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Por
J. E. Marinho Cardoso
2015
Os Selos do Dharma
Prefácio
Introdução
A Abordagem Budista
Motivação
As Três Joias
A Natureza Búdica
Os Cinco Preceitos
Os Selos do Dharma
Impermanência e Vacuidade
Sofrimento
Nirvana
Apêndices
Tripitaka
As Nobres Verdades
O Caminho Óctuplo
Originação Dependente
Os Cinco Preceitos
A lista dos Cinco Preceitos que conformam os pilares da ética budista é:
- Não matar.
- Não roubar.
- Não mentir.
- Não ter má conduta sexual.
- Não se entorpecer com álcool ou drogas.
Embora para aqueles que abraçam a vida monástica o número de preceitos
a serem observados seja bem maior, o budista leigo conseguirá evoluir e
melhorar o seu carma mesmo observando somente os Cinco Preceitos.
Os Selos do Dharma
Antes de falar sobre os Selos do Dharma precisamos considerar a seguinte
questão: “O que é a realidade?” Os dicionários nos dizem que a realidade é "o
estado das coisas como elas realmente existem". Avançando um pouco mais,
podemos afirmar que todas as coisas podem ser vistas de acordo com dois
níveis de realidade:
- Relativa; empírica; fenomenal ou convencional,
- Absoluta; fundamental; final ou última.
Segundo o Budismo Mahayana, o caminho do Buda em sua totalidade
pode ser entendido por meio de uma estrutura composta por dois pontos de
vista ou Duas Verdades:
- Verdade Relativa: que é relativamente verdadeira, mas absolutamente
ilusória;
- Verdade Absoluta: que é definitivamente verdadeira, a experiência
autêntica além de toda ilusão.
Seja qual for o fenômeno a ser conhecido, a sua compreensão se dá em
termos da verdade convencional, ou em termos da verdade última. Mas,
apenas em termos dessas duas verdades e não por meio de quaisquer outras
verdades. Daí a importância dos Selos do Dharma, pois se uma suposta
“verdade” contradiz ou entra em conflito com os Quatro Selos do Dharma,
ela não pode ser considerada um ensinamento autêntico do Buda. Uma
“verdade” que não for timbrada com todos os Selos do Dharma não pode ser
considerada uma verdade budista nem parte integrante do Dharma. Desde
que selo significa uma marca que confirma a autenticidade. Sem esses Quatro
Selos o caminho buddista passaria a ser teísta, um dogma religioso, e a
própria finalidade do Budismo se perderia.
Então, o que são e quais são os selos? As escolas budistas com base nos
ensinamentos do Buda reconhecem os Selos do Dharma, denominados
também como Características da Existência (ou Marcas da Existência) que
são vistos como as características definidoras do Budismo. Com efeito, os
principais conceitos da Psicologia Budista sobre a consciência estão contidos
nos Selos do Dharmma, pois só os ensinamentos autênticos do Budismo
possuem essas quatro características básicas.
Os Selos do Dharma não só respondem a pergunta: “Qual é a essência do
Budismo?”, mas permitem encontrar as razões porque o Budismo às vezes é
considerado uma filosofia e não uma religião. Se encontrarmos tais selos ou
marcas numa filosofia ou caminho este poderá ser considerado um autêntico
caminho do Buda.
O Primeiro Selo afirma que todos os fenômenos condicionados são
impermanentes. O Segundo Selo diz que todos os fenômenos têm a natureza
do sofrimento. O Terceiro Selo diz que todos os fenômenos são vazios
(vacuidade). O Quarto Selo afirma que o nirvana é a completa ausência de
conceitos ou extremos.
É bom ressaltar que ao investigarmos a natureza última da realidade, não
tomamos as palavras do Buda como uma autoridade suprema, mas sim como
referências ou “placas de trânsito” que nos orientam no caminho que leva ao
fim do sofrimento. Outro ponto a ser observado, é que a singularidade do
Budismo está expressa nos Quatro Selos, embora apenas os três primeiros
sejam mencionados por algumas tradições budistas.
Impermanência e Vacuidade
Ainda muito jovens aprendemos a olhar para a realidade empregando duas
dimensões: espaço e tempo. Pouco a pouco nos familiarizamos com essa
perspectiva espaço-tempo, que passa a fazer parte dos modos pelos quais
pensamos e organizamos a realidade.
Ciente de que vivemos nossas vidas a partir dessa perspectiva espaço-
tempo porque não olhar o Primeiro Selo e o Terceiro Selo juntos. Na verdade,
impermanência e insubstancialidade (“não eu”) são aspectos da mesma
realidade, ou seja, enquanto a impermanência é a insubstancialidade (“não
eu”) vista a partir do ponto de vista do tempo, a insubstancialidade (“não eu”)
é a impermanência vista do ponto de vista do espaço.
O Conceito de Impermanência
O mundo em que vivemos, a nossa mente, corpo e natureza básica estão
em constante mudança, mudando e mudando automaticamente. Embora a
vida seja esse caleidoscópio sempre em movimento - uma ligeira mudança, e
todos os padrões se alteram – é comum nos fixarmos em certas ideias e é
exatamente o apego às ideias fixas ou a resistência que abala nossa mente,
causando desconforto, agitação e isolamento.
No entanto, mesmo que tudo seja transitório, podemos ver a
impermanência facilmente, através da simples observação. Pela ótica do
tempo, podemos notar a impermanência na quantidade de mudanças que
ocorrem ao longo das estações do ano, nos meses, semanas, dias, ou mesmo
num único dia, que tem vinte e quatro horas. E dentro destas vinte e quatro
horas existem mudanças de hora em hora, de minuto a minuto e de um
segundo para outro segundo. Não podemos negar que há mudanças, pois cada
novo segundo que surge, logo desaparece – a natureza de cada instante é
fugaz. Mas podemos notá-la também pela ótica do espaço, ao questionarmos
onde estávamos ao acordar, e que deslocamentos sucessivos ocorreram a
partir daí até chegarmos onde estamos agora - quando nossos olhos
percorrem, neste instante, cada palavra de cada linha desta página.
O que quer dizer “impermanência”? A palavra “impermanência” é a
tradução comumente aceita para o termo anicca ou anitya. Impermanência ou
inconstância significa que aquilo que depende de causas e condições é
transitório. Todo fenômeno composto está em um estado de fluxo
interminável, transformando-se continuamente em outra coisa, eternamente
em decomposição e reorganizando-se, pois não dura para sempre.
“Composto” significa aquilo que é produzido, que é condicionado (causas e
condições). Por exemplo, uma pessoa é um fenômeno composto por isso é
necessariamente impermanente. Logo, podemos sintetizar essa marca ou
característica numa única frase: “todos os fenômenos compostos são
impermanentes”.
