma descoincidência objetiva entre aquele
e esta.514 Como a lei não prestigia intenção orientada para fim diverso daquele nela
contido, não se faculta ao titular da propriedade suprimir o fim para o qual o bem do
qual é detentor está destinado finalisticamente. Tal interdição vale mesmo para a
desatender à segunda. Aplicar a lei, nesse caso, significa conformar-se a sua razão de ser,
ao objetivo em vista do qual foi editada. A finalidade é o ‘espírito da lei’, não cabendo
513
MOTA. op. cit. p. 360.
514
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. p. 564.
515
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. p. 232.
173
é o nenhum valor jurídico dos atos dessa forma praticados, que se penalizam com sua
daqueles que agiram em desvio de poder, num mau uso dos poderes dominiais. Torna-se,
desviados de finalidade da parte deste, a declaração judicial da nulidade de tais atos, bem
como as devidas reparações pelos danos, de forma análoga àquela possível face ao
boa parte da doutrina ainda salienta a falta de clareza e objetivação em seu enunciado 517,
proteção ambiental, trabalho, etc. Tal definição, em relação aos imóveis urbanos, caberia
516
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. p. 62.
517
Como RABAHIE. op. cit. p. 222 e 238.
518
Vide TEPEDINO, Gustavo. A tutela da propriedade privada na ordem constitucional. Revista da
Faculdade de Direito, Rio de Janeiro: UERJ, v. 1, n. 1, p. 118. 1993.
174
à lei municipal do plano diretor, na linha do que dispõe o § 2º, do art. 182 da
Constituição Federal. Faz-se, pois, necessário que tais planos definam com objetividade
que objetivos são estes, como e quando devem ser alcançados. A título de exemplo, o
de zerar o déficit habitacional da cidade num prazo de dez anos, indicando, nesse
pois define que encargo é este, e em que prazo será realizado, restando apenas definir
como ela será repartida e exigida de cada indivíduo por ela atingido.
disposto no artigo 527 do Código Civil brasileiro, segundo a qual “o domínio presume-
concepção, não se justifica a presunção legal, mesmo que juris tantum, a respeito das
faculdades dominiais. Sendo certo que uma das conseqüências da adstrição do bem ao
prevalência do interesse público sobre o particular, talvez fosse mais correto presumir o
domínio eminente que pesa sobre a propriedade, com a particularidade de que seria
detido não pelo Estado, mas sim pela coletividade. A ilimitação, ou melhor, a
519
OSÓRIO, Letícia Marques et al. Instrumentos de reforma e de desenvolvimento urbano. Porto
Alegre: Cidade, 1994. p. 8-9.
520
BRASIL. Código civil e legislação em vigor. cit. p. 123.
175
cumprimento efetivo da sua função social, isto é, seria um a posteriori, jamais uma
Legislativo municipais para que, estes sim, imponham ao proprietário as obrigações que
a Constituição lhe comina. Assim, o direito, ou, na pior das hipóteses, interesse, detido
por tal cidadão, somente seria exercível por intermédio dos poderes políticos locais.
ignora que entre Estado e sociedade existem mediações, isto é, outras formas de
deixam quaisquer dúvidas. A própria Constituição Federal, em seus artigos 29, XII e
XIII, e 204, II, apenas para ficar nos exemplos mais evidentes, ao sancionar
521
Conforme a doutrina de José Afonso da Silva a respeito da eficácia das normas constitucionais
programáticas. In: SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São Paulo:
RT, 1982. § 17, n. 66.
176
moderno. Assim, se, à primeira vista, com a incorporação mais incisiva do princípio da
função social teríamos uma ampliação da subjetividade jurídica (vale dizer, faríamos
forma limitada e contraditória. Trata-se de aspecto a merecer urgente revisão, sob pena
‘o que o caput dá, o parágrafo tira’, ou de que ‘na prática a teoria é outra’.
- vale dizer, perante a sociedade, não perante o Estado, jamais podendo dissolver-se
O Código Civil brasileiro, da mesma forma que o alemão (em seu § 903),
conteúdo deste, mencionando o feixe de deveres que nele se contém, e deixando a tarefa
Pereira, em sua pioneira obra Direito das Cousas, de 1877, define o direito de
propriedade como o “direito real que vincula e legalmente submette ao poder absoluto
sentido bastante próximo, o alemão Jorge Frederico Puchta, nas suas Pandekten -
522
PEREIRA, Laffayette Rodrigues. Direito das cousas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877. p. 74.
177
editada no mesmo ano de 1877 - afirmara a propriedade como a “total sujeição jurídica
seu turno, escreveu que “domínio é o direito real que vincula à nossa personalidade
uma coisa corpórea sob todas as suas relações”.524 Clovis Bevilaqua, a quem atribuímos
qualquer outra pessoa, podendo seu titular impedir que estranhos façam o menor uso525
da coisa a ele submetida pelo vínculo dominial.526 Além disso, acrescenta que é a
“reunião mais completa de poderes de uma pessoa sobre uma coisa”,527 forma como
propriedade exclusivamente sob um ângulo hoje classificado como estrutural, que capta
detenha. Assim, o único efeito jurídico que a propriedade gera para aqueles que não se
domínio, ou seja, temos uma obrigação de não fazer, também chamada dever geral
negativo.