Ao ensinar sobre a impermanência, Buda não propôs uma nova teoria
apenas revelou a verdade da impermanência, isto é, que tudo está sujeito a
fenecer, desvanecer num fluxo, embora a mente insista em buscar segurança
ou permanência. Não há nada que não oscile, decaia ou mude. De acordo
com os ensinamentos do Buda, a vida é comparável a um rio. É um momento
em progressão, uma série sucessiva de diferentes momentos, que se unem
para dar a impressão de um fluxo contínuo. Ela se move de causa em causa,
de um efeito a outro, de um ponto a outro, de um estado de existência para
outro, ou seja, o rio de ontem não é o mesmo rio de hoje. O rio deste
momento não vai ser o mesmo rio do momento seguinte. O mesmo acontece
com a vida. Ela muda continuamente, tornando-se uma coisa ou outra de
momento a momento.
Os budistas observam que neste mundo não há nada que seja fixo e
permanente. Cada coisa está sujeita a mudança e alteração. "A deterioração é
inerente a todas as coisas compostas", declarou o Buda a seus seguidores
evidenciando que a existência é um fluxo, um contínuo vir a ser. O Budismo
declara que há cinco processos os quais nenhum ser humano tem controle e
que ninguém pode mudar. Estes cinco processos são nomeadamente: o
processo de envelhecer, de não cair doente, de morrer, da decadência das
coisas que são perecíveis e da extinção daquilo que é susceptível de cessar.
Deste modo, todas as pessoas estão presas a uma visão de mundo que nutre o
desejo de permanência e a busca por segurança sob diversas formas:
confortos, relacionamentos, saúde, felicidade, ideias, conceitos etc. quando as
pessoas se deixam iludir pela crença de que as doenças e a morte afetam
apenas os outros, por exemplo.
Tipos de Impermanência
A impermanência pode ser de dois tipos:
- Densa ou grosseira: refere-se a um objeto deixar de existir. A morte de
um ser humano ou a quebra de um carro são exemplos disso. Compreender
este tipo de transitoriedade não é muito difícil.
- Sutil ou tênue: em geral, e superficialmente algo parece o mesmo, mas ele
realmente está mudando a cada momento. Tudo o que surge não necessita de
qualquer outro fator que o influencie a desaparecer. Em outras palavras,
apenas seu surgimento já é a causa de sua cessação, porque as coisas mudam
a cada momento. Elas não permanecem estáticas, mesmo para o momento
seguinte.
Quando os fenômenos que nos cercam no mundo natural são observados
superficialmente percebemos as mudanças mais evidentes. Porém, quando
observamos certos fenômenos temos a impressão de que eles não mudam e
que irão durar por muito tempo. No entanto, mesmo que leve milhares de
anos, até aqueles que dão a impressão de serem aparentemente duradouros
também mudam. O fato é que eles mudam de forma sutil, e temos que aceitar
que tal processo de mudança ocorra de modo comparativamente mais lento
do que com outros. De fato, quando afirmamos que a impermanência dos
fenômenos são sutis, declaramos que eles não permanecem os mesmos num
par de momentos consecutivos. Todavia, se um fenômeno não mudasse -
ainda que sutilmente - de momento a momento, jamais cessaria de existir. Por
exemplo, o livro que estamos lendo neste instante não é o mesmo livro que
estávamos lendo no instante anterior, e ele só veio a existir porque o livro do
instante anterior cessou de existir.
Nada é Fixo ou Permanente
Mesmo sabendo que não vamos permanecer jovens para sempre, em algum
lugar das nossas mentes nutrimos a noção inata de que escaparemos da
impermanência. Quando paramos diante do espelho sentimos que estamos
olhando para nós mesmos e não demora muito para nos darmos conta do
quanto envelhecemos. Nossos corpos ficam sujeitos as marcas da passagem
do tempo, tanto a nivel externo quanto a nível interno, exibindo sinais típicos
e inexoráveis do envelhecimento e que podem ser facilmente percebidos
como a mudança do cabelo, da pele, dos braços, das pernas, a flacidez
abdominal etc., nos deixando preocupados e infelizes.
É interessante observar quanto há de cultural na maneira com que olhamos
para o envelhecimento. Mesmo quando queremos acreditar que envelhecer é
sinônimo de amadurecer com sabedoria e serenidade, que podemos viver
plenamente, sabendo aproveitar cada fase da vida com saúde e alegria, a
pressão social tem dificultado isso. Nas sociedades modernas não é incomum
que mulheres e homens escondam suas idades, como se o passar dos anos
fosse um motivo de vergonha, levando a fazerem grandes esforços para
melhorar a aparência que mostram no mundo.
O processo de envelhecimento é marcado por uma deterioração física e
mental que, às vezes, não aceitamos, gerando conflitos e dificuldades de
adaptação às novas circunstâncias vitais. De fato, a maioria das pessoas fica
infeliz com os primeiros sinais do envelhecimento, e com o aumento da
longevidade elas percebem que passam mais da metade da vida
envelhecendo. Mudanças vão surgir e serão inevitáveis, o corpo pede
repouso, descanso e cuidados, o mais adequado é dar isso tudo a ele. E se
nossa mente não está tão desperta nem tão ativa, significa que não podemos
esperar de nós mesmos o mesmo que esperávamos em etapas anteriores.
Nosssos corpos mudam a todo momento, e não há como evitar isso. Aquele
pulso da energia que reverberava em nós na adolescência se torna letárgico.
Nossos membros e sentidos falham. Mas pelo reconhecimento realista
conjugado com a aceitação da natureza mutável dos nossos corpos,
poderemos lidar de forma mais sábia com o sofrimento decorrente do
processo de envelhecimento. Dessa forma, vamos compreender que é da
natureza dos nossos corpos envelhecerem.
Outro equívoco muito comum em relação ao nosso corpo físico está
contido na expectativa de que ele nos traz felicidade duradoura. Ser saudável
é um apego reforçado culturalmente, há uma preocupação exagerada em nos
mantermos saudáveis que pode culminar no desenvolvimento de estados
mentais negativos ou até mesmo agressivos. Nestes casos, precisamos
compreender que é da natureza dos nossos corpos adoecerem, embora
ninguém goste de ficar doente não conhecemos ninguém que nunca adoeceu.
Assim, se pudermos aceitar a fragilidade de nossos corpos e que eles estão
sujeitos a adoecer estaremos cultivando um estado mental mais calmo e feliz.
Outro equívoco frequente sobre o corpo físico é que ele seria
intrinsicamente puro e atraente. Há um forte apego a boa aprência, reforçado
também pela sociedade em que vivemos. Corpos sedutores e atléticos são
valorizados e tendem a ser preferidos, já aqueles que não se encaixam nessas
categorias são preteridos ou até mesmo serem vítimas de preconceitos.
Podemos nos manter saudáveis, relativamente bem cuidados e bem vestidosn
mas sem gerar forte apego, pois preocupações exageradas com a aparência
podem nos deixar infelizes.
Logo, se procurarmos por uma entidade sólida e imutável para chamar de
"meu corpo", não acharemos nada. Não existe um fenômeno permanente e
estático que se possa identificar como corpo. E, assim como aquilo que
denominamos "meu corpo" pode ser fragmentado em cabeça, tronco e
membros; que por sua vez pode ser dividido em móleculas; e por sua vez em
particulas bem menores chamadas átomos; e continuando a fragmentá-lo
chegaremos ao ponto em que poderemos afirmar que "meu corpo" não é uma
entidade inerente. E nem é inerentemente atraente ou feio.
Essas quatro noções equivocadas - que nossos corpos são imutáveis, que
trazem felicidade duradoura, que são inerentemente puros e que possuem
natureza verdadeira e acessível - exageram as qualidades do nosso corpo nos
deixando ansiosos e infelizes. Daí a importância de estudar, contemplar e
meditar sobre a impermanência e também sobre nossa morte iminente, pois
dá um sentido maior de urgência ao uso de nosso renascimento humano atual.
Sem o reconhecimento dessa excelente oportunidade que a fugacidade da
vida nos concede, poderemos considerar nossa meditação sobre a morte
deprimente e masoquista.
As Duas Verdades e a Identidade
Antes de abordar a vacuidade vamos considerar um tema importante no
Budismo, que diz respeito as duas verdades: a convencional ou relativa;
última ou absoluta. A propósito, a verdade última não pode ser ensinada,
senão apoiando-se na verdade relativa. Mas só a realização da verdade última
conduz ao nirvana. Daí dizer que ambas são verdadeiras.
Todos os fenômenos podem ser vistos segundo dois níveis de realidade, em
que as duas verdades correspondem a dois pontos de vista da realidade: a
verdade ou visão relativa é convencional ou relativamente verdadeira, mas
absolutamente ilusória; e a verdade ou visão absoluta é definitivamente
verdadeira, a experiência autêntica além de toda ilusão. É por não incidirmos
no reconhecimento radical da verdade relativa, enquanto tal, que também
podemos designar por verdade convencional; mas é pela absolutização
indevida de qualquer ser ou forma que mantemos a ilusória separação entre
sujeito e objeto.
A verdade convencional é o nível empírico, relativo e fenomenal àquilo
que nos parece ser, onde causas e condições, nomes e rótulos podem ser
validamente compreendidos. A verdade absoluta é um nível profundo de
existência, para além do primeiro, que os budistas descrevem como o
fundamental, ou realidade final ou última, a natureza da realidade, e que
muitas vezes é tecnicamente referido como "vazio". Assim, pelo estudo e
prática regular do Dharma é possível perceber, ao mesmo tempo, as coisas
como existentes mundo afora (a verdade convencional), bem como
reconhecer que não dispõem de uma existência inerente (a verdade absoluta).
Sustentar essas duas posições aparentemente contraditórias só é possível
quando reconhecemos que a “realidade” não é um fenômeno com existência
objetiva e independente da nossa experiência.
As Duas Verdades são a explicação de um dado objeto que está sendo
observado por dois ângulos diferentes. Estas Duas Verdades são fenômenos
diferentes. Uma flor, por exemplo, que tem um nível relativo de existência
onde todas as convenções podem ser aplicadas, como cor e cheiro. Depois há
a realidade mais profunda, absoluta. A natureza absoluta age como base para
receber as coisas ou permitir a elas que tenham todas as suas diferentes
funções. Visto que as Duas Verdades são explicadas tomando o mesmo
objeto, elas também são consideradas como mutuamente excludentes.
Portanto, o Budismo vê a realidade a partir de duas perspectivas. Da
perspectiva última, o "eu" é visto como ilusório, como uma construção vazia
de existência intrínseca. Da perspectiva convencional, percebemos um "eu"
de modo convencional que parece ser independente das pessoas e coisas.
Basicamente, nós não temos um "eu" mas na vida cotidiana nós temos. Buda
sabia que no nível convencional há um "eu", pois funcionamos a partir da
perspectiva relativa nos relacionando com o mundo e com tudo que nele
existe. Mas no nível básico, os fenômenos não existem como coisas
separadas ou duradouras. Tudo o que há é uma rede de inter-relacionamentos
que se desenvolve constantemente.
O conceito de Vacuidade (“não eu”)
Embora falemos de um "eu" no Budismo, consideramos qualquer conceito
de "eu" meramente imputado ou identificado na dependência de um corpo-
mente. Conhecer realmente a natureza do "eu" é escapar do samsara. Por
isso, é imperativo nos dedicarmos a investigação da real natureza desse "eu".
O fato de existirmos como indivíduos não pode ser negado. Isso é afirmado
pela nossa própria experiência cotidiana.
Buda ofereceu uma visão a respeito, na qual propõe que o "eu" existe
meramente na dependência de suas partes mentais e físicas. Assim como não
pode haver um celular livre das partes que o compõem, não pode haver um
"eu" que exista de forma independente das partes que compõem uma pessoa,
explicou Buda.
Buda ensinou que imputar um "eu" unitário, imutável, permanente e
autônomo, independente das partes que compõem um indivíduo, introduziria
algo que não existe e, desse maneira, reforçaria um sentimento instintivo de
"eu". Por isso, Buda propôs a ideia da insubstancialidade ou não eu - a
impessoalidade.
O que quer dizer “não eu”? A expressão “não eu” é a tradução do termo
anatta ou anatman, e indica que nada existe de forma isolada e independente.
Na verdade, nada existe como entidade sólida e independente. Tudo carece de
existência independente, de uma natureza essencial, do seu "próprio ser". Isso
é o que queremos dizer com existência inerente – entidades sólidas e
independentes que existem por si mesmas, completamente independentes da
influência de qualquer outra coisa. É assim que as coisas aparecem e são
percebidas por nós. Daí dizermos que é vazio/vazia de existência inerente,
carecendo de natureza própria, porque todas as coisas são interconectadas e
interdependentes. Logo, podemos sintetizar essa marca ou característica
numa única frase: “todos os fenômenos são vazios”.
Enquanto acharmos que nossas partes ou agregados têm uma existência
natural legítima, não conseguiremos eliminar nosso apego à noção de "eu"
completamente. Daí os budistas advogarem o cultivo do discernimento da
ausência do "eu" - vazio -, pois trabalham para reconhecer a ausência de um
"eu" autossuficiente e substancialmente real. Para chegarmos a uma
percepção profunda dessa impessoalidade ou o "não eu" da pessoa devemos
desenvolver a mesma percepção da insubstancialidade dos fenômenos - das
partes de que são compostos. Logo, em relação a existência intrínseca de
nosso "eu" e dos fenômenos ocorre o mesmo.