Constituição Federal. Seu conteúdo é definido nas leis ordinárias - onde teremos um
Miranda,
propriedade em seu sentido dinâmico, referente ao papel que desempenha nas relações
sociais. O termo função, como vimos, serve para designar a maneira concreta de um
direito operar. Trata-se de uma perspectiva que se encontra em contraste - embora não
estritamente, de sua função social, dado que neste o direito é abordado a partir de suas
características abstratas, isto é, fala-se do direito em tese, das noções formadas a priori
se insere no plano fático daquilo que compõe a vida em sociedade. Com base nesse
ponto abre-se uma divergência doutrinária. Joaquim Castro Aguiar529 entende que o que
possui função social é o bem, porque sendo ele o objeto do direito, somente ele
528
PONTES DE MIRANDA. Comentários... cit. p. 22.
529
AGUIAR, Joaquim Castro. Direito da Cidade. Rio de Janeiro, Renovar, 1996. p. 6.
179
encontra-se no plano dos fatos. É contraposto por Marina Macedo Rabahie530, para
quem a função social qualifica a atuação do proprietário e não a propriedade em si. Esta
representa um bem embutido no direito, logo, não tem função, não pesando a função
social sobre o objeto do direito, mas sim sobre o próprio direito, em vista do qual age o
proprietário. À luz dessa perspectiva, o correto, talvez, fosse falar-se em ‘função social
do direito de propriedade’.
impondo, logo, uma revisão dos enunciados clássicos que definem juridicamente o
face a Constituição Federal, logo colidente com a mesma, embora de maneira não
Nacional, está um pouco mais sintonizado com os contornos que a Lei Maior demarca
para a propriedade, repetindo em seu art. 1.229 o enunciado corrente do Código Civil,
mas procurando, nos seus §§ 1º a 4º, traduzir, ao nível da legislação ordinária civil, o
de direito privado no Brasil, até hoje praticamente infenso aos contornos impostos ao
direito de propriedade pela ordem constitucional. No entanto, estes são limitados em seu
O § 1º, do indigitado art. 1229, dispõe, em sua primeira parte, que “o direito
regulamentar, isto é, sem definir que finalidades seriam estas. A segunda parte do mesmo
neste parágrafo, uma redução nítida do conceito de bem-estar social, o qual, no contexto
das cidades, não poderia se olvidar em assegurar o direito de moradia, uma das
O § 2º do mesmo artigo dispõe que “são defesos atos que não trazem ao
também deixa a desejar, tendo em vista que adota uma concepção negativa de
comentários mais específicos em seção própria. Optamos por proceder da mesma forma
532
BRASIL, Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. Código Civil; Projeto de Lei da
Câmara n. 118, de 1984. Brasília, 1984. v. 4, p. 7.
533
BRASIL, Senado Federal ... op. cit. p. 7.
181
em relação ao § 4º, cuja análise integramos à seção onde analisaremos os nexos entre a
princípio e da garantia contida na função social se esta não atribuir à coletividade, e mais
que decorrem do princípio em tela. Como exemplo daquilo que ora afirmamos,
invocamos o § 3º, do art. 2º, do Estatuto da Terra - lei nº 4504, de 30/11/1964 -, o qual
dispõe que “a todo agricultor assiste o direito de permanecer na terra que cultive,
dentro dos termos e limitações desta lei, observadas sempre que for o caso as normas
dos contratos de trabalho”.534 Neste, estipula-se claramente o direito que toca àqueles
534
BRASIL, Ministério Extraordinário ... op. cit. p. 13.
182
francês535, a qual parece ter dado ensejo a certas concepções segundo as quais a
propriedade vai aos céus e aos infernos, afirma a doutrina que em verdade o direito de
propriedade jamais foi absoluto e ilimitado. A própria declaração universal de 1789, que
uso do próprio direito, de seu abuso, de seu uso irregular ou anormal, o que mereceria a
devida repulsa jurídica. Desde então se concebe que “o direito existe para ser exercido
direito sem utilidade para si, ou com utilidade mínima, mas com o fim precípuo de
momentos afirmará a não juridicidade do ato cujos efeitos sejam anti-sociais, reservando
tal caráter apenas aos comportamentos orientados por interesse apreciável e legítimo.539
entanto, firmavam com nitidez a condenação ao mau uso daquilo que se possuía como
535
Que prescreve que “a propriedade é o direito de fazer e de dispor das coisas do modo mais
absoluto”. Conforme FRANÇA. Código Napoleão ou Código Civil dos franceses. Rio de Janeiro:
Record, 1962. Traduzido por Souza Diniz.
536
DECLARAÇÃO dos direitos ... cit. Não paginado.
537
Frase insistentemente repetida por nosso saudoso professor de direito civil no período de graduação,
Amílcar Paranhos da Silva Velloso, a quem aproveitamos o ensejo para homenagear.
538
PEREIRA DA SILVA. Condomínio. cit. p. 75.
539
PEREIRA DA SILVA. Condomínio. cit. p. 76-78.