Enquanto atribuirmos existência objetiva ao mundo que nos cerca, vamos
nutrir uma multiplicidade de noções e sentimentos, como apego, raiva e
aversão. Pela compreensão da impessoalidade chegamos a negação de
qualquer vestígio de apego a uma ideia de realidade inerentemente existente,
independente e objetiva. Portanto, é pelo cultivo do discernimento desse
significado extremamente sutil do vazio - a ausência de existência autônoma -
que poderemos solapar a ignorância fundamental que nos prende ao samsara.
Insubstancialidade e Identidade Pessoal
A questão básica em relação as aflições emocionais reside na falsa ideia de
identidade. Essa cegueira do "eu" deve ser abolida por meio do estudo de nós
mesmos, ou seja, pelo estudo do Dharma. Com efeito, o Budismo considera a
ideia de alma eterna ou "eu" uma ilusão, uma ignorância fundamental que
deve ser removida. Pelo estudo, contemplação e meditação no Dharma
poderemos reconhecer que, na raiz das nossas aflições cotidianas, encontra-se
um apego forte e equivocado àquilo que percebemos como nossa identidade
intrinsicamente real. Enquanto nos apegarmos a essa ideia de existência
objetiva - de que existe algo de maneira concreta e identificável - estaremos
sujeitos ao desejo e a aversão.
A crença em nós mesmos como um ser único e integrado é muita poderosa.
Nós pensamos: Este é o meu corpo. Esta é a minha mente. Buda ensinou que
este ponto de vista, é não só inerente e equivocado, sendo também fonte de
muito sofrimento. Quando começamos a desconstruí-lo pela meditação,
questionando se o "eu" ainda existiria sem o corpo e suas respectivas partes,
sem os seis sentidos e sem as memórias, poderemos compreender que o "eu"
é apenas um conceito.
De acordo com os ensinamentos budistas, o núcleo da consciência é
composto de vários elementos, os cinco tipos de agregados (skandhas) que
são classificados em duas categorias: mente e corpo. De acordo com as
escrituras budistas, o "eu" existe com base nos skandhas e não como algo que
não está relacionado com eles ou que venha de outro lugar. Há a sensação
inata de que nosso corpo é propriedade nossa, damos por certo que nosso
corpo pertence ao "eu". Da mesma maneira, há uma sensação inata de "minha
mente", de forma que a mente também é vista como pertencente ao "eu".
Portanto, isso contribui para transmitir uma falsa ideia de uma consciência do
"eu", e em vista disto, consideramos que o "eu" é diferente do corpo e da
mente.
Embora acreditemos nisso, quando procuramos um "eu" analiticamente,
não encontramos um "eu" existente à parte do corpo e da mente. Por outro
lado, se esse "eu" não existisse absolutamente, não haveria nenhum ser
humano; indicando então que se trata de um "eu" convencional, que é mera
imputação ou nome que não é substancial. Quando chegamos à conclusão de
que a essência de um fenômeno não pode ser encontrada depois de ter sido
investigada através da análise, essa não é uma indicação de esse fenômeno
não existe, mas se presta a negar sua existência inerente. Vamos
compreender, que a partir da análise de um fenômeno que tem, no nivel
convencional, qualidades como a de ir e vir ou produção e cessação, resulta
na refutação da existência intrínseca ou inerente.
Insubstancialidade e Interdependência
Nada realmente existe como um objeto independente. Um carro, quando
examinado de perto, tem quatro rodas, um chassi, um motor; visto ainda mais
de perto é simplesmente a mistura de metal e borracha, vidro e plástico, couro
e pintura. Um livro não é um todo unificado; é a combinação de páginas
individuais, que são feitas de fibra de papel e de tinta. E assim por diante, até
uma visão molecular ou atômica. É um equívoco acreditar que o carro é um
todo sem partes, quando na verdade é composto de infinitas partes que são
interdependentes.
Portanto, ao vermos algo que nos agrada - no nosso exemplo um carro -
nós o percebemos como possuidor de uma qualidade real de existência entre
suas partes. Não vemos o carro como uma coleção de partes, mas como uma
entidade existente, dotada de qualidades específicas típicas de um carro. E,
quando se trata de um carro que desperta o desejo de adquirí-lo, nossa
percepção é acentuada pelas qualidade percebidas como inerentemente
existentes e que são entendidas como parte da natureza do carro. Devido a
percepção equivocada do carro surge o desejo de adquirí-lo. Igualmente, a
aversão em relação a outro carro do qual não gostamos surge como resultado
de atribuirmos qualidades repulsivas que lhe seriam intrínsecas.
Como as coisas não existem apenas por sua livre e espontânea vontade,
mas na dependência de condições, elas mudam onde quer que encontrem
condições diferentes. Desta forma, elas vêm a existência sob a dependência
de certas condições e cessam de existir sob a dependência de condições. A
própria falta de qualquer existência inerente, independente de causa e
condições, é a base para todas as mudanças possíveis para um dado
fenômeno, tais como nascimento, cessação e assim por diante.
Consequentemente, quer seja um fenômeno externo ou interno, não há nada
que não seja dependente de suas partes ou de seus aspectos.
Ao relacionarmos esse processo com o modo como vivenciamos nosso
sentido de existência e também ao modo como surge a ideia de "eu", notamos
que ele se dá, invariavelmente, em relação a algum aspecto de nossas partes
físicas ou mentais. A ideia que temos de nós mesmos baseia-se não só no
sentimento de nosso eu físico e afetivo, mas também porque sentimos que
esses aspectos físicos e mentais têm existência própria. Logo, uma mera
sensação corporal de calor ou frio contribui para nutrir o sentimento de
sermos um "eu" sólido e legítimo.
No nívem superficial, a existência dependente e o vazio, explicados acima,
pode parecer contraditórios. Porém, no nível mais profundo pode chegar a
compreender que os fenômenos, por serem vazios, existem de forma
dependente e, por causa dessa existência dependente, são vazios por natureza.
Assim, pode-se estabelecer tanto o vazio como a existência dependente num
único fundamento, mas que possui duas faces.
O Continuum da Mente e o Continuum do Mero Eu
Todos os seres sencientes são dotados de mente, que é muito mais que
pensamentos e capacidades mentais. Mente no sentido usado no livro, é
consciência ou consciência mental, – uma forma de energia não física – que é
naturalmente lúcida e reflete tudo que é vivenciado como se fosse um
espelho. Desse significado decorre também que ninguém faz parte de uma
mente maior ou universal, pois cada um tem a sua própria corrente mental ou
continuum mental - continuidade da mente no tempo.
Diferentemente do cérebro, que tem pensamentos e sensações, a mente não
é uma coisa, mas o espaço no qual os pensamentos, sensações, sentimentos,
percepções, lembranças e sonhos vêm à luz. Todavia, a mente não é espaço
propriamente dito, porque ela nunca tem formato e cor. Já o espaço pode ter
formato e cor: claridade durante o dia e escuridão durante a noite. Apesar da
mente não deixar rastros, é possível reconhecer que ela além de não ter
formato e cor também não tem forma, tamanho, cheiro ou som. Embora
intangível, ela está presente em todos os lugares, e em todos os tempos,
permitindo o surgimento dos objetos e está envolvida com eles; pode-se
afirmar inclusive, que todos os fenômenos são precedidos por ela.