183
próprio. Tais limitações foram mais racionalizadas e explicitadas pelo Código Civil, onde
Com base nisso, Clovis Bevilaqua entendia haver no Código Civil brasileiro
interesse público. Tal entendimento devia-se sobretudo à cláusula que, após estabelecer
tais faculdades acrescentava: “contanto que delas não se faça um uso proibido pela lei
544 francês, e foi retirada da redação do art. 524 do código brasileiro durante a sua
ser suprida pela atividade interpretativa. Este autor entende como limitações à
corpo do próprio código), além dos impostos e das posturas municipais - baixadas por
entanto, o mesmo renomado jurista brasileiro, mais adiante, reconhece que embora os
comentários de Clovis Bevilaqua aos artigos do Código Civil que tratam dos direitos de
estritamente individualista, mas sim que é uma célula individual que convive com outras
de mesma espécie, inserindo-se numa teia social onde existem limites necessários à
liberdade das partes autônomas.545 De forma geral, procura-se, com tais limitações,
manter um equilíbrio social e jurídico dos interesses dos vizinhos, problema agravado
prédio do outro, bem como que o exercício das faculdades dominiais em uma torne inútil
mediante estritas restrições impostas a uma outra. 546 Aqui já se pode conceber, e de fato
543
PONTES DE MIRANDA. Comentários... cit. p. 496.
544
Arts. 554-588. BRASIL. Código civil e legislação em vigor. cit. p. 127-131.
545
BEVILAQUA. Codigo Civil... cit. p. 96-130; e Direito das coisas. cit. p. 186-187.
546
BEVILAQUA. Codigo Civil... cit. p. 124, 126; e Direito das coisas. cit. p. 187.
185
em face de uma outra propriedade vizinha à primeira. Estamos, isto sim, diante de uma
dizer, da cidade. Em outras palavras, estamos falando não da relação entre proprietários,
noção muito mais ampla de bem-estar social, a função social da propriedade busca
Busca fazer não apenas com que todas as propriedades sejam igualmente aproveitáveis,
mas que sejam aproveitadas igualmente por todos, que toquem a todos, propiciando um
acesso universal à terra. A função social se volta àqueles a quem não se aplica, ainda, o
segmento social do qual se diz que mora na cidade mas não a habita.
circulação, no entanto a ratio de tais limitações não é outra que permitir que cada
indivíduo chegue ao lugar que pretende, isto é, o espírito destas regras é potencializar as
liberdades individuais, retirando entraves sociais a que cada um possa atingir os próprios
fins, logrando por seus próprios meios a felicidade. Já a função social da propriedade não
material, isto é, que interfere no processo de escolha dos próprios objetivos ou fins que
orientam os movimentos de cada indivíduo, determinando que estes sejam os fins que
186
mera oportunidade mas sim um determinado resultado, resultado este de relevância não
apenas subjetiva como no caso de lei de trânsito, mas sim de relevância no âmbito da
cidade.
italiana chega a uma esquematização de tal diferença que identifica quatro distintos
Com base naquilo que até aqui se expôs, sintetizamos, no quadro abaixo as
DA PROPRIEDADE À PROPRIEDADE
a) É interna, essencial e necessária à são externas à propriedade e
SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 8. ed. rev. São Paulo: Malheiros,
547
1992. p. 254.
187
encargo social
relativizado
constitucionais - como a única via pela qual se admite uma exceção à inviolabilidade da
interesse social - é que se finda por confundir este instituto com a realização da função
social da propriedade.
548
DECLARAÇÃO dos direitos ... cit. Não paginado.
188
altera, não a titularidade da propriedade, mas sim as suas formas de utilização e/ou
contrário, trata-se aquele de algo muito maior, que extrapola os limites deste. A
recíproca sim, e apenas esta, pode-se afirmar como verdadeira. Segundo cremos, o
contexto contemporâneo, mais do que qualquer outro, permite e exige tal distinção entre
aquilo que é público e o que é estatal, podendo-se falar do primeiro sem estar-se
da Silva afirma, com base na Constituição, que “uma coisa é a propriedade pública,
outra a propriedade social e outra a privada”.551 São estas distinções fundamentais que
549
op. cit. p. 55.
550
MEIRELLES Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 23. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros,
1998. p. 491.
551
SILVA. op. cit. p. 248.
552
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. 10. ed. p. 533.
189
desapropriação é fruto do Estado Liberal, onde a relação entre este e a sociedade civil é
de sua vizinhança histórica com o Estado absolutista, de onde nos vêm noções como a
partir do que se organiza o modelo de dirigismo estatal das atividades privadas. Esta
direção não faz do Estado parte das relações econômicas no sentido formal da palavra,
não se torna titular de direitos, mas sim procura regulá-los no intuito de proteger os
próprios particulares. Por isto, se afirma que o interesse público, nesse caso, é
secundário.
dominial privada em nome do interesse coletivo, o que não justifica que uma se resolva
específica.
seria uma maneira pouco coerente de instrumentalizá-la. Isto porque é uma forma de por
mais que um conceito lato para o mesmo termo, mas, sobretudo, um outro conceito, que
valor é entendida não como um processo de aquisição do bem, mas como imposição de
como, por exemplo, a partir de 1946 a indenização expropriatória, além de prévia, deve
também ser justa e em dinheiro, salvo exceções pontuais que comparecem a partir de
uma exceção à propriedade, bem como não transparecia admitir uma distinção nítida
que estabelece a garantia da propriedade e as suas ‘exceções’. De outro lado, nas cartas
indenização.
no âmbito civil, deixa clara a predominância de outra concepção de função social, não
essencial ao direito de propriedade. Se assim não fosse, não haveria sentido em se falar
pela lei. Quem adquire uma propriedade socialmente funcionalizada adquire, por
sua não observância faz desaparecer o bem que possa ser objeto de direito subjetivo.
São os seguintes os artigos constitucionais a esse respeito: art. 179, nº 22 da Constituição Imperial de
556
1824; art. 72, § 17 da Constituição Republicana de 1891; art. 113, nº 17 da Constituição de 1934; art.
122, nº 14 da Constituição de 1937; art. 141, § 16 da Constituição de 1946; art. 150, § 22 da
Constituição de 1967; art. 153, § 22 da Emenda Constitucional nº 1 de 1969; e art. 5º, inciso XXII da
Constituição Federal de 1988. Vide BRASIL, Constituição. op. cit. p. 34, 128, 170, 214, 287 e 393.
192
Logo, impossível desapropriar uma propriedade que não mais existe, o que, além de
maneira mais plena, ou pura. Esta tem como uma de suas condições a sua não
absolutismo que até então vigorara. A desapropriação nasce num contexto de afirmação
hipóteses, a desapropriação seria uma exceção que confirma a regra, isto é, uma
ressalva que não faz mais do que afirmar a inviolabilidade da propriedade, sob a
aparência de sua negação.557 Ela não limita a propriedade em si, como se almeja mediante
557
A esse respeito, vide BOBBIO. A era dos direitos. cit. p. 94-95 e 109 e ss.
193
propriedade é sempre público-privada, vez que a ela é agregado valor na medida em que
uma propriedade privada pura, isto é, como se todo o seu valor econômico se formasse
que ora comentamos, ela é a primeira a não apresentar a desapropriação como ressalva
propriedade.559 No entanto, ela não está isenta de contradições, ou seja, embora não
SANTOS, Boaventura. op. cit. p. 63-64.
558
Vide os incisos XXII a XXIV do art. 5º. Em incisos separados a Constituição garante a propriedade
559
(XXII), submete-a à função social (XXIII) e prevê as hipóteses de desapropriação (XXIV). BRASIL.
194
quanto ao capítulo da ordem econômica. Assim, no caso da política urbana temos o § 4º,
do art. 182, considerado como um dos dispositivos constitucionais que mais contribuiu
até aqui feitas, pode-se afirmar que o inciso III, mencionado acima, representa grande
incongruência. Uma vez constatado que o proprietário não dá a seu imóvel destinação
mesmo após duas sucessivas penalidades impostas pela municipalidade, o desfecho mais
adequado a tal situação seria a perda do bem. Em tal situação de recalcitrância não nos
que essa colide com a ratio não só das penalidades que lhe antecedem como do próprio
princípio da função social, que orienta toda a seção constitucional a respeito da política
urbana. Eros Grau561, em sua obra, também registra tal incoerência, embora,
incongruente, de alguma forma sinaliza no mesmo sentido que vimos apontando, isto é,
Constituição Federal no tocante à reforma agrária, a qual não encontrou meios de fazer
com que a propriedade privada cumpra sua função social, somente conhecendo a
tais meios não forem encontrados, a função social da propriedade, no tocante a sua
enfatizando, assumirá especial relevância a temática das locações, sobretudo no caso das
intersubjetiva de direito privado, e mais, que guarda estreitas relações com a questão da
moradia, já identificada como uma das primordiais funções sociais das cidades, e uma
562
É o caso do art. 184 da Constituição Federal, que dispõe: “Compete à União desapropriar por
interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função
social, [...].” É acompanhado pelo art. 2º da Lei 8629, de 25/02/93, que o regulamenta, dispondo que:
“a propriedade que não cumprir a função social prevista no art. 9º é passível de desapropriação, nos
termos da lei, respeitados os dispositivos constitucionais.”
196
obras doutrinárias de grande circulação, que abordem esta relação jurídica sob a ótica da
admite, sob a égide desta, que a administração da propriedade privada se faça pura e
simplesmente inspirada pela vontade autônoma de seu titular. Assim, não há como se
reconhecer validade não somente à denúncia vazia, mas a diversos dispositivos da lei de
exigências contidas na lei, nela própria submetem-se a vontade das partes, não tendo
ao seu titular, mas uma certa margem de liberdade, harmonizável e sempre compossível
motivação é obrigação decorrente de qualquer ato que não seja rigorosamente vinculado,
isto é, onde há uma aplicação quase automática da lei, de forma que sua motivação
subjetivos e que dependam de uma apreciação mais complexa. Sem dúvida nenhuma, tal
563
op. cit. p. 67.