Ao nos enxergarmos como seres humanos, nossa identidade depende do
corpo-mente. Esse continuum do "eu", composto por uma coleção de
momentos de "mim mesmo", tem seu início no nascimento ou na concepção e
termina na morte. Ao olhar para o passado pensamos "Quando era um
bebê...", "Quando aprendi a ler...", "Quando era adolescente...", "Quando era
adulto...", nós desenvolvemos uma forte identificação com o continuum que
contempla todas as etapas de nossa vida. Sem a identificação como seres
humanos, ou seja, como "eu" ou "mero eu" será que esse "eu" teria começo
ou fim?
Uma mente surge em dependência de uma mente do mesmo tipo que lhe é
anterior, que requer que haja um antigo continuum sem começo da mente. Se
a produção de uma mente não dependesse de momentos anteriores da mente,
mas pudesse ser produzida sem causas, então a mente poderia ser produzida
em qualquer lugar a qualquer tempo, algo sem sentido. De modo semelhante,
se a mente não fosse produzida como um continuum de uma entidade anterior
da mente e, no lugar, fosse produzida por algo físico, ela poderia ser
produzida ou não, o que também não faz sentido. Logo, isso indica que a
mente é um continuum de uma entidade anterior da mente. Dito de outro
modo, se houve um momento inicial para o continuum da nossa mente, uma
hipótese seria ele ter brotado do nada, outra possibilidade apontaria para uma
causa que não seria minimamente proporcional à natureza da própria mente.
Como nenhuma dessas hipóteses é aceitável, podemos afirmar que o
continuum da mente não tem começo.
Visto que o continuum dos momentos da mente deve estender-se ao
passado por momentos infinitos. E, assim como o continuum da mente não
tem começo, a identidade do "eu" imputada por esse continuum é desprovida
de início. E quanto ao fim da mente? Como não há começo, também não há
fim. Portanto, não termina com a morte; esse continuum não cessa.
Meios Hábeis
Todos nós podemos compreender a impermanência e o “não eu” de forma
intelectual, mas este ainda não seria o entendimento final. Se meditarmos
cuidadosamente sobre a impermanência, veremos que ela não significa
apenas que os fenômenos estão sujeitos à mudança. De início, ao olharmos
para a natureza das coisas, notamos que elas não permanecem como são por
dois momentos consecutivos. E porque elas não permanecem inalteradas de
momento a momento, estão sujeitas a mudança contínua. Assim, ao captar o
que o Buda quis dizer com impermanência e a forma como ela afeta tudo que
é condicionado, compreendemos com facilidade que o livro que estamos
lendo, a cadeira em que estamos sentados e o nosso corpo não escapam a
mudança contínua. Contudo, temos por hábito dar nome ou rotular as
pessoas, coisas etc., embora elas pareçam sólidas e substanciais, mesmo que
em constante transformação, não tem uma natureza que permaneça sempre a
mesma. Se a natureza de algo não tem identidade fixa ou permanece a
mesma, como pode ser considerada sua verdadeira essência ou natureza? Daí
afirmarmos que quanto à impermanência há a falta de uma identidade
imutável, fixa ou estática no que se mostra transitório. Contemplar a
impermanência nos leva a descoberta do “não eu”.
Meditar sobre o “não eu” demandará mais tempo porque consideramos a
nós mesmos, as coisas e o mundo como entidades sólidas, estáveis e
duradouras, apesar das constantes evidências de que tudo está sujeito à
mudança e à destruição. Nossa noção de “eu” parece imutável. “Eu” sou “eu”
e “eu” continuarei sempre assim. Somos muito apegados ao corpo, o que nos
leva a acreditar que existe uma essência absoluta em nosso interior que seria
nosso verdadeiro “eu”. Assim como os seres humanos, todos os fenômenos
carecem de natureza própria. Os fenômenos surgem em decorrência de outros
fenômenos. Assim que as causas e condições que os geraram e os mantém se
extinguem, todos os fenômenos deixam de existir.
Dizer que os fenômenos não têm natureza própria é dizer que seu
surgimento depende de outros fenômenos ou que eles são “vazios”. Não ter
natureza própria significa que as coisas ou fenômenos dependem de outras
coisas para existir. Nenhuma delas é independente ou capaz de existir sem as
demais. É como quando vemos uma miragem: não há nenhum objeto
verdadeiramente existente lá, embora pareça existir. Com o vazio
(vacuidade), o Buda quis dizer que as coisas não existem verdadeiramente
como nós erroneamente acreditamos que seja, e que elas são vazias de uma
existência falsamente imputada. De forma simplificada, quando falamos
sobre o vazio, queremos dizer que a forma como as coisas aparecem não é a
maneira como elas realmente são. Vacuidade no Budismo é o vazio de um
“eu”. As coisas são vazias de um “eu”, um “eu” inerente. É como no exemplo
da miragem, podemos vê-la e achar que é real, mas ao chegar perto, vemos
que ela carece de existência inerente.
Na verdade, os ensinamentos do Buda são meios ou ferramentas; eles não
são a verdade absoluta. Então nós temos que dizer que a impermanência e o
“não eu” são meios hábeis para nos ajudar a realizar a verdade; eles não são a
verdade absoluta. O Buda disse: "Meus ensinamentos são um dedo apontando
para a lua. Não se engane ao pensar que o dedo é a lua. É por causa do dedo
que você pode ver a lua".
Sofrimento
A palavra “sofrimento” é a tradução do termo dukkha ou dukha, cujo
sentido mais próximo seria o de “insatisfação”. É preciso deixar claro que
não existe uma única palavra que expresse a completa profundidade, extensão
e sutileza desse importante termo. Na tentativa de esclarecer o sentido dessa
palavra muitas traduções alternativas são utilizadas (desconforto, estresse,
insatisfação etc.).
Todos os seres, incluindo os seres humanos, não querem sofrer, mas nós
sofremos. Isso ocorre não só por causa do nascimento e existência,
envelhecimento, doença e morte, mas também por causa da adversidade, do
desconforto e da frustração. Mesmo a felicidade leva ao desejo de mais
felicidade e assim experimentamos a felicidade temporária ou contaminada.
Na superfície, a vida pode ser boa, repleta de excitações ou distrações, com
o dinheiro no banco e um bom trabalho, mas quando arranhamos a superfície
é certo encontrar aquele sentimento oco e vazio de insatisfação. Não há como
negar que o sofrimento faz parte de nossa experiência humana e que tudo o
que é contaminado está sujeito ao sofrimento. "Contaminado" refere-se à
contaminação da mente por estados mentais negativos. Isso significa que
sofrimento não é um objeto exterior, mas um estado mental, ou seja, os
estados negativos da mente, e os objetos que percebemos em relação a eles.