197
há como a lei que regulamenta a sua utilização locatícia dispensar o senhorio de expor as
pretensão. Sem isso, não há como se auferir - e, logo, controlar - se a finalidade legal
está sendo atendida, se o ato está ou não em consonância com os deveres para com a
coletividade. No caso das locações tal aferição parece-nos vital, vez que, como
afirmamos, diz respeito a uma das mais essenciais funções da cidade, logo, a um
opinião que a motivação prévia constitui requisito indispensável para a rescisão válida do
contrato de locação.
exigência uma condição de cidadania, a qual pode e deve ser concebida não somente nas
que isso, impõe-se a ampliação dessa proteção, garantindo a sociedade em relação aos
pelos poderes privados, mais do que nunca em escala crescente. É em vista de tal
ampliação que hoje vemos se processar uma larga renovação da civilística. Assim, da
mesma forma que é direito político de todo cidadão saber o porquê das decisões do
suas decisões - com muito mais razão deve se entender como direito civil de todo
cidadão ser informado das razões das decisões privadas que lhe afetem direta e
pessoalmente, pois só deve ajustar sua conduta àquelas amparadas pela lei. É o mínimo
198
gaúcho Márcio Oliveira Puggina565, que à luz do princípio constitucional da função social
decisões monocráticas que esposaram tal posição em lides concretas. Com efeito, uma
vez que o imóvel locado está cumprindo a sua função social, sendo efetivamente
que de fato goza de tutela jurídica. Se o imóvel tal como se encontra sendo utilizado
cumpre o programa constitucional, deve ceder diante disso a mera vontade individual do
proprietário.
tese, cabe-nos brevemente refletir a respeito status jurídico que nesse sistema se
instituto e a função social da propriedade, registramos desde já o fato de que dos poucos
Proudhon, dois autores que muito contribuíram à formação do conceito de função social
Assim, temos não apenas uma prioridade histórica, mas também ética daquela em relação
564
BANDEIRA DE MELLO. op. cit. p. 67.
565
PUGGINA, Márcio Oliveira. A inconstitucionalidade da denúncia vazia. Ajuris, Porto Alegre, n. 20,
v. 57, p. 272-277, mar. 1993.
199
sem restringir a sua justa liberdade, e até a faz respeitar melhor”.566 Já Proudhon é
por esta modificação de princípio, vocês mudarão tudo nas leis, no governo, na
se utiliza de suas coisas, afirmações nas quais se pode resumir “toda a teoria
Kant - que servirão de base ao desenvolvimento da ciência jurídica nos séculos XIX e
não possui valor em si, mas em função da essência a qual se vincula e da qual é
566
Apud PEREIRA DA SILVA. Comentários à Constituição brasileira. 1929. p. 764.
567
Apud MONTEIRO, Geraldo Tadeu Moreira. Posse e propriedade em Proudhon. Cadernos da Pós-
Graduação, Rio de Janeiro: Faculdade de Direito da UERJ, ano 1, n. 2, abr, 1996. p. 39.
568
BEVILAQUA, Clovis. Direito das coisas. edição histórica. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976. p. 23-28.
569
BEVILAQUA. Direito das coisas... cit. p. 24.
200
prática”.570 Logo, não retira seu valor da experiência sensível, mas dos postulados a
que equivaleria a conferir maior valor ao dado empírico em relação ao dado racional,
este que extrapola o próprio campo do direito - onde a posse se contem - pertencendo,
sendo a sua negação incompatível com o Estado racional, não cabendo a este fazer outra
coisa além dar-lhe os instrumentos para que possa existir empiricamente, o que se fez
mediante aquilo que é real - a posse -, pois seria difícil operacionalizar a garantia a algo
imperceptível pelos sentidos. Assim, por meio da posse torna-se palpável a relação
jurídica abstrata configurada na propriedade, sendo através daquela que esta pode ser
não empírica. Não há, assim, uma valorização autônoma da posse, isto é, não é ela
tutelada juridicamente enquanto tal, de per si, mas unicamente enquanto face visível da
propriedade”. Isto significa que não possuirá qualquer valor se, circunstancialmente,
possuidor572 - designando-o, na pior das hipóteses, como possuidor indireto - bem como
prescrevem que “não se deve julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente
não pertencer o domínio”.573 Em suma, temos aqui uma sistemática que faz da posse um
contou com a valiosa contribuição não somente de Ihering, mas também de juristas do
da regulação jurídica da posse não esteve, como jamais poderia estar, apartada dos
a posse também é classificável como uma posse burguesa, em outras palavras, uma posse
da função social implica necessariamente num “novo conceito de posse, que se poderia
referido autor revela empregar desde 1943 em seus pareceres, e que ganhou aceitação
requisitos da cultura efetiva e da morada habitual, que configuravam tanto a posse como
direitos reais orientado por sua vocação ao interesse social, justifica-se e legitima-se, no
aqueles, que de fato exercem tal espécie de posse, a opção do sistema normativo pela
solução em prol dos últimos, conferindo-se tutela jurídica àquele que realiza a destinação
social do bem. Por essa razão, Miguel Reale, jurista que supervisionou os trabalhos de
redação que levaram ao projeto de Código Civil que ora tramita no Congresso Nacional,
propriedade imóvel:
576
ANTEPROJETO ... cit. p. xxxix.
577
BRASIL, Senado Federal ... op. cit. p. 7.
203
dispositivo, alguns até que extrapolam o tema da presente seção - estes, no entanto,
serão deixados para a seção seguinte, no intuito de melhor ordenar a exposição dos
assuntos. Primeiramente, ante a posse qualificada pelo trabalho não prevalece o jus
e quando cumprida a condição deste estar realizando sua função social. Uma vez que é a
posse que realiza tal função, para esta se desloca a proteção conferida pelo direito, pois é
que, de certa forma, se viu superada com o advento da Constituição de 1988, que foi
qualquer dos casos, no entanto, vale destacar que à posse é conferido um valor que não
está em função do domínio, mas que pode até ser oposta ao mesmo. É considerada não
como uma exteriorização da propriedade, mas sim como meio de sua correção, de sua
por Baldez:
formada no seio da sociedade - pelo menos naquela fração social constituída pelos
destes, seja no campo seja na cidade, observa-se uma recriação do conceito de posse no
plano das práticas sociais concretas. Neste plano, a posse em hipótese alguma se
conteúdo mais rico, dado que o interesse real dos integrantes de ditos movimentos não
se concentra na posse da terra por si mesma, mas sim na posse enquanto fator básico à
aludida dependência da realidade que neste se verifica. Segundo tal premissa, que
defini-la no caso concreto, à luz das diretivas gerais que nela se contém.
Não nos ateremos aqui à solução propriamente dada a cada uma das lides, o
que além de nos obrigar a extensos comentários a respeito dos acórdãos nos desviaria do
enfoque que desejamos dar ao nosso tema. Assim, optamos por selecionar - e comentar -
alguns trechos dos acórdãos, segundo as premissas que até aqui já assentamos e segundo
propriedade.
aos fatos, e/ou a nova forma de encarar a relação fatos-normas. Assim, a adoção do
que:
quando ressalta não ser a função social da propriedade um preceito estático, definível em
tese e aprioristicamente em relação ao fatos, mas, ao contrário, que necessita dos fatos
consideração destes mesmos fatos. Está, pois, imbuída da noção de que os fatos, por
subsunção dos fatos à lei em que se baseia o raciocínio jurídico, e obrigando o jurista a
exclusivamente pela sua analise textual. Assim é que, num dos acórdãos, afirma-se que
“não via o Relator como fazer prevalecer uma visão tecnicista e formalista do Direito
nos acórdãos analisados, que os Juízes consideraram, entre outros, os fatos de o imóvel
terras”584, fato que torna possível auferir, por exemplo, se o imóvel em questão excede
seria tangível pelo princípio da função social. De outro lado, consideraram ainda o fato
de tratar-se a região onde o imóvel se localiza de uma periferia urbana sujeita a forte
582
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 153 e 149-151.
583
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 151.
584
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 153.
207
se agiram impelidos por malícia ou por “autêntico estado de necessidade”.585 Num dos
acórdãos revela-se que a decisão tomada demandou longo debate da causa, “sob todos
que:
“O certo é que país com milhões e milhões de famintos e sem moradia (ou
com moradias atentatórias ao mínimo de dignidade humana) não pode
conviver com vastas áreas de terras sem ocupação, cujos proprietários
aguardam sua valorização”.587
numa re-leitura de todo o ordenamento civil à luz dos objetivos e diretrizes fundamentais
qual passa a figurar como o bem jurídico objeto de tutela desse sistema jurídico. Ou seja,
585
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 154.
586
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 153.
587
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 151.
588
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 151.
208
direitos humanos.
objeto da lide, cedendo, ante a esse direito, os poderes e faculdades dominiais. Se não,
vejamos:
parece exigir do Juiz o assumir um papel mais criativo ante o Direito o qual tem por
Nesses três aspectos acima destacados, percebe-se que não houve consenso
a respeito deles entre os julgadores, como, aliás, seria de se esperar, pois estamos
pedras de toque da ciência do direito. Cremos que isto nada mais é do que demonstração
panorama dos distintos caminhos pelos quais se propõe que a ciência jurídica responda
aos desafios da sociedade contemporânea. Assim, no tocante ao último ponto que acima
comentamos, colocou-se a dialética do juiz cumpridor da lei - pois é dela que retira a
sua autoridade, sendo a pior das ditaduras a do Judiciário - versus juiz construtor da lei -
ainda que não absoluto, pois ele dá concreção aos princípios fixados na Constituição.
Indo mais a fundo, percebemos que debater este ponto implica, e significa, definir qual a
Roger Raupp Rios591, juiz federal no estado do Rio Grande do Sul, parte do princípio da
imediata incidência das regras constitucionais - a qual independeria do próprio art. 5º, §
Entende tal magistrado, invocando inclusive a doutrina de Clovis Couto e Silva, que o
Juiz deve proceder com relação a função social da propriedade da mesma forma pela
qual já procede com relação ao princípio da boa-fé, princípio endereçado sobretudo aos
juízes, estimulando-os a formar instituições para responder aos novos fatos, exercendo
função individualizadora numa linha similar ao pretor romano, criando o direito do caso.
valendo ser lembrado o quão é inapropriado o texto legal elaborar definições científicas.
591
RIOS, Roger Raupp. A propriedade e sua função social na Constituição de 1988. Ajuris, Porto Alegre,
n. 22, v. 64, p. 307-320, jul. 1995.