Logo, podemos sintetizar essa marca ou característica numa única frase:
“todos os fenômenos tem a natureza do sofrimento”.
Os Três Venenos
Os fatores que envenenam a humanidade e a encaminham para o erro são:
- Raiva (aversão), que além da raiva pode aparecer como aversão,
significando o não querer ou afastar algo;
- Desejo (apego), que além do desejo pode aparecer como apego,
significando o ficar preso física ou mentalmente a pessoas, objetos e
fenômenos;
- Ignorância (visão equivocada), que além da ignorância pode aparecer
como delusão, significando não ter uma visão clara da vida, distorcer a
natureza verdadeira das coisas.
O Buda chamou de Três Venenos porque são toxinas perigosas para nossas
vidas. Esses venenos criam energias mentais negativas. Estas energias são
expressas em nossas ações, palavras e pensamentos, causando um sofrimento
cíclico, em cadeia, que se repete infinitamente. Estes venenos agem de
maneira interdependente. Quando temos uma visão distorcida da vida,
acabamos criando desejos e apegos. E quando não conseguimos o que
queremos, criamos aversão e ficamos com raiva.
Delusão
Moha é o termo comumente traduzido como "delusão”, podendo ser
explicado de diferentes maneiras e em diferentes níveis dentro de diferentes
ensinamentos ou tradições budistas. No nível mais fundamental, é a distorção
da verdadeira natureza da realidade; mais especificamente, a percepção
equivocada ou falsa da essência dos fenômenos.
A delusão se dá quando vemos algo, mas não conseguimos perceber que há
outra realidade implícita. A delusão nos engana e obstrui qualquer outra
visão. Ocorre geralmente quando olhamos para certa coisa e esquecemos
todas as outras. De modo geral, a delusão refere-se a crença em algo que
contradiz a realidade, trazendo perturbação e sofrimento.
As delusões são nosso verdadeiro inimigo e de todos os seres vivos porque
a escuridão da delusão oculta a natureza das coisas. Há três delusões
principais: ignorância, apego desejoso, e raiva. Destas surgem todas as outras
delusões, como ciúme, orgulho e dúvida.
A Natureza do Sofrimento
O Buda viu como todo sofrimento é causado pelo que chamamos de
existência condicionada e como todos nós estamos igualmente sujeitos a ela.
Precisamos entender que ele não pediu para que sofrêssemos, mas para que
entendêssemos o sofrimento como ele realmente é. Ao investigar a natureza
da nossa insatisfação subjacente também poderemos ver a respectiva história
e, a partir desse ponto, encontrar uma saída para a nossa situação. Se o
sofrimento é causado, então ele pode acabar - o sofrimento tem uma causa e
um fim.
Já que todo sofrimento tem uma causa, se a causa não for removida é
imposível escapar dela. Se, entretanto, tratamos a causa do sofrimento,
podemos evitar para sempre que ele se repita. Mesmo que nada possa ser
feito a respeito do sofrimento do passado, urge fecharmos a porta para o
sofrimento futuro. Portanto, devemos conhecer a causa do sofrimento, e suas
duas divisões: karma (ação) e klesha (impurezas mentais).
Neste exato momento, experimentamos muitos sofrimentos cuja causa nós
mesmos criamos em renascimentos anteriores. Todo sofrimento é criado pela
mente descontrolada e pelas ações não virtuosas. Para eliminar o sofrimento,
Buda deixou 84 mil ensinamentos, cada um referente a uma doença da mente
derivada dos Três Venenos. Escapar do oceano de sofriemntos - o samsara -
só depende de nós, pois se dependesse do Buda não haveria ninguém no
samsara, porque este foi seu maior desejo. Logo, cabe a nós mesmos
trabalharmos para nos libertar de todo tipo de sofrimento.
Existência Cíclica
Falar sobre sofrimento demanda que abordemos outro conceito importante,
o samsara. O conceito de samsara no Budismo refere-se ao ciclo de vida, que
inclui o nascimento, vida, morte e renascimento. O termo pode ser traduzido
literalmente como "movimento contínuo". Samsara é a contínua repetição do
ciclo de nascimento e morte, onde os seres passam pelos Seis Reinos da
existência. Este conceito está intimamente relacionado com as ideias de
carma e nirvana.
No ensinamento budista, a razão do samsara existir reside no fato de que
as pessoas se fixam em si mesmas e nas suas experiências. Ele vem da
ignorância culminando num estado de sofrimento e insatisfação. O samsara
pode ser superado por seguir o caminho budista e melhorar o seu carma.
Essencialmente, samsara é a vida na terra, cheio de tristeza e dor.
Carma
A palavra “karma” em sânscrito contém tantas implicações que a palavra
ação em português não consegue abarcar todo o seu conteúdo. De forma
sucinta, a lei da causa e efeitos ou causalidade afirma que nossas ações de
corpo, fala e mente geram consequências ou resultados. E a natureza destes
resultados será determinada pela natureza da intenção. As intenções boas
geram efeitos positivos, enquanto que intenções más produzem resultados
efeitos.
Muitos ignoram a lei da causalidade ou a entendem de modo equivocado,
acreditando que o carma denota alguma forma de fatalismo, sem
compreender que nossa vida é condicionada não só pelo nosso
comportamento presente, mas também pelas nossas ações passadas e,
portanto, não existe destino. Há também aqueles que pensam que podem
driblar os efeitos de seus atos ou até, de alguma forma, nem mesmo criar
causas, mas se iludem, pois todas as ações intencionais são causas que geram
efeitos, e estas necessariamente trazem resultados, que diferem apenas no
grau e no tempo de acordo com as circunstâncias. Existem ainda aqueles que
acreditam que as causas ou os efeitos surgem do nada, mas de acordo com a
lei do carma, as ações e experiências não podem surgir do nada. Nossas ações
de um dado momento são o resultado de ações e experiências anteriores. Da
mesma forma, não é possível para as ações desaparecerem sem deixar
resíduos ou resultados uma vez que a ação foi realizada. Muitos acham que
poderia ser de outra forma, embora o Buda tenha explicado que seria como
acreditar na hipótese de não criar ondulações num lago, ao qual se atira uma
pedra. Assim, nossas ações, em qualquer momento, não são apenas o
resultado de ações anteriores, mas também criam as condições para ações
futuras. O Buda disse: "Se você quer entender o passado, olhe atentamente
para o presente. Se você quiser entender o futuro, olhe atentamente para o
presente".
Tipos de Sofrimento
Para nosso benefício, os mestres budistas categorizaram o sofrimento em
diferentes divisões: os dois tipos, os três tipos e por último os oito tipos de
sofrimento. Vejamos esses três conjuntos de sofrimentos listados abaixo.
Estas listas são destinadas a ajudar-nos a ver o que está aqui dentro de nós da
forma mais clara e precisa possível.