210
No tocante aos dois pontos anteriores, e intimamente ligado com este último,
“(...) dolorosa situação que pode e deve encontrar solução por ato da
administracão (a função executiva da soberania estatal).
(...) No caso presente, o problema social dos embargantes soluciona-se
através da desapropriação do imóvel, da competência do Estado-
Administração. A função social da propriedade, como definida na CF,
justamente, impõe-se, corretivamente, através do processo
592
expropriatório”.
palavras, trata-se de discernir como se resolve - ou, como deve se resolver - o conflito
proprietário - hipótese que reputamos publicista -, ou pelo clássico caminho pelo qual o
semelhantes àqueles que o Tribunal de Alçada gaúcho teve diante de si. Trata-se, agora,
Paulo, a 16/12/1994, em grau de Apelação, desta vez em votação unânime e cuja ementa
é a seguinte:
592
CARVALHO, Amílton. op. cit. p. 157.
211
recebido, inclusive, diversos investimentos do poder público, conclui-se que não mais
existe o objeto do direito, que deixou de existir enquanto realidade material. Assim, se é
pois, segundo o art. 77 do Código Civil, “perece o direito perecendo o seu objeto”. 595
Aquilo que se revela impossível do prisma social não pode revelar-se juridicamente
art. 524 do Código Civil596, inserindo-se-lhe um interesse social que pode não coincidir
com os interesses dos proprietários, fica claro que este proprietário exerceu seu direito
de forma anti-social, isto é, abandonou seu bem por mais de vinte anos, num contexto de
afirmação de que tal noção não é abstrata, mas localizada no tempo e no espaço, vale
593
CINTRA JR., Dyrceu Aguiar Dias & RUIZ, Urbano. Função social da propriedade. Justiça e
democracia, São Paulo: Associação Juízes para a Democracia, n. 1, p. 239-246, jan/jun. 1996. seção
‘Decisão comentada’.
Trata-se da Apelação Cível n. 212.726-1-8-São Paulo, relatada pelo Des. José Osório. O mesmo acórdão
foi também publicado no Boletim AASP, n. 1896, p. 137-140, abr/maio. 1995.
594
CINTRA JR. & RUIZ. op. cit. p. 240.
595
CINTRA JR. & RUIZ. op. cit. p. 240.
596
O qual dispõe que “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de
reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”. BRASIL. Código civil e legislação em
vigor. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 120-122.
597
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre, Sergio Fabris, 1991. p. 13-23,
especialmente a p. 18.
212
Nesse segundo acórdão, o que nos parece relevante é não somente as razões
do TJSP, que mostram como se insere a função social no próprio raciocínio do julgador,
mas sim, e, sobretudo, a solução, isto é, como se compõe o conflito entre o interesse
individual e o social. No caso, o Tribunal entendeu que, diante dos fatos, o jus
reivindicandi ficou neutralizado pelo princípio da função social da propriedade, mas que
de direito. Ou seja, de um lado, não decretou a pura e simples perda do bem, o que
bem, expressão de seu conteúdo mínimo. Diferente disso, entendeu ter desaparecido a
juridicamente legitimado a promover a retomada, ficou sem os meios normais para tanto.
Estamos longe, no entanto, de esgotar todas as dúvidas que sobre ele podem-se levantar,
existindo em tese a possibilidade de que alguma das partes, na medida de seu interesse,
Código Civil, já mencionado em seção anterior. Tal solução, que à primeira vista parecia
superada pelo advento do usucapião constitucional, neste caso revelou-se útil, como
referência, mesmo que de lege ferenda, à decisão judicial. Muito embora o lapso de
tempo da ocupação seja superior aos cinco anos determinados pelo art. 183 da
Constituição, o fato é que num sem número de casos o usucapião é uma possibilidade
que seja-lhe possível responder adequadamente a conflitos como aquele sob exame.
Parece-nos ter sido esta mesma percepção que orientou a redação da parágrafo incluído
como a jurisprudência e a doutrina alemã a conceberam, visto que, nesta não há que se
falar em indenização. Trata-se de uma hipótese mais remota, dado a falta de referências
admissível, mas a venda compulsória do imóvel. Nesse caso, a quem teria se dado a
venda? A princípio, vislumbramos apenas duas hipóteses: (1) aos próprios moradores, ou
(2) à municipalidade. A primeira hipótese apresenta alguma sintonia com o art. 182, § 4º
da Constituição, com a diferença de que não foi a municipalidade, mas sim o Juiz, quem
impôs o compulsório parcelamento e venda dos lotes, lotes estes que não seriam
oriundos de projeto aprovado pelo poder público, mas sim fruto da ocupação espontânea
598
Esta aparência se deve ao fato de não ter sido o Poder Público aquele que se apossou do bem
previamente à sua desapropriação. De fato, há desapropriações por interesse social feitas em hipótese
exatamente como a presente, que nem por isso são reputadas indiretas.