O sofrimento pode ser divido em dois tipos:
1. Interno: É aquele que geralmente é considerado parte de nós: dor física,
ansiedade, ciúme, medo, raiva etc.;
2. Externo: É aquele que aparentemente vem de fora: catástrofes naturais,
crimes, guerras, chuva, calor etc.
Os Cinco Agregados
A expressão “cinco agregados” é a tradução do termo skandha. O Buda
ensinou que nós como pessoas somos a combinação de Cinco Agregados de
existência. São eles: forma, sensações, percepções, formações mentais e
consciência.
Quando olhamos mais de perto para aquilo que nós chamamos de “eu”,
podemos ver que ele inclui vários elementos, não apenas as partes que
compõem os nossos corpos físicos, mas também os nossos vários sentidos e
nossas mentes. Os componentes que compõem os Cinco Agregados
trabalham juntos e de maneira tão perfeita que criam a sensação de um único
“eu”. Mas o Buda ensinou que não existe um "eu" que ocupa os Cinco
Agregados. Compreender os Cinco Agregados é útil para ver através da
ilusão do “eu”. Daí o Buda ter ensinado que os Cinco Agregados são
sofrimento.
No Budismo, quando queremos examinar o “eu” podemos fazer uso das
cinco categorias ou os Cinco Agregados. Cada coisa que nós pensamos como
"eu" é em função dos Cinco Agregados. Dito de outra forma, podemos
entender um indivíduo como um processo dos Cinco Agregados.
Na verdade, todos os fenômenos condicionados podem ser incluídos nestes
Cinco Agregados, mas quando estamos investigando o “eu” nos limitamos a
forma de nossos corpos e de nossos próprios pensamentos e assim por diante.
Os Cinco Agregados são:
1. Forma. Significa o nosso corpo, incluindo os cinco órgãos dos sentidos e
o sistema nervoso. A natureza do corpo é impermanente e interdependente.
2. Sensações. Existe um rio de sensações dentro de nós, e cada gota desse
rio representa uma sensação. A natureza das sensações é impermanente e sem
substância. Uma sensação qualquer surge, permanece por algum tempo, e a
seguir surge outra e assim sucessivamente.
3. Percepções. Existe um rio de percepções dentro de nós. Elas surgem,
permanecem por algum tempo, e depois desaparecem. O agregado da
percepção é composto da ação de prestar atenção, de nomear, formular
conceitos, e também daquele que percebe (sujeito) e daquilo que é percebido
(objeto).
4. Formações mentais. Qualquer coisa que venha a surgir a partir de outra é
uma "formação". Uma flor é uma formação, porque ela não surge do nada,
dependendo da luz do sol, do solo, da água, minerais etc. O medo também é
uma formação, uma formação mental. Nosso corpo é uma formação física.
Sensações e percepções são formações mentais, mas como são muito
importantes, receberam uma categoria própria. Existem cinquenta e uma
categorias de formações mentais. Portanto, o Quarto Agregado consiste em
quarenta e nove dessas formações mentais (excluindo-se as sensações e as
percepções). Todas as cinquenta e uma formações estão presentes dentro da
consciência armazenadora, sob a forma de sementes. Cada vez que uma
semente é afetada, ela se manifesta nas camadas superiores da nossa
consciência (mente consciente) como uma formação mental.
5. Consciência. A palavra consciência significa mente ou mente
consciente. O Budismo ensina que o que chamamos de consciência, consiste
em nove consciências separadas. Quando nascemos temos seis consciências:
visual, auditiva, olfativa, gustativa, tátil e mental. A sexta consciência pode
ser vista como a consciência da vontade. A sétima consciência como a
consciência emocional (não gosto/gosto). A oitava consciência como a
consciência intelectual que armazena todas as nossas experiências e
pensamentos. E a última consciência como a consciência búdica – natureza
original, natureza de Buda ou verdadeira natureza. Quando as formações
mentais não estão manifestadas, estão armazenadas na consciência
armazenadora sob a forma de sementes - sementes de alegria, paz,
compreensão, e assim por diante. Existem cinquenta e uma categorias de
sementes enterradas profundamente no solo de nossa consciência. Cada vez
que regamos uma delas, ou permitimos que outra pessoa as regue, essa
semente vai se manifestar e se tornar uma formação mental.
Desequilíbrio dos Cinco Agregados
O desequilíbrio dos Cinco Agregados se refere ao fato de que as
consciências se separam, ao invés de atuarem em harmonia, umas com as
outras. Não precisamos ficar preocupados, pois todas as pessoas
experimentam esse tipo de desequilíbrio.
Todos os dias, a todo instante, as consciências estão em conflito, umas com
as outras. De forma leve ou intensa, há este desequilíbrio dos Cinco
Agregados quando experimentamos, respectivamente, um fluir harmônico ou
confusão interior (paralisia).
Apego e os Oito Sofrimentos
Claro que o sofrimento está presente todos os dias - dor, dificuldades,
doenças e desconforto - mas tem mais a ver com o sofrimento psicológico,
aquele sentimento de insatisfação que está profundamente enraizado na nossa
mente.
Todos nós sofremos, e tomados como um conjunto, os Oito Sofrimentos
formam o mundo limitado e estreito que a maioria das pessoas cria para si
mesma. É assim que ficamos presos numa esfera de sofrimento, criados por
nós mesmos e acabamos cegamente apegados as nossas sensações. O insight
do Buda - que os Cinco Agregados que estão sujeitos ao apego levam ao
sofrimento – nos permite compreender o sofrimento no nível mais profundo.
Ele quer dizer que tudo sobre nós, todos os nossos componentes físicos e
mentais, estão sofrendo porque nos apegamos a eles de alguma forma. Mas,
se alcançamos o insight sobre a impermanência corretamente, vamos acabar
com os Oitos Sofrimentos.
O Buda atingiu a realização suprema de que a mente, que é guia do nosso
corpo, nunca envelhece ou morre. O Buda atingiu essa verdade, ele alcançou
a compreensão de que não existe, nem nascimento, nem morte; tampouco há
doença ou velhice. A nossa verdadeira natureza se quer nasce ou morre.
Nirvana
O termo “nirvana” está associado tanto ao Hinduísmo como ao Budismo.
Em ambos, a palavra se refere a um estado mais elevado de ser, embora
visualizem este estado de maneira muito diferente. É uma palavra do
sânscrito que pode ser traduzida como "extinção". Neste caso, significa
extinguir a ignorância, o ódio e o sofrimento. Para os budistas, a expressão
“cessação do sofrimento” é uma tradução comumente aceita.
Na visão budista, é o nome dado ao estado de libertação dos sofrimentos
ou ainda o "estado de liberdade da existência cíclica". Entendido também a
liberdade quanto aos efeitos do carma ou a extinção de dualidades e a fusão
do nirvana e do samsara numa existência absoluta. Ou ainda quiescência,
também chamado de “a equalização de toda pluralidade”. A multiplicidade de
significados ocorre porque para cada escola budista existem interpretações
diferenciadas do que seja o nirvana, e de como ele é alcançado.
Muito embora as várias escolas do Budismo entendam o nirvana de
maneira diferente, num ponto elas geralmente concordam: o nirvana não é
um lugar. É mais como um estado de existência. No entanto, o Buda também
disse que qualquer coisa que possamos dizer ou imaginar sobre nirvana vai
estar errado, porque é totalmente diferente da nossa existência comum.
Nenhuma expressão em qualquer idioma pode cobrir totalmente o verdadeiro
significado da experiência do nirvana. Explicar o nirvana é um pouco como
tentar explicar o sabor do açaí para alguém que nunca o provou. É difícil, se
não impossível. Daí dizermos que o nirvana está além do espaço, do tempo e
de qualquer definição.
No entanto, podemos entendê-lo como a cessação da ilusão - a extinção ou
descrença da dualidade. É a extinção de todas as noções e ideias, escapando
às nossas concepções de bem e mal, certo e errado, existência e não
existência. Quando nos libertamos dessas noções, poderemos tocar nossa
verdadeira natureza. Daí dizermos que o nirvana não é fabricado porque está
"além dos extremos".
O próprio Buda ensinou que o nirvana esta além da conceituação humana
ou imaginação, desanimando todos aqueles que se ocupavam com
especulações. O nirvana está além da felicidade e da infelicidade. É a
derradeira liberação das cadeias da ignorância e delusões. O caminho
proposto por Buda não leva à felicidade, mas a libertação do sofrimento por
estar livre da ignorância e suas confusões. Isso leva a um estado de felicidade
desprovida de felicidade e infelicidade, a paz última, sem opostos. Portanto,
atingir o nirvana é escapar do samsara. Quando alcançamos o nirvana,
paramos de acumular carma ruim.
Contemplação dos Selos
Meditação
A meditação é um esforço consciente para conhecer como a mente
funciona e treiná-la. A palavra Pali para a meditação é "bhavana" que
significa "fazer crescer" ou "desenvolver". A meditação pode ser comparada
a um excursão exploratória dentro das nossas mentes. Como já foi dito, trata-
se de um processo investigatório que tem dois objetivos: o primeiro é
entender como a mente funciona; e o segundo é treiná-la.
Ao entender como a mente funciona, compreendemos porque acabamos
agindo ou dizendo coisas em determinadas situações, que na maioria das
vezes acaba ferindo a nós mesmos e aqueles que estão a nossa volta. Já ao
treinarmos a mente deixamos de lado os hábitos mentais que prejudicam os
outros e a nós mesmos, e que nos afastam da verdadeira felicidade. Treinando
nossa mente vamos descobrir que somos capazes de manter a mente feliz e
em paz o tempo todo, até em circunstâncias difíceis, o que aliás é um
indicativo de que tivemos sucesso no nosso treino. Se treinarmos nossa mente
desse modo, tudo o que encontrarmos aumentará nossas realizações de
Dharma.
Gradualmente, a meditação nos propiciará a criação de um espaço mental
que permite responder ao mundo exterior de forma mais significativa,
ponderada e benéfica. De fato, a meditação além de nos mostrar como a
mente está agitada, também mostra como podemos ser felizes treinando-a, ou
seja, controlando essa agitação e reduzindo os estados mentais que a
produzem. Assim sendo, vamos cultivar estados mentais que nos tornam
felizes, alegres e pacíficos.
Para ser eficaz, a meditação deve ser praticada em conjunto com a
moralidade e a sabedoria. Sem um firme alicerce moral, a meditação nunca
pode gerar os frutos maravilhosos que poderia dar. Sem sabedoria, mesmo
que a prática produza bons resultados, estes não poderão ser utilizados ou
compreendidos plenamente pelo praticante. No budismo, damos a
moralidade, a meditação e a sabedoria são conhecidos como os Três
Teinamentos. Daí aparecerem agrupados desse modo, como se fossem um
todo, por ser fundamental que os três sejam praticados simultaneamente.
Tipos de Meditação
Existem dois tipos principais de meditação budista: Vipassana (insight) e
Samatha (tranquilidade). Os dois são muitas vezes combinados ou utilizados
um após o outro (normalmente o Vipassana segue o Samatha).
A finalidade básica da meditação Samatha ou tranquilidade é aquietar a
mente e treiná-la para se concentrar. O objeto de concentração é menos
importante do que a própria habilidade de concentração, e varia de acordo
com cada situação.
Muitas das habilidades aprendidas na meditação Samatha podem ser
aplicadas a meditação de Vipassana, embora o objetivo final seja diferente.
Como o próprio nome sugere, o objetivo da meditação Vipassana é a
realização de importantes verdades, daí ela ser chamada de meditação
“analítica” ou insight. Especificamente, aquele que pratica Vipassana espera
realizar as verdades da impermanência, sofrimento e vacuidade ("não eu").
Em cada meditação budista, tem de haver dois fatores: concentração e
sabedoria. A diferença entre Vipassana e Samatha é que na primeira a
sabedoria é o fator principal, enquanto que na última a concentração é o fator
principal. Mas deve entender-se que estes dois fatores devem coexistir em
ambas. O que se entende por sabedoria aqui é a compreensão da natureza do
objeto.
Meditação da Respiração
A meditação da respiração (Anapanasati) é uma forma de meditação
Samatha. Trata-se de pousar a atenção, leve e atentamente, na respiração. O
simples ato de direcionar a atenção para a respiração produz calma e
consciência. Isto pode ser praticado em qualquer lugar.
A principal atividade mental usada na meditação sobre a respiração é a
atenção plena (contínua-lembrança), a habilidade de manter a atenção
focalizada sobre o que quer que se esteja fazendo, sem vagar para outros
objetos. Aqui, o objeto da atenção plena é a própria respiração.
É entrar em contato com a expiração e deixá-la dissolver por si mesma, ou
prestar atenção à expiração de forma leve e suave, ou ainda ser um com a
respiração à medida que se relaxa na expiração.
Meditação Sentada
Ao praticar a meditação da respiração estaremos sentados numa almofada,
cadeira ou poltrona. É como se nós estivéssemos num laboratório. Nós
desaceleramos nosso corpo-mente o suficiente dedicando um olhar mais
atento à própria vida. É como assistir a um vídeo de dança e vê-lo em câmera
lenta. Uma vez que os movimentos individuais são vistos e as transições são
observadas, a versão em velocidade normal faz mais sentido quando se quer
aprender a dançar.
Meditar sobre o vaivém da respiração comporta três etapas indispensáveis:
1. Prestar atenção num objeto escolhido (no caso, a respiração);
2. Manter a atenção nesse objeto (passagem do ar nas narinas, vaivém do
abdômen ou dos pulmões);
3. Estar plenamente consciente (atenção plena ou contínua-lembrança) do
que o caracteriza, de sua natureza.