214
e anterior ao ato formal de parcelamento da terra. Este último aspecto, em si, não
são eles as vítimas do processo de “erosão social”599 a que se refere o Tribunal, por que
imputar-lhes o ônus de arcar com tal indenização ? Caso estes não possuam os recursos
para pagar o preço do imóvel - hipótese que nada tem de absurdo - como se resolveria a
questão ? Embora possua, em princípio, a virtude de ser feita em favor dos ocupantes do
imóvel, e não do Estado, essa solução inverte a função social da propriedade, premiando
indenização.
Caso optemos pela segunda solução, entendendo que a venda teria se dado à
decreto, mais uma vez, seria de competência judicial. Tal solução também não nos
parece satisfatória, uma vez que re-incide no grave e já criticado expediente de resolver
associar e identificar aquilo que ao nível doutrinário somos capazes de distinguir. Por
599
CINTRA JR. & RUIZ. op. cit. p. 240.
215
jurídicas novas.
dificuldades e questões, cujo equacionamento é altamente complexo, que tem pela frente
realização de tal tarefa. Todavia, são precisamente essas questões que consideramos as
mais relevantes que sobre esse tipo legal se possa levantar, principalmente se desejamos
Por fim, acrescente-se que a escassez (para não dizer, em algumas hipóteses,
dela retirar toda a sua potencialidade, sinaliza tanto para o quadro de requisitos, teóricos
e práticos, implicados em tal tarefa, quanto para uma certa resistência judicial, da mesma
ideologia jurídica, ao que nem todos os espíritos encontram-se dispostos e abertos. Tal
escassez é assaz verificável quando se trata de conflitos tipicamente de direito civil, isto
strictu sensu do Estado. É o que se percebe da leitura de uma série de acórdãos versando
600
A qual é registrada por SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. cit. p. 255.
216
propriedade, aos quais nos referimos alhures601 o que se verifica em todos os processos
falamos revela-se igualmente preocupante, pois de alguma forma sinaliza para uma não
real incorporação da função social da propriedade em nossa cultura jurídica. Assim, fica
solucionadas com base ou nos exatos termos em que a dispõe o Código Civil, vale dizer,
601
FALCÃO. op. cit. p. 79-101.
217
CONCLUSÃO
função social da propriedade, para nós é evidente também que este modelo legal nos traz
tantas sombras quanto luzes, ou seja, resta-nos uma série de questões e problemas a
de indiscutível relevância, tanto teórica quanto prática, como acreditamos seja papel da
ciência fazer.
Por aquilo que exige do intérprete, seja no plano doutrinário, seja no plano
expresso em códigos, separação entre direito público e privado, separação entre direito
social, enquanto forma jurídica, não se harmoniza com nenhum deles, mas aponta na
- constitucional, o mesmo se revela fugidio aos padrões genéricos das normas abstratas.
Até mesmo por essa razão não colocamo-nos como objetivo da pesquisa, como produto
218
sujeitos de que falamos, existindo poderosos óbices à sua emancipação social, sobretudo
aqueles que sofrem as graves conseqüências da desigualdade social. Sobre estes, diz-nos
“[...] mesmo quando tivessem consciência dos seus direitos (e, realmente,
não têm ...) e quisessem exercê-lo de um modo autônomo - não poderiam
fazê-lo. E isto porque qualquer veleidade de independência da parte desses
párias seria punida com a expulsão ou o despejo imediato pelos grandes
senhores de terras”.602
Nota-se, pela colocação acima, que é necessário forjar não somente o acesso
à terra, mas, junto com isto (já que antes não há como fazê-lo), forjar o acesso ao
direito. Universalizar o direito, fazer com que deixe de ser mais uma das espécies de
artigo de luxo, de consumo ao qual poucos têm acesso, eis a tarefa histórica dos juristas,
de maneira especial. Conquanto suas reais fragilidades, não há como se pensar o direito
proteção, tutela, etc. Isto é o que faz do sujeito um objeto. Exige-se, pois,
social e político é fortemente marcado pelas imagens geradas tanto pelo catolicismo
social. O sujeito social, assim, não se converte em sujeito de direito. Existe na ordem
plano das relações diretamente manipuláveis pelos sujeitos sociais, isto é, o plano das
ele tem se desenvolvido, sobretudo após a Constituição de 1988. A esse respeito, note-se
que o importante art. 182 da Constituição faz várias referências ao Plano Diretor, e
vem se impondo da divisão rígida entre os Direitos Público e Privado, tratam-se de duas
inválida e defasada. O que não cabe mais supor é que sejam campos estanques,
autônomos do direito.
campo mais específico do direito público, avanços que entendemos não só de natureza
legal mas, sobretudo, de natureza teórica e doutrinária - com uma interpretação menos
formalista e mais voltada aos escopos sociais e políticos do direito - são de máxima
democratização do direito público será de pouca valia sem que o mesmo ocorra nos
indiscutível a sua presença, como princípio orientador, nos Planos Urbanísticos, Planos
Diretores, leis ambientais. No entanto, sem que a legislação civil também lhe dê a devida
concreção, faltarão condições objetivas à sua efetivação de maneira geral. Não podemos
propriedade de que trata o código civil. Esta pode constituir, e, de fato, tem
sociais, muitas delas legítimas, que não têm como deixar de violar esferas particulares de
Conforme demonstrado em PESSOA, Álvaro. O uso do solo em conflito; a visão institucional. In:
603
ela.
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